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ISSN 2526-7949

VI Congresso
SESC de
Arte/Educação
Utopias Pedagógicas em Artes
como Gesto de (Re)Existência

Organização
Rudimar Constâncio

Homenagem a
Ingrid Koudela e
Rosa Vascocelos

AN AI S 20 1 8

1
VI Congresso
SESC de
Arte/Educação
Utopias Pedagógicas em Artes
como Gesto de (Re)Existência

Organização
Rudimar Constâncio

Homenagem a
Ingrid Koudela e
Rosa Vascocelos

ANAIS 2018

2
AUTORES

Adriana Ferreira Santana Franco W. Lima da Fonseca Marília Martha França Sousa
Adriana Tobias Silva Francy Izanny de Brito Barbosa Martins Marilia Teodoro de Leles
Alan Silva Barbosa Fred Nascimento (Grupo Totem) Mário de Faria Carvalho
Alan Silva Barbosa Gabriela Bom Matheus Gomes da Costa
Alcione Cristina Alves de Aquino Gabriela Cabral (Grupo Totem) Matheus Rosa da Silva Gomes
Alcione Melo Trindade Geanne Soares da Silva Mauricio Igor Neves de Almeida
Alexandre Cardoso Oshiro Giorrdani Gorki Queiroz de Souza Messias Aroldo Araújo Muniz Júnior
Alexandre Geisler de Brito Lira Gislene dos Santos Furtado Meyrla Conceição Lins Santana
Alexandre Geisler de Brito Lira Graciele Maria Coelho de A. Gomes Miclene Batista Souza
Aline Oliveira Soares Guilherme Panho Moisés Monteiro de Melo Neto
Allyne Matos Nogueira Guilherme Panho Mônica (Lua) Alves Barreto
Amanda Caline da Silva Omar Heloise Baurich Vidor Mônica Leite da Silva
Amanda de Sampaio Alves Duarte Igor de Almeida Silva Monica Rodrigues de Farias
Ana Claudia O. Freitas Ihédilla Humberta Sinésio C. da Silva Murillo Freire
Ana Elisabete R. de C. Lopes Inácio Alves Dantas Neto Nata Borges Ferreira
Ana Júlia Inácio Alves Dantas Neto Natan Santos Ferreira
Ana Mae Barbosa Inaê Veríssimo (Grupo Totem) Nathalia Cesar Goulart
Ana Paula Abrahamian de Souza Ingrid Borba de Souza Pinto Domingos Niara Mackert Pascoal
Ana Valéria Vicente Ingrid Dormien Koudela Niedja Ferreira dos Santos Torres
Anderson Alves dos Santos Isaac de Souza Assunção Noeli Moreira
Andréa Luísa Frazão Silva Isabel Alves Corrêa de Abreu Pablo de Souza Barros
Andreia Maria Ferreira Reis Isabel Bezelga Pablo Roberto Vieira Ferreira
Anselmo Martins de Souza Junior Izaias Trajano da Silva Neto Patrícia Couto Barreto
António Ângelo Vasconcelos Jacqueline Rodrigues Peixoto Pedro Haddad Martins
Arlete dos Santos Petry Joana D’arc dos Santos Oliveira B. Pedro Henrique Barbosa da Silva
Artur Duvivier João Denys Araújo Leite Pedro Rodrigues Pereira da Silva
Arthur Leandro Moraes Maroja João Silvério Trevisan Rachel de Sousa Vianna
(in memoriam) Jorge Dubatti Rafael de Lima Freitas
Auvaneide Ferreira de Carvalho José Albio Moreira de Sales Ramon Santana de Aguiar
Benedito José Pereira José Márcio Barros Raylla Brito Vieira
Brenda Gomes Bazante José Renilson Targino Ferreira Filho Rebeka Caroca Seixas
Bruna Caroline Nazário de Souza José Roberto Nascimento Junior Renata Caldas
Bruna Patrícia Ferreira da Silva Judivan José Lopes Rhayssa Figueiredo de Lira Siqueira
Carlos Kater Juliano Casimiro de Camargo Sampaio Ricard Huerta
Carolina de Santi Estácio Karine Ramaldes Ricardo Carvalho de Figueiredo
Catarina Viana da Silva Lara Pinheiro de Oliveira Rita Tatiana Gualberto de Almeida
Claúdia Ângela Vilela de Almeida Buril Larissa Rachel Gomes Silva Robson Camargo
Cláudia Cazal Lira Lariza Zanini César Nakatani Rodrigo Lopes Silva Padrão
Cláudio Marcelo Carneiro Leão Lacerda Layane Pereira Pavão Ronildo Júnior Ferreira Nóbrega
Gal Martins Leandro de Oliva Costa Penha Rosifrance Candeira Machado
Cleber de Sousa Carvalho Leniée Campos Maia Rúbia Lopes
Conceição Myllena F. Rolim Lindinaldo Caitano Rudimar Constâncio
Cristiane Maria Galdino de Almeida Lucas Viera de Oliveira Sandra de Souza Melo
Dado Sodi Luciana Borre Sergio dos Santos Reis
Danilo Santos de Miranda Luís Carlos Ribeiro dos Santos Simone Maria dos Santos
Dayse Euzebio de Oliveira Márcia Chiamulera Stefany Lopes de Lima
Dayze Euzébio de Oliveira Márcia Julieta Figuerêdo Souza Sueudo Fernandes da Silva
Débora de Lima Cabral Marcio Figueiredo de Sá Leitão Taciana Pontual da Rocha Falcão
Diogo José de Moraes Lopes Barbosa Marco Cézar de Oliveira Brito Filho Thaysa Cordeiro Silva
Ediel Barbalho de Andrade Moura Marcos Paulo Gomes Miranda Uiaracy Maria Santana Vieira
Elthon Gomes Fernandes da Silva Marcos Paulo Gomes Miranda Valdelan Leite da Costa
Elze Maria de Oliveira Barroso Maria Aida Falcão Santos Barroso Valnei Souza Santos
Emanuely Arco Iris Silva Maria Betânia e Silva Valnei Souza Santos
Eroldo Leandro Moraes Júnior Maria Consuelo A Lima Vera Lúcia Bertoni dos Santos
Everson Melquiades Araújo Silva Maria Edneia Gonçalves Quinto Vicente Concílio
Fábio José Rodrigues da Costa Maria Helena Milanez Adami Veruschka Greenhalgh
Fernanda Pereira da Cunha Maria Helena Santana Moreira Vicent Carelli
Fernanda Roberta Lemos Silva Maria José Negromonte-Oliveira Virna Vasconcelos Lopes
Flaudemir Sávio Sousa Mendes Maria Valéria Vital de Souza Wandeallyson Dourado Landim Santos
Flávia Roberta Alves Costa Mariah Cysneiros da Silva Wellington Soares Gomes
Florian Vassen Mariana Reis Leal Fernandes Ziel dos Santos Mendes
Francimara Nogueira Teixeira Marilene Aparecida Batista

3
© 2018 by dos autores

UTOPIAS PEDAGÓGICAS EM ARTES COMO GESTO DE (RE)EXISTÊNCIA- VI


CONGRESSO INTERNACIONAL SESC DE ARTE/EDUCAÇÃO
ANAIS 2018

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO - SESC Curadoria | Cristiane Maria Galdino de Almeida, Everson


Melquíades Araújo Silva, Fernando Antônio Gonçalves
Presidente do Conselho | Antonio Oliveira Santos
de Azevedo, Igor de Almeida da Silva, Ivana Delfino Motta,
Rita Marize Farias de Melo e Rudimar Constancio.
DEPARTAMENTO NACIONAL Comissão Científica | Cristiane Maria Galdino de Almeida, 
Direção Geral | Carlos Artexes Simões Igor de Almeida da Silva (UFPE), Márcia Virgínia Bezerra de Araújo
Diretora de Educação| Claudia Fadel (UFPE) e Maria Betânia e Silva (UFPE) e Rudimar Constâncio.
Diretor de Cultura | Marcos Henrique Rego Coordenação Técnica | Eron Villar
Gerente de Educação | Cynthia Rodrigues Assistentes de Coordenação Técnica | Gabriel Félix e
Sueides Leal Ferreira
Gerente de Cultura | Márcia Costa Rodrigues
Coordenação Pedagógica | Ana Julia e Ariele Mendes de Freitas
Secretaria | Isis Agra
DEPARTAMENTO REGIONAL EM PERNAMBUCO
Coordenação de Estrutura Física e Material | Rúbia Danielle Lopes
Presidente | Josias Silva de Albuquerque Bezerra e Andrea Borges
Diretor Regional | Antônio Inocêncio Lima Coordenação de Livraria | Anny Rafaella Ferreira de Lima e Lucas Ferr
Controlador | Alessandro Rodrigues Coordenação de Transporte | Bilé Ares
Ouvidor | Fernando Soares Coordenação de Receptivo | Talita Guedes
Diretor de Administração e Finanças | Nivaldo Carvalho de Sousa Coordenação de Anjos | Ricardo Vendramini
Diretora de Educação e Cultura | Teresa Cristina da Rosa Ferraz Produção Executiva | Almir Martins, Ariele Mendes, Lucas Ferr,
Diretora de Atividades Sociais | Ana Paula Cavalcanti Marcela Aragão, Rakelly Nogueira, Samuel Lira e Valéria Barros
Gerente de Cultura | José Manoel Sobrinho Assistentes de Produção | Amanda Spacca, Anderson Damião,
Gerente de Comunicação e Marketing | Paula Lourenço Anderson Gzus, Bruna Bastos, Célia Regina Siqueira, Clovis Alves,
Professor II Artes - Teatro | Rita Marize Geraldo Dias, Ildete Mendonça, Josias Vieira, Luciano Rogério,
Lucrécia Forcioni, Madeline Eltz, Marinho Falcão, Pedro de Renor,
Winy Mattos
SESC PIEDADE Coordenação Geral da Exposição | Ana Júlia, Valkíria Dias
Gerente | Rudimar Constâncio e Rúbia Lopes
Professor II Artes | Rúbia Lopes Curadoria e expografia da Exposição | Marcondes Lima
Professor II Artes | Anny Rafaella Ferreira de Lima Coordenação de Produção da Exposição | Carla Denise
Professor II Artes - Teatro | Almir Martins Coordenação de Nutrição | Renata Galindo
Professor II Artes - Teatro | Ariele Mendes Coordenação de Comunicação | ASCOM
Professor II Artes - Dança | Marcela Aragão Designer Gráfico | Susy Souza, Marici Valente Seidensticker,
Professor II Artes - Dança | Valéria Barros Bruna Raphaela Ferreira de Andrade
Professor II Artes - Música | Rakelly Nogueira Registro Foto e Filmagem | Maker Mídia
Professor II Artes - Música | Samuel Lira Preparação do Material Original | Isis Agra
Instrutora de Atividades Artísticas | Ana Júlia da Silva Organização do Livro | Rudimar Constâncio
Estagiários de Cultura | Cleydson Luan Lima, Rafael Lima e
Rodrigo Hermínio EQUIPE DE EDITORAÇÃO
Organização / Rudimar Constâncio
FICHA TÉCNICA DO CONGRESSO Capa e Projeto Gráfico / Claudio Lira
Gestor do VI Congresso Internacional Sesc de Arte/Educação |
Serviço Social do Comércio – SESC Piedade
Rudimar Constancio
Rua Goiana, n. 40 – Piedade – Jaboatão dos Guararapes - PE
Coordenação Geral | Rudimar Constâncio, Everson Melquíades, Ana CEP: 54.420-000/ Fones: (81) 3361.6909/ 3361.0097
Julia e Rúbia Lopes E-mail: sescpiedade@sescpe.com.br

A168 Utopias Pedagógicas em Artes como Gesto de (Re)Existência - Vi Congresso


Internacional Sesc de Arte/Educação – Recife: SESC Pernambuco, 2018.
930 p.: il.
Inclui referências.
ISSN 2526-7949

1. Arte na educação. 2. Educação. 3. Estética. 4. Teatro. 5. Dança. 6. Arte.


7. Filosofia. 8. Professores - Formação. 9. Política cultural. I. - (Org.). II.
Constâncio, Rudimar, 1965 - (Org.). III.Titulo.

700.7 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2014-84)

4
Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo,
torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente,
ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor.
Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela
tampouco a sociedade muda.
[Paulo Freire]

Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda,


talvez, mas hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo
de acusar a injustiça? Lavar as mãos em face da opressão é
reforçar o poder do opressor, é optar por ele.
[Paulo Freire]

5
SUMÁRIO

/// APRESENTAÇÃO UTOPIA BRECHTIANA: PEDAGOGIAS


DO TEATRO EM PERSPECTIVA | 68
INTERCRUZANDO SABERES E IDEIAS Ingrid Dormien Koudela
PARA A (RE)EXISTÊNCIA DAS PEDAGOGIAS
EM ARTES | 13 O MATERIAL FATZER, DE BRECHT:
Ana Júlia da Silva, Rúbia Lopes DRAMATURGIA EM JOGO E UTOPIA | 80
e Rudimar Constâncio Francimara Nogueira Teixeira

/// MESA DE AFETOS CRIANDO CONTRAESPAÇOS | 88


Cláudio Marcelo Carneiro Leão Lacerda
SOBRE A HOMENAGEADA -
INGRID KOUDELA | 16 PROCESSOS DE CRIAÇÃO NA
Igor de Almeida Silva CONTEMPORANEIDADE | 95
Gal Martins
SOBRE A HOMENAGEADA -
ROSA VASCONCELLOS | 18 MEUS PROCESSOS CRIATIVOS
Everson Melquiades Araújo Silva EMPEDAGOGIA LITERÁRIA: O QUE ENSINEI,
O QUE APRENDI | 102
/// PARTE 1- PALESTRAS João Silvério Trevisan

UTOPIAS PEDAGÓGICAS EM ARTE COMO GES- LA ESCUELA DE ESPECTADORES DE BUENOS


TO DE (RE)EXISTÊNCIA | 20 AIRES (2001-2018): UN LABORATORIO DE
Danilo Santos de Miranda (AUTO)PERCEPCIÓN TEATRAL | 107
Jorge Dubatti
O LUGAR DO ENSINO DO TEATRO COMO
VONTADE DE ATUAÇÃO | 27 ARTE PARA O POVO É RECONSTRUÇÃO
João Denys Araújo Leite E RESISTÊNCIA | 113
Ana Mae Barbosa
FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM ARTES:
ESPANTO, SONHOS E IDENTIDADES O PROFESSOR MEDIADOR DE
NA CO-CONSTRUÇÃO DA ARTES VISUAIS | 119
PROFISSIONALIDADE DOCENTE | 35 Gabriela Bon
António Ângelo Vasconcelos
PAISAGENS PEDAGÓGICAS DIGITAIS: RESISTÊN-
O PEDAGOGO NA CONSTITUIÇÃO DO CIA, RESILÊNCIA, (RE) EXISTENCIA | 125
CAMPO PROFISSIONAL DA ARTE/EDUCAÇÃO Fernanda Pereira da Cunha
BRASILEIRA | 47
Everson Melquiades Araújo Silva UMA ESCOLA PARA O CINEMA INDÍGENA | 135
Vicent Carelli
USAR BRECHT: PERSPECTIVAS PEDAGÓGICAS
TEATRAIS NO TEATRO ÉPICO DE BERTOLT TEMAS EMERGENTES
BRECHT E NAS PEÇAS DIDÁTICAS | 57 (SEXUALIDADE E GÊNERO) | 140
Florian Vassen Ricard Huerta

6
“A MÚSICA DA GENTE”: A ARTE AMBIENTAL ENQUANTO PROPULSORA
EXPRESSÕES SONORAS PESSOAIS E CRIAÇÕES DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL | 203
MUSICAIS COLETIVAS. CONTRIBUIÇÃO Ihédilla Humberta Sinésio Cândido da Silva UFPB
CONTEMPORÂNEA PARA A EDUCAÇÃO MUSICAL Anderson Alves dos Santos
NAS ESCOLAS BRASILEIRAS | 141
Carlos Kater POÉTICAS DO FAZER ARTÍSTICO DE TRÊS
UNIVERSOS DOCENTES A PARTIR DA
ENSINO DE ARTE NA EDUCAÇÃO DE JOVENS ABORDAGEM TRIANGULAR | 207
E A LUDICIDADE COMO FERRAMENTA Monica Rodrigues de Farias
FACILITADORA NO ENSINO DA DANÇA | 146 Adriana Tobias Silva
Marcio Figueiredo de Sá Leitão Andréa Luísa Frazão Silva
Rafael de Lima Freitas
COMO IR A NOVA YORK, HAVAÍ E ALPES SEM
RE-FLEXÃO- CRIAÇÃO EM DANÇA E SAIR DE BELO HORIZONTE UMA EXPEDIÇÃO
AÇÃO CULTURAL | 153 ETNOGRÁFICA COM ARTISTAS | 216
Ana Valéria Vicente José Márcio Barros

JOGOS RAPSÓDICOS DE APRENDIZAGEM POSSIBILIDADES DA PESQUISA NARRATIVA


DAS ARTES CÊNICAS NO ESPAÇO ESCOLAR | 221
Brincantoria para Ingrid Dormien Koudela – Noeli Moreira
Jogando com IDK | 161
Luís Carlos Ribeiro dos Santos PROCESSOS CRIATIVOS – TRAJETÓRIA
NO CURSO DE ARTES VISUAIS | 229
O TEATRO HÍBRIDO E PERFORMÁTICO Raylla Brito Vieira
DO TOTEM E SUA PEDAGOGIA
DA PERFORMANCE | 166 PROCESSOS ARTÍSTICOS COMPARTILHADOS
Fred Nascimento, Gabriela Cabral, Inaê Veríssimo COM CRIANÇAS: PROVOCAÇÕES DO
(Grupo Totem) PROCESSO ARTÍSTICO DA PERFORMANCE
PARA O ENSINO DAS ARTES | 236
HULL HOUSE E A ORIGEM DOS JOGOS Rita Tatiana Gualberto de Almeida
TEATRAIS JUNTO AOS IMIGRANTES
NORTE AMERICANOS | 175 POR UMA PEDAGOGIA
Robson Camargo VIDEO_PERFORMATIVA: BRUCE NAUMAN
E O ENQUADRAMENTO COMO PRODUÇÃO
TEATRO COMO EXPERIÊNCIA LÚDICA DA REALIDADE | 244
DE APRENDIZAGEM | 179 Ronildo Júnior Ferreira Nóbrega
Vera Lúcia Bertoni dos Santos
PERFORMANCE E ESPAÇO URBANO:
JOGOS TEATRAIS E A PEDAGOGIA DO TEATRO: A CRIAÇÃO EM TRÂNSITO | 250
NOTAS SOBRE UMA (LONGA E PRODUTIVA) Pablo Roberto Vieira Ferreira
PARTIDA BRASILEIRA | 186
Vicente Concílio O CIRCO SOCIAL: TRANS/FORMANDO E
TRANS/PORTANDO | 257
Marilia Teodoro de Leles
/// PARTE 2- COMUNICAÇÕES ORAIS
PANORAMA DO FAZER CIRCENSE
A ARTE E O LIXO: DIÁLOGOS E REFLEXÕES EM GOIÂNIA | 264
NO CURSO DE FÉRIAS DA ESCOLINHA Lariza Zanini César Nakatani
DE ARTE DO RECIFE, JANEIRO DE 2018 | 193 Mônica (Lua) Alves Barreto
Veruschka Greenhalgh
A ARTE DA PALHAÇARIA E A FORMAÇÃO PSI:
RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UMA ESTUDANTE
DE PSICOLOGIA | 271
Bruna Patrícia Ferreira da Silva

7
A LUDICIDADE COMO FERRAMENTA PROJETO “A MÚSICA DA GENTE NA
FACILITADORA NO ENSINO DA DANÇA | 278 EDUCAÇÃO MUSICAL DO SESC”: EXPERIÊNCIA
Marcio Figueiredo de Sá Leitão COM A EJA NO SESC LER GOIANA | 356
Rafael de Lima Freitas Izaias Trajano da Silva Neto
Joana D’arc dos Santos Oliveira Botelho
A BUSCA DE UM CORPO DILATADO A PARTIR Anselmo Martins de Souza Junior
DA DANÇA FREVO | 284
José Renilson Targino Ferreira Filho EM BUSCA DA PEDAGOGIA
POÉTICA CÊNICA | 362
FÁBULA E POÉTICA DO CONVÍVIO: Matheus Rosa da Silva Gomes
REFLEXÕES SOBRE UMA OFICINA
DE TEATRO INTERGERACIONAL | 292 CRIAÇÃO, EXPLORAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO
Allyne Matos Nogueira DE CÓDIGOS DE LINGUAGEM NO ENSINO
DE TEATRO | 370
A POÉTICA POLÍTICA EM NARRATIVAS DA Juliano Casimiro de Camargo Sampaio (UFT)
AIDS - RELATOS DE CRIAÇÃO CÊNICA | 299
Franco W. Lima da Fonseca O ENSINO DE TEATRO NA PERSPECTIVA
DOS JOGOS TEATRAIS | 378
O TEATRO ENQUANTO POTÊNCIA PARA Maria Valéria Vital de Souza
A ALTERIDADE: COMPARTILHAMENTO
DE EXPERIÊNCIAS ARTÍSTICAS ENTRE SIMILARIDADES DE ABORDAGEM ENTRE
ESTUDANTES DE TEATRO E IDOSOS | 306 O PROCESS DRAMA E O PROCESSO
Ricardo Carvalho de Figueiredo COLABORATIVO | 386
Amanda de Sampaio Alves Duarte
ANÁLISE ACÚSTICA DA VOZ NA PERFORMANCE
TEATRAL: O “FORMANTE DO ATOR” | 311 PERDOA-ME POR ME TRAÍRES:
Maria Helena Milanez Adami A CONSTRUÇÃO DE UM PROCESSO
ARTÍSTICO-PEDAGÓGICO | 394
A IMPORTÂNCIA DO TEATRO NA ESCOLA: Pedro Rodrigues Pereira da Silva
RESULTADOS OBTIDOS EM UM ESTUDO
DE CASO | 317 EU(NÓS) DRAMATURGO(S) | 403
Benedito José Pereira Processo de Criação dramatúrgica com alunos
do Ensino Fundamental
O SILÊNCIO, A VOZ E A LIBERDADE NAS Karine Ramaldes
AULAS DE TEATRO DO ENSINO BÁSICO DA
REDE MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO | 326 TEATRO PÓS-DRAMÁTICO: REFLEXÕES SOBRE
Matheus Gomes da Costa O ENSINO DE TEATRO NA ESCOLA EM UM
CONTEXTO SUL-MATO-GROSSENSE | 411
UMA PROPOSTA DE AVALIAÇÃO EM TEATRO Maria Helena Santana Moreira
NO ENSINO BÁSICO | 334
Pedro Haddad Martins
ENCENAÇÃO TEATRAL NA EDUCAÇÃO
ABORDAGENS DIVERSIFICADAS BÁSICA: RISCOS DO USO DO CELULAR
NA EDUCAÇÃO MUSICAL INFANTIL: EM DISCUSSÃO | 418
UMA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO Aline Oliveira Soares
NA ESCOLA BÁSICA | 342 Maria Consuelo A. Lima
Messias Aroldo Araújo Muniz Júnior (UFPE)
Rodrigo Lopes Silva Padrão (UFPE) ESCOLA DE BELAS ARTES DE PERNAMBUCO:
DA UTOPIA AOS ANOS DE EXISTÊNCIA | 425
CORAL VOZES DO SERTÃO: O CANTO CORAL Niedja Ferreira dos Santos Torres
COMO LUGAR DE RESISTÊNCIA COTIDIANA | 349
Pablo de Souza Barros Visões da peculiar dramaturgia
Alan Silva Barbosa de João Denys Araújo Leite
Arte como Gesto de (Re)Existência | 433
Moisés Monteiro de Melo Neto

8
DE FRIEDRICH SCHILLER A ABELARDO DA CURSO DE LICENCIATURA EM
HORA: POTENCIALIDADES E INTERSECÇÕES MÚSICA - IMPACTOS E DESAFIOS | 509
ENTRE ARTE E EDUCAÇÃO ESTÉTICA | 439 Meyrla Conceição Lins Santana
Graciele Maria Coelho de Andrade Gomes Valdelan Leite da Costa
Mário de Faria Carvalho Alan Silva Barbosa

30 ANOS DE PROGRAMA CURUMIM: A HISTÓRIA DE VIDA COMO (RE) EXISTÊNCIA


LUDICIDADE, AUTONOMIA E SOCIALIZAÇÃO, NA FORMAÇÃO DO ARTISTA-DOCENTE | 514
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA NO SESC Jacqueline Rodrigues Peixoto
SOROCABA | 447 José Albio Moreira de Sales
Andreia Maria Ferreira Reis
MEMÓRIAS ACIONADAS: AÇÕES DE
(RE)SIGNIFICAÇÕES NOS MUSEUS (RE)EXISTIR EM ARTES VISUAIS | 519
CONTEMPORÂNEOS | 453 Maria Betânia e Silva
Dayze Euzébio de Oliveira
Guilherme Panho TEATRO E COMUNIDADE: CONTRIBUIÇÕES À
FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO BRASIL E
HISTÓRIAS DA NOSSA HISTÓRIA: PORTUGAL | 526
IDENTIDADE, ALTERIDADE E MEMÓRIA | 460 Ramon Santana de Aguiar
Márcia Chiamulera Isabel Bezelga

REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO FORMATIVO PRINCÍPIOS PRÉ-EXPRESSIVOS E


DE UM ARTE-EDUCADOR NO CURSO DE INVESTIGAÇÃO BIOMECÂNICA – CAMINHOS DO
LICENCIATURA EM DANÇA - UFPE | 467 ATUANTE PARA O AUTOCONHECIMENTO | 533
José Roberto Nascimento Junior Murillo Freire

A IMPORTÂNCIA DO ESTÁGIO O OUTRO CORPO, O OUTRO CAMINHO E O


NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO OUTRO MOVIMENTO: REFLEXÕES SOBRE O
LICENCIANDO EM TEATRO: UM RELATO DÔ-HÔ COMO PROPOSTA FORMATIVA PARA
DE EXPERIÊNCIA | 472 O CORPO-PROFESSOR DE ARTE | 540
Lara Pinheiro de Oliveira Alexandre Cardoso Oshiro
Catarina Viana da Silva
Gislene dos Santos Furtado O ARTE-EDUCADOR EM OFICINAS CULTURAIS
E ARTISTÍCAS NO TERCEIRO SETOR | 547
A FICHA DE OBSERVAÇÃO COMO Fernanda Roberta Lemos Silva
FERRAMENTA PEDAGÓGICA NOS
ESTÁGIOS EM ARTES VISUAIS | 479 PERFORMANCE ARTÍSTICA E EDUCAÇÃO
Carolina de Santi Estácio POPULAR: CATAVENTO PARA ESTRATOSFERA,
Arlete dos Santos Petry UMA PRÁTICA DE ENSINO INTEGRADA EM
HOMENAGEM A DANIEL LIMA SANTIAGO | 553
DIÁRIO DE AULA COMO REGISTRO DO Isaac de Souza Assunção
PERCURSO CARTOGRÁFICO DAS MEMÓRIAS Lindinaldo Caitano
DE UMA PROFESSORA/PESQUISADORA | 487 Ana Paula Abrahamian de Souza
Marília Martha França Sousa
ENSINO DE ARTE NO PAÇO DO FREVO: UM
QUIXOTES: EDUCADORES-REFERÊNCIA ESTUDO SOBRE AS PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO
EM ARTES | 495 NÃO FORMAL DOS ARTE/EDUCADORES DE
Leandro de Oliva Costa Penha UM ESPAÇO CULTURAL | 561
Inácio Alves Dantas Neto
A ARTESANIA TEATRAL NA TRAJETÓRIA Cristiane Maria Galdino de Almeida
AUTOFORMATIVA DE DOCENTES
DO ENSINO BÁSICO | 503 TEATRO DE RUA NA FESTA DO SANTO | 567
Maria Edneia Gonçalves Quinto Sergio dos Santos Reis

9
A EXPERIÊNCIA DO TEATRO POPULAR INTERFACES DA FOTOGRAFIA NAS AULAS DE
EM SALA DE AULA | 575 ARTE: UM ESTUDO DE CASO | 657
Nathalia Cesar Goulart Maria José Negromonte-Oliveira (PCR)
Taciana Pontual da Rocha Falcão
RELATO DE EXPERIÊNCIA: O ENSINO DAS
ARTES INDÍGENAS NA EDUCAÇÃO BÁSICA | 581 INTERDISCIPLINARIDADE E EMANCIPAÇÃO
Flávia Roberta Alves Costa NA VIVÊNCIA EM ARTES DO INSTITUTO
FEDERAL DE SANTA CATARINA:
O MITO DA POMBA-GIRA CIGANA SARAH - POSSIBILIDADES DE (RE)PENSAR A ESCOLA
O REENCONTRO COM A MATRIZ ARQUETÍPICA TÉCNICA E PROFISSIONAL | 665
NO CORPO DA INTÉRPRETE | 589 Mariana Reis Leal Fernandes
Elze Maria de Oliveira Barroso
IMPROVISAR-SE DANÇANDO: INVESTIGANDO
VIVÊNCIAS E RELATOS NA OCUPAÇÃO A EXPERIÊNCIA DE MOVER-SE | 671
DE ESPAÇOS: MACHISMO E RACISMO Giorrdani Gorki Queiroz de Souza
TRABALHADOS EM SALA DE AULA | 595
Mauricio Igor Neves de Almeida REFLEXÕES ACERCA DO PROCESSO
Arthur Leandro Moraes Maroja (In Memoriam) DE MEDIAÇÃO TEATRAL: UM CONVITE
AO PENSAMENTO INTERDISCIPLINAR | 679
O ESTUDO DAS PERFORMANCES Layane Pereira Pavão
AFRO-BRASILEIRAS E A CONGADA DA VILA
JOÃO VAZ (GOIÂNIA – GO) | 602 DENUNCIANDO O AMOR NO ESPAÇO
Cleber de Sousa Carvalho COMUM DA GALERIA | 684
Nata Borges Ferreira
ABAYOMI, O RITO DE ORIGEM:
A PERFORMANCE EM SALA DE AULA BASEADA MEDIAÇÃO DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA
NOS PRINCÍPIOS DO AFROLETRAMENTO | 610 ESCOLA: ILUSTRAÇÕES DE ELENA POIRIER
Amanda Caline da Silva Omar VISTAS POR ESTUDANTES DA EDUCAÇÃO
Virna Vasconcelos Lopes INFANTIL E DO ENSINO FUNDAMENTAL | 690
Rachel de Sousa Vianna
MULHERES/ARTISTAS NA HISTÓRIA DA ARTE: Isabel Alves Corrêa de Abreu
A BUSCA PELO RECONHECIMENTO Eraldo Leandro Moraes Junior
E VISIBILIDADE | 616
Larissa Rachel Gomes Silva DESALINHOS: ARTE, PESQUISA E DOCÊNCIA
EM GÊNERO E SEXUALIDADES | 698
TERRITÓRIO DAS CIÊNCIAS: RELAÇÕES DE Ingrid Borba de Souza Pinto Domingos
GÊNERO PRESENTES NA UNIVERSIDADE | 624 Luciana Borre
Emanuely Arco Iris Silva
“AQUI ESTÁ MINHA CARA. FALO POR MINHA
“TODAS AS VOZES, TODAS ELAS” - RELATO DIFERENÇA. DEFENDO O QUE SOU.” | 705
DE EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO DO GRUPO Lucas Viera de Oliveira
DE TEATRO DAS OPRIMIDAS MULHERES Fábio José Rodrigues da Costa
NO ESPELHO COM O GRUPO DE TEATRO
MULHERES DE LUTA | 633 UM CORPO NO MUNDO: LUGAR UTÓPICO DE
Marilene Aparecida Batista PRÁTICAS DE (RE)EXISTÊNCIA | 712
Stefany Lopes de Lima
AUDIOVISUAL: CINEMA, TELEVISÃO, Thaysa Cordeiro Silva
VÍDEO – DEFINIÇÕES E POSSIBILIDADES
NA ESCOLA | 641 PROGRAMA MAIS: MANIFESTAÇÕES DE ARTE
Diogo José de Moraes Lopes Barbosa INTEGRADAS À SAÚDE HUMANIZANDO E
EDUCANDO ATRAVÉS DA ARTE | 718
MEMÓRIA OU A PERSISTÊNCIA Leniée Campos Maia , Artur Duvivier
DA LEMBRANÇA | 649 Claúdia Ângela Vilela de Almeida Buril
Dado Sodi e Cláudia Cazal Lira

10
TÁ NA PELE: DIÁLOGOS MUSICAIS ENTRE EXPERIÊNCIAS COM MEDIAÇÃO NA
SURDOS E OUVINTES | 724 GALERIA CAPIBARIBE, RIO CAUDALOSO
Bruna Caroline Nazário de Souza NA UNIVERSIDADE FEDERAL
Débora de Lima Cabral DE PERNAMBUCO | 787
Maria Aida Falcão Santos Barroso Mariah Cysneiros da Silva
Uiaracy Maria Santana Vieira
GALERIA CORBINIANO LINS: ESPAÇO
A OFICINA DE FOTOS&GRAFIAS DE CONSTRUÇÃO DE SABERES | 795
COMO PRÁTICA INCLUSIVA EM Ediel Barbalho de Andrade Moura
ARTE EDUCAÇÃO | 731
Ana Elisabete R. de C. Lopes HOLOCAUSTO, ARTES E LIBERDADE:
EXPERIÊNCIAS DE MEDIAÇÃO NA EXPOSIÇÃO
A MÚSICA COMO EXPRESSÃO ARTÍSTICA “MENINAS DO QUARTO 28”, GALERIA JANETE
SIGNIFICATIVA NA VIDA DO IDOSO | 736 COSTA (RECIFE/PE) | 803
Miclene Batista Souza Marco Cézar de Oliveira Brito Filho
Ana Claudia O. Freitas
LIXO EXTRAORDINÁRIO: ENSINO
A OBRA COMO RESISTÊNCIA: DE ARTE COM LIXO NA ESCOLINHA
UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO DE ARTE DO RECIFE | 811
DO ARTISTA DAVID WOJNAROWICZ Auvaneide Ferreira de Carvalho
E SUAS CONEXÕES COM O ENSINO
DAS ARTES VISUAIS | 743 O ENSINO DE ARTE E O USO DA INTERNET
Wellington Soares Gomes COMO AUXILIO PARA APRENDIZAGEM | 819
Fábio José Rodrigues da Costa Rhayssa Figueiredo de Lira Siqueira
Marcos Paulo Gomes Miranda
ARTE TECNOLOGIA: INTERFACE DE
CRIAÇÃO COLETIVA PARA A O NÚCLEO DE ARTE DO IFRN-CAMPUS
SEGUNDA INTERATIVIDADE | 751 PARNAMIRIM COMO AÇÃO EXTENSIVA
Judivan José Lopes-Ifal/Unesp DE FORMAÇÃO ARTÍSTICA, CULTURAL
Adriana Ferreira Santana-Ifal E CIDADÃ | 827
Ziel dos Santos Mendes-Ufpe Francy Izanny de Brito Barbosa Martins – IFRN
Natan Santos Ferreira-Ifal Rebeka Caroca Seixas

ARTE-EDUCAÇÃO E INCLUSÃO: OFICINA VISUALIDADES SONORAS:


PRÁTICAS DESVIANTES | 758 A PREPARAÇÃO DE VOZ DURANTE PROCESSO
Niara Mackert Pascoal DE MONTAGEM TEATRAL | 832
Elthon Gomes Fernandes da Silva
ARTES VISUAIS, ARTIVISMO GAY E Ediel Barbalho de Andrade Moura
UTOPIAS PEDAGÓGICAS COMO GESTO
DE (RE)EXISTÊNCIA | 764  PRÁTICAS E PENSAMENTOS
Wandeallyson Dourado Landim Santos TRANSDISCIPLINARES ENTRE A DANÇA
Fábio José Rodrigues da Costa E O TEATRO | 839
Simone Maria dos Santos- UFRPE
BRINCANDO COM A MÚSICA NA
SALA DE AULA | 772 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
Geanne Soares da Silva EM STOP MOTION E A CONSTRUÇÃO
DE NARRATIVAS VISUAIS | 847
EDUCAÇÃO MUSICAL E O DIÁLOGO Marcos Paulo Gomes Miranda
COM OUTRAS LINGUAGENS: CAMINHOS Luciana Borre
PARA CONSTRUÇÃO DO SABER ATRAVÉS
DE PRATICAS INTERDISCIPLINARES | 782 O QUE SÓ EXISTE QUANDO LEMBRADO
Valnei Souza Santos EM (H) ESTÓRIAS MÍNIMAS | 854
Alcione Cristina Alves de Aquino

11
RELATO DA EXPERIÊNCIA OBTIDA APÓS /// PARTE 3 - COMUNICAÇÕES ARTÍSTICA
A REALIZAÇÃO DE QUATRO EXPOSIÇÕES
DE ESCULTURAS MÓVEIS EM CONJUNTO
COM SETE OFICINAS DE ORIGAMIS RECONTANDO SEBASTIANA E SEVERINA
ANALISANDO O SEU IMPACTO A SERVIÇO Propondo novos olhares sobre o lugar da mulher
DA EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL E AS AULAS na cultura popular nordestina | 904
DE ARTES VISUAIS | 859 Alexandre Geisler de Brito Lira
Brenda Gomes Bazante Márcia Julieta Figuerêdo Souza
Valnei Souza Santos
(RE)SIGNIFICAÇÕES NOS MUSEUS
CONTEMPORÂNEOS | 867 CIA. PERFORMANCE | 908
Dayse Euzebio de Oliveira Conceição Myllena F. Rolim (UFPB)
Guilherme Panho Flaudemir Sávio Sousa Mendes (UFPB)

SAMBANDO NO TERREIRO – O JOGO TEATRAL É PERMITIDO CHORAR | 911


E O GOSTAR DE FALAR A PALAVRA | 874 Renata Caldas (PPGAV/ UFPE)
Alexandre Geisler de Brito Lira
R.E. LER MACBETH (R.EVISÃO DO
TEATRO DA ESPONTANEIDADE E.SPETÁCULOUMA LADY: MACBETH) | 915
E LINGUAGEM TEATRAL: Heloise Baurich Vidor
CONSTÂNCIA E RESSIGNIFICAÇÃO | 882
Patrícia Couto Barreto . A IMPORTÂNCIA DE GODSPELL PARA
Alcione Melo Trindade A CONSOLIDAÇÃO DO ROCK COMO GÊNERO
DO TEATRO MUSICAL | 920
TRANSGREÇÃO E EXPERIÊNCIAS Inácio Alves Dantas Neto
EM MEDIAÇÃO NO INSTITUTO Sueudo Fernandes da Silva
DE ARTE CONTEMPORÂNEA – IAC | 891
Pedro Henrique Barbosa da Silva VÍDEO PERFORMANCE:“A MORTE
DO ESTUDANTE” | 922
VISITA GUIADA A UMA EXPOSIÇÃO: Ediel Barbalho de A. Moura
INTEGRAÇÃO ENTRE A ARTE, A LITERATURA,
A LÍNGUA ESTRANGEIRA E COR DE GENTE, COR DE ASFALTO | 926
A CRÍTICA SOCIAL | 897 Mônica Leite da Silva
Sandra de Souza Melo, UFPE

12
/// APRESENTAÇÃO
INTERCRUZANDO SABERES
E IDEIAS PARA A (RE)EXISTÊNCIA
DAS PEDAGOGIAS EM ARTES
por Ana Júlia da Silva1, Rúbia Lopes2
e Rudimar Constâncio3

“Mas, que devemos pensar da formação do arte-educador? Quais as relações da arte com
a educação que poderão melhor delimitar o lugar e a natureza do processo de formação
do arte-educador? O que dá mais a pensar sobre esta questão e que ainda não foi pensado?
Que é necessário desaprender para encontrar o caminho mais sábio que nos leve à elabo-
ração mais rica do processo de formação do arte-educador?”
(Noêmia de Araújo Varela)


O Serviço Social do Comércio - Sesc/PE, por meio da Unidade Executiva em Piedade, realizou,
em 2008, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, no Teatro Ariano Suassuna, a primeira edição do Seminário
Nordeste de Arte-Educação, onde prestou homenagem a Noêmia de Araújo Varela e contou com a presença
de professores, mestres, doutores e educadores, empenhados nas discussões e propostas pedagógicas à prá-
tica do ensino/aprendizagem através da arte/educação.
Nos anos de 2010 e 2012, contando com o importante apoio da Universidade Federal de Pernam-
buco, realizou-se, no Centro de Ciências Sociais Aplicadas, a 2ª e 3ª edições do Seminário Nacional Sesc
de Arte/Educação, homenageando, respectivamente, Marco Camarotti e Jomard Muniz de Britto. Os temas
dessas duas edições, “Arte-Educação: História e Práxis Pedagógica” e “Ação Cultural: Arte, Educação e Po-
lítica” deram prosseguimento às discussões que perpassam o pensamento e a prática educacional de arte/
educadores e artistas que anseiam por uma pedagogia da arte mais criativa e eficiente.
Em 2014, a intensificação e ampliação dos debates, intercâmbios e pesquisas, além da participação
de nomes importantes para a arte/educação nacional e internacional, consolidaram a natureza pedagógica,
científica e formativa desta realização, que doravante configura-se como o IV Congresso Internacional Sesc
PE e UFPE de Arte/Educação. As discussões giraram em torno do tema “Ecos de Resistências na América

1. Historiadora, poetisa e Supervisora do Sesc Piedade/PE.


2. Supervisora do Sesc Piedade/PE.É formada em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Pernambuco e pós gradução em Gestão e Produção
Cultural na UFPE. Diretora Executiva e Gestora de Projetos da Associação Sementes do Bem no ano de 2017 e professora do curso de Contação de
Histórias pelo Pronatec em 2014.
3. Mestre em Educação/Universidade da Madeira (UMa, em Portugal). Especialista em Ensino das Artes, professor, pesquisador, arte/educador.
Realiza trabalhos como ator e diretor teatral, e na atualidade é o Gerente do Sesc Piedade/PE. Publicou: “Circo Social: a experiência da Escola
Pernambucana de Circo” e “Teatro de Cultura Popular: uma prática teatral como inovação pedagógica e cultural no Recife (1960-1964)”. Prefácio
João Denys Araújo Leite. Recife: Ed. Autor, Financiado por Funcultura/PE, 2011. Coordenador Geral do Congresso Internacional SESC de Arte/
Educação.

13
Latina” e foram eleitos dois homenageados, o professor, ator e diretor de teatro Carlos Varella, in memoriam,
e o professor, escultor, pintor, desenhista, gravurista e ceramista Abelardo da Hora, personalidades marcan-
tes da Arte/Educação local, brasileira e mundial. Em 2016, na 5ª edição do congresso, com o tema “Vida
Artista: Diálogos entre Arte/Educação e Filosofia”, prestamos homenagem aos 80 anos de vida de Ana Mae
Barbosa e seus 60 anos de magistério.
No presente ano, o SESC PE e a Universidade Federal de Pernambuco, promovem o VI Congresso
Internacional Sesc de Arte/Educação, no período de 23 a 27 de julho de 2018, no campus da UFPE. Nesta
edição prestaremos uma justa homenagem às arte/educadoras Ingrid Dormien Koudela e Rosa Vascon-
cellos, pela potente e importante atuação de ambas no campo da arte/educação. A primeira pelos anos de
dedicação à pesquisa e sua inestimável contribuição para a história do teatro, no Brasil e no mundo. A se-
gunda pela preciosa e histórica contribuição aos cursos de Artes da Universidade Federal de Pernambuco
e na reestruturação do currículo do curso de Educação Artística, além do seu trabalho sóciocultural com
crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. O tema “Utopias Pedagógicas em Artes como
Gesto de (Re) Existência” norteará os diálogos interdisciplinares e dará prosseguimento às discussões que
visam aprofundar o pensamento e a prática educacional de mestres, doutores, professores, estudantes e ar-
tistas. Realizaremos, também, lançamentos de livros, apresentação de comunicações orais e artísticas, mesas
temáticas com renomados palestrantes e conferencistas, além de 25 cursos voltados para a atualização e
ampliação dos processos de ensino/aprendizagem de arte/educadores, estudantes e pesquisadores da área.
A realização bienal do Congresso Internacional Sesc de Arte/Educação reafirma e ressalta a presen-
ça marcante do Sesc, entre as Instituições que mais contribuem para promoção e disseminação da educação
artística e cultural deste país. Notadamente, no momento atual, em que nos deparamos com a necessidade
urgente de reflexões sobre educação, ética, identidade cultural e liberdade de expressão política e artística,
a arte/educação se apresenta como ferramenta indispensável para trabalhar os questionamentos e respostas
que permeiam tantas vertentes intelectuais e práticas pedagógicas que proliferam, em busca de uma educa-
ção mais lúcida, lúdica e de maior alcance.
Os caminhos para esta educação que se quer mais inteligente e criativa perpassam, inevitavelmente,
pelas trilhas da arte/educação e dos saberes, que se cruzam e proliferam em diálogos interdisciplinares, entre
as ideias e os afazeres dos profissionais que trabalham tendo por guia a prática pedagógica da arte/educação.
O VI Congresso Internacional Sesc de Arte/Educação, além de reafirmar o compromisso do SESC com a
educação e a cultura, investe nas propostas pedagógicas voltadas para uma educação de qualidade e de pes-
soas que desenvolvam seus trabalhos sob a égide da arte/educação, buscando fortalecer, preservar, propor e
instigar novos rumos e olhares sobre a educação contemporânea.
O nosso pensamento de aprendizagem da arte está fundament do na ideia da Abordagem Trian-
gular, conceito-chave na obra de Ana Mae Barbosa4, que compreende a articulação de três campos concei-
tuais: o apreciar crítico, mobilizando a percepção e a análise formal e simbólica no ato de ler; o conhecer
e refletir, por meio da contextualização conceitual, histórica, cultural e estética da produção em arte, e o
fazer artístico, oportunizando crianças, jovens e adultos na experimentação dos processos de criação e
procedimentos técnicos ao produzir arte e ao sistematizar os resultados das aprendizagens, como também
orientá-los nas suas intervenções artísticas.
É preciso, antes de tudo, saber se apropriar das artes, sobretudo no que se refere ao seu manejo, para
provocar no indivíduo a curiosidade e o desejo de decodificá-las, dando-lhes significado e importância para
engendrar um mundo melhor e mais justo, possibilitando, também, a construção de sua identidade cultural
pelo sentimento de pertença. Será este pertencimento em que o indivíduo é formado que lhe dará os links
com a sua realidade: criando pontes, abrindo janelas e portas que possibilitem vislumbrar um novo horizon-
te, pleno de significação, além de despertar o interesse pelo conhecer, construir e compreender.

4. BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira. Abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2010.

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Uma nova maneira de ensinar e de aprender, pois “a inovação pedagógica implica mudanças qua-
litativas nas práticas pedagógicas e essas mudanças envolvem sempre um posicionamento crítico, explícito
ou implícito, face às práticas pedagógicas tradicionais5”.
A mudança é algo que acontece naturalmente, porém é preciso dar suporte ao indivíduo por meio
da liberdade, para que a aquisição da aprendizagem possa ser enfocada como um processo verdadeiramente
cultural. O ser humano passa a ser visto na sua totalidade, aprende a atuar dentro da sua realidade, usa e
constrói o conhecimento pelo seu potencial criativo, como enfatiza Alvin Toffler6:

A maior parte do que atualmente nos aflige como incompreensível afligiria menos se en-
carássemos com novos olhos o ritmo crescente de mudanças que faz a realidade às ve-
zes parecer um caleidoscópio enlouquecido. Pois a aceleração das mudanças não atinge
apenas indústrias ou nações. É uma força concreta que penetra fundo em nossas vidas
pessoais, nos leva a desempenhar novos papéis e nos confronta com o perigo de um mal
psicológico inédito e tremendamente perturbador. Essa nova doença pode ser chamada
de “choque do futuro”, e um conhecimento de suas fontes e sintomas ajuda a explicar mui-
tas coisas que, de outra forma, desafiam uma análise racional.

A inovação pedagógica é oportuna no momento educacional que vivemos na atualidade. Entretan-


to, para que ela possa acontecer nas escolas, nos projetos sociais, faz-se necessário que ocorra uma série de
investimentos, quebras de paradigmas e um novo olhar, no que diz respeito à aprendizagem. É preciso que
haja um olhar e um choque no presente, para que possamos realizar uma educação processual e dialógica.
Mesmo que a escola continue a ostentar o discurso de que prepara o aluno para o futuro, parece
que algo permanece incoerente entre a teoria e a prática, pois a escola está cada vez mais distante do novo,
do abstrato, do próprio aluno, sendo abocanhada pelas mudanças globalizantes, carecendo aprender com as
outras atividades e ciências, para ter a competência de sair do ostracismo imposto pela economia de mer-
cado e para deixar de ser reprodutora de conteúdos que não servem e não serão utilizados pelos alunos nos
seus processos de vida. O que na verdade acontece é que se alimenta o poderio de poucos, ajudando estes
a se perpetuarem como donos dos conhecimentos e a manterem suas rédeas sobre os demais na sociedade.
Acreditamos que o homem necessita de uma educação plena, que dê conta das suas várias di-
mensões, pois só assim conhecerá a si próprio e reconhecerá suas próprias qualidades, suas limi-
tações e suas potencialidades: todas colocadas a serviço da transformação da sua realidade.

5. FINO, Carlos Nogueira. Inovação pedagógica: significado e campo (de investigação). Funchal: Uma, 2007, p.1. Disponível em: <http://www3.
uma.pt/carlosfino/publicacoes/Inovacao_Pedadogica_ Significado_%20e_Campo.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2016.
6. TOFFLER, Alvin. O choque do futuro. Trad. Eduardo Francisco Alves. 2 ed. São Paulo: Record, 1970, p.22, grifo do autor.

15
/// MESA DE AFETOS

SOBRE A HOMENAGEADA -
INGRID KOUDELA
Igor de Almeida Silva7

I ngrid Dormien Koudela é pioneira em Teatro/Educação. A Universidade de São Paulo foi a pri-
meira instituição brasileira a oferecer programas de Mestrado e Doutorado específicos neste setor e a abrir
a Licenciatura em Arte Dramática, em 1974.
Introdutora do Sistema de Jogos Teatrais de Viola Spolin no Brasil, é autora de Jogos teatrais (1984);
Brecht: um jogo de aprendizagem (1991) e Texto e jogo: uma didática brechtiana (1996) que vai além de
relato e análise de experiências e suas respectivas influências, apresentando o resultado de suas pesquisas na
forma de uma metodologia que incorpora fragmentos da dramaturgia brechtiana com princípios dos jogos
teatrais.
Nascida na cidade de São Paulo (1948), seus avós paternos e maternos são oriundos de Hamburgo,
na Alemanha. Estuda no Colégio Visconde de Porto Seguro e ingressa na ECA - Escola de Comunicações e
Artes da USP - Universidade de São Paulo (1968), formando-se como Bacharel, em Crítica e Dramaturgia.
Assiste aulas com os professores Alfredo Mesquita, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Flávio Im-
pério, Jacó Guinsburg, Sábato Magaldi, Miroel Silveira, Jorge Andrade, Renata Pallottini e Alberto Guzik,
entre outros.
Exerce o ofício de crítica teatral, colaborando com as revistas Palco + Plateia e Schalom (1975-
1984). Também prestou assessoria para órgãos públicos como o INACEN e Secretaria Municipal de Cultura
da cidade de São Paulo. Em 1972, passa a dar aulas de Arte Dramática na Escola Estadual Engenheiro Fran-
cisco Prestes Maia, em São Bernardo do Campo, no Ensino Médio. A partir dessa experiência profissional,
nasce sua grande paixão pelo Teatro/Educação.
Licenciada em Professorado em Arte Dramática (1974), leciona na Educação Básica ao longo de 15
anos, em escolas públicas e privadas. Ingressa como docente na USP (1975), ministrando a disciplina Teatro
Aplicado à Educação, ofertada dentro da recém-criada Licenciatura em Arte Dramática, por Maria Alice
Vergueiro, docente do então Departamento de Teatro da ECA/USP. Nessa época, assiste aulas da Escolinha
de Arte de São Paulo, onde conhece Ana Mae Barbosa, Madalena Freire e Joana Lopes. Segue também em
São Paulo os cursos oferecidos por Fanny Abramovic.

7. Professor da graduação em Teatro (Licenciatura) do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernam-
buco (UFPE). Doutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (2014), com período sanduíche na Université de la Sorbonne Nouvelle
- Paris 3. Mestre em Letras (2007) e licenciado em Educação Artística (2003), com habilitação em Artes Cênicas, pela UFPE. É co-organizador das
publicação do livro Ação cultural: arte, educação e política, em parceria com Rudimar Constâncio (Recife: SESC Pernambuco, 2014). Colaborou no
Léxico de Pedagogia do Teatro (Orgs. Ingrid Dormien Koudela e José Simões de Almeida Júnior. São Paulo: Perspectiva: SP Escola de Teatro, 2015)
com os verbetes “Cultura Popular”, “Brincadeira” e “Brincante”.

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Conclui seu Mestrado (1982) sob a orientação de Sábato Magaldi e o Doutorado (1988), sob a orien-
tação de Jacó Guinsburg, na ECA/ USP.
Coordenadora do Curso de Especialização em Artes Cênicas – Teatro e Dança (1989- 2001) na
pós-graduação da ECA/USP, tem participado de Cursos de Especialização em Arte/Educação em várias
universidades públicas.
Docente na pós-graduação da ECA/USP, tem Bolsa de Produtividade de Pesquisa pelo CNPq, em
nível 1A. Entre seus orientandos, podemos contar Robson Corrêa de Camargo – UFG; Arão Paranaguá de
Santana – UFMA; Vicente Concilio – CEART; Igor de Almeida Silva – UFPE e Joaquim Gama – SP/Escola
de Teatro.
Tem participação ativa em congressos, através de associações nacionais e internacionais. É membro
fundador da FAEB - Federação de Arte-Educadores do Brasil e da ABRACE - Associação Brasileira de Pes-
quisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, onde cria o grupo de trabalho Pedagogia do Teatro e Teatro na
Educação, atualmente denominado Pedagogia das Artes Cênicas. Participou também de vários congressos
da IDEA International Drama/Theatre and Education Association, a partir da década de 1990.
Tradutora, teórica do teatro e estudiosa da dramaturgia alemã, publicou a obra de Viola Spolin pela
Editora Perspectiva, fornecendo amplo material para professores e artistas de teatro: Improvisação para o
teatro (1978), em parceria com Eduardo Amos; Jogos teatrais no livro do diretor (1999); Jogos teatrais. O
fichário de Viola Spolin (2001); Jogos teatrais para a sala de aula: um manual para o professor (2007).
Traduziu para a Editora Paz e Terra, nos volumes 3 e 12 do Teatro Completo de Bertolt Brecht as
seguintes peças: A decisão (1988); De nada, nada virá (1995); Decadência do egoísta Johann Fatzer (1995);
Vida de Confúcio (1995); Anibal (1995); Gosta Berling (1995); Dança da morte em Salzburgo (1995); A
padaria (1995).
Lança a coletânea de ensaios, depoimentos, entrevistas e peças teatrais de Heiner Müller, sob o título
Heiner Müller: o espanto no teatro (2003). No ano seguinte, publica o volume Büchner: na pena e na cena,
em parceria com Jacó Guinsburg, com quem divide organização, tradução, introdução e notas. Em 2016,
retoma a colaboração com Jacó Guinsburg na organização de Lessing: obras, crítica e criação.
Organizou o livro Um voo brechtiano: teoria e prática da peça didática (1992) – um projeto de en-
cenação que contou com apoio da FAPESP.
Mais recentemente foi organizadora do Léxico de Pedagogia do Teatro (2015), em parceria com
José Simões de Almeida Júnior. Esta publicação da Editora Perspectiva e SP- Escola de Teatro conta com a
colaboração de pesquisadores brasileiros e portugueses, sendo indicada para o Prêmio Jabuti, na categoria
Educação e Pedagogia (2017).

17
/// MESA DE AFETOS

SOBRE A HOMENAGEADA -
ROSA VASCONCELLOS
Everson Melquiades Araújo Silva8

É pedagoga e especialista em ensino de arte, pela Universidade Federal de Pernambuco


(UFPE). Fez o Curso Pedagógico (Normal Médio) no Colégio Damas do Recife e o Curso Intensivo
de Arte na Educação (CIAE), este último sob a orientação da Professora Noemia Varela, na Esco-
linha de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro.Iniciou sua carreira docente, através das orientações da
Professora Adozinda Costa e do Professor Paulo Freire.
Trabalhou alfabetizando crianças e ensinando Arte em diferentes escolas da rede públi-
ca e privada de ensino do Estado de Pernambuco.Também foi Professora da Escolinha de Arte
de Olinda, ao lado da Educadora Solange Costa Lima, Sebastião Pedrosa, Manuel Eudósio, Guita
Charifker, Adão Pinheiro, entre outros. Foi coordenadora geral de escolas de Educação Básica do
Movimento de Cultura Popular (MCP), diretora da Escolinha de Arte do Recife, coordenadora do
Projeto Meninos do Campus e do Pólo Arte na Escola, ambosda UFPE.
Trabalhou na implantação dos cursos de licenciatura em arte da UFPE, nos Cursos de
Pós-Graduação em Arte/Educação, do DTAEA/CAC/UFPE, inclusive, orientando diferentes es-
tudantese na formação continuada de professores de arte de cidades do Estado de Pernambuco,
na qual ainda prestou assessoria. Foi membro da Associação Nordestina de Arte/Educadores
(ANARTE), Federação de Arte/Educadores do Brasil (FAEB), e da Associação Nacional de Pesqui-
sadores em Artes Plásticas (ANPAP).
Atualmente é integrante do Bloco da Saudade, professora aposentada da Secretaria Es-
tadual de Educação de Pernambuco e do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística
(DTAEA), do Centro de Arte de Comunicação (CAC) da UFPE, onde atuava no Curso de Artes
Visuais – Licenciatura.

8. Arte/Educador, Professor de Fundamentos da Arte/Educação e de Fundamentos do Ensino de Teatro, do Centro de Educação, da UFPE; Coor-
denador do Programa de Ensino de Arte Casa da Criatividade, do Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA); Diretor
da Escolinha de Arte do Recife; Vice-Presidente da Associação Nordestina de Arte/Educadores (ANARTE). Doutor (2010) e Mestre em Educação
(2005), pela UFPE; Graduação em Pedagogia (2000), pela UFPE; Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), da Associação Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Educação (ANPED), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), do Centro de Estudo e Pesquisa Paulo Freire,
do Coletivo Momos, do Grupo de Pesquisa em Formação de Professores, Arte e Inclusão (GEFAI/CNPq) e do Grupo de Estudo em Artes e Educação
(GESTARTES/CNPq)

18
/// PARTE 1-
PALESTRAS

19
UTOPIAS PEDAGÓGICAS
EM ARTE COMO GESTO
DE (RE)EXISTÊNCIA
Danilo Santos de Miranda9

A bordar o tema da educação permite entradas múltiplas. Pode-se propor uma leitura direcio-
nada à gestão desse campo, o que implicaria considerações principalmente políticas. Cabe, como estratégia
igualmente legítima, uma aproximação metodológica, fundamental para incorporar à esfera educacional as
mutações contemporâneas. Mais constante e, por vezes, tumultuada, é a abordagem conteudística, que bus-
ca incorporar ou excluir do discurso da educação as narrativas construídas por diferentes agentes sociais.

O cenário ganha conotações específicas quando se pensa nas aproximações entre os campos da edu-
cação e da arte. Nesse caso, além das possibilidades acima elencadas, vale a pena enfatizar uma perspectiva
que mobiliza aquilo que há de mais essencial no empenho educativo: sua capacidade de engendrar novas
possibilidades, novas formas de pensar – novos mundos, enfim. Daí a pertinência da expressão “utopias
pedagógicas”, tema deste encontro.

Evidentemente, tal expectativa deveria estar inscrita em qualquer iniciativa nessa esfera, muito em-
bora saibamos que a magnitude das dificuldades em circunstâncias como a brasileira faz com que, por vezes,
as demandas emergenciais assumam o lugar que deveria ser ocupado por pautas importantes. Diante dessa
realidade, parece residir na interface com a arte um território mais aberto a experimentações educacionais.

As observações que pretendo fazer foram elaboradas a partir do lugar específico onde me situo e de
onde analiso o panorama sociocultural. Sou gestor, há mais de três décadas, de uma instituição de cunho
educativo que atua em áreas diversas, incluindo as artes e o esporte, a saúde e a alimentação, o turismo e a
cultura digital, além de programas para faixas etárias específicas. Não sou, portanto, especializado em arte-
-educação. Trabalhamos com profissionais especialistas – pessoas fundamentais para o aprofundamento de
questões plurais – mas tentamos manter um olhar transversal, enfatizando a conexão entre os saberes e a
transversalidade de valores como cidadania, diversidade e sustentabilidade.

A ênfase no caráter transversal das abordagens, presente em nosso cotidiano de trabalho, caracteriza,
portanto, a leitura que faço das relações entre arte e educação. Afinal, o que a aproximação educação-arte nos

9. Especialista em ação cultural, é diretor regional do Sesc - Serviço Social do Comércio no Estado de São Paulo. Formado em Filosofia e Ciências
Sociais, realizou estudos complementares de especialização na Pontifícia Universidade Católica e na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e no
IMEDE - Management Development Institute, de Lausanne, Suíça. Foi Presidente do Comitê Diretor do Fórum Cultural Mundial em 2004 e presi-
dente do comissariado brasileiro do Ano da França no Brasil em 2009.

20
convida a pensar é o compromisso com uma formação integral dos seres humanos, para além de encaixes
pragmáticos que advogam educar “para o mercado de trabalho”. Caberia, assim, num primeiro movimento,
mencionar brevemente episódios em que a ideia de formação integral norteou as práticas educativas, fora e
dentro do país.

Experiências basilares: Paideia, Bildung e Toledot


Examinar os modos pelos quais sociedades distintas trataram o tema da educação ajuda a histori-
cizar a questão, permitindo enxergar em modelos de outras épocas o nascedouro de preocupações agora
atenuadas, difusas ou subvertidas. Como nos conta o pensador italiano Mauro Maldonato, em suas reflexões
acerca da interdependência entre cultura, educação e liberdade, três experiências são reconhecidas como
basilares por sua organicidade com os respectivos contextos de aparecimento e por seu caráter de referência.

No registro da civilização ocidental, costuma-se enfatizar as peculiaridades da Paideia, estrutura


socioeducativa que caracterizou a Antiguidade grega e que propunha educar o homem como ser espiritual e
social, concebendo-o como cidadão. Aqui, inexiste a diferenciação entre educação e cultura, o que fica explí-
cito pela importância assemelhada atribuída por um lado às artes e letras e, por outro, às ciências. A moção
explícita se dava na direção de um ideal de perfeição humana a ser buscado por meio da disputa justa entre
os indivíduos. Tais embates tinham como palco a pólis, sublinhando a expansão do conceito de educação
para todo o espaço urbano.

A tradição germânica em educação, cujo expoente mais relevante notabilizou-se por meio da ex-
pressão Bildung, experimentara expansão análoga. A responsabilidade cívica era o eixo em torno do qual
girava a formação obtida por meio da reflexão pessoal e da capacidade crítica. Trata-se de um modo de
enxergar a educação que se corrompeu posteriormente em mero aprendizado de técnicas, em obediência a
regras exteriores e em excessiva especialização. Não por acaso, filósofos alemães, como Adorno e Benjamin,
buscaram em seu percurso intelectual recuperar os temas clássicos da Bildung.

Uma terceira referência fundamental, oriunda da tradição judaica, foi a Toledot, marcada pela con-
vergência entre vivência religiosa e formação humana. As relações entre mestres e discípulos, cujas perguntas
deveriam ser valorizadas, dariam as pistas para um desenvolvimento que repercutiria no próprio tecido social.

Em comum a essas três abordagens, a impossibilidade de circunscrever a educação a espaços e tem-


pos artificialmente isolados; ao contrário, forças centrífugas poderosas mantinham-se em ação e faziam com
que ação educativa e coesão social praticamente coincidissem, tecendo uma mesma malha a que chamamos
atualmente cultura.

Peculiaridades brasileiras
País pleno de paradoxos, o Brasil viveu e vive permanentemente em estado de crise educacional.
Ora tratada como privilégio de poucos, ora universalizada de forma precária, a educação impõe à nação de-
safios que mal começamos a equacionar. Entretanto, importantes pensamentos desenvolveram-se por aqui,
repercutindo não apenas internamente, mas inclusive cruzando as fronteiras. Neste momento, vale sugerir
que essas iniciativas foram tanto mais relevantes quanto mais propuseram a construção de novos horizontes.

Uma dessas iniciativas esteve enraizada na circunstância cultural do modernismo, cujo primeiro
movimento teve como cenário a cidade de São Paulo, para em seguida se espalhar para outras localidades
brasileiras. Os artistas modernos reuniram-se em torno de algumas demandas comuns, como a recusa das
arbitrárias regras estéticas do academicismo, a experimentação formal inspirada pelas vanguardas europeias

21
e, principalmente, o interesse pela construção de um imaginário simbólico que se alimentasse de aspectos
ditos “brasileiros”: os modos de se expressar e expressar o mundo, as referências a ambientes naturais e ur-
banos nacionais, o enfrentamento das ambivalências características de um país de modernização periférica
e tardia, entre outros.

Tratava-se de um projeto de construção simbólica da nação, que até então era tributária de modelos
europeus importados de modo acrítico. Para que esse projeto pudesse ser desenvolvido, o campo da arte
deveria se pensar de modo expandido: como cultura. Interfaces negligenciadas até a década de 1920 passa-
ram a ser valorizadas, como aquelas estabelecidas com as tradições culturais que compuseram a população
brasileira e com estratégias educativas que fossem capazes de dar capilaridade a essas reflexões, de modo que
elas não ficassem circunscritas apenas aos artistas e seus interlocutores diretos.

Nesse registro, uma figura desempenhou papel paradigmático: Mario de Andrade, poeta, musicó-
logo, crítico, agitador cultural, folclorista e gestor da cultura. Funcionando ora como elemento aglutinador
de ideias e percepções modernistas, ora como inspirado criador de obras fundamentais – dentre as quais
Macunaíma merece lugar de destaque –, ora como precursor da gestão cultural no país, Mario propôs apro-
ximações entre arte e educação cujos desdobramentos não devem ser subestimados.

Seu interesse pela expansão da ação cultural levou-o a caminhos emblemáticos e complementares:
o aprofundamento da pesquisa em torno das identidades culturais brasileiras, cujo ápice foram as célebres
Missões Folclóricas pelo Norte e Nordeste brasileiros, em 1938; e seu trabalho como gestor cultural: em
1935, ele se torna diretor do recém-criado Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal
de São Paulo, aproximando as áreas de cultura e educação. Além da ênfase nas políticas de patrimônio ima-
terial, nas bibliotecas, no cinema e na radiodifusão educativos, é justo lembrar a experiência de Mario na
proposição dos parques infantis, fazendo convergir educação, recreação e cultura popular.

A experiência modernista conforme desenhada pela trajetória de Mario de Andrade deslocou-se a


partir da arte para um campo ampliado, tornando-se empenho educativo. Vale, agora, indicar outra referên-
cia brasileira que esboçou o itinerário oposto: na trajetória do educador pernambucano Paulo Freire, foi a
educação que expressou sua inescapável faceta cultural.

Freire lidou com um contexto bastante distinto da metrópole paulistana de Mario de Andrade: os
rincões do nordeste brasileiro, cenários marcados por opressão, desigualdade e precariedade social. Sua
ação, que se tornou exemplar dentro e fora do país, partia da convicção sobre a importância da alfabetização
como possibilidade dos indivíduos escreverem suas próprias histórias.

Salientando a necessidade de ler não apenas as frases e textos espalhados pelas cartilhas mas, princi-
palmente, decifrar o mundo, Freire fez a crítica do modelo predominante de educação, que ele denominava
“bancário”. Contra esse tipo de ação educativa, marcada pelo “depósito” das informações nos alunos como
se eles fossem recipientes vazios, o educador elaborou práticas da alfabetização de adultos como intervenção
real no mundo, a partir da vivência dos educandos.

Nesses contextos, aprender a ler adquiria, em sua essência, uma dimensão cultural, pois o ato de ler
e escrever tornava-se indissociável da escolha coletiva das palavras e frases que norteariam o aprendizado,
privilegiando nesse processo de seleção as expressões que tivessem um sentido efetivo naquelas circunstân-
cias. O que estava em jogo era uma ampliação da acepção de educação que sublinhava o estar no mundo e,
portanto, a vocação política do ser humano.

Por caminhos enviesados, Paulo Freire se avizinhava da longínqua pretensão da Paideia, mas em
sinal invertido: se aos gregos era facultado, por meio da educação, a possibilidade de construir a pólis, aos
indivíduos alfabetizados por Freire caberia desconstruir o mundo de desigualdade que o cercava.

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Brevemente descritas, as referências aqui reunidas tentam estabelecer uma ligação entre dois vetores:
de um lado, os esforços educativos marcados pela extroversão, que se espalharam pela vida cotidiana mais
ampla; por outro, as conexões entre arte e educação, que apontam a mesma tendência ao transbordamento.

Após a descrição desse panorama, o intuito é propor reflexões direcionadas ao fenômeno artístico
como possível catalizador de processos educativos, baseando-se na convicção de que tais elucubrações ga-
nharão maior sentido quando apresentadas após o reconhecimento do terreno no qual elas irão se desenvol-
ver e com o qual acabam por dialogar.

Dimensão educativa da arte


Afinal, o que queremos dizer quando afirmamos que as manifestações artísticas são, em si mesmas,
educativas? Ao destacar a dimensão pedagógica inerente às artes, devemos nos dispor a identificar aquilo
que torna as suas práticas e criações hábeis em incidir – não raro com contundência – em nosso processo de
formação permanente. Daí que precisamos fazer algum esforço para discernir que características são essas,
inclusive como forma de evitarmos o desgaste e o esvaziamento dessa asserção.

Talvez pudéssemos começar tal exercício justamente por aquilo que as artes, ao serem tomadas
por seu viés educativo, não fazem, ou não deveriam se ocupar de fazer: ensinar. Há nisso um interessante
paradoxo a nos cobrar reflexão, e que parece sugerir que quanto mais uma manifestação artística pretende
ensinar, menos educativa ela será. Isso se explicaria pelo fato de que a força e a efetividade das elaborações
estéticas residem numa espécie de negatividade frente à lógica das finalidades e, também, ao didatismo.

A obra de arte enquanto tal reivindica autonomia, afirmando-se como construto cujo valor deve ser
procurado nele próprio, tanto em seus encadeamentos internos como nas relações que ensaia com aspectos
da realidade – sem que para isso precise forjar mensagens instrutivas, ao contrário. É a polissemia e a ambi-
guidade da obra artística que convidam o fruidor a se engajar em aventuras sensíveis, afetivas e intelectuais
destituídas de metas preestabelecidas. Portanto, abertas ao devir e à imprevisibilidade.

Essa constatação, em contrapartida, nos libera para localizar a vocação educativa da arte menos di-
retamente em suas formas, temas e intenções do que nas experiências que ela pode suscitar. Isso nos levaria
a conceber as interações com a arte como experiências potencialmente educativas, no sentido dos processos
perceptivos, interpretativos e recriadores que ela pode desencadear. Note-se que, ao proceder assim, esta-
mos propondo um deslocamento de foco: do objeto e de suas propriedades constitutivas para as formas de
recepção, apropriação e ressignificação pelos diferentes públicos. É nessa instância que, a nosso ver, a arte
pode levar a termo o seu caráter educativo.

Aqui, a pedra de toque é o estado de atenção solicitado e ensejado pela experiência com arte. Pode-se
aventar que as obras, mais do que peças de tal ou qual matéria expressiva, representam convites à atenção.
Dessa disponibilidade aos estímulos delicadamente arranjados pelos artistas desdobra-se a possibilidade de
afetação dos nossos sentidos e, ligado a isso, a oportunidade de forjarmos leituras significativas e significan-
tes – criativas, portanto –, na medida em que a fruição de uma obra solicita a mobilização de nossas refe-
rências, lembranças, ideias e desejos. Em outras palavras, ela nos cobra certa disposição para um trabalho
igualmente inventivo.

A esse respeito, o semiólogo francês Roland Barthes dirá que, ao se relacionar com uma obra, o
público a ela articula “outras ideias, outras imagens, outras significações”. Logo, o fruidor não se limita a
decodificar os estímulos presentes no objeto cultural de sua atenção. Mais do que isso, ele “sobrecodifica”
esse objeto. Portanto, não decifra a obra, mas produz e agrega sensações, ideias e visões a partir dela e sobre
ela, deixando-se atravessar por essa massa de sentidos. Barthes vai ainda mais longe quanto ao estatuto do
fruidor, sugerindo que “ele é essa travessia”.

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A cada vez que fazemos (e personificamos) essas travessias alargamos o nosso campo perceptivo e
a nossa compreensão das coisas, cultivando nossa subjetividade e adensando a relação que mantemos não
apenas com as manifestações artísticas, mas também com a realidade em que estamos imersos. Tal seria o
caráter educativo da experiência com arte: proporcionar deslocamentos pelas trilhas sensíveis abertas pelos
artistas através de suas criações, ao passo que nesses deslocamentos vamos compondo a nossa própria aven-
tura, sempre com a possibilidade de novas descobertas. Ao fazê-lo, nos educamos.

O lugar da ação, animação e mediação culturais


Se concordamos que é na instância da recepção que se processa a dimensão educativa da arte, deve-
mos, por outro lado, destacar que não é possível pressupor os efeitos da obra no público – justamente porque
à arte não compete operar de forma prescritiva, finalística ou teleológica. Ademais, não podemos esquecer
que o interesse e a familiaridade com a arte não surgem de maneira completamente espontânea, resultando,
em boa medida, daquilo que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chama de “habitus”. Ou seja, a intimidade
com a arte se constitui pari passu com a formação do gosto, o que demanda uma convivência temporalmente
alargada, assídua, com os bens culturais e as linguagens que lhes constituem, assim como com os códigos
que caracterizam os ambientes onde estes são apresentados aos públicos.

Destarte, não é possível conceber a dimensão educativa da arte de modo desvinculado da ação cul-
tural e das suas respectivas práticas de animação e mediação. São essas linhas de atuação que, respaldadas
por políticas culturais e institucionais, buscam viabilizar e garantir os direitos culturais dos cidadãos. O que
pressupõe, de um lado, promover a democratização do acesso aos bens artístico-culturais e, de outro, esti-
mular a apropriação e o uso das linguagens e ferramentas artísticas pelos públicos, com o fito de que eles
também se vejam como produtores culturais.

Tão importante quanto as ações de difusão e mediação desenvolvidas pelas instituições culturais é a
presença das linguagens artísticas nos currículos dos diferentes ciclos do ensino formal. Aliás, não se pode
conceber uma coisa sem a outra, na medida em que é a complementaridade entre as instâncias formal, não
formal e informal da educação que pode promover uma formação realmente significativa e consistente.
Falamos, é bom que se diga, não apenas de uma formação voltada para as artes, mas também para uma re-
lação mais complexa com os demais campos do saber. Há pesquisas, inclusive, que demonstram o quanto a
relação assídua com as artes contribui para o desenvolvimento da cognição do indivíduo e, por conseguinte,
de sua capacidade de aprendizagem.

A ação do Sesc
O projeto socioeducativo desenvolvido pelo Sesc São Paulo tem na compreensão do papel central
da arte o norte de boa parte de seus programas. Nesse sentido, seus centros culturais e desportivos – as
Unidades Operacionais (UOs)10 – são idealizados, projetados e geridos como locais propícios ao contato e
à interação com as diversas linguagens e manifestações da arte, com especial atenção à busca por transpor
barreiras (físicas e simbólicas) entre os trabalhos artísticos e os públicos11.

Dessa forma, a mediação praticada pela instituição é compreendida e exercida em termos expandidos,
envolvendo desde a arquitetura das UOs, a ambientação dos seus espaços e a comunicação visual, até a pro-
gramação cultural em si, a conformação das respectivas atividades e as estratégias assumidamente educativas

10. Mais informações sobre as Unidades Operacionais do Sesc São Paulo podem ser encontradas em: <https://bit.ly/2rez0jO>. Acesso em: 02
mai. 2018.
11. As Realizações do Sesc São Paulo em 2017 podem ser conferidas em: <https://bit.ly/2rfif91>. Acesso em: 02 mai. 2018.

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a elas atreladas – que incluem abordagens conduzidas por educadores e materiais com vocação pedagógico-
-mediativa. Entre eles, destaca-se o recente lançamento de Trocas e Olhares – Acervo Sesc de Arte Brasileira,
material educativo que subsidia o Programa de Formação de Professores em Artes Visuais, do Sesc São Paulo.

Nessa mesma linha, entende-se a acessibilidade como aspecto crucial da ação e que, além disso,
exige um entendimento alargado acerca das demandas e iniciativas que ela implica. De um lado, trata-se
de fazer dos centros culturais e desportivos do Sesc São Paulo lugares abertos e de fácil chegada aos mais
diversos públicos. Para isso, procura-se priorizar locais servidos por diferentes modais do transporte pú-
blico coletivo, além de tornar suas entradas convidativas e permeáveis a todos, através de uma política de
portas abertas. De outro lado, confere-se centralidade à noção de acessibilidade atitudinal, que transcende
as medidas de adaptação física dos espaços para o uso das pessoas com deficiência – sendo esta uma frente
imprescindível da ação. Nessa chave ampliada, além de buscar contemplar as variadas formas de acesso aos
espaços e aos conteúdos culturais, há um esforço para que todo o corpo funcional da instituição se imbua
do acolhimento dos diversos perfis de público, com base numa abordagem eminentemente inclusiva, a ser
protagonizada por todos os agentes envolvidos.

Além desses critérios – que representam princípios basilares do trabalho realizado nas UOs –, seria
elucidativo lançar luz, aqui, sobre algumas frentes específicas da ampla ação sociocultural proposta pelo Sesc
São Paulo, a começar por seus Espaços de Tecnologias e Artes (ETAs). Pensados, nos anos recentes, para
subsidiar a curiosidade e a inventividade dos públicos no campo artístico, os ETAs condizem a uma revisão
e redirecionamento do que foi o programa Internet Livre, cujo objetivo inicial era o de promover a inclusão
tecnológica, com foco nos dispositivos digitais. Reestruturado, o programa passou a trabalhar a partir de
uma concepção mais abrangente e complexa de tecnologia, contemplando tanto o universo digital como as
ferramentas analógicas, com vistas a tornar acessível e, ademais, fomentar a experimentação artística por
meio de atividades formativas e de fruição12.

No que tange aos programas dedicados à difusão cultural propriamente dita, a atuação do Sesc São
Paulo assume um caráter notadamente “tentacular”. Tal imagem corresponde à permanente expansão do seu
conjunto de ações em diferentes cidades e regiões do Estado. Isto se dá tanto (1) através da rede instalada
de centros culturais e desportivos no litoral e interior de São Paulo, como também (2) por meio de circu-
lações que adotam as ruas, praças e parques de cidades onde o Sesc ainda não se encontra instalado como
plataforma de atividades culturais. Complementa essas estratégias (3) a presença digital da programação na
internet, para muito além da divulgação.

No primeiro caso, além das programações desenvolvidas pelas UOs do interior e litoral, vale desta-
car o programa de itinerâncias de mostras e festivais, que contribuem para a disseminação de repertórios e
modos de fazer que, muitas vezes, acabam concentrados e circunscritos aos grandes centros. Já no caso das
circulações, cumpre chamar atenção para o Circuito Sesc de Artes, que anualmente ocupa os espaços públi-
cos de cidades atendidas pelo Sesc São Paulo através dos seus polos – as próprias UOs –, proporcionando o
acesso a atividades em diversas linguagens e formatos artísticos13. Quanto à presença digital, que conta com
um extenso leque de ações e serviços afeitos à ampliação do alcance do trabalho realizado pela instituição,
pode-se ressaltar a difusão de atividades presenciais por meio do uso de ferramentas de transmissão ao vivo
(streaming).

Os programas acima citados distinguem-se pela amplitude de seus espectros e alcance, destinando-
-se ao público em geral. Já entre os programas delineados de acordo com marcadores etários, mostra-se útil

12. Mais informações sobre os Espaços de Tecnologias e Artes podem ser encontradas em: <https://bit.ly/2rkpMTw>. Acesso em: 02 mai. 2018.
13. Mais informações sobre o Circuito Sesc de Artes podem ser encontradas em: <https://bit.ly/2rhkXec>. Acesso em: 02 mai. 2018.

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a menção ao Curumim. Com trinta anos de existência, e atendendo crianças com idade entre 7 e 12 anos,
o programa conta com uma gama de atividades socioeducativas, com foco na formação cidadã. Dentre as
abordagens desenvolvidas pelos educadores – os instrutores de atividades infanto-juvenis –, estão as vivên-
cias em música, literatura, dança e artes visuais. Através delas, as crianças não apenas são sensibilizadas por
meio de diferentes estímulos e composições poéticas, como também encontram a oportunidade de travar
contato com vocabulários expressivos suscetíveis de serem apropriados e usados por elas em seus próprios
exercícios de criação14.

A expertise na lida com a difusão e a mediação dos bens e práticas culturais resulta de um trabalho de
longo prazo, que em breve completará 72 anos. Ao longo dessas sete décadas, o Sesc São Paulo implementou
e cultivou diferentes perspectivas de ação sociocultural, sempre procurando interagir de maneira propositiva
com as circunstâncias históricas. Tal acúmulo de experiências no âmbito da gestão e ação socioculturais faz do
Sesc São Paulo, além de uma organização habilitada a proporcionar oportunidades para os trabalhadores do
comércio de bens, serviços e turismo, seus dependentes e a comunidade em geral, um laboratório onde se gesta
todo um instrumental relativo aos modos de fazer no domínio da gestão e mediação culturais.

Dessa percepção surge o Centro de Pesquisa e Formação – CPF, Unidade Operacional especializada
na abordagem dos diversos saberes inerentes à organização do campo cultural15. Tal abordagem se realiza a
partir de três tipos de aproximação: referências conceituais, ferramentas metodológicas e experiências práticas.
Para tanto, o CPF estrutura-se em três núcleos, sendo um dedicado à elaboração e acompanhamento de pes-
quisas, um segundo núcleo de formação, que propõe cursos de curta, média e longa durações, e um núcleo de
difusão, no qual se destacam uma revista eletrônica e um portal de conteúdos sobre o campo cultural.
O CPF é apenas um dos testemunhos do compromisso do Sesc com uma noção expandida de edu-
cação, para a qual colabora em grande medida o exemplo da arte e o trabalho dos artistas. O crítico de arte
Mario Pedrosa afirmou, na década de 1960, que “a arte é o exercício experimental da liberdade”. Daí a sua
possibilidade de criar mundos possíveis, para além daqueles que o cotidiano nos sugere. E, desejando bom
trabalho para a continuidade do congresso, deixo vocês com uma reflexão: “A arte não é um espelho para
refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo” (Vladimir Maiakovski)

14. Mais informações sobre as ações do Sesc São Paulo voltadas a crianças, adolescentes e jovens podem ser encontradas em: <https://bit.ly/2rijPWO>.
Acesso em: 02 mai. 2018.
15.Mais informações sobre o Centro de Pesquisa e Formação podem ser encontradas em: <https://bit.ly/1IhiFLz>. Acesso em: 02 mai. 2018.

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O LUGAR DO ENSINO DO TEATRO
COMO VONTADE DE ATUAÇÃO
João Denys Araújo Leite16

D esejo iniciar declarando meu amor imenso ao teatro e a minha prática de artista ensinador, de
atuador nas casas de espetáculo e na sala de aula/ensaio. É nesse lugar que me sinto feliz e cheio de Alegria-
mor. Como se fosse um longínquo Wilhelm Meister (Goethe, 2016), passo em revista uma parte relevante da
minha formação de professor, sem distinção entre o ensinar e o aprender, vendo em perspectiva meus anos de
aprendizado, reinventando minha existência. Aprendo com tudo, com todos, e creio na formação permanente.
O tempo e o lugar da escola representam uma pequena parcela da construção de saberes. O palco do mundo,
o meio ambiente, os seres viventes, o universo perto e distante, da arte e das estrelas, nos reconstroem a cada
instante, a cada encontro, a cada diálogo. Neste instante quero dizer o mesmo que o imperador Adriano: “O
verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós
mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas” (YOURCENAR, s.d., p. 33).

Para testemunhar minha formação, escolhi três vivências dentro e fora do âmbito da universidade,
sem distinção de quem ensina e aprende, mas momentos de transformação da vida, da existência, por meio
do teatro. São elas, em ordem cronológica, O círculo da vida, a Oficina do Tijolo e o Teatro de Arte da Estrela.

O Círculo da Vida
O projeto O Círculo da Vida surgiu em 1991, a partir de uma proposta de Armia Escobar Duarte,
diretora Cultural da Fundação Centro Educativo de Comunicação Social do Nordeste – Cecosne. Consistiu
na montagem de um espetáculo com jovens de comunidades de baixa renda que participavam dos progra-
mas educativos da Universidade Popular Dom Hélder Câmara, órgão do Cecosne.

Subvencionado por instituições internacionais, o espetáculo fez parte da programação cultural do


Pellegrinaggio Penitenziale Europeo que se realizou em junho de 1992, de Gênova a Assis, na Itália. No
mês de maio, o espetáculo percorreu cidades italianas, preparando o evento que culminou a 13 de junho
em Assis, sob os auspícios da Regione dell’Umbria. O Pellegrinaggio foi promovido pela Pro Civitate
Christiana, Rete Radié Resche e por um extenso número de associações e grupos de voluntários europeus.
Estes grupos problematizavam as comemorações pela passagem dos 500 anos do achamento da América
pelos europeus, refletindo e protestando contra os significados e as consequências históricas, sociais e
políticas deste aniversário.

16. Dramaturgo, encenador, ator, cenógrafo, figurinista, maquiador e iluminador. É professor e pesquisador do Departamento de Teoria da Arte e
Expressão Artística, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Possui graduação em Comunicação Visual pela UFPE (1981) e mestrado em
Teoria da Literatura pela UFPE (2000). Tem publicada, a Trilogia do Seridó, que consta das peças Deus danado (1993), Flores D América (2005) e A
pedra do navio (1979), em edições separadas. Seu foco de pesquisa no último decênio tem sido a dramaturgia de Joaquim Cardozo e a dramaturgia
de Hermilo Borba Filho. Atualmente desenvolve pesquisa em Processos de criação dramatúrgica e Composição de textos teatrais.

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A resistência das populações latino-americanas, a perda de identidade dos nossos nativos e o
direito negado ao espaço vital foram os temas que justificavam o evento. O debate não se restringiu à pro-
blemática dos povos indígenas da América, mas se estendeu aos afrodescendentes, aos marginalizados do
nosso tempo: os desterritorializados, os toxicômonos, as criaturas com transtorno mental, pessoas com
deficiência física, os portadores de HIV, os ex-presidiários e todos os impossibilitados de existir digna-
mente no espaço social. Nada mais oportuno do que criar um espetáculo que ressignificasse a formação
sociocultural do povo brasileiro, mostrando por meio da arte, um ponto de vista em consonância com o
que esses grupos europeus debatiam.

Em busca de uma educação integral, a minha pesquisa alicerçou-se nos estudos de Richard Courtney
(1980), Viola Spolin (1982), Maria Helena Kühner (1975) e Augusto Boal (1977, 1979, 1988). Como o traba-
lho se desenvolveu com um grupo de classe social oprimida e se encetou um diálogo horizontal, nutrido pelo
amor, pela humildade, pelo espírito crítico e pela confiança recíproca, o caminhar do projeto também se nor-
teou pelo pensamento de Paulo Freire (1982,1987), numa prática que se manifestou em liberdade.

Procurei durante doze meses propiciar o surgimento dessa liberdade nos adolescentes, fazendo-os
responsáveis no domínio de suas realidades, descobrindo junto com eles uma verdade e um conhecimento
que brotou, pouco a pouco, de seus corpos em ação.

Como atitude inicial do experimento, procurei me transfigurar em um dos participantes; situar-me


no plano do grupo e dissecá-lo por meio de entrevistas e questionários revestidos do prazer da brincadeira.
Após trinta encontros, o grupo se definiu: dez rapazes, entre treze e dezesseis anos, na maioria capoeiristas
em formação. No círculo, os adolescentes brincavam, lutavam, discutiam, reclamavam da vida, revelavam
seus sonhos mais secretos, falavam das tensões na família, mostravam suas potencialidades. E as maiores
potencialidades se encontravam nos seus corpos em estado de jogo.

Todos os gestos dos jovens estavam prenhe de significados. Cada movimento foi considerado e
supervalorizado, assim como qualquer palavra pronunciada. Os palavrões serviam para um extenso debate
sobre amor e sexo, acentuando a importância destes assuntos para a vida do ser humano.

Ao debatermos a palavra “porra”, definiram-se o título do espetáculo e do projeto educativo. O por-


ra/sêmen, gerador de uma parte da vida, foi representado por um dos jovens como um ponto feito com giz
no centro da sala. Do ponto central um jovem segurou a extremidade de um barbante que representou o
cordão da vida. Com outro pedaço de giz na outra extremidade outro menino deu movimento e traçou uma
grande circunferência. Estavam traçados o espaço, o conceito e o título do espetáculo: O círculo da vida.
Aproveitaram para dizer o que queriam dentro do círculo, fazendo o que mais gostavam e se esforçavam
para se aperfeiçoar: jogar capoeira.

A capoeira quebrava qualquer bloqueio à exposição corporal do elenco. Reunia, com suas caracte-
rísticas de luta e dança de resistência de um povo, toda uma gama de significados para a equipe. Elegemos,
portanto, a capoeira para ser a linguagem mestra, o fio condutor do espetáculo. Fragmentamos a luta/dança
em partículas de gestos e movimentos. Cada golpe foi desmembrado lentamente: a rasteira, o aú, o macaco,
a meia-lua-de-compasso, rabo-de-arraia, o esporão, a cabeçada. Estes pequenos núcleos de movimento,
corporificaram-se como o alfabeto e a partitura da encenação.

De teatro, quase nada a ensinar e sim possibilitar o seu afloramento consciente através do jogo. Kou-
dela confirma esta atitude quando diz que

o teatro, enquanto proposta de educação, trabalha com o potencial que todas as pessoas possuem,
transformando esse recurso natural em um processo consciente de expressão e comunicação. A
representação ativa e integra processos individuais, possibilitando a ampliação do conhecimento
da realidade (KOUDELA, 1998, p. 78).

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Após um ano, o espetáculo estava pronto. Em setenta minutos, mostrávamos, simbolicamente, o
percurso de um povo sobre o mundo. Da terra se organizando geologicamente ao surgimento dos seres
vivos. Do nascimento do ser humano à sua procriação e formação cultural em liberdade. Da chegada dos
europeus à perda da identidade e a escravidão. Das lutas nos quilombos à possível construção utópica de um
mundo novo, onde se luta capoeira com o planeta azul.

Esses rituais podiam ser fruídos, porém, o mais contundente, no entanto, era impossível de se re-
produzir: o processo de construção do conhecimento. A formação de um outro código, onde o verbo não
tem a importância e o status que goza na escola e nos meios acadêmicos. Nos saltos, a definição de linhas
retas, interrompidas e sinuosas. Na mímesis dos seres vivos, reconheceram a geografia e as ciências naturais.
Os movimentos, construindo ângulos retos, diâmetros e raios. Medindo cada parte do corpo, se iniciaram
no aprendizado das proporções, dos limites e das mensurações. Uma outra geometria dos saberes em for-
mação: deles e da minha formação mais especializada em gente e arte no próprio ato de ensinar experimen-
tando e apreendendo o mundo e o amor à existência em luta. Ao produzir uma cena da criação a partir da
pintura de Michelangelo, com um Adão negro e um criador menino, conheceram um pouco da história da
arte da Europa que reconheceram, in loco, na Capela Sistina, em Roma. Cortando materiais diversos, pin-
tando, colando, moldando, executaram o cenário, o figurino, as máscaras, os objetos de cena e os adereços
do espetáculo. Reproduzindo as pinturas corporais de nossas nações indígenas, tentaram recuperar uma
identidade: a identidade de cidadãos pensantes, numa pobreza rica de criatividade e vigor.

A viagem à Itália por quarenta dias culminou o processo. De Palermo, na Sicilia, a Gressoney-Saint-Jean,
no Valle d’Aosta, foram mais de vinte cidades e espetáculos.

Os albergues e hotéis, as famílias que os abrigavam, o excesso de zelo nunca recebido, o idioma
novo, a nova geografia adensavam a formação do professor-artista e dos meninos-artistas. As entrevistas
e os debates nas escolas, o intercâmbio de experiências com pessoas com necessidades especiais, com ex-
-toxicômanos, com imigrantes africanos e asiáticos; a constatação de outros problemas sociais, o terror da
máfia, o contato com outros adolescentes com dores e marcas tão cruéis quanto as que conheciam no Brasil:
refiro-me ao encontro da equipe com um grupo de meninos e meninas da Croácia que, fugindo das agru-
ras da guerra, mostravam seu canto e sua dança em Castiglione Messer Marino. O feedback realizou-se de
imediato por meio do canto e da dança. O que havia de insólito neste encontro nas montanhas da região do
Abruzzo, entre os tristes croatas e os alegres brasileiros de Vila de Sant’Ana/Olinda, Torre/Santa Luzia, Casa
Amarela e Camaragibe?

Esses corpos refeitos, quando de volta para casa, trabalhando com as mãos, amando e construindo
novas ordenações e projetos de paz e conhecimento são a existência e a resistência de artistas-cidadãos-
-professores-aprendizes em atuação. Essa dinâmica encontra no discurso de Galileu sua perfeita economia:

Eu poderia escrever na língua do povo, para muitos, em vez de escrever em latim, para poucos.
Para as novas ideias nós precisamos de gente que trabalhe com as mãos. Quem, senão eles, quer
saber a causa das coisas? Os que só veem o pão na mesa não querem saber como ele foi assado;
essa canalha gosta mais de agradecer a Deus do que ao padeiro. Já os que fazem o pão compreen-
derão que nada se move que não seja movido (BRECHT, 1977, p. 161).

Da Oficina do Tijolo à Interpretação 3


A Oficina do Tijolo é um experimento de desconstrução e reconstrução do trabalho de interpretação
teatral destinado a todos aqueles que desejam se iniciar no teatro ou que se interessam em experimentar
uma nova abordagem de atuação teatral.

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A ideia surgiu de uma reflexão sobre uma obra teatral, constituída de apenas dez falas, escrita em
1981 pelo dramaturgo alemão Heiner Müller, intitulada Herzstück, Peça coração (MÜLLER, 1993, p 141) .
Os primeiros experimentos foram realizados no Circuito Pernambucano de Artes Cênicas, durante o segun-
do semestre de 2001.
Este trabalho foi, na verdade, o passo inicial na busca de uma metodologia do ensino de treina-
mento e atuação e também de um caminho mais integral de abordar uma obra teatral, dando-lhe corpo e
colocando-a em cena.

A metodologia, em sua forma embrionária, foi testada com alguns grupos, como por exemplo, para
uma equipe de médicos e psicodramatistas, no Recife; com pessoas de faixa etária heterogênea, com experi-
ência ou não em teatro, nas cidades pernambucanas de Belo Jardim, Camaragibe e Palmares, com resultados
bastante positivos.

O tijolo maciço é a peça fundante ou o coração desta Oficina. Ele é, por sua banalidade e simplicidade,
um precioso produto da cultura humana, partícula das edificações, célula do espaço construtivo que se desdo-
bra no processo criativo da Oficina. Nela, o tijolo assume funções tanto objetivas quanto subjetivas. Enquanto
partícula objetiva, o tijolo é um equipamento para treinar o corpo do ator no que diz respeito à resistência
física, à respiração, ao equilíbrio, à tensão, à concentração, à energia, à elasticidade, à força, à segurança, à con-
fiança individual e grupal. Como partícula subjetiva, o tijolo é transfigurado em células da voz, do texto e do
pensamento, servindo de metáfora de letras, sílabas, frases e orações; de objetos cenográficos; de delimitadores
da ação e do espaço cênicos; de personagens e partes do corpo. Da relação afetiva e responsável estabelecida
com o tijolo, por meio da ambigüidade inerente ao teatro, do pensamento analógico, da imaginação simbólica,
nasce a possibilidade de compartilhar emoções e gestos; possibilidade de comunicação teatral e de relações
dramáticas concretas. Além do tijolo era necessário um outro elemento totalmente antagônico: um lençol
de solteiro: a pele do ator em metáfora viva. Os dois elementos favoreciam o trabalho do ator-professor, do
professor-artista ou de quem quisesse experimentar um ato criativo em diversos e variados sentidos.

A Oficina do Tijolo, portanto, não procura ensinar interpretação teatral, mas propiciar vivências de
atuação cênica de largo espectro nas quais todo indivíduo com disponibilidade e abertura para o teatro pos-
sa vislumbrar a capacidade de expressar-se artisticamente na relação produtiva entre atores e espectadores.

Com o passar do tempo, a Oficina do Tijolo foi sendo incorporada às minhas aulas de Interpretação
3, no curso de Teatro/Licenciatura da UFPE. O tijolo foi substituído por um bastão de bambu e o lençol
continuou com a função de pele segunda do aprendiz. Os treinamentos psicofísicos propostos neste traba-
lho tangenciam e dialogam com as proposições contemporâneas do trabalho do ator, com um teatro aberto,
épico e antropológico.

Teatro de Arte da Estrela


O teatro de arte da Estrela foi uma demanda de um grupo de alunos da licenciatura em Artes Cêni-
cas, da Universidade Federal de Pernambuco, que vislumbrava a criação de um grupo, de uma companhia
que desse continuidade aos estudos e experimentos que realizamos nos componentes curriculares Interpre-
tação 2 e Interpretação 3.

De tanto insistirem, cedi aos apelos entusiasmados de dois alunos e nos encontramos, em agosto de
2010, para misturarmos sonhos numa primeira reunião de planejamento. Nossa conversa girou em torno da
criação de um grupo de experimentação teatral permanente.

Como em toda a minha vida de artista a encenação, com raras exceções, foi um enorme processo
de aprendizagem, uma exaustiva prática pedagógica, aulas de vida, treinamentos para o teatro e para as re-

30
lações sociais, não foi difícil entender que não tínhamos respostas elaboradas para todas as questões que o
processo, inevitavelmente, levantaria. A princípio, tínhamos que escolher gente, ajuntar pessoas com sonhos
análogos, semelhantes ou paralelos. Para ser justo com muitos que almejavam trabalhar comigo, tive que
fazer uma bateria de testes e entrevistas, com o intuito de perceber um certo, e muitas vezes confuso, grau
de artisticidade naqueles que almejavam a nova aventura: observá-los em cenas de peças, ouvi-los falar de
autores teatrais, dos trechos que representavam, vê-los dançar uma cor, traduzir em ação uma fotografia,
apreciá-los cantando uma imagem pictórica, contemplar seus discursos imagéticos, linguísticos, musicais,
cênicos. A atuação dos postulantes nessa experiência seletiva permitia-me perscrutar em suas fissuras a ca-
pacidade ou sensibilidade para a arte além do saber fazer, mas do saber sentir, do saber mostrar e conectar
os fenômenos da natureza, da sociedade, do indivíduo com as linguagens da vida, da arte, da ciência. Esta
tarefa dificílima, marcada por um lado pela objetividade (a exclusão) e por outro pela intersubjetividade (a
comunhão) gerou um grupo de oito criaturas, todos aprendizes de Artes Cênicas da UFPE17.

Em momentos anteriores à seleção, pensamos muito sobre a denominação do grupo. O impe-


rativo artístico era muito relevante para a identidade que pretendíamos construir. Para mim, o artista é
o construtor de mundos, de realidades ficcionais em diálogo com as realidades da vida que correm em
paralelo ou, vez por outra, se interpenetram. O artista é o poeta, é um adensador de signos, de imagens,
de ações. Do corpo transfigurado em poesia. Um “poetator” e uma “poetatriz” que geram mundos, por-
que “poetar é gerar” (NOVALIS, 1988, p. 122). A meu ver, a visão de mundo do artista, isto é, do artista
que idealizo, é permeável a tudo que nos rodeia, inclusive ao insignificante, visto que este entorno, com
todas as coisas, visíveis e imaginadas, é o combustível da criação, da encarnação do sonho, das misturas
alquímicas, da capacidade de partilhar estética, ética e criticamente as realidades. Trabalhar com um ser
integralmente é um exercício de prática da liberdade, e para a liberdade, que incorpora o devir pedagó-
gico, o emergir do jovem artista/professor que se forma e se conforma mais e melhor em coletividades.
Eu me dou o direito de sonhar este ator estrela, mesmo consciente da terrível ambiguidade da palavra e
dos sentidos a ela impingidos. Combatendo a doença do estrelismo, sonho o artista de teatro, sobretudo
atrizes e atores, com brilho próprio, com expressão própria, com criticidade própria, com discurso pró-
prio, com estilo próprio, com compromisso social e político próprios, como a luz própria e mutante das
estrelas. Continuo a sonhar esse “ser ao mesmo tempo o eu de seu eu” de que fala Novalis (1988, p. 55).
Meu despudor pedagógico mistura bem o romantismo alemão com a utopia brasileira. Tudo isso para ba-
tizar um pequeno ajuntamento de jovens com vontade de aprender. Toda essa misturação conceitual para
designar um grupo. Pedi aos companheiros de aventura, para sugerirem um nome para nosso empreen-
dimento. Após diversas conexões imagéticas, discursivas, artísticas pedagógicas e históricas, escolheeram
a Estrela como guia identitária. Assim surgiu o Teatro de Arte da Estrela, um pequeno grupo de estudos
teatrais com o objetivo de produzir com responsabilidade e compromisso artístico, em consonância com
seu tempo, com seus artistas, com seus públicos.

No primeiro ano de funcionamento do Teatro de Arte da Estrela, a prática pedagógica privilegiou


a diversidade de procedimentos metodológicos que auxiliam à formação do artista, experimentando com
o texto teatral, com a história do teatro, com o cinema, com práticas dramáticas e formação (RYNGAERT,
2009), com treinamentos psicofísicos, reprocessando e reinventando aqueles descritos e propostos por Gro-
towski (1976, 2007) e as prospecções de Barba (1995), em diálogo com os corpos possíveis e imaginados
dos participantes do grupo. A práxis pedagógica evoluiu para as experiências ao ar livre, para o aprendizado
peripatético, para a partilha da intimidade de cada um: as experiências, aventuras e desventuras pessoais
que, esperamos, servirão de matrizes geradoras de uma dramaturgia do ator.

17. O grupo foi formado pelos seguintes alunos: Ana Nogueira, Antônio Marinho, Ariele Mendes, Edwardes Machado, Evandro Lira, Fernando
Melo, Paulo André Mafra, Rafael Almeida. Evandro Lira só participou dos primeiros encontros. Fernanda Melo desistiu do grupo em 2012.

31
A primeira peça que estudamos foi Kean, de Jean-Paul Sartre (1961), adaptação feita em 1953 da
peça homônima de Alexandre Dumas, escrita em 1836. Escolhida quase ao acaso, Kean nos conduziu ao
debate sobre a condição do ator, da estrela no sentido que negamos; à discussão sobre a desrealização do
ator, tema caro ao filósofo existencialista. A peça nos transporta, no plano ficcional, para uma sociedade e
um teatro aí inserido de importância cabal para entendermos os jogos de poder e as relações de classe.

Em dias alternados fazíamos estudos dirigidos, víamos filmes e pomos em prática o treinamento
psicofísico, o conhecimento do corpus dos participantes e suas possibilidades. Esse corpus quer se dizer, em
laboratório, memória de corpos desde a mais remota lembrança. Quer se dizer limite e interdição. Quer se
dizer superação na prática criativa do equilíbrio, da força, da semantização, da tentativa de desafiar a gravi-
dade, do cômico e do doloroso. Quer produzir beleza e feiúra. Um corpo que não é só barriga e sexo, braços
e pernas, cabeça e tronco, língua e olhos, mãos e dedos. Um corpo que não é só odores e humores, sem
órgãos, como poetizou Antonin Artaud, mas um corpo sem órgãos com órgãos maleáveis, permeáveis aos
estímulos mais inusitados que a poesia do mundo e dos artistas nos fornece. Meu papel nos exercícios foi o
de provocador poético, a respeitar os pavores que certas partes do corpo provocam em cada um, bloqueando
a mente, a criatividade, a fluidez discursiva do corpo.

Com o amadurecimento do grupo, retornamos à discussão sobre arte, poesia, teatro e atuação a
partir da visitação, em vários encontros, do filme Les enfants du paradis (1945), de Marcel Carné. Momento
importante para conhecer a constelação de criadores e estéticas ali existentes. Os textos poéticos de Jacques
Prévert, além do roteiro do filme, seus poemas, suas peças curtas, estavam para ser conhecidos e explorados.
Observar e analisar a atuação de Jean-Louis Barrault, apreciar planos fílmicos, os cenários, a iluminação, as
reconstituições teatrais, o lugar do povo na casa de espetáculo à italiana do século XIX, o dentro e o fora, os
detalhes de uma obra monumental, foi experiência grupal única e decisiva para seguir estudando. Uma obra
de qualidade cria desejo de criação, vontade de criar. Excita o professor criador, esse ator-estrela que alme-
jamos e que às vezes nos parece distante como um lustro no firmamento escuro. Entre a fruição e o debate
das duas partes do filme de Carné e novas sessões com Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, experimen-
tamos contar|inventar|fantasiar a história de vida de cada participante. Voltamos a trabalhar a imaginação e
a memória, tentando nos lembrar do corpo em relação aos outros corpos durante a infância. Essa busca pela
criança jogadora, perdida dentro de cada “poetator” e de cada “poetatriz” detefoirminante para o êxito desta
proposição artístico-pedagógica. A despeito dos perigos psicologizantes que o experimento pode provocar
(mesmo no âmbito do psicodrama), todo o excesso de energia daí advindo foi canalizado para a poesia da
cena, em jogo, evitando-se a distorção pseudoterapêutica ou pseudopsicanalítica. É o jogo que está em jogo
e quem joga é o artista e o jogo é a arte se fazendo e desfazendo concomitantemente. Ainda a perseguir uma
utopia artístico-pedagógica, acreditamos na plenitude do ser humano em performance lúdica e dizemos
com Schiller (2010, p. 76): “o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente
é homem pleno quando joga”.

A busca da criança perdida, escondida ou recalcada em cada um de nós, nos permitirá acionar os
sentidos e perceber as interpenetrações de formas, cores, perspectivas, ideias, sentimentos, sons, ritmos,
tempos, planos, superfícies, velocidades. A percepção sinestésica necessária à criação que nossa criança
necessita para jogar.

Jacques Lassalle, em conversa com Jean-Loup Rivière, discorre sobre essa criança que os fazedores
de teatro e muitos intelectuais sisudos preferem deixar adormecida no túmulo de seus corpos:

O pedagogo forma intérpretes; ele deseja criar artistas. É por isso que tenta liberar o vigor nos
artistas, a inocência, o gosto pelas descobertas, pelo risco, pelo “fora da pista”. Gostaria de de-
volvê-los à criança que foram. Meierhold perguntava-se por quê, de seus atores, aquele que era

32
incontestavelmente o mais talentoso aborrecia-o tanto. Acabou compreendendo: não conseguia
imaginar esse ator quando criança. Às vezes, as pessoas lembram-se de ter sido crianças. Porém,
o ator, por toda sua vida, continua sendo uma criança. Continua a habitar sua infância. Ele mor-
reria se essa criança fosse enxotada. “Temos em todos nós uma criança morta”, dizia Kantor. Na
verdade, não morta. Profundamente adormecida, mais precisamente. Uma criança adormecida e
que nos faz sonhar. (LASSALLE, 2010, p. 78)

Essa qualidade de sonho da infância em nós, associada às relações materiais e espirituais do jovem
em processo de sedimentação flexível, de luta e aventura amorosa, existencial, política, vivencial, compõem
a utopia que buscamos e praticamos. Encontramo-nos para buscar essa qualidade.

No segundo semestre de 2011, já estávamos mais seguros para pensar um trabalho denso com um
texto teatral e até mesmo investir em uma futura montagem. Sugeri a leitura e análise de O coronel de Ma-
cambira (1963), de Joaquim Cardozo, poeta|dramaturgo|engenheiro que tem sido meu foco de pesquisa há
mais de dez anos.

A obra extremamente aberta do Bumba-meu-boi de Joaquim Cardozo nos empurrou para o mun-
do. Trabalhamos jornadas da peça em separado e começamos a sentir a necessidade de ar livre. Assim,
passamos a fazer caminhadas noturnas no campus. Rir muito e observar tudo a nossa volta com extrema
atenção. Nosso método peripatético nos fazia ver estrelas, constelações, noites de lua, composições de nu-
vens, água, terra, ar, fogo. Conhecemos os animais e sombras da noite, ouvimos o chão e exercitamos nossa
percepção periférica com experimentos em marcha.

Tentando compreender as confluências de arte e ciência propostas pelo autor de Mundos paralelos
(1971), de Signo estrelado(1960), de Colóquio dos violentos (1967), experienciamos as bordas e fronteiras
do campus da UFPE, pleno de natureza em planície varzeana, de cheiros, de lagos, de riachos, de árvores
exuberantes, de ninhos que são “mocambos de passarinho” como diz o poeta: “Nessa várzea sou planície, /
Vaga dimensão dormente; / Tendida no chão conforme / Sou de mim sombra somente” (CARDOZO, 1971
[1960], p. 57).

Nossa prática pedagógica já se configurava em performance. Como explicar aos transeuntes o que
fazíamos ali no espaço público? Observados com disfarçado espanto, já estávamos atuando? E a atenção
desconfiada dos guardas noturnos, da segurança que nos intimidava com seus cavalos de aço, vigiando
nossa brincadeira de criança, nosso feitiço de faz de conta, nossa alquimia de barbante, construindo geome-
tricamente, em enormes proporções, triângulos, círculos, retângulos, no lusco-fusco dos gramados, à beira
do Riacho Cavouco, sob arvoredos frondosos e misteriosos. Nas sombras da universidade, em movimento,
aprendemos muito sobre a iluminação, sobre a qualidade das luzes, sobre a arquitetura e a engenharia dos
saberes ali setorizados em seus nichos monumentais. Em cada passada, qual Soldado da Coluna, figura de
O coronel de Macambira, aprendemos o caminho e o caminhar.

Após um ano de encontros, nos propusemos a fuçar nossas histórias pessoais mais fundas para es-
crever, sobre o papel e sobre o corpo no espaço, nossos dramas, nossas comédias, nossas farsas, enfim, nos-
sas dramaturgias. Tudo está em jogo em nossos céus criativos, em busca de conhecimento, em busca de um
teatro nosso, em busca de uma arte teatral que virá, porque a chamamos, porque a enlaçamos e a arrastamos
em nossa direção. Mas, pouco sabemos do futuro dessa aventura. Esperamos que a corda que nos liga aos
nossos sonhos não se rompa. E se isso ocorrer, a corda será emendada, retrançada e consertada, enquanto
tivermos forças e habilidades para atar e desatar nós.

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34
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
EM ARTES: ESPANTO, SONHOS
E IDENTIDADES NA CO-CONSTRUÇÃO
DA PROFISSIONALIDADE DOCENTE
António Ângelo Vasconcelos18

Introdução
A formação de professores e a educação em artes vivem num tempo de grandes complexidades e
incertezas, de múltiplas perplexidades em que, por um lado, se sente a necessidade de mudança e, por outro,
nem sempre se consegue definir um rumo que seja pertinente e que dê corpo aos desafios lançados pelas
sociedades contemporâneas.

Por outro lado, aos docentes que trabalham nos domínios artísticos exigem-se-lhe um conjunto di-
versificado de competências e de conhecimentos que contribuam para a construção de modalidades de ensi-
no e de aprendizagens diferenciadas, que se exercem em contextos multi-facetados e multi-situados. Por seu
lado, as aprendizagens artísticas caracterizam-se por serem também uma actividade complexa que envolve
uma rede alargada de experiências e experienciações, formais e não formais, de natureza técnica, estética,
artística, investigativa, social e cultural numa interacção dialética de processos cognitivos e sensoriomotores
a par de interdependências várias com a emoção, a memória, a imaginação, a criatividade, a co-performance
colaborativa e a compreensão da artes nos contextos da sua criação e produção.

Contudo, nem sempre a formação de professores, inicial e continuada, potencia o desenvolvimento


das multi-competências e da necessária capacidade de convivialidade entre diferentes contextos pedagó-
gicos, artísticos, estéticos, sociais e culturais, nem alia, de um modo pertinente, a relação entre formação-
-expectativas dos estudantes-profissionalidade docente, uma vez que esta formação ainda está “prisioneira”
não só de modelos oriundos da “era industrial” como também de contaminações políticas e científico-
-pedagógicas que duplicam “o mesmo do mesmo” e que “dificultam modos alternativos de pensar e de agir”.

Como salienta Nóvoa (2009), “existe um excesso de discursos, redundantes e repetitivos, que se
traduzem numa pobreza de práticas. Existem momentos em que parece que dizemos o mesmo, como se as

18. Professor-adjunto no Departamento de Artes da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal. Estudou no Conservatório de
Música Calouste Gulbenkian em Aveiro. Possui licenciatura em Ciências Musicais e Doutorado em Educação, pela Universidade de Lisboa. Pre-
sidente da Associação Portuguesa de Educação Musical (2012-2015). Foi diretor de uma escola profissional, desempenhou funções como técnico
especialista no ensino música no âmbito do Ministério da Educação e participou de vários grupos de trabalho relacionados com o ensino de música.
Tem desenvolvido trabalho de investigação sobre: a profissão de músico e a formação de professores, as escolas, criatividade e políticas públicas
no campo musical.

35
palavras ganhassem vida própria e se desconectem-se da realidade das coisas. As organizações internacio-
nais e as redes que hoje nos mantém permanentemente conectados contribuem para esta vulgata, que tende
a complicar ainda mais esta situação em vez de a resolver.” Escreve este autor que “o campo da formação de
professores está particularmente exposto a este efeito discursivo. Os textos, as recomendações, os artigos
e as teses sucedem-se a m ritmo alucinante repetindo os mesmos conceitos, as mesmas ideias, as mesmas
propostas. É difícil que não nos contaminemos como este discurso gasoso que ocupa todo o espaço e que
dificulta a emergência de modos alternativos de pensar e de atuar. […] No entanto, é necessário fazer um
esforço para manter a lucidez e, sobretudo, construir propostas educativas que nos façam sair deste círculo
vicioso e nos ajudem a definir o futuro da formação de professores” (p. 204).

Neste contexto, procuro defender a reconfiguração da formação dos professores em artes ten-
do presente os desafios que lhe são colocados, individual e coletivamente, quer pelas práticas artísticas
contemporâneas quer pelas exigências que se colocam à educação em geral e à educação artística em
particular, em que, num trabalho dialógico, participativo e colaborativo entre diferentes tipos de atores,
se potenciem modalidades de (re)existência e se criem possibilidades de rencantamento com os mundos
reais e imaginários.

É uma reflexão que se constrói em torno de um duplo argumento. O primeiro assenta que a forma-
ção dos professores em artes se encontra na confluência entre diferentes mundos: “os mundos das artes e os
mundos da educação”, “os mundos das escolas e os mundos das comunidades”, “os mundos individuais e os
mundos dos saberes”, “os mundos das técnicas e os mundos das estéticas”. Mundos diferenciados e hetero-
doxos, muitas vezes conflituais, que contribuem para o incremento das características distintivas deste tipo
de profissionais. O segundo, centra-se na pertinência de que a formação de professores nas áreas artísticas
seja construída dentro da profissão englobando as artes e a educação.

Tudo isto tem como ponto de partida a minha visão sobre as artes no espaço contemporânea e as
suas múltiplas facetas e possibilidades. Em particular, “considerar a arte como território de resistência” o que
“implica uma compreensão da atividade artística como sendo da ordem do imprevisível e fora de controle”
uma vez que “somente o que não está previsto no campo dos saberes dominantes pode formar territórios
de resistência, pois o que foi capturado pela força dos territórios materiais e simbólicos dominantes não
tem poder transformador por carecer de força vital e criadora” (Galeffi,2017:22). Deste modo, assume-se a
perspetiva de que a formação de professores em artes (inicial e continuada) representa uma opção teórica,
artística e política que corresponde a uma visão da sociedade, da educação, do conhecimento e da arte que
se revela numa intencionalidade assente num horizonte utópico, de uma utopia realizável.

Assim, partindo do saber experiencial e de uma revisão da literatura de diferentes quadrantes cientí-
ficos e ideológicos, esta reflexão está dividia em três momentos. No primeiro, “Das complexidades de ser-se
professor num tempo difuso” procuro, de um modo sintético, apresentar o meu entendimento sobre algu-
mas das complexidades do exercício da profissão bem. No segundo, “A.R.T.E.S. - Uma ecologia de formação
de professores como modalidade de (re)existência” em que, partindo da palavra Artes, proponho uma eco-
logia de formação assente em cinco facetas desta problemática. Por último umas breves considerações finais.

1. Das complexidades de ser-se professor num tempo difuso


Pode-se afirmar que existe algum consenso académico de que o trabalho desenvolvido por um pro-
fessor de artes é uma tarefa complexa e imprevisível que envolve a pessoa do professor e é sustentada num
conjunto alargado de valores e de conhecimentos exigindo um elevado grau de “expertise” e de criatividade
(Haddon & Burnard, 2016; Hargreaves, 1998; Lucas et al. 2016). E este consenso acentua que o pode ser

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designado por um “bom profissional” significa ser organizado, reflexivo, sustentado pelo conhecimento
artístico e educacional e requerendo uma compreensão de diferentes tipos de possibilidades de desenvolvi-
mento das práticas artísticas e formativas no interior da escola e das comunidades.

Por outro lado, o trabalho que desenvolve não se exerce num quadro isolacionista e, por este fato,
“o eu profissional” desenvolve-se na interligação com uma comunidade alargada de atores envolvidas nas
artes, no ensino e nas aprendizagens (com os colegas, estudantes investigadores, administradores, famílias e
políticos) num ambiente complexo, e muitas vezes conflitual, situado entre a competição e a desconfiança e
entre a partilha, a abertura e a confiança.

Nesta diversidade de atores existem diferentes formas poder, de pressão e de controle situadas en-
tre forças mais conservadoras e neoliberais, que tem como referenciais a produtividade, a competitividade
o empreendedorismo, e outro tipo de forças, social e culturalmente orientadas, que propõem uma maior
autonomia e responsabilidade pessoal. Estas diferentes formas de poder, de pressão e de controle têm a ca-
pacidade de, directa ou indiretamente, influenciar as práticas de ensino do professor através dos currículos,
conteúdos programáticos, incentivos financeiros ou outros, nos modos de organizar e estruturar a escola, na
avaliação dos professores e dos estudantes, nos manuais e na utilização das tecnologias.

Neste contexto, o exercício da atividade docente encontra-se na interseção de um conjunto de con-


textos que se afiguram particularmente relevantes no pensar a formação inicial e continuada dos profes-
sores de artes. Os modos como o conhecimento é mobilizado nestes diferentes contextos contribuem para
enformar a pessoa do professor e os saberes que possui e mobiliza. Partindo de Burnard (2014), podem
identificar-se os seguintes contextos que influenciam o ser-se professor:

(a) contextos políticos e de políticas em que os diferentes referenciais de ação são definidos quer no
discurso político, quer nas medidas que são adotadas pelas diferentes instâncias de governo, locais, nacio-
nais e transnacionais;

(b) contextos académicos em que o conhecimento teórico pode ser relacionado com os saberes
práticos e os saberes práticos podem ser mobilizados para a construção teórica;

(c) contextos artísticos em que as diferentes formas de criação, interpretação e de produção artística
influenciam, diretamente e/ou indiretamente, o exercício profissional docente e podem ser mobilizados
para o trabalho formativo, bem como a identidade de professor-artista;

(d) contextos escolares que correspondem a determinados modos de organização, discursos, deba-
tes e discussões, que emanam quer do poder político quer das culturas da escola, e que envolvem dimensões
relacionadas com a prestação de contas, “sucesso educativo”, inclusão, melhoramento cultural e organiza-
cional da escola;

(e) contextos curriculares que envolvem os conhecimentos acerca do currículo (prescrito e oculto) e
problemáticas relacionadas com os valores e os propósitos acerca do que as crianças e jovens devem apren-
der e quais as matérias e conhecimentos relevantes a serem trabalhados;

(f) contextos da sala de aula que corresponde aos contextos localizados, e também fragmentados,
em que a maior parte da atividade profissional é exercida e que com s suas dinâmicas potenciam determina-
dos processos de trabalho formativo-artístico;

(g) contexto das práticas em que o desenvolvimento do conhecimento profissional, bem como do
conhecimento relacional, em confronto e/ou em complementaridade com os outros, é determinante na
criação e/ou recriação da profissionalidade docente;

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(h) contextos individuais em que os referenciais e as caraterísticas pessoais do docente enformam
os diferentes saberes, conhecimentos e problemáticas existentes (políticas, sociais, científicas, culturais, ar-
tísticas e outras);

(i) contextos comunitários, quer no âmbito das comunidades de aprendizagem quer no âmbito das
comunidades artísticas e pedagógicas, quer ainda no âmbito dos diferentes tipos de comunidades que cons-
tituem os territórios onde as atividades profissionais são desenvolvidas;

Tendo presente todos estes contextos, importa também salientar que não existe neutralidade do ato
educativo dado que “que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, apren-
de, outro que, aprendendo, ensina […]; a existência de objetos, conteúdos, a serem ensinados e aprendidos
envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo,
sonhos, utopias, ideais. Daí sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não
poder ser neutra. (Freire, 2009: 69-70).

E nesta politicidade da prática educativa é preciso atender ainda a que “vivemos numa sociedade
de satisfação permanente”, mas de “uma satisfação enganadora porque, verdadeiramente, um desejo que
se possa satisfazer de um momento para o outro não é um verdadeiro desejo humano. Por isso, cada vez
mais sentimos que não há espaço para que a vida alimente grandes sonhos, grandes paixões, grandes
viagens, grandes utopias, grandes generosidades. E esta sociedade de satisfação imediata deixa-nos muito
insatisfeitos porque vivemos num mecanismo de viciamento e impulso, e não vivemos por ter alimen-
tado, dentro de nós de forma paciente, longa, discernida, demorada, um grande desejo, uma verdadeira
vontade, um sopro de liberdade, de criatividade” tendo em consideração que “o que nos abre horizontes é
a nossa sede, não são as certezas provisórias que vamos encontrando” (Mendonça, 2018).

Neste quadro, e em síntese, a complexidade e ambiguidade do exercício da atividade docente


levantam questões de natureza diferenciada: (a) política (que tipos de referenciais e de práticas são pro-
tagonizadas pelos poderes políticos e pelos decisores locais e pelos líderes das instituições de formação
(superior e não superior)?; (b) filosófica (que tipo de valores estão presentes na ação e que tipos de saberes
são relevantes para o desenvolvimento pessoal e artístico no âmbito das comunidades de aprendizagem
artística, profissional, escolares e comunitárias que potenciem a convivialidade entre diferentes tipos de
culturas?); (c) empírica (quais os principais pré-requisitos para o desenvolvimento continuado da profis-
são tendo em conta o carater dinâmico das práticas artísticas e o diálogo pedagógico-artístico que cons-
titui a interação entre o professor e o estudante?); (d) prática (quais as práticas pertinentes, que resultam
ou não para o professor e para o estudante num quadro alargada de compreensibilidade dos mundos
em presença?); (e) concetuais (quais são os elementos pertinentes que constituem o trabalho formativo-
-artístico na formação superior dos professores de artes tendo em conta as complexidades das socieda-
des contemporâneas e as complexidades do trabalho artístico?) e (e) artística (que tipos de modalidades
artísticas estão presentes na ação e de que modos se podem articular as culturas de tradição erudita e de
tradição oral num contexto imagético, técnico e estético poli-situado?).

2. A.R.T.E.S. - uma ecologia de formação de professores


como modalidade de (re)existência
Tendo em consideração o que apresentei anteriormente e as implicações e os desafios que tudo
isto coloca à formação de professores em artes, pode-se pensar na aprendizagem profissional, e nas dife-
rentes particularidades de concetualização da educação em arte e da educação para a criatividade, como
uma atividade que envolve uma rede alargada de papéis que são co-construídos e partilhados, questiona-

38
dos e reestruturados nas relações que se estabelecem com os outros colegas e com as diferentes comuni-
dades artísticas e comunidades de aprendizagem (Wenger, 1998), sociais e culturais. E esta rede alargada
requer um quadro referencial aberto para o que não se conhece, para o inesperado e para lidar com as
complexidades e ambiguidades, estando atento a ideias e teorias, tendo capacidade para tomar decisões
arriscadas, sendo capaz de se adaptar a diferentes contextos e geografias artísticas, educativas, culturais,
sociais e organizacionais, alicerçados num suporte mútuo e na confiança inter-relacional (Esgaio, 2011).
Quadro referencial que implica lidar com uma dupla contradição. Por um lado, uma “obediência rebelde”
em relação aos pressupostos das políticas públicas locais, nacionais e transnacionais e por outro, estar
preparado para prever o imprevisível.

Neste contexto, e tendo presente o que considero mais relevante acerca das artes nas sociedades con-
temporâneas como “território de resistência” a ecologia da formação de professores (inicial e continuada)
como modo de (re)existência que proponho assenta um conjunto de conceitos em que procuro encontrar
um outro modo de olhar para este tipo de formação. Conceitos estes que acentuam as conexões entre as
dimensões pessoais e profissionais na construção da identidade dos professores de artes colocando a tónica
“na definição pública de uma posição com forte sentido cultural, numa profissionalidade docente que não
pode deixar se se construir no interior de uma personalidade de professor” (Nóvoa, 2009:206). É uma pro-
posta genérica e aberta que poderá contribuir para o debate acerca da formação de professores em artes e,
por essa via, inspirar uma renovação dos programas e das práticas formativo-artísticas.

A – Ambivalência e Alteridade
Duas das principais características das Artes assentam, por um lado, na assunção de que as artes
celebram múltiplas perspectivas e que existem muitas maneiras de ver e interpretar o mundo (Eisner, 2002)
e, por outro, as artes oferecem possibilidade de leituras diferenciadas, polissémicas, ambivalentes sobre um
mesmo objeto artístico. E se nas artes, tal como na educação, nem tudo pode ser previsto e onde a racio-
nalidade é uma racionalidade limitada e contingente, esta perspetiva ambivalente apresenta-se como um
elemento pertinente ao pensar a formação de professores.

Com efeito, o predomínio da razão, de um determinado tipo de racionalidade ocidental, signi-


fica procurar “eliminar a ambivalência, a possibilidade de dupla interpretação de um fato, de maneiras
diferentes de se pensar e agir sobre o mundo” e na procura de “eliminar o estranho, o anormal” numa
“tentativa de uma tentativa de abafar, de revestir por meio de definições estáticas, conceituais, científicas
a multiplicidade de forças nas quais se manifesta a diversidade da vida em sua perspectiva ambivalente”
(Bazzanella, 2012:67).

Ora, a ambivalência é a “possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é


uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem
deve desempenhar. O principal sintoma da desordem é o agudo desconforto que sentimos quando somos
incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas” (Bauman, 1999: 9). Neste sen-
tido, a ambivalência impulsiona o indivíduo “a superar atitudes passivas, de aceitação mecânica e binária
(passivo e ativo, bem e mal, certo e errado) colocando-se no mundo através da constatação de que talvez seja
inerente às características existenciais humanas, a contingência, a insegurança, a ambivalência e que existir
é um exercício efêmero que exige o abandono cotidiano de convicções cristalizadas” (Bazzanella, 2012:75).

Neste “abandono cotidiano de convicções cristalizadas”, o potencial emancipatório da ambivalên-


cia inscreve-se também no “evitar a humilhação dos outros. É preciso também respeitá-los – e respeitá-los
precisamente na sua alteridade, nas suas preferências, no seu direito de ter preferências. É preciso honrar a
alteridade no outro, a estranheza no estranho, lembrando […] que “o único é universal”, que ser diferente é

39
que nos faz semelhantes uns aos outros e que eu só posso respeitar a minha própria diferença respeitando a
diferença do outro” (Bauman, 1999: 249).

Assim, uma formação professores pertinente inscreve-se na ambivalência, na preparação para a


complexidade, para o imprevisível, para o que não se conhece possibilitando os instrumentos científicos,
artísticos, políticos e pessoais que permitam trabalhar em contextos paradoxais, incertos e inseguros poten-
ciando dúvidas e incertezas e valorizando as diferenças.

R – Rizoma e Reflexividade
Edgar Morin (2014) afirma que “os professores precisam sair de suas disciplinas para dialogar com
outros campos de conhecimento” uma vez que “as disciplinas fechadas impedem a compreensão dos pro-
blemas do mundo”. A transdisciplinaridade, de acordo com este autor, “é o que possibilita, através das dis-
ciplinas, a transmissão de uma visão de mundo mais complexa” estabelecendo-se “um jogo dialético entre
razão e emoção”.

Esta predominância do fechamento disciplinar, a par da hierarquização dos saberes, muitas vezes
protagonizada não só pelas políticas públicas mas também por grupos de professores implica reolhar para a
formação de professores que operacionalize outras modalidades de trabalho voltadas para o enfrentamento
do modelo de educação disciplinar dominante. E neste contexto, o conceito de rizoma afigura-se interes-
sante uma vez que não está ligado à hierarquia e “presume múltiplas possibilidades de interconexão, uma
transversalidade que se opõe a verticalidade e a horizontalidade. […] Compreende como fundamental a
descontinuidade, a ramificação e multiplicidade de ações denunciando o lugar do poder, da ordem, da or-
ganização binária do mundo social e seus dualismos” (Santos et al., 2011).

Assim, as aprendizagens rizomáticas “mais que conceito de grande intensidade para pensarmos outras
paisagens educacionais, são fluxos auto-organizados, subjetivados nas potências dos sujeitos nômades e apren-
dentes virtualizando suas próprias fronteiras, sem a preocupação de religar os saberes e suas verdades normati-
vas. Ao contrário, requer viver o rompimento com o Uno, com a unidade e o enclausuramento dos sujeitos em
direção ao desviante, às polifonias de agenciamentos singulares, como espaço de intermédio da aprendizagem
entre os sujeitos aprendentes, nativos de ecologias cognitivas [e emocionais] rizomórficas” (idem).

Com efeito, como referem Deleuze e Guattari (1995) “o rizoma prioriza a organização de uma
educação menor [não essencialista], furos porosos de intensa relação entre sujeitos e subjetividades que
reconhecendo multiplicidades conduz as relações de aprendizagem em meio aos movimentos de devires,
longe das unidades previamente estabelecidas nas escolas, através dos currículos fechados e nas auto-
ridades professorais, mas sim, nas ramificações possíveis no entorno da proliferação de pensamentos
heterogêneos. Não se trata de trocar uma instituição escolar por outro tipo de organização, mais que isso,
os sistemas rizomórficos permitem entender a dimensão social como sendo um todo constituído, mul-
tifacetado por tensões, linhas de fugas e agenciamentos” e “não se limita à falsa dualidade binária ou no
obscurantismo moderno reformulado nas tendências pedagógicas de controle dos sujeitos-objetos e suas
subjetividades” (p. 14).

E nestes sistemas rizomórficos e aprendizagens rizomáticas a reflexividade afigura-se como um ele-


mento determinante na construção da profissionalidade e na ação educativo artística. A reflexão “é nosso
instinto de sobrevivência diante dos colapsos que se avolumam. Nela reside a esperança diante dos impac-
tos socioambientais, das crises político-econômicas que aparentam ser infindáveis e de toda e qualquer
situação-limite que se experimenta. Porém, para refletir é necessário haver algum deslocamento de si. A
percepção de outros sujeitos, outras realidades e contextos, demanda uma abertura que pode ser estimulada

40
pelo processo educacional e que nos reabilita como sujeitos que constroem o presente e o futuro. A con-
vivência com a diferença e as relações com o outro são os caminhos possíveis para nossa ressignificação.”
(Neto, 2017)

E nesta ressignificação a resistência e afigura-se uma dimensão relevante dado que “a resistência
não é apenas uma questão de negar um poder opressivo, mas também de criar formas de existir, que inclui
formas de sentir, pensar e agir” e que “a afirmação da arte [e da formação de professores] como território de
re-existência envolve necessariamente a descolonização da arte e a conexão com outras formas de descolo-
nização” (Maldonado-Torres, 2017).

Tudo isto tem consequências profundas no pensar e no operacionalizar modalidades de forma-


ção, ponto de vista político, científico e artístico em que urge passar de processos de trabalho predo-
minantemente academizados, transmissivos e binários para outros processos assentes em modalidades
rizomáticas, o que implica uma maior horizontalidade da formação acentuando as múltiplas possibili-
dades de interconexão, em que constroem e se confrontam teorias, práticas e saberes na co-construção
poliédrica e crítica da profissionalidade docente potenciando a proliferação do pensamento heterogéneo
e descolonizado.

T – Tradução e Transitório
António Nóvoa (2009) afirma que “a procura de um conhecimento pertinente” não é “uma mera
aplicação prática de uma teoria qualquer mas exige sempre um esforço de reelaboração” e que “esta é da
essência do trabalho do professor” (p. 210). Também Morin (2014) salienta que “todo conhecimento é uma
tradução, que é seguido de uma reconstrução, e ambos os processos oferecem o risco do erro.”

Ora, tradução “significa deslocar objetivos, interesses, dispositivos, seres humanos. Implica des-
vio de rota, invenção de um elo que antes não existia e que de alguma maneira modifica os elementos
imbricados. As cadeias de tradução referem-se ao trabalho pelo qual os atores modificam, deslocam e
transladam os seus vários e contraditórios interesses” (Freire, 2006: 51). Se traduzir é “fazer conexão, é
se ligar a” as conexões estabelecidas entre os atores de uma rede, as negociações que, dessa forma, têm
lugar e a própria comunicação a tradução implica também a percepção, interpretação e apropriação e
nessa dinâmica tanto está envolvida a “possibilidade de equivalência” quanto sua “transformação” (La-
tour, 1994, 2000).

Por sua vez Santos (2002) salienta que “a tradução é o procedimento que permite criar inteligibili-
dade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis” tratando-se de um
“procedimento que não atribui a nenhum conjunto de experiências nem o estatuto de totalidade exclusiva
nem o estatuto de parte homogénea. As experiências do mundo são vistas em momentos diferentes do
trabalho de tradução como totalidades ou partes e como realidades que se não esgotam nessas totalidades
ou partes” (p. 262). A tradução é, simultaneamente, “um trabalho intelectual e um trabalho político. E é
também um trabalho emocional porque pressupõe o inconformismo perante uma carência decorrente do
carácter incompleto ou deficiente de um dado conhecimento ou de uma dada prática” (p. 267).

Ora, o criar “inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo” implica saber o que traduzir
e isto, de acordo com o mesmo autor, realiza-se através do conceito de “zona de contacto” (campos sociais
onde diferentes mundosdavida normativos, práticas e conhecimentos se encontram, chocam e interagem).
As zonas de contacto “são sempre selectivas, porque os saberes e as práticas excedem o que de uns e outras é
posto em contacto” sendo que “o que é posto em contacto não é necessariamente o que é mais relevante ou
central. Pelo contrário, as zonas de contacto são zonas de fronteira, terrasdeninguém onde as periferias ou

41
margens dos saberes e das práticas são, em geral, as primeiras a emergir. Só o aprofundamento do trabalho
de tradução permite ir trazendo para a zona de contacto os aspectos que cada saber ou cada prática consi-
deram mais centrais ou relevantes” (pp. 268-269).

Neste contexto, como o trabalho docente não se caracteriza pela mera transmissão e transposição
de saberes específicos, mas sim por um trabalho de tradução, de transformação, de transitoriedade e adap-
tabilidade a diferentes contextos onde interage o que implica que a formação de professores assente num
trabalho político, intelectual e emocional que contribua para a inteligibilidade entre diferentes práticas e
experiências dos mundos das artes e dos mundos da educação atendendo à incompletude que caracteriza
os diferentes saberes em presença.

E – Espanto e Encontro
“O que é o espanto que faz nascer o poema?” questiona Ferreira Gullar (2015. “É a súbita consta-
tação de que o mundo não está explicado e, por isso, a cada momento, nos põe diante de seu invencível
mistério” (p. 66). Também Mendonça (2016) – outro poeta, salienta que “uma das grandes virtudes que
precisamos reencontrar é a arte do espanto, pois é verdadeiramente por aí que tudo começa. Espanto deriva
do latino expaventare que descreve a forte impressão originada por uma coisa inesperada e repentina. Se
procurarmos sinónimos, encontramos assombro, admiração, surpresa. É o contacto (consciente, fulgurante,
desarmado, rendido) com a vida maior do que nós, a vida em aberto, não predeterminada. No espanto, a
nova e surpreendente expressão da vida prende a nossa atenção à maneira de um relâmpago, de um rasgão
imprevisível. Não a conseguimos encaixar no nosso quadro habitual, pois o seu carácter inédito torna inú-
teis todas as previsões, saberes, experiências, etiquetas, mapas, preparações. […] O espanto obriga-nos a
uma revisão do que sabemos de nós próprios e do mundo. Obriga-nos a recomeçar, como se fosse um nas-
cer. Certamente que, no seu processo, o espanto desarruma e dói”.

Do ponto de vista educacional Eisner (2004) refere que “educadores atenciosos não estão simples-
mente interessados em alcançar efeitos conhecidos; eles estão interessados tanto em surpresa, em descober-
ta, no lado imaginativo da vida e em seu desenvolvimento quanto em atingir metas pré-definidas alcançadas
por meio de procedimentos de rotina”. Nesse sentido, um dos objetivos “deve ser converter a escola de uma
instituição acadêmica em uma intelectual. Essa mudança na cultura da escolarização representaria uma mu-
dança profunda na ênfase e na direção. Também Mia Couto (2011) salienta que “há um processo de aceitar
e fazer crescer coisas que a Educação nos ensina, mas também ser capaz de sacudir aquilo que a Educação
formata e que não nos ajuda a sermos felizes. […] O mais importante é saber fazer perguntas, manter um
sentimento de inquietação e indisciplina por toda a vida”.

Por outro lado, se se pensar que uma das principais funções das práticas artísticas na educação é o de
ativar os recursos do imaginário e, em particular, estimular modos de resistência em relação ao fechamento e
à reprodução acrítica de modelos e de modos organizacionais e pedagógico-artísticos, isso implica desenvol-
ver a apetência pelo desafio, pelo risco do desconhecido. Contudo, “quando falamos de imaginação estamos
também no campo da contestação […] das fixações de um aqui e de um ali, de um interior e de um exterior”
numa geometria plural e “espantosa (que espanta, que surpreende)” (Tavares,2013:32-33) aberta ao acaso e ao
desconhecido através de “racionalidade distendida” (Jiménez,2005:162) assente em múltiplas opções.

Esta valorização do que não se conhece desenrola-se num quadro complexo que passa por um con-
junto alargado e interdependente de situações e que apresenta dois tipos de implicações. A primeira pressupõe
pensar o docente, e o futuro docente, como um sujeito que constrói o seu próprio discurso e a sua condição
autoral enfrentando diferentes tipos de conflitualidades que possibilitem o desenvolvimento do pensamen-
to pessoal e artístico em convergência e/ou em divergência como modelos estéticos e técnicos existentes. A

42
segunda implicação, relaciona-se com o facto de que as comunidades de aprendizagens, as comunidades de
práticas artísticas se apresentam plurais e diversificadas, campos abertos de possibilidades na criação de pontes
entre diferentes mundos, encorajando-se a “experimentação das ideias através da improvisação, da trabalho
colaborativo e da discussão” abrindo-se a territórios de “abordagens colaborativas que conectam pessoas, dis-
ciplinas e géneros” projetando-se caminhos que possibilitem “novos pontos de comparação e de partida” em
ambientes de aprendizagem que criem “zonas de contacto” entre a tradição e a inovação (Gregory,2005:20-21).

Assim, uma formação de professores pertinente assenta na facilitação e na criação de espantos e


encontros que permitam estabelecer pontes entre o conhecido e o desconhecido numa geometria variável e
colaborativa de encantamentos diferenciado potenciadores de questionamentos e de inquietações em rela-
ção aos saberes e ao viver e trabalhar em conjunto.

S – Subjetividade e Sociedade
Vários autores (Nóvoa e etc) têm-se referido que o professor é a pessoa e que a pessoa é o professor sendo
impossível separar as dimensões pessoais e subjetivas das dimensões profissionais dado que “que ensinamos
aquilo que somos e que, naquilo que somos, se encontra muito daquilo que ensinamos” e, neste sentido, im-
porta “que os professores se preparem para um trabalho sobre si mesmos, para um trabalho de auto-reflexão
e de auto-análise. […] Não se trata de regressar a uma visão romântica do professorado (a conceitos vocacio-
nais ou missionários)” mas antes “reconhecer que as componentes técnicas, científicas [e artísticas], embora
necessárias, não são todo o ser do professor” (Nóvoa, 2009: 212).

Ora, o que defendo é que a “construção da pessoa do professor” se alicerçe na “produção de uma
subjectividade que enriqueça de modo contínuo a sua relação com o mundo” (Guattari (1992: 33). Subjetivi-
dade entendida, por um lado, como “o conjunto de condições pelas quais instâncias individuais ou coletivas
são capazes de emergir como um território existencial, na adjacência ou em relação a uma alteridade, ao
mesmo tempo subjetiva” (Idem: 19) e, por outro, como “espaço de diferenças individuais, de autonomia e
liberdade que se erguem contra formas opressivas que vão além da produção e tocam o pessoal, o social e o
cultural” (Santos, 1994: 123)

Assim a produção da subjetividade “combina as dimensões micro e macrossocial, significa ter que
reconhecer a dialética que, sendo capaz de ocorrer em um plano de realidade, é um produtor de reali-
dades inclusivas” (Merino) […] reúne imaginários coletivos, representações sociais, memórias, crenças,
ideologias, conhecimentos, sentimentos, vontades e visões do futuro […] fonte de significado e mediação
simbólica, precede e transcende os indivíduos; constitui o nosso eu mais singular, o sentimento de per-
tencer a um nós e ao todo social. A natureza simbólica da subjetividade implica que só se pode acessar
a sua compreensão através de múltiplas linguagens humanas. […] A racionalidade da ciência, com sua
linguagem analítica e abstrata, é insuficiente para captar a riqueza das diferentes lógicas que constituem a
subjetividade, e tem mais potencial para isso, poesia, literatura, cinema, artes visuais. e sabedoria popular
e tradicional.” (Alfonso 2006)

Por outro lado, acresce que “a emergência da singularidade – individual e de grupo – como modo
de afirmação social e factor multiplicador das diferenças requer uma nova conceptualização que assenta em
identidades flexíveis, negociáveis e alternantes” (Melo, 2002: 61), o que significa, de acordo com o mesmo
autor, abandonar a noção de identidade “entendida como património, essência ou raiz, em favor de uma
experiência da identidade entendida como prática, processo, tradução, negociação” (p. 52).

Ora nesta construção da subjetividade o espanto, referido anteriormente, é uma dimensão relevante
uma vez que “o espanto é poder abrir os olhos, poder dar-se conta do que somos, do que está perto de nós,
do que está longe. É ganhar um olhar crítico sobre a nossa própria realidade, perceber que muitos dos gestos,

43
à custa de o repetirmos, se tornam tiques e manias, e se esvaziam da autenticidade fundamental” (Mendon-
ça, 2018. P. 6)

Neste contexto, uma formação pertinente assenta na construção da subjetividade em que a experi-
ência individualizada como estratégia de formação se torna fundamental entendendo que cada individuo
em formação tem um percurso próprio de aprendizagem a ser percorrido, numa rede diferenciada de intera-
ções intersubjetivas possibilitadoras da assunção de identidades flexíveis de modo a resistir aos dispositivos
que contribuem para subjectividades industrializadas, massificadas, acomodadas.

Em síntese, o quadro abaixo, representa graficamente a interpelação entre as várias dimensões enunciadas
anteriormente.

Quadro 1. A.R.T.E.S.: ecologia da formação de professores:

3. Considerações finais
Pensar na formação de professores em artes é, por um lado concetualizar estes profissionais como
intelectuais, como trabalhadores da cultura e, por outro, esta formação de professores-artistas constitui-se
como um desafio que permita “que os professores desenvolvam conhecimentos e habilidades para examinar
criticamente a natureza ideológica do ensino e a natureza do trabalho” e uma compreensão do seu papel “na
transformação da sociedade” resistindo a “a se tornarem meros administradores das atividades cotidianas
impostas de fora da escola e redefinir seu papel dentro da prática contra-hegemônica” assumindo um “papel
emancipatório, crítico e transformador […] no interesse da justiça social e da promoção da igualdade” (Hill,
2007: 215).

44
Deste modo, como salienta Mia Couto (2014), é preciso estarmos abertos a novos conceitos e a (re)
existência a reinterpretação do mundo é possível se rompermos com uma única linha de pensamento, com
uma única forma de agir e reagir às coisas, com a fácil aceitação de um discurso pré-preparado, reavaliando
os nossos conceitos a partir de novos olhares. Importa por isso, imaginar colaborativamente futuros alter-
nativos em que a formação de professores em artes assuma que o conhecimento nasce da interrogação dos
quotidianos e do espanto, que é a estranheza diante de objetos, de ideias, do outro, da diversidade e de situa-
ções já conhecidas uma vez que na arte de educar nada é acabado. À despersonalização contrapõe-se a sub-
jetividade do sujeito que é sempre uma subjetividade histórica e socialmente situada em relação a múltiplas
e heterógenas formas de ver e de estar no mundo. A formação é sempre um processo de transformação indi-
vidual e daí a relevância do professor como pessoa e a valorização da experiência, da reflexão, da pesquisa e
da ética, do investimento na escola e no coletivo de modo a que o professor-artista como criador de espantos
esteja atento a que “as criações artísticas, científicas e filosóficas sempre levam consigo algo de esclarecimen-
to e encantamento. Ao mesmo tempo que realizam alguma forma de compreensão ou explicação, envolvem
possibilidades de fabulação. Lançam luzes e sombras, cores e movimentos, sons e significados, desvendando
modos de ser e fantasias, realidades e virtualidades. Nesse sentido é que as criações artísticas, científicas e
filosóficas podem levar consigo também “utopias” […]. Esclarecem e iludem, acenando com significados
recônditos, guardados no presente, herdados desde o passado ou escondidos no futuro.” (Ianni, 2000, p. 87).

Ora, pensar a formação de professores de artes como criadores do seu próprio presente e do futuro,
que desvenda modos de ser e de fazer, reais e imaginários, afigura-se uma tarefa fundamental da academia
e de outros atores formativos de modo a possibilitar o alargamento (re)existências, de encantamentos e de
encontros com os mundos na construção de uma ação possibilitadora de construção de uma sociedade mais
culta, plural e democrática.

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46
O PEDAGOGO NA CONSTITUIÇÃO
DO CAMPO PROFISSIONAL
DA ARTE/EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Everson Melquiades Araújo Silva19

O ensino da arte na formação dos professores dos anos iniciais


da escolarização: Um olhar sobre Pernambuco

Na pesquisa sobre a presença histórica do ensino de arte na formação dos professores que atuam
nos anos iniciais da escolarização, Araújo (2015) realizou um significativo levantamento do ponto vista da
legislação nacional.

Neste estudo, a referida autora nos indica que a inserção da obrigatoriedade do ensino de arte nos
cursos de pedagogia nos anos 2000 é resultado de um conjunto de iniciativas e uma série de reivindicações
da sociedade civil organizada, que remontam ao final do ano 1834, com a criação dos cursos normais no
Brasil, conforme nos elucida a autora em discussão:

Pensar a presença da arte nos cursos de Pedagogia brasileiros requer um olhar ampliado
para a própria história da educação no Brasil. Afinal, foi um conjunto de fatores sociais,
políticos e legais que, ao longo dos últimos anos, desenhou aquilo que hoje presenciamos
nas perspectivas de formação dos pedagogos. Não há como desvencilhar o olhar dos nos-
sos cursos de Pedagogia atuais e da inserção da arte em seus currículos sem buscar suas
origens históricas nas políticas para formação de professores e a criação das instituições de
ensino superior, bem como para os cursos normais e as licenciaturas em artes. (ARAÚJO,
2015, p. 37).

Esta posição é ratificada, inclusive, por outros pesquisadores da área, tal como Martins (2015), que
sugere que sejam realizadas pesquisas específicas nos diferentes estados e regiões do Brasil, para melhor
compreender esse fenômeno.

Nesta direção, a história do ensino de arte no curso de pedagogia constitui-se, ainda, de uma grande
mosaico, onde já possuímos uma série de peças que precisam ainda ser montadas.

19. Professor da UFPE; Presidente da Escolinha de Arte do Recife; Vice-Presidente da Associação Nordestina de Arte/Educadores (ANARTE).
Doutor (2010) e Mestre em Educação (2005), pela UFPE; Graduação em Pedagogia (2000), Membro da FAEB, ABRACE, ANPED, SBPC, do Cen-
tro de Estudo e Pesquisa Paulo Freire, do Coletivo Momos e do GEFAI (Grupo de Pesquisa em Formação de Professores, Arte e Inclusão.

47
No caso específico do estado de Pernambuco, o curso de formação de professores para os anos
iniciais da escolarização tem as suas origens históricas com a criação da Escola Normal Oficial de Pernam-
buco, em 1865 (FIGUERÔA, 2012; VINCENTINI, 2009; PEIXOTO, 2006). Como uma das transformações
e sínteses históricas dessa instituição, em 1975, é criado o Centro de Educação da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE).

No entanto, apesar de sua tradição na formação de professores e uma trajetória histórica de quase
meio século, apenas com as pressões sociais e com as reformas nos cursos de formação de professores, ins-
tituídas pelo Ministério da Educação (MEC), nos anos de 2000, foi criado, na matriz curricular do curso de
Pedagogia da UFPE, o componente Fundamentos do Ensino de Arte. É importante destacar que o referido
componente só foi implementado no ano de 2010, no 6º período do curso.

Nesta direção, o ensino de arte nos cursos de pedagogia é um fenômeno muito recente no estado de
Pernambuco. Com o objetivo de melhor compreender esta prática, através de uma ação conjunta, o Grupo
de Pesquisa Formação de Professores, Arte e Inclusão (GEFAI), a Associação Nordestina de Arte/Educado-
res / Núclo Pernambuco (ANARTE/PE) e a Escolinha de Arte do Recife (EAR) convocaram a instalação de
um fórum permanente denominado de “Fórum Pernambucano do Ensino da Arte na Pedagogia”.

Esta iniciativa, considerada inédita no Brasil, foi muito festejada pelos arte/educadores, a exemplo
da mensagem enviada pela Professora Miriam Celeste Martins, no dia 03 de março de 2012:

Este fórum é muito necessário. Maravilha, Everson! Por favor, mande notícias! E seria óti-
mo se pudéssemos criar um grupo de discussão específico para professores que trabalham
nos cursos de Pedagogia. Havia iniciado uma pesquisa no ano passado. Sugeri uma mesa
específica sobre isto no CONFAEB, mas não foi aceita. Quem sabe deste fórum nasça
alguma proposta. Os convidados prometem! Abraço desejando inventividade e potencia-
lidades partilhadas. (MARTINS, 2012, p. 1).


Com a temática “Ensino de Arte na Pedagogia: Experiências em Diálogo”, o primeiro encontro do
fórum foi realizado no dia 08 de março de 2012, no Auditório do Centro de Educação, do Campus Recife,
da UFPE. Com a participação de mais de 120 pessoas, entre professores e alunos de Curso de Pedagogia,
professores da Educação Básica, Arte/Educadores, Educadores Sociais, alunos das licenciaturas em artes, o
encontro teve como objetivos conhecer experiências empreendidas em Pernambuco sobre o ensino de arte
no Curso de Pedagogia e dialogar com a experiência do ensino de arte no Curso de Pedagogia desenvolvida
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Participaram como convidados desse encontro
a professora Analice Dutra Pilar (UFRGS), Fernando Azevedo, na ocasião, das Faculdades Integradas da
Vitória de Santo Antão (FAINTVISA), Vitória Amaral (UFPE) e Adriana Aquino (ANARTE/PE).

O encontro foi desenvolvido como um grande círculo de cultura. Ao final do diálogo, ficou como
síntese o seguinte desafio: Como a prática de ensino de arte vem se desenvolvendo nos cursos de pedagogia
do estado de Pernambuco?

Buscando responder o desafio proposto pelo primeiro encontro, o segundo encontro do fórum
aconteceu no Campus Agreste, da UFPE, localizado na cidade de Caruaru/PE, com a temática “A Práxis
Arte/Educativa nos Curso de Pedagogia em Pernambuco”, nos dias 05 e 06 de agosto de 2014.

Sob a Coordenação do Professor Paulo David e do Grupo de Estudo em Arte e Educação (GES-
TARTES), o referido encontro contou com o apoio de um número significativo de instituições, tais como
o GEFAI, Federação de Arte/Educadores do Brasil (FAEB), ANARTE/PE, Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (CNPq), EAR, Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE),
Prefeitura de Caruaru e Governo do Estado de Pernambuco.

48
A realização do encontro na Região Agreste do estado de Pernambuco possibilitou a interiorização
das ações do fórum e das discussões pertinentes ao mesmo. Desta vez, além de professores e alunos do curso
de pedagogia da UFPE e UFRPE, estiveram presentes, no encontro, professores da Universidade de Pernam-
buco (UPE) e de três faculdades particulares, FAINTVISA, Faculdade Joaquim Nabuco (FJN), Faculdade
Santa Catarina (FASC), ademais a presença maciça de professores da Rede Municipal de Ensino de Caruaru
e da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco. Ao total, foram mais de 200 participantes.

Desse encontro, participaram como convidados os professores e professoras Ana Paula Abrahamian
(UFRPE), Bruno Alves (UFRPE), Charlon Cabral (Galpão das Artes), Eliana Ismael (UFPE), Emília Freitas
(FAINTVISA), Everson Melquíades (UFPE), Fabiana Vidal (UFPE), Fernando Azevedo (UFRPE), Francis-
co Alexandrino (FJN), Francisco Gouveia (Prefeitura de Caruaru), Ibrantina Guedes (FASC), Kátia Cunha
(UFPE), Maria Alves (UFPE), Maria José Montenegro (UPE) e Sergio Figueiredo (UDESC).

O encontro contou com uma programação diversificada de atividades, tais como conferência, mesas
temáticas, apresentações artísticas, minicursos, além do lançamento do livro “Quando fala uma operária da
Educação”, de autoria da Fátima Soares (Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco).

Como resultado dos diálogos travados nas diferentes atividades ao longo do encontro, foi produzida a
Carta de Caruaru (FPEAP, 2014), para serem encaminhadas para a ANARTE/PE, a FAEB, o Conselho Estadu-
al de Educação e diferentes universidades e faculdades. Destacamos como o principal desafio proposto para o
próximo fórum “observar a interdisciplinaridade como princípio norteador para formação do(a) pedagogo(a)
em Artes (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), em lugar da noção de prática de ensino polivalente, ou seja,
um(a) professor(a) responsável por abordar igualmente todas as linguagens artísticas” (FPEAP, 2014, p. 01).

Dando continuidade à política de interiorização das discussões e reflexões sobre o ensino da arte
no curso de pedagogia em Pernambuco, o terceiro encontro do fórum foi realizado na cidade Garanhuns,
sob a realização da Universidade Federal Rural de Pernambuco, nos dias 29 e 30 de outubro de 2015, nas
dependências do Serviço Social do Comercio (SESC) Garanhuns.

Sob a coordenação dos professores Fernando Azevedo (UFRPE) e Bruno Alves (UFRPE), o en-
contro teve como temática “O Ensino de Arte na Pedagogia: Polivalência ou Interdisciplinaridade?”, com o
apoio da SESC, da EAR, da ANARTE/PE, GESTARTES e GEFAI.

A programação do evento foi composta de palestras, mesas temáticas, apresentações artísticas e


lançamento dos livros “A Experiência de Ser e Tornar-se Arte/Educador: Um Estudo sobre História de Vida,
Experiência e Identidade”, de autoria de Everson Melquiades e “Redesenhando o Desenho – Educadores,
Política e História”, de Ana Mae Barbosa. No entanto, é importante destacarmos que, em especial, esse fó-
rum teve como principal protagonismo as mesas dos estudantes de Pedagogia, apresentando suas vivências
e pesquisas no campo da Arte e seu ensino.

No final do encontro, foi produzido a Carta de Garanhuns, que indicou como desafio para o 4º en-
contro, que será realizado na Campos Recife da UFPE, a inserção das linguagens artísticas da Dança, Teatro,
Música e Artes Visuais nos cursos de Pedagogia do estado de Pernambuco, conforme expresso abaixo em
fragmento retirado do documento:

Eis, aqui, o grande desafio para o FPEAP: a luta pela inclusão das linguagens da Arte na
formação do pedagogo. Defendemos a democratização da Arte como um saber, que ao
produzir pensamento divergente, possibilita o ser humano ir além das convenções prees-
tabelecidas pelos poderes, rompendo com a repetição, a homogeneidade e o individualis-
mo, pois a Arte cria as condições de pensar e resolver problemas com imaginação, fugindo
da mera racionalidade, dos dogmas, sem deixar de valer-se do trabalho de pesquisa em
seu processo de elaboração e reelaboração. (FPEAP, 2015, p. 01-02).

49
No contexto atual da Educação brasileira, a criação e continuidade do Fórum Pernambucano do
Ensino da Arte na Pedagogia representa um espaço para um repensar crítico sobre a práxis arte/educativa
desenvolvida no curso de pedagogia, através da articulação das dimensões política, epistemológica e onto-
lógica (AZEVEDO, 2014).

Nesta direção, o fórum, ao posicionar-se politicamente, está produzindo conhecimentos, e, ao pro-


duzir conhecimentos, está produzindo políticas. É neste bojo que emerge a compreensão do fórum como
um ato pedagógico, como um processo de paixão pelo ato de conhecer, como um ato de reinvenção de nós
mesmo e do mundo que queremos viver, constituindo-se de um processo existencial que carrega muito de
nossa história de vida pessoal, profissional e acadêmica.

É importante lembrarmos que, dentro desse processo, a neutralidade é perversiva, pois todo ato pe-
dagógico também se constitui em um ato de escolhas políticas e ideológicas. E neste momento político, em
tempos crescentes de desigualdades sociais, o Fórum Pernambucano do ensino de Arte na Pedagogia está
fazendo a escolha por uma Arte/Educação como um campo profissional inclusivo. Parafraseando Azevedo
(2010), a experiência do Fórum Pernambucano do Ensino da Arte na Pedagogia não representa um porto
seguro, mas uma “bússola para os navegantes destemidos dos mares da arte/educação” brasileira (p. 80).

Diante do exemplo que acabamos de apresentar, é possível afirmarmos que, históricamente, uma série
de iniciativas vêm sendo empreendidas para melhor qualificar esse profissional para o desenvolvimento do
ensino de arte nos anos iniciais da escolarização (Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental).

No entanto, contrário a essa filosofia, desde a década de 1980, vêm se estabelecendo, dentro da Arte/
Educação, conflitos internos entre “arte/educadores habilitados” e os “arte/educadores não habilitados”, o
que provocou, naquele momento, o enfraquecimento da área. Tais conflitos se configuram como um fenô-
meno prejudicial, uma vez que a Arte/Educação se constitui de um campo de conhecimento que historica-
mente busca a sua afirmação, seja nos sistemas da arte, seja nos sistemas educativos.

Para uma melhor compreensão sobre esse fenômeno de exclusão profissional dos Pedagogos no
campo da Arte/Educação, realizamos um estudo que teve como objetivo compreender quais são os discur-
sos dos membros da comunidade virtual da FAEB sobre a presença do Pedagogo na constituição do campo
profissional da Arte/Educação brasileira.

A seguir apresentaremos o percurso metodológico empreendido para encontrarmos os resultados


do nosso estudo.

Percurso metodológico para compreender os discursos de membros


da FAEB sobre o pedadogo no campo profissional da Arte/Educação

A comunidade virtual da FAEB constituiu-se do campo de pesquisa deste estudo. O referido grupo
foi fundado em 25 de abril de 2003, na plataforma do Yahoo Grupos. Esta plataforma oferece aos seus usu-
ários diferentes ferramentas de comunicação, tais como arquivo de mensagens, compartilhamento de ar-
quivos, álbuns de fotos, entre outros. Em mais de uma década de existência, a comunidade virtual da FAEB
possui cadastrados mais de 900 arte/educadores de diferentes regiões brasileiras.

Esta comunidade virtual foi escolhida como campo da pesquisa deste estudo por constituir-se, ao
longo desses anos, em um espaço privilegiado de troca de mensagens dos arte/educadores brasileiros. De
uma forma geral, estas mensagens são compostas de uma grande variedade de conteúdos, tais como avisos
sobre eventos, indicações de livros, discussões sobre assuntos específicos, dentre os quais destacamos a te-
mática do campo profissional da Arte/Educação.

50
Para obtermos uma compreensão do objeto investigado, a coleta de dados foi realizada a partir da
pesquisa documental. Segundo Lüdke e André (1986, p. 38), a pesquisa documental “pode se constituir uma
técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos seja complementando as informações obtidas por outras
técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problemas”. Foi nesta perspectivada que a adotamos
como um dos instrumentos deste processo de investigação.

Na comunidade virtual da FAEB, foram identificadas as mensagens que em seus conteúdos proble-
matizavam sobre a presença do Pedagogo na constituição do campo profissional da Arte/Educação brasilei-
ra. Essas mensagens foram impressas e passaram a constituir um dossiê.

É importante destacarmos, ainda, que as mensagens analisadas neste estudo foram basicamente de
seis sujeitos. A seguir, apresentaremos uma breve descrição dos mesmos. São todas professoras universitá-
rias, que atuam nos cursos de graduação de Pedagogia, Dança, Teatro, Audiovisual, Artes Visuais e Inter-
disciplinar em Teatro e Filosofia, de 04 instituições públicas federais, 01 estadual e 01 particular, localizadas
nas Regiões Sudeste (03), Nordeste (02) e Centro-Oeste (01). Todas possuem o título de pós-graduação (01
especialização, 01 mestrado, 03 doutorado e 01 pós-doutorado). No entanto, apenas 04 estão ligadas a pro-
gramas de pós-graduação. Essas informações foram retiradas do Currículo Lattes dos sujeitos da pesquisa.
No entanto, optamos em não identificá-los pelos seus verdadeiros nomes, substituindo-os por pseudôni-
mos, conforme poderá ser verificado na apresentação dos resultados deste estudo.

Utilizamos, como procedimento para a análise dos dados coletados, a técnica da Análise Temática,
sistematizada a partir dos estudos de Minayo (2000). Segundo a concepção dessa estudiosa:

Tradicionalmente, a análise temática se encaminha para a contagem de freqüência das


unidades de significação como definitórias do caráter do discurso. Ou, ao contrário, qua-
litativamente a presença de determinados temas denota os valores de referência e os mo-
delos de comportamento presentes no discurso. (MINAYO, 2000, p. 209).

Nesta direção, nossa análise foi operacionalizada a partir de quatro operações básicas: (1) a pré-
-análise; (2) a exploração do material; (3) o tratamento dos resultados obtidos; e (4) a interpretação dos
resultados, a partir da inferência. Assim, a análise temática foi uma técnica poderosa para verificarmos tanto
os conteúdos expressos superficialmente nos dados coletados, como os conteúdos intrínsecos a esses dados
(conteúdo dinâmico, estrutural e histórico).

Na próxima sessão, apresentaremos os dados encontrados a partir da realização do percurso meto-


dológico que acabamos de explicitar. Esses resultados são frutos tanto da análise dos conteúdos manifestos,
como da análise dos conteúdos latentes encontrados nas unidades de contexto, conforme poderá ser verifi-
cado a seguir.

Quais os discursos dos membros da comunidade virtual da FAEB


sobre a presença do Pedagogo na constituição do campo profissional
da Arte/Educação brasileira?

A partir da análise temática, foi possível mapear, nos discursos dos membros da comunidade vir-
tual da FAEB, sete ideias-conceitos sobre a presença do Pedagogo na constituição do campo profissional da
Arte/Educação brasileira. A sequência de sua apresentação foi estabelecida a partir do índice de frequência
das ideias-conceitos, organizando-as das de maior frequência para as de menor frequência. Estas idéias-
-conceitos foram organizadas em sete grupos temáticos, conforme passaremos a apresentar a seguir:

51
O primeiro grupo temático defende a proposição de que a prática de ensino de arte desenvolvida
na Educação Infantil e do 1º ao 5ª ano do Ensino Fundamental (anos iniciais da escolarização da Educação
Básica) deverá ser ministrada pelos licenciados nas diferentes linguagens artísticas, tais como Dança, Teatro,
Música e Artes Visuais, apresentando-se com uma frequência total de 22%. Abaixo, apresentaremos exem-
plos de fraguimentos desse discurso:

[...] defendo que quem deve ministrar aulas de arte deve ser um professor especialista, até
mesmo na primeira infância. (Sujeito 2)

Paralelamente, os/as têm que se fortalecer além de esteticamente, eticamente, na luta pelos
nosso espaço da educação infantil até o ensino médio, Ongs, IFs, museus, em todo e qual-
quer espaço que se trate do campo da Arte/educação. (Sujeito 6)

Defendo que um professor de arte formada na linguagem específica também deva mi-
nistrar aulas nos anos em que as aulas são ministradas por um/a pedagoga/o. (Sujeito 3)

Com 17% do número total de frequência, o segundo grupo temático defende a importância da
presença dos conhecimentos da arte e seu ensino na formação profissional do pedagogo, seja nos cursos
iniciais ou de formação continuada, para aqueles que já se encontram no exercício da profissão. Veja abaixo
exemplos desse discurso:

Em fim penso sim que o pedagogo como professor polivalente na primeira infância, deve
ter um conhecimento sobre arte, assim como deve ter conhecimento sobre matemática,
letras, biologia etc. (Sujeito 2)
Continuamos na luta pela presença da Arte nos Cursos de Pedagogia. Não para substituir
o professor de Arte, mas para que o pedagogo possa compreender sua potência em suas
aulas, nas aulas de arte e nos projetos interdisciplinares, para ir além dos enfeites e deco-
rações, ou mesmo os desenhos mimeografados que ainda invadem as escolas. (Sujeito 1)

O terceiro grupo temático defende a proposição de que o pedagogo não poderá substituir os licen-
ciados nas diferentes linguagens artísticas (Dança, Teatro, Música e Artes Visuais) no desenvolvimento da
prática de ensino de arte do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Este grupo apresentou
17% do total da frequência. Abaixo seguem exemplos dessa compreensão:

Mesmo porque um pedagogo não tem formação para atuar como um especialista da área.
A matriz curricular de um curso de pedagogia não dá conta de contemplar em sua carga
horária, os conhecimentos necessários à formação em arte, mesmo porque não é o objeto
de um curso de pedagogia formar professores de artes. (Sujeito 2)

Professores de outras áreas complementando carga-horária, pedagogos assumindo a nos-


sa área. (Sujeito 6)

O quarto grupo temático, com 17% do total da frequência, não reconhece a legitimidade do pedago-
go em desenvolver a prática de ensino de arte na Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental
(anos iniciais da escolarização da Educação Básica), conforme expressos nos exemplos abaixo:

[...] tenho as mesmas inquietações de vocês quanto à/ao pedagogo/a que se sente ‘‘apto
a ministrar aulas de artes (polívalência nas linguagens artísticas), matemática, português,
etc etc...(polívalência quanto aos conhecimentos)’’. Infelizmente, por esse motivo temos

52
uma educação frágil e com um cíclico? o/a pedagogo/a que não tem formação em Arte
(nem Visuais, nem Dança, nem Música e nem Teatro) omite a formação estética (des-
culpem os pedagogos que trabalham significativamente, conheço um monte, mas estou
generalizando) as crianças do Brasil, e futuramente são essas crianças que se tornam pe-
dagogos/as, completamente alheios/as ao conhecimento das artes Visuais, da Dança, da
Música e do Teatro. (Sujeito 6)
Se o pedaço, que viveu poucas e significativas experiências com arte em sua vida escolar (é
o que temos visto com frequência) e não a amplia no seu curso de formação inicial, como
poderá compreender as propostas de um especialista, como trabalhará com a dimensão
estética em seu trabalho docente, para além da sala de aula? (Sujeito 1)

O quinto grupo temático não reconhece que um pedagogo, a partir de sua história de vida e for-
mação, pode também converter-se como um arte/educador. Essa compreensão representa cerca de 14% da
frequência total, conforme pode ser verificado nos exemplos abaixo:

[...] muitos pedagogos estão achando que são professores de artes ou arte-educadores,
apenas por terem na sua grade curricular uma disciplina chamada Arte-educação e/ou
por fazerem uma pós-graduação em arte dessas qualquer esquina por aí... (Sujeito 2)
Mas, dentro dessa formação (que é uma lacuna na educação básica) também preci-
sa de uma formação artística. DE JEITO NENHUM para ser um/a arte/educador/a ou
professor/a de artes visuais, dança, música e/o teatro. ELES NÃO TEM FORMAÇÃO E
NEM É PARA ISSO A SUA FORMAÇÃO. Isso deve ficar claro nos grupos de pesquisa de
Arte na Pedagogia por que é isso que dá um incômodo em muitos/as. (Sujeito 6)
Contudo tem que ficar claro que este profissional NÃO é professor de Arte. E aí que está
todo o problema, pois não temos visto pedagogos tentando se passar de forma enganosa
por professores de matemática por exemplo, mas de artes, sim. (Sujeito 2)

Já o sexto grupo temático defende a ideia de que os problemas educacionais do campo profissional
da Arte/Educação é de responsabilidade dos pedagogos, compreensão expressa com uma frequência total
de 8%, conforme trechos dos discurso abaixo:

Tenho visto também denúncias de diplomas na área de artes “comprados” por pedagogos.
(Sujeito 2)
Estão surgindo vários cursos de graduação em Artes, que têm à sua frente quase sempre
‘‘pedagogos’’ que estão defendendo o retorno da polívalência no ensino da arte. Estes cur-
sos tentam de forma ‘‘tosca’’ e distorcida descaracterizar a formação docente específica
na área de artes nas quatro linguagens. E estão vendendo a ilusão de que com um curso a
pessoa sairá como licenciado em Dança, Teatro, Artes Visuais e Música ao mesmo tempo.
(Sujeito 2)

Por fim, com 4% do total da frequência, o grupo temático sete, defende a proposição de que a práti-
ca de ensino de arte desenvolvida na Educação Infantil e do 1º ao 5ª ano do Ensino Fundamental (anos ini-
ciais da escolarização da Educação Básica) deverá ser legitimamente ministrada pelos pedagogos, conforme
indicado no exemplo abaixo:

Outro ponto a ser ponderado é a dinâmica das aulas das crianças de (0 a 6), com tempos
curtos de atividades em função da faixa etária e com necessidade de muitos momentos
de arte em diferentes linguagens a cada dia: artes visuais, jogo dramático, musica, dança.

53
Esse contexto educativo é diferente do enfrentado pelo especialista que ministra uma ou
duas aulas por semana no Ensino Fundamental 1, com quem o professor/pedagogo ‘‘po-
deria interagir’’ para dar sequência ou manter coerência com as orientações didáticas dos
especialistas em sala de aula, porque sabemos que também não é adequado manter apenas
um horário ou dois de 45 a 50 minutos por semana para a faixa etária dos 1º ao 5º ano.
(Sujeito 4)

Na próxima seção, apresentaremos as considerações finais do nosso trabalho e suas contribuições para um
repensar crítico da Arte/Educação como um campo de formação profissional.

Arte/Educação: campo profissional em conflito?

Conforme é possível verificar, os resultados indicam que vem se estabelecendo no campo profissio-
nal da Arte/Educação uma verdadeira cruzada contra os pedagogos. Nesta direção, não é suficiente garantir
que a prática de ensino de arte do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e Ensino Médio seja ministrada pelos
licenciados nas diferentes linguagens artísticas (Dança, Música, Teatro, Artes Visuais). É preciso se defen-
der e se resguardar contra os pedagogos. Bani-los do campo da Arte/Educação. Inclusive, defende-se que a
prática de ensino de arte na Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental deve ser também
ministrada pelos licenciados nas diferentes linguagens da arte. Enfim, a Pedagogia e os pedagogos são os
responsáveis pelos problemas educacionais do campo profissional da Arte/Educação.

Esta compreensão é reafirmada ao somarmos todas as frequências dos grupos temáticos que debe-
lam sobre a pedagogia, de onde teremos um total de 79% em detrimento a 21% dos discursos daqueles que
defendem a importância dos conhecimentos da arte e seu ensino na formação do pedagogo e que acreditam
que a prática de ensino de arte desenvolvida na Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental
deve ser de responsabilidade dos pedagogos.

De certa forma, entende-se esse não reconhecimento do trabalho dos Pedagogos (arte/educadores
não habilitados), pois acredita-se que os profissionais de outras áreas que ensinam arte, mesmo que quali-
ficados, estão se apropriando do mercado de trabalho dos licenciados nas diferentes linguagens artísticas
(arte/educadores habilitados). No entanto, é importante que tenhamos uma compreensão histórica da cons-
tituição da Arte/Educação brasileira, conforme explicitaremos nos argumentos abaixo.

Primeiro, as terminologias “arte/educadores habilitados” e “arte/educadores não habilitados”, em


geral, são utilizadas no senso comum pelos licenciados em arte, para diferenciá-los de profissionais de ou-
tras áreas que também atuam profissionalmente com o ensino de arte. Ou seja, eles partem do pressuposto
de que hoje, no campo da Arte/Educação, existem duas categorias de arte/educadores: os licenciados nas
diferentes linguagens e expressões da arte (teatro, dança, artes visuais e música), formados pelas universida-
des, que se autodenominam de “arte/educadores habilitados”; e os designados “arte/educadores não habili-
tados”, em certa medida, uma expressão pejorativa utilizada para desqualificar esse tipo de profissional, es-
tabelecendo no campo profissional da arte/educação um arte/educador de segunda categoria. Neste sentido,
cria-se um sistema de castas na Arte/Educação, através de um processo contínuo de exclusão profissional.

Ao contrário dessa concepção, adotamos neste trabalho outra compreensão sobre a terminologia
arte/educador. Se a “Arte-educação é epistemologia da arte e, portanto, é a investigação dos modos como se
aprende arte na escola de 1° grau, 2° grau, na universidade e na intimidade dos ateliês” (BARBOSA, 2002,
p. 7), para nós, os arte/educadores são todos os sujeitos qualificados que trabalham profissionalmente com
processos de ensino e mediação dos conhecimentos artísticos, nos diferentes contextos da educação formal

54
e não formal, tais como Organizações Não Governamentais (ONGs), hospitais, galerias, museus, escolas,
universidades, associações comunitárias. Em geral, esses arte/educadores possuem formações diversas, se-
jam elas acadêmicas ou não. Neste sentido, arte/educador é uma categoria profissional inclusiva, pois, além
de incluir esses profissionais, incluem também os professores de artes, sujeitos que cursaram na universida-
de os diferentes cursos de licenciatura em arte.

Corroborando com esta perspectiva, Azevedo (2009, p. 336) vai defender:

Partimos da ideia arte-educador, em sentido amplo, é todo aquele professor que trabalha
com arte em sua prática pedagógica (professores da educação infantil, especial, anima-
dores culturais e historiadores) diferenciado-se do professor de Arte, aquele oficialmente
habilitado, formado nos cursos ainda denominados de Educação Artística.

Segundo, historicamente, o Campo da Arte/Educação Brasileira vem se constituindo como um


campo interdisciplinar, caracterizado pela atuação de profissionais das diferentes áreas humanas, tais como,
pedagogos, psicólogos, historiadores, artistas, filósofos, médicos, psiquiatras, linguistas, professores das di-
ferentes licenciaturas, educadores sociais, turismólogos, entre outros. A atuação desses profissionais carac-
teriza a Arte/Educação como um fenômeno multidimensional, pois ela passa a ser compreendida a partir de
diferentes pontos de vista e posicionamentos teóricos; o que é um privilégio para a referida área.

Terceiro, a Arte/Educação e os arte/educadores são fenômenos que existem antes da criação dos
cursos de licenciatura em artes, que foram estabelecidos apenas nos meados da Década de 1970, através da
Lei de Diretrizes da Educação Nacional de nº 5.692/71, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de arte
nas escolas dos então 1º e 2º graus e, consequentemente, a criação dos Cursos de Licenciatura Curta em
Educação Artística.

Desta forma, a terminologia “arte/educação” e “arte/educadores” foram criadas pelo Movimento Es-
colinha de Arte (MEA), na Década de 1950, conforme explicitado nos diferentes estudos de Barbosa (2010),
Varela (1977) e Rodrigues (1977). Isto significa que o Campo da Arte/Educação e, consequentemente, a
categoria profissional arte/educador foram criadas antes dos licenciados em arte. No MEA, quem eram os
arte/educadores? Eram pedagogos, psicólogos, artistas. Nesta perspectiva, por exemplo, são os pedagogos
que estão tomando o campo do ensino de arte dos licenciados em arte ou são os licenciados em arte que
estão tomando o campo de ensino de arte dos pedagogos desde a Década de 1970?

Não há qualquer dúvida de que o ensino de arte escolar desenvolvido do 6º ao 9º ano do Ensino
Fundamental e no Ensino Médio é de responsabilidade dos licenciados em arte. Pressuposto que tem que
ser defendido e garantido pelas políticas públicas do Campo da Educação e pelos movimentos associativos
brasileiros de arte/educadores, como a FAEB e a ANARTE/PE, através de um processo de luta contínua. Po-
rém, o ensino de arte não é um fenômeno que está restrito apenas à educação escolar. Como um fenômeno
interdisciplinar e multidimensional, ele ocorre também em outros espaços, tais como museus, hospitais,
organizações não governamentais (ONGs). Será que os cursos de licenciatura em arte vêm preparando arte/
educadores para atuar nesses e em outros espaços educativos? Nos anos iniciais do Ensino Fundamental,
não é o pedagogo o responsável pelo ensino de arte e das demais disciplinas escolares?

O que está na pauta das nossas discussões não é se esse ou aquele profissional deve ensinar arte ou
não. A questão propositiva é se esse ou aquele profissional está qualificado para ensinar arte e o que podere-
mos fazer para melhor qualificá-lo para ensinar arte. Acreditamos que não devemos estabelecer um campo
de atuação profissional partindo apenas das diferenças, mas das motivações que temos em comum. Neste
caso, a defesa pela importância do ensino de arte. Isso significa que, em vez de nos dividirmos, deveríamos

55
unir forças, através de uma luta política e conceitual, para qualificarmos e reafirmamos a área, pois, para
conservarmos as nossas conquistas históricas é preciso que mantenhamos certa vigilância ideológica e epis-
temológica, que não será possível com divisões internas. Como nos alerta Fanon (1979), é preciso sabermos
identificar os nossos verdadeiros “inimigos”. Desta forma, a Pedagogia e os pedagogos não são os inimigos
da Arte/Educação.

No entanto, é preciso deixar claro que esta luta contra a Pedagogia e os pedagogos não se constitui
de um pensamento hegemônico no campo da Arte/Educação, uma vez que, historicamente, uma série de
iniciativas vêm sendo empreendidas para melhor qualificar esse profissional para o desenvolvimento do en-
sino de arte nos anos iniciais da escolarização (Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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56
USAR BRECHT: PERSPECTIVAS
PEDAGÓGICAS TEATRAIS NO TEATRO
ÉPICO DE BERTOLT BRECHT E
NAS PEÇAS DIDÁTICAS
Florian Vassen20
Tradução Samir Signeu Porto Oliveira

B ertolt Brecht é, sem dúvida, o mais importante dramaturgo de língua alemã do século XX.
Devido ao fato de seu trabalho teatral ter muitos aspectos pedagógicos, a teoria do teatro, a prática teatral e
a pedagogia do teatro estão, portanto, intimamente ligadas; no entanto, isto é pouco conhecido. Para o seu
teatro épico, ele desenvolveu uma nova “arte do espectador”, como um professor de teatro trabalhou com
seus atores uma nova “arte de atuar”.21 Ele acompanhou suas encenações com comentários, experimentos
e livros modelo. Com suas peças didáticas ele criou sua própria forma de teatro político orientado para a
pedagogia do teatro e – como um pedagogo de teatro – até mesmo fez contato com os alunos. No geral, ele
criou uma fundação de teatro político-pedagógica inovadora, resistente e envolvente, especialmente radical
na forma das peças didáticas. Ensaio e palco, público e auditório, pensamento e atuação política, processos
de aprendizagem e transformação, “autocompreensão” e representação própria constituem o teatro e a pe-
dagogia teatral de Brecht.

1. Experimentos de Brecht com o teatro

Ainda hoje, algumas encenações podem apresentar Brecht como um “clássico inconsequente”; mas,
contudo, ao lado de Antonin Artaud, ele ainda é um dos mais importantes precursores do teatro de hoje,
especialmente em sua forma pós-dramática. Autores como Heiner Müller, Elfriede Jelinek ou René Pollesch,
grupos de teatro como Rimini Protokoll, She She Pop ou Andcompany & Co, bem como jovens diretores,
referem-se ao trabalho teatral de Brecht e o usam como material, assim como ele mesmo outrora utilizou da
literatura mundial, do teatro asiático e da Europa para o seu trabalho teatral.

20. Possui formação em Letras (alemão e francês), Filosofia e História nas universidades de Frankfurt, Aix-em-Provence e Marburg. Nesta última,
obtém o titulo de Doutor, em 1970. Foi professor assistente na Universidade de Gießen e, desde 1982, é professor de Literatura Alemã na Univer-
sidade de Hannover. Diretor do Centro de Pedagogia do Teatro (Arbeitsstelle Theater/ Theaterpädagogik). É ainda colaborador da Associação de
Pedagogia do Teatro (Gesellschaft für Theaterpädagogik). Seus principais temas de pesquisa são: Teatralidade, Teoria e Prática da Pedagogia do
Teatro, Escrita e Imagem, Bertolt Brecht, Heiner Müller, Teoria do Riso, Sátira e Caricatura.
21. Bertolt Brecht: [Há duas artes para desenvolver]. In: B.B.: Werke. Grosse kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe. Hg. von Werner Hecht
u.a. Bd. 23 Frankfurt a. M. / Berlin / Weimar 1993, S. 191; a seguir, as abreviações GBA com números de volumes e páginas representam as citações
das obras.

57
Brecht procura fundamentalmente mudar o teatro, ao mesmo tempo em que ele experimentava
como autor, diretor, prático e pedagogo de teatro. A pedagogia do teatro não é para ele uma reflexão tardia
ou um aspecto adicional, mas parte integrante de seu teatro, contudo sem usar o termo e sem fornecer mé-
todos didáticos como “receitas”. A pedagogia, a política e a arte entram em um novo tipo de conexão na sua
obra teatral, como Walter Benjamin formulou, já em 1930, sobre os trabalhos de Brecht: “Primeiro, eles têm
seu efeito pedagógico, por fim, sua política e sua poética”.22

As experiências teatrais de Brecht são bastante teimosas, mas ao mesmo tempo orientadas para as
ciências naturais e sociais. Como Francis Bacon, Brecht entende o experimentum como uma experiência pes-
quisada: “É por isso que você tem que experimentar tudo sozinho, com suas mãos, e apenas falando o que viu
com seus próprios olhos e o que poderia ser útil”.23 O teatro de Brecht para intervir nas relações sociais, conecta,
de acordo com a scientia activa, teoria e prática; a “ciência empírica” de Bacon24 corresponde ao teatro de Bre-
cht, como uma “arte da experiência”. Contudo, ele não está satisfeito com “algumas experiências formais”, mas
com “a ideia de que toda a vida social devia ser interpretada pelo teatro como experimental”. 25 Por essa razão,
ele também enfatiza a relação com a realidade e se apega à fábula e constata: As leis sociais do movimento não
podem ser demonstradas em “casos ideais”, uma vez que a “impureza” (contradição) pertence precisamente ao
movimento e ao movente. É necessário apenas – mas isto é absolutamente necessário – que, no todo, algo como
condições experimentais sejam criadas; isto é, que um contraexperimento é possível em cada caso”26.

A tentativa de Brecht de aproximar-se da atitude do cientista para destruir o teatro tradicional,


aquele “ramo do narcotráfico burguês”27, não deve ser entendida como hostil à arte; pelo contrário, ele
opõe-se ao “funcionalismo e “tecnocrático”28, age expressamente sobre o caráter artístico de seu teatro.29
Para penetrar e compreender a realidade, “na verdade, há algo a ser construído, algo” artificial “,” postulado
“. Assim, a arte é realmente necessária, bem como a”30, prática estética, e isso significa que o foco está sobre
“a imaginação, o instinto de jogo e a poética verdadeira”.31

2. Experimentos e modelos de Brecht

Brecht, é claro, não escapou à diferença entre os experimentos científicos e seus experimentos tea-
trais, cuja ênfase estava acima de tudo no julgamento e na experimentação, no inacabado, provisório; isto
é, no caráter experimental estético. Nesse sentido, Brecht chamou uma série de folhetos de ensaios, com os
quais ele “criou” a “possibilidade” de “publicar continuamente certas obras importantes, e que tinham um
caráter experimental”.32 As primeiras experiências de 1933 contêm, sobretudo, “obras” que “não devem mais
ser experiências individuais (ter caráter de trabalho); porém mais direcionadas ao uso (transformação) de
certos institutos e instituições (têm caráter experimental) [...]”. Certamente não começa por acaso com O

22. Walter Benjamin: Bert Brecht. Em: W.B.: Gesammelte Schriften. Bd. II.2. Aufsätze, Essays, Vorträge. Hg. von Rolf Tiedemann / Hermann Sche-
ppenhäuser. Frankfurt a. M. 1977, S. 662; nos seguintes abreviados com GS com volume e números de páginas.
23. Bertolt Brecht: Das Experiment. In: GBA, Bd. 18, S. 364.
24. Engels, Friedrich / Marx, Karl (1972) : Die heilige Familie oder Kritik der krtisichen Kritik. In: K.M./F.E.: Werke , Bd.2. Berlin 1972, S. 135.
25. Bertolt Brecht: Überblick. In: GBA, Bd. 22.1. S. 558.
26. Bertolt Brecht: Kleines Organon für das Theater. In: GBA, Bd. 23, S.85;
27. Bertolt Brecht: Kleines Organon, S. 65.
28. Bertolt Brecht: Journal I. In: GBA, Bd. 26, S. 474.
29. Compare Bertolt Brecht: Kleines Organon, S. 66.
30. Bertolt Brecht: Der Dreigroschenprozess. Ein soziologisches Experiment. IN: GBA, Bd. 21, S. 469.
31. Bertolt Brecht: Über experimentelles Theater. In: GBA, Bd. 22.1, S. 546.
32. Elisabeth Hauptmann: [Der Neudruck der “Versuche”]. In: Bertolt Brecht: Versuche 1-12. Berlin / Frankfurt a. M. 1959, S. 2.

58
voo sobre o oceano, uma “peça didática radiofônica para rapazes e moças”.33 As próximas tentativas também
se concentram na ópera épica Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, “o livro de leitura para os morado-
res da cidade, estas são letras de músicas para discos, e A Peça Didática de Baden em formas experimentais.
Na seguinte, a complexa A ópera de três vinténs, a ópera épica se desenvolve em um experimento sociológi-
co. Finalmente, os experimentos 11 e 12 incluem as óperas escolares didáticas Aquele que diz sim e Aquele
que diz não, bem como A decisão, uma peça didática para os corais proletários de massa.

Nessas experiências, o teatro épico e a peça didática, como experiências teatrais, a mídia, o rádio,
discos e filmes, bem como a crítica do capitalismo e a educação reformista da época, estavam intimamente
conectados. A ópera escolar Aquele que diz sim foi apresentada em 1930, na Escola Karl Marx, um ginásio
reformista em Neukölln, em Berlim, com novos métodos de ensino e trabalho coletivo de teatro. Brecht
tinha estado em contato por algum tempo, especialmente através de Peter Suhrkamp, mas também de He-
lene Weigel e Walter Benjamin, com o movimento de jovens e da pedagogia da reforma, mas também com
o teatro infantil proletário34 e, em consequência disto, estava interessado nos processos de aprendizagem de
crianças e jovens, no contexto de seu trabalho teatral.

Após a Segunda Guerra Mundial, o praticante de teatro Brecht concebeu os chamados livros modelo
(Construção de um papel: Galilei de Laughton, Modelo Antigona 1948, Modelo Courage 1948, Notas de “Katz-
graben” 1953)35, bem como a antologia de Trabalho Teatral36, em que extratos, comentários, partituras, esbo-
ços de cena e muitas fotos de palco do gestus básico de cada peça, bem como arranjos cênicos e o decorrer da
apresentação foram registrados. Brecht não está preocupado com ‘receitas’ ou regulamentações, nem mes-
mo com modelos, mas com ‘o uso criativo’. Os modelos servem de orientação no contexto da singularidade
dos experimentos artísticos: “Usar modelos é uma arte separada; muito e muito disso é para aprender. Nem
a intenção de fazer o modelo exatamente, nem a intenção de deixá-lo rapidamente é a correta. [...] Pensado
como um alívio, os modelos não são fáceis de manusear. Eles não são feitos para poupar o pensamento, mas
para estimulá-lo; não são oferecidos para substituir a criação artística, mas para reforçá-la. A imaginação
é necessária não apenas para mudar o modelo, mas também para aceitá-lo”.37 Os modelos visam ajudar a
desenvolver, transmitir e pensar mais sobre o teatro experimental de Brecht, e podem igualmente beneficiar
o contexto pedagógico do teatro.

3. Literarização do teatro de Brecht – citação, comentário, montagem

No teatro, há sempre o perigo de capturar tudo, harmonizar contradições, seguir o caminho mais
simples, adaptar-se e permanecer no familiar e “agradável”,38 como Brecht o chama. Para evitar isso, autores
de teatro como Brecht sempre resistiram com suas “habilidades de escrita” e tentaram reagir contra o teatro
que pode representar “tudo (ênfase no original): tudo é ‘teatro’”.39

Brecht vê uma possibilidade na “literarização do teatro”, como ele descreve nas notas da “Ópera
dos três vinténs”. Especialmente bem formulado por ele: “Também na arte dramática a nota de rodapé e

33. Bertolt Brecht: Der Ozeanflug. In: B.B.: Versuche, S. 6.


34. Compare Walter Benjamin: Programm eines proletarischen Kindertheaters. In: GS, BD. II.2, S. 763-769.
35. Veja Bertolt Brecht: GBA, Bd. 25.
36. Bertolt Brecht: Theaterarbeit. 6 Aufführungen des Berliner Ensembles. Hg. vom Berliner Ensemble / Helene Weigel. Dresden 1952.
37. Bertolt Brecht: Couragemodell 1949. In: GBA, Bd. 25, 397f.
38. Bertolt Brecht: Kleines Organon, S. 66.
39. Bertolt Brecht: Anmerkungen zur Dreigroischenoper. IN: GBA, Bd. 24, S. 58.

59
as paginas comparativas são introduzidas”.40 Sob a forma de letramento, devem ser anotados, por escrito,
com a possibilidade de contrastes, interrupção e mudança de perspectiva – como no teatro pós-dramático
e frequentemente na prática pedagógica de hoje – destruindo a atitude de recepção divertida e frustrante
do público; “o espectador”41 deveria ao invés, por exemplo, “[...] ao ler as projeções do painel [...] adotar a
atitude de assistir fumando”.42 “Agora a demanda pode ser aumentada”, disse Brecht, “que o espectador (como
massa) literalizado [ênfase no original], ou seja, ele foi especialmente treinado e informado para que ‘fre-
quente’ o teatro!”43

Um bloco de construção particularmente importante dessa literarização é o processo intertextual


de citação; isto é, o processamento de textos sendo fragmentados e divididos em pequenos pedaços, apenas
em citações. De acordo com a sua teoria do “valor material”,44 Brecht usa textos da literatura, filosofia ou
teoria social como uma “pedreira”: desrespeitoso e distante, sim, tão descaradamente e ‘negligente’ no que
diz respeito à propriedade intelectual, que ele toma o que pode usar. Uso de valor, artesanato e trabalho co-
letivo negam qualquer culto ao gênio e questionam a autonomia do sujeito artístico, como explica Brecht na
história que representa o Sr. Keuner e a originalidade.45 Além dos textos, Brecht também usa o “gesto como
material” em sua prática teatral, cuja prioridade é ter “um começo e um fim fixo” e “interromper [...] a ação”.
Como “dialética em suspensão”46 tornam-se também os “gestos citáveis”47.

Citações de texto e gestos citáveis são constitutivos de coros, poemas e canções, figuras narrativas,
títulos de cenas e comentários para a estrutura de montagem do teatro de Brecht. Embora as interrupções,
nomeadamente as interfaces da montagem, permaneçam claramente visíveis, não obstante, a citação e o
comentário são partes integrantes do texto literário ou da encenação teatral. O trabalho teatral de Brecht,
incluindo o aspecto pedagógico-teatral, é constituído pela interação de demonstrar, comentar e refletir.
Caracteriza-se pela estrutura da cesura e recebe uma dimensão multi perspectiva por meio da “separação
dos elementos [ênfase no original]”48 e da heterogeneidade das formas e meios utilizados.

4. A “arte de atuar” - ensaios e apresentações

Para o seu teatro épico, Brecht precisa uma maneira especial de interpretar dos atores, então eles
precisam ser treinados de forma diferente. Portanto, ele critica as escolas de teatro de então, ele está espe-
cialmente “desapontado” com as do “sistema de Stanislavski [ênfase no original]”49. As reflexões de Brecht
sobre “a arte de atuar” estão expostas especialmente no extenso fragmento de A compra do latão, uma con-
versa sobre um novo tipo de teatro para interpretar, bem como na sua – poder-se-ia dizer – versão curta
estruturada de o Pequeno órganon para o teatro. A “nova técnica da arte de atuar” inclui, sobretudo, o “gesto
de mostrar” e a “atitude do atônito e contraditório”. Brecht chama de “recurso” “1. A transferência para a
terceira pessoa. 2. A transferência para o passado. 3. Pronunciar em coro as instruções de jogo e comentá-

40. Bertolt Brecht: Anmerkungen zur Dreigroschenoper, S.59.


41. Brecht geralmente usa a forma masculina da pessoa, como era costume em sua época.
42. Bertolt Brecht: Anmerkungen zur Dreigroschenoper, S.59
43. Bertolt Brecht: Die dialektische Dramatik. In; GBA, Bd. 21, S.441.
44. Compare Bertolt Brecht: Materialwert. In: GBA, Bd. 21, S. 285.
45. Bertolt Brecht: Herr Keuner und die Originalität. In: GBA, 18, S. 18.
46. Walter Benjamin: Was ist das epische Theater? (1). In: GS, Bd. II.2, S. 521 e 530.
47. Walter Benjamin: Was ist das epische Theater?(2). In: GS, Bd. II.2, S. 536.
48. Bertolt Brecht: Über den Bühnenbau der nichtaristotelischen Dramatik. In: GBA 22.1, S. 228.
49. Bertolt Brecht: Der Messingkauf. In: GBA, Bd. 22.2, S.827.

60
rios [todos os destaques no original]”50, e, entre outros, “exercícios de observação”, “exercícios de imitação”,
“notícia anotada”, “exercícios de imaginação”, “dramatização do épico”, “exercícios de direção” e “exercícios
detemperamento”51. A atitude de “citar”52 também é importante, pois implica um modo de falar diferente,
muito mais distanciado do que a declamação teatral e a recitação tradicional. Brecht até mesmo escreve
“exercícios para atores” independentes como “cenas paralelas”, como as “transmissões [...] da Discussão
das Rainhas, ‘Maria Stuart’ em um prosaico ambiente ‘do’ Fischweiber”53. Esses “procedimentos” diversos e
variados, adequados para atores profissionais e não profissionais, servem, em particular, para distanciar o
“texto nos ensaios”, bem como a peça e o “modo de falar”.54

Brecht desenvolve a nova “arte de atuar” de acordo com uma forma específica de ensaios, que ele
entende como uma “experimentação [destacando no original]” de “várias possibilidades”, como ele escre-
ve no texto Atitude dos condutores de ensaios (na abordagem indutiva). O “condutor de ensaios” – Brecht,
evidentemente consciente, não fala do diretor – inicia com “perguntas” e “dúvidas, a variedade de possíveis
pontos de vista, comparações, memórias, experiências” e evita “todas as soluções esquemáticas, habituais e
convencionais”. Em consequência disto, Brecht não entende o diretor como um artista engenhoso, que quer
por em prática suas ideias, mas como um artesão com “abordagem indutiva”, em um processo coletivo. Sua
“tarefa é despertar e organizar a produtividade dos atores (músicos, pintores etc.)”. Com a ajuda de contra-
dições e “crises”, Brecht argumenta que não deveria haver nenhuma conexão orgânica, mas uma gradual
“lógica [enfatizada no original]”; a “sucessão” e o “entrelaçamento” se desenvolvem, combinados com um
“elemento de surpresa”.55

Sem dúvida, o ensaio de Brecht também significa repetição, segurança e determinação, mas o mais
importante é o seu caráter experimental, o movimento de pesquisa e “experimentação”, encontrar e rejeitar
novamente; isto é, sua abertura e sua forma coletiva de trabalho, uma abordagem que hoje em dia é geral-
mente praticada também no contexto pedagógico do teatro. Brecht refere-se também explicitamente a seus
pensamentos sobre “a arte de atuar” de atores não profissionais e trabalha – não apenas em suas experiên-
cias com as peças didáticas – pedagogicamente o teatro com amadores: “Desde o início, os amadores foram
treinados”.56 Ele insiste enfaticamente que “vale a pena falar de teatro amador”.57

5. A “arte do espectador” - vendo em vez de “arregalar”

Ler, ouvir, contemplar ou assistir desempenha um papel especial no processo de arte; e o teatro
como uma forma de arte social e comunicação presente e fugaz entre pessoas vivas, geralmente precisa, em
particular, da interação de intérpretes e espectadores no espaço do teatro. Somente juntos percebem, em um
“espaço de energia”, a síntese estética do evento teatral.

Consequentemente, as considerações pedagógicas teatrais de Brecht, no contexto do teatro épico –


em contraste com a peça didática – concentram-se particularmente na “arte do espectador”, que combina
com “arte de atuar”, arte da escrita, arte do palco e arte sonora para formar uma arte de teatro complexa e

50. Bertolt Brecht: Kurze Beschreibung einer neuen Technik der Schauspielkunst, die einen Verfremdungsaffekt hervorbringt. In: GBA, Bd. 22.2,
S.644.
51. Bertolt Brecht: Übungen für Schauspielschulen. In: GBA, Bd. 22.2, S.614f.
52. Bertolt Brecht: Anweisungen na die Schauspieler. In: GBA, Bd. 22.2, S.668.
53. Bertolt Brecht: De Messingkauf, S. 830-852.
54. Bertolt Brecht: Kurze Beschreibung einer neuen Technik der Schauspielkunst, die einen Verfremdungsaffekt hervorbringt, S.644.
55. Bertolt Brecht: Haltung des Probenleiters (bei induktivem Vorgehen). In: GBA, Bd. 22.1, 597f.
56. Bertolt Brecht: Über experimentelles Theater, S. 555.
57. Bertolt Brecht: Lohnt es sich vom Amateurtheater zu reden? In: GBA, Bd. 22.1, S.593.

61
heterogênea. Para ele, assistir é uma atividade que precisa ser aprendida, especialmente se for para orientar a
ação com base na observação atenta, como evidenciado na reação de Galileu à declaração do aluno Andrea
em Vida de Galileu: “Mas eu vejo que o sol de noite não está onde estava de manhã. Quer dizer que ele não
pode ficar parado! Nunca e jamais”. “Você vê! O que é que você vê? Você não vê nada. Você apenas arregala
os olhos. Arregalar os olhos não é ver”.58 Brecht segue o modo de ver e observar de Galileu; isto é, seu “olhar
estranho”, com o qual este “[...] observava um lustre pendular”. “[...] Esse olhar, tão difícil quanto produti-
vo, deve provocar o teatro com suas representações da convivência humana. Ele tem que surpreender seu
público, e isso é feito por meio de uma técnica de distanciamento do familiar”.59 Portanto, ver e observar é
contrastado com “arregalar”, como um olhar não conceitual da contemplação remanescente na superfície.

Brecht descreve o público do teatro aristotélico como “figuras bastante imóveis, em um estado pecu-
liar: [...] elas têm [...] seus olhos abertos, mas não olham, fitam, como também não ouvem, escutam”. Contra
esse comportamento dos espectadores de teatro que “olham para o palco”60 como se estivessem encantados,
Brecht define como a “imagem alienante [...] que reconhece o objeto, mas que ao mesmo tempo faz parecer
estranho”,61 de modo que surja nos espectadores uma estranheza. O “não muito mudado” não deve parecer
“mutável”, mas como algo feito pelo homem e assim mutável, pois: “Em todo lugar encontramos algo que é
óbvio demais para nos esforçarmos para entender”.62

Brecht se recusa a “incitar o espectador a uma dinâmica unilateral, onde ele não pode olhar nem
para a direita e nem para a esquerda, nem para baixo e nem para cima” – uma formulação que já antecipa
o teatro pós-dramático – e enfatiza explicitamente: “a visão complexa deve ser praticada”.63 Os especta-
dores não estão isolados nos processos teatrais, eles não permanecem limitados à sua individualidade, “o
indivíduo [...] não é mais o centro”, pelo contrário, um processo coletivo acontece no ato físico concreto
de assistir e ouvir. Brecht fala, nesse contexto, que o “espectador” é “não apenas um consumidor”, “mas ele
tem que produzir. O evento sem ele, como colaborador, é metade [...], o espectador, envolvido no even-
to teatral, é teatralizado. [...] Um passo adiante, “as reflexões de Brecht sobre o público”, e haveria uma
mudança qualitativa desse coletivo: sua contingência desapareceria”.64 O “Thaeter”,65 como Brecht chama
seu novo teatro”, deve causar também “uma atitude surpreendente, inventiva e crítica do espectador”;66
é – também nos sentido pedagógico do teatro – sobre participação e coprodução, também no sentido da
pedagogia do teatro.

6. Estranhamento, distanciamento e estranheza em Brecht

Quando se fala do teatro de Brecht, é geralmente sobre distanciamento, muitas vezes reduzida à técni-
ca teatral do efeito-V. Em sua forma abrangente, isto é, como uma constelação teatral, social, política e peda-
gógica – “O efeito V é uma medida social”67 – o distanciamento, além do épico e do gestus, é a categoria mais
conhecida e mais importante do teatro brechtiano: “em uma nova cadeia de experimentos” foi “desenvolvida”

58. Bertolt Brecht: Leben des Galilei. In: GBA, Bd. 5, S. 11.
59. Bertolt Brecht: Kleines Organon, S. 82.
60. Bertolt Brecht: Kleines Organon, S. 75f.
61. Bertolt Brecht: Kleines Organon, S.81.
62. Bertolt Brecht: Kleines Organon.
63. Bertolt Brecht: Anmerkungen zur Dreigroschenoper, S. 59.
64. Bertolt Brecht: Die dialektische Dramatik, S. 441.
65. Bertolt Brecht: Der Messingkauf, S. 697.
66. Bertolt Brecht: Journal I, S. 407.
67. Bertolt Brecht: Der Messingkauf, S. 700.

62
“a técnica de distanciamento”, o “chamado estilo épico de apresentação” treinado e formado “o assim chamado
princípio gestual [ênfase no original]”.68 Embora já existissem formas épicas e de distanciamento de teatro nos
séculos anteriores, a característica especial de Brecht é que ele desenvolve uma teoria fundamental do distan-
ciamento, que muda simultaneamente a “arte de atuar” e a “arte do espectador”, bem como todas as áreas da
representação e da música. Também nos textos teatrais de Brecht, ela está nos níveis de ação, narrativa, comen-
tário e de reflexão, bem como na estrutura da linguagem; realiza-se, em particular, como uma interrupção e
uma mudança de perspectiva.

Além disso, o conceito de distanciamento também deve ser visto em um contexto mais amplo.
Por um lado, ele está intimamente ligado ao conceito sociológico de estranhamento e, por outro lado, o
distanciamento em Brecht é apenas um aspecto parcial do fenômeno abrangente de ser estranho e estra-
nheza e deve, portanto, ser colocado no contexto da alteridade. Nos mais diversos níveis – teatro-prático,
literário-teórico, epistemológico, sociopolítico e teatro-pedagógico – o estranho e a estranheza e, portanto,
distância, curiosidade, espanto, descoberta e reconhecimento desempenham um papel central para Brecht,
em oposição à proximidade, empatia e identificação. Neste ponto, isto é de particular importância como os
conceitos de alteridade e estranheza, especialmente no que diz respeito à pluralização e interculturalidade,
à inclusão e exclusão social; e também está no centro da atual discussão política e pedagógica. A estranheza
sempre se refere a uma relação, é apenas para ser entendida em relação a algo diferente. Portanto, o próprio
e o estranho estão inextricavelmente ligados, condicionam-se um ao outro. Particularidade sem estranheza
não é possível, e a perda de estranheza levaria à rigidez e à estagnação, ao invés de aprender e mudar. Além
disso, a exclusão e supressão da alteridade também contém um potencial considerável de violência e destrui-
ção tanto no psicológico individual quanto na constituição social.

Neste contexto, Brecht desenvolve uma nova compreensão do indivíduo, que não é visto isolada-
mente e é particularmente exposto, nem é suposto ser “apagado” em sua personalidade no coletivo; mas em
sua diversidade pode receber uma nova força através da integração em um grupo. As pessoas, especialmente
os atores no processo teatral, devem fazer experiências consigo mesmas como um “Dividuum”; isto é, “é
precisamente para o indivíduo enfatizar sua divisibilidade [...]”.69

Nas reflexões de Brecht sobre a estranheza e o indivíduo, há referências óbvias à teoria da alienação
de Hegel e Marx e ao “Dividuum”70 de Nietzsche; enquanto a teoria da estrangeirice de George Simmel, de-
senvolvida na digressão sobre o estranho, era provavelmente desconhecida por ele. No entanto, paralelos parti-
cularmente notáveis e referências às modernas ciências naturais, especialmente à teoria quântica, podem ser
estabelecidos: o átomo e o in-dividuum como o original, indivisível “ambos se tornaram divisíveis” no século
XX e estão em interação com seu ambiente ou com outros homens. Em uma conversa com Brecht, Bernard
Guillemins afirma: “O ego contínuo é um mito. O homem é um átomo em permanente decomposição e recém-
-formado”.71 Para ele, a “fragmentação, explosão, atomização da psique do individuo”, “essa insensibilidade
peculiar dos indivíduos”, não significa “ausência de substância”. Em vez disso, ele fala em um sentido positivo
da “fragmentação da pessoa”, da “divisão do ser humano”,72 do indivíduo “como um complexo contraditório” e
de uma “multiplicidade obcecada pela batalha”73; e conclui a partir disso que se deve “expandir enormemente
o dividual”.74 Como Stuart Hall apontou em sua Teoria da Constituição do Sujeito, as mudanças sociais no

68. Bertolt Brecht: Über experimentelles Theater, S. 555f.


69. Bertolt Brecht: Individuum und Masse. In: GBA, Bd. 21, S.359.
70. Nietzsche, Friedrich: Menschliches, Allzumenschliches. In: F. N.: Werke in drei Bänden. Hg. von Karl Schlechta. Bd. 1. München 1999, S.491.
71. Bernhard Guillemin: Gespräch mit Bert Brecht. In: Willy Hass: Zeitgemässes aus der literarischen Welt von 1925-1932. Stuttgart 1963, S. 54f.
72. Bertolt Brecht; [Zertrümmerung der Person]. In: GBA, Bd. 21, S.320.
73. Bertolt Brecht: [Das Individuum. Die Kausalität]. In: GBA, Bd. 22.2, S. 691.
74. Bertolt Brecht: Materialismus. In: GBA, Bd. 21, S. 179.

63
início do século XIX começam a decair e fragmentar as pessoas. Hall enfatiza: “[...] que qualquer concepção
assegurada ou essencialista de identidade, que desde o iluminismo define o núcleo ou a essência de nosso ser,
pertence ao passado”.75 O homem não mais tem uma identidade imutável, mas tem várias identidades ou uma
dinâmica com várias áreas diferentes, ele se pluraliza.

Essa identidade pluralizada permite relacionar-se com outras identidades pluralizadas sem defender
o estranho. No entanto, como Welsch enfatiza, requer um “alto grau de capacidade de transição”: “A vida dos
sujeitos torna-se uma ‘vida plural’ em um duplo sentido. Primeiro, na relação externa: vive-se em um campo de
possibilidades sociais e culturais marcado pela pluralidade e tem que se mover e encontrar o seu caminho nessa
pluralidade. Em segundo lugar, na relação interior: o sujeito dispõe de vários esboços, que ele pode passar ao
mesmo tempo ou em sucessão. Tanto a pluralidade externa quanto a interna exigem um alto grau de capaci-
dade de transição”.76 Especialmente nos jogos teatrais, mas também em assistir teatro, essa atitude de transição
pode ser experimentada, mesmo que a expectativa de autoconfiança contradiga repetidamente esse processo.

Nos mais diversos níveis – teatral, literário, epistemológico e sociopolítico, bem como teatro-peda-
gógico – a alteridade de Brecht determina a estrutura do texto, os métodos de atuação, a atitude do especta-
dor e os processos de aprendizagem do trabalho teatral e dos processos do jogo. Portanto, Brecht estabelece
uma nova ênfase: contra a alienação destrutiva do homem no capitalismo; ele entende ser um estranho
como uma experiência de sua própria pluralidade, enfatiza o estranho como uma parte de cada pessoa e
mostra a possibilidade de uma atitude produtiva para a estranheza. Na percepção teatral e nos jogos teatrais,
no contraste teatral Como e Se cênico, na mudança de papéis e na distância dos papéis, na experiência da
diferença de personagem e figura, na percepção do eu e do estranho, no dialógico e performativo. Assim, as
várias formas de mudança de perspectiva, alteridade, diversidade e diferença se desenvolvem e permitem
mudanças sociais e individuais. Tanto a “arte do espectador” quanto a “arte de atuar” baseiam-se, como ele
diz, no “desacordo consigo mesmo”.77 Em 1929, ele formulou enfaticamente: “Todos deveriam se afastar de
si mesmos. Caso contrário, o horror que é necessário para o reconhecimento desaparecerá”.78

7. Experiências Político-Estéticas Radicais -


As Peças Didáticas como outra série de experiências

Quando Brecht usou pela primeira vez o título de “Peça Didática” em 1929, com A Peça didática
de Baden-Baden sobre o acordo, como ela foi chamada mais tarde, e que foi apresentada em 28 de julho na
Musikfestwochen de Baden-Baden, ele tinha criado um tipo de teatro em que o ponto central ultrapassava
claramente suas experiências com o teatro épico: a comunicação entre palco e plateia, interpretar para um
público tinha sido abolido ou, pelo menos, tornada irrelevante: “a peça didática assim ensina”, como escreve
Brecht, “que é apresentada, não pelo fato de que seja vista. A princípio, nenhum espectador é necessário para
a peça didática, mas é claro que pode ser utilizado”.79

Brecht “conduz”, como ele enfatiza, “outra cadeia de experiências” que, “apesar de se servir dos meios
teatrais, no fundo não precisava do teatro”.80 Em vez disso, ele inicia um processo de jogo pedagógico-político,

75. Stuart Hall: Die Frage der kulturellen Identität. In: S.H.: Rassismus und kulturelle Identität. Ausgewählte Schriften, Bd. 2. Hg. von Ulrich Meh-
lem u.a. Hamburg 2002, S. 181.
76. Welsch, Wolfgang: Die zeitgenössische Vernunftkritik und das Konzept der transversalen Vernunft. Frankfurt a. M. 1996, S. 831.
77. Bertolt Brecht: Kleines Organon für das Theater, S. 82.
78. Bertolt Brecht: Dialog über Schauspielkunst. In: GBA, Bd. 21, S.280.
79. Bertolt Brecht: Zur Theorie des Lehrstücks. In: Brechts Modell der Lehrstücke, Diskussion, Erfahrung. Hg. von Reiner Steinweg. Frankfurt a. M.
1976. S. 164 f.
80. Bertolt Brecht: [Das Deutsche Drama vor Hitler]. In: GBA, Bd. 22.1, S. 167.

64
autorreflexivo. Esta série de experimentos consiste em O voo sobre o oceano, A peça didática de Baden-Baden
sobre o acordo, Aquele que diz sim e aquele que diz não, A decisão, A exceção e a regra e Os Horácios e os Curiá-
ceos; isto é, peças didáticas para o rádio, peças didáticas no contexto da música experimental, bem como peças
didáticas para alunos no cenário da pedagogia da reforma, para coros de trabalhadores e para crianças. Há,
também, dois fragmentos de peças didáticas O maligno Baal, o associal e o Fatzer.

Essa forma teatral, desenvolvida como um experimento estético-pedagógico e surgida no am-


biente político e cultural do movimento operário, da pedagogia reformista, da nova música e mídia no
final da República de Weimar, foi muitas vezes mal-entendida como uma peça de teatro com uma doutri-
na, ou como peça de um momento político ou como Agitprop, no sentido de doutrinação e hostilidade
à arte. Portanto, o próprio Brecht colocou a questão: “não seria o nome peça didática muito infeliz?”81
A tradução para o inglês é “learning-play”,82 que Brecht muito provavelmente ajudou a formular; por
outro lado, a intenção de Brecht é muito mais forte em sua ênfase em aprender sobre o ensino e o jogar,
como um processo em direção à peça como um produto acabado. O “jogo de aprendizagem”, como retra-
duzir o termo em inglês, que se refere em alguns casos a aspectos que a designação peça didática muitas
vezes obscureceu.

Assim, a concepção de Brecht da peça didática não está preocupada com o fato de que as figuras
teatrais se expõem para o público, não com opiniões e convicções,83 que são representadas e formuladas,
mas com atitudes que são praticamente testadas no jogo teatral em troca e interação mútua. Não é o conte-
údo da “tese e contra tese” que nos interessa, mas o teste lúdico das próprias atitudes controversas, que são
“exercícios de flexibilidade”,84 como Brecht chama. Neste contexto, também está a “teoria das pedagogias” de
Brecht, na qual ele lida com o problema central da teoria e prática, que Karl Marx alia com décima primeira
tese formulada por Feuerbach, que não teve importância crucial apenas para o desenvolvimento do marxis-
mo. Contra a separação entre “política” e “filosofia”, isto é, o “ativo” do “contemplativo”, Brecht afirma que
“os políticos devem ser filósofos e os filósofos políticos”. Seu postulado desemboca em uma posição lacônica:
“entre a verdadeira filosofia e a verdadeira política não há diferença”. Ele quer superar a contradição entre
teoria e prática nos “jogos teatrais”, o que significa “fazer com que os jovens [...] ao mesmo tempo realizem
e contemplem”. “Ao fazer os jovens realizarem atividades que estão sujeitas à sua própria contemplação”,85
eles aprendem de maneira diferente e ao mesmo tempo diferente das instituições pedagógicas tradicionais.
Segundo Brecht, a pesquisa teatral e os jogos autorreflexivos possibilitam, no processo performativo, a mu-
dança de atitudes na forma de uma nova relação teoria-prática.

Nas “pedagogias”, os jogadores tornam-se aprendizes experimentando no grupo “o desempenho


de certos modos de ação, a tomada de certas atitudes, a reprodução de certas falas”,86 que são observadas,
refletidas, repetidas, modificadas e tornadas aprendíveis ou criticáveis. O objetivo é, de acordo com Brecht,
“a imitação de padrões altamente qualificados, bem como a crítica que é praticada em tais padrões por
outros jogos deliberados”.87 – de acordo com a formulação de Brecht, “ concordar também significa: não

81. Bertolt Brecht: Missvertändnisse über das Lehrstück. In: Brechts Modell. S. 129 f.
82. Bertolt Brecht: The German Drama: pre-Hitler. In: Brechts Modell, S. 150.
83. Walter Benjamin enfatiza, citando Lichtenberg: “Não é algo convicente, importante. Importante é o que suas convicções fazem dele.” Walter
Benjamin: Bert Brecht. In: GS, Bd. II.2, S.
84. Brecht refere a Pierre Abraham. In: Brecht Modell, S. 198.
85. Bertolt Brecht: Theorie der Pädagogien. In: Brechts Modell, S. 70f.; a continuação das frase diz: “eles são educados para o estado.” Esta formulação
está apenas no contexto da teoria de Marx sobre a morte do estado, isto é, do “novo estado sem classes (uma vez que já não há mais estado)” (Bertolt
Brecht: Pädagogik. In: Brechts Modell, S. 52), para enter uma teoria que não pode aqui ser mostrada em detalhes.
86. Bertolt Brecht: Zur Theorie des Lehrstücks, S. 164.
87. Brecht: Zur Theorie des Lehrstücks.

65
concordar”.88 Ao fazê-lo, os aspectos individuais são apontados, isolados “gestos citáveis”,89 como Walter
Benjamin diz, mas também verificáveis, variáveis e corrigíveis. Percepção e ação estão intimamente ligadas
e, em contraste com o teatro épico, a performatividade, como ação física e linguística, domina e apresenta
a realidade em comparação com a representação. Estas experiências performativas são sobre produção de
experiência baseada na teoria, experiência no jogo e processos de pensamento.

Os níveis de produção, representação e percepção, que muitas vezes são separados nas artes, estão
intimamente ligados na peça didática com o jogo, e há uma constante troca e alternância entre as múltiplas
formas de produção. Na troca de papéis do processo de jogo, os participantes são às vezes condutores de jogos
ou observadores (espectadores), experimentador, às vezes colegas de jogo, também parte da experiência e,
portanto, do jogo; isto é, o objeto de investigação. Eles são completamente estranhos a si mesmos e, ao mesmo
tempo, como observadores distantes, eles estão em si mesmos e fora de si, isto é, eles experimentam uma estra-
nheza integrada ao sujeito. Sujeito e objeto não são separados, eles diferem apenas ocasionalmente no decurso
do tempo, bem como na mudança de perspectivas de estranho e autopercepção. Heiner Müller, sucessor de
Brecht, enfatiza: “Cada jogador pode ser exposto / submetido à emoção que o texto articula / oculta. Não há
monopólio no papel mascara gesto texto, a epicização não é privilégio: dar a todos a chance de se distanciar”.90

Brecht criou uma constelação de demonstrar, comentar e refletir, especialmente um apontamento91


de atitudes no ensaio dos atores, às vezes até relatos espaçados temporal e espacialmente, como, por exem-
plo, em A decisão. O enredo é amplamente contado ou mostrado por ser reencenado. Se Brecht afirma: “a
forma das peças didáticas é rigorosa, mas apenas para que partes da própria invenção e da arte atual possam
ser mais facilmente inseridas”.92 Depois, então, ele postula um “nível médio de abstração” para seus textos,
nos quais, por sua forma igualmente discursiva e poética, existe uma correspondência entre teoria e prática
de teatral. Temas e teorias particularmente estranhos, a estranha linguagem poética e a forma teatral dis-
tanciada permitem em sua interação com os jogadores diferentes experiências. Brecht produziu a “fala” das
peças didáticas tanto em versos brancos com ritmos irregulares e em linguagem gestual, bem como em uma
linguagem falada e, ao mesmo tempo, poética, e – sobretudo nos comentários – em prosa discursiva, basea-
da em teoria; ambos são igualmente em forma de materiais de texto estético e teatral. Portanto, Theodor W.
Adorno entende a “peça didática como um princípio artístico”.93

Sobretudo, no conceito de experiência estética, “adquirida na relação gestual com tex-


tos literários”, que possuem sua qualidade política em resistir às “deformações da vida cotidiana”,94
a especificidade do conceito de peça didática torna-se aparente: trata-se da concreção estética da teoria e da
história, da complexidade e inexplicabilidade dos textos e da sua materialização teatral na forma de gestos,
atitudes e discursos, três áreas que encontram sua expressão em imagens cênicas. Ao mesmo tempo em
que estes experimentos de experiência são experimentos estéticos, encontramos aqui também – ainda mais
intensamente do que na série experimental do teatro épico – a tensão entre aventura e experiência, prática e
teoria, arte e realidade, teatro e política.

88. Bertolt Brecht, “[Einverständnis und Widerspruch]”. In: Brechts Modell, S 62; compare com isso também o poema de Brecht “IDEM ER JA
SAGT”, cuja primeira linha é “INDEM ER JA SAGT, indem er nein sagt”. In: GBA, Bd. 15, S. 172 e Bd. 22.2, S.812; Brecht 1938/39 formula isso:
“Em algumas situações, devemos esperar ser mais do que uma resposta, uma reação, um procedimento, um sim e um não; [...].” (GBA 22.1 S. 396).
No contexto da arte da atuar dizem: “ Mas é melhor considerar o homem como uma coisa incompleta e deixá-lo lentamente surgir, da afirmação à
afirmação e da ação à ação.” (GBA 22.2, S. 812).
89. Walter Benjamin: Bert Brecht, S. 662.
90. Heiner Müller:Einheit des Textes. In: H. M.: Werke. Bd. 5, S.192.
91. Por isso, ao invés de apresentação Brecht fala “exposição”. (GBA 24, 96)
92. Brecht: Zur Theorie des Lehrstücks, S. 164.
93. Compare: Theodor W. Adorno: Engagement. IN: Th. W. A.: Noten zur Literatur. Frankfurt a. M. 1981, S. 418-421.
94. Ralf Schnell / Florian Vassen: Ästhetische Erfahrung als Widerstandsform. Da interpretação gestual do fragmento “Fatzer”. In: Associales Thea-
ter. Spielversuche mit Lehrstücken und Anstiftung zur Praxis. Hg. von Gerd Koch / Reiner Steinweg / Florian Vassen. Köln: 1984, S. 170.

66
Acima de tudo, “em uma comunidade experimental” as percepções e atitudes são “desreguladas”
com base em certas regras. O resultado do processo lúdico permanece incerto e duvidoso, a potencialidade
é o ponto de partida, base e objetivo. Surge algo novo, algo estranho, algo incomum e também perturbador
e, portanto, um “sentido de possibilidade” social-estético. O espaço social da peça didática torna-se – pro-
nunciado por Heiner Müller – “ilhas de desordem”.95

8. A potencialidade do teatro de Brecht (pedagogia)

Dos “elementos artísticos e lúdicos da arte”,96 do estabelecimento de espaços de imaginação social,


por curiosidade, distância e estranheza surgem no teatro épico de Brecht – e mais ainda nas peças didáticas –
contradições e paradoxos. Estados paralisados podem, assim, ser postos em movimento, algo desconhecido,
incomum e perturbador pode surgir, uma atitude intermediária oferece a possibilidade de transformação.
O procedimento performativo do teatro, a atuação de atores profissionais, mas também dos atores não pro-
fissionais, a participação e a co-produção do público, especialmente nos próprios jogos sem audiência na
prática da peça didática, como Brecht praticou e refletiu, leva à potencialidade de novas experiências com
seus mundos próprios e estranhos.

Os experimentos pedagógicos teatrais de Brecht, seu conceito teatral ativo de aprendizagem, possi-
bilitam um tipo de pedagogia fundamentalmente diferente, na qual o teste comum de atitudes e a prática de
experiências estéticas estão em questão. No centro dos processos de aprendizagem teatral estão a autonomia
e a teimosia dos participantes na forma de autoeducação. Tanto a “arte do espectador”, quanto “arte de atu-
ar” de Brecht, seus experimentos e tentativas nos trabalhos práticos de teatro, bem como sua concepção da
peça didática tem um grande significado para o teatro atual e a pedagogia de teatro de hoje na Alemanha,
às vezes apenas implicitamente, sem estar sempre ciente dos atores e participantes. Pode-se aprender muito
com Brecht, pode-se usá-lo em todos os sentidos e até mesmo a crítica de seu teatro é útil para novos experi-
mentos. Portanto, não apenas o dito de Heiner Müller, “Usar Brecht sem criticá-lo, é traição”,97 mas também
a inversão: “Criticar Brecht sem usá-lo é traição”.98

95. Heiner Müller: “Estou interessado no caso Althusser...” In: H. M.: Werke, Bd. 8, S. 245.
96. Walter Benjamin: Gespräche mit Brecht. Svendborger NOtizen. In: W.B.: Versuche über Brecht. Frankfurt a. M., S. 126.
97. Heiner Müller Fatzer + Keuner.: Werke. Bd. 8, S. 231.
98. Kirsch, Sebastian: Brecht kritisieren ohne ihn su gebrauchen ist Verrat!In; Theater der Zeit H. 3 (2012), S. 61.

67
UTOPIA BRECHTIANA: PEDAGOGIAS
DO TEATRO EM PERSPECTIVA
Ingrid Dormien Koudela99

Q uando recebi o convite para a conferência no Sexto Congresso Internacional SESC de Arte/
Educação, encontrei o termo UTOPIA. Este termo é adjetivado em seu título como brechtiana. O que me
reporta à minha pesquisa sobre a Peça Didática de Bertolt Brecht.

Na busca de esclarecimento do conceito de UTOPIA, volto a um ensaio que escrevi em par-


ceria com meu Mestre Jacó Guinsburg, intitulado TEATRO DA UTOPIA: UTOPIA DO TEATRO?100
E vou proceder fazendo recortes nesse texto, iniciando com uma pergunta formulada por Friedrich Schiller
na segunda Carta sobre a Educação Estética da Humanidade:

Não haveria melhor uso para a liberdade que me concedeis do que levar vossa atenção ao palco da
arte? Não será extemporânea a procura de uma legislação para o mundo estético quando o moral tem interesse
tão mais próximo, quando o espirito da filosofia é solicitado urgentemente pelas questões do tempo, pela maior
de todas as obras de arte, a construção de uma verdadeira liberdade política?101

O investimento de Schiller é na força comunicativa e instrutiva, geradora de função de sentido e


função sociais, de solidariedade comunitária, que a arte desde sempre possui, no seu caráter público.

Encontro a citação de texto de Schiller na mesma carta:

A natureza foi agora substituída por uma engenhosa engrenagem cuja vida mecânica, em sua totali-
dade, é formada pela composição de infinitas partículas sem vida (...) o gozo foi separado do trabalho, o meio
da finalidade, o esforço da recompensa. Eternamente acorrentado a uma partícula do todo, o homem só pode
formar-se enquanto partícula; ouvindo eternamente o mesmo ruído monótono da roda que ele aciona, o ho-
mem não desenvolve a harmonia de seu ser e, em lugar de desdobrar a sua natureza, a humanidade tornou-se
mera cópia de suas ocupações e de sua ciência¨.102

99. Ingrid Dormien Koudela é uma das professoras pioneiras na área de teatro na educação, sendo iniciadora desta área de pesquisa na Universida-
de de São Paulo, a primeira instituição brasileira a oferecer programas de Mestrado e Doutorado específicos neste setor. Suas publicações incluem
JOGOS TEATRAIS, uma abordagem teórica realizada a partir das propostas de Viola Spolin; BRECHT: UM JOGO DE APRENDIZAGEM, uma
análise do teatro didático de Bertolt Brecht, através do qual explora suas relações com Piaget e Spolin e desenvolve a teoria de Brecht sobre a peça
didática; e TEXTO E JOGO que vai além de relato e analise de experiências e suas respectivas influências, apresentando o resultado de suas pesquisas
na forma de uma metodologia que incorpora fragmentos da dramaturgia brechtiana com princípios dos jogos teatrais.
100. GUINSBURG, J. e KOUDELA, I.D. Teatro da Utopia: Utopia do Teatro? In: UM VOO BRECHTIANO, SP: Ed. Perspectiva, 1992, pp. 22.
101. SCHILLER, F. Cartas sobre a Educação Estética da Humanidade, Trad. Roberto Schwarz, introdução e notas: Anatol Rosenfeld SP: Herder,
1963.
102. Idem, pp. 23.

68
Marx e Engels procuram desenterrar também na arte as raízes da antítese, cujas consequências
aparecem na crítica de Schiller e formam os filamentos com que este irá tecer a sua estética da superação. A
teoria marxista também busca uma solução reintegradora para a sociedade e para o impasse da alienação
artística. E vai encontrá-la na sociedade sem classes:

(...) em uma organização comunista da sociedade desaparece a inclusão do artista na limitação local
e nacional, que corresponde unicamente à divisão do trabalho (...) em uma sociedade comunista não haverá
pintores, mas homens que, entre outras coisas, também se dedicam a pintar (Teses de Feuerbach)103

É nesta sequência ou nesta moldura de ideias que se deve inscrever o pensamento de Brecht e a sua
proposta para a educação estética. O poeta retoma o debate de Platão e Rousseau sobre a função da arte e
do teatro na polis, bem como o de Schiller e Marx, realizando uma notável junção e um cruzamento entre
as propostas de ambos, que lhe são por certo congeniais, não obstante o peso preponderante do marxismo
no espirito de Brecht.

Em tempo algum, disse Brecht, ¨a sugestão de Schiller de transformar a educação política em uma
questão estética foi tão obviamente sem perspectiva¨.104

Mas nem por isso abandona este ponto de mira, precisamente naqueles anos. Ao contrário do ritual
comunitário de Rousseau, que busca sua inspiração no passado, pela recuperação do estado natural como
fator de integração entre os homens, no ritual político de Brecht, a utopia estética, presente em Schiller, é
projetada para o porvir, como a visão marxista propõe. Perguntado como seria o teatro do futuro, o drama-
turgo responde:

(...) sagrado, cerimonial, ritual (...) espectadores e atores não devem aproximar-se mas sim estranhar-se
de si mesmos, do contrário não ocorre o espanto, necessário ao reconhecimento.

O que diferencia o ritual político brechtiano é o princípio da linguagem gestual, a qual, ao incorpo-
rar o sensorial e o racional, pressupõe a experiência estética. Em lugar da comunhão coletiva para provocar a
catarse, Brecht pretende a descomunhão para obter mudança de comportamento. O componente metafisico,
ritualizado no teatro de Artaud, é substituído em Brecht pelos poderes sociais que passam a ser concretiza-
dos corporalmente.

Esta encenação estaria então condicionada à participação do espectador no ato artístico coletivo. O
princípio da identificação é substituído por Brecht por uma atuação que nasce das relações de jogo onde não
há mais separação entre palco e plateia.

A peça didática não pretende transmitir uma ideologia, mas promover um talento que não se refere
mais ao indivíduo mas a mudança das relações dos homens entre os homens. A ¨utopia concreta¨ (na expres-
são cunhada por Ernst Bloch) é um ensaio de aprendizagem de gestos e atitudes transformador da sociedade.

Nos últimos enunciados que formulou sobre a tipologia dramatúrgica da peça didática (1956) Bre-
cht escreve:

Esta designação vale apenas para as peças que ensinam aqueles que representam. Elas não necessitam
de público, embora ele possa ser utilizado.105

103. GUINSBURG, J. e KOUDELA, I.D. Um Voo Brechtiano SP: Ed. Perspectiva, 1992, pp. 26.
104. Idem, pp. 30.
105. Idem, pp.42.

69
***

Encontro ainda no subtítulo do tema dado pelo Congresso o termo Pedagogia do Teatro, que
deixa claro o lócus de minha fala:

Embora sacramentada através de um Léxico de Pedagogia do Teatro106 do qual participei como


organizadora em parceria com José Simões de Almeida e constando como linha de pesquisa no Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas da USP – Universidade de São Paulo, a questão O que é Pedagogia do
Teatro? é uma certeza que merece ser sempre posta em dúvida.

O que é Pedagogia do Teatro? A pedagogia é inerente ao teatro? Adjetivo ou substantivo? Peda-


gogia Teatral ou Pedagogia do Teatro? No singular ou no plural? Pedagogias do Teatro ou Pedagogia do
Teatro? Teatro ou Artes Cênicas? Linguagem ou área de conhecimento?

Uma definição única da Pedagogia do Teatro torna-se cada vez mais impossível. Uma descrição
precisa de seu estatuto profissional é inglória. A Pedagogia do Teatro ou Pedagogia das Artes Cênicas abar-
ca hoje tanto a ação cultural quanto o professor de atores em uma escola de teatro, bem como o professor
de teatro no ensino formal. No desamparo em que nos vemos assim todos colocados, convém examinar
as transformações por que passou no passado.

Na história do teatro moderno já encontramos as teorias da experiência que podem ser indicado-
ras e iluminar a Pedagogia das Artes Cênicas contemporânea.

O conceito expandido de teatro pode ser encontrado nos Estados Unidos, desde a sua origem em
Robert Wilson, por exemplo.

Investigações didáticas nasceram notadamente na Europa Central com Jacob Levy Moreno; Ber-
tolt Brecht; Peter Slade; Rudolf Laban, a Bauhaus e Carl Orff, entre outros. O caráter performativo do jogo
teatral de Viola Spolin, revolucionou o teatro norte-americano, na teoria e na sua prática pedagógica e
artística, abrindo campos expandidos tanto na educação como no teatro improvisacional.

Na contemporaneidade as consequências são visíveis: o teatro, a dança, a música e as artes visuais


desdobraram seus horizontes libertando-se de seu lugar tradicional e ocupando novos espaços. Eles rom-
peram com limites temporais e espaciais, inclusive interdisciplinares.

Torna-se visível que a Pedagogia do Teatro já conhecia e praticava procedimentos descritos como
contemporâneos em sua origem moderna. Ouso afirmar que o teatro na educação modificou a estética
do teatro não apenas através de sua ligação com a prática sociocultural mas principalmente em função de
conceitos, métodos e procedimentos legitimados pelos autores modernos.

***

Definidos estes conceitos, voltemos agora à utopia brechtiana!

Em um texto denominado Observação da Arte e Arte da Observação, Brecht reflete sobre o pro-
cesso de fruição estético afirmando que assim como é verdade que em todo homem existe um artista, que o
homem é o mais artista dentre todos os animais, também é certo que essa inclinação pode ser desenvolvida
ou perecer. Subjaz à arte um saber conquistado através do trabalho.107

106. ALMEIDA JUNIOR, J.S. Léxico de Pedagogia do Teatro. SP: Ed. Perspectiva e SP- Escola de Teatro, 2015.
107. BRECHT, B. revista A PARTE

70
Ao buscar uma tradução para o inglês do termo alemão Lehrstück (peça didática), Brecht esta-
belece sua diferença com a peça épica de espetáculo (Episches Schaustück), apontando para uma nova
concepção de pedagogia e de teatro:

(...) o equivalente inglês mais próximo que encontro é peça de aprendizagem... que muitas vezes não
necessitava do palco no sentido tradicional. Em outro momento pontua: se não quiserem chamar de teatro,
chamem de taetro!108

A peça didática soluciona o problema da ligação entre a prática do teatro e a prática de seu público,
ao incorporar o espectador no processo teatral, permitindo-lhe penetrar nas ações que se desenrolam sobre
o palco, até o ponto em que ele por fim quase se desvanece como espectador. Ao mesmo tempo, desaparece
também desse contexto de produção e aprendizado o ator profissional.

A encenação transforma-se em um processo entre autor e público – ela se liberta do quadro insti-
tucional do teatro. A peça didática é – quando vista a partir da perspectiva teatral – uma solução extrema.

A discussão já não gira mais em torno da negação de um aprendizado tradicional ou de métodos


de ensino. Os autores modernos articularam antididaticas (todas elas!) que merecem ser revisitadas pela
pedagogia pós-moderna, ao abrirem picadas, aparentemente conhecidas, como cartógrafos inspecionando
um campo minado.

As correspondências encontradas entre teatro e pedagogia transformam o theatron – o seu lugar no


espaço e no tempo!

A pesquisa em torno da Peça Didática de Brecht lança perguntas:

QUEM é o nosso aluno?

É a criança.

É o doutorando e mestrando que realiza pesquisas acadêmicas;

É o professor em cursos de formação;

É o professor da escola pública brasileira por todo o país;

É o artista e o pesquisador que trabalha em grupos de teatro;

É o jovem a quem a peça didática se dirige:

Os subtítulos da tipologia dramatúrgica criada por Brecht são significativos:

A Exceção e a Regra e A Decisão são Peças Didáticas.

Horácios e Curiácios. Peça sobre Dialética para rapazes e moças;

Aquele Que diz sim/Aquele que diz não. Ópera Escolar;

Um Voo sobre o Oceano. Peça Didática Radiofônica.

108. IDEM Revista a Parte

71
É com eles que nós trabalhamos, seja fazendo teatro, seja no oficio artístico- pedagógico. Busco
delimitar minha tarefa. E começo pelo inicio: a criança.

Bertolt Brecht aborda o princípio da transformação simbólica da experiência na criança através de


um dos mais belos textos das Histórias do Sr. Keuner :

O SENHOR KEUNER E O DESENHO DE SUA SOBRINHA

O Senhor. Keuner observou o desenho da sua sobrinha pequena. Representava uma galinha voando
sobre um pátio. Por que a sua galinha tem três pernas? perguntou ele. As galinhas não voam, respondeu a
pequena artista, por isso precisei de mais uma perna para dar o impulso. Estou contente por ter perguntado¨,
disse o Senhor Keuner.109

Na conferencia pronunciada por Brecht na década de vinte, na Suécia com o titulo Vale a Pena Fa-
lar de Teatro Amador?110 fica clara a consciência que tinha não apenas relativa à origem do jogo teatral na
psicogênese como também de seu significado social como linguagem simbólica do homem comum em seu
cotidiano.

Tudo aquilo que contribui para a formação do caráter realiza-se, de acordo com Brecht, na primeira
fase da infância, sendo que a imitação aí exerce um papel fundamental. O jogo teatral, na visão brechtiana,
é um comportamento natural ao ser humano, sendo que o desenvolvimento artístico do teatro como espe-
táculo é uma marca dentro de um continuum que segue da criança até o artista adulto.

O jogo teatral encontra-se presente também no teatro amador, tão apreciado por Brecht. E o que é
ainda mais importante, no cotidiano, quando homens imitam outros homens ou representam um evento
com caráter de demonstração na vida corrente. A partir dessa premissa, a arte do teatro é a mais humana e a
mais singela de todas as artes sendo realizada não apenas no palco, mas também no dia a dia. De acordo com
Brecht, a arte do teatro de um povo ou de uma época deve ser julgada como um todo, como um organismo
vivo, que não é saudável se não for saudável em todos os seus membros. O alerta chama atenção para o te-
atro realizado com crianças ou jovens e esta também é a razão pela qual vale a pena falar de teatro amador.

Vejamos o princípio, na dicção brechtiana:

SOBRE UM DESENHO JAPONES QUE REPRESENTA UM TEATRO DE


BONECOS ONDE CRIANÇAS SE APRESENTAM DIANTE DE CRIANÇAS

Ai!

Brincando em cima de mesas

Crianças mostram o que viram

Como o homem se comporta perante

O homem

109. BRECHT, B. Gesammelte Werke, Tradução: KOUDELA, I.D Frankfurt: Suhrkamp, 1967 vol. 12, pp.400.
110. BRECHT, B. Gesammelte Werke, Tradução: KOUDELA, I.D. Frankfurt: Suhrkamp, 1967 Vol. 15, pp.433.

72
Sendo lobo do homem
Ali,
Um deles se ajoelhou diante do outro

Quatro se esforçavam em mostrar o que viram


Apenas dois permaneceram
Os outros dois correram
Cheios de medo

Logo mais os infelizes jogadores terão perdido também o seu direito de cidadania.111

Aqui Brecht observa um desenho oriental, o que cria distancia do evento real. O poeta se posiciona
axiologicamente frente à própria vida, sendo que a valoração ultrapassa o limite do apenas vivido. Ele se
distancia de seu contexto histórico e o olha de fora, torna-se outro em relação ao seu tempo. Ele não apenas
registra passivamente os acontecimentos terríveis.

O poeta que faz recortes provoca um processo de compreensão que é dialógico, pois é sempre um
reflexo do reflexo que nos reporta ao contexto histórico em que viveu Brecht, mas também pode nos repor-
tar ao presente de nosso contexto histórico.

De há muito as pinturas de Peter Brughel, o Velho (Brughel, 1525-1569) vem me acompanhando.


Inicialmente o que buscava era a cidade medieval com suas praças, seus folguedos, seus jogos, suas brin-
cadeiras. A pintura Children´s Plays112 (Jogos Infantis datada de 1557) foi utilizado por mim de forma re-
corrente como modelo de ação para a construção do repertório desta cultura oral com professores e alunos.

111. BRECHT, B. Gesammelte Werke 9 Tradução: KOUDELA, I.D. Frankfurt: Suhrkamp, 1967, pp. 543.
112. BRUGHEL, P. Children`s Plays, Brincadeiras de Crianças (1563-1567).

73
Na construção do espetáculo teatral NÓS AINDA BRINCAMOS COMO VOCES BRINCAVAM?113
a leitura da pintura de Brughel foi o ponto de partida para a pesquisa da cultura oral de jogos populares brasi-
leiros. O repertório de jogos de rua inventariado pelo artista através da imagem da praça medieval foi encenado,
sendo que as regras de jogo e os versos e músicas dos jogos tradicionais constituíram-se em texto espetacular.

Os atuantes identificaram jogos que resgatavam de sua infância. Ao mesmo tempo em que este
resgate apontava para um passado nem tão distante, a imagem da praça medieval na pintura de Brughel nos
permitia tomar distancia histórica.

113. KOUDELA, I.D. Nós ainda brincamos como vocês brincavam? Encenação UNISO – Universidade de Sorocaba, 2006.

74
Quem eram aqueles brincantes? Como estavam vestidos? Por que tinham aquela expressão
fisionômica? Eram adultos ou crianças? As crianças hoje ainda conhecem estes jogos? O que mudou? Como
era a sua rua? Quem eram seus parceiros? As crianças hoje ainda conhecem estes jogos?

A pintura de Brughel nos permitiu tomar consciência do tempo, historicizando assim a obra. Os
jogos, as brincadeiras, as crianças nem sempre foram as mesmas e nem sempre o serão!

O que mais me mobilizou nesta encenação - descoberta no processo da leitura da imagem - foi a
aplicabilidade do conceito de historicização a esta e outras pinturas de Brughel.

Nas inúmeras tentativas de conceituação do estranhamento por Brecht, identificamos dois passos.
Um primeiro, que se aproxima daquela do formalismo russo, como segue:

Estranhar um processo ou caráter significa inicialmente retirar desse processo ou caráter


aquilo que é evidente, conhecido, manifesto, e provocar espanto e curiosidade diante dele114

Um segundo passo, mais específico em Brecht, se diferencia pelo fato de chamar a atenção para
processos sociais. Em oposição a outras tendências artísticas, ele busca meios que visam mostrar as relações
dos homens entre os homens, sendo que justamente aquilo que é cotidiano, usual, deve ser tratado como
histórico.

... estranhar significa, pois, historicizar, representar processos e pessoas como históri-
cos, portanto transitórios. O mesmo pode acontecer com contemporâneos. Também
as suas atitudes podem ser representadas como temporais, históricas, transitórias115

Peter Brughel (1563 – 1567) foi para Brecht um mestre. Ele anota em seu Diário de Trabalho em
18.12.1948:

Costumo acordar às 5:30 horas. Então preparo café ou chá, leio um pouco de Lukács
ou Goethe (o ¨colecionador¨). Quando levanto, olho para uma grande pintura im-
pressa da dança de camponeses de Brughel na parede... e então sento-me à mesa
para trabalhar.116

114. BRECHT, B. Gesammelte Werke 15, Tradução: KOUDELA, I.D., Frankfurt: Suhrkamp, 1967, pp.302.
115. Idem
116. BRECHT, B. Grosse Brecht Ausgabe 27, Tradução: KOUDELA, I.D. Frankfurt: Suhrkamp, 1994, pp.292.

75
Na casa onde morou em Berlim, durante a visita, chama-se a atenção para o fato de que Brecht
carregou seus dois volumes de reproduções de Brughel por todos os lugares durante o seu exilio da Alema-
nha. No dia 8.12.1939 inventariou em seu jornal de trabalho os seus pertences, entre outros: ¨2 volumes de
quadros de Brughel¨.

Nas observações que escreve sobre O Efeito de Estranhamento nas Pinturas Narrativas de Peter Bru-
ghel, o Velho tal efeito modelar sobre a sua própria obra se evidencia:

Se investigarmos os fundamentos dos contrastes pictóricos de Brughel, nos apercebemos que


apresentam contradições.

Mesmo quando equilibra seus opostos, Brughel não os equipara uns aos outros. Não existe nessas
imagens uma separação entre o trágico e o cômico. O trágico contém o cômico e o cômico, o trágico.117

Interessa a Brecht a contradição, o jogo de oposições, a superação da divisão dos gêneros e, sem
dúvida, a historicização provocada por estas colisões – o tempo em suspenso!

O que seria narrativo nas pinturas de Brughel?

E qual a função da narrativa no exercício de leitura da imagem?

A etapa da descrição é um dos momentos mais sutis e produtivos na leitura de imagens. A verbaliza-
ção daquilo que é visualizado faz com que a percepção de formas e conteúdos seja trazida para a consciência.

Nas pinturas de Brughel o método narrativo é exercitado no próprio ato da percepção da obra, na
medida em que ele combina o princípio da perspectiva com a decifração sequencial das inúmeras informa-
ções que suas pinturas aportam. Este exercício pode ser instaurado de forma programática com grupos de
crianças, jovens e adultos.

A colisão instantânea de tempos heterogêneos, possibilita a revisão crítica do presente à luz do


passado:

Na didática simbólico-diabólica de Peter Brughel, Brecht encontra um modelo aparentemente pa-


radoxal no qual o político não é mimese, mas sim interrupção do político. Vejamos o comentário de Brecht
sobre a obra A Queda de Ícaro118

117. Idem, GW 18, pp. 280, 1967.


118. BRUGHEL, P. A Queda de Icaro, Royal Museum of Fine Arts of Belgium.

76
A pequena dimensão deste acontecimento lendário (é necessário procurar o acidenta-
do). Os personagens se afastam do acontecimento. Bela representação da atenção que
envolve o arar. O homem que está pescando à direita em frente tem uma relação espe-
cial com a água. O sol já no poente, que a muitos causou admiração, deve significar que
a queda demorou muito tempo. De que outra forma representar que Ícaro voou alto de-
mais? Já não se vê Dédalo há muito. Contemporâneos flamengos em uma paisagem su-
lina antiga. Beleza e alegria especial na paisagem durante o acontecimento terrível119

A própria obra executa a interrupção de si mesmo, obrigando o olhar do fruidor a construir a sua
visão e interpretação, transformando a contemplação em atitude participativa. A imagem não se impõe em
seu contexto dramático, provocando identificação. Ao contrário a forma narrativa exige decodificação dos
vários elementos cujo caráter paradoxal leva ao espanto. Brecht pretende que seu teatro execute a interrup-
ção de si mesmo como espetáculo. O teatro pode criar situações nas quais a inocência do espectador seja
perturbada, colocada em questão. Trata-se de um trabalho (político) através do qual a estética do teatro
ilumina as implicações do espectador, sua responsabilidade latente.

Brughel residia em Bruxelas quando, em agosto de 1567, o duque de Alba chegou à frente das suas
tropas. Era enviado pelo rei de Espanha, Felipe II, cujo império compreendia também as províncias dos
Países Baixos. O comandante, encarregado de converter os protestantes pela força, condenou à morte vá-
rios milhares de pessoas durante os anos que se seguiram. Esta excepcional dureza levou à revolta e depois
à guerra que viria a durar oitenta anos e terminar com a divisão das províncias em dois blocos: a (futura)
Bélgica católica ao sul e os Países Baixos protestantes, ao norte.

Outrora não era habitual transferir os acontecimentos bíblicos para a sua própria época, mas por vezes
os motivos religiosos revestiam-se de atualidade política. Segundo a Bíblia, o rei Herodes ordenou a matança de
todos os recém-nascidos do sexo masculino, em Belém. Brughel transpõe a cena para uma paisagem flamenga.
Um grupo de cavaleiros de armadura vigia o massacre. As lanças agarradas na vertical eram uma das caracterís-
ticas das tropas espanholas. O seu chefe, vestido de negro, é provavelmente uma alusão ao duque de Alba.120

Antuérpia tornou-se uma cidade –cogumelo. O homem do século XVI vivia em comunidade, numa
pequena paróquia a que dava a volta em pouco tempo. O número de habitantes permanecia estável e toda

119. BRECHT, B. GW vol. 18 Tradução: KOUDELA, I.D. pp.281.


120. BRUGHEL, P. A Matança dos Inocentes (1566)

77
a gente se conhecia. De 1500 a 1569 a população de Antuérpia aumentou quase o dobro. A cidade contava
quase um milhar de estrangeiros que falavam outra língua e tinham costumes diferentes. Os comerciantes
estrangeiros, os novos grupos religiosos e o rápido progresso da cidade desorientaram os habitantes. O
episódio bíblico que relata a construção da Torre de Babel era considerado a própria imagem desta situa-
ção: a torre tinha de chegar ao céu o que desagradou a Deus. Ele retirou aos homens a linguagem comum,
impedindo-os assim de terminar a obra. A pintura A Torre de Babel de Brughel introduz no episódio bíblico
várias referências à realidade de seu tempo, entre outras o panorama da cidade.

Bertolt Brecht viveu duas Guerras Mundiais na Europa.

Heiner Müller (1929 – 1995), nosso contemporâneo, escreveu uma autobiografia cujo título é signi-
ficativo: Guerra sem Batalha. Uma Vida entre Duas Ditaduras121. Cassandra viveu a guerra de Tróia.

Nós vivemos uma crise e/ou uma guerra? A História do Brasil é cruel ao confrontar-nos com nossos
fantasmas. Eles vêm do passado mas também projetam nosso futuro. Talvez o princípio esperança esteja na
consciência histórica, única forma de libertação.

121. MÜLLER, Heiner Guerra sem Batalha. Uma Vida entre Duas Ditaduras. Tradução: Karola Zimber, SP: Estação Liberdade, 1997.

78
Reencontramos a utopia na forma de narrativas míticas. Trago um exemplo que tem sua origem na
antiguidade. Ali, o pássaro de fogo era associado ao deus do sol e venerado como símbolo do sol nascente.
Sua plumagem dourada avermelhada só era vista raramente. Quando voltava de suas excursões pousava no
templo do deus do sol. Ao nascer do sol incendiava-se no fogo da aurora para finalmente renascer rejuve-
nescido e partir voando. Os gregos batizaram esse pássaro de Fênix. Sua aparição demora às vezes, segundo
o mito, 500 anos.

Gostaria de concluir minha fala com a narrativa poética Fênix, de Heiner Müller122 que reporta ao
tempo da história, alargando o horizonte da percepção, libertando-nos do eterno presente:

Fênix chama-se o pássaro que a cada quinhentos anos incendeia a si mesmo e renasce das
próprias cinzas. Às vezes seus quinhentos anos duram apenas uma noite: ele voa à noite
para o sol e inicia pela manhã o seu retorno para a terra INCENDIADO, MAS NÃO CON-
SUMIDO, chamas na plumagem. Às vezes sua noite dura 500 anos. O fogo consome apenas
as escórias com as quais o trabalho humano o entulha: modas mídia indústrias e o veneno
dos cadáveres das guerras molesta o seu manto de plumas. Seu segredo é a chama eterna
que arde em seu coração. Ele não esquece os mortos e aquece os que ainda não nasceram.123

122. MÜLLER, H. Phönix, in Heinermüllermaterial Tradução: KOUDELA, I.D. Leipzig: Reclam, 1990, pp.109
123. NOTA: Publicações recentes atestam a contemporaneidade da Peça Didática entre nós:
CONCILIO, V. Baden Baden. Modelo de Ação e Encenação no Processo com a Peça Didática Jundiaí: Paco Editorial, 2016
GAMA, J. Alegoria em Jogo. A Encenação como Prática Pedagógica SP: Perspectiva,2016.
KOUDELA, I.D. Brecht: um jogo de aprendizagem, S.P: Ed. Perspectiva, 2010, 2ª. Edição.
---------------------------------Texto e Jogo, SP: Ed. Perspectiva, 1999, 2ª edição.
------------------------------- Um Voo Brechtiano, SP: Ed. Perspectiva,1992.
----------------------------------Brecht na Pós-Modernidade, SP: Ed. Perspectiva, 2012, 2ª Edição.
----------------------------------Heiner Müller. O Espanto no Teatro, SP: Ed. Perspectiva, 2003).
TEIXEIRA, F. Prazer e Critica. O conceito de Diversão no Teatro de Bertolt Brecht SP: Annablume, 2003;

79
O MATERIAL FATZER, DE BRECHT:
DRAMATURGIA EM JOGO E UTOPIA
Francimara Nogueira Teixeira

FATZER: Aqui tem carne?


MULHER: Cem gramas por dia, por pessoa.
FATZER: A senhora vai me dar quatro vezes isso.
MULHER: Você é o mesmo que quatro homens?
FATZER: A prática está acima da teoria.
Bertolt Brecht 

E m 2013 defendi uma pesquisa de Doutorado que se centrava na articulação produtiva e re-
flexiva entre a teoria e a prática. Meu objeto era o Fatzer, material inacabado, escrito por Brecht entre 1926
e 1930. Meu objeto era o Fatzer como modelo de ação. Desta obra inacabada, explorei experimentalmente
a qualidade de texto-modelo a partir da teoria da peça didática, elegendo como instrumentos didáticos e
metodológicos o modelo de ação (Handlungsmuster) e o estranhamento (Verfremdung), na perspectiva de
explorar estratégias narrativas com o grupo cearense Teatro Máquina, do qual faço parte. 

Posso sintetizar com essa pergunta o problema que movia a minha investigação: é possível descobrir
novas formas de narrar através da construção ficcional da experiência?  O que eu queria defender, e que
acredito ainda ser um desdobramento importante da minha abordagem, é que o Fatzer se afirma como um
modelo para a investigação contemporânea de novas formas de narrar. Esse material me permitiu desen-
volver essa hipótese pelas seguintes razões: 1. pela forma literária do fragmento; 2. por ter sido produzido
no período em que Brecht desenvolveu o projeto da peça didática; 3. por sua qualidade de texto-aberto que
indica a apropriação e a reestruturação como possíveis procedimentos criativos. O caminho que escolhi
para descobrir e criar estratégias narrativas foi o de explorar o texto como texto-modelo, elegendo como
instrumentos didáticos e metodológicos o modelo de ação e o estranhamento. Defendo que a produção de
novas estruturas narrativas está imediatamente relacionada à descoberta e criação de jogos para a cena e,
para tanto, abordei o Fatzer a partir do conceito de modelo de ação, desenvolvendo com os atores do Teatro
Máquina diversos jogos para a cena.

Bertolt Brecht escreveu textos dramáticos e refletiu sobre os aspectos teóricos e práticos do seu te-
atro de forma profícua e intermitente por mais de trinta anos. Sua produção teórica se revela fundamental
para o pensamento teatral, porque se dá concomitantemente ao desenvolvimento de sua prática e à des-
coberta de novas formas. Brecht é um desses artistas que consegue fazer confluir o pensamento sobre seu
momento histórico com uma produção literária consegue fazer confluir o pensamento sobre seu momento

80
histórico com uma produção literária que se configura como ato artístico. Tal confluência projeta sua obra
para o futuro. A análise do seu processo criativo precisa considerar essa relação de confluência, em um tra-
balho que tem uma inscrição histórica específica.

Na minha pesquisa interessava uma abordagem do projeto brechtiano que o considerasse em sua
totalidade, de forma ampliada e reflexiva, em suas contradições internas e em sua autocrítica. Fredric Jame-
son (1999) escreveu um livro chamado O método Brecht. Nele trata de construir a defesa de que o trabalho
brechtiano acontece através do desenvolvimento dinâmico de sua dramaturgia, de seus escritos teóricos e
da sua atitude política. O desafiador diante da obra de Brecht, segundo Jameson (1999), é investigar o que
Brecht quis representar e os meios que escolheu para fazê-lo. Os conceitos e as técnicas que se associam a
esse teatro são conformados dentro deste mesmo teatro, lhe dão corpo e método. 

Compreendo a escrita teórica de Brecht (2005), assim como sua dramaturgia, em um fluxo que
não conhece interrupções, mas sim desvios, deslocamentos e superação. Brecht está interessado em pensar
novas formas para os novos temas e experimenta de maneira inquieta o modelo ópera, o modelo parábola,
o modelo tragédia. Escreve “ao modo de”, fazendo da sua escrita um campo para que as formas narrativas e
dramáticas possam ser testadas e refletidas, discutindo, afinal, o próprio teatro.

Um desses modos é a peça didática – o Lehrstück  –, como também é encontrado o termo em parte
da literatura revisada. Os textos foram escritos no período do entre-guerras, fortemente marcado por uma
instabilidade econômica e política brutais. Sobre esse período da produção brechtiana, Heiner Müller (1997,
p.166) diz: “A etapa mais importante de sua obra é para mim o período do fim dos anos vinte até 1933”. O
Fatzer, bem inserido aí, expressa esse contexto histórico de forma visceral.

As peças didáticas formam um conjunto específico dentro da escrita de Brecht. É possível, pelo
seu caráter e unidade, distingui-las dos demais textos, chamados de peças épicas de espetáculo (episches
Schaustück). Nas peças épicas de espetáculo se concentra a maior e mais conhecida produção dramatúrgica
brechtiana, pelo volume de textos e pela quantidade de encenações. Como não prevêem necessariamente a
encenação, as peças didáticas indicam outra relação entre texto e representação.

Os textos da tipologia dramatúrgica das peças didáticas se inscrevem em um lugar determinado no


teatro de Brecht e se caracterizam como uma etapa criativa bastante radical de seu trabalho, ao reunirem
a experimentação prática dos textos como modelo de ação com a discussão teórica do papel do teatro e de
seus principais elementos. Brecht, quando escreveu essas peças, estava interessado em intervir diretamente
no seu público, em experimentar uma dramaturgia que promovesse a discussão e a reflexão. A produção
dramatúrgica e ensaística de Brecht, que condensa o projeto do Lehrstück, está diretamente relacionada a
dois fatores importantes: à sua experiência com as óperas e ao experimento sociológico do Processo dos Três
Vinténs. As óperas e o experimento sociológico são estratégias político-estéticas que Brecht desenvolve em
paralelo à produção das peças didáticas. Ingrid Koudela (2009, p.XVI) descreve a importância desse proces-
so no contexto de produção dessas peças:

A peça didática, na obra de Brecht, nasce do conflito legal com a versão filmada da Ópera
de Três Vinténs, quando o dramaturgo sentiu a necessidade de produzir arte distante da
indústria cultural. O embate, iniciado nos tribunais de justiça, como um experimento
para revelar a ideologia da industria cinematográfica, gerou o Lehrstück ou learning play
(jogo de aprendizagem), como Brecht traduziu o termo para o inglês. 

Brecht (2005), ao final dos seus apontamentos sobre a ópera Ascensão e queda da cidade de Maha-
gonny, afirma que nas obras seguintes a essa ópera procuraria acentuar cada vez mais o aspecto didático.
Procuraria, portanto, “[...] transformar os fatores de prazer em fatores de ensinamento e transformar deter-

81
minadas instituições de estâncias de recreio em órgãos de instrução.” (BRECHT, 2005, p.38) É a partir das
óperas que Brecht define a idéia de que o teatro deveria passar por uma troca de função (Funktionswechsel),
deveria ser, portanto, refuncionalizado. 

O projeto utópico de Brecht (1967b) com as peças didáticas esperava poder promover o ponto de
vista do produtor, para que o artista fosse esclarecido quanto à apropriação social dos aparatos. O artista pre-
cisava se compreender como produtor. Sem essa compreensão era impossível qualquer transformação social
e estética importante. O projeto teórico da peça didática discute uma distinção entre Pequena Pedagogia e
Grande Pedagogia, como campo de exercício do teatro na transformação da sociedade capitalista. As peças
didáticas, na fase chamada de Pequena Pedagogia, ainda seriam experimentadas na separação palco-platéia,
com a ressalva do trabalho necessário com amadores, que deveriam permanecer amadores. Na Grande
Pedagogia a separação entre atuantes e espectadores seria superada. O teatro estaria a serviço de uma nova
sociedade sem classes. Aqui é possível antever um novo modelo para o teatro épico e uma reformulação
profunda na compreensão do fazer teatral, já que a radicalidade da sua teoria propõe inclusive a supressão
de um dos pólos fundamentais do espetáculo: o espectador. 

O ator, o espectador, o texto, o teatro como lugar físico, todos esses elementos que compõem for-
malmente o teatro passariam, diante da experimentação com as peças didáticas, por uma completa troca de
função, aqui ainda mais incisiva do que a realizada com a proposta das óperas como peças épicas de espe-
táculo. Nesse teatro, as acepções tradicionais de ator e espectador desapareceriam, já que o espaço do teatro
seria, fundamentalmente, o espaço do conhecimento. Os textos dos Lehrstücke, em seu caráter formal, com-
preendidos a partir do conceito de modelo de ação, são essencialmente abertos para o jogo e a atualização. O
conceito de modelo de ação (Handlungsmuster) implica em uma atitude diante do texto, em abordá-lo como
um material poético sobre o qual uma ação se dará. As peças didáticas são peças abertas ao jogo. 

O Lehrstück surge como crítica de Brecht (1967) às instituições teatrais estabelecidas, com artistas
e público alienados. O projeto de Brecht, que Heiner Müller (2003) chama de iluminista, é um projeto que
acredita que o teatro – uma vez refuncionalizado – pode se afirmar na luta pelo esclarecimento dos meios
de produção e como exercício real pela experiência de controle desses meios.

Entre 1929 e 1930 Brecht escreve a maioria das peças didáticas, as que nomeia assim em seu título
ou subtítulo: O vôo sobre o oceano (peça didática radiofônica para rapazes e moças), A peça didática de
Baden-Baden sobre o acordo, Aquele que diz sim e Aquele que diz não (óperas escolares), Os Horácios e os
Curiácios (peça escolar), A decisão (peça didática), A exceção e a regra (peça didática). Fatzer e o Malvado
Baal, o associal são fragmentos. Nesses textos, encontram-se elementos comuns à escrita dessa tipologia
dramática, além dos tipos associais e dos eixos temáticos recorrentes como a questão da ajuda e do acordo,
o que vem a ser o homem, as tensões indivíduo versus coletivo. 

Tal panorama permite perceber que em cerca de dez anos Brecht se dedica a escrever textos em um
formato que, mesmo tendo uma aplicação imediata no contexto do teatro de agit-prop, dos corais de operá-
rios e das escolas, define – no que concerne à dimensão dramatúrgica – uma outra forma de escrever, porque
é um formato extremamente ligado à urgência dos novos temas. 

Desde as óperas, portanto, o projeto das peças didáticas foi sendo desenvolvido por Brecht na ten-
são entre forma e conteúdo. Nas Notas sobre Mahagonny, Brecht defendia que os conteúdos deviam ser
atualizados, embora o modelo ópera ainda devesse permanecer sendo oferecido como uma iguaria ao pú-
blico. Brecht acreditava que a atualização do conteúdo operaria uma discussão com os princípios formais
fundamentais da ópera. A função da ópera, portanto, seria posta em discussão. O exercício com o modelo,
a escritura de uma ópera, nesse caso, se dá como etapa necessária a essa tarefa: a de discutir o modelo,
experimentando-o. Brecht (2005, p.28) é enfático: “[...] mesmo que quiséssemos pôr em discussão a ópera
como tal (função da ópera), ser-nos-ia forçoso fazer uma ópera.” 

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O teatro épico inventou um instrumento dramático que fomentava a investigação da significação
social do seu texto, oferecendo-a a seu público como uma questão a ser resolvida. Esse teatro, como um a
priori, não estava interessado em oferecer uma vivência artística coletiva, em provocar as mesmas reações
em seu público, mas antes em dividi-lo, em fazê-lo estranhar a ação, o texto e a si mesmo. O principal de-
safio, me parece, é compreender e poder expressar determinada forma em confluência com o conteúdo
exposto para ser examinado. 

O conceito de estranhamento (Verfremdung) é um conceito-chave para o entendimento das múl-


tiplas relações entre texto, ator e espectador na poética brechtiana. No trabalho com a peça didática é um
instrumento metodológico e crítico para a experimentação do texto a partir do conceito de modelo de ação.
O estranhamento é um dos meios artísticos que o teatro épico dispõe para distanciar o espectador dos acon-
tecimentos representados. Seu emprego é condição indispensável para que não se estabeleça entre palco e
platéia nenhuma espécie de magia, de campo hipnótico:

Distanciar é cortar o circuito entre o ator e seu próprio pathos, mas é também e
essencialmente restabelecer um novo circuito entre o papel e o argumento; é, para
o ator, significar a peça, e não mais a si mesmo na peça. [...] O distanciamento não
é uma forma (e é precisamente o que fazem dele todos os que querem desacreditá-
-lo); é a relação de uma forma com um conteúdo. Para distanciar é necessário um
ponto de apoio: o sentido. (BARTHES, 2007, p. 240-241). 

 
Diante do uso do estranhamento, o ator deve, sem renunciar completamente à identificação, antes
apresentar do que representar um comportamento a seu público; deve oferecer uma forma acabada dos acon-
tecimentos, dando-lhes o caráter de coisa mostrada. Assim o ator pode expor uma opinião sobre os aconteci-
mentos relacionados ao personagem e convidar o espectador a também desenvolver um olhar crítico. 

Acredito que através da experimentação com os textos das peças didáticas é possível encontrar
elementos para a discussão intelectual sobre o lugar do teatro na contemporaneidade, permitindo também
refletir, dialeticamente, sobre a pertinência dessa dramaturgia. A característica fundamental de serem textos
abertos para o jogo apresenta a relação forma/conteúdo de maneira bastante instigante, já que o exercício
com as peças didáticas tem revelado que o tratamento dos seus temas recorrentes está previsto na proposta
dramatúrgica: esquemática e aberta, operando uma reorganização das técnicas teatrais.

Hans-Thies Lehmann (2009) vê a peça didática como um modo de escritura política, porque está
comprometida com o teatro como lugar de revisão de si mesmo. A atualidade dessa tipologia dramatúrgica
está inscrita em sua própria forma: árida, simples, popular, irônica e aberta. Perscrutá-la contemporanea-
mente é uma tarefa que os artistas deveriam encarar como política, pelo compromisso com o teatro. 

O modelo de peça didática dentro da linha principal da pesquisa de Brecht é menosprezado


como caminho errado, um modelo de como o teatro pode ser político, enquanto quebra a
sua forma institucionalizada. Entre didática-épica e a arte de acontecer, o modelo da peça
didática pode ser uma provocação do exercício de teatro, comunicação e sociedade, porque
ele abre a fábula radicalmente ao decurso do processo teatral e, justamente em virtude da sua
abstração, permite uma real colaboração, não apenas como ficção do tipo “vamos público,
procurem vocês mesmo o final”. No contexto desta imprevisibilidade, a língua corporal do
teatro e o gestual social, ganham novos significados. (LEHMANN, 2009, p.228).  

A temática recorrente a essas peças e de tratamento explicitamente aberto sobre questões como o
estar de acordo e a ajuda, indicam que, nessa tipologia dramatúrgica, a cena, como afirma Lehmann (2007),

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é origem e ponto de partida de um pensar teatral que faz da forma seu conteúdo. Os textos como modelo de
ação operam uma decomposição do diálogo, dando ao gesto um lugar de destaque e uma responsabilidade
ainda maior de condensar em si a consciência da representação. 

Tomar a peça didática, sua teoria e sua prática, como orientação metodológica para o tratamento do
Material Fatzer com o Teatro Máquina foi uma forma de alinhar diferentes pontos de partida em uma inves-
tigação interessada na descoberta de jogos para a cena. O material de base para a prática nessa pesquisa se
encontra em fragmentos. O Fatzer é um projeto inacabado, mas que reúne em si a força do fragmento como
forma literária. Acredito que o projeto pode ser recuperado e experimentado a partir dessa qualidade. Essa
sobreposição de referências, em procedimentos de fusão e de separação, está na base da produção contem-
porânea em artes. (LEHMANN, 2007; PAVIS, 2010; PICON-VALLIN, 2006; 2008). 

A proposta metodológica de tratamento da dramaturgia como modelo de ação ganhou enfoque


pedagógico, naturalmente, pelo caráter de aprendizagem que o jogo entre os participantes promove, sem a
necessidade de apresentação pública. O espaço do jogo é o espaço de representação. Defendo, contudo, que
essa prática, pela sua qualidade processual e de descoberta criativa, devesse promover prioritariamente uma
experiência estética entre os participantes, a ser examinada tanto na perspectiva do jogo, como da cena.  

O jogo com o texto e com os elementos épico-narrativos, como a repetição; a fragmentação; a repre-
sentação como um ato de mostrar, já experimentados com o Teatro Máquina em outros processos criativos,
apontavam recursos metodológicos para criação de jogos para a cena, a partir dos experimentos com a peça
didática, como a collage, a ambiguidade ator/figura, a construção corporal através da observação e da aná-
lise dos próprios gestos. 

A fim de perseguir a questão principal da minha investigação, entendo que interessava abordar o
Fatzer procurando pelo seu problema. O problema-Fatzer é complexo: aparece metaforizado na espera, no
quarto apertado para cinco pessoas, nos passeios pela rua, na quebra dos acordos, na coletivização do corpo
da mulher. O que essas metáforas transformam em imagens e em situações naturalizadas é a questão de
base que dá corpo ao problema-Fatzer: a violência do próprio coletivo contra ele mesmo, que expõe a perda
de sentido das ações revolucionárias. As questões abertas pela oposição de atitudes entre as figuras de um
Fatzer associal e a de um Keuner pragmático discutem, afinal, a crise da representação política. Com Fatzer
é possível pensar nas razões do fracasso das revoluções populares, no seu silenciamento e também nas suas
formas de organização e de resistência.

Fatzer é um texto sobre a experiência da espera, sobre a crise da representação política, sobre o esva-
ziamento dos ideais revolucionários, sobre o perigo dos modelos. Os quatro soldados à espera da revolução
tornam sua formação nuclear isolada um modelo de radicalização e de negação de si mesmos em nome de
um ideal coletivista. A violência se volta contra eles mesmos, o modelo que imaginam superar é praticado
como saída para manutenção do coletivo. 

Dos jogos realizados e dos materiais produzidos foi surgindo uma espécie de dramaturgia, que gos-
taria agora de abordar. Os procedimentos de criação e arranjo das partes que compõem o texto seguiram os
procedimentos que já tinham sido experimentados durante as atividades práticas. Encarei a criação do texto
a partir do conceito de modelo de ação e me empenhei em promover espaços para o estranhamento, através
da troca de papéis, e para a inserção de trechos de invenção própria.

A criação de um roteiro dramatúrgico a partir da prática com o Material Fatzer é, em alguma me-
dida, a forma que encontro de responder à questão inicial de Brecht quando me faço a mesma pergunta
diante do que experimentei com o grupo Teatro Máquina. Os textos que o grupo produziu – o relato dos
dias, o relato dos jogos e a reflexão sobre os exercícios – durante os encontros práticos apontavam para um

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material com um grande potencial narrativo, desde os primeiros dias. A reunião desses documentos ganhou
uma dimensão estética pela urgência que percebi, como Brecht indica, de aplicar uma determinada forma de
escrita para aprender a entender os pensamentos dessa forma. Essa forma ganhou o título de Diga que você
está de acordo! Nela, me detive em evitar uma indiferenciação das partes que compõem o texto. Optei por
afirmar suas diferenças. A estratégia para deixar claros os procedimentos de separação foi a de indicar – tex-
tual e previamente – as estruturas narrativas. Organizei-as em: jogo-cena; texto-modelo; cena; cena-gesto; e
fábula. Aqui um excerto da dramaturgia criada:
[...]
SOLDADO 4 coloca o disco no gramofone.
A mulher serve uma sopa. Todos comem. Alguns deitam-se na cama, outros no chão. A
mulher senta-se à mesa. Come sozinha. Adormece sentada na cadeira.

Fábula:
Ator vai ao microfone e diz: O cuspe, a cor e textura da beterraba crua, o efeito da beter-
raba mastigada e cuspida sobre a pele. É possível se preparar para uma cuspida na cara?

Jogo-Cena 2: As beterrabas
O ator que estava ao microfone volta para o ambiente do quarto com um saco de beter-
rabas. Todos se reúnem para saber o que é. As falas e ações vão ser determinadas pelas
próximas falas e ações. Os atores já conhecem o conjunto de ações previstas para essa
cena-jogo e improvisam a partir disso.

Conjunto de ações previstas: alguém chega com o saco de beterrabas, alguém prova,
alguém vê que já ha duas que foram mordidas, alguém manda cuspir, alguém não cospe,
alguém cospe na cara de quem mandou cuspir, alguém lembra que precisa cozinhar, al-
guém diz que se comer a beterraba crua vai começar a peidar, todos comem, menos um.

Cena-gesto:
Os atores improvisam novamente sem texto falado. As beterrabas ficam pela mesa.

Texto-modelo 2 :
SOLDADO 1:
Trouxe beterrabas.
SOLDADO 3:
Cozinhar! Cadê a mulher ?
SOLDADO 4:
Trabalhe. Cozinhe você !
SOLDADO 3:
Passe para cá !
SOLDADO 1:
Estou vendo se estão frescas.
Morde uma.
[...]

Como forma poética, a dramaturgia criada nos jogos com o grupo abriu, através da construção
de um texto para o jogo, a possibilidade de pensar sobre formas novas de contar uma história no teatro,
pensando e propondo novos modelos de mostrar/expor/narrar. A violência imposta pelos desertores em
situação de clandestinidade se metaforiza na minha criação e ganha forma textual através do enfrenta-
mento da forma dramática, da desarticulação do diálogo, da fuga das determinações dos personagens, da
dissolução do diálogo em gesto.

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A aplicação dessa forma de escrita é o próprio trabalho de construção dramatúrgica, que traz entre
suas estruturas de texto a reescritura de alguns jogos das etapas de trabalho com o grupo. Com a criação e
aplicação dos jogos também pude entender o que eles continham como idéias e, especialmente, o que guar-
davam como fonte para outras variações e outras aplicações.

O texto fraturado em formas narrativas pode manter a perspectiva do choque benjaminiano e pro-
mover na sua montagem a experiência da interrupção como procedimento estético. Assim a descontinuida-
de entre as partes que formam o texto e a própria configuração do jogo contribuem para a moldura rigorosa
do acontecimento. A idéia foi aproveitar o que foi conhecido com o texto como modelo de ação e propor
um novo texto que mantivesse a dimensão do jogo. Ingrid Koudela (2001, p.101-102) alerta para a diferença
entre o trabalho com o jogo e o trabalho com o texto para a criação de um espetáculo:

No experimento pedagógico, o jogo teatral e a representação simbólica não se realizam


como algo definitivo. Ao contrário, no texto brechtiano, o teatro se mostra como teatro.
O conhecimento é gerado por meio das diferentes versões de jogo com o modelo de ação
e dos comentários dos jogadores. A orientação é para a dialética do processo e não para o
resultado espetacular. O texto promove o caráter aberto de uma cadeia de experimentos,
de um curriculum. O jogo da troca de papéis, sugerido por Brecht, é instrumento valioso
nesse processo de conhecimento dialético. Dentro dessa concepção, atuar e ver não são
posições fixadas, mas sim funções cambiantes dentro do jogo.

Meu trabalho de seleção e enquadramento se estruturou durante a experiência dos treze encontros
com o grupo de atores. Entendi a necessidade da criação do texto como uma espécie de reverberação da
experiência prática com os fragmentos como modelo de ação, como uma nova experiência. As ativida-
des desenvolvidas com o grupo já apontavam para a descoberta de formas narrativas alternativas, mas a
experiência da escritura do texto materializou o fragmento como forma concreta de destruição da fábula. A
destruição, considerando o que Benjamin (1994) defende, é uma condição para a experiência.

Diante do  Fatzer, aprendo que a fábula é o principal material para o exercício da criação como
destruição. O fragmento é a principal forma para esse exercício. Compreendo que o texto, portanto, deveria
perseguir uma forma que mantivesse o caráter destrutivo do fragmento, aliada a uma experiência narrativa
que explorasse o lugar dos jogadores como co-produtores. Meu desafio foi o de chegar a um texto que par-
tisse do que foi acumulado nos jogos e improvisações, mas que não se estruturasse em situações dramáticas.
Como se eu quisesse escrever um texto-utopia, um texto que fosse impossível de encenar, porque precisaria
primeiro ser destruído para ser recriado, como as crianças fazem para descobrir a brincadeira nos brinque-
dos. Um texto, enfim, que fomentasse novamente o jogo, a brincadeira.

O meu interesse, como artista de teatro, sempre esteve em explodir a fábula, estilhaçá-la em
pedaços que indiquem novos caminhos. Espero, com esse exercício, poder apontar para a revelação
de novas formas de narrar, defendendo que é possível contar histórias através da forma de organizá-
las e não apenas pelo que contam. Experimento deixar a escrita se comprometer com os modelos, mas
também criar novos modelos para manter os antigos. Negar os modelos como estratégia para voltar a
afirmá-los e superá-los, em uma perspectiva dialética criativa e de construção coletiva. A encenação da
peça “impossível”, como Brecht (1997) define o Fatzer, precisa prever as etapas de sua decomposição e
reestruturação. O que persegui em Diga que você está de acordo! é a escrita de um espetáculo, como Wirth
(1984) define, não de um texto dramático. Um texto que não contém a cena, mas que aponta para sua
invenção.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRECHT, B. Atitude do diretor (dentro do método indu- 2007.
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Frankfurt a.M.: Suhrkamp Verlag, 1967. (Gesammelte Ação. 2013. 284f. Tese (Doutorado) - Universidade Fede-
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WIRTH, A. Do Diálogo ao Discurso. O Tablado, Rio de
KOUDELA, I.D. Brecht na pós-modernidade. São Paulo,
Janeiro, n.5, p. 8-14,1984.
Editora Perspectiva: 2001.

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CRIANDO CONTRAESPAÇOS
Cláudio Marcelo Carneiro Leão Lacerda124

P or que criamos arte? E fruímos arte? Por que “ainda” temos necessidade da criação artística?
Talvez porque a realidade não basta, porque “a vida é um pouco insatisfatória”, como diz o personagem
interpretado por Owen Wilson em “Meia Noite em Paris” de Woody Allen, porque precisamos dar um
sentido a essa realidade, ou transformá-la, minha realidade, sua realidade, nossa realidade. Cada um pode
ter suas respostas ou motivos.

Criações artísticas passam por processos para chegar a suas materializações e poderem ser fruídas.
O tema desta mesa é “Processos Criativos naContemporaneidade”. O termo “contemporaneidade” coloca
algo de diferente em “processos criativos”?

A criação artística nasce de uma necessidade, como disse Suely Rolnik (2008), parafraseando Gilles
Deleuze. Um ímpeto, uma fagulha, uma inquietação, um desejo. Fayga Ostrower diz que “a criatividade,
como entendemos, implica uma força crescente; ela se reabastece nos próprios processos através dos quais
se realiza.” (OSTROWER, 1987, p. 27). Trabalho com dança há 28 anos, 20 dos quais investindo em criação.
Nesse tempo já deu para perceber e considerar que o desejo já é o início de um processo artístico. Gosto de
colocar a figura do Anel de Moebius (apresentada para mim por Ciane Fernandes, em 2000 – gosto e acho
importante dar créditos a quem nos deu ideias e a quem nos influenciou) como uma representação imagética
de como meus processos artísticos têm se desenrolado. Uma vez posto no movimento espiralado do Anel
de Moebius, o desejo já começa a produzir seu processo e, seguindo Ostrower, neste se reabastecendo.
Processos podem se desenrolar de tantas maneiras quanto há de criadores.

O meio, ou medium, no qual desenvolvo minhas criações artísticas é a dança e ela me oferece certas
particularidades que são potentes e especiais. Primeiro, temos o corpo como matéria prima de trabalho.
Aqui, é importante esclarecer que prevalece uma visão integralizada corpo-mente. Esse soma é nosso local
de vida e é o próprio local de feitura e de materialização dessa arte, o que implica que o acesso para a
materialização artística é feito com menos mediações que outras formas de arte. Isso não quer dizer que a
dança é espontânea por natureza; muito pelo contrário, é um dos muitos clichês da dança. Há que se tornar
consciente dos códigos que o corpo carrega, seus condicionamentos, suas fraquezas e suas forças; ou seja,
precisa que aconteça um autoconhecimento.

124. Cláudio Marcelo Carneiro Leão Lacerda (Cláudio Lacerda) é coreógrafo, dançarino, professor e pesquisador. Professor Adjunto do Departa-
mento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco (2010-). Doutor em Artes Cênicas (2018) pela Universidade
Federal da Bahia (orientação: Ciane Fernandes). Possui o Professional Diploma in Dance Studies (1998) e o Independent Study Programme Certifi-
cate (1999) pelo Laban Centre, Londres (RU). Diretor do grupo Cláudio Lacerda/Dança Amorfa (1998-). Autor dos livros Representações de Mas-
culinidade na Dança e no Esporte: um olhar sobre Nijinsky e Jeux (2010) e Pesquisa Trilogia da Arquitetura Desconstrutivista (2011).

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O processo de feitura e suas transformações se fazem no corpo. O corpo, nessa visão integralizada,
não é um “instrumento” para a dança porque aqui sujeito é indivisível de objeto. Contudo, podem se
encontrar gêneros e estilos de dança ou modos de fazer dança que consideram o corpo como instrumento,
refletindo essa postura em seus modos de ensino-aprendizagem e em seus processos artisticos,
considerando o corpo “em terceira pessoa” (SHEETS-JOHNSTONE, 2009), uma noção de corpo na qual
seu entendimento se dá sempre por uma mediação de terceiros, seja um modelo a ser copiado, uma
representação, um espelhamento prévio, uma tendência, uma moda. Aqui trago e valorizo a noção do
corpo “em primeira pessoa”, expressão utilizada por Maxine Sheets-Johnstone (2009), que coincide com
a noção de “perspectiva corporal” de Rudolf Laban (2011). Essas noções colocam a vivência cinestésica
do sujeito em primeiro plano em seu contato com o mundo, em seu conhecimento de mundo e em sua
produção de conhecimento.

No corpo vivemos e fazemos arte. Laurence Louppe oferece um belo depoimento de que “Ser
bailarino é escolher o corpo e o movimento do corpo como campo de relação com o mundo” (LOUPPE,
2012, p. 69). Um lado menos “glamouroso” que acrescento é que ser bailarino é trabalhar diariamente com a
dor, o cansaço e a sujeira; mas, não considero esses aspectos necessariamente como negativos; ao contrário,
eles dão uma perspectiva.

Segundo, na dança, há uma multissensorialidade e uma qualidade de multicamadas em suas três


instâncias de materialização, na feitura, na execução e na fruição, ou seja, essas qualidades são sentidas não
só no corpo do(a) bailarino(a), mas também no corpo do(a) espectador(a). A multissensorialidade implica
que vários canais são ativados: o cinestésico, o visual, o aural. A qualidade de multicamadas significa que a
maneira de a dança comunicar e promover experiências não é direta e biunívoca como na linguagem falada,
mas pulverizada e mais aberta. Na dança também há um nexo formado pelas instâncias fenomenológica e
semiótica, que negociam entre si para dar sentidos à dança, para a sua materialização e fruição.

Em cada um dos diversos gêneros e estilos de dança, escolhas são feitas com relação ao nexo
formado entre os componentes da dança – bailarino, movimento, espaço de apresentação/elementos visuais,
elementos aurais (som) (ADSHEAD, 1988; PRESTON-DUNLOP, 1998a). As minhas escolhas na dança
estão na seara da dança chamada contemporânea, com um objetivo primeiro de experimentação, com
ênfase na pesquisa e criação de movimento. O que isso implica?

O que esse “contemporâneo” coloca de diferenciação em sua adjetivação na dança? Primeiramente, é


preciso que se diga que não há um entendimento inequívoco do que possa significar “dança contemporânea”.
Entendo e considero dança contemporânea como uma dança de pesquisa, de investigação, em cujo processo
o criador investe em invenções e descobertas, quase sempre atrelado a um autoconhecimento de seu corpo
criativo. O interesse principal na criação não está em seguir linhas ou escolas técnicas, mas procurar, em meio
a codificações técnicas, de procedimentos criativos, de modos de estruturação e de modos de materialização
em cena, idiossincrasias e particularidades próprias. Várias maneiras de organizar, desorganizar e reorganizar
o corpo em sua relação com o ambiente e com o outro são propostas, trazendo à tona várias conjunções que
os componentes da dançapodem fazer e diferentes maneiras de ativar a multissensorialidade e a qualidade
de multicamadas.Uma miríade de possibilidades de materializações de trabalhos de dança podem advir
desse modo de fazer dança.

Apoio-me no que Louppe chama de “valores” que fundamentam a dança contemporânea, que se
podem reconhecer mesmo em abordagens por vezes opostas, a saber:

[…] a individualização de um corpo e de um gesto sem modelo que exprime uma


identidade ou um projecto insubstituível, a produção (e não a reprodução) de um gesto (a
partir da esfera sensível individual – ou de uma adesão profunda e cara aos princípios de

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um outro), o trabalho sobre a matéria do corpo e do indivíduo (de maneira subjectiva ou,
pelo contrário, em acção na alteridade), a não-antecipação sobre a forma (ainda que os
planos coreográficos possam ser traçados de antemão, como em [Dominique] Bagouet ou
Lucinda Childs) e a importância da gravidade como impulso do movimento (quer se trate
de jogar com ela ou de se abandonar a ela). (LOUPPE, 2002, p. 45)

A estes também seguem o que a autora chama de “valores morais”, que são: “a autenticidade pessoal,
o respeito pelo corpo do outro, o princípio da não arrogância, a exigência de uma solução justa, e não
somente espetacular, a transparência e o respeito por diligências e processos empreendidos.” (ibid., p. 45).

Para complexificar o entendimento de “contemporâneo”, é oportuno citar Giorgio Agamben:

Pertence verdadeiramente a seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que


não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto,
nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento
e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu
tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 58)

Diria que a dança contemporânea nasce desse sentimento de inadequação, de deslocamento do


indivíduo dançante às pretensões de seu tempo, através de experimentações com o corpo criativo a partir
dos “valores”colocados por Louppe.

Processos criativos raramente são percursos lineares, sem atritos. Diria que o resultado de um
processo artístico é o que sobreviveu a, e ao mesmo tempo foi movido por, um conjunto de impossibilidades
e percalços, que incluem: a esfera individual (físico-mental-psicológica-espiritual-afetiva-financeira),
conciliações entre os indivíduos participantes, logística específica (local(is) e disponibilidades de ensaios,
condições financeiras para o projeto, etc.) e situações macro que afetam diretamente cada um dos indivíduos
(condições sócio-políticas, idiossincrasias locais, financiamento para projetos e sustentação do grupo/
artista, condições dos espaços de apresentação da cidade, estímulo para circulação, condições para investir
no processo da criação, etc.).

Deleuze vê a criação “como o traçar de um caminho entre impossibilidades” (1992, p. 293)


e acrescenta que “A criação acontece em canais estrangulados. [...] Um criador que não é pego pela
garganta por um conjunto de impossibilidades não é um criador. Um criador é alguém que cria suas
próprias impossibilidades, e, assim, cria possibilidades.” (DELEUZE, 1992, p. 293). Acrescento que o erro
e o fracasso também são componentes do processo, podendo trazer não só frustrações e desânimo, mas
também experiências e soluções valiosas, antes não previstas. Aqui faço uma conexão com o tema deste
Congresso, «Utopias Pedagógicas em Artes como Gesto de (Re)Existência”; esse “traçar de um caminho entre
impossibilidades” constitui gestos de existência e de resistência, que são feitos diariamente, para concretizar
o desejo e a necessidade da criação. Reconheço o valor da palavra “utopia”, mas tenho preferência pela
palavra “desejo” para poder designar o que nos move. A primeira me dá a impressão de algo mais distante
de se alcançar. A segunda já me oferece alguma concretude, mesmo que inefável e amorfa a princípio, mas
me faz sentir que já engendra o germe para sua materialização.

Pretendo relatar aqui um percurso (ou série de percursos) possível(eis) de um processo criativo em
dança, com a investigação mais recente que desenvolvi com meu grupo, Cláudio Lacerda/Dança Amorfa,
que esteve entrelaçada com minha pesquisa de Doutorado em Artes Cênicas recentemente finalizada
(UFBA, 2014-18), com o desenvolvimento de uma “coreotese”. Meu ímpeto para a pesquisa foi desenvolver
um processo criativo em dança inspirado pela obra da arquiteta iraquiana-britânica Zaha Hadid e, a partir

90
dele, desenrolar e identificar relações possíveis entre dança e arquitetura, relacionando transversalmente as
áreas da dança, arquitetura, filosofia e artes visuais e colocando para conversar autores e criadores dessas
áreas. Nesse processo procurei aproximar instâncias como dança e escrita, prática e teoria, arte e academia
e nele as ações se estenderam pelos âmbitos de pesquisa, ensino e extensão. Em minha prática como artista,
docente, pesquisador, escritor e produtor cultural, não dá mais para separar essas frentes de atuação, uma
alimenta a outra e está contaminada pelas outras.

No processo fiz questão de trazer o conhecimento e procedimentos da dança como organizadores


dos procedimentos de pesquisa e como articuladores entre disciplinas e áreas de conhecimento. Isso quer
dizer que, em primeiro lugar, vejo e leio como dança a arquitetura de Hadid e os teóricos estudados ao longo
da pesquisa. Comecei a me interessar pela arquitetura, mais especificamente a arquitetura desconstrutivista,
e relacioná-la com a dança em 2008. Vim ter a chance de me aprofundar na obra de Hadid neste doutorado.

Minha relação cinestésica com a arquitetura de Hadid se dá da seguinte forma. Quando visualizo
imagens de suas obras, e quando tenho a chance de visitá-las, acontece uma série de encadeamentos que
estão na ordem da sensação. São engatilhadas sensações de descentramento, fluxos de energia, não um caos,
mas um ordenamento que tem sua própria lógica. Essas sensações reverberam diretamente no meu corpo
e tenho o ímpeto de me mover a partir delas. Uma série de “intenções internas”, usando uma expressão
labaniana, começam a fermentar possibilidades de “manifestações externas”. A percepção de uma labilidade
(ou seja, uma desestabilização, um desequilíbrio) que, ao mesmo tempo, move e sustenta determinado
prédio ou objeto de design, em diferentes linhas de força, me impressiona bastante. Quanto às formas,
minha impressão é a de que vetores de força é que as vão moldando. Estive, portanto, interessado nas forças
que regem suas obras arquitetônicas e de design. Mas, também estive interessado nas forças presentes em
textos seus e de outros autores que falam sobre sua obra e nas forças que estão em textos não relacionados
diretamente com Hadid ou com arquitetura, mas que trazem outros assuntos com uma potência instigadora
para relacionar a este trabalho.

A força motriz da relação entre Hadid e minha dança é: suas obras arquitetônicas e de design
me afetam cinestesicamente e me estimulam a pesquisar movimento, estados de corpo e uso do espaço
e criar dança. Foi essa força motriz que encadeou a prática desenvolvida em Contraespaço, título que dei
à investigação coreográfica desenvolvida juntamente com os(as) bailarinos(as) Juliana Siqueira, Jefferson
Figueirêdo, Orunmillá Santana e Stefany Ribeiro, ao longo de 14 meses, instigando-me a trabalhar com a
imaginação espacial, imaginação corporal e imaginação de movimento e que encadeou todas as relações
entre teorias, autores, áreas de conhecimento, passado e presente.

Além do estímulo cinestésico, as correlações que se podem fazer entre o trabalho de Hadid na
arquitetura e a criação em dança contemporânea são diversas e bastante instigadoras. Primeiramente, o que
me chamou a atenção em muitas de suas obras, apesar das muito diferentes facetas de uma obra para outra
e de suas diferentes fases é uma qualidade de organicidade, remetendo a seres da natureza, como moluscos,
larvas e vegetais, e características parciais de seres vivos, por exemplo, canais que se abrem em grandes
espaços vazados, cujas fronteiras entre um e outro são indeterminadas. Encontrei uma grande facilidade em
estabelecer analogias com o corpo, tanto humano quanto não humano, como, por exemplo, nos trânsitos
entre o espaço interno e externo de alguma obra, nas várias camadas que compõem uma determinada parte
de um prédio ou um prédio inteiro, na fluidez suscitada por essas formas e suas intercomunicações. Em
segundo lugar, em muitas vezes, a visão das obras dá a sensação de estarem em movimento. Essa sensação
reverbera diretamente no meu corpo e encadeia impulsos para me mover, a partir de, por exemplo, uma
determinada torção, um achatamento, um alongamento ou projeção no espaço, detectados nas construções.
Em terceiro lugar, as imagens dessas obras suscitam devaneios de habitar esses espaços. Essas imagens me
encorajaram a abordar o corpo como um material a ser explorado, tendo a noção de material vivo.

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Além disso, identifiquei-me com a trajetória de Hadid na arquitetura, valorizando a experimentação
e o processo. Minha fascinação por deformações, desvios e degradação, explorados em várias obras minhas
anteriores, encontraram uma ressonância em suas obras. Cruzei minhas referências formativas em Laban
com as referências formativas de Hadid em Kazemir Malevich e Wassily Kandinsky e teci uma rede de
conexões entre esses três artistas, ancestrais a mim e a Hadid. E identifiquei a primeira de muitas conexões
entre dança e arquitetura: Laban teve formação, em sua juventude, em arquitetura e artes plásticas, o que,
sem dúvida, informou o desenvolvimento de seus estudos do movimento.

Para colocar minha pesquisa em movimento, precisei de uma abordagem metodológica que
acolhesse e valorizasse várias instâncias de saberes – o corporal, o linguístico, o intuitivo, o imaginativo
e o racional e analítico –, tendo a criação em dança como ativadora e articuladora dos mesmos. Por isso,
adotei a Prática como Pesquisa (em inglês,Practice as Research – PaR), que coloca a prática no centro da
pesquisa, neste caso, a prática artística em dança. A PaR encoraja que se utilizem os mecanismos da criação
artística na pesquisa acadêmica e a produção de saberes que advêm desses processos. A prática vem como
produtora da pesquisa, e não apenas um meio de ilustrar teorias. As pesquisas desenvolvidas através da PaR
não necessariamente nascem de um problema ou de uma hipótese. Muitas vezes, nascem de um ímpeto de
explorar algo, uma questão. Segundo Yvon Bonenfent(2012, p. 22), o pesquisador está disposto a “explorar o
que emerge”. E foi a isso que me propus ao longo dos quatro anos do doutorado. O pesquisador modela sua
própria metodologia e seus métodos.

Minha proposta foi trabalhar com a imaginação espacial, a imaginação corporal e a imaginação de
movimento, no nível do devaneio e das transformações. Os autores principais que utilizei foram Laban, com
os conceitos de perspectiva corporal, imaginação espacial e labilidade; Gaston Bachelard, com a valorização
da imagem e da imaginação e os sentidos subjetivo e fenomenológico do habitar; e Sheets-Johnstone, com
suas noções de valorização da experiência, o corpo em primeira pessoa, o pensar em movimento, inteligência
cinética e cinestésica das formas animadas e sensibilidade de superfície.Utilizei também conceitos de
Jacques Derrida, estudados anteriormente na série de pesquisas e criações intituladaTrilogia da Arquitetura
Desconstrutivista(2008-2011), como desconstrução, centro faltante, labilidade, espaçamento e diferência, e
os conceitos de Deleuze de mediadores e forças. Ambos autores ficaram num plano de fundo, fazendo
ligações com aspectos de dança, arquitetura, Laban e Hadid e com os autores principais.

O processo de Contraespaçotambém compreendeu a visita de dois consultores: Gentil Porto Filho,


da área da arquitetura e arte contemporânea, e Arnaldo Siqueira, de dança, cujas participações consistiram
em assistir a nossos ensaios em um estágio mais avançado e conversar sobre o trabalho a partir de suas
visões e bagagens.

A partir de todo o material que me alimentou – imagético, teórico e artístico –, preparei listas, cujos
elementos foram disparadores iniciais para a experimentação em dança, sobre cujo desenvolvimento não
havia nenhuma previsão nem controle. Uma das listas foi Proposições para o Trabalho como um Todo, que
funcionariam como uma sugestão de rumo ou comportamento, no sentido da estruturação ou de sugestão
de atmosferas ao longo do trabalho. A segunda foi uma lista de 22 Propostas paraExploração e Improvisação,
que vieram de várias fontes e meios: imagens de obras arquitetônicas e da caligrafia árabe; descrições verbais
de Hadid e outros autores de características de obras suas; citações de autores cujos conceitos, ideias e
noções me chamaram a atenção pela imagem que suscitam ou pelo que as próprias palavras apresentam
como potencialidade para dança.

Segui uma metodologia criativa que venho experimentando e desenvolvendo nos últimos 20 anos,
resultado de um mix de meus estudos formais, não formais e informais em dança – em cursos, workshops,
residências e aulas com artistas e teóricos de dança –, da observação e estudo dos processos de coreógrafos(as)

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que considero minhas referências (Airton Tenório, Pina Bausch, Lloyd Newson/DV8 Physical Theatre,
William Forsythe, Siobhan Davies, Rosemary Butcher e Meg Stuart) e da minha prática, fazendodança.
A metodologia engloba três fases. Na primeira, procuro realizar um esgotamento de possibilidades de
exploração e improvisação de aspectos particulares do tema geral escolhido – no caso de Contraespaço, as
22 Propostas para Exploração e Improvisação, registrando tudo em vídeo. Na segunda, seleciono trechos
desse material bruto de movimento para manipulações. Na terceira, começo a testar formas de composição
desse material, sua estruturação, até a sua maturação final (ou provisória). Embora possa parecer, essas fases
não têm uma separação clara e um andamento programado. Nada impede que impulsos exploratórios se
infiltrem quando penso que já estou em um momento mais de manipulação. E, também, nada impede que
ideias de estruturação já apareçam em momentos iniciais exploratórios.

A exploração das 22 Propostas gerou uma grande quantidade de material, que documentei em um
Banco de material de movimento. A maneira que encontramos de estruturar esse material foi em módulos de
dança, que pudessem ser autônomos, podendo ser ordenados diferentemente a cada vez, um pouco à maneira
do coreógrafo Merce Cunningham. Gostamos da ideia de, a cada ordenamento, verificar quais possíveis
sentidos surgiam. Faço uma analogia do uso desses módulos com uma coleção de móveis criada por Hadid,
a Seamless Collection, que o usuário decide como ordená-los pelo espaço e que funções eles podem ter, de
assento, de mesa, de apoio, etc.Ao todo, até o momento, criamos dez módulos, cada um contendo, em média,
cinco minutos e constituído por três a quatro materiais de movimento constantes do Banco.

Nossa primeira exploração dos módulos foi executando-os em diferentes ordenamentos, na sala de
ensaio. Posteriormente, ficamos interessados em como eles habitariam diferentes espaços fora do estúdio.
Exploramos diversos espaços externos e internos do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, onde
realizamos grande parte dos encontros.

A partir dessas explorações, duas vertentes para explorar produtos artísticos surgiram. Uma delas
é explorar ambientes diferentes de um determinado prédio, onde a configuração espacial e o material de
movimento dos módulos seriam postos a teste, propondo um confronto entre estes e sua “habitação” nesses
espaços, constituindo um meio caminho entre coreografia e obra site-specific. A noção de “responsividade”
nos acolheu como esse meio caminho. Essa é a proposta para Transiterrifluxório, espetáculo que estreou
em outubro de 2017 e que já apresentamos duas vezes e que compôs a apresentação da coreotese do
doutorado. A outra é ter o foco na própria estruturação, brincando com o ordenamentodos módulos, em
uma estrutura contínua, corrida, pensando em um espaço de palco convencional. Essa é a proposta para o
que estou intitulando provisoriamente de Inverso Concreto, que pretendo desenvolver futuramente, com um
ordenamento diferente a cada noite.

Houve também um desdobramento pedagógico-artístico de Contraespaço com a Residência


Contraespaço, que ministrei no SESC Palladium (Belo Horizonte-MG)em maio de 2016, com artistas
baseados em Belo Horizonte e cidades vizinhas. Na Residência, realizei algumas das Propostas para
Exploração e Improvisação com os participantes e, a partir do material que eles produziram, estruturamos
um mini espetáculo de 30 minutos para a mostra de finalização.

Nas apresentações públicas, eu e os bailarinos pretendemos proporcionar aos espectadores a


materialidade e a cinestesia produzidas pelo devaneio e imaginação de movimento que cultivamos a partir de
nosso interesse e curiosidade pela arquitetura de Hadid. Queremos expor o que provocamos e acalentamos
ao longo do processo: nossos olhares internos, a sensibilidade alterada de nossas superfícies, vários modos
de fricção entre nossos corpos, várias propostas de habitação nos diversos espaços que criamos em cenae
possibilidades de relações entre nós, de afetar e ser afetado, de desestabilizar e de apoiar, de se deixar levar e
de manter os pés bem plantados no chão.

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Ao longo do processo, procurei dar espaço para a própria inteligência do processo se fazer ouvir. Ou
seja, no início eu e os bailarinos não tínhamos nenhuma ideia de como o trabalho iria se estruturar e de que
teríamos duas possibilidades de concretização em produtos artísticos. Aliás, não tínhamos garantia de nada.
O que tínhamos era o desejo, alimentado no movimento no Anel de Moebius com um planejamento inicial,
leituras e imagens potencializadoras e nossos corpos criativos em ação. Cultivamos uma sensibilidade para
ouvir o outro, como extensão mesmo de cada um e de “ouvir” o espaço. Trabalhar com limitações, como se
mostrou em Transiterrifluxório, constituiu não só um desafio, mas um estímulo, uma condição a ser aceita
para transformá-la em possibilidades de a dança existir. Trabalhar com limitações transformou-se em uma
prática criativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ADSHEAD, Janet. (ed.). Dance analysis: theory and PRESTON-DUNLOP, Valerie. Looking at dances: a
practice. Londres: Dance Books, 1988. choreological perspective on choreography. Londres:
Verve, 1998.
AGAMBEN, Giorgio. “O Que É o Contemporâneo?”.
In: AGAMBEN, Giorgio. O Que É o Contemporâneo? e PRESTON-DUNLOP, Valerie; SANCHEZ-COLBERG,
Outros Ensaios. Chapecó: Argos, 2009, pp. 55-76. Anna. Dance and the Performative: a choreological
perspective – Laban and beyond. 2ª ed. Londres: Dance
DELEUZE, Gilles. “Mediators”. Trad. M. Joughin. In:
Books, 2010.
CRARY, J.; KWINTER, S. (ed.). Zone 6: Incorporations.
Nova York: Zone, 1992, pp. 281-294. ROLNIK, Suely.Informação verbal. Ciclo de Conferências
“Quando Foi 1968”. Fundação Joaquim Nabuco, Recife/
______. Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
PE. 07/07/2008.
Ed., 2007.
SHEETS-JOHNSTONE, Maxine. The Corporeal Turn: an
LABAN, Rudolf. Choreutics. Alton: Dance Books, 2011.
interdisciplinary reader. Exeter e Charlottesville: Imprint
LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Academic, 2009. _____. The Phenomenology of Dance.
Lisboa: Orfeu Negro, 2012. Filadélfia: Temple University Press, 2015.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação.
Petrópolis: Vozes, 1987.

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PROCESSOS DE CRIAÇÃO
NA CONTEMPORANEIDADE
Gal Martins125

Salve!!!
Gostaria de começar, fazendo algumas perguntas para vocês. O que vocês veem em mim? (Aguardar
as respostas e interagir com elas)

Diante de todas as observações que vocês trouxeram, preciso dizer que estou aqui, porque antes de
mais nada sou uma artista negra, periférica, gorda, umbandista e mãe solo. Carrego diversos estigmas que
são apontados por um projeto bem estruturado. E são exatamente essas marcas que me constitui como ser
pensante e atuante no mundo. É a partir disso, que vou traçando minha trajetória.

Falar de arte, de criação já é complexo, quando nos remetemos a tal contemporaneidade, ai se torna
ainda mais difícil de explicar. Pois bem, essa questão é o que mais me instigou e ainda pulsa em mim nesses
meus 20 anos de trajetória profissional como artista, arte educadora e gestora cultural.

Dia 27 de Julho de 2002 em uma garagem de cimento batido cedida gentilmente por uma família
do bairro do Capão Redondo, nasce o anseio de tentar encontrar caminhos e processos de escuta para dar
voz aos corpos que ali se amontoavam e dançavam, suados, curiosos, empenhados, imaturos, organizados
e cheios de essência. Assim nasce a Cia Sansacroma, a forma que encontrei de me fazer presente e dançante
na contemporaneidade.

Anos se passaram e o processo de pesquisa seguiu firme e constante, a produção artística foi cres-
cendo, agora com outros artistas pensantes, os espaços foram se abrindo, uma história se consolidava ao
mesmo tempo em que Cia Sansacroma foi se consistindo como uma referência de pesquisa e criação em
dança na periferia sul e na cidade como um todo.

A partir disso, começo a observar minha trajetória artística e quais foram as reais e principais
referências que tive, e chego a uma conclusão que não foi muito agradável.

Nada dava conta. Nada dava conta também das questões dos corpos plurais que neste momento
abrigava a Cia, corpos pulsantes de questionamentos, que juntos compartilharam deste momento essencial
de crise instaurada.

125. Artista da Dança, Atriz, Arte Educadora e Gestora Cultural. Pesquisadora de danças negras e diásporicas a 20 anos e futura Cientista Social.
Em 2002 cria a Cia Sansacroma, grupo paulistano de dança negra contemporânea que possui uma atuação artística e política no extremo sul de São
Paulo, tendo como ponto de partida das criações são as poéticas do corpo negro, que circulam na população da cidade de São Paulo a qual a compa-
nhia chama de indigenordestinafricana. Atuou como Produtora Cultural e Coordenadora do Núcleo de Artes do Corpo da Fábrica de Criatividade,
além de coordenar o projeto Educar Dançando do Balé da Cidade de São Paulo. Em 2014 recebe o prêmio “Denilton Gomes” na categoria Difusão
em Dança. Em 2016 foi eleita uma das 10 personalidades negras do país pelo canal Pretinho Mais que Básico. Em 2017 recebe o prêmio APCA pelo
8º Circuito Vozes do Corpo na categoria Projeto / Programa / Difusão / Memória. Atualmente além do trabalho com a Cia Sansacroma, idealizou a
zona AGBARA, projeto destinado a produção em dança de mulheres pretas e gordas. Em janeiro de 2018 assume o cargo de Supervisora Artístico
Pedagógica do Programa Fábricas de Cultura em São Paulo, e é membro do Fórum Danças Contemporâneas: Corporalidades Plurais.

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Meu corpo, meus instintos, meus pensamentos começam a ser tomados pelo ódio. Sim, pode pa-
recer forte tal expressão, mas diante de todo o projeto estruturante racista, sexista, homofóbico e machista
presente em nossa sociedade, o que me resta é sentir muito ódio, sensação essa presente desde meus anos
mirrados e infantes, ódio esse engolido e escondido nas paredes do meu quarto, nas bonecas brancas, nas
toalhas de banho na cabeça que a fazia me sentir “bonita”, no som daquela música dolorosa do tal Luís Cal-
das que não me permitia ir pra escola pra não ouvir o meninos cantarem durante o meu caminho nas ruas
estreitas do bairro Chácara Santana: “Nega do cabelo duro, que não gosta de pentear, quando passa na boca
do tubo, o negão começa a gritar...pega ela aí, pega ela aí, pra passar batom, que cor? Violeta, na boca e na
bochecha”. Ódios presentes nos olhares desconfiados quando eu, preta, mulher e gorda me coloco no cená-
rio da tal dança contemporânea como pesquisadora. Ódio quando me deparo com minha filha chegando
em casa chorando porque a coleguinha do transporte escolar não quer sentar a seu lado porque ela é negra
ou que na festa junina da escola ela não teve um par e terá que se vestir de menino para não ser excluída de
tal tradição escolar. Ódio ao saber que mais um jovem preto foi assinado pela polícia em uma das esquinas
do Capão. Ódios diante das histórias de Claudia, Amarildo e Rafael Braga. Ódios, ódios e mais ódios.

Sim, às vezes o ódio é estático, intenso mas sem movimento, não transforma, não transgride, esta-
ciona e aprisiona. Então do que queremos falar? Qual é o ponto de partida que não seja exclusivamente o
ódio? Eis que evoco a sabedoria de Paulo Freire com seus pensamentos me levando ao encontro do conceito
de INDIGNAÇÃO.

A partir daí, começo a organizar meu ódio, pela via da indignação como potência artística.

Minha mãe sempre diz: preto enquanto descansa carrega pedra. Pois bem, eu não a carrego, eu dan-
ço e proponho meus parceiros a dançarem com ela. Esse é meu estado no mundo, em São Paulo, no Capão
Redondo, na Rua Ilha de Maiorca, no meu quarto. A INDIGNAÇÃO é minha materialidade poética, e dela
eu exprimo, sobrevivo e exorcizo dia a dia toda e qualquer tipo de opressão. Essa é a Cia Sansacroma, potên-
cia do “corpo negro marginal”, pulsantes e palpáveis a prática da resistência e estabelecendo uma “rebeldia”,
como profícua fonte de preservação e mutação.

A Dança da Indignação
A Dança da Indignação trata-se de uma linguagem estética em dança que pretende reverberar in-
dignações criativas, numa abordagem poética e política que traz signos e elementos singulares na intersec-
ção entre arte e vida, vida e arte.

A pesquisa surgiu de uma necessidade, do amadurecimento estético da Cia. Sansacroma diante de


todas as inquietações que encontrávamos no caminho, pois os códigos encontrados nas danças de matrizes
africanas, apesar de sua potência ainda não era o que pulsava em nossos corpos, enquanto para uma he-
gemonia instaurada na produção de dança na cidade nós éramos os periféricos que realizam um trabalho
social e não de pesquisa artística.

Diante disso, pensar e criar perspectivas próprias de criação foi emergente pelo anseio de se criar
um processo de fruição da dança que dialogue com as questões de interesse do nosso público. Ao mesmo
tempo, pretende uma apropriação dos diversos meios de produção artística dos territórios negros e das bor-
das da cidade e de outras bordas de cidades subjetivas, ampliando as possibilidades de uma comunicação
direta e ativa com os espectadores e também com outros artistas.

A pesquisa teve início em 2012, quando passou a ser sistematizada. Atravessou três laboratórios: a
tríade de tensão, a poética do corpo indignado, o devir-animal. Até o momento a pesquisa se fortalece nos

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três últimos espetáculos do repertório da Cia. (A Máquina de Fazer Falar, Outras Portas, Outras Pontes e
Sociedade dos Improdutivos) e emerge de maneira intrínseca nas concepções individuais a partir da propo-
sição da plataforma de criação Rebanho. Nesta última, cada intérprete criador se entregou a uma imersão
singular por suas memórias de vivências pessoais. Este material humano e expressivo foi o que potencializou
e validou os procedimentos da pesquisa criados até aqui.

Indignação
Indignação, do latim indignatĭo, é uma forte revolta contra uma pessoa ou contra as suas ações. Este
afeto pode se associar à ira, à irritabilidade ou à fúria. A palavra indignação tem sua origem em uma reação
diante de algo indigno. Trata-se de um sentimento de revolta experimentado frente a uma indignidade, in-
justiça, afronta ao bem comum ou desprezo à ética social.

Segundo o escritor e filósofo Antônio Mesquita Galvão, a indignação sempre aponta para uma re-
ação ética contra atitudes, sejam do cotidiano sócio-familiar ou das relações políticas, em que os juízos de
valor revelam a ilicitude e/ou impropriedade de algum tipo de comportamento. A indignação ética desen-
cadeia necessariamente um tipo de reação em que a pessoa toma consciência de algum ilícito e parte para
uma demonstração formal, pacífica ou até violenta de inconformidade.

Aqui, destacamos o fato de que o ato de indignar-se surge do sentimento de responsabilidade so-
cial, para com o outro e para com o coletivo. A indignação gera um impulso de ação, agrega e não afasta ou
ofende, promove senso de mudança da realidade e não se restringe apenas em atos de vingança e violência.
Os fatos e verdades são suas ferramentas. A indignação mobiliza e o ódio paralisa.

Com inspiração na obra póstuma Pedagogia da Indignação, que reúne textos organizados e re-
cuperados por Ana Maria Freire, o autor Paulo Freire aponta a indignação como elemento disparador de
processos autônomos rumo a liberdade e a ética e que assim desencadeia o sentimento de amor, sempre
defendido por Freire. Defende ainda que quando se está legitimamente indignado com a relevância de um
valor que não está ligado a construção de seus valores pessoais, o que se combate não é unicamente uma
parte do problema, mas sim o todo. Diferente do sistema social que se ocupa em combater um único projeto
em detrimento de construir uma sociedade mais livre e autônoma.

O verdadeiro de estado de indignação nos move contra as diversas mazelas sociais, sejam elas no
campo ou nas grandes metrópoles, mergulha e se lança nas narrativas das periferias e principalmente não
se limita apenas aos discursos. Indignação é ação! Por ser ação, é criativa, propositiva e poeticamente e po-
liticamente para nós é DANÇA.

Conceitos
Para tecer esses caminhos, alguns conceitos importantes servem de base para a construção de ideias
e um pensamento em dança que traduza tais indignações criativas:

Resistência
Ao adotar o conceito de resistência, é importante refletir sobre a diferença entre os termos revolu-
ção, revolta e resistência. Para tanto, nos aliamos ao artigo do filósofo Charles Feitosa, publicado no livro
Arte e Resistência organizado por Daniel Lins. É sobre os “muros da política” que Feitosa afirma:

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“Trata-se de três palavras que parecem dizer a mesma coisa, que parecem ser sinônimas,
mas não são! Minha hipótese é de que revolução, revolta e resistência são formas diferen-
tes de o homem lidar com seu destino mortal, maneiras diferentes de “dizer não”, enfim,
formas diferentes de lidar com os muros da política.

Revolucionar pressupõe dizer sim incondicionalmente a um destino, revoltar-se pressu-


põe dizer um não incondicional a toda forma de destino. As retóricas da revolução e da
revolta visam à liberdade, mas ambas contêm elementos que desmobilizam e enfraquecem
a liberdade humana.

A atitude de resistência corresponde à sabedoria do surfista, que não se deixa levar passi-
vamente pela onda nem tenta lutar contra ela, mas aproveita sua energia e explora criati-
vamente suas possibilidades.” (FEITOSA, 2007)

A resistência pressupõe uma recusa à submissão, uma insistência em ser, em afirmar a existência.
Resistir é uma forma especial de lidar com o poder e com a liberdade. Resistir é o próprio ato de criar. Criar
para Si mundos próprios e no coletivo, territórios comuns possíveis.

Descolonialidade do Corpo Negro

A escolha e a delimitação do campo prático da pesquisa compreendem o corpo que está à margem,
ou seja, o corpo marginal, o corpo periférico, o corpo negro. Para além da demarcação geográfica, perife-
ria aqui assume o sentido de um território que compreende o conceito social de exclusão e do que está à
margem. Espaço, que é a um só tempo, físico e simbólico e que tanto é ocupado como também define uma
origem social, produção cultural e uma classificação comportamental e de identidade na perspectiva do
olhar colonialista.

Trazer à tona esta temática é necessário diante das atuais discussões em que a Cia. Sansacroma está
inserida. O estigma nem sempre é percebido e é muitas vezes mascarado, por rotinas e práticas assimiladas
pela cultura, sem a devida reflexão. O preconceito racial, sem dúvida, constitui uma violência que, na muitas
vezes, não apresenta a visibilidade necessária para ser identificada. No Brasil, o preconceito assume a natu-
reza de preconceito de marca, contrapondo-se ao preconceito de origem. Este último é caracterizado pela
forma contundente como se apresenta, havendo uma explícita política segregacionista, sem flexibilidades,
enquanto o primeiro se manifesta “em relação à aparência”, isto é, quando toma por pretexto para os seus jul-
gamentos os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, havendo mesmo uma tendência
de dissimulá-lo. Apesar de o mito da democracia racial dar sustentação à concepção de que não há conflitos
nas relações raciais no Brasil, todos “sabem que existe preconceito e discriminação racial” que vivemos em
um sistema que pratica o tal do “racismo cordial”. E é nesse contexto, que a Dança da Indignação resiste
enquanto potência transformadora para os corpos, usando da consciência da complexidade da estrutura
racista, combatendo-a pela poética singular e coletiva.

Para fundamentar esta premissa, replicamos um longo trecho do texto “Da cor ao corpo: a violência
do racismo”, onde Jurandir Freire Costa prefacia o livro Tornar-se negro - As vicissitudes da Identidade do
Negro Brasileiro em Ascensão Social da saudosa Neusa Santos Souza:

“O negro sabe que o branco criou a inquisição, o colonialismo, o imperialismo, o anti-


semitismo, o nazismo, o stalinismo e tantas outras formas de despotismo e opressão ao
longo da história. O negro também sabe que o branco criou a escravidão e a pilhagem, as

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guerras e as destruições, dizimando milhares de vidas. O negro sabe igualmente que, hoje
como ontem, pela fome de lucro e poder, o branco condenou e condena milhões e milhões
de seres humanos à mais abjeta degradada miséria física e moral.

O negro sabe tudo isso e, talvez, muito mais. Porém, a brancura transcende o branco.
Eles – indivíduo, povo, nação ou Estados brancos – podem “enegrer-se”. Ela, a brancura,
permanece, branca. Nada pode macular esta brancura que, a ferro e fogo, cravou-se na
consciência negra como sinônimo de pureza artística, nobreza estética, majestade moral,
sabedoria científica etc. O belo, o bom, o justo e o verdadeiro são brancos. O branco é, foi
e continua sendo a manifestação do Espírito, da idéia, da Razão. O branco, a brancura, são
os únicos artífices e legítimos herdeiros do progresso e desenvolvimento do homem. Eles
são a cultura, a civilização, em uma palavra, a “humanidade”.

O racismo esconde assim seu verdadeiro rosto. Pela repressão ou persuasão, leva o su-
jeito negro a desejar, invejar e projetar um futuro identificatório antagônico em relação
à realidade de seu corpo e de sua história étnica e pessoal. Todo ideal identificatório do
negro converte-se, desta maneira, num ideal de retorno ao passado, onde ele poderia ter
sido branco, ou na projeção de um futuro, onde seu corpo e identidade negros deverão
desaparecer.

A reação do pensamento negro frente à violência do ideal branco não é uma resposta ao
desprazer da frustração, elemento periférico do conflito, mas uma réplica à dor. O sujeito
negro diante da “ferida” que é a representação de sua imagem corporal tenta, sobretudo
cicatrizar o que sangra. É a este trabalho de cerco à dor, de regeneração da lesão que o
pensamento se dedica. A um custo que, como se vê neste trabalho, será cada vez mais alto.
O tributo pago pelo negro à espoliação racista de seu direito à identidade é o de ter de con-
viver com um pensamento incapaz de formular enunciados de prazer sobre a identidade
do sujeito. O racismo tende a banir da vida psíquica do negro todo prazer de pensar e todo
pensamento de prazer.” (COSTA, 1990)

Tomando estas afirmações, propomos que a Dança da Indignação cria um possível caminho de
enfrentamento para a descolonização do corpo negro. Deste modo, a pesquisa reflete e defende o encontro
com o devir ancestral, onde se pretende localizar o corpo em um estado poroso, ao abrir uma relação entre
memória, tempo e contemporaneidade. O procedimento traça um elo de articulação e encantamento que
dá condições para a construção de outras portas e outras pontes existenciais, onde o impulso do agir é ine-
vitável e dá sentido a uma ação autônoma.

Em relação ao encantamento, vamos ao encontro do pensamento filosófico africano, onde Adilbê-


nia Freire Machado nos alerta:

“O encantamento nos qualifica no mundo, trazendo beleza ao pensar/fazer com quali-


dade, ao produzir conhecimento com/desde os sentidos. É desse olhar encantado, dessa
ancestralidade encarnada, dessa alteridade desejada que se constroem filosofias que se
realizam como descolonizadoras, como concebemos a filosofia africana (...)” que “apre-
senta-se como uma filosofia do acontecimento e, assim, é movimento – e ancestralidade é
movimento, movimento é encantamento. Ancestralidade (...) é o sustentáculo, é a condi-
ção para que o acontecimento se realize. Aquela é a base de tudo, é o sentido da existência,
da cosmovisão africana.”

“O encantamento é aquilo que dá condição de alguma coisa ser sentido de mudança polí-
tica e ser perspectiva de outras construções epistemológicas, é o sustentáculo – não é obje-

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to de estudo, é quem desperta e impulsiona o agir, é o que dá sentido. (...) É sem começo e
sem fim, é um movimento constante, e movimento é conhecimento, é vida, é uma ação de
ancestralidade, como já fora dito. Assim, o encantamento é da ordem do acontecimento, é
papel da ancestralidade; esta é a forma e aquele é o conteúdo.” (MACHADO, 2014)

Centralizados no pensamento filosófico africano, é que acreditamos na potência e na emergência


do corpo marginal – como um meio onde possa se reconectar com o ancestral encarnado em sua epiderme.
Conexão que precisa de ambientes seguros e de confiança para agenciar processualidades descolonizadoras
e criadoras de encantamento. Encontro singular capaz de produzir ferramentas fortes de (re)existência cria-
tiva, poética e política.

Convivência

Outro conceito pertinente à metodologia da Dança da Indignação é o Convívio. O Convívio propõe


o contato e a articulação com o diferente, encarar e viver a diversidade sem anular a diferença e, a partir
disto, construir processos autônomos de aprendizagem e criação artística.

A referência é proposta pelo educador Ralf Rickli na publicação Pedagogia do Convívio na invenção de um
viver humano:

“O mais importante, porém, não é guardar definições em palavras, e sim entender que o
conceito de “convívio” é absolutamente diferente do de “união”: não implica em nenhum
atrelamento, nem em abrir mão das nossas diferenças. Para que haja convívio não é sequer
necessário que haja concordância – a não ser a concordância quanto a respeitarmos reci-
procamente os espaços pessoais e jeitos-de-ser uns dos outros. (...) não atentar contra o di-
ferente. (...) Em outras palavras: empenhar-me para garantir a pluralidade e a diversidade.

Sendo o convívio uma condição tão fundamental da existência – seja social, física, psico-
lógica, econômica, cultural, espiritual (...) numa educação que corresponda à realidade
da vida, o convívio também terá papel central – seja na forma de ensinar, seja entre os
conteúdos: uma educação para o convívio, no convívio, pelo convívio.

Assim, sobretudo neste momento histórico, não vemos missão mais importante para uma
quilha social do que pensar, desenvolver, testar, aperfeiçoar, realizar e difundir uma Pe-
dagogia do Convívio – ou, como também dizemos há anos, uma Educação Convivial.”
(RICKLI, 2017)

É preciso mencionar o que Rickli propõe como as Três colunas-mestras do Convivialismo: o Minima-
lismo, o Pluralismo Sistemático e a Crítica da linguagem e reforma da comunicação. Respectivamente, manter
toda codificação e intervenção no nível mínimo indispensável; garantir a não-imposição da vontade de um
sobre a de outro; convívio, sociedade e comunidade só acontecem mediante a comunicação, cuja qualidade é
problemática em muitos sentidos. A proposta de Rickli pode ser aprofundada em sua obra acima citada.

É fundamentada nesta noção de convívio que propomos a pesquisa e a produção em torno da Dan-
ça da Indignação como um modo criativo, potente e produtor de transformação de realidades individuais e
coletivas, na medida em que extraí o esforço do artista da mera revolta e o canaliza para ações revolucioná-
rias e resistentes.

100
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sistematização da pesquisa e da metodologia da Dança da Indignação, desde seu início, se mos-


tra como um território fértil prenhe de potencialidades de experimentação criativa. Deste modo, está em
contínuo processo de elaboração e re-elaboração. Novas possibilidades no presente da edição deste livro já
se configuram, seja aprimorando os procedimentos, seja agregando procedimentos e técnicas novos. Assim,
qualquer conclusão é aberta e deve ser composta com a descrição das técnicas e dos depoimentos dos par-
ticipantes do Primeiro Fórum de Criação Convivial apresentadas a seguir.

101
MEUS PROCESSOS CRIATIVOS
EMPEDAGOGIA LITERÁRIA:
O QUE ENSINEI, O QUE APRENDI
João Silvério Trevisan126

É amplamente sabido que o processo educacional não se limita ao aprendizado formalno


período escolar e universitário. A educação está sempre em devir. Parafraseando os célebres versos do
poeta espanholAntonio Machado, não existe caminho pronto para se educar: “se hace caminho al andar”.
Quer dizer, a educação perfaz uma trajetória de invenção ilimitada que perpassa numerosos segmentos da
experiência humana, nos mais diversos momentos de uma vida. Nesse processo que nãopretende atingir
nem uma etapa de suficiência nem uma meta de finalização, os objetivos se diversificam ainda mais quando
entra em cena a produção artística. Qualquer experiência consagrada de pedagogia integral e orgânica
apostou na importância da aproximação com a arte. De Maria Montessori e Rudolf Steiner a Paulo Freire
e Nise da Silveira, entre tantas outras personalidades educadoras, a educação artística foi abraçada como
forma de articular valores morais e moldar personalidades voltadas a tais valores.

De fato, a arte desempenha um papel peculiar poriluminar o âmago do processo educativo e levar
a experiência humana até um projeto inventivo que supera limites. Se o processo educacional pressupõe
uma invenção permanente, a criatividade sem limites caracteriza a natureza da produção artística digna
do nome. Posso fazer tal afirmação não apenas pela minha prática pessoal como criador em várias áreas
expressivas das artes– da literatura ao teatro e ao cinema. Mais do que isso, tenho uma experiência paralela
em pedagogia literária, com a qual venho atuando por mais de 30anos como coordenador de oficinas de
escrita criativa. Já exerci tal atividade nas mais diversas instituições públicas ou privadas, em várias partes
do Brasil – do Pará ao Rio Grande do Sul, passando por Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná
e Santa Catarina. Com a experiência adquirida pude comprovar a absoluta pertinência dos valores da
educação artística. Sua vocação, como já mencionei acima, podeintensificar o próprio núcleo da educação e
o aprendizado da cidadania.

Enquanto escritor profissional, busquei tratar a pedagogia literária profissionalmente, ou seja, com
total envolvimento e seriedade.Mesmo porque foi graças a ela que sobrevivi em grande parte da minha tra-
jetória. Comecei a coordenaroficinas literárias em 1987. Entre 1999 e 2005, trabalhei, pioneiramente, com
ensino à distância, ainda nos primórdios da internet, quando coordenei oficinas literáriasvirtuais junto ao
site do SESC-SP. Mantinha encontros duas vezes por semana numa sala de bate papo do UOL, três horas a

126. João Silvério Trevisan (Ribeirão Bonito, São Paulo, 1944). Romancista, contista, ensaísta, roteirista, diretor e dramaturgo.  Estudou no Seminá-
rio Bom Jesus, em Aparecida, São Paulo, formando-se em filosofia. Durante sua permanência no seminário cria um núcleo de estudos dedicado ao
cinema e um cineclube. Muda-se com a família para capital paulista e trabalha na Cinemateca Brasileira. Escreveu seus dois primeiros romances: Em
Nome do Desejo (1983) e Vagas Notícias de Melinha Marchiotti (1984).

102
cada vez, com participantes de todas as partes do país e algumas regiões do exterior, como Bélgica, Áustria,
Alemanha e Estados Unidos. As vagas, gratuitamente oferecidas, eram poucas e disputadas: de oito a dez
pessoas eram escolhidas dentre o grande número de gente inscrita – tendo chegado, numa dessas oficinas,
a 150 candidatos/as. Recebi participantes tanto do interior da Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio
Grande do Sul, quanto de capitais como Manaus, Maceió, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Cuiabá
e Brasília. Cadaciclo de oficina durava 4 meses. Em determinado momento,chegamos a publicar uma an-
tologia das melhores produções de participantes. Além das oficinas, no mesmo período eu coordenei pela
internet um programasemanal de debates literários chamado “Balaio de Textos”, que se tornou famoso e útil
para jovens escritores/as que colocavam suas obras para discussão. Eu escolhia uma obra a cada semana e
postava na internet, para conhecimentodas pessoas, por nós chamadas então de “internautas”. Como ainda
se tratava de internet discada, com baixa velocidade e demora de resposta na rede, em ambos os casos cria-
mos uma linguagem tosca de comunicação por sinais,para agilizar o lag entre ida e vinda dos dados digitais.
Assim, ao pedir a palavra, digitava-se um PP. Um aparte se solicitava com um AP. Para evitar mal entendi-
dos, qualquer brincadeira era secundada por um sinal de ou :-)).

Minhas oficinas, virtuais e presenciais,já receberam participantes de 16 a 75 anos, de diferentes


extratos sociais. Por elas passaram mais de uma geração de escritores/as, mas também de jornalistas, pro-
fessores, advogados, médicos, psicólogos e psicanalistas, além de um bom número de estudantes das mais
diversas áreas. Nesse conjunto, convivi com pessoas inventivas e talentosas, que chegaram a se profissiona-
lizar e estão criando sua obra – como no caso de João Luiz Carrascoza, Nelson de Oliveira, Roberto Causo,
Flávio Paranhos, Thelma Guedes, João Peçanha, Marcus Vinicius Rodrigues, Antonio Lino, José Santana
Filho, Adelice Souza, Maurício de Almeida – entre muitos e muitas outras.

METODOLOGIA: NO RASTRO DE SÓCRATES

Com o passar dos anos, consegui aprimoraruma metodologia que se revelou satisfatória no treina-
mento da criação literária. O objetivo prioritário era descobrir as potencialidades da literatura como apri-
moramento da expressão pessoal. Antes de tudo, dou importância ao processo criativo como uma maneira
demergulhar no interior de si, para recolher do caos (mistério) pessoal a matéria prima que vai compor
sua expressão poética. Tenho convicção de que só existe criação poética em consonância com esse mistério
pessoal, como uma maneira intransferível de desbravar a selva interior. Há que se considerar para tanto os
instrumentos, ou seja, os recursos literários (linguagem aprimorada e adequada) para compreender melhor
esse caos pessoal e expressá-lo em forma de criações poéticas apresentadas ao mundo exterior. Consideran-
do que o modo de expressão de cada pessoa é único, sempre preferi o método socrático de encontrar dentro
de cada participante a sua forma expressiva particular, caótica e reveladora – ou seja, a maiêutica de Sócra-
tes. Jocosamente, eu comparava minha função à de um saca rolhas que ajuda as pessoas a botarem para fora
seu cabedal criativo.

Amealhei e sumarizei alguns tópicos para ajudar na criação do texto literário, que deixavam claros
os componentes da obra, com variantes em prosa ficcional ou em poesia. Os tópicos propunham: definir o
tema (com uma sinopse possível); escolher o tratamento (maneiras de abordar o tema, dandoprimazia ao
enredo ou à linguagem); não perder de vista a estrutura (espinha dorsal da obra, em prosa ou em versos);
elaborar personagens (habitantes do texto ficcional); definir o estilo (maneiras de expressar o texto); traba-
lhar o ritmo (andamento da obra, tanto nanarrativaquanto no poema). 

Sempre levei em conta que escreverliterariamente implica, de modo fundamental, saber analisar o
que se lê. Para tanto, no exercício da crítica criei alguns objetivos críticos que captassem o projeto e as várias
vertentes do constructo literário. Cada um dos itens da criação do texto merece especial atenção para uma

103
análise adequada do texto literário. A primazia deve ser dada ao projeto do autor/a e não às idiossincrasias
do leitor/a que faz a crítica. Daí porque enfatizei sempre a importância de conhecer o projeto subjacente
a cada obra, inclusive para saber se projeto e constructoconvergem, criando um resultado funcional, ou se
opõem, fragilizando a obra.

Esse período de 30 anos de prática oficinária me proporcionou uma experiência ímpar eme ofereceu
ganhos pessoais surpreendentes. Para além das amizades inestimáveis, não posso me furtar em reconhecer que
aprendi mais de literatura do que se eu próprio tivesse me especializado através de cursos específicos. Quando
comecei a escrever Ana em Veneza, em 1992, meu trabalho parecia tão insano que eu temia não conseguir ter-
minar a escritura do romance. O que me tranquilizou foi perceber uma diferença incrível com a escritura do
meu romance anterior. Tratava-sejustamente da descoberta de que eu estava muito mais seguro graças à longa
experiência literária que tinha adquirido enquanto coordenador de oficinas criativas de literatura.

Hoje posso responder com mais tranquilidadeà pergunta: é possível aprender a escrever litera-
riamente? Na tentativa de responder, cheguei a algumas conclusões. A mais óbvia: não há talento que se
aprenda, mas certamente pode ser burilado. Descobri também que a pedagogia literária não forma apenas
escritores/as. Trata-se de um grande espaço para aprender a ler literatura. Por fim, a experiência me deu a
convicção de que a literatura não interessa apenas a um grupo restrito de profissionais a ela relacionados.
Para além desse escopo reducionista, o conhecimento e aprendizado dos recursos literários servem para
ampliar a expressão pessoal de qualquer pessoa que se disponha a desbravar seu território criativo. A partir
dessa convicção, tentei insistentemente, durante muitos anos, abrir uma Escola de Criação Literária junto a
órgãos públicos ou em esquema de parceria público privada. Bati à porta de ministérios, secretarias e outras
instâncias culturais, inclusive o SESC e institutos ligados à área. Nunca consegui – talvez pelo parco charme
da profissão ou por minha reduzida capacidade de convencimento.

EXAME DE UM CASO

Uma das minhas experiências mais emblemáticas e desafiantes foi coordenar uma oficina literária de 3
meses, em 2013, para 30 jovens de 13 a 15 anos em situação de risco, no bairro de Campo Limpo, periferia de
São Paulo. Meu objetivo era levar a garotada – que obviamente se revelou bastante indisciplinada – a entender
a possibilidade e a importância de se expressar literariamente a partir de recursos da própria língua falada,para
enriquecer suaexpressão pessoal e comunicação com o mundo. Depois de trabalharcaracterísticas curiosas e
engraçadas da língua portuguesa, eu os apresentei à obra de diferentes poetas, desdeJorge Luis Borges, Pablo
Neruda, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Hilda Hilst e Paulo Leminsky
até versos de canções da MPB e dos rappersGOG e Black Alien. Aliás, aproveitei bastante letras de música po-
pular, incluindo Raul Seixas, Caetano Veloso, Chico Buarque,Cazuza, Cássia Eller,Criolo e cocos nordestinos
de Terezinha e Lindalva. Sempre que possível, utilizei vídeoclipes do YouTube, projetando as letras junto com
a respectiva música, para facilitar a compreensão e o interesse do grupo. Além de contos meus,apresentei tam-
bém obras de ficcionistascomo Dalton Trevisan, Arnaldo Antunes, Gil Veloso e Nelson de Oliveira. Cheguei
a utilizar desenhos animados para estimular o grupo nos exercícios escritos. Frequentemente, fiz sorteio de
livros entre a turminha. E organizei debates a partir dos (poucos) livros que estavam lendo.

Trabalhamos bem a expressividade, o ritmo, a sonoridade e a imagética das obras comentadas.


Encantou-os, por exemplo, a relação de metáforas que apresentei a partir de diversas obras, inclusive de
Guimarães Rosa. Uma atividade aparentemente banal mas eficientíssima é ensinar a turma jovem a ler/ouvir
poesia e lhes revelar a força das palavras articuladas por poetas. Basta, para tanto, uma leitura cuidadosa,
que enfatizava o que deve ser enfatizado na marcação dos versos,no ritmo daí resultante e na sonoridade do
poema – que eles podiam seguir através da projeção em DataShow, o que lhes permitia acompanhar mais

104
detidamente o texto. Por várias vezes, ouvi suas expressões de surpresa eencantamento: “Nossa, eu não sabia
que poesia era assim.” Lembro de uma ocasião em que um rapazinho – com quem eu tivera problemas dis-
ciplinares logo no início – me trouxe de presente uma caneca de louça em agradecimento por ter ido bem
numa prova escolar, graças – segundo ele – ao que tinha aprendido em nossos encontros.

O interessecrescente da garotada podia ser constatado pelo brilho nos olhos de muitos.Depois de sen-
tir alguma maturidade na sua percepção do sentido da poesia, dividi a classe em pequenos grupos e solicitei
que criassem um poema em conjunto. Os “poemas” que resultaram desse exercício eram bastante inexpressi-
vos– e eu não esperava nenhuma obra prima. Elegemos coletivamente o melhor poema produzido dentro dos-
pequenos grupos. Isso feito, passamos a discutir e reelaborar em conjunto o texto projetado no telão. De início,
nem todo mundo prestava atenção, mas contei com o fato de que mais cedo ou mais tarde o movimento cole-
tivo sempre desperta o interesse dos mais desatentos/as. Nopoema escolhido, via-se uma intenção subjacente
de agredir e desmerecer não só a autoridade do professor como também os valores que ele estaria “impondo”.
Nada surpreendente: os adolescentes estavam mais interessados em zoar. Se pudessemconstranger o professor,
melhor ainda. Daí as porcarias que foram inseridas nos seus textos, para esculhambar geral e fustigar a autori-
dade do posto de mestre. Isso não me afetou – para além das broncas pontuais e necessárias. Se me preocupei
com a terminologia chula desses jovens, foi apenas no sentido de acolher indistintamente o que tinham criado,
para inserir seu linguajar no contexto da poesia. Aliás, o rap há muito vem fazendo esse percurso para resgatar
a autoestima e, num mesmo movimento, trazer à tona a criatividade das culturas periféricas. Depois de debates
intensos para rever, corrigir e completar coletivamente, o poema foi considerado pronto. Eis o resultado:

O cagão

Comendo pipoca, assistindo filme


Bebendo refri – isso daria um poema.
Dormi ali – pensando num outro poema.
Fiz malabarismo com as maçãs
Antes de dá-las as minhas irmãs – isto com certeza já é um poema
Fui comer ovo, batata frita e tomei água – estaria bom este poema?
Mistureba que até chorei de pereba – aqui o outro poema.
Como assim?! Come casca de amendoim – ah não, que troço ruim!
Com uma meleca ali no chão, tomei um sustão – gostei do refrão.
E logo eu fui
Soltar um cagão.
(virou uma merda de poema!)

Ainda que o texto contivesse vários problemas de construção e de gramática, como o uso irregular
da pontuação e regências,o resultado me pareceu mais do que satisfatório. E para os adolescentes também,
conforme seus comentários públicos e espontâneos. Depois de ler o poema em voz alta ao microfone, vi
seus olhos brilharem de satisfação e ouvi várias expressões de surpresa: “Porra, a gente fez isso!...” De fato,
sem forçar a barra, a reescritura coletiva do poema nos tinha permitido compreender e aplicar os elementos
fundamentais da poesia: o projeto (dar sentido expressivo à obra); a estrutura (trabalhar com um mínimo
de articulação); a rítmica (através da marcação por refrões). Mesmo as rimas fáceis em ão funcionaram para
ressaltar o tom irônico e transgressivo – que permanecia no território linguístico deles, e resgatava poetica-
mente uma postura de rebeldia estereotipada que os adolescentes adoravam brandir. Tudo isso fora carreado
para uma articulação criativa que eles não tinham consciência de serem capazes – e se deram conta ali, ao
final. Creio que, através da construção de um poema, o grupo compreendeu um pouco melhor o sentido da
literatura. De quebra, sua autoestima se reforçou através da capacidade de criar.

105
Para encerrar os trabalhos da oficina, ao final dos 3 meses, eu lhes propus um exercício que os insti-
gasse a usar a expressão literária para se aproximar da sua vida interior tão defensiva e assustada – algo que
me interessava sobremaneira, tratando-se de jovens em situação de risco. Apresentei-lhes primeiro vários
videoclipes em que cantores e compositores falavam de suas experiências de vida, desde Roberto Carlos
e Cássia Eller a Paulinho da Viola e a cantora Céu. Então propus escreverem, em classe, um texto sobre o
tema “Quem sou eu?” O exercício visava provocar um mergulho interior e fazê-los tomar consciência de si
mesmos.A grande maioria escreveu o texto silenciosamente, depois de alguma relutância inicial – inclusive
me solicitando para ajudar a começar. Alguns poucos se recusaram terminantemente a fazer o exercício.
Durante a escritura muitos adolescentes choravam, alguns copiosamente, em especial as garotas. Uma delas
fez apenas rabiscos no papel,alegando que assim era ela – como se explicou de modo honesto mas ressenti-
do. Uma outra(que se mostrara agressiva e indisciplinada) escreveu mas recusou-se, em lágrimas, a entregar
o texto para leitura. Mais tarde, a orientadora educacional me informou sobre a grave situação familiar dessa
adolescente, comum histórico de assédio sexual por parte do pai. Era compreensível a dificuldade em se ver
como personagem de si mesma.

CONCLUSÃO:LITERATURA DO DESEQUILÍBRIO

O resultado da longaexperiência de pedagogia literária que venho tendo reitera minha convicção
de que a literatura resulta de um desequilíbrio. Tal como no processo educativo, ocorre a constatação de
que algo nos falta e precisamente essa falta acaba por nos mover à descoberta de novas instâncias de co-
nhecimento. É para encontrar um novo equilíbrio que buscamos a expressão literária. Ou seja, a percepção
de uma necessidade expressiva nos leva à construção mais elaborada da língua que falamos diariamente,
elevando-a a outro patamar de expressão e comunicação. Não há equilíbrio novo se não for precedido pela
percepção, até mesmo dolorosa, de um desequilíbrio que nosempurra adiante. Um poeta chinês do século
VIII chamado HanYucondensoumagnificamente o fenômeno literário: “A palavra é o mais perfeito dos sons
humanos. A literatura, por sua vez, é a mais perfeita forma de palavra. E assim, quando o equilíbrio se rompe,
o céu escolhe entre os homens os que são mais sensíveis e os faz ressoarem.”

Foi assim que “ressoei” literariamente, ao escrever minha mais recente obra: PAI, PAI. Na linhagem
doBildungsroman (romance de formação), narreiaí minha trajetória até o entendimento adulto, num processo
de conversão a mim mesmo através da literatura. No embate com a amargura e o ressentimento, que tanto
nos tentam pela vida afora, tive o privilégio de chegar a um desenlace literário transfigura-dor – se posso me
permitir essa expressão para “dor iluminada”. Não fui curado de nenhuma das minhas feridas– afinal, não
há cura para a experiência humana. Mais do que isso, a prática literária me permitiu maior aproximação ao
meu mistério. Não que eu tenha jamais almejado desvendá-lo. Ser escritor me permitiu corroborar e acolher
o sentido enigmático da minha existência. É dele que decorre minha capacidade de criar.

106
LA ESCUELA DE ESPECTADORES
DE BUENOS AIRES (2001-2018):
UN LABORATORIO DE
(AUTO)PERCEPCIÓN TEATRAL
Jorge Dubatti127

Al público se le puede enseñar –conste que digo público, no pueblo-,


se le puede enseñar, porque yo he visto patear a Debussy y a Ravel hace años,
y he asistido después a las clamorosas ovaciones que un público popular hacía
a las obras antes rechazadas. Estos autores fueron impuestos por un alto criterio
de autoridad superior al del público corriente, como Wedekind en Alemania
y Pirandello en Italia, y tantos otros. Hay necesidad de hacer esto para bien
del teatro y para gloria y jerarquía de los intérpretes.
Federico García Lorca (“Charla sobre teatro”, 2008: 429)

En los últimos años se ha asistido a la reconsideración del teatro como acontecimiento. El


teatro es algo que pasa y en ese algo se construye sentido. No se trata sólo de un acontecimiento de lenguaje
y comunicación. La base del acontecimiento teatral es la estructura ancestral de la reunión, el convivio, el
fenómeno humano de la cultura viviente en el que se genera una zona singular de experiencia y subjetivi-
dad colectiva. En el teatro, en una encrucijada de espacio y tiempo, se reúnen los artistas, los técnicos y los
espectadores (Dubatti, 2007, 2010, 2014).

Nadie va al teatro para estar solo. La reunión teatral consiste en vivir con los otros, sentir, mirar, emocio-
narse, interactuar, discutir con los otros. Es una reunión de cuerpo presente, aurática, territorial y efímera,
que no se deja intermediar tecnológicamente por la televisión, la radio, el cine, la red digital o cualquier otro
mecanismo de sustracción del cuerpo presente, porque desaparece en esencia, perece transformada en otro
tipo de acontecimiento. En el teatro no se puede sustraer la presencia de los cuerpos vivos del artista, del
técnico y del espectador. El teatro no se deja enlatar ni capturar con máquinas, de la misma manera que no
se puede detener el tiempo.

127. Jorge Dubatti (Buenos Aires, 1963) es crítico, historiador y docente universitario especializado en teatro. Doctor (Área de Historia y Teoría
de las Artes) por la Universidad de Buenos Aires. Ha publicado más de cien volúmenes (libros de ensayos, antologías, ediciones, compilaciones de
estudios, etc.) sobre teatro argentino y universal. Es responsable de la edición del teatro de Eduardo Pavlovsky, Ricardo Bartís, Rafael Spregelburd,
Daniel Veronese, Alejandro Urdapilleta, Alberto Vacarezza, entre otros. Entre sus libros figuran Filosofía del Teatro I, II y III, Concepciones de
teatro. Poéticas teatrales y bases epistemológicas, Del Centenario al Bicentenario: Dramaturgia. Metáforas de la Argentina en veinte piezas teatrales
1910-2010 (encargo del Fondo Nacional de las Artes), Cien años de teatro argentino, Teatro-matriz, teatro liminal. Estudios de Filosofía del Teatro y
Poética Comparada.. En 2015 el Rectorado de la Universidad de Buenos Aires le otorgó el Premio a la Excelencia Académica y la Honorable Cámara
de Diputados declaró de Interés “la obra del crítico cultural y cientista del arte Dr. Jorge Dubatti”. En 2017 recibió el Premio Konex Periodismo-
-Comunicación (Premio Diploma al Mérito) en la Categoría Crítica de Espectáculos Teatro-Danza-Cine.

107
Por eso sin espectadores no hay teatro. De la mano de la Semiótica y la Teoría de la Recepción, se ha
asistido a una valorización de la presencia y el rol del espectador en el acontecimiento teatral. El espectador
es un co-creador. Lo ha dicho el gran actor argentino Alfredo Alcón, que de esto sabía, en diálogo en la Es-
cuela de Espectadores de Buenos Aires: “El teatro se hace entre los que están abajo y los que están arriba del
escenario. Si el barrilete vuela, si se produce el hecho de comunión, es porque se hizo de a dos, no lo puede
hacer solamente el actor sin el público” (2003:14-15).

Se sabe que la palabra teatro proviene del griego y significa “mirador”. Sin embargo, el espectador no
se limita a “mirar” ni se resigna a la pasividad porque acepta que carece de la fuerza y el talento necesarios
para subir a escena. El teatrólogo italiano Marco De Marinis (En busca del actor y del espectador. Comprender
el teatro II) coincide con Alcón: “El espectador no es un actor fracasado sino uno de los dos protagonistas
de la relación teatral, de la misma manera en que no se puede evidentemente considerar al lector como un
escritor fracasado” (2005: 132). Felizmente el espectador se ha convertido en el lugar por excelencia para
repensar y redefinir el teatro. El espectador es hoy un laboratorio de (auto)percepción teatral.

Convivios excepcionales

Lo que otorga relevancia y singularidad al teatro actual en Buenos Aires no es solamente la calidad
de sus artistas sino sus convivios excepcionales, calientes, fervorosos y activos, que no dejan de llamar la
atención a los visitantes extranjeros acostumbrados a otros comportamientos de los espectadores en otras
capitales teatrales del mundo.

En Buenos Aires hay pasión de espectadores. El público porteño es un espectáculo en sí mismo.


Pero además los espectadores cumplen hoy una función esencial en el desarrollo y la difusión del teatro y
en la producción de pensamiento crítico. Lo que sostiene el teatro de Buenos Aires no es el periodismo ni
la publicidad sino el “boca en boca”, institución de la oralidad que consiste en la recomendación que realiza
directamente un espectador a otro, modalidad afianzada frente a la pauperización de la crítica profesional
en los medios masivos.

Por más avasalladora que sea la publicidad, por más elogiosas que sean las críticas profesionales, si a
los espectadores no les gusta el espectáculo la sala se vaciará muy pronto. O al revés: muchos espectáculos in-
dependientes que no han recibido comentarios en los medios, trabajan a sala llena. Otros, de cualquier circuito
(oficial, comercial, independiente), castigados con críticas negativas, sostienen sin embargo la convocatoria.
Es el efecto del “boca en boca” o “boca-oreja”. Imperceptiblemente trabaja la tupida red del “No te lo pierdas”,
el “Andá porque está muy bueno”, el “A mí me encantó”, o el “No vayas”, el “Me aburrí como loco”, expresiones
sinceras, desinteresadas y efectivas por confiables, dichas a los amigos, familiares, conocidos y extraños al pasar
de la conversación. El boca en boca se ha convertido en la institución crítica más potente de Buenos Aires.

Misterio

¿Quién es el espectador? Pregunta difícil de responder, porque se caracteriza por su imprevisibili-


dad e inasibilidad. Las encuestas sociosemióticas, los estudios de mercado, el conocimiento que da la ex-
periencia en el campo teatral durante años, no alcanzan para develar el misterio del funcionamiento del
público. Alfredo Alcón reflexionó sobre los espectadores en la reunión mencionada: “Hay días que uno tiene
la impresión de que no sabe para qué fueron al teatro esa noche. Hay funciones en que parece que se juntan
los que no tienen ganas de jugar. Hay días que el público está pintado. Solemos decir: ‘Son de (Saulo) Bena-
vente’, es decir, están dibujados, son de decorado”. Y agregó: “Tengo la fantasía de, alguna vez que el público

108
está así, adelantarme hasta candilejas y con una gillette cortarme las venas. Estoy seguro de que seguirían
impávidos. Esas noches no hay manera... Así como otros días el público se ríe de cualquier mínima monería.
Es tan difícil esa comunión” (2003: 14-15). En el convivio teatral el espectador es compañero (del latín, cum
panis, el que comparte el pan), de allí la importancia de su amigabilidad, de su disponibilidad.

Pero tal vez el mayor misterio radica en qué pasa en su interior, cómo piensa los espectáculos, qué lo
estimula, si se deja o no conducir por lo que la obra propone, por qué se aburre, por qué ríe, qué recuerda,
y qué hace con los espectáculos cuando terminan. August Strindberg mostró su preocupación por el públi-
co en el prólogo a La señorita Julia en 1888: “En la vida real, un acontecimiento -¡esto es, relativamente un
descubrimiento!- es, generalmente, el resultado de una serie de motivos más o menos profundos; pero el es-
pectador elige, en la mayoría de los casos, aquél que su mente entiende con mayor facilidad o el que enaltece
su propia capacidad de discernimiento. Alguien se suicida. ¡Problemas de negocios!, dice el burgués. ¡Amor
desgraciado!, dicen las mujeres. ¡Enfermedad!, dice el enfermo. ¡Esperanzas frustradas!, dice el fracasado.
¡Pero muy bien puede ocurrir que el motivo esté en todas partes, o en ninguna, y que el muerto haya ocul-
tado el motivo fundamental de su acción destacando otro cualquiera que embellezca considerablemente su
memoria!” (1982: 91-92). Tempranamente Strindberg desestima la posibilidad de guiar al espectador en una
única dirección de estímulo. El espectador hace con los espectáculos lo que quiere (en materia de subjetivi-
dad), y lo que puede (en materia de formación).

Escuela de Espectadores

Hoy el espectador teatral es consciente de la complejidad y la riqueza que ha alcanzado el teatro


contemporáneo. Es curioso, inquieto, ávido de novedad, información y claves de interpretación. Sabe, como
afirmó Theodor Adorno en su Teoría Estética, que “ha llegado a ser evidente que nada referente al arte es
evidente” (2004: 9) y que en materia teatral cada poética, cada técnica, cada artista, cada obra deben ser
comprendidos y analizados con variables específicas. Ha hecho suyo el desafío que le plantea Hamlet a
Guildenstern, cuando en el Acto III, Escena II, lo obliga a tocar una pequeña flauta y ante la negativa de
Guildenstern lo enfrenta: “Pues, entonces debo de parecerte muy indigno. Tú tratas de arrancarme música;
parece que conocieras mis registros, y pulsaras el corazón de mi secreto. Querrías hacer que sonaran desde
mis notas más graves hasta la más aguda de mi diapasón, y a pesar de que hay música, y excelente voz, en
este pequeño instrumento [la flauta], no puedes hacerlo hablar. ¡Sangre de Cristo! ¿Creéis vosotros que soy
más fácil de hacer sonar que una flautita?” (Hamlet, Acto III, Escena II). El espectador siente que cada artista
renueva en él el interrogante shakesperiano a través de una pregunta radical: ¿crees que estás preparado para
hacer sonar el alma de mi teatro? O como señaló Federico García Lorca (“En honor de Lola Membrives”):
“El teatro es superior al público y no inferior, como ocurre con lamentable frecuencia” (2008: 419). El espec-
tador actual es francamente politeísta, abierto y colaborador. Pero por sobre todo es consciente de que para
acceder a esas claves hay que estudiar, leer, conocer. No es lo mismo abordar una performance política, un
texto de Calderón de la Barca, la danza-teatro o un retablo titiritero.

Señal de esta necesidad es la creación de la Escuela de Espectadores de Buenos Aires, manifestación


de los cambios del teatro argentino en el siglo XXI (véanse al respecto nuestras reflexiones en Dubatti, 2015
y 2016).

Fundada en 2001, la Escuela cuenta desde 2007 con 340 alumnos (y actualmente con una lista de
espera de 1200 interesados), así como su irradiación en Córdoba, Rosario, Neuquén, Mar del Plata, Bahía
Blanca, Tandil, Santa Fe y próximamente Tucumán. Siguiendo el modelo de la Escuela de Espectadores de
Buenos Aires se gestaron espacios semejantes en México DF. (2004), Montevideo (2006), La Paz (2012),
Lima (2012), Porto Alegre (2012), Medellín (2013), Universidad Autónoma de México (UNAM, Aula del

109
Espectador, 2015), Caracas (2016), Costa Rica (2016), conectados entre sí. La actitud estudiosa del especta-
dor desplaza un teatro de placer por un teatro de goce, de acuerdo con los términos de Roland Barthes apli-
cados a la literatura: “Texto de placer: el que contenta, colma, da euforia, proviene de la cultura y está ligado
a una práctica confortable de la lectura. Texto de goce: el que pone en estado de pérdida, desacomoda (tal vez
incluso hasta una forma de aburrimiento), hace vacilar los fundamentos históricos, culturales, psicológicos
del lector, la congruencia de sus gustos, de sus valores y de sus recuerdos, pone en crisis su relación con el
lenguaje” (2004: 25).

Un teatro de goce implica esfuerzo, deseo, adquisiciones y búsqueda permanente. Y sobre todo la
necesidad de elaborar parámetros críticos de análisis y evaluación de los espectáculos. El nuevo espectador
lo sabe, es criterioso y argumentativo. Y un espectador que valora de esta manera el teatro es un tesoro cul-
tural en cualquier parte del mundo.

La Escuela de Espectadores de Buenos Aires (EEBA) es un espacio de estudio, análisis y discusión


de los espectáculos teatrales en cartel en la ciudad al que hoy concurren trescientos cuarenta alumnos. La
actividad es anual, de marzo a diciembre y lleva ya trece años de labor ininterrumpida. Los integrantes de
la Escuela asisten a una serie de espectáculos, acordados previamente, de diferentes circuitos del teatro
porteño (oficial, independiente, comercial, internacional, proveniente de las provincias) y luego los analizan
con nuestra coordinación al frente de la clase y con la asistencia de los teatristas creadores del espectáculo
analizado. El campo de espectáculos considerados es abarcador de la teatralidad poética: teatro, danza, ópe-
ra, narración oral, circo, teatro callejero, títeres, performance arts...

La riqueza de la actividad teatral de Buenos Aires exigía la existencia de un espacio de este tipo. El
nombre Escuela de Espectadores es homenaje a la crítica francesa Anne Ubersfeld y está tomado de uno de
sus grandes libros.

La EEBA se propone brindar a sus asistentes las herramientas necesarias para multiplicar el disfrute
y la comprensión de los espectáculos con profundidad y comunicabilidad. El objetivo es ampliar y enrique-
cer su horizonte cultural, emocional e intelectual como espectadores y producir pensamiento crítico, de
acuerdo con lo observado por García Lorca en el texto del epígrafe que abre estas páginas. No se trata de
“perder” una relación directa, empática o intuitiva con el teatro, sino de enriquecerla con saberes específicos
y otras actividades complementarias del conocimiento teatral. Se trata también de adquirir los elementos
necesarios para argumentar y discutir las poéticas en marcos axiológicos. El espectador debe saber evaluar y
argumentar y para ello hacen falta información y herramientas de juicio. La EEBA está destinada a todos los
amantes del teatro, no se requieren estudios previos, solamente es indispensable tener el deseo de reflexio-
nar, discutir, estudiar, interpretar, evaluar el teatro que se hace actualmente en Buenos Aires o que pasa por
sus escenarios. A la EEBA asisten aquellas personas que gozan del teatro en tanto “simples” espectadores y
las vinculadas laboralmente a la actividad escénica: actores, directores, escenógrafos, críticos, historiadores,
gestores. El coordinador de la Escuela no asume una posición conductista, sino el lugar de un estimulador,
de un agitador. Estimula a los espectadores para que cada cual realice su propia creación receptiva.

Fundamentos
Las razones de necesidad de existencia de la EEBA constituyen un conjunto de principios que guían
nuestra tarea y que apuntan a la configuración y afianzamiento de una comunidad hermenéutica abierta a
la multiplicidad:

1. valorar el lugar del espectador como laboratorio de percepción de la teatralidad, a la


par testigo y protagonista del acontecimiento, co-creador en la poíesis receptiva.

110
2. estimular la actividad autónoma del espectador como un creador compañero de los
artistas, los técnicos y los otros espectadores (y cuando decimos estimular –insistimos
en esto, queremos decir: no conducir ni homogeneizar ni unificar, sino ofrecer herra-
mientas de multiplicación para que cada espectador construya su propia relación con
el espectáculo).

3. consolidar la institución de la oralidad, el boca-en-boca, y su complemento, la nueva fi-


gura del espectador-crítico, que constituyen la más importante fuente de producción de
pensamiento crítico teatral en el presente y mantienen vivo el teatro de Buenos Aires.

4. considerar el teatro como una cantera ilimitada de saberes y pensamiento, cuya intelec-
ción requiere formación específica y en disciplinas complementarias, así como muchas
horas de estudio y análisis y la disposición de corpus y materiales de archivo. Frente a la
des-definición del teatro, la relevancia de lo conceptual y el auge de la desdelimitación
en la formulación de las poéticas del siglo XX y XXI, disponer de información histórica
y categorías intelectuales precisas para la comprensión de los acontecimientos teatrales.

5. seleccionar y orientarse en la diversidad, a partir de criterios de valoración elaborados


críticamente.

6. acceder a la subjetividad de los artistas en un espacio de encuentro y diálogo por fuera


del acontecimiento teatral.

7. hacer del estudio teatrológico no una materia más de educación formal –grillas a com-
pletar, cuestionarios, exámenes, monografías, etc.- sino un puro espacio de goce que
recupera el teatro como placer, alegría, ocio, diálogo, pensamiento, conocimiento, me-
ditación, problematización y transformación de la realidad y lo desburocratiza de otros
marcos pedagógicos, sin obligaciones de “cursada”.

8. asistir regularmente al teatro y aportar a una historia del presente.

9. crear un espacio de permanente formación histórica y teórica, destinado a la renovaci-


ón de la teatrología argentina.

10. distinguir las categorías y prácticas del gusto de las analíticas y argumentativas.

11. trabajar en la revelación del espectador histórico o empírico a través del diálogo, entre-
vistas, encuestas, estadísticas, testimonios conviviales y autobiografías de espectador.

La EEBA cuenta ya con dieciocho años de historia. Comenzó en marzo de 2001 en el Teatro Liberarte
de Buenos Aires y desde 2003 funciona en el Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini. Entre 2001
y 2016 inclusive se analizaron unos setecientos espectáculos y asistieron a la Escuela un millar de teatristas
de diferentes disciplinas –actores, bailarines, dramaturgos, directores, escenógrafos, iluminadores, músicos,
narradores, gestores, etc. Reconocida como espacio de producción de pensamiento crítico y formación, la
EEBA ha sido visitada también por especialistas en teatro de diversos países. La EEBA ha realizado además sus
actividades desde 2003 en diversos Festivales Internacionales, como el Festival Internacional de Buenos Aires,
la Muestra Nacional de Teatro de México en San Luis Potosí y el Festival Cervantino de Azul. También tuvo
intervención en Tintas Frescas (2004), coproducido por Francia y Argentina. La Escuela se ha realizado además
en la cárcel, en Devoto y en Ezeiza, con los presidiarios, llevando los espectáculos a los edificios penitenciarios.

Casi en el cierre del año, en noviembre, los espectadores que integran la EEBA realizan un balance
crítico de todo lo visto y analizado durante el año y eligen los diez acontecimientos de trabajo más importan-
tes de la temporada. En diciembre, en una ceremonia especial, los espectadores entregan a los premiados los

111
diplomas de la distinción: el Premio del Espectador. El premio es celebrado en el campo teatral de Buenos
Aires por su singularidad: es la única distinción al teatro argentino que otorga directamente el público a
partir de sus propios códigos de selección. La EEBA cuenta con un archivo de sus tareas, publicaciones y es-
tudios (de próxima publicación, ver Bibliografía) sobre poética del teatro argentino, estructuras conviviales
y praxis de los espectadores.

REFÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

Adorno, Theodor, Teoría estética, Madrid, Akal, 2004. turas”, en Luis Alberto Quevedo, compilador, La cultura
argentina hoy. Tendencias!, Buenos Aires, Siglo Veintiuno
Alcón, Alfredo, “El actor y el espectador” (Entrevista reali-
Editores y Fundación OSDE, 2015, 151-196.
zada por Jorge Dubatti), Palos y Piedras. Revista de Política
Teatral, a. I, n. 1 (noviembre 2003), pp. 11-15. ----------, Hacia un espectador compañero. La experiencia
de la Escuela de Espectadores de Buenos Aires (2001-2016),
Barthes, Roland, El placer del texto y Lección inaugural de la
Buenos Aires, Atuel, 2016 (en prensa).
Cátedra de Semiología Literaria del Collège de France, Méxi-
co, Siglo XXI Editores, 2004. García Lorca, Federico, “En honor de Lola Membrives”
y “Charla sobre teatro”, en su Obra completa VI. Prosa, 1,
De Marinis, Marco, “Tener experiencia del arte. Hacia una
ed. Miguel García-Posada, Madrid, Akal, 2008, respectiva-
revisión de las relaciones teoría/práctica en el marco de la
mente 416-420 y 427-430.
nueva teatrología”, en su En busca del actor y del espectador.
Comprender el teatro II, Buenos Aires, Galerna, 2005, 127- Shakespeare, William, The Complete Works, Oxford Uni-
134. versity Press, 1995.
Dubatti, Jorge, Filosofía del Teatro I. Convivio, experien- Strindberg, August, “Prólogo [a La Señorita Julia]”, en su
cia, subjetividad, Buenos Aires, Atuel, 2007. Teatro escogido, Madrid, Alianza Tres, 1982, 89-104.
----------, Filosofía del Teatro II. Cuerpo poético y función Ubersfeld, Anne, Lire le theatre (I), Paris, Editions Sociales,
ontológica, Buenos Aires, Atuel, 2010. 1977. Traducción al castellano: Semiótica teatral, Madrid,
Cátedra y Universidad de Murcia, 1993.
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Buenos Aires, Atuel, 2014. ----------, Lire le theatre II. L’école du spectateur, Paris, Edi-
tions Sociales, 1981. Traducción al castellano: La escuela del
----------, “La escena teatral argentina en el siglo XXI.
espectador, Madrid, Ediciones de la ADE, 1998.
Permanencia, transformaciones, intensificaciones, aper-

112
ARTE PARA O POVO É
RECONSTRUÇÃO E RESISTÊNCIA
Ana Mae Barbosa128

R eclamamos muito que no Brasil as Artes são dominadas pelas elites, mas as Artes não são
naturalmente das elites. As elites as dominam porque nós permitimos Primero repetimos a desqualificação
que a linguagem popular faz das artes com expressões cotidianas, todas negativas. Se o aluno foi mal na
prova ele nos diz : Dancei na prova de matemática. Se as mulheres são assediadas dizem : Aquele cara me
cantou .Se alguém está nervoso o outro reclama: Deixa de drama. Mas o pior mesmo é a frase: Entendeu
ou quer que eu desenhe? Estão dizendo que quem entende pelo desenho é burro?

As instituições de Arte Erudita alijaram por tanto tempo o povo do convívio com as Artes que a
população atribui suas ações a comportamentos negativos.

Relegado o povo cria sua própria Arte.

Neste ensaio falarei de dois projetos, o primeiro de Arte/Educação para o povo junto ao MST e o
outro da criação de um Museu para o povo.

No primeiro caso a Arte reconstruindo suas relações com o povo no segundo caso um museu criado
pelos artistas para o povo. Trata-se do Museu Salvador Alende em Santiago no Chile.

O MST ou MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA não é algo novo na
História do Brasil, nem da América Latina. As lutas por uma reforma agrária ou distribuição equânime de
terras começaram ainda nos tempos da colonização européia na América do Sul ,mas no século XX o Méxi-
co foi o único país a ter uma reforma agrária nesta parte do mundo.

No Brasil somente no início da década de 60 os trabalhadores rurais tiveram uma legislação que lhes
garantisse salário mínimo , férias e aposentadoria, graças a um movimento denominado Ligas Campone-
sas. A ditadura militar instalada em 1964 no Brasil não eliminou estes direitos mas perseguiu os campone-
ses, matou seus líderes e extinguiu todo e qualquer movimento organizado.

Com o fim da Ditadura ( década de 80) surgiu o MST .

128. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Pernambuco (1960). Possui Mestrado em Art Education pela Southern Connecticut State
College (1974) e Doutorado em Humanistic Education – Boston University (1978). Ensinou na Yale University e na The Ohio State University. Foi
pesquisadora visitante da University of Central England, da Universidade do Texas e da Columbia University. Recebeu a Comenda Nacional do
Mérito Científico do MCT Brasil, o Prêmio Edwin Ziegfield, USA, o Premio Internacional Herbert Read e o Achievement Award pela contribuição e
liderança na Arte/Educação nos Estados Unidos, entre outros. Atualmente é professora Titular Aposentada da Universidade de São Paulo orientando
Doutorado e Professora da Universidade Anhembi Morumbi.

113
Seus participantes são os nômades dos tempos modernos . Os muitos grupos do MST no Brasil
vivem de terra em terra clamando pelo direito de cultiva-las e de em assim sendo, eles próprios criarem
raízes . O respeito pela educação e a busca pelos meios adequados de educar seus filhos para uma sociedade
melhor e mais inclusiva foi uma característica desde o inicio do MST.

Nas escolas do MST, que em geral são organizadas nas melhores edificações dos assentamentos ou
nas melhores tendas nos acampamentos, a foto de Paulo Freire é pendurada com respeito. A despeito do
esquecimento ao qual Paulo Freire vem sendo gradativamente condenado no Brasil os que têm consciência
política valorizam suas idéias e sua obra em todo o mundo.

Nos Estados Unidos se atribui a Paulo Freire a raiz da Pedagogia Questionadora e da Pedagogia
Cultural que a vanguarda da educação americana vem desenvolvendo. Foram os educadores questionadores
e os adeptos da Pedagogia Cultural que fizeram nos Estados Unidos um dos mais significativos protestos
contra a Guerra do Iraque . Convocaram a população para ir aos museus que têm Arte da Mesopotamia ,
Arte Sumeriana, Arte da Babilônia e da Caldeia, enfim exemplares de Arte Antiga da região hoje denomina-
da Iraque, armada de papel, prancheta e lápis para fazer desenhos de observação nas galerias. Construindo
um site com os resultados.

A desvalorização de Paulo Freire em sua própria terra começou quando ele ainda vivia, através da
instituição educacional mais importante do Brasil, o Ministério de Educação . Para planejar os Parâmetros
Curriculares Nacionais contrataram um educador espanhol, que havia fracassado ao desenhar o próprio
currículo nacional da Espanha, deixando de lado a extraordinária experiência de re-orientação curricular
feita por Paulo Freire quando foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo.(Paulo Freire/Mário Cor-
tela 1989-1992).

É graças ao trabalho de Paulo Freire, apesar do desmantelamento da educação feito por prefeitos
posterior, que os professores da rede pública municipal de São Paulo são considerados até hoje os mais bem
preparados e mais questionadores do país.

Penso que os namoros do MST com a Arte têm não só a influencia de Sebastião Salgado mas tam-
bém de Paulo Freire . O grupo de Artes era o maior dentre a equipe de Reorientação Curricular de Paulo
Freire e seu projeto educacional foi o que no Brasil efetivamente mais espaço deu à Arte.

Ainda em 1995 lideres do assentamento do MST de João Câmara no Rio Grande do Norte procu-
raram a Escolinha de Arte Newton Navarro em Natal pedindo professores para implementarem com eles
um programa de Arte na sua escola. A Escolinha de Arte Newton Navarro era na,época uma das poucas
remanescentes do Movimento Escolinhas de Arte de Augusto Rodrigues que chegou a ter 140 unidades no
Brasil e uma no Paraguai criada pelo artista Lívio Abramo, duas na Argentina e mais uma em Lisboa.

Wandecí de Oliveira Holanda, ex aluna minha, comandou a equipe de professores que dialogando
com os lideres do assentamento levantou as necessidades do grupo de adolescentes e crianças com o qual
iam trabalhar. Perguntei a ela o que os pais esperavam do ensino da Arte . Ela me contou que uma das mães
lhe dissera : _Eu sei que Arte é coisa de rico mas eu quero para meu filho.

A cidade de João Câmara tinha um dos menores índices de desenvolvimento humano do Brasil.
Apesar disto o trabalho foi muito bem sucedido. Fizeram Teatro com Lenilton Teixeira e Edson Moura dois
dos melhores professores de Teatro do Brasil. Todos costuravam, meninos, meninas, mães e professores
para fazerem os figurinos das peças aproveitando roupas velhas. O professor de música trabalhou com um
sanfoneiro do assentamento e usaram o sistema de alto-falantes destinado à informação sobre os problemas
comuns, desta vez para divertir a todos. Os professores de Artes Visuais os ensinaram a reciclar papel atra-
vés de um projeto interligando Arte e Ecologia.

114
Enfim, formaram um grupo de adolescentes multiplicadores das experiências e conseguiram levar
projetos semelhantes para outros assentamentos como Ceará Mirim, Pau d’Óleo, Taipú . etc Da equipe de
professores muitos foram alunos de Vera Rocha que desenvolveu o teatro popular em Natal a partir da Uni-
versidade.

A enorme experiência de Vera Rocha com Teatro em comunidades pobres a preparou muito bem
para coordenar as disciplinas das Artes em outro bem articulado projeto de Educação do MST desta vez
com a própria Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Trata-se do Curso “Pedagogia da Terra” que
teve lugar no Campus Avançado de Santa Cruz a três horas de Natal,(a capital do estado) sob a Coordenação
Geral da competente Prof. Dra Marta Pernambuco.

MST e Universidade sentaram juntos para delinear o programa para “habilitar professores de áreas
de assentamento por meio de curso superior para docência em Educação Infantil e nas séries iniciais do
Ensino Fundamental regular e para jovens e adultos”.129

O currículo interrelaciona atividades presenciais intensivas e ensino à distancia , mas o que impres-
siona muito é o largo espaço dado às Artes .

Havia enorme preocupação em ampliar a cultura dos alunos/professores sem menosprezar a cultura
que traziam. Valia créditos no currículo, por exemplo, vinte horas de atividades culturais que significavam
ir a espetáculos teatrais e de dança , ver exposições, assistir a vídeos, ir a Museus, etc, tudo programado em
conjunto com professores, levando a discussões em grupo posteriormente.

Outras vinte horas eram dedicadas ao fazer artístico através de três oficinas ,entre as quais se divi-
diam os sessenta alunos.

Os alunos eram indicados pelos lideres dos 1620 assentamentos dos Estados do Nordeste naquele
momento. mas tinham de enfrentar o Vestibular, exame de ingresso. Portanto os alunos/professores tinham
de passar por duas peneiras: a do MST e a da Universidade.

Além das disciplinas propriamente pedagógicas o curso não perdia de vista as peculiaridades do
campo, a questão agrária, o cooperativismo, as características do semi-árido, a ecologia, o multiculturalismo.

Em nome deste Multiculturalismo, nas atividades artísticas oferecidas para apreciação, se procurava
interrelacionar o erudito e o popular na articulação interna destes códigos : ver o que há de erudito no po-
pular e vice versa. Para isto o Nordeste tem grandes mestres , entre eles Câmara Cascudo e Ariano Suassuna
e mais recentemente Alembergue Quindins.

A dialogicidade de Paulo Freire articulava disciplinas, ações, teoria e prática além de se instituir
como a metodologia dominante do curso.

Foi lá no Rio Grande do Norte que Paulo Freire no início dos anos 60 sistematizou sua Pedagogia e
lá testemunhamos essa resposta alvissareira.

Houve nos anos 90 mais cinco cursos universitários em outras universidades em parceria com mo-
vimentos sociais, mas nenhum deu tanto espaço para as ARTES como o da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.

As Universidades Públicas começavam a ser mais flexíveis podendo gerar diferentes modelos de
ensino além dos modelos europeus e norte americanos que nos dominam. Estavam criando cursos para

129. Entrevista com Marta Pernambuco

115
atender a reais demandas sociais escapando portanto da ditadura das habilidades e competências meramen-
te capitalistas.

A Universidade de São Paulo, a mais importante do país, deu um grande passo no sentido de res-
ponder às necessidades sociais com a criação do Campus Leste, região mais pobre da cidade de São Paulo.
Contudo, seu estatuto foi um entrave porque não permite duplicação de cursos. Como a USP já tem Curso
de Medicina dificilmente vai ser possível criar outro na Zona Leste onde cursos ligados à área de Saúde se
mostram até hoje como os mais necessários Também foram pedidos pela comunidade, naquela época cur-
sos de Artes. Poderiam ter sido criados na USP Leste cursos de Artes com a tônica na diversidade já que os
da ECA valorizam apenas o código europeu e norte americano branco.

Não estou falando de cursos de Artes para pobres mas cursos Multiculturais de Arte como eram
multiculturais as disciplinas de Artes do curso Pedagogia da Terra da UFRGN.

Com frequência recomendo a meus alunos de Doutorado da USP irem a USP Leste em busca de
cursos que considerem a Arte como campo expandido para outras mídias como a indústria Têxtil e o Design
de superfície.

Arte como permanente reconstrução é o caminho para sua democratização.

Já o Museu Salvador Allende posso apresentar como um caso resistência institucional.

O Museu da Solidariedade do Chile surgiu como movimento e conceito em 1971, mas só , em


setembro de 1999 teve inaugurada o sua primeira sede .Todas as obras que constituíam seu acervo foram
doadas pelos próprios artistas.

Tudo teve início com J. Maria Galvan e com o brasileiro Mário Pedrosa que exilado no Chile come-
çou a trabalhar febrilmente para criar um museu internacional de arte contemporânea. Como vice presiden-
te da Associação Internacional de Críticos de Arte presidiu o Comitê de Solidariedade Artística, destinado
a criar o Museu, entusiasticamente aprovado pelo Presidente Allende que, em sua “Mensagem aos artistas
do mundo”, os conclamou a colaborarem com o processo de transformação social do Chile mobilizando
meios de “acelerar o desenvolvimento material e espiritual de suas gentes”.

Em 1973 quando Allende foi assassinado muitas das 384 obras que já haviam sido doadas estavam
sendo expostas no Edifício Gabriela Mistral e em um Museu de Arte Contemporânea que já existia mas
com um acervo pobre e principalmente nacional.

Aqueles que estavam envolvidos com o Museu da Solidariedade se exilaram e falou-se na imprensa
que as obras haviam desaparecido . Entretanto estiveram todos estes anos na reserva técnica do Museu de Arte
Contemporânea que foi fechado pela ditadura e reaberto posteriormente, em outro local. Uma tela de Frank
Stella de grandes dimensões passou 27anos enrolada e escondida entre as obras do Museu de Arte Contempo-
rânea .É, sem dúvida a mais importante obra de Stella em acervos abertos ao público da América Latina.

Enquanto esperavam no exílio em Paris que a democracia voltasse ao Chile os criadores do museu
constituíram um secretariado composto por Miguel Rojas Mix, Pedro Miras, José Balmes, Miria Contreras
, Mário Pedrosa e outros e continuaram sua campanha de arrecadação de obras para o Museu da Solida-
riedade.  Os chilenos exílados mantiveram em suas próprias casas os quadros e peças que continuavam
chegando, como um sinal de «resistência» à ditadura militar. Assim conseguiram em torno de 700 obras.
Hoje o acervo é de 2.500 obras.

Artistas como : Miro, Antônio Saura, César Baldaccini, Lígia Clark(um dos Bichos ),Sérgio
Camargo, Cuevas, Calder, Chilida, Conagar, Cruz Diez,Figari, Gamarra,Kitaj, Wilfred Lam, Julio Le

116
Parc,Felipe Noé, Zoran Music,Oteiza, Claes Oldenburg, Arthur Luis Pizza,Antonio Segui,Jesus Rafael Soto,
Siqueiros, Portocarrero, Soulages, Tapies,Torres Garcia , Vasarely e Vostell além do já citado Frank Stella fo-
ram especialmente generosos(ou suas famílias) doando obras significativas de suas respectivas iconografias.

De artistas brasileiros, além dos já mencionados, há obras também significativas de Sérvulo Esme-
raldo, Franz Krajcberg, Maurício Nogueira Lima, Flávio Shiró, Claudio Tozzi, etc.

Nenhum artista caiu no pecado de alguns artistas brasileiros de doar algo sem importância ao Mu-
seu só para atender a um pedido ou algo não significativo , por exemplo, obra criada para ser efêmera mas
oferecida ao museu para ver se dura mais um tempo ou ainda oferecida por ser de grande formato e o artista
não ter onde guardar.

As obras que os artistas do Museu da Solidariedade Salvador Allende doaram são de alta qualidade
e os representam significativamente no acervo.

A mostra Espanhola ,que ocupa duas salas é quase completa, representando muito bem as três
décadas 50,60 e 70 às quais o museu é dedicado. Os principais grupos de vanguarda da Espanha estão re-
presentados de modo a serem claramente definiveis através das obras que doaram. Os Grupos, Dau al Set
de Barcelona, El Paso de Madrid e Crónica de Valência exaltam abstração magicista, abstracionismo escul-
tórico geométrico e pop político na coleção. Aliás ,são muitas as obras que fazem referência a problemas
político-sociais, principalmente entre os anos 65 e 80.

O trabalho de Educação começou mesmo antes do Museu ter a sua sede.

Já há algum tempo em um ônibus que cruza constantemente o país, chegando às regiões mais pobres,
o Museu vem levando obras e professores para mostrar Arte e preparar o público para seu entendimento.

O Museu da Solidariedade pertence à Fundação Salvador Allende que foi inicialmente dirigida pela
filha do ex. presidente, Isabel Allende ( a novelista é a sua prima).

Sua primeira sede foi um edifício de quase 120 anos pertencente à Prefeitura de Santiago Foi res-
taurado por governos espanhóis municipais e lá funcionou no passado uma Escola Normal . A antiga capela
era um espaço destinado à instalações e foi inaugurado pelo trabalho Ex It de Yoko Ono que constava de
100 ataúdes de adultos e crianças , sem identificação, dos quais emergia uma árvore. Escutava-se cantos de
pássaros numa obvia alegoria ao ciclo da vida que no contexto específico pode ser literalmente interpretada
como alusão a matança dos anos 70 e ao renascimento pós ditadura. Esta instalação estava muito aquém da
qualidade das obras do acervo mas funcionou quase como exorcismo para o público.

Depois da ditadura Carmem Waugh foi a primeira diretora do museu .

Nos anos de exílio trabalhou na Nicarágua ,com o Ministro da Cultura Ernesto Cardenal, formando
um museu para o país.

Mais de 30 anos após a morte do presidente socialista que sonhou em aproximar a arte das camadas
populares, o Museu da Solidariedade Salvador Allende no dia 19/07/2006 em Santiago no Chile, inaugurou
sua sede definitiva.

 A casa de dois mil metros quadrados , construída em 1920, foi ocupada durante a ditadura de Pino-
chet pelos agentes secretos da Central Nacional de Informações, que a usaram como centro de espionagem
telefônica.

Esta sede permanente foi inaugurada pela Deputada Isabel Allende que disse.  “Este era um sonho
de meu pai: aproximar a arte contemporânea do mundo popular. Esperamos agora realizar este sonho, ao

117
inaugurar esta sede definitiva do museu, após um trajeto errante das obras por diversos locais nas últimas
décadas”.130

Nas vésperas de seu assassinato ao inaugurar a exposição das primeiras obras doadas Allende agra-
decendo o apoio dos artistas, disse “Este museu será o primeiro em um país do Terceiro Mundo que, por
vontade dos próprios artistas, aproxima as manifestações mais altas da plástica contemporânea às grandes
massas populares”,

Mário Pedrosa estaria muito feliz com a casa definitiva do Museu da Solidariedade, o qual continua
sem medo de pensamento político nas Artes e continua engajado na educação do “Homem(/Mulher) Povo
do Chile” como queria Allende.

Para mim o desejo das mães do MST de Arte para seus filhos e o desejo de Salvador Allende de
Arte para o povo se irmanaram e provocaram gestos de resistência que tem levado a reconstrução social na
América Latina.

130. http://vermelho.org.br/noticia/5412-1

118
O PROFESSOR MEDIADOR
DE ARTES VISUAIS
Gabriela Bon131

A cada aula, o professor de Artes Visuais é atravessado por inúmeros conteúdos e temas cotidia-
nos que não podemos simplesmente ignorar por não estarem diretamente inclusos no programa didático de
cada turma. Por mais que haja um cronograma específico para nossas aulas, seja através da mídia aberta ou
das redes sociais da internet, outras pautas acerca da Arte, em especial da Arte Contemporânea, se impõe e
precisam ser levadas em consideração nas discussões com os alunos ou ainda com seus responsáveis.

Para além de dar aulas de forma tradicional, o professor de Artes Visuais precisa atuar como um
mediador de exposições ou ainda como um detonador de reflexões na comunidade escolar em que está in-
serido. Cabe destacar que, postular para si este papel de mediador de forma mais distendida requer muitos
cuidados, pesquisa, sensibilidade e afeto. E, quando falamos em afeto, não estamos falando somente de afei-
ção; estamos somando a este sentimento também a ideia de afetar e deixar-se afetar pela Arte, conviver de
forma mais estreita com as exposições, com as instituições, com os demais profissionais do campo das Artes
Visuais e, se possível, com artistas contemporâneos e críticos de Arte. Claro que nem sempre o convívio
interpessoal e direto é possível, mas os textos e sites da internet, bem como as instituições de acesso público
podem ser facilmente acessados pelo professor que se dispuser a trazer este universo para sua comunidade.

Desta forma, o objetivo principal deste texto é trazer alguns subsídios para que professores de Artes
Visuais transformem visitas a Museus em Aulas de Campo, as quais pressupõem pesquisa, reflexão e ação
durante uma experiência prática e extremamente profícua.

Aula de Campo nas Artes Visuais

Em diversas áreas, como na Biologia ou na Geografia, por exemplo, o conceito de Aula de Campo é
bastante difundido e aceito, não só como um recurso auxiliar de ensino e aprendizagem, como também um
importante aporte metodológico aos docentes em sua constante busca de novos processos empíricos que
sejam mais significativos, perspicazes e profícuos para os alunos (SOUSA; et al. 2016, online).

Diferentemente de uma aula teórica e expositiva, na qual o professor traz um número bastante limi-
tado de fontes e materiais, uma “visita” ou “excursão” possibilita tanto ao próprio aluno, quanto ao professor,

131. Graduada em Artes Plásticas, com habilitação em História, Teoria e Crítica de Arte (2003). Fez Especialização em Museologia e Patrimônio
Cultural, 2005. Mestra em Educação (2012), na Linha de Pesquisa Educação, Arte, Linguagem e Tecnologia, com bolsa Capes/Prof. Doutora em
Educação (2016), na Linha de Pesquisa Educação, Arte e Currículo, com bolsa Capes DS. Fez Estágio de Doutorado Sanduíche (2015) em Madri,
Espanha, com bolsa PDSE da Capes.

119
uma busca de informações em fontes diversificadas e um contato direto com os profissionais que atuam
naquele meio. As atividades externas ao ambiente escolar são, inclusive, recomendadas pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN):

É importante salientar que o espaço de aprendizagem não se restringe à escola, sendo


necessário propor atividades que ocorram fora dela. A programação deve contar com pas-
seios, excursões, teatro, cinema, visitas a fábricas, marcenarias, padarias, enfim, com as
possibilidades existentes em cada local e as necessidades de realização do trabalho escolar
(BRASIL, 1997, p.67).

Porém, ao propormos uma “visita” ou uma “excursão”, podemos dar a entender aos responsáveis
pelos alunos ou à própria coordenação da escola que estamos planejando exclusivamente um momento de
ócio ou de entretenimento. Mesmo que períodos de repouso e lazer ocorram durante o desenvolvimento da
atividade e que saibamos que estes momentos não são danosos ao processo de ensino e aprendizagem, para
muitas pessoas estas situações podem parecer improdutivas e dar a entender que o professor deseja apenas
não preparar ou ministrar sua aula com profundidade.

Assim, para conquistar o apoio da comunidade escolar e demonstrar que se trata justamente do
contrário, de uma aula mais produtiva e até mais difícil de planejar e de executar, o professor deve se funda-
mentar tanto nas teorias da Arte, quanto em documentos oficiais do Ministério da Educação.

Seguindo este raciocínio e partindo das orientações contidas nos próprios PCN, podemos jus-
tificar junto aos responsáveis pelos alunos ou à coordenação da escola, uma saída a campo, seja ela para
um museu, para uma galeria ou mesmo para um atelier particular. Obviamente que, na Educação Infantil,
cuidados extras e adequações sempre devem ser consideradas com atenção antes de planejarmos uma saída
da escola. Também precisamos atentar que cada comunidade escolar e cada atividade pretendida poderá
requerer argumentos e documentação específicas.

Vale frisar ainda que, apesar das dificuldades burocráticas, financeiras ou de qualquer outra or-
dem imposta pela realidade de nosso sistema escolar, em especial nas fases iniciais, alunos que disfrutam
de um contato inesquecivelmente prazeroso e produtivo com obras de Arte, futuramente tendem a não se
intimidar com as mudanças paradigmáticas da Arte Contemporânea. E, a partir deste primeiro contato, as
instituições que abrigam obras de Arte se convertem em uma fonte de conhecimento extremamente seduto-
ras e, ao mesmo tempo, mais arrebatadoras e interessantes do que uma prancha de imagem, um livro, uma
apresentação de slides ou aula de desenho.

Outro fator importante a ser levado em consideração é que uma Aula de Campo tem o poder de
estabelecer relações bastante diretas entre a realidade e a teoria, sendo este um trabalho bastante difícil para
as fases iniciais do ensino formal. Segundo Lima e Assis (2005, p. 112), para a Geografia, por exemplo, “o
trabalho de campo se configura como um recurso para o aluno compreender o lugar e o mundo, articulando
a teoria à prática, através da observação e da análise do espaço vivido e concebido”. O mesmo pode ser dito
do contato com qualquer obra de Arte, ainda mais quando tratamos da Arte Contemporânea que articula
o cotidiano com proposições nem sempre tão fáceis de correlacionar com os cânones tradicionais da Arte.
Para além das questões estéticas ou teóricas que envolvem a obra de Arte em si ou o trabalho previsto no
cronograma de aula, a ocupação dos espaços musealizados por parte da comunidade escolar também é uma
questão de cidadania e de pertencimento junto ao patrimônio cultural de nosso país.

Desta forma, ao planejar uma Aula de Campo em um espaço musealizado, o professor pode articu-
lar diversos conteúdos em seu programa didático que envolvem incialmente os conteúdos mais tradicionais

120
e notórios da Arte, avançando progressivamente para uma construção mais profunda de cidadania que
abrange o direito ao acesso aos bens culturais e a preservação patrimonial de forma mais expandida. Para
tanto, a conduta do professor no planejamento de uma Aula de Campo é fundamental, pois além de projetar
e dinamizar todas as estratégias, processos e ações previstas, ele terá de atuar como um mediador entre a
Arte como um todo e as necessidades de sua turma, levando em consideração a faixa etária, desenvolvimen-
to individual de cada aluno, condição socioeconômica individual e possibilidades da escola para estabelecer
a sua real possibilidade de acesso aos bens culturais.

Além de tudo isso, o professor não pode deixar de correlacionar todas as necessidades da turma
já mencionadas com as possibilidades educativas da exposição especificamente desejada, sem esquecer de
averiguar a conjuntura social, política e/ou divulgação dela na mídia.

Aulas de Campo em Instituições de Arte

Para planejarmos uma Aula de Campo em qualquer Instituição, em primeiro lugar, precisamos
levar em consideração a exposição em si, a proposta de mediação da instituição e quais as atividades e pos-
sibilidades relacionadas ao nosso trabalho em sala de aula. Assim, é imprescindível que, em primeiro lugar,
o professor visite pessoalmente a exposição para que tenha ciência do que realmente está sendo exposto e
perceba as possibilidades oferecidas pelos objetos mostrados, pela maneira como estão sendo expostos mu-
seograficamente e pela instituição na qual a mostra se encontra.

O tema, o resumo do jornal, o catálogo, as discussões em redes sociais da internet, a cobertura da


mídia ou a recomendação de pessoas conhecidas pode nos levar a grandes equívocos, pois cada um natu-
ralmente interpreta a exposição a seu modo. E isso não se constituí em um problema, pois há muitas formas
de se abordar uma exposição e cada uma delas é tão válida como qualquer outra. No entanto, se o objetivo
é levar uma turma a desenvolver um trabalho em sala de aula, é o professor quem deve ver a exposição,
interpretá-la a seu modo e só depois decidir se deve ou não iniciar um trabalho com sua turma.

Também é muito importante que o professor se inteire das regras de conduta e de segurança de
cada instituição. Conhecer as regras do espaço com antecedência faz com que não tenhamos problemas e
interrupções desnecessárias durante a Aula de Campo. Um aluno repreendido por um segurança pode ficar
seriamente constrangido no espaço expositivo e até sofrer bullying ao voltar para o ambiente escolar. Além
disso, o aluno também pode desenvolver uma resistência ao ser solicitado a retornar a uma exposição após
uma situação constrangedora.

Como cada espaço expositivo possui regras diferentes, o professor deve se informar das peculiari-
dades do espaço que pretende explorar para alertar seus alunos e, dependendo de suas necessidades, esco-
lher outro espaço que lhe seja mais acolhedor. É importante explicar à turma que estas regras visam tanto à
conservação das obras, quanto ao convívio de muitos grupos simultaneamente no espaço expositivo e que
estas interdições valem para todos os visitantes e não só para os grupos escolares.

Como os alunos não estão acostumados a transitar por estes espaços, é sempre bom repassar algu-
mas condutas básicas que costumam ser adotadas por diversas instituições, tais como:

• não comer ou beber dentro do espaço expositivo;

• com relação à fotografia, como nem sempre é possível fazer imagens das obras, verifi-
car a possibilidade de fotografar a exposição pretendida antes de adentrar na sala, mas
informando sempre aos alunos para desligarem o flash antes de iniciarem o roteiro,

121
pois além da questão de conservação das obras, a luz atrapalha os demais visitantes.
Também é importante evitar a proximidade excessiva das obras ao fazer selfies;

• solicitar o desligamento dos celulares para não interromper o roteiro, incluindo o apa-
relho do professor;

• informar que chicletes e balas não são permitidos porque, ao falarmos, podemos cuspir
na direção de uma obra ou deixá-las cair da boca;

• sobre a interação física com as obras, de modo geral, como não se pode tocar nas peças
a fim de evitar danificá-las, verificar se existe alguma peça com possibilidade de intera-
ção junto ao setor educativo da instituição;

• evitar o uso de bolsas grandes e mochilas, pois ao se locomover no espaço podem


derrubar obras por descuido. Recomenda-se deixar as mochilas no veículo ou na cha-
pelaria (se houver) e solicitar que os alunos não levem estes tipos de bolsas no dia da
Aula de Campo.

Para além destas questões de ordem prática, uma Aula de Campo em uma exposição tende a ser
um momento de aprendizagem muito prazeroso e descontraído, mas o professor precisa sempre conhecer
a mostra antecipadamente para só depois propor um plano de aula relacionado a ela, transformando assim
esta atividade em algo mais que uma simples visita, excursão ou passeio. Cabe destacar, mais uma vez, que
não há nada de ruim em passear ou ter prazer em uma Aula de Campo, mas é importante enfatizar as pos-
sibilidades didáticas da atividade que propomos.

Também cabe salientar que não se trata de uma palestra em que o mediador da instituição fala e
todos ficam calados apenas o observando. Estimular os alunos a perguntar sobre a exposição, mostrar que se
trata de uma conversa na qual todos podem falar (desde que haja respeito à fala alheia) e que todos podem
se expressar sobre o que estão vendo ou sentindo naquele espaço, costuma ser o início de um trabalho muito
mais fecundo. E isto vale também para o professor! É interessante que ele faça parte da conversa, estimule a
turma ou faça perguntas ao mediador, pois ninguém melhor que ele saberá quais conteúdos e discussões são
mais relevantes para o trabalho que está desenvolvendo com a sua turma. No entanto, também é importante
que o professor não fique falando sem parar, que permita que todos conversem com o mediador e respeite
a fala deste profissional que costuma ter informações muito diversificadas e valiosas sobre o tema exposto.

Sobre a proposta de mediação de cada instituição, é relevante que o professor pesquise as insti-
tuições que sua turma tem condições reais de acessar em sua cidade. Lembrando de verificar as condições
de fornecimento de transporte, de acessibilidade, de disposição de profissionais para receber a turma e de
expediente da instituição. Entrando em contato diretamente com o setor educativo da instituição escolhida,
o professor pode solicitar mais detalhes sobre o trabalho teórico e prático desenvolvido na instituição, seja
através de conversas por telefone, por e-mail ou presencialmente.

Os contatos de cada instituição costumam estar disponíveis no site ou nos folders das mostras.
Esta conversa é muito importante porque, em muitos casos, a coordenação do setor educativo da instituição
poderá providenciar uma adequação do roteiro ao grupo mediante solicitação prévia do professor. Porém,
sem este contato prévio, fica bastante reduzida a possibilidade de adequação do mediador em relação ao
conteúdo exposto e as necessidades reais da turma para além do perfil geralmente fornecido durante a fase
de agendamento.

Para propor atividades relacionadas à exposição, o professor poderá pensar em trabalhos que en-
volvam o conhecimento artístico que será adquirido durante toda a proposta da instituição. Estas atividades

122
podem ser feitas antes, durante ou após a aula. Não há uma regra para isso e a criatividade do professor é
muito importante para evitar “manualidades” ou atividades “bulímicas” (ACASO, 2009, 2012), isto é, ativi-
dades exclusivamente artesanais ou a memorização de informações que são descartadas por não haver um
adequado processo reflexivo.

É importante salientar que uma atividade exclusivamente manual não produz, por si só, uma re-
flexão e pode, inclusive, gerar um afastamento do pensamento crítico acerca da obra. Logo, antes de propor
uma atividade, o professor precisa ter consciência do que ele deseja que os alunos experienciem para só
então delinear sua proposição didática. Atividades de reflexão, dinâmicas de grupo ou produções plásticas
(relacionadas ao tema e produzidas a partir de uma reflexão) auxiliam o aluno a compreender o que foi visto
e, principalmente, a se libertar dos estereótipos acerca das Artes Visuais. Materiais educativos oferecidos ao
professor podem ser explorados criativamente e não somente como um guia da atividade a ser executada.
Estes materiais não devem ser tomados como “bulas de remédio” e o professor pode ler o material educativo
fornecido pela instituição e adequar as propostas ao seu dia a dia; pode utilizá-lo de outras formas não pre-
vistas pela instituição ou simplesmente decidir que este material não é adequado ao trabalho que ele deseja
desenvolver. Ou seja, é o professor quem decide o que fazer com este material que pode ser muito produtivo
para alguns e totalmente descartável para outros. Obter o material de uma instituição não significa que de-
vemos utilizá-lo tal e qual ele se apresenta, Trata-se apenas de uma sugestão que pode nos trazer algumas
informações e ideias diversas sobre a exposição.

Por fim, depois de visitar e experenciar por si mesmo a exposição, o professor é capaz de criar um
excelente projeto de Aula de Campo que seja bem mais contundente e enriquecedor que uma visita, uma
excursão ou um passeio. Uma Aula de Campo para as Artes Visuais, se bem planejada, pode se tornar a
conjugação de tudo isso: um passeio em que a turma conhece e discute sobre os caminhos percorridos no
ônibus; uma visita a um espaço novo com dinâmicas de ensino e aprendizagem completamente diferentes da
escola; e uma excursão na qual todos mergulham no mundo da Arte. A vantagem de um bom planejamento
para uma Aula de Campo nas Artes Visuais é que ele torna palpável para toda comunidade escolar aquilo
que postulamos em diversos discursos acerca dos ideais de Educação: uma excelente experiência didática
onde todos ensinam e aprendem juntos.

Nessa perspectiva, o professor se converte em um mediador do conhecimento artístico capaz


transformar a sequência de suas aulas em um grande laboratório de experiências sensíveis para que a co-
munidade escolar possa apreender a Arte e, através dela, posicionar-se criticamente no mundo que a cerca.

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da Casa de Geografia de Sobral. v.6/7, n.1, 2004/2005. -c3a9-museu.pdf>

124
PAISAGENS PEDAGÓGICAS DIGITAIS:
RESISTÊNCIA, RESILÊNCIA, (RE)EXISTÊNCIA
Fernanda Pereira da Cunha132

1) Eu sou [a] Bandeira


O tema deste evento me levou a uma intensa imersão reflexiva autocartogrática, com fortes questões
existenciais. (Re)Visito gestos do [meu] cotidiano, que persistem: (u)tópicos desígnios. Resistentes traços
desenham ações que se embrenham na costura da Bandeira. Eu sou [a] Bandeira. Gestos resilientes pulsam
(re)existências. Resistir para [re]existir. Pode a Bandeira silenciar? Batalhas. Caminhadas. Voos. Travessias
por entre campos alheios. Frentes abrem outras frentes.

Circunscreve-se a estética da [minha] resistência, resiliência, (re)existência pedagógica, especifica-


mente o universo utópico de ações cirberpedagógicas como gesto de (Re)Existência do ensino da Ciberarte
libertária – para que a pessoa seja capaz de se expressar com autogovernança. O que seria das invenções,
dos processos culturais se não houvesse utopia? Como enaltece o professor e escritor português Ademar
Ferreira dos Santos:

Nenhuma mudança se funda no nada, na negação da história ou da realidade ou das suas


aparências, por mais efêmeras que se apresentem aos nossos olhos, quando eles veem
para fora. Todas as utopias se reportam ao que existe e tudo o que existe aspira ao que
não existe. O que não existe precisa do que existe - como se fosse a sua face mais oculta.
(ALVES, 2012, p 9)

Este processo humano/crítico/inventivo deve atender à força motriz de seus desejos expressivos,
que podem estar alicerçados na generosidade, solidariedade. A Ciberexpressão pode e deve ser uma instân-
cia e-arte/educativa, que promova a descoberta do que há de mais humano no ser humano. A Arte, através
do Movimento de Arte para a Reconstrução Social, tem apresentado sua relevância para a vida das pessoas.
Como adverte Ana Mae Barbosa:

no Brasil, todas as Organizações Não-Governamentais (ONGs) que têm obtido sucesso


na ação com os excluídos, esquecidos ou desprivilegiados da sociedade estão trabalhando
com Arte e até vêm ensinando às escolas formais a lição da Arte como caminho para re-
cuperar o que há de humano no ser humano (BARBOSA, 2008, p. 1).

132. Mestre e doutora em Arte pela ECA/UPS. Coordenadora do curso de Especialização Arte/Educação Intermidiática Digital pela EMAC/UFG.
É professora associada da EMA/UFG. Participa do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Música EMAC/UFG. Atua principalmente na
área de Arte/Educação Digital. Autora do livro “Abordagem Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais” com Ana Mae Barbosa pela editora
Annablume (2012) e do livro “Técnica e Tecnologia: a indústria ideológica de massa” pela Annablume (2012).

125
O ensino da Arte não pode ser negligenciado. A expressão humana é uma necessidade inerente à pessoa.
Sem a capacidade plena de expressar-se compreendo um homem e/ou uma mulher deficiente. O escritor e
professor português Ademar Ferreira dos Santos (1952, 2010) que foi presidente da Direção da Escola da Ponte
em Vila das Aves, Portugal, cuja escola se apresenta como um modelo internacional em práticas pedagógicas
inovadoras, no prefácio do livro de Rubem Alves intitulado A escola com que sempre sonhei sem imaginar que
pudesse existir nos promove experiência empírica ao se submergir na narrativa do exercício educativo crítico
pelos passos da curiosidade, da aventura, do encorajamento, da autogovernança, em suas palavras:

Não cobiço nem disputo os teus olhos


não estou sequer à espera que me deixes ver através dos teus olhos
nem sei tampouco se quero ver o que veem e do modo como vem os
teus olhos
Nada do que possas ver me levará a ver e a pensar contigo
se eu não for capaz de aprender a ver pelos meus olhos e a pensar comigo
Não me digas como se caminha e por onde é o caminho
deixa-me simplesmente acompanhar-te quando eu quiser
Se o caminho dos teus passos estiver iluminado
pela mais cintilante das estrelas que espreitam as noites e os dias
mesmo que tu me percas e eu te perca
algures na caminhada certamente nos reencontraremos
Não me expliques como deverei ser
quando um dia as circunstâncias quiserem que eu me encontre
no espaço e no tempo de condições que tu entendes e dominas
Semeia-te como és e oferece-te simplesmente à colheita de todas as horas
Não me prenda as mãos
não faças delas instrumento dócil de inspiração que ainda não vivi
Deixa-me arriscar o molde talvez incerto
deixa-me arriscar o barro talvez impróprio
na oficina onde ganham forma e paixão todos os sonhos que
antecipam o futuro
E não me obrigues a ler os livros que eu ainda não adivinhei
nem queiras que eu saiba o que ainda não sou capaz de interrogar
Protege-me das incursões obrigatórias que sufocam o prazer da
descoberta
e com o silêncio (intimamente sábio) das tuas palavras e dos teus gestos ajuda-me serena-
mente a ler e a escrever a minha própria vida (SANTOS. In: ALVES, 2012, pp 7-8)

Como proteger-te das incursões obrigatórias que sufocam seu prazer da descoberta?

A Bandeira, que não pode ser silenciosa, se insere na prática pelo exercício pedagógico sábio, por
isto libertário, entre palavras e gestos (intimamente sábios) para ajudar-te serenamente a ler e a escrever sua
própria vida, no âmbito da autogestão discente no processo de ensino/aprendizagem em prol da autono-
mia, transgredindo padrões TecnoEducacionais que muitas vezes acabam castrando o processo criativo de
nossos alunos e alunas através de ações Ctrl+Alt+Del que formatam valores pessoais e ignoram o tempo de
cada um... Neste paradigma se cala a percepção que dialoga com o universo interno e externo da pessoa,
roubando-lhe a capacidade de sonhar, de imaginar, de criar. De expressar, pois é “esse mundo interior, só
captável pelo olhar para dentro, que dá a expressão à nossa identidade e singulariza o nosso destino”, quando
“nos apercebemos de que há um imenso mundo para além ou aquém do mundo que espreitamos fora de

126
nós”(SANTOS. In: ALVES, 2012, p. 10).

Há que se considerar a relação intrínseca da qualidade estética da experiência significativa no pro-


cesso criador, cujo valor sígnico interfere na estética da vida pelo seu processo pessoal na experiência. Na
experiência singular. Na edificação da identidade. Nas palavras do filósofo arteducador Fernando Antônio
Gonçalves de Azevedo, que cuidadosamente faz uma pertinente análise reflexiva sobre os conceitos de Vida
Artista de Michel Foucault, sob o prisma do filósofo brasileiro Guilherme Castelo Branco, ao inserir tal pro-
posição filosófica à Arteducação, como podemos conferir em seu texto Viver a vida como uma obra de arte:
por uma arte/educação que diz sim às diferenças (2017).

Fernando Azevedo traz a essência da Vida Artista fundamentado por Foucault ao abordar o questio-
namento da obra de arte estar relacionada exclusivamente aos objetos e nunca à vida das pessoas. Nas palavras
de Foucault: “Mas a vida de todo indivíduo não é uma obra de arte? Por que uma mesa ou uma casa são objetos
de arte, mas não as nossas vidas?” (FOUCAULT, 1994, p.617. Apud AZEVEDO. In: LIMA, 2017, p.129)

Neste parâmetro, Fernando Azevedo, sob os auspícios dos Estudos Culturais na luz de Tomaz Ta-
deu da Silva (2007) insere a diferença para a democratização da Arte como um saber, ao argumentar que
“a Arte (e suas linguagens) é importante na formação do pedagogo por ser o lugar em que a dimensão da
imaginação poética é profundamente valorizada” (AZEVEDO. In: LIMA, 2017, p.122). Como nos adverte
Fernando Azevedo:

O foco de discussão é, pois, a democratização da Arte como um saber, que produz


o pensamento divergente, ou seja, possibilita o ser humano ir além dos padrões
estabelecidos pelos poderes, pois a Arte cria as condições de pensar e resolver
problemas com imaginação poética. (AZEVEDO. In: LIMA, 2017, p.122).

Quem poderia contraria-me que ao se haver diferença – pensamento divergente, seja de qual natu-
reza for, estabelecer-se-á potencial para palcos oriundos de conflitos sociais de enunciações à resistência...
À resiliência... E se for Bandeira, à (re)existência... Para se (re)existir há que se (re)encontrar-se na própria
existência, o que vou denominar aqui de honra. Honra advém do princípio que leva alguém a ter uma con-
duta íntegra, virtuosa, corajosa, honesta. A educação plena merece seu lugar de honra. No âmbito da Vida
Artista, as expressões da vida (que se difere das expressões pela vida) – ou ainda – a VidaExpressão se insere
em suas cartografias identitárias, que manifestam na complexa relação estética de resistências, resiliências,
(re)existências. A ação de [re]criar a Vida é Arte.

2) Cibervida Artista: uma proposição pedagógica conduzida


pela resistência do pensamento divergente

Neste âmbito, este texto se insere em reflexões sobre a Cibervida Artista advindas de suas manifesta-
ções no/pelo universo digital no âmbito das questões pedagógicas conduzidas pela diferença – pela edifica-
ção do pensamento divergente, em prol do desenvolvimento do pensamento e resolução de problemas com
imaginação poética, no campo entre o que a realidade e a ficção podem criar.

Eis que se instaura o embate e por assim dizer, o conflito. Ambiente de atrito. A Bandeira. (Re)Exis-
tir clama pela resiliência à resistência. A Cibervida Artista nos demonstra esta natureza pela estética da vida.
Chamo pela artista videográfica Chantal DuPont. Chamo pelo artista quadrinista Gidalti Moura Jr. Chamo
pela formanda de direito Michele Maria Batista Alves. As estéticas identitárias do pensamento divergente

127
destas três Vidas Artistas singularizam a poética de suas Bandeiras, que viralizam suas ciber(re)existências
em nossas redes sociais. Em mais detalhes, a resistência de cada um destes Personagens, como abaixo segue.

Chantal DuPont, nascida (1942) em Montreal foi professora em Artes Visuais e de Mídias da Uni-
versidade de Quebec em Montreal por 23 anos (1985 a 2008), possui obras videográficas reconhecidas inter-
nacionalmente com múltiplas narrativas sobre o que se pode gerar entre a realidade e a ficção liderada pelo
digital. As obras videográficas de DuPont desde 1996 possuem temas sobre a identidade familiar e cultural,
sobre a vulnerabilidade do corpo, sobre a memória, em que a auto-representação é constante em sua obra.
Suas obras estão expostas no VMC -virtual museum.ca, em Science in Art: Body - healt. Em sua obra Du front
tout le tour de la tête Chantal DuPont nos apresenta as relações (re)existencialistas, em seu processo de re-
sistência, ao expressar o período em que teve câncer e passou pelo problema da queda de seus cabelos com
o tratamento quimioterápico, por meio de um diário em vídeo com 30 minutos de duração:

Este diário em vídeo, filmado entre 4 de maio de 1999 e 1 de fevereiro de 2000, reúne uma
série de auto-retratos, uma festa em todas as suas formas. A autora submete seu próprio
corpo a disfarces, a várias transformações de sua cabeça por meio de objetos, vegetais e
movimentos corporais, obscurecendo as certezas da identidade. Em face da doença, a
história de pequenas vitórias infantis ajuda a encontrar um espaço para conquistar, que se
projeta para frente. Está nevando estrelas em sua cabeça. (Disponível em: <http://videos.
videoformes.com/video/107134>. Acesso em: 24 abr.2018, tradução nossa)

O artista visual Gidalti Moura Jr, nascido em Minas Gerais, mas que vive desde pequeno em Belém,
é o criador da novela gráfica Castanha do Pará e foi vencedor do primeiro prêmio Jaboti (o mais importante
prêmio literário do Brasil) na categoria de melhor História em quadrinho em 2017, teve a ilustração da capa
do livro Castanha do Pará retirada da exposição de um shopping em Belém no dia 16 de abril de 2018.

Relata o Globo.com que a ilustração censurada de Gidalti retrata um menino de rua de Belém – que
é o protagonista da história, escapando de um policial. Esta imagem exposta sofreu vários ataques de poli-
ciais militares ao desenho de Gidalti, ocasionando a retirada da obra da exposição sem o consentimento de
Gidalti. Em sua rede social, Gidalti classificou a situação como censura:

Em sua página no Facebook, Gidalti, que ganhou com esta obra o Jabuti, mais importante
prêmio literário do Brasil, declarou total repúdio “aos conceitos arbitrários que classificaram
a imagem como uma ofensa à Polícia Militar”. “A retirada da obra do evento é um gesto que
vai contra valores fundamentais que defendo, dentre estes, a liberdade de expressão. A obra
é ficcional, tem caráter lúdico e expõe situações rotineiras nas metrópoles brasileiras. Quem
a compreendeu como apologia ao crime e/ou a desmoralização da polícia militar, o faz de
forma leviana e sem ao menos ler o livro ‘Castanha do Pará’”, disse. (Disponível em: <https://
g1.globo.com/pa/para/noticia/ilustracao-do-artista-gidalti-e-removida-de-exposicao-em-
-belem-e-ele-classifica-como-censura.ghtml>. Acesso em: 22 abr.2018)

A estudante de direito pela PUC-SP Michele Maria Batista Alves de 23 anos, natural de Macaúbas,
cidade de 50 mil habitantes no centro-sul da Bahia, filha de mãe solteira, criada com a ajuda da avó, vem
para São Paulo aos 12 anos de idade para cuidar de uma depressão e tão breve se recuperasse retornaria à
sua cidade natal, mas depois de dois anos se depara com o enfrentamento de um tumor na garganta com
êxito de cura, viralizou nas redes sociais o vídeo e o áudio do seu discurso de formatura, proferido em 15 de
fevereiro de 2018 no auditório que se encontrava lotado no Citibank Hall, que é uma enorme casa de shows
da cidade de São Paulo.

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Foi um discurso muito aplaudido com a plateia de pé em que Michele deu voz à resistência, contra o
preconceito, nas palavras de estudante: “Gostaria de falar sobre resistência. De uma em específico, a que uma
parcela dos formandos enfrentaram durante sua trajetória acadêmica”. Michele se refere aos alunos bolsistas
do curso de direito da PUC-SP pelo Programa Universidade para Todos (ProUni) que foi criado em 2004:
“Somos moradores de periferia, pretos, descendentes de nordestinos e estudantes de escola pública”. Em
sua oratória a estudante Michele Maria B. Alves conta os preconceitos que resistiu para chegar à formatura:

Resistimos às piadas sobre pobres, às críticas sobre as esmolas que o governo nos dá. À
falta de inglês fluente, de roupa social e linguajar rebuscado. Resistimos aos desabafos dos
colegas sobre suas empregadas domésticas e seus porteiros. Mal sabiam que esses profis-
sionais eram, na verdade, nossos pais.

A história desta estudante retrata a história do percurso de nossos alunos e alunas brasileiros das
classes sociais menos favorecida nas universidades. Na matéria publicada sobre o discurso de Michele pelo
Geledés – Instituto da mulher negra (https://www.geledes.org.br) se assinala a experiência cruel de se perce-
ber que se é pobre pelas mãos da exclusão, do preconceito. Abaixo alguns trechos da entrevista:

“Percebi que era pobre”


Ela própria teve de fazer cursinho. Duas vezes, a primeira delas num comunitário. “Foi
uma experiência fundamental”, conta. “Tive vários professores de origem popular que
me mostraram a diferença entre classes. Era a primeira vez que eu me reconhecia como
pobre.”
A segunda foi no ingresso na PUC-SP. “Não tinha ninguém do meu círculo social. Não
tinha recepção para bolsistas”, diz. No primeiro dia, uma menina contava animadamente
sobre a viagem de férias à Europa. No terceiro, uma professora fez um comentário sobre
métodos de estudos que deveriam ser evitados porque até a filha da empregada dela estu-
dava assim. O impacto virou trecho do discurso:
“Naquele dia, soube que a faculdade não era para mim. Liguei para a minha mãe, que é
doméstica, e disse que queria desistir. Ela me fez enxergar o quanto precisava resistir àquela
situação e mostrar o quanto eu era capaz de obter aquele diploma”.

Michele aponta as dificuldades de convívio com alunos e professores de outras classes sociais bem
como a solidão que enfrentou:

Passou os seis primeiros meses sem falar com ninguém. “Também por minha conta, por-
que antes eu era mais radical, mais intolerante. Acho que a gente tem de ser radical, mas
não radical cego. Isso eu só aprendi depois, ao perceber como as pessoas me enxergavam e
como eu poderia me aproximar delas. Aos poucos, fui criando métodos para dialogar com
quem era diferente de mim. Ficar sem falar é muito ruim.”

Depoimentos de docentes da PUC-SP reforçam os preconceitos, as dificuldades que estes estudantes


de classes sociais menos favorecidas enfrentam e que estes alunos bolsistas são, em sua grande maioria os
alunos de melhor desempenho acadêmico, culminando, ainda, no relato de um docente desta instituição
que se reconhece no discurso da formanda Michele:

Professores da PUC confirmam a situação narrada por Michele. “Ouvi de alguns bolsistas
que a maior dificuldade não era preencher as lacunas de formação, mas conviver com a
discriminação por parte de colegas”, diz Leonardo Sakamoto, professor do curso de jorna-
lismo. “Se a PUC tivesse mais estudantes como eles, faria mais diferença do que faz hoje.

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Alguns dos meus melhores alunos foram bolsistas.”

Michele não foi a oradora oficial, o “orador oficial fez um discurso leve, contando ‘causos’ do curso
e arrancando risadas da plateia”. O discurso da formanda foi à consequência de um grupo que a estudante
fundou para debater a situação dos bolsistas na PUC:

A formatura se tornou uma pauta importante, porque o custo da colação de grau e do


baile – na casa dos 6 mil reais – era proibitivo. Uma negociação com a comissão do evento
garantiu quatro ingressos para cada bolsista e o direito do grupo a ter um orador.
[...] “Fiz o texto numa única noite. Chorei muito. É um relato carregado de histórias não
só minhas, mas de todos os bolsistas, que eu revivia conforme ia escrevendo. Ensaiei 12
vezes e só na última consegui ler sem chorar”.
[...] Ao terminar, ainda meio atordoada, correu de volta para seu assento. “Achei estranho
meus colegas se levantando. Depois entendi. Estavam me aplaudindo”, diz ela, contente
também com a repercussão de sua fala nas redes sociais. “É uma vitória saber que minha
reflexão está chegando a lugares que antes não debatiam esse assunto. Quem sabe cause
algum impacto na vida dos bolsistas que virão depois de mim.”

Como desassociar os aspectos socioculturais, sobretudo os cibersóciosculturais destas expressões


de vida, que intensificam seus processos de ressignificação pela imersão na tecnocultura?

As estéticas socioculturais, presentes na sociedade em rede, são de suma importância para este es-
tudo, no tocante as Cibervidas Artistas, porque o objetivo é a educação cultural, por se acreditar no poder
libertador da identidade.

A Cibervida artista, em seu caráter Ciberarte/Educativo, busca promover as potencialidades da


expressão em sua gênese identitária, marcada pela singularidade. Parafraseando o professor Fernando
Azevedo: o desenvolvimento da democratização da produção do pensamento que diverge dos padrões,
deve arte/educar em prol da resolução de problemas com imaginação ciberpoética. Eis que se instaura
a necessidade de se desenvolver a capacidade indissolúvel de ciberapreciar e ciberexpressar de nossos
jovens pela autogovernabilidade.

2.1) Ciberapreciação, ciberexpressão: eventos contextuais


de uma mesma estrada

Uma das características, se não a mais importante, da tecnocultura é sua capacidade de captar a
maioria das expressões no âmbito de sua diversidade social/cultural/tecnológica. Seu ponto marcante, como
pudemos observar acima, é o fim da separação e divisão entre as mídias audiovisuais e impressas e a oralida-
de, bem como o fim da separação entre cultura popular e erudita, entretenimento e informação. Assim, via-
biliza a interação entre estes códigos comunicacionais num único universo digital interativo, constituindo
um novo ambiente simbólico, o qual torna a virtualidade uma realidade expressiva que liga as manifestações
em todos os seus tempos e espaços, contidas em nossa mente comunicativa, transformando a virtualidade
em um sistema comunicacional e, portanto real. Como adverte Castells:

Finalmente, talvez a característica mais importante da multimídia seja que ela capta em
seu domínio a maioria das expressões culturais em toda a sua diversidade. Seu advento
é equivalente ao fim da separação e até da distinção entre mídia audiovisual e mídia

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impressa, cultura popular e cultura erudita, entretenimento e informação, educação e
persuasão. Todas as expressões culturais, da pior à melhor, da mais elitista à mais popu-
lar, vêm juntas nesse universo digital que liga, em um supertexto histórico gigantesco,
as manifestações passadas, presentes e futuras da mente comunicativa. Com isso, elas
constroem um novo ambiente simbólico. Fazem da virtualidade nossa realidade. (CAS-
TELLS, 1999, p. 354)

A interação crescente entre mentes e máquinas, inclusive a máquina de DNA, está anulando o que
Bruce Mazlish (1993) chama de a “quarta descontinuidade” (aquela entre seres humanos e máquinas), “al-
terando fundamentalmente o modo pelo qual nascemos, vivemos, aprendemos, trabalhamos, produzimos,
consumimos, sonhamos, lutamos ou morremos” (CASTELLS, 1999, p. 52). Compõem-se, então, novas for-
mas de relações, bem como um novo estado da mente – a metalinguagem, a qual está proporcionando a
infra-estrutura mental para a comunicação integrada em um tempo escolhido (real ou atrasado), consti-
tuindo, assim, novo conceito de comunicação e, portanto, de cultura da humanidade.

A vida humana, sabemos, não é somente a interação com a matéria, mas também o embate do ho-
mem com sua própria alma. Para a indústria ideológica massiva, é essencial capturar a alma humana para
disseminar o consumismo em larga escala. Isto faz dela um importante veículo/instrumento utilizado no ca-
pitalismo para a ditadura de valores. Deste modo, é imperativo um processo de ensino/aprendizagem pelo
desenvolvimento da consciência autônoma e por isso crítica da capacidade de ler e interpretar os eventos
presentes no universo digital que as cercam.

É imprescindível resgatar o que é técnica por meio de seus valores identitários culturais, tanto nos
aspectos procedimentais como nos instrumentais, expressos no momento histórico em que está inserida. A
técnica, “eu e os outros eus”, em incessantes operações de ressignificar o humano, me remetem a um embate
contíguo epistêmico em minha ação como professora que utiliza estes meios para dar voz a metalinguagem
presente na cultura digital. Analisar a técnica por si mesma pode nos levar a um reducionismo ou desco-
nhecimento de seu uso/ideia, enveredando sua utilização por rumo acrítico, reduzindo-a ao tecnicismo, ou
seja, a técnica como um fim e não como um procedimento – ato técnico-criador: de (re)existência em seu
contexto mais profundo da expressão humana.

Não podemos, portanto, compreender o que é técnica se nos afastarmos do contexto social em
que está inserida, pois este ambiente é o elemento determinante de seu conceito e aplicação. Ademais, a
técnica também se ressignifica em si mesma. Embora relacionada à estabilidade e a seus estágios evolutivos,
também interage com as inovações tecnológicas, preservando procedimentos antiquíssimos e outros decor-
rentes de descobertas tecnológicas recentes. Nasce, envelhece e morre, será que podemos citar Nietzsche e
exclamar: _ “Humano, demasiadamente humano!!!”

Entretanto, estes aspectos técnicos mutáveis – continuamente em desenvolvimento e adaptáveis


às necessidades do ser humano, que estão intimamente ligados a um estudo dirigido, sistematizado, que se
denomina tecnologia – podem ser utilizados como armadilha para atender aos interesses econômicos pre-
sentes no capitalismo, ao agregar produção tecnológica com vistas ao consumo.

Este apoderamento tecnológico no sistema capitalista nos leva a questionar se há fábricas de feli-
cidade onipresentes entre nós que nos induzem ao consumo acrítico, mecânico, padronizado, como uma
tecnologização ubíqua de nossos sonhos capturados [mas que, na verdade, são condicionados, impostos,
introjetados].

A educação uniformizada exclui as diferenças, massificando os valores e desejos humanos. Diante

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disso, é de extrema relevância que os governantes de nosso país, bem como os dirigentes educacionais,
postulem uma política responsável e comprometida com a utilização das Tecnologias da Informação
(TIs), com vistas aos seus impactos socioculturais. Isto porque, apesar do destaque internacional do Brasil
no cenário dos usuários de Internet, o perfil do internauta brasileiro ainda é marcado pela classe mais
favorecida.

Faz-se necessário eliminar as diferenças educacionais sectárias, de forma a disponibilizar uma edu-
cação digital que promova pessoas capazes de gerar, de criar, de elaborar digitalmente, com base na ética e
na liberdade, postulando o direito de expressão, sem distinção. Neste sentido, a arte digital, pela sua natureza
epistemológica, deve estar presente – sendo democratizada, como tantas outras disciplinas, nos currículos
escolares, da educação infantil ao ensino superior, para enaltecer o que há de mais humano no ser humano,
além de possibilitar uma educação libertariamente crítico-autônoma.

Sabe-se, de antemão, que as propostas de democratização digital devem ser fundamentalmente edu-
cativas, porque só a educação insere a pessoa plenamente no mundo. A pessoa alfabetizada digitalmente tem
de ser capaz de decodificar e interpretar o mundo que a cerca crítica e autonomamente.

Na nossa labuta como educadores, artistas e professores de arte, pelas nossas Bandeiras, não quere-
mos formar pessoas em série, acríticas e com seus desejos colonizados pelo imperialismo vertical globali-
zante. Tenho como premissa pulsante e indócil uma Ciberarte/Educação que promova a globalização hori-
zontal – democrática - dialogal, multi/intercultural e por isto libertadora. Ciberapreciação, Ciberexpressão,
pelas suas vias, devem ser marcada pela identidade.

Na contramão do império da ditadura globalizante, hegemônica, em que o capitalismo global, não


centralizado, mas com poder vertical, manipulador, acentua o analfabetismo e a homogeneização do pen-
samento humano, o ciberespaço deve ser um sistema marcado pela identidade plural, em que as partes
formam um todo não homogeneizado, multicultural, multidialogal, multidisciplinar, interdisciplinar e assi-
métrico. Há que se estabelecer uma globalização (presente nas redes vivas como a Internet) ecológica/ética,
para dinamizar a identidade pessoal pelo (re)conhecimento das diferenças por meio de uma interatividade
crítico-autônoma. A Cibervida Artista torna-se essencial à Arte e seu ensino ao buscar promover o [re]co-
nhecimento identitário da estética de vida bem como o desenvolvimento da capacidade da ciberexpressão-
-ciberapreciação crítica de nossos alunos e alunas.

A contemporaneidade é demarcada pela era Ciber, cuja era é um universo mediado pelo evento
líquido. Pelo contexto da navegação. Na contramão dos homens lentos de Milton Santos (1996, 1994), pelo
paradigma da modernidade líquida do sociólogo Zygmunt Bauman (2000), o sociólogo inglês John Urry
(2005) nos adverte que o contexto não é, portanto, apenas relevante, mas elemento estruturador de um sis-
tema concomitantemente mutante, como diz Bohm: “A dança é que é fundamental, e não os dançarinos.”
(Apud URRY, 2005, p. 238, tradução nossa.)

Apreciação e expressão têm como essência a capacidade de se atribuir significado. E em seu valor
autônomo, o significado tem caráter identitário. A identidade do pensamento divergente se constrói pela
elaboração e solução de problemas, em que há que se haver a capacidade estética de interpretação poética
em um determinado contexto. A percepção cognitiva se manifesta na interseção da solução de um proble-
ma em um determinado contexto. O contexto procede da interpretação inter-relacional de circunstâncias
de fatos e/ou situações no encadeamento do discurso à elaboração do significado para a manifestação
humana. A estética advém da interpretação poética de um determinado contexto. Assim, a natureza da
estética do pensamento divergente perfaz nossas manifestações sígnicas de caráter identitário, autônomo
e descolonizador.

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O ciberuniverso, pela sua natureza estrutural sistêmica e, portanto, complexa, que subverte a relação
entre tempo e espaço – por isto é um sistema não-linear –, cuja fluidez líquida transcende e se contrapõe à
concepção da verdade única, inquestionável de sistemas lineares presentes na física clássica, o contexto é ele-
mento fundamental para determinar a rota de significados e valores que construiremos em uma caminhada
virtualmente empírica em nossas vidas.

Vale ressaltar que a era Ciber é mediada pela era Inter, em razão de seus aspectos plurais que se
amálgamam com caráter democrático, horizontal. A internet, pela sua gênese no hipertexto, o caráter ex-
pressivo e/ou apreciativo através da vivência de rotas navegadas, pode promover múltiplos caminhos que
podem cartografar diferentes e autônomas narrativas de acordo com rotas escolhidas. Descobertas signifi-
cativas necessitam de autonomias no/pelo percurso.

A promoção da autonomia pela cultura digital se constitui, em outros termos, em uma rede de
informações que, por meio de rotas escolhidas, poderá levar a pessoa a diferentes formulações. Para
cada caminho traçado, pode haver resultados diferentes. Verdades que eram absolutas (e, de certo modo,
universais) agora são relativizadas, de acordo com o contexto que vai se amalgamando no percurso, ins-
tituindo o contexto como elemento significante e significativo neste meio – o contexto como elemento
epistemológico.

Questionamentos conclusivos

Como as escolas brasileiras estão promovendo ações pedagógicas Ciberarte/Educativas críticas em


prol do desenvolvimento da expressão e apreciação autônoma pela via da identidade de nossos alunos e
alunas?

Em quais ventos as CiberBandeiras de professores e professoras da educação básica acenam? O que


enunciam suas paisagens pedagógicas digitais?

Quais as paisagens digitais que se ascendem na estética da (re)existência da cibervida de nossos


alunos e alunos? Por que será que muitos pais e educadores repudiam e/ou proíbem valores identitários da
juventude ciber no tocante ao que converge com suas próprias ciberexistências?

Certa vez, em seu sofá - a quem a tod@s concede sem distinção, de modo generoso, disse-me
nossa Mestra Ana Mae Barbosa: “a educação efetiva é aquela que se aprende pelos poros”. Arrisco-me
a acrescentar: Bandeira que é Bandeira tem poros. E embrenhada pela filosófica arteducação de nosso
Mago Fernando Azevedo, a Ciberarte/Educação deve se alicerçar pela Cibervida Artista: um processo
pedagógico sígnico, edificante de narrativas conscientes, críticas capazes de balizar a vida pela estética da
poética autogovernativa - expressa pela identidade divergente.

Como seria a qualidade estética da (re)existência da vida sem Arte? Aqueles que segregam a arte nas
escolas podem nos responder a esta questão?

133
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134
UMA ESCOLA PARA
O CINEMA INDÍGENA
Vicent Carelli133

“O leque de experiências do Vídeo nas Aldeias abarca filmes-rituais, pequenas ficções cria-
das a partir de narrativas míticas, documentários de proposta militante, pedagógica, em
alguns casos. Da mesma forma, a amplitude da comunidade de espectadores vai da aldeia
aos festivais nacionais e internacionais, alcançando, ainda que pontualmente, a audiência
televisiva. Um mesmo filme pode, ele próprio, se endereçar abertamente a estes diferentes
públicos: volta-se a membros de uma mesma etnia, ou a outros grupos étnicos, e ao mesmo
tempo interpela (didática, irônica ou criticamente) os espectadores não indígenas. Seja o
movimento prioritariamente endógeno ou exógeno, trata- se, desde o princípio, de um pro-
jeto político justamente nesse aspecto: ele foi “concebido para criar um público onde antes
não havia” (AUFDERHEIDE, 2011) (em “Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo”,
por André Brasil na revista DEVIRES, Belo Horizonte, V. 9, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2012)

Em dezembro de 2011, para comemorar seus 25 anos, o Vídeo nas Aldeias publicou um
livro para socializar a experiência da sua trajetória. Ao tornar-se referência e inspiração para muitas novas
iniciativas, inclusive para políticas públicas, consideramos importante revelar os bastidores deste trabalho,
no qual a relação íntima com o universo sociocultural em que se trabalha, a produção colaborativa e a for-
mação continuada, são a chave do seu sucesso.

Iniciado nos primórdios da revolução tecnológica que representou o VHS como um experimento
de apropriação da própria imagem, o jogo de espelho proposto pelo VNA ao filmar e mostrar, revelou-se um
catalizador de autorreflexão e de revivências culturais nas comunidades indígenas visitadas. Nos seus dez
primeiros anos, a nossa câmera ficou a serviço de extensos registros a pedido de lideranças visionárias com
um projeto de resistência cultural: Nambiquara, Gavião em parceria com a antropóloga Iara Ferraz, e Waiãpi
com a antropóloga Dominique Gallois, e registro etnográfico, como o ritual Yaõkwa, dos índios Enauênê-
-Nauê, com a antropóloga Virginia Valadão. À partir destas experiências realizamos uma série de documen-
tários sobre o “vídeo processo”, isto é, como cada povo se apropriava da imagem, vide “ O Espírito da TV” e
“A Arca dos Zo’é”. Numa outra forma de vídeo ativismo, neste período, foram também produzidas filmagens

133. Cineasta e indigenista, Vincent Carelli fundou, em 1986, o Vídeo nas Aldeias: projeto que apoia as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas
identidades e seus patrimônios territoriais e culturais por meio de recursos audiovisuais. Desde então, coordenou a formação de gerações de cineastas
indígenas e produziu uma série de 17 documentários sobre os métodos e resultados deste trabalho, que têm sido exibidos por emissoras de TV e festivais
de cinema em todo o mundo. Produziu, ainda, em colaboração com Ana Carvalho e Tita, O Brasil dos índios: um arquivo aberto, obra comissionada
pela 32a Bienal de SP. Atualmente, Carelli é líder do Núcleo Criativo: Cinema Indígena, premiado no Prodav 03/2016 (FSA/Ancine), coordenando o
desenvolvimento de roteiros dos cinco projetos abraçados pelo Núcleo, entre séries para TV e longas de ficção e documentário.

135
sobre temas de urgência do mundo indígena, como o massacre dos isolados da gleba Corumbiara no sul do
estado de Rondônia, as grandes rezas contra a opressão dos Guarani-Kaiowa do Mato Grosso do Sul, o povo
Gavião enfrentando os grandes projetos de desenvolvimento do Sudeste da Amazônia. Filmagens estas que
são agora retomadas vinte anos mais tarde, para um balanço reflexivo sobre processos históricos de mudan-
ça e as nossas utopias indigenistas. Nesta linha de produção saíram os longa metragens “Corumbiara” sobre
o massacre dos isolados de Rondônia em 2009, e “Martírio”, com os Guarani Kaiowá, lançado em 2016, e
“Adeus Capitão” com os Gavião do sul do Pará, que está em produção.

Muitos desses projetos de filmes foram abandonados na época quando, seguindo o movimento da
emergente “Mídia Indígena ou Nativa”, partimos para um programa de formação de cineastas indígenas,
para o qual muito contribuíram Mari Corrêa, que vinha dos Ateliêrs Varan de Paris, e muitos jovens cine-
astas entusiasmados com a generosidade da proposta: Leonardo Sette, Ernesto de Carvalho, Tiago Torres,
Amandine Goisbault, Ana Carvallho, Leandro Saraiva, Tatiana Almeida e Fabio Menezes, entre outros, e as-
sim como os antropólogos Carlos Fausto e Geraldo Andrello. A produção que resultou desta escola indígena
de cinema revelou a realidade indígena contemporânea com um novo olhar, uma face amigável e humaniza-
da do índio para a sociedade brasileira. Diante do eterno desafio de remar contra a invisibilidade, a produ-
ção dos cineastas indígenas abriu um diálogo com o público não-indígena. Tornou-se então prioridade do
VNA trabalhar a difusão destas obras, consolidar o conceito de Cineastas Indígenas para o reconhecimento
dos índios como produtores de cinema de qualidade, com direito a subsídios culturais. A difusão de seus
filmes nas escolas brasileiras já é um processo em curso, e a busca por um espaço na TV Pública ainda um
sonho a ser alcançado.

Ao longo desses anos, o projeto teve que estar continuamente se reinventando, diante das novas
demandas dos índios e das novas conjunturas institucionais, das janelas que se abrem (ou fecham) no qua-
dro das políticas publicas e das possibilidades de financiamento. E assim as estratégias de desenvolvimento
da comunicação indígena vão encontrando seus espaços no quadro maior das políticas do estado nacional,
palco das disputas e decisões a respeito dos seus direitos.

O trabalho colaborativo e a descoberta do cinema

Para contar o processo de formação e produção colaborativa, de descoberta do cinema pelos realizado-
res indígenas, de interação de seu trabalho com a comunidade e o amadurecimento de ambos, selecionamos
para o livro “Vídeo nas Aldeias, 25 anos” cinco coletivos de cinema com uma produção consolidada. Em cinco
capítulos, os Xavante, Ashaninka, Kuikuro, Huni Kui e Mbya-Guarani contam, juntamente com membros de
suas aldeias e aqueles que, da equipe do projeto, ministraram as aulas, como se deram essas oficinas, o processo
de gestação dos filmes e suas repercussões ao longo do tempo, nas comunidades e junto a públicos diversifica-
dos. O processo de realização, e o filme em si, representam, antes de mais nada, uma experiência transforma-
dora para os realizadores e suas comunidades. Cito aqui algumas reflexões dos realizadores:

“Eu nunca pensei que esses filmes tivessem tanta força para mostrar quem é o povo Ashaninka, tanto
para o mundo de fora, quanto para nós mesmos. Eu nem imaginava a força que uma imagem podia assumir
depois de um trabalho pronto. Só alguns anos depois, por volta de 2005 que isso ficou mais claro pra mim. A
importância que tem um trabalho, um documentário, que mostra uma pessoa, o dia a dia de uma comuni-
dade que pertence a uma cultura, a um projeto de povo, a um projeto de mundo. Eu sempre tive muito cui-
dado com as coisas que entravam na comunidade: a televisão, um gravador... mas foi ficando cada vez mais
claro para mim que os instrumentos você pode usar a seu favor, para o seu bem, para a sua sobrevivência,
sobretudo.” (Isaac Pinhanta, pg.90 )

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“A partir (dos filmes) Xinã Bena e Manã Bai, comecei a pensar sobre a nossa cultura e a relação com os
filmes... Comecei, através do vídeo, a pensar um pouco em como reaproximar as pessoas e, a partir daí,
pensar um documentário de “re-vivência”. Para isso, comecei a fazer projeções do material bruto da viagem
para o Jordão, da época das filmagens do Xinã Bena, e também de algumas filmagens sobre o processo de
revitalização no rio Jordão, que nessa época vivia uma retomada muito grande das nossas tradições... Eu me
encantei com esse trabalho e tentei levar isso para a minha aldeia... A partir do momento em que você filma
uma festa e projeta, as pessoas começam a sentir, começam a perceber como estão dançando, como se ves-
tem, como se pintam. Envolvemos mais algumas comunidades neste processo, e isso surtiu um efeito muito
grande. As pessoas começaram a discutir, os velhos e os jovens começaram a se entender. No início foi um
movimento tímido, mas depois as pessoas começaram a participar. Fomos rompendo antigas desavenças
entre as aldeias, entre as pessoas, entre as gerações. A partir desse momento, percebi que a luta não era mais
apenas minha, mas de toda a comunidade.“ (Zezinho Yube, pgs 119/121)

“Tínhamos 130 horas de material bruto. Era um processo novo em que estávamos entrando. Foi quan-
do começamos a entender o sentido de tudo aquilo que a gente tinha filmado. Mais uma vez eu via aquelas
filmagens e ouvia as palavras dos velhos. De novo era um aprendizado para mim. Eu estava chegando muito
próximo do que sempre gostei, da espiritualidade, de aprender coisas, como Guarani e como cineasta. Por um
lado, eu estava aprendendo a montagem, a tradução, o roteiro. Mas o mais importante de tudo isso era a tradu-
ção. É quando aprendemos muitas coisas que os velhos falam e que os jovens já não sabem mais... O trabalho
com o vídeo vai se aprofundando. Eu estou sabendo que isso vai ser muito importante pro meu povo. Hoje eu
me assustei quando eu vi as crianças ali, brincando. “Caramba, quantas crianças!” Tudo é pra eles. Não é pra
mim. Cada vez mais a gente vai descobrindo coisas, e a importância delas.” (Ariel Ortega, pgs 146/154)

O direito à memória

Para alguns dos povos filmados pela nossa equipe no começo do projeto, o material que se encontra
nos nossos arquivos já é histórico e tem sido objeto de devolução para as novas gerações. Os povos Gavião
Parkatêjê, Guarani-Kaiowa, Kayabi, e Enauênê-Nauê .

A coleção de DVDs intitulada “Cineastas Indígenas”, para distribuição comercial das melhores
obras de autoria indígena, nos lançou numa nova aventura: os filmes históricos para situar em que momen-
to a história do Brasil se encontra com a história de cada um desses povos, revelando assim uma outra face
da história do Brasil . Estes filmes, que foram trabalhados numa parceria da equipe do VNA com os reali-
zadores formados pelo projeto, nos levou a pesquisar fragmentos de suas histórias em arquivos dispersos
pelo mundo afora, e uma reflexão sobre seu processo de mudança do tempo do contato até os dias de hoje.

Fazer com que a memória dos povos indígenas também seja a memória do país, tem sido também
uma preocupação do VNA. Neste sentido a nossa equipe e alguns realizadores indígenas formados pelo
projeto, vem colaborando estreitamente com a política de registro do Patrimônio Imaterial Brasileiro, exe-
cutada pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- no que toca o patrimônio
indígena, produzindo pesquisas e documentários para instruírem os processos de registro.

Esta colaboração se inicia em 2005 quando realizamos o filme “Iauaretê, Cachoeira das onças” peça
do processo do registro da Cachoeira de Iauaretê, no Livro do sítios sagrados para os povos indígenas do
Rio Negro. Em 2009, realizamos a filmagem do ritual Yaõkwa dos índios Enauênê-Nauê, para o seu registro
no Livro das Celebrações, e ritual que acabou sendo reconhecido como patrimônio da humanidade pela
UNESCO. Zezinho Yube, do povo Huni Kuin, realizou com o nosso apoio, uma pesquisa e um documentá-
rio – “Kene Yuxi, As voltas do Kene” (2010), para mobilizar o seu povo, disperso em várias bacias do estado
do Acre, na valorização de seus grafismos, trabalhados na tecelagem e nas pinturas corporais. Em 2012,
terminamos o filme “Tava, a casa de pedra”, para o processo de reconhecimento da versão dos Guarani sobre

137
as missões Jesuíticas e a guerra Guaranítica do século XVII.

É no sentido de preservar a memória destes registros tanto para os índios como para o país que ten-
tamos articular a digitalização e o depósito de todo o acervo da VNA na Cinemateca Brasileira, num regime
em que estas instituições teriam a guarda do material, disponibilizado online para pesquisa, mas sobre o
qual os índios teriam preservados seu livre acesso, e o direito de decidir sobre o seu uso por terceiros. Infe-
lizmente, as turbulências políticas acabaram por desmantelar a cinemateca e sua equipe técnica, entrando
em estado de letargia.

O índio nas escolas

Em 2008, o governo brasileiro tomou uma decisão ousada, no sentido de instituir a obrigatoriedade
do ensino de aspectos culturais dos afro descendentes e dos povos indígenas nas escolas públicas do ensino
fundamental e médio. Essa decisão, que levará alguns anos para ser implementada de fato, implica num
enorme investimento na formação dos nossos professores numa matéria que eles nunca estudaram, e na
geração de materiais didáticos atrativos e de qualidade sobre estes temas.

Sabendo que os filmes dos índios permitem um acesso mais direto à realidade indígena contempo-
rânea, o Vídeo nas Aldeias tem voltado grande parte de suas energias na produção de filmes e livros didáticos
para escolas. Em 2010, o Vídeo nas Aldeias fez um projeto piloto, subsidiado pela Petrobras Cultural, distri-
buindo três mil kits pra três mil escolas no Brasil com uma coletânea de 20 filmes da coleção “Cineastas Indí-
genas” e um guia para assessorar o professor no uso e nas discussões dos filmes em sala de aula. Em 2012, com
o apoio da UNESCO, reunimos uma compilação de filmes sobre crianças indígenas e um guia didático para o
público escolar do ensino fundamental. Disponibilizados on-line, esta nova coleção procura agora parceiros
governamentais para sua publicação/distribuição numa escala que o país demanda. A coleção de filmes infan-
tis agora se desdobra numa série de 6 livro-vídeos, ilustrados e dublados, para crianças de 3 a 6 anos.

Imaginem quando nossos filhos e netos puderem, desde cedo, em casa e nas escolas, se familiarizarem
e se interessarem pela diversidade das culturas indígenas deste país, e estabelecerem uma relação lúdica e cria-
tiva com a diversidade. Será um privilégio para nós, um redescobrimento do Brasil. Ao conhecer estes povos,
teremos mais chances de respeitá-los, e aqueles que serão vistos, se sentirem mais reconhecidos. É preciso criar
no país um ambiente mais favorável em relação aos índios, e permitir que eles, nos lugares mais distantes do
Brasil, deixem para trás a vergonha de ser quem são, a vergonha pela qual muitos tiveram de passar em gera-
ções passadas, e passar ao orgulho de ser brasileiro, pertencendo a um povo indígena específico!

Se todo adolescente pudesse ter a experiência de choque cultural que eu tive o privilégio de ter, este
mundo seria mais tolerante com relação às diferenças culturais. Precisamos de muito mais diálogo inter-
cultural para o índio deixar de ser um corpo estranho, um estrangeiro em sua própria terra. A ausência, até
recentemente, da temática indígena no sistema educacional brasileiro e a reprodução dos eternos clichês e
preconceitos na mídia, perpetuam este estranhamento, esta ignorância. Todo este movimento nos parece
cada vez mais necessário num momento em que o fundamentalismo evangélico começa a tomar proporções
assustadoras e começa a ditar agendas políticas do país, insuflando o ódio e a intolerância. Infelizmente
também neste quesito o governo brasileiro retrocede, tirando a obrigatoriedade da aplicação da lei. Isto para
não falar dos retrocessos do ensino público como um todo.

O índio na TV brasileira

Provavelmente, 90% da população brasileira só conhece os índios através da televisão, nos noticiá-

138
rios quando há problemas e disputas de terra, ou nas reportagens e nos documentários feitos por não índios
que, na maioria dos casos, lançam um olhar exótico sobre a realidade indígena. Portanto, a TV seria quase
a única janela para os índios se tornarem mais conhecidos pela população brasileira numa escala nacional.
Mas é justamente na TV em que são reproduzidos os clichês, os estereótipos e os equívocos sobre os ín-
dios. Quando os autores de novela criam personagens indígenas, ou quando a propaganda usa a figura do
índio em seus comerciais, aí então entramos decididamente no terreno da caricatura. Daí a importância da
existência de um espaço na televisão pública brasileira em que os índios possam nos revelar sua realidade
através do seu próprio olhar.

Vinte anos atrás, os filmes que a gente produzia eram recusados pela televisão pública: não eram do
formato adequado, não tinham a duração certa para a grade, não possuíam a linguagem própria da televisão.
Nos últimos três anos, trazido pelos bons ventos da valorização da diversidade cultural da era Lula, surgiu
o programa Auw’ê de documentários sobre a realidade indígena. Apresentado pelo ator “global”, Marcos
Palmeira, o programa da TV Cultura exibiu e reprisou 40 títulos do nosso catálogo.

Difundido em horário nobre, todo domingo, às 18 horas, os nossos alunos, Brasil afora, nos davam
testemunhos sentindo a repercussão dessa difusão. Ser descoberto pelos seus vizinhos com os quais convi-
vem há décadas, sem ter jamais tido a oportunidade de se conhecerem realmente. Muitos telespectadores
escreviam para o site do programa, comentando e parabenizando pela iniciativa. Imaginem então a emoção
dos moradores das aldeias que tiveram seus filmes exibidos em cadeia nacional! Infelizmente, com a mudan-
ça de direção, a TV Cultura encerrou o programa Auw’ê, e assim, os índios se viram excluídos da televisão
brasileira, já que essa era a sua única janela.

De qualquer forma, esta é uma discussão que tem que ser levada adiante e o direito de ter um espaço
de expressão na TV pública brasileira vai ter que encontrar um espaço. Mesmo o público que ideologica-
mente interessado e respeitoso em relação aos índios, carece muito de intimidade com a sua realidade e
suas manifestações artísticas. Mas mais uma vez, mudanças na política do estado de São Paulo, o programa
indígena foi o primeiro a ser cortado da grade de programação no seu terceiro ano, não por falta de público
mas de interesse dos dirigentes da TV.

Uma era de retrocessos

De qualquer forma, o cinema indígena produzido nas oficinas do VNA foi se propagando também
pelo mundo indígena e praticamente todos os povos hoje estão pelo menos fazendo registros de suas ati-
vidades culturais. A coisa ganhou uma tal amplidão que começamos a nos preocupar em dimensionar este
fenômeno, fazendo um mapeamento e uma avaliação nacional desta produção no sentido de propormos
uma política pública de subsídio para o cinema indígena. Redigimos para a ANCINE - Agencia Nacional de
Cinema – um projeto intitulado “Um Olhar Indígena”, para a realização deste mapeamento, a articulação de
uma rede nacional de realizadores indígenas e um portal para este cinema na internet, e o projeto finalizaria
num edital para processos de formação em cinema dos coletivos indígenas selecionados.

O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) chegou a alocar os recursos para esta empreitada repassa-
dos para o Ministério da Cultura quando ocorreu o impeachment da presidente Dilma, foi aí que o dinheiro
sumiu! Na verdade a própria presidente Dilma já havia desmantelado o revolucionário projeto cultural dos
Pontos de Cultura da era do ministro Gilberto Gil bem como o ministério da Cultura de um modo sistemá-
tico. O impeachment foi o golpe de misericórdia neste projeto que inspirou toda a América Latina mas que
o Brasil abandonou.

139
TEMAS EMERGENTES
(SEXUALIDADE E GÊNE-
RO)
Ricard Huerta134

F ormar a las maestras y los maestros que serán responsables de la educación del alumnado de
Primaria se convierte en la tarea más fecunda que pueda imaginarse, ya que cada profesional a quien for-
mamos será a su vez portador de valores que repercutirán en una enorme cantidad de niños y niñas. Como
profesor de Educación Artística en la Formación de docentes, asumo este importante reto, y constato la
necesidad de inclusión. La educación artística debe tomar un papel primordial en la transmisión de valores,
ya que preparar profesionales de la educación supone implicarse en las problemáticas sociales y en el respeto
a la diversidad. Para formar a docentes en diversidad sexual cabe manejar conceptos como sexo y género en
base a planteamientos procedentes de los feminismos, la teoría queer y el activismo LGTB; hemos de anali-
zar cuestiones de cultura visual desde perspectivas periféricas y porosas; debemos cuestionar las normativas
que impiden a las personas ejercer libremente sus derechos y comprender que el deseo es la clave de muchas
de nuestras decisiones, y que ocultarlo genera miedos y frustraciones. Sabemos que no resulta fácil generar
nuevos esquemas, pero estamos obligados a intentarlo, ya que mantener las estructuras caducas choca de
frente con la realidad de los jóvenes.

134. Ricard Huerta es profesor titular de Educación Artística en la Universitat de València (España). Investigador del Instituto Universitario de
Creatividad e Innovaciones Educativas. Director de EARI Educación Artística Revista de Investigación www.revistaeari.org Director del Diploma de
Especialización Educación Artística y Gestión de Museos. Director de Museari www.museari.com Presidente de AVALEM Asociación Valenciana
de Educadores de Museos y Patrimonios. Doctor en Bellas Artes y licenciado en Música, Bellas Artes y Comunicación Audiovisual. Coordinador
del Grupo CREARI de Investigación en Pedagogías Culturales (GIUV2013-103). Profesor del Departamento de Didáctica de la Expresión Musical,
Plástica y Corporal de la Facultat de Magisteri. Ha participado en proyectos I+D+i: OEPE Observatorio de Educación Patrimonial en España, Habi-
tat sonoro. Miembro del Seminario de Género y Diversidad Sexual de los Museos de Catalunya, y asesor de la Red de Expertos del CEI Patrimonio
cultural y natural de las universidades de Andalucía.

140
“A MÚSICA DA GENTE”:
EXPRESSÕES SONORAS PESSOAS
E CRIAÇÕES MUSICAIS COLETIVAS.
CONTRIBUIÇÃO CONTEMPORÂNEA
PARA A EDUCAÇÃO MUSICAL
NAS ESCOLAS BRASILEIRAS135
Carlos Kater136

Introdução
Temos hoje uma oportunidade e um desafio especiais, quando consideramos a presença sistemática
de conteúdos de Música na Escola.

Podemos porem sempre nos perguntar... Porque. Porque Música na Escola?

Essa simples pergunta no entanto recobre uma problemática de grande importância, uma vez que
abordamos aqui uma necessidade de expressão humana, intensa e profunda, que faz parte não de uma épo-
ca, moda ou classe social particular; mas que acompanha toda a humanidade, desde os seus primórdios, em
qualquer ponto do planeta, em todas as culturas, ao longo de todas as fases de seu desenvolvimento.137 Não
há comemoração ou evento significativo na vida individual ou social de qualquer povo onde a música não
tome parte de maneira relevante, instaurando um espaço de integração e transcendência não alcançado nem
traduzido por nenhum gesto ou palavra.

Compreendendo esse seu papel na vida e no desenvolvimento dos seres humanos, indagamos então,
o que deve ser feito para que este meio de expressão e comunicação, ao mesmo tempo bem valioso de nosso
patrimônio cultural, habite o maior número possível de espaços, garantindo acesso democrático e direito
universal de todos os cidadãos, crianças e jovens inclusos.

135. O texto desta palestra se apoia em artigo do autor, publicado sob o titulo “Por que Música na Escola?”: algumas reflexões. In: A Musica na
Escola. ISBN: 978-85-61020-01-9. SP: Allucci & Associados Comunicações / MinC / 3D3, 2012, p.42-45.
136. Educador, musicólogo e compositor, Doutor pela Universidade de Paris IV – Sorbonne e Professor Titular pela Universidade Federal de Minas
Gerais. É autor de mais de 50 textos, entre artigos e livros publicados. Idealizou, coordenou e realizou vários projetos de formação musical, dos quais
destaca-se “Música na Escola”, projeto pioneiro no Brasil que levou musica a mais de 120.000 alunos de escolas publicas do Estado de Minas Gerais
(1997-2000). Criou em 2013 e dirige até o momento o projeto «A Música da Gente”, ja em varias edições, que promove a criação musical coletiva
junto a mais de 4.000 alunos de diversas escolas no Brasil
137. Vale a pena lembrar, em particular aqui, os registros existentes na Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, Piauí, entre vários sítios arqueoló-
gicos nacionais, que atestam em desenhos a presença da música em rituais há cerca de 15.000 anos atrás, senão mesmo em épocas anteriores.

141
Não estamos mais hoje diante da dúvida se a musica é ou não necessária, nem tampouco na época
em que os educadores musicais constrangidos precisavam justificar o sentido de “utilidade” de seu fazer
face aos objetivos escolares consagrados ou encontrar “seu lugar” dentro da escola e da própria equipe
docente.138

A partir deste momento em que a presença da música na escola está amparada pela Lei
n°11.769/2008, tornam-se pertinente outras questões. A qual música nos referimos; que estilos, gêne-
ros, formas de manifestação temos em mente? Como de fato ela ou elas serão oferecidas, abordadas,
tratadas? etc.

Música e Educação Musical

Na realidade parece sensato considerar não a presença da “música” na escola - com as funções di-
versas que ela pode adquirir na vida social -, porém, mais precisamente, da “criação musical”. Uma educação
musical que se fundamente na criação, e se mova assim consciente de suas condições de tempo e espaço;
uma educação criativa contemporânea e apta a conjugar as características do passado e do presente, bem
como ainda uma criação formadora, capaz de acolher e respeitar tanto as expectativas quanto as particula-
ridades culturais de todos os envolvidos.139

Com isso é possível atender às necessidades de promoção de conhecimento amplo junto aos alunos,
seu desenvolvimento criativo e participativo, não os situando na condição predominante de “público”, nem
restringindo a “música na escola” a apresentações, à música das aparências, tão reiterada ano a ano nas co-
memorações visíveis e exteriores do calendário escolar, cívico e religioso.

Significa então não à “volta” da música e seu ensino à escola em moldes semelhantes aos que já tive-
mos em épocas anteriores; bem diferente disto, a construção de alternativas contemporâneas.140 Alternativas
que ofereçam condições a crianças, jovens e adultos de tomar contato prazeroso e efetivo com a sua própria
musicalidade, de desenvolvê-la e vivenciar, mediante experiências criativas, a música em seu fazer humana-
mente integrador e transformador.

E isto, por sua vez, significa, a oportunidade de desenvolverem seus próprios potenciais, de conhe-
cerem-se melhor e de qualificarem por consequência sua existência no mundo.

Cantar e tocar, ouvir e escutar, perceber e discernir, analisar e criar, compreender e se emocionar,
transcender na invenção tempo e espaço... há abaixo da superfície de todas estas expressões muito conte-
údo e sentido, que afloram todas às vezes em que experimentamos uma relação direta e por inteiro com
a música.

138. Temos e tivemos programas “Música na Escola” em diferentes cidades e estados do Brasil, desde o pioneiro realizado de 1997 a 2000 pela Secre-
taria de Estado da Educação de Minas Gerais, que implantou com sucesso o estudo e pratica musical junto a mais de 450 escolas de todo o estado.
Importante notar contudo que a música nunca esteve de fato ausente das escolas, mesmo faltando-lhe presença enquanto componente curricular,
sistemática de abordagem, tratamento condizente com seus potenciais e sintonia com preceitos contemporâneos. Atualmente desenvolvem-se pro-
jetos eficazes em diferentes municípios brasileiros, por exemplo Franca, São Carlos, Mogi das Cruzes e Santos (estado de São Paulo), Florianópolis,
Porto Alegre, Santa Bárbara, João Pessoa, entre outros.
139. Alunos sem dúvida, mas educador igualmente. Refiro-me a isto aqui pois em muitos projetos e currículos vimos o foco deslocar-se do resultado
ao conteúdo, do conteúdo ao processo, dele para os alunos, contexto e... este momento é o da inclusão de todos os envolvidos e sua interação na
relação ensino-aprendizagem.
140. Como sabemos, o Canto Orfeônico, surgido inicialmente na França no séc.XIX sob o titulo de “Orphéons”, foi adotado como recurso de mu-
sicalização em todo o Brasil no século XX. Heitor Villa-Lobos o propôs, com adaptações próprias, para ser utilizado nas escolas publicas do Rio de
Janeiro, a convite de Anísio Teixeira, em 1932. Associado a manifestações cívicas e ao exercício disciplinar de várias ordens, culminou 10 anos depois
na criação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. As particularidades do tempo que vivemos hoje sendo muito diferentes, bem como as
concepções que temos de educação, educação musical, filosofia, sociologia, musicologia, etc., a demanda, por conseqüência, é por propostas que
respondam de maneira mais pertinente aos desafios atuais postos por diversas realidades.

142
Cultivo da sensibilidade, criatividade, escuta, percepção, atenção, imaginativo, liberdade de expe-
rimentar, coragem do risco, respeito pelo novo e pelo diferente, pelo que é próprio a cada um e também ao
“outro”, construção do conhecimento com autonomia, responsabilidade individual e integração no coletivo
etc. não são meros termos de discurso. São aspectos envolvidos na formação dos alunos - no mínimo tão
importantes quanto aqueles que a escola entende oferecer nas diversas outras áreas do conhecimento-, que
contrapõem o “aprender”, de natureza fixa, memorística e repetitiva, ao “apreender”, próprio do captar, apro-
priar, atribuir significado e tomar consciência, portanto mais em sintonia com as características de formação
humana reivindicadas contemporaneamente.

Não é suficiente hoje termos a inclusão de conteúdos musicais nos programas de formação es-
colar; nossa atenção precisa ser dirigida às características da educação musical que gostaríamos de ver
utilizada. Uma educação musical capaz de oferecer estímulos ricos e significativos aos alunos, desper-
tando atitudes curiosas e aumentando por consequência a disponibilidade para a aprendizagem. Uma
educação que instaure um espaço de acolhimento pelo “brincar” no sentido original do termo, isto é
“criar vínculos”, uma das necessidades fundamentais da dimensão humana, indo sem dúvida muito
além do relacionamento exclusivamente técnico-executivo entre aluno x professor x classe, ainda tão
frequente na realidade de muitas salas de aula. Uma educação musical onde o lúdico represente o com-
ponente transgressor de expectativas do conhecido, mantendo nos alunos atenção viva ao que se realiza
a cada instante e assim os atraia, menos para os saberes prontos e constituídos, mais para a matéria
sonora em si, para a vivência musical participativa, para a criação de novas e autênticas possibilidades
de expressão.

Uma educação musical enfim que estimule o prazer (vínculo), para instaurar a presença (inteiri-
dade), possibilitar a participação efetiva (relação, implicação) e assim então estimular a produção de co-
nhecimentos gratificantes a nível geral e, especialmente, pessoal (formação ampla do aluno e não simples
transferência de informações por parte do professor). É esta a natureza de Educação Musical que merece
ser trabalhada hoje nas escolas, nos diversos pontos e regiões do país, capaz também de integrar teoria
e prática, análise e síntese, tradição e inovação, conferindo à música seu sentido maior, transcendente e
inclusivo.

Educação Musical e Criação

Considerar a educação musical como uma instância de construção e exercício da autonomia pes-
soal do aluno e de sua participação ativa em sociedade não representa mais uma visão romântica, idealista,
utópica, como durante muitos anos foi feita a critica.

Com a Lei n°11.769 (que torna obrigatória a introdução de conteúdos musicais nas salas de aula)
estamos hoje sendo convidados a participar não de um “simples momento” de cumprimento de um dis-
positivo legal mas, muito além... temos a perspectiva de um “novo movimento” da educação musical
(forma particular de aceleramento e intensificação de realizações, entendimentos e convicções) capaz de
propiciar processos e resultados valiosos para uma Educação Musical que se pretenda viva, brasileira,
contemporânea.

Agora avançamos mais um pouco... no lugar de uma “Música na Escola”, as “Músicas das Escolas”.
Uma abordagem de campo ampliado, integrando ao processo educativo procedimentos criativos a fim de
trazer à tona e dar voz à expressão pessoal dos alunos, engajando-os em seus próprios aprendizados e for-
mação. Ou seja, fazer emergir no “espaço físico” de cada instituição seu “espaço expressivo” e seu “espaço
relacional”, no âmbito dos quais serão promovidas novas modalidades de diálogo.

143
No conjunto, essas expressões serão “harmonizadas” e “contraponteadas” na interação com o educa-
dor , representando falas de culturas em ação, vozes de indivíduos que passam a ser escutadas, permitindo-
141

-lhes assim revalorizarem-se na pessoa que são (aumento da autoestima e sociabilidade). Música “musical”,
criada e “criativa”, resultado de concepções e práticas musicais lúdicas fundamentadas em processos am-
pliados que - ao invés do exercício da repetição e dos fazeres miméticos, preponderantemente reprodutivos-
compreendem o arranjo, a adaptação, paráfrase, variação, improvisação, reconstrução e a criação musical
propriamente dita, concebida pelos próprios alunos.

Oportunizar novas percepções de si e do “outro” através de um meio potente como a música sig-
nifica intensificar qualitativamente a dimensão formadora e a dinâmica social das escolas, sobretudo nos
grandes centros urbanos do pais, tão carentes de ações educativas criativas e humanizadoras.

A titulo de conclusão

Em outras palavras, não vale repetir as experiências de circunstâncias passadas sem a observação
e a atenção cuidadosa das realidades presentes. Assim, não se trata de recorrer a modelos conceituais
ou didático-pedagógicos de forte tendência técnica e teórica, diretiva e unidirecional, com insuficiente
espaço de flexibilidade e integração, nem tampouco a modelos vivencial-artísticos preponderantemente
práticos, com frágeis referenciais teóricos e de apoio, com exclusividade. Nossa época nos convida ao
exercício, não mais do “ou”, substitutivo e excludente, mas do “e”, colaborativo e integrador, estabelecido
porém com critério e criatividade.

Dai esperarmos que a “música na escola” tão necessária hoje não se confunda com um fazer
musical pedagogicamente descompromissado, de lazer e passatempo, nem que a educação musical seja
aprisionada pela educação artística e confundida com “história da música” ou outras histórias de locais,
nomes e datas. 142

As escolas são espaços de formação nos quais é estimulada a produção de conhecimento. Os alunos,
além de representantes sensíveis e inteligentes de estados musicais, são potenciais muito mais ricos do que
em geral se costuma imaginar, que merecem ser conhecidos e desenvolvidos com consciência e respeito
desde onde se encontram, a fim de tomarem contato com algo essencial em si próprios e na relação com a
vida, cumprindo assim seu papel na sociedade.143

Ao promover a diversificação de experiências musicais, a criação de músicas inéditas e suas apre-


sentações, daremos então condições para a construção de novos olhares e ouvidos, tanto por parte da comu-
nidade escolar e seu entorno, quanto dos próprios alunos; novas percepções inclusivas, que possibilitarão re-
-criar, com valor positivo, as leituras atualmente vigentes nas relações entre “eu & outro”, “aluno & professor”,
“criação & educação”, “exclusão & participação”.

141. Que assume aqui também o papel de orientador, problematizador, instigador, facilitador do conhecimento.
142. Mesmo que hajam aportes de contribuição para o processo de conhecimento, este “deslizamento” é insatisfatório face ao valor profundamente
formador e renovador que a música através da criação oferecem para a educação.
143. Observamos aqui, embora de passagem, a necessidade fundamental de cursos de formação continuada para os educadores responsáveis pela
condução destes processos visto seu papel decisivo para o sucesso desta, e de qualquer outra, proposta de educação musical. E isto é imprescindível
não apenas porque o contingente atual em condições de participar desse despertar das “musicas das escolas” não atenda quantitativamente à ex-
pectativa da demanda. Sociedades complexas, de mudanças rápidas e intensas como as nossas, demandam profissionais em processo constante de
atualização. Espera-se que todos os que utilizam a música como meio de desenvolvimento pessoal e de intervenção social criem conexões viáveis
entre a realidade “presente e objetiva” (a realidade real que no senso comum se manifesta) e suas dimensões “potenciais e latentes” (a realidade ideal,
desejada ou necessária, isto é... seu vir a ser), dimensão própria das criações e músicas compostas.

144
E as músicas que desde agora e nos próximos tempos continuarão a emergir das salas de aula e que
escutaremos nas escolas representarão a expressão criativa pela qual se manifesta a educação nas diferentes
instituições, a valorização das culturas, o reconhecimento dos indivíduos e sua participação saudável – in-
ventiva e responsável! - nos rumos da sociedade do pais.

Esta é a contribuição contemporânea que o projeto A Música da Gente vem buscando oferecer para
a educação musical em escolas de diversas regiões brasileiras desde 2013, perseguindo assim uma das neces-
sidades mais reivindicadas nos grandes centros urbanos, isto é, propiciar experiências estéticas significativas
integradas a vivências sociais saudáveis, humanizando assim a vida nos espaços sociais onde ela se faz mais
necessária, como a escola pública, por exemplo. 144

144. O projeto “A Música da Gente!” foi criado por Carlos Kater e implantado inicialmente em 2013 na escola publica EMEB Arlindo Miguel Tei-
xeira, localizada na periferia de São Bernardo do Campo/SP, junto a 340 alunos. Desde então se realizou no CEU Celso Augusto Daniel, também
em SBC, junto a outras 380 crianças e em 2017 em varias escolas da rede SESC em 4 polos no Brasil (Pernambuco, Distrito Federal, Pantanal e Santa
Catarina), chegando a mais de 4.200 alunos. Seu objetivo nao é o de ensinar musica mas o de promover a criação coletiva de musicas inéditas, junto a
pessoas de varias idades não musicistas. O processo de trabalho criativo-musical recorre a um conjunto diversificado de estímulos de duas naturezas
básicas: Musical – envolvendo a expressão pessoal, a interpretação individual e em conjunto, a exploração sonora, a construção de instrumentos e,
em particular, a composição de músicas; e Conceitual – princípios de organização, noção de forma, matrizes de agenciamento sonoro, bem como
ainda ecologia geral e sonora, qualidade relacional de participação, responsabilidade social etc. A importância de um projeto criativo musical para
crianças (e de crianças de escolas publicas da periferia em particular) deve-se ao seguinte fato: do ponto de vista das relações humanas e sociais, o
fazer criativo em grupo constrói significados e desenvolve a capacidade de discernimento e argumentação, que por sua vez favorece a fundamenta-
ção de posicionamento, face à necessidade de justificativa de escolhas musicais ou opções estéticas. As oportunidades e qualificação das condições
de diálogo possibilitam que sejam avançados os limites da aceitação de diferenças, de pontos de vista aparentemente divergentes, que se pratique a
negociação aberta, em vista da construção e fortalecimento das relacionais sociais. A criação em música é um processo de síntese e este projeto busca
por meio dela possibilitar também a integração entre aspectos habitualmente desassociados na realidade dessas crianças, como o fazer, o saber, o
prazer, o dever, o ser, articulando assim com maior sentido: vida intelectual, sensível, afetiva, pessoal e social. Para maiores informações ver: https://
www.facebook.com/amusicadagente.

145
ENSINO DE ARTE NA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS:
PROPOSIÇÕES PARA ALÉM
DA SALA DE AULA
Rosifrance Candeira Machado145

INTRODUÇÃO

Refletir sobre o tema O Ensino de Artes na Educação Básica: Avanços e retrocessos num momento em
que nosso país tem sido cenário de muitas discussões acerca dos caminhos que o Ensino de Arte trilhará
nos próximos anos é, ao mesmo tempo, oportuno, satisfatório e um desafio, visto que tantas lutas já foram
travadas ao longo de nossa história na educação.

Os avanços que podemos verificar no lugar e no contexto educacional que o ensino de Arte se confi-
gura a duras penas, ampliado pela luta dos Arte/Educadores reunidos na Federação de Arte /Educadores do
Brasil (FAEB) em abril de 2016, através da aprovação no Senado a obrigatoriedade de Música, Teatro, Artes
Visuais e Dança antes não incluída, a inserção na educação formal e a contribuição para uma formação
sensibilizadora e crítica, que a educação em arte assume, inclusive, numa perspectiva inclusiva, corre o sério
risco de ser retirado como obrigatório no Ensino Médio.

Penso, ainda, que Utopias Pedagógicas em Artes como Gesto de (Re)Existência reflete muito bem
o momento atual e cai como luva para este evento. A arte no contexto educacional e sua relação com a
Educação de Jovens e Adultos (EJA), compreendendo o alcance do ensino de arte junto a esse público, em
muito mantém relação direta com a ideia de resistir como modalidade de educação inclusiva, já que sempre
apresentou possibilidades pedagógicas em meio a tantas dificuldades. Considero, portanto, relevante tratar
sobre currículo, formação docente e outras questões pertinentes.

Ao falarmos acerca da Arte e EJA penetramos num espaço em que temos igualmente discutido o
currículo como instrumento de condução dos saberes escolares. A história da EJA no Brasil vem sendo pau-

145. Possui Mestrado em Cultura e sociedade pela Universidade Federal do Maranhão, com ênfase em Currículo de Arte na Educação de Jovens e
Adultos; Especialização em Arte, Educação e Tecnologias contemporâneas pela Universidade de Brasília; Licenciatura Plena em Educação Artística,
com habilitação em Artes Plásticas, pela Universidade Federal do Maranhão. Docente na área de Arte desde 1999, na Educação Básica e Superior.
Atuou na formação de professores à distância no Curso de licenciatura em Artes Visuais da UFMA, pelo Programa Pro-licenciatura (MEC- CAPES)
de 2008 a 2013. Professora EBTT - IFMA - Instituto Federal do Maranhão. Pesquisadora e Vice Coordenadora do GPTAE- Grupo de Pesquisa em
Tecnologias e Arte- Educação do IFMA. Membro da Comissão de Avaliação de Projetos de Extensão da Pró - Reitoria de Extensão/PROEXT- IFMA.
Atualmente responde pela Diretoria de Programas e Projetos Institucionais PROEXT- IFMA.

146
tada em torno a muitas controvérsias, que vão desde sua oferta como modalidade de ensino às questões que
envolvem formação de professores, público alvo, diversidade entre os alunos, entre outros.

A educação básica de adultos começou a estabelecer seu lugar através da história da educação no
Brasil, a partir da década de 1930, quando a sociedade passava por grandes transformações, em que o sis-
tema de ensino de educação começa a se firmar. Somado ao crescimento no processo de industrialização
e reunião da população nos centros urbanos. A oferta de ensino era de graça estendendo-se e acolhendo
setores sociais cada vez mais diversos.

Freire (2005) comenta das ideias em torno da educação de adultos no Brasil acompanhada de
uma história de educação como um todo, onde a educação passou por momentos de grandes reflexões, cada
período trazia um objetivo, que era fazer do ensino um direito de todos. Dessa maneira, em cada década,
houve um governo e professores com visões diferentes, na tentativa de beneficiar todas as camadas sociais.
Tentava-se buscar um método para trabalhar cada realidade de vida, possibilitando meios de ensino mais
significativos, para ajudar na construção de uma educação construtivista.

Iniciativas do Governo Federal vem lidando com a EJA, ainda, sob um olhar diminutivo, frente à
realidade dos sistemas regulares de ensino público, que se mostram incapazes em tornar possível o acesso
ao conhecimento à população por ela contemplada, fato que favoreceu e ainda favorece o abandono dos
estudos por um considerável número de jovens sem concluir os estudos regulares (EUGÊNIO, 2008).

Atualmente, essa modalidade se constitui em um campo de práticas e de reflexão que visam o


desenvolvimento integral dos sujeitos sociais nela envolvidos, considerando suas particularidades de faixa
etária e especificidade de quem ficou longe da escola no tempo regular. Fato que se evidencia em eventos
nacionais que tratam dessa modalidade de ensino e na existência de linhas de pesquisa em programas de
pós-graduação, ainda que de forma muita tímida, que discutem as questões em torno dessa modalidade
educativa, inclusive no que concerne ao currículo.

No tocante ao assunto, é possível identificar e analisar os critérios utilizados para a seleção e orga-
nização dos conteúdos escolares referentes ao ensino de Arte, na tentativa de identificar as concepções de
currículo que cercam e dão norte às atividades práticas dos professores, tendo em vista que, de forma geral,
o que se discute acerca de currículo fica restrito à seleção e à organização dos conteúdos.

Da mesma forma, discorrer sobre as escolhas do professor com relação ao currículo faz-se de extre-
ma importância, já que, quando fazemos isso, não estamos falando apenas de opções, mas de concepções
de sociedade, e, portanto construindo numa perspectiva social, buscando dialogar e entender, por meio de
fundamentação teórica, dentre outras possibilidades, a importância do currículo no ensino de Arte, com-
preendendo as relações que passam entre as necessidades de aprendizagens e expectativas de um currículo
prescrito e aquilo que se pratica em sala nas aulas de Arte nas escolas do Brasil, uma vez que não há, sequer,
uma Proposta Curricular, na maioria dos municípios, que ampare as práticas exercidas em sala de aula pelos
profissionais que ministram Arte.

ARTE/EJA

O Ensino de Arte na Educação de Jovens e adultos (EJA) deve oferecer a possibilidade de desenvol-
vimento de competências necessárias para a aprendizagem escolar, além da consciência de si com o mundo
e da capacidade de exercer sua cidadania, enquanto ser social que é. Para isso, o estudo da arte, das lingua-
gens que a compõe e dos elementos que a definem são instrumentos essenciais.

147
A aprendizagem através da Arte permite que os sujeitos transitem por diferentes áreas de conhecimen-
to que integram o currículo da EJA. A Arte é uma área de conhecimento que envolve e se envolve com todas as
demais áreas. É possível através dela o reconhecimento do aluno da EJA em sua individualidade, capaz de criar
e se expressar, posicionando-se de forma crítica em sua realidade de vida. Assim como é possível que esse mes-
mo aluno se reconheça enquanto sujeito coletivo, respeitando as diversidades que existem, em muitos sentidos,
nessa modalidade de ensino, através das diferentes formas de expressão e do conhecimento acerca da arte.

O público da EJA no Brasil inteiro apresenta um retrato de grandes diversidades que, em comum,
têm a exclusão social, embora existam outros pontos que se apresentem como características comuns a esses
jovens e adultos, que permaneceram longe dos espaços de produção de conhecimento por muito tempo. Com
o amparo possível por legislação específica, o quadro de exclusões, embora ainda exista, tem mudado dando
espaço a novas possibilidades e mudança de cenário, abrindo caminho para novas perspectivas de vida, novos
questionamentos sobre suas necessidades, de forma poética e artística, conduzidos pelo ensino da Arte.

A existência de uma Proposta Curricular que leve o aluno da EJA a experiências artísticas que con-
corram para a discussão de seu papel na sociedade tanto nos conteúdos, como na expressão, faz com que
esse aluno entenda a arte como instrumento facilitador e essencial para a aprendizagem e construção de
conhecimento de qualquer disciplina ou conteúdo a ser explorado.

É relevante, contudo, esclarecer que a arte, tanto como área de conhecimento, como componente
curricular pode alcançar possibilidades maiores que meramente se adaptam ao conceito de expressão, co-
municação ou facilitação, de forma individual.

A arte poderá funcionar, em determinadas circunstâncias, como uma ferramenta para a comunica-
ção de forma a dinamizar a interação com o outro, o que caracteriza uma prática social. É importante que o
aluno tenha consciência desse processo de comunicação, entendendo a arte, neste caso, como um elo muito
forte entre ele e o outro.

Estabelecer as conexões necessárias entre os saberes escolares e as relações de poder existentes das
questões não apenas educacionais, mas ideológicas e políticas que envolvem o Currículo. Paulo Freire (2005;
1979) nos fez entender melhor as necessidades de práticas específicas partindo do entendimento da EJA
como modalidade de ensino também específico, que requer, portanto, metodologias específicas e apropria-
das às necessidades desse público.

Nos PCNs percebemos que há a necessidade de situar a disciplina a partir de diferentes princípios
simultaneamente, como, por exemplo, selecionar conteúdos, aproximá-los da realidade imediata dos alunos
etc. Essa busca muito se aproxima do que se pretende com a educação de jovens e adultos.

Tanto o ensino de Arte como a educação voltada para esse público necessitam de um olhar especial
sob a perspectiva de oferecerem aos alunos que nela se inserem a possibilidade de serem preparados para
a vida e o mundo do trabalho, não apenas com o olhar de compensação, mas de igualdade entre as demais
modalidades de ensino.

Sob essa perspectiva, é relevante pensar em um currículo que repense as necessidades de formação
para os alunos da EJA de forma geral e específica, no que concerne à arte. Nesse sentido, concordamos com
Goodson (1995, p. 24) quanto à necessidade de revisão crítica e constante do currículo para que não caiamos
na tentação “de aceitá-lo como um pressuposto”. Já que, como bem nos mostra Forquin (1992, p. 38), “toda
espécie de delimitação, quer seja ela material ou simbólica, supõe e induz, com efeito, relações de poder”.

Além disso, “naturalizar o currículo é camuflar as relações de poder aí embutidas e impedir o debate
destes pressupostos permite fortalecê-las sem maiores questionamentos” (MAROSTEGA, 2006, p. 49).

148
Pensar em Ensino de Arte e a prática pedagógica na EJA, considerando o que os estudantes têm o
direito de aprender em cada área do conhecimento e refletir sobre quais práticas docentes podem efetivar a
aprendizagem é tomar como referência as necessidades próprias da Educação de Jovens e Adultos. É pensar
em espaços e tempos nos quais essas práticas pedagógicas assegurem aos seus estudantes identidade forma-
tiva comum aos demais participantes da escolarização básica.

Há algo de relevante importância como o próprio currículo: o processo como esse currículo será
articulado. A intermediação das ações curriculares ou educativas em Arte possibilitará aos educandos da
EJA um melhor entendimento não somente das manifestações artísticas como sua compreensão enquan-
to inserção cultural, mas, principalmente, entender a articulação dos vários elementos desse processo de
construção de conhecimento e se sentir como parte integrante do processo não apenas como receptor, mas,
principalmente como um sujeito agente.

ENSINO DE ARTE: o que se ensina e como se ensina na EJA?

Outro ponto a considerarmos reside exatamente em o quê e como se ensina Arte na EJA. Isso exige
um posicionamento pedagógico, conforme a amplitude de seu alcance, entendendo que o conhecimento em
Arte deve ser articulado de forma instigante junto à identidade, diversidade, os saberes e as leituras de mun-
do, transformando experiências estéticas em vivências significativas. Isso fará com que o acesso à Cultura e
à Arte seja universal e faça parte do cotidiano desses sujeitos.

Para isso, é importante que os sujeitos envolvidos no processo tenham a compreensão da Educação em
Arte como um fenômeno social histórico e um princípio educativo, na medida em que proporciona o emergir
dos saberes e da consciência crítica, contribuindo para a formação dos atores envolvidos neste processo.

Michael Parsons trata da Arte e Currículo integrados para responder às constantes mudanças atuais
em que vive a sociedade, assim como às necessidades dos estudantes no que concerne aos modos de utili-
zação da Arte. Um currículo integrado diz respeito à Arte em interação às demais disciplinas do currículo.
Dessa forma, pensar um currículo integrado em Arte é pensar sob uma perspectiva de ideias significativas
e compreensivas, não em métodos de ensino e projeto apenas. (PARSONS, 2008.)

Num currículo integrado, as disciplinas são entendidas como ferramentas na difícil meta de orga-
nização de conhecimentos. Com relação à Arte como parte do currículo integrado, é necessário, antes de
tudo, entender os fatores que cercam o cotidiano dos jovens e adultos, como cultura local, realidade social,
dentre outros, para que as estratégias utilizadas possam ter êxito e tornar significativa a aprendizagem e a
democratização da Arte na escola.

Um dos desafios a enfrentar é a interação entre os temas trabalhados nas demais disciplinas e os
conteúdos tradicionais trabalhados nas aulas de Arte, de forma a não conduzir um processo de superficiali-
dade do Ensino da Arte, reduzindo-o a meras habilidades e técnicas, mas promover a elaboração e o pensa-
mento de produções substanciais pelos alunos.

Trata-se de um trabalho complexo e implica num preparo maior por parte do professor. Implica
entender bem de arte e outros assuntos relevantes na construção de determinados conhecimentos relativos
à vida dos discentes e necessários na condução das questões abordadas numa perspectiva integrada.

Na tentativa de responder às questões mais frequentemente postas ao ensino de Arte na educação


de jovens e adultos, discutimos, inclusive, a melhor e mais eficaz forma de ensinar, organizar o currículo e
outras preocupações teórico-práticas, pontuadas nas teorias críticas do currículo. E a reflexão é contínua e

149
se dá a partir de temas relevantes como: práticas educativas em Arte; as metodologias adequadas ao Ensino
de Arte nas turmas de EJA; as abordagens e as propostas metodológicas existentes no campo da Arte e sua
aplicação de acordo com as especificidades do público alvo; formação docente e outros.

Uma das questões trata da situação dos profissionais de Arte que atuam nesta modalidade de ensino
e a forma como conduzem suas práticas em sala de aula, bem como lidam com sua formação pós- acadêmi-
cas. O quadro de professores da EJA, ofertado pela Superintendência de Educação de Jovens e Adultos, no
caso de São Luís/MA, desde o ano de 2001, ocorria com a contratação de professores, que eram pagos com
os recursos provenientes dos muitos programas e projetos realizados pelo Governo Federal em benefício
desta modalidade de ensino.

Com a criação do FUNDEB, em vigor desde janeiro de 2007, parte dos recursos é direcionada para
gastos específicos com a educação e jovens e adultos e, em virtude disso, o quadro de professores atual é
totalmente formado por servidores efetivos, aprovados em concursos para o Ensino Fundamental.

De acordo com dados obtidos através de pesquisa, os números de professores sem formação especí-
fica em arte excedem e muito ao número de profissionais formados na área e, dentre as muitas explicações
para isso, encontra-se o limitado número de professores concursados em contrapartida ao grande número
de escolas a serem atendidas pelo mesmo profissional, tanto no ensino regular como na EJA. Em muitos
casos, o professor que atua no ensino regular, se recusa a trabalhar com a EJA. E essa recusa se repete em
outras esferas, a exemplo do Instituto Federal do Maranhão, que também apresenta a mesma problemática
nos campi que ofertam a modalidade.

De acordo com as pesquisas documentais sobre os professores que atuam na EJA ministrando a
disciplina ensino de Arte com ou sem formação especifica na área, dos sete núcleos que compõem o mapea-
mento das escolas que oferecem a modalidade para jovens e adultos, obtivemos informações de apenas três;
um deles, Zona Rural I e II, foram encontrados em um total de 21 escolas, apenas oito professores formados
ou em Educação Artística ou possui graduação em uma das linguagens artísticas (Artes Visuais, Música,
Teatro - não há professores com formação em Dança).

Na Zona Urbana, a diferença em relação aos professores com ou sem formação se mostra tão caren-
te quanto na Zona Rural. Em apenas dois núcleos estudados, obtivemos a seguinte relação: para cada seis
professores com formação específica em arte, há o dobro de professores sem formação na área.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendemos a Arte na EJA requer um exercício de ver o mundo a partir de conceitos amplos
como forma de transformá-la em objeto de conhecimento. A discussão sobre Arte na EJA ainda é rasa.
Trata-se de um tema ainda recente, tendo em vista a pouca produção investigativa nessa área.

Uma das grandes dificuldades sentidas na modalidade EJA diz respeito à falta de formação es-
pecífica e conhecimento da modalidade por parte de um número relevante de professores, pois a formação
acadêmica não instrumentaliza esse profissional para atuar junto a esse público, e isso causa entraves no
desenvolvimento da ação pedagógica, já que a maioria possui experiência apenas com a educação básica
no tocante ao ensino regular. É fundamental que a instituição forneça aos professores, principalmente os
iniciantes, formação continuada e sensibilização temática.

Outro aspecto a ser destacado é a grade curricular dos cursos oferecidos nesta modalidade
(no caso das escolas de ensino técnico), por tratar-se uma organização onde falta uma congruência entre o

150
público idealizado e o que de fato ingressa nos cursos. A falta de base dos educandos que se matriculam é
muito dispare em relação ao planejado pela escola.

Para Berticelli (2005), “as decisões tomadas a respeito do currículo afetam sempre vidas, sujeitos”,
o que corrobora para a importância de seu papel na Educação. São necessárias, nessa discussão, uma série
de considerações, que vão desde as Políticas Públicas para a Educação em que se considere a construção de
currículos integrados e interessados na formação discente e docente. E, como dito inicialmente, muito per-
tinente com o que ora nos propomos a discutir aqui nesse espaço, neste congresso.

As determinações políticas, econômicas, culturais e sociais agem diretamente na formulação do


currículo, mostrando que a seleção não é um ato desinteressado, mas é o resultado de lutas e negociações.
Portanto, o currículo de Arte também precisa ser visto e entendido como currículo culturalmente determi-
nado, situado historicamente, que não é passível de desvinculação da realidade social.

Um currículo de Arte pautado em princípios norteadores como: sensibilidade, criatividade; diver-


sidade de manifestações artísticas e culturais, autonomia, percepção, fruição... Como forma de condução
dos saberes escolares e, claramente, destoa das discussões sobre não obrigatoriedade impostas nesse palco
tragicamente delineado e anunciado no Brasil, visto que isso trará consequências diretas na forma de fazer
arte nas escolas tanto no ensino regular como nas demais modalidades, como a EJA.

Tarefa fácil não é, contudo, é imprescindível pensar em um currículo que coopere para a formação
geral do estudante da EJA, bem como para a preparação para a vida através do Ensino da Arte. Tudo isso
deve ser pensado não somente pelos Governos ou pela Escola, mas por nós, pesquisadores, que temos a
responsabilidade de levar as discussões adiante e fazê-las alcançadas pelos professores e alunos da EJA, tor-
nando-a concreta, capaz de fomentar o sucesso da Educação de Jovens e Adultos, combatendo os retrocessos
impostos pela ausência de políticas públicas eficazes e da garantia de direitos já adquiridos.

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152
RE-FLEXÃO- CRIAÇÃO EM DANÇA
E AÇÃO CULTURAL146
Ana Valéria Vicente147

F lexionar novamente, permitir ao corpo as dobraduras anteriormente realizadas. Rever a traje-


tória de investigação com frevo como uma atualização das questões e formas que a constituíram é o objetivo
desta comunicação performativa. Aqui defendo a hipótese de que criar é agir no mundo, interferindo no
jogo simbólico e de sensibilidades que constroem a realidade. E para isso me apoio na proposição Suzana
Vinganó (2015) de compreender a ação cultural enquanto radicalidade artística.

Proponho um percurso através de meus processos de criação de espetáculo baseados na pesquisa


com a dança Frevo, dando visibilidade às discussões que foram mobilizadas e transformadas por processos
de criação realizados entre 2005 e 2014. Enuncio alguns dos aprendizados e reflexões que delas emergiram,
para defender a ideia de que a depender da estratégia de aproximação, cada processo de pesquisa e criação,
possibilitou a emergência de diferentes temas e compreensões do frevo e do meu contexto. Através dessas
relações pude elaborar pensamentos, alguns dos quais foram estruturados também como elemento de orga-
nização dramatúrgica e apontam questões sobre a sociedade e a vida contemporânea.

Busco fortalecer o entendimento das danças populares de forma não hierárquica em relação a ou-
tras danças sistematizadas. Este posicionamento baseia-se nos estudos recentes realizados no Brasil, tanto
na etnocenologia, quanto na antropologia e estudos culturais, que nos permitem compreender os contex-
tos históricos que criaram hierarquias entre diferentes práticas de dança (Kealiinohomoku, 2013; Acselrad,
2013; Vicente, 2005). Assim, nos posicionamos em favor do reconhecimento da importância e qualidades
estéticas e educacionais das diversas tradições artísticas brasileiras. Em favor da horizontalidade das prá-
ticas artísticas, podemos lidar com o frevo não como algo exótico, “folclórico” – no sentido original do
termo como tradição imutável, ahistórica e isolada da sociedade – e sim como uma prática de dança com
características, técnicas e simbologias próprias. Também podemos relacionar a prática social da dança com
a produção artística dos grupos de frevo, de dança popular e de dança contemporânea do Recife, visto que
esses contextos mantêm constante intercâmbio (Vicente, 2009).

146. Este texto contempla e detalha aspectos abordados no Seminário, cuja apresentação performativa é realizada através de improvisação estrutu-
rada e interação com o público.
147. Passista, dançaria, pesquisadora e coreógrafa. Mestra em dança e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, é
professora de danças populares e preparação corporal do Departamento de Artes Cênicas (UFPB) e pesquisadora do Acervo Recordança (PE). Na
prática de dança se especializou sobre o frevo, realizando pesquisas práticas e teóricas que resultaram nos espetáculos de dança: Ebulição (2018),
Re/in-flexão(2017), Re-flexão (2016) Frevo de Casa (2014) Fervo (2006) e Pequena Subversão, criação para o programa Rumos Dança, Itaú Cultural
(2007). Desenvolve pesquisas que discutem elementos das culturas populares na Sociedade contemporânea, tendo publicado o DVD Trançados
Musculares: saúde corporal e ensino do frevo (2011), e os livros Frevo para aprender e ensinar (2015);Entre a Ponta de é e o Calcanhar: Reflexões
sobre como o frevo encena o povo, a nação e a dança no Recife (2009); Brincando Maracatu(2008). Fundadora do Acervo recordança, desenvolve e
coordena pesquisas que articulam investigação histórica e a cena artística de Recife.

153
Frevos
O frevo é uma prática artística originária da cidade do Recife, com surgimento datado entre o final
do século XIX e início do século XX, que se constitui enquanto música, dança e diversas expressões coleti-
vas, tais como blocos, clubes, troças, grupos de dança e orquestras, que encontram seu ponto culminante a
cada ano no período carnavalesco. No decorrer do século XX, essas expressões do frevo tomaram diferentes
feições. No caso específico da dança, denominada Passo pelo teatrólogo Waldemar de Oliveira, na década de
1940, esta passou por um processo de escolarização descrito por Goretti Rocha (Oliveira, 1993) e em minha
dissertação de mestrado (Vicente, 2009). Estudiosos da área (Oliveira, 1985, Araújo, 1996) identificam a
criação do frevo com a nova estrutura social e de ocupação da cidade após a abolição da escravatura e início
da república. Araújo (1996) aponta as disputas por legitimação das classes populares em torno do carnaval
e da construção das simbologias do frevo.

No ano de 2007, o frevo foi oficializado Patrimônio Imaterial do Brasil, pelo IPHAN – Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - e, em 2012, Patrimônio Imaterial da Humanidade, pela UNES-
CO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. O Frevo é exaltado como uma
expressão de alegria e força, e símbolo do carnaval e cultura Pernambucana.

Minha relação com o frevo remonta à infância e à vivência do carnaval como foliã, sem nenhum
aprendizado formal até os 14 anos, quando inicio aulas na escola do Balé Popular do Recife. Esta escola
ensina o frevo e várias danças da região Nordeste do Brasil, organizadas sob o título de Dança Brasílica. Pos-
teriormente, aos 18 anos, iniciei o aprendizado de danças modernas e contemporâneas com grupos semi-
-profissionais no Recife, reduzindo o contato com a prática do frevo até 2005, quando, aos 27 anos, busquei
uma reconexão com essa formação corporal.

Decidi retomar uma dança que fez parte de minha infância e da minha adolescência, tomada pela sen-
sação de que havia ainda muito a aprender e que eu abandonara uma informação corporal de grande quali-
dade. Uma das minhas questões era estudar como esse tipo específico de articulação corporal - que envolve
diversas dinâmicas, deslocamento de peso, flexibilidade, agilidade, forças opostas - se constrói no corpo;
como o corpo se articula para dançar frevo, como o frevo (música e dança) se articula nos corpos (Vicente,
2006). Outra questão seria investigar como o frevo pode ser utilizado como uma linguagem corporal para
provocar dinâmicas e sentidos dissonantes e assim fornecer possibilidade para a construção de espetáculos
de dança abertos a discussões contemporâneas de arte.

Desenvolvi dois processos de criação entre 2005 e 2006, período em que também cursei o mestrado
e produzi a dissertação, posteriormente publicada com o título Entre a Ponta de pé e o calcanhar: reflexões
sobre como o frevo encena o povo, a nação e a dança no Recife (Vicente, 2009). Os trabalhos coreográficos
foram “Fervo”148, que relacionava os movimentos do frevo com a violência urbana do Recife, e “Pequena
Subversão”149, que investigava as relações entre desequilíbrio e alegria.

A proposição do espetáculo “Fervo” era estudar a constituição do frevo a partir da sua origem de
violência, pois o frevo foi criado por valentões e capoeiras que atuavam no contexto urbano como capangas
de coronéis, e relacionar com a violência que o recifense enfrentava diariamente naquele início do século
XXI. Um dos interesses era fazer uma discussão da violência como algo culturalmente construído e com
bases históricas as quais precisávamos, enquanto cidadãos, nos atentar. Naquele momento,, próximo ao
centenário do frevo, também tinha importância, para mim, romper a ideia de que o frevo É ontologicamente

148. Vídeo disponível em: https://vimeo.com/album/2588319/video/78125417


149. Trabalho contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural Dança. Vídeos disponível em: https://vimeo.com/album/2588319/video/78125416

154
alguma coisa. Era uma forma de interromper um discurso homogêneo, que a meu ver, mascarava problemas
sociais, servia para criar uma ilusão de igualdade social e valorização da arte local, e também lidava com a
tradição de forma padronizada e intocável.

O processo de criação durou sete meses de trabalho e visava o reconhecimento das diferentes for-
mas de praticar o frevo de cada artista envolvido, investigar desdobramentos expressivos a partir da ênfase
em diferentes aspectos dessa dança e verificar se e como seria possível evidenciar aspectos da violência
social na prática dessa dança. Neste processo foram desenvolvidas as discussões que apresentamos a seguir.

O livro Recife: culturas e confrontos (1998), do historiador Raimundo Arrais apresenta um cenário
de disputas políticas e emergência de problemas urbanos do início do Sec. XX na cidade do Recife. Este é o
período de surgimento do frevo e sua consolidação como prática cultural que engloba música e dança, na
região central da cidade. A música era tocada pelas bandas militares e da polícia civil. E, no encalço de cada
orquestra, seguiam grupos de pessoas entre os quais, profissionais liberais, desempregados e valentões150.
Estes se enfrentavam ao se encontrar nas ruas, refletindo disputas entre a polícia e o exército, entre a aris-
tocracia e a burguesia e entre bandos marginais rivais. Ao compartilhar essa leitura propusemos a seguinte
questão: seria possível transformar em dança essa história do frevo? Como poderíamos dançar frevo como
se lutássemos? Seria possível identificar o golpe que origina algum Passo?

Apesar do imaginário do frevo estar diretamente ligado à expressão de alegria - e todos nós reco-
nhecêssemos essa característica em nossas práticas - foi muito fácil relacionar alguns movimentos com
golpes. Em alguns, o próprio nome sugere essa conexão, como os passos “abre alas” (em que os braços
golpeiam o espaço como socos), “chutando de frente” (que é composto por chutes); em outros, uma va-
riação de tônus rapidamente transformava o movimento codificado em uma possível agressão ou em uma
esquiva, desvio de um golpe. Esse exercício de dançar como quem briga nos remeteu a duas expressões.
Por um lado, aproximava a dança do frevo dançado no carnaval pelos jovens que costumam aproveitar a
multidão para dançar lançando socos e chutes, distanciando assim, das formas coreográficas apresentadas
nos palcos e clubes de frevo. Por outro, aproximava passos como a tesoura, o faz-que-vai-mas-não-vai,
da capoeira.

Durante o processo, identificamos as diferentes formas que cada integrante do elenco151 agenciava o
frevo, apresentando tônus, organizações posturais e dinâmicas diferentes e isso nos fez investigar também os
processos de cruzamentos culturais que cada um agenciava. Passamos, por isso, a investigar o modo como
trazer organizações corporais e dinâmicas de outras danças, transformavam as leituras do Passo.152 Investi-
gando possíveis influências da capoeira e de danças do candomblé, percebemos uma facilitação da prática
do frevo, no uso da bacia e de alavancas, e refletimos sobre o provável apagamento da matriz afro-brasileira,
nos discursos e estilizações da dança, que chegou a ser identificada com uma improvável origem Russa, no
início do século XX (apud Oliveira, 1985).

Pude compreender de forma mais profunda o que significa o frevo ter uma influência direta da ca-
poeira. Essa influência advém de uma corporalidade que esconde a capoeira, porque esta estava proibida por
lei, mas que persistia como prática de luta urbana através dos valentões e outros indivíduos que buscavam
aprender a capoeira. Passamos então a pensar não na capoeira como uma expressão cultural, mas no capoei-
ra, na figura humana que possui uma corporeidade que atua com várias linguagens corporais, em constante
tensão e diálogo. Passamos então a investigar essa corporeidade. O gingado, as esquivas, as dinâmicas e,

150. Valentões eram pessoas contratadas como capangas e por isso tinham a conivência dos coronéis locais.
151. Os intérpretes foram Calixto Neto, Iane Costa, Jaflis Nascimento, Leda Santos e Marcelo Sena atuou como assistente de coreografia.
152. No frevo, os movimentos codificados são chamados de Passo, e o dançarino de frevo Passista.

155
principalmente, a organização corporal. O frevo ensinado nas escolas de dança e praticado nos palcos do
Recife apresenta uma postura corporal verticalizada desde a coluna lombar, incorporando procedimentos
de outras práticas de dança que trabalham com a imobilidade do quadril, como o balé. Mas, relacionando
o frevo com a corporeidade do capoeirista, encontrávamos o arredondamento da coluna, sinuosidade no
uso dos membros inferiores e superiores, multi-foco na expressão facial e uso da cabeça. Notamos que esta
forma de agenciar o corpo aproximava da corporalidade do passista de rua153 e com as indicações do méto-
do Nascimento do Passo154. Foi consenso que esta forma de organizar o corpo para dançar o frevo tornava
mais confortável executar os movimentos, trabalhando mais as alavancas (organização mecânica dos ossos
e musculaturas) do que a força muscular.

Como extensão desse experimento, passamos a dançar frevo com músicas afro-brasileiras, como
afoxés, maracatus e toques de orixás com o objetivo de construir aproximações, mas principalmente
acostumar o corpo a uma organização mais próxima às matrizes africanas. Nesse exercício, observamos
conexões de movimentos do frevo com movimentos do samba e das danças de orixás. Um elemento
estético importante foi a apropriação de dinâmicas polirítmicas e policêntricas, que estão na base das
danças afro-brasileiras - conforme descrito por Suzana Martins (Martins, 2008), revisando os estudos
sobre a dança na África, de Robert Thompson e Welsh Asante - para a prática do frevo. Desta forma, a
orientação rítmica pôde ficar menos dependente da marcação binária (é comum que o frevo seja dançado
acompanhando apenas a marcação do bombo), e com o corpo todo obedecendo a uma única marcação
rítmica. Ou seja, a organização do corpo-música ficou menos simples e ordeira, ampliando o espaço da
individualidade na organização do movimento.

Em resumo, elenquei até aqui três pontos de reflexão aos quais me detive através da prática de dan-
ça: 1. A veiculação frequente de uma compreensão de frevo construída com o reforço de uma imagem uní-
voca que apagava outros elementos estéticos e discursivos constitutivos desta dança; 2. O apagamento das
heranças africanas e afro-brasileiras na organização do corpo e sua relação com o espaço e com a música, na
forma como o frevo passou a ser veiculado nos palcos e nos clubes de frevo, a partir da segunda metade do
século XX; 3. O importante papel que o indivíduo passista pode ter ao tomar o frevo como uma expressão
complexa e não se limitar aos padrões rítmicos e formais consagrados pelos grupos de dança. Pudemos ver
que foi uma percepção clássica e hegemônica do belo, que deixou o frevo mais ereto, com pernas fechadas,
com menos ginga e malícia, padronizado155.

Através da verbalização das questões mobilizadoras e da apresentação das proposições corporais


que emergiram nesses processos, pude discutir aspectos do processo de construção do frevo como parte da
cultura da cidade de Recife e refletir sobre as escolhas efetivadas no processo de veiculação do frevo como
símbolo da cidade. Relacionando esses experimentos com a análise de espetáculos abordados na disserta-
ção de mestrado, pude concluir que a organização cênica e expressiva da dança frevo priorizou, ao longo
do século XX, um distanciamento dos elementos estéticos advindos de sua origem afro-brasileira, o que
possibilitou uma formatação sincrônica, pouco individualizada, verticalizada, geométrica e obediente ao
ritmo musical. São, portanto, fruto de escolhas estéticas em diálogo com as transformações sociais que se
tornaram discursivamente acessíveis através de uma abordagem mais aproximada do próprio objeto, ou
seja, da prática da dança.

153. Passista de rua ou folião é aquele dançador que usa o frevo para sua própria diversão, sem estruturação como dançarino profissional ou inte-
grante de grupos artísticos.
154. Nascimento do Passo foi um passista com notável reconhecimento e que sistematizou na década de 1970 a primeira proposta de metodologia
de ensino do Frevo. Para mais informações ver Vicente e Souza, 2015.
155. O detalhamento da construção dessa compreensão integra minha dissertação de mestrado (Vicente, 2009) na qual analiso coreografias de
frevo de 3 grupos de dança.

156
Investigações a partir da experiência

Na pesquisa do mestrado discuti a presença e materialidade do frevo em espetáculos de dança de


outros coreógrafos da minha cidade, realizados na década de 1990. Além de pesquisar a história das trans-
formações do frevo ao longo do século XX e a singularidade da encenação de três coreógrafos, a questão que
me movia era a discussão sobre a relação direta da dança popular com a ratificação de uma nacionalidade
idealizada e hegemônica. Então, ao analisar os trabalhos escolhidos, também interessava entender que dis-
cursos e que relações políticas essas produções criativas estavam mobilizando.

A meu ver, estudar o uso do frevo em espetáculos do Recife da década de 1990 se cons-
tituiu como uma forma de expor e problematizar a complexidade dos cruzamentos de
compreensões e práticas de dança, por um lado; e de refletir sobre as disputas de poder e
discursos ideológicos que compõem o cenário em que a produção artística estudada está
envolvida, por outro. (VICENTE, 2009).

Dessa forma, defendi a necessidade de estudarmos as produções de artistas relacionados as tradi-


ções locais e regionais também de forma não hierárquica em relação a outras danças, aproximando de cada
produto artístico com o mínimo de ideias pré-concebidas sobre suas formas, objetivos e potenciais.

Tal argumento foi fundamental para a continuidade do meu trabalho coreográfico. Por um lado am-
pliou meu repertório de formas coreográficas, soluções cênicas, organizações corporais, por outro, permitiu
um investimento criativo, formal e filosófico junto com o frevo, livre de dogmas. Assim, construí o espetá-
culo solo “Pequena Subversão”, cuja pesquisa parte da materialidade do frevo de forma bastante pessoal. O
projeto, construído para submissão a edital, apresentava o seguinte argumento:

Minha Pequena Subversão é imaginar que a alegria pode ser encarada como uma estra-
tégia de sobrevivência. Não o antídoto contra a tristeza, mas uma capacidade de traduzir
informações adversas em vontade de continuar vivendo. Viver compreendido como um
estado de risco em que nos expomos aos limites entre dor e prazer; cair e suspender; esti-
car e encolher; sem que nenhuma dessas ações seja localizada numa concepção de bem e
mal, bom e ruim. São possibilidades de existência em movimento e cujo valor é definido
pela articulação.

Aqui a proposição da pesquisa segue caminho diferente ao do espetáculo “Fervo” em diversos


sentidos. Ressalto dois elementos: o processo, que parte principalmente de uma percepção da ação do mo-
vimento em meu estado psicofísico e das ideias que surgem dessa vivência; e a concepção dramatúrgica, que
não deseja construir representações sobre a dança e sim constituir um espaço de partilha cinética a partir
dessa dança. Desses dois vetores, o nome Pequena Subversão, criado para indicar que o trabalho propunha
uma pequena subversão da ideia comum sobre alegria, foi se tornando uma reflexão dessa subversão como
alternativa às grandes narrativas, pensando sobre o quanto uma pequena alteração na percepção, na forma
de agir e pensar, ou de lidar com a memória, pode alterar o ambiente do qual se participa. Emerge aí uma
compreensão da potência das micropolíticas para inscrição de novos espaços de subjetividade. As pequenas
Subversões são as ações pequenas que podem transformar o ambiente do qual se faz parte.

Este processo foi bastante curto e as reverberações dessa pesquisa continuaram agindo em mim
e contagiando algumas pessoas. Pequena Subversão foi tomado como conceito que integra a concepção do
método de produção cultural, denominado Método Canavial (OLIVEIRA, 2010), desenvolvido pelo produ-

157
tor Afonso Oliveira. Já a professora Isa Trigo (2013), vê na ideia de Pequena Subversão relacionada à alegria
e à cultura popular, como um modo de operar próprio de diferentes práticas das tradições populares brasi-
leiras. Esse modo de operar a partir da produção de alegria constrói um estado corporal singular e permite
as passagens de estado psicofísico.

Ambas as formas de se apropriar do argumento desse espetáculo apontam, a meu ver, para um
transbordamento do espaço da Cena. As compreensões no corpo apontaram formas de agir no mundo, re-
tomando a ideia que a performatividade indica - um falar que age, que atua – no sentido de transformar, de
interromper um discurso ou de abrir um espaço para outras possibilidades de agir no mundo. Interessante
ver uma ideia que ultrapassa o produto artístico, e aqui não estamos reivindicando nenhum tipo de origina-
lidade, visto que são ideias que estão sendo agenciadas em diferentes áreas há algumas décadas, mas o fato
de que sua configuração emergiu daquele processo coreográfico de 2006/2007.

Notei que uma ideia ou composição de ideias, que foram muito importantes para o produto ar-
tístico, podem reverberar em diversas potencialidades. A partir dessa percepção, desenvolvo a ideia de que
nem sempre a melhor forma de agir no mundo num determinado contexto, mesmo para um artista, é a
produção artística. Nem sempre o melhor lugar para construir produções artísticas é a sala de ensaio. Às
vezes é preciso de bastante tempo para maturar as compreensões iniciadas em um experimento e é possível
lidar com as ideias jogando elas na realidade, nas suas outras práticas cotidianas para entendê-las. Inclusive
porque as ideias levam bastante tempo para se materializarem no corpo se entendemos a dança não apenas
como um jeito de dançar e sim como uma maneira de entender/lidar/construir o mundo.

A meu ver, as ideias coreográficas precisam estar no mundo, nas ações cotidianas, nas escolhas,
nas reuniões de departamento. Esses outros lugares são lugares de testar a possibilidade de agir, de falar
agindo, do nosso falar ser prática. Na dança, o palco é um lugar de dar visibilidade a algo que se materializa
em você inteiro: corpo – pensamento – sentimento – sensibilidade. E assim, imagino que as experiências a
que nos submetemos ajudam a construir formas mais ou menos elaboradas de estar no mundo e de mover.

No período seguinte a esse espetáculo e sua curta circulação, tive dois filhos e assumi o cargo de
professora da UFPB. Nesse período minha investigação voltou-se ao processo pedagógico e ao ensino de
frevo. Desenvolvi com o fisioterapeuta Giorrdanni de Souza a pesquisa Trançados Musculares – saúde cor-
poral e ensino do frevo (Vicente e Souza, 2013), através da qual pudemos compreender aspectos fisiológicos
e cinesiológicos da prática do frevo e, a partir de revisão bibliográfica em ensino de dança, aprendizagem
motora e treinamento físico, construímos uma proposição para aulas de frevo, atenta a demandas físicas.
Essa proposição envolve elementos pedagógicos e proposições práticas, as quais são bastante influenciadas
pela minha prática criativa com frevo. Ou seja, pude analisar algumas das minhas formas de aquecimento,
preparação corporal e investigação identificando suas qualidades pedagógicas e de treinamento motor, em
acordo com a bibliografia consultada.

Dentre essas práticas, a relação movimento e música é fundamental para compreender o trabalho
seguinte, realizado com Flaira Ferro, e com os músicos Spok e Lucas dos Prazeres, denominado Frevo de
Casa, que estreou em 2013. Minha proposição de ensino do frevo inclui uma sensibilização musical aos
vários elementos da música, identificando como estes podem facilitar a variação dinâmica na realização dos
passos. Ao contrário do que havia analisado nos espetáculos de frevo, onde os passos eram em geral execu-
tados sob a marcação binária, os teóricos do frevo no início do século, apresentavam a interligação entre o
passista e o músico na criação do frevo.

Explicando a origem recíproca da música e da dança do frevo, o teatrólogo Valdemar de Oliveira,


afirma: “Os músicos pensavam em lhe dar mais animação e a gente de pé no chão queria, isso sim, música
barulhenta, impetuosa, viva, que convidasse ao esperneio, no meio da rua.” (Oliveira, 1952, p.11). Vemos

158
que na gestação dessa expressão cultural, a relação música e dança é elemento fundamental, tanto para a
composição musical que atende a demandas dos dançantes, quanto para os dançantes que criam suas ex-
pressões a partir do estímulo sonoro.

Atenta a improvisação dos passistas de rua, a exemplo do Grupo Guerreiros do Passo e Brincantes
das Ladeiras, bem como a apresentações do artista Antônio Nóbrega, percebi que a possibilidade de varia-
ção dinâmica dos passos confere maior singularidade ao passista (pois cada leitura da música gera uma for-
ma de dança), mas também maior interesse a sua performance. Então, em várias etapas da aula proporciono
aos alunos investigações da relação do passo com as variações da música.

Esse investimento foi bastante ampliado a partir da pesquisa O espaço do Passo, desenvolvida em
2013 com a bailarina e passista Flaira Ferro pois durante a pesquisa percebemos a falta de diálogo entre
músicos e passistas nos diversos contextos de apresentação do frevo. Os músicos executam suas partituras
e compõem os frevos sem mais remeter à prática da dança. Já os passistas tendem a enfatizar os aspectos
virtuosos muitas vezes abdicando de uma relação mais profunda com a música. Identificamos essa distância
entre as práticas de dança e música como um elemento importante a ser retomado do ponto de vista da
estética da brincadeira.

No espetáculo Frevo de Casa, que estreou em 2014, a relação do músico com o passista se estreita
e o repertório de movimentos ganha menos importância do que as respostas improvisadas e orgânicas,
criadas no momento de cada encontro. Assim como a multidão no frevo deixa-se saculejar pela música
estridente, pulsante e repleta de quebras e volteios, também o pode fazer o improvisador, quando se permite
libertar-se do repertório tradicionalizado e deixar o passo surgir contagiado ao máximo pelo momento. Este
saculejo e forma de improviso que propomos não é o que normalmente vemos no carnaval do Recife, seja
nos palcos ou nas ruas, é o nosso frevo de casa.

Frevo de Casa aborda o frevo em sua intimidade, investigando a relação entre o corpo que
dança e que toca, e o repertório, os sons, o imaginário, a história e os diversos contextos
do frevo de rua. O frevo de casa, dançado no quarto, treinado na sala, mostra o espaço de
dentro que acumula a poesia da rua em busca do próprio movimento. (...) Frevo de Casa
é um trabalho de dança e música que investiga, através da improvisação, a relação entre o
indivíduo e a tradição, apresentando esta como algo dinâmico, vivo e criativo. O trabalho
é entendido como um exercício de liberdade compartilhada, cujo percurso é guiado pela
escuta, a vibração, o contágio e o desejo. (programa)

O frevo de casa é então um espaço para investigação pessoal de forma coletiva e compartilhada,
tanto para os músicos quanto para as dançarinas e o público, que disposto ao redor do espaço cênico deli-
mitado interage e interfere em diferentes momentos. Cada um de nós leva para o espetáculo seu repertório
de movimentos e sensibilidade, sua experiência com improvisação e com os elementos do frevo e o jogo de
troca e contágio segue um roteiro de combinações espaciais e relações entre os integrantes. A participação
do público sempre tem sido calorosa e na última parte quase todos se disponibilizam a experimentar se sol-
tar no frevo. Testemunho o entusiasmo que toma conta de todos. Um tipo de euforia, de falas sobre o prazer
de dançar, sobre a mobilização que sentiram. Testemunho a mim mesma e percebo um foco na mobilização
de energias mais do que no desenho de movimentos, e me interesso pelo tipo de comunicação que acontece.

O que esta trajetória assim trazida ao Seminário de Arte educação do Sesc intenta materializar, ao
convocá-los para experimentar a prática dessas teorizações, é a necessidade de nós pesquisadores e profes-
sores não abrirmos mão das nossas práticas artísticas e criativas quando deslocados para ambientes acadê-
micos e educacionais.

159
Tomar a arte como ação cultural é insistir que quando mobilizamos os conhecimentos técnicos
artísticos fazemos diferença na experiência humana e na capacidade de ampliar a compreensão das nossas
realidades e dos desafios pelos quais vale a pena implicar-nos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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deira no Cavalo-Marinho de Pernambuco. 1º. ed. Recife: dução cultural. Olinda: Associação Reviva, 2010
Editora Universitária, 2013.
TRIGO, Isa. Estranhando-se ao entranhar-se: a posição
ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Festas: máscaras do ator como personagem e pesquisador, contribuições à
do tempo; entrudo, mascarada e frevo no carnaval do academia. (Mimeo) Palestra apresentada no Seminário Pe-
Recife. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Re- quena Subversão, Festival Canavial, Nazaré da Mata, 2013.
cife, 1996.
VICENTE, Ana Valéria. Entre a Ponta de pé e o cal-
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Recife: Culturas e canhar: reflexões sobre como o frevo encena o povo, a
confrontos, as camadas urbanas na campanha salvacio- nação e a dança no Recife. Recife: Ed. Universitária da
nista de 1911. Natal: Edufrn, 1998. UFPE, Olinda: Ed. Associação Reviva, 2009.
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HOBSBAWN, Eric, RANGER, Terence. A Invenção das
tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997. VICENTE, Ana Valéria; SOUZA, Giorrdani. Frevo para
aprender e ensinar. Olinda: ed. Associação Reviva; Re-
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Ballet Clássico como uma forma de dança étnica. In: CA-
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Almeida; CONSTÂNCIO, Rudimar. Ação Cultural: Arte,
OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo capoeira e passo. Reci-
fe, Companhia editora de Pernambuco, 1985. educação e política. Recife: SESC Pernambuco, 2014.

160
JOGOS RAPSÓDICOS DE
APRENDIZAGEM DAS ARTES CÊNICAS
Brincantoria para Ingrid Dormien Koudela – Jogando com IDK
Luís Carlos Ribeiro dos Santos156
(dito Luiz Carlos Laranjeiras)

Lá no céu tem cravo,


Lá no céu tem rosa,
Lá no céu tem canto,
Lá no céu tem prosa. (bis)

Lá vai a lua sorrindo,


Lá vai a lua formosa,
Com três estrelas do lado,
A do meio diz pra todo mundo,
A lua é minha namorada. (bis)

Vem lua, lua, vem lua encarnada,


Vem lua, lua, vem lua encantada,
Farei com seu coração,
Uma canção e anéis de prata. (bis)

Céu sem fim, noite calma,


A viola acalma a alma com canção,
Sou amor, virei constelação.
Valei-me, estrela Dalva! (bis)

Em estado permanente de escuta das oralidades, vozes poéticas e musicalidades brasileiras,


trago outros elementos à narrativa do texto acadêmico do presente artigo e canto na viola agora, no calor
dessa hora, a ciranda Lá no céu, de minha autoria, recebida e adotada por Ingrid Koudela e sua filha Maia
Koudela como uma das músicas do Espaço Koudela no Jardim Monte Kemel em São Paulo, capital. Atento
às “escritas de ouvido”, as escrituras das narrativas orais, entro em comunhão com a tradição oral viva e a
corporeidade musical da poética popular afro-brasileira: acendo o fogo, o incenso e a vela, respingo água
de cheiro no ar, aqueço os couros dos atabaques, toco e canto uns pontos riscados das crianças, ibeji. São
pontos do meu memorial de experiências e escutas das vocalidades, dos tambores e “jeitos de corpo” nas

156. Ator, diretor teatral, autor/dramaturgo, diretor musical, compositor, cenógrafo, artista plástico, arte-educador, doutor em Artes Cênicas pela
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, mestre em Filosofia, professor do curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Uni-
versidade de Brasília e pesquisador do Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação da ECA USP. Como autor/dramaturgo,
publicou o livro Teatro de Luiz Carlos Laranjeiras pela Giostri Editora/SP em 2015, escreveu Folia da terra, 1º lugar, Entre o céu e a terra, 2º lugar,
vencedores do Prêmio Ana Maria Machado de Dramaturgia 2008, entre outras peças. Folia da terra, livro publicado em 2009 pela Editora Autores
Associados, Campinas/SP, foi selecionado pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil/Biblioteca Nacional/RJ para a 47ª Bologna Children’s
Book Fair 2010 na Itália. Como diretor teatral, assinando também a direção musical e as composições, destaque para As patacoadas de Cornélio
Pires, com o Andaime Teatro, A casa de dentro da gente, com a Caixa de Histórias/SP, Sabiás do sertão, com a Cia. Cênica/SP, Guaiá de todos nós,
com a Cia. Burucutu/SP.

161
giras e festas de Cosme e Damião na infância e juventude no Rio de Janeiro/RJ. Peço benção e licença a
Oxalá, às crianças, aos Orixás, Caboclos e a Todos os Santos para cantar a abertura dos jogos rapsódicos e
homenagear Ingrid Koudela:

Vamos brincar, todos brincar!


Brinquedinhos, vamos brincar,

Todos brincam, oh brinquedinhos. (bis)

Eu pedi a Oxalá
Pra mandar as criancinhas
Pra vir na banda
Brincar e trabalhar.

Tem cocada, tem guaraná,


Ó crianças, venham me ajudar.

Dois, dois, sereia do mar,


Dois, dois, mamãe Iemanjá! (bis)

Lá no céu tem três estrelas,


Todas as três em carreirinha,
Dois é Cosme e Damião,
A outra é Mariazinha. (bis)

São Cosme e Damião,


Damião cadê Doum?
Doum foi passear
No cavalo de Ogum. (bis)

Dois, dois, sereia do mar,


Dois, dois, mamãe Iemanjá! (bis)

Eu vou contar a Vovó


Que os pequeninos não chegou,
Ó Cosminho, ó Damião,
Ó Crispim, Crispiniano,
Ó Zezinho, Josefina,
Ó Julinha, ó Doum,
Caindé e todos os sete.

Vamos brincar, todos brincar


Brinquedinhos, vamos brincar,
Todos brincam, oh brinquedinhos. (bis)

Os cantos de Oxalá nos lembram, de coração, da nossa missão, e os cantos das crianças nos convi-
dam a brincar no terreiro: eis um cadinho da essência lúdica e da substância musical, oral e corporal dos
jogos rapsódicos de aprendizagem das artes cênicas. A comunhão entre a poesia, a música, a dança e o teatro,
a brincadeira das crianças, as corporificações, as incorporações e o jogo de transfigurações dos Orixás me
trazem um saber como indivíduo, como ser criador, ser musical e como ser social.

162
Os cantos do terreiro são vocalidades poéticas da minha experiência, escuta e iniciação inscritos e
fixados na memória. Ilo Krugli, o Teatro Ventoforte e Ingrid Koudela, mestra, orientadora, parceira e “guar-
diã do jogo”, colaboraram para a descoberta e a construção do meu repertório artístico-pedagógico e para
a revelação e a fixação do meu memorial. São minhas referências e pontos de partida no teatro, nas artes
integradas e na educação. “Educadores-brincantes” inspiradores que nortearam as minhas andanças como
artista/educador/pesquisador.

O VI Congresso Internacional SESC de Arte/Educação homenageia Ingrid Dormien Koudela e


Rosa Vasconcellos. Para coroar e saudar a homenageada Ingrid Koudela, ponho a viola, o cavaco e o pan-
deiro no matulão e apresento no Congresso promovido pelo SESC PE e a Universidade Federal de Pernam-
buco os jogos rapsódicos de aprendizagem das artes cênicas. Trago ao debate sobre as pedagogias teatrais e
os processos e contextos da ação cultural a proposta de uma arte-ação com teatro, música e dança popular,
uma ação cultural de ocupação, resistência e integração dos territórios da pedagogia das artes cênicas e das
culturas brasileiras. Teatro, música vocal/canto e instrumental, sambas de Caboclo e rural, cocos, cirandas
e brincadeiras de roda.

A partir das práticas artísticas como ator, autor-dramaturgo, diretor, cenógrafo, diretor musical e
compositor e com as pesquisas na Universidade de São Paulo, orientado por Ingrid Koudela, inicio meus
estudos, práticas e reflexões sobre o “teatro musical popular brasileiro” com o intuito de estabelecer outras
relações de ensino-aprendizagem das artes cênicas no século XXI. Utopias pedagógicas a partir das musi-
calidades, vozes poéticas e corporeidades das danças, brinquedos e cantigas de roda: eis os jogos rapsódicos
de aprendizagem das artes cênicas.

As músicas e danças populares são formas especiais de jogo e apresentam modelos exemplares para
a criação dos jogos rapsódicos de aprendizagem das artes da cena. Os cocos, sambas de Caboclo e rural, as
cirandas e brinquedos de roda são campos de troca de saberes e experiências com temas, formas e conceitos
significativos, como o sentido de jogo e brincadeira, o caráter estético, a intensidade, a fascinação, a impro-
visação, as várias linguagens artísticas e o valor etnográfico. Eis a ideia geradora dos jogos rapsódicos, que
trata das contribuições artísticas e pedagógicas das práticas culturais populares para o ensino das Artes na
educação formal e não formal.

O jogo rapsódico propõe a abertura de conexões colaborativas entre a pedagogia das artes cênicas
e as culturas brasileiras, Teatro, educação e cultura popular. O que os artistas do teatro, educadores e pes-
quisadores aprendem com os cantos, cortejos e personagens? E com as narrativas, dialogações e figurações
coreográficas, os ritmos, síncopes, sapateados, saracoteios e umbigadas? Que contribuições trazem ao cor-
po, à mente, ao aprimoramento técnico e reflexivo? Por que os sambas, cirandas, cocos e cantigas devem
ser experimentados e estudados? Podemos pensar no atuante, no artista do teatro como um ser musical? E
numa consciência do corpo musical a partir das danças e musicalidades brasileiras?

Numa apresentação resumida, o jogo rapsódico é uma “brincantoria”, neologismo, amálgama de


brincadeira e cantoria, com dança, música vocal e instrumental, narrativas, histórias e rapsódias; “contaria
de histórias”, brinquedo rítmico-corporal cantado, tocado, dançado, narrado, dramatizado, “descrevivido”,
descrito com vida, de forma vívida, com cocos, cirandas, sambas e cantigas de roda. O termo “rapsódico”
vem da rapsódia, trechos de poemas épicos recitados e cantados, acompanhados da mímica, pelo rapsodo,
o ator-cantador-brincante-artista ambulante. Identifico relações entre o brincante dos folguedos populares,
o rapsodo grego e o griot, os animadores públicos (dieli), da tradição oral africana.

O jogo rapsódico é a conjugação entre a pesquisa dos saberes e experiências das tradições musicais,
corporais e narrativas brasileiras e as práticas artísticas como ator, diretor, dramaturgo, compositor e diretor
musical de espetáculos de teatro musical popular brasileiro de palco e rua com os grupos de São Paulo, ca-

163
pital e interior, Teatro Ventoforte, Andaime, Farândola Trupe, Cia. Burucutu, Teatro do Labirinto, Caixa de
Histórias, Alumiah Teatro, Coletivo dos Anjos e Cia. Cênica.

Apresento no VI Congresso Internacional SESC de Arte/Educação, em formas de curso e palestra,


uma metodologia de educação estética, de sensibilização musical e preparação das bases físicas e mentais,
que tem como campo de estudos e experiências a música e a dança popular em sua potência artística e edu-
cativa. O ator/atriz é preparado como artesão das artes da cena, ser musical, rapsodo contemporâneo, ser
social, artista versátil que conhece e põe em ação os materiais do seu ofício, canta, dança, toca instrumentos,
narra, “descrevive”, anima bonecos e formas, tem ritmo, organicidade, sensibilidade musical, presença e
prontidão corporal.

Tambores, violas e flautas, pé, cintura, voz e palma: eis a síntese instrumental e a síntese corpóreo-
-musical das tradições afro-brasileiras, ameríndias/brasílicas e luso-ibéricas que traduzem as referências e a
significação cultural dos jogos rapsódicos.

Como uma experiência estética do “artefazer”, o jogo rapsódico é agente e meio de educação e cola-
bora para o conhecimento, o fomento e a difusão de elementos artísticos e antropológicos formadores das
culturas brasileiras. Proponho a experimentação dos jogos nas regiões do Brasil, na América Latina e em
outros lugares, com as danças locais, como a dança do peixe, Jacundá, na região amazônica, o bumba-meu-
-boi maranhense, o maracatu pernambucano, o boi-de-mamão catarinense, o jongo carioca e do vale do
Paraíba, os “cantos de ordeña” e o joropo na Colômbia e Venezuela, o camdombe uruguaio, a cueca chilena,
o huayno e a saya andinos, entre outras danças e expressões populares.

Nas andanças das pesquisas e recolhas dos materiais estéticos para os jogos rapsódicos de aprendi-
zagem das artes cênicas, Ingrid Koudela me fez entender que o valor pedagógico do teatro e das práticas
culturais, músicas e danças populares estão neles mesmos, em suas próprias naturezas dialógicas e estéticas.
Portanto, trago uma contribuição da música e da dança popular ao debate acerca das pedagogias do teatro
e os contextos e processos da ação cultural. Concluo propondo para os Currículos das escolas e universida-
des, os programas de teatro, artes cênicas, artes, dança, música e educação, a introdução e aplicação de um
sistema de aprendizagem das artes da cena como os jogos rapsódicos, inspirado nas teatralidades e práticas
culturais brasileiras, com cocos, sambas de Caboclo e rural, cirandas e brinquedos de roda.

Com a viola, cavaquinho e pandeiro de acompanhamento, faço o desfecho cantando Saudação,


toada de Folia de Reis de minha autoria, à maneira dos jogos rapsódicos, para saudar a figura referencial de
Ingrid Koudela para o Teatro e a Educação no Brasil, parceira de jogo, mestra de tantos artistas-educadores-
-pesquisadores, muitos presentes no VI Congresso Internacional SESC de Arte/Educação promovido pelo
SESC PE e a UFPE. Salve, salve, Ingrid Koudela, “guardiã do jogo”! Vamos jogar! Vamos cantar e dançar!
Salve a brincantoria!

Ai, ai, ai, ai, ai, ai,


Ai, ai, ai, ai, ai, ai... (bis)

Salve, Ingrid Koudela!


Pioneira em teatro e educação,
Abriu tantas janelas,
É nossa inspiração.
Abriu tantas janelas,
É nossa inspiração!

Ai, ai, ai, ai, ai, ai... (bis)

164
Salve os jogos teatrais!
Brecht, um jogo de aprendizagem,
Salve, salve o texto e o jogo!
Ela mostrou outras paisagens.
Salve, salve o texto e o jogo!
Koudela mostrou outras paisagens.

Ai, ai, ai, ai, ai, ai... (bis)

Nas cordas da minha viola,


Canto o amor, a arte, a liberdade,
Passarinho não é da gaiola,
Ninguém nasce para a maldade.
Passarinho não é da gaiola,
Ninguém nasce para a maldade.

Ai, ai, ai, ai, ai, ai... (bis)

Se a vida me diz não,


Sigo na luta com fé,
Porque sem emoção,
Não se chupa nem um picolé.
Porque sem emoção,
Não se chupa nem um picolé.

Ai, ai, ai, ai, ai, ai... (bis)

Canto a todo mundo,


Para Ingrid essa toada,
Vida com amor é tudo,
Vida sem canção é nada.
Vida com amor é tudo,
Vida sem canção é nada.

Ai, ai, ai, ai, ai, ai,


Ai, ai, ai, ai, ai, ai... (bis)

165
O TEATRO HÍBRIDO E
PERFORMÁTICO DO TOTEM
E SUA PEDAGOGIA DA PERFORMANCE
Fred Nascimento
Gabriela Cabral
Inaê Veríssimo157

E ste texto propõe uma reflexão sobre a prática do trabalho híbrido do GrupoTotem, sua ence-
nação performática e seu diálogo com a pedagogia, sua aplicabilidade na educação. Há alguns anos publi-
quei um artigo falando sobre a pedagogia da performance na formação do ator-performer, aquele que não
interpreta e sim presentifica o rito, um dos pontos determinantes de nossa linguagem. O Totem é um grupo
contaminado pela performance, com sua linguagem múltipla, um trabalho que transita entre as fronteiras,
de múltiplos códigos, polissêmico, hipertextual, (COHEN, 1998), que procura presentificar o ritual.

Ao tratarmos de uma ideia de corpo híbrido, a presença de Artaud é incontestável, por ele ter ques-
tionado o teatro ocidental e proposto em seus delírios iluminados, um teatro que se conecta ao ritual e à
dança contemporânea, um teatro onde o gesto não está atrelado à palavra, e esta, não está, necessariamente,
atrelada ao texto dramático.

Aprofundando a reflexão sobre o Totem, encontramos a figura singular de Pina Bausch, justamente
por inserir o teatro na dança, no Tanztheater Wuppertal, cia de dança-teatro alemã. Nossa poética inclui
o borrar da fronteira entre o teatro e a dança. As conexões entre o teatro e a dança foram construídas ao
longo dos anos, onde o corpo de matrizes do teatro foi sendo impregnado pelo corpo de matrizes da dança,
e, naturalmente, ocorreu uma relativização do uso da palavra em cena, pois nossa fala passa primeiramente
pelo corpo. Outra característica da dança no nosso trabalho está no desenvolvimento de uma dramaturgia
corporal, como personificação e parte da encenação, e não como ilustração de cenas.

Nossas criações são processuais, integrando colaborações ao longo do percurso, deixando di-
versas variáveis abertas aos fluxos e associações, um sistema aberto, que se renova e se amplia a cada
trabalho, sem perspectiva de fechamento. Essas buscas apontam para a coexistência não linear e não hie-
rárquica das diversas linguagens, assim como dos artistas envolvidos no processo, coordenados por um

157. O Grupo Totem, dirigido por Fred Nascimento e Lau Veríssimo, foi criado em 1988, e desenvolve uma profunda pesquisa de linguagem, de
criação de performances híbridas, atuando em eventos de performance, teatro, dança, artes visuais, etc. Em seu histórico conta com mais de 50 traba-
lhos, e mantém atividades de formação, entre elas a oficina Corpo Ritual, e também vídeos, exposições e publicações. Entre seus principais trabalhos
de encenação performática e/ou espetáculos performáticos estão Retomada, Nem Tente, O Nicho Portal do Imaginarium, Silência, Sob um Céu de
Concreto, entre outros. Entre as performances criadas para espaços alternativos e as performances/intervenções destacamos Renascentia Escarlate,
Totem Relicário, Corpoema, Mantoparangolé, Cinco Performance em um Ato, Em Nome da Beleza. O Totem é formado por: Fred Nascimento, Lau
Veríssimo, Gabriela Cabral, Inaê Veríssimo, Juliana Nardin, Cauê Nascimento (músico) e Taína Veríssimo.

166
encenador. Segundo Renato Cohen, “Ao encenador-orquestrador da polifonia cênica, na operação dos
fluxos intersemióticos, de partituras de texto, imagem, corporeidades e suportes – e não ao dramaturgo
-, cabe a guia da cena contemporânea”. (COHEN, p. 28, 1998). As nossas operações criativas não são rí-
gidas, pois nossos atores-performers e atrizes performers são coautores e coautoras dos nossos trabalhos,
ou seja, por serem uma simbiose entre o ator e o performer, são criadores de suas personas - um outro ele
mesmo -, pois lá estão sua mitologia pessoal, sua memória, sua corporeidade, suas criações individuais,
seu eu ritual.

O nosso processo criativo mexe com o procedimento da performance, no qual o performer é criador
e criatura, ao mesmo tempo, pois, seu corpo, sua subjetividade, sua singularidade mas, acrescido de que
sua performance está integrada à performance dos outros integrantes, e à performance coletiva, à criação
grupal, essa, por sua vez é articulada a partir de uma perspectiva rizomática158. Esse tipo de procedimento
desestabiliza a questão da hierarquia, num movimento que aponta para a horizontalidade de criação, tanto
na relação de integração e colaboração entre as linguagens, quando dentro da estrutura de criação poética
entre os artistas criadores, pois todos são coautores.

Dentro do campo de criação do ator-performer, podemos identificar os seguintes dispositivos uti-


lizados pelo ator-performer enquanto um artista criador, um poeta da cena: memória, mitologia pessoal,
presença, persona, extrojeção, topos mítico, emergências, autopoiesis, estado, ideograma, metamorfose.

Consideramos a performance como ideia fundadora de novas possibilidades cênicas e redes de cria-
ção. Por inaugurar dispositivos de significação, ela é, na contemporaneidade, absolutamente essencial, para
se falar e pensar em arte contemporânea como um todo. A performance arranha, rompe, arrisca, num movi-
mento ao mesmo tempo de quebra e de aglutinação, permite analisar sob outro enfoque, questões comple-
xas como a representação, o uso das convenções, os processos de criação, etc., questões que são extensíveis à
arte em geral. Ela que nasceu do encontro entre diversas artes, traz também, em sua gênese, a aproximação
entre a vida e a arte, como desejou Artaud.

Nesse quadro, nossas encenações performáticas, contaminadas pela performance, tem uma outra
característica, que é determinante na construção da poética totêmica, que se trata da coabitação, da simbiose
entre dois espaços/tempo, o espaço/tempo simbólico, metafórico, estético, e o espaço/tempo performático,
ritual, mítico.

Há anos vem se desenvolvendo muitas produções e pesquisas nas artes cênicas contemporâneas,
fazendo surgir um teatro contaminado, que ocupa um lugar indeterminado, que subverte os territórios
estabelecidos, imprimindo mais corpo à cena, mais presença, que lança mão de um forte impacto visual e
intensa sonoridade, um teatro de difícil categorização, território no qual nos encontramos. Estas inúmeras
manifestações do fazer teatral contemporâneo, diferentes entre si, por não seguirem um modelo, nem per-
tencerem a um movimento, acham abrigo no território conceitual que Lehmann nominou de pós-dramático.

Assumimos nossos espetáculos como encenações performáticas, pelo fato de não trabalharmos a
partir de textos dramáticos. Se assim o fizéssemos, tomando-os como pré-texto e pretexto para nossas mon-
tagens, estaríamos no campo que Tânia Alice chama de performance / encenação, uma nova estética teatral
contemporânea, que se manifesta em muitos grupos e companhias, que se apropriam de textos clássicos e
os transformam em material de criação, resignificando-os, o que guarda semelhanças com o nosso trabalho,
mas que se diferencia pelo ponto de partida e modus operandi.

158. Rizoma – conceito que defende um sistema aberto que possibilita linkagens entre diversos pontos sem hierarquia. Ver Deleuze e Guattari, Mil
Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo, Ed. 34, 1995.

167
Orquestrando sua própria pesquisa, trilhando o próprio caminho, o grupo conseguiu construir uma
poética muito particular, pois teve toda a liberdade sobre suas decisões, sobre que direção dar a suas pesqui-
sas, para construir sua linguagem, a criação de seus roteiros, articulando a criação de materiais levantados
em laboratórios, traçando redes e intercâmbios de conhecimentos, artísticos ou não. Esse procedimento é
ancorado na ideia de Antropofagia Cultural de Oswald de Andrade159, pois a devoração antropofágica, deixa
sempre aberto o horizonte, numa construção constante, sem cristalizações, provocando metamorfoses a
cada novo trabalho.

Para fechar essa introdução aos processos de estruturação e criação do Totem, elencamos alguns
procedimentos que se encontram na estrutura cênica de sua poética: construção em work in process; es-
trutura rizomática; criação de performances individuais que, ao serem superpostas constituem a per-
formance coletiva; encenação performática; hibridização; fusão de textualidades; instauração da per-
formance enquanto tempo-espaço-ação; fusão de um espaço-tempo ritualístico, performático, com
um espaço-tempo simbólico; fusão de elementos do teatro e da dança; afastamento da representação
e busca da performance; espetáculo centrado na ação; dramaturgia construída a partir do corpo; dra-
maturgia processual; improvisação; diálogo entre corpo em cena e música ao vivo; fragmentos de tex-
tos que o Totem chama de textos móveis, que podem ser poemas ou não; uso constante de projeções
visuais e novas mídias; hipertextualidade; polifonia; narrativas superpostas e simultâneas; narrativas
sem significado fechado; ritualidade; metamorfose; conexão entre arte e vida.

A música ocupa um papel essencial dentro da linguagem do grupo, criada em laboratórios


musicais/corporais, a fim de aprofundar nos corpos os estados mentais de cada performance, de cada
cena. A música do Totem é pouco convencional, instrumental, fusion, contemporânea, construída con-
comitantemente aos ensaios, uma linguagem contaminando a outra, fundindo diversos elementos musicais,
com muito espaço para a improvisação. Um free-jazz brasileiro, composto a partir de temas e células, mas
com espaço para a improvisação, dependendo dos fluxos da apresentação, com diálogo improvisacional,
entre os músicos (música) e performers. Essa música é criada especialmente para cada espetáculo e executa-
da ao vivo. Uma fusão de elementos tonais e atonais, de instrumentos tecnológicos e primitivos, com forte
influência da proposta de Paisagem Sonora160 de Murray Schafer. Vale registrar que aplicamos elementos de
dinâmica musical às nossas encenações.

Os trabalhos do Totem, sejam eles encenações performáticas, performances ou performances inter-


venções, são totalmente processuais, que incorporam o mito e o ritual, atravessados por multiplicidades, o
que gera inauguração de sentidos, exigindo de nós um constante organizar e reorganizar ideias e procedi-
mentos, originando uma cena outra. Essa poética, que toma o corpo como ponto de partida, como motor
da obra, e procura instaurar um topos mítico, é uma linguagem cênica ritualística. Manter essa atitude de
pesquisa de linguagem é primordial, pois ela cria um campo artístico e estético criador, gerando a possibili-
dade de aglutinar artistas em torno de uma ideia.

Para alguns, nosso fazer artístico pode parecer uma utopia, por adotar procedimentos não conven-
cionais de criação, os quais buscamos continuamente, impulsionados por sonhos e perseverança, por se
tratar de uma necessidade existencial, de um projeto de vida, de uma pulsão artística, intimamente ligada
às nossas existências.

159. A Antropofagia, como movimento cultural, foi tematizada por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago (1928), publicado na Revista
de Antropofagia. Era um protesto contra a mentalidade subserviente. Tinha por objetivo a deglutição da cultura do outro, na visão positiva e ino-
vadora de Andrade, nossa índole canibal permitira, na esfera da cultura, a assimilação crítica às formas importadas, que mixadas a nossa cultura,
resultaria em algo genuinamente nacional.
160. Paisagem Sonora - O conceito de “Paisagem Sonora” tornou-se conhecido a partir do trabalho produzido pelo compositor/professor canaden-
se Murray Schafer. Em seus estudos, ele trabalha com a percepção de sons, dos mais diversos ambientes.

168
Concluindo essa breve reflexão sobre nosso fazer artístico, colocarei em poucas linhas, a afirmação
de que nossas escolhas denotam um posicionamento claro sobre diversos pontos de nosso quadro político
e social, e um engajamento com questões ligadas às lutas de minorias, mas também a questões mais exis-
tencialistas. Nossos espetáculos e performances são nossa maneira de atuação no mundo, contrapondo-se à
lógica do mercado, mesmo pagando um preço alto por nossas escolhas, mas mantendo-nos leais aos nossos
princípios.

O Totem pedagógico / a pedagogia da performance

Não há como separar nossas atuações enquanto performers, das nossas atividades enquanto
arte-educadores, ao acionarmos rupturas em antigos paradigmas do ensinar, através de ação e intera-
ção, que são elementos da performance, nos colocamos enquanto professores-performers (CIOTTI,
1999). A ideia que alimenta o conceito professor performer, é a que coloca o estudante como produtor
em arte, fazendo com que todo o processo de construção do conhecimento seja um processo de criação
e experimentação.

Precisamos ter consciência da nossa atuação enquanto facilitadores de construção de seres criadores
e pensantes, e não sermos meros reprodutores de conceitos e práticas. O trabalho pedagógico é um corpo
a corpo, se dá a partir do encontro, que proporciona da troca de saberes, o desenvolvimento de potenciali-
dades e a construção de poéticas. A pedagogia da performance aponta para uma troca de saberes, dialogal,
relacional, de pesquisas e descobertas individuais e coletivas.

A intercessão entre arte e pedagogia se dá cotidianamente, pois todos os componentes do grupo


sempre estão envolvidos em atividades pedagógicas, atuando em diversas instituições de ensino formais e
não formais. É comum nas nossas práticas fazermos uso de diversos dispositivos e instrumentos desenvol-
vidos nos laboratórios, oficinas e montagens do Totem, onde essas matrizes são mixadas com as exigências
e necessidades que o ofício de cada um pede.

As atividades do grupo vão além da criação de espetáculos e performances, as atividades formativas


e reflexivas fazem parte das atividades desde o início das nossas atividades artísticas. Ao longo do tempo,
(o Totem foi fundado em 1988), temos participado dos mais diversos tipos de eventos, como congressos,
seminários, mostras, festivais, circuitos, nos quais temos realizado inúmeras oficinas, cursos, mesas, de-
monstrações de trabalhos, rodas de diálogo e outras atividades formativas e reflexivas.

É comum que grupos de artes cênicas ministrem aulas a fim de repassar seus conhecimentos a artis-
tas iniciantes, com o Totem não é diferente, durante toda a sua trajetória o grupo sempre procurou socializar
suas pesquisas através de oficinas e cursos ministrados por seus integrantes. Dentro da perspectiva de es-
clarecer um pouco nossas experiências pedagógicas, tecerei alguns comentários sobre algumas experiências
mais significativas, o Ita-Projeto Pedagógico, o Curso de Teatro Performático Totêmico, A Arte da Perfor-
mance e o Corpo, a Oficina Corpo Ritual e as experiências das performers Gabriela Cabral e Inaê Veríssimo
como arte-educadoras de escolas da rede privada de ensino de Olinda e Recife.

A primeira experiência mais sólida de intercessão entre o teatro performático do Totem e a pedago-
gia, via arte-educação, aconteceu com Ita-Projeto Pedagógico (1995), segundo informações, a primeira expe-
riência de adaptação para as artes cênicas da Proposta Triangular de Ensino de Arte, lançada no Brasil por
Ana Mae Barbosa, experiência realizada em diversas escolas da rede oficial de ensino, seguindo o roteiro de
fundamentação/contextualização do espetáculo Ita, apreciação do espetáculo no espaço da escola, seguidas
de releituras de Ita realizadas por arte-educadores das escolas visitadas.

169
As atividades pedagógicas do grupo não pararam, mas destacamos o Curso de Teatro Performático
Totêmico, em 2003, ministrado por Fred Nascimento e Lau Veríssimo, a partir do qual o corpo foi tomado
como ponto de partida para a criação, através da aplicação de alguns princípios da performance, desenvolvi-
da internamente, como o personal totem, os textos móveis, a oferenda de si, o teatro ritual, a não-interpreta-
ção, caminhadas e mandalas de energia baseadas no Taan Teatro, body painting, corpo e memória, esforço,
respiração, mitologia pessoal e autopoiesis. Durante o primeiro mês do curso, foram criadas performances
autobiográficas, performadas no próprio espaço. No segundo mês do curso, o fluxo das subjetividades das
atrizes-performers se expandiu e estas se uniram, a partir da lutas contra a discriminação da mulher, as
performers do Totem se juntaram ao processo criativo, que acabou gerando a performance ritual coletiva
Cinco Performances em um Ato, cuja construção envolveu mitologia pessoal, autopoiesis, imagens arquetípi-
cas e textos autobiográficos. Sua performação contou com a instalação e instauração de corpos dilatados de
cinco mulheres em performance mítica, e cinco sacerdotisas cuidadoras desses corpos/imagens, gerando o
imbricamento entre o tempo real e o tempo mítico, performada durante o SPA das Artes do Recife, defronte
a cinco igrejas históricas da cidade. Um ato poético que falava da condição da mulher e do quanto a igreja
tem de culpa nesse processo histórico de opressão.

Nesse período o Totem manteve o Espaço Totem – No Pátio de São Pedro – Recife, no qual mi-
nistrou algumas oficinas e realizou performances. Internamente as pesquisas continuaram e a mistura de
linguagens foi se consolidando. Em 2008 o grupo realiza o curso A Arte da Performance e o Corpo no Centro
de Formação em Artes Visuais (CFAV), em Recife. Além da história da performance, foram trabalhadas
diferentes formas de performance, a relação com o público, espaço e performance, tempo e performance. O
curso gerou uma Mostra de Performances no espaço urbano do Recife.

A partir de 2011 o grupo instalou seu novo Espaço Totem na Av. Cruz Cabugá - Recife, com intensa
atividade de cursos e oficinas de artistas convidados. Neste novo espaço, o Totem ofereceu o mini-curso O
performer – o dispositivo da diferença, pelos professores-performers Fred Nascimento e Lau Veríssimo, que
realizaram laboratórios a partir do corpo, poética corporal – poética pessoal, ritual, tempo mítico, mitologia
pessoal, produção de presença, construção de persona, seres auto ficcionais, performance, ator-performer, me-
mória corporal/sensorial, performance autobiográfica, colagem de Mídias (mistura de linguagens), ideograma
– a lógica do corpo em cena – metamorfose – estado permanente de transformação – o corpo como discurso,
territórios e fronteiras. As performances criadas pelos participantes foram performadas no próprio Espaço.
Mais uma vez vimos artistas criadores em estado de profunda entrega e de autorevelação, investindo na cena
como um espaço em que se desenrola um acontecimento, onde há a ação do corpo em performance.

Oficina Corpo Ritual

As oficinas ancoradas na pedagogia da performance continuaram a acontecer no Espaço Totem,


sempre na busca de novas formas de expressão e formas sutis de comunicação. Não há espaço aqui para
falarmos de todas essas experiências, portanto iremos nos deter numa das experiências potentes realiza-
das pelo grupo, a Oficina Corpo Ritual, que contou com três edições, nos anos de 2013, 2014 e 2015. A
referida oficina nasceu da nossa busca pela antiga e perdida unidade do ritual, este, por sinal, matriz do
teatro, por uma cena mítica, arquetípica, esse desejo nos impulsionou para pesquisas no campo antropo-
lógico, (TURNER, 1974), aliado a estudos da performance (SCHECNER, 2012) do teatro pós-dramático
(LEHMANN, 2007), indo em busca do encontro com mitos, arquétipos e ancestralidade através do corpo
e seus símbolos.

Construímos uma oficina teórico/prática, passando pela construção de ‘personas’, e conceitos de


presença’ (Gumbrecht), estado, campo mítico, ato-ritual e sacralização. Advinda da poética criada pelo Gru-

170
po, a oficina também tinha aportes na Pedagogia da Performance (Valentin Torrens), com o corpo, o sujeito,
no centro da criação, visando a construção de performances rituais consolidando a performance como o
ritual contemporâneo e o ator-performer como xamã da cena.

Assim, o Totem aproximou-se do sagrado como forma de atingir a presença do ator-performer,


inspirando-se nos rituais ancestrais, em consonância com a pesquisa do corpo cênico contemporâneo em
estado ritual. A Oficina Corpo Ritual proporcionou a consolidação da sua poética como um teatro perfor-
mático ritualístico, marcada pela investigação de temas relacionados ao ser humano que abarcam as subje-
tividades dos atores-performers e do público, pois segundo Naira Ciotti, “a performance provoca mudanças
no olhar e na sensibilidade dos indivíduos, tendo uma função pedagógica”, ou seja a própria performação de
uma performance, é um ato pedagógico.

No ano de 2013 foi realizada a 1ª Oficina Corpo Ritual, na Galeria Casa da Rua, Recife e na
mata atlântica de Aldeia, Camaragibe. Nesta primeira edição, o Grupo aplicou sua pedagogia perfor-
mática, advinda de sua poética e de suas pesquisas, a fim de favorecer atos criativos dos participantes,
e teve como culminância do processo, a criação de foto-performances, desenvolvidas entre fotógrafos e
performers/participantes dirigidas/coordenadas pelos professores-performers membros do Totem. Um
processo que resultou na formação da exposição fotográfica Corpo Ritual, que circulou em eventos de
fotografia, Mostras de Artes Cênicas e de Performance. Em sua segunda edição, em 2014, o processo
da oficina desencadeou a criação de performances autobiográficas que foram performadas na 1ª Mos-
tra Corpo Ritual, no espaço O Poste, em Recife. Por fim, em 2015, a Oficina aconteceu no Centro de
Cultura Luiz Freire, em Olinda, tendo a 2ª Mostra de Performance Corpo Ritual, composta por perfor-
mances rituais que aconteciam paralelamente, ocupando a área externa do Centro, com a presença de
um público expressivo.

Todo o processo pedagógico da Oficina Corpo Ritual se sustentou no corpo, na pesquisa corporal
das potencialidades do corpo dilatado, tomado como motor, enquanto sujeito e objeto da obra, explorando
os campos da memória e do devir, cuja vivência se deu em laboratórios-ritos preliminares, cujo processo
desencadeou a criação de uma simbologia própria, através de sua vinculação com o sagrado. Para atingir a
subjetividade e a criação, foram utilizados estímulos sensoriais, ritualizações de mitologias pessoais, mer-
gulho interior, investigação de autopoiesis, além de práticas xamanicas, fluxos corpóreos, exercícios vocais/
corporais, fazendo emergir o eu-ritual dos performers, amalgamados em partituras corporais e ideogramas,
objetivando a criação das performances rituais. Esta metodologia incita a criação de trabalhos híbridos, que
tem o teatro performático ritualístico como referência.

A Oficina Corpo Ritual foi conduzida pelo professor-performer e encenador Fred Nascimento, e
pelas atrizes-performers e professoras-performers Lau Veríssimo, Gabriela Cabral, Gabriela Holanda, Inaê
Veríssimo, Juliana Nardin, Tatiana Pedrosa Leal e Taína Veríssimo.

A experiência de Gabriela Cabral (atriz-performer do Totem)


Professor-Performer: uma experiência com adolescentes do ensino médio

Seguindo o pensamento de Jerzy Grotowski, o performer é uma criatura em ação, um estado de ser,
uma conexão com seu “eu” interior. Na performance, o corpo e a alma do artista atuam como suporte para a
obra. Já os processos de criação teatral, passam por situações de concepção e colaboração coletivas, através
de jogos, improvisações e encenações, caracterizados pela ação conjunta, em virtude de uma montagem
específica.

171
Ser performer e professora de teatro me trouxe a necessidade de adentrar no campo da performance
enquanto metodologia, investigando um sistema propulsor de experiências pessoais autobiográficas, em
conexão com o coletivo e encontrando na junção dos corpos e vozes a função colaborativa de um objetivo
em comum; o espetáculo.

A prática que relatarei aconteceu no ano de 2017, com o grupo de adolescentes do curso de teatro da
instituição de ensino Academia Santa Gertrudes, localizada no Alto da Sé, Olinda, Pernambuco, resultando
no espetáculo chamado Vudéjàvu. Composto por estudantes engajados politicamente e com as questões
sociais, chegamos ao desejo de adentrar na atual crise política, que se tornou o ponto de partida para a con-
cepção da encenação.

Durante o percurso os estudantes mostraram uma necessidade de trabalhar o tema da desmorali-


zação dos políticos tradicionais e do naufrágio de quase todos os grandes partidos que nos fizeram chegar a
um panorama insustentável, daí surgiu o questionamento, como se fará ouvir a multidão dos expropriados:
os sem-teto, os sem-terra, os sem-salário, os sem-escola, os sem-direitos? A resposta unânime foi; através
dos nossos corpos e da nossa voz.

A proposta inicial, quando nenhum desses pensamentos estava definido, seria a de introduzir a
pedagogia da performance no processo criador, culminando numa montagem teatral. Inicialmente busquei
investigar quem eram aqueles seres ali presentes, o que eles traziam nas suas histórias de vida, nos seus
corpos e nos seus íntimos. O processo criativo deu-se a partir de laboratórios voltados para as necessidades
daquele grupo em específico, através de jogos, memórias/lembranças, pinturas corporais e criação de textos/
poemas. A partir desses laboratórios, as imagens arquetípicas pessoais dos alunos foram fluindo, de forma
que, a criação ali vivenciada era parte daqueles indivíduos, as produções apresentadas eram como pedaços
de si mesmos arrancados do seu âmago. A junção das individualidades desembocou num rio de ideias e
imagens, sempre canalizadas para o todo, em busca de um tema em comum para a produção e realização de
um espetáculo teatral performativo.

A estrutura hierárquica foi construída de forma horizontal e flexível em relação aos papéis desem-
penhados por cada um dos participantes no processo de criação. A dramaturgia nunca estava finalizada,
havia um roteiro sujeito a alterações pelos próprios estudantes, não havia representações de personagens
e sim personas levantadas nos laboratórios em cena, a identidade dos alunos reivindicando suas críticas e
resistências aos padrões normativos que a população brasileira está vivendo na atualidade. A estudante que
personificava a figura principal se expressava apenas com o corpo e tinha nele seu fundamental vetor de
criação e expressão.

A troca de material simbólico durante todo o processo foi algo de libertador para os adolescentes,
com este percurso colaborativo, os textos e criações eclodiam de dentro dos jovens e nisso emergia a potên-
cia de todo o coletivo, ali estava a verdade de um grupo, apresentadas no corpo, na voz e na alma.

VudéjàVu assumiu uma posição de livro-jogo, no qual o público teve total participação nas decisões
sobre as cenas que foram apresentadas pelos atores, nelas, todos os presentes foram votando nas cenas que
gostariam de assistir, decidindo, inclusive, o final da peça.

Atuando através de uma pedagogia crítica, partimos do princípio de que a escola não é uma ins-
tituição desprovida de funções políticas e que funciona como uma experiência consigo mesmo e com o
coletivo. Com ela foi possível resistir enquanto ser dentro da escola, se fazer ouvir, se fazer inteiro, perce-
ber que sua atuação na comunidade escolar é sentida e reconhecida, tudo isso os fez entender que fazem
parte do mundo e que este os impulsiona a criar. (Gabriela Cabral, professora-performer, arte terapeuta
e atriz-performer)

172
A experiência de Inaê Veríssimo (atriz-performer do Totem)
A Pedagogia da performance aplicada às práticas de teatro em sala de aula.

Sou integrante do Grupo Totem desde 2004, lugar onde se deu toda a minha formação em perfor-
mance, performatividade, teatro pós-dramático, teatro performático, ritual, um amplo e rico universo de
pesquisas e descobertas. Sou formada em Artes Cênicas pela UFPE e atualmente atuando em sala de aula
como professora de teatro na rede particular do Recife. Minha relação com a arte educação vem de berço,
ainda em casa, e desde que me tornei professora sempre tive a consciência de que o meu trabalho seria
facilitar os processos de cada um, no sentido do autoconhecimento e afirmação da pessoa como cidadã no
mundo.

Neste breve texto irei relatar o processo de construção de um trabalho performático, realizado com
alunas do Fundamental 2 e Ensino Médio, que tinham entre 13 e 17 anos. Nessa época eu fazia direção de
elenco para o Novelo Literário, projeto que buscava o diálogo entre poesia e teatro, no Colégio de São Bento
em Olinda. Nesse projeto os alunos produziam poemas guiados por um tema, e encenavam alguns poemas
selecionados. Havia o lançamento de um livro de poesias reunidas dos alunos, e algumas dessas poesias
eram encenadas no espetáculo de lançamento do livro. Esse projeto acontecia anualmente e todo ano tínha-
mos um poeta homenageado.

Em 2015 estávamos trabalhando o poema de uma aluna com a temática do feminismo, e por coin-
cidência só tínhamos alunas nesse processo. Foi preciso dar uma aula introdutória sobre feminismo, pois
muitas delas não tinham aprofundamento no tema. A partir daí comecei a elaborar laboratórios que pode-
riam vir a ser cena. E um desses laboratórios amadureceu e virou a encenação do poema em questão.

Pedi para que elas relatassem situações em que foram oprimidas por ser mulher. Os relatos começa-
ram a surgir, e foi se desenhando uma experiência cênica intimamente ligada à vida de cada uma. Durante
o processo elegemos uma aluna para ser crucificada simbolicamente, representando todas as mulheres opri-
midas pelo patriarcado. Todas as outras traziam suas experiências representadas por um tecido vermelho
que era amarrado à aluna crucificada. Ela carregava a dor de todas nós. Durante o desenvolver da perfor-
mance, a aluna crucificada estava toda amarrada com oito pedaços de tecido. À medida que a performance
avançava, ela ia ficando imóvel e cada vez mais ia perdendo os movimentos. Até o momento em que as
outras alunas reagiam a esse comportamento de culpabilizar a mulher, que elas mesmas reproduziam. Elas
se organizaram numa dança dramática para tirar a ‘mulher’ amarrada daquele lugar. E, aos poucos, aquele
corpo de mulher amarrada ia se soltando, se empoderando, e saindo daquele lugar de castigo. Cada aluna
pegava seu tecido de volta e dançando iam amarrando o tecido na cabeça para montar um turbante. Com os
tecidos na cabeça, todas dançavam uma coreografia com a música Vaca Profana de Caetano Veloso.

Toda a criação foi coletiva e processual, além de ter sido extremamente significativa para todas
nós envolvidas. Primeiro porque partiu de experiências verdadeiras, onde cada estudante pôde desenterrar
algo que vivenciou e criar sua persona, a partir de sua própria experiência. E segundo, porque esse trabalho
reverberou para sempre na vida de cada uma, as modificando como pessoas no mundo. Essas estudantes fo-
ram criadoras e criaturas do trabalho que se desenrolou, ao construírem uma performance pessoal e coletiva
onde todas estavam presentificadas em sua ação performática.

O texto que foi dito pelas estudantes tinha um eco visceral dentro de cada uma, pois elas vivencia-
vam o momento sendo elas mesmas, potencializadas. De forma que o uso da palavra passava pelo corpo,
construindo assim uma dramaturgia corporal impregnada de subjetividade. Não estavam aquelas estudan-
tes representando, elas estavam sendo mulheres que se encontravam num campo de luta, e que naquele
momento foi o palco.

173
O uso da voz, do corpo, dos elementos visuais, da música e do movimento estavam todos conecta-
dos com a subjetividade das participantes. A energia emanada por aquelas estudantes nessa performance era
a coisa mais grandiosa de se ver, pois estavam realizando a quebra do que está estabelecido através de seus
corpos e vozes e principalmente, através de suas experiências pessoais.

Esse processo relatado acima nos fez perceber o quanto a arte é importante no seu poder de ativação
de novos mundo e sentidos. É um caminho para as mudanças que queremos e precisamos. (Inaê Veríssimo,
professora-performer, arte educadora, performer e mãe).

Considerações Finais

A partir das experiências acima citadas, que nos mostram as ideias e práticas do Grupo Totem reverberando
para além de suas fronteiras, concluímos que é possível expandir o universo e o ensino não só do teatro, mas
também da dança. Com procedimentos e vivências performáticas, estimulando uma expansão de pesqui-
sas em direção ao corpo consciente, expandido e dilatado. Da organização de ideias criativas, a partir dos
elementos colocados à disposição do performer, sejam imagens, memórias, materiais naturais, ou outros,
à procura de novas signagens. Investir na construção de performances individuais ou coletivas, a partir de
todo e qualquer estímulo. O incentivo à autopoiesis, ao mergulho na ancestralidade, nos mitos e arquétipos.
Estimular o performer à criação de personas e/ou um outro ele mesmo, na busca do ‘eu ritual’. Investir e per-
seguir a qualidade de presença do corpo em performance, por fim, deixar-se contaminar pela performance,
oxigenando assim, as artes cênicas contemporâneas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LEHMANN, H. T. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Co-
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174
HULL HOUSE E A ORIGEM
DOS JOGOS TEATRAIS JUNTO
AOS IMIGRANTES NORTE AMERICANOS
Robson Camargo161

Os primeiros conceitos organizadores dos jogos teatrais estabelecidos por Viola Spolin
(1906-1994) originaram-se da prática realizada por ela junto a sua professora Neva Leona Boyd (1876-
1963). Importante educadora e trabalhadora social norte-americana, Boyd desenvolveu sua abordagem de
trabalho de grupo dentro da Hull House, em Chicago. A Hull House, fundada em 18 de setembro de 1889,
foi um conjunto de casas onde funcionou uma instituição privada de ajuda social, na qual os funcionários
eram em sua maioria voluntários. Teve papel destacado na recepção e no assentamento dos trabalhadores
em Chicago, principalmente imigrantes italianos, gregos, judeus, russos, poloneses, mexicanos e irlandeses
que chegavam a esta grande cidade industrial. A Hull House encerrou suas atividades depois de cem anos,
em 27 de janeiro de 2012, frente às inúmeras dificuldades financeiras.

Hull House foi uma das mais destacadas experiências de auxílio social, parte de um grande movimen-
to originado na Inglaterra por volta de 1884, chamado Settlement House Moviment (missão de casas de assenta-
mento), que se espalhou nos Estados Unidos. Movimento estabelecido principalmente por reformistas sociais
que procuravam melhorar as condições de vida e a cultura das populações carentes e também evitar que estas
fossem presas de oportunistas caçadores de votos, e mesmo de anarquistas e/ou militantes sociais.

Neva Boyd foi professora de sociologia e uma das idealizadoras do movimento moderno de jogos co-
letivos. Nasceu em Sanborn, Iowa, em 25 de fevereiro de 1876. Boyd primeiramente participou de experiências
em jardins da infância em Chicago - Illinois e Buffalo - Nova Iorque, antes de entrar para a Universidade de
Chicago em 1908. A Comissão dos Parques de Chicago então contratou a jovem Boyd para organizar clubes
sociais, desenvolver atividades de dança, atividades dramáticas e de jogos em seus parques. Em 1909, Boyd
fundou a Chicago School for Playground Workers (Escola de Chicago para Trabalhadores em Parques e Jardins),
e de 1914 a 1920 esta escola operou como formadora de trabalhadores para o Departamento Recreativo Cívico
e Filantrópico das Escolas de Chicago (Recreation Department of the Chicago School of Civics and Philanthro-
py), muitas de suas aulas formadoras foram realizadas na Hull House. A Chicago School for Playground Workers

161. Idealizador e um dos fundadores do Programa de Pós Graduação em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás. Encenador
e crítico de teatro. Coordenador do Grupo Maskara de Pesquisa em Dança, Teatro e Performance. Livros Publicados: Os Jogos Teatrais de Viola
Spolin, uma pedagogia da experiência, com Karine Ramaldes (2017); Brazilian Theater, 1970-2010 (2015, com Eva Bueno); O Gestual no Teatro:
Melodrama, Pantomima e Teatro de Feira (2018, UNB no prelo). Conselhos editoriais: Editora Anthem Press (Inglaterra); Revista Moringa (UFPb).
Encenações recentes: A Noite dos Assassinos, de Jose Triana (2018) e Cascando Beckett, uma imagem como outra qualquer, performance sobre
conto de Samuel Beckett (2017), com o grupo Máskara. Coordenador do GT da Associação Brasileira de Pesquisadores em Artes Cênicas Teorias do
Espetáculo e da Recepção (2001-2016).

175
foi posteriormente incorporada à Universidade de Chicago e depois, em 1927, transferiu as suas atividades
para o departamento de sociologia da Universidade de Northwestern, o qual foi por Boyd dirigido até sua apo-
sentadoria em 1941.

A formação dos estudantes que iriam atuar nos parques e jardins era totalmente prática, desen-
volvida com ginásticas, danças, práticas culturais de diferentes povos, jogos populares, arte dramática e,
principalmente através de princípios da teoria do jogo de grupo, uma pedagogia que se desenvolvia pela
ação. Boyd também trabalhou, durante os anos seguintes da grande depressão de 1929, na Works Progress
Administration (WPA), um programa político nacional que operou seus próprios projetos em cooperação
com os governos estadual e municipal, desenvolvido pelo então presidente dos Estados Unidos Franklin
Delano Roosevelt (1882-1945). Tal programa oferecia emprego a milhões de pessoas desempregadas pela
crise de 1929. Com ele, em quase todas as comunidades dos Estados Unidos, se construíram prédios públi-
cos e parques onde se desenvolveram os projetos da WPA, empregando músicos, artistas, escritores, atores,
diretores para desenvolverem atividades artísticas junto à população.

O contato de Spolin com Boyd se estreitou antes da crise de 1929, entre os anos de 1924-1927,
quando Viola Spolin passou a ser aluna de Neva Boyd justamente na Hull House. Posteriormente, Spolin
se tornou responsável pela área teatral do projeto recreativo dos parques da cidade de Chicago, vinculado
ao Works Progress Administration (WPA), coordenado por Neva Boyd, como descreve Camargo: “... todo o
trabalho de Boyd estava orientado pela ênfase na metodologia da experiência do trabalho de grupo, nela
a participação coletiva no jogo desempenha fundamental importância”. Parece óbvio, pois não há como se
aprender jogos e práticas populares se não for a partir da experiência do trabalho de grupo. Este aspecto da
“experiência do trabalho em grupo”, nos jogos, caminha em sentido oposto ao que se fortaleceu durante o
século XX, o século da cultura de massa, do individualismo, dos grandes meios de comunicação, da instru-
ção e caminha também em sentido inverso ao “estrelismo” que domina a produção cultural, o que sublinha
a prática da experiência em processo coletivo, que supera a individual.

A reflexão sobre o trabalho em grupo também é uma das fortes características da proposta de
jogos de Spolin, pois ambas (Boyd e Spolin) acreditavam na construção do conhecimento através da
troca de experiências produzidas entre diferentes indivíduos, a partir da solução de problemas. Experi-
ência reflexiva, não apenas como um dado do passado que se reapresenta, mas também como algo que se
ressignifica no ato da produção da experiência. O trabalho em grupo proporciona troca, estimulando um
aprendizado mais amplo, no qual estão inseridos o respeito mútuo, a troca de saberes e a reflexão sobre
o que foi realizado.

Outra forte característica dos estudos e do pensamento de Boyd, também presente em Spolin, e que
merece ser destacada, é em relação à “competição” que se concretiza na realização dos jogos. Para Boyd, a
competição feita no jogo deve ser realizada tendo em vista cooperação, estímulos, empatia, mantendo-se
livre de prêmios estranhos que não sejam apenas a plena satisfação da representação (performance), o prazer
do jogo em si mesmo. Os objetivos dos jogos e de suas práticas são realizados simplesmente no prazer de
jogar, sem a espera de recompensas, a não ser a realização da vivência coletiva. Visão esta também explí-
cita na metodologia de Viola Spolin: “A competição, originalmente usada como um incentivo para maior
produtividade e como um instrumento de ensino para desenvolver mais habilidades, infelizmente funciona
apenas para poucos e deveria estar superada por ser inoperante.” (SPOLIN, 2012, p. 39).

Ao compararmos as principais questões metodológicas propostas por Neva Boyd com aquelas
propostas por Spolin, podemos encontrar os mesmos princípios, como o aspecto social dos jogos; a forte
presença dos jogos e danças populares nos estudos de ambas; a integração física e psicológica durante a
realização dos jogos (envolvimento orgânico); os jogos organizados na forma de situações-problemas; a

176
valorização de um condutor no momento do jogo, como processo importante de troca e aprendizagem;
a ênfase no processo criativo e coletivo de jogar, dentre outros. A experiência que Spolin obteve com
Boyd certamente foi fundamental para a elaboração da metodologia improvisacional dos jogos teatrais.
Também essencial para o desenvolvimento desta metodologia, foi o relacionamento de ambas com o
pensamento da chamada Escola de Chicago5, fundada em 1896, e que conta com a participação, dentre
outros, do filósofo e educador John Dewey. O filósofo do pragmatismo e educador John Dewey (1859-
1952), professor da Universidade de Chicago, trabalhou como residente na Hull House, onde publicou
seu livro sobre a criança e o currículo (1902). Dewey irá publicar posteriormente dois livros que trazem
estrita relação com o trabalho de Neva Boyd e Viola Spolin, Arte Como Experiência (1934) e Experience
and Education (1938).

Dewey, Boyd e Spolin tiveram uma experiência muito próxima na Hull House, pois tiveram contato
direto, embora em épocas distintas, com as vivências realizadas nesta instituição. Dewey como residente da
Hull House entre os anos de 1894- 1904, após deixar a Universidade de Chicago, Neva Boyd como professo-
ra na mesma instituição a partir de 1909 e Spolin como aluna de Neva Boyd entre 1924-1927. Mesmo Spolin
não tendo contato direto com Dewey, teve acesso às propostas que ele colocou em prática nesta instituição
social. Essas relações estabelecidas direta e indiretamente entre Dewey, Boyd e Spolin influenciaram a cons-
trução e desenvolvimento do pensamento de todos eles.

A Hull House tem muitos outros segredos ainda que precisam ser contados, Jane Addams (1860-
1935), principal organizadora e administradora desta settlement house, é considerada a primeira filosofa
pública dos Estados Unidos. Addams, autora de mais de dez livros, tinha uma relação de profunda amizade
com George Hebert Mead e era membro ativa do Plato Club, clube filosófico desta Casa, onde Dewey fez
várias palestras e onde se discutia também o pensamento de William James. Para Addams, a Casa Hull era
também um grande projeto epistemológico e podemos acrescentar pedagógico.

Cornelis de Waal, professor de filosofia da Indiana University e um dos responsáveis pela edição
da complexa obra de Charles S. Peirce (1839-1914), aponta, em seu livro Sobre Pragmatismo, que Dewey
descrevia a Hull House como “um lugar onde ideias e crenças podem ser trocadas, não somente na arena
da discussão formal.” (DEWEY apud WAAL, 2007, p. 154). Completa Waal: “Dewey se sentia particular-
mente atraído pela noção da escola como um centro social e uma casa esclarecedora de ideias.” (WAAL,
2007, p. 154). Percebemos, com estas citações, que Dewey também reconhecia atenção especial para a
troca de experiências práticas entre os indivíduos como importante elemento de formação do conheci-
mento. Dewey via nas práticas da Hull House uma grande oportunidade para uma educação baseada na
interação social e na troca de experiências e sua vivência na Hull House certamente impulsionou suas
próprias ideias de formar a Escola Laboratório da Universidade de Chicago (1896), onde se experimen-
tavam práticas de ensino.

Spolin, por sua vez, durante as experiências na Hull House, dirigiu seus estudos ao ato teatral, acres-
centando a eles as várias pesquisas que realizou durante sua vida sobre diferentes técnicas teatrais, o que veio
enriquecer cada vez mais a abordagem proposta. Também se apoiou nas brincadeiras tradicionais dentro
de sua abordagem metodológica, de forma que uniu o conhecimento empírico, repassado de geração para
geração sobre as danças e brincadeiras, com as técnicas teatrais elaboradas por diversos artistas. As crianças
e adultos que frequentavam a Hull House traziam ricas experiências de brincadeiras tradicionais de várias
partes do mundo, então muitas destas brincadeiras foram utilizadas tanto por Boyd como por Spolin na
elaboração de seus jogos. Para tanto, algumas brincadeiras populares sofreram pequenas adaptações, pois
Boyd e Spolin entendiam o jogo como um importante elemento de educação social e construção de conhe-
cimento, compreendendo que o jogo não pode ser apenas uma prática em si mesma, uma vivência sem uma
reflexão da e na cultura.

177
Spolin, além de sistematizar o aprendizado que obteve com Neva Boyd, se apropriou das pesquisas
sobre técnicas teatrais e jogos populares para elaborar sua abordagem metodológica. Ingrid Dormien Kou-
dela, a principal introdutora dos ensinamentos da atriz pedagoga norte-americana no Brasil, acrescenta:

Viola Spolin é conhecida internacionalmente por sua contribuição metodológica tanto para
o ensino do teatro nas escolas e universidades como para a prática da arte cênica, princi-
palmente para o teatro improvisacional (...) cunhou o termo theater game, traduzido entre
nós como jogo teatral. (KOUDELA, 2010a, p. 1).

Ingrid Koudella resume este inter-relacionamento em seu prefácio ao livro Os Jogos Teatrais de
Viola Spolin. Uma pedagogia da Experiência (Ramaldes e Camargo. Kelps 2017, p.9).

“O aspecto social do jogo, a forte presença dos jogos populares na metodologia de Spolin
e Boyd buscam o envolvimento orgânico e a solução de problemas pelos participantes no
processo criativo. No momento do jogo, as experiências passadas se combinam, se acumu-
lam com as experiências presentes, transformando-se em uma nova experiência. Seguindo
Stanislavski, que costumava usar amplamente as improvisações durante o treinamento do
ator, Spolin propõe a atenção ao foco durante o desenvolvimento dos jogos teatrais. Os
educandos aprendem através da experiência sendo que o foco estimula os jogadores a de-
senvolverem ação improvisada durante o ato de jogar. Nessa práxis a instrução dada pelo
orientador durante a realização do jogo teatral auxiliará o educando/jogador a permane-
cer no foco durante o jogo. Instrução e avaliação do jogo estão diretamente relacionadas ao
foco. O foco é o condutor do jogo teatral.”

178
TEATRO COMO EXPERIÊNCIA
LÚDICA DE APRENDIZAGEM
Vera Lúcia Bertoni dos Santos162

C omo palestrante convidada a participar do evento, agradeço a oportunidade e cumprimento


a organização pela iniciativa de homenagear a professora Ingrid Dormien Koudela, uma das intelectuais
pioneiras no campo que atualmente se denomina Pedagogia do Teatro, destacada nacional e internacional-
mente como pesquisadora responsável pela difusão de estudos basilares ao ensino de teatro no âmbito da
formação de artistas e professores, que significam influências significativas em diferentes frentes do ensino
não- formal nas quais o teatro se faz presente, especialmente no âmbito da Educação Básica.

A reflexão que sintetizo neste texto faz-se a partir de uma ampla e diversificada experiência de
aprendizagem vivida na interação com os ensinamentos de Ingrid Koudela em diferentes momentos da mi-
nha trajetória como professora de teatro em formação: na condição de leitora assídua dos seus muitos textos,
que chegaram até mim já na graduação, no Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul; em algumas breves, mas extremamente proveitosas, oportunidades em que participei ou
assisti oficinas, cursos e palestras ministrados por ela; ao longo do meu processo de qualificação acadêmica,
que me oportunizou contar com a sua contribuição na banca examinadora das minhas defesas de mestrado
e doutorado; e como colega de área, em diversos encontros científicos que frequentamos e em publicações163
com as quais nos envolvemos, que nos possibilitaram estabelecer uma relação de parceria e lutas comuns
por reconhecimento do teatro como área de conhecimento, pautadas por muito afeto.

Refiro-me a essa experiência na intenção de frisar que a admiração e o respeito que nutro por Ingrid
Koudela constituem-se a partir de uma relação aprofundada, o que me permite discorrer sobre a relevância e
contemporaneidade da sua contribuição aos estudos nos campos do teatro e da educação com propriedade,
e de forma circunstanciada, mas não isenta de comprometimentos intelectuais e afetivos, pelo tanto que me
considero influenciada por suas ideias.

Autora da tradução para a língua portuguesa da obra da professora e diretora de teatro norte-ame-
ricana Viola Spolin (1906 – 1994) e empreendedora de diversos estudos acerca do sistema dos jogos teatrais,

162. Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Bacharel e Licenciada em Artes Cênicas pela UFR-
GS. Professora Associada e pesquisadora vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – Linha de Pesquisa “Linguagem, Recepção
e Conhecimento em Artes Cênicas”; e ao Departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS. Coordenadora da pesquisa “Professor
de Teatro e Construção de Conhecimento”. Líder do Grupo de Estudos em Teatro e Educação (GESTE), do CNPq. Bolsista Coordenadora do Sub-
projeto de Teatro do Programa Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID/UFRGS). Autora de publicações referentes a aspectos teóricos e práticos do
ensino e da aprendizagem do teatro.
163. Destaco a obra intitulada “Léxico de Pedagogia do Teatro” (vide as Referências no final do texto), com o qual tive o privilégio de
colaborar.

179
difusores essa modalidade de improvisação teatral entre professores e artistas de teatro brasileiros, Koudela
destaca-se como teórica precursora no sentido da aproximação da metodologia de Spolin à perspectiva in-
teracionista de construção de conhecimento de Jean Piaget, divisando um campo teórico e investigativo ao
qual se identifica boa parte dos meus trabalhos acadêmicos.

Tal perspectiva implica relacionar a atividade lúdica e as condutas de imitação, em geral, e a


aprendizagem do teatro, em especial, ao desenvolvimento do sujeito na sua totalidade, bem como com-
preender, e justificar, o caráter formativo e estético da aprendizagem do teatro nos mais diferentes níveis
de conhecimento.

No interior do nosso campo de conhecimento essa compreensão atualmente soa óbvia, e a luta por
reconhecimento do teatro como conhecimento pode até parecer superada, mas na realidade da Educação
Básica sabemos bem que ainda há muito caminho a percorrermos para que o teatro seja, de fato, reconhe-
cido entre os demais componentes curriculares. Na minha experiência como professora de teatro e como
investigadora atenta às relações entre teatro e pedagogia constato que essa conotação lúdica que, tanto na
prática dos jogos teatrais, como na criação (trânsito entre a ação cênica e a ação da plateia) das formas cêni-
cas contemporâneas, tende a engendrar o próprio sentido, pouco se observa nas formas teatrais comumente
praticadas na realidade escolar.

De modo geral, observo que os modelos de teatro praticados na realidade escolar parecem esvaziar
o processo de criação teatral da sua condição de jogo, seja pelo caráter meramente reprodutivo que tendem
a assumir, quando inspirados por concepções epistemológicas empiristas, motivadas essencialmente pelo
resultado, ou pelo caráter preponderantemente esponteneísta, de base inatista, das práticas do tipo “jogo
pelo jogo”, movidas pela mera exploração das potencialidades da criança, para as quais qualquer intervenção
do professor soa como repressão à atividade criadora e expressiva do aluno.

No primeiro caso, essas formas costumam caracterizar-se pela encenação de montagens teatrais
concebidas a partir do texto literário e representadas por alunos perante uma plateia, e constituem, por
assim dizer, representantes “clássicas” do ensino tradicional em teatro, relacionando-se, muito frequente-
mente, à postura diretiva do professor, que assume a função de diretor de teatro (também numa matriz
tradicional, que restringe a criação à direção), a quem cabe determinar os objetivos e as ações cênicas em
prol do resultado final: a apresentação do espetáculo teatral.

Num amplo panorama acerca das formas de abordagem do teatro na educação proposto pelo teórico
inglês Richard Courtney (1968, p. 52), a prática do teatro em meio escolar surge nas escolas da Europa, vin-
culada ao pensamento humanista e ao movimento renascentista, de revalorização da cultura greco-romana.
Segundo ele, a reintrodução da literatura dramática clássica na escola, motivaria a prática da arte da retórica e
da declamação, abrindo campo para a realização de montagens teatrais, até então restritas ao meio profissional.

Na realidade da Educação Básica atual é comum observarmos a prática do Teatro Escolar, confor-
me Courtney denomina essa abordagem, voltada à preparação de montagens ilustrativas de momentos
de culminância das unidades do plano de ensino, exibidas em eventos festivos ou comemorativos da
comunidade escolar. Esse tipo de apresentação costuma envolver crianças de diferentes faixas etárias,
independentemente de suas motivações ou condições prévias. De modo geral, essas montagens teatrais
caracterizam-se por algumas características, tais como: propósitos apelativos ao riso fácil, textos exage-
radamente simplificados, gestuais figurativos, falas meramente memorizadas (ou seja, nem sempre com-
preendidas no seu sentido pelos próprios emissores), elementos cênicos decorativos de gosto discutível
e a presença (mais ou menos ostensiva) de um ou mais adultos determinados a assegurar que as cenas se
cumpram da melhor maneira, frente a uma plateia composta por familiares das crianças e membros da
comunidade escolar.

180
Infelizmente pouco se questiona acerca dos efeitos negativos desse tipo de prática à formação es-
tética e à autonomia de pensamento das crianças. A supervalorização do produto final ocorre, fatalmente,
em detrimento dos processos individuais e das relações sociais entre as crianças, cujos desejos e interes-
ses são desconsiderados. Limitada à reprodução de padrões estéticos adultos e à obediência a medidas
autoritárias e disciplinares, esse tipo de prática desfavorece a experiência teatral (inerentemente lúdica,
prazerosa e social), significando entraves à educação estética e à cooperação entre seus participantes. A
adoção irrefletida desses procedimentos, no contexto em que ocorrem, revela falta de conhecimento acer-
ca das relações de continuidade entre os jogos simbólicos infantis e a representação teatral. Dessa forma,
as montagens escolares parecem realizar-se na contramão das brincadeiras e jogos infantis, que, desen-
volvidos na medida da participação ativa e dos interesses das crianças, tenderiam a evoluir no sentido da
construção teatral, ou seja, da criação coletiva de cenas, personagens e elementos de cena corresponden-
tes aos interesses e condições das crianças.

Uma segunda forma de teatro comumente praticada no meio educacional apontada no panorama
de Courtney (1968, p.44) consiste no uso do teatro como um recurso com fins didáticos, ou seja, a prática
teatral relacionada à aprendizagem de outras disciplinas do conhecimento. O autor menciona a abordagem
conhecida como Método Dramático, cuja primeira formulação consta nos trabalhos de Caldwel Cook (In-
glaterra, 1917).

No sistema escolar, o Método Dramático costuma ser adotada na educação de crianças e jovens em
função dos benefícios decorrentes da dramatização no ato da aprendizagem, sendo comumente proposta
por professores de outras disciplinas, como Língua Portuguesa, História e Literatura, como meio para des-
pertar o interesse por temas a serem desenvolvidos.

Os procedimentos gerais dessa prática proposta por docentes leigos em teatro não se afastam, em
geral, daqueles observados no chamado “teatro escolar”, ou seja, consistem no preparo de montagens a se-
rem encenadas pelos alunos. Logo, por não prever, por parte de quem se propõe a orientá-la, um relativo
domínio de aspectos formais do teatro, e tampouco o conhecimento do processo de construção do teatro
pela criança, esse tipo de abordagem nem sempre significa oportunidade de interação dos alunos com a prá-
tica do teatro, arriscando difundir modelos estereotipados e empobrecidos de teatro e expor os estudantes a
experiências inadequadas e mesmo traumáticas.

O reconhecimento da centralidade da atividade lúdica no desenvolvimento infantil e a crise da


escola tradicional influenciaram a constituição de um novo modelo educacional. Preconizado por John
Dewey, educador que formulou os ideais da concepção educacional, centrada no princípio do “aprender
fazendo”, o movimento da Escola Nova é idealizado por pensadores da educação, como Froebel, Montessori
e Claparède, significando uma “guinada pedagógica” que atinge todos os níveis e campos do conhecimento,
colocando a criança no centro do processo educativo.

Na abordagem do teatro com crianças, os procedimentos de cunho diretivo, motivados preponde-


rantemente pelo resultado final, passam a ser questionados em favor da ideia de valorização do processo.
O próprio termo “teatro” é posto discussão, sendo substituído por “expressão dramática” ou por “atividade
dramática”, numa crítica explícita às formas tradicionalmente praticadas no sistema escolar. Sob essa ótica,
desenvolve-se uma nova abordagem de teatro na educação, difundida por alguns autores, dentre os quais
se destaca Winifred Ward (1947), cuja obra, conforme Koudela (1984, p. 20), apresenta “os postulados da
Escola Nova, transportados para o ensino do teatro”. O trabalho de Ward teve forte penetração nos Estados
Unidos, “onde o termo Creative Dramatics passou a designar todo o movimento de teatro realizado com
crianças” (KOUDELA, 1984, p. 20).

181
Courtney (1968, p. 47) aponta o inglês Peter Slade (1958) como teórico expoente dessa abordagem,
que a partir de uma ampla experiência na observação de crianças em situação de jogo, concebe a denominação
Jogo Dramático Infantil – ou Teatro Criativo: uma “forma de arte por direito próprio” (SLADE, 1958, p. 17),
através da qual a criança expri- me as suas necessidades emocionais, numa catarse propiciada pelo drama.

As transformações decorrentes do debate em torno dessa nova concepção epistemológica foram


decisivas para que se reposicionasse o papel da arte na escola brasileira. As propostas de caráter eminente-
mente decorativo representadas pelo “teatro escolar”, até então dominantes, passam a ser questionadas; e o
fazer artístico, analisado sob o ponto de vista da psicologia, passa a ser considerado pela sua importância ao
desenvolvimento do indivíduo.

No que se refere aos processos de teatro com crianças e jovens em idade escolar, um dos aspectos
responsáveis por este esvaziamento é a premissa dicotômica de cisão entre as condutas lúdicas de caráter
dramático da criança e as formas teatrais “propriamente ditas”, da qual partem os trabalhos dos mentores do
Child Drama, e que parece constituir a base da contradição desse tipo de abordagem.

Na concepção de Slade (1958, p. 18) o fenômeno teatro, conforme a compreensão adulta, significa
“ocasião de entretenimento ordenada”, “experiência emocional compartilhada” que pressupõe a diferencia-
ção “atores e público”; ao passo que o drama, constitui, segundo o autor, oportunidade de experimentação,
por parte da criança, em relação a si mesma e à sua vida, “através de tentativas emocionais e físicas e depois
através da prática repetitiva” que pode se “desenvolver em direção a experiências de grupo”.

A conceituação de Slade (1958), dos termos teatro, no sentido adulto, e drama infantil, indica ativi-
dades correspondentes a dois polos, e que se constituem por inversão, o que implica uma relação de negação,
e não de complementaridade. Ao separar atividades complementares entre si, a concepção de Slade parece
cair numa armadilha quando sujeita à inversão das suas premissas fundamentais, revelando a insuficiência
da sua “teoria” acerca das condutas lúdicas.

As pesquisas de Koudela (1999, p. 16) constituem um aporte decisivo à crítica acerca dessa aborda-
gem, na medida em que apontam suas fragilidades conceituais sem desmerecer o valor histórico da contri-
buição de Slade e seus seguidores:

Não pude encontrar nesses pioneiros do Child Drama (Inglaterra) e Creativ Drama-
tics (EUA) uma definição de teatro como processo específico de conhecimento, nem
a discussão dos princípios educacionais sobre os quais esta linguagem artística esti-
vesse fundamentada. Como consequência, introduzia-se uma dicotomia entre teatro
e manifestação espontânea. Quando havia menção ao teatro, ele era geralmente visto
de forma abstrata, ou através da negação de modelos tradicionais, substituídos pelo
conceito genérico de “criatividade”.

Cabe considerar que o debate em torno as abordagens tradicionais, fomentado a partir dos ideias
escolanovistas, forneceu a base dos discursos em favor da valorização do ensino das artes, em geral, e do
teatro, em particular (que mais adiante culminaria na institucionalização das disciplinas artísticas no ensino
escolar brasileiro – Lei 5.692/71); mas, em contrapartida, deu margem a justificativas de caráter predomi-
nantemente psicológico, significando abordagens reducionistas de arte na escola, desviantes de propósitos
estéticos e especificidades artísticas.

Ou seja, o avanço no movimento de oposição à hegemonia das práticas diretivas e essa nova ma-
neira de compreender o ensino do teatro na escola, vinculada a objetivos genéricos (como criatividade,

182
espontaneidade e socialização), acabou contribuindo para a difusão práticas de arte eminentemente es-
pontaneístas, esvaziando o ensino das disciplinas artísticas de propósitos específicos. A falta de especifici-
dade das abordagens do chamado “drama criativo” seria preponderante para que pesquisadores da área do
teatro, inspirados na corrente essencialista164, fundassem um movimento de transformação conceitual, que
passou a considerar o teatro como experiência pedagógica ligada ao processo de construção da inteligên-
cia, fundamentando discursos práticas inovadores que vieram a significar a perspectiva de ensino da arte
por suas qualidades e propósitos intrínsecos.

A presença do teatro no meio escolar como um sistema de conhecimento relaciona-se à evolução


do pensamento pedagógico em arte, subjetivada pelas ideias de filósofos Su- sanne Langer e Ernst Cassirer,
dentre outros teóricos dedicados à reflexão das formas artísticas e das relações entre o jogo, a cultura e a
sociedade, e fortemente influenciada pelas pesquisas sobre o desenvolvimento da inteligência humana no
sentido ontogenético, a exemplo da Epistemologia Genética de Jean Piaget.

Na minha experiência como pesquisadora dedicada à formação de professores de teatro, a pers-


pectiva de Spolin e a sua tematização através das análises de Koudela3, motivaram o interesse detido na
concepção interacionista do ensino de teatro, instaurando um modo de compreender a aprendizagem das
formas teatrais estreitamente vinculado à necessidade de transformação das categorias de pensamento e das
relações sociais.

Koudela (1999, p. 124) refere-se ao princípio da fisicalização e à ação lúdica, considerando as re-
lações entre esses dois aspectos inerentes às relações humanas que, na sua concepção, a prática dos jogos
teatrais de Spolin estabelece.

No processo de ensino com jogos teatrais, a abordagem intelectual ou psicológica foi


substituída por um processo de conhecimento físico. A matéria do teatro – o gesto
– foi experimentada fisicamente no jogo. A conquista gradativa da expressão física
impulsionava o processo de conhecimento. A realidade simbolizada adquiria textura
e substância.


A perspectiva de teatro como conhecimento, aliado ao processo de desenvolvimento do sujeito
significa oposição ferrenha às concepções positivistas, mas a inclusão do teatro como disciplina indepen-
dente no meio escolar ainda parece uma realidade distante. A mencionada inclusão do teatro na educação
brasileira (Lei 5692/71) deu-se apenas de direito, mas não de fato: na prática, a força e os modos renovados
através dos quais as concepções tradicionais de ensino do teatro se reeditam, alimentam todo o tipo de dis-
torção. Dentre os aspectos que indicam o árduo caminho a ser percorrido para que o teatro seja reconhecido
como disciplina do conhecimento nos currículos das escolas brasileiras, destacam-se: a falta de qualificação
e de valorização dos profissionais do ensino, reflexo da insuficiência e ineficiência dos cursos de formação
específica, bem como da defasagem salarial que submete o magistério, em relação a outras profissões; a
insistência dos nossos governantes na implementação de propostas polivalentes e pragmáticas, que se faz
sentir desde a Reforma Educacional Brasileira (1971), de cunho liberal tecnicista165 que se renova a cada

164. Concebida no campo das Artes Plásticas (que atualmente se identifica à denominação Artes Visuais), a partir dos estudos de Elliot Eisner
(1972), e difundida no Brasil através dos trabalhos de Ana Mae Barbosa e Ingrid Koudela (ambos de 1984), a corrente essencialista “considera que a
arte tem uma contribuição única a dar para a experiência e a cultura humanas, diferenciando-a dos outros campos de estudo”, não necessitando de
argumentos que justifiquem a sua presença no currículo escolar” (KOUDELA, 1984, p. 18).
3. Destaque-se as relações estabelecidas pela autora a partir do estudo de um capítulo da obra de Hans G. Furth (1970), referente à prática
teatral nos moldes propostos por Spolin, sob a ótica construtivista (vide as Referências no final do texto).

165. Corrente pedagógica concebida a partir de pressupostos de teóricos ligados à psicologia experimental beha- viorista, de grande reper-
cussão no ensino norte-americano.

183
novo programa educacional imposto à sociedade sem a devida participação das categorias compe- tentes,
a quem cabe apenas acatar seus desmandos; o descaso e a displicência na realização de concursos públicos
e na efetivação de contratações que objetivem suprir os quadros docentes das escolas de profissionais com
formação específica (quer nos campos do teatro, da música, da dança ou das artes visuais); e a falta de apoio
institucional ao trabalho docente em artes, evidenciada na carência de recursos materiais sofrida pelos pro-
fissionais, na precariedade do espaço físico destinado ao seu trabalho pedagógico e na exiguidade de proje-
tos institucionais que envolvam a arte como conhecimento.

Considerada na estreita relação com a perspectiva de conhecimento como construção, a abordagem


dos jogos teatrais, a exemplo de outras modalidades contemporâneas de ensino de teatro, enfatiza a relação
entre teoria e prática, entre fazer e compreender, entre ação e reflexão, revelando-se uma contribuição ímpar
aos processos educacionais. A prática do teatro sob a perspectiva de Spolin, tão bem refletida por Koudela a
partir da ótica piagtiana, significa a possibilidade de jogar o cotidiano através do domínio de formas simbó-
licas que, através da construção de sujeitos inteligentes (diga-se sensíveis, críticos e solidários), ampliem as
possibilidades de ação no mundo, de apropriação de si e transformação das relações com o outro.

Sem querer abarcar o complexo conjunto de ensinamentos que constituem o sistema de jogos teatrais,
mas decidida a fornecer alguns elementos para pensar a contemporaneidade dessa metodologia, finalizo este
texto discorrendo sobre alguns princípios fundamentais da “experiência criativa” relacionada à prática da im-
provisação teatral, reunidos por Spolin (1963, p. 4–15) sob o título de “sete aspectos da espontaneidade”, que se
constituem, segundo a sua metodologia, numa relação de complementaridade e interdependência.

O primeiro aspecto levantado pela autora é a estrutura do “jogo”, que, na sua concepção, é condição e
viabilidade técnica dos exercícios de atuação, caldeando a totalidade da sua proposta. O jogo é um fator cons-
tituído na autodisciplina e no envolvimento individual do aprendiz e do grupo, no qual se inclui o professor.

Um segundo aspecto apontado por Spolin é a intenção de superação da díade “aprovação / desa-
provação”, em prol da construção de um sistema conjunto de avaliação que envolve o grupo de trabalho. Ao
professor cabe assumir uma postura de promotor da tomada de consciência dos alunos sobre o seu próprio
fazer em cena e sobre o fazer dos colegas, o que favorece a experiência e a mobilidade do pensamento de
todos os envolvidos no processo de criação teatral. Esse envolvimento tende a romper com a polarização
comumente enfatizada nos sistemas tradicionais positivistas e autoritários de ensino, como fator de julga-
mento dos esforços do indivíduo ou de comparação entre condutas

O terceiro aspecto dos jogos teatrais na perspectiva de Spolin (1963, p.8) desenvolve-se na medida
da transformação das condutas predominantemente competitivas (observadas nas etapas mais precoces da
interação entre as crianças) em condutas predominantemente cooperativas (características das formas mais
evoluídas que os jogos teatrais tendem a assumir com a prática, na medida em que os participantes tornam-se
capazes de transformar a sua relação com as regras).

O quarto aspecto enfatizado por Spolin (1963, p. 13) é a “plateia”: “membro mais reverenciado do
teatro”, fundador do sentido do fenômeno teatral. O espectador é parte inerente ao processo de experimen-
tação das soluções aos problemas de atuação que originam as cenas, pois impulsiona a pesquisa cênica e
motiva as soluções estéticas, avaliando as seus resultados, incidindo no processo de improvisação.

As chamadas “técnicas teatrais” constituem o quinto aspecto levantado pela autora, que designa um
conjunto regras adotado deliberadamente, que se altera de acordo com o nível de dificuldade dos jogos. A
sua adoção não implica rigidez, ou mecanicismos, visto que são técnicas variantes conforme a capacidade
do grupo e as necessidades evidenciadas na prática. Tratam-se de “problemas para solucionar problemas”
(SPOLIN, 1963, p. 20).

184
O sexto aspecto descrito por Spolin (1963, p. 13) é o movimento de “transposição do processo de
aprendizagem para a vida diária”, que, de acordo com a autora caracteriza o processo de criação no teatro
por um constante ir e vir entre a realidade, da qual o sujeito que joga extrai a matéria para a sua ação no
palco, e ficção, que expressa outros estados dessa matéria, criados a partir da manipulação desse sujeito
sobre o real, e que retornam ao sujeito, tornando-se objeto da apreensão de outros sujeitos, os espectadores.

Finalmente, o sétimo aspecto da espontaneidade, tal seja, o que Spolin chama de “fisicalização”,
abrange a expressão física do jogador: forma corporal assumida por ele para mostrar (em oposição a contar)
a realidade teatral.

Um ator pode dissecar, analisar, intelectualizar ou desenvolver uma valiosa história de


caso para seu papel, mas se for incapaz de assimilar e comunicá-la fisicamente, terá sido
tudo inútil dentro da forma teatral. Isto nem liberta seus pés nem traz o fogo da inspi-
ração aos olhos da platéia. O teatro não é uma clínica, nem deveria ser um lugar para
se juntar estatísticas. O artista deve captar e expressar um mundo que é físico mas que
transcende os objetos – mais do que a informação e observação acurada, mais do que o
objeto físico em si, mais do que seus olhos podem ver (SPOLIN, 1963, p. 14).

Essa passagem em que Spolin traduz a relação que o teatro, como processo de significação e de
encontro, é capaz de estabelecer, pode bem ilustrar a relação pedagógica: tão destituída de sentido, quando
movida pela mera demonstração e verificação de conteúdos isolados da experiência viva do sujeito, e tão
significativa, quando movida pela necessidade, que cria novas formas para a estruturação dos conteúdos e
os reinventa, plenos de significado.

Conforme pretendi enfocar neste texto, para que os processos educacionais levem em conta o senti-
do lúdico do teatro, seus proponentes necessitam compreender a arte como objeto estético com característi-
cas próprias e como forma de abordagem relacionada à construção do conhecimento e ao desenvolvimento
da inteligência, tal como nos apontam os estudos de Spolin, Koudela e seus muitos seguidores no campo da
Pedagogia do Teatro.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

COURTNEY, Richard. [1968] Jogo, teatro e pensamento KOUDELA, Ingrid Dormien e ALMEIDA JÚNIOR, José
- As bases intelectuais do teatro na educação. São Paulo: Simões de. (Org.). Léxico de Pedagogia do Teatro. São
Perspectiva, 1980. Paulo: Perspectiva, 2015.
FURTH, Hans. G. [1970] Piaget na sala de aula. Rio de SLADE, Peter. [1958] O jogo dramático infantil. São
Janeiro: Forense Universitária, 1987. Paulo: Summus, 1978.
KOUDELA, Ingrid Dormien [1984]. Jogos teatrais. São SPOLIN, Viola. [1975,1989] Jogos teatrais: o fichário de
Paulo: Perspectiva, 1984. Viola Spolin. São Paulo: Pers- pectiva, 2001.
. Texto e jogo. São Paulo: Perspectiva, . [1963] Improvisação para o teatro. São Paulo:
1999. Perspectiva,19

185
JOGOS TEATRAIS E A PEDAGOGIA DO
TEATRO: NOTAS SOBRE UMA (LONGA
E PRODUTIVA) PARTIDA BRASILEIRA
Vicente Concílio166

A publicação, em 1979, da tradução feita por Ingrid Koudela e Eduardo Amos do livro “Im-
provisação para o Teatro”, de Viola Spolin, pela editora Perspectiva, pode ser considerado um dos marcos
iniciais do desenvolvimento da área da Pedagogia do Teatro em nosso país.

Se levarmos em conta ainda que a primeira edição do livro “Jogos Teatrais”, obra que resultou do
primeiro mestrado em Teatro-Educação da ECA-USP, foi publicada em 1984, podemos afirmar que a área
que relaciona teatro e ensino no Brasil é tributária do trabalho pioneiro realizado pela diretora, tradutora,
professora e pesquisadora Ingrid Dormien Koudela.

Afirmar esse pioneirismo é fundamental para compreendermos o desenvolvimento da pedagogia


das Artes Cênicas pelo território brasileiro, visto que o vínculo de Koudela com o curso de Teatro da Eca-
-Usp, tanto na graduação quanto na pós-graduação, formou um número de enorme de artistas, professores
de teatro e pesquisadores que seguiram, ao longo de suas trajetórias, difundindo e explorando possibilidades
oferecidas pelo sistema de jogos teatrais. Esses artistas vincularam-se aos mais diversos pólos de formação
teatral, sejam escolas de teatro, cursos universitários ou ações ligadas a grupos teatrais. Dessa forma, os
jogos teatrais ou, para chamarmos de forma mais específica, os “Spolin Games”, tornaram-se importante
recurso metodológico para os professores de teatro no Brasil.

É importante frisar: os jogos teatrais não são os únicos meios de promover aprendizagem da lin-
guagem teatral ao mesmo tempo em que é também processo criador. Junto às brincadeiras tradicionais, às
técnicas do teatro do oprimido, aos jogos dramáticos, as peças didáticas de Brecht, ao Drama como método
de ensino, fora as inúmeras invenções propostas por cada professor que se aventura a ministrar suas aulas
de teatro e sente que o sucesso da empreitada depende de uma certa “alquimia” (na qual todas as suas re-
ferências são mescladas em parceria com seus educandos), temos uma variedade de opções que fazem do

166. Ator, diretor e professor da área de Teatro-Educação do Departamento de Artes Cênicas da Udesc, integrando também o Programa de Pós-
-graduação em Teatro e o Mestrado Profissional em Artes (PROFARTES - Capes) da mesma instituição. É licenciado, mestre (2006) e doutor (2013)
em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo. É autor dos livros “Teatro e Prisão: dilemas da liberdade artística” e “BadenBaden. Modelo de Ação
e Encenação no Processo com a peça didática de Bertolt Brecht”. Desde 2011 é Coordenador da Área de Teatro do Programa de Bolsas de Iniciação à
Docência (Pibid – Capes) da Udesc. Atualmente é Coordenador do GT Pedagogia das Artes Cênicas, da ABRACE - Associação Brasileira de Pesquisa e
Pós-graduação em Artes Cênicas (2017-2018). Como diretor teatral,integra o Coletivo Baal, que pesquisa encenação das peças didáticas de Brecht. “Diz
que Sim”, inspirado no texto “Aquele que diz Sim/Aquele que diz Não”, é a mais recente produção do grupo, que estreou em maio de 2017.

186
ensino do teatro uma função tão exploratória e poética quanto o próprio ato da criação artística. Por isso,
os discursos sobre a formação do licenciado em teatro na atualidade são elaborados de forma a enfatizar a
dimensão artística do ensino de teatro.

Para um processo de ensino-aprendizagem em teatro atingir relevância, é importante que professor


e aprendizes se vejam como artistas, extrapolando o papel tradicional de professor e aluno, conquistando a
parceria artística necessária para que o ato criador e estético seja realmente significativo: “novas formas são
exploradas”, e não “formas conhecidas são reproduzidas”.

Esse aspecto é crucial no sistema dos jogos teatrais spolinianos: o tempo todo o coordenador dos
jogos conduz a exploração improvisacional através da estratégia denominada “instrução”. A instrução, um
dos fundamentos dos jogos teatrais, começa quando o jogo é apresentado aos atuadores, e a partir desse
momento eles passam a improvisar em cena.

Porém, enquanto jogam, está previsto pelo sistema elaborado por Spolin que o condutor do jogo
pode, a qualquer momento, interferir na improvisação, chamando-lhes a atenção caso a partida siga em uma
direção que não condiz com o “foco”, ou seja, não cumpra a tarefa central do desafio do problema cênico
apresentado.

Vejamos o trecho em destaque abaixo, escrito por mim para o Dossiê “Jogos Teatrais no Brasil: 30
anos”, e publicado pela Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, da Universidade Federal de Uberlân-
dia, em 2010:

“O sistema dos jogos teatrais, criado e sistematizado por Vila Spolin ao longo de sua tra-
jetória como artista e educadora, está estruturado em alguns princípios fundamentais que
articulam a lógica de sua execução e funcionamento.

Podemos dizer, de maneira sucinta, que o sistema de jogos teatrais organiza um processo
de ensino-aprendizagem na forma de uma práxis cênica que se estrutura como jogos de
regras que visam a descoberta do prazer de jogar e ampliar a consciência da linguagem
cênica por parte dos jogadores.

Os jogadores, ou atuantes, compõem um grupo que ora está atuando na ação de jogar, ora deve
exercer o papel de plateia crítica, avaliando a atuação de seus parceiros que acabaram de realizar um
jogo.

A avaliação de uma rodada é feita sempre com o objetivo de apreciar o nível de comprometimento
dos jogadores em realizar a proposta central daquela partida. Essa proposta é denominada foco. O foco
age, portanto, como objetivo central da atuação dos jogadores e como eixo da avaliação posterior à partida.
Além disso, o foco também constitui o parâmetro através do qual o coordenador do processo vai intervir,
através de instruções, na partida que está acontecendo diante de seus olhos.

Dessa forma, avaliação, instrução e foco são elementos estruturais básicos do sistema. Vejamos um
exemplo de jogo, extraído do livro Improvisação para o Teatro:

O
bjeto move os jogadores

Qualquer número de jogadores


Os jogadores combinam o objeto que deverá colocá-los em movimento.eles devem ser um
grupo inter-relacionado.

187
Foco: no objeto que os está movendo.

Instrução: Sinta o objeto! Deixe que o objeto os coloque em movimento! Vocês estão todos
juntos?

Avaliação
Para a platéia: Eles deixaram que o objeto os colocasse em movimento? Ou eles iniciaram
o movimento independente do objeto? Eles se movimentaram olhando os outros atores?
Para os jogadores: Vocês fizeram do exercício um jogo de espelho (reflexo dos outros) ou
trabalharam com o foco?167

O exemplo acima, escolhido de forma aleatória, demonstra como a autora criou seu sistema de
maneira claramente estruturado. Ao conceber a relação de ensino-aprendizagem através da experimentação
e posterior reflexão, Spolin demonstra que atribuir sentido às ações realizadas durante o ato de jogar é tão
relevante quanto agir. E ao valorizar o papel da instrução, ela destaca a relevância da participação sempre
ativa do coordenador da oficina, seja ele um professor, um diretor ou um coordenador de oficina.

Observamos claramente que as instruções sugeridas referem-se ao campo do foco proposto de for-
ma objetiva e pontual. Uma instrução não pode julgar o que está acontecendo a partir de valores como
“bom” ou “ruim” e nem deve apontar sugestões para a execução da partida. Assim como os jogadores não
devem decidir previamente como vão realizar a improvisação, o coordenador não deve construir uma ins-
trução que aponte como a cena pode ser realizada.

Os jogos teatrais propõem, além de atividades sensoriais e de consciência da presença cênica, de-
safios de aprendizagem e construção da realidade cênica a partir de seus elementos constituintes básicos: a
noção de espaço ( jogos com foco no Onde?), a noção de presença cênica e de personagem (jogos com foco
no Quem?) e a noção de ação cênica ( jogos com foco no O quê?). Nos mais diferentes desafios, a instrução
está prevista. Segundo a autora:

A instrução dá a auto-identidade e age como um guia enquanto se está trabalhan-


do com um problema dentro de um grupo. Como num jogo de bola, ela é aceita
pelo aluno-ator, uma vez compreendida. Ela é usada enquanto os jogadores estão
trabalhando no palco.

É o método usado para que o aluno-ator mantenha seu ponto de concentração


sempre que ele parece estar se desviando. Isto dá ao aluno ator auto-identidade
dentro da atividade e o força a trabalhar com o momento novo da experiência e,
além disso, dá ao professor-diretor seu lugar no grupo e o torna parte integrante do
mesmo168

Ou seja, de acordo com Spolin, a instrução é parte do jogo; é uma regra que deve ser assimilada
pelos jogadores e deve estar prevista nos acordos prévios de um projeto que lance mão da estrutura do jogo
teatral. Sua utilização é um instrumento que garante a presença atenta do coordenador no momento em que
uma improvisação está sendo executada pelos atuantes, e essa intervenção deve garantir aos jogadores maior
liberdade para experimentação. Isso ocorre por que os jogadores podem esgarçar os limites do foco proposto

167. SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.64.
168. SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.26.

188
tendo a certeza de que o coordenador vai sempre voltar a chamar atenção para o objetivo principal da partida.

Nesse sentido, a estrutura do jogo teatral não limita o papel do coordenador a um mero executor
de propostas previamente elaboradas e estruturadas em um manual. Os Spolin Games foram concebidos
como uma proposta pedagógica que promove a parceria efetiva entre os sujeitos envolvidos no processo de
criação. Um processo norteado pelos que negam um aprendizado tecnicista e voltado à aquisição de proce-
dimentos pré-elaborados.”

O artigo do qual foi retirado o trecho acima se chama “Instrução e Criação em Jogos Teatrais: pro-
fessor parceiro de jogo”. Faço questão de reproduzi-lo aqui pois eu releio esse texto, que foi escrito para uma
ocasião importante, os 30 anos da primeira publicação de Spolin em nosso país, e ainda considero que ele
apresenta os jogos teatrais de forma objetiva e ressalta o aspecto que me parece crucial aos jogos teatrais: o
desafio da instrução.

Por que a instrução chama tanto a minha atenção?

Porque ela altera a presença do coordenador do jogo ao longo de toda a partida. O coordenador não
pode simplesmente anunciar a tarefa da rodada e simplesmente se ausentar.

Ele é um jogador “externo” fisicamente à cena, e por isso mesmo capaz de interferir na improvisação
de forma verbal, o que lhe confere um status ao mesmo tempo “onipresente” e “ausente”. Sua participação é
outra: ele assiste a cena e deve elaborar, rapidamente, as instruções que vão amplificar o alcance do jogo no
momento que ele está acontecendo. É uma atuação no “gerúndio”, e isso exige uma habilidade que se cultiva:
chamar atenção dos atuantes para o que está acontecendo, sem desnutrir a improvisação. Deve-se avisar os
atuadores sobre os desvios de foco, mas eles devem se sentir motivados a seguir explorando.

A elaboração das instruções é uma tarefa, portanto, que revela o universo do coordenador, sua ética
em relação ao ensino-aprendizagem do jogo e sua generosidade na elaboração das palavras que vão alimen-
tar a cena em processo.

O citado artigo é concluído da seguinte maneira:

“A instrução, entendida aqui como um elemento provocador gerado pelo professor/ dire-
tor a partir de reflexão realizada no momento presente em que a criação está acontecendo
por seus pares, contribui para acertar a difusão da autoria das cenas, uma vez que nem só
os atores são agentes de sua criação. A instrução abre caminhos concretos para que o res-
ponsável pela condução do trabalho possa contribuir de maneira para o encaminhamento
da improvisação em processo.

A habilidade de conduzir um jogo teatral, e a possibilidade de utilizar-se do sistema de jo-


gos teatrais como estruturador de um processo de criação colaborativo e em grupo, é fruto
de uma concepção que agrega outras possibilidades ao sistema desenvolvido por Spolin.

Dessa forma, refletir sobre o tipo de instruções que são formuladas pelo orientador de jogo
é parte fundamental da formação daquele se propõe a utilizar o sistema de jogos teatrais
como sistema de criação teatral, pois a instrução é princípio metodológico provocador de
avanços na conquista criativa do grupo envolvido em processo de pesquisa de linguagem.

A instrução é aliada importante para que o professor/diretor sempre se recorde de que o


processo por ele conduzido é fruto da relação entre as perguntas que ele faz e as respostas
elaboradas em atos cênicos pelos seus parceiros de jogo e de criação, sejam eles atores
profissionais ou não”.

189
Esse ponto me instiga a tecer algumas reflexões sobre a permanência dos Jogos Teatrais em nossos
processos formativos e as razões pelas quais ele é um aliado consolidado na Pedagogia do Teatro que se
realiza em nosso país. Mais do que isso, ele segue sendo uma referência nas bibliografias das disciplinas
fundamentais do teatro-educação e da formação de atores, seja na área de improvisação ou na área de inter-
pretação teatral propriamente dita.

Além da concisão da proposta sistematizada por Spolin, o que já explicitamos aqui anteriormente,
destaco também a ênfase dada pelos jogos aos elementos da linguagem teatral – espaço, personagem e ação.
Isso promove partidas de improvisação na qual os atuadores constroem a realidade cênica a partir de sua
atuação na área de jogo, o que lhes fornece uma consciência do poder da ação mesma de criar realidades
outras na área cênica, a partir do ato de jogar.

Ou seja, parece que é “só” jogar. Mas aprender a jogar é crucial para a formação de um artista
consciente de suas capacidades expressivas, apto a estabelecer parcerias – com os outros jogadores e com
a plateia – e, ao fim e ao cabo, temos que acreditar que um artista consciente de suas aptidões constituirá
certamente um professor melhor.

A noção de jogo como habilidade de processo, desenvolvida ao longo de uma criação cênica, é
mais um dos desdobramentos que podemos atribuir às pesquisas de Ingrid Koudela (2007, 2008), sobretudo
naquelas em que ela explora os vínculos entre a teoria brechtiana e o sistema de Jogos Teatrais elaborados
por Viola Spolin.

Tal conceito é assim exposto por Joaquim Gama (2010: 202), ao relatar o processo que resultou no
espetáculo chamado Chamas na Penugem, com direção de Koudela:

Nos encaminhamentos da encenação Chamas na Penugem, as oficinas de jogos teatrais


tiveram o objetivo de desenvolver habilidades de processo. As sessões de jogos, apoiadas
nos fundamentos apresentados anteriormente, buscaram desenvolver habilidades neces-
sárias à atuação. Nesse sentido, as sessões proporcionaram tanto o prazer do jogo como o
desenvolvimento criador, necessário à estruturação da encenação. A encenadora lançava
problemas teatrais, referentes à encenação, para que fossem investigados e solucionados
pelos atuantes. (...). Foi dessa maneira que se efetivou o trabalho de parceria entre os atu-
antes e a encenadora. Ambos, com base numa série de jogos teatrais, tiveram a tarefa de
investigar, experimentar e encontrar soluções criativas para a encenação. A direção surgia
das próprias descobertas e das necessidades dos atuantes na elaboração da encenação.

Tal relação entre o processo de direção e a prática formativa dos jogadores, essa simbiose que deve
ocorrer entre as instruções do diretor e o empenho do grupo em resolver os problemas cênicos de forma a
construir um espetáculo, pode ser encarado como uma forma ampliada da própria estrutura de uma “par-
tida” de jogos teatrais.

Assim, a atualidade e permanência do sistema dos Jogos Teatrais acontece pela sua real utilidade,
pela comprovação, na prática dos artistas e dos professores, de que os jogos são uma estrutura potente para
adquirir consciência acerca dos elementos da linguagem teatral de forma interessante e prazerosa. Certa-
mente, eles seguirão assim por outros 40 anos.

190
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

GAMA, J. C. M. A abordagem estética e pedagógica do KOUDELA, I. D. “A Encenação Teatral Contemporânea


Teatro de Figuras Alegóricas: Chamas na Penugem. Tese como Prática Pedagógica”. In: Urdimento – Revista do
(Doutorado). São Paulo: ECA/USP, 2010. PPGT em Teatro da UDESC, n.10. Florianópolis, 2008.
KOUDELA, I. D. Jogos Teatrais. São Paulo: Perspectiva, SPOLIN, V. Improvisação para o Teatro. São Paulo:
1984. Perspectiva, 1992. 3ª Ed.
KOUDELA, I. D. “Leitura das pinturas narrativas de Pe- SPOLIN, V. O jogo teatral no livro do diretor. São Pau-
ter Brüguel, o Velho”. Anais da IV Reunião Científica lo: Perspectiva, 1999.
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São Paulo: Perspectiva, 2001.
org/ivreuniao/GTs/Pedagogia/Leitura%20das%20pintu-
ras%20narrativas%20de%20Peter%20Brughel%20o%20 SPOLIN, V. Jogos Teatrais na sala de aula. São Paulo:
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fevereiro de 2018.

191
/// PARTE 2-
COMUNICAÇÕES
ORAIS

192
A ARTE E O LIXO: DIÁLOGOS E REFLEXÕES
NO CURSO DE FÉRIAS DA ESCOLINHA
DE ARTE DO RECIFE, JANEIRO DE 2018
Veruschka Greenhalgh
UFPE; EAR

Escolinha de Arte do Recife, um espaço de criação

Fundada em 1953, a partir do pensamento de intelectuais, educadores, artistas e arte/educadores


como Noêmia Varela, Augusto Rodrigues, Aloísio Magalhães, Francisco Brennand, defensores da arte no
processo educativo.

Em seus 65 anos de existência, a Escolinha de Arte do Recife – EAR, formou várias gerações de
artistas como Gil Vicente e José Patrício, recebeu diversos alunos em seus espaços, promoveu a inclusão
de pessoas com deficiência e vivenciou momentos de luta e resistência para manter suas atividades em
funcionamento.

A EAR surgiu no Movimento Escolinhas de Arte (MEA), iniciado nos anos 1940, recebendo forte
influência do Movimento Escola Nova, das teorias de Herbert Read (1893-1968) e das ideias sobre o en-
sino da arte de Franz Cizek (1865-1946). Uma das propostas do MEA, de acordo com Silva (2004, apud
Varnieri, 1996), era buscar o rompimento com a excessiva valorização europeia trazendo nova proposta
de arte-educação nacional incluindo a criança no processo educativo.

Ao longo se sua história, a EAR foi marcada pela discussão entre duas concepções de ensino da arte.
Uma defendida por Noemia Varela, que prioriza a livre expressão, e a outra proposta por Ana Mae Barbosa,
que considera a arte como uma área de conhecimento específico.

Situada à Rua do Cupim, 124, no bairro das Graças, a EAR conta com um conjunto arquite-
tônico, que é um chalé com duas fachadas, uma da década de 1920, e outra do início do século XX.
Salvaguarda importantes acervos artísticos, culturais, bibliográficos, imagéticos e documentais. Con-
figurando um importante espaço para pesquisa e laboratório para o ensino das Artes Visuais em Per-
nambuco.

193
Escolinha de Arte do Recife - Acervo da autora

Atualmente a Escolinha de Arte do Recife, matem plenamente suas atividades, apesar das grandes
dificuldades financeiras, o que dificulta a manutenção e conservação de seu acervo ede seu patrimônio his-
tórico e cultural.

Infelizmente, o poder público e alguns setores da sociedade, têm negligenciado a importância da


Escolinha no cenário artístico, educativo e cultural em Pernambuco. Pouco tem sido feito para contribuir
com a manutenção da Escolinha.

No entanto, devido aos esforços e dedicação de alguns(as) arte/educadores(as) e parceiros(as)


engajados(as) na proposta de manter vivo o ensino da arte, a Escolinha de Arte do Recife tem resistido e
mantido suas atividades. Entre essas pessoas destaco Cleonice Régis, arte/educadora, que marcou presença
na direção da Escolinha, dedicando-se a vida inteira ao ensino da arte, deixando apenas no momento da
partida para um outro plano existencial.

Hoje a Escolinha conta com os cursos regulares para crianças a partir de 2 anos de idade, cursos
livres de pintura, desenho e gravura para o público em geral, cursos de férias no período das férias escolares
e oficinas de arte na programação da Feira Nacional de Negócios do Artesanato (feneart).

A Escolinha de Arte do Recife é um espaço dedicado ao ensino das Artes Visuais. Tem fundamental
importância para a sociedade em geral e a comunidade artístico/educativa, por promover em suas ativida-
des a experiência estética do indivíduo, por meio da imersão no universo da arte, a fim de desenvolver a
capacidade crítica, reflexiva, estimular a auto expressão e a criatividade. Além de oferecer um importante
lugar de aprendizado para graduandos de cursos de formação de professores de arte, por ser um espaço de
experiências, vivências, compartilhamentos e reflexões. Um espaço onde a arte e seu ensino são explorados
com liberdade de experimentações. Um laboratório vivo!

Sobre o Curso de Férias

O Curso de Férias é uma das atividades da Escolinha de Arte do Recife, que acontece no período
das férias escolares de janeiro e de julho, oferecido a crianças a partir de 2 anos de idade. Os projetos peda-

194
gógicos do curso de férias vem sendo construído em parceria, desde julho de 2012, Com o Departamento
de Métodos e Técnicas de Ensino, do Centro de Educação (DMTR/CE) e com o Departamento de Teoria da
Arte e Expressão Artística, do Centro de Arte e Comunicação (DTAEA/CAC), com o apoio da Pró-reitora
de Extensão (PROEXT) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Associação Nordestina de
Arte/educadores de Pernambuco, núcleo Pernambuco (ANARTEPE).

Os cursos de férias têm como objetivo promover maior aproximação da criança com a arte através
da experiência estética, do contato com artistas e suas obras e da produção artística individual e coletiva. A
estrutura do curso é pensada a partir de um tema principal e de um(a) artista eixo, tudo aliado ao diálogo
interdisciplinar da arte com diferentes áreas de conhecimento. O curso é dividido em módulos e cada um
deles contempla uma temática relacionada ao tema principal e um(a) artista homenageado(a).

Para tanto, a equipe que integra o curso de férias, constrói junto todo o planejamento que vai desde
o projeto pedagógico aos planos de aulas, com as atividades artísticas e recreativas. Sim, recreativas também,
porque acreditamos que as brincadeiras contribuem para o aprendizado. A ludicidade faz parte do universo
da criança e os jogos estimulam a sociabilidade e a interação com o outro. Segundo Luckesi, a ludicidade
“[...], é representada por atividades que propiciam experiência de plenitude e envolvimento por inteiro,
dentro dos padrões flexíveis e saudáveis” (LUCKESI, 2000, p. 97). Portanto, o lúdico, como recurso peda-
gógico, pode estimular a aprendizagem, uma vez que possibilita, através da brincadeira, o desenvolvimento
motor, cognitivo, afetivo e social. Nessa perspectiva, Piaget (1975) defende que a criança ao desenvolver a
ludicidade por meio dos jogos, constrói o conhecimento acerca do mundo físico e social, desde o período
sensório-motor (de 0 a 2 anos de idade) até o período operatório formal (a partir de 12 anos de idade). Ten-
do como base essas afirmações, o planejamento do curso de férias contempla também a brincadeira como
recurso metodológico.

Dentro da organização e planejamento do curso, é priorizado a formaçãodos arte/educadores(as)


através de reuniões periódicas com debates e reflexões teóricas, encontros, visitas aos artistas que serão
abordados dentro da temática do curso, visitas a espaços expositivos e de diálogo com o tema do curso.

A seguir, apresento o Curso de Férias de janeiro de 2018 com o tema: “Lixo Extraordinário”, refe-
rência a obra de Vik Muniz.

Lixo Extraordinário

No Curso de Férias de 2018.1, “Lixo Extraordinário”, a abordagem parte do conceito da Eco-Arte


(Arte Ecológica), que tem como premissas, a sustentabilidade ambiental, a preservação da natureza e os im-
pactos sociais e ambientais provocados pelo descarte inadequado do lixo. A Eco-Arte169 surgiu dos anseios
de artistas contemporâneos preocupados com a situação local e global do meio ambiente. É um movimento
que tem crescido nos últimos tempos, sendo aderido cada vez mais por artistas de diversos lugares do mun-
do, apontando para a reflexão acerca do futuro do planeta e do uso consciente dos recursos naturais e da
reutilização dos resíduos sólidos.

Seguindo a linha da Eco-Arte, foi montada a instalação interativa“Lixão”, no salão de exposições.


Onde as crianças podiam brincar com o lixo, retirar material para suas produções e acrescentar mais mate-
riais trazidos de casa. Eraum espaço pedagógico de reflexão acerca dos impactos ambientais causados pelo
lixo e da problemática social dos catadores.A instalação “Lixão” foi idealizada pelo coordenador geral da

169. Pesquisar em: https://www.theuniplanet.com/2009/07/eco-arte.html e https://artenaescola.org.br/ecoart/

195
Escolinha, Everson Melquiadese produzida pelos arte/educadores.Era um espaço repleto de possibilidades
criativas e descobertas, o lugar predileto das crianças de todas as idades. A instalação “Lixão” foi a sensação
do curso de férias de janeiro de 2018.

Interação das crianças com a instalação “Lixão” – Acervo da autora

Ao longo do curso, a criança pode conhecer diversos(as) artistas que possuem em seu processo
criativo, a relação com o “lixo”. Seja ele industrializado (plásticos, vidros, latas, papéis etc,), seja ele natural
(paus, troncos, folhas e sementes caídos numa floresta), mas para o(a) artista, matéria prima repleta de pos-
sibilidades.

O curso foi dividido em 4 módulos. Em cada módulo, um artista eixo homenageado, foram eles: Vik
Muniz, 1º módulo (08 a 11 de janeiro); Zé Bezerra, 2º módulo (15 a 18 de janeiro); Jacaré, 3º módulo (22 a
25 de janeiro) e André Soares (29 de janeiro a 01 de fevereiro).

Vik Muniz (Vicente José de Oliveira Muniz), artista brasileiro cuja produção está voltada para a
questão da sustentabilidade. É conhecido pelo uso de materiais inusitados em suas obras.

José Bezerra, natural de Buíque/PE, produz esculturas com toras retorcidas, típicas da vegetação
do lugar, que ele encontra caída no chão. As figuras surgem da tortuosidade da madeira dando vida aos
seus bichos.

Jacaré (Ermiro Augusto de Souza), artista plástico pernambucano, produz a partir do reaproveita-
mento do lixo como matéria prima para sua produção, o material mais utilizado é a lata.

André Soares, artista plástico pernambucano que transforma o lixo em arte. Idealizador do movi-
mento Catamisto, do projeto Muserola – Museu e Galeria de Arte nas escolas, criador do Dicialeto, Homixo,
entre outros projetos.

Esses artistas tinham obras expostas pela EAR, possibilitando as crianças o contato com as obras, in
loco, dos artistas que conheceram no curso. Assim puderam passar pela experiencia estética da apreciação
da obra de arte, ao mesmo tempo em que experimentaram o processo criativo e a contextualização, através
das temáticas que foram abordadas. Vivenciaram de fato os princípios da abordagem triangular para o ensi-
no da arte proposta por Ana Mae Barbosa, apresentada aqui através da reflexão de Christina Rizzi:

196
Por sua vez, a Abordagem Triangular do Ensino da Arte postula que a construção do co-
nhecimento em arte acontece quando há o cruzamento entre experimentação, codificação
e informação. Considera como sendo seu objeto de conhecimento, a pesquisa e a compre-
ensão das questões que envolvem o modo de interrelacionamento entre arte e público. “É
construtivista, internacionalista, dialogal, multiculturalista e é pós-moderna por tudo isso
e por articular arte como expressão e com cultura na sala de aula.” (RIZZI, 2008, p. 337)

Foram três turmas de crianças a partir de 2 anos de idade, orientadas por uma equipe de Arte/Edu-
cadores qualificados. Turma A: 2 e 3 anos de idade, turma B: 4 a 6 anos de idade e turma C: a partir de 7 anos
de idade. Eu fiquei com a turma C, que a cada semana contava com uma média de 12 crianças. Contei ainda
com a contribuição importante de Sergio Birukoff, estagiário de Artes Visuais da Faculdade Anhanguera
EAD, que teve uma participação significativa durante todo o processo.

Neste artigo trago um recorte do curso de férias, especificamente do terceiro módulo, que teve Ja-
caré como artista homenageado.

A escolha pelo artista Jacaré se deu pela aproximação de seu trabalho com o universo infantil, iden-
tificado pela ludicidade de suas obras, o que possibilitou diálogos entre as obras e o processo criativo das
crianças. Além da participação do artista no encerramento do módulo.

Jacaré simplesmente metamorfoseia tudo o que para muitos é lixo! Lata, arame, tampinha, garrafa e
tudo que pode virar arte, torna-se sonhos no olhar inventivo do menino no coração do artista. Brinca com
as formas, se diverte com as cores, e num toque mágico, como Midas que transforma em ouro tudo o que
toca, Jacaré constrói um universo lúdico repleto de bichos e personagens imaginários. Como o SuperPaz, os
cachorrinhos, a joaninha, o caranguejo, a borboleta, o beija-flor e muitos outros. Para ele, todo o lixo que en-
contra no caminho, já traz em si uma essência, uma alma, que ele apenas materializa em suas criações. Seu
atelier é um paraíso de possibilidades, espaço de imersão, onde o artista, matéria-prima e obras dialogam
em harmonia com o desejo de construir um mundo melhor.

A formação

Poderia iniciar meu relato a partir do primeiro dia do curso, mas prefiro iniciar pela formação. A
formação para o curso de férias envolveu diversas ações como: reuniões periódicas na EAR para a elabo-
ração do projeto pedagógico e planejamentos das aulas e atividades;encontros com os artistas Jacaré, em
seu atelier e André Soares, na Escolinha; visitas aos espaços que tratam da questão da reciclagem como a
Cooperativa de Catadores de Lixo da Torre e o CTR - Central de Tratamento de Resíduos de Igarassu;
visita ao Eco Núcleo Jaqueira, no Parque da Jaqueira, que trata sobre a preservação ambiental. A formação
foi de extrema importância para a equipe de arte/educadores, porque nos familiarizou com o tema do lixo,
proporcionando maior entendimento sobre as questões a ele relacionadas. Nessa concepção, aponta Ferraz e
Fusari, para alguns procedimentos necessários à formação do professor de artes como: “participar de cursos,
buscar informações, discutir, aprofundar reflexões [...]”(FERRAZ e FUSARI, 2010, p. 52).

Concluído o período de formação, iniciou-se o Curso de Férias em 08 de janeiro de 2018. Cada


módulo transcorreu de segunda a quinta no horário das 14 às 17h, e nas sextas-feiras eram realizadas
as reuniões de avaliação. Onde cada arte/educador lia os seus registros do diário de bordo trazendo à
reflexão as atividades realizadas, os procedimentos metodológicos, os artistas apresentados e os temas
abordados. As reuniões contavam com a participação de toda a equipe, orientada pela coordenação
geral.

197
O 3º módulo – Jacaré

A semana iniciou num clima de expectativa, as crianças estavam ansiosas para conhecero artista
Jacaré. Primeiro porque suas obras remetiam ao brinquedo, eram coloridas e alegres. Segundo porque iriam
o conhecer pessoalmente.

Começamos o módulo com uma mediação com as obras de Jacaré expostas na EAR. Assim, as
crianças estabeleceram o primeiro contato com a obra do artista,possibilitando a identificaçãodos seus
elementos formais e conceituais. Nesse momento, dialogamos sobre o artista e sua relação com o lixo e
com o meio ambiente. A partir da sua produção, refletimos sobre a necessidade de repensar o destino que
damos ao lixo e como contribuir para diminuir os seus impactos no meio ambiente. Destaco a importân-
cia do(a) arte/educador(a)/mediador(a) na construção dos saberes em arte. Pois, de acordo com Moura
(2007), o que configura o mediador cultural é uma postura consciente, é o ir além dos conhecimentos
técnicos da arte, é se comprometer a catalisar os saberes e, enfim, contribuir com a formação do outro.

Em outro momento exibi o filme, “Sai da lama Jacaré”170, com direção de Jacaré Lima e Alexandre
Juruena. O filme é encantador e alegre, as crianças gostaram e pediram para repetir diversas vezes. E a cada
exibição apontavam as obras que já conheciam.

Obra de Jacaré – Acervo da autora

A semana foi bem movimentada, possibilitando às crianças diversas experiências criativas como:
produção de brinquedos com materiais recicláveis; jogos com garrafas pet;colares com tampinhas de garra-
fa; pintura livre sobre suporte de papelão para a exposição de finalização da semana; produção de um livro
de artista para presentear o artista; elaboração de perguntas para fazer ao artista; performance “O Mundo de
Lixo” com o estagiário Sergio Birukoff, jogos e brincadeiras; gincana do lixo, que consiste em contabilizar o
lixo trazido de casa para o grande “Lixão”, premiando quem mais trouxe lixo e por fim, o dia da homenagem
ao artista. Todos esses acontecimentos serãoapresentados a seguir através fotografias, pois acredito que as
imagens falam muito mais do que as palavras.

170. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OgH7gSdkMN0

198
Produção de brinquedos – Acervo da autora

Os Brinquedos – Acervo da autora

Produção de jogos com garrafa pet Produção dos colares

199
Performance Mundo de Lixo com Sergio BirukoffPerformance Mundo de Lixo com Sergio Birukoff

Produção no suporte de papelão – Acervo da autora Brincadeiras e jogos – Acervo da autora

Premiação da gincana do lixo – Acervo da autora Bate papo com o artista Jacaré – Acervo da autora

Entrega do livro do artista – Acervo da autora

200
Selfie com o artista – Acervo da autora Visita a exposição das crianças – Acervo da autora

A despedida – Acervo da autora

Considerações finais

A experiência no Curso de Férias para mim foi marcante. Vivi momentos diversos que passaram
por expectativas, surpresas, medos, estresse, aprendizados, alegrias e decepções. Foram momentos de cres-
cimento profissional e pessoal.

Para as crianças, foram momentos de aprendizados, descobertas, experiência estética, criatividade,


diversão e alegria. Afinal, qual criança nunca brincou com “lixo”?

Trabalhar as questões ambientais, tendo como fio condutor a produção de artistas que trazem em
sua produção a relação com o lixo, proporciona maior entendimento do nosso papel no mundo e a necessi-
dade de trilhar caminhos em busca de melhor qualidade de vida. Compreendendo assim, a importância do
uso consciente dos recursos naturais, o reaproveitamento dos resíduos sólidos e o descarte adequado do lixo.

Na perspectiva de uma vida melhor, a arte possibilita a reflexão e um novo olhar para a vida. Na con-
cepção de Ana Mae é através da Arte que o homem “desenvolve a percepção e a imaginação para apreender
a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e
desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada” (BARBOSA, 2009, p.1).

201
Referências

BARBOSA, Ana Mae. Processo civilizatório e recons- MOURA, Lídice Romano de. Arte e educação: uma ex-
trução social através da arte.XII Simpósio Internacional periência de formação de educadores mediadores. São
Processo Civilizador. Civilização e Contemporaneidade. Paulo: Instituto de Artes da Universidade Estadual Pau-
10,11,12 e 13 de novembro de 2009, Recife- PE/ Brasil. lista, 2007 (Dissertação de Mestrado).
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PIAGET. A formação do símbolo na criança. Rio de Ja-
<http://www.uel.br/grupoestudo/processoscivilizadores/ neiro: Zahar Editores, 1975.
portugues/sitesanais/anais12/artigos/pdfs/mesas_redon-
RIZZI, Christina, in BARBOSA, A. M. Ensino de Arte:
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memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2008.
SILVA, M. Betânia e. A inserção da arte no currículo
FERRAZ, Maria Heloísa C. de T.; FUSARI, Maria F. de escolar (Pernambuco, 1950-1980). Recife: UFPE/CE,
Rezende e. Arte na educação escolar. - 4. Ed. – São Pau- 2004.
lo: Cortez, 2010.
VARNIERI, Maria Lucia Campos. Arte-educação na
LUCKESI, Cipriano. Desenvolvimento dos estados de prática das Escolinhas de Arte.Revista Arte e Educação.
consciência e ludicidade. In: LUCKESI, Cipriano (org.). Porto Alegre, n. 2-3, p. 61-64, jul./dez.,1996.
Ensaios de ludopedagogia. N.1, Salvador UFBA/FACED,
2000.

202
A ARTE AMBIENTAL ENQUANTO
PROPULSORA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL
Ihédilla Humberta Sinésio Cândido da Silva UFPB
Anderson Alves dos Santos UFPB

Introdução

A arte pode ser encontrada facilmente, seja pelo contexto, seja pela imagem ou por meio de outra
tipologia criativa, porém, só a experiência para conseguir interpretá-la significativamente. As produções
artísticas emancipam a humanidade ao tempo em que estetizam a realidade socialmente vivida, isso porque,
“o carácter performático da arte se torna susceptível de produzir uma mudança na maneira da sociedade
ver e imaginar o mundo” (SANTOS & GOMES, 2017).

A linguagem expressiva da arte tem a força de interrogar padrões, valores, concepções e


gostos; ela exige a reflexão. Diante dela nos deparamos, por exemplo, com vários conceitos
de belo e feio, e por eles podemos pensar nos valores que contornam nossas vidas e impri-
mem identidades e pertencimentos (JOHANN, 2015, p. 07).

A arte ambiental insere o homem em uma relação de percepção psicológica do espaço amparada
em uma conscientização acerca das problemáticas socioambientais, e para a compreensão da arte enquanto
intermediadora dessas interações ambientais, faz-se imprescindível considerar a complexidade do ambiente
em seus aspectos sociais, ambientais, políticos, culturais, econômicos e funcionais, sendo necessário obser-
var obras e intenções artísticas para compreender como a arte refletiu e reflete as demandas da natureza e
sociedade em seus respectivos momentos ao modo que atua frente as irresponsabilidades e desafia posturas
mais éticas pelas causas ambientais.

O presente texto apresenta reflexões originadas do desenvolvimento de um projeto de iniciação


científica no âmbito do curso de Bacharelado em Ecologia da Universidade Federal da Paraíba - Campus
IV. A proposta da pesquisa é compreender os fundamentos ecológicos da arte ambiental e elucidar algumas
interpretações dessa abordagem.

Descrição de manifestações da arte ambiental

Ao se voltar para um passado recente podem ser observadas propostas artísticas compreendidas
como arte ambiental. Por exemplo, em 1963 no Brasil e mais precisamente no, hoje inexistente, João Sebas-
tião Bar, da cidade de São Paulo, aconteceu um happening onde o artista Wesley Duke Lee expôs pinturas

203
da Série Ligas para uma plateia que, em meio à semi-escuridão e o strip-tease de uma bailarina, se esforçava
com lanternas para poder visualizá-las. Mais tarde, num livro organizado por Costa (1980), Wesley Duke
Lee relata em depoimento sua vivência no bar:

Fiz a exposição no João Sebastião Bar, porque não tinha onde expor, e então ‘cometi’ lá
minhas invenções, coloquei lanternas na entrada e as pessoas vinham, de lanterna, ver
os quadros um por um porque o bar era muito escuro. Veio até choque da polícia, pois a
exposição era erótica e não sei mais o quê (COSTA, 1980, p. 20-21).

Percebe-se que a arte atuou como constituinte das interações em um ambiente que foi campo fértil
para que Lee expusesse suas produções artísticas, que foram altamente criticadas por serem consideradas
pornográficas, quando na verdade, o que perpassou por aquele imaginário de erotismo, memória e identi-
dade volta-se às questões essenciais das relações humanas.

A maneira de como a arte se revela no ambiente acaba por refletir e representar a realidade em que o
mesmo vive, como no fim de 1968, quando o Ato Institucional nº 5 foi decretado e teve, como consequência,
conjunturas políticas severas à liberdade de criação. Considerando que a arte passou por esse momento crítico
de repressão, a X Bienal de São Paulo em 1969 foi realizada em forma de protesto, onde entre outras obras, foi
exposta Ondas Paradas de Probabilidade pela artista Mira Shendel, a arte feita de fios de nylon do teto ao chão
representava delicadamente a visibilidade do invisível, o que validou grande potencial político da obra ambien-
tal. É possível acreditar que a arte será sempre política seja em seu engajamento ou em sua abstenção. Nesse
viés, Andrade (2014) afirma que “o mais sutil gesto artístico contem em si uma posição frente ao mundo, frente
à cultura, frente à arte. O humano impera, pois comove. Somos eminentemente públicos. Somos políticos”.

A dimensão da experimentação ambiental pode ser observada também na obra penetrável desen-
volvida por Lygia Clarck, A Casa é o Corpo (1968) concedeu aos participantes estímulo para o autoconhe-
cimento e a conexão com o ambiente, em relatos é possível identificar a obra como um gigantesco balão de
plástico localizado no centro de uma estrutura com repartições laterais e um labirinto de oito metros de
comprimento “para ser penetrada pelo visitante como abrigo poético” (MILLIET, 1992. p.111).

Mais adiante, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Nelson Leirner expôs Playground
(1969), a obra estimulava o contato com o ambiente, uma vez que consistia em um conjunto de objetos ma-
nipuláveis de várias feições geométricas que permitiam a interação do ser com o entorno.

A fim de impulsionar, também, a autognose com o ambiente, o artista Helio Oiticica criou Éden
(1970), essa obra explorou a sensibilidade dos participantes a cerca da relação entre humano e terra, além de
oportunizar momentos de desalienação. Nessa perspectiva, as “totalidades ambientais” para Oiticica (1986)
seriam criadas e exploradas desde o infinitamente pequeno até o espaço arquitetônico, urbano, etc. Nota-se
que a atuação da arte ambiental além de impulsionar a atividade sensorial do participante, o remete a capa-
cidade de enxergar os desafios e condições ambientais por meio do comportamento exploratório.

O engajamento da arte pelas questões ambientais é uma ferramenta importante no processo de


educação ambiental, valendo ressaltar o Manifesto de Tutzing, realizado na Alemanha em 2001, o evento
foi assinado por intelectuais artistas do mundo todo que se objetivaram em estetizar a sustentabilidade,
evolucionando o que propõe a Declaração do Rio e a Agenda 21. Considerando que o desenvolvimento
sustentável e o progresso político cultural são interdependentes, o manifesto ambiental de cunho ativista
foi uma iniciativa estratégica que fomentou estratégias para o desenvolvimento sustentável, essas devem
estar apropriadas para uma sociedade que necessita abranger a interculturalidade, ao mesmo tempo em que
abrange outros temas sociais como a economia e ecologia (SANTOS & GOMES, 2017).

204
Contemporaneidade da arte ambiental que sensibiliza

Cardoso ressalta que são muitas as indagações sobre a maneira de como o homem consome, pro-
duz e vive. “A cultura de consumo transformou-se em uma das principais referências de legitimidade de
comportamentos e valores, constituindo- se em um dos eixos centrais do mundo globalizado” (CARDOSO,
2010). Com a globalização desenfreada, muitas exigências sociais passaram a ser despercebidas. Conside-
rando que a arte também segue atuando frente tais negligências e injustiças socioambientais, o fotógrafo
Alejandro Duran provoca em suas fotografias o despertar para a redução de consumo e fomenta a educação
ambiental, apropria-se de materiais descartados para reorganizar e os transpõe da vida para imagem, con-
vertendo a matéria-prima antes ignorada em obra de visibilidade por excelência. “A obra funciona como um
gatilho que dispara uma reação em nível psíquico. Quando o disparo acerta o alvo do sentimento, podemos
ter certeza de que o conteúdo expressional da obra foi absorvido pelo espectador” (COSTELLA, 2010).

Esse ativismo ambiental na arte contemporânea é evidenciado também nas produções artísticas de
Frans Krajcberg, as esculturas desse grande artista, e militante ecológico, são caracterizadas pelo uso de ma-
teriais carbonizados recolhidos de queimadas e desmatamentos com o propósito de denunciar ações antró-
picas que devastam a natureza, “suas esculturas marcantes e sempre empregadas em prol do meio ambiente
revelam uma luta solitária pela conservação do que ainda existe” (CARDOSO, 2010).

As contribuições de Krajcberg foram extraordinárias para a arte ambiental contemporânea, o que


tem inspirado a artista Bia Dória a alimentar a ideia de encontrar na natureza a matéria-prima e motivo
para suas produções artísticas, isso porque, a experiência em arte ambiental influencia o ser receptor, através
da obra, a agregar em seu próprio processo de viver o envolvimento com as condições socioambientais.

As colaborações de Santos (2014) a exemplo do edital manifesto do concurso de esculturas para o


Novo Recife retratam a arte como desencadeadora da libertação de espaços para a lata funcionalidade.

O concurso de esculturas foi uma das mobilizações que se somou ao movimento que
sugeriu a retomada da cidade pelo cidadão. O manifesto sugeriu que qualquer pessoa
revelasse artisticamente exemplos de esculturas para serem expostas à frente dos prédios
que serão construídos pelo projeto Novo Recife. Assim, a perspectiva de se posicionar
diante da produção do espaço urbano, demarca o potencial mobilizador da arte para fazer
pensar sobre qual o ambiente que se espera desenvolver no âmbito da cidade (SANTOS
& GOMES, 2017).

As propostas artísticas, de cunho crítico, selecionadas pelo edital que questionava o Projeto Novo
Recife estariam equipadas para sensibilizara sociedade e representar a realidade dos problemas contempo-
râneos de forma estética. É validada a capacidade que os artistas têm, “de redefinir as significações da rea-
lidade, romper fronteiras, sair dos quadros institucionais e pensar de maneira lateral” (CARDOSO, 2010).

Cabem aqui compartilhar outros dois modos de intervir por meio da arte. A experiência de Araújo
(2017) enquanto professor que mediou seus alunos de ensino fundamental para a experiência em arte pelo
contato com conteúdos de museus, tanto em plataforma virtual como presencialmente, demonstrou a im-
portância da recepção dos estudantes para com a arte ambiental, uma vez que essa enriquece a formação do
ser enquanto mero indivíduo para a compreensão de sua cultura e socioafetividade com o ambiente, por
isso, “fazer a mediação entre o público e a obra é ensinar arte” (IAVELBERG, 2003, p. 77).

Compreendendo que “o chocante contraste entre a opulência burguesa e a crua indigência do pro-
letariado no espaço da cidade expõe uma vida social marcada pela indiferença e pelo isolamento” (REIS,

205
2015), outra vivência salutar aconteceu em uma pesquisa de iniciação científica que tinha a rua como palco,
na cidade de Santos, onde as oficinas de teatro foram desenvolvidas com pessoas em situação de rua a fim
de produzir visibilidade àquelas pessoas que viviam em um ambiente pouco sensível a elas. Na pretensão de
abarcar a pluralidade da vida em sociedade, “a arte feita pelas pessoas em situação de rua, uma vez levada ao
palco, à universidade, e principalmente às ruas e praças, opera como resistência ao progressivo desinvesti-
mento no espaço público” (DELFIN, ALMEIDA & IMBRIZI, 2017).

Considerações Finais

A conexão entre Arte e Educação Ambiental está ligada com as viabilidades de reconstrução de uma
nova concepção de sociedade e natureza, essa articulação em todos os níveis e modalidades do processo
educativo promove a consciência ambiental e justiça social. As apropriações da arte ambiental citadas no
decurso do texto revelam o engajamento da militância ecológica. Parece evidente que a arte ambiental é a
resistência frente às irresponsabilidades, por isso, ao longo das últimas décadas, as mais diversas tipologias
de manifestações ambientais objetivaram sensibilizar a sociedade com a pretensão de influenciar posturas
mais éticas perante a complexidade dos enfrentamentos ambientais.

O papel ativista da arte contemporânea desencadeia uma gama de possibilidades para a educação
e ativismo ambiental, sendo esse um vínculo fundamental para aproximação de desafios socioambientais
referentes a poluição, degradação ambiental, redução de consumo, políticas de conservação da natureza,
promoção de culturas, entre outros. Destacou-se aqui, propostas e vivências artísticas que potencializaram
o sentido ecológico da arte que educa e regenera enquanto constitui a interação homem e habitat.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, M P. Ambiental e Guerrilha: estratégias de ARGAN, G C. Urbanismo, espaço e ambiente. In: Histó-
arte política no Brasil na década de 1960. UnB: VIS, 2014. ria da arte como história da cidade. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, 5.ed.
ARAÚJO, G C. Arte, escola e museu: análise de uma expe-
riência em arte/educação no Museu Universitário de Arte BATISTA JR., J., 2011. Obras de Frans Krajcberg vão para
- MUnA. Educ. Pesqui. [online]. 2018, vol.44, e174612. o Parque do Carmo: decisão sobre local onde ficarão
esculturas, recusadas pelo Ibirapuera, coloca fim ao
impasse. Veja São Paulo, São Paulo. 28. jan. 2011.

206
POÉTICAS DO FAZER ARTÍSTICO
DE TRÊS UNIVERSOS DOCENTES
A PARTIR DA ABORDAGEM TRIANGULAR
Monica Rodrigues de Farias

Adriana Tobias Silva

Andréa Luísa Frazão Silva

1. INTRODUÇÃO

A questão da imagem no ensino da Arte é tema constante para os professores e estudiosos interessa-
dos na alfabetização visual. Pioneiramente no Brasil, a pesquisadora Ana Mae Barbosa iniciou as discussões
na década de 80, escrevendo o livro “A Imagem no Ensino da Arte” na década de 90. Sistematizou a Metodo-
logia Triangular, priorizando a História da Arte, a Leitura da Obra de Arte e o Fazer Artístico. É feita uma
revisão pela própria pesquisadora em “Tópicos Utópicos” (1998), passando o termo para Abordagem Trian-
gular, assim como a mudança do uso limitado da produção das artes visuais canonizada pela História da
Arte para um campo imagético de inclusão a toda e qualquer imagem para leitura visual. Sobre a mudança
do termo diz Bredariolli (2010, p. 36): “[...] justifica a impropriedade do termo “metodologia” pela sugestão
de caminho estrito, previamente definido. Para Ana Mae Barbosa, a metodologia deve ser fruto da interação
do professor com seu aluno, conteúdo e meio [...]”. A triangulação também já se apresenta em outras confi-
gurações como diz Lampert (2010, p. 444):

A Abordagem Triangular vista hoje como um zigue-zague (ver-contextualizar-fazer-contex-


tualizar-etc.) propicia uma inter-relação entre o fazer artístico, a leitura e o contexto socio-
cultural, e a cultura visual, como objeto dos estudos visuais, ancorada na arte como produ-
ção cultural, propicia uma investigação contextual e relacional ao passo que faz tessituras.

A Abordagem Triangular em suas inúmeras possibilidades de ações docentes basicamente integra


a leitura visual de obras artísticas e da cultura visual (que possuem várias abordagens teórico - metodoló-
gicas), o fazer artístico e a contextualização (que pode ser histórica, social, antropológica, psicológica, etc.).
Sobre contextualização, Barbosa (2014, p. 33) refere que:

A contextualização sendo a condição epistemológica básica de nosso momento histórico,


como a maioria dos teóricos em educação comprovam, não poderia ser vista apenas como
um dos lados ou um dos vértices do processo de aprendizagem. O fazer arte exige contextu-
alização, a qual é a conscientização do que foi feito, assim como qualquer leitura como pro-
cesso de significação exige a contextualização para ultrapassar a mera apreensão do objeto.

207
Dentro dos relatos que se apresentarão, as abordagens partem de metodologias pessoais de cada au-
tora, pertinente às suas necessidades particulares com seu alunado e contexto. Quanto ao ponto de partida,
o universo a ser analisado com maior acuidade será o fazer artístico desses alunos. Já o motivo, é de ser o
“fazer artístico” sempre um tema polêmico nas práticas de arte educação, visto que muitas confusões a partir
de interpretações por vezes errôneas, conforme afirmativa de Barbosa (2010. p. 10): “Foram muitas as dis-
torções da Abordagem Triangular, algumas mal-intencionadas com o propósito de destruir, apresentando-a
como releitura e a releitura como cópia [...].” Ana Amália Barbosa (2005) também faz referência ao tema
releitura, em artigo ‘Releitura, citação, apropriação ou o quê?’, onde investigou em pesquisas com professores
que afirmavam ter saído da abordagem triangular o termo “releitura”. Ana Amália descobre, após ler e reler
o livro ‘A Imagem no Ensino da Arte’, que o termo aparecia nas legendas dos desenhos das crianças. Con-
tudo, o problema não é a releitura em si (apesar da carga pejorativa às vezes agregada como cópia), como
Ana Amália Barbosa (2005, p. 144) mesma diz: “[...] são professores que trabalham a releitura como cópia”.
E ainda sobre releitura coloca: “O que quer dizer releitura? Reler, ler novamente, dar novo significado, rein-
terpretar, pensar mais uma vez.” (BARBOSA, 2005, p. 145). Nessa perspectiva propositiva e criadora, que
o trabalho do fazer artístico, da criação a partir da apropriação ou citação é “[...] muito próprio de nossa
contemporaneidade pós-moderna”. (BARBOSA, 2005, p. 145). Sobre o mesmo tema diz Rizzi (2008, p. 69):
“[...] na releitura há transformação, interpretação e criação com base em um referencial: o texto visual que
pode estar explícito ou implícito no trabalho final do aluno.”

Os equívocos interpretativos do fazer artístico afetaram, de certa forma, a realização das práticas edu-
cativas de alguns professores de Arte, que, por conta disso, expressaram a desculpa de que ‘releitura é cópia’,
‘releitura é chata’, ‘releitura é uma prática pobre’ e outras afirmativas do nível. Tais fatos só encobrem a falta de
compreensão de professores sobre a importância das inúmeras possibilidades de criação artística que os alunos
são capazes de trazer à tona, oriundos de aprendizagens prévias dos saberes artísticos e de contextualizações
pautadas nas ‘realidades’ do espaço-tempo vigentes e de suas subjetividades, prenhe de significados. O tecni-
cismo ou a livre-expressão são práticas em total desacordo com as práticas contemporâneas de ensino de Arte.

Pensando nesse sentido, as práticas a seguir partem da necessidade de interpretar a realidade, a partir
de estudos sobre arte e o seu fazer artístico, de três universos diferentes: o olhar sobre questões de pertenci-
mento e identidade, tema proposto pela professora Andréa Frazão com alunos do ensino fundamental – séries
iniciais; a cultura popular e o sagrado através da festa do Divino Espírito Santo de São Luís do Maranhão com
alunos do ensino fundamental - séries finais, com a professora Adriana Tobias; e, por fim, estudos de releituras
usando Tecnologias da Informação e Comunicação - TICs a partir de temas usuais do conteúdo programáti-
co de Arte do Ensino Médio contextualizados com questões pertinentes do universo dos adolescentes com a
professora Monica Rodrigues. Em sintonia, todas as três educadoras trazem um resultado comum de imagens
resultantes de suas proposições e abordagens teórico/metodológicas, que resultaram nesse acervo imagético a
ser compartilhado, para realização de novas leituras, no ziguezaguear infinito do ler/fazer e contextualizar arte.

2. ERÊZANDO: diferenças e identidade e a valorização


das artes visuais afrodescendentes contemporâneas

A proposta direcionada ao 5º ano do Ensino Fundamental da Unidade de Educação Básica Padre


João Miguel Mohana, nomeada - Erêzando, que une os conceitos das palavras Erê171 e conscientização, ou
seja: crianças que pensam sobre si e a partir dos outros sobre diferenças e multiplicidades étnicas através

171. A escolha do nome foi em virtude do direcionamento da proposta voltada para as crianças. O termo Erê provém do Yorubá “iré” que significa
criança ou ‘brincadeira e divertimento’.

208
da autoimagem com a produção de desenhos e fotografias. E a artista visual de referência nesse estudo, no
campo da arte contemporânea produzida por afrodescendentes foi Angélica Dass.

Essa experiência visou discutir arte afrodescendente contemporânea a partir do olhar das crianças,
aflorando: o conhecedor, fruidor e produtor. A proposta aplicada se baseia no fomento da criança erêzar-se172
na compreensão das diferenças, da identidade e no autoconhecimento, enfim, a conscientização da impor-
tância de valorização da diversidade étnico-racial. Partiu-se da abordagem triangular para balizar os passos
de execução da proposta: conhecimento-contextualização, produção-releitura e contextualização e fruição-
-apreciação.

No primeiro momento foram apresentadas produções de arte contemporânea de temática afrodes-


cendente, tendo como referência as obras da artista Angélica Dass, com projeto Humanae, que, a partir do
sistema de cores Pantone173, criou um inventário cromático com tons de pele de diversas pessoas a partir da
fotografia. Num segundo momento, o filme Lápis cor174 foi exibido aos alunos, que levanta a problemática
da identificação de crianças negras com a tonalidade de suas peles. Após a apreciação deste filme, os alunos
fizeram conexões salutares com os trabalhos da artista Angélica Dass.

Figura 1 – Projeto Humanae. Artista Angélica Dass.

Fonte: por Angélica Dass (2018).

Figura 2 – Crianças. Aula conhecendo a arte afrodescendente. Processo de contextualização.

Fonte: A autora – Andréa Frazão.

172. Erêzar-se se coloca como processo de concretização da criança sobre as diferenças, o ato de conscientizar-se.
173. Pantone Inc. é uma empresa sediada em Carlstadt, Estado de Nova Jérsei, Estados Unidos. É mundialmente conhecida por seu sistema de cores,
largamente utilizado na indústria gráfica.
174. Lápis cor. Canal futura. Larissa Santos. 2014.

209
Figura 3 – Etapas de criação dos autorretratos e intervenção na sala de aula

Fonte: A autora – Andréa Frazão.

Figura 4 – Criação dos autorretratos e intervenção fotográfica na sala de aula

Fonte: A autora – Andréa Frazão.

Na etapa final sugeriu-se a intervenção no espaço da sala de aula com os autorretratos, e optou-se
em propor às crianças o uso dos azulejos das paredes da turma como suporte para a intervenção. Os autor-
retratos foram feitos em papel de 10 cm x10 cm e colados nos azulejos formando um painel. Após o processo
sensibilização da autoimagem com os desenhos, partiu-se para a sessão de autorretratos - selfies175 tiradas
com uso do celular. O próximo passo foi a impressão no formato 10 cm x10cm e a atividade de recolorir
essas fotos. Ao produzir os desenhos e selfs as crianças articulam releituras com conexões entre a visualida-
de e a representatividade da artista. Então, podemos extrair das interpretações dos alunos, as vinculações
imagéticas e a possibilidade de se aprender em arte a diversidade e as diferenças176. Tourinho (2009, p. 278)
nos diz que “A representação por uma forma dada institui um campo de referências visuais que dialogam
com subjetividades realçando, por meio das temáticas mais frequentes, marcas identitárias que dão sentido
à vida cotidiana dos alunos”.

As referências visuais, como versa a autora, no que tange à representatividade do artista afro-
descendente, podem gerar novos diálogos com as subjetividades das crianças criando links e canais para a
(re) construções identitárias. A proposta Erêzando traz ao público do ensino fundamental - séries iniciais o
entendimento das diferenças relacionadas às origens étnicas e a cor da pele com a exploração e experimen-
tação da autoimagem no desenvolvimento de leituras e releituras a partir das artes visuais afrodescendentes
contemporâneas.

175. Selfies são autorretratos fotográficos realizados com smartphones equipados com câmera frontal (SANTOS, 2016, p. 1).
176. Desta forma: “Discutir as diferenças, identidades e representações individuais e de grupo ressalta a importância de práticas interpretativas que
comtemplem a diversidade e riqueza da visualidade contemporânea.” (TOURINHO, 2009, p. 281).

210
3. A CULTURA POPULAR E O SAGRADO
NA “FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO”

Na festa do Divino Espírito Santo, tema de estudo desse projeto desenvolvido com os alunos do
Ensino fundamental – séries finais teve como ponto de contato estético. Tal festa, no campo da visualidade,
com os interiores das casas, que são adornadas com peças de caráter escultórico e outros elementos decora-
tivos, por vezes montados seguindo lógicas de simetrias e utilização de cores como elementos simbólicos.
Em muitos casos, esses elementos são inspirados em adornos internos e externos das igrejas, especialmente
as do estilo barroco. Nesse projeto, em específico, trabalhou-se com a abordagem triangular a partir das
temáticas da cultura popular e objetivou-se, com isso, alcançar o universo do aluno por meio de suas práti-
cas culturais, com ênfase na multiculturalidade. Durante os estudos, a temática voltada para a intolerância
religiosa também foi trabalhada e fonte de vários debates em sala de aula.

Figura 5 - Cortejo do Império no domingo do meio, que antecede o de Pentecostes.

Fonte: A autora – A autora - Adriana Tobias

Incentivar trabalhos voltados para a valorização cultural e o diálogo com a riqueza/diversidade das
contribuições familiares e das comunidades se faz necessário, pois o ensino da Arte não pode estar exclusi-
vamente direcionado para a cultura das elites, evitando-se assim, nos prendermos a uma visão elitista que
rotula as artes.

No processo para execução do projeto, foram utilizadas fotografias e audiovisuais para apresentar-
mos a Festa do Divino Espírito Santo em São Luís do Maranhão177 aos alunos.

A ordem utilizada para essa abordagem metodológica foi conhecer/ver/contextualizar/fazer/contextu-


alizar - porém, a princípio utilizando fotografias e vídeos sobre a festa, para que esses alunos pudessem ter um olhar
como quem ver de fora, para que assim, estranhassem o que, a princípio, lhes é familiar (VELHO, 2008). Essa
forma de ver o festejo propiciou vários momentos de análise e orientação dos alunos em suas pesquisas,
para que, assim, entendessem o contexto dessa manifestação cultural de presença marcante em São Luís do
Maranhão, por ser uma festa eminentemente de terreiro (FERRETTI, 2013).

A pretensão de aliar essa temática da Festa do Divino a cultura do outro, buscando também o enfoque
na Arte contemporânea – Street Art – foi inspiração para as construções artísticas realizadas pelos alunos, uma
forma de atrair estes, para algo que assim como essa festa, está tão próximo de seu universo - a arte de rua.

177. Muitos dos alunos têm certa proximidade com tal manifestação, pois uma das festas pesquisadas acontece no bairro da Alemanha, onde a
escola UEB Luís Viana está localizada e onde a maior parte dos nossos alunos mora.

211
Figura 6 - Instalação de Yoko Ono: Árvore os Figura 7 – Apresentação de seminário sobre a
Pedidos para o mundo, 2011. Site Atelier. Festa do Divino.

Fonte: Tomie Ohtake (2018). Fonte: A autora - Adriana Tobias (2018).

Estudos sobre Benke (2015) sobre os conceitos da Street Art, além de análises dos trabalhos de
Bansk e ainda em Yoko Ono foram feitos, para que os alunos entendessem que a arte de ruas está presente
pelo mundo afora, assim como na cidade em que eles vivem. Dessa forma, a obra ‘Árvore dos Pedidos para
o mundo’ de Yoko Ono (Figura 6) foi o ponto de contato motivacional. Para levar também uma mensagem
para o mundo (como na obra original), bilhetes foram feitos pelos alunos num trabalho coletivo de recriação
artística em formato de um ícone simbólico da Festa – o pombo – que, no Cristianismo, é a representação
do Espírito Santo, e que possui vários significados em várias culturas, dentre eles, a representação da paz.

Desta forma, foi decidido realizar uma instalação artística no corredor da escola onde se colocaria
vários recortes em formato de pombo, com frases sobre respeito à cultura do outro, paz, esperança (Fi-
gura 7). Dessa forma, foi preenchida parte da grade da quadra com esses móbiles em formato do pombo.
Enceraram-se as atividades do projeto com uma oficina sobre Respeito às diversidades e concluiu-se assim,
os estágios do projeto, com a montagem da instalação artística (Figura 9).

Figuras 8 e 9 – Mensagem para o mundo de alunos da Escola UEB Luís Viana

Fonte: A autora - Adriana Tobias (2018).

4. FAZER ARTÍSTICO A PARTIR DE ESTUDOS DE CONTEÚDOS


CURRICULARES DE ARTES VISUAIS PARA O ENSINO MÉDIO:
contextualização e uso de TICs178

No âmbito das obrigações curriculares do ensino de Artes Visuais no Ensino Médio, a necessidade
de empreender a prática docente coerente com os conteúdos de base vão desde o conhecimento do alfabeto
visual - elementos formais da linguagem visual, a sua história (da pré-história à contemporaneidade local,

178. Tecnologias de Informação e Comunicação, no caso: celular e aplicativos.

212
Brasil e mundo), a cultura visual, os temas transversais (sexualidade, meio ambiente, política, etc.), o conta-
to com a arte in loco em museus e galerias físicas e a céu aberto, o exercício de leitura visual, fruição estética
e a experiência do fazer artístico. De todos esses itens citados, o mais prazeroso e difícil de realizar é o fazer
artístico pelos alunos do Ensino Médio. Difícil, por causa da falta de empatia nessa faixa etária por alguns
para realização de atividades artísticas práticas, em que há resistências. Prazeroso, pelos resultados dos tra-
balhos quando realmente os alunos se envolvem e se propõem a realizá-los.

É necessário que o educador tenha muita “paciência pedagógica”, como dizia Paulo Freire (2011),
pois são inúmeros os fatores impeditivos do fazer artístico nessa etapa da Educação básica: desde se senti-
rem muito “adultos” e considerar o fazer artístico coisa para crianças, a falta de segurança, vergonha, falta
de experiência ou experiências anteriores frustrantes, acreditar que precisa é de conteúdo para passar no
vestibular e, por fim, a falta de estrutura física da escola, que não é pensada para espaços de criação artística
em artes visuais, como uma sala ateliê ambientada. Contudo, quando o educador é firme e consciente em
seus propósitos educacionais, procura sempre o caminho do convencimento pelo diálogo, e mesmo que não
alcance a totalidade de participação de seus alunos (o que é fato), alcança resultados surpreendentes, como
pondera-se ver em alguns exemplos de trabalhos artísticos dos alunos do 2º e 3º ano do E. M. do C. E. Do-
mingos Vieira Filho, escola pública do Estado do Maranhão.

Os trabalhos artísticos apresentados a seguir são frutos do desenvolvimento de um assunto curri-


cular estudados em sala de aula, com uso do livro didático179, um pequeno recorte de recriações discentes
realizadas após estudos do conteúdo programático Renascimento. As temáticas de fomento aos trabalhos
práticos foram: retratos das Madonas e a perspectiva linear. Outros trabalhos, que fazem parte deste portfó-
lio pessoal docente, podem ser vistos no diário virtual - um blog180 educativo.

5. AS MADONAS

Trabalhos executados, após estudos sobre a figura humana no Renascimento Italiano em compara-
ção a Arte Bizantina, foram um tema proposto pela atividade de leitura de imagem “Visões sobre o corpo”
(FRENDA, p. 178). A orientação dada aos alunos era de utilizar os recursos oferecidos pelo celular (fotogra-
fia e aplicativos de manipulação da imagem181), e contextualizar essas madonas com o tempo presente, com
questões que desejassem abordar.

Figura 10 – Imagem do livro de estudo para a criação.

Fonte: Frenda (2013, p. 178).

179. O livro de Arte é integrado com as quatro linguagens (Artes Visuais, Dança, Teatro e Música) de forma superficial, não abrangendo, obviamente, o
conteúdo programático dos três anos do Ensino Médio. Mas já é um avanço o livro ser disponibilizado para a escola pública, realidade recente.
180. BlogArte: Endereço virtual: https://domingosvieirafilhoprofessoradearte.blogspot.com.br/.
181. Apps Sketch Guru, Prisma, PicsArt, etc.

213
Figura 11 – Releituras dos alunos.

Fonte: A autora – Monica Rodrigues.

Nas releituras acima, os alunos tocam em temáticas como as drogas, a gravidez na adolescência e a
pobreza.

6. PERSPECTIVAS DO COTIDIANO

Partindo também de estudos sobre o Renascimento, mais especificamente sobre o uso da técnica da
perspectiva por Filippo Brunelleschi (FRENDA, 2013, p. 137), a proposta lançada foi sair em busca de cenas
próximas das residências dos alunos, em que observassem a perspectiva linear e fizessem o registro com uso
do celular, para depois, fazerem a manipulação da imagem por aplicativos, transformando-as em desenho
ou pintura digital.

Figura 12 – Fotografias digitais manipuladas por app.

Fonte: A autora – Monica Rodrigues.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização do fazer artístico como processo natural das práticas de leitura de imagem é um dos
diferenciais dessa área de conhecimento e a essência de várias práticas metodológicas. Assim, após tendên-
cias que foram de pontos equidistantes do tecnicismo ao laissez-faire182, muitos equívocos foram feitos em
nome da releitura e, infelizmente, apesar de muitos estudos esclarecedores já publicados sobre o tema, ainda
existem educadores que executam a cópia como modelo de fazer artístico pelos alunos.

182. Expressão francesa que significa “deixar fazer”.

214
As temáticas que fomentaram os fazeres artísticos dos alunos aqui apresentados, foram oriundas de
objetivos educacionais que buscaram promover: a valorização das identidades, da cultura popular, o respei-
to a diversidade religiosa, a aplicação de conteúdos curriculares contextualizados as realidades juvenis - suas
questões latentes ou manifestas.

Os encadeamentos metodológicos de conhecer/ler/fazer e contextualizar arte são o foco desses


relatos que objetivaram evidenciar recortes imagéticos oriundos de proposições educativas que revelam as
singularidades e as potencialidades estéticas e artísticas dos alunos-criadores.

REFERÊNCIAS

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cessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

215
COMO IR A NOVA YORK, HAVAÍ E ALPES
SEM SAIR DE BELO HORIZONTE UMA
EXPEDIÇÃO ETNOGRÁFICA COM ARTISTAS183
José Marcio Barros

Ponto 1: uma visão geral

Durante três meses nos reunimos semanalmente para debater, por meio de autores como Garcia
Canclini, Teixeira Coelho, Baumann, Giddens, Mauss, Geertz, a cultura na contemporaneidade. Definimos
uma moldura conceitual que atravessava todas as referências selecionadas: entender a atualidade como in-
conclusão, sobreposições, ressignificações e contaminações entre o projeto de modernidade e a contempo-
raneidade.

Nossa opção foi a de superar o sedentarismo da discussão teórica atada aos espaços da instituição
acadêmica e buscar a experiência sensível tensionada pelo trabalho de campo.

Explorar a cidade em seus percursos, territorialidades, arranjos espaciais, imagéticos e sensíveis.


Produzir uma tensão entre o que a razão convoca e o subjetivo institui. Ir a campo para compreender a ci-
dade, seus sujeitos e suas visualidades sobrepostas e em constante e dinâmico arranjo, por meio de uma
expedição etnográfica acionada por uma provocação metodológica.

Cada participante do trabalho, inserido no contexto de um seminário intitulado “Arte e Cultura no


contexto contemporâneo: subsídios teóricos”184, deveria fazer suas escolhas a partir de orientações/provoca-
ções capazes de fazer da expedição uma mistura de entrega e coleta. Colocar-se à disposição do encontrado
e experimentado de forma a compreender as sobreposições do tempo, sujeitos, linguagens, espacialidades.
Perceber a modernidade e suas contemporaneidades como projetos inconclusos, dinâmicos e continuamen-
te refeitos.

A proposta produziu aquilo que se esperava em um grupo de artistas: a alegria de ir a campo para
alimentar uma reflexão acionada pela subjetividade e o estranhamento relacionado ao “desconforto” do
desconhecido.

183. Texto submetido ao VI Congresso Internacional Sesc de Arte/Educação – Utopias Pedagógicas em Artes como gesto de (re) Existência. Uma
versão deste trabalho foi apresentada no GT Práticas de ‘ethnography-based art’: horizontes futuros do trabalho de campo, realizada no VI Congres-
so da Associação Portuguesa De Antropologia, realizado entre 1 a 4 de Junho de 2016 em Coimbra (Portugal)
184. Para conhecimento da matriz curricular do Mestrado em Artes da UEMG consultar http://ppgartes.uemg.br/

216
Aqui apresento um pequeno texto resultado do mosaico de perspectivas, relatos e resultados, a par-
tir da experiência vivida e comunicada por cada um dos participantes no blog organizado pelos próprios.

O objetivo foi o de vivenciar a potência reflexiva que as perspectivas teóricas, quando acionadas
pela condição de sujeitos sensíveis de seus operadores, pode oferecer.

Ponto 2: Inconclusões: cidades, modernidades e contemporaneidades

Tudo começa a partir de uma opção: tratar a relação entre modernidade e contemporaneidade de
forma mais sensível que conceitual: a contemporaneidade não pode ser entendida como oposição à moderni-
dade, mas sim como uma certa “sensibilidade e produção cultural da modernidade”. Ambas como tipologias
ideais, que se referem a processos históricos de rupturas epistemológicas, estéticas, culturais e descontinui-
dades históricas, simultaneamente comuns e singulares.

Experimentar aquilo que chamamos de contemporaneidade como um novo regime sensorial, re-
quisita ao olhar a capacidade de captar o processo de mudança como processo hibrido que gera permanên-
cias e impermanências. Um fluxo contínuo de informações e mudanças, uma invasão tecno-comunicacional
no cotidiano, que também gera outras capacidades criativas capazes de responder à complexidade, poten-
cialmente mais abertas à diversidade e à simultaneidade.

Se na contemporaneidade a vida se desloca definitivamente para a cidade, a proposta da expedição


era a de experimentar de forma sensível tal deslocamento de forma lúdica e atenta. É justamente quando a
experiência sócio-cultural se transforma quase que imperativamente numa experiência urbana, é que o mito
das cidades ideais vai se diluindo e sua conformação contemporânea introduz novos paradigmas e modos
de fazer interagir tempo e espaço.

A(s) cidade(s) revelada(s) como um aglomerado de realidades interrogáveis, portadoras de distintas


temporalidades e formas expressivas que, sobrepostas ou simultâneas, nos remetem a um campo múltiplo
de referencialidades. Experencia-las etnograficamente foi de certa forma, explorar suas lógicas e subjetivi-
dades, presentes na configuração de seus espaços significacionais. Se expor às translações de sentidos dadas
pelos usos e pelas apropriações, representou a possibilidade de uma apropriação subjetiva da perspectiva
conceitual.

Aqui, o espaço urbano se apresenta ao artista, como um intrincado sistema de comunicação que re-
flete e singulariza diferentes e divergentes sistemas de classificação, representação e comunicação, que se
sobrepõem espaço temporalmente. A cidade como uma série de textos, imagens, sonoridades – paisagens
urbanas - que se sobrepõem e que criam narrativas com lógicas não discursivas e nada lineares. A cidade
como cidades, sobreposição de referencialidades; fronteiras, espaços de circulação, suportes e corredores
semânticos de sociabilidades diversas.

Ao convidar um grupo de artistas à experiência de expedições urbanas e jogos semânticos, busca-


mos a compreensão dos sentidos da cidade como um chamado à produção da exterioridade, que dissemina
e dispersa focos de identidades e recorrências familiares. Um acontecimento que desprovincializa nossa
experiência, na medida em que apoia-se na dispersão e na circulação. Vivenciar a cidade como tecido sócio-
-cultural onde o processo tecno-subjetivo-espaço-temporal da modernidade expressa singularidades. A ci-
dade tanto se estrutura por meio de espaços de fluxos, circuitos de passagem e de velocidade, quanto mantém
e expande seus lugares identitários, simultaneamente marcados pela articulação global e pela fragmentação
local. Uma mistura de estilos, um imbricado de signos, um congestionamento de tráfegos simbólicos coexis-
tindo lado a lado e simultaneamente: uma “cidade patchwork”, como denomina Canevacci (1993).

217
A utopia modernista acreditava poder resolver os antagonismos da metrópole através da reordena-
ção do espaço habitado, ancorado no princípio do modelo único com validade permanente e internacional.
A cidade contemporânea explode com essa utopia e se apresenta como uma cidade obscena, uma cidade que
obsta a cena. Não mais ordenada pelos projetos geometrizantes da modernidade, agora como um palimp-
sesto imagético.

Ponto 3: Expedições...

Como vimos, o que singulariza a relação entre modernidade e contemporaneidade são as ten-
sões entre continuidade e ruptura, suas inconclusões e a constituição de um tempo/espaço marcado
pela sobreposição. Daí o porque de explorar a cidade por meio de uma expedição sensível, etnografi-
camente assumida. Tratava-se de uma experiência singular de compreensão. Aqui expedição assumia
um duplo sentido: como ato ou efeito de expedir-se sobre a cidade; e também como excursão, desloca-
mento, viagem.

Mas não se tratava de apenas ver a cidade, mas olha-la (regarder). Ainda que ver consista em re-
ceber imagens, olhar supõe “estar em guarda”, prestar atenção, interessar-se. Expedição ativada pelo olhar
etnográfico que institui uma postura e não somente uma técnica. Postura interacionista - situacionista
que responde ao princípio de que o real não se encontra pré-definido. Acessamos situações de realidade
onde os próprios atores que definem a situação na qual se encontram, ao fazerem-na, estão a construí-la.
(BOUVARD, 1999)

A proposta aos alunos do Mestrado em Artes da Universidade do Estado de Minas Gerais/UEMG


(Brasil) partiu destas constatações e apresentou o seguinte desafio metodológico, realizar uma expedição
etnográfica com as seguintes marcações

a) definir como destino, lugares simultaneamente reais e metafóricos. Bairros da ci-


dade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil cujo nome nos remetesse a outro lugar;
b) deslocar-se no fluxo comum e ordinário do transporte urbano em busca dos senti-
dos oferecidos pelos referentes escolhidos;
c) observar, ouvir, registrar, interagir e tencionar o visto e o vivido, e as fabulações
conceituais sobre modernidade e atualidade;
d) fazer da expedição uma mistura de entrega e coleta. Colocar-se à disposição para
compreender as sobreposições do tempo, sujeitos, linguagens, espacialidades. Perce-
ber a modernidade e suas contemporaneidades como projetos inconclusos e continu-
amente re- feitos.

e) Criar e comunicar suas impressões e descobertas.

Considerações finais....

Convida-los ao campo, significou uma oportunidade para experimentarem aquilo que CHIARA (2015)
chama de relação pecaminosa entre antropologia e arte:

...é justamente a capacidade de confiar na imaginação e nas sensações, ultrapassando a di-


cotomia razão/emoção, que banaliza a natureza complexa dos processos de compreensão
dando origem a uma ampla série de problemas metodológicos. (PUSSETTI,2015, p.226)

218
Ou, se quiserem, sob outra matriz conceitual, experenciar aquilo que BOSI (1992) chamou do caminho
ao conhecimento:

Mas só merece de nós um esforço aquilo que amamos. Chegando ao fim deste exercício,
vamos voltar ao princípio. Tudo começa numa afinidade, numa simpatia do sujeito da
percepção e da ação pelo seu objeto. Para alcançar esse alto grau de tomada de consciência
da vida em si, há um momento de recusa do que foi estabelecido sem a nossa aquiescên-
cia e experiência. Isto se dá sempre que nós queremos habitar plenamente as coisas do
mundo. Se há no cientista um momento de astúcia, de desconfiança e luta, ele é motivado
por uma percepção aventurosa em busca do conhecimento. ... Mas essa atitude não é uma
técnica, é uma conversão. (Bosi, 1992,p.118)

E assim foi feito. Cada aluno/artista construiu sua expedição por meio de escolhas simultaneamente
metafóricas e espaciais.

Um lugar desconhecido, distante e com o mesmo referente de algo ali inexistente, produzindo uma
tensão semântica.

O resultado, heterogêneo como a condição dos sujeitos e operadores de suas expedições também o é,
constituiu um micro blog http://expedicoesnacidade.tumblr.com/.

Organizado como uma espécie de memória do processo.

Os artistas/expedicionários e seus respectivos relatos ali podem ser encontrados, como narrativas
próprias de um enfrentamento conceitual, metodológico e sensível. São eles:

Amanda Alves Neves - “Expedição Alpes”


Camila Carvalho da Mata Nápoli - “Acaba Mundo”
Camila Lacerda Lopes - “Havaí por acaso”
Cassio Gonçalves Campos - “Nova York”
Daniel Nunes Coelho - “Derivas Sonoras”
Daniela Ramos Garcia - “Rua méxico em dia de finados: Polissemias polidiscursivas”
Dulce Helena Couto Alves - “ Xangrilá é Lá: Para Além dos Belos Horizontes
Flávio Célio Rodrigues Oliveira - “Ponte para Veneza”
Islei Mariano Correa Hammer - “Um Passeio pela Pompéia”
João Paulo Andrade da Silva - “ Jardim América: Silhuetas Crescimento e Permanência”

Tadeus Martano Mucelli Motta - “Contiguidades: Belvedere & Acaba Mundo.

A experiência, entendida como aquilo que fazemos com o que vivemos, apontou para possibilidades
outras que se encaminha: agora a autoetnografia como método para uma outra expedição de imersão no
próprio sujeito.

219
Referências

BARROS, José Marcio, Cultura e comunicação nas aveni- CRIADO, Tomás Sánchez e ESTALELLA, Adolfo, Antro-
das de contorno em Belo Horizonte e La Plata, BH, Edi- pocefa: un kit para las colaboraciones experimentales en
tora PUC Minas, 2005 la práctica etnográfica, Cadernos de Arte e Antropologia,
Vol. 5, No 1, 2016, disponível em http://cadernosaa.
BOSI, Ecléa, Entre a opinião e o estereótipo, Novos Estu-
revues.org/
dos CEBRAP N° 32, março 1992, pp. 111-118
PUSSETTI, Chiara, Os frutos puros enlouquecem. Per-
BOUVARD, Patrick, O lugar da etnografia nas epistemo-
cursos de arte e antropologia, Revista Antropolítica, n.
logias construtivistas, Revista PSI, volume 1 - número 2
38, Niterói, p.221-243, 1. sem. 2015
- nov./1999

CANEVACCI, Máximo, A cidade polifônica: ensaio so-


bre a antropologia da comunicação urbana, SP, Studio
Nobel, 2003

220
POSSIBILIDADES DA PESQUISA
NARRATIVA NO ESPAÇO ESCOLAR
Noeli Moreira - UDESC

Introdução

“A vida adquire sentido para o ser humano à medida que ele


organiza o mundo”.
(Anamelia Bueno Buoro, 1998)

Organizar o mundo, investigar e selecionar fatos importantes da nossa realidade foram objetivos
percorridos ao longo da existência humana. Nosso desenvolvimento foi ocorrendo conforme o contato com
a realidade de nosso entorno. Por meio das percepções e interpretações, a realidade foi sendo mapeada e de-
codificada. Dar significado ao que acontecia, atribuindo valor, foi essencial para a formação da linguagem.
Duarte Junior (1988, p. 50) afirma que “A linguagem organiza o mundo percebido numa estrutura significa-
tiva, onde a ação pode ser orientada de maneira eficaz”. Desenvolvemos o nosso corpo físico e psíquico por
meio dos nossos sentidos, nos conectando entre o fora e o dentro, ligando as informações do que era real,
imaginável e criado, desenvolvendo nossa compreensão dos processos entre o ser, o fazer, as necessidades,
a interação, a comunicação e as formas de linguagem, as relações entre as mais diversas realidades da nossa
existência, ao longo de muitos anos. Todas as experiências que foram sentidas, tanto fisicamente como in-
telectualmente, nos levam à constatação de que foram fundamentais para a construção do que somos hoje.
(BUORO, 1998; DUARTE JUNIOR, 1988).

Construímos histórias por meio das mais diversas linguagens, de forma que a relação entre o que
foi vivido, refletido e reproduzido repercute na construção de como compreendemos o mundo e o humano
ao longo da história. Essa construção é cultural; para Duarte Junior (1988, p.50) “homem e cultura estão
indissoluvelmente ligados”, formam-se conjuntamente, refletindo o meio onde vive, a sua adaptação e sua
transformação. A capacidade de criar e desenvolver mecanismos para nossa sobrevivência, foi sendo ima-
ginada, elaborada e produzida continuamente, e hoje olhamos para tudo isso, passado, presente e ainda
vislumbramos o futuro, não como uma hipótese apenas, mas com a certeza de que estamos na trajetória de
construção permanente da nossa humanidade.

As experiências construídas a partir da linguagem oral e visual foram o alicerce para tentarmos
compreender o que fomos e o que somos. As imagens nos acompanham pelo espaço-tempo. Elas foram e

221
são produzidas pela nossa vocação natural de perceber e de imaginar. Joly (1996) analisa o uso da imagem
ao longo do tempo, lembrando-nos da origem, desde a pré-história, quando o homem deixou registrados
seus vestígios em vários lugares do mundo através de desenhos. A autora destaca que:

[...] essas figuras representam os primeiros meios de comunicação humana. São consi-
deradas imagens porque imitam, esquematizando visualmente, as pessoas e os objetos
do mundo real. Acredita-se que essas primeiras imagens também se relacionavam com
a magia e a religião (JOLY, 1996, p. 18).

Essas imagens nos mostram que o pensamento sobre o meio vivido e as ações desencadeadas estão
presentes e possibilitam um movimento de construção da vida. As imagens fazem parte integral do pensa-
mento; precisamos de imagens, pensamos sobre elas, imaginamos e as produzimos para identificar quem
somos e qual o mundo a que pertencemos. (DUARTE JUNIOR, 1988).

Quando nascemos, observamos, por meio de todas as nossas percepções, tudo a nossa volta. Mi-
tchell (1995, p. 243) exemplifica a possibilidade dessa primeira imagem, como sendo o rosto da mãe: “o
encontro face a face, a disposição evidentemente, para reconhecer os olhos de outro organismo”. É na ob-
servação que aprendemos a pensar, a agir e a compartilhar todas as sensações do nosso meio, por meio das
outras pessoas, das ideias, da imaginação, do entorno e da criação.

Procuramos entender a natureza e seus fenômenos e como isso afeta a experiência de vida. Em
nossa memória todas as experiências ficam gravadas, assim, podemos usá-las como meio para entender os
acontecimentos, assim como para transformá-los. As imagens constituem-se em um universo de significa-
dos, construídos através de símbolos, ressoando no planejamento, na organização e na ação, dando um sen-
tido para a existência, associando a vida ao restante do mundo. Além disso, torna o homem um ser social,
que se compreende como indivíduo na coletividade, desenvolvendo a capacidade de transformar seus pen-
samentos em imagens, compartilhando-as com todos, criando uma rede de interpretações e reformulações
de suas reflexões, num exercício contínuo de construção da identidade (MARTINS; TOURINHO, 2009).

O uso das imagens pelo ser humano é fruto das reflexões sobre o olhar, sobre o sentido, a percepção,
a transformação e a interpretação da imagem, vista e produzida várias vezes e de distintas maneiras. Joly
(1996) explica que:

Instrumento de comunicação, divindade, a imagem assemelha-se, ou confunde-se com


o que representa.... A Sobrevivência, o Sagrado, a Morte, o Saber, a Verdade, a Arte,
se tivermos um mínimo de memória, são os campos a que o simples termo “imagem”
nos vincula. Consciente ou não, essa história nos constituiu e nos convida a abordar a
imagem de uma maneira complexa [...] (JOLY, 1996, p. 19).

É por meio das reflexões que a imagem constrói ao mesmo tempo que transforma o conhecimento
de quem somos, de onde viemos e para onde estamos indo, o que nos auxilia a pensar sobre conceitos de-
finidos e que seguem sendo desenvolvidos, alterados e redefinidos para a compreensão da nossa realidade,
e da nossa experiência na construção humana e da identidade. Para Duarte Junior (1988, p. 85), “todo
conhecimento reporta-se à experiência; não podemos conceber coisa alguma que não tenha relação com a
nossa experiência”. É nesse movimento de construção do conhecimento, a partir das experiências vividas,
que as ações de reflexão, interpretação, ação, imaginação, criação, visualidades e transmissão da oralidade se
complementam e se incorporam numa perspectiva narrativa sobre o conhecimento da humanidade (JOLY,
1996; BARBOSA 2012).

222
Imagens e narrativas: possibilidades educativas

A narrativa, como objeto de estudo, investiga a identidade dos narradores, sobretudo as suas ex-
periências e seus desdobramentos. No final do século XX, ampliaram-se os debates, ganhando espaço em
inúmeras discussões:

A partir dos anos 80 a narrativa tornou-se tema de interesse acadêmico em departa-


mentos de literatura, psicologia e sociologia. Contudo na última década, esse interes-
se se expandiu para áreas tais como cultura, educação, cinema, teatro e artes visuais
(MARTINS; TOURINHO, 2009, p. 1).

As diferentes disciplinas e seus respectivos estudos buscam explicar a narrativa do ponto de vista
cultural, social e visual, seus caminhos e os conceitos subjetivos construídos conforme a compreensão e
interpretação dos indivíduos e de sua época.

As narrativas orais e visuais sempre fizeram parte da construção das relações humanas; o que vem se
modificando ao longo do tempo é o seu acesso por meio dos avanços tecnológicos, em que imagens, vídeos
e produções visuais, com os mais diversos fins como: memória, decoração, marketing, propaganda, consu-
mo, entretenimento, tem alcançado um número maior de pessoas. Essa experiência nos traz uma forma de
observação mais rápida. Testemunhamos as outras culturas, mesmo estando muito longe delas. Entretanto,
no que se refere a interpretação e a narração daquilo que se ouve ou se vê, como a contemplação, a fruição,
as análises, os questionamentos, a criticidade e possíveis reformulações, dependem de quem observa, sendo
que acontecem da mesma forma ao longo do tempo, e tanto são individuais como coletivas, reverberando
de forma particular em todas as pessoas.

O ato de narrar não se restringe a uma descrição de fenômenos, cenários, relações ou


acontecimentos. Narrar é também um tipo de interpretação [...] Num sentido amplo,
podemos dizer que a narrativa tem como foco compreender a experiência humana
(MARTINS; TOURINHO, 2009, p. 2).

Para que haja narrativas, existem narradores e momentos por eles vivenciados, onde aparecem
questões tanto ontológicas como epistemológicas sobre a cultura e seus protagonistas.

Investigar a vida, por meio das narrativas próprias e das de outras pessoas, surge como base para as
possibilidades de reconstrução e de transformação do mundo e de suas relações. Por meio dela é possível
explicar a subjetividade dos indivíduos, seu entorno cultural e social, dando sentido às experiências. Nesse
contexto, a pesquisa narrativa, como ampliação de conhecimento, oportuniza a compreensão das múlti-
plas maneiras de interpretação. Assim, é vista como um caminho de investigação, e é associada ao campo
educacional, pois possibilita a professores e alunos, de quaisquer níveis de ensino e áreas do conhecimento,
debater importantes aspectos da dimensão das visualidades. A narrativa é uma forma de caracterizar os fe-
nômenos da natureza humana, como explicam Connely e Clandinin (1995 p. 11), reforçando a ideia do uso
da narrativa como experiência educativa das realidades humanas.

Tanto professores como alunos podem transitar entre os possíveis caminhos da pesquisa narrativa
como contadores de histórias e seus personagens, de tal maneira que existe uma reciprocidade tanto entre
os que contam e compreendem, como entre os que ouvem e transformam. As experiências individuais ou
coletivas estarão em constante movimento, de forma que, pelas investigações e análises, entre os sentidos
e percepções, interpretação e expressão, o processo de pensar a imagem, enquanto narrativa, também se

223
torna uma potencialidade nas discussões sobre os caminhos das artes nos espaços educacionais. A pesquisa
narrativa ultrapassa as diferentes disciplinas, produzindo relações entre os saberes, fazendo-se um campo
transdisciplinar propício nos currículos escolares, permitindo a reflexão sobre as múltiplas maneiras de
olhar, entre as distintas realidades culturais, onde as questões sobre o tempo e o espaço estão presentes.
(HERNÁNDEZ, 2011; MARTINS, 2007).

Experimentando à prática do ver

Pensando nas suas potencialidades, apresento alguns exemplos de produções que podem contribuir
para as reflexões sobre o mundo da imagem como possibilidade de narrativa, gerando diferentes considera-
ções sobre o mundo e, principalmente, sobre o sujeito que sente e percebe, desenvolvendo e ampliando seu
conhecimento diante das narrativas.

As narrativas escolhidas diferem em sua linguagem e aparecem em momentos distintos do meu caminho
na docência. Contudo, representam experiências significativas em meu percurso, contribuindo de forma
poética nas relações entre a arte e a educação e a maneira sensível e reflexiva de ver o mundo.

Neste artigo, apresento o cinema, as imagens fotográficas e as palavras, que desencadeiam as mais
diferentes interpretações. O documentário “A Janela da Alma” foi visto pela primeira vez na disciplina Es-
tética: a construção do sensível, no curso de Especialização em Arte e Cultura: linguagens da educação, e
revisto em 2017, ainda como impulsionador de possibilidades reflexivas aos sentidos. As relações foram
intensas, numa percepção íntima e emocional sobre as causas do ver - onde o olhar e o enxergar são diferen-
temente compreendidos pelas pessoas - e, numa relação estreita entre a construção do olhar e o desenvolvi-
mento de sensibilidade no meu cotidiano e dos meus alunos.

Como uma maneira de construir diferentemente o olhar, trago ainda uma pequena história do livro:
“O livro dos abraços”, do escritor Eduardo Galeano. Este, também apresentado num curso, na disciplina de
Estudos Comparados entre Literatura e Artes Visuais.

Eduardo Galeano é um contador de histórias. Esse seu livro foi publicado no ano de 1989, e traz
entre as memórias das histórias descritas, toda a sensibilidade das percepções dos pequenos momentos vi-
vidos por pessoas distintas, mostrando outras maneiras de encarar a vida, olhando-a de forma simples, com
momentos para guardar e refletir.

Nas escolhas metodológicas, entre tantas imagens e artistas, procuro levar aos meus alunos, artistas
que mostram diferentes maneiras de olhar para si e para o mundo. Assim conheci a fotógrafa Francesca
Woodman, através das minhas pesquisas na internet, no ano de 2014. A artista, na década de 70, mostrava
de forma reflexiva, as possibilidades de construção da identidade por meio do autorretrato.

Trabalhar em sala de aula com essas perspectivas oportunizam a construção cultural do olhar, relati-
va à forma de ver e ver-se. Assim como as linguagens são distintas, as narrativas podem ser apresentadas de
maneiras diferentes, e nem por isso serem desiguais em sensibilidade e atributos poéticos. Elas serão descri-
tas partindo de um olhar particular, sem, contudo, relatar significados, pois estes certamente são diferentes
aos olhos de quem participa.

O primeiro exemplo é o documentário “A Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho, de 2001, que
fomenta as problemáticas sobre os modos de ver, tão fortemente colocados entre os limites do olhar, do ver,
do querer ver, do que preciso e do que realmente vejo, bem como a minha imaginação diante do mundo.

Os personagens desse documentário foram entrevistados e abordam questões profundas que ultra-
passam as reflexões sobre a sensibilidade, remetendo à capacidade do pensamento diante dos limites huma-

224
nos. São realidades distintas, mas próximas ao olhar de quem assiste. O reconhecimento emocional durante
a narrativa é alimentado pela exploração de todos os sentidos, interrogando-nos acerca de nossos conceitos
e valores, nossa formação que, até mesmo instintivamente, reproduzimos e transmitimos às outras pessoas.
Sugere novos questionamentos sobre assuntos distintos, principalmente no que se refere à multiplicidade
dos olhares e suas perspectivas na vida e nas suas relações.

Uma das interpretações possíveis para o filme é que cada sujeito se forma por meio de suas capa-
cidades, e nem sempre a visão faz parte da sua realidade. Contudo, outras interpretações são possíveis a
partir do olhar de outro expectador. Aqui, todos os sentidos são eleitos como fundamentais tanto quanto a
possibilidade de enxergar, sendo fundamental também, para a formação do sujeito, o desenvolvimento da
sua imaginação e criatividade.

Não é possível assistir ao documentário sem desencadear uma conexão entre as perguntas, as possibilidades
de respostas e as reflexões sobre as relações interpessoais e culturais, tanto na formação do sentido físico e
emocional do ver, das relações na construção do sujeito, como no mundo e sua história. O documentário
concentra-se sobre as questões de sensibilidade, e nos dá uma primeira ideia do assunto partindo do seu
título, que faz referência aos olhos como as janelas por onde a alma vê o mundo e o mundo a vê. Entre essas
possibilidades de olhar, aplicam-se todas as experiências narradas pelos sujeitos que buscam alternativas
para o conhecimento de si e do mundo.

O segundo exemplo é do escritor Eduardo Galeano, com sua obra “O livro dos abraços” (2012),
que trata, nas suas várias histórias, sobre o encantamento nas relações entre pessoas, suas reflexões, relatos
e memórias - um mundo de possibilidades entre o sentir, refletir e o enxergar. O capítulo selecionado foi
“A função da arte/1”, que, de forma notavelmente poética, nos mostra a relação entre o ato de ver, perceber,
conhecer nas relações entre a arte, nas ações humanas e na construção do sujeito no mundo:

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse
o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, espe-
rando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois
de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do
mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente
conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: — Me ajuda a olhar! (GALE-
ANO, 2012, p.12).

A partir desse capítulo, é possível levantar algumas questões: Qual a possibilidade de descobrir algo
sem a capacidade de olhar? Olhamos através do quê? Do olho, da mente ou da alma? Quais são os limites do
ver? As pessoas podem auxiliar as outras na capacidade de olhar? Esses questionamentos apenas sugerem
algumas reflexões, pois as respostas são determinadas pelas experiências pessoais.

Essa poética está centrada na relação entre as pessoas com o objeto, e com suas capacidades de
interação entre si, com os outros e com os objetos. Por ser apenas escrita, ela desencadeia nos leitores uma
gama de imagens e de relações entre a história e suas experiências do sentir humano. Nas possibilidades de
interpretação, estão presentes as reflexões da experiência, podendo suscitar novas ideias, incluindo criações
imagéticas da narrativa, tanto mentais como pictóricas.

O terceiro e último exemplo são as imagens da fotógrafa Francesca Woodman (1978 e 1976), que
escolhe entre as possibilidades da fotografia, o autorretrato. Essa maneira de retratar a si, e que tem como de-
finição, dentro da história da arte, a intenção de reconhecer-se, como estudo da anatomia, mostra também
a busca pela identidade que muda ao longo das experiências de vida (GOMBRICH, 1999).

225
Figura 1: ‘Self deceit 1’, Woodman, Roma, 1978.

A artista se apropria da linguagem fotográfica em seus trabalhos com autorretratos que revelam
uma condição de dúvida referente a sua própria imagem, uma maneira distinta de ver-se e de mostrar-se ao
outro. Na figura 1, ela se vê refletida no espelho, este objeto que não devolve apenas aquilo que se vê, como
cópia do real, mas também diz o que se vê, através da subjetividade desta ação.

A fotografia como um meio artístico é uma escolha pictórica e traz como intencionalidade a possibilida-
de de copiar e transmitir seus vários sujeitos em distintas interpretações, em espaços-tempo diferentes. A narra-
tiva imagética pode nos levar a questionar como olhamos para o nosso reflexo e como os outros nos enxergam.

Figura 2: Da série ‘Space 2’, Woodman, Providence, Rhode Island, 1976.

Na figura 2, a artista não é apenas uma pessoa, ela se funde como organismo vivo ao cenário ar-
tificial, o que pode apontar para um questionamento também sobre nosso papel no mundo e nas nossas
relações. Em ambas as figuras, o pensamento sobre a construção do olhar e suas reflexões pode suscitar
hipóteses sobre o papel que tenho e que exerço no mundo, quem sou, onde estou, assim como sobre as rela-
ções, as dúvidas a respeito do que é pré-estabelecido.

226
Estes exemplos se fazem narrativas, pois têm a capacidade de contar as histórias das pessoas e de seu
mundo; como afirmam Connely e Clandinin (1995, p. 15), “são fenômenos da cultura material, dos costu-
mes, do folclore, da história oral [...] uma observação que faz conexão com a pesquisa narrativa”. Podemos
questionar: como eu vejo? Como isso me toca? Nelas, a experiência do olhar é causadora das mais diversas
realidades, impulsionadora de verdades únicas e particulares, representadas numa sensibilidade autoral e
autobiográfica, que diz quem são os outros, ao mesmo tempo que reitera nossas perspectivas de autotrans-
formação.

As narrativas aqui apresentadas são apenas uma possibilidade na perspectiva de um trabalho na


esfera educacional. Com esses exemplos, podemos entender que a construção do olhar, da ação do ver é
cultural, permeada pela história, impregnada pelas relações entre as pessoas, com a natureza e suas condi-
ções de vida.

Considerações finais

Este trabalho buscou refletir sobre as implicações e contribuições da pesquisa narrativa, a partir dos
debates de alguns autores e análises de três exemplos narrativos pictóricos e escritos (vídeo, texto, fotografia).

Vimos que o desenvolvimento do conhecimento perpassa as experiências de visualidade. A elabora-


ção do sentido da vida está ligada a um conjunto de ações, em que os sentidos e suas percepções estão vin-
culados ao pensamento que reflete, interpreta imagina, cria e age, num movimento contínuo possibilitando
as relações com os outros, com os objetos, com a natureza e com seu próprio ser.

Os aspectos da cultura estão intimamente ligados à formação do homem e de seu entorno. Não
existe cultura sem a ação do homem, ela é reveladora do mundo e das concepções da vida, pois, conforme
Duarte Junior (1988, p. 52): “Na cultura a vida adquire sentido”. Assim, as narrativas que são culturais, visto
refletirem a condição humana, são interpretações dos momentos vividos, refletindo as ações e reflexões,
e podem ser geradas no meio exterior, pelo outro, a partir de um fenômeno da natureza ou criada por ele
próprio. É ver e ver-se na ação, ressignificando-a a qualquer momento.

Pensar nas imagens desencadeadas pelo pensamento e em suas visualidades como possibilidade
pedagógica faz com que as discussões sobre os caminhos educacionais nos currículos escolares, de maneira
geral e, especialmente, nas artes, possam ser modificadas, trazendo momentos da história da arte, bem como
obras em linguagens distintas como fonte de fruição, contextualização com o momento presente, produção
individual ou coletiva, atribuindo novos modos de ver, pensar e fazer, contribuindo para novas práticas in-
vestigativas no âmbito escolar, estabelecendo diálogos entre os sujeitos (HERNÁNDEZ, 2011).

Concluímos que o estudo das narrativas na educação é uma possibilidade, uma oportunidade para
o entendimento das diferentes realidades e para a construção efetiva de uma sociedade mais justa e solidá-
ria. Quando escolhemos algum momento, escolhemos também como representá-lo, produzimos maneiras
diferentes de olhar, dando sentido às questões da vida, do seu cotidiano e das nossas relações.

Finalmente, é importante destacar que para este trabalho foram selecionadas algumas referências
de narrativa que podem servir como objeto de investigação e análise. No entanto, outras referências, tais
como a língua de sinais (Libras), as imagens tradicionais e da iconografia produzida ao longo do tempo,
assim como outros gêneros literários e visuais (tirinha, propaganda, gibis, folders, outdoors, animações
etc.) podem vir a ser temáticas de futuras reflexões e estudos, bem como a própria produção de imagens e
narrativas.

227
Referências

BARBOSA, A. M.  A imagem no ensino da arte:  anos JOLY, M. Introdução à análise da imagem. Campinas,
1980 e novos tempos. 8. ed. 2. reimp. São Paulo: Pers- SP: Papirus, 1996.
pectiva (Coleção estudos, 126), 2012.
MARTINS, R. TOURINHO, I. Pesquisa narrativa: con-
BUORO, A. B. O olhar em construção: uma experi- cepções, práticas e indagações. In: Anais do II Congres-
ência de ensino e aprendizagem da arte na escola. São so de Educação, Arte e Cultura - CEAC. Santa Maria:
Paulo: Cortez, 1998. 2009. pp. 1-12.
CONNELY, M. CLANDIMIN, J. Relatos de Experiencia _____________. A cultura visual e a construção social
e Investigación Narrativa. In LARROSA, J. Déjame que da arte, da imagem e das práticas do ver. In: OLIVEI-
te cuente. Ensayos sobre narrativa y educación. Barcelo- RA, Marilda Oliveira de. (Org.). Arte, educação e cultu-
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DUARTE JUNIOR, J. F. Fundamentos estéticos da edu- MITCHELL, W. J. T. Tradução de Luciana Marcelino.
cação. Campinas, São Paulo: Papirus, 1988. Showing Seeing* Uma crítica da Cultura Visual. Disponí-
GALEANO, E. O livro dos abraços. Porto Alegre: vel em: <https://pt.scribd.com/document/273416782/
L&PM, 2012. Showing-Seeing-W-J-T-Mitchell>. Acesso em 15 nov.
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GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro:
LTC, 1999. WOODMAN, F. ‘Self deceit 1’, Roma, 1978. Fotografia.
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HERNÁNDEZ, F. A cultura visual como um convite à
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228
PROCESSOS CRIATIVOS – TRAJETÓRIA
NO CURSO DE ARTES VISUAIS
Raylla Brito Vieira
UFPE/UFPB

INTRODUÇÃO
Neste trabalho, apresento meu processo criativo realizado durante o Curso de Licenciatura em Artes
Visuais da universidade Regional do Cariri. Nele apresento uma série de imagens realizadas durante o curso
e busco dialogar com produções de outras artistas contemporâneas.

Ao longo do texto, trago as memórias que me motivaram a criar e que fundamentaram meus pro-
cessos criativos. Apresento quais os procedimentos utilizados na minha produção artística e como foi pen-
sado cada trabalho.

Minha produção artística tece uma relação com as minhas experiências da infância, adolescência
e das questões que me inquietam enquanto mulher. Tento nesse processo criativo dialogar com as minhas
inquietações e angústias sobre o corpo feminino, o meu corpo. Os trabalhos apresentados são experimentos
com fotografia e videoarte. E por fim, apresento a performance realizada durante o processo de escrita do
meu Trabalho de Conclusão de Curso.

EXERCÍCIOS EM VIDEOARTE E FOTOGRAFIA

Na minha produção artística eu começo a dialogar com as minhas inquietações e angústias sobre os
padrões de beleza e os estereótipos que são determinados pela mídia. Fui me convencendo que para realizar
esta proposta eu deveria usar o meu próprio corpo como espaço de investigação a ser explorado. A decisão
de expor meu corpo nos experimentos foi muito difícil, pois além de me considerar uma pessoa tímida,
reconheço a influência da educação que nós mulheres recebemos desde nossa infância, na qual se impõe a
forma de como devemos nos comportar diante da sociedade, na qual não devemos expor e nem conhecer
o nosso próprio corpo. Para chegar a essa decisão era preciso enfrentar vários medos e incertezas, mas era
preciso me libertar. Ainda tenho certas limitações e acredito que isso é um processo, em que vou me cons-
truindo como artista.

Então resolvi trabalhar com a fotografia e vídeoarte, a partir destas linguagens das Artes Visuais
consegui transformar minhas ideias em imagens. Essas duas linguagens têm sido muito utilizadas pelos
artistas que tratam das questões do corpo na contemporaneidade, segundo a autora Lucia Santaella:

229
Quando se fala na relação do vídeo com o corpo, via de regra se pensa exclusivamente no
conteúdo do vídeo, isto é, no assunto que o vídeo visa explorar. Se esse assunto diz respei-
to ao corpo, então se reconhece aí uma relação da arte videográfica com a corporeidade.
Sob esse aspecto, certamente, não só o vídeo, mas também a fotografia e o filme passaram
a explorar, de modo cada vez mais acentuado, desde dos anos 70, temas inspirados por
perspectivas culturais transformativas do corpo, por exemplo, como novas visões sobre
gênero e identidade. (SANTAELLA, 2014, p. 70).

Provocada a continuar com meus processos, começo a pesquisar artistas que me ajudariam a com-
preender melhor esse tema explorado nas Artes Visuais e que poderiam ser usadas como referências nos
meus trabalhos.

Trago como exemplo o vídeoarte “Identidade” (2003) (Imagem 01) de Cris Bierrench, no qual a
artista questiona os comportamentos que a sociedade exige das mulheres: a feminilidade. Através do uso
de maquiagem e com cuidado com o cabelo a artista performatiza sua feminilidade, até que chega em um
ponto no vídeo que a mesma utiliza uma tesoura para cortar seus cabelos, se desfazendo totalmente deles.

Imagem 01: Cris Bierrench “Identidade” (2003), Frames.

Influenciada tanto por esse trabalho, quanto pelo registro da performance de Marina Abramovic,
“Art must be Beautiful; Artist must be Beautiful” (1975), decido criar um vídeo intitulado de “Excessivo”
(2015) (Imagem 02). Neste experimento eu vou me maquiando e aos poucos os movimentos vão se tornan-
do compulsivos.

Imagem 02: “Excessivo” (2015); frames de vídeo.

230
Tento demonstrar como muitas vezes os cuidados com o corpo se tornam exagerados. Não
quero com esse experimento fazer uma crítica ao uso de maquiagem ou aos produtos cosméticos, mas
à forma de como esses produtos muitas vezes são usados e sobre como isso tem interferido na vida de
algumas mulheres. Me aproprio desses produtos de embelezamento na busca de compreender porque é
tão importante esconder nossa marcas e imperfeições, e como isso tem se tornado algo muito relevante
no cotidiano de algumas mulheres, que muitas vezes não saem de casa sem um tipo de maquiagem,
como batom ou lápis de olho, e se sentem bem com seu próprio corpo quando não estão usando algum
cosmético.

Acredito que o problema não está no uso da maquiagem e sim quando somos submetidas a ter uma
boa aparência para afirmarmos nossa feminilidade e como isso implica na forma como somos tratadas pela
sociedade, por conta da nossa aparência.

A artista inglesa Jenny Saville, em parceria com o fotógrafo Glen Luchford, produziu uma série fo-
tográfica intitulada “Closed Contact” (1995-1996) (Imagem 03), na qual a artista posou como modelo. Para
a produção dessa série, a artista usa como inspiração o modo de como o corpo feminino está implicado nos
procedimentos cirúrgicos.

Imagem 03: Jenny Seville, da série “Closed Contact” (1995-1996).

Nessa série a artista distorce sua autoimagem para tratar das questões das cirurgias plásti-
cas. Segundo Luana Saturnino Tvardovskas a artista em suas obras “reavalia o universo das cirur-
gias plásticas” (TVARDOVSKAS, 2008, p.102).
Pensando nos efeitos negativos que as cirurgias plásticas podem causar nas pessoas que se
submetem a esses procedimentos, decidi criar uma série intitulada “Distorções 1 e 2” (Imagens
04,05), na qual faço sobreposições de imagens fotográficas.

231
Imagens 04, 05: Raylla Brito “Distorções 1 e 2” (2015). Tamanho variados, imagem digital.

Primeiramente criei autorretratos, utilizando na minha face gases e esparadrapos e com uma caneta
hidrográfica rabisco linhas que se assemelham às marcações feitas no corpo de quem passa por esses proce-
dimentos cirúrgicos. Depois usando um software de edição de imagens faço sobreposições dessas imagens,
com a intenção de distorcer minha autoimagem, para levantar questões da obsessão na busca de um ideal.

Imagem 06: Raylla Brito “Autorretrato 1” (2016).

Nesse autorretrato (06) uso a fita métrica, um instrumento de medida flexível envolta dos meus bra-
ços, pretendendo trazer à tona uma discussão ao culto à magreza e ir contra este padrão de beleza imposto e
aceito pela sociedade. Segundo Lipovetsky “a estética da magreza ocupa obviamente um lugar preponderan-
te no novo planeta beleza” (LIPOVETSKY, 1997 p. 128). Tento contrapor a ideia de que precisamos moldar
o nosso corpo, para nos adequarmos a um padrão de beleza estabelecido.

232
Também pensando nos aprisionamentos do corpo feminino, como afirmam xs autorxs Vilhena,
Medeiros e Novaes “Se antes as roupas as aprisionava, agora se aprisionam no corpo - na justeza das pró-
prias medidas”, (VILHENA, MEDEIROS, NOVAES, 2005, p.138) em Autorretrato 1 tento questionar esses
aprisionamentos da ditadura da beleza e do corpo feminino.

A seguir a apresento uma performance realizada por mim durante a escrita do meu trabalho de con-
clusão de curso, esse trabalho surge da necessidade de ampliar minhas produções e meus processos criativo
em arte, assim uso a linguagem a da performance e decubro novas possibilidades de produções.

PERFORMANCE: VÔMITO DA ARTISTA

A obra em processo de instauração, me faz repensar os meus parâmetros, me faz repensar


minhas posições. O artista, às voltas com o processo de instauração da obra, acaba por
processar-se a se mesmo, coloca-se em processo de descoberta. Descobre coisas que não
sabia antes e que só pode ter acesso através da obra. ( REY, 2012, p. 123-124)

A ideia de fazer uma performance surge das minhas inquietações e incômodos. Desde criança que
ouvia meus familiares dizerem que eu precisava emagrecer, que eu deveria comer menos, que eu iria ficar
feia e gorda. Isso provocou em mim a vontade de ser magra, mas nas diversas tentativas de emagrecimento
eu nunca conseguia, acredito que isso nunca foi meu foco, eu só queria ser eu.

Nós mulheres vivemos ao longo da vida com uma diversidade de restrições sobre os nossos corpos
e não nos damos conta que isso restringe nossas decisões pessoais. Isso é tão forte em nossa cultura que não
percebemos que temos direito de escolha sobre os nossos corpos.

A ação performática intitulada “O vômito da artista” (2016), (Imagem 07), realizada no Centro de
Artes com orientação da professora Raquel Versieux, vislumbrava chamar a atenção para a questão dos
transtornos alimentares, do culto à magreza e dos efeitos que são causados pela obsessão com um corpo
magro atravessado pela obsessão com comida. Também tento tratar sobre a compulsão alimentar e a gula
que tem gerado o consumo exacerbado de alimentos.

Imagem 07: Raylla Brito. Performance “O vômito da artista” (2016).

233
Durante a preparação para a performance fiquei na sala à espera do público em um momento de
concentração, para melhor realização da performance.

A performance é dividida em três momentos, no primeiro momento começo a sentir o meu corpo
com o toque, na tentativa de moldá-lo, de criar um novo corpo, de esconder aquilo que é meu. Já no segun-
do momento uso a fita métrica para pressionar minha barriga na busca de moldar e mostrar a necessidade
de se adequar à um padrão de beleza, ditado pela magreza. Em seguida, no terceiro momento, começo a
comer uma porção composta de 5 kg de batatas fritas, dispostas sobre uma bandeja, nessa ação de comer,
vomitar e recomer compulsivamente (Imagem 08).

Imagem 08: Raylla Brito. Performance “O vômito da artista ” (2016).

O vômito é uma forma de representar não somente os distúrbios alimentares, mas uma forma de
mostrar meus questionamentos sobre o que é imposto às mulheres na sociedade. O meu vômito é uma for-
ma de protesto contra todas às imposições ditadas às mulheres, desejo de colocar para fora aquilo que não
quero, aquilo que me incomoda, aquilo que não me faz bem.

Essa experiência de pensar uma performance foi um processo de me empoderar, criar e recriar, de
desconstrução do meu pensamento sobre o meu corpo, foi um modo de pensar o corpo feminino diferente-
mente. Por que então usar meu corpo? Por que ele é meu! E é a partir dele que me projeto no mundo, é nele
que sinto os reflexos de uma sociedade, que quer ter poder sobre ele. Isso manifestou em mim a vontade de
falar pelo corpo, pelo gesto, pela ação. Colocar meu corpo em ação performática é compreender que ele está
sujeito a qualquer situação de risco.

A experiência foi muito importante para mim, foi um processo de descobertas e de compreender os li-
mites do meu corpo, de entender-me como artista, mulher, criadora e negra. Acredito que esse é o poder que a
arte tem, de provocar novos olhares, pensamentos, desconstruções sobre o mundo e as questões sociais. Assim
também a arte provoca o público, que ao ter contato com a obra de arte, reage de diversas formas.

Ao término da performance fui surpreendida com um abraço de uma garota que se dizia muito
emocionada, por ter visto no meu trabalho a representação de muitas pessoas que passam por transtornos
alimentares. Assim pude compreender de forma mais clara a importância da participação do público diante
da obra de arte e qual o nosso papel enquanto artista.

234
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao ingressar no Curso de Licenciatura em Arte Visuais, tinha uma relação muito distante com o
mundo das artes, pois não sabia quase nada sobre a arte e sua história. Mesmo assim decidi continuar no
curso e acabei me encantando pelas disciplinas, pelo fazer artístico e pela a história da arte. O curso me
proporcionou muitas experiências, descobertas e aprendizagens.

Os caminhos percorridos no Curso de Licenciatura em Arte Visuais, é de fundamental importância


na minha formação, nos meus processos criativos e na desconstrução do meu modo de pensar sobre o corpo
feminino e as condições das mulheres na sociedade.

Essa pesquisa foi relevante para minha transformação como mulher negra e artista. Assim pretendo
continuar com pesquisas que abordem essa temática, pois esse campo de pesquisa é muito amplo e creio que
novas questões irão surgir.

Meus trabalhos aqui apresentados, partem das minhas inquietações e angústias. Tento nos meus
processos criativos dialogar com aquilo que me incomoda. Nos experimentos tento apresentar o meu corpo
feminino contrapondo às representações das mulheres na mídia e aos padrões de beleza feminina que são
enaltecidos na sociedade.

Começar a usar o meu próprio corpo nos meus experimentos para discutir minhas inquietações
foi uma experiência libertadora, apesar de achar que ainda preciso deixar certos limites e medos de lado.
Pois acredito que isso faz parte da minha prática artística, tendo em vista que ainda estou em processo de
formação e amadurecimento.

Produzo trabalhos focando na linguagem fotográfica e espero que elas se tornem uma produção
provocadora de sentidos e discussões acerca do tema e que a partir desse estudo, outros questionamentos
possam surgir nos meus processos de investigações com um meio de produção nas Artes Visuais.

REFERÊNCIAS
LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: permanência e TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Figurações femi-
revolução do feminino. São Paulo: Gallimard, 1997. nistas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda
Magalhães e Rosângela Rennó. 2008. 220 f. Dissertação
SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintoma da (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciên-
cultura. São Paulo: Paulus, 2004. cia Humana, Universidade Estadual de Campina - UNI-
REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da CAMP, 2008.
pesquisa em artes. In: Brites, Blanca; Tesseler, Elida (org) VILHENA, Junia de. MEDEIROS, Sergio. Novaes, Joana
O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em de Vilhena. A violência da imagem: estética, feminino e
artes plásticas. Porto Alegre: E. Universidade/UFERGS, contemporaneidade. Revista Mal-Estar e Subjetividade,
2002, p.123-140. Fortaleza, n.1, p. 109-144 março, 2005.

235
PROCESSOS ARTÍSTICOS COMPARTILHADOS
COM CRIANÇAS: PROVOCAÇÕES DO
PROCESSO ARTÍSTICO DA PERFORMANCE
PARA O ENSINO DAS ARTES
Rita Tatiana Gualberto de Almeida/ Rita Cavassana (UFRN)

O interesse em investigar performance na infância nasceu em 2012, quando comecei a traba-


lhar como arte educadora no projeto do Governo do Estado de São Paulo Fábrica de Cultura185, no qual
desenvolvi atividades nas linguagens de dança contemporânea com crianças e adolescentes. Neste período,
pude construir junto aos alunos modos para experimentar e provocar novos olhares sobre o mundo através
da arte.

Minha função era arte educadora na linguagem de Dança Contemporânea todavia, sempre a mescla
de procedimentos com outras linguagens. Nos encontros, motivada pela minha formação híbrida, propu-
nha procedimentos, que se relacionavam com as Artes Visuais, Literatura, Video e o Teatro, as linguagens
foram complementares para metodologia dos processos em ateliê.

No planejamento havia a preocupação de que o corpo estivesse como motivador e propulsor, para
aqueles meninos e meninas explorarem e experimentarem suas potências. A compreensão de corpo é vista
de forma abrangente que não apenas fisico, mas o pensamento que aponta para um perspectiva que possibi-
lita mover redes e relações, realizar conexões e traçar novos desenhos de afectos, que desperte a curiosidade
pela investigação e não apenas pela repetição de códigos e padrões.

Nos encontros me percebia muito mais como uma catalisadora de proposições e processos artísticos
emancipatórios, com intuito de que os aprendizes, possam vivenciar experiências estéticas ligadas ao seu
cotidiano, descobrir a potência do seu corpo singular e ser produtor de conhecimento. A questão posta não
é apenas a produção da dança ou incentivar novas dançarinas e coreógrafas mas, empoderar novos corpos
que talvez queiram ser enfermeiras, advogadas, médicas, professoras, psicólogas, bombeiras, etc.

As experiências selecionadas eram de algum modo ligadas a artistas que eram referências para
minhas criações artísticas, por tanto havia uma contaminação entre o eu artista e a educadora. Estas pro-

185. As Fábricas de Cultura são um programa do Governo do Estado de São Paulo que leva arte, cultura e cidadania àqueles que mais necessitam.
Instaladas em regiões socialmente críticas da capital paulista, as Fábricas de Cultura dão oportunidades a jovens e crianças de terem acesso a arte
de qualidade em modernos prédios de aproximadamente seis mil m², abrindo as portas para uma nova realidade em suas vidas. As crianças e
adolescentes, nas Fábricas de Cultura, frequentam aulas de iniciação artística nas áreas de música, teatro, circo, dança, multimeios (filmagem e edi-
ção de vídeos), xadrez e artes plásticas, cada uma com várias modalidades, nos mais diversos estilos. Disponível em : <<http://www.cultura.sp.gov.
br/portal/site/SEC/menuitem.a6fb3609f46434416dd32b43a8638ca0/?vgnextoid=de8f810c04411410VgnVCM1000008936c80aRCRD&vgnextchan
nel=de8f810c04411410VgnVCM1000008936c80aRCRD#.WUV75scwyON >>(Acesso em : 17/062017)

236
postas tinha em sua características o hibridismo entre as linguagens, propunha interferências no espaços
e relação com o cotidiano da comunidade, na qual os alunos estavam inseridos. No processo percebia
que os modos de organizar os planos das aulas e a metodologia, eram constantemente modificados pois,
considerava a opinião e a reflexão realizada em aula com os alunos fundamental para instalar o processo
criativo dos ateliês.

Neste contexto da arte educação aos poucos fui abrindo espaço para minha investigação artísticas
e nos estudo desenvolvido até o momento, no mestrado e artes ciências do departamento de artes ciências
na UFRN, pude levantar teorias e conceitos chaves que pudessem conduzir o estudo; cheguei a três impor-
tantes aspectos: a Criança, a Performance e o Compartilhamento, esta tríade é um tanto desafiadora e para
tratar desse arcabouço, alguns campos teóricos de referências como a antropologia da criança, antropologia
da performance e o conceito da partilha do sensível; são importantes âmbitos teóricos para compreender as
relações e reflexão que proponho. Posto isso a partir desse ponto irei apresentar de forma breve estas bases
teóricas.

A criança não é uma figura a ser estudada ou compreendida contudo, reconhecida como agente
propositor, transformado-a em artista participante da cena performática e das experiências. Dessa forma
a ideia instituída é que “As crianças são organismos e, como tais, são agentes da sua transformação. São os
adultos que promovem o meio onde as crianças crescerão, mas eles não determinam seu crescimento.” (PI-
RES,2010, p.144)

O critério para referência a indicação de faixa etária, quando me refiro a criança nesta escrita, está
relacionada a ideia de que a “Instituição essencial na determinação da infância e dos respectivos limites
etários é a escola.” (PINTO;SARMENTO,1997, p.05). Assim a criança que frequenta a escola, está inserida
nesta pesquisa.

O interesse sobre os estudos da infância tem tomado importância no debate social e espaço cada
vez maior nas academias, contudo há uma significativa preocupação sobre o porque da emergencia deste
debate posto que:

As crianças são tanto mais consideradas, quanto maisdiminui o seu peso no conjunto
da população. Este indicador demográfico,particularmente presentenos países ociden-
tais, por efeito coordenado do aumento da esperança de vida e da regressão da taxade
fecundidade, constitui, na verdade, o principal e decisivo factor da importância cres-
cente dainfância na sociedade contemporânea. Dir-se-ia que o mundo acordou para
a existência das crianças nomomento em que elas existem em menor número relativo.
(PINTO;SARMENTO,1997, p.02)

Os indicadores demográficos da população infantil como destaca a citação a cima, não está rela-
cionado, as campanhas de controle de natalidade mas, a vulnerabilidade que esta população sofre ao longo
de anos com guerras, a negligência do Estado com a saúde e educação, o alto índicede desigualdade social
que leva ao trabalho e exploração infantil. Apesar de recorrentemente discutidos pela sociedade, os índices
de vulnerabilidade infantil e jovem ainda estão elevados conforme aponta as agencias responsáveis pelos
direitos das crianças e adolescente.

Para apurar os debates sociais já citados acima sobre a infância, recorri aos estudos da antropologia
criança que partir do século XX, com as mudanças na compreensão no que refere-se aos conceitos de cul-
tura e sociedade, destacou-se modificações importantes em três aspectos que contribuíram para o entendi-
mento da criança como agente de ação, como aponta a antropóloga Clarice Cohn:

237
Ao contrário de seres incompletos, treinando para a vida adulta, encenando papéis sociais
enquanto são socializados ou adquirindo competências formando sua personalidade so-
cial, passam a ter papel ativo na definição de sua própria condição. Seres sociais plenos,
ganham legitimidade como sujeitos nos estudos que são feitos sobre elas, essas mudanças
afetam os estudos antropológicos em três aspectos: a criança como ator social, a criança
como produtor de cultura e a definição social da criança. (COHN,2005,p.21)

Como artista da performance percebo que a antropologia da criança apresentou-se como um cam-
po de pesquisa no qual, podeauxilia e estabelecer parâmetros que dialogam com o pensamento da lingua-
gem da performance, pois há um ponto de convergência entre a criança e o performer. Eles são duplamente
agente da ação, para tanto recorro ao pensamento de que “(…) a criança é performer de sua vida cotidiana,
suas ações presentifica algo de si, dos pais, da cultura ao redor, e também algo por vir - e, se olhada nesta
chave, poderá desenvolver-se rumo à assunção sua responsabilidade e independência, no decorrer dos pri-
meiros anos de sua presença no mundo(…)”(MACHADO, 2010,p.23).

As artes contemporâneas e os hibridismo de linguagem são fomentadores de experimentos abertos


a novas possibilidades, que não designa oque é certo oque é errado, oque é feio ou bonito, mas, opera na
presença do corpo em ação e na imaginação sem a representação do real ipsis litteris,que relaciona-se com
a maneira que a criança aprofunda seu poder criativo.

Portanto a Performance é uma linguagem difícil de nomear, contudo aqui ela é entendida como
uma linguagem artística que é capaz de fomentar diálogos entre diferentes campos das artes, desse modo
busco ir de encontro à autores que dialogam com a antropologia da performance. Essa escolha ocorre pois, o
pensamento dos estudo da performance, possibilita entender a arte da performance como um acontecimen-
to, aproximando o fazer artístico da vida cotidiana. Apoiando-se nos estudos da performance e no teórico
Richard Schechner, que diz:

Performance é um termo inclusivo. Teatro é somente um ponto num continua que vai
desde as ritualizações dos animais (incluindo humanos) às performances na vida coti-
diana- Celebrações, demonstrações de emoções, cenas familiares, papéis profissionais e
outros, por meio do jogo, esportes, teatro dança cerimônias, ritos- e às apresentações es-
petaculares.(SHECHECHNER,2012,p.18)

Os estudos da performance aproximam as relações sociais do fazer artístico, o interesse não esta só
na cena, no palco, ou na arte mercadológica porém, em todos os espaços, assim a performance está na fresta
que encontramos em nossas vidas, no cotidiano como diz Schechner :

O campo acadêmico dos estudos da performance diz: não vamos estudar apenas o teatro-
ou qualquer outra forma de performance formal: dança, musica e outros- mas, estudar
também as ruas, lares, os escritórios - a partir do exame da vida cotidiana. Vamos estudar
também, a diversão popular: os esportes, os jogos, os filmes, a internet todo o tipo de ati-
vidade.(SCHECHNER;ICLE;PEREIRA,2010,p.29)

Partir dos pressupostos da antropologia da performance possibilita traçar relações entre o social e
tradição, isto posto, a performance pode adentra o quintal onde as crianças brincam, no playground da pra-
ça, nopátio da escola e as salas de aulas, somando-se assim a pedagogia da performance, e a figura híbrida
do professor performer como uma agente disparador de propostas.

238
A palavra performance refere-se a uma forma artística existente. A performance, como a
vida e toda a experiência, é complexa. à medida que vamos adquirindo instrumentos para
ler a performance, passamos a nos dar conta de que esse fenômeno é múltiplo, polissêmico
e misturado. Mesmo o pintor mais convencional usa seu corpo. Somos todos performers no
sentido geral, mas existem diferenciações. O artista se apropria da performance num sentido
de ruptura com padrões tradicionais da arte. E eu, enquanto professor, me aproprio da pa-
lavra performance para falar de uma atitude pedagógica diferenciada.(CIOTTI, 2014,p.62)

A potência do work in process associada as rupturas e as transformações pedagógicas propostas pelo


professor performer, intensifica a instauração de processo criativos abertos já que:

O produto, na via do Work in process, é inteiramente dependente do processo, sendo per-


meado pelo riso, pelas alternâncias do criadores e atuantes e, sobretudo, pelas vicissitudes
do percurso. O conceito de Work in process tem sido aplicado na ciência ( em experimen-
tos retro-alimentares), em procedimentos de linguagem e comunicação, em projeção de
devires filosóficos e psicológicos e em outras disciplinas que incorporam em seus modelos
a temporalidade as ocorrências do processo. (COHEN, 2004,p.18)

As experiências observadas e realizadas com as crianças em ações artísticas ou nas aulas, defla-
graram conceitos múltiplos no processo, os quais interessam e evidenciam mudanças de paradigmas para
a construção da cena performativa, retorno a maneira como o diretor e teórico da performance Renato
Cohen analisa processo criativos na cena contemporânea :

Conceitos como os de território, agenciamento, devir, singularidade, máquina, fluxos, ri-


zoma- todos eles dentro da gramática deleuzo-guattariana e que têm em comum a noção
de dinâmica, processo, reocupação de espaço físico, imaginário, menta- dão contingência
a abrangência teórica aos novos modelos e, particularmente, ao modo de operar do work
in process. Explicitam, também, outros modos narrativos que operam redes, fluxos pul-
sionais e sequências causais. (COHEN, 2004,p.23)

Volto a tratar a criança em seu mundo em particular para conversar com este contexto de processo
aberto, para poder “enxergar na criança a autoria de sua própria socialização, vendo-a realizar um work in
process/ trabalho em processo acerca de um tempo feito não de linearidade factual, mas sim de experiências
do agora” (MARCONDES,2010,p.125). Portanto há uma conexão entre o modo de desenvolvimento da
criança e o processo criativo interessados na linguagem artística híbridas e abertas.

Para articular o pensamento e questões relevantes a esta pesquisa, que lida com a construção de pro-
cessos criativos em conjunto com outras pessoas e em contexto diferentes, aproximou a pesquisa da noção
de Partilha do Sensível. Assim Rancière denomina a partilha do sensível:

(…) denomino partilha do sensível o sistema de evidencias sensíveis que revela, ao mesmo
tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respecti-
vas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes
exclusivas. Essas repartição das partes e do lugares se funda numa partilha de espaços, tem-
pos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta
á participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. O cidadão, diz Aristoteles, é
quem toma parte no fato de governar e ser governado. Mas uma outra forma de partilha pre-
cede esse tomar parte: aquela que determina os que tomam parte. ( RANCIÈRE, 2009,p.15)

239
O compartilhamento é um procedimento no qual artistas das artes contemporâneas nas últimas
décadas tem inserido em seus processo criativos e obras, como uma forma de provocar o espectador para
adentrar o universo da arte. Entretanto esta prática é comum desde as vanguardas europeias. Seguindo nes-
te perspectiva o pensamento de arte compartilhada é analisado pela curadora e historiadora Claire Bishop
partir do conceito de Arte participativa ou Arte Participante ela desenvolve:

Este campo ampliado de práticas pós-estúdio atualmente está sob uma variedade de no-
mes: arte socialmente engajada, arte baseada na comunidade, comunidades experimentais,
arte dialógica, arte litoral, arte intervencionista, arte participativa, arte colaborativa, arte
contextual e (mais recentemente) prática social. Eu vou me referir a essa tendência como
“arte participativa”, uma vez que isso reconhece o envolvimento de muitas pessoas (em
oposição à relação de interatividade um-para-um) e evita as ambigüidades do engajamen-
to social, que podem se referir a uma ampla gama de trabalho (...)(BISHOP, 2012,p.1)186

A arte participativa analisada por Bishop não está só nos museus, encontra-se principalmente em
contextos sociais, nos quais os artistas estão engajados em procedimentos artísticos de troca e voltados a
discutir os laços sociais entre a comunidade. “Os projetos participativos no campo social, portanto, pare-
cem operar com um duplo gesto de oposição e melhoria. Eles trabalham contra os imperativos dominantes
do mercado” (BISHOP, 2012,p.12)187. Existe um cuidado para que o entendimento neoliberal sobre arte
construída em coletivo possa instaurar processo para suprir uma uma demanda social apaziguadora, assim
entendida a arte participava pode perder seu sentido que é despertar o coletivo.

Posto isso, o objetivo destes artigo é discutir as relações entre arte, política e educação, por meio da
reflexão de conceitos como a emancipação, autonomia e protagonismo. Busco trazer um ponto de vista de
que este parâmetros de grande relevância para a discussão na educação, merecem ser revisitados e fomen-
tados por meio de pensamentos emergentes surgidos no campo dos estudos das artes contemporâneas e
estudos da performance especialmente vinculados a processos artísticos compartilhados.

Provocações do processo artístico da performance para o ensino das artes

Os programas governamentais em que trabalhei como arte educadora, estabeleciam como crité-
rios, autonomia, protagonismo e emancipação; importantes parâmetros a serem articulados em atividades
nos ateliês pelos professores/educadores em suas ações artístico pedagógicas, conceitos que partem do
pressuposto de uma educação como meio de transformação social do indivíduo.Proponho nesta discussão
revisita-los por meio da prática artística que abarca a linguagem da performance, um exercício de reflexão
para potencializados.

Neste sentido a linguagem da performance e o performer buscam trabalhar com autonomia, o


criador estabelece limites a sua pesquisa, bem como à direciona é seu próprio diretor, como protagonista
do seu processo pode aproximar sua biografia e da vida cotidiana o processo artístico, há uma tendência da
linguagem em aproximar o espectador de forma propor uma emancipação do olhar para a obra, aja visto

186. Tradução da autora para: “This expanded field of post-studio practices currently goes under a variety of names: socially engaged art, commu-
nity-based art, experimental communities, dialogic art, littoral art, interventionist art, participatory art, collaborative art, contextual art and ( most
recently) social practice. I will be referring to this tendency as “participatory art’, since this connotes the involvement of many people( as opposed to
the one-to-one relationship of interactivity) and avoids the ambiguities of social engagement, which might refer to a wide range of work.”(BISHOP,
2012,p.1)
187. Tradução da autora para: “(…) Participatory projects in the social field therefore seem to operate with a twofold gesture of opposition and
amelioration. They work against dominant market imperatives(…) (BISHOP, 2012,p.12)

240
que a integração e colaboração do público é um ponto importante em obras interessadas em aproximar o
público das artes contemporânea.

Como já foi expostos no início do artigo aproximar o meu processo autoral de investigações artís-
ticas transformaram a minha atuação na arte educação, levou a repensar o formato pedagógico, e entender
a aula como um possível espaço para a construção coletiva da cena performativa. Ao perceber como minha
pesquisa artística poderia nutrir o compartilhamento de conhecimento além da técnica, pois criava possi-
bilidades de emergir questões profundas ligadas a subjetividade do participante, em especial a criança que
move questões simbólicas com relação sua identidade, em constante transformação pois, sofre influência do
ambiente em que interage.

Quando me encontrei com as questões de fronteira entre arte e educação percebi que a potencia
dos encontros estavam motivadas também pelo afeto como uma ação politica. Assim a artista que escreve,
contaminada pelas questões politico pedagógicas na qual o campo da arte encontra-se questiona: Quando a
educação se aproxima da arte? ou quando a arte toma parte da educação?

O compartilhamento de ações artísticas relacionam-se não somente com um currículo a ser cum-
prido, aproxima as relações humanas, o professor com a aura da hierarquia, do detentor do conhecimento
do que sabe oque é certo e errado, quando o artista mantem uma relação humanizada com seus parceiros
de aprendizado nos ateliês de arte, sobretudo com as crianças, ele desmistifica os lugares de poder, cria um
território fértil para articular o protagonismo, a autonomia, e a emancipação. Articulo este parâmetros com
conceitos próximos as discussões da Performance como arte participante e o work in process.

Para ilustrar as relações conceitos oriundos das artes e os parâmetros recorrentes nos processos
de educação não formal em artes; compartilho uma experiencia realizada por mim na pesquisa de campo
realizada em janeiro de 2018 na Fundação Casa Grande Homem do Kariri188 que faz parte da pesquisa em
andamento desenvolvida no programa de pós graduação em artes cênicas da universidade do Rio grande
norte e orientada pela professora doutora Naira Ciotti, “Performance compartilhadas com crianças : um
relato do professor performer”.

A visita ocorreu durante cinco dias e não se configurou como uma experiência de arte participativa,
contudo a contribuição das crianças e do espaço para a pesquisa proporcionou entrar em contato com uma
instituição que compreende e fomenta o desenvolvimento da criança, por meio dos parâmetros que propo-
nho revisitar neste artigo, (autonomia, protagonismo, emancipação). As crianças da fundação assumem res-
ponsabilidades em áreas que compõem a organização da instituição, estas funções são rotativas durante um
período, são guias do museu, ou organizam a gibiteca/ Biblioteca, produzem programas de radio, gerenciam
a parte técnica do teatro entre outras funções. O aprendizado acontece na prática e de forma a dar espaço
para criança exercer seu protagonismo nas ações e autonomia para escolher em que áreas deseja atuar, bem
como cria um espaço para a livre expressão do seu ponto de vista sobre questões referentes ao seu cotidiano.
A característica de organização comunitária cria um laço social entre as crianças e a instituição de forma a
possibilitar efetivamente a percepção de pertencimento.

As ações artísticas proposta na pesquisa são obras work in process, configura-se assim como um
dispositivo performático ativado junto as crianças, um encontro para brincarmos e performar, aqui perfor-
mance é a brincadeira, território de fronteiras ligado ao estudos da performance, a performance como uma
investigação de um acontecimento da vida cotidiana da criança.

188. A Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri é uma organização não- governamental, cultural e filantrópica criada em 1992, com
sede em Nova Olinda, Ceará, Brasil, tem como missão a formação educacional de crianças e jovens protagonistas em gestão cultural por meio de
seus programas: Memória, Comunicação, Artes e Turismo. Os programas de formação da Fundação Casa Grande desenvolvem atividades de com-
plementação escolar através dos laboratórios de Conteúdo e Produção. O objetivo é a formação interdisciplinar das crianças e jovens, a sensibilização
do ver, do ouvir, do fazer e conviver através do acesso a qualidade do conteúdo e ampliação do repertório.

241
O compartilhamento da ação artística está em processo de construção e consiste em um caça pa-
lavras com o corpo, no qual as palavras formar-se a partir da relação do corpo, espaço e participantes. A
primeira instrução é dizer o nome em voz alta, depois, escolher uma letra e escreve em alguma parte do cor-
po, após escolhemos silabas dos nomes dos amigos e escrevermos em outra parte do corpo. A partir desta
escrita no corpo começamos um caça palavra entre os participantes. Quais palavras podemos formar com as
letras e silabas, que encontros entre os jogadores, quando encontramos o outro, as palavras são faladas em
voz alta, para que todos os envolvidos no jogo escutem e possam interagir e possam propor novas palavras.
Em um segundo momento e oferecido giz as crianças e a instrução é escrever palavras a partir da relação
individual do seu corpo com o lugar, proponho geralmente escrever no chão e essa intervenção no espaço
com palavra e a escrita criamos um mapa de palavras que possam se ligar.

O compartilhamento com as crianças da Fundação Casa Grande proporcionou reflexões relacio-


nadas ao work in process, como lidar com os provocações do processo em construção, de modo a escutar e
acolher as transformações da cena no momento em que ela ocorre. As crianças foram ativas na construção
conjunta da ação porém, elas reorganizaram todo o meu plano, ou seja, elas recriaram e ao final discutimos
sobre os pontos fortes e fracos da propostas.

O material usado para a escrita das palavras é lápis preto de maquiagem, e foi rapidamente associa-
ram as maquiagens das festas de São João, e desenharam bigodes no rosto e outros desenhos no corpo, isso
é uma intervenção que não aconteceu em São Paulo quando realizei essa ação pela primeira vez em meu
ateliê. O mapa de palavras com giz no chão não chegou a ser efetivado em sua plenitude, já que as conexões
criadas pelas crianças adentram o universo do desenho e proporcionavam outras intervenções, como dese-
nhar silhuetas no chão, o prédio da fundação ou objetos que estavam no espaço.

Ao lidar com as relações que a criança estabelece com o mundo, a pesquisa compromete-se com
o seu conhecimento de forma a abarcar a escuta, contudo eu como adulta também tenho que dispor de
um conhecimento que não é superior ao das crianças, mas provocar novas maneiras de interagir com o
corpo espaço, são os desafios que lanço ao encontrar as crianças. A performance proposta no estudo está
no campo das arte participativa, na qual parte do pressuposto que a ação está diretamente relacionada ao
participante, no caso estudado por mim há uma delicada relação ao partir da criança, me percebo sempre
em um lugar de risco, mesmo que planejada as ações elas estão em transformação é este o risco que quero
correr de partilhar uma obra inacabada, para que a criança participante possa transformar, pois ela não
se preocupa em geral em estabelecer conexões com padrões da arte, ela embarca no brincar e se este jogo
não está de acordo, ela o reelabora naquele mesmo instante, ou pode acontecer algo mais desagradável ela
se desinteressa, quando isso acontece o apoio e a manutenção da performance se restabelece na relação
com Professor Performer em ação, por meio do material então modificado reelabora as ações ou declara
o seu fim.

Para concluir retomo as questões levantadas pela antropologia da criança, a qual concebe os saberes
das crianças relacionadas a outras percepções e pontos de vista sobre o mundo, para afirmar o caracter que
há nesta pesquisa de não lidar com o propósito de categorizar um ou criar um método pedagógico de per-
formance para crianças. A proposta é a investigação artística compartilhada, como o foco no participante
elegido por mim, a criança. O estudo não tem como objetivo lidar com a criança como objeto, portanto ela
é aqui considerada como colaboradora, compreendendo assim formas desviantes que provoque novas ma-
neiras de processo criativos e de ensino para artes, para abrir novas maneiras e não circunscrever questões
de um arcabouço tão rico e pouco investigado.

242
Referência Bibliográfica

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Acesso em: Fevereiro de 2018.
Aberta aos Secundárias, São Paulo, Ed. N-1 edições, 2016.

243
POR UMA PEDAGOGIA VIDEO_PERFORMATIVA:
BRUCE NAUMAN E O ENQUADRAMENTO
COMO PRODUÇÃO DA REALIDADE
Ronildo Júnior Ferreira Nóbrega

Introdução

O incessante desenvolvimento de máquinas, dispositivos e tecnologias característico de nossa


época é acompanhado no campo das artes por apropriações, ressignificações e usos que intervém dire-
tamente na realidade operacionalizando novos modos de existir e de se relacionar com o mundo. Essas
proposições de substrato tecnológico coincidem numa série de implicações estéticas, pedagógicas e po-
líticas que, entre outras características, questionam o automatismo maquínico e o determinismo tecno-
lógico. Nesse panorama de experiências encontram-se inúmeros procedimentos que se estabelecem em
estrito diálogo com aquisições técnicas da imagem, incluindo uma série de obras que nascem do choque
entre o corpo e a câmera tendo como resultado um intenso desregulamento de padrões culturais, sociais
e midiáticos.

Bruce Nauman (1941-) é um dos primeiros artistas nos Estados Unidos a mobilizar o corpo e
os recursos da escrita videográfica num sistema próprio de elaboração de discursos. Tendo como uma
de suas características o uso crítico e um respectivo questionamento da neutralidade das tecnologias,
Nauman explora, em obras como Walking in an Exaggerated Manner around the Perimeter of a Square
(1967-1968), a questão do enquadramento como produção de realidade, enfocando o recorte não tanto
como aquilo que esconde a realidade, mas como uma tecnologia que operacionaliza uma angularização,
que traça por meio do quadro aquilo que deve ser percebido e como deve ser percebido em detrimento
do que é conscientemente deixado de fora.

Inserido num contexto onde a televisão alçava a categoria de meio de comunicação de massa, o
artista americano, ao evocar uma relação entre o seu próprio corpo e a máquina-ferramenta coloca em
cheque, através de um programa performativo seguido à risca, os próprios modos de operação dessa
tecnologia. Os primeiros trabalhos de Nauman são pouco sofisticados se temos em mente os constantes
agrupamentos que se colocam à disposição daqueles que embarcam nessa seara desde então, contudo, al-
gumas décadas depois estas obras são ainda paradigmáticas para se pensar questões como a relação entre

244
arte e tecnologia, assim como os possíveis diálogos entre estas duas esferas nos ambientes institucionali-
zados de ensino/aprendizagem.

Nesse mundo de constante inflação tecnológica, responsável por alterar profundamente nosso re-
gime cognitivo através da imposição de novos regimes de percepção e tendo em vista uma educação que,
abalada por todo esse contexto, tenta se adequar e se apropriar desses meios na composição de seus proces-
sos de ensino/aprendizagem, a experiência de artistas como Bruce Nauman se constitui como interessante
mecanismo para se pensar uma pedagogia performativa, entendida aqui como uma atitude pedagógica
em artes que se dá pela e através da performance. Sua apreciação, contextualização e prática se apresentam
como algo interessante para se re-pensar questões como, por exemplo, o lugar da tecnologia no cotidiano
escolar, assim como na construção de certos conhecimentos.

Desse modo, a discussão que se empreende a seguir aponta, a partir de um olhar para Bruce Nau-
man sobre a perspectiva do enquadramento, pistas que permitam esboçar a pertinência do trabalho com
a videoperformance em sala de aula como uma possibilidade que articula elementos que permitem, para
além de outros fatores, questionar as práticas e os modos de operação das tecnologias em busca de novos
possíveis, isto é, outras formas de estabelecer relações com elas pensando suas práticas não tanto numa pers-
pectiva do determinismo tecnológico mas, sobretudo, como estratégias de sobrevivência perante um mundo
cada vez mais disposto ao cansaço.

Diálogos entre um corpo e uma câmera

O ambiente onde o artista estabelece a relação com a câmera é um ateliê que, entre alguns materiais
espalhados pelo chão, inclui um espelho e um número de três quadrados delicadamente traçados no espa-
ço, cada um deles proporcionalmente menor que o outro. Sobre o quadrado maior, um corpo caminha de
maneira exagerada através de torções do quadril e num respectivo balanço dos ombros. Trata-se da obra
Walking in an Exaggerated Manner around the Perimeter of a Square (1967-1968) do artista americano Bruce
Nauman (1941-), um filme de 16 mm que tem duração de cerca de dez minutos que, para além de outras
características, o enquadramento é colocado como produção da realidade.

Esta obra é parte de uma série de trabalhos onde Nauman aparece explorando a realização e a re-
petição extenuante de gestos e atividades cotidianas como andar, arremessar bolas contra a parede, bater os
pés, fazer rolamentos etc. Num momento em que a arte trazia o autobiográfico e a autorreferencialidade, o
cotidiano e a incorporação de novos suportes para o centro de sua realização num questionamento da pintu-
ra e da escultura como os legítimos suportes da criação artística, Bruce Nauman examinou as possibilidades
estéticas entre o corpo e a câmera lançando um olhar crítico para a tecnologia de sua época e as funções com
as quais estava comprometida.

Se por um lado a indústria do broadcast e o senso comum davam a entender que a produção da
imagem, baseada numa forte tendência técnica, se dava de maneira ingênua e descompromissada, o artista
expõe nessa obra os modos de operação das tecnologias por trás da criação das imagens em movimento;
enquanto caminha sobre o perímetro do quadrado e escapa dos limites de captação da câmera, Nauman
expõe a dimensão política do enquadramento e a relação dos ângulos, planos e mesmo a estabilidade ou mo-
bilidade da câmera de esconder algumas coisas ao mesmo tempo em que faz aparecer outras. Nesse sentido,
uma outra experiência esclarecedora.

Comumente identificada como o ponto de origem da videoarte, a exibição da gravação da passagem


do Papa Paulo VI num café da cidade de Nova York por Nam June Paik é reveladora para os encaminha-

245
mentos da ideia que aqui se apresenta. O fato em si é, talvez, menos curioso do que os procedimentos que
o artista dá em relação ao aparelho que detinha naquela ocasião em mãos. Nessa experiência, Paik embarca
num táxi e registra todo o seu percurso explorando os limites de memória da própria tecnologia e exibindo
posteriormente a filmagem ao lado da abordagem televisiva, marcada pelas remediações e clichês da indús-
tria broadcast (ELWES, 2005).

Nessa exibição pode-se identificar algumas características que perpassará muitos dos trabalhos
desenvolvidos nesse campo nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. No caso de Nam June Paik
o registro é confrontado com a narrativa mainstream e seus excessos, traçando uma discursividade dife-
rente daquela operacionalizada pela pintura e pela escultura. Tomado como uma mídia criativa, os modos
como é utilizado nessas primeiras experiências desafia os interesses comerciais, políticos e militares aos
quais se submetia inicialmente a tecnologia videográfica, expondo os modos de operação da cultura do-
minante incluindo aqueles da própria arte, que nos inícios dessa manifestação se recusava a anexá-la ao
seu campo.

Tanto na exibição de Paik quanto na obra Walking in an Exaggerated Manner around the Perimeter
of a Square (1967-1968), o enquadramento diz respeito a abordagem e as forças que compõe imagem, des-
nudando a ideia de neutralidade da tecnologia. Enquadrar é, nesse sentido, estabelecer uma estratégia de
abordagem daquilo que se encontra defronte à câmera. Separar o que deve estar dentro do quadro daquilo
que deve estar fora de suas dimensões, o ângulo e o distanciamento do aparelho de registro em relação ao
que está sendo filmado é um modo de produção da realidade exposto pelos artistas em questão. Essa faça-
nha empreendida por Bruce Nauman é realizada enquanto depura

[...] um movimento simples em frações mínimas ou realçando gestos e poses particulares,


Nauman consegue uma espécie de dilação do tempo implicado em cada tarefa, executada
por ele com mais delonga do que o habitual. A reiteração contínua de uma mesma matriz
não chega a atribuir às ações um aspecto mecanizado, ao contrário disso, a volição tenaz
e o esforço de um sujeito concernido física e psiquicamente no seu desempenho corporal
transparecem e imprimem às cenas algo de uma natureza expressiva peculiar, ainda que à
revelia das intenções do artista (BENETTI, 2013, p. 84).

Nauman é um artista que desdobra sua poética em concomitância com as forças de seu tempo.
Utilizando o corpo e os elementos da escrita videográfica o artista desenvolve uma verdadeira videoperfor-
matividade, colocando o dispositivo tecnológico no âmbito do político. Christine Mello (2008), num estudo
onde investiga o lugar do vídeo na produção artística contemporânea, oferece uma compreensão abordagem
deste como uma linguagem de características específicas. Híbrido por natureza, o vídeo possui como um
de seus traços fundamentais a contaminação. Em outras palavras, o mesmo organiza-se numa tendência
agregativa e irrompe suas especificidades com as de outras linguagens dinamizando assim novas formas de
produção de discursos.

No caso da videoperformance, o registro, a edição, os efeitos, assim com as escolhas em relação a


ângulos, cortes, enquadramentos e zooms são apenas alguns dos aspectos que interagem com características
da performance tais quais o lugar de centralidade do corpo e de suas questões autobiográficas, a autorrefe-
rencialidade, a ênfase no momento presente e, mais especificamente, no mostrar (ao invés de representar)
etc. Desse modo, partindo da ideia de que a videoperformance se dá num compartilhamento entre corpo e
a câmera e que, ao contrário do que se imagina, não consiste de um mero registro busca-se uma abordagem
pedagógica e os seus possíveis lugares de efeito.

246
Por uma pedagogia video_performativa: pistas de atuação

Num certo sentido a educação, assim como a arte e os artistas, busca ela mesma suas estratégias e
mecanismos de apropriação desse maquinário que brota dia após dia e que, na maior parte do tempo, se ge-
riram dentro e para campos distintos da sociedade como é o caso, por exemplo, dos aparelhos celulares des-
tinados a uma melhoria dos processos de comunicação. Nesse contexto de inflação tecnológica que molda
desde nossa atitude cognitiva perante o mundo até os modos de operação mais rígidos de nossas instituições
escolares a arte e mais especificamente a videoperformance aparece ao mesmo tempo como possiblidade de
expressão e questionamento da técnica e dos automatismos maquínicos.

Edmond Couchot (2003) afirma que expansão tecnológica e a respectiva ampliação do campo tec-
nestésico ao qual inclui em seu espectro as máquinas-ferramentas de imagem eletrônica, a partir de uma
dada ênfase técnica, geram um habitus cognitivo. Se antes o olho e a mão do pintor e do escultor se articu-
lavam na criação da imagem, agora a máquina fotográfica o faz a partir de maneira autonomizada e desper-
sonalizante. Segundo o autor, essas tecnologias representam não só

[...] um depósito de imagens e de signos mais guarnecidos que a indústria oferece ao olhar,
mas igualmente um depósito de percepções, de comportamentos novos, onde o artifício
domina a cada dia, um pouco mais sobre o natural... nenhuma época até agora conheceu
uma tal expansão tecnológica. Um novo habitus perceptivo se impõe, duplicado de uma
nova visão de mundo e de uma nova capacidade operatória se exercendo sobre o real
(COUCHOT, 2003, p. 25).

Contudo, como bem mostra ao longo de seu estudo, se por um lado essas máquinas-ferramentas an-
gularizam e padronizam modos de ação, os artistas, através de intervenções no escopo desse maquinário,
transformam e estabelecem novos modos de se relacionar com todo esse aparato tecnológica na mesma medi-
da em que é tomado como um manipulador. Esgotando os seus possíveis, os artistas abrem horizontes para o
desconhecido, enriquecem o mundo imagético ao qual estão inseridos assim como geram uma diversidade de
signos que se diferenciam sobremaneira daquilo que a pintura e a escultura tradicional ofereceram.

Nesse sentido, já se passaram algumas décadas desde que as primeiras experiências videoperfor-
máticas foram realizadas. Uma série de aprimoramentos foram desenvolvidos desde então sendo acoplados
por artistas em seus procedimentos como cores, efeitos especiais etc. Um trabalho que, talvez, seja exemplo
dessa sofisticação que perpassa o vídeo desde sua criação são as recentes experiências de Bill Viola que
traz, a partir de mecanismos e tecnologias de efeitos especiais, pessoas mergulhadas em oceanos, em meio
a chamas etc. Nessas experiências, o vídeo deixa de exercer a função de mero registo se tornando o eixo de
experiências focadas na imagem.

Dada essa digressão teórica, ainda são poucos os estudos e as discussões entorno das implicações
estéticas e históricas dessas novas tecnologias na arte, contudo, elas se apresentam com um forte potencial
pedagógico. Nesse sentido, as tecnologias, mesmo apesar de impulsionadas a serem utilizadas nos proces-
sos de ensino e aprendizagem oferecem por si só uma resistência que provém de uma necessária iniciação
acerca de seus procedimentos técnicos. Logo, nem todo professor que exerce atualmente a decência sabe
como manipular os elementos da linguagem videográfica apesar das contribuições que este ofereceria na
perspectiva do ensino de artes.

Numa pedagogia performativa, isto é, numa prática que se dá pela e através da performance, a vi-
deoperformance se dá como uma linguagem que oferece múltiplas possibilidades pedagógicas na medida
em que permite novas formas de se relacionar com o mundo. O trabalho com tecnologias cotidianas em

247
sala de aula consegue ser ao mesmo tempo incitado e temido. Esse amedrontamento se dá, talvez, por uma
ausência de entendimento técnico dos professores, mas também por conta de fatores econômicos. Contudo,
ainda assim a videoperformance pode ser um mecanismo para criar práticas pedagógicas em diálogo com
a tecnologia.

Neste ponto gostaria de relacionar a videoperformance a prática do professor-performer, entendida


aqui como uma forma de elaboração da docência, uma atitude pedagógica que coloca o corpo como elemen-
to central de ação. Para Ciotti (2014), o professor-performer

[...] propõe uma pedagogia sobre questões da arte contemporânea, na qual a performance
se inscreve. Consequentemente, em nossas escolas tão carentes de material para a sensibi-
lização dos alunos, o professor de arte que tem esta maneira alternativa de ensinar, pode
conseguir resultados valiosos para provocar mudanças na percepção dos alunos (CIOTTI,
2014, p. 63)

Nesse sentido, tanto as experiências videoperformáticas aqui citadas quanto a videoperformance


enquanto linguagem se colocam dentro deste espectro de ação do professor-performer na medida em que
mobiliza práticas e procedimentos cada vez mais presentes na arte contemporânea. Logo, pensar a perfor-
mance em relação com outras mídias se apresentam como um campo de possibilidades na medida em que
incita outros usos das tecnologias cotidianas. O desafio é fazer um mapeamento de experiências videoper-
formáticas estabelecendo estratégias de ação pedagógica.

Considerações

Quando se trata das tecnologias educacionais, o primeiro esforço proveniente do senso comum é
a implantação de laboratórios de informática e aquisição de aparelhos como se isso, por si, fosse uma sa-
ída para uma escola inserida em tempos de revolução tecnológica. Uma escola aparelhada, como se sabe,
não garante uma apropriação das tecnologias nos processos pedagógicos requerendo esta a elaboração de
estratégias de ação que coloquem a questão da tecnologia em seu seio de operação. O ensino de artes e a
da performance é um lugar privilegiado para se estabelecer diálogos dessa natureza na medida em que a
performance é uma linguagem que tem uma forte relação com a tecnologia.

Desde as intervenções cirúrgicas da artista francesa Orlan até os implantes biotecnológicos do aus-
traliano Stelarc, a tecnologia aparece como um elemento central em sua produção. Dentre os que trabalha-
ram com as aquisições técnicas da imagem, os trabalhos dos chamados pioneiros são pouco sofisticados se
temos em mente os agrupamentos que têm se colocado aos artistas que se embrenham por este campo desde
a década de 60. O processamento de cores, a captura digital, os efeitos, a edição e transmissão em tempo real
e mesmo a interatividade e a imersão são apenas uma mostra das mais conhecidas possibilidades emprega-
das atualmente por artistas das mais diversas áreas.

Desse modo, se por um lado os artistas não cessam de elaborar novas articulações entorno das pos-
sibilidades criativas que esses dispositivos de imagem eletrônica apresentam, por outro, existe ainda uma
série de contratempos que se instalam recorrentemente em relação a experienciação, e compreensão dessas
práticas. Nos contextos institucionais de ensino/aprendizagem o trabalho com as chamadas tecnologias da
informação, para se efetivar, requer o treinamento e desenvolvimento de conhecimentos técnicos por parte
dos próprios professores, o que dificulta de certa forma a implementação de certas práticas que empreen-
dam o diálogo entre arte e tecnologia.

248
Quando se trata de pensar e praticar a videoperformance e mesmo a performance em sala de aula,
ainda são poucas as experiências, contudo, como se propôs demostrar aqui, a sua apreciação, contextuali-
zação e experimentação são alternativas para se pensar uma tão sonhada prática pedagógica que se dá em
diálogo com a tecnologia, que a problematiza numa perspectiva crítica contribuindo igualmente para a for-
mação do cidadão. Os primeiros trabalhos de Bruce Nauman e, mais especificamente, o filme Walking in an
Exaggerated Manner around the Perimeter of a Square (1967-1968) demonstra a capacidade desta linguagem
em problematizar a tecnologia como um todo e seu modos de operação na contemporaneidade.

Com experimentações que se dão em uma única tela ou organizadas em complexas instalações, os
trabalhos videoperformáticos do artista propõem um verdadeiro questionamento do automatismo maquí-
nico ao mesmo tempo em que explora suas possibilidades estéticas. Colocando o corpo e suas questões,
assim como a câmera e os dispositivos de captação e produção da imagem no centro de sua realização,
a videoperformance de Bruce Nauman identifica as pistas para a realização de práticas pedagógicas que
problematizam o uso das tecnologias no seio de seu próprio fazer, isto é, enquanto produz novos modos de
existência e de se relacionar com o mundo

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à realidade virtual. Editora da UFRGS, Porto Alegre, 2003.

249
PERFORMANCE E ESPAÇO
URBANO: A CRIAÇÃO EM TRÂNSITO
Pablo Roberto Vieira Ferreira

Inscrever um projeto de oficina artística voltada para jovens e adultos a ser desenvolvida em um
bairro que ainda conserva muito de cidade dormitório189 ou zona dormitória. Lançado em 27 de outubro
de 2017 pela Prefeitura Municipal do Natal/RN, através da Secretaria Municipal de Cultura – SECULT, foi
tornado público o edital de “Credenciamento e Seleção Pública de instrutores para atividades artísticas nos
espaços culturais da Zona Norte de Natal 2017”. O presente edital objetiva credenciar e selecionar Cursos e
Oficinas de carga horária diversa, a serem realizados por meio da atuação de instrutores, professores, Griôs,
artesãos e artistas para capacitação de jovens, crianças e adultos, da população das comunidades da Zona
Norte da Cidade do Natal, nas Unidades dos Centros de Artes e Esportes Unificados Moacy Cirne e Mestre
Manoel Marinheiro, Espaço Cultural Jesiel Figueiredo e Espaço Cultural Francisco das Chagas Bezerra de
Araújo, sob a administração da SECULT/FUNCARTE. Na ocasião, submeti a oficina que intitulei de Corpo
e Espaço: criação em trânsito onde iria abordar temas que venho pesquisando, como o programa perfor-
mativo (FABIÃO, 2008) e as ações disruptivas (ARAÚJO, 2011), que tinha o intuito de fazer com que os
alunos experimentassem o lado de fora da sala, os encontros com transeuntes e os desdobramentos a partir
deles, onde a grande maioria dos exercícios se caracterizava como experimentos externos no próprio espaço
e no entorno. Além da minha oficina, propostas que contemplavam Dança, Capoeira, Teatro, Música, Dese-
nho, Xilogravura e Artesanato também foram selecionadas para serem realizadas no mês de abril de 2018190.

Parece-me que a opção pela utilização do espaço fora da sala não tenha sido mera coincidência, vis-
to que a unidade onde iria ministrar minha oficina não oferecia suporte para uma boa execução da proposta
metodológica, caso tivesse optado por vivências mais internas. Em nossa primeira visita, em uma manhã
de terça-feira bastante chuvosa, observamos que as salas não possuíam um piso adequado, eram mal ilu-
minadas e com pouco espaço. Nas instalações do Espaço Cultural Francisco das Chagas Bezerra de Araújo
(mais conhecido como área de Lazer do conjunto Panatis) havia muitas infiltrações e cupins, além de muitas
portas fechadas onde deveriam funcionar salas de estudo. De imediato, recordei da charge A MODERNI-

189. Cidade-dormitório é o nome dado à cidade em que habita uma grande quantidade de moradores que trabalham ou estudam em uma cidade
vizinha próxima. Esse tipo de cidade se encontra geralmente no interior de regiões metropolitanas, ligadas por processos de conurbação que fazem
com que as rodovias sejam utilizadas para transporte diários entre a casa e o trabalho (movimentos pendulares). NUNES, José Horta. Cidade dor-
mitório. Disponível em: < https://www.labeurb.unicamp.br/endici/index.php?r=verbete/view&id=242>. Acesso em: 20 abr 2018.
190. G1. Prefeitura abre 250 vagas para oficinas artísticas gratuitas em espaços culturais de Natal. Disponível em: <https://g1.globo.com/rn/rio-
-grande-do-norte/noticia/prefeitura-abre-250-vagas-para-oficinas-artisticas-nos-espacos-culturais-da-zona-norte-de-natal.ghtml>. Acesso em: 19
abr 2018.

250
ZAÇÃO DO ENSINO PÚBLICO191 onde se denota as más condições físicas da sala de aula em detrimento
da aquisição de um bem tecnológico que necessita de uma estrutura adequada para seu o usufruto, como é
o caso do computador.

Figura 1: Modernização do ensino público (charge).


Fonte: ANGELI Filho, Agnaldo. Folha de São Paulo, caderno 1, 29 de novembro de 2000, a A2.

Selecionado para ministrar a oficina, me vi diante de um espaço degradado e o espaço urbano se


configurou de fato como motor de experimentação. Outro fato é que em virtude das greves ocorridas na
rede estadual de ensino, o que acarretou uma ausência de inscrições de alunos, a oficina Corpo e Espaço:
criação em trânsito, depois de muitos atravessamentos de amigos que têm pesquisas voltadas para as artes
cênicas, acabou se transformando em uma ação performática. Partindo dos mesmos pressupostos teóricos
já citados anteriormente que iriam ser abordados na referida oficina, desenvolvi uma performance de título
“Desembaladores de Memórias”. A ação inicial consistia em oferecer uma balinha em troca de uma me-
mória. Os performers sairiam pelo espaço ao encontro dos transeuntes e iriam propor uma permuta. Esse
contato tanto poderia ser registrado numa folha de papel (com essa memória escrita) ou por áudio gravado
(com permissão prévia da pessoa). Todo o material recolhido na ação, como as memórias escritas e os áu-
dios, serviriam para a construção de espécie de instalação na própria área de Lazer do Conjunto Panatis,
ideia que caiu por terra, pois não visualizei o espaço como sendo apropriado para essa tarefa.

A partir de todas essas provocações e atravessamentos, tivemos como dispositivo principal traba-
lhar a memória vinculada ao próprio espaço do Conjunto Panatis, que essa ação deveria ser mais relacio-
nada com a situação vivida, articulada com as memórias que as pessoas tinham de um lugar que sediou um
CEMAI – Centro Municipal de Artes Integradas e hoje se encontra em estado precário. Para isso desenvol-
veríamos a pergunta: Que memória você tem do Conjunto Panatis? Provocando os transeuntes pensarem
como um lugar que a princípio foi construído para democratizar políticas públicas de incentivo ao esporte,
lazer e cultura, hoje encontra-se abandonado e esquecido pelo poder público.

Tendo esse amontado de ideias, resolvemos atrelar a temática da memória a uma ação desenvolvida
por Eleonora Fabião (performer e pesquisadora) chamada “Converso sobre qualquer assunto”, onde tendo

191. ANGELI Filho, Agnaldo. Modernização do ensino público (charge). Folha de São Paulo, caderno 1, 29 de novembro de 2000, a A2. Disponível
em: <http://prontofaleiadistancia.blogspot.com.br/>. Acesso em: 20 abr 2018.

251
um cartaz com esses dizeres, convida pessoas na rua a se sentarem em frente a ela e começarem um diálo-
go. Em nossa ação, segurávamos cartazes com os dizeres “Converso sobre memórias” e, como diferencial,
ofertávamos uma balinha que era entregue ao final de cada conversa, “desembalando” a memória como o
próprio título da ação sugere.

Figura 2: “Desembaladores de Memórias” com Pablo Vieira, Conjunto Panatis.


Crédito: André Chacon, 2018.

Figura 3: “Desembaladores de Memórias” com Mariana Batista, Conjunto Panatis.


Crédito: André Chacon, 2018.

A opção de utilizar o cartaz tal qual a ação de Fabião, nos surgiu como elemento mais convidativo
nesse primeiro momento, pois queríamos evitar uma abordagem que pudesse soar como invasiva. Outro
fator é que estávamos num lugar de passagem, então uma ação mais parada chamaria mais atenção, con-
vidando-os a interação. Giordano (2014, p. 48) expõe que o desenrolar “de ações e situações espontâneas
surpreendem as pessoas que estão circulando no momento e no local, fazendo com que elas sejam condu-

252
zidas para novas possibilidades de percepção e interação com as artistas e o espaço real”. As vivências dos
transeuntes com o espaço, se tinham lembranças ou não daquele lugar, como era antigamente passar por lá,
o que mudou, quais as perdas foram alguns dispositivos que lançamos ao tratar da memória. A performance
no espaço urbano causa estranhamento, curiosidade, altera o fluxo cotidiano do lugar e interfere, mesmo
que por alguns minutos, no fluxo corriqueiro da vida das pessoas.

Convidei para estarem comigo nessa empreitada dois amigos que me ajudaram a desenvolver
essa ação e que foram muito provocadores: Mariana Batista (bailarina e performer) e André Chacon
(fotógrafo e artista visual) que contribuíram para sua realização. Para Nascimento (2012, p. 12) “fazer
performance é estar num enfretamento contra as ideias hegemônicas, consolidadas pela mídia, que
reproduzem signos de cultura, passando pela manutenção de hierarquias e reprodução de modelos”.
Assim fomos sendo confrontados com cada pessoa que se disponibilizava a sentar conosco e conversar
um pouco.

No relato de Fabião (2013, p. 09), confessa que tem

[...] experimentado programas como vias de encontro e agenciamento, como elementos


de troca e diálogo dentro de grupos, entre grupos e entre artistas. Programas podem ser
dados, ofertados, presenteados. Podem ser armas, escudos, geradores de conflito, elemen-
tos “disruptivos”. Criam-se programas para serem realizados individual ou coletivamente;
oferecemos programas uns aos outros; concebemos aquele um específico, destinado àque-
la determinada pessoa, naquele exato momento; criamos programas para a elaboração de
novos programas. E claro, há também a possibilidade de inserção de programas na malha
do espetáculo aumentando sua vibração performativa. Depende. Depende das aventuras
de significância, subjetivação e organização que queiramos proporcionar uns aos ou-
tros; que queiramos proporcionar a nós mesmos e aos espectadores, participantes, colabo-
radores, coautores, cúmplices ou testemunhas dos trabalhos. Depende das temperaturas
relacionais, dos tipos de contato que queiramos vivenciar. Depende. Depende das poéticas
e éticas em questão. Tudo depende.

Denotando o quanto o programa pode sofrer influência dependendo do estado físico do per-
former ou do lugar que esteja inserido, por exemplo. O programa é flexível, adaptável, afeta e é afetado
também.

A proposição do cartaz com os dizeres “Converso sobre memórias”, a princípio, deixa a questão
da memória mais aberta enquanto enunciado, mas sempre buscávamos tocar na problemática voltada ao
espaço que estávamos inseridos provocando dirupções. De acordo com a investigação prática de Araújo
(2011, p. 02), as ações disruptivas “poderiam ser agrupadas em quatro diferentes categorias: ações corporais;
ações inter-relacionais, ações contextuais e ações coletivas”. A terceira categoria nos surge aqui para que o
foco estivesse relacionado com as vivências e lembranças dos transeuntes com a Área de Lazer do Conjunto
Panatis, assegurando esse viés de troca através dessas relações. Nesse sentido, as ações contextuais buscam
estabelecer um diálogo com o entorno, com sua cartografia, relevando aspectos diversos, fazendo brotar
informações que não estão dadas de imediato, mas que são relevadas a partir da troca com as pessoas que ali
vivem, passam, construíram histórias, raízes.

Os transeuntes estavam totalmente inseridos em seu contexto habitual e cotidiano e nossa ação
fez com que alguns olhassem de maneira curiosa, se aproximassem para perguntar, parassem e viessem
trocar conosco, mesmo o senhor que opta por não descer da bicicleta, mas que ainda assim se dispõe a
conversar.

253
Figura 4: “Desembaladores de Memórias” com Mariana Batista, Conjunto Panatis.
Crédito: André Chacon, 2018.

Tendo o imaginário das ações disruptivas nos provocando pensar que esse encontro / confronto com o
espaço urbano seria de grande valia ao promover essas interações que, por mais curtas e emergentes fossem, pro-
vocariam experiências diversas que gerariam pontos de discussões interessantes. Segundo Araújo (2011, p. 02),

Disrupção é sinônimo de quebra, de fratura, de interrupção do curso normal de um pro-


cesso. No caso de espaços públicos, uma ação disruptiva é aquela capaz de provocar estra-
nhamento ou até mesmo interrupção nos fluxos cotidianos de uso da cidade.

Provocando olhares diversos, curiosidades, aproximações, distanciamentos, ressignificando a lugar


de trânsito / passagem dos transeuntes da Zona Norte, a ação “Desembaladores de Memórias”, perpassa pelo
comentário de Giordano (2014, p. 44) ao falar que

A performance se caracteriza por três viés: memória, imaginação e atualidade / passado, fu-
turo e presente. O artista por meio de sua experimentação criativa é responsável por criar
novas formas de relacionamentos humanos. As performances atuam sobre a consciência
política dos participantes. Sendo assim, as performances se transformam de obras de arte
para ensaios políticos. São ações estéticas-políticas-artísticas-sociais.

Como bem pontua Fabião (2013, p. 09), “uma performance é um disparador de performances”. Pen-
so assim, que os programas funcionam como válvulas de experiência, uma vez que podem ser elaboradas
outras formas de se fazer uma mesma ação, a exemplo do “Desembaladores de Memórias” que está sendo
pensada em outros formatos. Enfatiza Araújo (2011, p. 02), que “a realização de tais ações constitui-se tanto
como ato artístico quanto como treinamento para os performers, além de ser instrumento pedagógico de
grande valia”. Estar inserido nesse campo de dualidade entre o treinamento e a própria experiência peda-
gógica me pareceu importante, pois diante de toda a situação, estar nesse lugar entre poderia alcançar mais
pontos de provocações. Foi o que fizemos: propusemo-nos ser provocados e, ao mesmo tempo, provocar
com nossa ação.

254
Para a realização de “Desembaladores de Memórias”, temos o seguinte apanhado:

Programa Performativo:

• Os performers estarão sentados numa cadeira segurando um cartaz com os dizeres


“Converso sobre memórias”. Na sua frente haverá uma outra cadeira vazia para ser ocu-
pada por um transeunte que queria compartilhar uma memória e participar da ação; ao
término da conversa, o performer oferece uma balinha como agradecimento e permuta
pela memória falada.

Materiais:

• Duas cadeiras
• Cartazes
• Pequeno recipiente de vidro ou plástico transparente
• Balinhas sem identificação de marca na embalagem

CONCLUSÕES EM PROCESSO

Estar inserido nesse contexto para desenvolver a priori, uma oficina sobre espaço urbano que aca-
bou não se concretizando, mas que potencializou outro tipo de relação com o entorno, nos foi bastante ins-
tigante. Isso denota como o planejamento pode sofrer alterações de acordo com os recursos dispostos, com
as condições estruturais do lugar, com as temáticas urgentes que necessitam serem discutidas e repensadas.

Foi através da performance “Desembaladores de Memórias” que pudemos desvendar alguns aspec-
tos camuflados desse espaço, desconhecidos por não termos essa vivência anterior, nos provocando fazer
uma fricção entre o presente e o passado contextualizando-os no espaço urbano, lugar de investigação esco-
lhido como ato político. Dessas relações que foram construídas, nos chegaram que alguns anos atrás, a área
de Lazer do Conjunto Panatis era lugar de convívio e interação com as pessoas do bairro. Havia uma nostal-
gia e emoção ao relembrar de como era antigamente o espaço e de como se encontra hoje, sofrendo a ação
do tempo, do descaso e do vandalismo. Acreditamos que o fazer artístico propõe esses lugares de encontro
que relevam histórias, aproximam realidades, desembalam memórias.

A realização do “Desembaladores de Memórias” foi apenas um disparador nessa empreitada de


experimentação do espaço urbano como potência para a construção de afetos. Nesse sentido, a performan-
ce serviu para diminuir fronteiras, interrogá-las, olhar o contexto de maneira mais ampliado e aguçado,
indagando-o a partir da utilização do espaço urbano enquanto elemento de inquietação e troca que tanto
nos atraiu e nos impulsionou a criar, a investigar.

Atualmente, mesmo com todo o descaso, a área de Lazer do Conjunto Panatis ainda resiste com
algumas atividades culturais, talvez realizadas de maneira bem similar a da charge de Angeli Filho.

Para finalizar, trazemos um trecho da música Zona Norte, Zona Sul (composição: Ricardo Baya),
bastante conhecida na voz da cantora potiguar, Krystal, que denuncia essa separação:

Pajuçara, Igapó
Potengi, o meu Gramoré
Do lado que eu quero morar

255
Se vive na base da fé
Santa Catarina abençoa
Panatis e Santarém
E a Itapetinga nos leva
As Fronteiras da Nova Natal
Não tape o sol com a peneira
Maquiando o cartão postal
Me olhe dentro do meu olho
Me trate de igual pra igual
De que lado mora o seu preconceito
Atravesse a ponte que eu vou lhe mostrar.

Fomos até a Zona Norte da cidade que habitamos para tratar das relações com o espaço urbano e
memória e esse deslocamento só deixa mais nítido que precisamos usar as pontes para facilitar a aproxima-
ção, o diálogo. Que diminuamos as fronteiras.

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas pela UFRN, linha de pesquisa: Inter-
faces da Cena: Políticas, Performances, Cultura e Espaço. Poeta e produtor cultural, mantém contato com a
linguagem da performance desde 2012. Atualmente, integra a Sociedade Cênica Trans (Sociedade T) que se
destina a pesquisar a cena contemporânea. pa_blo_robert@hotmail.com

REFERENCIAIS

ARAÚJO, Antonio. Ações Disruptivas no Espaço Urba- contato com a sensível humanidade dos transeuntes. Re-
no. XVI Reunião Científica da ABRACE. São Paulo: Uni- vista Observatório da Diversidade Cultural. Volume 01,
versidade de São Paulo, 2011. nº 01 (2014)
FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo- NASCIMENTO, Frederico do. Grupo Totem: a infecção
-em-experiência. Ilinx, n. 04, dez. 2013. pela performance e a encenação performática. Disserta-
ção (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do
GIORDANO, Davi. Ações de rua como a busca pelo en-
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Pro-
contro, pela subjetividade e pelos afetos os artistas em
grama de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Natal, 2012.

256
O CIRCO SOCIAL:
TRANS/FORMANDO E TRANS/PORTANDO
Marilia Teodoro de Leles

Transformações: uma questão de performance

É certo que a palavra performance192 tem sido bastante utilizada em português em diversas árease
com sentidos variados. Na educação física, por exemplo, este termo tem uso corrente, possuindo um signi-
ficado semelhante àquele registrado pelodicionárioAurélio Básico de Língua Portuguesa (1988, p. 497): “1.
Atuação, desempenho(especialmente em público). 2. Esport. O desempenho de um desportista (ou de um
cavalo de corrida)em cada uma de suas exibições”. Neste caso,a palavra performancevincula-se estritamente
ao desempenhoe está vinculada aos scores, ao resultado, apenas quantitativo, de erros e acertos, pontuações,
alcançados dentro das especificidades e regras das diversas modalidades esportivas.

Robson Camargo (2015) destaca que o termo performance tem sido também entendido, de for-
ma genéricae limitada, sendo confundido apenas como sinônimo de um determinado movimento artístico
(Performance Art) ou de uma determinada manifestação cultural, além de remeter para nomear a ações do
cotidiano, o que acaba gerando, segundo o autor, um significado classificatório que esvazia o seu complexo
sentido de análise.

A utilização deste termo em sentido restrito tem sido alvo de críticas por estudiosos que se esforçam
em demonstrar a complexidade, multiplicidade e diversidade presentes neste campo. Segundo o antropólo-
go John Dawsey (2007, p. 529), “o conceito de performance adquire formas variadas, cambiantes e híbridas.
Há algo de não resolvido neste conceito que resiste às tentativas de definições conclusivas ou delimitações
disciplinares. ”

Neste trabalho, o conceito de performanceenvolve um caráter interdisciplinar, com complexidade


e capacidade de agenciamentos próprios, que não se findam na compreensão deste por um único viés dis-
ciplinar ou fato cultural.O Circo Social é compreendido aqui como lócus performático que proporciona
transformações e transportes naqueles que o vivenciam.

Perambulando pelo Circo Social

Na tentativa de compreender o Circo e sua história, foi possível perceber que existe uma grande
dificuldade na identificação do período e local exatos em que esta manifestação passou a existir. São várias as
formas de manifestação dessa arte, nas ruas, nas praças, nas feiras, sob grandes lonas e até mesmo em teatros,

192. Utilizarei o termo que surgiu do inglês para registrar o seu caráter ambíguo e contraditório na tradução ao português.

257
fazendo parte do imaginário e do cotidiano de sociedades diversas. Duprat (2014, p.24.) afirma que a arte cir-
cense: “[...] tem suas origens na Antiguidade, nas atividades do entretenimento, nos elementos das festividades
sacras e religiosas e nas apresentações públicas realizadas em praças, ruas, tablados e teatros populares”.

Vários personagens que estavam presentes na Idade Média, como saltimbancos, funâmbulos, bobos
e bufões são, atualmente, identificados como circenses. Camargo (2005) ressalta a presença de malabaristas
e acrobatas já nos teatros de feira do século XVII, na Europa, além da presença de trapezistas, engolidores
de espadas, equilibristas, dentre outras variedades, nas pantomimas realizadas no período do Império Ro-
mano (27 a.C. – 467 d.C.). Silva (2016) afirma que foi no final do século XVIII que grupos de artistas em
suas diversas atuações começaram a se unir e, dessa união, começaram a se identificar enquanto circenses.
Foi, também, nesse período que o circo tomou novas proporções com o surgimento do que se chamou Circo
Moderno193 (BOLOGNESI, 2009).

Assim como é difícil e complexa a tarefa de identificar a origens do circo no mundo, o mesmo
acontece ao procurarmos identificar de forma precisa a data de chegada dessa arte no Brasil. Cooper e Vieira
(2014) apontam que, embora essa seja uma árdua tarefa devido a existência de registros diversos apontando
períodos variados dessa “chegada”, é importante ressaltar que vários artistas já ocupavam as ruas do país.
Tratavam-se “dos famosos saltimbancos, que se adaptavam ao espaço, tempo, local, cidade e tudo aquilo que
lhes era proposto” (COOPER e VIEIRA, 2014, p.16).

Em sua dissertação de mestrado,O circo, sua arte e seus saberes: o circo no Brasil do final do século
XIX e meados do século XX (1996),Ermínia Silva afirma que, a partir do século XIX,já existem registros de
famílias circenses no Brasil e, segundo Silva (2007) apud Duprat (2014), foi, ao longo desse século, que o
circo e suas manifestações se expandiram no país.

Durante muito tempo, o circo possuiu uma organização própria, baseada na organização coletiva/
familiar. Segundo Silva (2008), essa organização se caracterizava por uma formação do artista circense, ba-
seada na transmissão oral dos saberes e práticas, sendo que ser artista não significava a apreensão e execução
de um único número ou habilidade, mas sim de “[...] todos os aspectos que envolviam aquela produção e
que implicava um longo processo de formação/socialização/aprendizagem, bases de estruturação e identi-
dade ” (SILVA, 2008, p.192).

Atores como (SILVA, 2008) e (FIGUEIREDO, 2007) nos afirmam que circo passoupor transforma-
ções diversas na sua forma de organização,que antes era baseada na interdependência entre formação/so-
cialização/aprendizagem. Apontam como causas o distanciamento das novas gerações de famílias circenses,
que começaram a se preocupar em possuir uma residência fixa, para estabilidade nos estudos e formação de
seus filhos e o alto custo de manutenção dos animais e o maior acesso aos meios de comunicação em massa.

Em decorrência dessas transformações, começaram a surgir, no final da década de 1970 e década


de 1980, as escolas de circo no Brasil, a primeira delas foi a Academia Piolin de Artes Circenses, na cidade
de São Paulo. É importante ressaltar que tais iniciativas partiram de circenses de famílias tradicionais que
acabaram fixando-se nas grandes cidades, mas que se preocuparam com a continuidade de transmissão dos
saberes circenses (DUPRAT, 2014).

Ainda segundo (DUPRAT, 2014), dessas transformações e iniciativas de novas formas de “fazer
circo”, principalmente a partir da década de 1990, começaram a surgir no país projetos que viam no circo
um importante instrumento pedagógico e que poderia ser utilizado para contribuir com a democratização

193. Na Idade Moderna, surge a estrutura semelhante a que reconhecemos hoje enquanto “circo”, a partir da iniciativa do ex-militar Philip Astley
(1742-1814), considerado o pai do circo moderno, que construiu uma estrutura circular permanente para a apresentação de shows de acrobacias em
cavalos e que, posteriormente, começou a agregar artistas diversos que saíram das ruas e passaram a se apresentar em recintos fechados.

258
de saberes e com a busca por equidade social. Desses projetos surgiu o que hoje conhecemos como Circo
Social, uma das formas em que o circo se apresenta, se faz e se renova. E este Circo social é o que constitui
o foco deste trabalho.

Dal Gallo (2009) explica que,na década de 1990, surgiram no Brasil muitas iniciativas de ONG’s
(Organizações Não Governamentais) além de fundações e associações sem fins lucrativos que possuíam
como objetivo realizar um trabalho com crianças e jovens em situação de rua, em prol da inclusão social
e o exercício da cidadania. Segundo esse autor, o termo “Circo Social” surgiu da parceria entre uma com-
panhia circense chamada Intrépida Trupe, fundada no Rio de Janeiro, e uma associação (SER – Se essa
rua fosse minha), criada em 1991 também no Rio de Janeiro e cujo intuito era o de oferecer a crianças
oficinas com diversas linguagens artísticas. O termo Circo Social foi então “[...] utilizado para indicar o
fenômeno no qual são utilizadas disciplinas circenses como instrumento de educação, formação e ação
social ”(DAL GALLO, 2009, p.23).

Projetos de Circo Social podem ser compreendidos, então, como ações desenvolvidas por uma as-
sociação sem fins lucrativos, que possui como foco o trabalho com sujeitos que se encontram em situação
de risco social, buscando uma transformação baseada em um comprometimento ético, no âmbito social,
utilizandopara isso as artes e técnicas circenses como ferramenta pedagógica.

É nessa configuração que a Escola de Circo Laheto se inclui. Sua sede fica na região leste de
Goiânia, no Parque da Criança, ao lado do Estádio Serra Dourada - o principal estádio de futebol da
cidade. Larissa Guedes194 (2016) afirma, baseando-se no estatuto da instituição, que “o Laheto é um grupo
que tem como cerne os estudos, trabalhos e pesquisas focalizadas em políticas de assistência a crianças
e adolescentes oriundos de famílias em situação de risco e vulnerabilidade socioeconômica” GUEDES,
2016, p.36).

Fundado no ano de 2000, a história do Lahetoinicia-se a partir do encontro de Seluta Carvalho e


Valdemir de Souza (conhecido como Maneco Maracá). O casal fundou o grupo de teatro Laheto em 1994,
possuindo forte diálogo e pesquisas relacionadas ao circo. No ano de 1996, em uma parceria entre a PUC Goiás
(Pontifícia Universidade Católica do estado de Goiás), surge a Escola de Circo Dom Fernando, sediada no Ins-
tituto Dom Fernando. Após algum tempo e algumas transformações, Seluta e Maneco se desligaram da Escola
de Circo Dom Fernando, transferindoseu trabalho para o Parque da Criança, fundando, assim, o Circo Laheto.

Asatividades desenvolvidas na Escola de Circo Laheto, coordenadas por Seluta Carvalho, ba-
seiam-se na oferta de aulas/oficinas variadas, dentre elas, percussão, leitura e contação de histórias, teatro,
matemática e prática circense, nos dois turnos (matutino e vespertino), de segunda a quinta-feira. Sema-
nalmente, às sextas-feiras, há reuniões pedagógicas para a avaliação das atividades que foram desenvolvi-
das e planejamento de novas atividades.

A Escola também conta com algumas parcerias e convênios com outras instituições: a Universidade
Federal de Goiás (pela incorporação da escola de circo como campo de estágio de alguns cursos da univer-
sidade); a Secretaria Municipal de Educação, através do Programa Mais Educação195, realizando parcerias
com duas escolas municipais situadas próximas ao circo.

194. Larissa Sttéfany de Paula Guedes (Larissa Guedes) atuou por quase três anos no Circo Laheto, faz parte da Rede Circo do Mundo Brasil, atual-
mente é educadora e coordenadora do curso de Artes Circenses do Instituto Tecnológico de Goiás em Artes Basileu França e no ano de 2016 lançou
o livro Era uma vez um circo: A história do Circo Laheto.
195. O Programa Mais Educação, consiste em um programa do Ministério da Educação que possui como perspectiva a otimização da jornada escolar
de crianças e adolescentes, no contra turno escolar. O programa atualmente possui como foco a melhoria da aprendizagem da língua portuguesa
e matemática, mas também contempla outros campos, como arte cultura esporte e lazer. Para maiores informações acessar o portal MEC - http://
portal.mec.gov.br/

259
O circo Laheto vem conquistando o cenário municipal, estadual e nacional por meio dos seus tra-
balhos. Atualmente, faz parte da Rede Circo do Mundo Brasil196, criada também no ano de 2000, decorrente
da parceria de algumas organizações.O Lahetofoi sede do 1º Festival de Circo Social da Nossa América, em
2010 e conta com mais de dez prêmios197 recebidos desde 2005.

Trans/formas e trans/portes no Circo Laheto

Eleonora Fabião, em seu texto Performance e Teatro: poéticas e políticas da cena contemporâ-
nea(2008), procura estabelecer algumas reflexões sobre o conceito de performance, propondo, inspirada
pelas ideias de Deleuze e Guattari (1999), a utilização do termo “programas” para se referir às ações perfor-
mativas, considerando que programas são motivadores de experiências. As experiências, segundo a auto-
ra, constituem a força maior daperformance, e ainda, baseando-se em algumas reflexões de Victor Turner,
afirma que “[..] uma experiência, por definição, determina um antes e um depois, corpo pré e corpo pós-
-experiência. Uma experiência é necessariamente transformadora, ou seja, um momento de trânsito da
forma, literalmente, uma trans-forma.” (FABIÃO, 2009, p.237)

Em seu texto de 1985 Performers and Spectators Transported and Transformed (Performers e Espec-
tadores Transportados e Transformados, in BetweenTheater and Antropology, pgs 117-150)198 Schechner tece
reflexões a respeito da realidade teatral/performance/ritual. Compreende o autor que existem dois “tipos de
performance” referentes a tais processos, ou seja, o autor fala da existência de performances que se cons-
tituem enquanto transportadoras e outras transformadoras, sendo que estas duas espécies de performan-
ce, as performances transportativas e as performances transformativas “ocorrem” juntas, trabalham juntas
(SCHECHER, 1985, p.125).

É certo que Fabião, em seu texto, circunscreve a prática da performance com base em experi-
ências no teatro do século XX, e Schechner trata de forma muito mais complexa o termo performance
do que propõe este trabalho, porém, podemos compreender que, para estes autores, performances tam-
bém são transformadoras, ou seja, provocam um “trânsito da forma”. E é neste sentido, de evidência
da movimentação/transformação da forma que a palavra trans/forma aparece nesta estética, no título
deste trabalho.

De acordo com o Dicionário Editora da Língua Portuguesa 2011 (2011, p.1572), {trans-} é um termo
derivado do latim (trans), que significa “além de”, sendo um “elemento de formação de palavras que exprime a
ideia de além de, para além de, em troca de, através, para trás[...]”.Considerando essa conceituação, parece ser
possível compreender as performances como elementos que provocam uma modificação/transformação da
forma, seja a forma física, formas de pensar, de agir ou de se portar, formas que vão para além delas mesmas. Se
pensarmos em “transformações”, podemos,numa analogia, ir além, embora não utilizando a divisão etimoló-
gica e morfológica. Dividindo a palavra (trans-form-ações)podemospensar no processo de compreensão desta
transformação da forma, considerando que esta necessita de uma “ação” ou “ações”.

Da mesma forma que a trans/formação, temos o termo trans/porte, considerando que “porte”, den-
tre outros significados, consiste, segundo o Dicionário Editora da Língua Portuguesa2011 (2011, p.1269)

196. Para maiores informações ver http://www.redecircodomundo.org.br


197. Dentre eles: Prêmio Itaú Unicef (2005, 2007, 2013 e 2015) concedido pela Fundação Itaú em parceria com a UNICEF, Prêmio Carequinha de
Estímulo ao Circo (2008, 2009 e 2012) concedido pela FUNARTE (Fundação Nacional de Artes) e Prêmio de melhor espetáculo, com o espetáculo
“História de Goiás no Picadeiro”, concedido pelo Festival Internacional Goiânia em Cena 2009, a partir da Secretaria Municipal de Cultura. (GUE-
DES, 2016)
198. Este texto teve sua primeira versão em palestra de 1979, em Minneapolis, no Walker Art Center. As traduções do inglês são de Robson Corrêa
de Camargo.

260
em um “1 ato de levar ou trazer 2 transporte [...] 6 capacidade 7 desenvolvimento 8 modo de proceder;
comportamento 9 consideração; importância 10 aspecto físico de uma pessoa; atitude; postura 11 estimação
[...]” Ou seja, pensar nas performances como trans/portesalém de transportadoras (que leva de um lugar a
outro), é considerar que as ações performativas podem levar os indivíduos além das próprias capacidades,
dos modos de proceder, ir além do aspecto físico, das próprias atitudes e posturas. Desta forma, temos que
trans/portes e trans/formas são considerados, neste trabalho, como termos que se complementam, uma vez
que ambos consistem em experiências que levam para “além de”.

Considerando a analogia que fizemos com o termo transformações e a etimologia de transpor-


tações, e as considerações feitas sobre o circo social e a Escola de Circo Laheto, partiremos agora para as
reflexões a respeito dos trans/portes e das trans/formas proporcionadas pelas ações desenvolvidas nesta.

As crianças atendidas no Laheto desenvolvem as atividades no seu contra turno escolar. As crianças
são transportadas das escolas em que estudam, a que denominamos escolas parceiras, em um ônibus adqui-
rido pelo circo com ajuda de outras parcerias. Consideramos que começa aí o transporte mais visível deste
processo. As crianças saem de um lugar e adentram o mundo do circo, voltando ao final de suas atividades
para o lugar de onde saíram.

Durante as atividades, as crianças são inicialmente reunidas para um diálogo inicial, no picadeiro
e, posteriormente, são divididas para a realização das oficinas. Desta forma, elas são “transportadas” de uma
oficina a outra durante o turno em que são atendidas. A cada aula, as crianças vão adquirindo novas habili-
dades/técnicascircenses (além de habilidades de outras áreas, como já foi dito).

O Laheto atende crianças e jovens de 6 a 16 anos de idade, que são divididos em grupos pela faixa
etária, além do grupo profissional, do qual fazem parte os alunos que aprimoram suas habilidades e deci-
dem seguir nas atividades circenses, ou seja, trans/formam-se em artistas circenses.Segundo Figueiredo
(2007, p.47),“A profissionalização dos jovens que participam dos projetos de circo social acaba também
se transformando em uma realidade concreta, por mais que a maioria desses projetos não seja voltada
para ela”.

Os alunos adquirem novas habilidades artísticas, além dos conhecimentos trabalhados nas demais
oficinas (como a de leitura e matemática, por exemplo), havendo a possibilidade de se transportarem de
um nível a outro. Com o decorrer de sua evolução “[...] é cobrada uma postura diferente dos alunos. Os
professores são mais exigentes em relação às técnicas circenses e outras competências, como já se pressu-
põe” (GUEDES, 2016, p.62).Nessa afirmação de Guedesé possível perceber a transformação e o trans/porte
possíveis, pois trata-se de uma mudança de nível além de uma transformação de postura. A autora ressalta
o fato de que, caso um aluno não se sinta seguro para participar de uma turma mais avançada, este tem a
liberdade de se manter na turma em que se encontra.

É possível considerar os espetáculos como momentos de fechamento de ciclos, ou seja, o fe-


chamento e um ano de trabalho além da passagem dos alunos de um nível ao outro. É um momento de
legitimação do trabalho realizado, sendo “comprovado” pela sociedade (o público) Além dos espetáculos
realizados com e pelos alunos do circo, atualmente, a trupe da escola possui quatro espetáculos comple-
tos, sendo que “A produtividade artística do grupo destaca-se pela preocupação com as questões éticas,
políticas e socioculturais unidas ao lúdico, reforçando o propósito de transformação social através da
arte” (GUEDES, 2016, p.45).

A escola de circo preocupa-se em trabalhar questões éticas, políticas e socioculturais para além dos
momentos de oficina ou espetáculos, sendo valorizada a incorporação de tais elementos no cotidiano dos
sujeitos envolvidos com a escola (GUEDES, 2016).

261
Segundo a coordenadora Seluta Rodrigues, em levantamento199 realizado no ano de 2018, foi cons-
tatado que, dos jovens que passaram pelos cursos de formação profissional oferecidos pelo circo, 80 atuam
na área de arte/educação e 11 foram selecionados nos editais da Escola Nacional de Circo, no Rio de Janeiro.

Tais informações vão ao encontro do exposto por Figueiredo (2007, p.47-48), pois, segundo ela, o
circo social proporciona diversas oportunidades, como serem educadores em projetos sociais, trabalharem
em circos, como artistas, ou montarem suas próprias trupes.“De todas essas formas, a profissionalização
circense passa a ser uma oportunidade evidente e, muitas vezes, de grande atração para os jovens. ”

Importante considerar, ainda, os eventos organizados pelo grupo Laheto, denominados “Domingo
no Circo”. Esses eventos ocorrem mensalmente, aos domingos, no próprio circo, contando com feiras de
alimentos e artesanatos, apresentações e oficinas de atividades circenses (tecido acrobático, perna de pau,
malabarismos, dentre outras) em que qualquer pessoa presente no evento pode vivenciar, com o auxílio da
arte/educadores.

A partir de tais recortes é possível perceber que são várias as ações geradoras de trans/formas e
trans/portes desenvolvidas na Escola de Circo Laheto. Segundo Carvalho et.al. (2006, p.149):

Embaixo da lona colorida, no picadeiro, as crianças e adolescentes experimentam


toda fantasia e transformação possível: vale ser palhaço, equilibrista na perna de
pau, malabarista, diabolista, acrobata, monociclista, mágico, apresentadores, ani-
madores culturais e muitas outras possibilidades que a imaginação e a criativida-
de permitirem.

Tais trans/formações geram trans/portes, enquanto que os trans/portes geram, também, trans/for-
mações, com base em mudanças na forma, no pensar, no agir, no fazer circo, no cotidiano. Com isso, o
circo social pode ser compreendido como um importante lócus de performances tendo em vista asdiversas
experiênciasque ocorrem, para além dos espetáculos em si.

Considerações Finais

Foi na busca por uma reflexão sobre as performances realizadas no e pelo circo social que este tra-
balho foi produzido, na tentativa de compreender a Escola de Circo Laheto como um campo lócus, gerador
de trans/forma/ções e trans/portes, considerando que possui um comprometimento com a realidade social,
com aspectos éticos, políticos, socioculturais, com a arte e com a formação de indivíduos que se encontram
em situação de risco social.

Neste cenário, crianças e adolescentes, oriundos, em sua maioria, de classes baixas, “[...] desenvol-
vem múltiplas habilidades que vão além do picadeiro. E, do picadeiro, saem para expressar ao mundo seus
sonhos e dar o significado que esta arte produz em suas vidas.” (CARVALHO et.al.2006, p.148)

Debaixo da lona podem ocorrer diversas mudanças para além daquele espaço. A criatividade,
como elemento forte do circo, proporciona aos alunos da escola o poder de criaçãoe esse éo fator principal
da transformação do educando. Ainda segundo (CARVALHO et.al.2006, p.148), a possibilidade de expres-
são contribui para que os indivíduos reflitam e atuem diretamente na construção de normas, condutas,

199. Seluta Rodrigues Carvalho divulgou os dados durante a participação da mesa-redonda A história do circo vem de longe e longe vai...-Torres
(1998), promovida pelo projeto de extensão Circolando: Grupo de experimentação e pesquisa em circo, da Universidade Estadual de Goiás, Campus
ESEFFEGO, no dia 07 de abril de 2018.

262
acontecimentos e, consequentemente, na própria realidade (dentro e fora das aulas de circo).Figueiredo
(2007, p.44) reforça essa afirmação, ao destacar que “a criação e a transformação são possíveis, a partir do
momento em que as pessoas se utilizam da sua imaginação e do seu poder criativo e perceptivo sobre uma
realidade e situação. ”

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263
PANORAMA DO FAZER
CIRCENSE EM GOIÂNIA
Lariza Zanini César Nakatani – UEG/Campus Goiânia ESEFFEGO
Mônica (Lua) Alves Barreto – UNICAMP/FEF

Introdução

O objetivo deste artigo é trazer um panorama do circo em Goiânia através das pesquisas e trabalhos
realizados nos diferentes espaços de ensino e aprendizagem de arte circense nesta cidade. Para o enriqueci-
mento da discussão foi realizada no dia sete de abril de 2018, na Universidade Estadual de Goiás – Campus
Goiânia ESEFFEGO, uma mesa redonda200 entre representantes de diferentes vertentes do circo goiano, a
qual teve como tema: “A história do circo vem de longe e longe vai”201, tornando possível levantar as infor-
mações e questionamentos presentes neste texto, baseados nas falas das palestrantes Marilia Leles, Seluta
Rodrigues, Larissa de Paula e Lua Barreto.

O circo está e sempre esteve presente nas mais diversas frentes e hoje, mais do que nunca marca pre-
sença nos debates, discussões e pesquisas. Apesar da tão proclamada ‘crise’ do circo (MATHEUS, 2016), a arte
circense resiste e se faz presente nas diferentes instâncias de ensino e aprendizagem. Este texto irá abordar as
relações de ensino e aprendizagem da arte circense no circo social, na profissionalização e no circo de rua.

Para tal descreveu-se um panorama histórico e característico do circo, apontando os diversos ca-
minhos que este percorreu e ainda percorre até a contemporaneidade, dando vislumbre ao cenário de três
espaços de ensino e aprendizagem das artes circenses e do fazer circense no meio goianiense. São eles: o
Circo Laheto (circo social); a Escola de Circo do Instituto Tecnológico em Artes Basileu França (escola pro-
fissionalizante) e o circo de rua (artistas circenses de rua).

O circo e suas histórias

Ao se pensar em circo e tentar buscar sua origem e histórico, assim como boa parte da cultura popu-
lar, não é possível precisar uma única origem ou uma data precisa; Duprat (2014) diz que há registros desde a
Antiguidade, Bakhtin (1987) identifica elementos circenses na Idade Média, como os saltimbancos e bufões,
Camargo (2005) aponta em suas pesquisas personagens circenses nos teatros de feira do séc. XVII no contexto
europeu, dentre eles os malabaristas e acrobatas. Silva e Abreu (2009) discorrem que no final do séc. XVIII

200. Participaram da mesa as palestrantes Marilia Leles, Lua Barreto, Seluta Rodrigues e Larissa de Paula, tendo como mediadora Lariza Zanini.
201. O nome do evento faz uma referência a Torres (1998).

264
na Europa é que iniciou-se uma identidade denominada circense, em que famílias ou grupos começaram a
se reunir e se reconhecer como tais e apenas entre o fim do séc. XVIII e início do séc. XIX é que surge o circo
moderno com Philip Astley, ex-militar que foi o responsável por construir a estrutura circular para os números
de acrobacias equestres e mesclou, junto aos números com cavalos, outras apresentações, como os funâmbulos,
saltimbancos, dentre outros advindos de artistas de rua em seus espetáculos (TORRES, 1998).

E embora seja uma cultura muito rica e que se mantém por tanto tempo, alguns autores vão dizer
que “[...]quando comparada a outras formas de manifestações culturais – como o teatro, o cinema e a música
–, a produção e divulgação científica sobre o circo no Brasil ainda é bastante limitada” (ROCHA, 2010, p.
52). Mas é importante ressaltar que esta produção tem aumentado nos últimos anos, o que pode ser confir-
mado pelo número crescente de publicações disponíveis.

Dentre as formas de se fazer circo destacam-se o circo moderno já supracitado e o circo família (tam-
bém entendido como circo tradicional), categoria apontada por E. Silva (2003; 2008) como uma forma familiar
e coletiva de constituição do profissional artista circense, que tinha como características o nomadismo e a
transmissão oral do conhecimento – a qual não se restringia apenas à aprendizagem de um número circense,
mas de todos os espaços, desde montagem da lona à bilheteria. Traz em seus espetáculos a contemporaneidade
do diálogo tenso e constante com as múltiplas linguagens artísticas de cada época, característica esta que per-
manece até os dias atuais. Entre 1950 e 1960 inicia-se uma desarticulação dos processos de socialização, forma-
ção-aprendizagem e organização do trabalho do circo família. Uma das principais mudanças foi a contratação
de artistas especialistas, responsáveis por realizarem um determinado número do circo, não conhecendo e/ou
participando, necessariamente, de todas as facetas e demandas que o circo, em sua totalidade, exige. Inicia-se
também uma preocupação por parte dos artistas circenses com relação à educação formal de seus filhos que,
de certa forma, era prejudicada devido ao nomadismo e ia contra a lógica do sistema de sociedade imposto.

Iniciaram-se então diferentes formas de se fazer o circo. O nomadismo não deixou de existir, porém
alguns artistas tradicionais começaram a se fixar e outros caminhos começaram a ser estabelecidos. Entre
1975 e 1985 começam a surgir, no Brasil, as escolas de circo e o circo social. O processo de ensino-apren-
dizagem circense abre, então, outras possibilidades de aprendizado. Além das famílias circenses, este co-
nhecimento passa a ser oferecido por meio de cursos livres, de projetos sociais e por escolas especializadas.
Em todas essas “transformações” que o circo tem passado, percebe-se que o principal ponto de modificação
tem sido nos processos de ensino e aprendizagem, que “transforma” para além da forma, exigindo “ações”,
diferentes processos de se aprender, ensinar e fazer circo.

Dentro deste panorama geral de formação/transformação e de manifestações das artes circenses, é


possível encontrar em Goiânia, atualmente, os circos itinerantes, artistas circenses que se apresentam nas ruas,
projetos de extensão a nível escolar (Escola de Circo Dom Fernando) e a nível universitário (Circolando: grupo
de experimentação e pesquisa em circo – UEG/ESEFFEGO); escolas especializadas (Gelb Zirkus – acrobacias
aéreas); circo social (Circo Laheto); e escola de formação inicial continuada (Circo Basileu França).

Circo social: pedagogias que transformam – Circo Laheto

O circo traz espanto, estranheza, mas é nesse espanto que a gente sai
do lugar e que busca transformação – Seluta Rodrigues de Carvalho,
Sócio-fundadora e Coordenadora Pedagógica do Circo Laheto

.
O circo social é o termo que se usa para denominar o uso da arte circense como ferramenta peda-
gógica, articulando os processos de ensino e aprendizagem da cultura, das artes e das habilidades circen-

265
ses a conceitos pedagógicos, construindo ambientes educativos que favorecem a elevação da autoestima, a
construção e o fortalecimento da autonomia e o desenvolvimento das capacidades dos sujeitos em situação
de risco social, com os quais trabalham, para o pleno exercício dos seus direitos sociais e da cidadania, ao
mesmo passo em que buscam a consolidação de metodologias inovadoras de formação qualificada para
as artes do circo, construindo com crianças, adolescentes e jovens, meios para a sua inserção produtiva no
mercado de cultura, lazer e entretenimento (DAL GALLO, 2010; GUEDES, 2016).

A metodologia utilizada através do circo pelo próprio Circo Laheto tem sido inovadora e eficiente.
O Circo Laheto tem como objetivos principais o estudo, a pesquisa, ações socioculturais e educativas visan-
do o atendimento a crianças e adolescentes de escolas públicas, sendo assim uma opção para oferecer um
espaço de arte, cultura, lazer e formação para crianças vinculadas a escolas públicas. Desde o início de suas
atividades, as mesmas vêm sendo oferecidas de maneira gratuita, com o intuito de alcançar e tirar crianças e
jovens do local de risco em que se encontram, oportunizando uma possibilidade de transformação na vida
dos mesmos (GUEDES, 2016).

Laheto significa “cocar” e é um ornamento específico utilizado na etnia Karajá durante o ritual de
passagem da infância para a vida adulta, denominado Hetokuhoky (M. SILVA, 2013). O Circo Laheto adotou
este nome como uma simbologia/associação de que as crianças e adolescentes que passarem pelo Laheto
sejam transformados de forma qualitativa nas diversas áreas de suas vidas, da infância e adolescência para
a vida adulta.

O circo Laheto atua há 25 anos em Goiânia e tem como finalidades:

a) Dinamizar atividades artísticas e sócio educativas a fim de melhorar e servir a comuni-


dade; b) Promover seminários, pesquisas, curso de formação cultura, debates e apresenta-
ções de espetáculos em âmbito público e particular a fim de elevar o nível de pesquisa, da
compreensão do nosso processo cultural e reconduzir a arte ao seu lugar de importância
no contexto do mundo atual [...] Objetivando a preparação de profissionais habilitados
em multiplicar e solidificar a proposta educacional do grupo [...] (GUEDES, 2016, p.36)

Para alcançar tais propostas o Laheto desenvolve vários projetos, dentre eles destaca-se o projeto
Arte, Circo e Cidadania – Iniciação em artes circenses, o qual atende cerca de 150 crianças de escolas pú-
blicas atualmente, com atividades de artes circenses (acrobacias aéreas, de solo e de mola, malabares, palha-
çaria, dentre outros), além de outras atividades complementares como o teatro, a música, a leitura e jogos
de matemática, potencializando e ajudando no suporte escolar de crianças e adolescentes (GUEDES, 2016).

Outros projetos também são realizados: projeto Biblioteca Baú da Imaginação – envolvendo lei-
tura, dramatização e contação de histórias; parcerias com o Programa Mais Educação – pelo qual são
levados espetáculos para dentro das escolas públicas; projeto Matemática no Circo – em parceria com a
Faculdade de Matemática da Universidade Federal de Goiás (UFG) em que o Laheto é campo de estágio
e utiliza-se dos equipamentos do circo para se trabalhar o raciocínio lógico; dentre outros. E juntamente
com os projetos realizados são construídos espetáculos temáticos, a partir do que é trabalhado nos pro-
jetos no decorrer do ano.

Após as crianças e adolescentes se formarem o Laheto continua auxiliando escrevendo projetos


para formação continuada e estimula-os a participarem de editais, como por exemplo da Escola Nacional
de Circo do Rio de Janeiro (ENC). Dentre as crianças e adolescentes que passaram pelos cursos oferecidos
pelo circo Laheto de formação profissional, 80 deles atuam na área de arte-educação e 11 foram selecionados
nos editais da ENC.

266
O circo Laheto tem um compromisso com a formação desses jovens e a duras penas trabalha nessa
missão, levando como lema a afirmação a abaixo:

Educar com circo é apostar na alegria e recuperar todo o potencial civilizatório de uma
arte milenar, que desde suas origens teve por base a diversidade, a aceitação do outro, o
sentimento do fantástico e do mágico, a superação dos limites, a convivência e criação
coletivas e, acima de tudo, a brincadeira e o jogo levados a sério. São estes alguns dos
elementos que baseiam a concepção do Circo Social. O Circo Social sonha com um mun-
do diferente, integrado e solidário, que se aceite como ele é: o lugar de todos – redondo,
itinerante e a céu aberto.202

Escola profissionalizante – Escola de Circo Basileu França

A Escola de Circo Basileu França teve seu início de forma simples e precária, no ano de 2003. As
aulas eram realizadas nos corredores e debaixo de árvores da instituição, impossibilitando as aulas nos dias
de chuva. Nesse período o circo era considerado uma sub-área da coordenação de Dança, recebendo o nome
de “dança aérea acrobática”. As técnicas utilizadas nas aulas eram tecido e ginástica acrobática. Em 2006, ao
ser adquirida a primeira lona do circo, a qual foi comprada já sucateada da Família Temperani de Anápolis,
as atividades circenses migraram para o espaço onde atualmente são realizadas, porém os problemas nos
dias de chuva ainda permaneciam, pois a lona tinha muitos buracos e remendos e o piso onde ela pôde ser
alçada não era próprio para atividades acrobáticas de solo.

A procura pelas atividades de circo no Instituto Tecnológico em Artes Basileu França foi aumentan-
do e em 2011 o circo sai da sub-área de dança e ganha uma coordenação própria e a aquisição da segunda
lona. Juntamente com essa aquisição o espaço passou por uma reforma para conter infiltrações e alagamen-
tos decorrentes das águas da chuva.

Em 2013 houve uma mudança da coordenação do circo e iniciou-se uma nova fase no aspecto es-
trutural/físico – o espaço passou por uma outra reforma, a partir de alguns projetos de lei em que a coorde-
nadora Mônica Poli conseguiu vários materiais para equipar e auxiliar as aulas que lá aconteciam e que são
usados ainda na atualidade, como malabares, colchões, tecidos, etc. Muitas mudanças de caráter pedagógico
também aconteceram, juntamente com contribuições de profissionais das artes cênicas e da educação física.
Todas as modificações que aconteceram a partir desse período desencadearam novas conquistas. Atualmen-
te o curso de circo é oferecido na modalidade FIC (Formação Inicial e Continuada), sendo um curso de 3
anos, contendo nível I, II e III. Há também o curso livre de Tecido Acrobático, e está sendo implementado
o Corpo Circense. Neste ano de 2018 o circo Basileu França conseguiu destinar uma “bolsa artista” para
alguns dos participantes dos cursos, via programa estadual que beneficia os alunos.

Para além do trabalho com a formação inicial e continuada em circo que o Basileu França promove
e que por meio dele conseguiu formar vários alunos para atuarem como professores e/ou continuar sua
formação mundo afora, apresentam como produto artístico ao público espetáculos anuais, decorrentes de
projetos temáticos que são trabalhados no decorrer do ano e datas festivas, como exemplo: Nova Esfera – a
Terra sem fogo; “Secos e Gramados” – festa de reinauguração da nova lona; “Quadrilha Acrobática” – se
encontrando já em sua 6ª edição; “O Circo do Fim do Mundo”; entre outros.

202. Texto de autoria de Cléia Jose Silveira – Assessora Nacional da Rede Circo do Mundo. Disponível em: <http://www.escolapecirco.org.br/
website/escola-pernambucana-de-circo/circo-social/>, Acesso em: 18 mar. 2018. Citado na mesa redonda do dia 07 de abril de 2018.

267
Na tentativa de minimizar as dificuldades encontradas no cenário artístico e mercadológico local,
o circo Basileu França segue apoiando e contribuindo com festivais de circo pelo estado, como a Jornada
Elreca203, e todos os encontros que são realizados a partir do coletivo “É só querê fazê”. O coletivo “É só
querê fazê” integra uma rede de colaboradores e em seu calendário tem atualmente três festivais principais,
são eles: o Encontro Goiano de Malabares e Circo; o Festival de Circo de Taquaruçu; e o Festival de Circo
e Palhaços de Anápolis. Esse coletivo organiza e desenvolve esses eventos, na maioria das vezes, de forma
independente e colaborativa. Os artistas ficam alojados nas casas uns dos outros, dificilmente recebem cachê
particular, porém investem na aquisição de verba pública via leis de incentivo à arte, cultura e afins.

Saltimbancos Contemporâneos – o circo na rua

Há cerca de dez anos atrás era raro ver artistas circenses se apresentando no sinal, na cidade de
Goiânia. Hoje já é comum, existem muitos. Nos últimos anos foi perceptível o crescimento da quantidade
de artistas se apresentando nas ruas da cidade e por esse motivo intentou-se compreender um pouco mais
sobre esse artista. Dentre os questionamentos levantados têm-se: saber como ele aprende o seu número, o
que ele espera dessa carreira, qual a expectativa desse saltimbanco contemporâneo?

Como já dito no início deste estudo, há uma divergência sobre a origem do circo. Castro (2005) e
Almeida (2008) localizam a origem do circo no circo greco-romano, enquanto outros autores (E. SILVA,
1996; BOLOGNESI, 2003) localizam a origem do circo no Circo Moderno, criado por Philip Astley, no séc.
XVIII. Mas onde estavam esses artistas que Philip Astley contratava? Ele foi buscar entre os militares que
faziam as acrobacias sobre cavalos e entre os artistas de rua que executavam números de malabares, de equi-
líbrio na corda bamba, dentre outras atividades nas praças, incorporando esses números em seu espetáculo.
Há imagens que datam de cerca de quatro mil anos atrás.

Há pinturas em vasos que retratam, entre outras acrobacias, mulheres fazendo malabaris-
mo com pratos, um número encontrado nos circos ainda hoje. Berthold (2000) descreve
uma pintura em que uma jovem está em ponte204, apoiada nos cotovelos, um movimento
introdutório ao que hoje chamamos de ‘parada de cotovelo’, levando um kylix205 até a boca,
outro dos incontáveis números que fazem parte dos espetáculos de circo até os dias atuais
(BARRETO, 2018, p.35).

Portanto, há quatro mil anos atrás já se tem registros dessas atividades que vieram a compor o circo
moderno e que permanecem até hoje tanto nos espetáculos de circo de lona quanto nas ruas e outros espaços.

Quem são esses artistas de rua na atualidade? Esse saltimbanco contemporâneo? Como esse ar-
tista aprende? Se eles são, muitas vezes, itinerantes, estão sempre de uma cidade para outra, por vezes não
conseguem frequentar uma escola206, então como eles desenvolvem suas habilidades? O estudo realizado a
esse respeito encontra respostas muito diversificadas207: alguns frequentam escolas de formação; há os que
saíram de sua cidade para conhecer o mundo e depois voltaram para ela e não mais trabalharão com circo –
utilizando as artes circenses como impulsionador para conhecer o mundo; têm artistas de rua que fixam-se

203. Jornada ELRECA (Espaço Livre de Relações e Criações Artísticas).


204. Ponte – movimento acrobático em que o artista forma um arco com seu corpo, apoiado apenas nos pés e mãos ou antebraços.
205. Espécie de taça com alças.
206. Aqui o texto refere-se a escolas de circo.
207. Mais informações a respeito em Saltimbancos Contemporâneos: seu aprendizado, suas escolhas e expectativas, de Lua Barreto (2018).

268
no mesmo lugar por algum tempo, por exemplo, há um grupo que está em Goiânia há mais de dois anos,
frequentando a Escola de Circo Basileu França; outros artistas frequentaram a Escola Estadual de Circo do
Martim Cererê (durante o breve tempo em que ela existiu). Enfim, eles buscam o aprendizado onde o co-
nhecimento é oferecido. Muitos deles aprenderam na rua, como o artista Caracol, por exemplo208: “eu vendia
cafezinho, aí vi uma pessoa que jogava malabares. Fui lá e ele me ensinou, a partir daí comecei”.

O que chama muito a atenção nessa relação de ensino e aprendizagem do circo de rua são os encon-
tros. Pois para além do conhecimento formal que permeia a sociedade de diversas formas, como as escolas
de circo – que nem sempre dão acesso a esse artista itinerante, tem-se o conhecimento de troca entre eles na
própria rua. De diversas formas o artista de rua busca esse conhecimento, mas o principal ponto de troca
entre eles são os encontros. Em várias cidades do mundo acontecem, tradicionalmente às segundas feiras
à noite, encontros em que os artistas de rua se reúnem para treinar e trocar informações. Em Goiânia ele
acontece na Praça Universitária. Além desses encontros semanais, em Goiânia existe também a Jornada El-
reca, que nos últimos três anos aconteceu na casa do Saracura do Brejo, artista de circo de grande expressão
no meio circense goianiense. São três dias de encontro, durante os quais os participantes acampam no local e
os profissionais que participam oferecem o seu trabalho voluntariamente, sem ganhar nada em troca, doam
seus trabalhos – mostrando uma subversão do sistema, quebrando a lógica de que a troca pelo trabalho tem
que ser uma troca financeira.

No cenário goiano também temos o Encontro Goiano de Malabares e Circo, que já está em sua 12ª edi-
ção. Esse evento começou também sem nenhum tipo de apoio de verba pública, sua 10ª edição foi a primeira
com patrocínio de verba pública. Até lá, todos aconteciam através de iniciativas dos artistas: os profissionais
davam oficinas, apresentavam seus espetáculos sempre em troca do retorno no chapéu. Portanto o “chapéu” é
o que permite a continuidade do trabalho desse artista, tratando-se de uma troca absolutamente democrática:
coloca-se no chapéu o quanto julga valer aquele trabalho. O valor do trabalho é estabelecido pela relação entre
o público e o artista. Dentro dessa relação público/artista destaca-se o senso de coletividade que é trabalhado,
no qual o público também é incumbido da manutenção e acontecimento do evento, como por exemplo a or-
ganização e transporte das cadeiras ao final das apresentações, preparando-as para os próximos espetáculos,
fato acontecido também no último encontro nacional de artistas de circo, que reuniu cerca de 600 pessoas209.

Ao se pensar sobre o artista de rua, tem-se também o seguinte questionamento: ele vai para a rua
por que não consegue atuar em outros espaços? Uma conclusão a que se chega ao pesquisar sobre o artista
de rua é que ele está na rua, está no teatro, está no circo, está fazendo show, animação de festas, ou seja, está
em todos os lugares. Ele até pode ir para a rua porque necessidade, mas não permanece lá por esse motivo;
quem permanece na rua o faz porque quer estar lá, por escolha pessoal. O artista circense de rua tem como
expectativa ser respeitado e viver da própria arte, pois a rua possibilita-o determinar local e tempo de traba-
lho, ter autonomia e uma relação com o público diferente do sistema formal.

O circo continua...

Uma das maiores características do circo é a sua adaptabilidade. Como vimos, ao longo de sua histó-
ria o circo teve os mais diversos formatos e mudou suas configurações sempre que julgou ser necessário. Há
muitos anos fala-se em crise do circo, mas o que vemos é esta arte adquirindo novos formatos e ocupando
os mais diversos espaços, das ruas à academia.

208. Citado de memória.


209. Referência ao público participante no último encontro nacional de artistas de circo, a 18ª Convenção Nacional, em 2017.

269
O Laheto tem diversificado suas atividades, recebido prêmios nacionais, atingindo um público cada
vez maior. O Basileu França viu suas turmas de ensino de circo crescerem e se multiplicarem, ao ponto de
buscar os caminhos da formalização do ensino profissional. Os artistas de rua têm visto seus encontros
tornarem-se expressivos no cenário da arte circense nacional. Grupos e coletivos de circo contemporâneo
ocupam tanto praças e parques quanto os principais palcos da cidade.

Se existe uma crise, a arte circense tem resistido a ela de forma imaginativa, inovando nos pro-
cessos criativos, nos modos de produção, nas relações de ensino e aprendizagem, que vão se moldando
e “trans”formando à medida das necessidades contemporâneas. Esse processo de ensino e aprendizagem
acontece de diversas formas, seja no ensino sob a lona, seja com a utilização do circo como ferramenta
pedagógica, seja em processos mais horizontais, que não separam o educador do educando. Independente
do tipo de abordagem de ensino-aprendizagem, na arte circense deve-se pensar e inspirar o aluno/artista
a olhar, refletir, expressar e comunicar para além da execução “correta” de suas habilidades, estabelecendo
uma relação entre artista e público capaz de envolverem-se, transportarem-se e ambos (artista e público)
voltarem transformados para o mundo real.

Referências

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270
A ARTE DA PALHAÇARIA E
A FORMAÇÃO PSI: RELATO
DE EXPERIÊNCIA DE UMA
ESTUDANTE DE PSICOLOGIA
Bruna Patrícia Ferreira da Silva

INTRODUÇÃO

Pensar no curso de graduação em psicologia é se deparar com um espaço de dispersão das aborda-
gens metodológicas e epistemológicas diversas que existem, sendo assim, durante os cinco anos de curso,
o/a estudante se angustia e se desassossega diante da escolha teórica a ser levada no decorrer de sua prática.
Principalmente porque escolher uma abordagem trata-se de uma forma de reconhecimento pelo grupo
acadêmico. No entanto, não se desmerece tal preocupação epistemológica e teórica, a crítica aqui pontu-
ada se trata da fixação nessa preocupação ao longo dos cinco anos de graduação pois, não são apenas as
habilidades das técnicas psicológicas e das aplicações das teóricas que farão de um/uma estudante um bom
psicólogo/a. Pelo contrário, essa fixação faz perder o acesso às experiências que proporcionem uma abertura
do/a estudante na forma de olhar, pensar e se relacionar consigo e com o mundo. O estudante que se prende
aos aparatos das abordagens epistemológicas perde a capacidade de experimentação (FIGUEIREDO, 2009),
sabendo também que experimentar compreende o erro como parte da construção de saberes.

Ser psicólogo/a é ocupar espaços e posições na história e na cultura de nossa sociedade e estar pre-
parado para lidar com outras dimensões, para lidar com alteridades e realidades diversas, o que nos remete
à dimensão ética e política da profissão. É necessário pois, transitar entre os campos da epistemologia, da
ética, das habilidades técnicas e sobretudo, pelo conhecimento tácito, adquirido ao longo da vida através
das experiências (FIGUEIREDO, 2009). Mas, como ter acesso a experiências transformadoras se, na mo-
dernidade, o mundo e os acontecimentos que perpassam se efetua de modo acelerado, efêmero e líquido?
Ao sujeito pós-moderno, que está sempre correndo em direção a uma meta que tem que bater no futuro
que ainda não aconteceu, ou correndo atrás de um prejuízo num passado que já passou, que não vai voltar e
que não pode ser mudado. Se percebe que o homem contemporâneo é um “borrão” pois não está em lugar
nenhum, ou seja, não estar no tempo presente é um deslocamento constante ao passado e futuro, o que se
foi e o que ainda não é (NOGUEIRA, 2015).

Um sujeito acelerado, pontual, onde tudo o atravessa, o excita, o agita, o choca, mas nada lhe acontece,
nada o transforma significativamente porque a sociedade evita a diferença, o estranho, o mal-estar. E, a psico-
logia está inserida nesse contexto, e por isso, é necessário pensar e refletir sobre a formação ética do profissio-
nal, do psicólogo que cuida e que se fará morada para o Outro. E é nesse sentido que se instala o nosso maior
desafio, pois, estar próximo da alteridade mobiliza em nós o terror, como diz Suely Rolnik (1992),

271
Atravessar o terror que a alteridade mobiliza em nossa alma, terror ao caos e à incerteza
criadora, e que faz de nós presas fáceis de bandeiras idealizadoras. O desafio que essa tra-
vessia nos coloca é que ela implica em vencer a imensa força de resistência contra o devir,
promovida pelo terror. É só vencendo essa força que se torna possível desobstruir o acesso
à experimentação do devir: descobrir que essa experimentação não é desintegradora, ati-
var essa experimentação, afirmá-la na subjetividade (ROLNIK, 1992. p,16).

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca e a possibilidade de que algo
nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos
que correm, nos tempos acelerados, nesses tempos onde imperam as relações virtuais. A experiência requer,
portanto, parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e
escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, perceber as sutilezas dos gestos, demorar-se nos
detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza. Abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, sobre o que nos
afeta, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se
tempo e espaço (LARROSA, 2002).

Diante disso, ao pensar na educação e na formação acadêmica, desde a educação primária até che-
gar na universidade, percebe-se que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça, nada
que “nos tire do lugar da razão, do controle”, principalmente pelo excesso de informação, pela falta de tempo,
pela obsessão em ter opiniões sobre todos os conteúdos. Somos submetidos e ensinados a máxima de que é
preciso informar-se, saber opinar pessoal e criticamente sobre todo tipo de assunto, mesmo sem de fato os
conhecer (LARROSA, 2002).

Nessa lógica, saber opinar atende a uma dimensão significativa da aprendizagem, logo, a informa-
ção seria o objetivo, a opinião seria o subjetivo. Esta reação subjetiva tornou-se para nós automática. Sobre-
tudo, por haver uma diminuição da capacidade crítico-reflexiva porque somos movidos por respostas e não
somos ensinados a perguntar e, na academia o currículo se organiza em pacotes cada vez mais numerosos
e cada vez mais curtos.

A partir desse cenário, o estudante de psicologia passa cinco anos de graduação aprendendo a re-
petir conteúdos e a ser bons “opinadores” numa lógica de ir “a favor ou contra” determinadas perspectivas.
Na universidade somos sempre mobilizados a não parar, o estudante transborda informações, teorias, von-
tades e opiniões, e por esse motivo atropelam-se as experiências que chegam e que acontece na própria vida
(LARROSA, 2002).

Nesse sentido, precisa-se pensar numa educação e numa formação em psicologia que provoquem
nos estudantes rupturas e mutações subjetivas para pensar de outros modos, se relacionar conosco e com o
mundo a partir de outros pontos de vistas. E sobretudo, refletir que o profissional da psicologia é o profis-
sional do encontro, pois, lidar com o outro na sua alteridade faz parte da atividade cotidiana.

Sendo assim, ainda que cheguemos a este encontro, no fazer psicológico, com toda segurança das
teorias e das técnicas, o que vai importar é a nossa abertura e disponibilidade para a alteridade nas suas di-
mensões de algo desconhecido, desafiante e diferente; algo que no outro nos obriga a um trabalho afetivo e
intelectual; algo que no outro nos impulsiona e nos alcança; algo que do outro se impõe a nós e nos contesta,
fazendo-nos efetivamente outros de nós mesmos. Ou seja, se o profissional do cuidado não for capaz de
deixar a alteridade do outro ressoar nas nossas próprias alteridades estará totalmente incapacitados para o
exercício dessa profissão (FIGUEIREDO, 1992).

272
Diante desse cenário acadêmico existem caminhos e brechas para pensarmos em uma formação em
psicologia mais humanizada e mais aberta as alteridades. São espaços que nos mobilizam a pensar sobre que
tipo de profissional de saúde desejamos ser, preocupação não muito presente nas discussões e nas aulas de
graduação, pois nelas o foco é predominantemente nas discussões teóricas do cuidado, deixando a desejar a
dimensão da experiência e prática do cuidado.

Assim, a partir da questão que diz respeito a formação em psicologia, trazida por FIGUEIREDO
(2009) e (1992), a Experiência por LARROSA (2002), e a problemática da subjetividade trazida por Suely
Rolnik (1992) é possível relatar uma experiência vivida num projeto de extensão, PERTO (Projeto de En-
contro e Risos terapêuticos), atendendo ao tripé que sustenta a universidade, junto com o ensino e a pesqui-
sa. Foi possível pensar a partir desses pontos de vistas trazidos pelos autores e autoras, que o PERTO pode
ser visto como um espaço de educação e extensão da universidade que proporcionam aos estudantes expe-
riências de abertura ao outro, à alteridade, a si mesmo. Possibilitando uma transformação pessoal, modifi-
cando significativamente a forma de ver e agir no mundo a partir de um agir ético, integral e mais humano.

FORMAÇÃO BÁSICA EM CLOWN

Antes de relatar a experiência no processo de formação, começaremos a destacar alguns pontos


importantes e essenciais da natureza clownesca. Através do jogo vivido em cena o clown nos envolve e nos
devolve características e sentimentos inerentes ao ser humano que foram perdidos ao longo do tempo. O
clown é a dilatação da ingenuidade e da pureza inerentes a cada pessoa, ele é lírico, inocente, ingênuo, an-
gelical e frágil, no entanto, possui em si o olhar diferenciado sobre a realidade a ele apresentada e imposta,
ele também pode trazer em si a crueldade e o grotesco. Desse modo, por meio de sua liberdade, sinceridade
consigo mesmo e “descomprometimento”, ele relativiza a sociedade, as estruturas sociais que o reprime e o
marginaliza por ser diferente. Com esse movimento, ele denuncia com toda a propriedade os diversos senti-
dos e significados de diversas fomes: a fome de comida, a fome de sexo, a fome de dignidade, de identidade,
de poder e etc. A partir desse conjunto de características se percebe o encontro do grotesco com o sublime
e é nesse sentido que o clown traz o que é essencialmente a complexidade do ser humano através de sua
própria exposição ao ridículo (Brondani, 2006).

As técnicas que envolvem o clown durante os jogos são fascinantes porque o princípio fundamental
é de que o ator não interpreta um clown, ele é um clown, ou seja, não se trata de representação, mas de en-
trega de si, abertura, de ser verdadeiro, sentir tudo sensivelmente e transformar todas as energias/emoções
em corpo. Nas palavras de Brondani (2006),

O ator de clown deve ter uma relação real, verdadeira e humana, com tudo que se encontra
a sua volta. Este princípio básico da arte do clown traz com ele a magia que seduz aqueles
que o fazem e o admiram. O clown é SER/ESTAR, é ESSÊNCIA/ESTADO, não é um per-
sonagem ou um papel criado/inventado (BRONDANI, 2006, p. 18).

A partir dessa breve explanação do que se caracteriza a natureza do clown, relato o processo de for-
mação básica vivenciada em setembro de 2015. As oficinas de formação ocorreram durante cinco semanas,
apenas nas sextas, sábados e domingos. As oficinas nas sextas e domingos duravam quatro horas, já aos
sábados duravam em torno de oito horas, com intervalo apenas para o almoço. Os encontros eram bastante
intensos e exigiam dos participantes muita energia e disposição. O grupo era bastante diversificado, com-
posto por 25 estudantes novatos, o educador responsável pelas mediações das oficinas e alunos mais antigos
do projeto que estavam participando como monitores. Havia estudantes do curso de medicina, odontologia,
enfermagem e psicologia.

273
Esse contato com a palhaçaria, logo no início do curso de Psicologia possibilitou a experiência de
entrar em contato com as artes cênicas, sentir as emoções se corporificarem, estar perto da alteridade, da
vulnerabilidade de se colocar em jogo, em risco e na possibilidade de errar. Foi possível viver estas experi-
ências no projeto de extensão, até então não vividas nas aulas da graduação.

No início da oficina o grupo se sentava ao chão em forma de círculo de modo que cada integrante
possa se perceber e se reconhecer. A fala de início era iniciada pelo educador e em seguida, com a ajuda de
um “bastão da palavra”, o qual dava poder de fala para o outro, era circulado entre os integrantes, dando
a eles o direito e espaço de fala e de escuta. Desse modo, percebe-se que as relações de poder nesse espaço
não se concentram apenas na figura do professor (saber), pois as relações saber-poder circulavam no grupo.

A formação em círculo, para realizar as leituras dos diários pessoais210, sempre escritos após os
encontros, eram importantes espaços de fala e escuta entre os integrantes. A noção de círculo parece ser
mantida como forma de buscar uma horizontalidade e democratização das relações entre o grupo (FER-
NÁNDEZ, 2006, p. 21) bem como, de buscar distribuir e ampliar o campo do olhar do educador para todos
os integrantes presentes.

O diário, era um recurso utilizado como forma dos estudantes registrarem sobre seus sentimentos,
percepções, dúvidas, angústias, a experiência vivida nos jogos durante os encontros de formação e atuação.
O DB (diário de bordo) caracteriza-se como um instrumento pedagógico a partir do qual os/as estudantes
narram suas ações e experiências diárias, possibilitando um repensar da ação, um olhar mais atento ao que
foi feito e ao que ainda poderá ser melhorado. O DB proporciona um momento intrapessoal da reflexão,
tornando-se, então, um instrumento constituinte e formativo do sujeito, consequente potencializador do
processo formativo (Boszko & Güllich, 2016).

Por exemplo, na sexta à noite acontecia a oficina e após o encontro o estudante teria um tempo, en-
tre um encontro a outro, para escreverem nos diários de bordos pois, eles seriam lidos no encontro seguinte.
Desse modo, percebe-se que a análise reflexiva nesse espaço formativo era realizada constantemente, a cada
encontro, se buscava construir juntos os conhecimentos e aprendizagens. A seguir, cito um trecho de um dos
meus diários de bordo, construídos no decorrer do projeto:

“A oficina hoje se resume em uma palavra: desafio! por ser tímida e insegura, achava que
não iria conseguir permanecer até o fim dos jogos pois eu sabia que o momento mais
difícil chegaria: falar e me expor em público” [...] o jogo do picadeiro foi desafiador pois
quase tive um ataque de pânico. Ao colocar a máscara do palhaço me senti perdida, sem
conseguir pensar em nada.”

O jogo211 citado neste recorte do DB se trata do Picadeiro, um dos exercícios mais importantes por
ser nele que se nasce o clown e, a partir desse nascimento, o estudante em formação vai a caminho das des-
cobertas, de aceitação e sensibilização. Por isso o picadeiro é um potente exercício de “desarmar” as nossas
defesas do ego e mostrar toda a dinamicidade e vivacidade existentes no torto e no ridículo de cada um. Foi
possível perceber que “quanto menos se defender e tentar representar um personagem, mais o ator se dei-
xará surpreender por suas próprias fraquezas, mais seu clown aparecerá com força” (LECOQ, 2010, p. 214).
No picadeiro, deve-se jogar o jogo com a verdade, nas palavras de Lecoq,

210. Esses diários são conhecidos como “Diários de bordo” entre os membros do projeto.
211. O jogo, aqui referido, se trata de jogos teatrais baseados na improvisação e na dramatização. São técnicas de Clown buscando trabalhar a trian-
gulação (clown/estímulo/público). Os jogos nos colocavam no lugar que mais tememos: o lugar do bobo, do torto e do ridículo; proporcionando
novos olhares e experiências conosco mesmos.

274
[...]quanto mais for ele mesmo, pego em flagrante delito de fraqueza, mais engraçado ele
será. De modo algum deve representar um papel, mas deixar surgir, de maneira muito
psicológica, a inocência que está dentro dele e que se manifesta por ocasião do fiasco, do
fracasso de sua apresentação (Lecoq, 2010, p. 215).

Nas aulas do curso da graduação somos estimulados a planejar, a estar no controle, a saber agir,
porém, a experiência do picadeiro nos move deste lugar do saber e nos coloca na zona do não saber, do não
planejar. No lugar de parar, de estar presente, de perceber nossa respiração, nosso corpo, nossa postura e a
partir disso ir ao encontro com a plateia. Para a lógica e funcionamento da modernidade, estar nessa con-
dição do não controle, do não planejamento nos causa pavor, medo e insegurança, pois abala a forma mais
comum do nosso ego agir no mundo.

A cada início dos jogos eram realizados pelo grupo alongamentos, exercícios de respiração, geral-
mente ouvindo algumas canções. Na verdade, o uso das músicas e de alguns sons faz parte do processo, ou
seja, durante a formação esses recursos entram como parceiros fiéis do processo de construção formativa do
grupo. Incorporamos a música para reconhecê-la, e isso não significa uma interpretação da música, pois po-
demos jogar contra o ritmo que foi tocado para o grupo, inventa-se uma dança pessoal, uma interpretação
pessoal diferente. Isso tudo vai depender da personalidade de cada um, do contexto de cada um.

É possível aprender com a música, ser música, visualizar/ sentir o que acontece no espaço, reconhecer
os movimentos internos da música, pesquisarmos e investigarmos se os sons nos empurram ou se somos em-
purrados por ele, aos poucos o grupo vai entrando em aderência com o som. Apenas a partir dessa aderência
é possível escolher um ponto de vista, ou seja, de estar a favor, contra ou com o que é proposto na música. É
assim que se estabelece uma relação de jogo pois o objetivo maior é o de sempre jogar com a música de modo
que evite que ela seja apenas ilustrativa da interpretação ou que apenas preencha vazios (LECOQ, 2010).

As técnicas através dos jogos facilitavam o processo por estimular a percepção do próprio corpo, da
respiração, bem como, de perceber os sentimentos e expectativas que atravessam cada integrante do grupo,
ou seja, são técnicas que nos ajudam a estar presentes no “aqui e agora”. É comum nos jogos o mediador pe-
dir para que andemos pelo espaço percebendo e reconhecendo cada um que estava presente, e ao sinal dele
teríamos que encontrar um par para realizarmos os jogos em dupla, sempre na tentativa de jogar com, de
estabelecer uma relação de cuidado com o jogo, com a relação construída, com atenção e respeito ao outro.
Trata-se do jogo do encontro e do respeito ao outro e sua alteridade.

Outro jogo muito marcante foi o da “aproximação e afastamento”. Em dupla o grupo já tinha estabe-
lecido o sentimento de amizade e familiaridade. Formaram-se duas filas de modo que cada um se coloque em
frente ao outro. As pessoas da primeira fila caminhavam em direção à segunda e só paravam ao sinal do edu-
cador. Ficavam muito próximo do outro e por mais amigos que fossem, havia um sentimento de desconforto
com tal aproximação, por isso, a pessoa teria que esperar a permissão do outro para poder se aproximar e se
tocarem. Esse jogo tinha o objetivo de compreendermos que cada sujeito tem um espaço de proteção e por isso,
ao chegar junto desse outro, teremos que ter o cuidado para não invadir de modo violento esse espaço.

Esse aprendizado ajudou a pensar na questão da prática psicológica no campo da psicologia a ter
atenção e cuidado em não ser invasivo, nem violentar esse espaço “simbólico” de proteção do outro. Mas sim
de reconhecer esse outro, reconhecer suas limitações e potenciais, e estabelecer um encontro mais respeito-
so, ético, generoso e sobretudo mais humano. Também de Facilitar ao indivíduo uma atitude mais autêntica
em relação a si próprio, Promover uma ampliação dos horizontes do sujeito sobre si e sobre o mundo, por-
que estar com é o encontro de uma existência com a outra, implicando uma presença sentida (estar-por-si),
a reciprocidade (estar-para-o-outro), cuidado (acolher o outro na sua esfera vital), o laço emocional (eu/tu
que criam um “nós”, numa reciprocidade activa para que o outro se ilumine e descubra) e convite ao diálogo
autêntico, a partir das vivências ou intencionalidades significativas (TEIXEIRA, 2006).

275
Foram vivenciados jogos que trabalham mais com o corpo, com os movimentos, a dança era rea-
lizada de olhos fechados, o grupo se expressava por meio das caretas, a imaginação e criatividade para agir
era ativada no grupo. Cada jogo tinha um objetivo, era uma espécie de brincar com seriedade, sinceridade e
responsabilidade. A cada jogo se construía o clown de cada um. Durante as oficinas, cada pessoa descobre a
forma de seu clown pensar, desenvolve sua lógica própria e, durante o período em que desempenha as fun-
ções que lhe são confiadas, suas características pueris, ingênuas, ridículas e até mesmo trágicas, aparecem de
maneira natural e intensamente (BRONDANI, 2006).

Durante a formação também foi realizada uma leitura coletiva do livro “O pequeno príncipe”, tam-
bém foi passado vídeos sobre palhaços e suas diferentes escolas e perspectivas. Nos últimos encontros foram
realizadas oficinas de construção da maquiagem e da nossa roupa de trabalho. Foi preciso investigar cada
traço do nosso corpo e do rosto para construirmos nosso clown, com um sentimento de satisfação consigo
mesmo e aceitação que o clown exibe com orgulho seus defeitos: as pernas magras, o cabelo “rebelde”, as
gorduras localizadas, o quadril largo, os pés grandes e outras características que não se encaixam no “padrão
de beleza” social (BRONDANI, 2006).

Era possível entrar em contato com o próprio ser, os jogos apenas eram sinalizadores do quanto se
está distante de si mesmo, estranhos e indiferentes a si próprio. O erro era visto como uma possibilidade de
jogo, tudo é jogo, tudo estava integralizado. Isso tudo assusta, pois, a sociedade é educada de modo a sentir
horror ao erro, a culpar a si próprio quando se erra, ao invés de simplesmente olhar o erro e o fracasso como
experiência de aprendizado.

Nas últimas oficinas, a maquiagem, os trajes estavam prontos para o momento da cerimônia e nas-
cimento do clown. Para complementar a composição do ritual, se recebe um nome após o nascimento e de
acordo com suas características físicas ou de personalidade. O nome finaliza uma etapa do ritual de inicia-
ção. Nomear é complementar a imagem verbal. É dar uma identidade ao clown. A iniciação clownesca, evi-
dencia um meio paralelo para revelar os incômodos provocados por uma sociedade controladora, punidora,
preconceituosa de modo que ajude o ser humano a se desprender do incômodo, a se aceitar (WUO, 2016).

Na formação se aprende que a maneira de chegar ao clown, é colocar-se frente a frente ao fracasso,
quebrando a máscara social e fazer dos defeitos e limitações uma possibilidade de jogar e brincar, numa
entrega sem raciocinar, num estado de disponibilidade sem defesa (BRONDANI, 2006).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do relato de experiência percebe-se que o projeto de extensão destaca esse sujeito da expe-
riência, trazido por Larrosa, como um sujeito que não é aquele sujeito da informação, do saber, do julgar,
do fazer, do poder e do querer, tão vangloriado pela Acadêmia. O Projeto de encontro e Risos terapêuticos
nos remete a pensar nesse sujeito da experiência como um território de passagem, uma superfície sensível
que produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos (LARROSA, 2002
p.19). O sujeito como um ponto de chegada, que recebe o que chega (o estranho) e que, ao receber, lhe dá
lugar, ou seja, o sujeito da experiência se faz morada para o outro. O sujeito da experiência é o que se expõe
com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco (LARROSA, 2002). O que se pretende dizer é que o
sujeito da experiência, ainda nas palavras de Larrosa,

“Não um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não
um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um
sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus po-
deres precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. Em contraparti-

276
da, o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante,
interpelado, submetido. Seu contrário, o sujeito incapaz de experiência, seria um sujeito
firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, defini-
do por seu saber, por seu poder e por sua vontade” (LARROSA, 2002, p.25).

Sendo assim, pensando na formação acadêmico-científica em psicologia, onde o excesso de teorias,


escolhas das abordagens psicológicas, faz da vida e do conhecimento se tornarem estéril, desligado da vida
real, indiferente com o outro, consigo e com o mundo. E como bem disse Figueiredo (2009), pensando nesse
cenário moderno, é preciso fazer experiência de si mesmo pois experimentar é entrar em contato com a alteri-
dade, um momento de encontro com o outro, de negação e de transformação, ou seja, deixar-se fazer outro no
encontro com o outro. A formação básica em Clown serviu como um espaço formativo do/a estudante entrar
em contato com experiências de alteridade, empatia, afetos, a partir das vivências nas oficinas e nos jogos.

O PERTO é um projeto relativamente novo, que acaba de completar 6 anos de formação, e pretende
estar sempre em processo de renovações e mudanças. De forma a atingir efetivamente seu objetivo de formar
e sensibilizar os/as estudantes da área de saúde para que seja sempre repensado e refletido a questão da prática
do cuidado consigo, com outro e com o mundo. É nesse contexto que inserimos o PERTO, defendido aqui,
como sendo um espaço formativo que possibilita aos estudantes de psicologia experiências das quais as aulas
da graduação não dão contam. Bem como, defender que a extensão é crucial na formação do/a estudante, por
proporcionar um contato com outros modos de pensar a vida, as relações e, sobretudo, a prática do cuidado.

BIBLIOGRAFIA

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de NOGUEIRA, Welligton: O mundo precisa de mais pa-
experiência. Universidade de Barcelona, Espanha, 2002. lhaços. 2015. (16m33s). Disponível em: <https://www.
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277
A LUDICIDADE COMO FERRAMENTA
FACILITADORA NO ENSINO DA DANÇA
Marcio Figueiredo de Sá Leitão (UFRN)
Rafael de Lima Freitas (UFPE)

INTRODUÇÃO

Com o intuito de contribuir com o desenvolvimento das habilidades e percepções corporais dos
estudantes, nós, discentes do Curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco e integrantes do Pro-
grama Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) iniciamos nosso trabalho em sala de aula por
meio de observações, seguidas de regências, assim tendo a oportunidade de diagnosticar as necessidades
e eleger conteúdos específicos que pudessem favorecer o progresso da turma e atingir nossos objetivos en-
quanto discentes/docentes. O subprojeto Dança do PIBID UFPE foi desenvolvido no Colégio de Aplicação
da mesma universidade, na disciplina de Teatro, a partir do conceito de transdisciplinaridade.

OBJETIVOS

Temos como principal objetivo o desenvolvimento das habilidades cognitivo-motora e criativa con-
forme a evolução da expressividade e do uso intencional do corpo, promovendo uma consciência corporal e
espacial a fim de contribuir no desenvolvimento dos personagens e na criação de cenas baseadas em textos
teatrais, diligenciando a transdisciplinaridade entre as linguagens da Dança e do Teatro. Possibilitando a
comunicação e a coletividade da turma. Sendo assim, nosso propósito sugere uma docência que dilua as
fronteiras sócio afetivas e intelectuais, dando suporte para a progressão das habilidades cognitivo-motoras,
possibilitando uma prática além dos seculares métodos cartesianos, uma aprendizagem que constitua uma
construção de pensamento crítico.

REFERENCIAL TEÓRICO

O movimento sempre se mostrou uma linguagem universal desde os primórdios. Por essa razão, é
muito importante que nos aprofundemos cada vez mais nesse tema. O ato de movimentar-se está presente
na nossa comunicação e em todas as nossas ações do cotidiano e pode ser estudado em diversos âmbitos.

O indivíduo realiza um movimento para atender alguma demanda, que está sendo efetuada em

278
um determinado lugar. A prática do indivíduo obtém a demandas da tarefa através da relação com o lugar,
que determina sua eficácia utilitária. Compreendemos então que o desenvolvimento criativo e motor é um
aglomerado de modificações no comportamento do ser humano, passando pelos processos de acomodação,
maturação, progresso e aprendizado, não necessariamente nessa ordem. A dança é uma linguagem artística
que tem propriedade para trabalhar integralmente esses processos. Diante das definições acerca da dança,
podemos trazer um argumento filosófico sobre a arte da movimentação do corpo:

A dança escorrega, evita a conceituação. A dança tem um caráter não-verbal [...] o que é
dançado não pode ser verbalizado. Sua lógica não é da essência, mas do acontecimento.
Toda dança acontece no instante, só existe na execução. [...] A dança promove uma sus-
pensão do tempo cotidiano. Um giro completo do corpo, uma pirueta, uma cambalhota,
por exemplo, não são necessários em nenhuma situação cotidiana. Trata-se portanto da
instauração de um outro tempo. (FEITOSA, 2001, p. 34)

O desenvolvimento motor está ligado a diferentes instâncias do processo de emancipação do indiví-


duo, um deles está relacionado aos padrões de desenvolvimento do corpo em movimento, que executamos
inconscientemente a fim de atingir qualquer deslocamento pelo espaço físico e são divididos em três tipos
de conexão: homóloga, homolateral e contralateral. Alguns seres, em seu estado de vida, utilizam apenas
um desses padrões em todo o seu deslocamento. Já nós, seres humanos, passamos por fases em que explo-
ramos tais padrões em diversos estágios da infância até obter a contralateralidade como principal forma de
locomoção biomecânica sem que percebamos. Já as qualidades de movimento são os fatores específicos em
dança que caracterizam e medem algumas instâncias em cena. São elas peso, tempo, fluxo e espaço. Laban
(1978, p. 132) conceitua o movimento como o principal meio de expressão humana e, em suas escritas,
esses elementos são considerados fundamentais para que se possa ter uma imagem visual do movimento.
Partindo de uma seleção básica de ações, unindo os fatores peso, espaço, fluxo e tempo, e suas prováveis
combinações, Laban produziu uma leitura para as qualidades de movimento:

Enquanto que os movimentos dos animais são instintivos e basicamente realizados em


resposta à estimulação exteriores, os do homem encontram-se caracterizados por quali-
dades humanas; por intermédio deles o homem se expressa e comunica algo de seu ser
interior. Tem ele a faculdade de tomar consciência dos padrões que seus impulsos criam e
de aprender a desenvolvê-los, remodelá-los e usá-los. (LABAN, 1978, p. 112)

Uma vez que na escola e nos processos educacionais, em sua maioria, a não-movimentação é sinônimo
de disciplina, somos incentivados a nos tornar seres estáticos para transmitir a mensagem de educação bem-
-sucedida. Pensamento oriundo de antigas formas de operar como behaviorismo, fordismo, cartesianismo,
dentre outros, cujas escolas na contemporaneidade ainda herdam o modus operandi das escolas modernistas,
surgidas sem intenção alguma de satisfazer as demandas das múltiplas questões de ensino-aprendizagem, mas
sim para atender as necessidades mercadológicas do período pós-revolução industrial.

Levin (1997) afirma que o desenvolvimento sempre está relacionado às funções motoras, verbais,
perceptivas, entre outras. A dança aplicada à educação visa proporcionar um contato mais afetivo e intimista
com a possibilidade de o aluno expressar suas emoções através do movimento.

Atente-se ao fato de que além de trabalhar as materialidades da dança, por se pretender um estudo
transdisciplinar entre as linguagens da dança e do teatro, é premissa do trabalho desenvolvido no CAp-UFPE
o diálogo e a interação entre elas, buscando, assim, estabelecer uma abordagem que visa a unidade do co-
nhecimento, articulando uma nova compreensão da realidade, entrelaçando conceitos, práticas e elementos

279
que se entrecruzam e estabelecem uma busca de percepção da complexidade que nos rodeia. Investigando as
particularidades e potencializando as semelhanças entre as disciplinas não procurando sua dominação, mas
sim, pesquisando um hibridismo, um lugar de ensino no qual as disciplinas se abram uma a outra, atravessem
e ultrapassem obsoletas formas de operar.

Dessa maneira, tão complicado quanto às questões que temos de resolver diariamente, a transdis-
ciplinaridade se denota como uma pequena ponte que reúne e serve de limiar entre o envolvimento e a
particularidade das especificidades de cada linguagem. Mesmo a disciplina Dança não estando, até o pre-
sente momento, inserida como componente curricular na escola. Importante salientar que, a partir de 2018,
o componente curricular Dança estará presente na escola, conquista da Dança recentemente aprovada no
pleno departamental da escola. “A transdisciplinaridade significa transgredir a lógica da não-contradição,
articulando os contrários: sujeito e objeto, subjetividade e objetividade, matéria e consciência, simplicidade
e complexidade, unidade e diversidade (idem)”, pontua Santos (2008, p. 75). Norteados por este pensamen-
to, buscamos a fusão das linguagens Dança e do Teatro em sala de aula.

A ludicidade se apresenta como um elemento de extrema importância no processo. Uma vez que a
atividade lúdica exige uma imersão integralizada quebrando o pensamento cartesiano:

Brincar, jogar, agir ludicamente, exige uma entrega total do ser humano, corpo e mente,
ao mesmo tempo. A atividade lúdica não admite divisão; e, as próprias atividades lúdicas,
por si mesmas, nos conduzem para esse estado de consciência. Se estivermos num salão
de dança e estivermos verdadeiramente dançando, não haverá lugar para outra coisa a
não ser para o prazer e a alegria do movimento ritmado, harmônico e gracioso do corpo.
Contudo, se estivermos num salão de dança, fazendo de conta que estamos dançando, mas
de fato, estamos observando, com o olhar crítico e julgativo, como os outros dançam, com
certeza, não estaremos vivenciando ludicamente esse momento. (LUCKESI, 2000, p. 37)

METODOLOGIA

O processo, introduzido em março de 2017 e com previsão de término para o final do ano letivo
vigente, foi marcado por observações em sala de aula, com a turma do sétimo ano B do Colégio de Aplicação
da UFPE. O plano de curso foi elaborado a partir do entrecruzamento das informações obtidas no progra-
ma da componente curricular Teatro, das nossas próprias observações em sala de aula e das orientações,
sugestões e reflexões que surgiram a partir dos compartilhamentos semanais entre todos os integrantes
do subprojeto. Desde então, começamos a reger aquecimentos de 15 minutos como uma segunda parte
do processo. A princípio, optamos por tentar estabelecer uma relação de proximidade com os alunos, nos
primeiros contatos com a turma, mas sem escorregar na tênue linha que separa em sala de aula, discente e
docente. Escolhemos tentar estreitar os laços de conforto a fim de que se sentissem acolhidos sem perigo de
julgamentos, e que também experimentassem uma disposição que não fosse severamente obrigatória, uma
disposição convidativa a um novo lugar de descobertas conscientes: o próprio corpo.

Os primeiros dias de aula foram os mais difíceis, havia certa entrega e imersão nas propostas de mo-
vimento, entretanto os alunos não as executavam com clareza. Por exemplo: sugerimos algumas ações sim-
ples, que costumamos executar em nosso cotidiano, como o ato de deitar e ficar de pé, correr e pausar, andar
e saltar. Na prática nos deparamos com uma série de fatores que dificultavam a efetivação do movimento,
alguns alunos abandonavam o corpo em direção ao chão e logo subiam sobre algum apoio, sem consciência
ou cuidado algum. Outros alunos esbarravam nos demais com frequência. Uma vez que trabalhamos com o
corpo, estamos correndo risco de lesões ou acidentes. Vale ressaltar que as aulas eram lecionadas numa sala

280
de aproximadamente 24m², com cerca de 15 alunos.

Diante dessas informações, pudemos diagnosticar as necessidades primárias dos participantes em


sala de aula. Alguns fatores básicos como ocupação do espaço, visão periférica também assinalavam o que
concluímos posteriormente, que a turma não estava apta corporalmente para executarmos então o plano
de curso que visava trabalhar os fatores de movimento estudados por Laban. Determinamos então, que o
processo deveria ser nos primeiros momentos pautado exclusivamente por aulas de consciência corporal,
nos debruçando sobre os padrões básicos do movimento, homolateral, homólogo e contralateral, incitamos
também a investigação dos apoios corporais e acentuando a importância do processo do movimento, que
a atenção deveria ser direcionada não somente quando atingissem a posição de determinadas instruções,
mas sim em toda a movimentação em curso. Nosso dever agora era designar estratégias que possibilitassem
o ensino-aprendizagem dos fatores de movimento, apontamos então as brincadeiras populares como uma
ferramenta de potencialização do trabalho.

Compreendemos as atividades lúdicas como uma forma de aproximar os conteúdos estudados por
nós, pibidianos, aos alunos e uma maneira de liberar intensidades acumuladas, visto que os espaços desti-
nados ao lazer nas grandes cidades estão cada vez mais escassos. Assim, os jogos e brincadeiras podem ser
empregadas como um mecanismo de suma importância na educação disponibilizando não só exercícios
físicos, mas também a propriocepção e o convívio social, explorando as suas capacidades de desvendar o
lugar onde habitam, amenizando as dificuldades emocionais, sentimentos, conflitos e agressividade, dando
força entre outras coisas a autoestima e a segurança. Nosso direcionamento agora era lecionar as brincadei-
ras populares de cunho lúdico com enfoque nas particularidades dos fatores do movimento, uma vez que
eles demonstravam facilidade, disponibilidade e engajamento.

Até que chegássemos a dar aulas de 50 minutos com os conteúdos do plano de curso, constantemen-
te empregando a ludicidade como elemento essencial nas aulas. Sempre com condução verbal e demonstra-
ções físicas, fomos aplicando os assuntos planejados, partindo dos padrões de movimento, até chegar aos
fatores de movimento, incluindo peso, tempo, espaço e fluxo.

OS JOGOS

Utilizamos diversas atividades lúdicas para aproximar os conteúdos. Entre elas, muitas vivenciadas
por eles mesmos e outras não. Por exemplo, o jogo de pega-pega, foi empregado de forma a investigar o fator
tempo, a princípio propusemos o jogo na sua forma original, como fator “Tempo” na qualidade “Acelerado”
onde todos focam sua atenção nas ações de escapar e fugir, depois sugerimos que fosse realizado em câmera
lenta, revelando uma outra qualidade de movimentação completamente diferente da anterior, o foco agora
havia sido transferido para a própria locomoção, onde se fazia necessário depositar uma concentração ainda
mais comprometida com a realização da tarefa, o qualidade se locomoveu para a outra extremidade, visitan-
do agora o fator tempo “Desacelerado”.

Outra atividade em que obtivemos bons resultados foi o “Mar-Terra”, brincadeira oriunda de Mo-
çambique, país do continente africano. O jogo consiste em uma divisão de espaço, trazendo a relação de
frente, trás, esquerda e direita - então fizemos uma grande adaptação, utilizando uma corda para dividir a
sala e demos instruções de lugares para relacionar suas movimentações. Exemplo: do lado esquerdo, os alu-
nos deveriam imaginar e se mover como se estivessem dentro de uma piscina, imersos profundamente com
o corpo coberto de água. Do lado direito, estavam numa terra plana, sem barreira alguma, onde poderiam
caminhar normalmente como em terra firme.

Nessa atividade, orientamos a atenção ao fator “Peso”, a brincadeira constitui-se transição das qua-

281
lidades dos movimentos, alternando entre os lados esquerdo e direito, experimentando a qualidade de Peso
“Leve”, se locomovendo normalmente, vez ou outra aderindo um estado ainda mais leve como imitar uma
pena caindo no chão, depois de algum tempo experimentando direcionamos ao lado direito, onde os alunos
agora têm de explorar a qualidade de Peso “Forte”, resultando numa drástica mudança de deslocamento,
agora eles presenciam uma locomoção mais lenta, respiração menos ofegante, transferências de apoios com
mais cuidado e precaução.

Para trabalhar o fator “Espaço”, utilizamos uma brincadeira chamada Passarinho quer seu ninho, na
qual os participantes, tidos como passarinhos, se deslocam aleatoriamente (de maneira indireta) e ao ouvir o
grito do título da brincadeira, os “passarinhos” têm que encontrar um ninho estabelecido no chão – poden-
do ser marcado por objetos ou um desenho. Passando, assim, pelos estágios direto e indireto da qualidade
espaço.

Por fim, ao utilizar o fator “Fluxo” como conteúdo, trouxemos bastantes imagens já conhecidas para
que os alunos pudessem experienciar em seus corpos. Primeiro, utilizamos um jogo de “Pega-Congelou”,
no qual quem for pego, fica congelado e acaba criando barreiras para os demais, consequentemente, exigin-
do um fluxo contido em determinados momentos. E para trabalhar o fluxo contínuo de maneira objetiva,
utilizamos a imagem de um rio e pedimos para que se movimentassem como um rio que desce corredeira
abaixo.

Trazer essas imagens de espaços visitados por eles fazia com que eles pudessem visualizar as situa-
ções, entender as instruções com mais facilidade e acessar memórias de suas movimentações.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Levar os conteúdos estudados na sala de aula da universidade, da forma como são mediados, para a
educação básica, nem sempre é a melhor maneira de tentar atingir os objetivos do plano de curso elaborado.
Uma vez que a linguagem utilizada no ensino superior é fruída por estudiosos da Dança, cabe entender que
não se deve replicá-la em outros ambientes, sob o risco de não serem bem entendidos. Os enunciados utili-
zados por nós foram o grande ponto de partida para refletir acerca de como transladar o conteúdo elegido
para favorecer o cumprimento dos objetivos. Aproximar as palavras do vocabulário dos alunos e utilizar
movimentações já experimentadas por eles foi um modo de assegurar o entendimento e o engajamento dos
estudantes durante as incumbências.

As atividades lúdicas se mostraram potentes o suficiente para garantir o entrosamento da turma,


além de contemplar a linguagem desejada e acessar os conteúdos estudados por Rudolf Laban, incluídos no
planejamento. Então, as construções das aulas partiram de um outro lugar, tendo a ludicidade como ponto
de partida. O uso de objetos e sons são ferramentas que auxiliam no registro corporal dos alunos durante
as atividades, e isso tem sido um grande diferencial que ilustra e contribui para o acesso às memórias das
crianças.

Para apresentar os padrões de movimentos aos alunos, foram utilizadas imagens de animais e for-
mas bastante conhecidas, como a tartaruga, o elefante, o beija-flor, a letra X e a bola. Já para trabalhar os
fatores peso, tempo, espaço e fluxo, podemos exemplificar algumas atividades que contemplaram os con-
teúdos, que, respectivamente, foram: mar-terra, pega-pega em câmera lenta, ações do cotidiano (patinar,
abraçar, acenar, etc) e condução de balões de festas de forma dançada.

Desde o início do ano letivo, passamos a pesquisar as brincadeiras infantis e analisá-las com base
nos estudos de Rudolf Von Laban, o que tem nos proporcionado uma gama de possibilidades e um grande
caminho a ser percorrido.

282
CONCLUSÃO

Pudemos, então, observar que as brincadeiras populares são grandes facilitadoras do nosso pro-
cesso e que é possível identificar a presença dos estudos de Rudolf Von Laban em atividades que experien-
ciamos desde a nossa infância. Também, com a construção do processo de docência, pode-se pensar num
modo de elaborar a aula aplicando o conceito de transdisciplinaridade incluindo o Teatro nos conteúdos da
Dança e vice-versa, mantendo um diálogo direto entre as duas linguagens, relacionado com o conhecimento
popular através da ludicidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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tir da Biossíntese”, in Educação e Ludicidade, Coletâ- 2013. Acesso em: 19/062017.

283
A BUSCA DE UM CORPO DILATADO
A PARTIR DA DANÇA FREVO
José Renilson Targino Ferreira Filho (UFRN)

O corpo é um dos instrumentos de comunicação mais importantes para o ator, através do arca-
bouço corporal, ele edifica a construção da personagem ou do tipo (arquétipo). Por isto mesmo, existe uma
infinidade de técnicas e treinamentos usados para o preparo corporal do ator e de suas práticas de atuação,
deixando perceptível um estado dilatado nos corpos de atores de alguns espetáculos teatrais, que tem em
sua base um trabalho pré-expressivo. Os mesmos possuem corpos com uma qualidade de presença mais
viva, em que as “partículas que compõem o comportamento cotidiano foram “excitadas”, produzindo mais
energia e sofrendo um incremento de movimento”. (BARBA, 1995, p.54).

Segundo Barba (1995), para gerar este estado dilatado, é necessário um treinamento com base pré-
-expressiva, que possa desconstruir um corpo apoiado na funcionalidade cotidiana, por meio de procedi-
mentos físicos, intervindo a lógica das ações da vida comum, a fim de construir um corpo ampliado, vivo e
decidido- um corpo dilatado. Existem três linhas de ação que redirecionam os fluxos de energias cotidianas.
São elas: alteração de equilíbrio cotidiano à procura de equilíbrio precário ou de luxo, a dinâmica das opo-
sições e a virtude da omissão. Essas três linhas são decorrentes em diversas culturas e tradições e são meios
de dilatação da presença.

A pesquisa Construindo uma ponte para alçar o voo: a busca de um corpo dilatado a partir da dança
frevo, foi iniciada em 2013, como requisito parcial para obtenção do título de graduado em bacharelado em
teatro, sob a orientação da Profº Ms. Ana Valéria Vicente da Universidade Federal da Paraíba. A pesquisa
apoiada se destinou a estruturar um treinamento investigando a dança frevo a partir das obras de Ana Valé-
ria Vicente (2009, 2011) e Viviane Souto Maior (2012) e dos fundamentos da Antropologia Teatral de Eugê-
nio Barba (1991, 1994, 1995), a fimde estimular o ator a produzir ações às quais organizadas construiria um
corpo dilatado. Para o desenvolvimento recorreu-se ao método Nascimento do Passo através dos estudos de
Lucélia Queiroz ( 2009) e a observação do Grupo Guerreiros do Passo – PE (2013).

Por meio do estudo e do aprofundamento da dança frevo, construímos uma “Ponte” entre as duas
vertentes estudadas, verificando haver no frevo os princípios-que- retornam, que no nível pré-expressivo,
permitem gerar a presença teatral.

Ao dançar o frevo,observamos que “o fluxo de energias que caracteriza nosso comportamento cotidia-
no é redirecionado” (BARBA, 1999, p.54). Ele sugere ao corpo um trabalho contínuo na redução ou ampliação
das ações típicas, fazendo modificar a forma de utilização do corpo, gerando uma habilidade especifica.

284
Dessa forma, constatamosna dança frevo uma série de códigos que podem ser aproveitados num trei-
namento, em uma aula e na preparação corporal de/para atores. Como forma de sinalizar indicadores para que
professores, artistas, preparadores corporais elaborem seu plano de curso e oriente suas escolhas para uma or-
ganização de aulas.Propomos uma proposta de progressão de aula baseado nos resultados obtidos na pesquisa
Construindo uma ponte para alçar o voo: a busca de um corpo dilatado a partir da dança frevo que dialoga com o
método tradicional de ensino do frevo - o Método Nascimento do Passo e os princípios da Antropologia Teatral
preconizada por Eugênio Barba. A aula é constituída de exercícios que propõe um redirecionamento dos fluxos
de energias cotidianas em busca de um corpo dilatado - um corpo que esbanja energia em sua totalidade.

Expomos, a seguir, essa possibilidade de progressão, que é composta das seguintes etapas: introspec-
ção, fervendo, alongamento, ativação do abdômen, Método Nascimento do Passo, Redirecionando os fluxos
de energias cotidianas em busca de um corpo dilatado, Roda e fortalecimento muscular/desaquecimento.

Progressão de uma aula em busca de um corpodilatado

Introspecção

Propomos ao iniciar a aula, um momento de introspecção individual, onde o aluno deve ser esti-
mulado a se perceber. É pedido que o aluno saia da agitação cotidiana, esvaziando a cabeça das preocupa-
ções diárias e ficando atento apenas a si mesmo. Nesse estar, permanecendo na mesma posição, propomos
exercícios de propriocepção provindas da área de Fisioterapia, em que o aluno desequilibra para as diversas
direções (frente, trás, lado esquerdo, lado direito), com o intuito de despertar o corpo. Esse exercício:

Pode resultar da tentativa de deslocar seu peso para frente, até não se ter mais contro-
le sobre o corpo. Neste momento, o corpo arrastado somente pela força da gravidade,
cai para frente. É necessário encontrar um contra-impulso no meio da queda, que nos
permita evitar cair para frente, amortecendo para o lado, de modo a absorver o choque
contra o solo, gradualmente, ao longo do lado do corpo. (BARBA, 1995, p.245)

Esta etapa possibilita que o aluno possa realizar as demais atividades da aula com concentração e
com maior consciência corporal.

Fervendo (aquecimento, lubrificação das articulações, rascunho)

Na pesquisa Trançados Musculares da pesquisadora Valéria Vicente, foi identificado que muitos
professores na cidade do Recife, iniciam suas aulas com alongamentos estáticos, sem a estimulação da mus-
culatura dos alunos, para logo em seguida dar continuidade com exercícios fatigantes.

A nossa proposta diverge desta abordagem, pois acreditamos que deve haver um aquecimento do
corpo antes de se jogar no frevo e trabalhar com a exigência muscular que a dança propõe. Assim, propomos
o Fervendo composto de três etapas, que tem como objetivo aumentar a temperatura do corpo e dos mús-
culos, lubrificar as articulações, trabalhar a coordenação motora e estimular a sensibilidade musical e a não
automatização convencional de fazer o passo.

A primeira etapa é um aquecimento, composto de caminhadas, deslocamentos, variação espacial,


variação de velocidades etrabalhos com níveis (alto, médio e baixo), visando estimular a ativação cardiovas-
cular e um aquecimento (elevação da temperatura) propriamente dito do corpo.

285
Continuando, propomos a Lubrificação das articulações, onde se dar foco à movimentação das ar-
ticulações. Esta segunda demanda, delibera uma atenção maior ao ato de inspirar e expirar. As articulações
começam a ser trabalhadas de forma sutis e indolores, deixando o aluno livre para criar posturas que aquecem
minimamente o corpo. Para esta etapa, usamos como base a natureza física das articulações em consideração
do gestual do passo da dança frevo, como: balanço, remador, boneco de Olinda, maçaneta e swing nos ombros.

Após o aquecimento e a lubrificação das articulações, propomos um aquecimento específico, traba-


lhando o vocabulário de movimento da dança frevo em uma amplitude bem menor, que na pesquisa Trança-
dos Musculares é denominado de Rascunho, que além de trabalhar o movimento do frevo em menos ampli-
tude e com menos força muscular, propõe trabalhar a coordenação motora. Esse exercício aquece o corpo:

E ajuda o sistema neuromuscular a criar e estabelecer os programas motores necessários


às fases subsequentes da aula. Do ponto de vista didático e criativo, o rascunho também
é uma atividade que visa a estimular a sensibilidade e a não automatização da forma
convencional de fazer o passo. Nesse momento, devem-se estudar as diferentes formas
de relacionar o movimento com a música e a conexão entre as diferentes partes do corpo.
(VICENTE; SOUZA, 2011, p.21)

Músicas podem ser utilizadas para o exercício, de preferência músicas de frevo. Ao mesmo tempo
em que as músicas são tocadas, a ênfase dada não é uma movimentação regida pela marcação forte do
frevo, mas propomos que o aluno possa trabalhar com as diversas nuances de tempo, trabalhando com o
que Eugênio Barba chama de Tempo Esculpido, assim dilatando ou contraindo as ações, às vezes usando a
amplitude em maior e em alguns momentos em menor intensidade.

Alongamento

Nesta etapa da aula, propomos um alongamento dinâmico, que como o nome mesmo já diz, é a
execução de movimentos de forma dinâmica sem pausas longas nas posições. Esses movimentos têm como
objetivo ampliar as articulações executando movimentos maiores do que os utilizados na vida cotidiana.
Alguns desses movimentos são baseados nos passos do frevo, mas sempre pensando na alteração da sua
forma, dinâmica e velocidade.

Esses exercícios consistem em passar pelas amplitudes dos movimentos de forma coor-
denada, numa amplitude maior, com velocidades diversificadas, ou seja, um pouco mais
lenta, a princípio, e depois mais rápido, fazendo com que o corpo relacione a amplitude
que ele vai precisar realizar com o movimento do frevo, ao mesmo tempo em que alon-
ga e prepara a musculatura para a carga que irá receber. É importante que o professor
enfatize para o aluno que é a partir desses movimentos que ele vai poder desenvolver o
passo do frevo, o que pode ser feito, por exemplo, citando o passo do frevo que serviu de
inspiração para o exercício. (VICENTE; SOUZA, 20011, p.22)

A essa parte são incrementados outros movimentos, onde se pensa nas oposições dos vértices que
passa pelo corpo, braços que apontam para o teto e cóccix para o chão, joelhos levemente flexionados e pés
paralelos.

Propomos que imaginem que acima do corpo está suspenso um anel de ferro, que está puxando
para cima. Deve resistir a este puxão a fim de manter seus pés no chão. Esta tensão de oposição é um termo

286
japonês chamado hipparihaique significa: “puxar alguma coisa ou alguém para si, enquanto a outra pessoa
ou coisa está tentando fazer o mesmo”. (BARBA, 1995, p.12)

Ativação do abdômen

Nesta etapa, propomos um trabalho de ativação do abdômen. Durante a estruturação dessa pesqui-
sa, percebemos a carência de um trabalho de ativação da musculatura abdominal de muitos dançarinos de
frevo, o que estava causando sobrecarga na coluna lombar e nas articulações das extremidades inferiores
durante a realização dos movimentos do frevo.

Segundo Toscano e Egypto (2001), os músculos abdominais fracos atingem a condição isquêmica
e de fadiga mais facilmente que músculos fortes, aumentando as probabilidades de lesões e dificultando
manter a coluna em seu alinhamento adequado.

Na dança frevo, os músculos abdominais devem estar ativos para a diminuição da carga sobre as extre-
midades inferiores. É preciso “estabilizar a pelve, bem como estabilizar a coluna lombar que está sendo exposta
a constantes rotações e recebendo toda carga vinda do tronco. Outra musculatura que precisa ser utilizada qua-
se que na totalidade dos passos do frevo é a musculatura do assoalho pélvico.” (VICENTE; SOUZA, 2011, P.17).

Pensando nisso, propomos exercícios que ativem os músculos abdominais responsáveis pela estabili-
zadora e manutenção da postura da coluna vertebral, através de contrações isométricas4, porém sem fadigá-
-los, pois o músculo cansado não pode cumprir as suas funções de estabilização com eficiência posteriormente.

Segundo Vicente e Souza (2011), os exercícios abdominais são importantes para que o aluno possa
estar mais consciente de sua musculatura, evitando sobrecargas na coluna lombar e nas articulações das
extremidades inferiores durante a realização dos passos de frevo nas etapas subsequentes.

Estas etapas de preparação do corpo podem parecer bem extensas, porém, vale salientar que ao
mesmo tempo em que estamos acordando, aquecendo, alongando e ativando o corpo, também estamos
treinando o sistema neuromuscular a tornar suas respostas motoras aos receptores proprioceptivos mais
rápidos e eficazes e, com isso, atuar na proteção das articulações; além de estimular a coordenação motorae
sensibilidades próprias do frevo em todas as etapas.

Método Nascimento do Passo (MNP)

Nesta etapa, dar-se foco ao Método Nascimento do Passo. Onde serão apresentados os movimentos do
frevo, seus caminhos, suas dinâmicas e possibilidades de conexão. O professor propõe ao aluno exercícios que
facilitem o aprendizado dos passos, que devem ser ensinados através da repetição de forma lenta mediante ao
acompanhamento rítmico do frevo. É importante que o professor deixe claro que o método não restringe a liber-
dade de expressão individual, ele nos dar a possibilidade de inserir características próprias sem haver alteração
no processo de aprendizagem, pois o corpo contagiado pela vibração da música permite uma margem para cria-
ção particular. Nesta fase, pode se trabalhar com as famílias de passos, as variantes do frevo e as modalidades.

Redirecionando os fluxos de energias cotidianas


em busca de um corpo dilatado

Agora o corpo está apto para maiores cargas. Sem tirar o foco na respiração, os exercícios são mais
direcionados a parte energética. Os benefícios que esses exercícios executados junto à respiração trazem ao

287
corpo humano são muitos. Além de proporcionar um melhor condicionamento corpóreo, beneficia tam-
bém o aprimoramento da conscientização mente/corpo. Esses exercícios são o espaço onde se potencializa
a utilização dos princípios-que retornam, e onde se “testa a habilidade para se adquirir uma condição de
presença, uma condição que terá de encontrar aqui no momento criativo. Da improvisação e da representa-
ção”. (BARBA, 1995, p.246)

Equilíbrio precário

Percebemos que na dança frevo há uma “deformação” da posição cotidiana das pernas e uma re-
dução da base de apoio do pé, assim abandonando o equilíbrio cotidiano em favor de um equilíbrio instá-
vel. O principio do equilíbrio precário está presente em toda técnica extra-cotidiana, fundada a partir dos
princípios-que-retornam.

A dança frevo produz uma “deformação” corporal pelo processo de desconstrução do natural.
Procura-se na deformação do natural, uma instabilidade, outro equilíbrio para auxiliar na composição de
inúmeras posições, movimentos, saltos, quedas, uma nova postura de base, envolvendo a coluna, o quadril,
pernas e pés.

No processo com o Equilíbrio Precário, propomos três exercícios principais: enraizamento, a corda
bamba e o trabalho com a modalidade do bêbado.

O primeiro exercício é o Enraizamento, uma relação com o chão a partir dos diversos apoios dos
pés, onde propõe ao aluno sobrepujar o andar cotidiano, por meio do apoio do nosso corpo- os pés.

Barba (1995) fala que a coisa mais importante para o ator-bailarino é o trabalho com os pés. Os pés
podem causar reverberação na coluna proporcionando ou até mesmo compondo uma gama de variações de
intensidades de energia.

Propomos que o aluno experimente andar com os diferentes apoios dos pés: o metatarso, o calca-
nhar, as bordas internas, as bordas externas,com os calcâneos lambendo o chão, “ciscando” e deslizando,
variando o ritmo. Nesta etapa, trabalhamos com a ideia de sucção, com a ação de dar e devolver, de pregar
os pés no chão. Imaginando uma ventana que prega o corpo no chão e ajuda a “alçar voo”.

O próximo exercício é a Corda Bamba, no mesmo, o aluno imagina-se uma corda que estar a sua
frente. Os braços auxiliam procurando mover-se para frente e para trás, com os joelhos levemente flexiona-
dos. Usando passos de frevos e criando uma sequência de equilíbrios precários possíveis. Os braços lateral-
mente promovem o controle do peso, que é deslocado de um lado para o outro, causando desequilíbrio que
induz ao novo equilíbrio. Podemos pedir que o aluno imagine que estar passando dançando frevo de um
precipício para outro por cima de apenas um fio. Os braços parecendo asas abertas, e o olhar deslocando-se
de um lado para o outro. No mesmo, o vocabulário de movimento tem um efeito óbvio sobre o equilíbrio
do corpo, nos passos, observa-se redução da base do pé, a flexão dos joelhos e a criação de equilíbrios pre-
cários possíveis. O exercício faz o aluno criar “uma condição de equilíbrio permanente e instável, rejeitando
o equilíbrio “natural”.” (BARBA, 1995, p.54).

O próximo exercício é o bêbado, baseado na modalidadedo bêbado doMétodo Nascimento do pas-


so. Propomos que o aluno execute movimentosonde se lança o corpo para a queda. Esse exercício baseia-se
no desequilíbrio extremo, incorporando o bêbado, como se o corpo estivesse transformado, pensando nas
questões do desequilíbrio corporal, tentando fazer o passo quase caindo, mas sempre voltando no contra-
-impulso.

288
Barba (1995) fala que quanto mais complexos são os movimentos, quando damos passos mais lar-
gos do que o cotidiano “ou mantemos a cabeça mais para frente ou para trás do que o usual, mais nosso
equilíbrio é ameaçado. Uma série de tensões se estabelece para impedir a queda do corpo” ( BARBA, 1995,
p.55).

O professor pode trabalhar com certas resistências, como as provenientes do medo de cair e se ma-
chucar, o de estar à beira de um precipício e o do constrangimento de estar bêbado, para que o aluno possa
sempre ir além e colocar o seu corpo em risco.

Dança das Oposições (Forças Contrapostas)

Classificada pela Antropologia Teatral como as infinitas possibilidades de construção no corpo de


tensões de forças contrapostas. Estas tensões podem ocorrer em diferentes níveis: no percurso das ações, em
que o início da ação deve seguir a direção oposta a sua finalização. Na Dança frevo este procedimento está
presente. Observamos durante a pesquisa em alguns passos do vocabulário de movimento da dança frevo.

Pensando nisso, propomos um exercício que intitulamos de Forças Contrapostas, o mesmo propõe
ao aluno que brinque com a contradição externa e interna: energia pulsando dentro do corpo, enquanto fa-
zem movimentos externos amplos e lentos. Este exercício provoca uma ampliação do gesto e a dilatação do
corpo no espaço. Trata-se de separar a parte superior do corpo ( braços, tronco, tórax, cabeça) da parte in-
ferior (quadril, pés, pernas). Trabalhando com a ideia de oposições de energias; movimentos mais sinuosos
na parte inferior e movimentos mais fortes e precisos no superior. Uma alternância consequente de partes
do corpo em situações fortes com partes do corpo em situações leves.

Roda (jogando-se no frevo e retendo o frevo)

A Roda consiste em um momento de improvisação, onde o aluno faz conexões entre os movimentos
aprendidos na etapa do Método Nascimento do Passo. Esse momento coloca a criatividadee a individualida-
de em jogo, mesmo embasado com todo o vocabulário de movimento aprendido durante a aula, é possível
desconstruir a ideia de algo fixo. Essa etapa:

Acontece sempre ao final da aula, cada aluno vai ao centro da roda, formada pelos de-
mais alunos , e dança, improvisando os movimentos aprendidos durante a aula e os ar-
ticulando com o repertório já conhecido, quando é o caso. Na roda, estimula-se que a
relação com a música não seja apenas de obediência à marcação rítmica, mas que haja
uma atenção aos diversos aspectos de sua dinâmica e atuação dos diferentes instrumen-
tos musicais. (VICENTE; SOUZA, 2011, p.08)

Nesta etapa, o professor deve valorizar a maneira que o aluno dança, a interpretação individual deve
ser ressaltada como um ponto fundamental.

Ao término das entradas na Roda, propomos que todos os alunos continuem jogando-se no frevopelo
espaço, usando o vocabulário do frevo e dançando em diversas intensidades sem parar, pensando na exaustão.

É preciso que o professor deixe claro, que os impulsos devem tomar conta do corpo, modelando os
movimentos para estabelecer um novo tipo de comunicação. Não é preciso quebrar a execução do movi-
mento; não se pode parar para não perder a forma de manipulação da energia utilizada.

289
Para driblar o cansaço, propomos o princípio da absorção da ação ou virtude da omissão- que é um
processo que restringe o espaço da ação ao mesmo tempo em que conserva a sua energia. A grosso modo,
é como se a ação não terminasse onde o movimento cessa no espaço, mas continuasse no tempo.Aqui
chamamos esse exercício de retendo o frevo, que consiste em reter o movimento, e deixando-o em menor
intensidade, pulsando no interior, ou mesmo trotando-o para não romper completamente o fluxo obtido.
É preciso parar de se locomover no espaço mantendo a velocidade internamente, percebendo os impulsos
internos gerados pela movimentação exterior.

A ação de reter é de grande valia, pois faz o aluno perceber sua respiração, as possibilidades de
tranquiliza-la, percebendo que sensações acontecem no corpo no momento da expansão. É um momento
de tomada de consciência.

Nesta etapa, o professor deve instigar os alunos a se movimentarem até chegar à exaustão, onde o
corpo vence aquilo que chamamos de“limite”.

Essa progressão de aula não há fortalecimento muscular, desaquecimento e alongamento, por ser
uma proposta pensada para dar inicio ao trabalho de criação. Com este estado dilatado, o professor ou/e
aluno devem começar a trabalhar com os diferentes estados de energia, gradações de intensidades e iniciar
um trabalho de criação. Mas vale salientar, que após a criação artística, é importante que o professor traba-
lhe os grupos musculares das extremidades inferiores que são mais solicitadas durante a prática do frevo e
exercícios que fortaleçam a musculatura abdominal, como também uma etapa destinada a alongamentos
estáticos e respirações profundas para que o corpo retorne ao equilíbrio interno pré-exercício e amplie sua
flexibilidade, relaxando e tendo uma recuperação muscular, facilitando a eliminação dos produtos residuais
resultantes da atividade muscular.

Considerações finais

Tratando-se do fazer teatral, podemos utilizar a dança frevo em inúmeros fins no trabalho do ator.
O fim aqui referido está calcado na obtenção de um corpo dilatado, um corpo que vai à busca de uma nova
ação, age, investiga e supera as possibilidades.

A dança frevo nos faz redirecionar os fluxos de energias da vida cotidiana,permitindo ao aluno uma
autonomia de criar e recriar, por meio de um aprimoramento, um espaço onde pode exercitar o aprendizado
e desenvolver o seu próprio caminho de aperfeiçoamento.

Essa proposta de aula pode ser realizada de diversas maneiras, mas vale salientar que é importante
observar os princípios que embasam essa progressão.Esperamos que o conteúdo apresentado seja entendido
como forma de sinalizar indicadores para que professores, artistas e preparadores corporais,elaborem seu
plano de curso e orientem suas escolhas para uma organização de aulas, além de evitarem lesões, propiciar
uma progressão no desenvolvimento criativo, físico e cognitivo.

O teatro é uma arte que acontece no corpo, e deve ser elaborada por todos os ângulos que a com-
põem: o físico, o técnico e o artístico. Esperamos que esta pesquisa possa contribuirpara pensar na im-
portância de se moldar, renovar, perceber nossa jornada como professor e usar como contribuição para a
discussão desse ator que cria, que investiga, que treina e vai além, e que possa despertar nos professores e
artistas o interesse pela pesquisa como forma de validar essa prática e divulgar esse patrimônio imaterial
nacional.

290
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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dade Frassinetti do Recife, Recife, 2009.

291
FÁBULA E POÉTICA DO CONVÍVIO:
REFLEXÕES SOBRE UMA OFICINA
DE TEATRO INTERGERACIONAL
Allyne Matos Nogueira
Centro Cultural Benfica

INTRODUÇÃO
A intergeracionalidade é um tema ainda pouco discutido no Brasil, mas que já podemos encontrar
de forma crescente, estudos, pesquisas e ações direcionadas à integração entre as gerações. Podemos identi-
ficar no imaginário e senso comum expressões como “conflito de gerações” que apontam para as mudanças
sociais e de valores e a dificuldade de estabelecer o consenso e respeito às diferenças e histórias de vida entre
as gerações. Tais conflitos criam um distanciamento familiar, em que cada vez mais, pais e filhos, vós e netos
se veem isolados, pouco interagem e conversam, deixando de fazer trocas significativas.

Isso reflete um contexto de desvalorização das potencialidades humanas (POLTRONIERI et al.,


2015) e dos laços sociais, que se encontram fragilizados nos tempos do capital, com “valores que estimulam
o individualismo, a competição e o consumismo” (Gerência de Estudos e Programas da Terceira Idade do
Sesc São Paulo, p.5). Além disso, somam-se fatores como o processo de envelhecimento populacional em
países em desenvolvimento e de uma crescente urbanização, que na velocidade das grandes cidades, desfa-
vorece esquemas de cooperação, apoio mútuo e construção afetiva e coletiva.

É diante desse contexto que podemos pensar na construção social e histórica das gerações, em
que os significados e sentidos de cada momento da vida tem uma expressão diferente, o que interfere na
relação entre elas ao longo da história. Essa divisão de fases como gerações pode ser entendida como uma
“cronologização da vida”, que institucionaliza o curso da vida humana (POLTRONIERI et al., 2015). Com
isso, podemos ver como a delimitação de cada fase da vida define quais comportamentos, atitudes e papéis
destinados a cada grupo de idade, como traz Ferrigno (2011) normatiza o comportamento esperado de cada
geração, que colabora para o distanciamento entre as gerações.

Nessa normatização se estigmatiza as fases da vida, gerando preconceitos etários, em que os mais
jovens discriminam os mais velhos e os mais velhos discriminam os mais jovens. Por isso torna-se impor-
tante considerar a estigmatização, segregação e participação social do segmento idoso, e ao mesmo tempo
uma idealização da juventude (POLTRONIERI et al., 2015). Como traz Ferrigno,

292
Curiosa situação esta que vivemos, no qual os mais velhos querem parecer mais jovens, ao
passo que crianças e adolescentes se esforçam para obter um visual de pessoas adultas (2011)

Nesse sentido, faz-se oportuno a mobilização para a integração e aproximação entre as pessoas de
diferentes faixas etárias e gerações, para o fortalecimento de vínculos afetivos, troca de experiências e “re-
conhecimento das peculiaridades e possibilidades do outro como sujeito, além de possibilitar a quebra de
estereótipos” (POLTRONIERI et al., 2015, p.301). Por isso, o movimento, e as relações intergeracionais se
mostram como um forte apelo à partilha e à convivência na diferença, resgatando a ancestralidade e com-
preensão da cultura pelos ritos, tradições, crenças, simbolismos, linguagens e costumes (POLTRONIERI et
al., 2015), dando a noção de continuidade para os mais velhos, pelos mais jovens, com as configurações que
vão se estabelecendo na atualidade.

Para isso, o teatro se mostra como um espaço da experiência de que nos fala Jorge Larossa Bondía
(2002), que é capaz de formar e transformar os sentidos das palavras e coisas, criando realidades e possibi-
lidades. Logo, o teatro é uma potência para impulsionar os sujeitos envolvidos a se identificarem enquanto
sujeitos históricos de transformação, mesmo destituídos de autonomia e independência como as crianças e
velhos (POLTRONIERI et al., 2015).

É com esse pensamento que nos inspiramos na proposta, relatos, estudos e pesquisas já feitos nessa
direção, especialmente o Programa SESC Gerações de São Paulo, fundado em 2003 (FERRIGNO, 2011).
Nessa proposta, há uma criação de espaços culturais e de lazer em que há a presença de interesses comuns
e boa qualidade das relações sociais, em um “clima solidário, de confiança mútua e que a cooperação ocupa
o lugar da competição” (FERRIGNO, 2011). Com esse movimento, criam-se possibilidades para a vivência
da partilha e do prazer, proporcionado pelo lúdico e exploração do universo da cultura popular. Como traz
Ferrigno (2011), no Brasil, as primeiras aberturas para a consideração da integração entre as gerações, foram
centralizadas nas questões dos idosos, em que se formaram cursos e pesquisas nas áreas de gerontologia,
que foi possibilitando ações como a Universidade Aberta à Terceira Idade, o Estatuto do Idoso e criação de
programas de lazer e cultura em processos de educação não formal.

Consideramos, pela busca, que ainda há poucas ações organizadas, tanto iniciativas privadas como
públicas, que fomentem essa participação social de todos sujeitos enquanto cidadãos, em todas as faixas etá-
rias, de modo intergeracional. Diante disso, que a proposta de um teatro intergeracional tem caráter político,
pois favorece e possibilita um espaço para uma linguagem comum, em que elementos artístico-pedagógicos
podem contribuir para a construção de um processo teatral dialógico, participativo e portanto, interge-
racional (FRANCO, 2014). Essa possibilidade de uma linguagem comum é uma das características mais
importantes para a participação e protagonismo dos envolvidos, que em meio às diferentes vozes e histórias
vividas o equívoco é capaz de produzir o unívoco, no encontro de todas as gerações no momento presente.

Essa partilha e convivência na diferença entre gerações pode se dar tecendo-se o fio da memória
(KESSEL, 2014), em que se passa a experiência dos mais velhos aos mais jovens e dos mais jovens aos mais
velhos. Assim, a memória torna-se um elemento de articulação entre idosos e crianças, para preservação
da memória cultural, individual e coletiva, contando e ouvindo histórias. É pela memória-experiência que
trazemos as lembranças e reminiscências de nossas próprias histórias, do vivido em diferentes momentos
de nossas vidas, pela oralidade e compartilhar (KESSEL, 2014). Com isso, nossa premissa para o desenvol-
vimento das oficinas foi o comum entre todas as gerações se encontrar na infância, pois todos haveriam
passado por ela ou a estariam vivenciando. Nessa direção, os motes para os exercícios e para a construção
dos elementos cênicos foram: a brincadeira, a circularidade, a cultura popular, a universalidade do silêncio,
os jogos dramáticos e o drama em processo. Desse modo buscamos acessar a criança interior, a sua atitude
de descoberta e o seu espanto diante do mundo.

293
PROCESSO

A Oficina de Teatro Intergeracional aconteceu em Janeiro de 2017, em quatro encontros de duas


horas e meia no Centro Cultural Benfica, na cidade de Recife em Pernambuco. Iniciamos o planejamento e
preparação em setembro do ano anterior, 2016, no mesmo espaço, para fazer estudos e proposições sobre o
processo da Oficina. Estive como monitora-participante, junto a dois monitores e um professor. Durante a
preparação lemos textos de teatro, de filosofia e livros infantis, pois, desde o início, decidimos que o ponto
de partida em comum entre os participantes seria a infância. Por meio de jogos e brincadeiras acessávamos
à criança interior.

A noção de coralidade também nos guiou durante o processo. Buscamos resgatar a teatralidade
coral, com dinâmicas que envolvessem todo o grupo em uma criação coletiva que levassem em conta a sin-
cronia e a variações de ritmos, das sonoridades durante os movimentos coletivos, pensávamos no nós, no
grupo, como um personagem coletivo. Nesse sentido, a circularidade colocava todas as pessoas, em diferen-
tes faixas etárias a uma mesma distância, e assim iniciamos o processo, que em todo momento foi permeado
pelo círculo e movimento circular.

Tivemos 11 participantes com idades variadas, foram elas: 9, 10, 17, 18,19, 30, 32, 67, 65, 60 e 68
anos. Assumíamos uma postura ritualística, de modo que o teatro fosse um espaço de transubstanciação e
transfiguração. Antônio Januzelli (2009) ao refletir sobre o ofício de ator diz que é preciso desalojar-se de si
para tornar-se outro. O caminho entre o eu e o outro é feito de exercícios, em que precisamos considerar o
corpo físico, fisiológico e o corpo sutil, que se coloca na relação com o outro pelo contato, pelo olhar, pelo
toque (JANUZELLI, 2009). Os exercícios que fizemos foram na direção de produzir esse caminho, pela
compenetração e solenidade, com ênfase no silêncio e trabalho com os cinco sentidos, experimentando a
escuta e percepção pela não-fala, tato e olfato com os olhos vendados, além de aquecer com o olhar. Um ele-
mento importante para essa postura também foi o pedido para levar comida para o encontro familiar, assim
havia um momento de compartilhar, mais ao fim do ensaio, e se unir em torno do alimento.

Iniciamos em silêncio, no círculo, olhando e permitindo-se ser olhado. Ao olhar para o outro, a
insígnia do professor nos direcionava para se olhar no outro, e assim poder lembrar de quando se era mais
jovem e criança e pensar em como pode ser a velhice e adultez. Com isso começamos a possibilitar uma
identificação e aproximação entre os participantes-atores diante das diferenças, em que os exercícios passa-
ram a criar a teatralidade, que ao longo do processo passou a produzir a característica da cena que faz com
que o espectador não se desligue dela (JANUZELLI, 2009) e a experiência. A experiência é o que nos passa,
nos acontece e nos atravessa, tornando-nos outros, em que o excesso de informações, trabalho e velocidade
da vida cotidiana contemporânea anulam esse experienciar (BONDÍA, 2002). Assim, é cada vez mais difícil
viver uma experiência, de modo que se possa

parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos de-
talhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender a autono-
mização da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o
que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar
muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (BONDÍA, 2002, p.5)

Assim, um dos nossos principais objetivos foi possibilitar o desligamento do raciocínio sistemático
e um sentir de acordo com o saber e a história de cada sujeito, que é encarnado e sujeito da experiência,
pela disponibilidade e abertura de colocar-se ali (BONDÍA, 2002). Além dessa experiência, há o tempo do

294
vivido que cada um carrega, em diferentes contextos e momentos históricos, e que isso também é levado
para a cena. Pudemos ver essa relação entre as pessoas mais velhas e mais jovens, em diferentes momentos,
especialmente quando uma mulher idosa falou para outra mais jovem e para todo o grupo: “não faça nada
para aparecer, você está sendo visto”.

Com a desaceleração do raciocínio e a busca pela experiência que fala Bondía (2002), é preciso o
sentido e vivência da presentificação, em estar presente, não pensando no que fazer e/ou não-fazer. Como
fala Januzelli, “a arte do ator é a arte presente, viva, de expor-se inteiro” (2012). Assim como as crianças nas
brincadeiras, é possível estar em todos os tempos, do vivido e não vivido, pois há a chance da criação, em
que passado, presente e futuro são simultâneos e abertos. Por isso que em cena, pudemos ver uma menina
de dez anos ser mãe de um homem de trinta e dois.

A partir do círculo, passamos a colocá-lo em movimento, de forma gradual em passos, de modo


que se formasse uma ciranda sincrônica, durante todos os encontros. A partir desse movimento dos corpos
físicos e sutis, pode-se começar a visualizar a coralidade. Esses momentos impulsionaram a busca pelo mo-
vimento próprio do grupo, em que o professor se inviabilizou no processo, enquanto o grupo crescia cada
vez mais. Pelo caminho do ritmo, ciranda e cultura popular, o professor perguntou se alguém poderia can-
tar uma música que a pessoa acreditasse que nenhuma das outras conhecesse. Uma das participantes mais
velhas nos trouxe a música, que ela disse cantar para os netos e dizia “eu queria ser um grilo, ser um grilo
seresteiro, pra fazer cri cri cri cri debaixo do seu travesseiro (...)”

Mais ninguém conhecia e todos aprenderam e começaram a cantar junto com a ciranda, até que a
organicidade do grupo tornava a dança e música cada vez mais vivas. Após a cantoria, o professor leu para
a turma o poema “Quadrilha” de Drummond, que fala de uma rede de pessoas e relações, com sentimentos
vários envolvidos. Ao ler, pediu que repetíssemos até que o tivéssemos aprendido e pudéssemos recitá-lo
uns para os outros na ciranda, em uníssono. Começamos a repetir o poema juntos, e cada um recitava com
uma lembrança diferente, de modo que as relações, personagens e o próprio poema ganhava novas formas e
possibilidades. Isso passou a ser sentido como erro, quando se começava a rir e parar para tentar recitar de
forma unívoca, fazendo-se julgamentos do processo. Com isso, o professor interveio afirmando que nos dei-
xássemos errar, pois ali também havia espaço para o erro, e assim passamos a produzir o equívoco e marcar
a diversidade no ambiente, ao mesmo tempo que buscamos respeitar o unívoco no encontro.

Com a direção do professor de fazer um retrato de família, iniciou-se a construção de personagens.


Cada um poderia ser quem quisesse nesse sistema familiar. Os personagens foram se mostrando e crescendo
a cada encontro, trazendo mais elementos à história. Um dos elementos mais fortes dessa construção foi a
criação de um mito em torno de uma sociedade secreta, em que familiares como o “primo distante” fazia
parte e trazia revelações e mistérios sobre a família. Quem também se dispôs a participar da sociedade junto
ao primo distante foi uma das tias dele. A partir da foto de família e da construção das personagens, foi se
ensaiando várias cenas do roteiro final, com o último ensaio do último dia.

Pela criação de uma família na cena, buscava-se também resgatar símbolos, arquétipos e gestos poé-
ticos que falam do familiar. Assim, também haveria um encontro de final de ano, em que se faria uma troca
de presentes, um “amigo secreto”. No primeiro encontro foram dispostos materiais como canetas, cola, te-
soura, diferentes tipos de papel, fita, barbante, jornais, plantas, tecidos, EVA, massa de modelar, que os parti-
cipantes encontraram depois de serem vendados, criando a surpresa. Com esses materiais pudemos fazer os
presentes de nossos amigos secretos, que eram pessoas que havíamos nos encontrado no exercício anterior.

Tivemos um tempo para produzir os presentes, na presença, e fizemos as trocas, construindo afe-
tos. Fizeram-se presentes de todos os tipos e com todos os materiais, vimos desenhos, bijuteria, acessórios
femininos como bolsa e até mesmo uma pipa. É com esse panorama que se desenrolou a cena nos encon-

295
tros seguintes. Recriamos esse amigo secreto e foto de família a cada encontro, re-ensaindo a história com
diferentes formas e elementos, de modo que ela se construía e crescia. Assim, a imitação e repetição da cena
criava um fio da história e memória dos envolvidos. Como traz Januzelli (2012), “devemos ensaiar a peça
antes de escrevê-la”, em que experimentamos o teatro fazendo, em um exercício de intensificação da vida.
Com o mistério e futuros conflitos, que se criaram em torno da sociedade secreta, vimos uma oportunida-
de de fazer o uso da história da Fábula da Convivência (DANSA; DANSA, 2002), inspirado na filosofia de
Schopenhauer, com a qual um personagem se encarregaria de fazer o “teatrinho” para as crianças, que foi o
“primo distante”.

Essa Fábula da Convivência (DANSA; DANSA, 2002) foi passada por um livro infantil que contava
a história de porcos espinhos, que em uma era glacial, de muito frio, eles precisavam ficar bem juntinhos
para se aquecer e não congelar. Mas quanto mais eles se aproximavam, mais machucavam uns aos outros
com seus espinhos, fazendo-se sangrar. Alguns personagens resistiram ouvir a história e o teatrinho, en-
quanto outros personagens pediam a atenção de todos para a compreensão da história. Nesse momento, já
estávamos fazendo exercícios de aproximação e distanciamento, como experimentar olhar uns aos outros
em diferentes distâncias. Com o estímulo da percepção dos sentidos, ao vendá-los para que tateassem obje-
tos e sentissem seus cheiros, o objetivo era de que despertassem uma sensibilidade e relação com esse objeto,
de modo que fosse possível criar uma língua para falar com ele.

Com esses exercícios, buscava-se possibilitar um afrouxamento e liberdade para a criação, em que
ao construírem seus personagens e o roteiro da festa de família se faria a cena em ato, no improviso. No pe-
núltimo encontro, foi apresentada e houve uma conversa sobre a iluminação, que pudemos ver os diferentes
posicionamentos e focos de luz do teatro, em que podíamos escolher de que modos usar a iluminação ao
nosso favor. Com isso, nesse dia, fizemos o uso da sonoplastia musical, com boleros de Buena Vista Social
Club e músicas de Roberto Carlos e da iluminação.

Ao nos colocar para dançar em pares, com uma bola de festa que se segurava entre os dois corpos,
tínhamos uma conversa sobre o que estava acontecendo no baile, em homenagem ao avô falecido e sobre
aquela controversa reunião familiar. A proposta era de que ao entrar no foco de luz do centro do palco, a
conversa da dupla que estava dançando precisava ser audível para o público, enquanto os outros continuas-
sem dançando. Nesse momento, o som da música diminuía, e quando aumentava, era o momento de uma
dupla sair para a outra entrar no foco de luz e também tornar a conversa audível para o diretor (professor)
e o público. Era cada vez mais claro a autonomia do grupo, em que o professor se inviabilizou e se deixava o
grupo fazer, em seu próprio movimento.

Ao se aproximar do último encontro, havia um clima de início de despedida, desapego e saudade.


Foi no penúltimo dia que ao final, depois do lanche compartilhado, ficamos em círculo para falar sobre
como foram esses encontros. Entramos em questões filosóficas sobre o teatro e o questionamento e cobrança
da continuidade daquele processo, para uma apresentação póstuma para um público, com uma dificuldade
de se falar sobre o que havia acontecido e sentido até então, especialmente entre as idosas. A fala de um dos
homens apontou para a surpresa da vulnerabilidade e exposição em que se colocavam ao pôr os papéis em
questão, no palco. Uma das crianças falou que “foi divertido”. Além da fala de uma das jovens atentar para a
dimensão das emoções, do quanto o que acontecia era emocionante e mobilizador. O professor indicou ao
fim do encontro para que se trouxesse os figurinos dos personagens para o ensaio final da peça.

No último encontro havia uma ansiedade pelo momento final e a despedida do grupo. O roteiro que
foi estabelecido pelo professor para o último ensaio havia sido o baile de dança, a fotografia para o álbum de
família, o teatrinho da fábula, a ceia de fim de ano e um novo amigo secreto, que no último encontro havia
sido feito um novo sorteio entre as personagens. O cenário era simples, com um banco e a bandeja com as

296
comidas, a cortina, os participantes foram vestidos com seus figurinos, a sonoplastia era de boleros e can-
ções de Roberto Carlos e a iluminação mudava a cada tomada do roteiro. Acreditamos, desde o início, ser a
festa o lugar para o encontro das gerações.

Na cena final, vimos trocas de farpas e revelação da farsa que era essa reunião familiar, cheia de
conflitos e tentativas de apaziguamento. Diante da construção e vivência dos papeis, foi possível embaralhá-
-los, confrontando os participantes, colocando-os em grupo e relação, em uma família. Como na fábula do
convívio, passavam por uma era glacial, discutindo sobre heranças, empresa da família, sociedade secreta,
mistério sobre a morte de alguns personagens, e precisavam se aquecer estando juntinhos, o que doía e
sangrava em muitos momentos, e podia ser visto na mediação entre os diferentes personagens para tornar
aquele um momento mais memorável e marcante possível, o que se alcançou.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com essa experiência, nos deparamos com a novidade e o desconhecido da situação, que nos co-
locava muitos desafios, como uma linguagem que alcançasse a todos, com exercícios que todos pudessem
fazer, pela mimese e repetição e por meio das possibilidades de atuação de cada sujeito. Percebemos, desde
o primeiro encontro, que os preconceitos que nós alimentávamos sobre cada faixa etária não se sustentavam.
Nós pensávamos: “as crianças não vão nos entender”, “os idosos não vão sentar no chão” “os adolescentes
ficarão entediados”. Essas questões foram diluídas por nossas práticas. Estabelecer o silêncio, o não controle
e dar espaço para o erro sem julgar-se foram os grandes desafios.

No primeiro dia, uma idosa e uma menina, avó e neta, chegaram juntas e atrasadas para o encontro.
O professor colocou-as como espectadoras durante os primeiros exercícios, ele disse: vocês serão especta-
doras. A menina perguntou a avó: “o que é um espectador?”A senhora ensaiou uma resposta no seu ouvido,
pareceu-nos que a questão estava resolvida. Assim, em mais de um exercício se dividia a turma entre atores
e espectadores, auxiliando a ensaiar o encontro com o desconhecido que o teatro promove. Também foi fa-
cilitado um espaço de cooperação, pela atuação em grupo, em que cada um auxiliava o outro na construção
da cena, de forma colaborativa e acreditamos que somente assim ela poderia se fazer.

Os exercícios foram importantes ao direcionar o caminho do grupo que se formou de modo autô-
nomo e coletivo, em que se autogestou uma fábula da convivência daquela família ficcional. As diferenças
se harmonizaram na criação de uma peça. Essa diversidade apontava para as escolhas e máscaras que são
assumidas, as convenções que permeiam as relações, o personagem que se faz cotidianamente e que constrói
as histórias de vida, memórias e valores. Algumas pessoas puderam se confrontar com isso. Sentiu-se um
pesar do grupo e todos envolvidos com o fechamento da oficina, e contabilizou-se uma falta, de uma jovem,
nesses quatro dias.

Ainda havia as expectativas de cada faixa etária, e como isso conformou-se na construção dos per-
sonagens, em que podiam permitir-se ser outros. Uma das idosas falou como não se sentia velha e que idade
era coisa da cabeça, quando essa é uma fase estigmatizada e relacionada ao fim da vida e improdutividade.
Ao final, pudemos reafirmar e reconhecer a importância e desafio que é o convívio entre as diferentes gera-
ções, e que o espaço que foi aberto e proposto nessa oficina possibilitou o embaralho e a vivência do mistério
que é circular, de nascimento, vida e morte, e que todas as fases que passaram e vão passar, colocam-se no
presente, estando no mundo.

297
BIBLIOGRAFIA

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298
A POÉTICA POLÍTICA
EM NARRATIVAS DA AIDS -
RELATOS DE CRIAÇÃO CÊNICA
Franco W. Lima da Fonseca - UFRN

O título do espetáculo foi desenvolvido a partir dessa crítica (da não tradução da sigla Aids)
com a indagação que temos até hoje sobre a origem da doença e seus caminhos futuros, “De onde vem e para
onde vai Cida?”, nasce desse impulso de questionar estas fontes, de rever o nosso imaginário e construir um
diálogo menos técnico e mais poético com o público que entra em contato com a obra.

Para este objetivo algumas escolhas foram feitas, em primeiro plano definimos que CIDA permanece-
ria no título, pela sigla CID - Classificação Internacional de Doenças – e também nos ajudaria a não tocar de
forma direta sem contexto na doença, de forma a espetacularizar o tema equivocadamente, fazendo da Aids/
SIDA um marketing ou slogan da peça, longe disso. O título foi o primeiro texto da encenação, e do questiona-
mento proposto nele surgem os personagens da história, comissários de bordo que assumem os todos papéis
necessários para deslocar o conflito em um esquema de revezamento (curinga). Em cada quadro dramatúrgico
temos o enfoque de dois ou mais papéis, e entre eles os comissários de bordo sempre reaparecem, assim a cena
seria a metáfora de uma realidade mutável e não estagnada em papéis fixos, Boal (2007, p. 175) discute a neces-
sidade de romper com este estilo de atuação, representando uma ruptura com a realidade estática:

Quero analisar não como é de fato emigrar para o reino dos doentes e lá viver, mas as
fantasias sentimentais ou punitivas engendradas em torno dessa situação: não se trata da
geografia nacional. Meu tema não é a doença física em si, mas os usos da doença como
figura ou metáfora.

A associação da doença a qualquer indivíduo sempre foi um grande tabu, isso porque o viés meta-
fórico da doença sobressai os aspectos clínicos em nosso imaginário:

Metáforas de doenças tradicionais, constituem, acima de tudo, um modo de ser veemente;


em comparação com as metáforas modernas, elas são relativamente vazias de conteúdo.
Shakespeare faz muita variação de uma forma usual da metáfora, uma infecção do “corpo
político”. (SONTAG 2007, p.64).

Essa infecção de um corpo político não diz respeito ao indivíduo, mas a sua classe, o seu lugar, re-
tomamos aqui, pois, a relação de sujeito-objeto. Este corpo político, ao qual abordamos no espetáculo, nada

299
mais é do que o corpo positivo, e é sobre este corpo que diversas metáforas foram construídas ao passar
dos anos, em especial por ser uma doença que começa a ocupar corpos já não bem aceitos pela sociedade,
tornando-se polêmica. Em sua observação sobre como estes corpos políticos sofrem com a representação
da doença na sociedade, Sontag (idem) afirma que doenças desta ordem são:

[...] usadas para propor padrões novos e críticos de saúde individual e para exprimir um
sentido de insatisfação com a sociedade em si. [...]as metáforas modernas sugerem um
profundo desequilíbrio entre o indivíduo e a sociedade, no qual a sociedade é concebida
como o adversário do indivíduo.

A associação da infecção por HIV e a epidemia da Aids aos homossexuais, foi um dado científico
equivocado, amplamente divulgado pelas mídias oficiais da época (início da década de 1980), e que até os
dias atuais permeiam nosso imaginário, a Aids surge ironicamente durante o período em que o movimento
Gay começa a ganhar resistência frente a opressão de seus corpos, sexualidade e afetos:

[...] Prato cheio para a homofobia, os preconceituosos se apegaram ao fato da doença ter
sido detectada inicialmente na comunidade homossexual como a peça que faltava para
que o quebra-cabeça da condenação se completasse: a Aids foi taxada de castigo divino
aos gays e seus hábitos sexuais promíscuos. (OSWALDO BRAGA, 2007)

Na tentativa de surpreender o público na relação empatia-distanciamento, transformamos os papéis


em trânsitos contínuos para os atores, construindo quebras sutis para elevar de um efeito a outro, com o es-
tranhamento necessário de um movimento transformador e não só inquietante ou desconfortável. Interpelo
com a noção de ator-personagem e ator- narrador os papéis em trânsito do espetáculo, onde o ator perso-
nagem é sujeito real (que sente e vive) os enunciados correspondentes da realidade dos objetos projetados
para si. Mas existiria ainda uma terceira relação, que ainda investigo, proposta por Haderchpek (2001), a
relação personagem-narrador, em “O estudo do gesto sob o ponto de vista BRECHTIANO: Uma pesquisa
direcionada ao ator”, Haderchpek explica essas relações e elabora uma concepção mais clara sobre a relação
personagem narrador.

O ator-narrador é aquele que narra diretamente para o público sem estar dentro da personagem, e
para isso, se utiliza a maior parte do tempo de gestos simples e explicativos. Quando está desempenhando a
função de ator-personagem, ou seja, quando está representando de fato o seu papel, o ator se utiliza de gestos
globais (que buscam definir com clareza uma relação social), revelando também o jeito de ser ou de pensar
da personagem. A esta categoria de gestos, Brecht costumava atribuir a terminologia de gestus.

O trabalho dramatúrgico desenvolvido na encenação, o conflito instaurado parte das narrativas


por trás da frase: “Eu tenho um segredo para te contar”. Frase esta utilizada diversas vezes na dramaturgia do
espetáculo, mote criativo para instaurar o conflito. A ideia surgiu a partir da pesquisa feita sobre o direito
ao sigilo de diagnósticos médicos e que se maquia numa outra face desse direito, quase uma imposição –
“contar ou não contar?” e “quem pode contar?”, relacionando este segredo não só aos tabus encontrados no
cotidiano de uma pessoa que vive com o vírus HIV em seu sangue, mas tentamos ir mais a fundo, como
expressa Carlos Henrique de Oliveira, estudante de Sociologia, militante do movimento negro e de Aids em
publicação GRITO de sua autoria:

[...] O silêncio é também imposição estrutural para mascarar as vivências das Pessoas que
vivem com HIV-AIDS (PVHAs) no país. Aliado ao medo do estigma, ele nos paralisa, nos
sufoca. E isso causa impactos sociais e em nossas vidas pessoais (sim, no afeto) [...]. Silen-

300
ciar alguém é calar todas as suas esperanças, a sua essência. É um silenciamento de alma,
digamos assim. [...]tudo isso se encontra no “poder simbólico”, naquele setor invisível da
sociedade, nas violências que sequer percebemos muitas vezes. Mas que doem. MATAM
[...]. (OLIVEIRA, CARLOS 2016).

Em um olhar raso, só conseguimos enxergar a ligação com o direito ao sigilo, mas procuramos falar
sobre diversos silenciamentos “segredados” e segregados por nossa sociedade face à epidemia da Aids, o
não dito ou aquilo que não se pode falar, ou insistiria em dizer, aquilo que não se quer ouvir. Susan Sontag
(2007) nos situa sobre os tabus gerados em torno da identidade oculta do câncer e da tuberculose. A autora
faz um recorte sobre a falta de verbalização das palavras no diagnóstico de seus pacientes, ressalta que os
diagnósticos para estas doenças estavam diretamente associados a uma sentença de morte, e que durante
muitos anos foi determinado que o paciente não soubesse de seu quadro, mistificando cada vez mais os seus
conceitos sociais. A autora diz que (Idem, p.13):

Quando, há não muitas décadas, saber que tinha tuberculose equivalia a ouvir uma sentença
de morte – como hoje, no imaginário popular, o câncer equivale à morte -, era comum es-
conder dos tuberculosos a identidade de sua doença e, após a morte, escondê-la dos filhos.

Nos quadros narrativos da encenação desaparece o sujeito real face ao estabelecimento do perso-
nagem-narrador, que observa o mundo narrado, mas não opera como um personagem, identificando-se
uma forma multisciente. Em relação aos objetos acometidos dos papéis, ele perde a sua função “presente”
da dramaturgia, já que “presenciou” os eventos vividos, mas não interage sobre eles, permanecendo numa
posição de observador crítico daquilo que está sendo mostrado. É diferente do que ocorre com o ator-
-personagem que preserva a sua função de lugar existencial “presente”, individualizado dentro do contexto
dos acontecimentos dramatúrgicos, sem distanciar-se de sua situação objeto na cena. A cada quadro eu os
apresentava metaforicamente, destacando aqui os principais papéis característicos da relação ator/narrador
e narrador/personagem:

- Comissários de Bordo: estado de composição imagética e de partitura, que uniformiza os atores,


sem denunciar protagonismos, mas evidenciando um objeto/sujeito que sofre as ações em transição de cada
papel-metáfora; o lugar de atuação é definido para narração enquanto personagens.

- Piloto comentarista: este papel aparece em diversos momentos da encenação, de forma a distan-
ciar o público das nuances dramáticas, fazendo narrativas que problematizam e pontuam várias questões,
por vezes até questiona a ação dos personagens e o entendimento do público, fazendo sempre uma recupe-
ração de fatos históricos, científicos e sociais.

Brecht ao desenvolver sua poética política, coloca o efeito de distanciamento crítico como uma cons-
tante entre obra e espectador, especialmente, na relação ator/personagem. As nuances refletidas ao ator
brechtiano possibilitam a eficácia dos efeitos, e para isto uma compreensão dos gestus sociais apresentados
no espetáculo se dão nos papéis descritos abaixo, aproximados da ideia de ator-personagem:

- Casal heteronormativo, - escolha feita para contrariar o pensamento errôneo de que o vírus
tem uma “população chave”, esta que sofreu diversas críticas, pois ao mesmo tempo em que contraria um
estigma coloca em tensão a falta de representatividade dos corpos posithivos mais oprimidos com o tema,
refiro-me aos gays e às mulheres negras.

- Estereopita e Ventríloquo – O primeiro nome deriva da palavra estereótipo, e surge com a pes-
quisa de depoimentos reais, preconceituosos sobre a infecção e o destino das pessoas que vivem com HIV,

301
neste papel a atriz Naara Martins, faz uma mimese corpóreo-vocal de uma marionete e o ator Matheus
Gianinni assume o papel de ventríloquo, apresentador do Freakshow dos estereótipos reproduzidos por
Estereopita. Mais adiante trataremos melhor sobre este quadro.

- Juiz e Ré/Juíza e Réu, Estes papéis situam-se no quadro, onde evidenciamos a situação de medo
e culpa retratados em quase todas as narrativas da epidemia. A culpa nesses personagens é analisada pela
ótica cristã, e ambos atores transitam entre os dois papéis, fazendo um recorte opressor ao juiz/juíza, como
a moral cristã que nossa sociedade usa para punir o réu/ré culpado de um crime contra esta (falsa) “moral”.

Esta definição da atuação coringa deu ao trabalho uma autonomia dos atores que representam cada
papel, conservando entre as trocas a caracterização da personagem pelos atores, condicionando o público a
uma leitura ampla dos papéis dispostos. O corpo de cada ator procurava gestos similares para representação
dos papéis em trânsito, revelando um determinado aspecto da personagem em suas dimensões físicas e não
só psicológica que chamamos esfera do gesto:

Aquela a que pertencem as atitudes que as personagens assumem em relação umas às


outras. A posição do corpo, a entonação e a expressão fisionômica são determinadas por
um gesto social [...]. O ator apodera-se da sua personagem acompanhando com uma ati-
tude crítica de suas múltiplas exteriorizações; e é com uma atitude igualmente crítica que
acompanha as exteriorizações das personagens que com ele contracenam e, ainda, as de
todas as demais (BRECHT apud POTY, 2005, p. 61 -62).

Não tínhamos cenas definidas, ou mesmo uma dramaturgia pronta, fomos criando a partir das
necessidades em sala de ensaio. Quando se identificava algo potente fazíamos uma observação distanciada,
comentando a cena, e depois repetimos até isso se refinar e se fixar na dramaturgia, tentando reproduzir
até chegar ao lugar de nossas inquietações, para só então definir o texto e as partituras fixas da cena. Fer-
nando Peixoto (1981) comenta os exercícios para atores provocados por Brecht, onde os atores improvisam
cenas introduzindo fatos cotidianos em seus intervalos. Entre uma cena e outra repetiam o exercício, a fim
de manter o processo em constante investigação e maturação das ações dos personagens: “um exercício
concreto de rigoroso e corajoso distanciamento crítico, que permite ampliar o significado do trabalho dos
intérpretes, introduzindo perspectivas que estimulam o processo criativo e assim enriqueceram os persona-
gens construídos” (PEIXOTO, 1981, p. 174). Este sistema utilizado para a atuação esteve presente desde os
laboratórios, e se mantém como metodologia de criação desta encenação, tendo em vista que todas surgiram
dos jogos para o palco.

Uma observação quanto aos papéis da dramaturgia do espetáculo é a concepção mais profunda de
gestus social, mantendo uma interpretação que não limita este conceito ao movimento corporal. Este ponto
de vista fica mais evidente no mapa dramatúrgico da encenação desde seu título. Uma vez em que a medici-
na numa tentativa de justificar cientificamente a homossexualidade como doença, encontra na Aids, quase
dez anos depois da tentativa, um ótimo argumento para o controle da sexualidade humana, atitude majori-
tariamente fascista. O título é então uma denúncia questionadora, do que há por trás desses discursos. Para
uma compreensão mais eficaz descrevo abaixo o mapa dramatúrgico do espetáculo em alguns quadros que
interessam a esta discussão:

Quadro 1 - O convite – última chamada para o voo:

Esta cena tem por objetivo a apresentação dos personagens curingas (comissários de bordo), e a
introdução imagética ao voo.

302
Quadro 2 - A Despedida – embarque:

Cena romântica, este é o único quadro onde o texto não é autoral, para tanto uma tradução adaptada
do “Reflections of a skyline”, do filme “Crave” de Sarah Kane[9] foi livremente reestruturado. Exploramos a iden-
tificação do público com o clichê dos romances, para despertar uma metáfora constante em relação às doenças
da “paixão”, já que o HIV tem a transmissão sexual como a principal via de contágio, por isso ele também é
uma doença da paixão. Sontag ao retratar a romantização da tuberculose nos faz pensar o quanto esta asso-
ciação romântica se estende da literatura para o cotidiano, pois a febre provocada por um tuberculoso outrora
foi considerada “um sinal de uma chama interior”, e o câncer e suas sintomáticas estavam ligadas às pessoas de
“paixão insuficiente”. Já a Aids ainda hoje se encontra associada à promiscuidade, sendo que por promíscuo
compreendemos todo e qualquer comportamento sexual que divergir de um ideal heteronormativo.

Quadro 3 - O encontro – começo da viagem

Neste quadro as transições entre ator-narrador e ator-personagem ficam cada vez mais exploradas,
a ordem dos fatos é contada de trás para frente. Saímos da despedida para o encontro, e este formato de
enunciação narrativa é muito comum na poética brechtiana. É também neste quadro em que o conflito se
instaura quando o ator se distancia do papel de casal, e age como Ator-Narrador: “Sabe quando você conhece
uma pessoa que você nunca viu na vida e você tem coragem de contar qualquer coisa para essa pessoa?”, Atriz-
-narradora: “Daí ele me olhou bem sério, levantou a sobrancelha esquerda, cruzou os braços e disse…”; Piloto:
“Eu, eu tenho um segredo pra te contar”; Atriz-narradora: “Nessa hora ela achou que ele fosse dizer que tem
uma noiva ou que matou alguém e que está foragido. Ele disse que tem HIV (Fragmento da dramaturgia do
espetáculo “De onde vem e para onde vai Cida?”).

Quadro 4 - Estereótipos: (Toca uma música circense, os atores carregam a atriz até o centro do espaço e
começam a arrumá-la como uma boneca, colocando elásticos em seus braços e pernas e a maquiando. Matheus
senta na mala e coloca a atriz em seu colo e interrompe a música).

Aqui é onde toda ambiguidade e complexidade dos termos reproduzidos em falas cotidianas sobre
HIV/AIDS são colocados em cena. Realizei uma espécie de entrevista onde pedi para que os atores expuses-
sem suas próprias narrativas de estereótipos, então transformamos em um texto do quadro. Rosana Soares,
em seu artigo “Estigmas da Aids: em busca da cura” (2002), nos ajudou a pensara forma como reverberam
essas narrativas. O papel do ventríloquo e da marionete são os símbolos maiores nesse quadro, represen-
tando o discurso midiático, mas também cotidiano, em uma espécie de talk show, que termina em silêncio.
A escolha consciente de usar estereótipos sobre o tema no texto, não é ingênua, trata-se de uma denúncia
ampliada pela lupa do teatro na atuação grotesca neste quadro.

Quadro 5 - Juízo Final

O quadro começa com o ato simbólico do juramento “verdade perante Deus e a lei”, o gesto de co-
locar a mão direita sob “o livro sagrado” é um dos elementos que compõem o gestus social deste quadro, evi-
denciando a relação de medo e culpa, de uma cultura hegemonicamente cristã, onde a Ré carrega um peso
imaginário (de peso incalculável) e é convidada a apresentar as provas ao júri, o juiz por sua vez questiona.
“Seu crime?”. Ré: “Me culpar”. Juiz: “Sua motivação?”. Ré: “Medo”. Este jogo de pergunta e resposta é levado
até a exaustão com as mesmas palavras culminando em uma troca de papéis, bem definidos na partitura
corpóreo vocal do gestus da cena.

O “peso” desta cena desperta críticas à cultura ocidental de julgamento, a cena do julgamento por
sua vez metaforiza o julgo feito aos corpos positivos como culpados pela infecção, estes símbolos somados aos
aspectos da iluminação da cena levantam um complexo universo sobre o julgamento em sua origem mítica:

303
Para tentarmos entender a complexidade em torno dos estigmas e preconceitos que cerca-
vam e, ainda cercam em parte, a Aids, é importante compreendermos que essa doença foi
previamente ancorada em nossa cultura ocidental aos códigos da tradição judaico-cristã.
Uma tradição decorrente da origem mítica da criação do mundo, que imprime, em mui-
tos momentos, uma negatividade ao sexo e à morte. [...] o que se tornou hegemônico em
grande parte da cultura cristã foi uma visão pecaminosa da sexualidade (SILVA, 2011, s.p).

Discutindo sobre o assunto no período em que levantamos este quadro, cheguei a levar para leitura
o artigo “Aids: da estigmatização ao acolhimento da vida”, da professora Geórgia Sibele Nogueira da Silva,
nele encontramos um suspiro diante do material que já estávamos pesquisando, pois, a escrita fluida da Ge-
órgia nos despertou um aprofundamento poético e menos científico na construção de cenas, bem como nos
norteia no entendimento da complexidade deste quadro.

Quadro 6 - Agora chupa essa manga

Através deste quadro diversas metáforas foram despertadas, e esta é uma tentativa de apresentá-las
a você, caro passageiro. A manga a qual se refere o título deste quadro é literal, é sobre a fruta de minha pre-
dileção, gosto de comê-la e chupá-la com casca e tudo. A manga, bem como a maçã está associada ao mito de
Adão e Eva, onde a culpa judaico cristã pune o feminino e associa tudo o que não é “masculino” ao pecado
(com ele o castigo). A manga aqui é colocada em duas posições a de “problema a se enfrentar” na frase de
cunho ordinário “agora chupa essa manga” proferida na encenação após uma série de denúncias feitas no
quadro anterior. Sem verbalizar mais nada e ao mesmo tempo dizendo muito, encontrei uma forma de “fa-
zer amor com a cena”.

Saída de emergência:

No ano de 1994, Caio Fernando Abreu publicou “Cartas para além dos muros”, onde declarou aber-
tamente viver com HIV. Por meio da literatura ele rompeu com o silêncio. Poeta e ousadamente corajoso
Caio é um dos tantos outros escritores e artistas que encontram em sua poética a política dissidente e um
lugar para dar voz a outras narrativas, cruzando estas “saídas de emergência” nas artes cênicas, saindo das
gaiolas das certezas ou até mesmo dos segundos armários, convido-lhes a despertar sua inteligência emo-
cional e ativa, pois precisaremos ver com olhos de arte para enxergar as metáforas por trás de uma epidemia
mundial. Este voo relato refletido a partir de um processo criativo, com suas potências transformadoras para
a cena e para a vida, me fazem pensar na relevância de processos criativos como o “De onde vem pra onde
vai Cida?”.

304
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Vagner de. Teatro, Mídia e Aids, 2008. ator, 2001.


BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura PEIXOTO, Fernando. Brecht: uma introdução ao teatro
(des)construindo a Aids. Rio de Janeiro: Record, 1997. dialético. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (Coleção Te-
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BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas po-
líticas. São Paulo: Cosac Naify, 2013. POTY, Vanja. Conceito De “Gestus” e Técnica de Cons-
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FONSECA, Franco Willamy Lima da. Teatro posithivo
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como metáfora política: “De onde vem e para onde vai
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Cida”, 2018. Disponível em: < http://monografias.ufrn.br/
jspui/handle/123456789/6267>. Acesso em 10 de maio de DRAMATURGIA DO ESPETÁCULO “De onde vem e
2018. para onde vai Cida?”: Disponível em Anexos: < http://
monografias.ufrn.br/jspui/handle/123456789/6267>.
HARDERCHPEK, Robson Carlos. O estudo do gesto sob
o ponto de vista brechtiano: uma pesquisa direcionada ao Acesso em: 15 de Maio de 2018.

305
O TEATRO ENQUANTO POTÊNCIA
PARA A ALTERIDADE:
COMPARTILHAMENTO DE
EXPERIÊNCIAS ARTÍSTICAS ENTRE
ESTUDANTES DE TEATRO E IDOSOS
Ricardo Carvalho de Figueiredo
UFMG
APOIO: FAPEMIG

I nfluenciado por minha história de vida e os desdobramentos oriundos das oportunidades e en-
contros tidos durante minha graduação venho compreendido que a formação do professor de teatro precisa
ser ampliada para além da universidade, estabelecendo parcerias na coformação do professor para lidar com
o ensino de teatro na contemporaneidade.

Sob esse ponto de vista, o de romper os muros simbólicos que separam a universidade da vida
mesma, venho coordenado a disciplina da graduação em Teatro da Universidade Federal de Minas Gerais
intitulada Projetos Especiais em Educação que está prevista para o sexto período do curso que possui oito
semestres de duração. Essa disciplina tem como ementa o ensino de teatro na educação não-formal.

Desse modo, apresento a seguir como tenho proposto a formação dos jovens professores de teatro
em uma formação que passa pela experiência – fundamental para a provocação de uma afet(a)ção e deslo-
camento dos saberes adquiridos no âmbito acadêmico.

Faz algum tempo que tenho me perguntado sobre o modo como se dá o aprendizado em teatro.
Tem me interessado compreender como esse saber, praticado dentro de um contexto e originado da própria
cultura humana, foi “capturado” pela escola e se tornado um objeto de ensino. Entendo que o teatro é uma
forma de expressão artística e está presente desde as nossas primeiras brincadeiras de faz de conta.

Concordo com os autores da “teoria da forma escolar” (VINCENT, LAHIRE E THIN, 2001), que
nos apresentam que durante os séculos XVI e XVII, “aquele que aprendia, fazia a aquisição do saber ao
participar das atividades de uma família, de uma casa. (...) aprender não era distinto de fazer.” (2001, p. 13)
(Grifos meus). Se aprender não é distinto de participar da ação em si, como podemos, enquanto formadores
de professores, pensar-agir em novas formas de praticar a formação do professor de teatro, não dicotomi-
zando a formação teórico-prática?

306
Foi com essa questão em mente que propus aos alunos da disciplina Projetos especiais em educação,
do curso de Teatro da UFMG, a irem ao encontro das pessoas em diversas circunstâncias de aprendizagem
e, através de seus desejos e estudos em teatro, proporem uma experiência teatral, calcada em alguma poética
a ser partilhada entre os alunos da graduação em teatro e as pessoas que iriam encontrar.

Após várias provocações, a fim de que esses alunos se perguntassem o que seria propor uma ex-
periência teatral ao invés de uma abordagem unilateral para ensinar teatro, calcado em conteúdos a serem
cumpridos, os grupos de estudantes eram provocados a olhar para si e para o outro a fim de buscar pessoas
e questões que desejassem discutir.

Sete212 licenciandos, que realizaram esta disciplina no ano de 2014, elegeram trabalhar em conjunto
e conviver com os idosos do abrigo de longa permanência Laços Geracionais213 – uma residência particular
para idosos. Dentre os seus interesses, anunciados no relato escrito da experiência com os idosos, os licen-
ciandos elencaram os seguintes pontos:

A partir da escuta cautelosa das narrativas dos idosos, buscaríamos nos apropriar cria-
tivamente das mesmas, transformando narrativas e memórias em ações performativas:
contações de histórias; chá performativo; serenatas; danças; sonoridades (...) ou outras
poéticas possíveis. (ROSA et all, 2014, p. 03).

Há, nessa proposição, o princípio de que aprender independe da existência da relação mestre-apren-
diz e da instauração de uma relação propriamente pedagógica (LAVE e WENGER, 2003). Os saberes não
residem, portanto, em quem ensina e sim, na organização da prática social da qual quem ensina e quem
aprende são partes.

Nesse contexto, aprender não é sinônimo de adquirir algum conhecimento sobre determinado as-
sunto, mas aprender resulta de um processo de participação e advém das experiências vividas coletivamente,
corporalmente. Por ser inerente à prática social, a aprendizagem acontece prescindindo de situações de
ensino e é pelo envolvimento na prática que surgem as possibilidades de aprendizagem.

Falar do aprendiz é trazer à discussão muitos aspectos. O aprendiz à primeira vista é o professor de
teatro em formação. Aprendizes também eram os idosos internos do Laços Geracionais, mas não apenas.
Coloco-me, também, na condição de aprendiz. Aprendiz de professor formador de professores, aprendiz de
propostas teatrais com idosos em abrigo de longa permanência, aprendiz enquanto coordenador de propos-
tas de aprendizagem que atravessam os muros da universidade. E em meio a tantos aprendizados me per-
gunto: esse é o melhor modo de proporcionar uma aprendizagem aos jovens professores? Estaria eu como
um pai que joga o filho n’água para que aprenda a nadar por si mesmo? Bem, se essa é uma imagem possível,
digo que jogo o filho na água, porém na presença de um “adulto nadador”, os funcionários do Laços Gera-
cionais. Tudo bem que joguei sete crianças na água ao mesmo tempo, mas algumas sabiam boiar, enquanto
outras davam pé no fundo da piscina e outras ainda conseguiam manter a calma para não afogar-se.

Proporcionar essa experiência com idosos é compreender que cidadania não é apenas o exercício
de direitos e deveres, mas em nosso caso, pessoas de teatro, é criar possibilidades de viver experiências
estéticas e experimentar formas de expressão que, muitas vezes, foram negadas a determinada parcela da
população.

212. São eles: Daniela Rosa, Jéssica Ribas, Juliene Lellis, Júlia Borges, Raísa Campos, Raoni Amaral e Rodrigo Antero.
O nome da instituição foi substituído para fins de preservar a identidade da mesma.
213. O nome da instituição foi substituído para fins de preservar a identidade da mesma.

307
Por esse motivo penso que a arte não é um artigo de luxo ou exclusiva para pessoas já iniciadas, as-
sim, possibilitar que os idosos possam desfrutar dos benefícios que o teatro podem trazer ao humano é um
dever da universidade pública e de profissionais que acreditam que o verdadeiro sentido da arte é promover
o encontro consigo próprio e possibilitar-lhes que possam ter acesso aos bens simbólicos, à produção do
conhecimento e à expressão artística como forma de simbolizar desejos, medos e modos de viver.

A experiência por si mesma

O grupo de licenciandos, no projeto elaborado durante o primeiro momento da disciplina preten-


diam, ainda sem conhecer os idosos do referido abrigo, “proporcionar uma experiência artística baseada
na troca entre vivências, tanto dos acadêmicos quanto dos idosos, possibilitando um entrelaçamento entre
histórias e memórias na tessitura de uma grande colcha de retalhos.” (ROSA et all, 2014, p. 03).

E eis que acontece a primeira visita ao abrigo de longa permanência dos idosos para conhecê-los e ...

A primeira visita, no dia 31 de março de 2014, se deu de 10 às 12h, no horário da atividade


de Musicoterapia (...). Nessa atividade um músico canta músicas de época para os morado-
res da casa, além de situar para os idosos o momento histórico em que a canção foi composta
(...). Ficamos surpresos com a limitação dos idosos, que em sua maioria se mantinham reco-
lhidos, deitados, enquanto poucos participavam ativamente daquele momento, batendo pal-
mas ou cantando junto com o músico. (...) Em um primeiro momento a conversa (com uma
funcionária da casa) e a visita quebrou com as expectativas do grupo, pois vislumbrávamos
um trabalho com idosos ativos fisicamente, autônomos e desenvoltos. (...) O grupo optou
por continuar o trabalho, abrir mão do planejamento inicial e se adequar às demandas e
necessidades dos idosos, encarando a experiência como um desafio positivo para os jovens
docentes214. (ROSA et all, 2014, p. 04).


Esse “choque de realidade” é um princípio que me interessa no campo da formação docente. Se eu
tivesse relatado aos licenciandos, em sala de aula, como possivelmente são os idosos que compõem os asilos
que conheço seria a minha visão e experiência, em contextos diferentes do que eles puderam conhecer. E
provavelmente também, eu buscaria dar “dicas” de professor de como (re)agir na circunstância relatada por
mim. Não que isso implica em, a partir de então, o professor deixar de trazer suas experiências de vida (e
docentes) para compartilhar com seus alunos, mas atravessar os muros e colocar seus corpos em relação ao
outro era de grande interesse. E com alguma leitura sobre o tema, encontrariam experiências que, provavel-
mente, relataria sobre a condição física e mental do idoso em abrigos de longa permanência.

A vivência de cada licenciando com o idoso em suas famílias foi trazida enquanto experiência para
o trabalho. Daniela comenta que frequentava casas de repouso na adolescência por participar de grupos de
cunho espiritual. Ao realizar o curso técnico de formação de atriz, anterior ao ingresso na universidade, fez
um trabalho de mimese corpórea, observando uma idosa em uma instituição que os abrigava. Por ter pais
mais velhos, uma tia com Alzheimer, pode perceber processos parecidos quando adentrou a instituição.

Quem são essas pessoas que eles escolheram encontrar? Como eram? Do que falavam ou do que
esqueciam? Promover com que o professor em formação se observe, tendo que modificar seu planejamento

214. Decidi trazer o relatório dos licenciandos nesse formato para compor o corpo desse artigo e problematizar: até que ponto o que dizem/vivem
nossos alunos não deve ser objeto de estudo da formação docente?

308
é de fundamental importância para promovermos uma reflexão alicerçada no processo dialógico e promova
o encontro necessário do professor com o outro. Sair de si e ser atravessado pelo dizer (e pelo esquecimento)
do outro é uma atitude de afetação e, aí sim, provocar alterações em seu próprio eu.

Houve ainda uma segunda visita do grupo ao abrigo para conhecer um pouco mais dos idosos. Nes-
se dia (11/04/2014) uma freira estava presente e realizou as seguintes atividades com os idosos: oração com
terço, cantou músicas e brincou de passar anel. Além de acompanhar essa atividade, os licenciandos tiveram
contato com outra funcionária do estabelecimento que se mostrou mais aberta e confiante na capacidade
de participação dos idosos em propostas teatrais. Até então, os estudantes haviam conversado com outra
funcionária que deixou explícito que os idosos estavam, em sua maioria, em um estado de demência e que
não se lembrariam de nada.

No dia 28/04/14 houve o retorno do grupo que mais confiante e pensando em uma primeira propos-
ta, se colocaram a ouvir histórias de cada um dos idosos que manifestassem interesse em compartilhá-las.
Havia em comum nessas histórias o gosto pela música, histórias dos filhos, viagens, desejos futuros, status
social, amores, saúde.

A partir de então, os estudantes estavam sensibilizados com os idosos e pensaram em como se


aproximarem dos mesmos através do campo artístico. O encontro da semana seguinte teve início com a
música Canta Maria – de Ary Barroso, executada na escaleta por Raísa, uma das licenciandas que também
é musicista, enquanto Rodrigo, que é bailarino, dançava um solo improvisado. “Essa primeira intervenção
suscitou um primeiro encontro de compartilhamento de nossas experiências artísticas com as vivências dos
idosos.” (ROSA et all, 2014, p. 06).

Essa ação trouxe os seguintes desdobramentos:

Ao som das músicas tocadas por Raísa na escaleta surgiram comentários como: ‘isso é uma
valsa’; ‘eu era um pé de valsa desgraçado’; ‘de onde vem este instrumento?’; ‘eu nunca vi, você
teve que aprender a tocar? Eu tocava piano’. A partir desse comentário instigamos um mora-
dor a tocar a escaleta. (...) era o Daniel, o idoso introspectivo que não respondeu aos nossos
cumprimentos no primeiro dia. A música trouxe nele o desejo de se aproximar e até interagir.
(ROSA et all, 2014, p. 06 – 07).

O compartilhamento do próprio repertório artístico dos licenciandos abriu portas para que os ido-
sos rememorassem e verbalizassem seus interesses e habilidades artísticas. E foi ao se esvaziarem de ex-
pectativas, no sentido de olhar para as potencialidades dos idosos, foram surpreendidos com as reações,
histórias, vontades de dizer daqueles corpos cheios de humanidade.

Após esse encontro, os estudantes que se propuseram a realizar três encontros com o grupo de ido-
sos, decidiram realizar o fechamento do trabalho mantendo a ideia inicial de um chá com canções e conta-
ção de histórias. E se, no primeiro momento pensavam não ser possível alguma continuidade da proposta,
foram surpreendidos pelos idosos, tal como no relato a seguir:

Foi o caso do senhor Jaci, que pude perceber na dança que realizamos nos dois últimos encon-
tros. Na primeira dança, todo seu corpo tremia e fazia passos simples, no pulso da música e eu
conduzia a dança. Na segunda, o tremor não estava presente – e se estava, foi de uma forma tão
sutil que não pude perceber – e realizou passos mais complexos, chegando a me conduzir du-
rante a dança. Para mim foi uma surpresa muito positiva. Percebi que, se estão abertos e pra-
ticam, podem apresentar avanços em suas possibilidades motoras. (ROSA et all, 2014, p. 15).

309
Dia 12 de maio de 2014. Trajados com vestimentas antigas que imitavam seresteiros, adentraram o
Laços Geracionais com um cortejo vibrante ao som de músicas antigas e populares – as mesmas que pre-
senciaram nas visitas ao abrigo. A maior parte dos moradores do abrigo cantavam juntos, batiam palmas ou
ficavam atentos ao que acontecia de extraordinário naquele ambiente. Ao adentrarem o espaço onde fica a
televisão da instituição, espaço esse que continha grande parte dos idosos, instalou-se um baile onde propu-
nham dançar valsas embalados por canções populares. Alguns senhores tiraram as alunas para dançarem e
a cada momento pediam uma nova canção que embalava o grupo. Aqueles que não dançavam, aproveitam
para contar alguma história ao pé do ouvido do estudante que estava próximo, pontuando recordações de
outra época vivida por ele ou mesmo inventada.

Na sequência foi proposta uma confraternização, obedecendo às regras alimentares da casa, com
chás, biscoitos, sucos e frutas. Ao final da proposta, elaboraram um cortejo de despedida e saída, tal como
a entrada ao espaço.

Dizeres finais

Se a possibilidade de sair da universidade para encontrar o outro e junto dele descobrir teatralidade
era o interesse primeiro dessa proposta, digo que os licenciandos superaram os limites da aprendizagem pre-
vistos por mim. Em seus relatos individuais sobre a experiência com os idosos, vários levantaram a dúvida
do que pode ser o teatro, já que não precisaram realizar ações que, até então, eram tidas como essenciais a
toda aula de teatro, tais como: ocupar o espaço vazio, alongar o corpo, aquecer a voz, realizar jogos corporais
de improviso etc.

Se nos tempos que correm está cada vez mais difícil a conquista do trabalho pelo licenciado em tea-
tro, pensar na integração a projetos multidisciplinares, na possibilidade de parceria entre o campo da saúde
e a arte, para citar um exemplo, pode ser uma descoberta de que a nossa área de conhecimento é essencial a
outras áreas do saber que lidam com uma das esferas do humano.

Buscar estados de teatralidade junto dos idosos foi experienciar teatro? E o que foi o ato de promo-
ver a aprendizagem da docência? Estar atento às demandas do outro, do seu modo de expressar, seus anseios
e experiências anteriores é propor ao corpo um estado de alerta e um exercício de desconstrução necessário
ao ofício e à aprendizagem da docência. Se o teatro não pode trazer mais anos de vida aos idosos, que lhes
traga mais vida aos seus anos.

Referências bibliográficas

FIGUEIREDO, Ricardo Carvalho de. Percursos de apren- ROSA, Daniela et all. Memórias relembradas: um relato
dizagem da docência em teatro a partir do próprio ato do- crítico das vivências em arte no Lar Acolher. Relatório
cente. Tese (Doutorado em Artes). Escola de Belas Artes. para a disciplina Projetos Especiais em Educação. Curso
Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, de Graduação em Teatro da Universidade Federal de Mi-
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LAVE, Jean & WENGER, Etienne. Aprendizaje situado: VINCENT, Guy; LAHIRE, Bernard; THIN, Daniel. Sobre
participación periférica legítima. Universidad Nacional a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista.
Autônoma de México. Estado de México, México, 2003. Belo Horizonte, n.33, jun. 2001.

310
ANÁLISE ACÚSTICA DA VOZ
NA PERFORMANCE TEATRAL:
O “FORMANTE DO ATOR”
Maria Helena Milanez Adami
Mestranda na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Instituto de Artes da Unesp

1. INTRODUÇÃO

O ator tem como instrumentos necessários para a construção de uma Performance teatral o seu
corpo e sua voz. Cohen (2002) definiu o termo Performance como uma passagem da representação para
a atuação, menos deliberada, com espaço para o improviso e espontaneidade. Conforme Gayotto e Silva
(2007) a pluralidade de seus usos abrange diversas dimensões no teatro, que vão desde o estudo e domínio
do aparelho fonador, de seus recursos técnicos, passando pelas tradições teatrais de uso vocal, de suas ma-
nifestações expressivas, até a constituição de uma poética da voz. Na Performance, o trabalho de criação é
mais individual; o artista verticaliza todo seu processo, dando sua leitura de mundo, e a partir daí criando
seu texto, seu roteiro e forma de atuação (Cohen, 2002).

Quando há a presença do elemento palavra em uma Performance teatral, além da construção cor-
poral, o ator precisa ter uma voz que, no mínimo, seja ouvida e compreendida pelo seu público. A voz é
parte central do processo de criação e preparação de atores. Grotowski (1992) diz que o espectador deve ser
envolvido pela voz do ator, como se ela estivesse por todos os lados, e não somente onde o ator se encontra.
O que se exige muito do ator em sua Performance é que sua voz seja bem projetada e de boa qualidade. Além
disso, o ator deve preservar a intensidade emocional de uma ação e a função poética da voz e da fala durante
sua Performance (Zumthor, 1993). Grotowski (1992) diz que a precisão técnica da partitura física/vocal é
a condição necessária para provocar a espontaneidade da ação e da fala. Porém não há relatos de como tais
precisões em uma Performance teatral de fato influenciam na qualidade vocal.

Mas afinal o que seria uma voz de boa qualidade? O que se entende por qualidade da voz é quando
esta apresenta características especiais como registro, pitch, brilho. Pode ser um traço suprasegmental situ-
acional que assinala, por exemplo, um estado emocional, ou um parâmetro de longo termo que diferencia
um indivíduo de outro, bem como grupo de indivíduos enquanto grupo social, cultura, etc (Crystal, 1960).
Essas características podem estar relacionadas ao que se chama de ressonância. Muitos estudos concluíram
que uma boa voz é aquela voz que é “ressonante” (Master et al., 2013). De acordo com Titze (2001), a voz
ressonante é uma produção de voz em que se pode obter fácil vibração nos tecidos faciais. Também afirma
que quando a conversão de energia aerodinâmica em acústica processada na glote é eficiente, as vibrações
são distribuídas e sentidas por toda a cabeça, pescoço e tórax. Grotowski (1992) relata que todo o corpo

311
funciona como um ressonador e concluiu em seus estudos que o trabalho das caixas de ressonância objetiva
o aumento do poder de emissão do som. Trata-se de potencializar partes específicas do corpo como um
amplificador da voz.

Porém, falar de ressonância não é o mesmo que falar de volume, ou seja, falar forte não melhora a
projeção, da mesma forma que não o fazem uma simples mudança de pitch ou de velocidade de fala (Michel
e Willis, 1983). Na teoria projeção de voz não é loudness. Por outro lado, determinados ajustes articulatórios
levam a um aumento do nível de pressão sonora da emissão por efeito de ressonância, sem aumento de esforço
expiratório, aumento da percepção de loudness, favorecendo assim a projeção da voz (Sundberg, 1991). Loud-
ness é definida com a sensação subjetiva de intensidade de um som e está à ela relacionada a partir da sua pres-
são, energia ou amplitude (Russo, 1999). Intensidade e loudness não são perfeitamente correlacionadas pois a
sensação de loudness aumenta menos que o aumento real de intensidade. Observamos que a qualidade de uma
voz pode influenciar a loudness sem afetar a intensidade. Vozes tensas e/ou ressonantes parecem mais fortes
que vozes “neutras”. A configuração do trato vocal, por um efeito de ressonância, também exerce influência
na loudness do som: vozes emitidas com a mandíbula aberta serão percebidas como sendo mais fortes e terão
um maior nível de pressão sonora (NPS) que as emitidas com a mandíbula fechada (Michel J, Willis R, 1985).

A voz ressonante pode ser resultado de três fatores principais: (1) mudanças do trato vocal, (2) mudan-
ças na adução da laringe, e (3) uma interação entre a fonte vocal e o filtro (Master et al., 2013). Para verificar
tais reações a espectrografia é um dos métodos mais utilizados no estudo dos sons. Segundo Russo e Behlau
(1993), desde a análise acústica, as vogais são “definidas basicamente pela amplificação inserida na energia
glótica. As faixas de freqüência amplificadas, ou seja, os picos de energia variam de acordo com a vogal emitida
e, no caso específico das vogais, representam grupos de harmônicos e recebem o nome de “formante do som”.
O formante é expresso em Hertz e seu valor numérico é a média das freqüências que ele contém e corresponde
às freqüências naturais de ressonância do trato vocal cuja configuração tridimensional varia de acordo com
a posição dos articuladores, de características anatomofuncionais e ainda, do treino de voz. A vibração das
cordas vocais produzem um som complexo que é composto por uma freqüência fundamental (f0) e um nú-
mero infinito de harmônicos. Uma voz considerada de boa qualidade geralmente possui um grande número
de harmônicos. O que vai ou não ser amplificado ou a habilidade de transferir o som da laringe até os lábios,
depende das freqüências naturais de ressonâncias deste trato vocal, chamadas de freqüências formantes. No que
diz respeito à voz, os cincos primeiros formantes (F) são especialmente importantes para as características de
um som. O primeiro, o segundo e o terceiro formantes, respectivamente F1, F2 e F3, estão relacionados mais
com a qualidade de uma vogal e variam muito de uma para outra, e o quarto e o quinto formantes, F4 e F5, com
a qualidade de uma voz, no caso, com a projeção e estes são mais estáveis.

Na análise acústica da voz, dentre as várias possibilidades de análise espectrográfica, o espectro mé-
dio de longo termo (EMLT) é um método que possibilita estudar os fatores mais estáveis da voz, como a sua
qualidade e, logo, seu “poder de ressonância”. O EMLT é também um tipo de análise muito privilegiada por-
que o espectro resultante aponta tanto a contribuição da fonte glótica (vibração das pregas vocais) quanto
do filtro (caixas de ressonância) para a qualidade de uma voz (Master et al, 2008; Nordemberg e Sundberg,
2003). Nesse contexto, Leino (2011) propôs o termo “formante do ator” para o pico de aproximadamente 3.5
kHz desse espectro em projeção vocal para atores.

Há muitos estudos com análise acústica envolvendo a identificação do “formante do ator” em


atores e atrizes. Master (2001), por exemplo, comparou o LTAS de atrizes e não atrizes brasileiras e não
identificou a presença do formante em ambos os grupos. Diante das inúmeras razões pela qual alguns es-
tudos não conseguem identificar a presença desse formante, um dos motivos pode vir a ser pela forma que
tais análises são produzidas. No estudo com atrizes e não atrizes de Master (2001), e na maioria dos estu-
dos envolvendo análise acústica, as gravações e a captação dos sinais de fala foram realizadas em ambiente

312
acusticamente tratado onde o participante faz o uso apenas da voz com o corpo estático. Entendendo que a
realidade de um ator é, na maioria das vezes, utilizar sua voz em uma Performance teatral e em diversos tipos
de ambientes, tem que se levar em consideração muitos outros fatores que estão envolvidos nela e que podem
interferir na projeção vocal, como por exemplo: movimento corporal, ação física, intensidade emocional, es-
paço cênico, presença de plateia. Rothman (2002) identificou que tanto os atores como cantores, quando co-
locados em palco e solicitados a fazer uma leitura imaginando o auditório cheio, conseguem atingir um pico
considerável para “formante do ator” ao contrário de quando fazem o mesmo em um ambiente acusticamente
tratado. Sendo assim, conclui-se que o ambiente pode ser uma variável que influencia no comportamento
vocal. Porém, ainda não há estudos que relatem como a Performance teatral, na qual inclua voz e movimento
corporal, possa influenciar no mesmo. Sabe-se que uma mudança postural, por exemplo, modifica a fala. Lar-
gie (2010) verificou que a estreita correlação da postura com a produção vocal mostra que o movimento não é
uma mera conseqüência do esforço vocal. Postura e voz são coordenadas no comportamento de comunicação,
e cada segmento do corpo desempenha seu papel específico no comportamento do esforço vocal.

Sendo assim, o presente estudo tem como principal razão entender se a Performance teatral, e tudo
que ela envolve, pode interferir na projeção vocal . Com a análise acústica através do LTAS identificar se os
atores conseguem atingir o pico do “formante do ator” quando estão atuando em um palco de teatro, ou seja,
falando e se movimentando ao mesmo tempo, entendendo que eles estarão numa condição da qual precisam
dar o máximo de sua potencia vocal como numa real apresentação. E também identificar aspectos vocais
que possam ser melhorados ou adquiridos para uma melhor voz pra Performance teatral.

2. OBJETIVOS

Identificar se há presença do “formante do ator” nas vozes dos atores quando os mesmos estão atuando
e se há diferença desse formante em relação ao corpo em estado em movimento, ou seja, em Performance.

2.1. Objetivos gerais:

Verificar se existem ou não diferenças entre parâmetros acústicos da voz como frequência funda-
mental média e nível de pressão sonora médio e a existência ou não do “formante do ator”, sua frequência e
intensidade por meio do espectro médio de longo termo em duas diferentes condições: Performance está-
tica - corpo parado, mantendo a intensidade emocional da fala proposta para o texto - e Performance com
movimento corporal – intensidade na fala juntamente com ação corporal. Ambas as modalidades serão
feitas em um auditório, para que assim, os atores estejam em uma condição real de Performance teatral e
supostamente deem o máximo de sua potencia vocal.

2.2. Objetivos específicos


Mensurar nas duas tarefas:

• Nível de pressão sonora médio (NPS) que mede a amplitude da vibração das pregas vocais em dB;
• Frequência fundamental média (f0) medida em Hz = numero de ciclos de vibração das pregas
vocais por segundo;

• Diferença entre o NPS médio do F1 – f0; Nível de pressão sonora médio (NPS) da região de 0
- 5kHz também chamada de Leq. Esta medida é extraída automaticamente pelo programa Intelli-

313
gent Speech Analyser (ISA) desenvolvido por Raimo Toivonen M. Sc. Eng.

• Proporção alpha= diferença entre o NPS da região mais forte do espectro (100 Hz a 1200Hz ,
região de f0 e F1) menos o NPS de 1 a 4kHz;

• Frequência e o NPS da região do “Formante do ator”.

3. MATERIAL E MÉTODOS

3.1. Estudo

Estudo de desenho transversal, descritivo analítico das características das vozes de atores submeti-
dos a duas diferentes situações, por meio da análise acústica.

3.2. Amostra

Farão parte da amostra as vozes de 30 atores masculinos, com ao menos cinco anos de experiência
na área, que já tenham tido algum tipo de treinamento vocal ao longo desses anos e que tenham o português
como sua língua nativa. A idade não pode ser inferior a 18 anos, para garantir a maturidade da voz, e não
pode ser superior a 60 anos, para excluir a possibilidade de presbifonia. Não podem apresentar histórico
atual e pregresso de problemas de voz.

3.3. Coleta dos dados


Os atores receberão um mesmo texto de no máximo 190 palavras para ser memorizado. Em seguida,
cada ator criará sua própria Performance teatral para o texto para o segundo momento da coleta de dados.

3.3.1. 1ª Coleta de dados – Leitura Dramática


Os atores irão fazer uma Perfromance do texto sem qualquer movimento corporal e em pé para os
quais será dada a instrução de fazerem o uso de uma voz que seja audível, mantendo intensidade emocional
dada ao texto e imaginando estar em uma real apresentação.

3.3.2. 2ª coleta de dados – Vozes em Performance


Cada ator fará sua própria Performance teatral para o texto, entendendo que esta deve conter uma
partitura corporal e vocal pré-definida por eles próprios, mas que estarão livres para o improviso e esponta-
neidade assim como em uma real apresentação.

Em ambas as tarefas deve-se tentar manter a mesma intensidade emocional na fala, porém enten-
dendo que a segunda se diferencia da primeira pelo fato de haver ação juntamente com a fala. As duas mo-
dalidades serão feitas em um auditório, contando também com a presença de pessoas na plateia.

3.4. Gravações
Os dados serão gravados sempre com ator em palco, utilizando um microfone sem fio que será
fixado próximo a sua boca. O equipamento a ser utilizado para registro das vozes será um gravador DAT
(Digital Audio Tape) da marca Sony®, modelo TDC-D8, freqüência de 44.1 kHz, padrão CD e microfone

314
Shure SM58®, unidirecional dinâmico (cardióide).

Serão gravadas aproximadamente 60 vozes – entendendo que a amostra de 30 atores farão duas
gravações: leitura dramática e performance – na loudness forte. A duração das gravações será de aproxima-
damente de 90’’.

3.5. Análise Acústica

3.5.1. Programas e configurações


Para a análise acústica serão digitalizadas apenas 40’’ da amostra de cada indivíduo, sendo despreza-
dos o início e o fim de cada gravação para as duas proposições, sendo estas: vozes em leitura dramática e vo-
zes em Performance. Os espectros do LTAS para cada indivíduo será feito por meio do Analisador de Sinal
Hewllett-Packard 3561A. Os sons não vozeados, sons fracos, /s/ e as pausas serão automaticamente cortados
pelo programa. Para obter os LTAS médios para os grupos, nas duas situações, será utilizado o programa
Spectrum_Awe desenvolvido pela DSP- Systems, Heikki Alatalo, M. Sc. Para calcular o nível de pressão
sonora médio, a proporção Alpha e a freqüência fundamental, será usado o sistema de análise computado-
rizada Intelligent Speech Analyser (ISA) desenvolvido por Raimo Toivonen M. Sc. Eng. Será considerada a
faixa de freqüência até 5kHz para entender que as informações que interessam.

4. RESULTADOS PARCIAIS

Foi realizado um número de dez gravações com dez atores até o presente momento, pois a pesquisa
ainda se encontra em processo de coleta de dados. Diante da análise do LTAS desses participantes, pode-
-se notar diferentes resultados em relação as vozes dos mesmos. Aparentemente, houve um predomínio de
melhor obtenção do “formante do ator” nas vezes em que eles estão na Peformance estática, mostrando que
há uma tendência a melhor ressonância da voz quando eles não se movimentam. Ainda sim, pouco se pode
afirmar sobre tais resultados.

5. ANÁLISE DOS RESULTADOS

• Para análise dos dados será utilizado o método de análise estatística, sendo tendo em vista a descrição,
a comparação e a correlação entre os dados. O nível de significância a ser adotado será de 0,05.
• Para ilustrar os resultados serão construídos gráficos de perfis médios, e seus respectivos erros padrão.
• Os programas estatísticos utilizados será o SPSS, versão 11.0 e o SAS versão 8.01.

6. CONCLUSÕES

Ainda não há resultados suficientes para se chegar a uma conclusão sobre o estudo. Porém há uma
inclinação em que aparentemente numa performance onde o ator fica mais estático, a voz apresenta um me-
lhor potencial de ressonância. Se esse resultado venha a ser o mesmo ao final do estudo, pode-se entender
que o uso da voz sem a movimentação do corpo excessivamente possa ser uma técnica benéfica ao ator em
relação a sua voz ser melhor ouvida. Estudos posteriores a esse podem tentar entender se o uso de técnicas
interpretativas onde se usa a voz não necessariamente junto a ação corporal, talvez, possa ser uma opção a
ser considerada pelo ator e contribuir com a área de estudos em artes cênicas.

315
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316
A IMPORTÂNCIA DO TEATRO
NA ESCOLA: RESULTADOS
OBTIDOS EM UM ESTUDO DE CASO
Benedito José Pereira
Mestre em Educação/UMA

1 – O Teatro na Escola: Caracterizando os Processos,


as Práticas Interdisciplinares
Nesse artigo trataremos das interlocuções estabelecidas nos processos pedagógicos realizados no
Colégio Municipal Heliodoro Pereira de Andrade (CMHPA), de acordo com um mapeamento das ações
realizadas e acompanhadas por nós, durante nove meses, quando selecionamos episódios onde se identifi-
cavam graus de interdisciplinaridade.

Depois de interpretamos as categorias interdisciplinares identificadas naquela prática escolar, deno-


minada Escritura dramática, realizada dentro de um projeto anual coordenado por três professoras de lín-
gua portuguesa, intitulado como Gincana literária, verificamos a importância da Arte. Neste caso específico
a linguagem do Teatro revelada pela triangulação dos dados apurados.

A partir da análise de conteúdo das ações mapeadas, identificamos sessenta e cinco (65) episódios
na prática pedagógica do CMHPA, onde ocorreram interlocuções entre o Teatro e outras áreas de conheci-
mento, Esses episódios foram agrupados em seis modalidades interdisciplinares denominadas de: (1) Disci-
plinaridade; (2) Multidisciplinaridade; (3) Pluridisciplinaridade; (4) Disciplinaridade Cruzada; (5) Interdisci-
plinaridade e (6) Transdisciplinaridade. As nomenclaturas adotadas para esses processos estão baseadas nos
estudos de Guimarães (2005), Santomé (1998), Fazenda (1991; 2012), Japiassu (1975; 1976) e Piaget (1973).

De uma maneira geral, esses diferentes autores justificam, ainda que de uma forma não consensual, a
existência dessas nomenclaturas ou terminologias para clarificar as modalidades ou natureza dos diversos pro-
cessos, a partir dos seus níveis de interação: verificando os objetivos e a coordenação; a intensidade das trocas;
integração e interlocução estabelecidas; o equilíbrio ou desequilíbrio da comunicação; a delimitação do territó-
rio de trabalho; a dependência e modificação desenvolvidas nas disciplinas ou áreas de conhecimento, geradas
por conta das fronteiras existentes entre essas disciplinas e as áreas de conhecimento envolvidas nos processos.

Verificamos que a dependência interdisciplinar se dilui, quando o processo atinge o nível superior
interdisciplinar, considerando este nível como aquele atingido pelos processos de Transdisciplinaridade.

317
Essas nomenclaturas são utilizadas para identificar os processos, analisando suas características,
o grau de interação, o nível de sofisticação atingido pelas estratégias pedagógicas adotadas, que indicam
a gradação da atuação interdisciplinar; a superação da visão fragmentada e individualista, a partir da par-
ticipação, da heterogeneidade que supera as barreiras existentes entre os territórios da teoria e da prática,
invocando assim uma dialogicidade intersubjetiva, cidadã, crítica e libertária.

Corroborando com esse nosso entendimento um desses diferentes autores faz a seguinte afirmação:

As diversas modalidades interdisciplinares têm o objetivo de esclarecer a natureza das


várias formas de trabalhar com as disciplinas, sem que todas elas se configurem como
modos interdisciplinares de atuação. Não há consenso quanto à terminologia utilizada
para descrevê-las, pois abarcam uma variedade de possibilidades, servindo para caracte-
rizar desde um saber fragmentado até a formação de um outro sistema mais complexo e
abrangente (GUIMARÃES, 2005, p. 74).

Para um melhor entendimento de como se realizaram os processos interdisciplinares naquela escola,


elaboraremos uma breve caracterização deles, apresentaremos exemplos para ilustrá-los e faremos inferências em
torno de cada um. A ordem da apresentação será estabelecida, considerando a apuração do índice de frequência
dos mesmos, partindo dos processos classificados como de maior frequência para os de menor frequência.

Os processos identificados agrupados sob a nomenclatura Interdisciplinaridade são aqueles que pro-
movem interação entre as áreas, a partir de uma axiomática comum, ou seja, um significado ou postulado co-
mum às disciplinas que, de acordo com Guimarães (2005), objetivam elaborar um contexto mais geral, a partir
da simbiose das disciplinas ou áreas de conhecimento, que modificadas passam a depender uma da outra.

Passamos a apresentar um dos episódios mapeados no CMHPA, como exemplo dos processos de
Interdisciplinaridade que ali foram vivenciados:

[...] falaram sobre o teatro desenvolvido, sobre os jesuítas, o teatro político de Brecht,
ficando claro que as montagens teatrais dependiam das intenções: propostas e objetivos
do emissor, no caso eles. A educadora perguntou o que eles queriam comunicar a plateia.
Muitos objetivos e muitas propostas. Na verdade eles ainda não sabiam. Foi dado a eles
liberdade para decidir (EPISÓDIO 23 do Diário de Bordo /21.05.2014).

Conforme é possível verificar no exemplo apresentado acima, os processos interdisciplinares pro-


movem um diálogo entre disciplinas e/ou áreas de conhecimento, com coordenação em dois níveis, con-
siderando os diversos objetivos, as intensidades das trocas e da cooperação, a integração e o intercâmbio
estabelecidos, passando as disciplinas e/ou áreas de conhecimento a depender umas das outras, porém com
equilíbrio de forças equânime, em consonância com o pensamento de Guimarães (2005).

Dentro dessa mesma perspectiva e com esse mesmo entendimento Santomé (1998, p.73) afirma que:

A interdisciplinaridade implica uma vontade e compromisso de elaborar um contexto mais


geral, no qual cada uma das disciplinas em contato é por sua vez modificada e passa a de-
pender claramente uma das outras [...] Entre as diferentes matérias ocorrem intercâmbios
mútuos e recíprocos, integrações; existe um equilíbrio de forças nas relações estabelecidas.

Isso foi verificado, nos exemplo apresentado. Todas as relações se estabelecem através das trocas e da
cooperação equilibradas. O educador não era mais aquele que sabe tudo, assim como o educando também

318
não personificava aquele que nada sabe.

Já os processos, agrupados sob a nomenclatura Disciplinaridade Cruzada, são aqueles que têm como
base uma postura de força de uma das disciplinas ou área de conhecimento envolvida, apresentando um
desequilíbrio na comunicação. Nesses episódios aparece sempre uma disciplina dominando as outras, num
único nível e com uma coordenação, que não permite um diálogo equânime, caracterizando-se como um
processo com controle disciplinar, como afirma Guimarães (2005). Para um melhor entendimento dessa
afirmação, vejamos o que pensa Santomé (1998) sobre essa questão:

[Disciplinaridade cruzada] [...] envolve uma abordagem baseada em uma postura de for-
ça; a possibilidade de comunicação está desiquilibrada, pois uma das disciplinas dominará
sobre as outras. A matéria considerada importante determinará o que as demais discipli-
nas deverão assumir. Existe um controle rígido imposto por um objetivo de uma discipli-
na concreta, por exemplo, quando o uso de métodos de pesquisa próprios é transferido
mecanicamente para outras (SANTOMÉ, 1998, p.72).

Assim, o processo que apresentaremos a seguir é identificado como promotor de comunicação entre
áreas de conhecimento diversas e disciplinas, sendo que as áreas de Língua Portuguesa e Teatro dominam
as outras áreas, controlando as ações, forjando uma coordenação disciplinar que permite apenas a comuni-
cação, inibindo a troca.

Veremos agora o exemplo de Disciplinaridade Cruzada, para que haja um melhor entendimento
dessa afirmação:

Quando ela [a educadora] iniciou as atividades docentes, falou logo sobre as suas impressões
no que se referiam as escrituras produzidas pelos grupos, salientando que havia muitos pro-
blemas gramaticais, assim como outro tanto no que e referia à concepção e ao desenvolvi-
mento da trama. Devolveu os textos com as suas considerações registradas e pediu para que
elas fossem lidas e depois debatidas (EPISÓDIO 9 do Diário de Bordo /09.04.2014).

Nesse episódio verificamos que o Teatro, ali desenvolvido, exigia dos seus participantes uma gama
de conhecimento que não constam no currículo escolar do CMHPA. A Língua Portuguesa e o Teatro bus-
cam, portanto, apoio em outras áreas que parecem dialogar entre si, mas na verdade só a Língua Portuguesa
e o Teatro se comunicam com todas elas, enquanto estas não se comunicam entre si.

Já os episódios que apareceram nesta pesquisa, agrupados sob a modalidade Disciplinaridade, utili-
zaram como base, um único nível da realidade, sem provocar diálogos interdisciplinares e abarcando apenas
um fragmento do saber a ser construído através da Língua Portuguesa. Essa disciplina, no entanto, é a emu-
ladora de todo o processo interdisciplinar vivido no chão do CMHPA, sendo ela que evoca o Teatro para dar
conta das ações propostas dentro da Gincana literária daquele colégio e isso irá provocar uma interlocução
entre a Língua Portuguesa e a Arte, no caso o Teatro.

Vejamos então um exemplo dos processos de Disciplinaridade que, como é possível se observar, não
estabelece a interação ou o diálogo interdisciplinar:

A educadora pediu aos educandos para que todos tentassem, de alguma forma, ler o ro-
mance: OS MISERÁVEIS de Walcyr Carrasco, pois ele seria a base para a gincana na ativi-
dade de perguntas e respostas da “torta na cara”, na culminância do projeto. Ela ressaltou
que a leitura teria que acontecer em casa porque na sala de aulas apenas as dúvidas seriam
dirimidas. (EPISÓDIO 42 do Diário de Bordo /16.07.2014).

319
Nesse processo verificamos que não existe coordenação, porque não se estabelece nenhum tipo de
cooperação. A Língua Portuguesa impulsiona as ações sem invocar parceria e/ou diálogo.

Com esse mesmo entendimento encontramos esses conceitos que vêm contribuir com a nossa defi-
nição do que seria Disciplinaridade.

Santomé (1988, p. 55) define a questão disciplinar como “[...] uma maneira de organizar
e delimitar um território de trabalho, de concentrar, a pesquisa e as experiências dentro
de um determinado ângulo de visão [...]” e Veiga-Neto (2000-2001, p. 6) acrescenta que
a disciplinaridade é “[...] a forma mais comum da organização dos conteúdos escolares”
(GUIMARÃES, 2005, p.72).

É importante esclarecer que acrescentamos os processos disciplinares a este contexto, não por apre-
sentar interlocução disciplinar, mas – como já afirmamos – por considerar que os processos interdisciplina-
res sempre começam a partir de uma disciplina.

Quanto aos episódios agrupados sob a nomenclatura Pluridisciplinaridade, podemos afirmar que
eles são aqueles que parecem ao primeiro olhar, desencadear um processo interdisciplinar, mas quando
esses processos são depurados verifica-se que eles possibilitam apenas a construção de um conhecimento
de cunho cumulativo, favorecendo a especialização, pela sobreposição do saber, o que dificulta a formação
integral dos educandos.

Nessa mesma direção, Guimarães (2005) afirma que a Pluridisciplinaridade acontece, quando uma
disciplina apropria-se dos métodos ou procedimentos de outra disciplina para gerar o saber pretendido.
Tudo parece propor um processo interdisciplinar, mas as interlocuções não se realizam de fato. Jantsch
(2002) acrescenta que:

Pluridisciplinaridade [...] é a justaposição de disciplinas mais ou menos próximas, dentro


de um mesmo setor de conhecimentos. [...] É uma forma de cooperação que visa melho-
rar as relações entre as disciplinas. Vem a ser uma relação de mera troca de informações,
uma simples acumulação de conhecimentos que não provoca alterações no interior das
ciências envolvidas (JANTSCH, 2002 apud SANTOMÉ, 1998, p. 71-73).

Os episódios pluridisciplinares recebem essa nomenclatura por promover uma aparente interação
entre muitas disciplinas/áreas de conhecimento.

Passamos a transcrever um exemplo, selecionado entre os oito episódios mapeados na modalidade


Pluridisciplinaridade:

[...] A professora ainda não havia chegado, mas os alunos divididos em grupos e de forma
organizada preparavam modelos de convites que seriam submetidos ao crivo do grupo
para se transformar em um convite da turma. [...] Desenhavam; pintavam; recortavam;
colavam; construíam frases; faziam maquetes [...]. Após apresentação dos projetos foi elei-
to o do grupo que estava trabalhando em cima do romance: “A escrava Isaura”. O convite
seria um barco com um remador e nele estaria escrito Escrava Isaura (EPISÓDIO 13 do
Diário de Bordo /23.04.2014).

Conforme é possível verificar no episódio apresentado, os processos constantes dos mesmos

320
aparentemente promovem um diálogo interdisciplinar, mas na verdade apenas utilizam as disciplinas
e/ou as áreas de conhecimento, apropriando-se de métodos interdisciplinares para construir um de-
terminado conhecimento, sem, no entanto, realizar ou promover uma coordenação desses processos.
Proporcionam apenas, como afirma Japiassu, a “Justaposição de diversas disciplinas situadas geralmen-
te no mesmo nível hierárquico e agrupadas de modo a fazer aparecer às relações existentes entre elas
(JAPIASSU, 1976, p. 73)”.

Trataremos agora dos processos de Multidisciplinaridade. Estes se caracterizam como um dos


níveis básicos das práticas interdisciplinares. Apesar de serem desenvolvidos por disciplinas e/ou áreas
de conhecimento, eles não promovem o diálogo entre elas e, sobretudo, não explicam essas relações e
as suas conexões. As fronteiras e os territórios disciplinares são bem definidos e respeitados num único
nível, sem cooperação. O que se produz como saber, se constitui com as informações extraídas de cada
uma dessas disciplinas ou áreas de conhecimento, sem que seja necessário promover uma interlocução
entre elas, já que elas não se comunicam entre si, pois existem nexos de comunicação que são desenhados,
todavia não se completam.

Com esse mesmo entendimento encontramos em Santomé (1998, p. 71) um conceito semelhante,
quando ele diz o que a Multidisciplinaridade reflete:

[...] o nível mais baixo de coordenação. A comunicação entre as diversas disciplinas ficaria
reduzida a um mínimo. Seria a mera justaposição de matérias diferentes, oferecidas de
maneira simultânea, com a intenção de esclarecer alguns dos seus elementos comuns,
mas na verdade nunca se explicitam claramente as possíveis relações entre elas. [...] sem
estabelecer claramente os nexos de ligação entre elas.

Apresentaremos a seguir exemplo do processo de Multidisciplinaridade, para uma melhor compre-


ensão dessa modalidade interdisciplinar:

[...] foi realizada uma oficina de língua portuguesa, com alguns textos sendo lidos e dis-
cutidos. Foram utilizadas algumas músicas de Tim Maia e de Guilherme Arantes. Depois
a música “Planeta Água” foi teatralizada por quatro participantes [...] que haviam desen-
volvido aquele trabalho para uma aula de ciências. (EPISÓDIO 44 do Diário de Bordo
/23.07.2014).

Conforme é possível verificar nesse exemplo, denominamos de Multidisciplinaridade, aqueles


processos que utilizaram os conteúdos de mais de uma disciplina e/ou área de conhecimento, sem permi-
tir que se estabelecesse um diálogo entre elas, por conta das fronteiras existentes. Dessa forma, é constru-
ído um saber fragmentado, porque a Antropologia, a Música, a Sociologia e a Ciência são utilizadas ape-
nas como ferramentas para incrementar o processo de ensino/aprendizagem. Os conteúdos vivenciados
apenas ilustram as questões tratadas de forma aligeirada, não permitindo a cooperação ou modificação
deles. Tudo é processado sem ultrapassar as fronteiras e os territórios são vistos como ilhas no imenso
mar do saber.

Verificamos que os processos de Transdisciplinaridade observados na prática de ensino/aprendiza-


gem do CMHPA aconteceram, envolvendo sete disciplinas/áreas de conhecimento. Esses processos revelam
que o Teatro, mais uma vez, se destaca como a área de conhecimento que constantemente evoca as outras,
coordenando equanimente a interlocução nos cinco processos mapeados.

321
Constata-se que a interterritorialidade acontece, envolvendo as quatro linguagens artísticas. A
Transdisciplinaridade ratifica a riqueza e a importância dos processos interdisciplinares, pois as disciplinas/
áreas de conhecimento não apenas interagem, mas transformam-se e complementam-se, atingindo o obje-
tivo pretendido, conforme é possível se verificar no esquema que apresentamos a seguir.

O campo de ação e de colaboração dessa disciplina, ou nova disciplina, revela o alto grau de sofis-
ticação atingido, não se limitando aos saberes desenvolvidos na escola. Esse campo amplia-se, favorecendo
práticas colaborativas, diálogos interculturais e interterritoriais, desconstruindo a fragmentação do conhe-
cimento, a partir de uma aprendizagem significativa e desafiadora, em constante movimento e busca que
não se limita ao espaço da escola.

Essa prática apresenta, ao final, ações cujos diálogos interdisciplinares são mais sofisticados. Os
diálogos transdisciplinares possuem um grau de interação tão alto, que as fronteiras se diluem, transfor-
mando as diversas áreas e/ou disciplinas em um só território de deambulação, com o Teatro sendo o centro
emulador de todas as ações desenvolvidas. Identificamos a existência de um axioma comum a um conjunto
de disciplinas que estabelecem nexos harmoniosos, de forma circular e em constante movimento, como se
afirmasse que a Rota do Saber gira constantemente, como uma roda em eterna construção, sempre em busca
da unidade epistemológica, superando fronteiras e limites disciplinares.

Dentro dessa mesma perspectiva, Guimarães (2005, p.75), citando Santomé (1998), afirma que
Transdisciplinaridade “É o nível superior da interdisciplinaridade, considerando objetivo e coordenação,
onde desaparecem os limites entre as diversas disciplinas e se constitui um sistema total que ultrapassa o
plano das relações e interações entre tais disciplinas”.

Isso pode ser constatado no episódio que passaremos a apresentar, onde a coordenação e as trocas,
identificadas neles, fundamentam esse diagnóstico. Inclusive, é pela inexistência de fronteiras e de territó-
rios solitários disciplinares, que poderiam inibir trocas e coordenações dentro dos processos constantes
desses episódios, que os classificamos como Transdisciplinaridade:

322
As aulas dos dias 22 e 24 foram realizadas com as apresentações das cenas a serem realiza-
das na culminância, inclusive com as devidas correções [sendo] realizadas, aproveitando a
aprendizagem das quatro últimas aulas. E as propostas das instalações, que ainda sofreram
alguns ajustes, considerando que os educandos iam ficar um bom tempo expostos ao sol,
mais precisamente quatro horas, das 13h30 às 17h30, [mostrando o que aprenderam] par-
ticipando das instalações e encenações apresentadas (EPISÓDIO 61 do Diário de Bordo
/22.09.2014).

Neste episódio percebe-se o diálogo que se estabelece, com cooperação e coordenação se realizando
em diversos níveis, com um só objetivo e uma finalidade comum. As fronteiras são diluídas e a interterrito-
rialidade se estabelece de fato. Existe uma troca, não apenas entre as sete, disciplinas, interdisciplinas e áreas
em diálogos, pois todos os conteúdos estudados em, pelo menos, mais dez áreas de conhecimento/discipli-
nas – Geografia, História, Sociologia, Filosofia, Antropologia, Física, Matemática, Informática, Religião e
Ciência – podem ser observados, com o Teatro se sobressaindo entre elas como uma área de conhecimento,
sintetizadora de todas, pelo seu caráter interdisciplinar e inovador, possibilitando que se estabeleça dessa
forma a Transdisciplinaridade.

2 – Como se desenvolveram os Processos Interdisciplinares no CMHPA

Para descrevermos, de forma sucinta, os resultados que os dados coletados nos forneceram,
explicitando como os processos ocorreram durante o desenvolvimento do projeto Gincana literária e
objetivando facilitar a sua visualização, utilizamos os softwares Microsoft Excel 2008 for Mac, versão
12.0 e o Inkscape, versão 0.91, que além de construírem os esquemas que ilustram esse trabalho, tam-
bém facilitaram o processo de composição de gráficos, como o Gráfico 1 que apresentaremos para
sintetizar os processos interdisciplinares desenvolvidos, observados e analisados durante a nossa
pesquisa.

Logo após a apresentação e descrição desse gráfico, faremos uma pequena análise do mesmo, tecen-
do algumas considerações, referentes aos ecos observados, que resultam como legado dessa prática, quando
constatamos que a ação pedagógica desenvolvida no CPMHA, por ocasião da gincana, é de fato transgresso-
ra porque investe nas interlocuções, resultando em um processo de ensino/aprendizagem, com mais frescor,
num tecer sem fim, que está sempre recomeçando, pois existem mais incertezas do que certezas na tecela-
gem desse tecido do saber, abençoado pelas sábias e velhas parcas, oscilando em um mar de conhecimento
que se mexe inexoravelmente, em busca de um porto seguro, onde a construção do conhecimento considere
o educando um marujo em formação que, entretanto, possui cultura própria, individuação, autonomia e
criticidade.

Constatamos que os contextos de aprendizagem eram transgressores, possibilitando aos educandos


mergulhos mais profundos no aquoso e líquido mar da educação. O layout da sala de aula era alterado, de
acordo com as necessidades dos processos a serem vivenciados. Ora as cadeiras eram colocadas de forma
circular, ora em blocos retangulares, deixando o centro da sala livre para as atividades. Os corredores, clu-
bes, quadras e até as praças públicas se transformavam em sala de aula, trazendo para o centro do processo
de aprendizagem sua cultura, sob a mediação dos educadores. As regras dos jogos dramáticos sempre eram
definidas pelos educandos e os artefatos construídos se transformavam à medida que outras informações
eram socializadas, uma vez que nesses contextos a ação colaborativa permeava todos os processos. Passamos
agora a apresentação do Gráfico 1.

323
Como é possível visualizar nesse gráfico, de acordo com os episódios mapeados, os processos in-
terdisciplinares realizados dentro da prática escolar a Escritura dramática, do CMHPA iniciam-se com a
Disciplinaridade, mas no segundo episódio eles passam à modalidade Multidisciplinaridade, assim perma-
necendo até o episódio cinco, quando passam a ser de Disciplinaridade Cruzada no episódio seis. Assim eles
permanecem desenvolvendo-se até o episódio dez, quando caem para a modalidade Pluridisciplinaridade
permanecendo lá até o episódio quatorze, ascendendo à Disciplinaridade Cruzada no episódio quinze e
assim permanecendo até o episódio dezesseis, quando descendem novamente para a modalidade Pluridisci-
plinaridade no episódio dezessete.

No episódio sessenta e um esses processos, finalmente, atingem à Transdisciplinaridade, assim per-


manecendo até o último episódio mapeado.

Como deve ter ficado claro durante o desenvolvimento dessa nossa escritura, no locus onde foi
desenvolvida essa pesquisa, não existe polivalência. Os educandos estão organizados em turmas do 5º ao 9º
ano do Ensino Fundamental, tendo como base uma matriz curricular que tem a Disciplinaridade como mo-
delo para nortear o seu modus operandi e dar conta da ação de ensino/aprendizagem ali vivenciada, criando
assim as fronteiras curriculares para delimitar a sua área de ação.

Isso vem afirmar que a rota de desenvolvimento dos processos interdisciplinares na Escritura
dramática em sala de aula não é harmônica, regular, homóloga, uniforme e simétrica. Ela é desarmô-
nica, irregular, variada, desuniforme e assimétrica. Com idas e vindas; voos, quedas, subidas, descidas,
ascensões e descensões. Apresentando um movimento em ziguezague que varia de progresso para re-
gresso, progredindo e regredindo, de acordo com a demanda da interlocução dos sujeitos envolvidos
nos processos.

324
As ascensões e descensões verificadas na Escritura dramática não obedecem a uma lógica evolutiva
nem involutiva, linear e constante. Elas não seguem as etapas de desenvolvimento sempre em um crescente.
Elas acontecem desarmoniosamente, de forma dissonante, com as descidas atingindo sete vezes a Disciplina-
ridade, três vezes a Multidisciplinaridade e duas vezes a Pluridisciplinaridade, enquanto às subidas atingem
oito vezes a Interdisciplinaridade, três vezes a Disciplinaridade Cruzada e a Pluridisciplinaridade. Atinge a
Multidisciplinaridade e a Transdisciplinaridade, da mesma forma desigual, inconstante e assimétrica, como
assimétricos são os processos interdisciplinares desenvolvidos no chão da escola.

REFERÊNCIAS

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futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jean- Ltda., 1998.

Pequeno Currículo
Benedito José Pereira (didha.pereira@gmail.com) é mestre em Educação pela UMa/Portugal, possui especializações
na área de ensino de Artes (UFPE) e Economia da Cultura (UFRGS). Professor da rede estadual de ensino de Pernam-
buco, membro da Academia de Letras Palmarense, dramaturgo, encenador, ator, iluminador, cenógrafo e figurinista.
Possui vários artigos e livros publicados na área.

325
O SILÊNCIO, A VOZ E A LIBERDADE
NAS AULAS DE TEATRO
DO ENSINO BÁSICO DA REDE MUNICIPAL
DO RIO DE JANEIRO
Matheus Gomes da Costa

Eu gostaria de ter permanecido em silêncio quando minha voz foi ignorada e cerceada por
parte de uma turma de sexto ano que insistia em me interromper quando, cansado e rouco, tentava iniciar
a aula de teatro que havia preparado na noite anterior. Era meu primeiro dia de aula no Ensino Básico. Na
rede pública do município do Rio de Janeiro. Em turmas do primeiro segmento do Ensino Fundamental.
Em uma escola que iniciara suas atividades no ano anterior e lutava para cobrir às custas a falta de agentes
educadores, professores e rotina por parte dos estudantes que, em sua maioria, nunca haviam tido aulas de
teatro e, em grande parte, sequer conheciam esta palavra. Mas, ingenuamente inexperiente e sob explícita
coerção de alguns estudantes que ameaçaram fazer queixa de que eu não havia dado aula caso eu permane-
cesse em silêncio diante deles, violei os limites da minha voz da qual estava farto de escutar durante aquele
dia. Iniciei uma aula sobre o silêncio necessário às aulas de teatro, tentando em vão ignorar aqueles que con-
tinuavam falando durante a exposição, o que me obrigava a aumentar o volume e tom de voz e, às vezes, gri-
tar. Na minha equivocada tentativa de aceitar a crença no suposto fato de que eles eram apenas adolescentes
e que por isso não conseguiriam manter-se em silêncio e que exigi-lo seria uma atitude tirânica e opressora,
iniciava-se uma relação conturbada e desrespeitosa que se estendeu ao longo de todo aquele ano, apesar dos
conflitos terem se atenuado ao longo do segundo semestre, após muitas e complexas estratégias e táticas
experimentadas por mim e por eles. Por isso, apresento relatos que questionam pensamentos romantizados
que, em nome de uma suposta liberdade dos estudantes e das crianças em geral, acabam por preconizar a
falta de limites, as regalias, o abuso e o desrespeito com as autoridades como se a emancipação prescindisse
da regulação, pensamento ao qual sou avesso215.

215. Pelo contrário, quando escrevo sobre ‘regulação’ e ‘emancipação’, refiro-me às conceituações e problemáticas que apresentam os estudos de
Boaventura de Sousa Santos (2007), mas principalmente como são lidas no campo do currículo pela autora do livro “Currículos praticados” de Inês
Barbosa de Oliveira. Ali, entendo que os termos ‘regulação’ e ‘emancipação’ não se excluem e são colocados como polos para auxiliar a desenvolver
o estudo e que “propostas de inspiração emancipatórias não garantem práticas emancipatórias, do mesmo jeito que propostas em tom mais regula-
tório não implicam necessariamente práticas regulatórias.” (OLIVEIRA, 2005, p.82) Ao longo deste estudo, não tenho a pretensão de definir o que
é a regulação ou a emancipação sociais. Entendo-as a partir das propostas que Boaventura de Sousa Santos faz, ao reinventar uma concepção de
emancipação proveniente do modo como essa experiência teria operado na sociedade ocidental moderna. Entendo que, para ele, na modernidade,
a emancipação poderia ser percebida como uma experiência de transformação das circunstâncias sociais do sujeito oprimido por mecanismos
reguladores mais poderosos que ele. Uma transformação que iria em direção à possibilidade daquele sujeito realizar suas expectativas “de uma vida
melhor, de uma sociedade melhor.” (SANTOS, 2007b, p. 17-18) Entretanto, Boaventura problematiza esse tipo de percepção para a sociedade atual,
na qual, frente às falências de certas entidades de poder (como um próprio modo de pensar a ciência), a emancipação não operaria como um fim,
mas como em constante tensão com a regulação. A experiência da emancipação equivaleria, de certo modo, às experiências de respeito, dignidade
humana e de justiça. (SANTOS, 2007b, p.40).

326
Assim, escrevo esses relatos para registrar o frescor das primeiras aprendizagens que tenho tido
como professor e escolho partilhá-las publicamente porque se eu pudesse, os teria enviado até mesmo para
mim na noite anterior àquele primeiro dia de aula. Talvez em vão. Mas com o objetivo de confortar e acon-
selhar aquele professor que, aparentemente desamparado, iniciaria sua árdua, mas prazerosa jornada dentro
das barulhentas rotinas das escolas públicas. O tempo é curto e o espaço é pouco. Por isso, dentre os conse-
lhos que eu me daria, escolho alguns referentes à preciosidade do silêncio para a experiência da liberdade e
da emancipação da voz do professor e dos estudantes em sala de aula de teatro dentro deste contexto especí-
fico que são as salas de aula de teatro das três escolas públicas do primeiro segmento do ensino fundamental
do Rio de Janeiro em que tenho trabalhado ao longo dos últimos 15 meses. Por uma questão de privacidade,
opto por não revelar o nome dos estudantes, professores e das escolas localizadas em três diferentes bairros
da Zona Oeste.

Não apresentarei uma doutrina ou metodologia pedagógica a ser experimentada com êxito por ou-
tros professores em quaisquer circunstâncias. Pelo contrário, opto por apresentar isso que chamei de “conse-
lhos” no fluxo dos relatos das experiências. Conselhos que me serviram em momentos ímpares e que, a meu
ver, podem inspirar outros professores a encontrarem táticas semelhantes ou muito distintas, entendendo
que estas referem-se às singularidades das circunstâncias em que atuam.

O silêncio na formação do ator

Além dessa experiência como professor no município do Rio de Janeiro, ministro treinamentos,
oficinas, cursos de atuação e aulas avulsas para jovens e adultos há aproximadamente cinco anos. Inspi-
rado pelas pesquisas desenvolvidas pela professora Tatiana Motta Lima (2016) sobre diferentes modos
de subjetivação na formação do ator, há algum tempo venho convidando meus estudantes de atuação a
experimentarem o silêncio e o não fazer numa tentativa de vivenciar as sutilezas envolvidas nos acon-
tecimentos. Acredito que as demandas excessivamente produtivistas da sociedade contemporânea po-
dem obstruir a percepção das minúcias envolvidas na experiência preconizada por Jorge Larrosa Bondía
(2002) como um acontecimento que requer interrupção e um constante parar para desfrutar dos peque-
nos perceberes.

Mesmo para jovens adultos e adultos, silenciar não é atividade simples. Que dirá para crianças
do primeiro segmento do Ensino Fundamental. No âmbito da formação de atores, falo sobre um silêncio
que tenho chamado de meditativo. Que não tenta em vão silenciar os pensamentos, mas contemplá-los e
deixá-los ir embora, sem criar neles uma fixação involuntária. Uma contemplação que aos poucos creio
possibilitar-nos filtrar julgamentos, críticas e movimentações desnecessárias e prejudiciais aos processos
de criação cênica e de reinvenção de si.

Quando falo em silêncio, refiro-me também a um repouso dos movimentos. Um deixar-se fazer
a partir do não fazer. Permitir que a ação nasça justamente da imobilidade. Reflexões que nos estudos
da formação do ator foram apresentadas por artistas e professores como Peter Brook (1968) e Étienne
Decroux (1985).

Creio que assim, as experiências vivenciadas pelos estudantes podem subverter de certo modo
as demandas sociais produtivistas, em uma dimensão biopolítica que procura zelar pela singularidade
dos estudantes e por outros modos de subjetivação da experiência e dos sujeitos nela envolvidos. Nessas
práticas, tenho visto despontar em sala de aula de atuação momentos inusitados em que o não fazer, o
silenciar e a imobilidade têm nos proporcionado modos de existir, de estar, de nos relacionar e de agir
diferenciados daqueles em que estamos habituados em nosso cotidiano.

327
O perigo de se competir com os ruídos do cotidiano escolar

Quando se trata das salas de aula de teatro do primeiro segmento do Ensino Fundamental da Rede
Municipal, um momento espontâneo de silêncio sonoro já é uma dádiva a ser conquistada. Certo estou de
que um dos maiores desgastes que sofri e ainda sofro nesta rotina refere-se ao desgaste da voz. Lecionando
teatro por 40 horas semanais, sendo mais de 26 delas em contato direto com crianças de 6 a 14 anos, dividi-
das em turmas que lotam aproximadamente 35 estudantes, não houve técnica vocal que garantisse a saúde
da minha voz.

Não importou o tanto de afinco depositado às contínuas práticas de vocalizes e exercícios vocais ao
longo dos anos. No meu primeiro dia como professor do município, voltei rouco para casa. Mesmo articu-
lando bem as sílabas de cada palavra, apoiando a respiração no diafragma, hidratando o organismo com
litros de água e projetando a voz sem gritar. Cheguei em casa acreditando que teria que pedir exoneração.
Porque tive consciência de que poderia arruinar uma das coisas que mais zelei ao longo dos anos de pre-
paro artístico e pedagógico, minha voz. Quando cheguei em casa, já havia rodado pelos camelódromos do
centro da cidade de Niterói (onde morava quando assumi o cargo), ainda que estivesse exaurido pelas horas
passadas na escola e no tráfego entre as duas cidades, e tinha comigo um megafone que me custou aproxi-
madamente 80 reais. Posteriormente, investi em um que me custou quatro vezes mais. Comprei também
um apito que me serviria para realizar comandos nos jogos e chamar a atenção da turma quando a bagunça
e o barulho se generalizassem, já que a voz deveria ser poupada e bater palmas deixavam minhas mãos ver-
melhas e doloridas. No fim de semana, a musculatura diafragmática e peitoral estava dolorida, como se eu
tivesse realizado um treino de musculação específica para essa região que até então nunca havia percebido
tão presente. A minha voz nunca mais foi a mesma. Até hoje sinto uma constante fragilidade, mesmo que
ultimamente eu raramente precise gritar.

No dia seguinte, voltei para a aula tão equipado que nem conseguia manusear tudo o que estava
comigo: celular com música, caixa de som, microfone, apito, relógio de pulso que até então eu não usava,
diários de classes, planejamentos, registros de aula, uma nova sala um pouco menor entre outros apetrechos.
Por um incômodo crítico meu, o apito foi usado com menos frequência. Quando o tumulto se generalizava,
seu uso me servia. Sentia-me o general militar da família Von Trapp organizando seus pequenos filhos com
os sinais no apito e não haveria carola que me convencesse a não o usar. Mas os estudantes não se organiza-
vam exatamente como as crianças do referido filme. Ao longo dos primeiros meses, o apito foi praticamente
abandonado porque conseguimos, eu e os estudantes, aproveitar de maneira mais adequada e menos caótica
o espaço da sala de aula de teatro. Espaço distinto dos outros. Na primeira escola em que lecionei, tínha-
mos um grande auditório que facilitava a dispersão dos estudantes e demandava muito da minha voz. Nele
fiquei durante as duas primeiras semanas. Quando percebi junto à direção que não dava conta de adminis-
trar aquele espaço, passei a utilizar uma sala um pouco menor, mas ainda adequada para as práticas. Nas
primeiras semanas, levava jogos novos a cada aula. O que exigia de mim excessivas explicações durante os
enunciados e a realização das atividades. Além disso, as propostas tendiam a excitar os ânimos das crianças,
com atividades que dispersavam no lugar de focar a atenção.

Só mais tarde, passei a experimentar repetidas vezes atividades mais tranquilas e que exigiam um
foco maior dos estudantes. O problema era que eles, habituados com os primeiros exercícios que os diver-
tiam e excitavam excessivamente, se queixavam dos novos exercícios que apresentavam demandas mais
complexas e focadas. Entretanto no início do ano seguinte, tendo experimentado essas mudanças e as que
descrevo abaixo, consegui ministrar aulas muito bem focadas e prazerosas no espaço do auditório.

328
O equilíbrio da forma para entrar em sala de aula

Outro fator que contribuiu para a dispersão, a bagunça e o barulho excessivo nas aulas referiu-
-se à minha prepotência ao considerar inadequadas para uma experiência emancipatória certas práticas
necessárias para aquele cotidiano. Uma das rotinas que silenciosamente critiquei com minha arrogância
universitária quando cheguei na escola foram as filas formadas pelos estudantes e orgulhosamente exibi-
das pelos professores. Mas não demorou muito tempo para que eu mesmo estivesse me esgoelando pelos
corredores vivos e barulhentos da escola: “cadê a forma da 1601?!?!?!”. E evidentemente que quando os
30 pintinhos do primeiro ano “vinham cá” em fila atrás de mim enquanto trocávamos de sala, por den-
tro, eu sorria orgulhoso ainda que minha fisionomia não esboçasse sequer um sorriso que, na minha
primeira impressão, colocaria em risco o respeito que dirigiam à minha figura enquanto autoridade.
Principalmente nos primeiros meses, percebia que nos momentos de conflito, quando eu sorria para eles
durante ou após uma repreensão, era mais difícil ter minhas solicitações atendidas. Quando eu fazia isso,
eles começavam a rir, vinham me abraçar, pulavam em mim, me escalavam, puxavam, voltavam a correr,
começavam a brincar entre eles e a brigar. Definitivamente, em todas as escolas, facilitou-me a experiên-
cia, quando logo nos primeiros dias após as férias, eu era firme em meus posicionamentos, mantendo a
fisionomia séria, mandando bilhetes para os responsáveis dos estudantes que desrespeitassem as regras
acordadas em grupo, propondo atividades diferenciadas que fossem mais exigentes e menos prazerosas,
chamando a direção ou o professor generalista da turma ou retirando as atividades recreativas. Atitudes
com as quais eu não necessariamente percebo como as mais adequadas, mas que foram necessárias para
o momento em que vivia. Como uma árvore, era preciso manter-me firme e flexível para relevar certos
deslizes e desvios daquilo que eu tinha previsto e idealizado. Se a árvore não está firme em seus funda-
mentos, pode cair, mas se é excessivamente rígida, pode quebrar com as ventanias. O problema é que
levou algum tempo para que eu encontrasse os fundamentos filosóficos, políticos e pedagógicos que fos-
sem mais adequados a cada turma e os modos de explicitá-los a elas. Até conseguir fazer isso de maneira
curricular, didática, metodológica e pedagógica, oscilava entre os excessos de rigidez ou de flexibilidade,
o que desequilibrava a relação com os estudantes, proporcionando momentos excessivamente restritivos
ou extremamente desregrados.

Sinto que aos poucos, conquistei o respeito deles ou, talvez ao contrário, eles conquistaram o meu.
Creio que isso tenha acontecido quando, menos ansioso, passei a reservar um tempo maior para transfor-
mar em jogo e poética as atividades que antes eu considerava como não curriculares: trocar de sala, aguardar
enquanto se acalmam antes de entrar em sala ou iniciar um jogo, esperar que, após o recreio, a educação
física e as trocas de sala, silenciem por conta própria quando finalmente percebem que espero para falar.
Simultaneamente, isso implicou na redução do tempo destinado às propostas que inicialmente eu havia
previsto, o que me demandou uma reformulação do currículo. O que também ocorreu em duas das escolas
em que passei foi que, em um primeiro momento muitos deles desconheciam a prática de teatro, e após a
experimentarem, interessaram-se e perceberam que convinha respeitar o espaço a ela destinado e o profes-
sor que ministrava a prática. Assim, chamar a atenção deles passou a demandar menos de mim, uma vez
que os próprios estudantes se davam toques do tipo “você não percebeu que o professor está esperando que
façamos silêncio?”.

Ao fim do meu primeiro ano docente no município percebi que as filas ou as “formas” poderiam
virar jogo. A primeira percepção foi a de que antes de deixarem a fila e entrarem em sala, eu poderia realizar
com eles exercícios de percepção corporal, sensorial, emocional, afetiva e de relaxamento. Então, conversava
ainda na fila sobre o silêncio, o equilíbrio corporal, a calma e como tudo isso era imprescindível para uma
aula de teatro prazerosa, divertida e libertadora. Solicitava que equilibrassem o corpo sobre o eixo vertical,
fizessem silêncio, percebessem a respiração, relaxassem partes específicas onde percebíamos excessos de

329
tensão. Os primeiros a encontrar esse estado de repouso entrariam primeiro na sala. Competitivos, rapi-
damente começaram a investigar em si os complexos modos de acessar o sofisticado silêncio sobre o qual
escrevi acima e que poucas vezes vejo nos estudantes, mesmo adultos. O risco é que experimentem a imobi-
lidade de maneira mecânica, como robôs ou soldadinhos. Então, em tom de brincadeira e imitando os que
assim estão, falo que não quero estudantes robôs, mas pessoas, seres humanos, que vivem. E eles parecem
entender a crítica solicitação, fazendo ajustes na postura, no olhar e na respiração.

Ultimamente, ainda nas filas, tenho experimentado jogos como “batatinha frita, 1, 2, 3”. Neste jogo,
quando viro de costas para a fila, podem caminhar atrás de mim, mas quando olho para eles, devem permane-
cer estáticos. Quando se mexem, falam ou saem da fila, vão para o final dela. Os que permanecem nos primei-
ros lugares são privilegiados na participação em alguma das atividades, como por exemplo, ter a possibilidade
de escolher em qual time entrar ou ter um tempo maior para criar, improvisar, contar histórias, jogar ou brin-
car. Acredito que há momentos, como nestes, em que a meritocracia serve para proporcionarmos experiências
emancipatórias. É claro que esse é um breve momento da aula e eles têm consciência de que, logo, esses lugares
serão ocupados por outros e que, em cada diferente jogo, há uma aproximação e afinidade diferente por parte
de cada um deles. De modo que procuro atentar quais estudantes se destacam em diferentes atividades e apon-
tar a eles quando sucedem nas atividades e o porquê disso. Alguns têm mais meios para se acalmar, silenciar,
manter o prazer e a vida na imobilidade. Outros, para criar situações imaginárias. Outros, para se expressar
com as palavras. Outros, com o corpo. Outros, para projetar a voz. Peço que compartilhem com a turma o que
e como fizeram para realizar o objetivo e o que os atrapalhou. Assim, partilham táticas pessoais exercidas para
alcançar objetivos inerentes ao teatro. Por isso, em sua totalidade, não avalio a experiência como meritocrática,
apesar de haver momentos em que reconhecemos no mérito o seu valor.

A liberdade matou um cão

No início deste ano, entrei em sala de aula da turma que talvez seja a mais agitada da escola. Tran-
quilos, os estudantes de segundo ano realizavam uma atividade com a professora que parece ser a calma e a
delicadeza em pessoa. E, não sei se é um dado conhecido, mas quando os professores de educação física e de
teatro aparecem na sala de aula, as crianças arregalam os olhos, falam, gritam, anunciam à toda turma, pulam,
levantam, vêm abraçar, como se vissem uma celebridade. Nos primeiros dias de aula, isso até me alimentava
o ego, mas ao longo dos meses passou a me cansar, porque tenho que lidar com essa reação a cada 50 minutos
e, da excitação, preciso acalmá-los para leva-los em fila à sala de aula de teatro. Naquele dia, chamei a atenção
deles para isso. Discursei sobre o silêncio necessário para as aulas de teatro e de como ele era fundamental para
que pudéssemos escutar uns aos outros, conversar, nos conhecer, ter voz dentro de sala de aula, expor nossas
percepções, e que eu acreditava que assim experimentaríamos a liberdade. Tive que responder o que é liberda-
de, o que é ser livre, questionando sobre quem queria ser livre e quem queria ficar aprisionado.

A extensão do discurso sobre a liberdade da voz e do silêncio para crianças de sete anos de idade se
deu por conta do meu recente interesse em investir nesta temática enquanto proposta curricular e metodo-
lógica para as aulas iniciais com as turmas, para evitar os desgastes que vivenciei junto às turmas da escola
que lecionei no ano anterior. Mas naquela ocasião em particular, também me exibia para a professora que,
sentada à sua mesa enquanto corrigia exercícios ou “vistava” as agendas, olhava para mim com um olhar de
quem aprovava, incentivava e achava graça das minhas palavras.

Eles pareceram escutar aquelas palavras com atenção. Assim, iniciei o que já fazia parte da nova
rotina: solicitar que levantassem em silêncio de suas cadeiras e fossem formar a fila no corredor. Um dos
barulhos mais incômodos da escola é o arrastar simultâneo dos pés de trinta cadeiras no chão. Se fazem

330
barulho de cadeira, de material escolar, de tênis no chão, de voz ou de respiração, voltam a sentar e reini-
ciamos a saída da sala de aula, o que passou a ser um jogo. Assim que formaram a fila, um dos meninos
mais dispersos da turma veio falar comigo em particular. Com palavras desconexas e difíceis de entender
(difíceis para mim, é claro, talvez tão difícil quanto é para eles entender as minhas), ele me contou que sua
mãe “não deixava o cachorro sair para a rua e que se ela visse o cachorro saindo para rua iria pegá-lo e leva-
-lo para casa”. Então, curioso, me perguntou: “Isso é liberdade?!”. Arrebatado pela reflexão do menino, pedi
que ele questionasse à turma, quando chegássemos em sala de aula. Sentei todos próximos uns dos outros
diante da cadeira do professor e coloquei o estudante sentado nela, após ele concordar em contar a história.
Então entreguei-lhe meu microfone. Ele contou a história do cachorro. Perguntei a eles se isso era liberdade.
Conversamos sobre diferentes tipos de liberdade e concluíram que ter uma casa para morar e permanecer
nela também pode ser libertador e que morar na rua talvez não fosse a melhor maneira de um cãozinho ser
livre. Contei para eles de uma cadela que tive em minha infância e que perdi porque fora atropelada por
um ônibus, quando fugiu do veterinário. Em seguida, vários estudantes contaram histórias sobre cachorros.
Não me preocupou o fato repetirem histórias com a mesma temática nas quais repetidamente matavam seus
cachorros. Naquele momento protagonizavam a aula, eu descansava minha voz, e todos escutávamos uns
aos outros. Assim, o discurso expositivo sobre o silêncio e a liberdade resultou em 30 minutos ininterruptos
de contações de histórias. Hoje, quando excedem no barulho, pergunto: “vocês estão liberando ou aprisio-
nando a nossa voz?”. E eles sabem o que responder, antes de voltar ao silêncio.

Na aula seguinte, animado com a experiência, levei para eles máscaras neutras para começar um
estudo ainda mais lúdico sobre o silêncio, o equilíbrio e a calma. Fiz jogos para perceber quais estudantes
atendiam com mais precisão a comandos e solicitações que demandavam calma, imobilidade e equilíbrio.
Assim escolhi os três que vestiriam as máscaras naquela ocasião. Para minha surpresa, vestiram as máscaras
três dos estudantes mais dispersos, inclusive o que contou a história do cãozinho. Realizaram o exercício
do despertar da máscara neutra e, ao seu fim, até relataram o que sentiram, falando sobre as sensações que
experimentaram. Foi quando percebi que poderia dar um passo adiante nas experiências de sala de aula do
ensino fundamental, proporcionando a eles propostas que, até então, eu imaginava que só seriam possíveis
de realizar com os estudantes jovens e adultos dos cursos de atuação.

O despertar da máscara neutra com as crianças

Eu estava reticente quanto a experimentar com as crianças os exercícios com as máscaras, que ve-
nho pesquisando há algum tempo. Primeiramente porque acreditava que fossem destruir os objetos que,
confeccionados pelo Grupo de Teatro Moitará, possuem grande valor artístico, simbólico e afetivo para
mim. No meu primeiro ano de município, levei as máscaras neutras assim que passei a confiar em uma das
turmas. A experiência foi um fracasso. A turma que até então realizava com êxito as atividades propostas
não realizou a atividade como eu esperava. Ao invés de equilibrar e acalmar, a máscara neutra desestabili-
zou, evidenciou e intensificou os desequilíbrios da turma.

Na ocasião, havia levado três máscaras neutras confeccionadas em fôrmas para rostos adultos para
uma turma com estudantes de aproximadamente sete anos. Juntei eles em uma plateia no fim da sala e, de
costas para a plateia, três estudantes vestiram a máscara com minha ajuda. Quando vi aqueles rostos imen-
sos para suas estaturas, quis rir. Mantive sério o semblante e fui até a plateia, de onde assistiria o exercício do
“despertar da máscara neutra”. Primeiro, virariam para a plateia, depois, deitariam, dormiriam e acordariam
naquela sala como se fosse a primeira vez que estivessem ali e, com todo o corpo, a máscara perceberia o
espaço, mantendo a calma e o equilíbrio. Mas assim que viraram, as crianças riam tanto, que não foi possível
continuar. A não ser que eu reprimisse a espontânea reação deles que, a meu ver, não tinha a intenção de

331
ofender os colegas. Estes, quando tiraram a máscara, bravos pela reação da plateia, questionaram se tinha
algum palhaço ali. Pergunta justa e pertinente à proposta da máscara neutra, que na metodologia de Jacques
Lecoq, abre o percurso para a formação de atores e palhaços, uma vez que a máscara neutra realça as singu-
laridades de cada um. Já o palhaço, posteriormente nessa mesma metodologia, lidaria com o que há cômico
nessas singularidades. Então, abortei a experiência e ao longo de todo aquele primeiro ano não voltei a levar
as máscaras.

Entretanto, no início deste ano de 2018, levei as máscaras para as outras escolas municipais em que
comecei a lecionar. Então, como vinha experimentando um estudo metodológico sobre o silêncio com as
crianças, investi de modo mais sistemático e minucioso nos exercícios clássicos da máscara neutra, como
propostos no livro O corpo poético, de Lecoq. Obviamente, a aproximação que proporcionei dessa vez foi
diferenciada daquela primeira. Prevendo a possível reação das turmas, tive precauções. A primeira foi a de
realizar os exercícios primeiramente com os estudantes maiores, do sexto ano, evitando o estranhamento e
desequilíbrio excessivo causado pelas proporções das máscaras e dos corpos dos estudantes. A segunda foi
a de criar um ambiente favorável à aproximação com a máscara, primeiramente levando livros, fotografias
e contando histórias sobre as máscaras, na aula seguinte levando as máscaras para eles verem e aprende-
rem a segurá-la, e só na terceira para finalmente vestirem-na. A terceira precaução foi a de adverti-los no
enunciado quanto ao estranhamento que a máscara poderia causar. A quarta foi a de colocar a experiência
no lugar do faz-de-conta, de modo a distanciar de si mesmos os estudantes que vestiam a máscara, para
fazerem de conta que era a máscara e não eles quem agia, o que os distanciaria também das possíveis crí-
ticas e reações da plateia que se dirigiriam à máscara e não necessariamente à pessoa que a veste. A quinta
precaução foi a de solicitar que a plateia respeitasse a máscara e os estudantes, evitando rir, apontar e falar.
Aqueles que apontassem ou comentassem, sairiam de sala e esperariam do lado de fora até o exercício con-
tinuar. A última foi a de solicitar que, antes de virar para a plateia, esperassem a plateia silenciar totalmente
e, quando virassem de frente, percebessem os movimentos de reação que aconteceriam e esperassem esses
movimentos se aquietarem. Interessados em ver o mistério da transformação que existia por trás da másca-
ra, a experiência foi extremamente diferente daquela experimentada no ano anterior. Riram um pouco, um
ou dois apontaram, mas assistiram compenetrados e, por fim, avaliaram de modo pertinente o que viram,
observando se os estudantes cumpriram ou não o que havia sido solicitado. Em seguida, pude experimentar
os exercícios até com as crianças mais novas e a prática foi muito bem recebida também por eles que ficaram
fascinados com a máscara e a magia de se transformar em um outro, por meio do faz de contas.

Sobre a experiência com a máscara, há outros relatos que ficarão para um próximo estudo. Neste
artigo, o que me interessou apresentar foi justamente essas diferentes abordagens dos enunciados e como
foram fundamentais para o sucesso e o fracasso da experiência. Além disso, trago a reflexão porque, a meu
ver, a experiência da máscara neutra concretizou para os estudantes a importância do silêncio, uma vez
que a máscara neutra não fala e existe no silêncio, em uma experiência que antecede a palavra e talvez até
mesmo a comunicação. Ela materializou para eles o silêncio necessário à experiência. E quando os ruídos
começam a exceder, lembro a eles da máscara neutra, com a qual estudamos por alguns meses e que ainda
está presente em algumas turmas.

Conclusão

Tendo vivenciado essas experiências, concluo que o que pode ser chamado de silenciamento não
equivale necessariamente à opressão. Pelo contrário, há vezes em que o silêncio pode empoderar o oprimi-
do. Em minha prática, o estudo sistemático sobre o silêncio, a calma e o equilíbrio proporcionou aborda-
gens, a meu ver, mais emancipatórias, sofisticadas e menos desgastantes do que aquelas que aconteciam no

332
meio dos constantes falatórios e ruídos. Experiências nas quais os dedos levantados ao ar são respeitados e
as vozes, escutadas. Hoje, tenho voz. Eles também. Investindo no silêncio, pude aprofundar estudos sobre
a improvisação, as máscaras, o coro e a mímica, objetos de minha pesquisa de mestrado e que antes só ex-
perimentava com êxito nos cursos de formação de atores direcionados a uma elite universitária pública ou
técnica particular. Assim, mesmo quando o silêncio é fruto de negociações que parecem privar os estudantes
de certos privilégios, como quando aqueles que não param de falar deixam de participar das atividades para
assisti-las de longe ou redigi-las em relatórios, percebo que ele não implica necessariamente no silencia-
mento ou opressão dos estudantes, mas pode até mesmo contribuir para a experiência da emancipação nos
processos de ensino e aprendizagem do teatro nas escolas públicas do ensino básico do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o sa- MOTTA LIMA, Tatiana. Beckett, pedagogo do ator: prá-
ber de experiência. Tradução de João Wanderley Geraldi. ticas de esgotamento. In Revista Sala Preta. Vol.16 N.2,
Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2002; 2016;
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Simon & Schuster, 1968; a regulação e a emancipação. Rio de Janeiro: DP&A, 2005;
DECROUX, Etienne. Words on Mime. Claremont, Cali- SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria critica e
fornia: Mime Journal., 1985; reinventar a emancipação social ; tradução Mouzar Bene-
LECOQ, Jacques. O corpo poético -uma pedagogia da dito. - São Paulo: Boitempo, 2007.
criação teatral. SESC SP, 2010;

333
UMA PROPOSTA DE AVALIAÇÃO
EM TEATRO NO ENSINO BÁSICO216
Pedro Haddad Martins – IA/UNESP

Avaliação em teatro para quê? E como?

Em 2012, durante o início do meu primeiro ano lecionando teatro para o sexto ano do ensino
fundamental217, a direção propôs que a área de Arte elaborasse um sistema de avaliação. Antes não havia
avaliação em Arte. O objetivo principal foi que o aluno pudesse ter um retorno efetivo de seu processo de
aprendizagem, que poderia ser acompanhado pelos pais ou responsáveis, e que se tornaria objeto de refle-
xão. Vale ressaltar que, mesmo assim, a avaliação em Arte não teria “nota”, e a área não poderia reprovar o
aluno, mesmo fazendo parte da grade curricular.

Este sistema de avaliação foi discutido durante o primeiro trimestre de 2012 e aplicado pela primei-
ra vez no final do segundo trimestre do mesmo ano. Participaram de sua elaboração a direção da unidade,
a coordenação da área e os professores de Arte.218 A partir das discussões, elaborei alguns objetivos da ava-
liação em teatro:

- Retratar de maneira sensível a trajetória do aluno-ator219, abarcando a multiplicidade de sua expe-


riência durante o processo;
- Fornecer elementos para que o aluno seja capaz de pensar e avaliar o seu próprio fazer (durante as
aulas e no momento da autoavaliação);
- Elaborar uma alternativa que dê elementos para que o professor avalie o aluno de maneira mais
abrangente, não reduzindo seu desempenho a números ou fórmulas;

216. Este relato reflexivo de experiência é fruto de minha pesquisa de doutorado, defendida na ECA-USP em dezembro de 2017, sob orientação da
Profa. Dra. Ingrid Dormien Koudela, e título “Pedagogia em performance: uma abordagem do ensino do teatro na escola básica”. O texto original,
presente no quinto capítulo da tese, foi reduzido e adaptado para se adequar ao formato deste “chamamento”.
217. As experiências aqui narradas foram realizadas dentro das aulas de teatro no sexto ano do ensino fundamental de uma escola particular na
cidade de São Paulo, da qual sou docente. Neste contexto, as aulas de teatro fazem parte da grade curricular obrigatória. A pesquisa inclui processos
teatrais – com montagens de peças - com 38 turmas de alunos-atores entre 10 e 11 anos de idade, ocorridos entre 2012 e 2017.
218. Antônio Sérgio Pfleger de Almeida, diretor do Fundamental I; Fabiana Ferreira Queirolo, coordenadora da área de arte; Gisela de Azevedo
Noronha, professora de artes visuais; Vera Helena Ferreira da Silva, professora de artes visuais; Cássia Maria de Araújo, professora de música; Ademir
Emboava de Araújo, professor de teatro.
219. O termo escolhido para se referir aos alunos de teatro é aluno-ator, exatamente como feito em meu mestrado. Este termo é adotado por Viola
Spolin (2006), e evidencia o caráter formativo (aluno), dentro de um processo teatral (ator), que não tem objetivo de ser profissionalizante ou feito
apenas com atores profissionais. Ou seja, nos processos de ensino-aprendizagem em teatro, as crianças estão em formação (aluno) por meio do fazer
teatro (ator). O termo evidencia a crença de Viola de que todos podem ser atores. Um outro termo, jogador, que vem do francês jouer (jogar, brincar,
representar), como em jouer un rôle (representar um papel), e que é usado por diversos autores (inclusive Viola), estará embutido no termo ator
deste binômio – que também contém a ideia do ator como participante do teatro como um jogo.

334
- Fazer da avaliação um elemento coletivo, integrado ao processo e parte da experiência artística do
aluno, tendo ela também um caráter artístico-pedagógico.
- Se perceber como “produtor” de arte, inclusive, e principalmente, por meio do jogo como modali-
dade estética.

A partir desta premissa, configurou-se um sistema de avaliação trimestral. Esta avaliação é baseada
em diversos critérios, que correspondem aos indicadores de aprendizagem estabelecidos de acordo com o
planejamento anual. Planejamento que se mostra importante para firmar o teatro como área de conheci-
mento e, portanto, portador de conteúdos que podem ser objeto de avaliação.

Para que se aprenda com profundidade na área de arte, para seguir aprendendo por si na
vida pós-escolar, os alunos que frequentam as escolas precisam assimilar uma quantidade
expressiva de conteúdos para que possam estabelecer relações complexas entre eles. Em
outras palavras, arte se aprende, inclusive a fazer. Portanto, a escola é o espaço onde se
pode promover a postura investigativa do aluno na área de arte. As aprendizagens são pro-
movidas pelos professores por intermédio de sequencias didáticas ou projetos de trabalho,
modalidades de organização do ensino que são planejadas respeitando a cultura que o
aluno traz consigo, seus conhecimentos anteriores e o potencial de aprendizagem de cada
um. (IAVELBERG, 2017, p. 128)

Estes indicadores levam em conta, além da apreensão de conteúdos específicos da linguagem, ele-
mentos que explicitam a trajetória do aluno, e a relação entre os conteúdos específicos de teatro e o de outros
componentes ou vivências (dentro e fora do ambiente escolar), amplificando a avaliação para além da expe-
riência dentro da sala, respeitando os conhecimentos anteriores e “o potencial de aprendizagem de cada um”.
Ou seja, a própria experiência do aluno-ator é, em si, conteúdo teatral e pode ser avaliada. Nesta experiência
estão incluídas a própria condição de “ser criança” dentro do processo, sua personalidade, suas atitudes e
estratégias, seu processo. A avaliação faz com que o aluno-ator, portanto, reconheça estes elementos, por
vezes subjetivos, como sendo elementos essenciais para a construção teatral. Por este viés, este sistema se
aproxima do que seria uma “avaliação pós-modernista em arte”:

A avaliação moderna levou em consideração os conteúdos do planejamento (apresenta-


ção de materiais, procedimentos, técnicas ou temas) do professor e seus desdobramen-
tos na capacidade de criar dos alunos orientada por seus interesses e necessidades. Já no
pós-moderno inovou-se tendo como referência na avaliação os conteúdos ensinados a
partir do desenho curricular, verificando se foram alcançadas as expectativas de apren-
dizagem para cada ano da vida escolar. As conquistas nas aprendizagens são avaliadas
mediante consideração do sistema mais amplo que envolve a escola (a comunidade e
seus parceiros); os conhecimentos prévios e a cultura de origem dos estudantes. (IA-
VELBERG, 2015, p. 238)

Em consonância com os objetivos e os conteúdos do curso, são estabelecidos critérios e indicado-


res de aprendizagem, que são apresentados ao aluno-ator no início de cada trimestre (e podem mudar de
trimestre para trimestre, dependendo dos conteúdos) como instrumentos de avaliação presentes, tanto du-
rante, quanto ao final do processo. A apresentação desses indicadores faz com que o aluno-ator tenha mais
claro o percurso pretendido, e esses objetivos podem ser discutidos e evidenciados durante as aulas, como
maneira de sedimentar as experiências como conhecimento.

335
No fechamento de cada trimestre, os alunos-atores fazem uma autoavaliação a partir da observa-
ção de seu processo durante as aulas de teatro, atribuindo valores de 1 (pouco satisfatório) a 5 (totalmente
satisfatório) para cada critério/indicador. O professor, paralelamente, avalia cada aluno-ator utilizando os
mesmos critérios e, em um segundo momento, o aluno-ator compara a sua própria avaliação com a do pro-
fessor. Esta comparação (que resulta em um gráfico radial) é objeto de reflexão e contribui para a elaboração
de metas de aprendizagem (pelo próprio aluno-ator) para o próximo trimestre – a “pontuação” em cada
critério/indicador, o gráfico resultante e as metas estabelecidas são anexados ao boletim do aluno-ator. Os
critérios da avaliação, intimamente ligados ao processo do aluno-ator, servem também para pontuar, duran-
te as aulas, o que está sendo conquistado e proporcionam uma reflexão constante do aluno-ator durante o
seu próprio fazer. Teatro, portanto, não “vale nota” objetivamente, não é possível ser reprovado ou ficar de
recuperação deste componente. A avaliação é entendida como reflexão e verificação do processo pelo qual
o aluno-ator passou, e não como uma quantificação do conhecimento.

No primeiro trimestre de 2016, por exemplo, os critérios/indicadores foram oito, e propõem per-
guntas que podem ser respondidas pelos alunos-atores ao longo do processo de aula e de avaliação, reto-
mando a vivência segundo critérios objetivos:

- REGISTRO: Registrou as atividades realizadas em sala no “Livro de Impressões” com em-


penho e criatividade? Soube justificar e explicar o trabalho em momentos de apreciação
coletiva?
- COOPERAÇÃO: Respeitou seus colegas e o professor, escutando suas ideias e opiniões,
contribuindo para criar um ambiente legal durante as aulas e nos ensaios em grupo?
- JOGO: Respeitou as regras dos jogos e exercícios propostos, contribuindo para o seu
desenvolvimento? Em momentos de apreciação coletiva, soube fazer a transposição dos
elementos trabalhados nos jogos para a cena?
- AUTONOMIA CRIATIVA: Propôs ideias (oralmente ou por meio de cenas), contribuin-
do ativamente para a elaboração dos exercícios?
- POSTURA COMO PLATEIA: Respeitou os outros atores e suas propostas quando estava
assistindo as cenas como plateia? Soube elaborar comentários construtivos sobre as cenas
vistas?
- EMPENHO: Reconheceu possíveis dificuldades ou timidez, trabalhando em conjunto
com os colegas e o professor para encontrar soluções para superá-las?
- ELEMENTOS DA CENA: Elaborou cenas levando em conta elementos já aprendidos
anteriormente (lugar; acontecimento; trajetória; personagem; postura em cena e enquanto
plateia; uso do espaço)?
- COMUNICAÇÃO: Conseguiu contar de maneira clara a história proposta pelo grupo
pela apresentação das cenas?

Apesar de implementado há seis anos, esse sistema de avaliação está sendo constantemente revisto
e modificado, a partir da experiência prática e da reflexão junto à coordenação de área e aos outros profes-
sores de Arte. O instrumento foi criado para que os objetivos de aprendizagem fiquem mais claros para os
alunos-atores. Expor os critérios de avaliação no início do trimestre fornece elementos para que o fazer seja
discutido à luz de referências objetivas. As metas estabelecidas em comum acordo com o professor fazem
com que o objetivo do aluno-ator seja de uma conquista pessoal dentro da linguagem teatral. Além disso,
colocados como indicadores de aprendizagem, itens como “postura”, “autonomia” e “jogo” evidenciam o
processo do aluno-ator como conteúdo teatral a ser avaliado

336
Avaliação em teatro feita por uma aluna-atriz em 2017.

A prática protocolar como disparadora da avaliação em teatro

Levando em conta as necessidades de registro e reflexão do processo teatral por parte dos alunos-
-atores, e por minha parte, como docente, pareceu-me potente a inserção da confecção de um “Livro de Im-
pressões” para cada turma, no qual as aulas fossem registradas. Esta ideia surgiu a partir de alguns princípios
que regem a prática de confecções de protocolos nos processos artístico-pedagógicos.

Os protocolos (em teatro) podem ser considerados registros feitos por participantes de um processo
teatral, a respeito do encontro anterior, que são expostos no encontro subsequente. A maneira de confecção e
exposição são múltiplas e dependem do contexto. O protocolo permite a manifestação por “meio de materia-
lidades discursivas”, ausentes em uma dinâmica eminentemente prática e corporal, que é o processo teatral.

Ao disponibilizar seus corpos para a aprendizagem em arte, os alunos de teatro


acabam não fazendo anotações em seus cadernos, cópias do quadro-negro, cola-
gens e tarefas, como na maioria das disciplinas que integram as práticas escolari-
zadas. Os protocolos constituem-se, desse modo, uma metodologia utilizada pelo
professor para que os alunos possam se manifestar por meio de materialidades
discursivas sobre suas aulas. (GONÇALVES, 2013, p. 106)

Mas o protocolo extrapola a questão meramente formal do registro (esta também importante para a
consolidação do conhecimento) e é necessário examinar suas outras perspectivas. Ingrid Dormien Koudela
foi precursora na prática de confecção de protocolos dentro do contexto do ensino do teatro e em diversos
outros processos artístico-pedagógicos. Sua reflexão sobre a prática protocolar passa por sua pesquisa verti-
cal sobre as peças didáticas, de Bertolt Brecht:

Koudela (2001) publica sua reflexão sobre o tema, “Um protocolo dos protocolos”, afir-
mando que a reflexão sobre a prática protocolar remete aos escritos solicitados por Brecht
aos alunos da Escola Karl Marx, em Neukoln, que vivenciaram um experimento a partir

337
do texto “Aquele que diz sim”, datado de 1929. A partir desses excertos, Brecht escreve
“Aquele que diz não” e propõe que os dois textos sejam sempre apresentados juntos. Como
instrumento de trabalho com a peça didática, a autora expressa que tais protocolos assu-
mem caráter propulsor ao experimento, unindo reflexão e avaliação e, portanto, assumin-
do o caráter dialético essencial ao processo com a peça didática. (CONCÍLIO, 2013, p. 4)

Esta prática, conforme proposta por Brecht, une a questão do “processo” e da “obra”, estabelecendo
uma questão pedagógica dialética dentro da criação teatral, em que o processo é encarado como objeto
estético. O protocolo, neste caso, serve como material base para o experimento cênico, unindo, portanto,
“reflexão e avaliação”. Procedimento que cai “como uma luva” para as práticas em sala de aula, já que tem
como objetivo unir reflexão, avaliação e processo, dentro de parâmetros fornecidos pelo próprio teatro. O
protocolo, portanto, não é uma questão meramente de registro. Ele efetiva seu lugar dentro da criação e da
experiência teatral.

O protocolo possibilita maior delimitação do foco de investigação em cada momento da


aprendizagem. Eficiente instrumento na gestão das questões intragrupais, o protocolo
revelou-se um instrumento radicalmente democrático, ao permitir a articulação de um
método que busca a prática da teoria e a teoria da prática. (KOUDELA, 2001, p. 92).

Além da questão da avaliação como reflexão e ação, inserida no processo como elemento propulsor,
Koudela coloca o protocolo como “instrumento de gestão das questões intragrupais”, ressaltando o protoco-
lo como uma prática relacional. O protocolo se efetiva com a reflexão do participante em sua exposição para
o grupo, criando um novo sentido para a experiência: o coletivo.

O registro se insere no ensino do teatro na educação básica como uma imagem produzida por um
determinado participante do processo e “lida” pelo coletivo. O seu “fazer” também se torna coletivo e a sua
“contextualização” se insere na própria dinâmica da aula, sendo que o contexto também é elaborado coleti-
vamente, a partir das múltiplas experiências individuais.

O registro da aula pode ter inúmeros formatos, assim como sua maneira de ser socializado. A mul-
tiplicidade de formatos favorece um dos objetivos desse registro, que é abarcar a multiplicidade de visões e
experiências, de sensibilidades provocadas pela vivência teatral, permitindo ir além do formato “tradicio-
nal”, como um relatório ou um diário.

A função dos protocolos teatrais verbo-visuais220 é, portanto, direcionada muito mais ao


mundo dos sentidos que ecoam a partir de uma prática teatral do que à contenção dessa
prática em um registro de aula (como se isso fosse possível). (GONÇALVES, 2013 p.112)

A avaliação e reflexão são integradas ao processo artístico-pedagógico, sendo elementos propul-


sores da criação. O registro, bem como seu compartilhamento, configura-se como elemento de construção
teatral e, portanto, assume função estética.

As questões que envolvem o protocolo tornam-se mais complexas se considerarmos que


ele não aspira ser tão-somente uma epistemologia do processo. Enquanto instrumento

220. “A criação da nomenclatura protocolos teatrais verbo-visuais faz referência a materialidades enunciativas advindas das aulas de teatro que
contenham, em seu escopo, as dimensões verbal e visual de forma não dissociada. Na complementação mútua entre essas dimensões, o enunciado
concreto ganha uma gama aberta de sentidos, ultrapassando os limites dos outros formatos utilizados até então como protocolos de aula: relatórios,
diários etc.”. (GONÇALVES, 2013, p. 121).

338
de avaliação, o protocolo tem sem dúvida a função de registro, assumindo não raramente
o caráter de depoimento. Não reside aí, porém, a sua função mais nobre. O aprendizado
estético é momento integrador da experiência. A transposição simbólica da experiência
assume, no objeto estético, a qualidade de uma nova experiência. As formas simbólicas
compartilhadas no trabalho alegre anunciam novas percepções, a partir da construção da
forma artística. (KOUDELA, 2017, p. 4)

Como construção coletiva de conhecimento, e como objeto estético, o “Livro de Impressões” se


efetiva na relação com o outro, em um processo de alteridade que inaugura novas experiências. Além
disso, a coletivização do registro traz importantes elementos em direção a formação do aluno-ator como
tradutor e mediador de arte, e contribui para a formação de um discurso (que reflete seu conhecimento)
sobre o seu próprio fazer em teatro, consolidando um olhar estético pelo qual o relacionamento com o
“mundo” se faz poético.

O livro de impressões

Na proposta inicial – que levou em conta os conceitos colocados neste texto – feita no início de
2013, o “protocolo” assumiu o nome de “Livro de Impressões”, já que o objetivo era o registro das impres-
sões dos alunos-atores para a construção de um livro, de um material “concreto”: o exercício de reflexão da
experiência por meio de sua materialização.

Assim, cada turma recebeu, no início do ano letivo, um livro de desenhos (um sketch-book), de
tamanho grande (A3), com folhas brancas e sem pauta. Cada semana um aluno-ator diferente se responsa-
bilizava por levar o livro para casa e registrar, em duas folhas, as “impressões” que teve da aula anterior. A
instrução era que eles registrem da maneira que quiserem, usando os recursos que acharem mais interessan-
tes, como texto (escrito de diversas maneiras), pintura, colagem, recortes, desenhos, fotos (que podem ser
tiradas com câmera ou celular durante a aula), entre outros.

Os alunos-atores, principalmente os primeiros a levar o livro, sempre ficam em dúvida do que re-
gistrar, ou de como devem ser feitos os registros. Explico que eles podem escolher um jogo ou uma cena,
por exemplo, que acharam mais legal ou importante, e não precisam “resumir” a aula inteira. Também não
cobro perfeição, e sim dedicação. No ano de 2013, estas explicações tiveram que ser mais detalhadas; já no
ano de 2104, durante as instruções iniciais, eu usei os livros do ano anterior como exemplo, o que deixou os
“procedimentos” muito mais claros para os alunos-atores. Mas é interessante que, durante o processo, eles
estabeleçam uma identidade para o próprio livro e, pela prática, esclareçam a dúvida de como fazê-lo. No fi-
nal do ano, cada livro tem características próprias de acordo com cada turma, que privilegiou determinados
conteúdos ou formas de registrá-los.

O trabalho já foi realizado com trinta e duas turmas e resultou, portanto, em trinta e dois livros
de impressão diferentes, que, se entendidos como um diário do processo, configuram um retrato que cada
grupo fez da própria trajetória. Estabelecem, em seu conjunto, um panorama das multiplicidades de experi-
ências vivenciadas durante estes cinco anos. Assim como cada livro abarca a multiplicidade de cada turma.

Nos interessa aqui também a reflexão coletiva sobre o que foi produzido, verificar a capacidade do
aluno-ator de verbalizar as suas escolhas e construir um discurso a partir da tradução da prática. Formalizar
o que foi produzido através de um exercício de mediação, onde o sentido só se completa na relação com o
outro, exatamente como na relação entre atuante e público.

339
Pensando nisto, e para garantir um espaço para este exercício de mediação, no começo de cada aula,
o aluno-ator que fez o registro tem cerca de dez minutos para, tomando como suporte o livro, falar sobre o
que foi realizado na aula anterior. Este aluno-ator tem liberdade para se comunicar do jeito que quiser. Seja
em roda, seja na frente da turma como uma “aula tradicional”, seja dramatizando alguma passagem, seja do
jeito que for.

Esta prática, portanto, tem como uma de suas funções “concretizar a vivência dos alunos para pro-
mover reflexão sobre os conteúdos experienciados, e proporcionar um maior espaço para o aluno-ator re-
fletir sobre o próprio fazer”, já que “O protocolo tem a função de promover a avaliação reflexiva individual
no momento da escrita e coletiva no momento do debate”. (BOY, 2013, p. 62).

Para além do teatro, os livros mostram a relação que existe entre os membros de cada grupo, trazida
a tona pelo modo como cada um retrata os colegas. Afinal, conseguimos saber o lugar que ocupamos em
determinado coletivo pela visão que os outros têm de nós. O professor também é infinitamente retratado,
e se torna um personagem recorrente, como se cada livro narrasse uma história (mas será que não narra
mesmo?). No nosso caso, a dinâmica do grupo é intermediada pelo exercício da linguagem teatral, por meio
da performance da experiência registrada, que já traz em si uma ética da coletividade.

Livro de impressões, 2016

Livro de impressões, 2013

340
Referências Bibliográficas
BOY, Tânia Cristina dos Santos. Protocolo: um gênero KOUDELA, Ingrid. Brecht: um jogo de aprendizagem. São
discursivo na pedagogia de leitura e escrita do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1991.
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versitária”. In: Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discur- prelo. 2017.
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IAVELBERG, Rosa. Arte/educação modernista e pós-mo- grid Dormien Koudela. São Paulo: Perspectiva, 2006.
dernista: fluxos na sala de aula. Porto Alegre: penso, 2017.

341
ABORDAGENS DIVERSIFICADAS
NA EDUCAÇÃO MUSICAL INFANTIL:
UMA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO
NA ESCOLA BÁSICA
Messias Aroldo Araújo Muniz Júnior (UFPE)
Rodrigo Lopes Silva Padrão (UFPE)

Introdução

O presente texto apresenta as experiências docentes desenvolvidas no curso de Licenciatura em Música


da UFPE durante a disciplina Estágio Curricular Supervisionado em Ensino da Música 4. Durante o período
de 05/09/2017 a 14/11/2017, ministramos aulas de música, numa escola pública, localizada em Recife-PE, na
modalidade de Educação Infantil. As aulas ocorreram as terças-feiras das 7h50min as 08h20min com 12 alunos
do Grupo 4 (G4), na faixa etária de 4 anos e das 8h30min às 9h com 7 alunos do Grupo 5(G5), na idade de 5
anos. Foram propostas 10 horas/aula para cada grupo. Apresentamos a seguir as reflexões teóricas desenvol-
vidas ao longo do trabalho e os momentos mais significativos da proposta pedagógica e experiência docente.

Por que vamos ensinar música na escola básica?

Questões acerca do ensino de música na escola básica têm sido amplamente debatidas sob diferen-
tes perspectivas na área de educação musical nas últimas décadas. Estudos e pesquisas intensificaram-se
desde a aprovação da Lei 11.769, de agosto de 2008, com o intuito de discutir os conteúdos, estratégias,
materiais didáticos e políticas de formação de professores para prática pedagógica musical na escola básica.
Essa intensificação, demonstra a preocupação dos profissionais da área de educação musical em uma busca
da construção de propostas consistentes e coerentes com a formação dos estudantes da escola básica, no
contexto da educação brasileira. Desta forma, buscando responder “por que vamos ensinar música na escola
básica?” Apresentamos algumas reflexões sobre o tema, a partir das contribuições de Kater (2012), Queiroz
(2014), Benvenuto, Albuquerque e Rogério (2012) e Couto e Santos (2009).

Queiroz e Kater trazem reflexões sobre a importância do fenômeno musical para formação humana
e a sociedade. Segundo Queiroz (2014), a música é um fenômeno humano e uma linguagem ao mesmo tem-
po universal e singular. Universal no sentido da sua prática e como um veículo de comunicação, utilizado
por diversas culturas para expressar sentidos, significados, representações sociais e outros aspectos. Singular
na forma de organização e apresentação, na qual, cada cultura molda e atribui seus valores e significados
específicos. Desta forma, a expressão musical relaciona-se a fatores significativos da identidade de uma
pessoa, grupo ou cultura na sociedade. Assim, podemos apontar inúmeras contribuições educacionais da
música para a formação do indivíduo, pois a música,

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é um importante patrimônio cultural imaterial que expressa aspectos simbólicos, va-
lores, significados e características diversas de um grupo, de um contexto cultural,
de uma sociedade. Portanto, a música retrata aspectos sociais, determina comporta-
mentos e valores humanos, é determinada por condutas e significados da cultura e se
interrelaciona ao que as pessoas que a praticam pensam, vivem, sentem e expressam.
(QUEIROZ, 2014, p. 1).

Queiroz também ressalta a relação da música na vida das pessoas, como meio de evocar sentimen-
tos, lugares, cheiros, medos, alegrias e sua presença nos diversos tipos de festividades. Além disso, evidencia
a importância do fenômeno musical para o desenvolvimento do funcionamento cerebral e na formação de
comportamentos sociais. Na perspectiva de Kater, o fenômeno musical é uma

necessidade de expressão humana, intensa e profunda, que faz parte não de uma época,
moda ou classe social particular; mas que acompanha toda a humanidade, desde os seus
primórdios, em qualquer ponto do planeta, em todas as culturas, ao longo de todas as
fases de seu desenvolvimento. (KATER, 2012, p. 42).

Kater reflete sobre a importância da compreensão do papel da música na formação humana e pro-
põe perspectivas do que deve ser feito para que a música esteja presente em vários espaços e garanta o acesso
democrático e o direito universal de todos os cidadãos, crianças e jovens inclusos. Segundo o autor, com a
implementação da Lei 11.769/2008, na qual, justifica a necessidade e utilidade do fazer musical na escola, é
preciso que a educação musical seja pensada de forma mais abrangente. “[…] a qual música nos referimos;
que estilos, gêneros, formas de manifestação temos em mente? Como, de fato, ela ou elas serão oferecidas,
abordadas, tratadas?” (KATER, 2012, p. 42).

Benvenuto, Albuquerque e Rogério (2012), abordam a importância da música para a educação dos
sentidos, considerando o desenvolvimento de aspectos como o lado emocional, expressivo e os sentidos dos
estudantes, focando a formação individual e coletiva do indivíduo. Segundo os autores:

[…] a compreensão e o entendimento humano advém da complexidade da união entre


a percepção do que está absorvido pelos sentidos somados à tentativa de construção in-
telectual que envolve determinada experiência, ou seja, estas relações são indissociáveis,
caminham juntas na interpretação dos seres humanos a respeito do mundo que está a sua
volta. (BENVENUTO; ALBUQUERQUE; ROGÉRIO, 2012, p. 236).

Couto e Santos detém-se nos motivos pelos quais a sociedade brasileira tem ideias equivocadas
sobre a educação musical, principalmente o ensino de música na escola. Segundo os autores, o principal
deles é a inexistência da tradição de se ensinar música na escola regular. Através das ideias de autores como
Swanwick, Penna, Arroyo, Hentschke, dentre outros, os autores buscam detectar os equívocos existentes
sobre o que é o ensino de música na escola e fundamentar sua importância, com o intuito de que a chegada
da música como conteúdo obrigatório, seja algo significativo e muito bem fundamentado. Couto e Santos
concebem a educação musical a partir de 4 categorias: valor estético, onde duas vertentes são mencionadas
para o estudo da experiência estética, o subjetivo e o objetivo; valor social, não limitando o seu significado,
mas abrangendo-o aos diversos grupos sociais; valor psicológico, que está ligado ao desenvolvimento da
cognição e percepção musicais; valor tradicional, onde é mencionada a “educação musical abrangente”, a que
transcende a concepção tradicional do ensino de música.

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Por fim, a perspectiva músico-pedagógica da qual partimos para propor as atividades foi a do pes-
quisador e educador musical Keith Swanwick, abordadas no artigo de Cecília Cavalieri França e Swanwick
(2002). Trata-se do modelo C(L)A(S)P que propõe a composição, a apreciação e a performance como meios
de promover uma educação musical mais abrangente. Para os autores esses três elementos caracterizam-se
como centrais do fazer musical, e por isso seriam eles os meios pelos quais se pode ter envolvimento direto
com a música. De acordo com o tempo dedicado as aulas e considerando que essa situação seria um primei-
ro contato sistematizado com a educação musical, por parte dos alunos, elaboramos aulas que promovessem
um momento de apreciação musical ativa, em que além da escuta, os alunos pudessem participar de jogos,
execuções com instrumentos, cantos, interação com equipamentos tecnológicos221 e outros, buscando de-
senvolver a sensibilidade musical através da escuta e reflexão.

Desenvolvimento da prática em sala de aula

No contexto em que estagiamos fomos supervisionados por professores pedagogos, e elaboramos


um Plano de Ensino a partir do qual desenvolvemos as atividades propostas. O objetivo geral caracterizou-
-se por vivenciar aspectos musicais através de atividades de musicalização, desenvolvendo a apreciação e a
sensibilidade musical. Os objetivos específicos foram: Compreender o conceito das quatro propriedades do
som (altura, duração, intensidade e timbre), através de comparações com figuras concretas que estejam rela-
cionadas com essas propriedades; Desenvolver a prática de cantar em grupo; Reconhecer a métrica através
dos tempos fortes e fracos; Trabalhar a musicalidade do corpo através dos gestos sonoros; Conhecer alguns
instrumentos de orquestra, banda, e de culturas primitivas. As aulas foram planejadas de forma sequenciada
e acumulativa. Cada aula retomava conteúdos vivenciados anteriormente e a maioria das vezes em novas
situações ou atividades. Buscamos abordar os mesmos conteúdos para as duas turmas de alunos, fazendo as
adaptações necessárias conforme as respostas dos alunos.

No primeiro dia de aula, fizemos uma dinâmica de apresentação tanto com o intuito de conhecer os
alunos, como também de trabalhar uma das propriedades do som, a intensidade. Cada aluno deveria dizer
seu nome e logo após todos os outros repetiriam batendo palmas na sílaba tônica, mais forte, ou mais suave,
dependendo da indicação dada pelo professor. Foram também apresentados alguns instrumentos musicais
como violão, contrabaixo, flauta, piano, tambor, pandeiro, dentre outros, por meios de figuras e vídeos da
série “Passarinho que som é esse?” do Castelo Rá Tim Bum222. Ambas as atividades tiveram sucesso. Alguns
alunos conheciam mais alguns instrumentos que outros, mas de forma geral, se mostram muito curiosos ao
ouvir os sons e até escolhiam os seus instrumentos preferidos.

Figura 1 - Imagens utilizadas para ilustrar os instrumentos musicais.

221. Tecnologias utilizadas: notebook, celular, caixa de som bluetooth, controlador MIDI Korg Pad Control.
222. Link para acessar o vídeo: https://youtu.be/-t8avEob1gU

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Na segunda semana levamos uma atividade que envolvia recursos tecnológicos como um computador
e um controlador MIDI223. Havia várias figuras ilustradas com o rosto de uma criança e um número associado
a cada uma delas. No controlador, cada botão foi enumerado com um número que correspondia ao instru-
mento que uma das crianças das figuras gostava de tocar. Cada um dos alunos escolhia a figura preferida e
acionavam o botão com o número correspondente. Então ouvíamos o som do instrumento que a criança da
imagem tocava. A ideia principal era descobrir qual era aquele instrumento. Além disso, compomos e levamos
para a sala uma música que falava de diferente instrumentos musicais. Ao cantá-la, quando era mencionado o
nome do pandeiro, por exemplo, dávamos a indicação de como o instrumento é geralmente tocado. No caso
do pandeiro, os alunos batiam uma mão sobre a outra, executando um ritmo proposto por nós.

Figura 2 – Controlador MIDI e figuras ilustradas.

Na terceira semana distribuímos alguns copos e propomos a brincadeira com a música “Escravos de
Jó”. A ideia era trabalhar o andamento através da brincadeira. A atividade funcionou melhor com o Grupo 5,
pois a aula com a turma Grupo 4 foi realizada no pátio, devido a sala encontrar-se inutilizável naquele dia. A
dinâmica da atividade não foi tão boa porque os alunos, no pátio, ficaram dispersos, não conseguindo manter
o andamento até o final. Propomos também uma música para a prática de canto em grupo. A música era tam-
bém uma espécie de jogo, em que cada estrofe dizia como os alunos deveriam andar. Essa sim foi um sucesso.

Na quarta semana apresentamos um dado que possuía uma grafia musical adaptada com figuras
que representavam execuções que criamos. O Pé, por exemplo, poderia significar uma alternância de duas
batidas de mesma duração em um tempo com os dois pés. Dois traços finos representava a mesma divisão,
mas com as mãos. Já um traço mais grosso, representava uma alternância de palmas com tempos mais pro-
longados. Havia ainda um rosto em um dos lados do dado com a boca fechada, representando o silêncio.
A grafia foi apresentada aos alunos e logo após, fizemos uma atividade onde um dos alunos jogava o dado,
enquanto os outros em roda executavam as figuras de acordo com o que foi proposto.

Figura 3 – Dado com figuras musicais adaptadas.

223. MIDI - Musical Instrument Digital Interface ( Interface digital de instrumentos musicais ).

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Na quinta semana preparamos uma história intitulada “A floresta encantada”, de nossa autoria. A
história explorava os sons dos animais grandes e pequenos, das árvores, das folhas, entre outros. O obje-
tivo era trabalhar a sensibilidade quanto aos diferentes sons produzidos na natureza, suas intensidades e
durações. Num primeiro momento a história foi apenas contada e os sons foram executados pelo professor.
Depois, os alunos foram divididos em dois grupos. O primeiro executou os sons referentes aos animais me-
nores e o segundo aos maiores. Ainda nesse mesmo dia, gravamos os sons reproduzidos pelas crianças com
a nossa orientação, de acordo com as propriedades do som e logo após ouvíamos, observando as diferenças
de timbres, intensidade, durações e altura.

Na sexta semana trabalhamos com duas atividades. A primeira foi a “bom dia”. Logo que chegamos
na sala, organizamos a turma em uma roda. Todos os alunos deveriam fechar os olhos e apenas o aluno indi-
cado pelo professor falaria “bom dia”. Os outros alunos, com os olhos fechados deveriam identificar o aluno
indicado apenas pelo timbre da voz. A segunda foi uma atividade baseada em gráficos. Foram desenhados
alguns gráficos no quadro que indicavam crescendo, decrescendo e estabilidade do som, em que os alunos
em grupo executavam o som de acordo com o gráfico.

Na sétima semana apresentamos duas propostas que adaptamos de atividades do YouTube. A pri-
meira era a “Eco-Espelho”224 na qual tudo o que o professor fazia os alunos deveriam repetir. Inicialmente
começamos com palavras, tudo que dizíamos eles repetiam. Depois fizemos padrões rítmicos com gestos
sonoros e os alunos também repetiam. A segunda foi a “Magia das Mãos”225 . Consistia em marcar o pulso
de uma determinada música, com as mãos, das diversas formas indicadas pelo professor. Além dessas, leva-
mos uma mala cheia de objetos e também instrumentos para apresentar a diversidade sonora do dia-a-dia.
Em um primeiro momento tocamos e exploramos o som de todos os objetos. Depois fizemos um jogo em
que todos os alunos fecharam os olhos e descobriam qual objeto estava soando apenas pelo som que execu-
távamos.

Na oitava semana propomos uma atividade pensando no canto em grupo. Levamos a música “Era
uma casa” e a ensinamos com gestos. Foi criado um gesto para as palavras e expressões da música com o
intuito de manter a concentração dos alunos. Logo que a música foi aprendida e todos estavam cantando
e fazendo os gestos, distribuímos chocalhos feitos de garrafinhas pets e cantamos a música com o acom-
panhamento de todos com os chocalhos, inicialmente no pulso e depois fazendo algumas variações. Além
disso, fizemos um jogo com uma música onde os chocalhos eram transformados num outro objeto através
da imaginação, como um avião, por exemplo.

Figura 4 – Chocalhos.

224. Link para acessar o vídeo: https://youtu.be/YB4Vy3W0qqI


225. Link para acessar o vídeo: https://youtu.be/3_Sa3zhPWg8

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Na nona semana fizemos algumas revisões, a começar pela música “Era uma casa”. A outra re-
visão estava relacionada aos instrumentos apresentados nas primeiras aulas. Levamos uma música que
apresentava diferentes sons com as mais diversas características sonoras e então comentamos sobre qual
som era mais “grosso” (grave), ou mais “fino” (agudo), por exemplo. Em seguida, tornamos a apresentar
as figuras com os instrumentos trabalhados nas primeiras aulas, fazendo comparações entre eles e os sons
ouvidos, em termos de quais instrumentos soavam mais graves, agudos, o que tinha o som mais longo,
ou mais curto.

Na última semana trabalhamos a música “Alecrim dourado”, uma versão em ritmo de bossa-nova.
Assim como a música “Era uma casa”, criamos um gestual para essa. O gestual foi adaptado de acordo com
a letra, em que os gestos representavam as palavras cantadas. Primeiro ensinamos a letra com os gestos. Em
seguida, apresentamos algumas cartas com desenhos de alimentos que possuem o nome com uma e duas
sílabas: mel e pera. Distribuímos chocalhos e os alunos tocavam de acordo com o ritmo da figura indicada:
mel representava o pulso e pera a subdivisão.

Considerações finais: uma breve reflexão da experiência



São muitos os desafios a serem superados para que o ensino de música na escola regular seja con-
solidado. Não basta apenas a aprovação e legalização por parte de uma lei, ou um currículo bem elaborado.
Trata-se de um trabalho de conscientização a ser feito em relação à sociedade, pois música ainda é conside-
rada por muitos um luxo, ou apenas entretenimento. Uma vez desconhecida sua importância na formação
de um indivíduo, sua presença na escola não é tão valorizada como deveria ser. Os autores mencionados
neste trabalho discutem desde a importância da música na sociedade, como é o caso de Queiroz (2014),
Couto e Santos (2009), a necessidade de uma abordagem criativa da educação musical e que alcance os mais
diversos espaços educacionais, como menciona Kater (2012), e até sua importância na educação dos senti-
dos relacionados ao desenvolvimento dos aspectos emocionais e expressivos, como é o caso de Benvenuto,
Albuquerque e Rogério (2012).

Para nós, foi uma ótima oportunidade para observar, refletir e explorar formas diversificadas de
ensino de música na educação infantil, enquanto docentes em formação. Desta vivência, concluímos que
existem muitos desafios relacionados as compreensões das funções e importância da educação musical na
escola básica. Os materiais utilizados durante as aulas foram confeccionados por nós, exigindo esforço,
dedicação e adequação à realidade atendida, mostrando que é possível a mobilização inicial, por parte dos
educadores, para que a música se aproprie cada vez mais do seu espaço no contexto escolar.

A experiência aqui relatada mostra que existe uma grande diversidade de formas de trabalhar a
música na escola básica e o quanto pode ser enriquecedora a sua presença na educação infantil. Portanto
cabe aos educadores musicais o desafio de buscar abordagens que evidenciem a importância da educação
musical na formação dos alunos, tanto no que diz respeito ao conhecimento musical em si, como também
ao desenvolvimento do processo cognitivo, o trabalho em grupo, a descoberta de novas ideais, a criação, a
apreciação, dentre outros.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTO, Ana Carolina Nunes; SANTOS, Israel Rodri- reflexões. In: JORDÃO, Gisele et al. (coord.). A música na
gues Souza. Por que vamos ensinar Música na escola? escola. São Paulo: Allucci e Associados Comunicações,
Reflexões sobre conceitos, funções e valores da Educação 2012, p. 42-45.
Musical Escolar. Opus, Goiânia, v. 15, n. 1, p. 110-125,
QUEIROZ, Luís Ricardo. Música na escola. Boletim
jun. 2009.
Arte na Escola, n. 72, mar/abr/mai 2014. Disponível
BENVENUTO, João Emanoel Ancelmo; ALBUQUER- em: <http://artenaescola.org.br/boletim/materia.
QUE, Luiz Botelho; ROGÉRIO, Pedro. Música para a php?id=72726>.
formação humana: reflexões sobre a importância da
FRANÇA, Cecília Cavalieri; SWANWICK, Keith. Com-
educação musical no contexto escolar. In: ROGÉRIO,
posição, apreciação e performance na educação musical:
Pedro; ALBUQUERQUE, Luiz Botelho (Orgs.) Educação
teoria, pesquisa e prática. Em Pauta, v.13, n.21. Porto Ale-
musical em todos os sentidos. Fortaleza: Edições UFC,
gre: UFRGS, 2002.p.5-41.
2012, p. 225-244.
KATER, Carlos. “Por que música na escola?”: algumas

348
CORAL VOZES DO SERTÃO:
O CANTO CORAL COMO LUGAR
DE RESISTÊNCIA COTIDIANA
Pablo de Souza Barros - IF SERTÃO PE

Alan Silva Barbosa - IF SERTÃO PE

INTRODUÇÃO

No Brasil, o canto coral instaurou-se a partir da chegada dos colonizadores, sofrendo influências
e criando novas formas musicais. O canto coral tem seus primórdios na catequização dos índios pelos je-
suítas, que lhes ensinavam o canto para ser executado no culto religioso. Segundo Fonterrada (2005), os
portugueses formavam pequenos coros de índios e lhes ensinavam canto em português e latim. Assim, no
período colonial a música vinda da Europa não sofria influência indígena, pois os jesuítas impunham o re-
pertório europeu da época sem considerar as manifestações culturais dos índios. Contudo, gradativamente
características da cultura indígena e africana passaram a influenciar o cenário musical brasileiro que estava
emergindo.

A música faz parte da nossa cultura, está presente na história da humanidade e nos diferentes gru-
pos, independente de suas crenças, etnias e costumes. Uma linguagem universal, com poder de influenciar,
alegrar, transmitir sentimentos além de contagiar o ser em toda sua complexidade. A música favorece o
desenvolvimento do indivíduo, pois ao requerer toda participação do mesmo nos respectivos aspectos: afe-
tivo, sensorial, mental, físico e espiritual, a iniciação musical contribui para o crescimento de todas essas
faculdades e, ao harmonizá-las entre si, favorece o desenvolvimento da personalidade humana. A linguagem
musical é a organização de sons estruturados que estabelece relações e gera significados para o indivíduo,
possui e desempenha um papel essencial na comunicação como forma de expressão dos sentimentos mais
profundos e de percepção da realidade. Ela é compreendida de forma mais ampla como processo humano
presente em todos os tipos de relações, sejam elas interpessoais ou sociais.

No âmbito educacional – considerada a educação como instrumento desenvolvimento do ser hu-


mano, tanto nos ambientes familiar e escolar quanto em outros grupamentos sociais – pode-se afirmar, sem
sombra de dúvida, que a atividade coral desenvolvida em qualquer comunidade brasileira, está em sintonia
com os termos do Projeto de Lei nº 2.732/2008, que acrescentou ao texto da Lei de Diretrizes e Bases da
educação (Lei nº 9.394/96) a obrigatoriedade do ensino de música nas escolas públicas. A proposito da
importância dessa alteração instituída no contexto legal – onde o ensino da música passa a ser componente
curricular do ensino de artes na educação básica (ensino fundamental e médio) - merece destaque o texto
da justificação formulada pela Senadora Roseana Sarney, quando da apresentação do projeto de Lei ao Se-

349
nado. Trata-se de texto extraído do manifesto “Quero Educação Musical na Escola”, concebido pelo Grupo
de Apoio Parlamentar Pró-música:

A Música é uma prática social, produzida e vivida por pessoas, constituindo instância pri-
vilegiada de socialização, onde é possível exercitar as capacidades de ouvir, compreender
e respeitar o outro. Estudos e pesquisas mostram que a aprendizagem musical contribui
para o desenvolvimento cognitivo, psicomotor, emocional e afetivo e, principalmente,
para a construção de valores pessoais e sociais de crianças, jovens e adultos. A educação
musical escolar não visa a formação do músico profissional, mas o acesso à compreensão
da diversidade de práticas e de manifestações musicais da nossa cultura bem como de
culturas mais distantes. A Música constitui-se como campo específico de atuação profis-
sional. Pelo seu potencial para desenvolver diferentes capacidades mentais, motoras, afe-
tivas, sociais e culturais de crianças, jovens e adultos, a música se configura como veículo
privilegiado para se alcançar as finalidades almejadas pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB).

Nas mais variadas culturas e em diferentes épocas da história da humanidade, a música - disciplina
na qual está inserido o canto - sempre foi considerada um dos segmentos nobres da educação. Além de ser
instrumento para o desenvolvimento cognitivo do indivíduo, deixando-o com maior habilidade para apren-
dizagem em outras áreas, a prática da música faz com que se desenvolvam as diferentes dimensões do ser,
levando a pessoa a um positivo sentimento de autorrealização e de satisfação pessoal. Estudos científicos
têm comprovado a importância da educação musical no desenvolvimento pedagógico e sua relevância em
relação a outras áreas cognitivas do ser (percepção, memória, juízo e/ou raciocínio), levando a constatação
de que a música deve ser incluída em qualquer programa educacional, não apenas escolar, mas também
comunitário, por sua influência na vida dos indivíduos nos aspectos físicos, intelectual, moral e afetivo.
Através da música, um povo mostra sua cultura, sua educação e seu gosto estético, elevam sua autoestima
e seu senso de autorrealização. O canto é um meio de extravasar os sentimentos, de expressar a alma. Ele é
uma forma importante de realizar a comunicação no convívio entre as pessoas. É o código que o ser humano
criou para interagir com o outro e manifestar suas emoções. Quando todas as tentativas de contato com seu
igual se esgotam, o canto surge para unir e transformar. A prática do canto em conjunto se constitui, por
si só, em um dos meios mais eficazes para se realizar a educação não apenas musical mas também a social.

Nanni (2000), afirma que o processo de tornar-se membro de uma coletividade e a contínua adap-
tação que este ato requer, abarca fenômenos, que tradicionalmente, pertencem à psicologia e à sociologia.
Para o autor este dito fenômeno “socialização”, não pode ser fechado dentro dos limites disciplinares. A
música é uma forma de comunicação humana que por si só justifica sua presença no contexto educacional
e no cotidiano de um modo geral. A integração, interação e comunicação conferem carácter significativo à
linguagem musical e, as atividades com o canto coral integram plenamente os participantes que aprendem
a viver em grupo. Esta vivência lhes dá a possibilidade de conhecer seus limites, se auto avaliarem, se disci-
plinarem e desfrutarem das sensações despertadas através desta linguagem. As atividades desenvolvidas no
canto coral possibilita aos envolvidos um exercício reflexivo sobre sua percepção de mundo, fazendo com
que ele interaja coletivamente com o meio circundante de forma significativa. A música vocal também es-
timula as manifestações de sentimentos saudáveis no que diz respeito aos valores culturais e morais, tendo
consequências diretas em seu modo de ser, sentir e agir, elevando a autoestima.

Este relato reflexivo de experiência aborda a contribuição da música para o indivíduo por meio do
canto coral tendo como base o relato da experiência vivenciada por quatro coralistas que ressaltam através de
seus textos a importância musical, social, cultural e artística a partir das atividades do Coro Vozes do Sertão.

350
CORO VOZES DO SERTÃO – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Fundado em maio de 2012, o Coro Vozes do Sertão – grupo vocal misto constituído por cantores
das cidades de Petrolina e Juazeiro – BA, tem sua sede no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnolo-
gia do Sertão Pernambucano – IF SERTÃO/PE, Campus Petrolina. Com a criação do Curso de Licenciatura
em Música, o que trouxe à região os professores específicos das mais diversas áreas musicais, incluindo um
professor de canto/voz com prática em regência coral. O projeto do coro foi idealizado com a finalidade de
possibilitar às comunidades internas e externas ao IF SERTÃO/PE a vivência com a música, com o canto/voz
e a performance. O Coro Vozes do Sertão desenvolve atividades de integração entre a instituição e as cidades
circunvizinhas. É também o único trabalho desenvolvido na área vocal na cidade de Petrolina, que atende
pessoas das mais variadas etnias, faixas etárias e crenças, com ou sem experiência artística e que desejam
vivenciar o contato com a música, com o palco e seus processos artísticos.

Com grande propriedade, assim se expressou o antropólogo por excelência, Roque Pinto (1967), ao
discursar sobre o canto coletivo:

Todos nela figuram velhos, moços, cirandas, soldados, sábios, poetas e artistas. Todos os
povos fortes sabem cantar em coro. Nas horas tristes e nos momentos felizes, unem-se
as vozes nas canções da pátria, onde ressoam as lembranças dos maiores, sublimando o
júbilo ou espantando o mal do desespero. O canto em coro, praticado desde a infância,
propagado nas escolas e nos lares, dará gerações renovadas na disciplina dos hábitos da
vida social, homens e mulheres que saibam, pelo bem de sua terra, cantando trabalhar e
por ela cantando dar a vida. (Roquete Pinto, apud Cartolano, 1968).

Após a divulgação do período de inscrição nos principais veículos de comunicação (TV, rádio,
redes sociais, blogs e cartazes), obteve-se uma procura gigante entre os meses de maio a junho de 2012,
onde 450 inscritos participaram de uma oficina de técnica vocal dividida em várias turmas para que fossem
selecionados 60 cantores, sendo: 15 sopranos; 15 contraltos (Vozes Femininas); 15 tenores e 15 baixos (Vo-
zes Masculinas). A procura desta atividade pelos inscritos são pelos mais diversos interesses, que vão desde
curiosidade, vontade de interagir com outras pessoas, timidez, aprendizado da técnica vocal, aprendizado
musical, indicação de outra atividade sugerida por outros profissionais como o psicólogo, até o não fazer
nada no horário dos ensaios. Ou seja, o coral é formado por leigos, por pessoas que nunca haviam tido
contato mais aprofundado com a música, com a técnica vocal e/ou com o mundo artístico. Estes cantores
selecionados, além de aulas de técnica vocal, também são despertados para a educação musical através das
partituras entregues nos ensaios. A partir disso, vários integrantes despertaram para uma profissionalização
musical, e hoje são ou foram alunos do Curso de Licenciatura em Música do IF SERTÃO/PE.

O Coral Vozes do Sertão fez sua estreia na Semana da Música – Edição 2012 no dia 22 de novem-
bro, um dia especial por ser o dia do músico e o dia de Santa Cecília, considera pela Igreja Católica como
a padroeira dos músicos. A Semana da Música é um evento anual realizado pelo Curso de Licenciatura
em Música e que no ano de 2012 aconteceu nas instalações do Campus Petrolina, reunindo diversos mú-
sicos dos mais variados instrumentos e grupos artísticos musicais com as mais diversas formações, como:
bandas de fanfarras, grupo percussivo, entre outros, além de uma vasta programação de palestras, mesas
redondas e debates sobre o ensino-aprendizagem da música nos mais variados lugares, trazendo o público
para dentro da instituição.

Por apresentar a característica de desenvolver um trabalho com o envolvimento da comunidade,


o Coral foi submetido ao Edital da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura do IF SERTÃO PE no ano de 2013

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com o titulo Coral Vozes do Sertão – Cantando a vida no Vale do São Francisco, sendo aprovado e po-
dendo contar com um bolsista remunerado, Raquel Alves da Silva – pianista e aluna do segundo semestre
do Curso de Licenciatura em Música, que além de acompanhar os ensaios na qualidade de co-repetidora
também tocava nas muitas apresentações do grupo. Este projeto foi reconduzido e aprovado nos anos de
2014 e 2015 pelo mesmo edital, sendo conferida láurea por sua importância nas áreas de conhecimento:
Educação, Cultura e Comunicação e pelo caráter extensionista no âmbito do IF SERTÃO PE na X Jornada
de Iniciação Científica – JINCE 2015 e IV Jornada de Trabalhos de Extensão do IF SERTÃO-PE na mo-
dalidade PIBEX SUPERIOR.

CORALISTAS – VOZES FUNDAMENTAIS

De acordo com o dicionário Aurélio (1996), corista é definido como membro de coros teatrais, de
igreja, etc., enquanto coralista seria uma variável do corista. Geralmente, utiliza-se para o cantante o termo
corista ou coralista de acordo com a denominação do grupo ao qual ele pertence, sendo Coro – Corista e
Coral – Coralista, logo, ambos estão corretos. Usaremos a denominação Coralista para nos referirmos aos
integrantes do Coral Vozes do Sertão. Conforme já explicitado anteriormente, as pessoas que procuram o
grupo têm os mais variados interesses e que na maioria das vezes é uma forma de buscar o autoconhecimen-
to através da utilização da voz e de atividades desenvolvidas através do corpo.

Para uma melhor compreensão da importância, causa e efeito desta atividade nas vidas dessas pes-
soas, pedimos que quatro coralistas, sendo um representante de cada naipe, ou seja, um homem de voz
aguda – tenor, um homem de voz grave – baixo, uma mulher de voz aguda – soprano e uma mulher de voz
grave contralto, relatassem sobre suas experiências vivenciadas. Pois, de acordo com a Teoria da Represen-
tação Social (TRS) desenvolvida pelo romeno naturalizado francês Serge Moscovici (2009), a Representação
social (RS) é um sistema de valores, ideias e práticas, com duas funções: primeiro, estabelecer uma ordem
que possibilitará às pessoas orientar-se em seu mundo material e social e controlá-lo; e, em segundo lugar,
permitir que a comunicação seja possível entre outros membros da sociedade, fornecendo-lhes um código
para nomear e classificar, sem ambiguidade, os diversos aspectos do seu mundo, da sua história individual
e social (MOSCOVICI, 2015).

Segundo Franco (2013, p. 170)

As representações sociais são elementos simbólicos que os homens expressam mediante o


uso de palavras e de gestos. No caso do uso de palavras, utilizando-se da linguagem oral
ou escrita, os homens explicitam o que pensam, como percebem esta ou aquela situação,
que opinião formula acerca de determinado fato ou objeto, que expectativas desenvolvem
a respeito disto ou daquilo... e assim por diante. Essas mensagens, mediadas pela lingua-
gem, são construídas socialmente e estão, necessariamente, ancoradas no âmbito da situ-
ação real e concreta dos indivíduos que as emitem.

Logo, faz-se necessária os relatos dos coralistas que serão transcritos fielmente as suas linguagens e
formas de expressão. Foram levantadas cinco questões para investigar a importância do Coral nos indivídu-
os. Sendo: 1 - Qual motivo te levou ao Coral? 2 - O que o Coral significa pra você? 3 - O que ele te propor-
ciona? 4 - O que você sente nas apresentações artísticas? 5 - Há alguma mudança pessoal depois do ingresso
no Coral? Usaremos as iniciais da classificação vocal para nos referir aos indivíduos, sendo T – Tenor, B
– Baixo, S – Soprano e C – Contralto.

352
Pergunta1: - Qual motivo te levou ao Coral?

Respostas:

T – “O primeiro coro do qual participei, foi em um momento crucial em minha vida, em que estava
na fase de conclusão do doutorado. Como era um coro de uma instituição que ministra idiomas, imaginei uma
oportunidade de trabalhar inglês de maneira descontraída. Pura ilusão. Acabei por me apaixonar por esse tipo
de arte”.

B – “Eu gosto de cantar. Procurei o coro pra aprender mais e desenvolver a técnica vocal”.

S – “Procurei porque preciso interagir com as pessoas, por indicação da minha psicóloga. O coro me
faz muito bem”.

C – “Cantava na igreja e sempre tive vontade de aprender mais”.

Pergunta 2: O que o Coro significa pra você?

Respostas:

T – “Sou assíduo, tenho um compromisso com o grupo e comigo. Dessa forma, sou grato ao grupo pela
possibilidade de estar em palco fazendo o que particularmente adoro fazer”.

B – “O Coral é um lugar que me faz ter várias sensações e me acolhe carinhosamente. O repertório, o
contato com os outros, a técnica vocal, o aquecimento,... nos une. E isso é muito importante nos dias de hj”.

S – “No dia que não posso vir, fico chateada. Tenho um carinho enorme por todos os colegas cantores.
Estamos na mesma sintonia. Isso é muito bom”.

C – “Poder cantar no final de um dia que foi cheio de trabalho e fazer isso em grupo junto de outras
pessoas é muito bom. Já me acostumei com todos”.

Pergunta 3: - O que ele te proporciona?

Respostas:

T – “Aprendizado constante e me leva ao palco”.

B – “Autoconhecimento, aprendo a ler partitura – que parece com matemática, canto em outros idio-
mas, descoberta das minhas possibilidades artísticas e aprendizado”.

S – Afeto, carinho, distração, sorrisos, aplausos,... enfim, tantas coisas boas”.

C – “Aprendo sobre história, matemática, compositores, períodos da história,... a possibilidade de estar


em palco numa apresentação cantando, organizada, com todos bem vestidos e atraindo o olhar do público e
seus aplausos é uma sensação indescritível”.

Pergunta 4: - O que você sente nas apresentações artísticas?

T – “Responsabilidade e felicidade”.

B – “Nervosismo e alegria”.

353
S – “Me sinto importante”.

C – “Fico feliz. É onde colocamos em prática todo o aprendizado e o que preparamos carinhosamente
nos ensaios”.

Pergunta 5: - Há alguma mudança pessoal depois do ingresso no Coral?

Respostas:

T – “Sim, minha voz ficou mais definida. Respiro diferente”.

B – “Consideravelmente. Interagir com outras pessoas, socializar, aprender junto, entender o outro,
olhar para o outro com carinho e respeito, me faz um ser humano melhor”.

S – “Sim. Fui acolhida com muito carinho e procuro fazer o mesmo com quem entra, os novatos. Trato
todos muito bem porque fui e sou tratada assim. Adoro os abraços e as oficinas de consciência corporal que já
fizemos. Isso mexeu muito comigo”.

C – “Sim, estou entendendo qual é minha voz e como cantar nesse registro grave. Aprendo muito sobre
o corpo e sobre música. O maestro é muito exigente e sempre quer o melhor da gente”.

CONCLUSÃO

Um projeto da área de humanas com caráter extensionista dentro uma instituição tecnicista como
o IF SERTÃO-PE que possibilita a comunidade adentrar às suas instalações, além de está cumprido com a
responsabilidade da instituição, ainda está evidenciando a importância social através do entendimento do
homem enquanto ser humano.

Os relatos aqui apresentados enfatizam a riqueza do convívio sadio entre as pessoas no cotidiano
delas, através do contato com o outro. As possibilidades evidenciadas a partir das mudanças no entendi-
mento da voz com base na técnica vocal e da curiosidade no aprendizado musical da partitura evidencia a
importância do estudo da música está correlacionado com outras áreas do conhecimento, ou seja, a inter-
disciplinaridade faz-se necessário no ensino-aprendizagem.

Evidencia-se também a elevação da autoestima. Pois, ser aplaudido, estar em palco e apresentar-se
artisticamente são elementos que conferem importância às pessoas, além de sentirem-se inseridos na/para
a sociedade e assumirem um papel importante na coletividade, apoiando, estimulando e incentivando a
participação de outros integrantes para a manutenção do grupo.

Só existe canto/voz, só existe carinho e só existe música, por que existem pessoas. As pessoas são o
grande foco de conhecimento e estudo para toda e qualquer área. O material humano e suas inúmeras pos-
sibilidades nos ensinam a resistir às intempéries da vida e nela poder resignificar os dias.

354
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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355
PROJETO “A MÚSICA DA GENTE
NA EDUCAÇÃO MUSICAL DO SESC”:
EXPERIÊNCIA COM A EJA NO
SESC LER GOIANA
Izaias Trajano da Silva Neto – SESC
Joana D’arc dos Santos Oliveira Botelho – SESC
Anselmo Martins de Souza Junior – SESC

Introdução

O projeto “A Música da Gente” é um trabalho formativo de composição musical coletiva criado em


2013, pelo educador musical Carlos Kater. Foi aplicado inicialmente em escolas públicas de São Bernardo
do Campo, junto a cerca de 1.000 crianças. Sob o título “A Música da Gente na Educação Musical do SESC”,
o projeto foi implantado pelo Departamento Nacional a partir do primeiro semestre do ano de 2017 em 4
polos do SESC - Pantanal, Santa Catarina, Distrito Federal e Pernambuco -, mobilizando mais de 25 profes-
sores, 150 turmas e 4.000 educandos.

Do regional Pernambuco, foi escolhida para executar o projeto a unidade do SESC Ler Goiana,
que já desenvolvia um trabalho de educação musical com as turmas do Ensino Fundamental. Apesar de
este trabalho ter sido continuado e potencializado pelo projeto, a proposta inicial e mais desafiadora foi de
dar o pontapé inicial para o desenvolvimento de uma ação voltada para as turmas da Educação de Jovens e
Adultos (EJA).

A EJA no Brasil teve suas Diretrizes Curriculares Nacionais regulamentadas em 2000 com a aprovação
do Parecer CNE/CEB n° 11/2000 (Brasil, 2000). Oferece escolaridade aos indivíduos que não tiveram acesso
ou interromperam a educação básica, na infância e/ou juventude, tendo por objetivo uma melhor preparação
dessas pessoas para o trabalho e para a vida em geral possibilitada pelos conhecimentos advindos da formação
escolar. Esta modalidade de ensino foi considerada um espaço privilegiado de potencial aprendizagem inter-
geracional, uma vez que se faz inerente a sua cultura escolar, o convívio entre estudantes de diferentes gerações
em um mesmo contexto educativo, e mais especificamente, em uma mesma sala de aula. A EJA promove assim
trocas que repercutem nas formas pelas quais se aprende e se compartilha saberes.

No que concerne ao projeto, os eixos primordiais seriam o trabalho de construção de instrumentos


e a composição. Sobre isso, Carlos Kater (2017, p.9) afirma:

Entre suas características, temos o uso de objetos cotidianos e descartáveis como fontes
sonoras originais (garrafões de plástico, baldes, colheres etc.) e também a construção de
instrumentos musicais não-convencionais (tubos sonoros, marimba de garrafas de vidro,

356
chocalhos e paus de chuva de vários tipos, ao lado de seringofones, cornetofones e rui-
dofones, por exemplo). A percussão corporal também é um recurso de expressão muito
utilizado nas músicas do projeto. Num ambiente de experimentação e criação coletiva, ou-
vimos surgir sons tímidos que pouco a pouco se juntam a outros, formando frases maiores
que, de maneira colaborativa, acabam por gerar músicas inéditas e originais.

O foco de atuação girou em torno das interações sociais/educativo-musicais entre os alunos das tur-
mas da EJA, particularmente no que concerne à apropriação e transmissão musical (RIBAS, 2006). Tratou-
-se sobre uma educação musical destinada a pessoas que não se encontram em idade considerada usual-
mente como “ideal” para iniciar ou aprofundar sua formação nessa área, embora a música ocupe um lugar
importante em suas cotidianidades.

O projeto foi executado tendo como norte um esqueleto de ações predefinido. O cerne seria o traba-
lho de sensibilização dos alunos por meio da iniciação musical, explorando as potencialidades de cada um
para criar músicas. Paralelo a isso, deu-se o manuseio de ferramentas e materiais diversos, tais como serras,
lixas, tubos de PVC, bastões de madeira, entre outros, para experimentar as possibilidades de se construir
instrumentos musicais que pudessem tirar proveito disso e serem utilizados nas composições. O processo
contou também com uma etapa de gravação dessas músicas em forma de áudio e posteriormente de vídeo,
sendo este último registrado durante a apresentação de demonstração do trabalho para a comunidade. O
projeto rendeu também em uma produção escrita, um catálogo que proporcionou aos participantes um
espaço para depoimentos e impressões a respeito da experiência.

Desenvolvimento

Uma proposta de educação musical deve ser fundamentada no interesse de despertar não só com-
petências técnicas, mas também o entendimento de que a música é uma área de conhecimento humano.
Segundo Kater (2004, p.46), “No caso da educação musical, temos tanto a tarefa de desenvolvimento da
musicalidade e da formação musical quanto o aprimoramento humano dos cidadãos pela música”. De acor-
do com o entendimento de Leonardo Moraes (2017, p.5), Assessor Técnico de Educação Musical do Sesc
Nacional, o projeto “A Música da Gente na Educação Musical do SESC” não ambicionava a profissionali-
zação dos alunos na área da música, “[...], mas sim o acesso à compreensão da diversidade de práticas e de
manifestações musicais da nossa cultura brasileira, latina, americana e do mundo”.

As turmas da EJA que receberam o projeto foram a Alfabetização, 1º e 2º Ciclos, num total de 69
participantes. Conforme apontou a Coordenadora Regional da EJA do SESC Pernambuco, Ana Freire (2017,
p.14), “A equipe do SESC Ler adotou estratégias para sensibilizá-los, visando à efetiva adesão e ao envolvi-
mento de todos, que resultou em avanços e conquistas significativas no processo de troca de saberes”.

Os alunos tiveram o primeiro contato com o projeto na etapa de iniciação musical. O processo
anterior de educação musical com essas turmas havia sido bastante raso, consistindo apenas em mo-
mentos pontuais de prática para apresentações cantadas. Como esses alunos geralmente já trazem uma
ideia formada do que é fazer música, o trabalho foi focado em abrir os sentidos para diferentes e novas
possibilidades. Para isso, começar usando o corpo como um instrumento musical foi de grande impor-
tância: seja com palmas, passos ou estalar de dedos, a música pode vir de qualquer parte de nós. Muito
desse pensamento foi construído sob a ótica do método Dalcroze, que segundo Moreira (2003, p. 10) seria
“[...] a premissa de que o corpo é a fonte de todas as ideias musicais e que o movimento afeta a percepção
musical [...]”.

357
Nesta etapa inicial foi possível perceber claramente, como esperado, o descrédito dos alunos com
relação aos encontros, devido à sensibilidade e compreensão dos exercícios enquanto música ainda estarem
pouco desenvolvidas. Entretanto, foi também durante esses momentos de atividades de exploração da per-
cussão corporal e do movimento que foi possível detectar, entre os alunos, aqueles que já traziam referências
musicais e artísticas mais fortemente afloradas. Aliado a isso, os participantes foram levados a conhecer e ex-
perimentar diferentes materiais, percebendo o som que era produzido. Foram aproveitados os instrumentos
que a unidade já dispunha, como por exemplo, os xilofones e metalofones do instrumental Orff, pandeiros,
tambores e ganzás. Os alunos foram estimulados a manusear e percutir objetos de diferentes construções,
como madeira, plástico, metal, couro etc.

Figura 1 – Alunos tocando instrumentos de percussão

Fonte: Arquivo SESC Ler Goiana

A etapa seguinte foi a de construção de novos instrumentos, criados a partir de objetos do cotidiano
que, segundo a visão de muitos, não seriam facilmente relacionados com música. Nesta etapa os alunos ma-
nusearam garrafas PET, cabos de martelo, canos de PVC, entre outros, utilizando ferramentas como serra e
lixa. Foram criados instrumentos variados: tubos sonoros, bages (espécie de reco-reco usado no maracatu
de baque solto), clavas, marimba de garrafas, para citar alguns exemplos.

Figura 2 – Manuseio de serra e cano PVC na confecção de um instrumento (bage)

Fonte: Arquivo SESC Ler Goiana

358
Para confeccionar os instrumentos em que se almejava emitir uma freqüência determinada, como a
marimba de garrafas, os alunos utilizaram o diapasão eletrônico.

Figura 3 – Marimba feita com garrafas PET e válvulas para pneu

Fonte: Arquivo SESC Ler Goiana

Esta escolha de objetos a serem usados durante os momentos de construção se provou extremamen-
te importante, pois oportunizou situações ímpares de reconhecimento por parte dos envolvidos. Alguns
alunos, especialmente os que trabalhavam com hidráulica, demonstraram grande surpresa ao perceberem
que artigos comuns ao seu cotidiano de trabalho poderiam ser usados de forma tão diferente e criativa.

Figura 3 – Alunos tocando tubos sonoros feitos com canos PVC

Fonte: Arquivo SESC Ler Goiana

Finalizado o processo anterior, os instrumentos mais convencionais e os recém-construídos co-


meçaram a ser usados pelos alunos para compor, de acordo com a criatividade de cada um, na experi-
mentação de combinações de diferentes padrões sonoros e instrumentos. Seguindo uma abordagem de
fortalecimento das capacidades composicionais dos indivíduos, a busca foi no intuito de aproveitar ao
máximo as ideias sugeridas. Neste cenário, vários alunos sentiram-se bastantes confortáveis para con-
tribuir, instigando também os demais a participar e dar as suas impressões, sendo todos estimulados no
entendimento de que “[...] compor é ‘uma forma de se engajar com os elementos do discurso musical de

359
uma maneira crítica e construtiva, fazendo julgamentos e tomando decisões’” (SWANWICK, 1992, p. 10,
apud FRANÇA, 2002, p.9).

O objetivo era fazer música de forma livre, sem se preocupar com estilos ou gêneros musicais deter-
minados, abusando da imaginação e da improvisação. Esse direcionamento proposto aos alunos resultou em
sons diversos, mas de alguma forma naturalmente ligados aos ritmos mais tradicionais da cultura popular,
tais como o coco e o caboclinho, por exemplo. Isso se deu devido à vivência e saberes trazidos pelos edu-
candos, que foram sendo incorporados de uma forma orgânica. Este processo rendeu culminou na criação
de três músicas, uma de cada turma, sendo definidos coletivamente tanto os arranjos quanto os nomes das
músicas, algo que chegou a mobilizar inclusive os que ainda estavam mais resistentes em participar.

Criadas e esquematizadas as músicas, chegou então o momento de fazer as gravações, quando os


alunos tiveram a oportunidade de conhecer o processo que é feito para captação de áudio. Dentro da sala
de música da unidade, foi montada uma verdadeira estrutura de estúdio, com toda a aparelhagem de cabos
e microfones. O desafio que se apresentou para os alunos nesta etapa foi o de manter o foco e a disciplina,
procurando executar os sons com clareza e evitar sons indesejados que pudessem dificultar a compreensão
das reais propostas sonoras das composições gravadas. Mais uma vez, a novidade que o projeto proporcio-
nou através desta ação provocou reações variadas, indo desde o nervosismo ao orgulho de poder registrar
a produção musical própria, como na fala de Josias Pedro da Silva (2017, p.18), aluno da Alfabetização: “Eu
me senti um artista na sala de gravação”.

Com as músicas gravadas, o trabalho partiu então para a etapa de ensaios, preparativos e posteriormen-
te, a demonstração do trabalho. Foram realizadas também as sessões de fotos e o colhimento dos depoimentos
dos alunos, para a produção do catálogo do projeto. Na demonstração, juntamente com a execução das músicas,
o trabalho contou com participações e intervenções artísticas de professores e componentes do Grupo Vivên-
cias de Dança Contemporânea, oriundos das turmas de Dança do Setor de Cultura do SESC Ler Goiana.

Foi a primeira vez que os alunos da EJA, após terem visitado tantas vezes o teatro da unidade para
apreciar espetáculos externos, tiveram a oportunidade de realizar uma apresentação unicamente sua. As
turmas revezaram-se em cima do palco, cada uma executando a música que havia composto, enquanto as
outras assistiam junto com o público convidado. Também aí se deu o momento da captação das imagens,
tanto das apresentações quanto dos depoimentos de coordenadores, professores e representantes das tur-
mas, para a posterior produção do DVD do projeto.

Figura 4 – Apresentação de demonstração de trabalhos

Fonte: Arquivo SESC Ler Goiana

360
Conclusões

O processo vivido durante o período em que o projeto foi realizado mudou completamente a pers-
pectiva de trabalho com artes na EJA do SESC Ler Goiana. Foi o rico e oportuno ponto de partida de algo
que pode e deve ser expandido, agregando novas ações e profissionais. A resposta dos alunos não poderia
ter sido mais gratificante, observando-se as falas durante as apresentações, as conversas e as reuniões de
avaliação, foi notória a transformação e a evolução da percepção de si mesmo enquanto protagonistas de
uma produção artística.

A expectativa em relação às possibilidades educativas que o projeto abriu é grande. Nas palavras da
Coordenadora, Ana Freire (2017, p.14), “Nossa intenção é dar continuidade ao projeto no SESC Ler Goiana
e ampliarmos para outras escolas do SESC em Pernambuco”, no intuito de prosseguir possibilitando mo-
mentos formativos em artes que impactem e mobilizem os sujeitos.

Um dos grandes motivos para este trabalho ter sido tão potente na EJA, dentro do espaço de tempo tão
relativamente curto em que foi executado, foi o de se propor a promover a criação musical de acordo com o po-
tencial de cada aluno. A busca pelo aprimoramento da sensibilidade e da percepção, a ousadia e a coragem de se
construir um novo universo de saberes, o impulsionamento rumo à liberdade criativa, tudo isso são caminhos
que uma Educação Musical comprometida com a humanização dos indivíduos deve almejar (KATER, 2012).

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361
EM BUSCA DA PEDAGOGIA
POÉTICA CÊNICA
Matheus Rosa da Silva Gomes – UNIRIO

1. A POESIA E O TEATRO: UM ENCONTRO HISTÓRICO

A relação entre a poesia e o teatro está registrada em vários momentos e circunstâncias da his-
tória mundial e nacional, apontando como essas artes se encontram, fazendo parte da vida cotidiana e
das relações humanas. Na Grécia, por exemplo, os textos teatrais eram poesias versificadas, diferindo
dos textos teatrais de hoje, que em sua maioria são diálogos objetivos e diretos. Sófocles e Eurípedes, por
exemplo, foram poetas dramáticos, mas poetas acima de tudo. A tragédia grega Prometeu Acorrentado
além de manter o diálogo em versos, é tomado de metáforas e trechos que se forem retirados do texto não
perdem a essência pela carga poética que há neles. O impacto criativo parece descrever a emoção daquele
que cria. O próprio conceito de poesia na visão de muitos se aproxima do teatro, visto que na visão de
Zumthor(2010), ela se caracteriza como performativa, ou seja, abarca o teatro, a dança e a música em sua
toda totalidade. Na Idade Média, por exemplo, a poesia oral poderia ser confundida como performance
cênica, devido características de encenação presentes. Na Renascença o teatro respira poesia em textos
com linguagens metaforizadas, subjetivas e totalmente humanas como, por exemplo, os textos de William
Shakespeare226 . Já no Brasil, o teatro respira e já respirou poesias cênicas diversas. Musicais como a Gota
D’água de Chico Buarque e Paulo Pontes, é uma poesia política imortal, em que o teatro assume o poder
de voz e propagação de poesia e de tantos outros textos dramáticos que estão num discurso próximo,
gerando ação e logo reflexão a partir da realidade do público que assiste a montagem desse texto. Muitos
poetas contemporâneos brasileiros estiveram ou estão em contato direto ou indireto com as artes cênicas.
É caso de Vinicius de Moraes, que escreveu poesia e teatro. E ainda teimo que as duas coisas se separam?
Não é possível, pois o se a cena é considerada poesia, é porque existem aspectos importantes que a tor-
nam poética. Seria a presença de um autor em cena? A vida cotidiana desse autor em cena? Ele encenou
e escreveu em metáforas os seus pensamentos e sentimentos?

No cenário brasileiro atual, destacam-se muitos poetas da cena, é o caso de Braúlio Bessa227, que
leva seus poemas para a cena, sempre com intuito de reflexão, ele mesmo atua sobre o que escreve, porém
atua e escreve sozinho. Já em Goiás, das produções cênicas que mais crescem, destacam-se os saraus, que
nas periferias são um marco teatral, poético e político, visto que nesse contexto do fazer artístico contempla
a criação de um todo, valorizando nuances e essências individuais de cada um dentro do fazer coletivo. É o

226. *Mestrando em Ensino de Artes Cênicas (PPGEAC- UNIRIO), com orientação da Profa. Dra. Rosyanne Trotta.
227. Escritor e poeta, conhecido por recitar seus poemas no programa Encontro com Fátima Bernardes. Disponível em: https://www.brauliobessa.
com/

362
caso do Sarau das Minas228 em Goiânia, que preza pela mulher poeta e atriz que se empodera ao performar.
Ainda no cenário de produções cênicas, temos muitos diretores, atores e professores de teatro que escrevem
poesias e textos poéticos. Dentre esses profissionais, destaco Mauri de Castro e Eduardo de Sousa, profes-
sores de Artes Cênicas que compõem letras musicais das montagens teatrais de seus alunos, versos que são
verdadeiras poesias. Eles escrevem o que levam para cena, cantam, encenam, brincam com a mensagem
deles e constroem suas aulas com esses materiais autorais. Não obstante, eu experimentei levar minha cria-
ção poética para a cena e para o vídeo. Nas duas experiências percebi a força que tinha ao falar daquilo que
escrevo. A troca de uma palavra ou outra não perdia sentido no texto, a expressão do aqui e agora passava a
mensagem que cada um precisava naquele momento. Em sala com os alunos, deixei o lado poeta contribuir
no planejamento, o que motivaria expressar e escrever para cena? Para experimentar uma construção peda-
gógica a partir de uma experiência, é preciso enxergar-se como um professor criador, que vê como poesia
tudo que te rodeia, diferenciando seus tons, suas cores, detalhes e aspectos sensíveis. Afinal, poesia no teatro
se constroi do material real, daquilo que pulsa.

2. JOGOS DE CRIAÇÃO DE POESIAS

O intuito de fazer o trabalho de autoria poética cênica é exatamente identificar métodos do trabalho
do ator ou aluno de teatro partindo do eu e/ou de si. Um aspecto interessante é buscar e desenvolver jogos
e dinâmicas de criação, apropriação, teatralização para que as poesias criadas busquem o trabalho do ator
invisível, na constante dualidade do indivíduo coletivo. Neste caso, a poesia é uma importante possibilidade
de cena por sua liberdade criativa, com base objetiva e subjetiva, o que possibilita ao poeta da cena inúmeras
releituras de personagem, cenário, espaço e estados de emoção do corpo-voz. A poesia cênica como méto-
do de expressão nos liberta das regras que aprisiona o pensamento, propondo ação, pensamento e diálogo.
Pode se vestir de “bonita” e chegar às lideranças hipócritas instigando reflexão e mudanças, ao tempo em
que também chegará para multidões que precisam abrir os olhos e tornarem-se criadores e conhecedores
das potências de si.

Nesta construção, intenta pela individualidade exacerbada de cada ser alçar recriações em um pro-
cesso coletivo sem deixar de expressar a identidade de cada um. A quebra de pertencimento define os pro-
cessos em que a poesia é composta em versos de um, escrito no papel por outro, encenado em coro, em
dupla, na infinidade de propostas que as criações poéticas se deparam. Ao deparar com construções de au-
toria, nos percebemos como autores de nossos caminhos, decisões, ainda que sejam decisões inconscientes
da importância para o futuro, elas são carregadas de aspectos formativos de política social. Ou seja, como
autores percebemos que as escolhas determinam os fatos, e não os fatos determinam as escolhas. Há sempre
uma escolha por trás do acontecimento. Por isso, os processos de criação poética exercitam as escolhas co-
letivas, respeitando aspectos biográficos.

A palavra poesia que tanto expressa seu poder de síntese e seu caráter biográfico, por mais que dei-
xem abstratas e metafóricas suas criações, elas apontam momentos vividos e sentimentos já subjetivados.
Alunos poetas da cena e professores co-autores. Em um momento em que estamos mediatizados com a tec-
nologia que nos oferece perguntas rápidas com respostas mais rápidas ainda, soluções e não problemas, aos
poucos perdemos nossas ações autorais, de criações, nos tornamos um rebanho de reproduções. O ensino
de teatro não quer se preocupar com a importância do texto que é montado, mas o aprendizado que o pro-

228.  O Sarau das Minas GO é um sarau com palco aberto para mulheres se manifestarem artisticamente (declamando poemas, cantando, dançando
etc). Homens podem participar como plateia, mas o palco é exclusivo das mulheres. Disponível em: https://www.facebook.com/saraudasminas-
GO/

363
cesso quer gerar. O aprendizado se constrói pela vontade, pelo prazer da construção, tendo como material
tudo que nos move.

Vivenciar um processo de autoria com alunos, não se trata de uma receita pronta, pelo contrário,
esse processo pode estar aberto à colagens, recortes, criações repentinas, fora do momento do ensaio ou em
aquecimento, na conversa em grupo de aplicativos. A leitura de processos que valorizem as criações autorais
com o caso de Leite(2012) que trata da autoescritura performativa, contribuiu para pensar na poesia escrita
com ações criadas em jogo e reanimar a fonte de que a pesquisa prática na periferia é uma epistemologia de
emergência para descentralizar a pesquisa acadêmica formal e elitista, valorizando assim as construções de
conhecimento múltiplas do fazer artístico periférico.

O rap, a literatura, os recitais poéticos, entre outros, aglutinando-se a uma marca iden-
titária da periferia, irrompem num debate também epistemológico questionando os
formatos de produção de saber e os critérios secularmente utilizados para classificar os
“intelectuais” e os “despossuídos de saber”, a “cultura” e o “folclore”, o “conhecimento” e
a “informação corriqueira ou irrelevante” etc. (SANTOS, E. F. PASQUARELLI, B. V. L,
2016, p.103)

Trata-se de uma pesquisa partindo de espaços marginalizados, com pessoas excluídas ou vitimas da
segregação, do desrespeito e do preconceito como trata a pesquisa de Evaristo(2009) ao refletir a poesia negra
como ponto para empoderar-se politicamente na sociedade e valorizar a cultura e a arte literária negra:

Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o lugar da vida. [...]
concluir que na escre(vivência) das mulheres negras, encontramos o desenho de
novos perfis na literatura brasileira, tanto do ponto de vista do conteúdo, como
no da autoria.(p.54)

Como autor da sua obra, os mesmos precisam ter autonomia, acompanhada de orientação. A voz e a
escrita dos alunos determinam a visão poética, tornando a experiência única daquele espaço. Distante de qual-
quer reprodução, as criações serão frutos da experiência coletiva e da reflexão. Ninguém se inspira sozinho,
precisamos do outro. Com o outro formamos o que chamamos de ser humano. De que adiantaria poetizar
sozinho? Pra quem? Se poesia é feita para todos, seja do teatro, seja de quem precisa dar voz a ela.

Ao tempo que são contempladores, os alunos são autores e poetas da voz, do corpo e da escrita. As
poesias cênicas criadas e encenadas são de fato acontecimento artístico porque esse [...] acontecimento se
completa quando o contemplador elabora a sua compreensão da obra. A totalidade do fato artístico, por-
tanto, inclui a criação do contemplador (DESGRANGES, 2006, p.28). Nas criações poéticas, os jogos con-
templam a presença de plateia e essa assume em seguida as criações podendo alterá-las, o que é chamado de
processo de resignificação e compreensão. Também chamada de criação múltipla por assumir a criação de
vários, ou seja, uma poesia se monta com a fala ou a escrita de todos.

Na perspectiva de poesia total, ela poderá ser elaborada a partir da escrita por alguns alunos, ser
recriada corporalmente em grupo, e ganhar uma nova oralidade e/ou musicalidade poética de outro gru-
po. A poesia total pode assumir características próximas e idênticas ao gênero musical, visto que ela como
processo cênico necessita transitar pela música, dança e teatro. Essa pedagogia adota o significado da poesia
para essa totalidade numa proposta em que o aluno seja criador da cena em jogo, tendo como material suas
vivências, memórias, anseios e demais sentimentos que o circundam, emergindo essa expressão no jogo
teatral que parte da paródia, da escrita, da expressão corporal, do jogral e do diálogo rápido.

364
O autor-espectador será poeta-espectador e mais adiante em processo de criação cênica será poe-
tator, assumindo nomenclaturas que se assemelha ao que Bakthin(2011) nomeia de autor-espectador, e que
Boal(1977) nomeia como espectator. A Poética Cênica em prática não define quem escreve e se as poesias
serão cantadas, movimentadas ou registradas no papel, o importante é que seja criada, independente do seu
tamanho e que contemple a expressão de cada um dos participantes, sendo resultado do jogo experimenta-
do. Algumas posições criativas determinadas, ora mudam ou ganham novas identidades. Neste caso, até o
presente momento da pesquisa, defino como três: ator poeta coletivo, escritor-observador, autor narrador
de si e do outro.

3. COMPOSIÇÃO DA PROPOSTA PEDAGÓGICA CÊNICA E POÉTICA

O aluno nesse processo determina a melhor maneira de criar jogos que o façam expressar. No
entanto, jogos com dinâmicas aceleradas, precisos, concisos e que necessitem de palavras rápidas trazem
as pistas necessárias para a organização das aulas para que esses e os próximos jogos atinjam o sensível, a
poesia cênica surge também do conflito em jogo. Mas se pensarmos em jogos e dinâmicas já existentes para
propor as adaptações com o intuito que se tornem jogos de criação poética é preciso se atentar às caracte-
rísticas básicas introspectivas destes jogos, são elas: 1)Autocontemplação, 2) subjetivação, 3) objetivação, 4)
expressão política e 5) metáfora.

A criação partindo de si é autocontemplação na medida em que se constrói pelo outro, por ima-
gens, signos, palavras e ações que vivemos diariamente e que absorvemos numa constante construção e
renovação de identidade. Neste caso, é possível jogos que trate de aspectos que empodere as próprias carac-
terísticas, contemplando os participantes dos jogos com sensibilidade. Conhecer a si é um importante passo
para tocar o próximo.

A subjetivação é um recurso utilizado como provocação, principalmente na criação partindo de


objetos, do movimento livre, é o passo para viagem necessária, com acesso às memórias recentes reprimidas.
O jogo criado com os tecidos coloridos, por exemplo, trazem memórias no movimento subjetivo criado,
depois ganha palavras pelo jogador observador e escritor.

A objetividade em intersecção com a subjetividade promove a interação e o discurso, visto que o pen-
samento se constrói da subjetivação para objetivação, dentro de uma dinâmica circular. A objetividade em jogo
elimina aspectos como a vergonha, timidez ou criações modificadas pelo medo da crítica do próximo ou medo
do erro. Em jogos de versos dialogados, por exemplo, vale jogar e não parar de dialogar, falar tudo que há para
falar, daí emana o pensamento mais íntimo, aquilo que mais te toca no momento presente. No ensino de teatro
com prática de construções autorais de poesia, os alunos em processo entram em contato com a subjetivação e
objetivação característica importante do aprendizado em arte- educação, discutido na filosofia do pensamento
comunicativo como importante performatividade do ser (HABERMAS, 1989, p.65)

A metáfora é uso de linguagem que mais potencializa a proposta política e a visão crítica das cria-
ções poéticas em jogo. É um recurso desenvolvido unicamente ao ser humano, utilizamos as metáforas para
burlar aquilo que nos incomoda. Na medida em que as ações humanas têm sido cada vez mais desumanas,
a pedagogia poética cumpre o papel de humanizar e um de seus recursos é metaforizar na escrita oraliza-
da, despertando mentes pensadoras, capaz de reconstruir a partir do emaranhado há muito tempo criado,
ou seja, tecer a colcha de retalhos. Neste caso, temos o exemplo de Boal ao falar deste comportamento da
criança, pois “se faz castelos de areia, é porque viu castelos ao vivo ou desenhados – sua obra é metafora
substantiva, portanto, a criança está em vias de humanização, pois só os humanos são metafóricos. Tendo
visto o modelo, é capaz de repeti-lo em outra substância.” (BOAL, 2009, p.61) Neste sentido, essa proposta

365
deve se encaminhar a criação e substantiva e não adjetivada. Boal(2009) ainda resgata a brincadeira como
indutora da criação com crianças, o que ressalta o a importância do jogo nas oficinas em que proponho
um processo criativo e político autoral biográfico e coletivo. No coletivo poético autoral podemos “pensar
a educação a partir do par experiência/sentido.” (LARROSA, 2002, p.20), resvalando que conhecimento se
constrói partindo de si e do outro e não de um pensamento já estabelecido e exigido. Quando eu metafori-
zo minha criação, eu brinco do meu jeito, privilegiando a realidade da qual estou inserido, e isso fará todo
sentido e assim a experiência toca na ação. Como por exemplo, o gesto simples de mostrar a gravação de um
vídeo da poesia criada na aula de teatro ou a publicação da paródia no status de um aplicativo.

4. ELEMENTOS DA PEDAGOGIA POÉTICA

O termo de poético distante do significado do termo poesia refere à performatividade que compõe
o significado da palavra, abrange conexões entre a música, a dança, as artes plásticas com o teatro. Ao to-
mar clareza do termo da pesquisa, diante do signo que Foucault da para a palavra que “não diz, mostra. Na
poesia, com efeito, o que se dá a ver é o que nela se oculta. Performar a palavra significa, portanto, poetizá-
-la”. (FOUCAULT, 1992, p.147) A escrita está na proposta pedagógica como extensão do corpo criador nas
narrativas registradas seja em fala, em movimento, em cenas construídas e versos anotados.

Esse processo múltiplo e autoral fortalece a escrita identitária de modo a dar voz política aos que
estão distante do poder. Aos que escrevem e dominam o que escrevem, quando em grau poético e diversifi-
cado em estética, chega-se ao nível sensível capaz de multiplicar discursos de liberdade política de quem se
abriga no montante que segue a reprodução em massa dos poucos que insistem em iludir e propagar lide-
ranças com objetivos retrocessuais e massacrantes. Neste caso, a periferia precisa de voz e práticas de criação
cênica com escrita. Só assim teremos a arma para romper com os formatos de pesquisa elitistas, fazendo da
periferia o lugar de construção de conhecimento, do qual a pesquisa parte da ação entre ensino e extensão.

Na pedagogia poética o aluno não se prepara para uma apresentação semestral, a mesma pode ser
consequência das múltiplas criações registradas, seja uma dramaturgia mais extensa, um sarau e/ou um
espetáculo. Em proposta processual, toda aula são elaboradas novas poesias partindo de jogos teatrais, com
elementos artísticos diversos. Logo, as aulas são planejadas partindo dos anseios e necessidades dos alunos
que apontam no ato de jogar e nos debates ações que remetem ou solicitam técnicas que podem ser explora-
das pelas técnicas teatrais. Nesta pedagogia, o olhar atento do professor identifica elementos para aprimorar
e brincar nas variações dos jogos criados e adaptados. Visto que a criação é constante e os elementos dos
planejamentos devem ser maleáveis às mudanças. São esses: Ritmo, tempo de fala, estado de prontidão, ar-
ticulação do corpo-voz, concentração e memorização.

Acima de todas as técnicas citadas, existe outra, que é a liberdade de criação, com essa não há certo ou
errado na proposta, vista que é criativa e que a fuga do planejado é também parte do processo. Nem experiên-
cia, quando possível sair do limiar de ter exemplo para criar, reproduzir, criar a partir de..., é possível voltar o
aluno para o protagonismo coletivo, elevando e despertando a consciência de que eles de fato são capazes de
criar a poesia em vida e que essa poesia seja conscientizada e explorada nas ações cênicas performáticas.

A tríade da prática está na palavra, no movimento e no som. Nessa tríade os alunos alternam e mis-
turam as bases, visto que ora o jogo inicia de um e chega às variações ao conjunto. As poesias da cena que
por eles venham a ser criadas não visa excluir, mas multiplicar as possibilidades criativas do coletivo partin-
do do que cada um pensa, vive e queira mudar no mundo e na realidade em que vive, eis o ato político. Toda
expressão é política, mas nem toda expressão gera reflexão. Palavra, movimento e som na poesia coletiva é
ato e ato é cena. Na palavra está o poder de transformar o mundo. Assim como Boal reflete a palavra como

366
fundamental para as ações do mundo, é por ela que decisões importantes são tomadas, e os signos e expres-
sões que a acompanham. “As palavras, porém, que, entre outras funções, podem designar coisas, são, elas
próprias, coisas; podem ser percebidas e reveladas pelo Pensamento Sensível – eis a poesia.” (BOAL, 2009,
p.30) No movimento e na palavra encontram-se os estados de emoção, as memórias, as marcas. No som e
no movimento, encontram-se as vozes reprimidas, o silêncio do corpo julgado.

5. JOGOS DE CRIAÇÃO POÉTICA E CÊNICA

Quero a poesia riscada


Ainda não publicada
Quero negritar os versos de desabafo
As vozes da periferia e sua opinião que tem sido tão velada
Querer não é o poder
Mas o poder está no florescer das memórias
Memórias antigas, atuais, recentes e transparentes
A poesia me parece também brincar com os desejos
Com as utopias, dos sonhos que parecem tão distantes

Jogo com o que crio, ou crio jogando. Em coletividade, de alguns jogos criados e recriados, alguns
se destacam por sua essência, estética e por múltiplas variações. Arrisco a dizer que esses jogos em suas es-
truturas são poesias e carregam em seu desenho as memórias de um cada um dos alunos que o jogaram pela
primeira vez. Dos jogos experimentados, destaco três para ter-se conhecimento prévio da pesquisa e suas
múltiplas criações e leituras diferentes. São eles: “Minha lembrança é poesia no tecido”, “Paródia inventada e
alternada”, “Escrevendo no outro”.

Minha lembrança é poesia no tecido


Material: Malhas coloridas
Objetivo: Criar poesia subjetiva, partindo de memórias de cada um dos integrantes. Ex-
pressar a lembrança mais forte e que mais te marcou através de sequências de quatro
movimentos-versos.
Orientação: Vocês terão cinco minutos para brincar com os tecidos, movimentá-lo com o
corpo. Depois mais dez minutos para criar uma cena muda imaginando que o pano é um
lápis e escreve e vários movimentos compõem os versos.
Variação 1: Enquanto um apresenta, outro escreve a poesia que está em movimento.
Variação 2: Unir todas as lembranças e transformá-las em cena muda, de fora propor um
escritor espectador do jogo.
Variação 3: Ler a poesia escrita pelo espectador e ao som da poesia movimentar o tecido.
Avaliação: Em círculo, questionamentos: Vocês conseguiram expressar as memórias? As
memórias aparecem em muitas poesias criadas? O que vocês mudariam nessa memória?
Ela é poesia?

Paródia inventada e alternada


Material: Cantigas antigas, tais como: “se erra rua fosse minha...”, “Borboletinha”, “Ale-
crim”, “Peixe vivo”, entre outras.
Objetivo: Recriar as paródias com poesias musicadas invertendo as letras para refletir a
realidade social.

367
Orientação: cada um de cantar uma cantiga em círculo. Conversar sobre as violências pre-
sentes no mundo, tais como: violência com a mulher, o preconceito, o bullying, o precon-
ceito racial, as condições da classe média baixa que mora em periferia. Agora, reconstrua
com essa musicalidade das cantigas escolhidas outras letras e cantem. Criem uma cena
musical em trio.
Avaliação: Em círculo. Reflitam mais sobre as paródias, como elas podem brincar e falar
de assuntos sérios? As cantigas, poderiam existir cantigas novas, com a nova realidade? O
que vocês fizeram é teatro ou poesia?

Escrevendo no outro
Material: Camisetas brancas (para aderir melhor as tintas dos canetões)
Objetivo: Escrever nas camisetas tudo que você tem vontade de escrever e fazer uma com-
posição poética com os essas frases soltas.
Orientação: Lembre-se que essa atividade faz parte de todo fim de ano de vocês e que vo-
cês escrevem e assinam as camisetas de uniforme para deixar as suas marcas nas camisetas
antigas dos amigos. Escreva nas camisetas, uns aos outros, coloque-os em várias posições
imaginando que a cena de você é essa.
Variação 1: Crie uma cena com essa poesia, enquanto outra pessoa escreve outra poesia
vendo a cena.
Variação 2: Construa uma cena lendo as palavras movimentando o colega em várias po-
sições para montar a poesia.
Avaliação: Qual a sensação de escrever no colega tudo todos os anseios, desabafos, senti-
mentos? Isso te alivia? Conte-me as sensações.

CONSIDERAÇÕES

A poesia proposta na pedagogia se assemelha a pesquisa acadêmica que em sua estrutura dialoga
e traz em cada pesquisa a voz de outros pesquisadores, no intuito de potencializar o discurso com outras
pessoas. Os pensamentos são diferentes nas essências, mas iguais porque somos o reflexo distorcido do ou-
tro. Eu só posso identificar-me a partir do momento que falo com outro na criação coletiva, que as idéias se
conectam. Ai está a diferença da escrita solitária, dada fora do processo cênico e do espaço de jogo teatral.
Porque segundo Foucault, “A escrita como exercício pessoal praticado por si e para si é uma arte da verdade
contrastiva; ou, mais precisamente, uma maneira refletida de combinar a autoridade tradicional da coisa já
dita com a singularidade da verdade que nela se afirma e a particularidade das circunstâncias que determi-
nam o seu uso. (1992, p.05)

Quando refiro ao termo poético numa pedagogia, valorizo acima de tudo a narrativa, não excluin-
do qualquer criação por estar fora dos padrões estabelecidos como poesia na língua portuguesa formal. A
narrativa é poética por que nela está a liberdade de pintar e bordar nas criações cênicas, nela está a vivência.
Entender que “o poético é, pois, o nível de desvelamento das contradições que se tecem no espaço do real. E
o “milagre na salina” poderia ser assim interpretado: o ato de narrar realiza a tentativa de desvelar as injusti-
ças que se operam no mundo vivido.”(HELENA, 1985, p.104) O poético tem o poder em sua nomenclatura
de desconhecer o erro, pois o erro segundo meu ponto de vista é capitalista, avassalador, quebra o prazer e
gera competição. Se não há erro e sim propostas diferentes, há humanidades, do qual os processos poéticos
valorizam a humanidade de cada ser. É certo que existem outras atividades que bebem do recurso poético
sem ter consciência. No entanto, cabe as artes cênicas, nesta proposta despertar a consciência para outras
práticas e experiências que contemplem a humanização. Contudo, assim como o Boal(2009, p.46) é intenção

368
é despertar a cultura própria daqueles que praticam a pedagogia poética cênica para que ela seja vista, seja
lembrada, seja estudada, retirando de uma vez por todas seu nome de oprimido, metamorfoseando para
transgressora. Que seja uma pedagogia libertadora!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo Bezerra, 6ª. Ed. – São Paulo: Editora WMF Martins tor? Lisboa: Passagens. 1992. pp. 129-160.
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HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comuni-
BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro cativo; Trad. Guido A. de Almeida.
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Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro : 1989.
DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do teatro: provo-
LEITE, Janaina. A autoescritura performativa: do diário
cação e dialogismo. São Paulo: Editora Hucitec: Edições
à cena. Revista aSPAs, 2016 Disponível em: http://www.
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__________________. Da representação à auto-apre-
Pós-graduação e Pesquisa em Educação, 2007, Caxambu-
sentação da mulher negra na literatura brasileira. 2009.
-MG. Anais da 30ª Reunião Anual da ANPED. Rio de Ja-
FABRÍCIO, Ana cristina. Um processo de criação em neiro : ANPED, 2007. v. 01. p. 01-20
dinâmicas não verbais Para formação do ator. Pós-

-graduação em artes cênicas (dissertação de mestrado) :
UFBA, 2008

369
CRIAÇÃO, EXPLORAÇÃO E
TRANSFORMAÇÃO DE CÓDIGOS
DE LINGUAGEM NO ENSINO DE TEATRO
Juliano Casimiro de Camargo Sampaio (UFT)

Apresentação, metodologia e recorte teórico/conceitual


Neste artigo apresento análises de três experiências em Ensino de Teatro, para três diferentes faixas
etárias, no que concerne à possibilidade de se desenvolver estratégias em aula de teatro na educação básica a
partir da criação, transformação e exploração de códigos de linguagem. Busco discutir como a experiência
com códigos de linguagens no ensino de teatro pode sersignificativa para se apresentar a linguagem teatral para
as crianças, auxiliar no desenvolvimento de certa perspicácia cênica, e, sobretudo, incentivar modificações,
a longo prazo, nos modos cotidianos de operar o mundo em que se vive, ao contribuir, como indica a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2017), para a interação crítica das pessoas com a complexidade
do mundo. Isto porque, parto do princípio de que nossas identidades pessoais e coletivas se constituem em
consonância com a forma como organizamos e nos utilizamos das linguagens (Woodward, 2014).Nossa iden-
tidade é relacional e se dá na medida das nossas práticas na vida diária, considerando-se a imagem que se tem
de si; a imagem que se representa para o outro e a imagem que se recebe do outro de volta (Béra& Yvon, 2015).
Tais imagens estão prenhes das nossas sensações de confiança e vulnerabilidade (Sampaio & Gonçalves, 2017)
a respeito dos nossos modos de operar o mundo, caros aos processos de subjetivação.

Para Cunha (2017), desde Godelier, a linguagem é conata com a realidade que expressa. Nessa me-
dida, habilidades ampliadas na lida com a criação, exploração e transformação de códigos de linguagem,
suponho, nos orienta a possibilidades plurais de construção de cotidianos (realidades) e identidades. O
interesse pela questão identitária surge neste contexto na medida em que proponho, como finalidade para o
ensino de teatro na educação básica, a experimentação lúdica e intencional da alteridade de si para si mes-
mo (Sampaio, 2017), com fins da ampliação do nosso campo de ação simbólica (Boesch, 1991) e do mapa
pessoal do “Eu-Posso” (Sampaio, 2015). Esse caminho valoriza a estesia, uma das dimensões propostas pela
BNCC para o ensino de arte. Ou seja, foca em incentivar e propiciaroconhecimento de si, do outro e do
mundo de modo interdependente. Tais escolhas se sustentam na proposição de Woodward (2014) de que
toda identidade depende dos sistemas de linguagem para ganhar sentido.E, de acordo com a BNCC (Brasil,
2017), devemos compreender que as linguagens são construções humanas, de natureza dinâmica, por meio
de que significamos a realidade e a expressão de subjetividades e identidades sociais e culturais.

O material analisado faz parte das atividades de formação continuada de professores das rede esta-
dual (Tocantins) e municipal (Palmas-TO) de educação, por meio do projeto Encontros de Ludicidade e In-

370
fância do Laboratório de Pesquisa e Extensão em Composição Poética Cênica, Narratividade e Construção
de Conhecimento (CONAC), coordenado por mim, na Universidade Federal do Tocantins (UFT). O proje-
to consiste em: 1 - elaboração de planos de ensino para o componente curricular Arte; 2 - desenvolvimento
das aulas planejadas para crianças, voluntariamente inscritas no projeto. Os professores de Arte das redes de
ensino e alunos e ex-alunos da licenciatura em teatro da UFT acompanham as aulas por mim ministradas,
sem interferências de qualquer natureza durante as atividades (para além daquilo que a simples presença
de tantos adultos em uma mesma sala pode implicar no comportamento das crianças); 3 - problematização
com os professores da coerência entre planos de ensino e aulas desenvolvidas, objetivos almejados e con-
cretizados durante as aulas e adequabilidade das aulas ao contexto da educação básica. Os encontros com as
crianças duram cinquenta minutos e ocorrem sistematicamente em todo o semestre letivo, semanalmente.

A proposta de se construir o projeto de formação continuada de professores de Arte e das aulas para
crianças visa à investigações de caminhos teórico-metodológicos não hegemônicos no ensino de teatro, no
Brasil, atualmente. Na direção do que aponta Boaventura de Sousa Santos, nas palavras de Gomes (2009),
parto do pressuposto de que: 1 - não há epistemologias neutras; 2 - as reflexões sobre conhecimentos não
devem recair sobre abstrações, mas sim sobre modos de conhecer e sobre práticas sociais. Considerando-
-se as proposições de Santos e de Trevisan (1995), desde Bergson, que afirma que toda teoria da educação
pressupõe uma teoria sobre conhecimento, é que a perspectiva escolhida para as atividades de docência foi
a Composição Poética Cênica (CPC)por mim em desenvolvimento no CONAC.

A CPC se constitui a partir de um amálgama transformativo resultante da articulação (tensa, como


não poderia deixar de ser) entre: 1- escritos de pedagogos e teóricos teatrais brasileiros e estrangeiros e legis-
lação sobre o ensino de teatro no Brasil, proposições fenomenológicas e abordagens culturais e genéticas da
psicologia.As teorias, na elaboração da perspectiva (CPC), são notações, no sentido de que afirma Williams
(1980, p. 47) sobre a literatura: devem“ser interpretadas de forma ativa, de acordo com as convenções específi-
cas.” A vivacidade desse processo de recepção dos escritos propositivos, que servem ao amálgama da CPC, se
dá pela primazia da feitura (criação e docência em teatro) em relação à teorização dos processos. A perspectiva
emerge, nessa medida, da prática brasileira de seus elaboradores e não dos autores anteriormente citados.

A escolha pelo trabalho com criação, exploração e transformação de códigos de linguagem nas au-
las para e com crianças levou em conta as proposições: 1 - da BNCC (Brasil, 2017) sobre as seis dimensões
interdependentes do conhecimento no ensino de arte (criação, crítica, estesia, expressão, fruição e reflexão)
e sobre a competência específica para o ensino de Arte: “Experimentar a ludicidade, a percepção, a expres-
sividade e a imaginação, ressignificando espaços da escola e de fora dela no âmbito da arte (Brasil, 2017, p.
196); 2 - do RCNEI sobre a importância da linguagem para os processos pessoais de diferenciação Eu/Outro
e sobre a necessidade de se compreender que o movimento humano se configura enquanto linguagem. E que
essa permite a relação com os diversos outros com quem compartilhamos o mundo e nossas experiências.
A linguagem da expressividade corporal possui códigos específicos que são criados e transformados nas
experiências, sendo a Arte um campo propício para tal experimentação (Brasil, 1998).

Os dados analisados são resultantes de vídeo gravações das atividades de docência do projeto e dos
planos de ensinos elaborados para fins da formação continuada de professores.229 As vídeo-gravações foram
realizadas em aparelhos celulares (diversos), pelos adultos participantes do curso de formação, que esco-
lhem ângulos, recortes e trechos das atividades que lhes chamam a atenção. Nessa medida, desde a coleta
de dados, já consideramos oportuna a seletividade inerente aos processos de pesquisa em Arte e Educação,
caros ao conjunto maior das pesquisas qualitativas. São Participantes da pesquisa 10 crianças com idades

229. As citações diretas de falas são transcrições das vídeo-gravações feitas durante as atividades e serão sinalizadas ao final com (VG). Os dados
sobre a experiência, que não são descrições [citações indiretas] são mistos de registros dos planos de ensino e das vídeo-gravações. A essas últimas
não farei identificação.

371
entre 04 e 05 anos, 08 crianças com idades entre 06 e 08 anos e 04 crianças com idades entre 09 e 10 anos;
05 professores da rede municipal de ensino de Palmas-TO; 04 professoras da rede estadual de ensino do
Tocantins; 06 alunos e 04 ex-alunos da Licenciatura em Teatro da UFT; 01 coordenador das atividades.As
atividades criadas/adaptadas (aqui analisadas) e que constam nos planos de ensino são:

a) Aulas para crianças com idades entre 04 e 05 anos:

Os alunos serão convidados a contar quais são suas brincadeiras favoritas. Após o que
serão instigados a criar uma brincadeira que não seja de conhecimento do orientador. A
brincadeira será realizada em aula. Durante a brincadeira todos os participantes, inclu-
sive o orientador, poderão negociar mudanças dos códigos. Ou na primeira aula ou nas
seguintes, a depender do andamento da turma, objetos serão introduzidos à brincadeira
com fins de se complexificar a dimensão da teatralidade.230

b) Aulas para crianças com idades entre 06 e 08 anos:

Os alunos serão convidados a reproduzir imagens (obras de artes) que contenham


pessoas, depois animais, depois objetos, depois formas geométricas e por fim ape-
nas volumes e cores. Eles deverão usar apenas o corpo para realização das ima-
gens. O trabalho deverá ser coletivo.231

c) Aulas para crianças com idades entre 09 e 10 anos:

Um objeto é escondido no espaço. Os alunos devem procurá-lo. Imediatamente


após o objeto entrar no campo de visão do aluno ele deve parar todo e qualquer
movimento. Após o que deve esperar indicações do condutor para pegar o obje-
to (antes do deslocamento podem haver indicações de projeções-desejos: (não)
quero o objeto etc.). Ao se deslocar em direção ao objeto os alunos não devem
perder o foco nele. Quando um dos alunos toca o objeto, todos devem congelar.
O condutor escolhe uma parcela da imagem para ser lida pelo aluno que tocar o
objeto escondido. Após a leitura inicial, o aluno pode propor alterações para os
jogadores. Na sequência os alunos devem registrar a cena descrita em forma de
desenho, enquanto o orientador fotografa a cena criada para ter três naturezas de
registro: o texto, o desenho e a fotografia.232

Achados de pesquisa e discussões

O primeiro achado de pesquisa de que vou tratar aqui se refere à atividade desenvolvida com as crian-
ças com idades entre 04 e 05 anos. Ao solicitar que as crianças me ensinassem uma brincadeira que eu não
conhecesse, eu tinha dois propósitos. O primeiro deles era partir de propostas das crianças e explorar tea-

230. Transcrição literal de parte do plano de ensino da aula 09 para crianças com idades entre 04 e 05 anos do projeto Encontros de Ludicidade e
Infância - CONAC - UFT.
231. Transcrição literal de parte do plano de ensino da aula 09 para crianças com idades entre 06 e 08 anos do projeto Encontros de Ludicidade e
Infância - CONAC - UFT.
232. Transcrição literal de parte do plano de ensino da aula 07 para crianças com idades entre 09 e 10 anos do projeto Encontros de Ludicidade e
Infância - CONAC - UFT.

372
tralidades nas brincadeiras. O segundo era orientá-los na direção da criação de uma brincadeira e não para
a execução de uma brincadeira já experimentada. Minha ideia era de que eles pudessem realizar seleções de
aspectos de brincadeiras já conhecidas e recombiná-los para a finalidade da aula: criação. O impulso inicial dos
participantes foi lembrar de brincadeiras que haviam conhecido em aulas anteriores, todas bastante prenhes
de teatralidade. Essa dimensão da teatralidade incentivada nos jogos de aulas anteriores e retomada por eles
na aula de que trato aqui me fez avaliar positivamente as atividades desenvolvidas até ali no âmbito da experi-
ência com a linguagem teatral. Considerando o mapa maior das brincadeiras que certamente os participantes
conhecem, eles se mantiveram bastante atrelados à proposições que chamaremos aqui de teatrais: escolha de
brincadeiras que incluem a fabulação ou a transformação de si em algo diferente de si: Ex.: tubarões que estão
caçando pessoas que tentam atravessar para o outro lado do “rio”; ou, estamos todos encostados na parede,
temos 30 segundos para atravessar até a outra parede, mas não podemos deixar o gigante nos pegar.

Acolhi aos poucos as atividades, mesmo que fossem desdobramentos de brincadeiras já realizadas
em sala. Isso para construir com eles certa presença da sensação de confiança necessária à criação (Sampaio
& Gonçalves, 2017) e à sensação pessoal a respeito de sua potência de ação simbólica naquele contexto
(Boesch, 1991). Depois de realizar as duas brincadeiras, do tubarão e do gigante, disse a eles que eram as
duas variações de brincadeiras que já havíamos feito em aula. Pedi, então, que tentassem criar algo que eu
realmente não conhecia. Uma das alunas me disse “você provavelmente conhece todas as brincadeiras que
eu conheço” (VG). Ao que eu respondi que então só nos restava uma saída, criar algo inexistente até então.
Nesse ponto chegávamos a um dos meus interesses, adentrar o espaço da criação da brincadeira (e reconhe-
cer nela teatralidades e códigos que possibilitam e desenvolvem a teatralidade).

Façamos um retorno no tempo. Durante o início da aula, dividi a sala em duas. Uma parte esta-
va iluminada com luz branca cotidiana, aquela usada diariamente em espaços escolares, e a outra metade
estava iluminada com iluminação usada em teatro: dois refletores “par 38”. Sem explicar para os alunos o
motivo da ação, quando eu conversava com eles a respeito da criação da brincadeira estávamos na área de
luz cotidiana e a luz cênica ficava apagada. Quando íamos para as experimentações da brincadeira criada
nos posicionávamos na parte cenicamente iluminada, enquanto o outro lado da sala permanecia apagado.

No momento em que disse a eles que nossa opção era criar algo inexistente, estávamos na região de
iluminação cotidiana. Uma das alunas disse, poderíamos então criar uma brincadeira de teatro. Ao que eu
questionei como seria. Ela respondeu: “A gente faz assim, a gente vai para o outro lado da sala [com ilumina-
ção teatral], cada um escolhe o que quer ser, e a gente começa a brincar de ser as coisas” (VG). Na sequência
a aluna me perguntou se eu conhecia essa brincadeira. Eu respondi que conhecia o teatro, mas que não
conhecia como eles brincariam de teatro. Fomos para o outro lado da sala e o jogo-teatro se instaurou com
cada um “sendo” algo que escolheu ser. E a brincadeira em si era interagir uns com os outros.

Outra regressão temporal. Durante os dois primeiros jogos (tubarão e gigante), uma das alunas su-
geriu que todos fiquem encostados na parede. Eu perguntei o motivo disso e ela respondeu que deveríamos
fazer igual no teatro. Que a parede era o lugar de quem não estava na peça [espaço de representação]. No
momento em que estávamos no jogo-teatro, outra aluna disse que a gente podia usar a “mesma coisa” que
usamos nas brincadeiras anteriores. Quem estiver encostado na parede está fora do jogo e quem estiver de-
sencostado da parede e “dentro” da luz [cênica] está brincando. Um grupo de crianças abandonou o espaço
delimitado e passou a brincar na parte escura da sala. A esse fato um das alunas atribuiu a ideia de que eles
estavam em outra brincadeira.

Um terceiro aspecto da mesma brincadeira merece atenção. Quando passamos para o lado ilumi-
nado cenicamente, uma das alunas sugeriu que sentemos em roda para que cada um dissesse“o que vai ser
na brincadeira (VG)”. Entretanto, uma das alunas, ao adentrar a área cenicamente iluminada,interrompeu

373
todos os seus movimentos e permaneceu como uma estátua. Os colegas tentavam mexer nela para fazer com
que ela falasse o que gostaria de ser na brincadeira. Ao perceber que ela permanecia em estátua, eu disse que
ela já estava “brincando de ser” - estátua. E de fato essa foi a construção dela durante a brincadeira, ser uma
estátua que era deslocada por mim pelo espaço quando isso se fazia necessário. O que parecia estar aconte-
cendo com essa aluna era a compreensão do código da iluminação para estabelecer espaço de discussão e es-
paço de brincadeira [teatro] e a assunção de que ao entrar na área cenicamente iluminada já deveria iniciar
seu jogo. Essa iniciativa, enquanto prática investigativa da aluna, aponta para a possibilidade de exploração
de uma poética pessoal, busca apropriada para o ensino da Arte na educação básica (Brasil, 2017).

Importante ressaltar como os códigos que estabelecem a área de representação na brincadeira cria-
da, como utilizamos a iluminação [proposta minha] e como utilizamos a aproximação dos corpos com a
parede [proposta dos alunos], trata de “aprender o que está em jogo durante o fazer artístico” (Brasil, 2017,
p. 192), nesse caso, teatral. Ou seja, a exploração da teatralidade de si-mesmo (Sampaio, 2017), dar a ver a si
de modo diverso daquele que se vive no cotidiano, por meio de códigos de linguagens específicos criados,
explorados e transformados na brincadeira, compreende a dimensão da criação esperada no ensino da Arte,
segundo a BNCC.

A teatralidade presente na brincadeira proposta e brincada vai ao encontro da necessidade estabe-


lecida pelo RCNEI sobre a exploração do movimento, de acordo com as orientações didáticas para crianças
nas idades dos participantes do projeto: “Utilização expressiva intencional do movimento nas situações co-
tidianas e em suas brincadeiras (Brasil, 1998, p. 32). A exploração intencional do movimento é que garante
o rascunho da teatralidade (Sampaio, 2017) que nos interessa na atividade. Selecionar algo que se quer mos-
trar ao outro, ainda que em desenvolvimento. Saber, nesse caso, que se joga teatro, por exemplo, fez com que
uma das crianças decidisse ser uma palhaça que fazia a apresentação das “Personagens” brincantes. Mesmo
que isso não interferisse de fato no rumo das brincadeiras individuais naquele momento. Certamente esse
código faz evidente a noção das crianças de que estão realizando algo para ser visto por outras pessoas (ain-
da que seja apenas o orientador). Contexto esse diverso das brincadeiras espontâneas do cotidiano que são
majoritariamente endo-centradas.

Tomemos o segundo caso, atividades desenvolvidas com as crianças com idades entre 06 e 10 anos,
para prosseguir com a discussão. De acordo com a BNCC, “Ainda que as linguagens artísticas [...] sejam
consideradas em suas especificidades [...] é importante que o componente curricular Arte leve em conta o
diálogo entre essas linguagens (Brasil, 2017, p. 194). A atividade proposta (leitura de imagens, seguida de
criação de imagem estática, e exploração dinâmica da criação) buscou articular a expressão, a criação e a
reflexão, como dimensões do ensino das artes.

O código estabelecido pela iluminação para a construção de um espaço de exploração intencional


do corpo no espaço também esteve presente nesta atividade. Uma faixa de luz cênica azul se estabeleceu
desde o início da aula, em uma das paredes da sala, como o local em que as imagens deveriam ser explo-
radas. Os alunos foram apresentando paulatinamente necessidade de expandir a área de exploração das
imagens. Foi, então, que um dos alunos me disse que “a gente precisa de mais espaço com luz pra poder se
mexer (VG)”. A essa necessidade da expansão do código, eu acendi um segundo conjunto de luzes coloridas
(1 luz verde, 1 amarela e 1 lilás) na área em que os alunos propuseram ser a região para exploração da mo-
vimentação. Nessa medida tínhamos três códigos estabelecidos:1 - A luz cotidiana branca era o momento
de observação das imagens; 2 - A luz azul, no fundo da sala, encostada na parede sinalizava que os alunos
deveriam montar a imagem estática a partir das observações da imagem (obras em artes visuais de artistas
brasileiros); 3 - A região mais central colorida indicava que a partir das observações das imagens (observada
e criada) os alunos deveriam explorar a relação entre corpo e espaço desde os temas e proposições emergi-
das na fruição e na criação.

374
Um achado de pesquisa adicional merece ser acrescentado aqui. No ensino de Arte, a forma como
lidamos com as obras e as criações vão aos poucos estabelecendo classificações a respeito do que se entende
por obra de arte e o que se entende por uma obra valorada positivamente. A historicidade desse processo,
como afirma Canclini (2015) deriva da 1- divisão entre arte e artesanato; 2- institucionalização (e privação
do acesso) da arte (museus, por exemplo); 3 -escolha da contemplação como o modo de fruição legitimo da
arte. Digo isso porque, escolhi para a primeira aula dessa temática, obras que, de algum modo, figuravam
pessoas e/ou animais. A ideia era passar dessa figuração para o trabalho com formas geométricas e chegar
ao exercício da exploração não figurativa de cores e volumes. Entretanto, mostrei uma obra, intencional-
mente, no final do processo: O Abaporu da Tarsila do Amaral. Apresentei como todas as outras obras com
a pergunta: “O que vocês veem nessa imagem” (VG). Em nenhum dos outros momentos os alunos fizeram
qualquer comentário para além das reflexões a respeito da composição imagética. Contudo, imediatamente
após eu apresentar a imagem do Abaporu, uma sequência de comentários se desenrolaram na sala: “Eu sei
que essa obra é o Abaporu” (VG); “Eu já pintei o Abaporu” (VG); “Nós já fizemos um trabalho na escola
sobre o Abaporu” (VG). O ponto aqui é que em nenhum dos outros momentos os alunos reconheceram
as imagens como obras de arte. Eram apenas imagens, e isso era suficiente para a construção da atividade.
Tal fato parece resvalar em uma suposição de que não se apresentaram, nas aulas de Arte na escola de cada
aluno, as linguagens e os aspectos de composição das linguagens. Apresentaram-se, ou pelo menos isso teve
dimensão mais enfática, obras específicas de artistas específicos que possuem alguma representatividade
dentro de um discurso igualmente específico sobre Arte. Ou seja, também a educação básica parece seguir
construindo uma relação de poder simbólico entre as manifestações artísticas e as práticas sociais em arte,
para usar um termo de Cevasco(2016), sobre o que deve ser considerado Arte e, ainda, o que deve ser con-
siderada Arte Culta, quase no sentido de “a verdadeira Arte” (Canclini, 2015).

Outro aspecto merece atenção. Em uma das criações imagéticas dos alunos. Um dos alunos me dis-
se, após a fruição, que “A imagem parece ter vento” (VG). Disse a ele que poderia incluir o vento. Imediata-
mente ele começou a mexer os braços para representar o vento. Eu lhe lembrei que ele estava sob a luz azul e
que portanto deveria estar parado. Na sequência ele começou a assoviar, para que o vento estivesse presente.
A partir desse momento, as explorações dinâmicas ganharam um novo elemento de código de linguagem:
sonorizações vocais realizadas em paralelo e de modo complementar à exploração corporal. Disso tivemos
a ambientação sonora de mar, aves e pessoas conversando numa casa. Mais uma vez a atividade chegou à te-
atralidade, agora extrapolando a exclusividade corporal dessa construção para a interconexão corpo-vocal.

Por fim, analisarei agora aspectos do último caso, atividades com as crianças com idades entre 09 e
10 anos. Procurar um objeto e conseguir se manter parado quando esse objeto adentrar o campo de visão. A
primeira parte da atividade é uma ação tão cotidiana (procurar um objeto) que geralmente não somos mais
capazes de reconhecer a dimensão da estesia que a constitui. Algumas estratégias, tomando o teatro como
operador,foram escolhidas para explorar a dimensão da estesia, “experiência sensível dos sujeitos em relação
ao espaço, ao tempo, ao som, à ação, às imagens, ao próprio corpo e aos diferentes materiais” (Brasil, 2017, p.
192). Depois de experimentadas as dinâmicas da atividade, os alunos eram convidados a procurar o objeto:
se arrastando pelo chão; com a cabeça exclusivamente inclinada para trás; dançando ininterruptamente etc..
No terceiro dia dessa atividade, acrescentei a mudança da luminosidade da sala. Passamos de muita luz a
completamente escuro.

Ao final de cada rodada, os alunos eram divididos entre aqueles que se mantinham parados, com-
pondo imagens, e aqueles que fruíam as imagens e nos diziam a que se referiam (segundo a fruição). Na me-
dida em que a exploração corporal e de luminosidade foram inseridas na atividade, as imagens deixaram de
ser lidas isoladamente e passaram a compor um contexto unificado, de interação, entre as diferentes “estátu-
as”. Dois aspectos chamaram minha atenção. Havia na sala um desenho de uma cidade, na parede do fundo,

375
feito para uma atividade com outra turma. Aos poucos o desenho, as janelas da sala, a porta, foram sendo
introduzidas pelos alunos em suas leituras das imagens. Não eram só os corpos que “eram lidos”, a relação
dos corpos com o espaço passou a tomar vulto nas “análises”. Os alunos estavam claramente desenvolvendo
a competência de ressignificar “espaços [...] no âmbito da arte” (Brasil, 2017, p. 196).

Os códigos que se criaram para a leitura de imagem foram sendo transformados aos poucos e ga-
nharam incremento na medida em que se inseriram objetos e partes do espaço nas “leituras”. Por exemplo,
com a diminuição da luz, a presença de corpos desorganizados em relação ao que se vê no cotidiano (por
conta dos diversos modos de procurar o objeto) e a presença de um esqueleto de resina no espaço, construiu-
-se a ideia de uma casa mal assombrada. Após esse momento, os alunos passaram a explorar possibilidades
de mudanças no espaço, na luz e nos corpos, para expandir a potência da criação da casa mal assombrada e
de seus moradores.

Diferente da atividade da turma com crianças com idades entre 06 e 08 anos, nessa dinâmica de
exploração dos códigos, os alunos entendiam claramente que quem tinha o “poder” da leitura propositiva
eram os fruidores. E que cabia aos executores buscarem composições entre corpos e espaços que fossem
capazes de aproximar os fruidores das leituras que gostariam que se tivesse das imagens. No caso das crian-
ças menores, esse código apresentou-se diversamente. Quase em todas as rodadas da atividade, alguma das
crianças, parte estática da composição, propunha/impunha a leitura. Conforme as crianças foram perceben-
do que a fruição independia do desejo de leitura dos criadores, mas que eles poderiam construir influências
sobre a leitura, um novo código de linguagem se estabeleceu: a cada rodada de criação, os participantes po-
deriam mudar a disposição dos seus corpos no espaço e em relação a outros corpos, até se chegar à imagem
desejada, a partir das leituras em realização.

Considerações Finais

Apresentei neste artigo os caminhos que me levam a supor que atividades de criação, experimen-
tação e transformação de códigos, desde a perspectiva da CPC para o ensino de teatro, são propícias para
se operar a linguagem teatral no ensino de teatro e para possibilitar aos alunos a exploração intencional
da alteridade de si para si mesmo: modos não cotidiano de estar/ser no mundo. As três experiências ana-
lisadas mostraram como é possível se chegar à linguagem teatral sem que a criação cênica seja o caminho
privilegiado da atividade. Ao mesmo tempo, demonstraram que a pessoa pode continuar sendo o foco das
atividades (e não a linguagem em si), sem que com isso se perca de vista a experiência com a linguagem.

Os códigos de linguagem com que se trabalhou nas atividades serviram como apontado no início
do artigo, para a expansão da experiência maior com linguagens, como forma de se relacionar com o mun-
do. Desse modo, os trabalhos visaram à ampliação das possibilidades de construção de identidades pessoais
e coletivas. Vale ressaltar, por fim, que essas mudanças não poderão ser observadas em 50 minutos de ativi-
dades. Mas podem ocorrer a longo prazo pela continuidade de iniciativas como as analisadas.

376
Referências Bibliográficas

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377
O ENSINO DE TEATRO NA
PERSPECTIVA DOS JOGOS TEATRAIS
Maria Valéria Vital de Souza (UFPE)

INTRODUÇÃO
No contexto social contemporâneo, a escola necessita encontrar novos paradigmas para concretizar
uma educação que atenda aos anseios da sociedade vigente. Nesta teia, com a linguagem do teatro, abrem-se
portas para outras formas de ver e estar no mundo. O teatro existe há muito tempo. Augusto Boal (2009),
aponta que a linguagem teatral é a linguagem humana por excelência, e a mais essencial. “Descobrindo o te-
atro, o ser se descobre humano” (BOAL, 2009, p. 20). Ele é inerente ao ser humano pois sempre esteve nele/
com ele, ajudando-o a interpretar o mundo e (trans)formá-lo, em todas as épocas.

O Teatro não precisa de nada para justificar a sua realização dentro da escola, ele tem fim em si
mesmo. É tão caro e importante para as crianças em desenvolvimento como, também, são as necessidades
mais elementares para esse processo.

Todo mundo atua, age, interpreta. Somos todos atores. Até mesmo os atores! Teatro é algo
que existe dentro de cada ser humano, e pode ser praticado na solidão de um elevador, em
frente a um espelho, no Maracanã ou em praça pública para milhares de espectadores. Em
qualquer lugar... até mesmo dentro dos teatros [e na escola]. (BOAL, 2009, p. 9).

Os Jogos Teatrais são fundamentais para o exercício do teatro. No seu livro Jogos Teatrais, Koudela
(2013) registra, de um certo entusiasta, que “os jogos teatrais são para o teatro o que o cálculo é para a mate-
mática. Dito de outro modo, não existe o ensino de teatro sem eles. Possuem a capacidade de despertar nos
alunos o desejo por outros mundos, fictícios ou não, ao mesmo tempo em que lhes permite repensar sobre
suas realidades e vivências a partir de uma relação dialógica, na qual os jogadores são criadores de cultura.

A energia gerada neste encontro da criança com ela mesma (ao observar), e com o outro (ao in-
terpretar), possibilita a sua aprendizagem, o seu desenvolvimento integral e uma formação holística, tão
necessária na contemporaneidade.

Ao longo de muitos anos e várias experiências acumuladas, no exercício da docência na linguagem


teatral, com turmas da educação básica, utilizando os Jogos Teatrais como uma das mais importantes ferra-
mentas para o ensino de Teatro, surgiu a inquietação e o interesse por responder ao tema: A contribuição dos
Jogos Teatrais para o ensino de Teatro no Ensino Fundamental, na contemporaneidade, tamanho é o interesse
e entusiasmo observados quando os alunos jogam. Para tanto, traçamos como objetivo analisar como os
Jogos Teatrais têm contribuído para o Teatro-Educação na contemporaneidade e sua importância como
recurso pedagógico.

378
JOGOS TEATRAIS

O sistema de Jogos Teatrais possibilita um aprendizado pela experiência, em que os jogadores envol-
vidos vivenciam a ação de jogar e aprender jogando. Ele representa uma das mais importantes metodologias
para o ensino de teatro. Tatiana Belinky, no prefácio do livro Jogos Teatrais de Ingrid Dormien Koudela
(2013), afirma que esse método aponta para uma renovação da linguagem do teatro, ao se fundamentar na
incorporação do jogo na representação dramática, permitindo vir à tona o espontâneo para a ação de repre-
sentar. Contudo, espontâneo não é análogo à livre. Complementa Koudela:

A espontaneidade equivale, portanto, à liberdade de ação e estabelecimento de contato


com o ambiente. [...] é fácil verificar que, quando o processo de improvisação é deixa-
do totalmente livre, poucas vezes ele pode ser identificado com ação espontânea. Pelo
contrário, logo se revelam quadros de referências estáticos ou estereotipias na atuação e
comportamento de dependência que são mais prejudiciais do que compensadores. [...]
A ação espontânea exige uma integração entre os níveis físico, emocional e cerebral. Em
oposição a uma abordagem intelectual ou psicológica, o processo de jogos teatrais busca
o surgimento do gesto espontâneo na atuação, a partir da corporificação. (KOUDELA,
2013, p. 51).

A sistematização dessa proposta foi elaborada por Viola Spolin (1906-1994). Americana, bastante
conhecida por utilizar técnicas de improvisação no teatro, ao longo de quase três décadas de pesquisas junto
a crianças, pré-adolescentes, adolescentes, jovens, adultos e idosos nos Estados Unidos da América. Utili-
zando a estrutura do jogo (Onde, Quem, O quê) e a atuação baseada na participação em jogos, como base
para o treinamento de teatro, a autora pretendia a libertação de comportamentos mecânicos e rígidos. Seus
esforços foram válidos e resultaram no oferecimento de um detalhado programa de oficina de trabalho com
a linguagem teatral. Camargo afirma que

Viola Spolin, diretora de teatro e pedagoga, possibilitou com suas reflexões práticas, pro-
fundas bases para o teatro improvisacional norte-americano. Nele estão impressas as téc-
nicas do cabaret alemão, da commedia dell”arte, da atuação brechtiana e de muitos dos
conceitos de experiência ativa no trabalho do ator de Stanislavski. Esta sistematização dos
Jogos Teatrais contou, além da sua imersão na cultura teatral dos anos sessenta do século
passado, com a inspiradora metodologia do jogo elaborada por Neva Boyd (1876–1963),
desenvolvida principalmente na Hull House de Chicago, local de agregação social e de
atividades de imigrantes pobres que chegavam falando todas as outras línguas para fazer a
“América”, carregando seus cantos, histórias, danças, jogos, nos primeiros anos do século
XX, refugiados da pobreza, da guerra, da repressão, aquecendo-se na sopa da cultura.
(CAMARGO, 2010, p. 2)

Os Jogos Teatrais são pautados na ludicidade e em atividades de improvisação. Por meio da sua
organização e das experiências práticas vivenciadas nas aulas ou oficinas, é possível aflorar liberdade dentro
de regras acordadas. Porém, essas regras instituídas têm como intuito liberar a espontaneidade. “Por meio
do envolvimento criado pela relação do jogo, o participante desenvolve liberdade pessoal dentro do limite
de regras estabelecidas e cria técnica e habilidades pessoais necessárias para o jogo” (KOUDELA, 2013, p.
43). Neste sistema, todos os envolvidos são jogadores; jogadores da ação – palco – e jogadores da plateia. Os
participantes constituem, então, uma ligação de parceria.

379
Esta relação existente entre os atuantes proporciona que as ações surgidas da interação com os pares,
forneçam substrato para que o imaginário passe a existir, assumindo a concretude do sensível, de acordo
com Koudela (2010). Com isso, viabiliza-se que o espaço de ensino-aprendizagem-formação, seja um am-
biente propiciador ao desenvolvimento da criatividade e ao aumento da sensibilidade.

No processo de ensino, a abordagem intelectual ou psicológica é substituída pelo plano


da corporeidade. O material do teatro, gestos e atitudes é experimentado concretamente
no jogo, sendo que a conquista gradativa de expressão física nasce da relação que deve ser
estabelecida com a sensorialidade. Dessa forma, no decorrer do processo educacional, [...]
através da fisicalização, a realidade cênica adquire textura e substância. (KOUDELA in
SPOLIN, 2010, p. 23-24).

O método em tela, com os pressupostos apresentados, acima, permite tanto desenvolver técnicas
teatrais para a formação do artista como para a formação de plateia, uma vez que o ator/aluno vivencia o
ser atuante, e o ser espectador, em momentos distintos dentro do jogo. No contexto da escola, a finalidade
é ensinar a linguagem do teatro aos alunos de modo que eles possam viver a cena plenamente, podendo
ser diversos personagens, e expressar ideias, pensamentos, sentimentos, sensações, anseios, entre outros,
oportunizando aos mesmos compreenderem a construção de conteúdos por meio da forma estética. Dessa
maneira vai sendo adquirida, através da observação, percepção, imaginação, a experiência em pensar e agir
de forma reflexiva, crítica e criativa para atuar efetivamente no mundo.

Os Jogos Teatrais surgiram no Brasil em 1982 com Ingrid Dormien Koudela, que possui formação em
Crítica pelo Setor de Teatro da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP),
instituição onde ensinava a disciplina de “Teatro Aplicado à Educação”, ao defender sua dissertação Jogos Tea-
trais: um processo de criação, trabalho realizado a partir do livro Improvisação para o Teatro de Viola Spolin, do
qual Koudela é tradutora, assim como é, também, de outros livros da citada autora; e das inquietações, refle-
xões e experiências colhidas no exercício da docência, tanto na Educação Básica como na Educação Superior.

Ingrid Koudela, com o desejo de alavancar estudos nos cursos de graduação e pós-graduação, sobre
o “teatro realizado com crianças”, suscitado ao ministrar as aulas na ECA, quando nota a ausência de uma
sistematização para o seu ensino, implementa o “Grupo de Estudos em Teatro/Educação”. O grupo, forma-
do por graduandos e pós-graduandos, empreendeu um levantamento da bibliografia nacional e estrangeira
sobre o assunto. É nesse ponto que há o encontro com o livro Improvisation for the Theatre

Base para a experimentação prática com um sistema de ensino [...]. Através do livro os
jogos teatrais já vêm contribuindo para uma formação em teatro nos mais diversos níveis,
desde a sua adoção por professores em escolas de primeiro e segundo graus até universi-
dades, grupos amadores e profissionais. (KOUDELA, 2013, p. 14).

A partir daí os integrantes do grupo de estudos passaram a realizar experimentação prática utilizan-
do os jogos teatrais, em diferentes espaços e diversas modalidades de ensino, como: grupo de teatro; curso
de teatro para criança e adolescente; oficina de dramaturgia para autores de teatro infantil; sala de aula. Da
larga experiência acumulada nessa trajetória surge, portanto, a sua pesquisa de mestrado. “A preocupação
em buscar uma sistemática para o ensino do teatro encontrou significado quando a devoração antropofá-
gica do livro de Spolin abriu caminho para a descoberta do outro” (KOUDELA, 2013, p. 15). Desde então,
a utilização do Sistema dos Jogos Teatrais como recurso metodológico não parou de avançar, chegando até
os dias de hoje, vivíssimo e atual.

380
METODOLOGIA

O estudo em foco que tem como objetivo, compreender como os Jogos Teatrais contribuem para
o teatro-educação na contemporaneidade e sua importância como recurso pedagógico, se insere em uma
abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa é utilizada quando o pesquisador pretende obter resultados
que não são passíveis de medição numérica, quando as subjetividades individuais estão envolvidas.

A presente pesquisa se insere nesta heurística por apresentar as seguintes características: (a) o am-
biente natural foi a fonte direta dos dados; (b) o maior instrumento de coleta de dados foi a pesquisadora; (c)
o processo foi mais valorizado do que os resultados; (d) a análise dos dados se deu a partir de um processo
indutivo; e (e) tentou-se, a partir de observações participante e entrevistas, compreender a “perspectiva dos
participantes” (BOGDAN e BIKLEN, 1994).

O caminho foi percorrido em duas etapas que aconteceram, no entanto, concomitantemente. Da


primeira etapa fez parte: (I) a análise da bibliografia de Viola Spolin, composta por quatro livros traduzidos
para o português por Ingrid Dormien Koudela233. Duas dessas publicações estão diretamente relacionadas
com a pesquisa em pauta e são elas: Jogos Teatrais – o fichário de Viola Spolin e Jogos Teatrais na sala de aula –
um manual para o professor. Os outros dois livros consubstanciam a investigação com o intuito de contribuir
para um melhor entendimento das relações possíveis entre o ensino de teatro e a metodologia improvisacio-
nal dos Jogos Teatrais, e são eles: Improvisação para o Teatro e O Jogo Teatral no Livro do Diretor; (II) análise
do livro Jogos Teatrais de Ingrid Koudela.

A segunda etapa, refere-se à aplicação dos jogos teatrais nas aulas de Teatro, ministradas nas classes
de primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental I, no Colégio Apoio, em turmas que variam entre 23 e
26 alunos, como parte da prática docente realizada para o ensino da mencionada disciplina, neste espaço.

Para a prática docente a lente teórica teve aporte em João Francisco de Souza. Na pesquisa aludida, a
prática diz respeito ao desenvolvimento do trabalho realizado pela professora em sala de aula, mas sabemos
que ele está imbricado em um contexto muito mais amplo, na grande área que é a Educação. “A professora
e o professor não têm prática pedagógica. Tem prática docente. A prática docente é apenas uma das dimen-
sões da prática pedagógica [...]” (SOUZA, 2012, p. 20).

O Colégio Apoio, Campo da pesquisa, pertence a Rede Particular de Ensino da Cidade do Recife,
capital do estado de Pernambuco, no Brasil. A região metropolitana desse município é dividida em seis Regi-
ões Político Administrativas (RPA). A escola – local do estudo – situa-se no bairro de Casa Amarela, na Zona
Norte da metrópole, na RPA3, que é a região com a maior extensão territorial, contendo vinte e nove bairros234.

A referida escola foi fundada em 30 de outubro de 1984 por quatro sócias fundadoras. Porém, o
desejo por uma comunidade de aprendizagem já existia em estado latente, desde 1982, quando essas quatro
educadoras criaram um grupo de assessoria educacional e pedagógica “para apoiar crianças e adolescentes,
orientando-os nas suas dificuldades de aprendizagem, e educadores, facilitando a sua busca de melhoria
profissional. O nome APOIO foi, portanto, escolhido em função deste objetivo inicial” (Apoio, 2018).

Já no ano seguinte, o grupo de assessoria amplia suas atividades, começa um trabalho de “Educação
Especial” para atender crianças que estavam sendo excluídas da escola regular, por causa das suas grandes
dificuldades para aprendizagem. Inicia, assim, sob esse pilar, a pedra fundamental para a escola que é pio-

233. Eduardo Amos divide com Ingrid Koudela a tradução dos livros: Improvisação para o Teatro e O Jogo Teatral no Livro do Diretor
234. Aflitos, Alto do Mandú, Alto José do Bonifácio, Alto José do Pinho, Apipucos, Brejo da Guabiraba, Brejo de Beberibe, Casa Amarela, Casa Forte,
Córrego do Jenipapo, Derby, Dois Irmãos, Espinheiro, Graças, Guabiraba, Jaqueira, Macaxeira, Monteiro, Nova Descoberta, Parnamirim, Passari-
nho, Pau Ferro, Poço da Panela, Santana, Sítio dos Pintos, Tamarineira, Mangabeira, Morro da Conceição, Vasco da Gama.

381
neira, em Pernambuco, quiçá no Brasil, na inclusão e no apoio de alunos, e, também, de alunos com Neces-
sidades Educacionais Especiais (NEE). Hoje, esses estudantes perfazem aproximadamente dez por cento do
total do corpo discente e estão incluídos em classes regulares de ensino.

A proposta pedagógica do Colégio Apoio é pautada no referencial teórico do Socioconstrutivismo,


onde o propósito fundante para o processo de ensino-aprendizagem concretiza-se em situações de inte-
rações entre os pares, bem como com toda comunidade escolar (docentes, discentes, gestores). De onde
advém a construção de conhecimentos dentro de uma visão sociohistórica. Para tanto, investe na formação
continuada de educadores, através do Centro de Pesquisas e Ações Pedagógicas (CPAP), espaço destinado
ao intercâmbio de experiências e ressignificação de aprendizagem.

O ensino de Arte no Colégio Apoio, contempla as linguagens artísticas: das Artes Visuais, da Música
e do Teatro (sendo uma das poucas escolas, no Recife, que possui essa disciplina no Currículo do Ensino
Fundamental I), dentro da grade curricular. Bem como Yoga e Psicomotricidade Relacional. Também, como
forma de ampliação curricular, são oferecidas aos alunos outras possibilidades: Tempo Complementar, Ro-
bótica, Futsal, Vôlei-Quadra, Xadrez, Dança Brasílica, Ginástica Rítmica, Musicalização, Oficina de Artes,
Oficina de Teatro235.

As aulas de Teatro acontecem em uma sala específica, em espaço amplo, uma vez por semana e
tem duração de 50m. O registro da realização das atividades propostas foi feito por meio da observação in
loco, registro no diário de campo, depoimento oral e escrito dos alunos, fotos e filmagens. É imprescindí-
vel apontar que os jogos que são elencados e propostos para as aulas já foram todos experimentados pela
pesquisadora (isso inclui os 210 jogos do Fichário de Viola Spolin), ao fazer parte do GT-Jogos Teatrais na
Universidade Federal de Pernambuco.

Entre outras metodologias que são utilizadas para a efetivação do ensino de Teatro em sala de aula,
estão os Jogos Teatrais. Para a vivência do jogo divide-se o grande grupo em dois: os que fazem (atores), e os
que observam (plateia), todos jogam. Então, a partir daí já se estabelece uma relação palco-plateia, ou seja, a
essência da arte teatral. Usa a estrutura do Onde, do Quem, do O Quê? Mais as Três Essências do jogo teatral,
Foco, Instrução e Avaliação.

O Foco é o ponto convergente onde todos os jogadores colocam sua atenção. É a concentração ne-
cessária para o jogo acontecer. Os alunos aprendem, a partir da vivência, a importância de ficarem atentos
no momento da Cena.

O foco coloca o jogo em movimento. Todos se tornam parceiros ao convergir para o mes-
mo problema a partir de diferentes pontos de vista. Através do foco entre todos, dignidade
e privacidade são mantidos e a verdadeira parceria pode nascer. [...] O foco não é o obje-
tivo do jogo. Permanecer com foco gera a energia (o poder) necessária para jogar que é
então canalizada e escoa através de uma dada estrutura (forma) do jogo para configurar o
evento teatral. (SPOLIN, 2010, p. 32).

Nas aulas, percebe-se a dificuldade dos alunos de manterem o foco. Ele é fornecido pela professora
no início do jogo, que durante toda a ação, os auxilia a permanecerem firmes e concentrados, por meio da
instrução. Exemplos de frases para a instrução: Qual é o foco da aula de hoje? Qual é o foco do jogo? Mostre!
Não conte! Permaneça concentrado; não perca o foco.

235. Para mais informações acessar: www.colegioapoio.net

382
A instrução é dada durante o jogo sem que esse precise parar. É o momento que o instrutor, tam-
bém, entra no jogo. Ela permite que os jogadores retornem ao foco quando eles se distanciam. “A instrução
é o enunciado daquela palavra ou frase que mantém o jogador com o foco. Frases para a instrução nascem
espontaneamente a partir daquilo que está surgindo na área do jogo e são dadas no momento em que os jo-
gadores estão em movimentos” (SPOLIN, 2010, p. 33). Ela precisa ser pronunciada como parte do processo,
para que os alunos/jogadores respondam de forma livre.

A Avaliação é feita a partir do foco. Ela é transparente, parte do problema a ser solucionado proposto
pelo o foco. Ele foi solucionado? “Avaliação não é julgamento. Não é crítica. A avaliação deve nascer do foco [...].
As questões para a avaliação listadas nos jogos são, muitas vezes o restabelecimento do foco. Lidam com o pro-
blema que o foco propõe e indagam se o problema foi solucionado” (SPOLIN, 2010, p. 34). Nesse momento, os
jogadores da ação e os jogadores da plateia compartilham sua percepção do experimentado. É o momento onde
o vivido é compartilhado entre todos. Muitas vezes a criança que está na ação, por exemplo, não percebe que
saiu do foco até ouvir a plateia. Ao estimular o aluno a emitir opiniões, estamos oportunizando à argumentação.

Quando um jogador ou grupo trabalha no foco do jogo, todos os outros jogadores que
fazem a plateia compartilham o jogo. Aquilo que foi comunicado ou percebido pelos joga-
dores na plateia é então discutido por todos durante a avaliação. Dentro de um ambiente
livre, ao perguntar aos jogadores no palco: “Vocês concordam com os jogadores na pla-
teia? ”, estamos dando a eles uma oportunidade idêntica para posicionar-se em relação
àquilo que acabaram de fazer. (SPOLIN, 2010, p. 34).

Neste processo avaliativo, as palavras ruim/bom, melhor/pior, certo/errado, não devem existir. É a
partir do foco que se faz a observação e a crítica.

Os conteúdos pertinentes à linguagem teatral foram trabalhados, também, através da vivência dos
Jogos Tradicionais, Simbólicos e Dramáticos; de atividades de experimentação e composições individuais
e coletivas em conjunto com a estrutura dramática do Onde (cenário/ambiente), Quem (personagem/rela-
cionamento), O que (ação); de montagem por meio dos Jogos Teatrais, de pequenos esquetes com temáticas
diversas; de exercícios de deslocamento espacial; de investigação corporal para composição de personagem;
de atividade de organização do grupo para avaliação.

As crianças são estimuladas, além de relatarem sobre os conteúdos trabalhados e assimilados, a


expressarem por meio do desenho, da pintura e narrativa escrita, os conhecimentos absorvidos, como mos-
tram as fotos abaixo: jogos do Quem (foto 1 e 2); jogos do Onde (foto 3 e 4), jogos do O que (fotos 5 e 6) e
narrativa escrita (Foto 7).

JOGOS DO QUEM

Foto 1 Foto 2

383
JOGOS DO ONDE

Foto 3 Foto 4

JOGOS DO O QUE

Foto 5 Foto 6

NARRATIVA ESCRITA

Foto 7

384
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos pressupostos apresentados neste trabalho, concordamos que os Jogos Teatrais potencia-
lizam e dão qualidade ao ensino de Teatro. Constituem-se, assim, em um poderoso instrumento para impul-
sionar a aquisição de aprendizagens na linguagem teatral, e em outras áreas do conhecimento, trazendo uma
eficácia ao processo de ensinar e aprender (apreender), de forma intencional e direcionada.

Nesse sentido, analisar o ensino de teatro como componente curricular, à luz dos Jogos Teatrais, foi
descobrir um caminho rico em possibilidades para contribuir na construção da prática docente. Atestar que
o jogo e a ludicidade são vias de acesso a uma educação que se disponibiliza a formar alunos autônomos,
para que atuem de forma crítica, reflexiva e criativa, atendendo às exigências da contemporaneidade.

Os dados obtidos permitem afirmar que os Jogos Teatrais contribuem para uma experiência ímpar,
de socialização, em um universo de pleno exercício democrático.

As possibilidades com os Jogos Teatrais vão além de uma aprendizagem em teatro, os participan-
tes tornam-se responsáveis uns pelos outros, com uma forte ligação afetiva, em um estado permanente de
parceria que leva a um companheirismo, útil para todos os aspectos da formação e da vida, criando um
ambiente de trabalho harmonioso. Onde substância do espaço, objetos comuns são transformados em algo
real e significante. Mostrar e Não-contar, ou seja, tornar real. Fazer visível o invisível.

É preciso considerar, entretanto, que este estudo é uma pequena representatividade das vivências
observadas e não corresponde a totalidade das práticas docente para o ensino de Teatro. Representa o desejo
de contribuir com professores e alunos para uma abertura ampla ao universo do Teatro, no geral e aos Jogos
Teatrais, no particular.

As vivências nas aulas de teatro desenvolvidas com base nos jogos têm como enfoque principal, uma
educação participativa e emancipatória, que estimula o processo do fazer, do pensar e do sentir. A partir da
possibilidade de vivenciar as três essências do Jogo Teatral, a saber: foco, instrução e avaliação no processo
interativo com a estrutura dramática (Onde, Quem, O Que), esses eventos desencadeiam no educando o
raciocínio lógico, o pensamento criador e sensível e o pensamento operativo

Na questão individual, promove autonomia, percepção e expressividade, impulsiona o fazer artís-


tico e, no grupo, estabelece relações mútuas de cooperação, diálogo, respeito, além, da efetivação do teatro
como linguagem e área de conhecimento com função em si mesmo. Bem como promove uma sala de aula
alegre, viva e salutar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. 13. ed. de professores. SOUZA, Inês Maria Fornari de (org.), 2.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. ed. Recife: Ed. Universitária-UFPE, 2012.
BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualita- SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. São Paulo:
tiva em educação: uma introdução à teoria e aos méto- Perspectiva, 2005.
dos. Porto: Porto Editora, 1994.
_____________Jogos Teatrais: o fichário de Viola Spo-
CAMARGO, Robson Corrêa. O Jogo Teatral e sua For- lin. São Paulo: Perspectiva, 2012.
tuna Crítica... Revista Fênix. vol. 7, Ano VII nº 1. Jan./
_____________Jogos Teatrais na sala de aula: o livro
fev./mar./abril 2010.
do professor. São Paulo: Perspectiva, 2010.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. 7. ed. São
_____________O Jogo Teatral no Livro do Diretor. São
Paulo: Perspectiva, 2013.
Paulo: Perspectiva, 2010.
SOUZA, João Francisco. Prática pedagógica e formação

385
SIMILARIDADES DE ABORDAGEM
ENTRE O PROCESS DRAMA E
O PROCESSO COLABORATIVO
Amanda de Sampaio Alves Duarte- UFBA

Resumo:
Considerando que a pedagogia do teatro e a criação teatral em grupos profissionais são duas aplica-
ções de uma mesma arte, o seguinte artigo compara os mais relevantes princípios do Drama – metodologia
do ensino do teatro de origem inglesa – e do processo colaborativo. Utilizando-nos de alguns dos principais
autores sobre os temas – Antônio Araújo, Beatriz Cabral, Rafael Ary, Flávio Desgranges, Vicente Concílio -,
apresentamos a organização interna de ambos os métodos estudados para estabelecer aproximações entre as
duas instâncias, na tentativa de compreender como os dois processos criativos se relacionam entre si e com
a linguagem teatral.

Palavras-chaves: Drama. Processo colaborativo. Pedagogia do teatro. Criação teatral.

Abstract:
Consideringthattheaterpedagogyandtheatricalcreation in professional groups are twoapplication-
softhesameart, thisarticle compares the fundamentalprinciplesof Drama –EnglishMethodology for thea-
terpedagogy - andthe collaborative process. Using some ofthebrazilianmainauthorsonthethemes - Antônio
Araújo, Beatriz Cabral, Rafael Ary, Flávio Desgranges, Vicente Concílio -, wepresenttheinternalorganizatio-
nofbothmethodstoestablishapproximationsbetweenthetwoinstances, in anattempttounderstandhowthetwo
creative processes relate toeachotherandtotheatricallanguage.

Keywords: Drama. Collaborative process. Theaterpedagogy. Theatricalcreation.

A organização metodológica do Process Drama

O drama236, metodologia de ensino do teatro de tradição inglesa, trazido para o Brasil por meio
da pesquisa desenvolvida por Beatriz Cabral, difunde-se nacional e mundialmente após a segunda guerra

236. Utilizamos o destaque na palavra para diferenciar o process drama, aqui tratado, da escrita dramatúrgica. Nas citações selecionadas, mantive-
mos o modelo de destaque dado pelo próprio autor.

386
mundial, quando os primeiros livros sobre o tema são lançados (ainda na língua inglesa). Criado sob uma
perspectiva separatista entre o que é o drama in education237 e o que é o theatre238, constitui-se, resumida-
mente, de “uma atividade criativa em grupo, na qual os participantes se comportam como se estivessem em
outra situação ou lugar, sendo eles próprios ou outras pessoas.” (CABRAL, 2012, p 11)

Apesar de seu longo trajeto de pesquisas, estudos e aplicações, há “muitas e diferentes compreensões
de Drama, tanto no que se refere aos seus objetivos, quanto aos seus procedimentos” (DESGRANGES, 2006,
p 122-123). Por seu caráter coletivo, que busca a atuação direta dos alunos na criação e na exploração de
uma narrativa teatral, o método não se fecha em uma prática rígida a ser aplicada indiscriminadamente em
todos os grupos. Pelo contrário, apresenta-se maleável para que o facilitador239, em cada situação, de ma-
neira específica, possa selecionar seus procedimentos e estímulos para inserir os alunos-criadores na tensão
dramática e no tema proposto.

Ainda assim, é possível pensar algumas características presentes em todas as experiências que se
enquadram nessa metodologia. A primeira e mais importante delas é a preocupação com a criação coletiva,
que seja centrada nos alunos e que possibilite uma relação o mais horizontalizada possível entre facilitador
e participantes. Flávio Desgranges, em seu livro A Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo (2006), nos
explica que

O Drama propõe um processo coletivo de construção de uma narrativa dramática, esti-


mulando os participantes a conceberem teatralmente uma história. O Drama constitui-se,
assim, em uma experiência que solicita a adesão e a cooperação dos diversos integrantes
do grupo. Podemos compreendê-lo como uma forma de arte coletiva, em que os parti-
cipantes (coordenador e grupo) assumem as funções de dramaturgos, diretores, atores,
espectadores, etc (DESGRANGES, 2006, p 125).

O desejado, nesse cenário, é que os alunos possam dispor de ambientes e estímulos que o possi-
bilitem criar uma narrativa e seus desdobramentos da maneira mais independente e coletiva possível –
contrapondo-se, dessa forma, a experiência (ainda muito vivenciada no Brasil) de um professor de teatro
que chega à turma com um texto dramático pronto, divide os personagens e faz com que os alunos apenas
executem a sua visão da peça. No drama, os participantes, em conjunto com um facilitador que controla sua
intervenção, são quem comandam o desdobrar do processo. Essa perspectiva, além de modificar uma in-
tervenção costumeira de alguns arte-educadores, também questiona o lugar pré-estabelecido de hierarquia
entre aquele que ensina e aquele que aprende.

A parceria entre professor e aluno ou adulto e criança, em um processo dramá-


tico, implica equivalência ou troca de status. O professor (ou estagiário) não está
lá para definir a cena e tomar decisões, mas para entrar no jogo proposto pelas
crianças. O objetivo de sua presença é sutilmente manter o jogo e o foco, fazendo
perguntas, quando necessárias (CABRAL, 2012, p 23).

237. Aplicação pedagógica do teatro, dentro das escolas, com crianças.


238. Aplicação profissional do teatro, dentro das casas e grupos especializados.
239. Aplicação profissional do teatro, dentro das casas e grupos especializados.
Na literatura sobre drama é possível encontrar diversos termos distintos para se referir ao professor de teatro que aplica a técnica: coordenador, líder,
professor-ator, entre outros. Aqui, acolho o termo facilitador por entender que, nessa prática, o professor atua como alguém que facilita o contato entre
os alunos e o contato desses com a linguagem teatral. Nas citações escolhidas, mantive os termos defendidos por cada um dos autores.

387
As intervenções do facilitador ficam, dessa forma, restritas a coordenação do processo, a aplicação
de atividades disparadoras do criar cenicamente, a manter o foco da investigação, a mudar a trajetória quan-
do perceber que o caminho trilhado pela narrativa irá se esgotar rapidamente, a sempre estimular os alu-
nos, ludicamente, a permanecerem na situação dramática. Percebe-se, nessa breve e sucinta descrição, que
mesmo tentando horizontalizar as relações e propiciar uma criação de grupo – deixando os alunos encarre-
gados, inclusive, dos elementos visuais da cena -, sua intervenção ainda é muito forte, valiosa e necessária.

Retomando as principais características definidoras de uma criação por meio do drama, três proce-
dimentos se mostram fundamentais para que o grupo consiga adentrar na situação dramática e ser capaz de
manter sua tensão durante o período necessário – seja ele horas, semanas ou meses: o processo, o pré-texto
e os episódios.

Por processo entende-se o caminho percorrido pelo grupo durante a criação, e relaciona-se direta-
mente com os objetivos estabelecidos para o percurso com a narrativa – objetivos esses que podem ser de-
finidos apenas pelo facilitador ou pelo facilitador junto aos participantes. “O processo, em drama, pode ser
definido como a negociação e a renegociação dos elementos da forma dramática, quanto ao contexto e aos
objetivos dos participantes (O’Toole, 1992)” (CABRAL, 2012, p 17). É, portanto, a parte mais importante do
drama: o espaço da criação, da negociação e recriação.

A ênfase no processo, tanto pelo professor quanto pelo diretor teatral, tem por objetivo
lembrar que em qualquer tipo de atividade dramática a preocupação com a dimensão
da aprendizagem, quer do contexto, circunstâncias ou valores focalizados, quer da lin-
guagem cênica devem estar presentes. Em ambos os casos, se o processo se desenvolve
de acordo com as regras do meio dramático, a experiência poderá ser considerada pela
perspectiva do teatro e/ou da educação (formação do ator e/ou do indivíduo) (CA-
BRAL, 2012, p 17).

Mas esse processo só se dará plenamente, com envolvimento real e total dos alunos, se o tema sele-
cionado para tal for do interesse e do conhecimento deles. Somente com o engajamento dos participantes
será possível manter a tensão dramática e toda a aprendizagem proveniente dela. Além de estar no domínio
de interesse deles, o tema também precisa ser convincente, tanto no tratamento dado a história, quanto nos
personagens que ela suscita.

Entretanto, para que o contexto estabelecido para uma determinada experiência permi-
ta esse cruzamento do real com o imaginário, e para que as crianças consigam interagir
como participantes destas duas realidades simultaneamente (a do contexto real e a do
contexto imaginário), é necessário que a situação ou circunstâncias exploradas sejam con-
vincentes, tanto no tratamento do tema/assunto, quanto na ambientação e papéis selecio-
nados (CABRAL, 2012, p 13).


O pré-texto, por sua vez, é a forma como o tema é apresentado aos alunos. É o primeiro contato dos
alunos com o princípio da narrativa, ao mesmo tempo em que é o que norteia todo o processo criativo e a
ele oferece personagens, climas, tensões, acontecimentos. Pretende envolver os alunos, emocional e intelec-
tualmente, na história que será dramatizada – e, para isso, há várias formas comumente usadas no drama:
estímulo composto, contação de história, professor-personagem, entre outros. Em outras palavras, o pré-
-texto é aquilo que “vai ativar e dinamizar o contexto e as situações do Drama, sugerindo papéis e atitudes
aos participantes, além de apresentar os antecedentes da ação e propor o engajamento do grupo nas tarefas
e papéis necessários ao desenvolvimento da narrativa.” (DESGRANGES, 2006, p 126)

388
Os episódios, então, são os fragmentos da narrativa maior que vão sendo construídos sequencial-
mente durante o processo. No dia a dia da sala de aula, novas atividades são propostas pelo facilitador para
que os alunos deem andamento na criação e façam com que a narrativa caminhe. Assim,

os episódios convidam, desafiam o grupo a se relacionar com as novas situações propos-


tas, mantendo o interesse e o envolvimento dos participantes, além de dar continuidade
à construção da história e possibilitar a exploração teatral dos elementos presentes na
trama. Contudo, os episódios não se constituem apenas em aglomerados de atividades
ajuntadas acerca de uma situação, mas uma sequência em que se percebe uma relação
estreita entre uma atividade e outra, em que aspectos de um episódio solicitam um desen-
volvimento investigativo, que se efetivará no episódio posterior. Um processo de Drama
propõe, assim, a investigação teatral de uma narrativa, investigação esta que vai se apro-
fundando de episódio em episódio (DESGRANGES, 2006, p 126-127).

Para além destas características básicas, é importante ressaltar algumas outras preocupações rele-
vantes do drama. A atenção especial que a metodologia aplica à coletividade, ao grupo e as especificidades
de cada turma acabam modificando também sua estrutura. É recorrentemente solicitado pelos autores que
o tema e as atividades propostas pelo facilitador relacionem-se com a realidade acessível dos alunos, e, como
essas realidades podem ser semelhantes, mas dificilmente serão iguais, nenhuma aplicação do drama será
igual a outra.

Ainda refletindo sobre a coletividade, o drama só pode existir se todos os participantes nele se enga-
jarem e nele assumirem responsabilidade pela criação cênica. Como dito por Desgranges: “Dessa maneira,
o Drama, metaforicamente, pode ser comparado a um tear coletivo, onde cada um assume a sua função no
processo de enredamento das tramas que tecem a narrativa. O condutor, como visto, vai gerindo este pro-
cesso. ” (DESGRANGES, 2006, p 130)

Por fim, é relevante destacarmos, caso ainda não tenha sido esclarecido, que o texto dramático, no
processdrama, é inteiramente construído pelos participantes. Raramente chegam aos alunos textos comple-
tos ou scripts, e, quando chegam, passam por adaptações e acabam servindo apenas como estímulo inicial
para uma criação própria na qual os participantes se reconheçam enquanto autores.

O modo de fazer do colaborativo

A partir da nova explosão do teatro de grupo no Brasil na década de 1990, o termo processo co-
laborativo passou a ser costumeiramente utilizado nos meios criativos e acadêmicos. Historicamente re-
lacionado à criação coletiva praticada pelos grupos contestadores das décadas de 1960 e 1970, o processo
colaborativo não possui uma definição conceitual concreta, mas podemos dizer que ele se

constitui num modo de criação em que cada um dos integrantes, a partir de suas funções
artísticas específicas, tem espaço propositivo garantido. Além disso, ela não se estrutura
sobre hierarquias rígidas, produzindo, ao final, uma obra cuja autoria é dividida por todos
(ARAÚJO, 2008, apud CONCÍLIO, 2010, p 1).

Prática há muito já utilizada nos grupos profissionais, a criação colaborativa ganha espaço quando
seus praticantes passam a sentir a necessidade de teorizar sobre ela, produzindo artigos, teses e livros. Assim,
não é uma metodologia que nasce teórica e depois é aplicada. No caminho oposto, ela nasce na prática, nos

389
grupos, e depois tenta ser sistematizada – o que dificulta sua conceituação, uma vez que cada grupo pratica
colaborativo a sua maneira, da forma que melhor lhes cabe. Também não parece ser um fenômeno isolado
da experiência teatral, pois “circunscreve diferentes movimentos artísticos e sucessão de estilos, não encer-
rando uma única definição. Notamos que o procedimento não se limita apenas a arte teatral.” (FISCHER,
2003, p 44)

Refletindo sobre os precedentes históricos do colaborativo na tentativa de compreendê-lo e expor


seus princípios, Rafael Ary nos conta que

De certa maneira, o processo colaborativo prioriza dois aspectos que eram considerados
opostos entre si – se contrapormos a criação coletiva à década do encenador –, que eram:

• O estímulo à criação em coletivo, com liberdade de proposições entre os envolvidos no


trabalho, como era corrente na primeira experiência.

• E a determinação de funções artísticas específicas para cada envolvido, como era pri-
mordial na década do encenador.

Desta forma, o processo colaborativo promove uma síntese das experiências realizadas
nas duas décadas anteriores ao seu surgimento. Quando fomenta dois aspectos até então
distintos e separados por considerações irreconciliáveis (ARY, 2015, p 2).

Não é pertinente, também, pensarmos no colaborativo como um modelo rígido a ser seguido por
todo e qualquer grupo profissional que deseje uma criação em coletividade. Ele é mais uma série de valores e
crenças compartilhadas por vários grupos do que uma série de atividades a serem realizadas. Antônio Araú-
jo chega a questionar, em um artigo apresentado à Revista Olhares, o uso do termo método para referir-se
ao colaborativo. Para ele, seria mais um modo de fazer – como “maneira de colocar em diálogo, de inter-
-relacionar os diferentes elementos na construção da obra” (ARAÚJO, 2009, p 48) - do que uma série de
diretrizes.

E esse modo de fazer, segundo o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, se oporia a um “modo funcio-
nalista de proceder”.

No entendimento do dramaturgo, um teatro funcionalista estaria preocupado apenas com


o resultado estético da obra. A cada artista é delegado apenas uma parte do processo. O
ator deve se preocupar apenas com sua personagem, sem se intrometer em nenhuma ou-
tra função. Os artistas, ao trabalhar dessa maneira, são alienados de uma visão do todo.
Para realizar a visão de espetáculo de quem estiver comandando, pode ser utilizado todo e
qualquer meio para o fim desejado. Os artistas, em uma produção dessa natureza, são uma
peça do maquinário de alguém, seja esse alguém o produtor, o diretor ou o dramaturgo
(ARY, 2015, p 3).

Pensando dessa forma, um resumo possível para essa diferenciação é pensar que as pessoas envol-
vidas nos espetáculos que podem ser encaixados como “modo funcionalista de proceder” preocupam-se
apenas com a obra finalizada e em circulação, visando uma captação de dinheiro maior ou um apelo midi-
ático para a produção de determinado encenador. O processo colaborativo, por outro lado, como o nome
anuncia, prima pelo processo – que passa a ser tão ou mais importante que a obra finalizada.

Com o novo apelo ao processo, aparece também a valorização da pesquisa continuada de linguagem
cênica e a relevância de cada artista, em sua especificidade, para a criação. Isto porque, ainda que cada inte-

390
grante do grupo tenha sua função cênica específica, todos são estimulados e convocados a expressarem suas
percepções sobre todos os demais aspectos, assim como são parte fundamental na construção do material
criativo para cada elemento – pois nada é criado verticalmente; tudo nasce nas improvisações, amadurece
nos debates e se finda na decisão do coordenador da área.

Nessa corrente de princípios, o criar é visto não como um direito que é concedido a alguém, mas
como uma necessidade do artista – só assim poderá existir o teatro que se deseja. Esse procedimento exigi-
ria, então, artistas capazes de criar de forma abundante, ou que estejam dispostos a aprender.

A criação em coletividade do colaborativo, diferentemente de como é entendida a criação coletiva,


não pressupõe uma ausência total de hierarquia, mas uma horizontalidade nas funções e uma hierarquia
dinâmica. Nesse procedimento, os momentos de coordenação e de subordinação são flutuantes. Ou seja,
essas hierarquias ficam “localizadas por algum momento em um determinado polo de criação (dramaturgia,
encenação, interpretação etc.) para então, no momento seguinte, mover-se rumo a outro vértice artístico.”
(ARAÚJO, 2009, p 48)

Mas, para pensar colaboração, funções determinadas e hierarquias flutuantes, é preciso dispor de
um artista profundamente consciente do caráter global da obra e de todos os aspectos que circundam a
experiência teatral. Além disso, deve ser capaz de concentrar seu impulso criativo em cada uma dessas fun-
ções, para poder contribuir de maneira direcionada, no momento destinado a cada elemento, sem perder de
vista a sua própria criação enquanto ator, dramaturgo, encenador, etc.

Uma vez que o processo é o protagonista da experiência, é natural que o tempo necessário para se
chegar a um resultado estético pertinente se alargue. O ir e vir das negociações, as improvisações constantes
em sala de ensaio, as experimentações sobre as primeiras propostas visuais... toda essa crise é necessária
para o colaborativo – mas exige o preço do tempo. “E não há harmonia nesse tipo de processo, há fricção e
esforço de convergência formal, necessário para a consolidação de uma obra.” (ARY, 2015, p 4)

Para tanto, encontrar um tema aglutinador é essencial como fator motivador do processo.
Pois, sem eliminar as individualidades, um tema que impulsione os artistas para o mergu-
lho criativo – os torne comprometidos com o todo –, pode ser considerado um tema com
grande capacidade de mobilização. Sua riqueza e força reside nas camadas de leitura que
este possibilita ao coletivo criador, o que pode resultar em uma obra complexa e instigante
para o público (ARY, 2015, p 5).

Na maioria dos casos, a dramaturgia também é criada coletivamente, sob coordenação de um dra-
maturgo do próprio grupo ou de um dramaturgo convidado para um projeto específico – ainda que haja um
texto teatral prévio servindo como referencial. Em ambas as situações, eles são chamados a adentrarem a
sala de ensaios e acompanhar as improvisações, transformando em textualidade o que está sendo pesquisa-
do para a cena. Nasce, nesse movimento, o que hoje é conhecido como dramaturgia em processo.

Aproximações entre sala de ensaio e sala de aula

Baseando-nos nas perspectivas teóricas aqui apresentadas, podemos enumerar pelo menos quatro
grandes aproximações entre o drama e o processo colaborativo:

1. Trabalho aprofundado sobre o coletivo e a criação em compartilhamento.


2. Valorização do processo sobre o produto.

391
3. Divisão determinada das funções criativas.
4. Dramaturgia autoral.

De fato, o trabalho com o coletivo não é novidade no teatro. Desde as origens ritualísticas da lin-
guagem teatral, ele não podia ser realizado sozinho. Sempre houve a necessidade do outro – tanto o outro
artista, que ajuda a pensar a cena, quanto o outro público. Entretanto, do ponto de vista da criação, nem
sempre todos os trabalhadores cênicos tiveram espaço para colocar-se criticamente e ter uma participação
ativa nas decisões poéticas.

Sem dúvidas o caráter coletivo é valorizado, tanto no ensino quanto no ambiente profissional, por
ser essa característica essencial da linguagem e por carregar consigo um vasto valor pedagógico. No proces-
so de criar junto se aprende a ceder, a pensar no benefício da proposta geral, a ter argumentos para defender
o que se acredita, a compartilhar, a decidir em grupo. Rafael Ary reflete que

O impacto de um processo colaborativo na formação dos artistas envolvidos é explicado


pelo forte caráter pedagógico imbuído na prática, que está presente em seus procedimen-
tos criativos mais basais e pode ser observado no cotidiano de diversos grupos pelo Brasil.
O artista não cria um produto somente, como diria Abreu, ele está em formação, como
artista e como ser humano (ARY, 2015, p 6).

Essa formação do artista e do humano também não pode deixar de ser tocada no âmbito educa-
cional do teatro. Aproveita-se que as crianças têm uma tendência natural pelo agrupamento (como todo
ser humano, na verdade, até que isso seja tolhido) e utiliza-se essa característica na linguagem teatral para
desenvolver um processo criativo que compartilhe saberes.

Contudo, o conhecimento adquirido durante o envolvimento com o processo do drama vai


além da possibilidade de nomear aprendizagens em áreas previamente determinadas – ob-
jetivos específicos (relacionados com o conhecimento de conceitos, habilidades, conteúdos
e formas artísticas) interagem com objetivos não específicos (relacionados com o desenvol-
vimento de atitudes e valores), fazendo que a experiência viva do fazer teatral, do agir e do
observar concomitantes, transforme a compreensão ou o entendimento dos participantes
em nível estético e artístico (CABRAL, 2012, p 31-32).

E, uma vez que se valoriza o coletivo, o contato, a fricção e a troca de saberes, parece natural que se
valorize também o processo de criação sobre o produto final. O que está em jogo, tanto no drama quanto
no processo colaborativo, é que não há a possibilidade de trocar sensações, percepções e críticas se não há
o tempo de maturação necessário à experiência, se o espetáculo precisa ficar pronto em um mês. Para criar
uma apresentação dentro desses parâmetros é necessário um tempo para que o grupo ganhe confiança entre
os participantes, para que se sintam à vontade com a criação, para que o tema reverbere neles, para que os
primeiros improvisos gerem resultados, para a chegada das primeiras propostas dos núcleos criativos, para
os primeiros debates sobre as propostas, para um novo processo de criação...

Esse tempo, que também não deve ser apressado ou o resultado final não será satisfatório, precisa
ser vivido. Mas ele só cabe dentro de uma perspectiva que veja no processo sua razão de existir. Que entenda
a pesquisa da narrativa e da linguagem como fonte necessária de vida para um espetáculo (ou mesmo uma
mostra parcial, se pensamos na escola). Se há essa perspectiva de valorização da descoberta processual da
linguagem própria do grupo, o tempo dilatado pode deixar de ser um problema.

392
A divisão determinada das funções, deixando claro para todos quem será o (ou os) responsável pela
iluminação, pela cenografia, pelo figurino, pela interpretação, pela dramaturgia, pela encenação, etc., per-
mite, primeiro, que haja alguém constantemente preocupado com esse aspecto e, depois, que a sua respon-
sabilidade diante da criação grupal se torne consciente – principalmente no caso do ensino com crianças.

Ao mesmo tempo, o ato de escolher alguém para ser responsável por um ou outro elemento é um
ato de confiança e um ato de solução de problemas. Quando essa pessoa é selecionada delega-se a ela o po-
der de decidir qualquer impasse que diga respeito a sua área e que não possa ser resolvido coletivamente, o
que só acontece porque todo o grupo percebeu que esta pessoa tem uma aptidão para lidar com aquele ele-
mento. Delegar responsabilidades ao outro e assumir responsabilidades para si também é um aprendizado
constante.

Por fim, o fato de ambas as expressões teatrais preocuparem-se em desenvolverem textos próprios
durante seus processos evidencia um caráter autoral e representativo que ambas mantêm. A decisão de
compartilhar a criação carrega consigo a necessidade de que esse grupo de pessoas se enxergue – individual
e coletivamente – no resultado final do trabalho. Por isso, buscar uma expressão autoral e que represente
a todos os participantes – sem perder em esmero estético – é imprescindível para que o coletivo continue
existindo enquanto corpo minimamente coeso. Não seria possível manter um processo verdadeiramente
colaborativo se os alunos/atores envolvidos deixassem de se enxergar no produto, pois este voltaria a ser a
visão de um (ou poucos) e deixaria de ser a visão de todos.

Sendo assim, reforçamos que a pedagogia do teatro e o trabalho dentro de grupos profissionais são
duas áreas de uma mesma linguagem artística e, portanto, refletem as mesmas necessidades expressivas,
políticas e estéticas. Podemos pensar, então, a partir desse ponto, uma reaproximação dos métodos e das
instâncias, para tentarmos verificar em que medidas o ensino pode enriquecer a produção profissional e
vice-versa.

Referências

ARY, Rafael. Princípios para um processo colaborativo. VI Congresso de Pesquisa e Pós-graduação em artes cêni-
Revista Cena, Porto Alegre, n 18, p 1-7, 2015. cas, 6º, 2010. Anais, ABRACE, 2010.

ARAÚJO, Antônio. O processo colaborativo como modo DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do teatro: provo-
de criação. Revista Olhares, São Paulo, n 1, p 48-51, 2009. cação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006.

CABRAL, Beatriz. Drama como método de ensino. São FISCHER, Stela. Processo colaborativo: experiências de
Paulo: Hucitec, 2012. companhias teatrais brasileiras nos anos 90. 2003. 231f.
Dissertação (mestrado em artes) – Instituto de Artes,
CONCÍLIO, Vicente. A pedagogia do teatro em proces- Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.
sos colaborativos: o caso do Grupo XIX de Teatro. In:

393
PERDOA-ME POR ME TRAÍRES:
A CONSTRUÇÃO DE UM PROCESSO
ARTÍSTICO-PEDAGÓGICO
Pedro Rodrigues Pereira da Silva

CURSO DE INICIAÇÃO AO TEATRO:


PRIMEIRO CONTATO COM O GRUPO

No ano de 2017, em seu primeiro semestre, iniciei trabalho como professor de teatro no Sesc Santo
Amaro, assumindo a condução do Curso de Iniciação ao Teatro e do Curso Avançado de Teatro, além dos
Coletivos de Teatro Jovem em Cena e O Tempo não Para.

No processo com os cursos, trabalhei na perspectiva do teatro épico de Bertolt Brecht (1898-1956),
aproximando dos alunos o pensamento e a produção textual deste importante dramaturgo alemão. Neste
semestre, conheci a turma em questão, foco do trabalho cênico que norteia este artigo. Eram vinte alunos
matriculados no Curso de Iniciação do Teatro, que trabalharam com o processo de encenação baseado na
peça didática Aquele que diz sim e Aquele que diz não.

Com suas peças didáticas, as Lehrstück, Brecht propõe um novo estilo de dramaturgia, similar
aos seus textos clássicos no que tange à estrutura dramatúrgica de obras para montagem de espetáculo
(personagens-tipo, diálogos narrativos, cenas independentes etc.), mas diferenciada no que diz respeito
aos procedimentos de encenação. O foco, nesta nova fase de produção textual de Brecht, é ressaltar o
caráter pedagógico e político nos seus textos, direcionando-os, especialmente, a trabalhos com alunos.

Como procedimento da montagem cênica do Curso de Iniciação ao Teatro, desmembramos as ce-


nas do peça didática e, entre elas, inserimos cenas criadas no processo, baseadas no dispositivo que extra-
ímos do texto-base: a contradição do homem, numa perspectiva além dos conflitos individuais, na qual as
decisões interferem diretamente no todo, na situação social, coletiva. Questões políticas, de conhecimento
de todo o grupo, e situações cotidianas dos envolvidos no processo foram motes de criação das cenas novas.

Em Aquele que diz sim e Aquele que diz não, a característica épica está presente em todos os perso-
nagens da peça. Nos seus diálogos, é recorrente a narração de emoções, pensamentos, tomada de decisões.
Os personagens interagem valorizando o acontecimento, a história, o desenvolver da narrativa. Esse recurso
é utilizado tanto explicitamente como de maneira implícita.

Todos os personagens são representações de tipos sociais: o Grande Coro, o Menino, a Mãe, o Pro-
fessor e os Três Estudantes. O personagem, em Brecht, é elaborado e defendido como um ser coletivo, um
ser que representa determinado agrupamento social, carregando consigo seu traço psicológico, seu compor-
tamento, seus problemas, sua forma de interagir com o todo, seu gestus, seu papel político representado na
peça – daí a generalidade e atemporalidade de tais personagens.

394
O exercício cênico resultante, intitulado E aí, hein?, estreou no dia 01 de julho de 2017, no Teatro
Marco Camarotti, do Sesc Santo Amaro.

O CURSO AVANÇADO DE TEATRO:


OBJETIVOS ARTÍSTICO-PEDAGÓGICOS

Passada a experiência no Curso de Iniciação ao Teatro, os mesmos alunos se matricularam no


Curso Avançado de Teatro, no semestre de 2017.2. Para a elaboração do Curso, levei em consideração o
processo anterior, compreendendo que os dois cursos, em sequência, compreendem uma formação única,
integral na formação do (a) aluno (a).

Depois da vivência de estudo e experimentação do teatro político de Brecht, valorizando a inter-


pretação anti-naturalista, além de um processo peculiar de desconstrução de dramaturgia, entendi que a
turma precisaria passar por uma experiência noutra perspectiva estética e ética. Partindo deste pressuposto
pedagógico, tracei o que seria o Curso Avançado de Teatro naquele semestre.

O Curso, desse modo, deu ênfase a um teatro físico, mais dedicado à concepções de treinamento
do ator. Na primeira unidade, os alunos vivenciaram exercícios psicofísicos, baseados no trabalho de Jerzy
Grotowski (1933-1999).

Para Grotowski, a arte do ator necessita de uma exploração metódica, calcada sobre o
princípio fundamental da unidade psicofisiológica. O aluno, consciente de seus recursos
corporais, deve aprender a pensar e a falar com o corpo inteiro; é por meio dele que sua
imaginação se desenvolve, a partir do momento em que passa a ser exercida corporal-
mente. [...] Os exercícios não aspiram ser mera execução de proezas, servem para eliminar
resistências e bloqueios emocionais. (AZEVEDO, 2008, p. 26)

Também fez-se presente, neste primeiro momento do Curso, as influências de Eugenio Barba, tra-
duzidas em exercícios de experimentação dos princípios elementares da Antropologia Teatral, com ênfase
no treinamento do corpo extra cotidiano.

Trabalho elementar para cumprir os objetivos do Curso Avançado de Teatro foi o procedimento de
confecção e treinamento com a máscara neutra, baseado nas contribuições de Jacques Lecoq (1921-1999).
Antes da feitura das máscaras, fez-se necessário um trabalho prévio, que serviu como base propulsora da
utilização das máscaras: foram realizadas improvisações, como propõe Lecoq, nas quais os alunos experi-
mentaram situações que evocavam a memória e a imaginação, já trabalhando com o silêncio, dando espaço
a uma interpretação que valorizasse a ação, deixando o uso da palavra para um momento posterior.

Começamos pelo silêncio, pois a palavra ignora, na maioria das vezes, as raízes de onde
saiu, e é desejável que, desde o princípio, os alunos se coloquem no âmbito da ingenui-
dade, da inocência e da curiosidade. [...] ainda não falamos, encontramo-nos num estado
de pudor, que permite à palavra nascer do silêncio, a ser mais forte, portanto, evitando o
discurso, o explicativo. (LECOQ, 2010, p. 60)

O trabalho com os improvisos silenciosos estava estritamente relacionado à investigação do corpo


neutro, com a ausência da palavra e do som, como uma preparação elementar de um terreno – o próprio
corpo – no qual, noutra etapa do processo, daríamos espaço tanto à palavra que surge do silêncio, quanto ao
movimento e ao som que surgem da inércia.

395
O trabalho com a máscara neutra vem depois da interpretação psicológica silenciosa, mas,
de fato, é o começo da viagem. [...] Esse objeto colocado no rosto deve servir para que se
sinta o estado de neutralidade que precede a ação, um estado de receptividade ao que nos
cerca, sem conflito interior. Quando o aluno sentir esse estado neutro do início, seu corpo
estará disponível, como uma página em branco, na qual poderá inscrever-se a ‘escrita’ do
drama. (LECOQ, 2010, p. 68-69)

Os alunos experimentaram a busca do neutro, do ponto zero de expressividade, para que, posterior-
mente, pudessem treinar com a máscara neutra. Além da Sala de Dança, também nos utilizamos dos espaços
abertos do Sesc Santo Amaro, trabalhando a concentração, o foco e a neutralidade.

É chegada a etapa de confecção das máscaras, que leva cerca de cinco aulas, sendo, em cada uma,
realizada uma parte da confecção. Contamos com a participação do professor convidado Durval Cristóvão
neste momento inicial de feitura dos moldes das máscaras.

Processo de feitura dos moldes da máscara neutra, com atadura de gesso, no rosto de cada aluno.

Processo de feitura dos moldes da máscara neutra, com atadura de gesso, no rosto de cada aluno.

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Processo de forramento do molde, com papel e cola, na máscara de cada aluno.

Máscaras neutras prontas, em processo de secagem.

Por algumas semanas, após a confecção das máscaras, os alunos iniciaram um treinamento, vestin-
do, cada um, sua máscara, com o intuito de investigar a neutralidade do corpo, que, posteriormente, poten-
cializaria a sua própria expressão. Foram laboratórios que auxiliaram a explorar emoções básicas (alegria,
tristeza, amor e raiva), bem como o tema Viagem Elemental (posposto pelo próprio Lecoq, no qual os atores
vivenciam uma experiência na/com a natureza) e os quatro elementos da natureza (tornando-se a água, o ar,
a terra e o fogo). Infelizmente, pelo curto cronograma do Curso, não conseguimos realizar as etapas seguin-
tes do treinamento, propostas por Lecoq.

O treinamento com a máscara neutra serviu como base para uma etapa posterior. A segunda uni-
dade do Curso estaria dedicada à encenação de algum texto teatral, para que os alunos aplicassem o trei-
namento estudado, baseado nas referências já mencionadas, na composição de personagens e na criação
coletiva de um exercício cênico240. Desse modo, o uso da máscara neutra serviu no processo como um
potencializador do corpos para a cena. O treinamento com a máscara precisa, no momento em que tiver
alcançado seus objetivos de experimentação, ser suspenso do processo.

240. Esta abordagem, presente nos Cursos do Sesc Santo Amaro, reforça a importância de ensinar-se teatro fazendo teatro, por meio de processos
de criação de exercício cênico e compartilhamento com espectadores, entendendo que este processo assegura genuinamente a melhor acepção do
termo Pedagogia do Teatro.

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Com uma máscara neutra, o que se vê é o corpo inteiro do ator. O olhar é a máscara, e
o rosto, o corpo! Todos os movimentos se revelam de maneira potente. Ao retirar sua
máscara, se o ator a utilizou bem, seu rosto estará relaxado. [...] Está, agora, com um belo
rosto, disponível. Uma vez que essa disponibilidade tenha sido adquirida, a máscara pode
ser retirada sem receio da gesticulação ou do gesto explicativo. Com a máscara neutra se
termina sem máscara! (LECOQ, 2010, p. 71-72)

Alunos realizando treinamento com a máscara neutra, no jogo Maratona das emoções.

Alunos realizando treinamento com a máscara neutra, no jogo Maratona das emoções.

A ESCOLHA DO TEXTO DE TRABALHO

Antes de ser um desejo pessoal, uma realização pessoal, o interesse por textos de Nelson Rodrigues
(1912-1980) surgiu pela característica da turma, do grupo em questão. Senti que a turma necessitava de um
texto dramático (não mais épico); uma forma de diálogo complexa; temas densos, em relação ao ser huma-
no; e principalmente um texto que falasse sobre desejo. Penso que a turma estava nessa energia – minha
sensibilidade apontou para isso. Foi quando decidi trabalhar com Nelson, por ser uma boa forma de abarcar

398
todas as necessidades que diagnostiquei do grupo. É necessário, e eu segui tal perspectiva, ter em mente
os objetivos do processo artístico em questão: tratava-se de um processo pedagógico, da finalização de um
curso que busca aprofundar pesquisa e prática em interpretação teatral.

Queria trabalhar um texto que desafiasse a linguagem. Um texto que problematizasse a linguagem,
que fosse às brechas, aos buracos da comunicação – refiro-me à palavra, ao diálogo. Tal perspectiva co-
mungava com os princípios teóricos que norteavam o Curso, desde seu planejamento. Queria um texto que
pusesse em questão o diálogo, as relações humanas baseadas na palavra; e Nelson Rodrigues fez isso muito
bem. Seu texto é um emaranhado de palavras. Em sua obra dramática, a forma e o conteúdo da palavra são
problematizados, levando em conta a complexidade da mente e do corpo humano.

Além disso, Nelson trata de temas que senti que a turma se interessaria em trabalhar, em se dedicar
ao processo de encenação e de criação de personagens. A estratégia pedagógica foi contrastar com a expe-
riência do semestre anterior, no qual trabalhamos com o teatro épico, como já foi citado. Decidi trabalhar
numa outra perspectiva estética e ética, que dialogasse com o trabalho realizado desde o início do Curso até
este momento de escolha.

Também quis trabalhar com os alunos em questão um texto nacional, pesquisar e estudar a obra desse
tão importante dramaturgo brasileiro. A escolha por Perdoa-me por me traíres veio numa inspiração artística.
Entendi, na época de leitura de vários textos de Nelson, à procura do texto oficial para a montagem, que este
texto reunia características que considerei que atendiam às necessidades do grupo: os personagens, as situa-
ções, a estrutura e qualidade das cenas. Tratar sobre o desejo reprimido é um forte dispositivo de criação. Falar
sobre esse instinto natural inerente a todo ser humano é desafiador. Revelar os “monstros” que nos assombram
é inquietante. Nelson Rodrigues soube explorar tal temática de uma maneira muito bela e cuidadosa, o que
proporcionou uma experiência profunda e, posso dizer, angustiante nos envolvidos no processo.

A ENCENAÇÃO

Trabalhei com os alunos, bem como no semestre anterior, com o processo de criação colaborativa
da encenação. Os alunos pensaram, junto com o professor-encenador, o conceito e a forma da encenação
que deu corpo ao texto de trabalho. A assinatura foi coletiva, a criação e execução passaram pelas discus-
sões e diálogos do grupo. Houve, como providência concreta da ideia de processo colaborativo, a divisão
de Núcleos de Criação241, que, junto a mim, teceram o texto cênico, concebendo a visualidade de nossa
cena. Cada Núcleo responsabilizou-se por um elemento visual e sonoro: Cenografia, Figurino e Adereços,
Maquiagem, Iluminação e Paisagem Sonora. Deste modo, foi assegurado um processo nos qual os alunos
desenvolveram autonomia de criação e o sentimento de pertencimento da obra. Por isto, chamarei a en-
cenação de “nossa”.

O texto Perdoa-me por me traíres, escrito em 1957, teve seu contexto histórico problematizado na
nossa encenação. Compreendemos, como grupo, que as temáticas sociais escancaradas no texto ainda con-
figuram uma realidade na contemporaneidade: machismo, pedofilia, aborto, violência contra a mulher e
feminicídio. As relações humanas, no texto de Nelson, tomam uma proporção gigantesca, como se colo-
cássemos uma lupa e observássemos o que não está revelado, o que não pode ser revelado, mas que está
presente, que se faz presente e que pulsa, que vibra.

241. Na minha graduação na Licenciatura em Teatro, conheci e experienciei esse procedimento metodológico para criação coletiva, inicialmente
com o Prof. Dr. Luís Reis, no processo do espetáculo O mar de Fiote, em 2013.2, e, em seguida e de maneira mais aprofundada, com o Prof. Ms.
Roberto Lúcio, na montagem do espetáculo Woyzeck, em 2014.2, aplicando-o hoje na minha prática como professor de teatro, na condução de
processos de encenação.

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Nossa encenação valoriza o desejo como imagem-síntese do espetáculo. O desejo esteve presente
desde os laboratórios de criação cênica, que influenciaram efetivamente na interpretação dos atores, até os
elementos visuais e sonoros. Tudo deveria remeter ao desejo: corpos, cores, formas, texturas, sons, gestos.
Entendemos o desejo como algo em comum a todo o ser humano, como um impulso e necessidade da con-
dição humana, e que gera uma influência direta na forma com que nos relacionamos com nossos próprios
corpos e com os dos outros, podendo ser o responsável por uma série de questões sociais, como aponta o
texto de Nelson Rodrigues.

Constantin Stanislavski (1863-1938) foi referência fundamental para a relação dos atores com os
personagens. Nos aquecimentos e laboratórios de experimentação e criação, houve um trabalho físico com
o elenco para que os corpos estivessem despudorados, para que a comunicação visual e sensitiva dos cor-
pos fizesse com que tudo na cena remetesse a desejo, reprimido ou aflorado. A interpretação, que busca
um trabalho de corpo integral, partindo da coluna, até as extremidades de mãos e pés, dá atenção também
aos peitos e seios, aos quadris, às regiões das genitálias. O caminho é naturalista, os atores experimentam
a alma e o corpo dos personagens para dar vida a eles em cena, com suas ações físicas. Ao mesmo tempo,
estimava-se um corpo dilatado em cena, um estado de presença que assegurasse a atenção dos espectadores
no espetáculo, proporcionando a eles uma verdadeira recepção teatral.

Buscamos aproximar o público da cena, inserindo-o diretamente nas situações do texto. A história
é convidativa, é uma revelação do cotidiano, do que é vivido por todos nós. O texto nos apresenta situações
familiares. Para reforçar essa proximidade com nossas vidas, a plateia cerca, em círculo, a área de repre-
sentação, formando uma grande arena. No centro e nas extremidades desta arena, acontece o jogo. O jogo
dramático, regido pelos atores que interpretam o texto, e o jogo da vida, ali representada naquela trama
verossímil com a realidade.

O cenário e o figurino da peça trazem elementos de estilo da década de 50, que são misturados com
traços da moda do século XXI, como uma ligação explícita de atemporalidade entre as situações abordadas
pelo autor. Há um jogo de significância entre a composição do cenário de cada ambiente: os telefones, obje-
tos importantes da peça, por exemplo, são de modelos de gerações diferentes.

O figurino apresenta trajes nas conformidades da época narrada no texto, década de 50, e também
atravessa o espaço-tempo na nossa encenação trazendo a transparência na parte superior das roupas. A
transparência reflete uma caraterística da dramaturgia de Nelson: a de revelar o que está por trás, o que
está escondido, o que casualmente não vemos, mas que está ali, presente, na nossa intimidade. Além dis-
so, serve como um dispositivo de valorizar o desejo, tema que norteia a encenação. As camisas e blusas
transparentes revelam os seios das mulheres e os peitorais dos homens, partes do corpo humano que, em
potencial, despertam desejo.

A maquiagem nos recorda a gênese bíblica, associada ao universo da encenação: o fruto do desejo,
do pecado, a maçã do Éden. Com esta imagem-síntese, valorizamos a maçã dos rostos dos atores, com uma
maquiagem que varia nos tons de vermelho (cor marcante do espetáculo). A pintura partia dos olhos até
a região da maçã, área do rosto que denota quando sentimos atração por alguém, conforme comprovado
cientificamente. A cor foi definida conforme a relação dos personagens com seus próprios desejos, de modo
que, por exemplo, Glorinha usou maquiagem rosada, como um desejo que ainda brota, que ainda é puro e
vivo, e tio Raul usou maquiagem roxa, como uma maçã apodrecida, por um desejo reprimido que resulta
em doença, em câncer.

Com a iluminação, vamos às profundezas do ser humano e a traduzimos numa cena escura,
na penumbra, como se estivéssemos na intimidade da família de Glorinha e tio Raul. A pouca lumi-
nosidade também reflete o interior do ser humano, metaforizando o lugar de difícil acesso, de acesso

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negado muitas vezes por medo do que podemos encontrar dentro de nós mesmos. É neste abismo que
Nelson nos lança.

A sonoplastia do espetáculo é composta por sons do mundo todo. O conceito que norteou a pai-
sagem sonora da cena defende que os sentimentos presentes no texto são universais, concernem ao ser
humano como um todo: o instinto do desejo, a traição, o ciúme, o amor não possuído, o medo de ficar só.
Deste modo, estão presentes músicas e sons nacionais e internacionais que tratam sobre as relações de amor
e desejo.

AS APRESENTAÇÕES

O espetáculo, cujo processo se iniciou em agosto de 2017, estreou no dia 21 de dezembro do mesmo
ano, no Teatro Marco Camarotti. Em janeiro de 2018, após finalização do Curso Avançado de Teatro, o gru-
po de alunos decidiu continuar com o espetáculo, vinculando-o ao Coletivo de Teatro Domínio Público, do
Sesc Santo Amaro, retomando os ensaios, aprofundando a composição dos personagens e o aprimoramento
da cena. Como procedimento metodológico dos ensaios nesta nova etapa, trabalhamos, com mais ênfase,
nas ações físicas, um dos principais legados do russo Stanislavski.

Realizamos, como objetivo do novo processo de trabalho, uma curta temporada em março de 2018,
entre os dias 20 e 22. Devido ao desejo do grupo; à questão de a quantidade de espectadores ter ultrapassado
a lotação do teatro nos primeiros dias; e pela apresentação do dia 21 ter sido suspensa por causa do apagão
nacional, conseguimos estender a temporada para o final de semana, nos dias 24 e 25 de março. Cerca de
quinhentos espectadores assistiram ao espetáculo.

Como etapa de finalização, realizamos, no dia 07 de abril de 2018, a avaliação final do processo.

Cartazes oficiais da temporada em março de 2018. Designer: Felipe Prado.

401
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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a autopreparação do ator. São Paulo: Perspectiva, 2014. de Souza. São Paulo: Summus, 1977.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio
Martins Fontes, 2006. de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

AZEVEDO, Maria Machado de. O papel do corpo no KOUDELA, Ingrid Dormien. Texto e jogo: uma ideia
corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2008. brechtiana. São Paulo: Perspectiva, 2008.

BARBA, Eugenio. A canoa de papel: tratado sobre a an- LECOQ, Jacques. O corpo poético: uma pedagogia da
tropologia teatral. Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2009. criação teatral. São Paulo: Edições Sesc, 2010.

________ e SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: LOPES, Elizabeth Pereira. A máscara e a formação do
um dicionário de antropologia teatral. São Paulo: É Re- ator. 1990. 366p. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) –
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FELDENKRAIS, Moshe. Consciência pelo Movimento: de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
exercícios fáceis de fazer, para melhorar a postura, visão,

402
EU(NÓS) DRAMATURGO(S)
Processo de Criação dramatúrgica
com alunos do Ensino Fundamental
Karine Ramaldes (UFG)
Revisão: Clarice Martins Duarte

O presente artigo é um relato de experiência sobre o processo de construção de textos dramáti-


cos, realizado por alunos do ensino fundamental anos finais (6º ao 9º ano), com desenvolvimento colabora-
tivo por meio da utilização dos jogos teatrais. O trabalho foi realizado durante as aulas de teatro ministradas
na Escola SESI Planalto, situada na cidade de Goiânia - GO. As aulas de teatro ocorrem, nesta instituição,
no formato de projeto/oficina, no contraturno da grade curricular, pois o teatro não é obrigatório, e sim
opcional.

As turmas são organizadas em duas modalidades: turmas de “novatos”, que recebem os alunos sem
experiência com teatro, e as turmas de “veteranos”, destinadas àqueles que já frequentaram, no mínimo, um
ano de aula de teatro. Nas turmas de veteranos, realizo um trabalho de aprofundamento nas pesquisas e nas
práticas teatrais iniciadas anteriormente. Nas turmas de iniciação, as experiências são direcionadas para a
introdução à arte teatral. Todo o trabalho é fundamentado na perspectiva dos jogos teatrais, especialmente
a partir da base filosófica da autora norte-americana Viola Spolin (1906-1994).

No ano de 2017, organizei um planejamento propondo que as turmas de veteranos escrevessem seus
próprios textos dramáticos em conjunto. Ou seja, toda a turma estaria envolvida em um processo colabo-
rativo de escrita. Este trabalho foi desenvolvido com quatro turmas distintas, com alunos de 11 a 16 anos.
Cada turma tinha uma aula de teatro semanal com duração de 2 horas. Das quatro turmas que participaram
deste processo, três optaram por montar e apresentar o texto que criaram, e uma das turmas optou por não
finalizar o trabalho de escrita, elegendo um outro texto para a encenação.

A preocupação com os textos desenvolvidos não estava direcionada para a escrita de um texto
dramático “pedagogizado”, que trouxesse um modo de “catequização”, uma lição implícita ou explícita no
mesmo, muitas vezes distante da realidade dos alunos. O interesse estava centrado na experiência em cons-
truir uma dramaturgia coletivamente, no desenvolvimento do processo criador e estético dos alunos, em
explorar a autonomia, os anseios, as experiências que eles traziam, as sensibilidades, reflexões. O interesse
estava direcionado para o processo pedagógico, se os alunos desenvolvessem um texto com fundo moral,
sem problemas, mas esse não era o foco do trabalho. Neste sentido, deixo uma questão para refletirmos: Até
que ponto o texto teatral a ser trabalhado na escola tem que, necessariamente, ter uma “mensagem”, tem que
“catequizar”, ser “pedagogizado”? Penso que a pedagogização está no caminho oposto ao processo pedagó-
gico, uma vez que este último, quando bem conduzido, leva o aluno à reflexão, à autonomia e à emancipa-

403
ção, pois é capaz de orientá-lo a apropriar-se de suas experiências, levando-o à elaboração do pensamento
crítico sobre o meio que o cerca. O que denomino “pedagogização” está, por outro lado, direcionado para a
reprodução e para a repetição, assemelhando-se a um adestramento, no qual as atitudes são repetidas meca-
nicamente, sem o mínimo de reflexão.

Optei por trabalhar com respaldo na estrutura tradicional do texto dramático, pois compreendo
que após a familiarização com o tradicional, o segundo passo poderá ser desconstruí-lo e/ou reconstruí-
-lo, vislumbrando novas possibilidades e modelos experimentais da prática cênica. No entanto, dentro de
um processo pedagógico com alunos que pouco conhecem sobre teatro, considero relevante o trabalho e a
experiência de criação do texto dramático a partir da estrutura tradicional, com enredo e história. É nesta
perspectiva que desenvolvi este trabalho dentro do âmbito escolar, no ensino fundamental, com alunos/
atores não profissionais.

Cada experiência é única e se constitui a partir das relações construídas entre cada grupo. Deste
modo, em cada turma distinta em que este planejamento for conduzido, novas respostas surgirão, neces-
sitando sofrer adaptações. Portanto, o que segue-se não é uma receita de como desenvolver dramaturgia
com qualquer grupo de alunos, mas sim um relato das experiências com determinados grupos, que poderá
servir como reflexão para outros profissionais. Afinal, o processo educativo é isso, uma constante troca de
experiências em que estamos todos aprendendo.

Iniciei, na primeira aula, o processo de construção do texto dramático com os alunos por meio de
um diagnóstico das turmas, percebendo o que eles entendiam por “dramaturgia”. Todos aqueles alunos já ti-
nham passado pela experiência de levar uma dramaturgia para a encenação teatral, eram veteranos. Escrevi
a palavra “dramaturgia” no quadro e comecei a perguntar qual o significado daquela palavra para eles. Na
medida em que os alunos iam dizendo, eu ia anotando tudo no quadro (imagens 1 e 2). Logo após, solicitava
para um dos alunos procurar a palavra no dicionário e ler o que estava escrito. Discutíamos, então, o signi-
ficado da palavra do dicionário, relacionando-o com os significados citados pela turma.

A partir daí, lançava um questionamento: “Para desenvolver uma dramaturgia, precisamos de


uma história?”, em seguida colocava a palavra “história” também no quadro, obedecendo a mesma di-
nâmica realizada com a palavra anterior. Após os alunos pontuarem o que entendiam por história, mais
uma vez procuramos a palavra no dicionário. Realizamos a leitura da definição e a relacionamos com as
significações apresentadas, observando o que nos interessava daquelas significações e o que não nos inte-
ressava.

Imagem 1 Imagem 2

Foto: Karine Ramaldes (2017).

404
É interessante observar como uma das turmas relacionou a palavra “dramaturgia” com o sentimento
de tristeza (imagem 2), já as outras turmas foram comedidas ao falar a respeito, trazendo definições mais
gerais, talvez com receio de que alguma palavra pudesse ser inadequada. O fato de relacionar dramaturgia à
tristeza tem raízes no modo corriqueiro em que utilizamos a palavra “drama” no Brasil. Quando alguém está
chorando de modo forçado ou exagerando um sentimento de tristeza, costumamos dizer que a pessoa está
fazendo “drama”. Guinsburg e Pereira in Pavis (2007, p.109), pontuam que: “No Brasil, de modo genérico,
para um público não-especializado, drama significa o gênero oposto a comédia.”

Porém, segundo o dicionário etimológico242, a palavra dramaturgia tem origem grega: δραματουργία;
dramatourgós vem da derivação da palavra grega drama, com o significado de peça, ação, feito. Dran, no
grego significa fazer, realizar, representar, e ergos, “trabalhador”, no sentido de produtor. O dramaturgo(a),
neste sentido, é quem escreve as peças de teatro, já a dramaturgia é a peça teatral escrita para indicar a ação
a ser encenada. Outra questão que apareceu na discussão sobre a palavra dramaturgia foi a dúvida na dife-
renciação entre tragédia, comédia e drama. Foi uma ótima oportunidade para discutir parte da história do
teatro grego, o símbolo do teatro, e para caminhar por onde a curiosidade dos alunos nos levar.

Após a atividade de explorar as definições das palavras dramaturgia e história, separei a turma em
grupos de quatro a cinco pessoas. Solicitei aos grupos que realizassem uma tempestade de ideias sobre os
temas que gostariam que fizessem parte da peça de teatro que encenariam. Um dos integrantes do grupo
deveria anotar, em uma folha de papel, todas as ideias, palavras, frases soltas, trechos de músicas. Logo de-
pois, deveriam analisar a tempestade de ideias anotada e tentar relacionar essas ideias, percebendo como
poderiam criar conexão entre elas. Por meio destas possíveis conexões, deveriam começar a escrever uma
história no formato que preferissem (narrativo, dissertativo, dramático, jornalístico etc).

Iniciei a segunda aula como de costume: jogos de aquecimento e alongamento. Reservei metade
da aula para que os alunos voltassem à escrita da história. Os jogos que desenvolvo nas aulas recebem in-
fluências diretas do trabalho da pesquisadora e introdutora dos Jogos Teatrais no Brasil, Ingrid Dormien
Koudela, com quem pude aprimorar meu aprendizado por meio de trocas realizadas em aulas, diálogos e
leituras de suas pesquisas. Também recebo muitas influências dos trabalhos escritos por Viola Spolin243,
utilizando como prática constante as três essências dos jogos (Foco, Instrução e Avaliação)244 desta autora,
além de muitos de seus jogos com as adaptações necessárias para a realidade na qual atuo.

Para uma retomada da noção espacial, já que os alunos já tinham experiência com jogos de espa-
cialidade, introduzi o jogo da Bandeja, logo após o alongamento e aquecimento. O professor inicia com a
instrução: solicita que os alunos caminhem pela sala ocupando todo o espaço, de modo que, sem combi-
nação prévia, e sem conversarem ao longo do jogo, se observem e ocupem bem este espaço, deixando-o
equilibrado como em uma bandeja, onde os copos estão bem distribuídos. Em determinado momento, o
professor deve solicitar ao grupo que pare de andar, que os alunos se mantenham sem movimento. Ao parar
a movimentação, deve-se solicitar que observem se o espaço está bem ocupado. Se não estiver, solicita-se
que repitam a caminhada, com o foco (atenção) direcionado para a ocupação equilibrada do espaço. Pode-
-se repetir este jogo o quanto for necessário para que os alunos compreendam corporalmente a ocupação do
espaço (aprendizado em ato, na experiência).

242. Dicionário online www.origemdapalavra.com.br acessado no dia 24/01/2018.


243. A obra da autora norte-americana Viola Spolin é composta por quatro publicações, sendo elas: Improvisação para o Teatro, [1963] 2005; Jo-
gos Teatrais – o fichário de Viola Spolin, [1975] 2012; O Jogo Teatral no Livro do Diretor, [1985] 2010; Jogos Teatrais na sala de aula, [1986] 2010,
traduzida para o português por Ingrid Dormien Koudela (Eduardo Amos participa junto a Ingrid Koudela da tradução do primeiro livro de Spolin,
Improvisação para o Teatro e do livro O Jogo Teatral no Livro do Diretor).
244. Escrevi junto a Robson Corrêa de Camargo o livro: Os Jogos Teatrais de Viola Spolin- Uma Pedagogia da Experiência, Goiânia: KELPS, 2017,
no qual aprofundo a análise sobre a base filosófica da abordagem de Viola Spolin.

405
Jogo Apenas Um em Movimento: Assim que o professor observar que o grupo está conseguindo
manter uma ocupação equilibrada de seus corpos no espaço (a partir do jogo Bandeja), deve solicitar aos
alunos que parem, e cada um permaneça onde está. Com o grupo já parado, o professor instrui que uma
pessoa por vez saia de onde está, falando sobre a história que começou a desenvolver na aula anterior. Essa
pessoa deve permanecer andando e falando até que outra pessoa comece a falar e a andar. Quando o outro
começar a falar e a andar, o primeiro para, e assim segue o jogo sucessivamente. Apenas uma pessoa de cada
vez deve falar e andar, por isso o nome “Apenas um em movimento”. O jogo deve ser desenvolvido até que
todos tenham participado ou pelo tempo que o professor achar necessário.

Este jogo auxilia os alunos a voltarem seu foco de atenção para o trabalho de dramaturgia que ini-
ciaram na aula anterior e também auxilia na improvisação das histórias escritas, oferecendo a eles novas
possibilidades de criação, complementando suas próprias histórias. São as experiências do passado e do
presente se interconectando, em um processo continuum da experiência significativa245. A sensibilidade está
o tempo todo sendo explorada durante o jogo. Com a improvisação imediata dos alunos todos os órgãos
dos sentidos são estimulados a estarem alertas. Na improvisação, recorrem a memórias das experiências
passadas que se articulam com a experiência presente, provocando o movimento continuum do processo de
criação. Estamos assim, trabalhando a cognição sensível, essencial ao processo educativo.

Logo após este jogo, solicitei que os mesmos grupos da aula anterior se reunissem e retomassem a
escrita de suas histórias. Reservei cerca de 30 minutos para esse momento. Procurei realizar a retomada da
escrita sempre após um jogo prático, quando sensibilidade e cognição estivessem conectadas, pois acredito
que este caminho auxilia no processo criador. Em seguida (pós-escrita), propus o Jogo da Imagem: Cada
grupo deveria selecionar uma parte da sua história e montar uma imagem corporal fixa da parte selecio-
nada. Como se fosse uma foto congelada, utilizando todos os integrantes do grupo, uma espécie de tableau
vivant (quadros vivos)246. Os grupos mostravam suas imagens corporais uns aos outros. Após as apresenta-
ções das imagens, formamos uma roda de discussão. Momento este denominado por Spolin como avaliação.
Primeiramente, propus aos alunos que falassem sobre suas percepções relacionadas às imagens construídas
pelos colegas dos outros grupos. Depois a discussão era aberta para falarem sobre a experiência de constru-
ção da imagem dentro do próprio grupo.

Estes vários modos de refletir e de construir a dramaturgia vai na contramão da educação tradicio-
nal, que privilegia as questões puramente intelectualizadas, dicotomizando o indivíduo em corpo e mente,
pois ambos são trabalhados separadamente. Nas aulas de teatro que proponho, se torna essencial a conexão
entre corpo e mente, razão e emoção, individual e coletivo, teoria e prática para o bom desenvolvimento do
processo pedagógico. Por isso as propostas de jogos mesclam diferentes modos de instigar o aluno e suas
múltiplas potencialidades.

Na terceira aula, após alongamento e aquecimento, iniciei com o jogo que denomino Roda do
Olhar. Toda a turma deve permanecer em pé em uma grande roda. O jogo tem início quando um dos alu-
nos sai do seu lugar em direção a outro colega da roda, olhando nos olhos deste outro e falando uma parte
da história que seu grupo está construindo. Ao chegar ao outro, com quem estabeleceu o jogo do olhar,
ocupa o lugar dele, e este outro estabelece o jogo do olhar com um terceiro colega da roda, realizando a
mesma dinâmica, e assim continua sucessivamente. Podem ser acrescentadas variações no jogo, como
por exemplo solicitar aos alunos que, ao caminharem, explorem movimentações corporais com atenção

245. Conceitos presentes na discussão sobre Experiência Significativa de John Dewey e aprofundados também no livro de Karine Ramaldes e Robson
Corrêa de Camargo: Os Jogos Teatrais de Viola Spolin- Uma Pedagogia da Experiência, Goiânia: KELPS, 2017.
246. Joaquim Gama desenvolveu um importante estudo sobre a relação das imagens com a construção cênica em seu livro Alegoria em Jogo: A
encenação como prática pedagógica. São Paulo: Perspectiva, 2016.

406
especial para determinadas partes do corpo (cabeça, perna, quadril, corpo todo), trabalhando diferentes
entonações vocais etc.

O jogo conduz os alunos a uma retomada de suas memórias, lembranças do que tinham escrito
anteriormente, os estimula a improvisar novos fatos e a corporificar a história. É um modo de improvisarem
a partir dos elementos que já haviam experienciado (passado) e também de começarem a compartilhar suas
ideias com o grupo todo. Após esse jogo, solicitei aos grupos que retomassem o trabalho de escrita e desen-
volvimento da história. Assim, a prática vai interferindo na escrita e vice-versa, construindo um processo
denso e orgânico, em que prática e teoria se complementam, caminhando sempre juntas. Depois de cerca de
30 minutos, cada grupo socializou, para todos da turma, a ideia da história até onde tinham desenvolvido.
Ao final da aula, solicitei aos alunos que na aula seguinte levassem algum objeto cênico que se relacionasse
com sua história.

A quarta aula teve como um dos jogos centrais a Caminhada dos Personagens: os alunos rece-
bem a instrução para andarem pelo espaço da sala, como no jogo da segunda aula (Jogo Bandeja). Assim
que o espaço estiver bem equilibrado, com todos os participantes bem distribuídos, solicita-se aos alunos
que comecem a pensar em um dos personagens da história que estão desenvolvendo. Ao pensarem, devem
continuar andando e irem corporificando esse personagem. Neste processo, as seguintes instruções podem
ser dadas:

- De que forma esse personagem anda? Mostre com o seu corpo.


- Preste atenção em como o personagem pisa no chão, no movimento dos pés.
- A coluna desse personagem tem um movimento diferente? Mostre.
- O que traz o olhar do personagem? Mostre.

Essas são algumas instruções possíveis, no decorrer do jogo. Porém, no momento da experiência
com os alunos, essas instruções são modificadas e/ou complementadas de acordo com as necessidades que
vão surgindo. A instrução durante o jogo é importante para auxiliar os alunos a manterem-se no foco, com
a atenção direcionada para a experiência que estão construindo. A fisicalização247 dos personagens amplia
as possibilidades criadoras dos alunos, levando-os a experimentações corporais diversas que influenciarão
diretamente no processo de escrita. É um caminho estabelecido entre a imaginação e a realidade sobre como
corporificar os personagens imaginados, bem como sobre criar um registro corporal e escrito desses perso-
nagens. Um caminho que se entrecruza entre o imaginário, o concreto e a elaboração escrita.

Após o jogo, solicitei que os mesmos grupos de construção das histórias se formassem novamente,
e desta vez cada grupo deveria organizar um modo de mostrar a sua história, a partir dos elementos cênicos
que levaram. A história poderia ser contada com a utilização dos elementos cênicos ou poderia ser ence-
nada. Tive os dois modos de apresentação das histórias nas diferentes turmas. Nesta etapa, alguns grupos
reclamaram porque ainda não haviam finalizado suas histórias. Orientei que isso não era um problema,
poderiam apresentar até onde conseguiram desenvolver ou improvisar um final caso desejassem.

Depois que cada grupo apresentou seu trabalho, realizamos uma roda de conversas (avaliação),
durante a qual fiz provocações, perguntando se existia alguma possibilidade de reunir todas as histórias ali
apresentadas em uma única história. Alguns responderam que sim, outros que não, e cada um foi dando sua
opinião. Geralmente a ideia de que é possível conectar todas as histórias prevalece, mesmo que considerem

247. Termo utilizado por Viola Spolin. Ingrid Dormien Koudela, tradutora dos livros de Viola Spolin para o português, em seu livro Jogos Teatrais
(2002[1984], p. 51), na nota de rodapé, escreve a observação de que fizeram uma revisão da tradução da palavra “physicalization”, considerando o
termo “corporificação” como mais correto do que “fisicalização”.

407
que uma ou outra história não se encaixe. Alguns conflitos surgem e o professor precisa realizar a media-
ção. Mostrei que as histórias, ao serem interconectadas, poderiam sofrer alterações, poderíamos trabalhar
somente com alguns elementos de uma história e acrescentar fatos das outras, de modo que trabalhássemos
com todas as produções.

A quinta aula foi direcionada para a construção coletiva da estrutura da história. A junção das
pequenas histórias em uma maior. Assim que os alunos chegaram à sala, o computador e o datashow já
estavam projetando uma tela em branco na parede, disponível para escrita. Primeiramente, propus que digi-
tássemos os principais pontos da história de cada grupo da turma. O que demandou tempo e atenção, pois o
trabalho deveria trazer uma visão bem sintética das histórias, sem deixar de abordar os principais elementos
considerados por cada grupo. Segue abaixo o registro da turma de sábado (7h30-9h30), que estava subdivi-
dida em três grupos menores. Nas outras etapas do processo, continuarei utilizando como exemplo apenas
esta turma para que o texto fique mais sucinto.

Principais Pontos das Histórias:

- História 1: Cartas para Aurora - Sofria bullying, mudou de escola. Escrevia cartas para amenizar a dor que
sentia, deixava as cartas no banco/árvore. Um admirador encontrava as cartas e lia, se apaixonou por ela
através das cartas. Sem saber quem era, respondia as cartas e deixava para ela.

- História 2: Duas meninas dos anos 60 que assistiam a uma série do futuro. As duas protagonistas saem da
série e vêm para o mundo real.

- História 3: O passarinho e a borboleta.

De modo bem resumido, elencamos os principais pontos das histórias dos três grupos desta turma.
Para chegar a este resumo, tivemos muita conversa e reflexão, sempre tentando manter o que o grupo que
criou a história considerava como primordial. Em um primeiro momento, há de se notar que as conexões
não são tão evidentes, mas a partir de uma reflexão e colaboração conjunta, fomos conseguindo conectar
as histórias. Dialogamos e sugeri que escrevêssemos somente um “resumão” da história toda, pois o passo
seguinte seria desenvolvê-la. Seguem as conexões que criamos entre as pequenas histórias desta turma:

História se passa em uma escola nos anos 60. Menina (Aurora), que sofre bullying, sem-
pre que escreve suas cartas tem a companhia da borboleta ou do passarinho, seus únicos
amigos. A escola se encontra em rebuliço, pois em breve acontecerá a festa de formatura
dos alunos.

Na sexta aula, mais uma vez foi necessário o apoio do computador e do datashow para que todos
pudessem participar do processo, visualizando melhor a escrita. O foco foi desdobrar o resumo da história
em cenas. Os alunos iam dizendo o que deveria acontecer em cada cena e, um dos alunos ou eu mesma, ia
digitando as ideias. O resultado foi:

CENA1: ONDE: Escola. Anos 60. Aurora está no banco escrevendo suas cartas,
chegam meninas praticando bullying com ela. Aurora, muito triste, se consola
com os únicos amigos (borboleta ou passarinho). Deixa a carta no banco.
CENA 2: O passarinho (narrador) pega a carta de Aurora e faz uma viagem pelo
tempo, levando a carta para o futuro, entrega para uma pop star, que lê a carta e
resolve ajudar a menina. Responde a carta.

408
CENA 3: Sala de aula. Colegas praticando bullying com Aurora.
CENA 4: Aurora e a pop star começam a ficar amigas, descobrem uma forma da
pop star visitar o passado (anos 60).
CENA 5: A pop star percebe que Aurora canta e dança muito bem e diz a ela que
deve mostrar o seu talento. As duas formam uma dupla e ficam famosas nos anos
60. As “falsianes”248 (meninas que praticam bullying com Aurora) ficam com inve-
ja e tentam destruir a dupla.
CENA 6: A “falsiane” que já era famosa tenta levar a pop star para o grupo dela.
Aurora e a pop star brigam.
CENA FINAL: Aurora e a pop star voltam a ser amigas e fazem uma grande apre-
sentação. A Pop star se apaixona pelos anos 60 e não quer voltar para o futuro.

Com as cenas elaboradas, pedi para que cada grupo escolhesse uma ou duas delas e combinassem
uma improvisação da (s) mesma (s). Solicitei que os grupos deveriam escolher cenas diferentes. Os grupos
combinaram e apresentaram uns aos outros as cenas improvisadas.

As duas aulas seguintes (sétima e oitava aulas) foram desenvolvidas na sala de informática da es-
cola. Os grupos que realizaram o improviso na aula anterior, foram para a sala de informática digitar a cena
improvisada em uma estrutura de texto dramático. Até que chegou o momento de aglutinar todas as cenas
digitadas, trabalho que demandou mais duas aulas. Colocamos as cenas em suas sequências originais, nas
aulas nona e décima, construindo um texto único. Surgiram, nesta etapa, vários ajustes a serem realizados
pelo fato das cenas terem sido digitadas separadamente. Foi necessário, mais uma vez, o auxílio do compu-
tador e do datashow (para projetar o texto de modo visível para todos da sala) para que pudéssemos juntos
organizar a estrutura geral do texto. Lemos o texto na íntegra e fomos anotando as contradições e marcando
os pontos que deveriam ser melhor elaborados. Com os textos finalizados, iniciamos os nossos ensaios, que
também foi uma fase de adaptações, e alguns textos ainda sofreram transformações.

Todo o processo foi avaliado pelos alunos, mas não caberá, aqui, explanar essa etapa em detalhes,
porque o farei no livro Construindo Minha Dramaturgia, que está no prelo e trata sobre todo o processo e
sua finalização de modo mais detalhado e aprofundado. Concluímos juntos que construir um processo de
criação em grupo não é fácil, mas é gratificante, pois durante o processo é possível perceber o empodera-
mento dos que não eram empoderados, é possível perceber que todos, de uma forma ou de outra, acabam
se transformando durante o processo, e precisam se transformar, senão não conseguem acompanhar o de-
senvolvimento da turma. Teatro é grupo, é relativizar suas opiniões, é saber escutar, saber falar, saber se
expor, mas também saber se retirar. Os alunos aprenderam tudo isso, mais do que aprenderam a construir a
estrutura de um texto dramático, e também aprenderam o quão é difícil trabalhar em grupo, mas ao mesmo
tempo o quanto isso é gratificante. São criadores e autores de suas próprias criações.

248. Termo utilizado pelas alunas e, segundo elas, insubstituível.

409
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410
TEATRO PÓS-DRAMÁTICO:
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO
DE TEATRO NA ESCOLA EM UM
CONTEXTO SUL-MATO-GROSSENSE
Maria Helena Santana Moreira

Introdução
De maneira recorrente o teatro é apresentado aos estudantes sul-mato-grossenses como um
meio para alcançar um fim específico, fim este comumente ligado à consolidação dos conteúdos exigi-
dos pelo Referencial Curricular, publicado pela Secretaria Estadual de Educação. A presença do teatro
nas escolas sul-mato-grossenses como disciplina independente está em pleno processo de incentivo
por parte dos acadêmicos e egressos do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD).

Esse processo tem se tornado possível devido aos esforços conjuntos empreendidos por estes pro-
fissionais, em articulação com os órgãos civis da administração pública responsáveis, tais quais: a Secretaria
Estadual de Educação, Secretaria Municipal de Educação, Câmara dos Vereadores. Igualmente, programas
de incentivo à pesquisa no campo do ensino do teatro, em especial o Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação à Docência (PIBID), proporcionado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), presente na UFGD desde 2009.

Quanto à formação dos docentes de Artes Cênicas da Universidade Federal da Grande Dourados
integrantes do PIBID, pode-se dizer que a discussões acerca do conceito de artista-educador incentivadas
por parte dos coordenadores do programa, levam os então acadêmicos a refletirem sobre o papel do profes-
sor de teatro na escola, seu impacto no desenvolvimento dos alunos e nas práticas educacionais como um
todo. Quanto ao termo artista-educador, Marques (1999) diz:

[...]o artista-docente é aquele que, não abandonando suas possibilidades de criar, interpretar,
dirigir, tem também como função e busca explícita a educação em seu sentido mais amplo.
Ou seja, abre-se a possibilidade de que processos de criação artística possam ser revistos e
repensados como processos explicitamente educacionais. [...] (MARQUES, 1999, p. 121).

O ideal de docente descrito por Marques encontra-se no cerne das questões relativas à busca de
uma nova metodologia de ensino de teatro. Frequentemente, percebe-se que artistas da cena deixam de
realizar suas pesquisas e experimentações sobre o palco, por estarem envolvidos pelo ambiente escolar.

411
A discordância entre a ação pedagógica e o fazer teatral, entre o ensino e a prática, muitas vezes se dá
por conta da construção cultural de que a Arte não possui o mesmo potencial de instrução presente nas
demais áreas do conhecimento. Assim, a presença de programas como o PIBID no curso de Artes Cênicas
contribuiu para a dissolução desta ideia, em busca de uma mudança no modo como o ensino da Arte é
entendido dentro da escola.

Ensino de teatro: algumas possibilidades

De acordo com Santos:

A inserção do teatro na escola, como qualquer modo de conhecimento, pressupõe uma pos-
tura epistemológica, uma maneira de pensar a construção do conhecimento. Assim, pensar
um projeto pedagógico que inclua a prática dramática [...] implica, além do domínio dos
elementos que compõe o teatro, [...] uma permanente busca de superação dos preconceitos
e das limitações impostas pela estrutura do sistema escolar. (SANTOS, 2002, p. 115)

A presença de uma linguagem artística que difere do convencional, que provoca transformações
– e até mesmo transgressões – nas regras existentes dentro do ambiente escolar, evidentemente causa hesita-
ção. Uma vez que o ambiente escolar, como o do Estado do MS, encontra-se solidificado em antigas estrutu-
ras de poder e costumes arraigados que vão de encontro com as características e propostas, faz-se necessário
realizar reflexões sobre este cenário.

A educação escolar em Artes no Estado do Mato Grosso do Sul encontra-se, portanto, em um


ponto que favorece discussões acerca das metodologias tradicionais e possíveis ações inovadoras que se
adéquam de maneira mais apropriada dentro da realidade cultural dos alunos. Essa motivação dialoga com
a afirmação de Koudela (2002) sobre o objetivo dos conteúdos da disciplina de Artes descritos nos Parâme-
tros Curriculares Nacionais, qual propõe que os s conteúdos de Arte acolham o repertório cultural do aluno.

Este objetivo pode ser alcançado através de diversas metodologias de ensino, uma vez que o teatro
por si já configura uma atividade que proporciona a troca de experiências entre os participantes. Dentre as
diversas maneiras de se conceber o ensino de teatro existentes, podemos citar a tríade metodológica pro-
posta por Ana Mae Barbosa (1989).

Sua proposta é constituída por ações que têm como objetivo levar o aluno a conhecer a obra de
Arte, sua história e suas características. Ações que incentivem o mesmo à análise desta obra de Arte, de
suas qualidades, possibilidades, sua relação com o local de enunciação do espectador-aluno e, a partir desta
relação, instiga artisticamente o aluno a fim de que ele possa criar imagens expressivas corporais usando a
obra de Arte como matriz geradora.

Assim como outras estéticas teatrais, o teatro pós-dramático pode dialogar com esta tríade uma
vez que as características pós-dramáticas presentes neste fazer teatral muitas vezes carregam em si a fruição
artística e a contextualização desta com as vivências do aluno. Isto se dá pois a cena pós-dramática parte do
diálogo entre as motivações do artista e o contexto no qual ele se insere (LEHMANN, 2013).

Ao materializar corporalmente seu contexto, suas relações com o mundo que o cerca e sua visão
de mundo, o aluno expande seus horizontes artísticos, quebra paradigmas e preconceitos. Esta ação leva à
transformação destas relações, fazendo com que as mesmas sejam reinventadas. Re-inventar o modo como
se dá a interação com o outro através de um fazer teatral, provocando reflexões artístico-críticas durante

412
este processo de criação cênica configura uma ação com grande potencial transformador. Esta ação possui
intensa relação com os preceitos de educação descritos por Paulo Freire.

Romper com os limites criados por um sistema de ensino ultrapassado, que não leva em considera-
ção as individualidades e múltiplas culturas presentes na sala de aula é uma das premissas defendidas pelo
pedagogo. Através de sua pedagogia inovadora, aplicada em centros de alfabetização, Freire instituiu um
ideal de educação respeitado até os dias de hoje por diversos segmentos da educação. Sua atitude, ao desen-
volver um pensamento libertador sobre a educação, desafiou as autoridades ditatoriais brasileiras, levando-o
a ser exilado do país. Seu livro icônico A Pedagogia do Oprimido, escrito em 1968, enquanto cumpria seu
exílio no Chile, orienta o pesquisador que o lê à construção de uma educação crítica, questionadora e envol-
vida com a bagagem cultural do aluno.

No livro, o pedagogo discorre acerca da liberdade de expressão, pensamento, criação e, tam-


bém, sobre o papel do professor. Dotado de grande senso crítico, Freire denominou a educação brasi-
leira de seu tempo como ‘bancária’. Esse termo relaciona-se tanto com organização da sala de aula, na
qual os alunos permanecem sentados diante do professor, quanto ao funcionamento de uma instituição
financeira.

Essa última interpretação tem ligação com a prática docente criticada pelo autor, na qual o profes-
sor “deposita” no aluno os conteúdos, visando um futuro “saque” dos “lucros” produzidos pelo mesmo ao
inserir-se no mercado de trabalho. Conforme Freire:

[...]ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um
sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. (FREIRE,
1996, p. 12)

O tipo de educação contestada por Freire visava a mera transferência de conhecimento do professor
para o aluno, sem realizar reflexões acerca do modo como este conhecimento será recebido pelo educan-
do. Assim, o educando estava no ambiente escolar para absorver os conhecimentos detidos pelo professor,
reiterando uma hierarquia opressora que não considerava o estudante como um indivíduo independente.

Freire, no entanto, defende um ensino no qual o aluno é participativo e tão detentor de conheci-
mentos quanto o professor. O processo educacional se concretiza na troca destes conhecimentos, propor-
cionando a ambos os lados o desenvolvimento mútuo e, no caso do ensino da Arte, o desenvolvimento
artístico. O ato de negar-se a realizar trocas de conhecimentos e vivências com seus educandos é condenado
por Paulo Freire:

Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua
própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sen-
do um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições,
um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho - a ele ensinar e não a de
transferir conhecimento. (FREIRE, 1996, p. 27)

O teatro pós-dramático como pedagogia teatral pode igualmente assegurar ao aluno a experiência
teatral através de um viés lúdico, no sentido de estabelecer relações diretas entre os participantes desta ex-
periência. Esta relação extrapola os limites corporais e cognitivos e reside na troca das diversas visões de
mundo, partilhadas de modo direto e indireto entre os participantes de uma aula orientada por uma estética
pós-dramática.

413
Ensino de teatro no Mato Grosso do Sul: um processo de resistência

Uma das motivações para a presença do teatro na escola, motivação esta reforçada constantemente
pelas ações do PIBID, é a formação de público para teatro. Em um contexto como o do Mato Grosso do Sul,
este espectador muitas vezes não tem a possibilidade de estar em contato frequente com peças teatrais, sejam
elas de estética clássica ou contemporânea.

Essa distância existente entre o público geral e o teatro pode ser explicado devido à distância
real entre ele e o principal edifício teatral existente na cidade de Dourados, que se localiza na área
nobre da mesma. Cabe ressaltar que são realizadas ações teatrais em espaços públicos, como praças
e parques, porém estas têm pouco alcance na população devido tanto a falhas na divulgação destas
ações quanto à cultura local, que tem como preceito que a Arte do teatro é um privilégio das classes
mais abastadas.

A aproximação com o público que o teatro pós-dramático proporciona, coloca o espectador em


foco, pois este se vê diante de uma ação fragmentada, que demanda complementos oriundos de sua própria
percepção do que se passa em cena. Ao deparar-se com esta ação que difere da representação de uma fábula,
e que muitas vezes solicita que o espectador seja atuante durante a cena, é preciso que este igualmente reflita
sobre sua atitude diante dela.

A escola pública é um espaço que congrega pessoas de diferentes realidades e que carrega em si a
energia da troca de conhecimentos, por configurar-se um local de aprendizado. Assim, a realização de ações
cênicas neste espaço tem grande chance de atingir de maneira direta este público desacostumado, levando-o
ao encontro destas reflexões e experiências artísticas.

Diante de todas essas potencialidades e desdobramentos possíveis resultantes da presença do teatro


pós-dramático em um contexto escolar, pode-se pensar sobre o papel do professor de teatro. Pupo (2013)
estabelece que o professor de teatro que objetive inserir dentro do contexto escolar uma estética pós-dramá-
tica, precisa estar consciente dos conceitos deste teatro, envolver-se e acreditar em seus processos de criação,
a fim de que os alunos igualmente sintam-se parte do acontecimento cênico. A pesquisadora descreve que é
necessário que as atividades pós-dramáticas em sala de aula:

[...] deixem de ser encaradas como simples jogos ou exercícios com função de pré-requi-
sitos para uma posterior aprendizagem, pretensamente mais elevada [e] tornem-se ponto
de partida de um processo de desconstrução de categorias teatrais consagradas (PUPO,
2013, p. 231)

O professor de teatro que propõe um ensino cênico pós-dramático tem como objetivo, portanto,
alargar as percepções e relações que o aluno pode ter com si mesmo, com mundo que o cerca e o teatro. As
propostas de atividades escolares pós-dramáticas, assim como as encenações por ela orientadas, têm seu fim
em si mesmas, sem necessitar de complementos ou explicações. Assim como outras metodologias de ensino,
o ensinar pós-dramático tem seu cerne no conceito de que a aprendizagem sobre o teatro se dá durante o
fazer teatral, inserida no processo de criação.

O teatro pós-dramático, por configurar uma estética ligada à ideia de fragmentação e descontinui-
dade dos fatos, eventualmente pode provocar uma hesitação quanto ao seu potencial pedagógico. Isto se dá
por conta da cultura, tanto escolar quanto artística, acostumada com um teatro que, representa fábulas, com
personagens claramente estabelecidos.

414
A transformação do paradigma educacional presente em ações pedagógicas ligadas à estética do te-
atro pós-dramático vai ao encontro dos ideais de educação presentes na legislação brasileira, principalmente
no tocante à educação de período integral. Quanto a isso, de acordo com o Ministério da Educação:

Uma análise das desigualdades sociais, que relacione tanto os problemas de distribuição
de renda quanto os contextos de privação de liberdades, é requerida para a construção da
proposta de Educação Integral. [...]Vale destacar, nesse quadro, a influência dos processos
de globalização, as mudanças no mundo do trabalho, as transformações técnico-científi-
cas e as mudanças socioambientais globais, dentre outras, que impõem novos desafios às
políticas públicas, em geral e, em particular, às políticas educacionais, principalmente em
países emergentes como o Brasil. (MEC, 2009, p. 12)

A educação integral é realidade em diversos países do mundo, sendo considerada uma das melhores
maneiras de proporcionar ao educando um processo de desenvolvimento amplo e que contemple as diversas
frentes de conhecimento. No Mato Grosso do Sul, uma das iniciativas do Governo Federal para a implantação
da educação integral, presente na cidade de Dourados, é o Projeto Mais Educação, no qual os alunos partici-
pantes do projeto têm contato com diversas atividades culturais no contra turno de suas aulas regulares.

Essas atividades contemplam diversas manifestações culturais regionais, e a presença do curso de


Artes Cênicas na cidade contribui para que o teatro esteja presente como modalidade nessas atividades.
Deste modo, os alunos têm contato com a arte da cena, exercitando o fazer teatral no ambiente escolar, de-
senvolvendo suas potencialidades artísticas e expressivas.

O jogo é uma metodologia comumente usada no ensino de teatro de crianças e jovens, embora não
exclusivamente, com resultados e processos muito prazerosos para os participantes. Os jogos de improvi-
sação esquematizados por Viola Spolin (1963) são considerados por muitos uma das melhores formas de
iniciação ao teatro àqueles sem qualquer prática teatral anterior.

Assim, os jogos de Spolin, alguns dos quais visam a criação de personagens, são comumente utili-
zados por profissionais – muitas vezes não qualificados – para que sejam criados os chamados “teatrinhos”,
reiterando uma cultura artístico-pedagógica, segundo a qual o teatro está presente na escola como meio
para atingir um outro fim.

Esta cultura artístico-pedagógica, muitas vezes, pode conduzir ao pensamento de que o ensino
de teatro que apresente a cena através do jogo e da criação de personagens entra em conflito direto com a
metodologia do pós-dramático. Quanto ao potencial pedagógico do fazer teatral, Hans-Thies Lehmann, em
entrevista à Revista Sala Preta, afirma que:

Creio que existe no teatro pós-dramático uma relação forte entre formas teatrais pós-
-dramáticas e uma nova alegria de brincar voltada às crianças em função da dissolução
da fronteira que separa público e performer, no sentido do termo alemão “spieler” e in-
glês “player”, ou seja, na instância de um jogador, do ator como brincante. (LEHAMNN,
2013, p. 239)

Lehmann esclarece, portanto, que o teatro pós-dramático nega diretamente o jogo dramático de
representação. Ao propor um processo de criação livre de formas pré-estabelecidas e estando este processo
inserido nas práticas docentes, pode-se afirmar que este proporciona ao aluno a experiência do fazer teatral

415
igualmente livre de amarras. Uma vez que o professor de teatro remove da experiência teatral a obrigatorie-
dade da criação de um personagem, institui-se a presença do aluno-criador como si mesmo em cena.

Considerações finais

A alegria de brincar da qual fala Lehmann pode ter relação com uma das consequências que se-
guem a remoção da personagem (conforme entendida no drama clássico) do fazer teatral pós-dramático: o
alívio da tensão nesse fazer. De maneira recorrente, a perspectiva de criar um outro eu pode fazer com o que
o aluno, desacostumado com esse processo, sinta-se intimidado e com medo de estar errado. Eliminando
essa premissa, a experiência torna-se relaxada, livre de pressões ou expectativas por parte dos alunos, fazen-
do com que os mesmos se sintam à vontade para se mostrarem através de ações teatrais.

O fazer pós-dramático tem a possibilidade de tornar-se um fazer pedagógico justamente por mui-
tas vezes negar a criação de outro eu. O aluno que vivencia uma ação cênica pós-dramática, o faz como ele
mesmo, muitas vezes sem vestir uma máscara de personagem. Esse se configura então menos um ator e
mais um performer, no sentido em que se mostra (se mostra) conforme realmente é, expondo suas próprias
inquietações e lapidando as matrizes geradoras de ação, por vezes partidas das suas experiências.

Este processo de amadurecimento das ações pós-dramáticas por parte dos educandos, pode se dar
através de exercícios de origem dramática, pois a questão do teatro pós-dramático reside na maneira como
estes exercícios são conduzidos. Através da orientação de um professor de teatro, que se reconhece mais
como um orientador do que como o detentor do conhecimento, um jogo teatral clássico pode instigar seus
participantes a extrapolarem os pré-conceitos existentes sobre o fazer teatral.

O modo como a pós-dramaticidade da cena dialoga com as inter-relações igualmente fragmentadas


existentes entre as pessoas na contemporaneidade tem relação com a presença assídua da tecnologia, cada
vez mais avançada, no cotidiano das pessoas, a qual modifica a maneira como estas se relacionam. Sendo o
teatro a arte do aqui e do agora, ele reage a estas modificações ao refletir e fruir artisticamente sobre os novos
moldes de relações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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417
ENCENAÇÃO TEATRAL NA
EDUCAÇÃO BÁSICA: RISCOS DO
USO DO CELULAR EM DISCUSSÃO
Aline Oliveira Soares - aline.o.s@live.com -UFMA
Maria Consuelo A Lima - mconsuelo@ufma.br - UFMA

1 – Introdução

A concepção da ciência como centro dos processos de desenvolvimento da humanidade e responsável


pelas transformações em curso na sociedade tem raízes no período pós revolução industrial. Nessa visão posi-
tivista, os produtos que a ciência e a tecnologia disponibilizam no mercado poderão apresentar soluções para
todos os problemas do planeta, levando-se ao entendimento de que quanto maior o conhecimento científico
e tecnológico maior será o bem-estar dos indivíduos e melhor a qualidade de vida da sociedade. Entretanto,
ao longo dos anos, tem crescido as críticas a ciência e a tecnologia provocando mudanças relativas a imagem
de benfeitoras da humanidade, como mostra uma pesquisa realizadas na Argentina em 2002 e no Brasil, na
Espanha e no Uruguai em 2003, em que a maioria dos entrevistados (85,9%) negara acreditar que a ciência e a
tecnologia possam solucionar todos os problemas da humanidade (VOGT; POLINO, 2003).

Na perspectiva de se obter conhecimento sobre possíveis problemas locais relacionados ao uso de


produtos da ciência e/ou da tecnologia, este trabalho surgiu como possibilidade de se discutir, em sala de
aula da educação básica, impactos desses produtos. O estudo teve como apoio teórico pressupostos do en-
foque CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade), movimento que surgiu da década de 1970 com a tomada de
consciência do poder destrutivo de produtos científicos e tecnológicos, a exemplo da bomba atômica e de
inseticidas sintéticos.

Identificada uma problemática gerada pelo uso do de um produto tecnológico - o aparelho da tele-
fonia móvel - como um possível gerador de perigos para a saúde dos indivíduos, propomos discuti-la com
alunos do Ensino Médio utilizando o teatro como instrumento pedagógico. Para isso, buscamos em Boal
(1991) ideias que manifestam a importância do teatro como arma de divulgação e expressão da realidade
vinculada a um povo em sociedade, um método dinâmico para uso em salas de aula da escola básica, no
sentido de caracterizar o processo de ensino/aprendizagem e o desempenho dos indivíduos - docente e
discentes - envolvidos no processo.

2 – Radiação eletromagnética e a saúde humana

Na sociedade atual, a tecnologia está presente em quase todos os aspectos da vida humana e, sendo
a física base científica para as tecnologias contemporâneas, torna-se prioridade o estudo da física na edu-

418
cação básica para discutir a relação da ciência e/ou da tecnologia com a sociedade. Para se compreender a
Física presente em nosso meio, buscamos identificar fenômenos físicos presentes nele e, para analisarmos
essas relações, trazemos para discussão o caso particular de um produto tecnológico presente na vida dos
estudantes, dentro e fora do ambiente escolar, o aparelho da telefonia móvel – o celular.

Um fenômeno físico intrínseco a muitos aparelhos tecnológicos é a radiação eletromagnética, sob a


qual a população é exposta constantemente. As radiações eletromagnéticas, que podem ser de caráter ioni-
zante e não ionizante, podem afetar a saúde dos organismos vivos, dependendo de como são usadas, e se dis-
tinguem pela quantidade de energia que cada uma dela transporta (PERUZZO; POTTKER; PRADO, 2014).

O celular, um dos aparatos tecnológicos mais comum na sociedade atual - e muitos outros aparatos
tecnológicos como o rádio, o radar, a TV, forno de micro-ondas e equipamento de raios X presentes no
dia a dia das pessoas - tem como princípio de funcionamento a radiação eletromagnética (BÔAS; DOCA;
BISCUOLA; 2010). As radiações, aparentemente inofensivas, podem gerar aquecimento nos tecidos mais
profundos da pele e causar diversos efeitos para a saúde das pessoas. O grande problema das radiações
eletromagnéticas quando expostas aos organismos vivos é que na maioria dos casos são imperceptíveis e o
aquecimento nos tecidos poderá não ser recompensado pelo organismo (SILVA et al., 2015).

Para oferecer suporte a grande quantidade de telefones celulares, atendendo com qualidade de comu-
nicação a demanda da população, tem-se aumentado o número das estações de radiobase na mesma propor-
ção do aumento da demanda de usuários e, com isso, é cada vez maior a quantidade de radiação eletromagné-
tica que a população fica exposta. Numa pesquisa realizada em Salvador (Bahia-Brasil), em regiões próximas
a estações de radiobase, Silva et al. (2015) constataram um número muito elevado de pessoas com problemas
de saúde - com diagnósticos psiquiátricos - ligados tanto ao mau uso de aparelhos celulares, quanto a proxi-
midade das pessoas em estações repetidoras de sinais. Nesse sentido, a atenção com a transmissão de ondas
eletromagnéticas não ionizantes deveria estar entre uma das preocupações constantes da população.

Para este estudo, utilizamos a abordagem Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) como apoio
teórico e o teatro como instrumento pedagógico para incentivar a liberdade na reflexão da proble-
mática em discussão.

2.1 – Abordagem CTS no Ensino

A abordagem Ciência, Tecnologia e Sociedade, que consiste na perspectiva de construir uma re-
lação entre ciência, tecnologia e sociedade, nasceu com o propósito de mostrar uma nova visão da ciência
considerando a interação interdisciplinar entre as diversas áreas do conhecimento. No ensino, essa proposta
pode ser caracterizada pela interação entre os conteúdos trabalhados durante as aulas de ciências, o contex-
to tecnológico e o meio social dos estudantes, para proporcionar o desenvolvimento de habilidades crítica
e reflexiva sobre as transformações que acontecem na sociedade, formando cidadãos capazes de discutir e
argumentar as problemáticas provenientes da ciência e da tecnologia existentes no meio social, assim como,
adquirir competências para desmistificar os verdadeiros fins da ciência e da tecnologia. (PINHEIRO, MA-
TOS E BAZZO, 2007).

Para Auler (2003, 2007), a abordagem CTS no contexto escolar pode proporcionar o de-
senvolvimento crítico dos alunos, se as relações entre ciência, tecnologia e sociedade forem aliadas
a debates e a temáticas associadas ao trabalho, formando cidadãos tecnologicamente alfabetizados
capazes de resolver situações do dia a dia, e de desenvolver ideias próprias construídas mediante o
conhecimento obtido.

419
O mundo que almeja por cidadãos críticos, com habilidades para criar produtos sem os
problemas gerados pelo desenvolvimento tecnológico atual encontra respaldo para desenvolver a
formação desse cidadão na abordagem CTS, ainda que de forma indireta, na LDB/96, no seu Art. 35
que propõe, entre as finalidades do Ensino Médio:

III - O aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação


ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
IV - A compreensão dos fundamentos científico-tecnológico dos processos produ-
tivos, relacionando a teoria com a prática no ensino de cada disciplina (BRASIL,
1996, p.281)

Os documentos oficiais sugerem que a escola, como responsável pela educação sistematizada do
indivíduo, desenvolva discentes não somente em conhecimento de conteúdos isolados de cada disciplina,
mas em habilidades que favoreçam a formação crítica sobre as interrelações ciência-tecnologia-sociedade.

2.2 – O Teatro como metodologia de ensino

Considerando que muitas práticas, ainda hoje, são baseadas na mera transmissão de informações,
tendo como recurso exclusivo o livro didático e sua transcrição na lousa, Moreira e Marandino (2015)
propõem a alfabetização científica pelo teatro como metodologia de ensino na educação formal. Para esses
autores, a diversidade de temáticas que pode ser trabalhada através do teatro como instrumento pedagó-
gico não é limitada a uma temática específica, mas engloba tanto abordagens conceituais, quanto práticas
artísticas inspiradas na ciência e na tecnologia, além disso, proporcionando conhecer a ciência para além de
definições, experimentos, e até mesmo a própria tecnologia, estreitando atos científicos, tornando-os mais
humanos, contextualizados e aproximando-os da realidade social.

Segundo Medina e Braga (2010), o teatro como um instrumento de comunicação possui grande ca-
pacidade de proporcionar uma aprendizagem significativa e prazerosa, na qual os indivíduos irão interagir
de forma mais agradável.

Boal (1991) mostra ser possível construir e mover-se diante da realidade social utilizando a arte
como meio de liberdade de expressão, para possibilitar uma reflexão sobre o mundo, mesmo quando cer-
cado por momentos conturbados como na política brasileira, e sugere o teatro como um instrumento revo-
lucionário, com o qual os grupos teatrais deveriam ensinar para o povo como praticá-lo, visto que o teatro
é uma arma muito poderosa e quem deve manejá-la é o povo. Nesse sentido, Boal apresentou várias expec-
tativas e técnicas do teatro que podem ser usadas para práticas pedagógicas que contribuem para maior
desempenho dos alunos como seres reflexivos, capazes de transformar a sociedade.

Os documentos oficiais propõem orientações para a escola exercer um papel fundamental sobre
discussões relacionadas às inter-relações da ciência, tecnologia e sociedade no Ensino Médio favorecendo
ao aluno “condições de compreender e desenvolver consciência mais plena de suas responsabilidades e
direitos, juntamente com o aprendizado disciplinar” (BRASIL, 2000, p.6), aplicando metodologias diversi-
ficadas, diferente da que os alunos estão acostumados. Nesse sentido, o teatro poderá ser um desses instru-
mentos metodológicos, visto que ele permite uma comunicação direta tanto com quem o faz, quanto com
a plateia, além de permitir maior poder de compreensão entre os indivíduos participantes do que qualquer
outro método (BOAL, 1991). O teatro aqui proposto foi pensado como forma de promover participação
efetiva dos discentes, liberdade de expressão, criatividade, criticidade e contextualização no ensino e na
aprendizagem da educação básica.

420
3 – Procedimentos Metodológicos

Este trabalho tem natureza qualitativa, considerando que analisamos os dados subjetivos dos in-
divíduos da pesquisa que surgiram de um determinado problema (LÜDKE; ANDRÉ, 2015). Os sujeitos
participantes foram alunos do Ensino Médio do Centro de Ensino Engenheiro Roberto Cunha, uma escola
estadual localizado no povoado Livramento, município de Peritoró (MA). A ideia inicial seria desenvolver
o trabalho com duas turmas da 2ª série constituídas por 40 e 33 alunos, cada uma. Entretanto, a ausência
de espaço físico para reunir os alunos das duas turmas no turno noturno e nos contraturnos foi uma das
dificuldades iniciais. A escola possui um auditório para eventos, mas esteve ocupado com aulas de capoeira
e ensaio de danças de uma escola municipal de Ensino Fundamental que funciona no mesmo prédio, nos
turmos matutino e vespertino. Entre outros imprevistos que afetaram o desenvolvimento desse trabalho,
ressaltamos a antecipação do encerramento das aulas, imposta pela indisponibilidade do transporte público
fornecido pelo município (consequência de cortes nas verbas), a partir do dia 30 de novembro de 2017, e os
quase 50% dos alunos da escola que moram na zona rural (dados fornecidos pela secretaria da escola) que
dependem desse transporte não puderiam continuar frequentando a escola. Esse fato, levou a escola dicidir
pela antecipação de conclusão do ano letivo, mesmo não tendo concluida a carga horária, para evitar a perda
de ano escolar para os alunos moradores da zona rural.

Devido a redução no número de alunos na escola, esse trabalho foi desenvolvido inicialmente com
40 alunos, sendo 36 da 2ª série (alunos de duas turnas) e quatro alunos da 3ª série. A pesquisa foi dividida
em vários momentos: aplicação de dois questionários - um no início e outro no fim das atividades -, para
verificação diagnóstica e de aprendizagem, respectivamente; explicação dos objetivos do projeto e suas prin-
cipais ideias; aulas sobre a temática abordada; apresentação de trabalhos pelos alunos; elaboração da peça
teatral; ensaios; e, apresentação da peça teatral para quase toda escola. Alguns desses alunos desistiram no
decorrer do desenvolvimento e o trabalho foi finalizado com 19 alunos.

Todas as atividades com os alunos foram desenvolvidas pela primeira autora desse trabalho, em
doze encontros, em três locais diferentes: numa sala de aula da escola; na residência da primeira autora desse
trabalho (fora da escola) e no auditório da escola.

4 – Resultados e Discussão

Após os alunos receberem explicações sobre a proposta do trabalho, no primeiro encontro, que
aconteceu na sala de aula da escola em horário normal (noturno em aula cedido por um professor) e
durante a aplicação do primeiro questionário, alguns estudantes da 2ª série não quiseram responder as
questões e outros responderam com observação de que não queriam participar do trabalho. Nessa comu-
nicação inicial, foi observado os possíveis alunos interessados em participara das atividades propostas.
Dos 40 alunos presentes na 2ª série no dia da aplicação do questionário, somente 33 entregaram a folha
de respostas, os outros sete não responderam às cinco questões que lhes propusemos como início de
partida para construção do trabalho, e dos 33 alunos que entregaram as respostas, três disseram que não
poderiam participar.

No segundo encontro, realizado do período diurno, fora da escola (residência situada próxima à
escola), nem todos os alunos puderam participar. Alguns dos adolescentes moravam distantes e por depen-
derem do transporte público para o deslocamento deixaram de participar das atividades, porque estariam
disponíveis somente nos horários das aulas. De modo que somente 19 alunos participaram de todas ativida-
des até a conclusão dos trabalhos, sendo 15 alunos da 2ª série e quatro da 3ª série.

421
No questionário inicial, perguntamos: “Você tem um aparelho celular?”, “Na sua concepção, o de-
senvolvimento tecnológico poderá prejudicar de alguma forma a sociedade?” Somente cinco alunos afir-
mam não possuir um aparelho celular. Para a segunda pergunta, 50% dos alunos responderam “sim” e os
outros 50% disseram “não”. Os que responderam “sim” relacionaram a tecnologia com roubo de celular, ví-
cios nas redes sociais, e desligamento do foco nos estudos. Os que disseram “não”, afirmam que a tecnologia
nunca poderá prejudicar os seres humanos, visto que ela traz muitos benefícios e sempre está desenvolvendo
coisas novas para o bem de todos, afirmando: “porque ela na maioria das vezes acaba que ajudando muito,
sem ela não podíamos viver” (A1); “não porque toda tecnologia é boa para sociedade” (A2). O que mostra que
os alunos ainda não conseguiam perceber muitos problemas que poderiam ser gerados pelas tecnologias,
mesmo alguns problemas que vivenciavam no cotidiano.

Nos próximos encontros com os alunos, foram ministradas aulas e os alunos fizeram diversos ques-
tionamentos sobre o assunto em estudo. Inicialmente, eles foram divididos em dois grupos para a constru-
ção de maquetes, sendo uma por equipe, que seriam apresentadas na escola - em horário de aula cedido por
um professor de Língua Portuguesa -, em que deveriam representar o que eles haviam entendido nas aulas
ministradas fora da escola (residência próxima a escola).

As duas maquetes foram construídas, sendo: (1) uma usina nuclear, em que os alunos exploraram
a questão da radiação e efeitos no organismo humano; (2) casas e torres emissoras de sinais para celulares.
As duas equipes explicaram como acontecia a propagação de ondas eletromagnéticas e surpreenderam, pelo
pouco tempo disponibilizado para o estudo, se envolvendo de forma inesperada, a princípio.

No passo seguinte, os alunos prepararam a apresentação teatral, dividida em 10 curtos quadros


descritos por textos escritos totalmente pelos alunos, pois a proposta era que eles expressassem, em ence-
nações, o que havia sido entendido sobre a problemática abordada – os problemas gerados pela tecnologia,
com enfoque no mau uso de aparelhos celulares.

A primeira encenação recebeu o título “Tecnologia Sem Vida”, título proposto pelos participantes.
A apresentação aconteceu no auditório da escola no turno noturno, porque o Centro de Ensino Médio En-
genheiro Roberto Cunha funciona somente à noite, porque, no período diurno, o prédio estava cedido ao
município. A apresentação foi feita para funcionários da escola e para cinco turmas, somente uma turma
não assistiu as apresentações porque, no horário da apresentação, o professor da disciplina de Física não
liberou seus alunos.

Os oito primeiros quadros foram baseados na história do celular e suas características físicas. Numa
cena inicial, há uma conversa entre jovens que desconhecem as características do celular e ao encontrarem
uma pessoa que as conhecem muito bem, ela explicar tudo o que sabe sobre o celular. Num outro quadro,
são apresentadas pessoas caricaturadas caipiras, em alusão a pessoas desenformadas sobre riscos das tecno-
logias, numa encenação em que um jovem adoece e é levado ao médico que o diagnostica com problemas
causados pelo excesso de uso do celular. O médico finaliza o oitavo quadro explicando os problemas que
podem ser gerados pelo uso inadequado de produtos tecnológicos, como o celular, problemas que são des-
conhecidos pela maioria das pessoas.

No quadro seguinte, alguns alunos mostram palavras-chave como “Tecnologia”, “Sociedade”, “Saú-
de”, “Celular” e “Ciência” escritas em folhas de papel, enquanto outros alunos vestidos de preto dispersos
entre a plateia foram aparecendo, um a um, fazendo discursos associados a cada palavra escrita que eles
mostravam entre os braços abertos.

Na segunda encenação, foi apresentado o “Teatro Silencioso”, título atribuído pelos alunos, em alu-
são ao tipo de apresentação que fizeram: os alunos não pronunciavam palavras, só gesticulavam situações

422
contemplando a história de uma garota que inicialmente encontra-se com um livro e no seu entorno havia
vários colegas, cada um representando um problema de saúde, como por exemplo, dor de cabeça, tumor,
vício, ansiedade e cegueira. No primeiro momento, a garota ganhou um celular que a deixou encantada e a
fez esquecer totalmente do livro. Algum tempo depois, ela começou a sentir problemas, consequências do
mau uso do aparelho, ao ponto de desmaiar com fortes dores de cabeça. Na cena final, a escola conseguiu
envolvê-la novamente com o livro, restabelecendo a saúde e a alegria da garota. As apresentações receberam
muitos aplausos, mas esta última emocionou o público. Pois mesmo com o silencio, foi visível a compreen-
são dos impactos gerados pela tecnologia na vida das pessoas.

Após as encenações, aplicamos o segundo questionário, constituído por cinco questões, com o pro-
pósito de verificar a aprendizagem, dos 19 alunos que permaneceram até a finalização do trabalho. Suas
respostas expressaram o desenvolvimento de uma nova visão sobre a tecnologia, refletindo conhecimentos
apreendidos tanto sobre assuntos abordados nas aulas, quanto da metodologia utilizada. Entre as respostas
para a pergunta “Qual a relação do desenvolvimento da tecnologia com a sociedade?”, destacamos:

Aprendi que a tecnologia também traz grandes danos à saúde, mas traz grandes inovações
também. Então, afirmo que com uso controlado não serão causados danos. (A1); A relação
da tecnologia com a sociedade ainda não é bem vista por alguma razão muito importante,
ela pode trazer riscos à saúde. (A2);

A sociedade está muito ligada a tecnologia cada vez mais, só que a sociedade precisa ser
esclarecida. (A3)

As respostas dos demais alunos também fazem associações com o uso inadequado das tecnologias e
os possíveis riscos para saúde do homem. Esses posicionamentos vão ao encontro dos objetivos da abordagem
CTS no contexto escolar, atendendo os verdadeiros fins da educação – desenvolver cidadãos críticos e reflexi-
vos (AULER, 2003, 2007). Por outro lado, as discussões sobre a inter-relações Ciência-Tecnologia-Sociedade
atreladas aos conteúdos curriculares e as ideias de Boal (1991) sobre o uso do teatro como instrumento de
informação e transformação social produziram resultados satisfatórios de aprendizagem, como mostraram a
análise dos questionários inicial e final.

5 – Considerações Finais

O desenvolvimento deste trabalho mostrou diferentes momentos da construção de conhecimento


dos alunos envolvendo questões conceituais da ciência e da tecnologia, integração, aceitação, liberdade de
expressão, mas também mostrou a exclusão de alguns alunos do processo da aprendizagem pelo uso do
teatro, considerando que a timidez os impediu de participarem nas encenações. Para esses últimos, acredi-
tamos na possibilidade de que a familiaridade com o método os leve a vencer a timidez e a se envolverem de
modo ativo nas atividades propostas por encenações teatrais.

Constatamos que a utilização do teatro em sala de aula pode ir além do envolvimento dos alunos
com o conhecimento da ciência e da tecnologia de forma facilitadora para a compreensão de situações pro-
blematizadoras, considerando que as apresentações podem ser levadas para um público além da sala de aula
gerando conhecimento e debates sobre problemáticas relacionada a ciência e a tecnologia que é de interesse
da população.

Pela reação do público que assistiu as encenações dos alunos, constatamos um ambiente propício
para realização de ações avaliativas e/ou para promover debates com a plateia, após a apresentação final, de

423
modo a registrar o entendimento do que foi expresso nas encenações e para construir novos conhecimentos
a partir de debates.

Agradecimento

As autoras agradecem o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tec-


nológico do Maranhão (FAPEMA) para a realização deste trabalho.

Referências

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424
ESCOLA DE BELAS ARTES
DE PERNAMBUCO: DA UTOPIA
AOS ANOS DE EXISTÊNCIA
Niedja Ferreira dos Santos Torres (UFPE)

A Escola de Belas Artes de Pernambuco em seus anos de (Re) Existência

Falar em utopias pedagógicas é rememorar a existência da Escola de Belas Artes que funcionou sob
adversidades estruturais, financeiras e ideológicas, de 1932 a 1974, no Recife. A Escola de Belas Artes de Per-
nambuco (EBAP) foi uma das primeiras instituições com o propósito de formação artística em Pernambuco.
Passou por diversas circunstâncias até o ano em que foi federalização, em 1946. Momento este que passou a
receber incentivos da União e a empregar a denominação de Escola de Belas Artes da Universidade do Recife.

A aspiração de fundar uma escola para o ensino de arte em Pernambuco antecede os anos de 1930.
Houve outras iniciativas de estabelecer uma Escola de Belas Artes no Recife, conforme Silva (2003, p. 54),
“Herculano Ramos, um arquiteto, em 1888, já havia tentado fundar uma escola de artes, mas não conseguiu
realizar seu desejo por falta de fundamentos persuasivos junto ao governo imperial”. Além dele, Telles Jú-
nior, pintor que ministrava aulas em seu ateliê, também sonhava com uma Escola de Belas Artes no Recife,
onde ministrasse o ensino acadêmico das Artes Plásticas, semelhante ao da Escola Nacional de Belas Artes.
Todavia, reveremos adiante que muitos anos depois, a ação empreendida por um grupo de intelectuais per-
nambucanos obteve êxito.

As principais fontes utilizadas nesta pesquisa são em sua maioria do acervo oficial da EBAP e en-
contra-se, parte, na Biblioteca Joaquim Cardozo, no Centro de Artes e Comunicação (CAC), da UFPE e
no Memorial Denis Bernardes249, na Biblioteca Central (UFPE), em processo de inventário, catalogação,
e organização arquivística. São periódicos do Diretório Estudantil da escola; encadernação que traz uma
coleção de folders, atas e fragmentos de jornais. Alem destes, integram este texto quatro pesquisas: sendo
uma monografia de especialização em Arte Educação intitulada Escola de Bellas Artes de Pernambuco: As-
pectos de Estudo Histórico, de Marques (1988). Este estudo apresenta a EBAP da sua fundação à integração a
Universidade Federal de Pernambuco. Encontramos ainda duas dissertações de mestrado: A escola de Belas
Artes de Pernambuco: contribuições para a cultura pernambucana, de Câmara (1984) e A pedagogia da Escola
de Belas Artes do Recife: um olhar a mais, de Silva (1995). Memórias de uma cruzada: sua criação e sua vida
é uma importante publicação dos anos de 1956 de autoria de um dos mais importantes diretores da EBAP,
Joel Jayme Galvão, que na época da publicação era docente da Universidade do Recife.

249. O Memorial Professor Denis Bernardes (MDB), localiza-se no primeiro piso da Biblioteca Central da UFPE. Espaço que abrigar arquivos em
suportes físicos de interesse memorial, científico e acadêmico de Pernambuco.

425
Para narrar a história da EBAP, nos debruçamos sobre uma série de documentos oficiais que contem
fatos históricos e ao mesmo tempo os relacionamos ao contexto coletivo e individual do lugar e das pessoas
que a viveram. Algumas indagações percorreram toda a concepção da dissertação de mestrado que trata do
ensino do desenho nesta instituição. Porém, a principal questão deste artigo gira em torno da fundação da
escola, seu tempo de existência e da sua finalidade: a formação artística. No percurso da escrita desta his-
tória foram surgindo muitos protagonistas e fatos históricos e dai veio-nos a responsabilidade de construir
nesta pesquisa os rumos das ações humanas e das experiências do cotidiano tomaram, para os acontecimen-
tos que nos deparamos.

Orientaram a construção deste texto apropriando-se da História Cultural, no aporte das contri-
buições de Michel de Certeau, em a Escrita da História (2006). Conforme este autor, “toda interpretação
histórica depende de um sistema de referências”. Deste modo, podemos entender que a escrita da história é
uma prática política e como tal, depende do lugar em que é escrita e que os discursos produzidos necessitam
ser validados por seus “pares” e “colegas”, isto é, correspondem às leis estabelecidas pelo meio. Para discutir
“as operações dos usuários, supostamente entregues à passividade, e à disciplina” utilizaremos e a Invenção
do Cotidiano (2014), ainda deste autor. Certeau apresenta o conceito de cotidiano como o conjunto de
operações singulares ou práticas cotidianas que, às vezes, dizem mais de uma sociedade e de um indivíduo
do que a sua própria identidade. Portanto, veremos as práticas, atitudes políticas que protagonizaram a tão
almejada criação da escola de ensino da arte na capital pernambucana.

Simultaneamente a exposição e discussão das pesquisas encontradas sobre os temas apresentados,


fazem-se necessário abordarmos o percurso histórico da EBAP, conhecer sua origem, estrutura física e as con-
dicionantes de sua fundação, pela sua importância para o Ensino da Arte e para o Ensino Superior em Pernam-
buco. Assim, apresentaremos ainda o caráter histórico, apoiamo-nos em Lakatos e Marconi que nos dizem que:

Partindo do princípio de que as atuais formas de vida social, as instituições e os costumes


têm origem no passado, é importante pesquisar suas raízes para compreender sua nature-
za e função. Assim, o método histórico consiste em investigar acontecimentos, processos
e instituições do passado para verificar a sua a influência na a sociedade de hoje, pois as
instituições alcançaram sua forma atual através de alterações de suas partes componentes,
ao longo do tempo, influenciadas pelo contexto cultural particular de cada época. Seu
estudo, para urna melhor compreensão do papel que atualmente desempenham na socie-
dade, deve remontar aos períodos de sua formação e de suas modificações. (2008, p. 107)

Para que a fundação da EBAP concretiza-se houve um movimento anterior constituído por um gru-
po de intelectuais que almejava um estabelecimento voltado para o ensino de arte. Deste modo, organizava-
-se o Movimento Pró Escola de Belas Artes. Este grupo que assim se intitulava, reunia-se regularmente para
discutir os rumos e os procedimentos de como estabelecer uma escola que viesse a atender as necessidades
da formação artística na capital pernambucana. E pela força e vontade destes importantes intelectuais e ar-
tistas pernambucanos, em 1932, idealizaram e criaram a Escola de Belas de Pernambuco, que mudariam os
rumos da produção artística não só no estado de Pernambuco, contudo, nas suas adjacências.

A fundação da EBAP resultou destas iniciativas, que no início dos anos de 1932, moveram pela
imprensa local uma propaganda nesse sentido, conforme se verifica pelos diversos recortes de jornais cole-
cionados em livro encontrado no arquivo da escola. Assim, a partir de um sonho idealizado, concretiza-se
a fundação da EBAP extra oficialmente em 29 de março de 1932. Nesse sentido, a imprensa local teve papel
relevante, contribuindo para a fundação e estabelecimento da escola em Pernambuco, visto amplo material
de divulgação encontrado nos arquivo da EBAP.

426
A EBAP foi estabelecida oficialmente em 20 de agosto de 1932, adquiriu personalidade jurídica pela
inscrição de 16 de dezembro de 1932 sob o nº 33076, de seu regulamento (publicado no Diário do Estado
de 14 de dezembro de 1932) no livro A nº 2 de registro de pessoas jurídicas, no 1º Cartório de Registro de
Títulos e Documentos Particulares da Capital do Estado de Pernambuco, do oficial Manuel de Rêgo Pessoa
Macedo.

O Movimento em prol da EBAP era formado por indivíduos que tinham um interesse particular
pela arte. Eram artistas que estavam atuando no cenário artístico de Pernambuco. Do grupo do Movimento
Pró-escola até esta ser instituída, fez parte desde o primeiro momento, Murillo La Greca, juntamente com
Joel Galvão, Henrique Eliot, Mário Nunes, Bibiano Silva, Euclides Fonseca, Baltazar da Câmara, Henrique
Moser, Fédora Fernandes, Heitor Maia Filho. A Escola era um chamado aos jovens, na visão dos integrantes
deste grupo, com vocação para as artes plásticas, que não tinham no Recife um centro regular de ensino
com esta finalidade. La Greca defendeu a iniciativa em longa entrevista ao “Diário da Manhã”, dizendo que
“a Escola não é um freio aos talentos ou tendências dos jovens: é apenas um meio de prepará-los, de iniciá-
-los na carreira artística, naquilo que ela tem de geral e imutável, que é, em suma, a expressão universal”250.

A finalidade da EBAP, segundo o inspetor José Campelo, que elaborou o Relatório de Inspeção Fe-
deral do ano de 1938 e que foi designado para a avaliação da escola, era desenvolver o ensino das belas artes
e suas aplicações, mantendo para isto um curso de arquitetura e um curso de pintura, escultura e gravura.

Fonte: Jornal Pequeno. Recife,


22/08/1932.

250. “Escola de Belas Artes de Pernambuco” – reportagem, “Diário da Manhã”, Recife-PE, 1932.

427
Bem recebida pelos meios artísticos locais, pela imprensa e pelos poderes políticos, foi considerada
de utilidade pública pelo decreto estadual nº 165 de 22 de dezembro de 1932. Teve o apoio do governo esta-
dual e municipal com incentivos e isenção de impostos estaduais pelo ato nº 224 de 18 de fevereiro de 1938 e
de impostos municipais como também redução na contribuição d’água de acordo com o decreto estadual nº
382 de 21 de março de 1935. A Lei estadual de nº 204, de 3 de dezembro de 1936 autorizou o governador do
estado a constituir um patrimônio em favor da EBAP representado por apólices da dívida pública do estado
no valor de 200;000$ (duzentos contos de reis).

O belo imóvel onde funcionava a EBAP, o casarão dos Amorins, foi adquirido inicialmente por meio
de locação no dia 22 de julho de 1932. O solar dos Amorim localizado na Rua Benfica, em seguida, foi ad-
quirido definitivamente em 22 de outubro de 1937, pela importância de 120:000$ (cento e vinte mil contos
de réis). Entretanto, a Diretoria de Obras Públicas do Estado o avaliou em 200:000$ (duzentos mil contos
de réis). Dessa forma, mediante contrato firmado na Secretaria do Interior a 05 de janeiro do ano de 1938 o
governo cedeu à EBAP o prédio aonde já vinha funcionando desde sua fundação. O prédio com área total
de 2.700m2, dois pavimentos e um sótão, já tinha 50 anos de existência. Localizava-se numa rua residencial
que possuía linhas de bondes.

Fonte: Catálogo da Exposição do Acervo da Escola de Belas Artes,


1932-2006. Galeria Capibaribe, CAC. 28 de Nov a 22 Dez 2006.

No térreo do prédio situavam-se a diretoria, a secretaria, o arquivo, o ateliê da disciplina de Mo-


delagem, de Perspectiva, de Arquitetura Analítica, o ateliê da disciplina de Desenho Figurado, de Arte De-
corativa e Pintura e o ateliê da disciplina de Escultura. No segundo pavimento encontravam-se a sala dos
professores, um salão de conferência e reuniões, a biblioteca, a sala da disciplina de Materiais de Construção,
o ateliê da disciplina de Natureza Morta e duas salas para aulas teóricas.

No ateliê da disciplina de Desenho Figurado guardava-se todo o material didático utilizado nas
aulas, como exemplo, bustos de Laectus, Júpiter, Sêneca, Nicolau, Neobe, Brotolone, Lourenço de Médi-
ces, uma cabeça de cristo, várias máscaras e grifos. Inicialmente a biblioteca deste período era composta
por 832 volumes “de cultura em geral e a maioria sobre arquitetura, pintura, escultura e gravura”. Não
eram catalogados nem por assunto e nem por autor. As obras eram relacionadas por ordem alfabéticas
dos assuntos. Na pinacoteca havia uma coleção de quadros de pintores brasileiros, na maioria adquiridos

428
por doação, e estão registrados no livro CONTRIBUIÇÕES FEITAS A EBAUR. Na sala de conferência
funcionavam os cursos de extensão universitária. No “Liceu Industrial”, local onde eram fabricados os
móveis para esta sala.

Com características do neoclássico, o estilo arquitetônico do prédio foi assim descrito por Silva
(1995 p 123-126):

Construída em alvenaria edifício suporta dois pavimentos, um sótão e a cobertura. Pos-


sui colunas dóricas, mas sem conservar o rigor das proporções, são mais elegantes e
longilíneas que as da ordem. Na fachada nordeste aparecem duas colunas, na sudeste 4,
tendo ainda colunatas no pórtico, e que definem a composição. Na fachada há materiais
nobres, como o mármore de Lioz. Como todo edifício característico do neoclássico, não
apresenta beiral à vista. O telhado, de duas águas, é coberto por platibandas de almo-
fadas decoradas, com estilóbatas que sustentam pinhões de mármore, com beirais de
cornija. O frontão da fachada sudeste possui padrões florais; ramos e formas abstratas,
que são detalhes fitomórficos, marcando a presença eclética na arquitetura neoclássica,
mas sempre contribuindo para assimetria, e aparece aí também o medalhão. O frontão
triangular, nota característica do estilo tanto na arquitetura civil como na religiosa, apa-
rece claramente na fachada nordeste com núcleo vazio. O pé-direito é alto, favorecendo
a monumentalidade do edifício. É também do estilo a presença de nichos nas paredes e
o uso de estatuas de mármore. Daí encontramos, no alto do pórtico, uma estatua de São
João e seu carneirinho. Nas grades dos guarda-corpos das sacadas e do gradil que cerca
as quatro fachadas, vergalhões decorados com traçado caprichoso dão leveza e delicade-
za ao edifício. O piso do terraço que contorna a casa é em lajotas de lioz de duas cores.
No piso do pavimento térreo usa-se o mármore e, no segundo pavimento, o assoalho (p.
124) de pranchas largas, de amarelo vinhático, que arrematam com rodapés de grande
altura. (SILVA, 1995, p. 123 a 126).

A escola funcionou neste imóvel da sua implantação, em 1932 até os anos de 1974, quando houve a
transferência dos seus cursos para o recém inaugurado Centro de Artes e Comunicação (CAC) da Univer-
sidade Federal de Pernambuco.

Fundadores e docentes da Escola de Belas Artes de Pernambuco

Durante sua existência, a EBAP foi administrada por professores, que eram escolhidos pelo conse-
lho administrativo da escola. No período inicial, da participação da inauguração em 1932 aos anos de 1936,
fundadores se revezaram entre direção e a docência da EBAP. Observa-se um período curto de atuação na
gestão da escola, pelo tempo que exerceram seus mandatos.

Os professores Bibiano Silva, a partir de 20 de agosto de 1932, sucedido por Heitor da Silva Maia
Filho, diretor interino, que iniciou em 17 de maio de 1933 sua gestão. Murilo La Greca, também diretor
interino, em 24 de julho de 1933. Heitor da Silva Maia Filho, diretor interino, iniciando em 26 de fevereiro
de 1934, sucedido por João Alfredo G. da Costa Lima, diretor interino, a partir de 01 de junho de 1934. O di-
retor interino Mário Nunes, assumiu em 02 de outubro de 1934. E o professor Domingos Ferreira, assumiu
em 22 de julho de 1936. O professor Joel Galvão foi diretor que atuou por um período maior na direção da
escola, de 04 de março de 1936 até os anos de 1943 (SILVA, 1995, p. 130). Percebe-se, pelos relatos que a sua
curta gestão foi itinerante e se deu pelo fato do diretor ter que se ausentar para atender aos compromissos
externos a escola.

429
Visão artística e relações institucionais com a
Escola Nacional de Belas Artes (ENBA)

A EBAP foi concebida nos moldes da Escola Nacional de Belas Artes (RJ), logo esta determinou
toda a estrutura curricular de ensino da escola pernambucana. A importância de pesquisar acerca dos pro-
pósitos de sua fundação podem-nos dar respostas às questões relacionadas principalmente, ao modelo de
ensino da arte que foi estabelecido e que passou a vigorar desde sua implantação no Brasil.

Desta forma, a partir destas pesquisas251, apresentaremos o percurso histórico da EBA/UFRJ, com a
pretensão de responder as proposições acima enunciadas e com base no alcance exercido no ensino da arte,
e principalmente no Ensino do Desenho, influenciado por esta instituição em todo o país. Considerando
que a escola determinou a fundação, com o mesmo formato e arcabouço de base curricular, de outras Esco-
las de Belas Artes em diversos estados brasileiros.

A reforma educacional do Marques de Pombal, que abrangia as Ciências, as Artes Manuais e a Técnica,
rompeu com os moldes de ensino jesuítico no Brasil (BARBOSA, 2010, p. 22). Porém, a reforma que teve au-
têntica significância nos moldes de ensino da arte apresentado neste período configurou-se com a instauração
da Academia Imperial de Belas no Rio de Janeiro em 1826. Acerca deste assunto, Barbosa afirma que,

Antes da chegada de D. João VI a reforma pombalina, no que toca ao desenvolvimento


da ciência, centralizava-se na criação de aulas públicas de geometria. Em 1771 e 1799 são
criadas respectivamente as cadeiras de Geometria na capitania de São Paulo e na capitania
de Pernambuco. (BARBOSA, 2010, p.24)

A Academia Imperial de Belas foi implantada no Brasil pela Missão Francesa em 1808. Difundiu um
modelo de ensino da arte e principalmente de Ensino de Desenho que vigorou por um longo período em
nosso país. Vale (1998, p. 349) afirma que esta missão:

[...] caracterizou-se pela diversidade de atividades de seus membros, tendo em comum a


especialização profissional. A Missão trouxe consigo 54 quadros ingleses e franceses des-
tinados a darem início a uma pinacoteca. Podemos ver nestes acontecimentos o desejo de
se montar na antiga colônia, todo o aparato laico de relações arte - sociedade, diverso só
sacro ligado à colônia. (VALE, 1998, p. 349).

Para Silva (1998, p. 119), a vinda da Missão Artística Francesa significou o início da constituição
de um modo de adoção de padrões estéticos segundo os moldes europeus, em contraposição à tradição
anterior, denominada como Barroco, e fundadora, a partir daquele momento, de um novo formato de
produção artística no Brasil. A respeito da tradição anterior, Silva (1998, p. 119) [...] “a produção do
chamado “Barroco” perpassou desde o produtor erudito, com formação europeia, até os artífices de mão
africana, com competências milenares na elaboração de uma arte conceitual, característica do continente
africano conforme”.

Portanto, a instituição só começou e a funcionar em 1816, e de acordo com Pereira (2008, p. 149)
“um dos inúmeros atos de d. João VI, durante a permanência da corte portuguesa no Brasil, que visavam

251. Seminário EBA 180, pesquisas realizadas em comemoração aos cento e oitenta anos da escola, organizado por Pereira (1998), de 20 a 22 de
Novembro de 1996. Este conjunto de pesquisas apresenta a EBA/UFRJ desde a sua fundação, período em que se denominava Academia Imperial
de Belas Artes.

430
conferir ao país e sua capital, o Rio de Janeiro uma infra-estrutura digna de uma nação moderna para os
padrões da época”. Desta maneira, compreende-se que a implantação da escola tinha o propósito de apare-
lhar a colônia para a estada dos seus novos residentes com um formato que os deixassem confortavelmente
ambientados e, além disso, configurou-se também na:

[...] transposição do discurso da equipe francesa para o contexto brasileiro tornou-se


viável, como já é notório, com a mudança repentina e estratégica da capital do reino
para cidade do Rio de Janeiro. A necessidade de adequar a cidade com condições e equi-
pamentos condizentes com a vida cortesã exigiu investimentos e dispositivos capazes
de acelerar mudanças na ordenação colonial. Essas mudanças coadunavam-se com os
interesses de afirmação do império português no Brasil e no exterior. (NASCIMENTO,
2010, p.33)

Como apresentamos anteriormente, sua fundação se deu pelos mestres franceses entre 1816 e
1826. E sua trajetória pode ser dividida em seis fases mais expressivas (PEREIRA, p.12, 1998), de 1816 a
1835, como Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, e logo após, Academia Imperial de Belas Artes, ain-
da conforme Pereira (p.12, 1998), “compreendem a fundação da Academia, e instalação do ensino oficial
de arte e a estruturação do sistema acadêmico, além de estar ligado diretamente à atuação dos mestres
franceses”.

O período de 1835 a 1880 é considerado como o da consolidação da Academia e também o


momento de maior prestígio na sua história. Duas figuras são aí fundamentais: Félix Émile
Taunay, diretor em 1835, e Manuel de Araújo Porto Alegre, diretor em 1854, que injetam
na Academia algumas mudanças fundamentais: o primeiro, a instituição dos prêmios de
viagens, e o segundo, a preocupação com a introdução de novas cadeiras, como a História
da Arte, Estética e Arqueologia – além de uma evidente preocupação com os problemas da
arte brasileira – lançando as bases de um verdadeiro projeto nacionalista, que é seguramente
o ponto de partida da produção do Segundo Reinado. (PEREIRA, p.12, 1998)

Na década de 1880, experiências do Grupo Grimm trazem mudanças estruturais à Academia. E em


1890, na nova estrutura da Escola Nacional de Belas Artes, afirma Pereira (p.12, 1998) que, “os novos esta-
tutos não contemplam as reivindicações da década anterior, seguindo-se até 1930, sem apresentar grandes
mudanças das concepções formais e pedagógicas da velha academia”. A pesquisadora expõe que:

De 1930 a 1970 inicia-se o período da direção de Lucio Costa e sua tentativa de mo-
dernização da Escola. Neste período o acervo da Escola é desmembrado para dar
origem ao Museu Nacional de Belas Artes e nos anos 1940 o Curso de Arquitetura
desliga-se da Escola, constituindo a Faculdade Nacional de Arquitetura. (PEREIRA,
p.12, 1998)

No período que compreende os anos de 1970 até hoje abrange uma mudança radical no perfil da
Escola: a perda do prédio de sua fundação, a reforma do ensino, a introdução do sistema de créditos, o
surgimento de outros cursos, como Desenho Industrial e Comunicação Visual. Além de que o momento
político nacional, pelo estabelecimento do AI-5, atingiu profundamente a Escola com o afastamento de
alguns professores como, por exemplo, Mário Barata, Quirino Campofiorito e Abelardo Zaluar (PEREI-
RA, 1998, p.13).

431
Conclusões em processo: formação artística e ensino superior

A Escola de Belas Artes foi um sonho concretizado por um grupo que desejou trazer o eixo cultural
artístico nacional para o Nordeste do Brasil. O feito foi concretizado, porém a finalidade inicial da escola, a
formação artística desvirtuou-se do ideário inicial por questões políticas, a demanda do mercado de traba-
lho em decorrência da crescente industrialização.

Decerto que a EBAP teve papel relevante nas concepções de ensino de arte que vivenciamos atu-
almente. A separação da formação artística da formação técnica, gradativamente, apontou para duas dife-
rentes vertentes, uma voltada para o mercado de trabalho e a outra para a formação artística. Registra-se a
participação de artistas como Murillo La Greca, e Fédora Fernandes, como professores. E do artista Abelar-
do da Hora que teve breve passagem pela escola. De tal modo que possibilitou a formação profissional de
várias gerações de artistas pernambucanos. Pois, observamos que os artistas e intelectuais da época, não se
isolaram e que estes profissionais contribuíram para que as artes visuais em Pernambuco vivenciassem as
mudanças que vinham acontecendo tanto no resto do Brasil quanto no exterior.

Esta pesquisa apontou para segmentos por onde trilhou o ensino da arte em Pernambuco, propor-
cionou uma visão, ainda pouca fomentada, de como foram implantados os cursos do Ensino Superior, na
área de Arte, que temos atualmente nas graduações que são ofertadas pela UFPE. Deste modo, este estudo
nos forneceu pistas dos caminhos percorridos para uma concepção de instrução artística, oriunda da EBAP,
que num dado momento histórico, seguiu linhas distintas: a formação artística e a formação técnica, do
ensino da arte no Ensino Superior em Pernambuco.

REFERÊNCIAS

Diário da Manhã, Recife-PE, 1932. Escola de Belas Artes PEREIRA, Sonia Gomes. A história da Academia: um
de Pernambuco. problema a ser repensado na História da Arte Brasileira.
In: Anais do Seminário EBA 180 (180 Anos de Escola de
Jornal Pequeno. Recife, 22/08/1932. A inauguração da
Belas Artes). Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação
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da EBA/UFRJ, 1998.
Contribuições Feitas a EBAUR. Encadernação. Memorial
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Denis Bernardes. Biblioteca Central UFPE.
do artífice/artista ao desenhista auto-expressivo. João
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lo: Perspectiva, 2010.
TORRES, Niedja Ferreira dos Santos. O ensino do de-
BETÂNIA E SILVA, Maria. A inserção da arte no currí- senho na Escola de Belas Artes de Pernambuco (1932 a
culo escolar: Pernambuco, 1950-1980. 2003. Dissertação 1946). Orientador: Erinaldo Alves do Nascimento. Dis-
(Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação, sertação (Mestrado) – UFPE, 2015.
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.
SILVA, Dilma de Melo. A Academia Imperial de Belas
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes Artes: ruptura com o Barroco. In: Anais do Seminário
de fazer. Petropólis, RJ: Vozes, 2014. EBA 180 (180 Anos de Escola de Belas Artes). Rio de Ja-
GALVÃO, Joel F. Jayme. Memórias de uma cruzada: neiro: Programa de Pós-graduação da EBA/UFRJ, 1998.
Escola de Belas Artes de Pernambuco, sua criação e sua VALE, Vanda Arantes do. Academia Imperial de Belas
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de. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação da EBA/
Atlas 2003. UFRJ, 1998.

432
Visões da peculiar dramaturgia
de João Denys Araújo Leite
Arte como Gesto de (Re)Existência
Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto
Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL)

“Só nos tratam com delicadeza quando nos enterram. Há sempre uma forçada
comoção, uma saudade obrigatória. Às vezes nos dão o líquido sagrado da vista,
nos mandam flores e mensagens em letras de ouro ou de prata, que é mais barata.
As pedradas da vida transformam-se em pedrinhas, ou fina areia, que escorrem
dentre os dedos sobre o nosso corpo. E se cai uma chuva fina, o sacrifício pode
ser maior: molham-se por nós... o retábulo torna-se perfeito e banal. A cena clás-
sica e vulgar: umbrelas negras, impermeáveis sobretudos... enlameiam-se por
nós, podem até fazer uma oração por nós. De longe a gente enxerga a ternura
da compaixão. A delicadeza desaba de peneiras celestes e todos nós ficamos tão
bons, ótimos mesmo; sem as presenças nem as diferenças, nem o incômodo de
suportar os vivos todos os dias. Tolerar!... Quanta intolerância nestes dias, meu
irmão.” (João Denys Araújo Leite, Encruzilhada Hamlet)

E studar a Dramaturgia de João Denys Araújo Leite é tarefa que exige ferramentas que possam
tratar com habilidade de cirurgião da estética as paragens abertas do porvir, pois são textos que trazem
em seu bojo a força do grito e a visão do abismo. Denys constrói sua obra com impressionante gramática
da poética e reflete uma sabedoria que conjuga, nos verbos da arte, todo tipo de saber, sinceridade, afeto,
cumplicidade, transgressão, livre-arbítrio, poesia. Na sua construção de diálogos, por exemplo, sentimos a
tal faca só lâmina, imagem forjada por João Cabral de Melo Neto, melhor dizendo, uma espécie de escola de
facas. Ouvimos, em suas peças, algo como um eco do grito infinito que tudo une em força centrípeta capaz
de desconstruir em nome de um novo caldo cultural espesso. Ao penetrar esta dramaturgia, encontramos
um dramaturgo se que se põe diante das expectativas da sua geração e negocia possíveis desapontamentos.
Vamos agora estudar esta obra enquanto gesto de (re)existência. Vamos trilhar os labirintos da escrita cêni-
ca, observar possibilidades de interpretação para a literatura que servirá de base a um real fingido por atores,
como base à representação cênica. Eis o início da peça Deus Danado:

TEODORO: Nada!
LUIZ: Ah, Deus!
TEODORO: Nadinha de nada. Onde o pai escondeu a botija, pai do céu?
LUIZ: Nadinha de nada. Foi-se embora a vida. Ah, pai do céu?
TEODORO: A vida está na boca da noite...
LUIZ: A noite é um sol, padrinho?
TEODORO: Eita peso! Arreia, minha sina! Tá variando outra vez?

433
LUIZ: Tá brabo, padrinho? Tá cansado? Tô pesando?
TEODORO: Como é que eu posso escavacar a terra, rachar a pedra, arrancar a raiz?
LUIZ: Tô com fome, tô com sede, tô com sono, tô com dor, tô com medo, tô espatifado!
TEODORO: Você é minha carga!
LUIZ: O senhor vai me matar, não é padrinho? (Cantando, distante da
TEODORO: Cabeça oca de coité! Bata na boca! Esconjurado! (Silêncio) Deus lhe dê juízo.
LUIZ: Amanhã eu morro, viro graveto e o senhor acha a botija.
TEODORO: Não posso... Eu tenho que me perder nas profundezas do chão. Como vou
rasgar o corpo desse bicho, desse sertão, com você no meu espinhaço? Como? Me diga!
Responda, carrapato!

Poderíamos logo perguntar até onde o texto dramático é suficiente como potencial de representação
cênica, e aqui mesmo, neste início, falar de Antonin Artaud, Augusto Boal, Jerzy Grotowski, Eugenio Bar-
ba, Bertolt Brecht e outros que fazem a história do teatro moderno, do teatro contemporâneo, mas vamos
direto à abertura da peça Deus Danado (1993), onde na primeira rubrica, Denys descreve o cenário: “Uma
habitação-santuário em pedaços”; isto, de chofre, nos remete a uma gama imensa de significações, relações e
possíveis interações que ao mesmo tempo nos esclarece e nos tiram o chão racional. Nem Armorial nem Re-
gionalista, o texto de Denys interage de modo particular com o leitor/ espectador, acreditamos que o objeto
estético se dá na leitura/ recepção. Esta dramaturgia nos convida para um lócus onde podemos, como num
Aleph borgiano, podemos observar a ordem cósmica através de uma brecha que mostra o infinito.

Uma das coisas que faz o texto de Teatro legível, já que nos detemos ao que está escrito, são as ru-
bricas, dentre tantos outros recursos, elas influenciam nossa leitura das peças, e até parecem essenciais, as
que seriam superficiais aos olhos de um regisseur tarimbado para a compreensão mais específica do texto
dramático, nos fazem preencher os espaços em branco, indeterminações, aberturas. Em alguns dos seus
textos há cenas que retiradas as rubricas parece-nos que também são retirados elementos intrínsecos que
sufocarão perspectivas que não deveriam ser silenciadas. O texto teatral de Denys é, como tantos outros, um
organismo tenso de diálogos e narrações, de ruídos e silêncios, de ações e inações, de palavras e sugestão de
gestos, em busca de atores, leitores, pesquisadores, público; não nos referimos aqui à linguagem puramente
verbal e sim a uma espécie de poesia viva que se infiltra entre as palavras, ou se caracteriza de palavras, em
busca de plenitude polissêmica.

Na décima primeira jornada – denominada Lux in Tenebris – as personagens enfrentam o seu mo-
mento de máxima tensão dramática, promovido pela circunstância cruel em que se evidencia a violência de
tamanha revelação: A noite surge, cheia de escuridão. Luiz acende as lamparinas, forçado por Teodoro. Luiz
é jogado sobre o que restou da cadeira. Teodoro ameaça-o com uma picareta. (peça Deus Danado)

TEODORO: Nada! A noite tá correndo. Cadê a valentia?


LUIZ: Quero saber o resto. Dona Luzia me contou quase tudo. Tem um mistério: sua mãe.
TEODORO: Cale a boca! O que foi que ela falou daquela mulher?
LUIZ: O senhor não perdoa sua mãe, não é? Frouxo! Medroso! Sua mãe não tolerava sua
mulher Luzia. Ela, sua mãe, estuporou de raiva. Rogou a maior praga do mundo. [...]
LUIZ: Praguejou que se nascesse filho ia ser morto. Se vivo nascesse, era pra ser cego, doi-
do e endemoniado. Praguejou que o filho, se vivo fosse, era pra matar o pai. Foi praga por
cima de praga, não foi? O senhor casou, sua mãe morreu de desgosto. Dona Luzia ficou
prenha. Veio a tromba d’água. Veio um menino. Mais outro. Dois meninos. Dois machos.
No quartinho. Morreu tudo!
TEODORO: Pare, pare, pare! A noite tá indo embora!
LUIZ: Que se dane a noite! No quartinho só tem um menino. Eu quero ver o outro!

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TEODORO (Alcança um jarrinho, dos penduricalhos do traje, destampa-o e despeja o
conteúdo nos olhos de Luiz): Não vai ver nunca! Não pode, não pode, não pode.
LUIZ (Desatinado com a dor): Paaaaaaaaaai!
TEODORO (Descontrolado): Cego! Cego da mulinga! (Solta Luiz) Você cavou e se per-
deu. Tá tudo perdido, meu filho. Seus olhos são dois buracos escorrendo leite de avelós.
Leite das unhas do cão. (Cai, exausto) (Luiz se levanta e tateia no ar. Teodoro cai exausto
sobre a cadeira. Luiz apanha uma enxada e, vendo tudo, avança e quebra as pernas de
Teodoro.)
LUIZ: Tome isso, desgraçado! Tome isso, cão dos infernos!
TEODORO (Aos berros): Bata, meu filho! LUIZ: Bato, bato e rebato!

Assistir montagens de textos de Denys, como Deus Danado, Encruzilhada Hamlet e outros, como
Flores D’ América, Pedra do Navio, é, claro, diferente de revisitá-los assim, pelos olhos do leitor. Não são
textos teatrais em forma de drama seco, apenas, percebemos certo neles uma complexa rede contradiscursos
numa intrincada construção em abismo.

O que é um texto teatral para um leitor? Onde está mesmo a obra literária? Será só no texto? A obra
está na leitura? Talvez esteja entre os dois num in between intenso, ativo e pródigo, como que rasurando as
bases conceituais da ficção, vendo a finalidade de imitatio da mímesis como exercício de produção expres-
siva do espírito humano.

As peças de Denys dialogam com a realidade sem se esgotar nesta referência, a realidade retomada
pelo texto provoca, nesta alquimia verbal, uma reconfiguração que remete a um imaginário transformador
de signos livres de determinismos castradores, que na vida real se querem indecifráveis, mas no teatro
alegorizam-se contundentes e fazem do palco um espelho mágico cujo labirinto os espectadores trilham de
modo lúdico e, vamos dizer assim, menos angustiantes, como nestas falas da peça Deus Danado:

TEODORO: Ai, que dor! Estou quebrado! Você é muito besta. Besta! Não está vendo que
você está cego?
LUIZ: Tô vendo sim. Tô vendo tudo. Agora é tudo igual: noite e dia. (Apanha um chocalho
de touro na parede do quartinho).

Viver numa metrópole como Recife, capital do latifúndio, pouco cosmopolita, não imprimiu, talvez,
o desejo de expressá-la na sua arquitetura dramatúrgica. O que lemos nele é um sertão que vai além do mí-
tico e extravasa uma dor que lembra o êxtase.

É com um olhar abrangente que Denys elabora sua criação artística, numa espécie de reflexão que
leva à ação, trabalha também com certa interlocução com um possível leitor que de modo algum sairá incó-
lume desta visita aos textos impressos.

Mas quais interesses guiam nosso estudo? E qual o sentido motivador desta pergunta? Talvez se-
mear a curiosidade por uma busca de elementos, argumentos eficazes na problematização, para uma cria-
ção também literária que se encontra tão distante do “politicamente correto” das “políticas públicas” para
“cultura popular”, diante da prática artística e cultural que se lança em projetos para financiamento através
de instituições públicas, que (quem sabe?) trabalha com cartas marcadas (ou não). O que nestes textos de
Denys estaria, intrinsecamente, relacionada ao “povo”? Há mais a busca das peculiaridades humanas ou dos
abismos universais tão humanos?

Como poderíamos interseccionar perspectivas do contradiscurso, da performatização, do salto des-


territorializante nestes textos? Será que Denys faz do universo ficcional algo a ser transgredido e resseman-

435
tizado que podemos detectar inclusive na leitura das suas obras teatrais? Que bicho é esse chamado homem
que é representado com tamanho furor e avança com tanta fome em direção ao Outro tentando, talvez,
arrebatá-lo vorazmente? Temos em peça Deus Danado, este trecho:

LUIZ: Tudo está desembestado. O dia se intrometendo... (Pondo, lentamente, o chocalho


no pescoço) (...) Estou cego, enxergando tudo. Os astros se rebulindo dentro da minha
cabeça... (Silêncio) Não pode ser! Não pode ser! E eu imaginando que não tinha o seu san-
gue de bicho dentro das minhas carnes. Tudo por causa do medo... Que danado de medo
é esse pai? O medo, o medo, o medo... O tempo todo o senhor me arrebentando... Todo
dia, todo dia (Grita) Ai, minha cabeça! (Chora) Morto. Tudo morto. Fui parido morto!
Finado a vida toda! Como pai? Que porcalhada é essa? Não pode ser! Não pode ser tanta
malvadeza! Infeliz! Só pode ser isso. O senhor sempre foi isso. Um bicho sem alegria.

Percebemos que João Denys não “medievaliza” o sertão (como o fazem certos autores, de certo
modo). Em sua peça Deus Danado, por exemplo, ao tratar da questão da incidência da memória no proces-
so criador da obra artística em matizes que se dilatam/ projetam a partir do cunho memorialista e que vão
se revelando também, como ele faz a partir da peça Pedra do Navio, em algo como uma memória teatral, e
que nos parece, de sobremaneira, tão forte que aqui pode levar o leitor a uma espécie de revelação epifânica,
possivelmente revelada através de um processo de instrumentalização analítica do paradigma da memória
como leitmotiv da obra literária.

Neste espelho da região nordestina ou de lugar nenhum Denys, como que, traz à cena a desertifica-
ção como prisma, quem sabe para refletir na sua obra dramática o estabelecimento de um chão performá-
tico, que inclui, também, a contramemória, no sentido que Foucault a estuda, ou a memória do autor, em
simbiose com as memórias de personas subjugadas; dar-se-ia, assim, espaço para o que foi ocultado pelas
forças de dominação, pelo controle hegemônico.

Tantas vezes aceitamos que as identidades não são nunca unificadas; que elas estão cada vez mais
fragmentadas, fraturadas, mas nunca singulares e sim multiplamente construídas ao longo de discursos,
práticas e posições que podem se cruzar ou serem antagônicos. Fé cega, faca amolada, são textos abertos
aos desejos como obra de arte e seguirá, de forma rizomática, tempo afora, não sozinho, pois os leitores o
acompanharão, numa das mais deliciosas performances humanas, a de recriar o que está escrito.

Denys cria, aparentemente através de aspectos relativos das suas experiências, um novo modo de
representação permeado pela desconstrução, que saem como das luzes de um prisma feito das relações
culturais estabelecidas entre os grandes centros “civilizados” e as, digamos assim, margens periféricas que a
eles tenderiam a se submeter, mas que rompe com os mecanismos mais óbvios de ideologia e fazem dos seus
reflexos uma criação literária com identidade múltipla, uma escrita generosa e farta, como que em contra-
ponto à bipolaridade relativa às “positividades” e “negatividades”, centro e margem.

Denys flexibiliza certos conceitos de bem/mal sem pretender se sobrepor um binômio ao outro. Sua
visão propõe certa ponderabilidade particularizada, em relação ao seu objeto, por características híbridas
dos agentes em questão; busca o papel e a visão do Outro no caminho de uma mútua aceitabilidade, ob-
servando as diferenças, o diálogo entre os opostos, numa dissecação de ideais libertários também aponta
para um forte clamor existencialista que destrincha uma negativa capacidade, com seu olhar escrutinador,
questionador, e revelador, que nos faz pensar. Vejamos, novamente peça Deus Danado:

Tudo é uma danação: ave avelós, botija, cruz, chão, diabo, escavacar, fel, goela, honra, inferno, juízo,
luto, maldade, nada, ouro, pó, quente, réstia, sangue, tempo, última, vida, xiquexique, zunido.

436
LUIZ: Eu não aguento mais! O senhor tem precisão dos olhos. Eu tenho precisão das per-
nas. Estou solto! Desagarrado! Que danado é estar solto? Só sei que sou solto! Seu corpo
no meu corpo, e vou. Vou me danar desembestado no dia. (Tempo). Lá vem a barra...
(Deus danado)

São textos cuja sonda da arte se aprofunda subvertendo com a agudeza da pena, qual lâmina afiadís-
sima cortando tão fundo, o contingente de forças subterrâneas, que se queriam veladas e silenciosas. Peças
teatrais que impulsionam o leitor/ espectador a recusar qualquer neutralidade, num ato extremo de desar-
ticulação, interagindo com as diferenças, sondando a natureza humana, reconhecendo horrores, complexos
amores, num engajamento comprometido em relação ao outro.

Neste seu discurso, Denys aninha um grito de alerta, de reconhecimento, e de iniciação. Quando
estudou a dramaturgia de João Denys, o professor João Augusto Lira viu ali os procedimentos estéticos e os
quadros culturais/ ideológicos, um entrelugar, encruzilhadas axiais. Concordo com ele: há na obra de João
Denys um tipo impacto que provoca alguma perplexidade e exibe tensão típica das grandes obras (experi-
ências?) artísticas, de onde brotam uma variedade de luzes sobre o imaginário e as subjetividades humanas,
passando pelo assombro, o desafio, o medo, o mistério, o maravilhoso, o fantástico, o erótico, o mágico,
juntamente com os sentimentos limítrofes do fascínio, do amor, do desespero, da dúvida, da crueldade, e da
morte; perplexidades do homem frente ao seu próprio destino e a sua própria finitude, independente de seu
referencial de centro ou de margem, em jogo de confrontações. No seu livro Poética do Grito & Geografia da
Vertigem: um olhar sobre a dramaturgia de João Denys, João Augusto Lira (Sesc Pernambuco, 2018) observa
como eles se constroem e se modificam na perspectiva do outro, delineando a construção da identidade de
um sujeito universal que se edifica além de qualquer tipo de dogma, ou subjugação étnica, social, política,
e cultural; que se elabora a partir de suas próprias experiências e vontades, e principalmente pelas suas
relações de troca com o outro, destacando a importância de estudar a literatura dramática de João Denys,
trazendo à luz da discussão, ou mesmo da simples apreciação, uma obra dramática de imenso valor artístico.

Sobre sua peça PEDRA DO NAVIO, ele ressaltou: enorme formação rochosa e solitária sobre as
linhas curvas e mansas das serras que circundam a cidade de Currais Novos, no Rio Grande do Norte, é
uma realidade impossível de descartar. Seu domínio absoluto sobre o relevo encanta aos que visitam o lugar,
também chamado de o Cruzeiro. Isto porque o Cruzeiro que se localizava na frente da matriz da cidade
foi trasladado para o alto da Pedra em 1930. Desde então, a Pedra do navio “converteu-se” ao catolicismo
e tornou-se, além de curiosa localidade profana, um espaço de devoção. Outra realidade que não pode ser
desprezada é o desastre que vitimou fatalmente dezenas de fiéis curraisnovenses, quando um ônibus atro-
pelou a procissão de Nossa Senhora de Fátima, na noite de 13 de maio de 1974. Apesar de todo este recorte
realístico, a peça deve ser representada de forma poética e antinaturalista, deixando o real contexto, acima
referido, em suspensão. Os atores podem utilizar máscaras e dobrar os papéis, quando conveniente; os ce-
nários devem ser sintéticos e, na maioria das vezes, demarcados por focos de luz

Difícil encontrar uma neutralidade recorrente na tessitura do texto joãodenyano. Parece que num
ato extremo há uma busca de liberdade, mesmo que esta se encontre (ou se desencontre) descendo ao mais
assombroso da natureza humana, e através do reconhecimento dos horrores, e, aqui, percebe-se também o
comprometimento em relação ao outro. Na condição maldita de um discurso que aninha um grito de alerta,
de reconhecimento, e de iniciação, onde se pode detectar discursos, procedimentos estéticos e quadros cul-
turais/ ideológicos entrecruzando-se num intercâmbio de olhares diferenciados sem preponderância de um
sobre o outro num jogo de forças que se escondem/ se mostram nos diálogos e na construção dramatúrgica
como um todo, em inusitada dialética onde o ser e seu processo de significação dialogam, alimentam-se
mutuamente na construção de uma terceira via, num viés que busca driblar obsessivas trocas entre vida e

437
arte, nos múltiplos elos que as une e separa a todo instante. Personagem não é gente. A obra de Denys nos
oferece esta oportunidade. Ela tem um caráter vertiginoso, enigmático, cheio de efeitos, e surpresas. Em tais
peças há um pouco das memórias emanadas de lugares que se tornam fontes substanciais para os recursos
utilizados na construção da ficcionalidade dramática como na peça A Pedra do Navio.

Na obra de João Denys Araújo Leite, percebemos através de análise, mas também, intuímos um jogo
dramático onde ele traça ações que no caminho para a peripécia, vão caminhando para o confronto de um
impacto e de uma perplexidade fulminantes, da tensão ele faz brotar uma variedade de luzes sobre o grande
mistério que é o encontro da vida com a arte, encontro permeado pelas confrontações, onde elas se intersec-
cionam e se modificam na perspectiva uma da outra, ao mesmo tempo em quarta parede e estranhamento
(de olho numa uma terceira via?), para além do bem ou do mal.

Referências Bibliográficas
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: GUATTARI, Félix. Caosmose. São Paulo: Ed. 34, 1992.
Loyola, 1970.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da moderni-
__________________ A arqueologia do saber. Rio de dade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Janeiro, 1986.
MEDEIROS, João Augusto Lira de. Poética do Grito &
_________________. As palavras e as coisas. São Paulo: Geografia da Vertigem: um olhar sobre a dramaturgia
Martins Fontes, 2002. de João Denys. Recife: Sesc Pernambuco, 2018.

438
DE FRIEDRICH SCHILLER
A ABELARDO DA HORA:
POTENCIALIDADES E INTERSECÇÕES
ENTRE ARTE E EDUCAÇÃO ESTÉTICA
Graciele Maria Coelho de Andrade Gomes- UFPE
Mário de Faria Carvalho- UFPE

INTRODUÇÃO

Ao vivermos em uma sociedade racional, pragmática e técnica, na qual não há espaço para a emo-
ção, ter sentimentos associa-se à fragilidade. Antagonicamente, buscamos o equilíbrio entre a razão e a
emoção, acreditando ser esta uma definição mais elevada para o que é, de fato, o racional. Desta forma, o
mundo emocional tem íntima relação com a percepção estética das coisas, faz refletir as experiências estéti-
cas presentes no cotidiano. A suposta imparcialidade e distância frente às experiências estéticas do cotidiano
parecem ganhar, a cada momento, mais força. Sendo neste contexto que encontramos espaço para incluir-
mos a reflexão a respeito da educação estética do homem, e, assim, pensar e trabalhar novas possibilidades
de ver o mundo como, por exemplo, a partir da filosofia de Friedrich Schiller.

Suas discussões entre política e estética, elevam a arte a uma ciência filosófica que é capaz de dar
forma à alma humana (SÜSSEKIND, 2011). Colocando, agora, a liberdade do sujeito em um nível elevado
e sintonizado com o equilíbrio de seu arbítrio – condição estabelecida na medida em que este contempla o
belo de acordo seu estado de espírito momentâneo – o sujeito alcançaria a liberdade por meio de sua auto
projeção simbólica. Toda essa discussão se torna pertinente na busca por compreender a humanização do
sujeito e subjetivação do mundo, aspectos frágeis na contemporaneidade técnica e racional.

A problemática anterior, na convivência do sujeito em sociedade, reafirma o egoísmo e o esqueci-


mento do outro, situação recorrente ao se colocar os impulsos pessoais à frente de uma atitude guiada pela
ética coletiva. Assim, o egoísmo, a técnica e a racionalidade positivista acabam por apagar diversas experiên-
cias sensíveis. Friedrich Schiller, o filósofo alemão a quem recorremos como fonte teórica para este estudo,
já se preocupava com esta desvalorização, conforme aparece ao longo de todo o diálogo estabelecido entre
ele e o Duque de Augustenburg - As Cartas de Schiller. Afirmou a sensibilidade como ponto chave de seus
pensamentos (HAUSER, 1995).

As cartas apresentam os problemas da sociedade da época, que muito se aproximam daqueles vi-
vidos em nossa sociedade atual. Nessas cartas a arte é exposta como um meio de se pensar os problemas
sociais, a partir de uma educação estética do sujeito, a qual objetivaria a formação plena do ser, e que se

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daria por meio do equilíbrio entre os impulsos antagônicos e elementares à condição humana, que são os
impulsos: formais e o sensível. A estética tornar-se-ia, então, o que se encontra na arte e possibilita criar a
harmonia necessária entre os dois impulsos da natureza mista do ser humano.

É com base em tais pressupostos que encontramos a necessidade de se pensar na educação estética
do homem, uma vez que ela permite pensar um ser mais livre e integrado ao mundo, que o percebe e o
sente. Assim, partindo desta perspectiva, este estudo assume como problemática de pesquisa o seguinte
questionamento: qual o potencial crítico-estético da obra de Abelardo da Hora a partir de uma perspectiva
em Friedrich Schiller? O objetivo geral do artigo é: discutir o potencial crítico-estético da obra de Abelardo
da Hora a partir de uma perspectiva schilleriana.

Propomos, assim, os seguintes objetivos específicos: discutir os conceitos estéticos presentes nas
Cartas de Friedrich Schiller; propor um debate crítico-estético, a partir de Schiller, sobre a obra de Abelardo
da Hora; e, por fim, apresentar os principais elementos presentes na obra Bestas (1969) de Abelardo da Hora.

A justificativa por estudar os temas sobre arte e educação estética, com ênfase no potencial crítico
estético da obra de Abelardo da Hora se deve, principalmente, à visão dos pesquisadores sobre a necessidade
de valorização da produção e riqueza estética e cultural presente na obra deste artista. Lembrando, também,
que ele é um dos artistas expressionista mais importante do Brasil e reconhecido internacionalmente pelo
seu estilo pessoal, profundo e com características também advindas do realismo.

À vista disso, será feita a análise da obra Bestas (1969), embasada na Teoria do Imaginário e nas
dimensões imaginárias e coletivas que se conseguiu alcançar, assim como as observações compreendidas
a partir da reflexão filosófica que se constrói em relação à noção de educação estética do sujeito, tal como
colocada pelas cartas de Schiller. Pretende-se com essa análise construir uma abordagem poética sobre os
temas em questão, para, assim, estabelecer considerações e se pensar na educação estética como caminho
para a formação humana do sujeito.

CONCEITOS ESTÉTICOS NAS CARTAS DE SCHILLER

Pensar o espaço/tempo no qual Schiller viveu suas experiências de vida, levando em consideração
as possíveis visões de um momento de agitação política tão intensa como foi o da Revolução Francesa, nos
faz compreender o desconforto do filósofo quanto à depreciação do sensível e, logo, sua defesa pela reconci-
liação entre o sensível e o racional como caminho ao enobrecimento do ser humano.

Tal reconciliação trata-se de meta refletida como tarefa infinita no decorrer do processo de for-
mação do sujeito, o mesmo que, muitas vezes, segundo Schiller (2002, p. 36) “ergue-se aquém e além para
tomar pela violência aquilo que em sua opinião lhe é injustamente recusado”, o que o filósofo também com-
preende ser resultado de um despertar em relação à sua condição de “longa indolência, da ilusão infligida
a si próprio”. Sobre esse pensamento, Veiga (1994) aponta para o sujeito em sua busca pela autonomia e
plenitude do ser, que se revogam a partir de uma alienação e um modo de vida repartido.

Tais fenômenos aludem ao pensamento schilleriano enquanto defensor de que a compreensão do


ser deve se dar através do entendimento sobre a importância de sua própria estruturação, em unidade com o
reconhecimento de sua natureza mista, percebida a partir de impulsos antagônicos e elementares à condição
humana, sendo eles: o impulso sensível e o impulso formal. Tais impulsos fundamentam a tensão entre a
sensibilidade e a razão no ser humano. Esta tensão estaria presente no processo de busca pela hombridade
do ser, no modo como se concebe a realidade, o necessário a nós, e sobre como nos submetemos à realidade
fora de nós, à lei da necessidade.

440
Sob um olhar schilleriano, trata-se do modo de construir o mundo em volta, de estabelecer o que Silva
(2001) denomina de uma teoria baseada em fases evolutivas, a qual busca, a partir da beleza, instituir um ser li-
vre e em estado de equilíbrio, em harmonia quanto a sua essência sensível e racional, como aduz Suzuki (2014).

De acordo com Schiller, a natureza sensível do sujeito parte da realidade e a ampliação da percepção
do ser. É o ‘estar em nós’ e não o ‘nós no tempo’. É transformar em mundo o que não passava de forma. Esse
trajeto desperta as disposições da humanidade e constitui outros mundos, a sensação afirma o sujeito em
um dado momento (BARBOSA, 2004). Este tempo é o que Schiller denomina como estado. Momento no
qual se une, de forma universal e múltipla, toda a multiplicidade dos sujeitos e de suas particularidades, uma
imaginação alcançada e construída a partir do olhar sensível. Nele transborda a natureza do sujeito enquan-
to ser infinito enquanto pessoa e, no estado, eleva o ‘si mesmo’ e suas determinações. Trata-se da convivência
entre o racional (pessoa) e o mutável de seu estado, o que Schiller (2002, p. 61) aduz ao mencionar que “o
homem, pois, representando em sua perfeição, seria a unidade duradoura que permanece eternamente a
mesma nas marés da modificação” e “na medida somente em que se modifica, ele existe; na medida somente
em que permanece imutável, ele existe”. Em um oposto, a natureza racional exige a formalidade absoluta
desse quadro. Procura formar o exterior ao mundo de modo que se permita, no estado, a constituição de leis
válidas e imutáveis, quebrando com a lógica do sensível.

Schiller (2002) propõe pensar a racionalidade sem negar a sensibilidade, defendendo que a sensibi-
lidade apareça com frequência na vida dos homens, e que por ela o ser humano seja capaz de alcançar outras
visões de mundo, ressignificando-o. A sensibilidade deve provir de uma educação estética para valorização
do humano, a qual deve ter por objetivo desenvolver, simultaneamente, sensibilidade e razão a partir do belo
da arte. Afirma-se com isso, a importância da educação estética para a formação do indivíduo e para a supe-
ração da técnica positivista e da razão como máximas do modo pelo qual se conhece e se recria a realidade
(BARBOSA, 2004).

A estética está relacionada com a percepção pelos sentidos. Trata-se de tudo o que afeta os sentidos
e ajuda a construir significados nos campos em que a razão pode determinar as coisas e sensações. O seu
potencial está no mundo sensível, para além da razão (SÜSSEKIND, 2011). Assim, toda experiência coti-
diana é uma experiência estética. É capaz de desafiar o nosso intelecto e formar uma resposta quanto ao que
foi observado ou vivido. Logo, a estética se consolida na sensibilidade do ser. Para Schiller, está associada
ao caminho que leva ao aperfeiçoamento ético-sensível do sujeito. Quando se pensa os valores estéticos
superiores – o belo, o feio, a verdade e outros – que conseguem instigar a percepção emocional do mundo
no espírito do ser, o sujeito passa para a um estado de liberdade absoluta e se torna um ser completo e equi-
librado (SÜSSEKIND, 2005).

Schiller defende reconstituir a unidade da natureza humana e chegar à liberdade pela unificação dos
impulsos antagônicos, considerando como nobre aquele desperto para essa reconstituição. Acrescentando,
ainda, que no “estado estético” todos os cidadãos são livres, independentes, uma vez que considera que neste
estado existe um “ideal de igualdade”.

O poeta alemão vê nas obras de arte bem discriminadas um exemplar da conciliação entre os im-
pulsos antagônicos (SÜSSEKIND, 2011). O envolver das sínteses social e política, assim como o caráter
simbólico da arte, são traços mais amplos da beleza e são construídos pela natureza humana, sendo, a beleza,
a dimensão essencial e mais pura de nossa natureza. Ainda segundo Schiller (2002, p.141): “Só a beleza faz
feliz a todo mundo; e todos os seres experimentam sua magia e todos esquecem a limitação própria”.

Na cultura estética, é através da beleza que o sujeito se torna livre, digno e mais humano (SÜSSEKIND,
2011). Para Schiller, a partir da beleza se chega à liberdade, a qual permite o surgimento da ideia de humani-
dade e une o singular ao múltiplo, o indivíduo à espécie e o subjetivo ao objetivo. Compreendemos que essas

441
combinações da beleza são o que influenciam Silva (2001) a perceber que, na visão de Schiller, a beleza é ato,
diferentemente da ação teórica da filosofia kantiana. Tem-se a beleza como a unificação da natureza sensível
e formal (SÜSSEKIND, 2011), como o entendimento racional da impressão que se tem pela leitura da forma.
Assim: “[...] o belo permite ao homem uma passagem da sensação ao pensamento” (SCHILLER, 2002, p. 96).

Logo, a experiência estética, ao dar liberdade ao sujeito, é um terreno fértil ao conhecimento e à sub-
jetividade que pode ser alcançada pelo gosto. Se pensarmos, assim como Barbosa (2005), o gosto consegue
favorecer a moralidade ao eliminar obstáculos externos que evitariam a determinação lógica da vontade.
Uma vez que levemos em conta o que Schiller chamou de liberdade física, apenas se segue a vontade, e liber-
dade moral, definição de uma nova vontade, com prudência, alcançar-se-ia esse cenário.

Assim pensemos agora no gosto como particularidade daqueles ditos sensíveis e que são capazes de
controlar seus impulsos mais grosseiros. Barbosa (2005) define essa noção como liberdade estética, sendo,
pela cultura estética, que a sensibilidade toca o sujeito e este se recompõe frente à vulnerabilidade de desejos
decorrentes de nossa condição humana em si. Schiller (2002) aponta a subjetividade do sujeito e sua exis-
tência por base em um acordo consigo mesmo.

Deste modo, a educação estética do sujeito parte do equilíbrio dos impulsos presentes em nossa
natureza mista, colocadas por Schiller em suas cartas sobre a estética. O autor pensa o uso do recurso es-
tético na formação do sujeito, a partir da intermediação do belo, na qual a obra de arte é o instrumento de
aperfeiçoamento e onde o sujeito é visto como um ser em transformação constante, que apreende e possui
atuação política. Trata-se de um ser formado por prazeres, que são vividos a partir do sentimento de liber-
dade construído no próprio sujeito, em seu refinamento, que transcende sua condição técnica e racional.

UM DEBATE CRÍTICO-ESTÉTICO ENTRE SCHILLER


E ABELARDO DA HORA

A riqueza infinita e sensível de interpretação que se alcança ao analisar a obra de Abelardo da Hora, ten-
do como aporte a Teoria do imaginário (PITTA, 2005), assegura a entrada de quem observa no plano do sim-
bólico da arte, ao sentir as propriedades criadoras e libertadoras do inconsciente coletivo que o autor reproduz.

O estudo da imaginação simbólica e das estruturas antropológicas nos permite compreender melhor
as raízes míticas e características em nossa psique, as quais a desvalorização do sensível subjugou como
desnecessárias e fúteis, o que acaba por dificultar a compreensão da realidade exterior por meio do próprio
imaginário humano, assim como a compreensão das pulsões naturais ao ser humano.

A análise estética da obra do artista pernambucano será regida pela áurea imaginária das experiên-
cias estéticas e dos arquétipos observadas durante a análise, sendo apoiada Nos aportes metodológicos da
Teoria do Imaginário (DURAND, 1988; 1997), tendo como método a perspectiva mitodológia (mitoanálise
e mitocrítica), devido às possibilidades de convergência que estas possuem como instrumentos de investi-
gação. Por um lado, a mitocrítica, que analisa uma obra ou um texto (inclusive de história de vida) a partir
das redundâncias que remetem aos mitos diretores em ação e a mitoanálise, que situa os resultados da mi-
tocrítica em um contexto sociocultural definido. Com base nesse trajeto buscaremos compreender o ponto
de convergência no qual a imagem simbólica aflui e constrói as representações imagéticas e sensíveis sobre
o imaginário e a sensibilidade humana em sua natureza mista, como sugere Schiller.

A arte não é verdade absoluta, mas, permite ao artista reescrever suas experiências de vida pessoais,
à medida que escolhe e organiza os elementos estéticos para defender e articular uma verdade concreta acer-

442
ca de um fenômeno. Assim, as obras de arte conseguem, de maneira poética, representar as mais diversas re-
alidades presentes na sociedade e abordam assuntos desagradáveis de maneira leve e bem colocada. As aná-
lises e leituras de Abelardo permitem debates e criam justificativas ilimitadas sobre a realidade, pois, o olhar
por ele proposto entrelaça o imagético da obra com o museu imaginário pessoal do observador, trazendo
emoções de nossa psique particular para os elementos estéticos contemplados e descritores do cotidiano.

O artista Abelardo Germano da Hora, natural de São Lourenço da Mata, Pernambuco, onde viveu
importante parte de sua vida, em uma família humilde. Artista nato e completo, foi bolsista da Escola de
Belas Artes de Pernambuco e também cursou o bacharelado em Direito. Abelardo faleceu em setembro de
2014 aos 90 anos de idade. Eternizou-se em sua trajetória artística e deixou um vasto acervo que comporta
diferentes formas de expressão artística. Como artista que viveu a ditadura militar brasileira, acaba por
trazer em suas obras muitas representações que revelam uma sociedade de homens e imaginários demasia-
damente autoritários e violentos.

A Teoria do Imaginário de Gilbert Durand permite entendermos melhor a essência sutil e contesta-
tória da obra de Abelardo da Hora (Bestas, 1969), vejamos:

O próprio título da obra é um desenho que o artista vai sugerir a bestialidade e a selvageria. Há
amargura na imagem: duas criaturas que aparentam ter as mesmas características físicas estão em um ato
de agressividade.

A tensão salta aos olhos a partir da escolha do artista por traçados embaraçados; estes quebram o
equilíbrio das formas que compõem o desenho. Em entrevista com Abelardo da Hora Filho, em 2015, ele
afirma que tal obra é associada à estupidez dos seres humanos, capazes de agredirem-se uns aos outros,
motivados geralmente pela incompatibilidade de ideias. Agressividade que mostra a falta de contato com
valores estéticos superiores como a beleza, a ética e amoral, que podem ser partes do homem a partir do
momento que se faz o equilíbrio entre o ser sensível e o formal.

Tal quadro nos faz pensar no sujeito enquanto responsável por suas vontades. Trata-se daquele que
assume o dever de ter o refinamento necessário para repensar sua postura frente às suas vontades violentas,
levando sempre em consideração o lugar social que ocupa, sendo esta forma de percepção do mundo o que
Schiller nos apresenta como liberdade moral.

443
Apesar das duas bestas estarem uma em posição de agressor e a outra de vítima, onde apenas uma
carrega armas, ambas expressam o mesmo sentimento. Não se observa grande diferença de emoção entre
elas, o que nos leva à reflexão que não há medo no semblante da vítima, a qual pode trocar de posição com
seu agressor. O tamanho crescido das suas mãos tem simbolismo com força e poder, mas também suas gar-
ras agregam caráter ofensivo à obra, fazendo o artista gritar, como ele mesmo bem coloca: “Às vezes grito
violentamente nos ouvidos dos brutos e dos antropóides monstruosos que forjam as guerras e as discrimi-
nações” (DA HORA, 2015). O grito que ecoa no profundo silêncio do observador se relaciona amorosamen-
te com a arte e se deleita no belo. É exemplo perfeito da beleza como ato, tal como apresentada por Schiller
ao propor uma linha de pensamento que nos estar e ser a partir da arte.

Não podemos esquecer o contexto que artista fez essa obra. A obra nos lembra a violência que de-
vastou a sociedade, sobrevinda da negação à liberdade de opinião, momento marcado pela forte repressão a
tudo que ameaça a ordem. A obra traz a perda da dignidade das pessoas, a qual foi substituída pelo egoísmo
demasiado; a insensibilidade do ser humano retratado toca, sensivelmente, a pele do contemplado com este
exemplar de arte nobre, a qual Schiller acredita ser a meta tida como infinita que é conciliar o sensível e o
racional por meio da manifestação do belo na obra de arte, belo que é tido como um imperativo imaginado
de beleza (SUZUKI, 2014).

A experiência estética proporcionada pela contemplação desta obra é uma dura reflexão sobre os
comportamentos desumanos, e traz a necessidade do sujeito educar-se esteticamente, uma vez que se per-
cebe com ela o quanto o sujeito pode ser feroz ao não conseguir administrar seus impulsos e inclinações. O
potencial artístico da obra alcança os juízos de valor adotados pela humanidade e afirma a clara necessidade
de equilibrar a tensão que existe dentro dos homens entre o sensível e o racional.

Assim, esta obra uni o sentido ao traduzir que se é capaz de reafirmar tal união, de modo a apresen-
tar a dignidade ao sujeito por meio da memória, da imaterialidade construída e pelo próprio refinamento
que ele surge em si, construído pelo contato com a arte pura. Refinamento que contribui com o equilíbrio
de nossa racionalidade, uma sensibilidade natural e essencial de alguém que desperta para a humanidade
do outro.

A capacidade contestatória da obra de Abelardo é expressão da atividade e sensibilidade política. A


maneira como ele escolhe e organiza os elementos estéticos, pensando chegar a forma desejada que irá, pos-
sivelmente, representar um fenômeno abordado, acaba por proporcionar ao observador uma experiência
estética ímpar ao materializar diversos sentimentos e sensações. Toda essa preocupação do artista consegue
provocar no outro o seu próprio eu, sendo esse cuidado e sensibilidade responsáveis por tornar suas obras
de arte verdadeiras poesias.

Ao observar a obra deste artista, vê-se uma manifestação espiritual provocada pela beleza e o su-
jeito se relaciona amorosamente com a imagem. O equilíbrio entre razão e emoção nos leva a reflexões
profundas, contribuindo, assim, para a formação estética do contemplador. As memórias, reencontradas
na interpretação da imagem, acabam por nos aproximar de uma ética que nos deixa muito mais sensíveis e
pensantes quanto a nossas posturas frente ao outro. Acreditamos que tais memórias contribuem para nosso
juízo de valor, e para questionamentos sobre a realização de nossas vontades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conduta do ser humano se constrói a partir de sua noção de valores e julgamentos éticos. Educar-
-se esteticamente conduz ao agir de acordo com juízos dignificantes de cada ser em seu convívio com o ou-
tro. A educação estética é um caminho para a formação moral do cidadão; ela dá suporte para que os sujeitos

444
assumam e olhem o mundo com a sensibilidade, através do conhecimento de si próprios, e percebam seus
desejos de maneira responsável.

A arte, assim como as experiências estéticas advindas de sua contemplação, são como que um
suporte à reflexão mais profunda de mundo e de nossa identidade. O potencial estético-crítico da obra de
Abelardo da Hora provoca o espírito do contemplador, consegue fazer surgir a partir da inquietação de
sentidos aflorados e por meio de relações restabelecidas entre as imagens e os símbolos em nosso psiquis-
mo, múltiplos olhares. Tais experiências despertam sensações de prazer ou de incômodo ao mexer com
nossa natureza sensível e vivências – memórias prazerosas e dolorosas – tudo em um único momento,
no qual nosso racional compreende as impressões que o sensível nos trouxe em um mesmo instante de
tempo, formando-nos. Essa ação nos tira de um estado de dormência, de desvalorização de nossa essência
sensível, sempre tão subjugada por hermenêuticas que reduzem o ser e suas necessidades e paixões, as
quais continuam a pulsar cada vez mais forte em nosso espírito.

Ao apreciar o belo na arte, como no caso desta obra analisada neste estudo, equilibramos nossa
natureza mista, expressa por Schiller, e, assim, permitimo-nos liberar e construir ideias pelas reações e
impactos que a obra provoca sobre nossa percepção de mundo. São provocações que brotam por meio das
particularidades estéticas presentes na obra, as quais configuram o que Schiller denominou arte nobre,
pura e ideal. Observamos, nesse contexto, o quão intrigante é o caráter enigmático do belo e de como se
torna apreciável na arte, sendo, neste ponto, que se vê a importância do olhar e da contemplação. Torna-se
imprescindível compreender e reconhecer que não há como se construir tal ato de deleite pela racionali-
dade cartesiana.

A contemplação se enriquece ao permitir ao observador captar em si mesmo forças capazes de lhe


formar, a tal ponto que consiga alcançar seu estado de liberdade estético-moral. O sujeito passa a conhe-
cer tanto a sua vontade quanto o espaço do outro.

Vivermos, hoje, o retorno do individualismo e do egoísmo como duas principais facetas da ra-
zão. Não nos permitimos sentir o mundo, não nos deixamos ser afetados pelo que nos sensibiliza. O
sujeito é controlado, agora, por uma nova racionalidade que apaga e desconsidera o sensível. Reafirma-
-se a necessidade de uma educação estética do sujeito, a qual pode contribuir no processo de formação
estético-moral de uma sociedade. O ser humano necessita da arte não por sua sofisticação, mas sim por
se reconhecer que o sujeito, como ser repleto de paixões, encontra na arte a sensibilidade sentir e perceber
o outro, assim como reconhecer esse outro em si próprio, e, cada vez mais, assumir a contemplação como
uma forma de estar no mundo e vice-versa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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numa série de cartas. Tradução de Roberto Schwarz e VEIGA, Marcelo. Da “Teoria do Belo” à “Estética dos sen-
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ca objetiva de Schiller. São Paulo: Perspectiva, 2001.

446
30 anoS dE Programa Curumim:
Ludicidade, autonomia e socialização,
um relato de experiência
no Sesc Sorocaba
Andreia Maria Ferreira Reis Sesc-SP

Os Programas Socioeducativos do Sesc SP


O Sesc SP tem como premissa o trabalho nas áreas de: cultura, saúde, meio ambiente, inclusão
social, terceira idade, turismo e esportes, em seus aspectos mais amplos e transversais. Sendo que a edu-
cação está presente em todas as ações do Sesc, que é em si uma instituição educadora. Dentre suas muitas
ações, destaca-se o Programa Socioeducativo, que envolve os Programas: Curumim, Juventudes e Espaço
de Brincar.

- Programa Curumim: atende crianças de 7 à 12 anos. Criado em 1986 (ano de formulação do


documento que norteia o Curumim) teve sua primeira turma em 1987 no Sesc Pompéia, em 2017
completou 30 anos de atividades ininterruptas.
- Programa Juventudes: atende jovens de 13 à 19 anos. Teve início no Sesc SP em 2010.
- Programa Espaço de Brincar: atende crianças de 0 à 6 anos. Assim como o juventudes teve iníco
no ano de 2010.

Por serem Programas com documentos norteadores próprios e que possuem práticas distintas, des-
tinadas a públicos etários específico, torna-se coerente, neste artigo, focar em um único Programa e a esco-
lha foi pelo Curumim.

Particularmente o Sesc Sorocaba, que foi inaugurado dia 01 de setembro de 2012, teve os programas
implantados em março de 2013, com o objetivo de atender a faixa etária de 0 à 19 anos.

Fazem parte da equipe que compõe o programa socioeducativo da unidade do Sesc Sorocaba: Andreia
Reis, Alan Pablo, Beatriz Fortes, Fabrício Castro, Fernando Ribeiro, Lucas Lannes, Maria Angélica e Maria
Fernanda. O que se destaca na equipe é a multiplicidade de formação dos educadores, atualmente as formações
são: educação física, artes cênicas e jornalismo. Em outras unidades do Sesc do estado de São Paulo, onde há os
Programas Socioeducativos - 16 unidades na capital, 14 unidades no interior e 2 unidades no litoral – encon-
tram-se educadores com outras formações como: ciências sociais, psicologia, história, artes visuais, pedagogia
entre outras. A intenção em haver uma equipe multidisciplinar, são as possibilidades de aumento de repertório,
troca de experiências e a oferta de uma ampla possibilidade de vivências distintas às crianças.

A seguir será apresentado um relato de experiências do dia-a-dia do Programa Curumim.

447
O Programa Curumim do Sesc SP

O Programa Curumim do Sesc SP, de educação não formal, tem o propósito de desenvolvimento da
autonomia, da socialização, da criticidade, da criatividade, do respeito as diferenças, entre outros aspectos.
É um Programa totalmente gratuito que inicialmente foi pensado a partir de uma reflexão sobre o papel do
Sesc SP em relação à sua clientela infantil. Ao longo de vários anos o Sesc SP, desenvolveu inúmeros projetos
destinados ao público infantil e infantojuvenil, a partir de uma concepção não escolar. Com vistas a consoli-
dar esse trabalho de maneira mais sistemática o Sesc SP idealizou o Programa Integrado de Desenvolvimen-
to Infantil (PIDI) em 1986. Sendo o início da atividades do Programa em 1987 no Sesc Pompéia. Portanto,
em 2017 o Curumim completou 30 anos de suas atividades.

No documento de 1986, PIDI Sesc SP, são listados como pressupostos do Programa Curumim:

- reconhecer a criança como um ser com uma realidade existencial concreta e peculiar que deve ser
respeitada em sua singularidade;
- admitir que o projeto não pode abstrair os valores do presente, próprios do universo infantil e com
eles deve ser articulado;
- reconhecer o direto da criança à informação, permitindo-lhe o acesso ao conhecimento e o domí-
nio do meio em que vive;
- assumir a ludicidade como o valor básico de toda ação pedagógica.

Esses princípios se mantêm ainda hoje, pois são considerados atuais e fundamentais na formação
do ser humano, no entanto, outros serão adicionados. Aliás, outro documento foi esboçado em 2008, e
encontra-se em processo de atualização e oficialização um novo documento, discutido por educadores e
coordenadores em reuniões com a Gerência de Estudos e Programas Sociais (GEPROS) que orienta as dire-
trizes para o desenvolvimento dos Programas: Curumim, Juventudes e Espaço de Brincar.

O Curumim está presente em 32 unidades do estado de São Paulo, incluindo interior, capital e lito-
ral, e de acordo com levantamento realizado em 2015, são aproximadamente 3.561 crianças matriculadas
no Programa, sendo que há disponível 4002 vagas, com 128 Instrutores Infantojuvenis, nome do cargo dos
educadores. Segundo, Oeino e Ferreira (apud PARK e FERNANDES, 2015, p.23),

“O Curumim é um programa de educação não formal que visa, num ambiente de coope-
ração e respeito mútuo, garantir espaços e tempos de brincar, criar e conviver. Seu objetivo
é de proporcionar aos participantes a construção e a vivência de um conjunto de valores e
de ações lúdicas e integradas, voltadas para a produção do desenvolvimento integral dos
sujeitos envolvidos”.

Sobre a educação não formal (PARK, 2015, p. 47-70) é importante entender um pouco sua trajetó-
ria. A intenção deste artigo não é se aprofundar nesse tema, mas uma breve contextualização é necessária.
Primeiramente o termo não formal foi cunhado fora do Brasil, tendo sido constituído conceitualmente em
oposição à educação formal, em um momento de crise da educação formal. No Brasil a educação não for-
mal se constitui em diálogo com diversas práticas, desde filantrópicas a sociais, recreativas, culturais e arte-
-educação. É uma área abrangente que no Brasil começou a ser utilizada nos anos de 1980 de forma discreta
(inclusive com base em propostas de Paulo Freire), mas que em 1990 ganha força. Por sua abrangência a
educação não formal não possui um referencial específico, mas múltiplo, bem como suas discussões que se
estendem para diferentes espaços: mídia, sociedade civil, ONGs, projetos educacionais e assistenciais, po-

448
der público e fundações. Pode-se dizer que a educação não formal vem construindo seu campo na prática,
através do cotidiano, da oralidade e necessidade de resolução de problemas. Apesar do conceito de educação
não formal estar ainda hoje em construção, as mudanças que essa área proporciona pode ser enriquecedora
do ponto de vista da experimentação e reflexão.

A trajetória do Programa Curumim no Sesc Sorocaba

Quando a equipe do Programa Curumim do Sesc Sorocaba foi formada, em 2012, eram 8 instrutores,
sendo que 6 vieram da atuação no Programa de outras unidades do Sesc (Interlagos, Itaquera, São José do
Campos, Taubaté e Carmo) e 2 novos instrutores. Foi um grande desafio construir o Curumim em Sorocaba
e muito prazeroso para todos. Cada um trouxe a experiência já vivida com as crianças nas outras unidades do
Sesc, no entanto, o perfil do público de Sorocaba era particular, assim como é em todas as unidades.

Geralmente o Programa Curumim segue um calendário semelhante ao escolar, as atividades acon-


tecem de fevereiro a junho e de agosto a novembro. Com períodos de planejamento e avaliação em dezem-
bro, janeiro e julho.

O Programa conta com ações pontuais como contratações circenses, peças teatrais, espetáculos de
dança e musicais. São colocados como parte do planejamento permanente exibição de filmes, que acontece
uma vez por mês, atividades no Parque da Biquinha (que fica próximo ao Sesc) lá as crianças brincam, ex-
ploram o espaço verde e aprendem sobre preservação ambiental, sendo que o tema meio ambiente está mui-
to presente nas atividades. O planejamento acontece em parceria com diversos setores da unidade, dentre
eles: ambiental, odontologia, esportivo, espaço de tecnologia e artes (ETA), alimentação e biblioteca. Com
cada um deles são desenvolvidas atividades no sentido de ampliar repertório, conscientização do meio em
que vivem e do cuidado de si (higiene e saúde), sempre de forma lúdica junto às crianças. Elas recebem um
lanche balanceado, pensado pelas nutricionistas da unidade no intervalo das atividades e recebem também
um kit de escovação, pelo qual são responsáveis em trazer todos os dias e efetuarem a escovação supervisio-
nada após o lanche. As crianças do Programa, a partir de 2017, receberam o benefício de realizar tratamento
odontológico gratuito na clínica do Sesc.

São realizados passeios dentro de Sorocaba e pelo menos 2 passeios, por ano, fora de Sorocaba,
geralmente em locais que contemplem o tema que é trabalhado ao longo do ano. Já com essas propostas
estabelecidas, o próximo passo é pensar o planejamento do ano, partindo da premissa que trabalha-se com
educação e a mudança é um fator intrínseco a ela.

Iniciou-se em março de 2013 com o tema Identidade. O objetivo foi trazer às crianças e aos educa-
dores a relação do Sesc com a criança, com o entorno e com sua família. Como processo educativo, que em si
é constantemente mutável, houveram várias mudanças ao longo do processo, por meio de avaliações e refle-
xões a cada fim de ciclo anual. Foram desde oficinas individuais, onde cada educador ofereceu as atividades
a partir do seu repertório, até atividades coletivas a partir de temas que foram considerados pertinentes.
Como parte do cronograma anual, faz-se passeios a outras cidades, neste ano as crianças foram à exposição
“Mapas do Brincar” no Sesc São André e ao parque tecnológico Sabina, também em Santo André. Como já
dito anteriormente, geralmente o passeio é atrelado ao tema desenvolvido no ano.

As atividades estão sempre com foco no que as crianças tem interesse, observado por meio do re-
torno que elas dão, seja informalmente numa conversa, seja em atividades estratégicas onde elas possam dar
seu feedback. No entanto, no decorrer daquele ano, 2013, observou-se que havia um grande conteúdo de
atividades sendo oferecidas, e que obviamente foram sendo alteradas de acordo com o tempo disponível e o

449
feedback das crianças, o que consequentemente alterava o planejamento, muitas vezes não possibilitando a
conclusão do projeto inicial.

Em 2014, adotou-se um novo método no Curumim, onde as crianças escolhiam os temas que se-
riam desenvolvidos ao longo do ano, e a partir dos temas escolhidos por elas os educadores ofereceriam
as atividades. Foi, sobretudo, um desafio para os educadores, foi necessário pesquisar e aprender práticas
novas para atender as demandas das crianças. Mesmo com essa mudança ainda foi perceptível a necessidade
de buscar outros caminhos. Foi então que, em novembro de 2014, a equipe foi convidada pelo Agente de
Educação Ambiental da unidade, Alexandre Anézio, para fazer uma visita ao Projeto Âncora, em Cotia-SP.
Após essa visita, extremamente inspiradora, mudou-se completamente a prática metodológica e o ponto de
vista do planejamento das atividades.

A partir do conhecimento do andamento educacional do Projeto Âncora de educação formal, pode-


-se perceber que haviam semelhanças com relação ao Programa Curumim, de educação não formal, so-
bretudo no que diz respeito à autonomia que promove a sensação e o efetivo pertencimento da criança ao
processo. A escolha delas pelo que querem aprender e quando querem aprender, respeitando o tempo de
aprendizado individual. Ainda naquele ano realizou-se o passeio ao Sesc Itaquera visitando a exposição
“Amazônia Mundi”.

Então, em 2015, a partir das reflexões pós-visita ao Projeto Âncora, foi pensado e desenvolvido o
projeto “Da Pedra ao Tablet”, construído a partir do interesse das crianças pelo tema tecnologia, votado por
elas. Neste ano cada educador ofereceu sua oficina, a partir de seu repertório, pautada nos temas votados
inicialmente pelas crianças. Foi um ano de mudanças, mas foi apenas em 2016 que efetivamente houveram
as transformações mais significativas.

O fato do Curumim se estruturar de forma aberta, abre caminhos para explorar possibilidades di-
versas, além das multiplicidades de linguagens: artes, meio ambiente, saúde, esportes, nutrição, tecnologia
entre outras, o que permite utilizar-se de vários vieses educacionais. O planejamento e a avaliação são fun-
damentais, além da pesquisa e criatividade. No entanto, outro fator de suma importância é a escuta das
crianças, afinal é pra elas e com elas que o Programa se constrói. A criança como ponto de partida, direciona
os educadores a explorar metodologias diversas, como por exemplo, a partir de sua própria experiência no
Projeto Âncora sentiram-se inspirados para um novo momento, dar ainda mais protagonismo às crianças
de forma que elas pudessem ser propositoras de suas próprias atividades.

Foi quando, em 2016, foi feita a pergunta a elas, o que acham de vocês serem os educadores e propo-
rem as atividades, a partir do que gostam e se sentem a vontade para compartilhar com os amigos? Esse foi
o ponto de partida para que efetivamente as crianças se tornassem propositoras, foi explicado a elas como
organizar uma atividade, iniciando por descreverem a atividade a ser proposta, materiais a serem utilizados,
número de vagas, local onde será realizada, a partir daí as oficinas foram surgindo e modestamente uma ou
outra criança assumiu sua atividade. Nasceu assim o “#curumimemação”. E a preocupação se as crianças
estavam ou não preparadas para esse momento foi se diluindo, a iniciativa em propor as atividades foi con-
taminando a todos, a ponto de haverem mais inscritos do que datas para realização das atividades, todas as
sextas-feiras foram reservadas para as oficinas. Observou-se que as crianças começaram a se sentir mais se-
guras para apresentarem suas habilidades e criaram o hábito da pesquisa, além de buscarem aprender novas
atividades para posteriormente oferecerem aos amigos.

Manteve-se a votação dos temas, que é anual, e assim surgiu o “Universo Curumim” onde os edu-
cadores oferecem as oficinas, e a fim de contemplar o maior número possível das escolhas das crianças são
realizadas contratações e são convidados outros profissionais do próprio Sesc. Quanto aos passeios desse
ano, 2016, as crianças foram para Fazenda do Chocolate, em Itu e para Iperó, na Fazenda Ipanema.

450
Então, para 2017, deu-se continuidade a estrutura de trabalho de 2016, já que essa foi avaliada pelos
educadores e pelas crianças como ações de sucesso. Realizou-se um passeio ao Catavento Cultural. Mante-
ve-se o #curumimemação e pode-se observar que a partir desse ano as crianças propuseram mais oficinas do
que em anos anteriores, acredita-se que como parte do processo as crianças já se apropriaram da atividade,
por isso tive-seum maior número de crianças propositoras.

Como já dito anteriormente, as sextas-feiras foram reservadas para o #curumimemação, no entanto,


o número de oficinas ultrapassou a quantidade de sextas-feiras que haviam de atividades do Programa. Mes-
mo assim, conseguiu-se que todas as crianças fossem contempladas realizando suas oficinas.

Percebendo o quanto o momento da brincadeira é fundamental no desenvolvimento e no dia a


dia das crianças, neste ano foram reservados um tempo maior para esse momento do brincar coletivo, o
Horário Livre.

Horário livre

O Programa Curumim tem como premissa o olhar para a criança e sua infância, e assim é dado
muito valor a brincadeira e ao tempo de brincar. Instituiu-se o chamado “horário livre”, que é realizado com
algumas variações. Horário livre com materiais: jogos de tabuleiro, bolas, materiais artísticos, tecidos, etc.
Horário livre sem materiais, onde as crianças experienciam brincadeiras com seus próprios corpos. Horário
livre direcionado, quando os educadores trazem as propostas de brincadeiras. Horário livre com votação,
quando as crianças votam nas brincadeiras que querem brincar, as três mais votadas são realizadas. Todas
essas variações oferecem diversidades de experiências, é também nesse momento que os educadores podem
observar as relações estabelecidas entre as crianças.

Este é considerado um momento fundamental de autoregulagem da criança, onde se estabelecem


relações de conflitos, solidariedade, amizade, desentendimentos, tomada de decisão, e onde a criança está
livre para se manifestar e decidir livremente o que fazer. É nesse momento que as intervenções dos educa-
dores, se necessárias, se fazem efetivas, é também quando as crianças aprendem a lidar com as diferenças e
entendem o que é a tolerância e o respeito ao próximo. Sobre o brincar em “O Universo Simbólico da Crian-
ça” FRIEDMANN (2014, p. 95) diz:

“O Brincar traz de volta a alma da nossa criança: no ato de brincar, o ser humano se
mostra na sua essência, sem sabê-lo, de forma inconsciente. O brincante troca, socializa,
coopera e compete, ganha e perde. Emociona-se, grita, chora, ri, perde a paciência, fica
ansioso, aliviado. Erra, acerta. Põe em jogo seu corpo inteiro: suas habilidades motoras e
de movimento vêm-se desafiadas. No brincar, o ser humano imita, medita, sonha, imagi-
na. Seus desejos e seus medos transformam-se, naquele segundo, em realidade. O brincar
descortina um mundo possível e imaginário para os brincantes. O brincar convida a ser
eu mesmo.”

Feedback com os responsáveis


Adotou-se o procedimento de feedback com os responsáveis dos Curumins que acontece anual-
mente. Esse procedimento foi implantado em 2014. São agendados horários para receber os responsáveis
individualmente, neste momento eles relatam o ano das crianças, como foi o desenvolvimento na escola e
como está em casa. Também fala-se como a criança se desenvolveu no Programa.

451
Observa-se que esse é um momento de extrema importância e ao longo do ano os educadores pro-
curam estar próximos aos responsáveis, no sentido de estarem alinhados com o desenvolvimento educacio-
nal das crianças, mas é no feedback que a relação se aproxima ainda mais. Também é solicitada a sugestão
dos responsáveis com relação a temas que achem pertinente para que sejam discutidos ao longo do ano no
Encontro “Família Curumim” (realizado duas vezes no semestre), que é mais um momento que se dispõe
para que a aproximação seja também um momento de formação. Com a presença de profissionais con-
tratados, da área de educação e da área da saúde, já foram abordados assuntos como: sexualidade, gênero,
consumo na infância, alimentação saudável, tecnologia e seus aspectos positivos e negativos na infância.
Promove-se também momentos lúdicos das crianças com suas famílias, como por exemplo, quando são
reproduzidos o horário livre em família, muitas famílias não tem ou não promovem um tempo de brincar
com seus filhos, e esse foi um estimulo para que possam se organizar para que isso aconteça.

O Programa Socioeducativo do Sesc São Paulo

Como considerações finais destaca-se que os programas socioeducativos do Sesc São Paulo, vem de
encontro com as premissas da infância, do livre brincar, da experimentação, da ampliação de repertório, do
entendimento de limites com relação ao respeito pelo outro, da busca pela autonomia, do fortalecimento da
autoestima, dentre tantos outros fatores presentes no trabalho diário.

O Sesc SP, com seus três Programas Socioeducativos, visa contemplar momentos únicos para os
participantes, com todo o cuidado para envolver o ser humano em sua plenitude. O Programa Curumim,
particularmente com foco no desenvolvimento múltiplo e amplo de uma faixa etária específica, busca respal-
do em terorias como por exemplo a Teoria das Inteligências Múltiplas (Howard Gardner), na qual abrange
as inteligências: linguística, interpessoal, intrapessoal, corporal-cinestésica, existencial, lógico-matemática,
musical, naturalista e espacial. Visto como a possibilidade de oportunizar uma amplitude de experiências
vivenciadas, e a partir delas a identificação e desenvolvimento de habilidades, talentos e potencias, sem per-
der o olhar para o respeito ao tempo maturacional de cada um.

BIBLIOGRAFIA

FRIEDMANN, A. O Universo Simbólico da Criança: olha- Serviço Social do Comércio, Administração Regional do
res sensíveis para a infância. São Paulo: Editora Vozes, 2005. Estado de São Paulo. Programa Integrado de Educação
Infantil – PIDI, São Paulo: 1986.
PARK, M. FRNANDES, R. (org.). Programa Curumim:
memórias cotidianos e representações. São Paulo: Edi-
ções Sesc, 2015.

452
(RE)SIGNIFICAÇÕES NOS
MUSEUS CONTEMPORÂNEOS
Dayze Euzébio de Oliveira
Guilherme Panho
UFPE - UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

AS MÚLTIPLAS CONCEPÇÕES SOBRE MUSEUS

Segundo Chagas (2006) até meados dos anos setenta (70) a concepção de museu era de “um local
para abrigar coisas antigas”, um mausoléu para celebrar a memória do poder. Esse pensamento tem raiz
na origem dos museus públicos, nos séculos XVIII e XIX na ideia de que museus são espaços burgueses
que servem aos interesses dominantes e à formação do estado nação emergente, focando como os museus
ajudaram a perpetuar essa noção de poder das nações dominantes sobre suas colônias. De acordo com o
autor, ainda que esse modelo de museu tenha origem nos séculos anteriores, eles continuaram sobrevivendo
e proliferando até o século XXI. O culto à saudade, aos acervos valiosos e imponentes era a orientação fun-
damental desse tipo de museu celebratório do poder, onde a memória coletiva e o poder eram unificados e
cujos acervos eram personalistas e etnocêntricos.

“A tendência para celebrar a memória do poder é responsável pela constituição de acervos


e coleções personalistas, etnocêntricas e monólogicas, tratadas como se fossem a expres-
são da totalidade das coisas ou a reprodução museológica do universal; como se pudessem
expressar a realidade em toda sua complexidade ou abarcar as sociedades através de es-
quemas simplistas, dos quais o conflito é banido por pensamento mágico e procedimentos
técnicos de purificação e excludência”. (CHAGAS, 2006, p. 32)

De acordo com Nascimento Júnior e Chagas (2009 p. 159) “Os museus tradicionais têm, ao longo
do tempo utilizado o passado para legitimar grupos sociais restritos, em que a maioria da população não
se vê nesse tipo de museu”. Nesse sentido, o museu contemporâneo desloca-se do foco apenas no passado e
torna-se um espaço de reflexão sobre o presente e de imaginação sobre o futuro. Os autores também acredi-
tam na experiência patrimonial como um instrumento de mudança social, através de uma prática crítica e
inclusiva, e destaca que é importante pensar o museu como “espaços de mediação cultural”, como locais de
integração e de sociabilidade de múltiplos grupos sociais e como instrumento de mudança social.

Nascimento Júnior e Chagas (2009, p.20) enfatizam a centralidade dos museus na cultura contem-
porânea e critica a noção tradicional do museu como “casas onde se guardam relíquias de um certo passado
ou na melhor das hipóteses, como lugares de interesse secundário do ponto de vista sociocultural”. Destaca

453
ainda que nas propostas das Políticas Nacionais de Museus, estes são entendidos como um veículo de de-
mocratização social:

[...] práticas e processos socioculturais colocados a serviço da sociedade e do seu desenvolvi-
mento, politicamente comprometidos com a gestão democrática e participativa e museolo-
gicamente voltados para as ações de investigação e interpretação, registro e preservação cul-
tural, comunicação e exposição dos testemunhos do homem e da natureza, com o objetivo
de ampliar o campo das possibilidades de construção identitária e a percepção crítica acerca
da realidade cultural brasileira. (NASCIMENTO JÙNIOR; CHAGAS 2009, p. 24)

Uma forma nas quais os museus contemporâneos estão tentando desafiar a perspectiva dominan-
te que coloca o museu como um lugar de relações de poder, é invocar e encorajar novas relações entre os
museus e as comunidades. Como movimento, esse fenômeno pode ser amplamente definido como a ‘Nova
Museologia’. Com a nova museologia, a partir dos anos 1960, os museus começam a ser pensados como
instrumento de mudança social, que amplia os vínculos com todas as camadas da população, neste sentido,
é indispensável redimensionar os aprendizados museológicos e tomar um protótipo mais inclusivo. Surgida
a partir da mesa redonda de Santiago do Chile e da Declaração de Quebec, a Nova Museologia aparece rei-
vindicando novas funções para os museus e novos papéis para os museólogos. Para Cândido:

Alguns elementos dessa Nova Museologia são a definição globalizante de Museologia e mu-
seus – o conceito de museu cobre o universo inteiro e tudo é musealizável; o museu como lu-
gar específico onde podem ser estudadas as relações entre o homem e a realidade do univer-
so em sua totalidade e a Museologia como ciência dessas relações. (CANDIDO, 2002, p.60).

As definições já consagradas de museus históricos, museus artísticos, museus científicos, juntam-se


os novos museus denominados ecomuseus, etnomuseus, museus de bairro, museus comunitários e museus
de território. Esses espaços designados museus do homem e da natureza, são lugares onde há a participação
massiva do público, pois o mesmo se reconhece neste território – o acervo faz parte da comunidade e a co-
munidade do acervo. (RAMOS, 2001)

Por outro lado, Chagas (2009) destaca que não se trata apenas de abrir os museus para todos, mas de
reinventar o museu que também passa a ser um patrimônio cultural e uma das partes constitutivas da nova
configuração museal. Para o autor, a associação dos museus à idéia de templo é página virada, o que se pro-
põe hoje é que o museu possa ser considerado como um fórum onde o principal foco é o público. Portanto,
a partir da nova museologia mudam os argumentos museais e entra em voga a discussão sobre as tensões
entre o “museu-templo” e o “museu-fórum” (RAMOS, 2004 p. 20).

É definido por Cândido (2002), museu-templo como espaço de linguagem e caráter elitista e mu-
seu-fórum como lugar onde é fomentada a ação, como se fosse um espelho da comunidade. Assim como a
concepção de museu, também a noção do objeto museal foi sendo modificada na nova museologia.

Os objetos quando passam a ser colecionados deixam de ter vida (função utilitária) e passam a ter
a função social de “guardar a memória”. Portanto, uma exposição nunca deve perder o seu caráter de estudo
sobre os objetos assim como, deve estar aberta as novas interpretações que resultam da comunicação com o
público. Segundo Pereira:

Ao contrário do procedimento usual dos museus, uma exposição é o ponto de partida no


sentido de estabelecer uma interação com o público, (...) a exposição é ao mesmo tempo,

454
produto de um trabalho interativo, rico, cheio de vitalidade, de afetividade, de criatividade
e de reflexão estabelecida no processo que antecedeu a exposição e durante a montagem,
além de ser ponto de partida para outra ação de comunicação. (PEREIRA, 2007 apud
SANTOS, 2002, p. 25).

Neste sentido, ressalta-se a importância de projetos de ações educativas que despertem a apreciação
crítica do público visitante, no qual a aprendizagem aconteça de forma espontânea. As ações educativas
enfatizam o papel participativo dos indivíduos promovendo situações de diálogo e aproximando os bens
patrimoniais das comunidades locais.

Sabemos que os objetos museais têm muito a nos dizer tanto sobre o seu aspecto físico, como sobre
seu processo de produção e os significados culturais que lhe são atribuídos. De acordo com o autor, na lei-
tura do objeto realizamos a leitura do mundo e passamos a refletir sobre o sujeito que o construiu e sobre a
cultura que ele expressa. Nessa circunstância deixa-se apenas de contemplar o objeto e passa-se a destruir e
reconstruir os objetos, pois os mesmos não são estáticos e provocam reações.

Ainda segundo Ramos (2004, p.21) “se aprendemos a ler palavras, é preciso exercitar o ato de ler ob-
jetos, de observar a história que há na materialidade das coisas”. Nesse sentido, todo objeto museal exibido
em exposições possui características sociais muito presente, pois reporta-nos à memória de quem os criou
e utilizou e criando possibilidades de múltiplas significações. Portanto é nos museus que os bens culturais
podem ser problematizados e questionados. Além de ser explorada a imaginação e a criatividade é através
dos objetos museais que são compreendidos os aspectos sociais, históricos, técnicos, artísticos e científicos.

No entanto, Ramos (2004) destaca que as visitas guiadas de turmas escolares nos museus, sem pro-
blemáticas historicamente fundamentadas tornam-se um ato mecânico, uma sucessão de eventos. Por outro
lado, o monitor deve assumir a postura de fazer perguntas, despertar reflexões, provocando no visitante a
vontade de, a partir dos objetos e das relações entre os objetos exibidos, construir conhecimento. O desafio
é potencializar o campo da percepção diante dos objetos, por meio da “pedagogia da pergunta”, como diria
Paulo Freire (1985), e aprender a refletir a partir da “cultura material”. Assim o museu assume seu papel
educativo e comprometido com o ensino.

Para Nascimento Júnior e Chagas (2009) torna-se necessário pensar os museus como uma ferra-
menta, uma tecnologia social a serviço da emancipação social a fim de proporcionar uma ruptura epistemo-
lógica e política com as práticas e os imaginários até aqui hegemônicos. Nesse sentido é necessário articular
e transformar esses espaços em algo legível para seus habitantes e visitantes. Dessa forma podemos dizer o
que o espaço cultural aqui referido “os museus”, poderão ser um espaço de sociabilidade e de inclusão.

Mas como vamos tornar os acervos museais legíveis para a comunidade de seu entorno? Retorna-
mos as reflexões de Chagas (2003, p.06) sobre a necessidade de ressignificar os museus: “Devorar e ressigni-
ficar os museus, eis o desafio de cada nova geração.” Na verdade, precisamos estar preparados para enfrentar
os desafios de pensar o museu na contemporaneidade, assim como, para envolver o público que visita os
museus com práticas culturais que despertem o interesse em conhecer seu patrimônio cultural e que os
motive a preservá-lo. Reconhecemos que a forma como temos tratado tanto os objetos museais quanto o
público que visita os museus não tem contribuído para que os museus cumpram sua função social. Salienta-
-se que as práticas culturais desenvolvidas nos museus devem estar próximas da vida cotidiana e das formas
de expressão dos indivíduos para que os mesmos se reconheçam nos acervos museais.

Na contemporaneidade a ação participativa é a característica marcante da Nova Museologia que


criou programas que contextualizam os museus, as exposições e o público (neste caso os educandos). Com

455
uma concepção essencialmente educativa e uma metodologia direcionada ao público escolar, o conceito de
patrimônio é ampliado e passa a abranger a comunidade em que está inserido.

Dentro das ações planejadas o educador, o educando e os membros da comunidade local compreen-
dem seu patrimônio cultural como referência de identidade local. Neste sentido, Santos (2000) coloca que:
a ação museológica é uma ação educativa e de interação que produz conhecimento e busca a construção de
uma nova prática social, portanto, a ação museológica é por nós compreendidos, como uma ação educativa
e de comunicação. Dessa forma, a ação educativa nos museus reforça a noção de que a educação não acon-
tece somente em espaços formais e reafirma o museu como espaço de reflexão e interatividade. Apesar das
rupturas da nova museologia reafirma-se a importância da ação educativa nos museus.

ARTE MÍDIA E TECNOLOGIA

A criação e utilização das novas tecnologias da informação possibilitaram transformações, sociais,


culturais e econômicas que se difundem nos mais diversos campos da atividade humana. O surgimento
de um “mundo virtual” proporciona novas práticas de sociabilidade, nas quais os processos dos meios de
comunicação e de informação, em confluência com esses espaços virtuais, operam mudanças no comporta-
mento dos indivíduos, alterando a forma como este se integra na sociedade, procura informações e adquire
conhecimento (LEVY, 1997).

O advento da internet mudou de maneira decisiva a nossa forma de ser e se comunicar. Essa mudan-
ça atinge, principalmente, questões relativas ao nosso modo de ver e refletir sobre nossas relações sociais, as
redes possibilitam uma nova forma de organização social, mais orgânica e adaptável, que foi gradualmente
sendo incorporada no fazer da sociedade contemporânea, “Não apenas os processos são reversíveis, mas or-
ganizações e instituições podem ser modificadas e até mesmo fundamentalmente alteradas pela organização
de seus componentes” (CASTELLS, 2002, p.108).

Com início na década de 70, o processo de informatização da sociedade rapidamente se espalha e


se estabelece nas capitais e cidades mais desenvolvidas. Já na década de 80 a sociedade passa a vivenciar o
surgimento de uma nova fase, a sociedade da informação, que teve seu arranque com a popularização da
internet e culminou com o desenvolvimento da rede de computação sem fio e associado à telefonia móvel.
Essa mudança se refletiu, principalmente nas práticas sociais, nas vivências do espaço urbano e na forma
como produzimos e consumimos informação. A cibercultura (LEMOS, 2002) se espalha e se manifesta de
forma onipresente fazendo com que não seja mais o usuário que se desloque até a rede, mas a rede que passe
a envolver os usuários e os objetos numa conexão generalizada.

O desenvolvimento da internet permitiu a construção de uma comunicação mais participativa, mais


aberta para uma audiência mais diversificada, incluindo novas vozes, narrativas e perspectivas. “Quanto
mais se desenvolve os processos de inteligência coletiva – o que supõem evidentemente o questionamento
de numerosos poderes – melhor os indivíduos e os grupos se apropriam das mudanças técnicas” (LEVY,
1997, p.30). Pelo seu aspecto colaborativo, a internet e as novas tecnologias da informação proporcionam a
possibilidade de uma comunicação interativa e capaz de projetar um horizonte de espaços virtuais e presen-
ciais com caráter mais democrático e agregador.

Dessa forma, uma das principais características do Ciberespaço, sua capacidade de alcançar e co-
nectar grupos fisicamente distantes em torno de interesses e ideais comuns, passam a ser notados pelas ins-
tituições culturais como estratégias de conexão e comunicação, possibilitando novas condições de sociabili-
dade com o público, criando uma dinâmica social que atende a finalidade de interagir com novas audiências
e incorporar novas perspectivas.

456
Os museus não estão isentos das transformações sociais e culturais acarretadas pela evolução da
internet, e atualmente o Museu como instituição cultural enfrenta um grande desafio: a comunicação com
o seu público (MACHADO, 2005).  Vários museus já fazem uso das mídias sociais para abraçar usuários
por meio de uma comunicação mais horizontalizada, permitindo assim levar informações e conhecimento
de uma forma descentralizada a uma audiência não presencial, fazendo com que eles possam usufruir de
diversos serviços e produtos culturais, em qualquer lugar do mundo.

MUSEUS 2.0

A tradição dos museus se origina na prática humana do colecionismo, desde o período da antigui-
dade, o homem coleciona objetos e lhes atribui valor, seja afetivo, cultural ou simplesmente material, o que
justifica a necessidade de sua preservação e coleção ao longo do tempo. A idéia de Museus como atualmente
conhecemos, se consolidou durante o século XVII depois da experiência dos Gabinetes de Curiosidades, e
tem estreita relação com o conceito de modernidade e as conquistas da classe burguesa. A ideia de museu
de arte está apoiada na necessidade de conceituar, proteger e exibir um conjunto de obras que se acredita
representativo de determinada época, retirando-o de circulação do contexto cotidiano e incluindo-o no
espaço institucionalizado. (FIGUEIREDO; VIDAL, 2005)

Atualmente, com a necessidade de desenvolvimento de uma presença interativa e tecnologicamente


cada vez mais avançada das instituições culturais na Internet, os museus deparam-se com a possibilidade
de se atualizar enquanto instituição, com a incorporação de uma audiência heterogênea, promovendo a as-
similação de novas falas e a exposição de narrativas mais dinâmicas e participativas. O desenvolvimento da
tecnologia digital permitiu que o acesso à informação se tornasse móvel, imediato e universal, essa mudança
causa um impacto particular nas instituições culturais, a internet revelou-se como uma ferramenta funda-
mental de comunicação, transformando de maneira categórica a forma como as instituições se comunicam
com seu público.

Dos álbuns de retrato, às tradições familiares e contações de história, o patrimônio é hoje muito
mais do que artefatos de museu, edifícios históricos e como eles devem ser preservados e expostos. Dessa
forma, observa-se como as mídias sociais reestruturam nossa compreensão e experiência de patrimônio,
abrindo formas mais participativas de interagir com os artefatos e interesses patrimoniais, e como os Mu-
seus estão fazendo uso dessas tecnologias. Nesse contexto, a relação entre os museus e seus visitantes pode
ser entendida como uma questão maior, sobre como as instituições públicas entendem o público que elas
representam, e como a cultura participativa e as redes sociais podem ajudar em um processo de comunica-
ção interativo e horizontalizado. A cultura participativa não é apenas sobre produzir e consumir conteúdos
gerados por usuários da rede de internet, mas é também sobre diversas formas de afiliação, expressão, cola-
boração e distribuição. (JENKINS, 2015).

Jenkins (2015) cunhou o termo “cultura participativa” para descrever a produção cultural e as
interações de comunidades de fãs, buscando inicialmente uma maneira de distinguir as interações de fãs
de outras modalidades de espectador. Conforme o conceito foi evoluindo, passou, também, a se referir
a uma variedade de grupos que funcionam na produção e na distribuição de mídia para atender a seus
interesses coletivos.

A expressão cultura participativa contrasta com noções mais antigas sobre a passividade dos
espectadores dos meios de comunicação. Em vez de falar sobre produtores e consumidores
de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como parti-
cipantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras. (JENKINS, 2015, p.20)

457
Essa interação com os conteúdos permitiu ao Museu ampliar a conexão que tem com o público
criando uma relação mais interativa, personalizável e próxima. Hoje, a ideia de museu enquanto ambiente
ortodoxo, desprendido das tendências atuais, destinado apenas à conservação e exposição de patrimônio e
coleções artísticas, está se alterando. Cada vez mais os museus de arte se mostram como verdadeiros centros
culturais, desenvolvendo ações que vão além do contorno das próprias coleções que abrigam, levando seus
acervos a um público cada vez mais vasto e conduzindo a experiência patrimonial a outros patamares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reitera-se, então, com esse estudo, a importância da discussão sobre o papel dos museus na contem-
poraneidade, assim como a relevância de ações educativas que transformem os museus e seus acervos em
referências para as comunidades e que permitam que estas desenvolvam laços afetivos e de pertencimento
a esses locais.

Esse artigo destacou a educação museal como instrumento fundamental das novas tendências mu-
seológicas. Hoje se espera que os museus, dentro de uma perspectiva participativa, dediquem especial aten-
ção às ações educativas, para responderem as reivindicações da sociedade contemporânea. O grande desafio
de todo espaço museal é propor atividades em que o museu seja reconhecido, e que o público visitante se
reconheça no museu, no seu espaço e no seu acervo ao vivenciar, a fruir e a refletir sobre o seu patrimônio.

A função social dos museus fortalece o museu como uma instituição educativa, como agência de
educação, que através do intercâmbio com outras instituições educacionais e com a própria comunidade
desenvolve uma fruição e percepção mais apurada de seu acervo patrimonial. As metodologias voltadas as
ações educativas tem demonstrado que, quando incorporada o Patrimônio Cultural no ensino/aprendiza-
gem, pode auxiliar os visitantes no resgate de suas memórias e na construção de sua identidade, proporcio-
nando novas possibilidades de re-significar, re-construir, re-conhecer e incorporar o Patrimônio Cultural da
sua cidade na sua leitura do mundo.

O desenvolvimento da tecnologia digital permitiu que o acesso à informação se tornasse móvel,


imediato e universal. A instituição e o objeto museológico estão sofrendo alterações na medida em que sur-
gem novas formas de pensar o Museu, percebendo-o como uma instituição que não está apenas limitada ao
seu espaço físico, mas que pode atuar além dos limites da sua fronteira, se tornando acessível a um público
cada vez maior e desenvolvendo uma relação de proximidade com a sociedade ao seu entorno.

REFERÊNCIAS

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brasileiro. Cadernos de Sociomuseologia – Centro de Es- voração e adjetivação. 2003. Disponível em: http://www.
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459
HISTÓRIAS DA NOSSA HISTÓRIA:
IDENTIDADE, ALTERIDADE E MEMÓRIA
Márcia Chiamulera (UFPB)

O ato de contar histórias, de acordo com Roland Barthes (1976, p. 19), acompanha o ser hu-
mano desde os primórdios, começando com a própria história da humanidade. A Contação de histórias,
nesse sentido, pode ser verificada em diferentes níveis da linguagem. Se pensarmos nas pinturas rupestres,
por exemplo, consideraremos que elas também narram uma história e nos informam sobre uma condição
existencial que antecedeu os dias atuais. A narrativa intrínseca, assim, informa, transmite, perpetua uma
história e consolida formas de conhecimento. As histórias, no ato de sua existência, ou seja, no preciso
momento em que são contadas e ouvidas252, podem permitir ao ser humano o reconhecimento e/ou reafir-
mação de sua(s) identidade(s), a ativação de sua imaginação; também o auxiliam na compreensão de sua(s)
realidade(s), propiciam a reflexão e a oportunidade de um exercício de alteridade e atuam sobre a memória
individual e coletiva.

Contar histórias, nesse sentido, pode se tornar uma estratégia privilegiada para a ‘transmissão’ de
conhecimentos, a qual se refere tanto às práticas culturais (savoir faire) em uma dada sociedade (LISBOA,
2016) quanto aos conhecimentos de cunho didático e contextualizados em ambientes educacionais (TAHAN,
1964). Essa prática, além disso, coloca em questão a hegemonia de um pensamento e conhecimento, geral-
mente, pautado exclusivamente nas modalidades da palavra escrita, principalmente nas sociedades atuais e
ocidentais. Um exemplo da utilização pedagógica e interdisciplinar253 da Contação de histórias, pode ser en-
contrado na obra do Prof. Júlio César de Melo e Souza, mais conhecido pelo seu heterônimo, Malba Tahan.
Em sua obra “A arte de ler e contar histórias” (1964), o autor faz uma primeira incursão teórica partindo de
sua própria experiência, além de relatos e reflexões de outros profissionais na área da educação, delineando
algumas bases para esta que, sobretudo na atualidade, vem se afirmando como uma arte multidisciplinar.

Este artigo visa tecer algumas considerações sobre a prática de Contação de Histórias elaboradas à
luz da experiência com Contações em um projeto de extensão intitulado “Histórias da nossa História: Iden-
tidade, Alteridade e Memória” e nomeia também este trabalho. Estes três conceitos são o eixo de reflexão em
relação ao processo e, portanto, lança um olhar para o processo desde a escolha das histórias, o trabalho de

252. Utilizamos por convenção as terminologias contar/ouvir em referência ao ato de contar histórias, compreendendo-as como complementares.
Ainda que na atualidade a Contação de histórias se concentre sobretudo nas faculdades do narrar (voz) e do ouvir (audição), insistimos que sua ação
não incide apenas sobre o ato fisiológico em si, mas compreende o aspecto multissensorial implicado no ato da Contação, pois, é possível apreender
uma história também através de imagens, da própria performance em si ou dos sentidos que são aguçados através da faculdade imaginativa.
253. Malba Tahan utilizava da Contação de histórias no ensino da matemática. Uma de suas obras mais conhecidas intitula-se “O Homem que
calculava”.

460
criação e apresentação. O projeto foi realizado no Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB) e teve seu início em meados de maio de 2017254.

Este projeto se desenvolveu orientado por duas diretrizes iniciais: a primeira diz respeito à pesquisa
das histórias que previa o uso de histórias da literatura, oral ou escrita, de cunho local e/ou regional. A se-
gunda, em relação ao uso de elementos cênicos. Nesse caso, o enfoque recaiu sobre o uso de objetos de cena
e máscaras confeccionados com materiais recicláveis. Ulteriormente também foram incluídos elementos
de manifestações da cultura popular, como instrumentos musicais, ritmos e passos do Coco de Roda e da
Ciranda255, reverberando ainda em um trabalho corporal mais específico. Na primeira etapa, debruçados na
pesquisa de histórias, deparamo-nos com um imenso acervo sediado na própria Universidade Federal da
Paraíba, o Núcleo de Investigação e Documentação da Cultura Popular (NUPPO/UFPB). O Nuppo, além
de abrigar um pequeno e variado museu de objetos da tradição popular, abriga um modesto acervo de his-
tórias256. Muitas destas histórias foram reconhecidas pelos discentes como sendo “da infância” e até mesmo
recontadas por eles, acrescentando ou alterando detalhes específicos. Outras, de estrutura mais universal, se
apresentavam através de uma linguagem e poética local. Estes indícios foram fundamentais para compre-
ender aspectos culturais locais e específicos, expressos nas particularidades da forma, tanto narrada quanto
escrita, impressas pelo contador.

Dentre as histórias que compuseram a ação no projeto estão: “Branca Dias”, jovem portuguesa e
judia denunciada pela inquisição e queimada em uma fogueira; “O Pai do Mangue”, protetor da natureza
que assusta os pescadores “com maldade no coração”, história conhecida sobretudo pela população que vive
em áreas próximas ao mangue e/ou ribeirinhas e “O Pé de Oliveira Encantado”, história narrada por um
dos integrantes do projeto com referência à sua infância na cidade de Pedras de Fogo/PB, entre outras. A
partir das histórias selecionadas, os alunos-contadores iniciaram o trabalho de leitura, imaginação, estudo
e análise, concepção e construção das Contações. Quando falamos em trabalho de imaginação, indicamos
que cada história é, no ato de sua leitura, imaginada singularmente por cada indivíduo. Essa diferença se dá,
acreditamos, em acordo com as experiências de cada um dos leitores. Logo, o cenário, as cores, as nuances
de cada história, são imaginados de diferentes modos por cada leitor (ou ouvinte). E, para o contador, são
estas nuances que fornecem os primeiros indícios da concepção e construção da Contação.

Na criação da história do Pai do Mangue257, por exemplo, emergiu o trabalho com instrumentos
musicais, ritmos e um trabalho corporal, derivados das manifestações culturais populares, sobretudo com
o Coco de Roda e a Ciranda. O aluno-contador, neste caso, se valeu de elementos que lhe são próximos e
constituem sua própria história e memória (vivida-e-ouvida) e, assim, o ritmo e movimento próprios da
manifestação cultural subsidiaram a performance do aluno na Contação, imprimindo nessa uma forma par-
ticular. Essa intersecção entre a experiência individual e a concepção/criação das Contações se fez presente,
de diferentes modos, no trabalho desenvolvido pelos demais alunos-contadores.

254. Convém informar que o curso de Licenciatura em Teatro da UFPB prevê a Contação de Histórias como componente curricular e foi durante
sua realização, no primeiro semestre de 2017, que o referido projeto foi gestado. O projeto foi contemplado pelos Programas de Extensão PROBEX,
UFPB no seu Município (2017) e PROLICEN (2017). Contou com a participação de quatro discentes: Geibson Nanes Siqueira, Joelson Pereira da
Silva, Naiara Cavalcanti dos Santos e Vladimir Santiago da Silva, todos alunos do curso de Licenciatura em Teatro/UFPB. A inclusão da Contação de
Histórias como componente curricular indica a importância que se atribui a esta modalidade de trabalho nas Artes Cênicas e, oferecer esta experiên-
cia aos licenciandos em teatro, tem se demonstrado de grande valor para a formação e atuação profissional. É interessante sublinhar ainda, o trânsito
das histórias e narrativas que, partindo dos espaços acadêmicos, retornam à oralidade e à comunidade (através de projetos como este) e, ao retornar,
carregam vestígios de um pensamento teatral, seja através da composição estética da cena, seja na poética dos corpos e linguagens.
255. De acordo com Dowling e Melo (2012), “O coco de roda e a ciranda correspondem de maneira distinta a tipos de dança coletiva e circular,
originalmente com a participação de homens, mulheres e crianças. Também conhecida por brincadeira, tal prática cultural é conhecida desde a
época da escravidão”.
256. Dentre os materiais estudados, verificamos os nomes de Altimar Pimentel e Luzia Tereza dos Santos como figuras centrais da divulgação oral
e escrita na Paraíba.
257. Essa história foi trazida, construída e contada pelo aluno Joelson Pereira da Silva.

461
Acreditamos que o ponto central, nesse sentido, se relacione não apenas com a experiência (de vida)
do contador, mas também com a imaginação atrelada a essa experiência. De outro modo, poderíamos dizer
que, tanto a experiência quanto a imaginação, fazem parte de um arsenal de conhecimentos adquiridos
culturalmente, inclusive através de histórias. Esse aspecto parece indicar um trânsito de conhecimentos
veiculados tanto pelas práticas culturais quanto pelas histórias. A ideia de transmissão de conhecimento que
permeia a Contação de histórias, nesse sentido, poderia então ser compreendida como lugar fundante para
o exercício da alteridade, da memória e da própria identidade, individual, cultural e plural (BENJAMIN,
1985; HAMPÂTÉ BÂ, 1982; 2015). As lendas, os contos, os ‘modos de dizer’ e outras expressões culturais,
além da própria literatura local seriam, então, formas de conhecimento que podem oportunizar a reflexão
sobre a(s) realidade(s) que nos cerca(m) e fornecer chaves para a compreensão e ação em relação ao contex-
to em que vive um indivíduo ou em relação a si próprio (LISBOA, 2015).

Acreditamos que, ao narrar e ao ouvir uma história, o sujeito-narrador, assim como o sujeito-ouvin-
te, colocam-se, mutuamente, na condição de um outro – o personagem da narrativa. Ao mesmo tempo, con-
tador e ouvinte podem encontrar um espaço de intersecção que se dá através da imaginação. A imaginação,
aqui se tornaria uma possível forma de estabelecer um elo com o ouvinte. Tanto este espaço de intersecção
quanto o exercício de assumir o lugar do personagem, parecem configurar-se como possibilidade potencial
para que possamos abordar temas que atravessam nossas temáticas principais, como o respeito pelo outro,
o respeito pela diversidade, a valorização de elementos e/ou práticas culturais e o fortalecimento e reconhe-
cimento de uma comunidade, entre outros.

Nesta linha de pensamento, é necessário, porém, abordar e problematizar o que Walter Benjamin
(1987, p. 198) já advertia como privação da “faculdade de intercambiar experiências”. Ao lermos o texto “O
Narrador”, escrito por Benjamin em 1936, estarrece-nos a lucidez com a qual o autor delineia o declínio da
arte de narrar e, consequentemente, contextualiza o desaparecimento do narrador, frente à evolução dos
meios e modalidades de comunicação que veiculam a informação. A distinção operada por Benjamin (1987,
p. 198) defende que a informação “aspira a uma verificação imediata”, ao contrário da narrativa, que se funda
na “faculdade de intercambiar experiências”. Nas considerações do autor (1987, p. 201), “o narrador retira
da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos ouvintes”. Logo, consideramos que, é justamente pelo fato de que a narrativa
pressupõe a experiência que ela não se restringe às explicações e nem se delimita na imagem (verificação)
imediata, mas, inversamente, permite ao interlocutor formular a sua imagem e interpretação com base na
própria experiência e na experiência que é intrínseca à narrativa258.

Com base nesta distinção e considerando os elementos que levam Benjamin a estabelecer o declínio
da arte narrativa, não podemos nos eximir de passar em revisão nosso contexto contemporâneo, sobretudo,
no que diz respeito ao pensamento e às práticas educativas. É notório o contínuo crescimento da veiculação de
informações com a expansão dos mass media e com o surgimento e propagação dos new media259. Nesse senti-
do, acreditamos que é necessário formular um pensamento crítico acerca de nossas práticas e buscar priorizar
práticas que se pautem na/ ou propiciem a “intercambialidade de experiências”. Isso não significa suprir ou
competir com outros tipos/meios de comunicação e sim a uma qualidade de trabalho que valorize as diferentes
percepções, respeitando a pluralidade de sentidos e de compreensões e a diversidade entre os sujeitos.

258. Embora “narrativa” e “Contação de histórias” possam ser compreendidas como categorias distintas, partimos do pressuposto de que a narrativa
está contida na Contação. Isso pois, a Contação, como buscamos trabalhar, pressupõe o elemento da performance para a veiculação da narrativa.
Sublinhamos que o fundamento que nos interessa destacar aqui, ou seja, a experiência e consequente elaboração da informação pelo ouvinte, está
presente em ambas as categorias.
259. Mass media se refere aos sistemas organizados de produção, difusão e recepção de informações como os jornais, rádio e televisão. Já os New
media, se referem aos sistemas que tem por base as novas tecnologias, implicando inclusive em uma metodologia de propagação da informação em
tempos ainda mais reduzidos.

462
Esta abordagem é trazida por Fabio Lisboa, que defende a Contação de histórias como direito es-
sencial e universal, tanto para o ouvinte quanto para o contador. De acordo com Lisboa (2015, p. 304) “a
humanidade vive uma crise da modernidade, que se acentua da metade do século XX em diante: vivemos
o consumismo, as relações descartáveis, a intolerância, a falta de escuta e a velocidade alucinante das novas
tecnologias [...].” Em contraposição a esta tendência, o autor defende que a arte de contar histórias, além de
assegurar o direito à participação ativa na vida cultural de uma sociedade, permitiria a instauração de uma
postura reflexiva.

Nossa hipótese se funda na compreensão de que a imaginação, que é ativada ao ouvir ou contar uma
história, colocaria ouvinte e narrador em contato entre si e com o personagem. A imaginação, portanto,
propiciaria um espaço de intersecção e evocaria uma nova experiência que se daria em termos de ‘colocar-
-se no lugar do outro’, de aprender com o outro e, ao mesmo tempo, de reconhecer a si mesmo através de
semelhanças e diferenças.

Alteridade, identidade e memória são as categorias que fundamentam nossa investigação e prática
e, acreditamos, podem ser trabalhadas a partir da Contação de histórias. O conceito de alteridade postula a
compreensão das diferenças sob o exercício de “colocar-se no lugar do outro”, de reconhecer-se no outro ou
reconhecer no outro um pouco de si mesmo. De outro modo, a alteridade pode ser compreendida como o
espaço que existe entre o “Eu” e o “Outro”, espaço esse que afirma a diversidade, a pluralidade, as diferentes
visões de mundo e as diferentes subjetividades. Reconhecer-se a partir das diferenças é um dos princípios
do conceito de identidade (BARTH, 1969; CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976). A identidade, logo, não é fixa,
pelo contrário, é plural, móvel, fluída e está estreitamente ligada à identificação. Nessa concepção, podemos
compreender como as identidades vão sendo delineadas em relação a formas de inserção, socialização e
experiência no contexto de um mundo globalizado. Em acordo com Hall (1999, p. 13):

À medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos


confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis,
com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.

Nessa multiplicidade de significações e identidades, instauram-se também os conflitos, pautados


nas diferenças. A noção de alteridade aqui, portanto, é desenvolvida em relação a noção de identidade. E
ambas se situam no contexto pós-moderno e globalizado que, tal como conhecemos, é palco das mais diver-
sas categorias de conflitos sociais. Estes conflitos também, ou sobretudo, permeiam os contextos de ensino.
E é nestes contextos que vem se desenvolvendo uma das linhas de pensamento acerca da alteridade, fun-
damentando práticas pedagógicas e contribuindo sobremaneira para a consolidação de quanto previsto no
Plano Nacional de Ensino (PNE 2014-2024)260, ou seja, de promoção dos princípios de respeito aos direitos
humanos e à diversidade. Em acordo com Molar (2012: 69):

A educação pensada com base na perspectiva da alteridade passa a ser concebida como
o processo construído pela relação particular e intensa entre diferentes sujeitos, os quais
possuem opções e projetos também diferenciados. Inserido ao processo interativo ocorre
não apenas a aprendizagem de conceitos, informações, mas, sobretudo, a compreensão
dos contextos em que surgem os contatos; os relacionamentos de sujeitos plurais para a
apreensão dos elementos que adquirem significado.

260. O PNE pode ser consultando buscando-se a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras
providências (Diário Oficial da União, Seção 1 (Ed. extra), de 26 de junho de 2014, p. 1-7

463
Logo, pensar a questão da alteridade e da identidade significa não apenas agir sobre os elementos
externos que caracterizam indivíduos, tais como a cor da pele ou a forma do corpo. Também diz respeito
às diferenças culturais que incidem sobre os significados dados pelos indivíduos às coisas e no modo como
estes sujeitos forjam e experienciam suas identidades em relação aos seus contextos sócio-culturais e edu-
cacionais. Por conseguinte, a memória também tem parte fundamental na elaboração da identidade, na
compreensão da alteridade e nos processos de Ensino/Aprendizagem. Falar de memória diz respeito tanto
àquela coletiva quanto àquela individual. Em acordo com Maurice Halbwachs (1925), a memória individual
é circunscrita em uma memória coletiva. Diferenciando as categorias “memória – história”, Halbwachs,
afirma que nossa memória não se apóia na história aprendida e sim, na história vivida. Assim, por história
compreende-se não uma sucessão cronológica de eventos e datas, mas, tudo o que faz com que um período
se diferencie dos outros. Ainda segundo Halbwachs, cada grupo tem uma história e nesses grupos distin-
guem-se personagens e acontecimentos, no entanto, o que chama a atenção, diz o autor, é que na memória
as semelhanças ficam em primeiro plano, ou seja, revendo o passado o grupo toma consciência de sua iden-
tidade através do tempo.

Retornamos, portanto, à premissa de que a Contação de Histórias não apenas informa uma his-
tória, mas sim, ao destilar experiência, permite ao ouvinte re-viver, identificar-se, conhecer, reconhecer e
respeitar as diferenças, fundamentando nosso pressuposto de que, através da Contação, é possível trabalhar
sobre as categorias de identidade, alteridade e memória, atuando como mediadores para a constituição da
experiência. Em acordo com Benjamin, a experiência está na base da narrativa. A narrativa é experiência na
medida em que é veiculada pelo ‘corpo em performance’ do narrador, o qual – através da palavra, dos ges-
tos, das entonações – provoca o ouvinte a experienciá-la também. Na contemporaneidade, a voz e a escuta
têm se colocado como fundamentos para a Contação de histórias. Acerca destas duas categorias, Barthes
(1987) propõe pensá-las como índices de corporeidade, situando-as na articulação do pensamento/corpo/
movimento, ou seja, elas não se limitam ao ato fisiológico através do qual os indivíduos emitem um som ou
aprendem a reconhecer e decodificar os sons. Para estabelecer essa diferença, Barthes diferencia o ato de
ouvir do ato de escutar, sendo este último, uma forma de atenção que é determinada social e culturalmente,
ou seja, indica uma percepção que pode transitar entre o emissor e o receptor261.

Pensar o ato de contar histórias, portanto, não diz respeito apenas à linguagem falada, mas sim,
engloba o que chamaríamos de uma “operação total”262 que envolve os sentidos, a expressão, a imaginação,
a comunicação tanto do contador quanto do ouvinte. Aliás, pode-se pensar o contador e o ouvinte como
figuras complementares, ligados entre si pela narrativa e pela performance que a veicula. Esta ligação entre
contador e ouvinte é, muitas vezes, tênue, difícil de ser estabelecida e pode ainda provocar diferentes tipos
de reação. Um dos aspectos mais contundentes, revelado durante o projeto de Contação de histórias, diz
respeito justamente a esta ligação e a um possível espaço de intersecção entre a imaginação do contador e
àquela do ouvinte, ainda que muitas vezes esta condição precise de tempo para emergir. Isso pois, dentre os
principais problemas encontrados durante a realização do projeto, destaca-se uma certa dificuldade de ima-
ginação – pelo menos em um primeiro momento – em uma parte do público. Identificamos que, na medida

261. Barthes (1987, p. 138) diferencia três níveis de escuta: de alerta, de decifração e de interiorização. No primeiro caso, o exemplo da criança
que reconhece ou procura reconhecer os passos da mãe são o índice de reconhecimento; no segundo, ao ouvir um som de plástico amassado, por
exemplo, recorremos ao nosso vocabulário de informações armazenadas para decifrar do que se trata e, no terceiro nível, refere-se a um índice
multissensorial que transita no subtexto da palavra ou do som, podendo assim, transmitir um ideal, um valor, uma forma de conhecimento que será
‘absorvida’ pelo interlocutor.
262. Utilizamos a expressão “operação total” em alusão ao ‘fato social total’ que, proposto por Marcel Mauss (1974), na Antropologia, pressupõe que
um fenômeno deve ser apreendido na sua totalidade, analisando-se as dimensões do comportamento humano, não só a nível biológico ou fisiológico,
mas também social e psicológico. Este conceito permite ligar o individual ao social, em experiências concretas, considerando a sociedade localizada
num espaço e tempo determinados e os indivíduos presentes nela. Considerar a Contação de histórias como um fenômeno de dimensão ‘total’ indica
as possibilidades inerentes ao ato de contar e de ouvir histórias, agindo tanto na esfera individual quanto coletiva, permeando os campos do saber e
do saber fazer, da transmissão, da afirmação e/ou transformação de elementos culturais. Em outras palavras, a Contação também pode ser o espaço
onde a sociedade se reconhece e escreve sua história tal como ela a compreende (Amaral, R. 1998). Esta abordagem será discutida em outra sede.

464
em que um contexto de vulnerabilidade, de violências e de crueldades se tornam a única realidade imediata
e experimentada pelos sujeitos, são estes mesmos elementos que ‘colorem’ a história escutada/narrada.

Embora este aspecto tenha sido de grande impacto e reforce a ideia de prolongamento da experi-
ência à imaginação, ele também nos permite resgatar a ideia formulada por Lisboa (2015: 303), de que “ao
contar histórias e ao viver as experiências do cotidiano, conscientemente ou não reforçamos, refutamos ou
reformulamos conjuntos de ideias que permeiam os valores e o modo de vida da sociedade”. Esse conjunto
de ideias, referido pelo autor, parece estar de acordo com a definição de “visão de mundo” elaborada na an-
tropologia por Clifford Geertz (2008, p. 93), que indica “o quadro que [o povo] elabora das coisas como elas
são na simples realidade, seu conceito da natureza, de si mesmo, da sociedade”. A visão de mundo, então,
assinala uma ideia abrangente de ordem formulada e vivida pelo próprio coletivo e se liga, imprescindivel-
mente, a um ethos, ou seja, “o ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral
e estético, e sua disposição é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete”
(Geertz 2008, p. 93).

Se levarmos em consideração esta perspectiva, podemos extrair uma possível chave de atuação em
relação aos processos de Ensino/Aprendizagem. Em outras palavras, o diálogo entre diferentes visões de mun-
do é permeado pela construção de um conhecimento de si mesmo. Seria através do processo de identificação/
diferenciação e de socialização que um sujeito construiria sua(s) identidade(s) e, a compreensão da identidade,
nesse sentido, pressupõe o reconhecimento dos diferentes processos sócio-culturais que implicam, consequen-
temente, em uma atitude de respeito pela alteridade e encontram nos processos mnemônicos o suporte para
sua afirmação enquanto grupo social. As narrativas, os contos, as lendas orais ou escritas, gravam-se na me-
mória de um povo e fazem parte do quadro que orienta a visão de mundo de seus componentes. A Contação
de histórias, incluindo as de caráter universal, pode contribuir para o desenvolvimento de um conhecimento
sobre si mesmos, estimular o exercício de reflexão e imaginação. De outro modo, utilizar histórias da tradição
local/regional pode constituir-se como eficaz estratégia de ensino/aprendizagem com vistas ao processo de
construção de conhecimento e, parafraseando Barthes, de nossa própria história.

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2015; pp. 155-188. março de 2017. Disponível em: https://www.unicef.
LISBOA, Fabio. Por que contar histórias para bebês, pt/docs/pdfpublicacoes/convencao_direitos_crian-
crianças e adultos: um novo paradigma para a humani- ca2004.pdf

466
REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO
FORMATIVO DE UM ARTE-EDUCADOR
NO CURSO DE LICENCIATURA
EM DANÇA - UFPE263
José Roberto do Nascimento Júnior
Universidade Federal de Pernambuco (Licenciatura em Dança)

Orientação: Profa. Gabriela Santos Cavalcante Santana (UFPE)


Universidade Federal de Pernambuco (Licenciatura em Dança)

O objetivo deste trabalho é iniciar uma reflexão acerca do meu processo de formação como
arte-educador. Durante a graduação em Dança desta universidade, muitos questionamentos me vieram à
cabeça. Sigo me perguntando: que professor de dança, arte-educador, artista-docente eu quero ser? Como
a monitoria me auxiliou no desenvolvimento como docente? O que ela afetou meu desempenho acadêmico
como aluno do curso?

O interesse pelo tema foi instigado por leituras e discussões nas cadeiras de Fundamentos da
Arte-educação, Metodologias do Ensino da Dança e especialmente nas disciplinas de Estágio Curricular,
bem como das provocações feitas pelos professores do curso. Atualmente, tenho pensado no curso de
licenciatura como a formação inicial do professor, o estágio como oportunidade de pesquisa e como a
monitoria me colocou num (entre) lugar fluido entre docência e discência.

Em minhas experiências como monitor, pude conhecer turmas diferentes, trabalhar junto a alguns
docentes e acompanhar distintos componentes curriculares da Licenciatura em Dança da UFPE, inclusive
sendo pioneiro ao inaugurar a monitoria nas disciplinas de estágio curricular daquele curso.

Componente Curricular Professor orientador semestre Turma


Fundamentos da
Everson Melquíades 2014.2 2014
Arte-Educação
Oficina de Dança 1 Márcia Virgínia 2015.1 2015
Fundamentos da
Gabriela Santana 2016.2 2016
Arte-Educação

263. A proposta de elaboração deste artigo surgiu como sugestão da docente orientadora como atividade avaliativa da monitoria no semestre letivo
2017.1.

467
Estágio Curricular em Gabriela Santana
2017.1 2015
Ensino de Dança 2 Paulo Henrique Ferreira
Fundamentos da
Gabriela Santana 2017.2 2017
Arte-Educação
Estágio Curricular em
Ana Cecilia Soares 2017.2 2016
Ensino de Dança 1

1. Organizando a monitoria

As atividades de monitoria já são citadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB
no 9.394/96: “Os discentes da educação superior poderão ser aproveitados em tarefas de ensino e pesquisa
pelas respectivas instituições, exercendo funções de monitoria, de acordo com seu rendimento e seu plano
de estudos”. (BRASIL, 1996, Art.84).

A Universidade Federal de Pernambuco regulamenta as atividades de monitoria dos seus discentes


através da Pró-reioria de Assuntos Acadêmicos – PROACAD. De acordo com o seu Programa Institucional,
a monitoria é um espaço de aprendizagem, proporcionado aos alunos dos cursos de graduação, visando o
aperfeiçoamento do seu processo de formação e a melhoria da qualidade do ensino (EDITAL N° 01/2017
- PROACAD PROGRAMA INSTITUCIONAL DE MONITORIA 2017.1). Cada departamento possui um
professor efetivo do quadro que exerce a função de Coordenador de Monitoria. Junto com o professor-
-orientador regente da disciplina, ele é encarregado de organizar as documentações, procedimentos e prazos
relacionados à monitoria.

Segundo esta mesma regulamentação da universidade, o aluno monitor tem três atividades princi-
pais a realizar: executar o plano de atividades apresentado pelo professor orientador e cumprir uma carga
horária semanal de 12 horas, durante a vigência da monitoria; Participar das atividades organizadas pela co-
ordenação de monitoria do Departamento/Área/Núcleo; Apresentar, no final de cada período de monitoria,
relatório final das atividades desenvolvidas para o professor-orientador. (EDITAL N° 01/2017 - PROACAD
PROGRAMA INSTITUCIONAL DE MONITORIA 2017.1).

2. Fluindo entre discência e docência

Durante cada monitoria, eu pude experimentar atividades diversas das rotinas de um professor uni-
versitário. Mesmo com uma grande experiência docente anterior na educação básica, foi possível desenvol-
ver um amplo aprendizado, especialmente nas monitorias de Estágio Curricular em Ensino de Dança. Pude
participar de todas as etapas da disciplina: planejamento, metodologia e avaliação. Especialmente junto à
Professora Gabriela Santana, em reuniões periódicas, pude desempenhar um papel efetivo na monitoria, na
qual pudemos discutir o andamento do plano de curso, sempre o reajustando quando necessário, e também
pensando o planejamento das aulas de forma que me fosse permitido atuar de alguma forma, intervindo,
apoiando, sugerindo. Realizamos, durante todos os semestres em que trabalhamos juntos, discussões sobre
o processo avaliativo dos alunos; auxiliei na logística das atividades em sala de aula, materiais, estratégias
metodológicas; também prestei auxílio aos estudantes, troca de experiências, saberes, aplicando o que foi
adquirido como docente e discente.

Este espaço híbrido me proporcionou enxergar o processo de ensino-aprendizagem com dois


olhares simultâneos. Pimenta (1999) afirma que num processo de formação inicial de um professor,

468
neste caso um curso de licenciatura, muitos alunos já possuem experiência docente prévia, já minis-
tram aulas e atuam em ambientes escolares diversos. A autora afirma, porém, que é necessário que um
estudante graduando, um professor em formação, mude sua perspectiva a partir deste momento. Eles
ainda não se “identificam como professores, na medida em que olham o ser professor e a escola do
ponto de vista do aluno” (p. 20). Sempre visualizei a arte e a dança sob a ótica de um aluno, e a monito-
ria, principalmente nas disciplinas de Estágio Curricular, foi para mim, então, o momento da virada: a
forma de construir minha “identidade docente” e me enxergar efetivamente como professor de dança,
um arte-educador.

Tudo começou a ficar mais claro a partir das orientações com os alunos da turma. Eu conseguia
realizar atendimentos individualizados aos alunos com uma certa frequência, de forma virtual pela in-
ternet ou telefone, também de forma presencial, assistindo nas demandas por material e orientações para
avaliações. Tive a oportunidade de monitorar quatro turmas distintas e elas foram bem receptivas à co-
laboração da monitoria. Como diria Freire (1996), “não há docência sem discência.” (p.11), e, ao mesmo
tempo, eu era aluno do curso e era também de certa forma “professor”, numa dinâmica fluida entre estas
duas esferas.

Foi ficando cada vez mais evidente também a relação indissociável entre teoria e prática que deveria
existir em minha atuação pedagógica. Esta era uma discussão predominante nas aulas durante as monitorias
de Arte-educação e de Estágio Curricular. Como o próprio Freire (1996) reiteraria, a teoria poderia virar
“bla bla blá” e a prática puro ativismo. Tenho aprendido que um processo de falar, ler e escrever sobre a dan-
ça que eu faço, alimenta meu fazer dança, que por sua vez gera argumentos e pensamentos que me fazem
voltar à teoria, sempre neste ciclo de retroalimentação.

Em cursos de formação de professores, como as licenciaturas, é muito comum que os profissionais


em educação caiam na armadilha de criar ilusões. Um destas seria a ilusão do saber-fazer (Houssaye apud
Pimenta, 1999). É claro que os saberes da experiência têm um demasiado valor na prática de um professor,
entretanto, muito alunos em formação docente pensam que por saberem fazer, já estão aptos ao “fazer-
-saber”, a ensinar outras pessoas o seu saber-fazer. Pimenta (1999) então, provoca: “pra que serve seu saber,
se ele não instrumentaliza sua prática?” (p. 26) Desta forma, muitas vezes os alunos se mostravam resistentes
a atuar no campo de estágio.

Aqueles momentos de suporte aos alunos também proporcionaram uma exigência maior para co-
migo como aluno do curso. As monitorias eram as disciplinas às quais eu mais me dedicava, pois sentia a
necessidade de estar o mais seguro possível para responder os questionamentos da professora e dos alunos.
Lia os textos, fazia uma preparação para as aulas – enquanto eu ensinava eu também pesquisava. Volto às
ideias freirianas e repito o mestre: “Não existe ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres
se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando” (FREIRE, 1996,
p.16). Isso acabou refletindo no meu desempenho geral nas outras disciplinas, melhorando meu rendimento
e, por consequência, minhas notas. Ao fim do curso, recebi a láurea universitária com o melhor rendimento
do curso entre os concluintes do ano de 2017.

E nesse meio tempo, foi importante também pensar na minha atuação como docente na escola,
no Ensino Básico. Na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão
crítica sobre a prática. (FREIRE, 1996, p.22). Passei a questionar esta minha “identidade docente” já
citada anteriormente e hoje tenho repensado questões na minha prática com turmas de Ensino Funda-
mental, por exemplo em relação a relacionamento professor-aluno, sobre o desenvolvimento de aulas
de dança num espaço formal e sobre a sua “burocratização”, e também se quero ser professor do ensino
superior.

469
3. Estágio Curricular: formando-me um arte-educador

Ter sido monitor destas disciplinas e ter me debruçado sobre processos artístico-docentes foi funda-
mental para resolver um grande conflito que eu carregava durante a graduação em dança. Quando comecei
o curso em 2014, acabei me distanciado de certas atividades. Atualmente, não tenho feito aulas de dança,
fora da universidade, tampouco participado de algum grupo ou companhia. Foi uma opção me afastar para
me dedicar à graduação. Durante um certo tempo, isto se constituiu como uma angústia em pensar que não
estaria ocupando um lugar como artista.

Foi no desenvolvimento das monitorias, em especial do Estágio Curricular que tudo começou a
ficar mais brando em relação à tal angústia de não me sentir artista. A disciplina proporcionava aos alunos
(e também a mim, obviamente) uma reflexão sobre a (desnecessária) dicotomia professor x artista. Marques
(2011) ajuda-me a voltar a me sentir artista. Comungo da sua ideia de que o professor pode “também atuar
como artista e o artista como professor numa mesma atividade” (p.67). Esta interface entre arte e educação
proporcionada pelas aulas da disciplina acabaram me levando a pensar sobre minha formação como pro-
fessor, como artista da dança, como artista-docente. Gostaria que alguém criasse um neologismo que desse
conta deste novo significado.

Quando converso novamente com Marques (2011) e me é dito por ela sobre “a possibilidade da sala
de aula transformar-se em espaço cênico” (p.121), tudo passa a ter um novo sentido. Sendo assim, passo a
pensar no caráter transdisciplinar que a própria dança já tem por si só, cheia de camadas que se sobrepõe de
maneira (mais ou menos) harmônica, em que podem habitar certamente a arte e a educação.

Ela descreve ainda outra possibilidade de atuação deste professor/artista no ambiente escolar. Tal-
vez um trabalho artístico desenvolvido na escola não seja eventualmente educativo, e sim, um trabalho
artístico-educativo. “O artista-docente passa a ser então uma fonte de conhecimento em/através da arte e
não somente uma ponte entre o aluno e o mundo da arte” (MARQUES, 2011, p.121).

A monitoria me fez perceber que ser um professor e antes de tudo ser pesquisador, especialmente no
ensino superior. Exige-se esforço, dedicação e acima de tudo muito estudo. Para se tornar pesquisador, um
docente “aprendiz de pesquisador” deve aprofundar seus conhecimentos sobre sua área de estudo. Ele deve
conhecer, então, o que tem sido produzido na área de interesse de duas pesquisas e, sobretudo, um pesqui-
sador deve ser criterioso para distinguir as pesquisas de fato relevante das “pseudopesquisas”, das “pesquisas
de mentirinha” e das “pesquisas de brincadeira” (SAVIANI, 2003, p; 58). Neste momento que pude também
perceber o estágio como uma oportunidade de pesquisa.

Eu pude constatar, entretanto, durante as atividades de monitoria, um grande processo de “buro-


cratização”. Consegui, todavia, dedicar bastante tempo a estes protocolos formais, uma vez que estas disci-
plinas exigem uma demanda grande de papéis: formulários, modelos de relatório parcial e final, memorial
de integralização, carta de apresentação de estagiário, plano de atividades, modelos de inventário, fichas de
acompanhamento e avaliação do supervisor. Um grande e exaustivo exercício de preencher e entregar docu-
mentos que comprime o espaço de estudo e pesquisa do monitor junto ao professor orientadore.

Toda universidade tem como obrigação pensar o processo de ensino-aprendizagem sempre em três
esferas: ensino, pesquisa e extensão. Durante a realização das monitorias, no semestre letivo 2017.1, fiquei
responsável em acompanhar a professora Gabriela Santana na concepção, elaboração e execução do evento
acadêmico Conversas de Estágio do curso de Licenciatura em Dança, realizado em junho de 2017. Anual-
mente o Departamento de Teoria da Artes e Expressão Artística da UFPE realiza este seminário permitindo
um espaço de partilha entre docentes, discentes e convidados numa tentativa de motivar os alunos para o

470
estágio, bem como utilizar os momentos dos estágios como uma oportunidade de aproximação entre o que
é feito, pensando e vivido no ensino superior daquilo que é feito, pensado e vivido na educação básica.

Uma experiência agradável e peculiar proporcionada pelas disciplinas de Estágio Curricular em


Ensino de Dança foi a possibilidade de visualizar os processos de ensino aprendizagem sob três pontos de
vista distintos. Eu pude cursar como aluno quatro disciplinas de estágio e ser monitor duas vezes. Todavia o
foi bastante interessante receber outros alunos do curso em minhas turmas na escola em que trabalho lecio-
nando aulas de dança para alunos de 6o a 9o ano do Ensino Fundamental em uma escola pública municipal
da Rede de Ensino de Igarassu-PE.

Eu pude receber quatro estagiários e ser supervisor de seus respectivos estágios, em um formato de
cooperação para o desenvolvimento das aulas. Muitas vezes nosso exercício docente (de pensar o planeja-
mento, desenvolvimento e resultados das aulas) é bastante solitário. A presença de outros alunos realizando
seus estágios de observação e regência permitiu um compartilhamento extremamente rico sobre todo o pro-
cesso de ensino-aprendizagem. Os alunos e a gestão os receberam muito bem e aparentemente houve uma
boa integração entre todos. Poder ter alguém com quem partilhar angústias, desenvolver estratégias de aula
e elaborar reflexões sobre a minha prática foram as maiores contribuições que os estágios supervisionados
me proporcionaram como professor supervisor, como monitor e como aluno.

4. Considerações Finais

Depois de finalizado o curso de graduação nesta Licenciatura, posso reiterar a contribuição para minha
formação docente que as monitorias proporcionaram. Como a própria PROACAD sugere, as atividades de mo-
nitoria devem “possibilitar o aprofundamento teórico e o desenvolvimento de habilidades de caráter pedagógico
do aluno” (EDITAL N° 01/2017 - PROACAD PROGRAMA INSTITUCIONAL DE MONITORIA 2017.1).

Após quatro anos na UFPE, sinto-me confortável em dizer que toda a experiência foi reveladora e
fascinante. A revelação vem no sentido de que nunca me identifiquei como professor de adultos. Tenho meu
maior tempo de docência ministrando aulas para crianças e adolescentes. Consigo perceber um embrião de
novas competências no meu fazer docente em relação e este novo tipo de alunado e os desafios maiores de
lidar com ele. O fascínio vem pelo próprio caráter híbrido das monitorias que me fizeram zelar pelo apren-
dizado dos meus “monitorados” como se eu mesmo como aluno estivesse aprendendo, em um exercício de
humildade, alteridade e cuidado.

5. Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes neces- pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez, 1999.
sários à prática educativa. 43ª. ed. São Paulo: Paz e Terra, p. 15-34.
2011. SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia: teorias da
LDB - Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação
LEI No. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. D.O. U. de 23 e política. 36ª ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez,
2003.
de dezembro de 1996.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO.
MARQUES, Isabel A. Ensino de dança hoje: textos e
EDITAL N° 01/2017 - PROACAD PROGRAMA INSTI-
contextos. 6a ed. São Paulo Cortez, 2011. TUCIONAL DE MONITORIA 2017.1. Disponível em:
PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: https://www.ufpe.br/proacad/images/apoio_academico/
identidades e saberes na docência. In: ______. Saberes monitoria/Edital_01_Monitoria_2017.1.pdf

471
A IMPORTÂNCIA DO ESTÁGIO
NO PROCESSO DE FORMAÇÃO
DO LICENCIANDO EM TEATRO:
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA.
Lara Pinheiro de Oliveira ( IFCE, CE, Brasil)
Catarina Viana da Silva ( IFCE, CE, Brasil)
Gislene dos Santos Furtado ( IFCE, CE, Brasil)

1 - A IMPORTANCIA DO ENSINO DE ARTES NAS ESCOLAS

Recentemente, a nova lei, de número 13.278/2016, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), de 1996, tornando o ensino de teatro, artes visuais e de dança, obrigatório no ensino básico
brasileiro. Até então, de acordo com a LDB, apenas a disciplina música era componente obrigatório, mas
não exclusivo do ensino de arte. As escolas públicas e privadas terão cinco anos para se adequar aos novos
padrões e implantar esses componentes curriculares no ensino infantil, fundamental e médio.

Em 2017, em meio aos debates promovidos na gestão do Governo Temer, a respeito das alterações
na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e da obrigatoriedade do ensino de arte no Brasil, em espe-
cial no Ensino Médio, é fundamental reconhecer a importância da arte, como disciplina escolar. Além de
contribuir para o desenvolvimento da criatividade do jovem, o ensino de artes possibilita o contato com as
diversas linguagens artísticas, ampliando a visão de mundo do aluno.

Segundo Barbosa (2016), a arte é responsável por estimular a inteligência e o raciocínio, além de pro-
mover a educação afetiva e emocional, comumente esquecidas no processo de aprendizagem das demais dis-
ciplinas. Ainda de acordo com a arte-educadora, o trabalho em equipe e a criatividade também são desenvol-
vidos por meio do ensino da arte, uma vez que grande parte da produção artística é realizada na coletividade.

Não é sempre, porém, que estes princípios são postos em prática nas aulas de arte das escolas bra-
sileiras. Tanto em escolas públicas, como em escolas privadas, ainda é possível encontrar o ensino da arte
visto como uma imposição burocrática e que deve ser obrigatoriamente incluída nos projetos escolares, sem
dar importância ao real propósito da arte-educação.

A partir da relação teoria e prática presente nas atividades do estágio, é finalidade do presente estu-
do, baseado na experiência vivida por suas autoras, averiguar as questões diretamente ligadas ao ensino da
arte, em especial do teatro, na escola-campo escolhida, buscando promover assim, uma reflexão a respeito
da compreensão do caráter transformador da arte enquanto ferramenta educacional, para estudantes, pro-
fessores e alunos/estagiários.

472
2 - A ESCOLA-CAMPO

Durante dez visitas (cinco destas de observação e cinco para ministrar aulas), ocorridas dentro do
período de dois meses, no segundo semestre de 2017, tivemos a oportunidade de conhecer um pouco da
realidade vivenciada na E.E.F.M. Estado do Paraná, especialmente, nas aulas de artes ali realizadas.

Situada na Rua Alberto Magno, nº 123, no bairro Jardim América, em uma região de fácil acesso,
com vias que disponibilizam transporte público na porta e nas proximidades, a escola oferece anualmente
cerca de 350 vagas nos níveis Fundamental II (somente para o 9º ano) e Médio, nos turnos manhã e tarde.

É importante registrar que desde o princípio, o atendimento dedicado pelos gestores da E.E.F.M. Estado
do Paraná às visitantes estagiárias, foi bastante amistoso, tendo, a Direção e a Coordenação Pedagógica da escola,
assumido a posição de cooperação durante todo o processo em que se desenvolveram as atividades de estágio.

O professor Ediberto Silva, único arte-educador regente da escola, formado em Licenciatura em


Música pela Universidade Estadual do Ceará - UECE, ficou responsável por nos orientar durante as quatro
regências que desenvolvemos junto à turma do 9º ano A.

2.1 – AS INSTALAÇÕES

A estrutura física de uma escola deve traduzir a vocação inquestionável da educação para a política
social, uma vez que a principal finalidade da educação está diretamente comprometida com a criação do
bem estar coletivo e não com a aquisição do conhecimento individual. Sobre a importância do ambiente
escolar para o sucesso do processo educacional, Herbert Read explica:

Nem é preciso mencionar que a escola deveria satisfazer as exigências científicas de sane-
amento, ventilação e higiene. Mas a estética também é uma ciência, e deveria ser natural
que a escola atendesse às leis simples que governam as boas proporções e as cores harmo-
niosas. A escola em sua estrutura e aparência, deveria ser um agente, ainda que incons-
ciente em sua aplicação, da educação estética (READ, 2001, p. 330).

A E.E.F.M. Estado do Paraná funciona em um prédio pequeno e antigo, majoritariamente térreo


(somente algumas poucas salas de aula ficam localizadas no primeiro andar). Os demais ambientes da escola
estão distribuídos em torno de um modesto jardim que se encontra na entrada, onde também está posicio-
nado um grande painel com o nome da escola, dando “boas-vindas” aos visitantes.

Pintado na cor verde e com decoração pouco atrativa aos olhos, apesar de bem cuidado, o edifício
precisaria de algumas adaptações para atender melhor às necessidades estruturais da escola. A sala dos
professores, por exemplo, é muito pequena, assim como a quadra esportiva, que também não é equipada
adequadamente, de maneira que, a cesta de basquete, a rede de vôlei e as tomadas de energia elétrica, na oca-
sião das visitas para realização das atividades de estágio, encontravam-se danificadas. A Biblioteca é grande,
mas mal iluminada e a escada que dá acesso as salas de aula do primeiro andar também foi, aparentemente,
construída fora dos padrões adequados, chegando a ser um pouco desconfortável e até perigosa.

Determinados ambientes como algumas salas de aula de turmas do Ensino Médio, a Sala dos Pro-
fessores, a Sala de Planejamento, o Laboratório de Informática, são climatizados. A escola também conta
com um Laboratório de Ciências, Central de Multimeios, Almoxarifado, Estacionamento, uma horta e um
pátio central coberto, onde foi exposta uma imagem de Nossa Senhora, além das Salas da Direção e da Co-
ordenação, Secretaria e Cozinha.

473
A ausência de um teatro, ou de um ambiente adequadamente destinado e equipado para os estudos
e apresentações das atividades artísticas dos estudantes também foi percebida durante as visitas das alunas
estagiárias. Nas ocasiões em que ocorrem estes eventos na escola, o pátio central coberto é utilizado de for-
ma improvisada como coxia, palco e plateia ao mesmo tempo.

Ainda sobre a influência da estrutura física da escola no processo de aprendizagem dos estudantes,
Herbert Read sugere um modelo “prático, funcional e bonito”, essencial para o meio ambiente educativo
idealizado em seus estudos. De acordo com Read, estes são os elementos estruturais ideais para uma escola:

A. Alameda: um grande vestíbulo em que todo o pessoal da escola – professores, alunos de


todas as idades e de ambos os sexos – pode se encontrar e sociabilizar enquanto caminha
na chegada e antes da saída, correspondendo ao Peripatos do Liceu de Aristóteles.
B. O Teatro, com palco e completo equipamento de som: com acentos para acomodar toda
a escola, mais os pais e outros membros da comunidade regional.
C. A Sala de Retiro – um local em que os alunos podem se isolar para ler ou meditar sem
serem perturbados.
D. As várias oficinas e laboratórios.
E. Salas de trabalho (salas de aula para crianças e salas de conferência).
F. Salas de recreação e ginásios.
G. Salas de refeição (cantina, refeitório e etc.).
H. Biblioteca.
I. Serviços (vestiários, cozinha, banheiros, ambulatório).
J. Comodidades externas (playgrounds, jardins, quadras).
K. Serviços externos e experimentos (horta, estufas e criação de animais)” (READ, 2001,
p. 332 e 333).

Abaixo, Read apresenta todos estes elementos estruturais distribuídos na planta da Impington
Village College, uma escola secundária, localizada em Cambridgeshire, na Inglaterra.

FIGURA 1 - PLANTA DO IMPINGTON VILLAGE COLLEGE

Fonte: READ, 2001.

474
No modelo apontado por Read, é possível perceber elementos estruturais que, não apenas facili-
tam a obtenção do conhecimento, mas também possibilitam o desenvolvimento da educação estética dos
alunos, especialmente por meio da arte-educação. Não é necessário informar que esta não é uma realidade
possível para a maioria dos estudantes brasileiros. O modelo educacional que vigora no Brasil ainda separa
as emoções e as experiências da razão e do pensamento, deixando de contribuir assim, com a formação in-
tegral dos nossos estudantes, ao desconsiderar a educação do sensível. Por isso, a importância de, cada vez
mais, se repensar e reinventar o ensino da arte como ferramenta para o desenvolvimento da consciência e
da sensibilidade humana.

3 - AS VISITAS DE OBSERVAÇÃO

Considerando a importância do estágio enquanto fonte de pesquisa e investigação teórico-prá-


tica, e podendo este se dar, de acordo com Pimenta e Lima (2005/2006, p.7), “a partir da observação,
imitação, reprodução e, às vezes, da re-elaboração dos modelos existentes na prática”, durante as cinco
primeiras visitas de averiguação na E.E.F.M. Estado do Paraná, foram observadas aulas de artes em tur-
mas do 9º ano (Ensino Fundamental II) e do 1º ano (Ensino Médio), ministradas pelo professor regente
da escola, Ediberto Silva.

O objetivo principal das estagiárias, por meio das referidas visitas, foi conhecer a rotina da escola,
em especial, das aulas de artes ali realizadas, antes do momento de ministrar as próprias regências. Dessa
forma, sentadas em meio aos alunos nas carteiras escolares posicionadas ao fundo das salas e evitando inter-
ferir na dinâmica das aulas, foi possível observar e perceber claramente aspectos metodológicos fortemente
ligados às tendências pedagógicas tradicional e tecnicista.

Em salas de aula comuns, com alunos sentados em carteiras enfileiradas, o conteúdo do livro
didático, quase sempre distante da realidade vivida por aqueles estudantes, era repassado de forma me-
cânica, tornando-se verdades absolutas, nunca questionadas por seus “receptores”, não sendo necessário,
portanto, nenhuma mediação feita pelo professor, que tranquilamente assumia um posicionamento neu-
tro e imparcial.

Durante o período de observação não foi ministrada nenhuma “aula prática” de artes, que, de acor-
do com o professor regente da escola, constam em menor número no currículo da disciplina. Sobre o exem-
plo relatado e o modo de aprender a profissão de professor, Pimenta e Lima consideram:

Muitas vezes nossos alunos aprendem conosco, observando-nos, imitando, mas também
elaborando seu próprio modo de ser a partir da análise crítica do nosso modo de ser.
Nesse processo escolhem, separam aquilo que consideram adequado, acrescentam novos
modos, adaptando-se aos contextos nos quais se encontram. Para isso, lançam mão de
suas experiências e dos saberes que adquiriram (PIMENTA; LIMA, 2005/2006, p. 7).

É necessário, portanto, que, além de observar e imitar, o estagiário seja capaz de refletir a respeito
das práticas observadas no cotidiano, evitando a acomodação, assumindo uma postura crítica e valori-
zando a própria formação intelectual, buscando promover uma abertura para estratégias que possibilitem
a ampliação e a análise dos contextos nos quais os estágios são realizados. Ao estagiário é permitido, dessa
forma, desenvolver a habilidade de pesquisador, podendo elaborar projetos que promovam a compreen-
são e a problematização das situações vivenciadas e observadas, dialogando e confrontando suas desco-
bertas com as experiências dos profissionais, levando o professor regente a refletir sobre a sua prática e

475
estabelecendo, assim, uma troca de experiências transformadora. Sabe-se, porém, que esta ainda é uma
utopia a ser conquistada, uma vez que envolve mudanças em relações tradicionalmente estabelecidas em
contextos institucionalizados.

4 - A TURMA E AS AULAS DE ARTES

As quatro aulas ministradas sob a regência das estagiárias foram realizadas na sala do 9º ano A,
sempre às terças-feiras pela manhã. A turma, formada por 31 alunos, com idades entre 13 e 15 anos (sendo
a sua maioria meninas), em geral, foi receptiva aos encontros.

A ideia inicial sempre foi desenvolver um trabalho de caráter gradual junto à turma, por meio do
qual, os estudantes pudessem, a cada etapa, e a cada nova aula, conversar sobre arte, apreciar arte, vivenciar
a arte e, ao final do ciclo, produzirem suas próprias manifestações artísticas.

Assim sendo, para a primeira aula, foi idealizada, basicamente, uma espécie de roda de conversa,
na qual os estudantes poderiam emitir as suas próprias impressões sobre o que é, e qual seria, na opinião de
cada um deles e baseado em suas próprias vivências, a função da arte.

A proposta, a princípio, não foi bem recebida pelos alunos, que em sua maioria, se recusaram a par-
ticipar da discussão. A julgar pela insegurança, a desconfiança e pela indiferença que alguns demonstraram,
e também pelas aulas observadas anteriormente, as estagiárias chegaram à conclusão de que aquela não era
uma metodologia adotada com frequência naquela turma. Percebeu-se, que os alunos do 9º ano A não tinham
o hábito de expressar as suas opiniões durante as aulas de artes. Eles, aparentemente não costumavam ser ou-
vidos e não eram estimulados a se manifestarem. Alguns pareciam ter aceitado e se moldado a esta condição.

Diante da presente situação, as alunas estagiárias perceberam a necessidade de utilizar uma nova
metodologia como ponto de partida para introduzir um conteúdo e criar uma situação desafio, que propor-
cionasse aos alunos o levantamento de hipóteses e a capacidade de reflexão. O desafio era construir uma
nova relação com a turma, na qual, os estudantes pudessem se sentir confiantes e estimados, parte essencial
no processo de troca de experiências, evitando, desta forma, a repetição dos métodos anteriormente estabe-
lecidos, pois de acordo João Francisco Duarte Jr:

A educação, que deveria significar o auxílio aos indivíduos para que pensem sobre a vida
que levam, que deveria permitir uma visão do universo cultural em que estão inseridos,
se desvirtua nas escolas. Impõe-se uma visão de mundo e transmite-se conhecimentos
desvinculados das experiências de vida. Em suma: preparam-se pessoas para executar um
trabalho parcializado e mecânico, no contexto social; pessoas que se preocupem apenas
com o seu trabalho (com o seu lucro), sem perceber como ele se liga a todos os outros no
interior da sociedade. No fundo isto se constitui mais num adestramento do que numa
educação (DUARTE JR., 1991, p. 34).

A partir de então, as aulas seguintes transcorreram com maior fluidez, de modo que os alunos
tornaram-se cada vez menos resistentes a interação, a exemplo da segunda aula, em que todos participaram
voluntariamente da experiência proposta. A atividade, baseada em uma performace da artista Marina Abra-
movic não exigia que os alunos se expressassem verbalmente, possibilitando apenas a vivência das sensações
por meio do olhar, o olhar para o outro. Seduzidos pela oportunidade de expressar seus sentimentos sem
nada dizer, os estudantes se viram envolvidos em uma grande atmosfera que lhes permitiu apreciar e viven-
ciar uma manifestação artística, por meio da imersão em seus próprios sentimentos.

476
FIGURA 2 - ESTUDANTES DURANTE A SEGUNDA AULA MINISTRADA PELAS ALUNAS/ESTAGIÁRIAS.

Fonte: Acervo da pesquisa (2017)

As duas aulas finais aconteceram com a participação intensa dos alunos, que demonstraram uma
grande satisfação em sair da sala de aula convencional e realizarem “aulas práticas” na quadra da escola.
Na aula final, tivemos a apresentação de atividades elaboradas pelos próprios estudantes, baseadas em suas
vivências e no que foi trabalhado durante os encontros. As estagiárias, que acreditando desde o princípio
no potencial humano e criativo da turma, puderam ratificar, especialmente por meio daquela experiência,
o poder libertador da arte enquanto ferramenta na construção de um indivíduo inteiro, sensível e social.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Projeto Político Pedagógico da E.E.F.M. Estado do Paraná foi analisado pelas estagiarias durante
umas das visitas realizadas. Percebeu-se, por meio do referido documento, a preocupação da instituição em
considerar a arte como ferramenta educacional essencial. Entendemos, porém, que muitos são os obstáculos
no caminho para a construção de uma sociedade verdadeiramente comprometida com a formação integral
de seus indivíduos.

Seja nas questões concernentes ao currículo, que não exige a presença das aulas de artes em todas
as séries do ensino básico (no caso da escola-campo em questão, apenas no 9º e no 1º ano), seja no confuso
processo de formação dos arte-educadores, que, de acordo com Luciane Goldberg, muitas vezes “acabam na
sala de aula por falta de opção, ou por não conseguirem sustento na carreira artística” (GOLDBERG, 2014,
p. 29), ou seja ainda por limitações outras impostas pela engrenagem que corrói o dia a dia das instituições
de ensino, é mais que necessário seguir a diante buscando identificar, compreender e interferir quando ne-
cessário nos mecanismos que envolvem o ensino da arte.

A experiência vivida na E.E.F.M. Estado do Paraná, portanto, fez-se fundamental no processo


de aprendizado e crescimento profissional e pessoal das autoras do presente estudo, que enquanto li-
cenciandas, vocacionadas para a sala de aula, acreditam firmemente no caráter transformador e liber-
tador da educação.

477
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Ana Mae. A importância do ensino das artes Denise; PRIMO, Rosa (org.). Invenções do ensino da
na escola: depoimento. [16 de maio, 2016]. Época on-li- arte. 1.ed. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2014.
ne. Entrevista concedida a Beatriz Marrone. Disponível
PIMENTA, Selma Garrido; LIMA Maria Socorro Lu-
em: <http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2016/05/im-
cena. Estágio e docência: diferentes concepções. Revis-
portancia-do-ensino-das-artes-na-escola.html >. Acesso
ta Poíesis Pedagógica, Goiás, v. 3, n. 3 e 4, p. 303-364,
em: 09 dez. 2017.
2005/2006.
DUARTE JR., João Francisco. Por que arte-educação?6.
READ, Herbert. A educação pela arte. Tradução de Valter
ed. Campinas, SP: Papirus, 1991.
Lellis Siqueira. 1.ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2001.
GOLDBERG, Luciane Germano. A semente resiliente:
arte, docência, experiência e autoformação. In: PARRA,

478
A FICHA DE OBSERVAÇÃO
COMO FERRAMENTA PEDAGÓGICA
nos estágios em artes visuais
Carolina de Santi Estácio - UFRN
Arlete dos Santos Petry - UFRN

INTRODUÇÃO

1.1 Monitoria Arte/Educação: Aprimorando a Formação Docente

O Curso de Licenciatura em Artes Visuais apresenta certa escassez nas oportunidades de experi-
ência docente, para além das disciplinas de educação e estágios obrigatórios. No período de março de 2015
a julho de 2016, alguns alunos tiveram a oportunidade de fazer parte de Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação à Docência (PIBID). Porém, devido a intervenção da CAPES – com o intuito de retornar à
proposta do Edital de 2013 – o PIBID Artes Visuais perdeu sua principal porta para uma experiência mais
aprofundada e reflexiva com a ação docente.

Além disso, existe falta de interesse dos alunos na licenciatura, não apenas na área de Artes, sendo esta
uma realidade de muitos cursos de licenciatura e que reflete cada vez mais a desvalorização do profissional de
educação – professor – no Brasil. Desta forma, são poucos os discentes que desejam profissionalizar-se na do-
cência, e infelizmente, raros enxergam para além da educação formal em escolas de ensino básico, ignorando a
existência de diversas oportunidades que o curso oferece nas mais diferentes modalidades de ensino.

Frente a esta realidade, o Projeto “Monitoria em Arte/Educação: Aprimorando a Formação Docen-


te”, tem como objetivo principal trabalhar com dois aspectos do Curso de Licenciatura em Artes Visuais: 1) a
formação docente dos alunos, buscando soluções criativas para tornar os estágios curriculares obrigatórios e
disciplinas de licenciatura mais reflexivos, potencializando os resultados da experiência de ensino na e para
a área de artes visuais, sendo essa uma forma de preparar os licenciandos para a atuação na docência; e 2) a
melhoria do curso de graduação, incentivando assim os alunos à prática da docência.

O Projeto contempla os componentes curriculares: História e Metodologia do Ensino em Artes


Visuais e os Estágios Curriculares Obrigatórios I, II e III. Contribuindo assim para a formação dos alunos,
o projeto busca disponibilizar materiais didáticos para a melhoria do interesse na licenciatura e desempe-
nho acadêmico, propor novas práticas e ferramentas pedagógicas, pesquisar novas referências e temas para
serem abordados ao longo das disciplinas, intensificar a articulação interdisciplinar entre todos os compo-
nentes curriculares do curso, vivenciar uma maior diversidade de realidades de instituições de ensino e, por
fim, organizar relatos das visitas através do Diário de Campo, filmagens e fotografias.

479
Dessa forma, a proposta teve como metodologia: 1) a elaboração de um plano de trabalho, em con-
junto com os monitores e a professora; 2) aprofundamento na literatura sobre o estágio supervisionado; 3)
desenvolvimento de materiais didáticos para o auxílio dos discentes nas disciplinas de estágios e nas insti-
tuições de ensino; 4) organização das experiências por meio de filmagens, fotos e diários de campo.

Este artigo abordará uma das soluções encontradas para a melhoria do Estágio Curricular Obriga-
tório I e como ao longo do Projeto de Monitoria Arte/Educação foram desenvolvidos materiais didáticos
que serviram de apoio para os discentes, além de novas práticas pedagógicas, tendo como objetivo facilitar o
aprendizado dos alunos e ter o máximo de aproveitamento do primeiro estágio curricular em Artes Visuais.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 O Estágio Curricular Obrigatório I

O Estágio Curricular Obrigatório I configura-se em três unidades: A 1ª Unidade, “Diagnóstico”, deve


abordar como foi para o aluno a busca pelo local de estágio, assim como suas motivações. A primeira unidade
exige do aluno uma descrição da escola, relatando suas impressões da instituição, sua realidade e características,
através de registros escritos e fotos. Esse relatório deve conter análise das entrevistas realizadas com o professor
de Artes e o gestor da instituição; do Plano Político Pedagógico da Escola (PPP); cronograma de atividades
previstas e, por fim, as considerações finais, apontando as dificuldades e facilidades do aluno até o momento.

Na 2ª Unidade, “Observação”, o aluno fará o exercício de observação da sala de aula, trazendo assim
no seu relatório, registros organizados das aulas assistidas até o momento. E por último, na 3ª Unidade, “In-
tervenção e Reflexão do Estágio”, na qual o aluno discutirá sobre o planejamento do professor, sua proposta
elaborada para intervenção, assim como a base metodológica utilizada e os resultados. Na finalização desse
relatório o aluno apresentará uma reflexão do estágio como um todo, contemplando as três unidades.

Segundo Carvalho (2012), “[...] reflexões terão maior significado se forem feitas coletivamente nas
aulas da faculdade, com a ajuda de referenciais teóricos consistentes” (CARVALHO, 2012, p.13). Assim en-
tendemos que a configuração do Estágio Curricular Obrigatório I permite que seja possível trabalhar não
apenas a ação de lecionar artes na instituição, mas todo o trabalho desenvolvido entre a escola, equipe de
professores, pais e alunos.

Durante a 2ª unidade da disciplina – a de observação – surgiu a necessidade de elaboração de um


instrumento que guiasse melhor esse exercício. Após a leitura e estudo de três capítulos do livro: “Os está-
gios nos cursos de licenciatura” de Anna Maria Pessoa, que versa sobre observação, identificamos através
dos relatos dos alunos em sala de aula, que o exercício de observação nas instituições de ensino durante o
estágio não estava proporcionando aos alunos subsídios para a identificação de pontos essenciais no proces-
so ensino-aprendizagem, observando a turma de um modo geral, sem muitos detalhes e questionamentos.
Assim, a ideia da ficha de observação surgiu, com o intuito de facilitar o exercício proposto para o estágio
I, ou seja, organizar os pontos essenciais a serem levados em consideração, enriquecendo o aprendizado e
tornando-o mais reflexivo.

2.2 A Ficha de Observação

A Ficha de Observação foi organizada seguindo quatro principais tópicos de observação. Acredi-
tamos ser de extrema importância discorrer de forma mais detalhada cada tópico, para que seja possível

480
conhecer e compreender todos os critérios que os alunos devem considerar no seu exercício de observação.
O licenciando em Artes Visuais:

[...] irá observar a escola não como um aluno que deve aprender um determinado conte-
údo, mas como um profissional interessado em detectar as condições de ensino e de não
ensino; analisar as interações construtivas e destrutivas entre professor e alunos; ver como
o papel do professor interfere no clima da aula e discutir qual a visão de ciência que o
conteúdo ensinado transmite aos alunos. (CARVALHO, 2012, p.11-12).

A autora organiza os critérios de observação que devem ser avaliados e discutidos no exercício do
estágio em quatro grandes tópicos: “As Interações Verbais Professor Aluno”, “Conteúdo Ensinado”, “Habili-
dades de Ensino do Professor” e “Processo de Avaliação do Professor”.

No primeiro tópico de Observação, “As Interações Verbais Professor Aluno”, o aluno deve con-
centrar sua observação nas interações ocorridas em sala de aula, através de perguntas, respostas e co-
mentários entre professor e aluno. Segundo Carvalho (2012) existem cinco tipos de possíveis perguntas
realizadas pelo docente, são elas: perguntas retóricas, sem sentido, de complementariedade, com somente
duas possibilidades de respostas e perguntas que levam o aluno a raciocinar. É importante também levar
em consideração como o professor responde ao aluno – a Tríade IRF: Professor Inicia, Aluno Responde e
professor dá o Feedback – e quais sãos as causas que provocam os silêncios e as confusões em sala de aula.
Além desses critérios o aluno também poderá observar essas interações segundo a análise de Flanders
(1970, apud CARVALHO, 2012, p. 17).

No segundo tópico é discutido o “Conteúdo Ensinado”, no qual o estagiário deve conhecer os


conceitos cunhados por Zabala (1997) sobre os seguintes conteúdos:264 conceitual, procedimental e atitu-
dinal, a fim de auxiliar os alunos a identificarem nas aulas observadas como tais conteúdos são contem-
plados e se todos são desenvolvidos pelo professor. Para esse tópico propomos a observação de cada tipo
de conteúdo, considerando a abordagem triangular proposta por Barbosa (2010). Para tanto fazem-se
necessárias aulas planejadas que contemplem: 1) Contextualização/História da arte; 2) Apreciação e 3)
Fazer em Artes Visuais, além de observar o grau de liberdade que o professor oferece para os seus alunos,
nas aulas teóricas e experimentais.

Por fim, o discente analisará o material didático utilizado pelo professor, buscando pontos aponta-
dos nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (1997) e Ensino Médio (2000) para o
nível de ensino observado e os relacionar com o que está previsto no Projeto Político Pedagógico de cada
instituição.

O terceiro tópico traz as “Habilidades de Ensino do Professor”, no qual o aluno deve analisar se o
docente sabe ouvir seus alunos; considera a importância dos erros dos mesmos; utiliza as ideias trazidas
em sala de aula; transforma a linguagem ao longo da aula e introduz os alunos nos diferentes modos de
comunicação.

Por fim, no quarto tópico o estagiário analisará o “Processo de Avaliação do professor”, ou seja, de
que forma ele realiza as avaliações durante o semestre, como ele fala sobre essa prática e como os alunos
lidam com ela.

264. Conteúdo Conceitual trabalha os tema escolhidos com uma abordagem teórica; O Conteúdo Procedimental será o modo como esses conteú-
dos serão ensinados, quais ferramentas pedagógicas o professor irá utilizar; E o Conteúdo Atitudinal discutirá os valores do conteúdos abordados.

481
2.3 O Processo de Realização da Ficha

A ficha foi desenvolvida com base no livro “Os Estágios nos Cursos de Licenciatura” de Anna Maria
Pessoa de Carvalho (2012), mais especificamente nos capítulos de três a seis. Inicialmente foi realizado um
fichamento desses capítulos, organizando as informações essenciais, que posteriormente foram dividas em
quatro grandes tópicos: 1) As Interações Verbais Professor-Aluno; 2) O Conteúdo Ensinado; 3) Habilidades
de Ensino do Professor; 4) O Processo de Avaliação. Em seguida, os critérios de observação foram escolhi-
dos e organizados, além de questionamentos e apontamentos.

A primeira versão da ficha foi organizada na vertical, dividida nos quatro tópicos citados anteriormente,
e com os seus respectivos critérios de observação. Possuía três colunas: tipos de observação, sugestão e comentá-
rios – este último reservado para anotações feitas pelos alunos durante o estágio. Ao final da ficha, foi reservado
um espaço que continha alguns conceitos e pontos importantes descritos pela autora do livro, resolvendo dúvi-
das que poderiam surgir durante a observação. Com essa configuração a ficha possuía quatro páginas.

Fig. 1 Imagem da Primeira Página da Ficha de Observação

Fonte: as autoras.

482
Fig.2 Imagem da Última Página da Ficha de Observação

Fonte: as autoras.

Após a apresentação da primeira versão da ficha de observação na aula de Estágio I e realização de


testagem no estágio da autora discente, foi possível concluir que a melhor forma de organizar a ficha seria na
horizontal, possibilitando assim um maior espaço para anotações dos alunos, melhorando também a leitura
e manuseio do instrumento, além da possibilidade de inserir os conceitos e observações dos discentes ao
longo da ficha, não mais no final. Dessa forma, foi possível chegar à versão final da ficha que ficou configura-
da da seguinte maneira: na horizontal, dividida em quatro tópicos e três colunas, com caixas de observações
e conceitos, totalizando nove páginas.

483
Fig 3. Imagem da Primeira Página da Ficha de Observação, Versão Final

Fonte: as autoras.

Fig 4. Imagem da Segunda Página da Ficha de Observação, Versão Final

Fonte: as autoras.

Para além da ficha, notamos a utilização autônoma dos alunos do Diário de Campo. Muitos rela-
taram preferir utilizar a ficha como um guia durante as aulas, fazer as anotações no diário e, em casa, reler
suas anotações e organizá-las na ficha. Informaram que essa sistematização do trabalho facilitaria os comen-
tários a serem feitos no relatório do final da unidade. Notamos, também, que alguns alunos começaram a
usar uma espécie de sistema de legendas para classificar e apontar determinadas características do professor,
como pode-se observar na figura 5. Analisando essas iniciativas dos discentes entendemos que a ficha é uma

484
ferramenta que complementa e guia o aluno durante o estágio na instituição, mas não anula a utilização de
outras ferramentas nesse exercício.

Fig 5 Imagem da Utilização da Terceira Página da Ficha de Observação por Aluna

Fonte: discente.

3. CONCLUSÃO

3.1 Facilidades e Dificuldades

O processo de realização da ficha foi facilitado com as discussões e interações em sala de aula, antes
e durante esse processo. A turma 2017.1 do componente curricular Estágio Curricular Obrigatório I do
Curso de Licenciatura em Artes Visuais da UFRN colaborou testando a ficha em seus respectivos estágios,
opinando e indicando possíveis melhorias para essa ferramenta, além de mostrar de forma prática que o uso
da ficha com o diário de campo a torna mais eficiente no estágio.

A primeira dificuldade encontrada na realização da ficha de observação foi no processo de seleção dos
critérios de observação, especificamente na definição de quais eram os apontamentos, visto que a autora cita
um grande número de questionamentos e conceitos, não tendo sido fácil organizar de forma sintética todas
essas informações. Além disso, encontrar um modelo didático e eficiente para a ficha, constituiu uma tarefa
complexa, mas após tentativas e acertos, encontramos uma forma dinâmica e coerente com a proposta.

Para além da realização da ferramenta pedagógica, observamos no estágio alguma dificuldade dos alu-
nos em interagir mais colaborativamente com os professores de artes nas escolas, sejam elas públicas ou privadas.

Observamos nos docentes das instituições resistência em atualizar e/ou modificar sua atuação em
sala de aula, o que foi motivo de reflexão durante as aulas de Estágio na Universidade.

Com essas ponderações em mente o grupo seguirá para o Estágio Curricular Obrigatório II, que
tem como proposta o aprofundamento da ação docente dos estagiários, de modo a efetivamente participa-
rem do planejamento das aulas de artes visuais e exercer a docência parcial de aulas.

Dito isso, finalizamos dizendo que acreditamos que o projeto de Monitoria em Arte/Educação cons-
titui espaço não só para aprimorar o desenvolvimento dos alunos no Curso de Licenciatura em Artes Visu-
ais, mas uma oportunidade de desenvolver ações que proporcionem melhorias a longo prazo, fora e dentro
da universidade, nas instituições de ensino público, privado, de ensino formal ou não-formal.

485
3.2 Resultados

Consideramos a ficha desenvolvida uma ferramenta pedagógica eficiente no exercício da observa-


ção nos estágios curriculares em Artes Visuais, pois foi possível notar maior aproveitamento dos alunos na
disciplina, que se fez notar nos relatórios e nos cadernos de campo dos alunos. Além disso, os relatos dos
licenciandos durante a disciplina indicam que a ficha facilitou também a realização do relatório II – o de
observação – servindo assim como um roteiro.

Sendo assim, vislumbramos no projeto de Monitoria em Arte/Educação: Aprimorando a Formação


Docente, contribuição significativa na formação dos alunos de Licenciatura em Artes Visuais, contribuindo
nas atividades realizadas nos estágios e disciplinas de educação, e para além disso, na ação docente dentro
e fora da universidade.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira CARVALHO, Anna Maria Pessoa de. Os estágios nos cur-
da. Abordagem triangular no ensino das artes e culturas sos de licenciatura. Cengage Learning. 2012.
visuais. São Paulo: Cortez, 2010.
ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar.
Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul Ltda., 1998.

486
DIÁRIO DE AULA COMO REGISTRO
DO PERCURSO CARTOGRÁFICO
DAS MEMÓRIAS DE UMA
PROFESSORA/PESQUISADORA
Marília Martha França Sousa – UFPB/UFPE
Profª. Dra. Maria das Vitórias Negreiros do Amaral (Orientadora) – UFPB/UFPE

Diálogos entre ensino das artes visuais e patrimônio cultural

O ensino das artes visuais na contemporaneidade dialoga com diversos campos do conheci-
mento, desde a antropologia, psicologia, história, medicina até a física quântica. Em minha pesquisa
de mestrado procuro promover um diálogo interdisciplinar entre ensino das artes visuais e patrimônio
cultural. Patrimônio cultural entendido como um conjunto de manifestações de natureza material,
imaterial e natural265. Os bens de natureza material ou tangível, são aqueles que se referem aos objetos
concretos ou coisas em sua materialidade física, de uma forma mais simples poderíamos dizer que são
os objetos palpáveis, como por exemplo (objetos artísticos, monumentos, núcleos urbanos, acervos
museológicos e documentais). Já os bens de natureza imaterial ou intangível, dizem respeito ao domí-
nio das técnicas de fabrico, aos saberes, aos modos de fazer e celebrações coletivas como (festas, ritos,
músicas, expressões lúdicas, entre outros). E na última categoria, encontram-se os bens referentes ao
meio ambiente e aos elementos da natureza, aqui estão inseridos (monumentos naturais com valor uni-
versal do ponto de vista da ciência, conservação e beleza natural). A investigação que ainda encontra-se
em andamento caracteriza-se como pesquisa-ação, onde desenvolvo proposições metodológicas para
ensinar artes visuais em consonância com o campo do patrimônio cultural brasileiro, com foco para o
patrimônio azulejar luso-brasileiro presente na cidade de São Luís, no Maranhão. Sendo essa, a cidade
a qual pertenço e o local de onde falo. A pesquisa ocorre numa escola pública, da rede municipal de
ensino da capital maranhense, e o público alvo são estudantes de duas turmas de nível fundamental
maior – turmas de 7º ano, que são os interlocutores dessa pesquisa. Venho trabalhando com as turmas
um tema de natureza voltada para o patrimônio material local, neste caso, o azulejo luso-brasileiro

265. De acordo com a classificação proposta pelo professor e consultor francês da Organização das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura
(UNESCO) Hugues de Varine Boham, o patrimônio cultural encontra-se dividido em três grandes categorias: patrimônio material ou tangível, ima-
terial ou intangível e natural. Embora em minha investigação, esteja me referindo aos bens patrimoniais consagrados (aqueles institucionalizados
e reconhecidos mediante legislação e mecanismos de proteção específicos) não desconsidero a importância dos chamados bens não consagrados
(aqueles que não têm registro via legislação nem são institucionalizados, mas possuem valor histórico e cultural para determinada comunidade).

487
presente na cidade de São Luís. Esse elemento arquitetônico e artefato artístico é um ícone que confere
identidade cultural aos habitantes da ilha de São Luís. Os azulejos de origem luso-brasileira podem
ser encontrados, em sua maioria, no Centro Histórico da cidade, revestindo o interior e a fachada dos
imóveis de arquitetura civil dos séculos 18 e 19. Dois aspectos justificam a necessidade da investigação:
primeiro, boa parte deste acervo encontra-se atualmente em precário estado de conservação; segundo,
os azulejos são um tema pouco explorado dentro das salas de aula. Em virtude destes dois motivos
apontados precisamos cada vez mais promover ações educativas que possam levar nossos aprendizes
a conhecer o valor histórico e artístico dos azulejos luso-brasileiros. Acredito, assim como a pesqui-
sadora Ana Mae Barbosa (1998), que a Educação poderá ser o caminho mais fértil para estimular a
consciência cultural dos indivíduos, tomando como ponto de partida o reconhecimento, apreciação e
valorização da cultura local. A disciplina de artes visuais pode dialogar com temáticas voltadas para o
patrimonial cultural de forma interdisciplinar. Interdisciplinaridade, entendida como um processo que
visa “[...] a ruptura entre as fronteiras disciplinares”, onde um dos objetivos principais é o diálogo, ou
“[...] invasão de um problema de uma disciplina por outra, de circulação de conceitos, de formação de
disciplinas híbridas” (MORIN, 2003, p.107). Nesse sentido, a interdisciplinaridade constitui-se como
processo dinâmico em que os saberes são aglutinados de forma mútua e colaborativa, num movimento
de troca. Uma infinidade de possibilidades podem ser desenvolvidas em sala de aula tendo como ob-
jeto de investigação o patrimônio cultural local, como por exemplo, a leitura de imagens de desenhos
e pinturas encontradas em cavernas, grutas ou igrejas, o estudo dos estilos arquitetônicos a partir de
visitação a Centros Históricos. Para a pesquisa que venho realizando sobre os azulejos luso-brasileiros
existentes em São Luís, e como esses, podem ser abordados conjuntamente à disciplina de artes visuais,
procurei organizar a ação educativa desenvolvida na escola em quatro etapas. A organização prévia
de todas as etapas foram realizadas a partir de esboços, anotações, rascunhos e esquemas visuais que
foram registrados no diário de aula, conforme veremos mais adiante. Nesse sentido, esse instrumen-
to metodológico vem ajudando bastante a organizar minhas ideias e ações que venho colocando em
prática. Na primeira etapa da pesquisa-ação, solicitei aos interlocutores da pesquisa que os mesmos
produzissem desenhos com base em dois temas, são eles: patrimônio cultural e azulejos. Essa atividade,
desenvolvida na primeira etapa, teve como objetivo diagnosticar quais os conhecimentos prévios que
os interlocutores possuíam acerca destas temáticas. Alguns desenhos produzidos pelos adolescentes de
ambas as turmas demonstraram clara referência ao patrimônio cultural local, dando ênfase aos azulejos
luso-brasileiros existentes na cidade de São Luís. Já outros desenhos, foram realizados tomando como
referência objetos patrimoniais de outros contextos, que não o local. Dos desenhos produzidos pelos
interlocutores de ambas as turmas, a imagem mais frequente foi inspirada nos azulejos luso-brasileiros.
Desenhos que ora apresentavam apenas padrões geométricos simples e desenhos que ora reproduziam
motivos florais, sendo este segundo tipo, um padrão muito recorrente nos azulejos existentes em São
Luís. Durante a conversa com as turmas, que antecedeu a produção dos desenhos, pude perceber na
fala de alguns estudantes, que poucos conheciam com profundidade sobre a história e a origem deste
artefato, tampouco sabiam a respeito da nossa influência para a cultura lusitana, especialmente no que
tange ao hábito de revestir as fachadas das casas como um costume particular nosso, adquirido depois
de um tempo pelos portugueses. Contudo, a produção de imagens realizada pelos participantes da
pesquisa nos leva a crê, que a maioria destes adolescentes tem em seu repertório imagético como refe-
rência de objeto patrimonial, os azulejos presentes na arquitetura de São Luís. Cabe pontuar, que essa é
uma constatação preliminar, os desenhos produzidos nesta primeira etapa ainda serão compreendidos
com maior profundidade à luz da Teoria do Imaginário.

488
Fig.1 – Desenhos dos interlocutores da pesquisa sobre os temas: patrimônio e azulejos

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Todo pesquisador que está atuando ativamente em campo de pesquisa, seja no contexto escolar, seja
inserido em outro contexto, necessita estar munido de instrumentos que possam auxiliá-lo a coletar dados
importantes para sua investigação. Dentro dessa perspectiva podemos citar o diário como um recurso a ser
utilizado tanto para coletar dados, como forma de registro de ações e reflexões pessoais e profissionais do
pesquisador. No campo das artes visuais, este instrumento poderá ser também uma forma de expressão ar-
tística. Nesse sentido, o diário é “um instrumento utilizado como recurso de reflexão sobre a própria prática
profissional (docência) e, portanto, uma forma de documentar e instrumentalizar sobre a atividade pedagó-
gica que exercemos” (OLIVEIRA, 2011, p.996). A escrita em diários exerce no professor/pesquisador uma
dupla faceta, revela para nós a maneira particular de atuação profissional de cada um e nos leva á aprender
um pouco mais sobre nós mesmos.

Escrever sobre o que estamos fazendo como profissional (em aula ou em outros con-
textos) é um procedimento excelente para nos conscientizarmos de nossos padrões de
trabalho. É uma forma de “distanciamento” reflexivo que nos permite ver em perspec-
tiva nosso modo particular de atuar. É, além disso, uma forma de aprender [...]. Pelas
anotações que vamos recolhendo no diário, acumulamos informação sobre a dupla di-
mensão da prática profissional: os fatos de que vamos participando e a evolução que tais
fatos e nossa atuação sofreram ao longo do tempo. Dessa maneira, revisando o diário
podemos obter essa dupla dimensão, sincrônica e diacrônica, de nosso estilo de ensino
(ZABALZA, 2004, p.10).

489
Um diário poderá ter inúmeras funções, mas, quando este instrumento está inserido no escopo de
pesquisas especialmente dentro de contextos educativos, sua função é de “investigar, apontar certos pro-
blemas que aparecem [...]. Dar sentido aos nossos objetivos, elaborar perguntas, dúvidas que surgem no
decorrer das práticas em sala de aula” (OLIVEIRA, 2011, p.997). Quanto ao suporte para elaboração dos
diários de aula, estes, podem ser produzidos a partir de diferentes materiais e formatos. Podemos encon-
trar diários feitos em caderno de anotações, bloco de notas, em formatos de quebra-cabeça, colchas de
retalho, sketchbook, fazendo uso de forma criativa dos post-it, e até, em formatos virtuais. De acordo com
Holly (1989, p. 61-81 apud ZABALZA, 2004, p.15) existem diferentes tipos de diário, o que os distingue
uns dos outros é a narrativa que cada um possui. Podemos citar como tipos de diários: o analítico, etno-
gráfico, jornalístico, terapêutico, introspectivo, criativo-poético, entre outros. Identifico o diário produzi-
do e utilizado na minha investigação como introspectivo. Uma parte da minha escrita no diário refere-se
às minhas memórias e lembranças a respeito do percurso cartográfico (concepção que será explicada mais
adiante) sobre o tema da minha pesquisa.

Diário de aula como percurso cartográfico

Neste texto, utilizo o termo diário de aula, expressão também utilizada pelos pesquisadores Ma-
rilda Oliveira de Oliveira e Zabalza266. Penso que o termo é bastante adequado principalmente quando
se refere a pesquisas e práticas desenvolvidas dentro de sala de aula, como é o caso da investigação que
venho realizando. Quando iniciei a escrita do meu diário de aula, não sabia muito bem por onde come-
çar, tampouco qual o conteúdo deveria selecionar para compô-lo. Muitas perguntas surgiram, como por
exemplo: Descrevo em detalhes as etapas e ações que irei realizar na pesquisa em forma de esquemas,
rascunhos, esboços? O principal questionamento foi como utilizar imagens e textos de forma que as ima-
gens não ilustrassem a escrita, mas que ambas estivessem em sintonia entre si. E, que história(s) haveria
de conter ali?

Os diários são formados por componentes fragmentados, com acabamentos provisórios.


Todo diário conta uma história, histórias não lineares, ao contrário, histórias sinuosas,
de idas e vindas, enviesadas. Um diário se alimenta de várias fontes: de imagens coladas,
de conceitos entrecruzados, de camadas de cola, de desenhos, de rasuras, de escritas nas
imagens. Todo diário é um incorporal, embora esteja sempre encarnado em um ou mais
corpos (OLIVEIRA, 2011, p.999).

O ponto de partida para escrita do diário de aula se deu a partir do resgate das minhas memó-
rias afetivas sobre o percurso que venho realizando desde o ano de 2015 a respeito de estudos sobre o
patrimônio cultural brasileiro articulado ao ensino das artes visuais, minha área de atuação profissio-
nal. Percebi, que desde este período, este tema tem me levado a construir uma trajetória de pesquisas
nesta área de estudo. Foi com base nessa constatação que pensei em começar a construção do diário a
partir da concepção de cartografia, registrando através de fotografias e desenhos de mapas o percurso
de minhas memórias afetivas de pesquisa. A cartografia é um termo muito utilizado na geografia. É
um campo epistemológico que trata da criação, produção, difusão, estudo e uso dos mapas. O campo

266. Marilda Oliveira de Oliveira é professora/pesquisadora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde também atua como docente do
Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de pesquisa Educação e Artes. Possui diversos artigos publicados sobre o uso do diário de aula
em contextos educativos. Miguel Zabalza é professor da Universidade de Santiago de Compostela, com formação nas áreas de Pedagogia e Psicologia.
Também possui artigos e livros com temas voltados para os diários de aula.

490
das artes visuais tem tomado emprestado este conceito e vem utilizando-o como método para traçar ou
demonstrar percursos poéticos de alguns artistas contemporâneos267. Outra concepção análoga ao de
cartografia muito difundida no campo das artes visuais é o conceito de rizoma, discutido pelo filósofo
Gilles Deleuze (1925-1995).

O método cartográfico é muito utilizado por artistas na Arte Contemporânea, na maneira


como organizam e apresentam seus trabalhos, mostrando não só um objeto de pesquisa,
mas também, o percurso, os seus desdobramentos e a possíveis redes que a ele se conec-
tam. A cartografia organiza o processo, reorganizando as ideias, o pensamento do artista
pesquisador. Cartografar é perceber as coisas através da experiência, do deixar vir e trazer
isso à Arte de maneira poética (MOURA, 2012, p.12-13).

O percurso cartográfico que apresento no diário de aula são constituídos por fotografias de seminá-
rios, palestras, congressos e workshops, do qual venho participando desde o ano de 2015, e de representa-
ções de mapas de algumas cidades onde ocorreram os respectivos eventos. Todos possuem como temática
principal o patrimônio cultural brasileiro. Os lugares destes eventos, dos quais participei, são representados
por meio de mapas e demarcam territórios significativos para mim, tanto como professora/pesquisadora,
quanto como pessoa. Penso que resgatar essas memórias para compor meu diário é importante, pois de-
monstram um pouco da construção do meu percurso profissional enquanto professora de artes visuais e me
faz perceber a trajetória já trilhada por mim.

Fig.2 – Anotações e reflexões sobre a concepção de Cartografia

Fonte: Arquivo pessoal da autora

267. Artistas contemporâneos como Duda Gonçalves, Ana Bella Geiger e Kelly Wendt são alguns nomes que trabalham em suas produções com o
conceito de cartografia.

491
Fig.3 – Desenhos de mapas com percursos de pesquisa

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Fig.4 – Apresentação de comunicação oral no 5º Colóquio Internacional de História da Arte, em Ouro Preto/MG.

Fonte: Arquivo pessoal da autora

492
Numa outra seção do diário, estão contidas algumas anotações, esboços e rascunhos sobre a pesqui-
sa-ação educativa que iniciei na instituição de ensino aonde a pesquisa vem ocorrendo. O diário revela nar-
rativas construídas durante o desenvolvimento das atividades propostas no decorrer da pesquisa, narrativas
minhas, e também dos interlocutores que estão participando da investigação. Impressões, falas e inquieta-
ções são registradas no diário de aula. Essas narrativas são objetos de reflexões da minha prática docente,
são elas, que conduzem boa parte das ações que conduzo dentro do campo da pesquisa. Daí, a importância
dos registros delas no diário de aula.

Fig.5 – Anotações com as falas dos estudantes sobre a temática do patrimônio

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Conclusão

Este artigo apresentou algumas reflexões acerca da minha investigação de mestrado que ainda en-
contra-se em andamento. Penso que a relevância do texto, bem como da própria pesquisa em si, está, em
discutir e apresentar propostas de ações educativas no campo do ensino das artes visuais articuladas a outros
campos do conhecimento, neste caso específico, atrelado ao campo do patrimônio cultural. Apresento tam-
bém alguns aspectos sobre o diário de aula como um importante instrumento metodológico para pesquisas
em contextos educativos. O texto discorre sobre o modo como venho elaborando meu diário de aula para a
investigação que venho realizando no campo do ensino das artes visuais. Por se tratar de uma pesquisa em
andamento, estas considerações não apresentam resultados finais, mas sim, reflexões para ampliar discus-
sões em torno de investigações na área do ensino das artes visuais.

493
Referências
BARBOSA, Ana Mae. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte: OLIVEIRA, Marilda Oliveira de. A perspectiva da cul-
C/Arte, 1998. tura visual, o endereçamento e os diários de aula como
elemento para pensar a formação inicial em artes visu-
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma,
ais. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPAP, 20., 2011, Rio de
reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
Janeiro. Anais eletrônicos...Rio de Janeiro, 2011. Dispo-
2003.
nível em: http://anpap.org.br/anais/2011/html/ceav.html.
MOURA, Carla Borin. Cartografia como método de pes- Acesso em: 29 mar. 2017.
quisa em arte. In: ANAIS DO XI SEMINÁRIO DE HIS-
ZABALZA, Miguel. Diários de aula: um instrumento de
TÓRIA DA ARTE, 2012, Pelotas. Anais eletrônicos...Pe-
pesquisa e desenvolvimento profissional. Porto Alegre:
lotas, 2012. Disponível em: http://periodicos.ufpel.edu.
br. Acesso em: 01 de mai. 2018. Artmed, 2004.

494
QUIXOTES:
EDUCADORES-REFERÊNCIA EM ARTES
Leandro de Oliva Costa Penha – ECA/USP

1.QUIXOTES
Como disse Rubens Corrêa268 : “O fogo através do tempo sempre foi o símbolo vivo da fé, do en-
tusiasmo e da rebeldia; mantê-lo aceso dentro de nós é também um trabalho para a vida inteira”. Como
educador e gestor, inúmeros foram os companheiros em instituições públicas e privadas, muitas foram as
equipes que coordenei; um universo de diversidade, empatia, escuta, intuição, percepção e “re-existên-
cia”. Ao longo das últimas duas décadas, tenho me deparado com a discrepância em termos de atuação
profissional e formações continuadas focadas em conteúdos generalistas. Em outros casos, observo a
dificuldade ou resistência de profissionais ousarem ou reconhecerem-se como autores de seus processos
pedagógicos.

Da visão microscópica ao me debruçar sobre as experiências do passado à visão macro em termos


de país, nasceu uma indagação que determinou o caminho que trilhei na realização da pesquisa: diante de
estruturas públicas e privadas engessadas, de um panorama caótico de mudanças político-econômicas no
país, como alguns professores promovem experiências significativas269 em arte, de forma a marcar/influen-
ciar/transformar a vida do aluno? Como possibilitam processos pedagógicos por meio dos quais se tem
inspirações mais profundas, se envia mais ar aos pulmões, mais cores à imaginação, mais poesia à vida? O
que é determinante?

Cotidianamente vejo professores decidirem pelo caminho da aposentadoria em virtude de possíveis


mudanças nas leis do país e de todas as condições de trabalho que envolvem a profissão. Por outro lado, há
muitos profissionais resilientes que criam, recriam e contribuem para o desenvolvimento de milhares de
crianças, jovens e adultos.

O inferno dos vivos não é algo que será; existe um, é aquele que já está aqui, o inferno no
qual habitamos todos os dias, o que formamos estando juntos. Há duas maneiras de não
sofrer. A primeira é fácil: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até o ponto de não mais

268. Trecho da palestra proferida por Rubens Corrêa em 12 de março de 1984, na Casa das Artes de Laranjeiras, por ocasião do início do ano letivo.
269. Neste ponto e, ao longo, do texto, ao tratar deste conceito, baseio-me na concepção de experiência singular formulada por Dewey (2010, p.109-
110), segundo o qual “temos uma experiência singular quando o material vivenciado faz o percurso até sua consecução. [...]. Conclui-se uma obra de
modo satisfatório; um problema recebe sua solução; um jogo é praticado até o fim; uma situação [...] conclui-se de tal modo que seu encerramento é
uma consumação, e não uma cessação. Essa experiência é um todo e carrega em si seu caráter individualizador e sua autossuficiência”.

495
percebê-lo. A segunda é perigosa e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e
saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo e abrir-lhe
espaço (CALVINO, 1993, p.175).

Com intuito de abrir e ampliar este espaço a que se refere Calvino e me aproximar ainda mais de
experiências significativas em arte, procurei o Curso de Especialização em Arte na Educação da Escola de
Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) em 2015. Sua conclusão, em 2017, culmi-
nou em uma pesquisa270 baseada na memória de meus colegas de turma, sob orientação da Profa. Dra. Su-
maya Mattar. Por meio deles, encontrei “educadores-referência” em Artes. Assim denomino os educadores
que, em meio a muitas adversidades, inspiram e são inspirados, promovem experiências singulares para e
com os educandos, atuam com ousadia, criatividade, determinação, paixão e comprometimento a ponto de
influenciarem a vida das pessoas e a forma como atuam no mundo. Características comuns entre eles, como
sabedoria, coragem e capacidade de enveredar por uma aventura insólita, remeteram-me ao personagem
Dom Quixote de La Mancha, obra-prima de Miguel de Cervantes. Deste modo, por tais elementos, tomo a
licença poética de denominá-los “Quixotes”.

Parafraseando a jornada do personagem, em que o aprendizado ocorre a cada episódio, com a refle-
xão a partir do que é vivido, pressuponho que a prática docente em artes em diálogo com histórias de vida
promove processos ímpares e é o que faz educadores habitarem, largamente, nossas memórias. A hipótese
do poder transformador da metodologia de trabalho a partir de narrativas de vida está “indissociavelmente
ligada ao conceito de experiência formadora, segundo o qual qualquer prática deixa traços, que toda a to-
mada de consciência cria novas potencialidades”, destaca Josso (2002, p.110).

A partir de entrevistas semiestruturadas, encontrei preciosidades que sugerem características e


valores que alicerçam o exercício da profissão com qualidade, respeito, comprometimento e responsabi-
lidade. Este estudo não tem nenhum caráter taumatúrgico ou objetivo de traçar perfis, de fazer compa-
rações ou estabelecer padrões. Trata-se de uma aproximação que faço entre os campos de formação de
professores e das histórias de vida - campo que pressupõe possibilidades metodológicas, em que as nar-
rativas de vida podem representar tanto um método para coleta de dados quanto potência para formação
de adultos. Nesta direção, completa Nóvoa (2013, p. 9), não há razões para desvincularmos a identidade
profissional da pessoal, sobretudo como professores, ofício impregnado de ideais e que pressupõe inves-
timento na relação humana.

2. AS VOZES E TRILHAS DE QUIXOTES

Em busca de encontrar educadores-referência, dirigi o olhar aos meus pares do curso de especia-
lização. Compartilhamos, por quase dois anos, momentos únicos; havia ali uma fortuna de experiências.
Pessoas com capacidade de escuta diferenciada, integrados, comprometidos com seus ofícios, ávidos por
ampliarem experiências em artes. Para manter um distanciamento dos sujeitos da pesquisa os convidei
para indicarem os professores que influenciaram seus processos educativos. O convite foi enviado a eles,
como um formulário, via plataforma digital. Dos 53 participantes da turma, 24 retornos foram recebidos,
ou seja, 45,28%. Em relação aos 24 educadores indicados, 13 eram arte-educadores, como apresentado na
tabela a seguir:

270. Sustentáculo da monografia: PENHA, Leandro. Quixotes: um olhar sobre educadores-referência em Artes. 2017. 47p. Monografia (Especializa-
ção), Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

496
Categoria Resultados em números absolutos e porcentagens
Gênero 15 (62,5%) do gênero feminino e 09 (37,5%) gênero masculino.
Formato 01 (4,2%) atua ou atuou no Ensino Fundamental;
08 (33,3%) atuam ou atuaram no Ensino Médio;
06 (25%) atuam ou atuaram em Ensino Superior;
03 (12,5%) atuam ou atuaram em Ensino Técnico;
02 (8,3%) atuam ou atuaram em cursos livres;
03 (12,5%) atuam ou atuaram em organizações da sociedade civil;
01 (4,2%) atua ou atuou em curso pré-vestibular.
Ambiente 10 (41,7%) atuam ou atuaram em instituição pública;
11 (45,8%) atuam ou atuaram em instituição privada;
03 (12,5%) atuam ou atuaram em organizações da sociedade civil.
Disciplinas 13 (54,1%) ministram aulas de Artes;
02 (8,3%) ministram aulas de História;
02 (8,3%) ministram aulas de Saúde e Meio Ambiente;
02 (8,3%) ministram aulas no curso de Pedagogia;
01 (4,2%) ministra aulas de Geografia;
01 (4,2%) ministra aulas de Português;
01 (4,2%) ministra aulas de Química;
01 (4,2%) é educador social;
01 (4,2%) é formador de formadores.

Tabela 1: Perfil dos 24 educadores indicados

Em termos qualitativos, apareceram na interpretação dos dados, elementos importantes que po-
dem caracterizar um educador-referência. Ao recortar os verbos de ação citados nos formulários, já que a
pesquisa se debruçou sobre a “forma ímpar de agir dos profissionais”, surgiu um repertório de diferentes e
complementares ações, que podem nos remeter ao sentido de experiência.

Para Larrosa (2016, p. 18), “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”,
é “algo que luta pela expressão” e quando alguém é capaz de dar forma a esta vibração, que passa por nós,
converte-a em “canto que pode atravessar o tempo e o espaço” (2016, p. 10), de forma a ressoar em outras
experiências. Determinada aula, ou uma atividade vivenciada com o professor, que como acontecimento
fora comum a vários alunos, como experiência terá sido única, pois a experiência é singular, demanda
reflexão, “requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço” (LARROSA, 2016,
p.25).

A partir da ordenação das informações coletadas271, pude distinguir inúmeros elementos que podem
caracterizar um educador-referência em Artes e estabeleci critérios para definição da amostra a ser entre-
vistada: (a) residir no Brasil; (b) atuar em Ensino Infantil, Fundamental, Médio ou Técnico; (c) a viabilidade

271. Notei que o educador-referência (1) proporciona e cria projetos de interação real dos alunos com o ambiente; (2) aguça a curiosidade, o interesse
e a vontade de explorar a cidade; (3) alia diversas áreas do conhecimento; (4) incentiva os alunos a buscarem seus propósitos e sonhos; (5) inspira
uma educação mais criativa, poética e com coautoria dos educandos; (6) cria enredos que promovem o despertar da alma; (7) nutre o espírito de
poesia; (8) apresenta diferentes campos reais e simbólicos; (9) inspira e amplia a capacidade crítica; (10) compreende o contexto em que atua; (11)
desperta a sensibilidade; (12) lida com delicadeza com sua turma; (13) demonstra interesse pelas histórias de vida de cada aluno e (14) fomenta
outras descobertas e (15) faz com que o aluno entenda um pouco mais de si, das relações com os outros e do mundo.

497
da efetivação da entrevista; (d) eu, como pesquisador, não conhecer o (a) professor (a). Cinco profissionais
atenderam a todos os critérios, concederam entrevistas272 e autorizaram o uso e a publicação dos dados.

Passada a fase inicial de surpresa, alegria ou mesmo dúvida em participar da pesquisa, no decorrer
de cada conversa, via o profissional estabelecer rápidas conexões entre presente, passado e futuro, tornando
conscientes valores, alegrias e inquietações. Para Josso (2002, p. 45), ao articularmos o presente com o pas-
sado e com o futuro, começamos a compor “um projeto de si por um sujeito que orienta a continuação da
sua história com uma consciência reforçada dos seus recursos e fragilidades, das suas valorizações e repre-
sentações, das suas expectativas, dos seus desejos e projetos”.

Como a questão273 que norteou as entrevistas apresentava três partes distintas, mas complementa-
res, por tratarem de passado, presente e futuro, ou visto de outra forma, da relação do indivíduo consigo,
com o outro e com o mundo, para auxiliar análise dos dados, mantive a mesma categorização, sem nunca
esquecer que todo processo humano é vivo, portanto complexo e dinâmico: “a expressão do que existe é uma
tarefa infinita”, escreveu Merleau-Ponty (1974, p. 308).

2.1 Passado – A escolha da profissão

Ficou evidente o quanto a escolha pelo ofício de arte-educador pode ser influenciada por experiências
familiares, escolares ou acadêmicas. Segundo Huberman (2013), como se vê pelos registros biográficos, nem
sempre é uma escolha fácil. “Como a abordagem psicanalítica bem sublinha, a escolha de uma identidade pro-
fissional implica a renúncia, pelo menos por um determinado período, a outras identidades” (HUBERMAN,
2013, p. 40). R.R., um dos professores entrevistados da rede pública de ensino, revelou seu gosto por desenho
técnico na adolescência, sua alegria ao ser aprovado para integrar uma banda de renome e, afirmou que, apenas
na faculdade de música começou a apreender, gostar e ter vontade de ensinar tal linguagem.

Outro elemento relevante em relação ao passado vincula-se à tradição. Para Josso (2002, p. 201),
“como todo e qualquer ser humano, os artistas vivem de suas heranças e alimentam com elas sua imagina-
ção”. A mãe de C.C., segundo ele, que atua em instituições de ensino formal e não-formal, foi sua grande
professora: ela gostava muitíssimo de música, de dança e teve constante contato com ritmos da cultura tradi-
cional. L. F., que ministra aulas de dança há mais de 30 anos, também reconhece o contexto familiar como
berço de seus primeiros impulsos em relação à Arte: eu me vejo lá desde bem pequena dançando forró com
meu pai. Muito estímulo para dança e para música.

Para evitar um terreno de generalizações e ilustrar a potência da subjetividade, observa-se a au-


sência de conteúdos significativos e presença de profissionais desmotivados durante a fase escolar, como
relembram, respectivamente, I.N. e D.N.:

Eu pensava: por que eu vejo os meus professores cansados e tristes? Então, eu criei dentro de
mim o desejo de ser um professor feliz, de contagiar os meus alunos com a alegria da desco-
berta que a palavra possibilita.
Talvez eu tenha me tornado professora por ver maus exemplos de professores na escola. Prin-
cipalmente de arte.

272. Os profissionais foram contatados por correio eletrônico, redes sociais ou por telefone, inicialmente. Ocorreu um encontro, com duração de 20
a 60 minutos com cada um, agendado conforme sua disponibilidade, gravado e transcrito na íntegra. As transcrições estão em posse do autor deste
artigo e encontram-se à disposição para esclarecimentos se necessário for. As entrevistas ocorreram em 01, 09, 14, 17 e 26/02/2017.
273. Questão norteadora: Partindo da premissa - um professor é também formado por suas experiências e memórias como aluno - de que modo as
experiências como aluno e como professor influenciaram a escolha de sua profissão (“Eu comigo/Passado”), o exercício do ofício no cotidiano (“Eu
com o outro”/Presente) e a maneira de ver e pensar a educação (“Eu no mundo”/Futuro)? 

498
A partir destas palavras, vê-se que, muitas vezes, o que é considerado negativo e associado ao não
formativo convoca posturas que podem ser, significativamente, construtivas. Segundo Moita (2013, p. 126),
“a integração de aspectos negativos com aspectos positivos da vida escolar, de forma dialética, pode tornar-
-se uma oportunidade formativa”.

Nesta categoria incluo também a marca deixada por outros mestres. Da mesma maneira que estes
cinco educadores foram indicados por terem inspirado outros pares de profissão, eles reconhecem o que os
inspirou a partir de seus mestres. Acredito que experiências significativas podem ser inspiradoras e dispara-
doras de novas experiências significativas para outrem. C.C. destaca o professor L., um dos primeiros capo-
eiristas que chegou a São Paulo com uma pedagogia que vinha da tradição. L. ensinava não só a técnica, mas
a história da capoeiragem. Para L.F., ícones da dança como Klauss Vianna, Sônia Mota, Zélia Monteiro, Ma-
dame Beziérs, tiveram grande peso em sua formação, e ao investigar tempos remotos, reconhece Bill Groves:

Eu lembro que foi a primeira vez que eu dancei uma improvisação e eu saquei que tinha
alguma coisa ali e era relacionada à música - que era a minha facilidade... Talvez ali, o bi-
chinho da criação tenha me mordido.

2.2 Presente – O exercício do ofício

Ao tratar sobre o exercício do ofício, ou seja, da natureza que envolve a relação do educador com
o outro - talvez, por estar ligado ao momento presente – esta é a categoria em que muitas características e
valores vêm à tona, contudo, ressalto os elementos que mais foram percebidos ao analisar os dados: paixão,
ousadia, busca constante por conhecimento e habilidade de estabelecer conexões.

Minha professora me chamou, eu comecei e gostei muito de dar aula. [...] enchia o meu cora-
ção, sentia que era um lugar que eu poderia desenvolver e com o tempo eu fui desenvolvendo.
Eu sou professora porque eu amo a possibilidade reveladora que a palavra traz e a possibili-
dade de fazer essas trocas com pessoas.

As palavras revelam a paixão pela arte-educação. Um sentimento que se caracteriza também por
estar sempre em relação a alguém ou algo, como descreve Larrosa (2016, p. 27): “Na paixão, o sujeito apai-
xonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele”. Um educador passional é um indivíduo “re-
ceptivo, aberto, exposto” (2016, p. 42), ou seja, envolvido com seu fazer por completo, problematiza uma
dificuldade de tal forma que a reflexão sobre suas causas e a busca por soluções integram-se em um processo
de construção de saber e formação.

Para C.C., o estudo faz parte de seu ofício, porque ao chegarmos a uma conclusão, ela não é um
fechamento, mas uma pergunta: o que vem depois? [...] hoje eu me digo arte-educador, mas ao mesmo tempo,
eu não tenho como deixar de dizer que sou um aluno. Percebo que a necessidade de estudar, de evoluir em
suas reflexões, de estar junto ao aluno está sempre na base das forças motrizes do professor de arte. O que
me move é poder ser aluno eternamente, além de me trazer uma relação de afetividade e de produção muito
grande, [...] aproxima e faz com que eu tenha acesso direto ao universo deles, referindo-se aos alunos.

A sede de conhecimento pode gerar o desejo de compartilhamento e veremos, assim, o arte-edu-


cador como um profissional que “constrói pontes”, procura estabelecer e inspirar conexões entre pessoas,
conteúdos, acontecimentos, de modo a fortalecer, em cada um, a capacidade de ver, sentir, dizer e pensar
por si mesmo, como ressalta Larrosa (2016). Tal relação dialógica favorece um ambiente de aproximação,
confiança, compreensão, onde cada um é visto e considerado como um ser complexo com sua subjetividade

499
inserido em um cenário também complexo, como uma turma em sala de aula, com suas particularidades e
questões que a afetam diretamente. A partir de Martir Buber, Herbert Read (2001, p. 323) apresenta estes
pontos como significativos para o alcance de bons resultados para si e para os outros e destaca que “um ver-
dadeiro professor encontra evidências da realidade criativa na variedade e diversidade dos alunos”.

Assim, estabelecendo elos, a relação ensino-aprendizagem ganha potência e qualidade. E, observo,


que a matéria-prima que sela a ligação entre o professor e o aluno é a linguagem artística e o olhar, em seu
sentido mais amplo. I.N. conta que “constrói sua ponte” pela poesia. Relembra que muitos de seus ex-alunos,
hoje, profissionais das mais diversas áreas, criaram tanto vínculo com ela e, sobretudo, com a linguagem
sobre a qual se dedica que compartilham opiniões sobre os livros que leem, o que a faz se reconhecer como
intermediária entre seus alunos e os grandes mestres da Literatura e das Artes em geral.

Adiciona-se aos elementos uma pitada de ousadia, capacidade totalmente vinculada à sensibilidade
de cada educador para ultrapassar metodologias de ensino ou práticas pedagógicas limitadas ou delimitadas
conforme padrões tecnicistas. I.N. já quebrou regras, dá vazão à criatividade em cada proposição e admite:
eu acredito em uma pitadinha de loucura para descobrir, para descortinar, para envolver. Às vezes, eu olho
pela janela e falo: - Gente, vamos ter aula embaixo da árvore, vamos andar pela rua, vamos ao cinema! Com
ousadia, experiências podem se tornar marcantes para alunos e professores, quando se permitem arriscar e
lidar com o efêmero.

2.3 Futuro – O modo de olhar a arte-educação

Na interpretação dos dados, emergiu, como elemento relevante, o comprometimento do profissio-


nal, característica que inclui a consciência e o exercício de seu papel social, de forma ética e perseverante.
Para Read (2001, p. 329): “A menos que sejamos basicamente cidadãos, conscientes das necessidades co-
muns da comunidade e dos direitos e responsabilidades que nos tocam como cidadãos, nunca poderemos
ser bons educadores”.

Vislumbrei um encontro entre os cinco entrevistados: uma roda de conversa imaginária. O que parece
soar comum, ao ouvi-los em relação ao modo de agirem no mundo como arte-educadores, é a preocupação
com o desenvolvimento do outro, a satisfação em poder colaborar com processos de desenvolvimento alheio,
como descreve L.F.: o interesse é realmente ver o outro chegar a dar aquele passo, essa potência, que eu acredito
que tenha no ser humano, eu gosto de ver isso frutificar, florescer no outro e eu tentando meios de fazer isso aconte-
cer. R.R. concorda e ilustra com exemplos de superação, quebra de paradigmas, preconceitos, histórias de vida
transformada. Você vê que a vida é muito mais que só a gente. Eu acabei conhecendo a vida de alguém. [...] O que
me motiva é ver o resultado dando certo. Encontro eco nos episódios narrados por R.R. e compartilho, na roda,
lembranças de centenas de jovens que conheci em projetos sociais, que ao integrarem iniciativas que envolviam
arte, ao criarem vínculos de confiança, respeito e amizade com educadores, fortaleceram sua autoestima, seu
autoconhecimento e sua perspectiva de futuro. Ao nos ouvir, I.N. se lembra dos tempos em que se dedicou
para alunos sem condições financeiras e traz outro panorama, a potência de sua atuação em escolas privadas:

Aqueles jovens, muitas vezes, vão ter posições de decisão e se eles levam essas reflexões, eles
podem apoiar mais a arte. [...] eu fico muito feliz porque, às vezes, a gente atinge um em
cem, mas esse um é sempre um multiplicador. [...] eu acredito no poder que o professor tem.

Diante desse poder, que cita I.N., das características que vieram à tona na interpretação dos dados,
um educador-referência pode parecer um super-herói, mas é preciso relativizar sua responsabilidade frente
a um Estado que não prioriza a Educação e a Arte e a uma sociedade contemporânea em que famílias se

500
ausentam de sua responsabilidade ao transferirem todo o processo formativo do indivíduo para a escola,
em que instituições delegam conteúdos tecnicistas aos professores, sem sequer envolvê-los em processos de
criação e formação de currículos, enfim, onde o profissional encontra-se sobrecarregado, desvalorizado e,
muitas vezes, em precárias condições de trabalho.
É um absurdo, na verdade, como é tratada a arte dentro das escolas. Eu imagino que em um monte
de boas escolas também haja esse déficit – e todos concordam com L.F. Tem que ir achando esse meio termo
de dinheiro e tudo mais. [...] eu encontrei no meu sonho pequenininho um jeito de ser muito feliz todo o dia,
revela R.R. que diminuiu a sua quantidade de aulas e está sempre se equilibrando em termos financeiros.
Triste situação com a qual nos deparamos no país. Para onde direcionamos os holofotes em nossa socieda-
de? Onde e de que maneira são investidos, pelo Estado, os recursos obtidos do recolhimento de impostos?
Para que tipo de iniciativa em termos de Arte e Educação?

Ao tratarmos destas questões que afetam a todos, os “Quixotes” brilham em minha frente, pois,
mesmo com os pés no chão, a utopia os faz seguir em frente. Vejo I.N. concordar com a cabeça quando D.N.
diz: eu tenho uma tarefa muito séria: ajudar os seres humanos que estão no mundo e [...] é uma troca, porque
com eles eu vou aprender a ser um ser humano melhor. No ápice da reflexão, I. acrescenta: os professores que
vão fazer grande parte da diferença no Brasil e no mundo são aqueles interessados em envolver, de verdade,
o aluno, fora ou dentro do tempo de aula. E, C.C., encerra: está na hora da gente proteger este Brasil que foi
descoberto. [...] O que a gente precisa é de união, olhar para o outro e reconhecê-lo como um igual.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS – MOINHOS DE VENTO

Após encontros individuais e da roda imaginária em que todos se integraram a partir de suas re-
flexões, além de ter clareza sobre as características de um educador-referência, fico com uma questão: será
que se todos educadores de arte tivessem acesso a experiências significativas, encontros com professores
ímpares, educação de qualidade, formação adequada, convivessem em ambientes de aguçada reflexão crítica
e política, a referência seria um padrão e não uma exceção?

Penso que bons professores não são gerados por um determinado tipo de formação, de escola, de
ambiente; são oriundos de um processo complexo, dinâmico e rizomático que envolve toda narrativa de
vida. A pesquisa me mostrou o quanto episódios do passado, do presente e a maneira de olhar para o futuro
constituem cada profissional; imaginemos o quão rico pode ser se, de fato, nos debruçarmos sobre cada
história de vida. É uma maneira de olhar que pode enriquecer processos formativos partindo do que há de
pujante em cada um. De acordo com Gonçalves (2013, p. 168), devemos “organizar a formação continuada
como resposta às necessidades reais dos professores e de acordo com a perspectiva de educação permanen-
te”. Acrescento as palavras de Josso (2002, p. 183): “Mesmo que a reflexão sobre o ato de aprender se incline
cada vez mais para uma individuação do processo educativo, os percursos de formação devem ser concebi-
dos para responder às necessidades de uma sociedade que não sabe para onde vai”.

Diante de uma sociedade cujos rumos são incertos, urge iluminarmos caminhos de educação da
sensibilidade e ampliação do senso crítico, vivermos com arte. Para guiar-nos há velas acesas sendo carrega-
das por “Quixotes”, como os apresentados nestas páginas, e por milhões de outros que estão incógnitos em
suas jornadas pelo mundo.

Tem que ter um pouco de intuição, tem que ter um pouco de quixotesco, tem que ter um pouco de risco,
entendeu? – encerra uma educadora-referência entrevistada. Quixote nos ensina a enxergar o que os olhos
não veem, a ressoar valores que se extinguem na sociedade contemporânea. Se Cervantes nos mostra que
Quixote morre quando deixa de sonhar, que nossos sonhos nos guiem!

501
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Lisboa: EDUCA, 2002. Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LARROSA, Jorge. Escritos sobre a experiência. Tradução
de Cristina Antunes e João Wanderley Geraldi. Belo Ho-
rizonte: Autêntica, 2016.

502
A ARTESANIA TEATRAL
NA TRAJETÓRIA AUTOFORMATIVA
DE DOCENTES DO ENSINO BÁSICO
Maria Edneia Gonçalves Quinto–IFCE

Ao longo de minha trajetória de formação, pesquisa e prática como atriz e educadora,


tenho estudado os processos de autoformação de professores via arte, na contemporâneidade e neles
incluindo-me. Como parte integrante desta caminhada, venho aprofundando já de algum tempo, o que
denomino “artesania teatral”274. Portanto, o tema que trago para este artigo, toma este modo de experi-
mentar e rever-se no âmbito da experiência teatral, como elemento significante dos percursos autofor-
mativos docentes, considerando experiências de vida e de práxis educativa e os movimentos conceituais
que daí resultam.

Para isso, divido o presente trabalho em duas partes, considerando algumas resultantes provisórias
dos estudos realizados no Mestrado e Doutorado em Educação na UFC e de minhas experiências circuns-
critas à autorfomação mediada pela “artesania teatral”, ampliando-a para pensar a formação estética de pro-
fessores das séries iniciais do ensino básico. A primeira, consiste de uma discussão a partir deste arcabouço
conceitual e dos elementos que o constituem, principalmente o “Trabalho com a Imaginação”, no qual miro
uma perspectiva renovada daquela formação, que teima em resistir às concepções imediatistas e, por vezes,
ainda tecnicistas do ensino de arte nestes espaços formais.

Na segunda parte, elenco alguns elementos resultantes das referidas pesquisas acadêmicas por mim
realizadas em nível de Mestrado e Doutorado em Educação na UFC, e suas significações emergentes da di-
mensão autoformativa de educadores mediada pelo fazer teatral quais sejam: o trabalho imaginativo como
natureza da criação teatral, as experiências de vida e as memórias do vivido evocadas neste fazer, o conhe-
cimento crescente sobre a área de arte e Teatro, o não-condicionamento às formas rígidas de pensar,fazer e
ensinar arte e, por último, a necessidade urgente de vivências coletivas como resistência à modelos mecani-
cistas de formação de educadores em arte.

Inicialmente, a “artesania teatral” como conceituação, resultou da recolha sobre as significações do


trabalho imaginativo atribuidas por uma atriz e um diretor (âmbos arte-educadores), durante o processo
de criação do espetáculo “Tempo Temporão”, entre 2002 e 2005. Em seguida, de modo mais aprofundado,

274. O conceito de “Artesania Teatral” e o que lhe integra, o “Trabalho com a Imaginação”, vem sendo analisado desde os estudos iniciais de Mestra-
do: QUINTO, Maria Edneia Gonçalves. As significações sobre o trabalho com a imaginação na artesania da cena do Teatro radical Brasileiro – TRB.
2006. 206f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza- Ce; e de Doutorado: QUINTO, Maria Edneia
Gonçalves. A artesania da cena teatral contemporânea: trabalho imaginativo e autoformação. 2012. 306f. Tese (Doutorado em Educação) – Univer-
sidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza- Ceará.

503
estudo essa dimensão artesã do exercício teatral, com base em minha experiência autoformativa no proces-
so de criação da intervenção urbana intitulada “Noiada”, como parte integrante do Projeto Cidada-Noiada,
concluido em 2012, em Fortaleza, integrante de meus estudos de doutoramento. Nesta última investigação,
assumi o lugar de autoria, rompendo com os ditames ortodoxos da academia, sendo ao mesmo tempo, su-
jeito e objeto da investigação, buscando o rigor no diálogo entre arte e ciência, por meio da descrição densa
do exercício etnográfico. Nos dois processos, participei como educadora que se permitiu os exercícios de
atriz, intérprete e pesquisadora.

Mário de Andrade (1975), na obra O Artista e o Artesão, chama de “ofício de artesania” o domínio
sobre os elementos da matéria por parte do artista, acrescido das marcas do “eu”. Para o nosso caso, um fazer
teatral realizado por meio do domínio técnico e expressivo e, sobretudo, pelo trabalho imaginativo, aperfei-
çoado ao longo do processo criativo que, considerando suas especificidades, nos possibilita pensar o lugar
do teatro na ambiência educativa, e a autoformação do(a) educador(a) atuante neste processo. Segundo
ainda esse autor, é aí onde se localiza verdadeiramente, a parte pedagógica da arte.

Assim, a “artesania teatral pode ser compreendida como sendo o domínio de um fazer criativo
instaurado pela participação direta e global (sensível, pensante, corporal) do sujeito (para o nosso caso, o
(a) professor (a) das séries iniciais do ensino básico), naquilo que cria, e nos remete ao termo artisanat de
orígem francesa, como sinônimo do produto do trabalho do artesão e do lugar de autoria que assume nes-
ta criação. Conserva a impressão digital do criador, seu ritmo corporal, sua sensibilidade, na contramão
do frenesi da produção, como quer Octávio Paz (1991). Aqui presentificam-se, o embate autoformativo
com as ferramentas e códigos da linguagem teatral e sua objetividade: a dimensão objetividade: o texto
dramático, o cenário, o figurino, a sonoplastia, e a dimensão subjetiva: o corpo em estado de poesia, que
se expressa pela via da cultura, da memória, das experiências vividas. Cria pelos atos imaginativos, rea-
lidades imaginadas, relacionando-as ao tempo presente (que é devir), gerando perspectivas de unidade
entre objetividade e subjetividade na arte e na vida.Vivenciado pelo (a) educador(a) propicia-lhe um
rever-se contínuo diante de suas práticas educativas e como sujeito em potência latente e dinâmica de
revisão de si.

Da articulação entre os conceitos de “artesania teatral”, “imaginação” e “trabalho com a imagi-


nação” estudados nos dois processos de criação teatral anteriormente referidos e, dos quais participei
diretamente como atriz, dialoguei com os pressupostos teóricos da imaginação criadora, seus embates
e resistências com a matéria, até a consecução de um objeto estético, desenvolvidos po Fayga Ostrower
(1987); com a Estética da Formatividade entre o fazer, o expressar e o pensar, de Luigi Pareyson (1993) e
principalmente, com a Teoria Crítica do Imaginário de Gaston Bachelard (1978; 1988; 1989;1993;1997;
1999).

Neste contexto, o “trabalho com a imaginação” – elemento fundante da “artesania teatral” e im-
prescindível para o (a) educador (a) da séries iniciais – é uma atividade humana condicionada à cultura e
à auto-realização do sujeito em seu mundo, sempre numa dimensão social. Considerada aqui, de acordo
com os elementos e conflitos que a constituem, e de acordo com o contexto em que é experienciada. É
uma realidade reinventada com novos sentidos e imagens registradas na cena dramática e que se espraia
para outras experiências estéticas e autoformativas. Este trabalho imaginativo portanto, relaciona-se di-
retamente ao sentido da infância e da criatividade, como aponta Bachelard (1988), em sua “Poética do
Devaneio”.

Imaginar seria portanto, um pensar específico sobre um fazer concreto, voltado para a materiali-
dade de um produto criado em processo, que é trabalho, segundo Ostrower (1987). Porém, não nos esque-
çamos que, segundo Aranha (1996), este último termo vem do latim tripaliare, do substantivo tripalium

504
– aparelho de tortura também usado para manter presos os animais difíceis de ferrar. A etimologia da pala-
vra, está associada ao significado de sofrimento e desvalorização histórica do trabalho manual, apropriado
a escravos, comparado ao trabalho intelectual, dos “homens livres”; ao trabalho da mais valia, discutido
na Dialética do Esclarecimento por Adorno; Horkheimer (1986): “Cada qual é um modelo da gigantesca
maquinaria econômica, que desde o início não dá folga a ninguém. [...]. “A vida no capitalismo tardio é
um contínuo rito de iniciação. Todos têm que mostrar que se identificam integralmente, com um poder de
quem não cessam de receber pancadas”. ( p. 144)

Bachelard (1988), ao criticar essa desvalorização do trabalho manual, em virtude do seu apartamen-
to do trabalho intelectual, é enfático ao afirmar que este último, instaurou o “vício da ocularidade”, como
extensão do pensamento que separou sujeito e objeto. A visão portanto, assume uma posição hegemônica,
em relação aos demais sentidos humanos.Em sua Fenomenologia da Imaginação, defende que diferente da
etimologia, a imaginação não é a faculdade de formar imagens da realidade; “é a faculdade de criar imagens
que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade”.(BACHELARD, 1987, p.17-8).

Com relação à autoformação do (a) educador (a), que atua diretamente no campo da arte, contradi-
toriamente, seu distanciamento das experiências estéticas e suas diversas linguagens e formas, e portanto, do
espaço pleno de exercícios imaginativos, vem sendo um dado comum nas pesquisas sobre formação docente
em Arte. É frágil a compreensão de que, por exemplo, a ambiência educativa e seu entorno, são também
espaços potenciais de produção viva de cultura e arte. Além disso, é também frágil a ampliação do olhar para
as experiências acumuladas pelas produções culturais e artísticas do país e do mundo, às quais por vezes,
ele (a) têm a oportunidade de estar bem perto, no museu, no cinema ou no teatro da cidade, assim lhe seja
propiciado o acesso.

O aprisionamento dessa dimensão imaginativa segundo Japiassu (2001), reforça o embotamento do


olhar pelo cotidiano massificado, no qual temos vivido como educadores (as) condicionando-nos às formas
rígidas de fazer, pensar, fruir e ensinar arte ou mesmo outra área de conhecimento. De outra forma, existe
um lugar comum na artesania teatral, que pleno de trabalho imaginativo, gera uma comunhão não subser-
viente, mas autônoma, entre os que participam desta experiência. O mesmo ocorre no processo de ensino
e de aprendizagem, no qual se faz condição central, ocupar o lugar de autoria, deixando espaço para a ima-
ginação e a criticidade. Então, quais são os lugares de autoria que temos nós como educadores (as) e nossos
(as) alunos (as), ocupado nas trajetórias de prática educativa via arte? O educador (a) não necessariamente,
deverá ser um artista para realizar, apreciar, refletir sobre o trabalho imaginativo em seu cotidiano. Mas será
sempre oportuno e mesmo necessário, que para pensar em uma prática educativa mais criativa, prazerosa e
integrada ao mundo contemporâneo, os saberes de formação e de produção de conhecimento com os quais
lida, no campo da arte ou mesmo em outras áreas diversas do saber, estabeleçam relações mediatizadas por
este campo. Como nos relembra Bacheard (1987), tão profundamente e com uma extrema coragem episte-
mológica: “não há pensamento sem imaginação”. (p.57)

E, falando sobre o campo da autoformação, seguindo as trilhas teóricas de Tardif (2002), tomei
como referência de análise, os saberes pessoais dos artistas-educadores pesquisados na Dissertação e os
meus de forma mais direta, na Tese, para pensar sobre os nossos saberes pessoais, a formação escolar, os
saberes de formação profissional e prática docente, saberes acumulados nas vivências em espaços cole-
tivos, artísticos e culturais, que constituiram aquilo que nos tornamos, ao longo dos tempos e contextos
sociais vividos. Enfim, nossa autoformação, com base nas aprendizagens no decurso da vida e do fazer
artístico, e suas relações com outros conhecimentos. A autoformação como descrição e reflexão crítica
sobre os episódios autobiográficos de nossas trajetórias pessoais, artísticas e profissionais, desveladoras
de um olhar próprio e revisitado para o ser artista-educador (a) e consideradas em resumo, abaixo e de
acordo com os achados da sduas pesquisas realizadas:

505
1. As experiências de vida e as memórias do vivido

Constituem-se em um relevante acervo de pesquisa na revisão da prática educativa e na parti-


lha de saberes na ambiência educativa. Quanto mais alongadas as experiências, mais trocas culturais, mais
deslocamentos sobre a realidade do mundo. “Experiência” aqui, compreendida de acordo com Benjamin
(1994; 1994a; 1989), na contramão do silenciamento da transmissão das narrativas e experiências coletivas
da humanidade, no contexto da Modernidade. Como mediador, o (a) educador (a) pode conectar suas ex-
periências de vida e as memórias do vivido, aos conhecimentos dos seus alunos (as) e fazer destas trocas,
matéria-prima para o fazer artístico, a informação e a apreciação nas aulas de arte, por exemplo. Para Bar-
bosa (2002), o conhecimento em arte se dá na interseção entre experimentação, decodificação e informação.

As experiências de vida e as memórias do vivido de acordo com Perrenoud (2000), influenciam as


práticas educativas e o que fazemos a partir delas, dentro e fora deste contexto. Mais propriamente, em se
tratando de processos criativos referenciados neste acervo do vivido e do que resulta como memória coletiva
a partir daí, segundo Halbwachs (1990). Não se trata apenas de trazer à tona situações vividas, reapresentan-
do-as como cópias fidedígnas, mas de um trabalho imaginativo, cuja a artesania resulte de um grau maior
de elaboração estética, segundo Linhares (1999). Por outro lado, isso nos leva a pensar sobre os usos que te-
mos feito das nossas memórias de infância, em nossas aulas de arte, como uma espécie de saudosismo. Tem
sido assim nas “pecinhas” ou “teatrinhos” como denominamos as representações do Teatro na Escola, entre
outras denominações, que em sí, já são saudosistas, nas cantigas tradicionais, no desenho para colorir, em
Artes Visuais, como um dia, foi vivenciado em nossa infância, sem buscarmos o diálogo destas expressões
com o tempo presente. Possibilitar o conhecimento desse patrimônio é obrigação política, ética, histórica
de todos nós, que trabalhamos com arte e cultura, mas daí, até exigir que os alunos reproduzam estas práti-
cas artístico-educativas como cópia do passado, impondo-as como algo criativo, sem considerar o diálogo
com o tempo presente, é no mínimo autoritárismo. Para Ecléa Bosi (1994): “Não há evocação sem uma
inteligência do presente. Um homem não sabe o que ele é se não for capaz de saír das determinações atuais.
Uma lembrança é diamente bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. [...]. O sentimento precisa também
acompanhá-la para que ela não seja uma repetição de um estado antigo mas, uma reaparição”. (p.81)

2. O conhecimento crescente sobre a área de Arte e do Teatro

A busca crescente pelo aperfeiçoamento, pelo novo, renega muitas vezes, o que vem sendo acumu-
lado ao longo dos tempos. Aceitamos então, de forma fragmentada, métodos conservadores mascarados de
modernos, devido às exigências constantes de atualização. Com isso, corremos o risco de reafirmar deter-
minações burocráticas em termos de objetivos e estratégias no ensino da arte. Chegam ao aluno em forma
unicamente de um fazer artístico ativista e intuitivo. “Paradoxalmente, a ansiosa busca pelo novo, resulta em
tudo igual nas aulas de arte”. (BARBOSA, 2002, p. 34). O estilo de arte escolar recai então, em trabalhos de
ateliê subordinados ao mesmo uso pseudo-original de “sucata”, os mesmos símbolos culturais e comerciais
e a mesma relação superficial com estes.

O conhecimento crescente sobre a área de arte seja por meio de formação continuada, apreciação de
objetos estéticos, frequência aos espaços de produção e de exposição de arte e/ou prática artística propria-
mente dita, contribui para a construção de outros olhares por parte do (a) educador (a), superando o fazer
artístico como única maneira de ensinar arte, que se não mediado de forma responsável, do ponto de vista
entre técnica e criação, entre ética e estética, pouco contribui para o desenvolvimento sensível dos alunos
(as). Se no processo educativo mediado pela arte na escola, como área de conhecimento com objetivos, mé-
todos e conteúdos próprios, não se pretende formar artistas; o apego ao fazer

506
aligeirado, sem a dimensão presente da experiência e da imaginação, em detrimento das outras possibilida-
des educativas (com excessiva preocupação na consecução de um produto), nem forma artistas, e tão pouco
possibilita aos alunos e educadores (as) à compreensão da arte como expressão de diversas culturas e como
linguagem codificada.

3. O não-condicionamento às formas rígidas de pensar-fazer Arte

O ato educativo que ocorre nas aulas de arte deve possibilitar então, um olhar mais flexível para o
ensinar e o aprender situado no âmbito do sensível, e que também demarque uma sintonia com trajetórias
de racionalidade. O que não condiz, com pouco ou mesmo nenhum conhecimento, acerca daquilo que se
vai ensinar em arte, sua desvalorização no currículo, a inadequação da estrutura física da sala de aula, junto
com certa inércia de nossa parte, para reinventar espaços de criação na ambiência educativa, o pouco tem-
po de estudo dedicado a esta área, entre outros fatores. Com Tardif (2002), dizemos que o (a) educador(a)
necessita de saberes que emergem de múltiplas interações para que suas narrativas pessoais e profissionais
sejam revistas.

4. A necessidade urgente de vivências coletivas

A necessidade de vivências coletivas orientadas por uma ambiência que acolha a liberdade de
pensamento e de ação, como defende Josso (2004), é mais um elemento presente na “artesania teatral”, e
nos possibilita superar concepções de busca por essa experiência, como mero instrumento de facilitação
na assimilação de conteúdos de outras áreas, como superação de timidez, de agressividade ou insdisci-
plina, do desejo de agradar aos pais, das escolhas dos parecidos com a princesa e o príncipe da história,
das premiações, das datas comemorativas e tantos outros equívocos que se entremeiam ao trabalho, aos
princípos formativos e autoformativos dos professores (as) da séries iniciais do ensino básico. “Essa visão
instrumentalista encontra ressonância no ensino de teatro na escola (e nas demais linguagens artísticas),
quando visa apenas o conhecimento-produto em detrimento do conhecimento-processo”. (BIASOLLI,
1999, p. 23).

Finalmente, em tempos atuais tão difíceis, de assumido desrespeito e negligência com os avan-
ços hstóricos, sociais, econômicos e culturais deste país, é preciso estar atento, forte e ocupando espaços,
para resistirmos, discutirmos criticamente em nossos coletivos e denunciarmos de todas as formas,
a realidade aviltante que estamos vivenciando hoje. É preciso não estar atrás do véu de parte de um
movimento que perdeu o bonde da história e não sucumbir às afrontas de posturas reacionárias e desu-
manas. A cultura e a arte em seus processos formativos e de fruição, possibilitam-nos sem a marca do
salvacionismo, ver com outros olhos e, portanto, estranhar, aquilo que nos parece impossível de mudar.
Felizmente, como a arte se alimenta de transgressão, tem crescido em espaços educativos como a escola
e a Universidade, pesquisas e debates sobre a formação estética do (a) educador (a), considerando a
arte como linguagem provida de conteúdos próprios e por isso, formativos, dentro de uma abordagem
que acione outras esferas do conhecimento, que falam da inteireza do ser, desfazendo falsas dicotomias
entre corpo e mente entre ciência e arte nas trajetórias e percursos autoformativos de todos (as) nós que
fortalecemos esta ciranda.

507
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7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 114-119. (Obras es-
colhidas; vol.1)

508
CURSO DE LICENCIATURA
EM MÚSICA - IMPACTOS E DESAFIOS
Meyrla Conceição Lins Santana – IF SERTÃO PE
Valdelan Leite da Costa – IF SERTÃO PE
Alan Silva Barbosa – IF SERTÃO PE

1. INTRODUÇÃO

O termo Economia Criativa ou Economia Cultural foi utilizado pela primeira vez em 1994, pelo então
primeiro ministro da Austrália Paul Keating. O surgimento da união do capital intelectual e a economia cria-
tiva tiveram suas atividades iniciadas na Austrália e Grã-Bretanha, logo após se expandiu para outros países
como o Brasil que atualmente recebe o apoio do BNDES, SEBRAE, e do Ministério da Cultura. A Economia
Criativa envolve a capacidade de criar algo novo ou transformar algo que já existe, por meio do capital inte-
lectual e criativo que englobam o conhecimento, a inovação tecnológica, e atividades ligadas à cultura. A ideia
conceitua proporcionar oportunidades aos indivíduos, as empresas, a geração de empregos, e principalmente
o desenvolvimento e crescimento econômico. Segundo Luciano Coutinho Presidente do BNDES, “As transfor-
mações nas formas de produção, consumo e convivência social nas sociedades modernas têm no conhecimen-
to e na criatividade sua base dinamizadora. Por isso, atributos de conhecimento e criatividade constituem fator
de altíssima relevância no desenvolvimento social, econômico e político de um país”.

A implantação do Curso de Licenciatura em Música no Instituto Federal de Educação, Ciência e


Tecnologia- IF SERTÃO PE, Campus Petrolina, possibilitou aos profissionais músicos da região do Vale do
São Francisco, que antes buscavam cursos de aperfeiçoamentos nos mais diversos instrumentos noutras
cidades e estados, a ampliar seus conhecimentos através da formação superior. Atualmente os profissionais
da região podem ter acesso ao Curso de Licenciatura em Música. O ingresso no Curso é possível através do
Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM e da apresentação do Certificado de Aptidão Musical, também
conferido pelo IF SERTÃO PE, Campus Petrolina ou provenientes de outras instituições.

Do que dispõe o parâmetro curricular dos Cursos em Licenciaturas no Brasil, “De acordo com as
Resoluções CNE/CP 1/2002 e CNE/CP 2/2002 do Conselho Nacional e Educação, a carga horária dos cursos
de licenciatura deverá ser de, no mínimo, 2800 (duas mil e oitocentas) horas” (PPC, 2014 pg.09). No caso
do curso de Licenciatura em Música no IF-Sertão PE, de acordo com a PPC (Projeto Pedagógico do Curso),
a carga horária é alterada para 2910 horas, deverão ser integralizadas conforme organização didática sendo
subdivididas em:

• 1830 horas para de aulas para conteúdos curriculares de natureza científico-cultural;

509
• 480 horas de prática como componente curricular, vivenciadas ao longo do curso;
• 400 horas de estágio curricular supervisionado a partir do início da segunda metade do curso;
• 200 horas para outras formas de atividades acadêmicas, científicas e culturais (atividades com-
plementares).

As disciplinas nas quais compõem matriz curricular do curso são divididas em áreas específicas do
conhecimento, sendo elas:

• Fundamentos Teórico-Musicais;
• Fundamentos Prático-Musicais;
• Fundamentos Humanístico-Pedagógico;
• Prática Pedagógica e Estágio Curricular Supervisionado.

Abordagem das práticas de ensino nas vertentes comuns as Diretrizes Curriculares Nacionais –
DCN, orientadas aos cursos de licenciaturas em música: ensino infantil, básico e de inclusão. Dentre as
disciplinas práticas obrigatórias são Pré-requisito instrumentos musicais melódicos e harmônicos para cada
disciplina exigida sendo; Flauta doce barroca soprano, flauta doce barroca contralto, violão e piano/teclado,
ademais estão inclusos matérias teóricos musicais como os livros que abordam teoria musical, a pedagogia
no ensino musical, didáticos, e livros teórico-práticos.

Nessa perspectiva, a implantação do Curso de Licenciatura em Música em março de 2012, atrai a


atenção não só para o ensino/aprendizagem da música nos múltiplos espaços, mas também às novas possi-
bilidades, como: a abertura de mercado para este profissional, aquisição de instrumentos e sua manutenção
e aquisição de métodos, livros e acessórios musicais, afetando consideravelmente o comércio das cidades do
Vale do São Francisco.

Este relato reflexivo de experiência evidencia os impactos sociais e comerciais nas cidades de Petro-
lina – PE e Juazeiro – BA após a implantação do Curso de Licenciatura em Música no Instituto Federal de
Educação Ciência e Tecnologia IF SERTÃO – PE, Campus Petrolina.

IMPLICAÇÕES E EXIGÊNCIAS MUSICAIS - CAUSAS E EFEITOS

O Curso de Licenciatura em Música do IF SERTÃO PE impôs uma amplitude econômica criativa


e cultural na qual houve uma notável alteração no desenvolvimento estrutural, econômico e cultural. Os
discentes e os docentes tiveram inúmeros desafios a serem vencidos de ordem estrutural, cultural e social.
Na região havia a escassez de lojas especializadas em instrumentos musicais, encontrar e obter instrumentos
de fabricantes e marcas considerados profissionais e materiais didáticos na região era quase impossível. Para
atender as demandas das disciplinas da área de Fundamentos Práticos-Musicais, como Instrumento I e II
– Flauta Doce, por exemplo, os alunos tinham que se comprar as flautas em sites especializados. Em alguns
casos, os atendentes diziam nunca terem ouvido falar naqueles fabricantes e naquelas marcas exigidas pelo
professor. Neste aspecto, o desenvolvimento foi acontecendo gradativamente, no qual ainda se encontra
num lento processo evolutivo. Em 2012 havia apenas duas lojas que vendiam instrumentos musicais nas
duas cidades vizinhas Petrolina-PE e Juazeiro-BA, e apenas um luthier, profissional que faz reparos e conser-
tos em geral nos instrumentos ou fabrica-os de maneira particular e específica, por serem muito requisita-
dos acabam não tendo tempo para atender a demanda da região. Neste sentido o curso vem impulsionando

510
a valorização e incentivando esta profissão através de oficinas e cursos na área, como mais uma possibilidade
de trabalho do universo musical. Atualmente, são sete lojas de instrumentos de grande e pequeno porte es-
palhadas nos centros das duas cidades, atendendo assim as exigências dos músicos da região.

Os serviços e as formas de negociações também foram afetados. As transações comerciais ganha-


ram outros valores, sendo a permuta dos serviços um fator predominante nestas relações. Ou seja, a troca
de serviços surge como elemento facilitador para a expansão comercial. Todo este processo desenvolve o
contexto da economia criativa que envolve o conhecimento intelectual, a cultura artística e o crescimento
econômico.

De forma abrangente, a economia criativa surge designando o conjunto de empresas que


têm na arte, na cultura, na criatividade, no saber vivo e diário e na cotidianidade o seu
processo produtivo e seu produto final, simultaneamente. Esta economia desenvolve-
-se no contexto imaterial do trabalho, em que a sociedade adapta-se a uma economia
da informação, do conhecimento e do aprendizado, em que as habilidades cognitivas e
comunicacionais, ou seja, recursos imateriais emergem como novos fatores de produção
e impõem a revisão de estratégias empresariais, dinâmicas organizacionais e modelos de
negócios até então vigentes (PIRES; ALBAGLI, 2012).

Consequentemente os espaços culturais das cidades vizinhas se transfiguraram, uma vez que o cur-
so proporcionou o ganho de maior viabilidade e visibilidade a estes locais, sendo explorados por artistas,
alunos em formação acadêmica com as devidas orientações de docentes especializados, e em seguida sendo
requisitados por diversos públicos. Essa proporção se deu na medida em que o conhecimento foi absorvi-
do, experienciado e aplicado nos espaços artísticos que interagem com a linguagem musical, dentre eles os
espaços culturais e os muitos grupos, como: Companhias de Teatro e Dança o Teatro Dona Amélia (SESC
Petrolina-PE), e o Centro de Cultura João Gilberto (Juazeiro-BA), são os mais requisitados. Polos Criativos
podem ser entendidos como espaços de convivência urbana que possuem uma dinamização funcional, reu-
nindo em sua geografia distintos grupos e pessoas com uma identidade cultural singular, com a realização
de variadas atividades de dimensões simbólicas (LIMA, 2011).

Diante as dinamizações que foram ocorrendo ao longo desses anos, assim como os espaços culturais,
as bandas marciais e fanfarras foram se propagando, a orquestra que tinha se iniciado pouco antes da im-
plantação do Curso de Licenciatura em Música, foi ganhando maior visibilidade. Outros grupos musicais,
com outras formações foram surgindo, como: Quinteto de Metais Opara Brass, Coro Vozes do Sertão e a
consolidação de grupos já existentes nas cidades, como a Philarmônica 21 de Setembro. Todos estes grupos
e suas particularidades desenvolvem um trabalho de formação de plateia, contribuindo assim para o desen-
volvimento humano, social e cultural na região.

ARTISTA PROFESSOR - PROFESSOR ARTISTA

Para uma melhor compreensão da importância, causa e efeito da implantação do Curso de Licencia-
tura em Música nas vidas dos profissionais músicos da região, foi solicitado que uma musicista, discorresse
sobre esta temática através da formulação de algumas perguntas. Pois, de acordo com a Teoria da Represen-
tação Social (TRS) desenvolvida pelo romeno naturalizado francês Serge Moscovici (2009), a Representação
social (RS) é um sistema de valores, ideias e práticas, com duas funções: primeiro, estabelecer uma ordem
que possibilitará às pessoas orientar-se em seu mundo material e social e controlá-lo; e, em segundo lugar,
permitir que a comunicação seja possível entre outros membros da sociedade, fornecendo-lhes um código

511
para nomear e classificar, sem ambiguidade, os diversos aspectos do seu mundo, da sua história individual
e social (MOSCOVICI, 2015).

Segundo Franco (2013, p. 170)

As representações sociais são elementos simbólicos que os homens expressam


mediante o uso de palavras e de gestos. No caso do uso de palavras, utilizando-se
da linguagem oral ou escrita, os homens explicitam o que pensam, como perce-
bem esta ou aquela situação, que opinião formula acerca de determinado fato ou
objeto, que expectativas desenvolvem a respeito disto ou daquilo... e assim por
diante. Essas mensagens, mediadas pela linguagem, são construídas socialmente
e estão, necessariamente, ancoradas no âmbito da situação real e concreta dos
indivíduos que as emitem.

Logo, exporemos as repostas, que serão transcritas fielmente as suas linguagens e formas de expressão.

1 - Qual era a sua perspectiva artística antes do Curso de Licenciatura em Música ser implantado na região?

Resposta:

“Minha perspectiva artística era muito pequena, muito embora eu já tocasse e fizesse parte de
alguns grupos musicais, à música era algo secundário, pois eu sabia que se quisesse levá-la mais
a sério teria que buscar fundamento em outros lugares, o que no momento não era possível.
Portanto, após a chegada do Curso de Licenciatura em Música na região, toda essa concepção
mudou, e a música assumiu o papel principal em minha vida, aumentando muito minha pers-
pectiva artística. Hoje nosso cenário é outro, e temos muito mais oportunidades de não apenas
fazer, mas consumir muita música, uma vez que além do curso nos oferecer isso, o mesmo tem
despertado um movimento cultural e artístico em várias entidades do vale”.

2- Durante e após a sua graduação o que mudou para você?

Resposta:

“Quando ingressei no curso eu ainda não tinha muita noção sobre os fundamentos do mes-
mo, “eu só queria tocar... (risos)”. Com o decorrer da graduação eu pude entender qual seria
a minha função ao concluí-lo, e que é uma área mais rica e séria do que eu imaginava. Pois,
além de música, envolve educação. E na minha concepção, são dois pilares fortes para a for-
mação humana e social. Portanto, posso dizer que tudo, ou muita coisa mudou. Sou recém-
-formada, e percebo que estamos avançando. As instituições educacionais estão entendendo
a necessidade da nossa atuação, as conquistas legislativas, e todo trabalho que vem sendo
realizado na região nos oferece maiores oportunidades”.

1 - Qual é a sua visão hoje em relação ao mundo artístico musical?

“É uma visão promissora, pois as artes têm conquistado seu espaço, e pouco a pouco vem se
firmando e mostrando que além de bela não é apenas algo subjetivo baseado em emoções, ou
dons, mas uma área da ciência que para desenvolvê-la é necessário muito estudo e dedica-

512
ção. Quando as políticas públicas e educacionais, e a sociedade em geral entende isso, o artis-
ta jamais fica sem espaço. Seja na escola, nos palcos, ou em “qualquer lugar” sempre haverá
espaço para a arte. E eu espero alcançarmos esse patamar, pois temos trabalhado para isso”.

CONCLUSÃO

O Curso de Licenciatura em Música no IF SERTAO PE, Campus Petrolina tem um papel de extrema
importância na região. Pois, contribui efetivamente para o desenvolvimento do comércio e suas inúmeras
possibilidades nas negociações que o permeiam.

No âmbito cultural, o surgimento de vários grupos musicais nas mais variadas formações, além de
formar plateia, atraindo o ouvinte para ampliação de suas referências musicais, possibilitando-os à desco-
berta de outras formas musicais e instrumentais.

A valorização, divulgação e apresentação de outras profissões na área musical, como: luteria, produ-
ção de recitais, concertos, shows e eventos, trazem aos músicos outras possibilidades para além apenas da
execução instrumental. A luteria, ainda é uma área pouco explorada na região.

Os músicos da região puderam ocupar a sala de aula com propriedade. O artista-Professor-Pes-


quisador ganhou notoriedade e valorização, resignificando o pensamento da sociedade para a profissão. O
músico passou a ter base teórica para fundamentar sua prática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRÉSCIA, Vera Lucia Pessagno. Educação Musical: bases marca na economia criativa. Perspectivas em Ciência da
psicológicas e ação preventiva. São Paulo: átomo, 2003. Informação. v.17, n.2, p.109-122, abr./jun. 2012.
FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Representações REIS, A. C. Introdução. In. Reis, A. Economia Criativa
sociais, ideologia e desenvolvimento da consciência. Ca- como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos paí-
dernos de pesquisa, v. 34, n. 121, p. 169-186, 2013. ses em desenvolvimento (p. 14-49). São Paulo: Itaú Cultu-
ral, 2008.
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações
em psicologia social. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2015. LIMA, S. Polos criativos: um estudo sobre os pequenos
territórios criativos brasileiros. Brasília, DF, Brasil, 2011.
MONTAG, T., MAERTZ, C., & BAER, M.A critical analy-
(Acesso em 16 de maio de 2018). Disponível em http://
sis of the workplace creativity criterion space.Journal of
www2.cultura.gov.br/economiacriativa/wpcontent/uplo-
Management, n. 38, p. 1362-1386, 2012.
ads/2013/06/poloscriativos.pdf.
PIRES, Vladimir Sibylla; ALBAGLI, Sarita. Estratégias
empresariais, dinâmicas informacionais e identidade de

513
A HISTÓRIA DE VIDA COMO
(RE) EXISTÊNCIA NA FORMAÇÃO
DO ARTISTA-DOCENTE
Jacqueline Rodrigues Peixoto
Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará – UECE
José Albio Moreira de Sales
Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará – UECE

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho aponta uma reflexão sobre a história de vida como um lugar de destaque na cons-
tituição do processo de desenvolvimento do artista- pesquisador em Arte e Educação potencializando o
conhecimento de si.

A formação do artista-docente decorre das suas experiências marcadas no seu corpo ao longo de sua
história de vida. Uma formação que amplia uma invenção de si autoformação (consigo), heteroformação(com
outro), ecoformação (com o mundo) atravessadas pela composição de um sujeito agente que forma e se for-
ma com e no conhecimento artístico.

O intento deste estudo é possibilitar diálogos mais alargados e horizontais acerca da formação e me-
todologia do artista-docente, discutindo caminhos e constructos autoformativos do seu fazer/dizer. Poten-
cializar o reconhecimento da experiência como lócus de saber e produção de conhecimento, como território
de descobertas e de encontros aprendizes.

Assim sendo, os momentos significativos de uma vida tornam-se uma experiência formativa e me-
todológica no sentido de ampliar nosso conhecimento de si e do nosso corpo enquanto produto social,
dilatando o conhecimento vivido, experienciado. “Por isso é tão importante investir na pessoa e dar um
estatuto ao saber da experiência” (Nóvoa, 1995, p.25). Uma vez que “a formação é experiencial ou então não
é formação, mas, a sua incidência nas transformações da nossa subjetividade e das nossas identidades pode
ser mais ou menos significativa”. (Josso, 2004, p. 48.)

A pesquisa objetiva analisar a construção do artista-docente atravessada pelas marcas de espaços e


pessoas que perpassaram sua história de vida. Um falar de si permeado pela experiência com o outro. Trata-
-se de um estudo prático/teórico que se intersecciona no campo da Arte e Educação no entendimento de
pesquisa como potência de vida e criação.

Para tanto, esta pesquisa que também intitulamos composição de afetos/artistas-docentes aponta a
necessidade de agenciar espaços para questões de trajetos pessoais em um movimento de dividir e ao mes-
mo tempo habitar um espaço compartilhado.

514
Assim sendo, falaremos do ponto de vista metodológico, que o estudo constitui de uma pesquisa
na qual utilizamos como método os conceitos da História de Vida e Formação. Deste modo, para a coleta
de informações adequadas à compreensão desta investigação, narrativa autobiográfica com relatos orais e
escritos, descrição e análise de espetáculo.

Nosso intento é com nossas pesquisas e mais especificamente neste artigo inventarmos espaços para
trocarmos experiências, para nos deixarmos afetarmos pelo outro numa composição de um texto que carre-
ga a possibilidade de um encontro consigo e com o outro mediado pelas experiências de si.

COMPONDO UMA VIDA/FORMAÇÃO ARTISTA-DOCENTE:


ATOS DE (RE) EXISTÊNCIA

Neste momento, descreveremos a metodologia desta pesquisa, interseccionada pelo nosso aporte
teórico e alguns achados do estudo. Os percursos que estamos construindo com esta investigação275.

Interessa neste estudo aprofundar a ciência como modo, possibilidade de encontro do homem com
a vida. “Uma ciência que não investiga os sentimentos serve para quê? Seve para tudo aquilo que não é sen-
timento. Serve, pois, o homem? Serve toda a parte do homem que não é sentimento”. (TAVARES, 2012, p.
20) Escrever com as alegrias, fragilidades e potencialidades, com a escritura dos acontecimentos, momentos
e pessoas que passaram por mim. É assim que esta escritura propõe. Uma escritura de mim que dialoga com
o outro, com o mundo.

Segundo Macedo (2015, p. 100 e 101):

A escrita em si é uma experiência singular. A escrita tem seus caminhos e seus mistérios
próprios, bem como é uma narrativa- como toda narrativa – que altera seu autor e produz
estranhamentos nele próprio. Se move, muitas vezes, via uma alteridade relacional pró-
pria. Ou seja, a escrita produz uma hermenêutica singular e singularizante.

A História de vida e formação aciona um tecido bordado de experiências. Ela incita à dialética
indivíduo/sociedade na possibilidade de trazer o cotidiano como cenário necessário para a discussão da
subjetividade na ciência. O saber da vida e a vida como saber. Um saber que acontece no corpo. Um corpo
que ao longo da minha vida venho estudando e experienciando seja no Teatro, Dança, ou na Educação.

Neste estudo, elegi a história de vida como método no sentido da mesma ser um caminho para a
consecução desta pesquisa. Este arcabouço metodológico integra o movimento atual, que procura repensar
as questões da autoformação acentuando a ideia que “ninguém forma ninguém” e que “ a formação é inevi-
tavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida”. (Nóvoa, 2010, p. 116)

Como pontua Josso (2004, p. 39),

o que faz a experiência formadora é uma aprendizagem que articula, hierarquicamen-


te: saber- fazer e conhecimentos, funcionalidade e significação, técnicas e valores num
espaço-tempo que oferece a cada um a oportunidade de uma presença para si e para a
situação, por meio da mobilização de uma pluralidade de registros.

275. Explicito que esta parte do texto está escrito em primeira pessoa, uma vez que um dos autores deste texto é também sujeito da pesquisa.

515
Este método problematiza o sujeito como potencializador da sua formação, construção metodo-
lógica e investigação de si, enquanto adulto. Este aciona outras possibilidades de pensar/fazer a pesquisa
acadêmica na busca de um sentido que muitas vezes busca uma verdade absoluta distante do pesquisador.
Como pontua Velardi (2015, p. 98)

Ao buscarmos reconhecer o sentido da pesquisa científica, é importante revisitarmos a


ideia do método científico como forma de operação mental em busca da verdade. Esse
conceito, forjado e cunhado ao longo dos séculos, é provavelmente um dos mais impor-
tantes assuntos do nosso tempo. Vivemos, de certo modo, sob a hegemonia da Ciência
como forma universalmente válida de conhecimento sobre as coisas, uma vez que é quase
senso comum o fato de que o acesso à verdade científica trará à luz aquilo que o mundo é.
Mais do que isso, pela ciência vencerás, venceremos!

Corroboro com a citação de Velardi (2015) no sentido de que há no método científico uma ne-
cessidade em avigorar uma verdade absoluta o que é impossível na pesquisa uma vez que a mesma não é
estanque e sim, uma obra aberta de movimentos contínuos de descobertas. Hissa (2011) pontuam em um
texto/conversa o esvaziamento que a ciência moderna ancorou distanciando os sujeitos (pesquisadores) da
pesquisa pontuando um desencanto e uma impessoalidade na mesma. O que penso acarretar em formas
engessadas de pensar e produzir o conhecimento que o distancia da vida e de práticas mais abertas do saber.
Um saber sentido, vivido. Gonçalo (2011) em reposta ao que Hissa (2011) indaga sobre a Arte na Ciência
pontua que “...na arte, é necessário, um entusiasmo, uma força que empurre para algum lado, e portanto, um
desequilíbrio qualquer. Neste aspecto a alegria pode ser um desequilíbrio”.

A partir do que Gonçalo (2011) expõe acima penso que é necessário um desequilíbrio na ciência no
sentido de trazer os afetos para a pesquisa compondo um saber que faça sentido para o pesquisador e para
quem apreende a pesquisa/conhecimento. É necessário trazer um pensamento articulado na investigação
com uma realidade que também é o sujeito que pesquisa e não fora dele. Trata-se de uma postura metodo-
lógica no sentido de que a metodologia é o nosso próprio fazer. Como explicita Gonçalo (2011, p. 127) “a
metodologia é nossa identidade e é também algo que nos seduz. Nós somos atraídos por aquilo que conhe-
cemos, por aquilo que dominamos. E o que conhecemos e dominamos é, muitas vezes, bastante próximo do
que somos.” Somos o próprio conhecer intermediado pela realidade que vivemos.

A história de vida aciona a discussão como existimos e (re) existimos na medida em que ela traz a
pergunta do que fizemos com nossa vida e para onde ainda podemos seguir. Este modo de existir, já exis-
tindo me amplia uma combinação de outras cores de outras formas de ser e estar no mundo. Assim sendo,
sou grata por ter a oportunidade de trabalhar com Arte porque é neste habitar que tento me inventar, com
os experimentos que venho fazendo da minha vida, na tese numa relação teoria e prática na medida em
que minha pesquisa tem como objetivo compreender como as minhas experiências de vida e formação me
construíram como artista-docente.

Para a coleta de informações adequadas à compreensão desta pesquisa, utilizarei: técnicas de análi-
se documental (fontes escritas e iconográficas), narrativa autobiográfica com relatos orais e escritos, diário
de bordo, um instrumento meu que chamo escritura no corpo em que recrio em mim (corpo), momentos
significativos da minha vida,advindas também de diários e imagens minhas ressignificando minha histó-
ria. É válido salientar que não tenho como objetivo a montagem de um trabalho cênico para narrar minha
história cronologicamente, mas trazer elementos da cena para (re) viver minha história, apropriar-me dela
em ato performativo que pode ou não vir a se constituir algo. Mas, que neste momento é um auxílio para
minha escrita, uma vez que sou também artista e este redimensionamento no âmbito da criação para mim

516
se torna uma composição para a escrita sobre minha formação, objeto de estudo da tese. O que vivi é impos-
sível revivê-lo. Porém, os experimentos das escrituras de mim/corpo podem ser uma potência que aciona
uma memória da minha história de vida com o intento de trazer “para o plano da invenção a produção dos
enunciados sobre a nossa experiência”.(LEITE, 2007, p. 18). “Flagrar o registro do passado” (idem, p. 24).
Nesta pesquisa, trabalharei com dois movimentos de coletas: Uma minha e outra com artistas/docentes que
perpassaram por minha vida.

Deste modo, neste estudo trato da minha história de vida como lugar de formação e experimento.
Para tanto, na coleta de dados documentais estão sendo utilizadas imagens (fotografias desde a minha infân-
cia e vídeos), cartas, folders de espetáculos, cursos que ministrei e os quais participei que foram importantes
em meu percurso de vida, tanto no que concerne à arte (dança, teatro e educação) como de minha história
de vida como um todo.

Assim, há uma inquietação de uma pesquisa que pontua uma relação vida/pesquisa/Arte uma pes-
quisa poetizada no existir enquanto ser humano que presencia a vida que olha de frente e a torna obra.
Uma mistura vida/obra/corpo que pulsa que é sangue, veias, pele. Em 2016, quando mudei minha pesquisa
de doutorado havia uma grande insegurança no falar de mim. Ainda não sabia como trilhar mas, algo me
encaminhava para uma experiência com a pesquisa que me possibilitou articular a história de vida como
investigação na minha tese. É válido salientar que este tipo de abordagem vem sendo trabalhada no Brasil
desde 1980, embora mais recentemente observamos propostas de tese com esta temática em programas
ligados à área de Educação.

Spinoza (2013) assevera que nós enquanto indivíduos somos uma potência que aumenta ou dimi-
nui a partir dos bons ou maus encontros que a vida e suas experiências pode nos possibilitar. Assim sendo,
se pensarmos que o Teatro e a Dança acontecem no corpo, assim podemos entender que estas linguagens
artísticas promovem encontros que potencializem composições e engendrem experiências que nos tornam
seres humanos mais críticos, sensíveis, conscientes de si e do mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar neste corpo que é lugar do sensível que é pele, órgãos não está dissociado do pensamento, das
experiências de uma vida e (re) existir. Este corpo biográfico que pensa o todo em subjetividade corporal.
Não somos pólos separados. Tem um movimento interno do nosso corpo com as emoções e isto os nossos
órgãos, sentidos, (co) habitam.

Evidencio com esta pesquisa em desenvolvimento que a Arte amplia nossa vida, nosso olhar, conse-
quentemente nossa pele, nossos órgãos, nosso corpo que se excita e se modifica a cada processo artístico ou
pedagógico que também é estético e ético, como agenciadores do intelecto/afeto. Transitar pela Arte é neces-
sário na medida em que a mesma possui em seu bojo outras formas de olhar e intensificar a vida enquanto
lugar de experiência, de travessia. É nesse olhar/encontro com a Arte que nos encontramos enquanto ser
humano que habita novos espaços de vida, outras arestas. A arte dinamiza outros processos e dispositivos
de conhecimento. Um conhecimento que é operacionalizado na relação teoria e prática que Arte/ Dança/
Teatro embute.

517
REFERÊNCIAS
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e de Ciência: O golpe decisivo com a mão esquerda. In: formação. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus,2010.
Hissa, Cássio E. Viana. (Org.) Conversações: de artes e de
SPINOZA, Benedictus. Ética. 2ª ed. Belo Horizonte: Au-
ciências. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p.125-
têntica Editora, 2013.
150.
TAVARES, Gonçalo. M. Breves notas sobre ciência; breves
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação.
notas sobre o medo; breves notas sobre as ligações. Lisboa:
São Paulo: Cortez, 2004.
Relógio D’ Água Editores, 2012.
LEITE, Janaína Fontes. Autoescrituras performativas: do
_____. Atlas do corpo e da imaginação. Lisboa: Editora
diário à cena. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2017
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MACEDO, Roberto. S. Pesquisar a experiência: compre-
VELARDI, Marília. Pensando sobre pesquisa em Artes
ender/mediar saberes experienciais. Curitiba: CRV,2015.
da cena. In: CESAROLI JR, Umberto;.Resumos do 5º Se-
NÓVOA, Antônio. Os professores e sua formação. Lisboa: minário de Pesquisa em Andamento. São Paulo: PPGAC
Publicações Dom Quixote Instituto de Inovação Educa- – ECA/USP, 2015. v. 3. n.1
cional, 1995.

518
MEMÓRIAS ACIONADAS:
AÇÕES DE (RE)EXISTIR EM ARTES VISUAIS
Maria Betânia e Silva - Universidade Federal de Pernambuco

E sse texto é resultado de um trabalho realizado a partir de práticas pedagógicas desenvolvidas


no componente curricular Currículo e Cultura, por mim ministrado no semestre passado, no curso de
Artes Visuais – Licenciatura da Universidade Federal de Pernambuco. O objetivo do componente é pro-
piciar o estudo sobre teorias do currículo e suas relações com a cultura. Além de trazer ao debate aspectos
que envolvem a linguagem, discurso, poder, representação, identidade e suas implicações na produção
de dispositivos educacionais de controle, governo e subjetivação em processos educativos. Composto por
quinze reuniões de duas horas-aula, os encontros com os estudantes tiveram seu foco em aulas teórico/
dialógicas que proporcionaram ricos debates sobre experiências vividas ao longo das trajetórias dos es-
tudantes e da docente.

No decorrer dos encontros registramos palavras-chave que surgiram nos diálogos estabelecidos em
sala de aula que ora se direcionavam a estrutura curricular, ora exemplificavam elementos do currículo
oculto, ora destacavam as relações interpessoais docente/discente, ora contemplavam as relações de poder
em escala macro ou micro. A partir desses registros produzimos algumas imagens que intencionam proble-
matizar o ordenamento, a classificação, a expansão, a diluição do currículo e a complexidade que envolve as
múltiplas relações nele contidas.

Para a atividade de avaliação, ao final do semestre letivo, lançamos um desafio aos estudantes. O
trabalho final seria produzir um ensaio visual a partir dos conteúdos teóricos debatidos em sala de aula,
articulando-os com as vivências pessoais dos estudantes ao longo de suas trajetórias escolares. Alguns ques-
tionamentos foram levantados a partir da proposta lançada como, por exemplo: como produzir imagetica-
mente a partir de conteúdos totalmente teóricos? O que produzir? Que relações estabelecer entre os conte-
údos e as experiências da vida escolar?

Para tanto, as memórias necessitavam ser acionadas revisitando suas experiências escolares, ao lon-
go da vida, e colocando-as em diálogo com os estudos do campo do currículo. Candau (2012) nos ajuda a
entender que a memória é acima de tudo uma reconstrução continuamente atualizada do passado, mais do
que uma reconstituição fiel do mesmo. Ela, a memória, é de fato mais um enquadramento do que um con-
teúdo, um objetivo sempre alcançável, um conjunto de estratégias.

Assim, todos os estudantes foram estimulados a produzirem ensaios visuais que serão publicados
em formato de livro impresso que se encontra no prelo. Os ensaios provocam reflexões sobre currículos

519
produzidos, vividos e em processo de conhecimento e experimentação. Revelam silêncios que gritam por
meio das imagens. Registram memórias e atentam para aspectos específicos dos currículos escolares. Expli-
citam relações de poder em escala macro e também micro. Discutem a formação profissional. Investigam o
currículo buscando entender sua complexa tessitura.

Acionados por meio da memória, refletimos com Candau (2012) ao afirmar que somos sempre
condenados ao tempo. A memória nos dará a ilusão de que o que passo não está definitivamente inacessível,
pois é possível fazê-lo reviver graças à lembrança.

Nesse trabalho, aqui apresentado, reunimos as palavras diversas que surgiram durante os encontros
com os estudantes e a partir das imagens produzidas dialogamos com Silva (2004), Saviani (2006) e Good-
son (2013).

Buscando compreender, do ponto de vista histórico, o campo de estudo do currículo engloba três
grandes temáticas de investigação que são: o progresso dos esforços reformadores do currículo; a introdu-
ção de novas áreas dentro do currículo e a história das matérias/disciplinas escolares (SAVIANI, 2006).

A história dos estudos curriculares tem a responsabilidade de analisar o significado das práticas
educativas numa perspectiva histórica. Portanto, é fundamental mergulhar no tempo histórico e com-
preender que termos e expressões apresentam significados, possivelmente, diferentes ao longo do tempo.

A autora Saviani aponta as origens do termo currículo com a Reforma Protestante, no séc.XVI,
que tinha o objetivo de formar predicadores protestantes. Ali foi adotado o termo latino scurrere que
significa movimento progressivo ou carreira e essa ideia acompanhou a ordem e a disciplina. A ordem
simbolizava a sequência interna. A disciplina simbolizava os elementos indispensáveis a qualquer curso.
Vinculado à ordem surgiu a ideia de método com um novo sentido. Se antes do séc.XVI o método equi-
valia a um conjunto de procedimentos padronizados de qualquer matéria, a partir dali ele passará a ser
entendido como uma ciência intencional da técnica indicando as linhas mestras para serem assimiladas
e aplicadas.

Assim, a síntese currículo-ordenação-metodização-formalização estavam extremamente imbri-


cados com o conceito calvinista de regularidade e centralidade, ou seja, disciplina que possuía o signifi-
cado de regra de vida dentro daquele preceito. A disciplina seria, então, um elemento de coesão da escola
(SAVIANI, 2006).

O ensino seguiria um plano rígido, compreendido pelas áreas de estudo de cada professor e as
normas de conduta do aluno. A promoção do aluno, de um nível para outro estava diretamente ligada ao
progresso nos estudos e ao cumprimento de normas, sob a supervisão do professor. O currículo era, por-
tanto, representado pelo certificado de conclusão do curso com a avaliação do estudante. A autora aponta
que o sentido de currículo se deslocou com o tempo, passando de carreira individual para o conjunto da
ordenação e sequência da escola do séc.XVI. Foi ali que se deu o uso do termo classe entendida como agru-
pamento para maior vigilância e, posterior, refinamento do conteúdo e dos métodos pedagógicos por meio
da exposição do ensino aprendizagem e do controle externo.

Vale ressaltar que para um estudo da história do currículo é necessário considerar a importân-
cia de investigar a legislação e documentos oficiais; as peças de interpretação da legislação; os regimen-
tos; o rol das disciplinas escolares (programas, níveis, carga-horária, etc.); os programas de formação
e aperfeiçoamento docente; as determinações legais do corpo docente; os livros, manuais, materiais
didáticos etc.

520
Quatro pontos, destacados por Saviani (2006) são considerados fundamentais para compreender o
como se dá a elaboração de um currículo: 1) Ele obedece as prioridades das finalidades da educação escolar
e o público a que se destina. 2) Ele é composto pela seleção de elementos da cultura passíveis e desejáveis
de serem ensinados/aprendidos na educação escolar. 3) Ele resulta de processos conflituosos e de decisões
negociadas. 4) Há uma tendência na elaboração dos currículos a seguirem normas, critérios, modelos mun-
diais, principalmente, os destinados às massas.

No diálogo com os estudantes, em sala de aula, os estudos sobre a trajetória histórica do currículo
possibilitaram estabelecer conexões com as vivências escolares de cada um na Educação Básica; as aprendi-
zagens nos estágios curriculares e seus percursos no Ensino Superior. Assim, a partir do registro dos vários
termos que se destacaram nos debates com os estudantes, iniciamos o exercício de produção imagética. A
que se segue intenciona destacar a multiplicidade de elementos que o currículo concentra, ultrapassando os
limites em determiná-lo apenas como um rol de disciplinas escolares.

Imagem 1: Aglutinação. Acervo pessoal da autora, 2017.

Na medida em que os encontros aconteciam, muitos questionamentos puderam ser elaborados


como, por exemplo, qual o papel das normas de conduta no espaço escolar? A escola ensina apenas os
saberes previamente considerados verdadeiros e válidos? Quem legitima os saberes a serem veiculados na
escola? O professor é um mero reprodutor de saberes? Por que a estrutura dos conhecimentos veiculados se
baseia em conteúdos, objetivos, métodos, processos avaliativos?

A imagem a seguir se direciona na perspectiva de ordenação, de normas, reprodução/criação de


saberes legitimados com o intuito de complexificar o que, por que, como e para que se organizam determi-
nados elementos no currículo escolar.

521
Imagem 2: Arranjamento. Acervo pessoal da autora, 2017.

Silva (2004) nos diz que o currículo é sempre o resultado de uma seleção. As questões centrais que
se colocam para qualquer teoria do currículo é saber qual conhecimento deve ser ensinado? O que se deve
saber? Qual conhecimento é considerado válido para ser parte do currículo? Diante disso, o autor chama a
atenção para se pensar que um currículo busca modificar as pessoas que vão seguir aquele currículo. Isso
significa que o que as pessoas devem ser, está diretamente vinculado ao que elas devem se tornar. Ou seja,
qual é o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Logo, o currículo está envol-
vido naquilo que somos e nos tornamos.

Selecionar, privilegiar um conhecimento, destacar uma identidade ideal são operações de poder e
também elas separam as teorias do currículo, conforme Silva (2004).

O autor em seus estudos apresenta três tipos de teorias do currículo: as tradicionais, as críticas e as
pós-críticas. As teorias tradicionais pretendem ser neutras, científicas, desinteressadas. Concentram-se em
questões técnicas. Sua questão central é como transmitir o conhecimento inquestionável? As teorias críticas
e pós-críticas argumentam que nenhuma teoria é neutra, científica ou desinteressada, mas está implicada em
relações de poder. Por sua vez, as teorias críticas e pós-críticas se concentram com as conexões entre saber,
identidade e poder. Sua questão central é saber por que esse conhecimento e não outro deve ser ensinado?

Diante disso, podemos observar também que substantivos plurais estão envolvidos na constituição
de um currículo. Entre esses citamos a classificação, a concentração, a ordenação, a expansão, a diluição.

522
Imagem 3: Miscelânea. Acervo pessoal da autora, 2017.

Assim, de acordo com o autor, as teorias tradicionais primam pelas formas de organização e ela-
boração do currículo. Elas desenvolvem técnicas do como fazer o currículo. Mas, são teorias de aceitação,
ajuste e adaptação. Já as teorias críticas colocam as formas de organização do currículo em questão. Elas
responsabilizam o status quo pelas desigualdades e injustiças sociais. Desenvolvem conceitos para com-
preender o que o currículo faz. São, portanto, teorias da desconfiança, questionamento e transformação.
Por fim, as teorias pós-críticas analisam a dinâmica de poder que envolve as relações de gênero, raça,
etnia, sexualidade. A verdade é deslocada para aquilo que é considerado verdade. A concepção de identi-
dade cultural e social se estende ao entendimento de que o pessoal também é político. Para estas teorias o
poder está em toda parte e é multiforme. Vale salientar que, ele se transforma, mas não desaparece.

Imagem 4: Camuflagem. Acervo pessoal da autora, 2017.

523
Portanto, é fundamental compreender que o currículo está em constante fluxo e transformação e não deve ser
visto apenas como a expressão ou a representação ou o reflexo de interesses sociais determinados, mas também como
produzindo identidades e subjetividades sociais determinadas. O currículo não apenas representa, mas ele faz. É, fun-
damental, reconhecer que a inclusão ou exclusão no currículo tem conexões com a inclusão ou exclusão na sociedade,
como nos diz Goodson (2013).
Nesse direcionamento, outros questionamentos foram acionados nos diálogos com os estudantes em sala de
aula. Como têm se configurado os currículos escolares contemporâneos? Eles mantêm características das teorias tradi-
cionais? Envolvem elementos das críticas? Contemplam aspectos das teorias pós-críticas?
As palavras acionadas, por meio das memórias dos estudantes, no componente curricular ministrado e apre-
sentadas nas imagens, revelam que não é possível afirmar que apenas um modelo vigora, mas a presença de elementos
dos três grupos de teorias apontados por Silva (2004) coexistem. No entanto, para além da identificação desses ele-
mentos e a compreensão histórica das experiências vivenciadas ao longo do tempo na Educação Básica e Superior, a
tomada de consciência apresentou-se como um elemento indispensável em seus percursos formativos como futuros
docentes de Artes Visuais.
Como destaca Bachelard (1998) a memória e a imaginação não se deixam dissociar. Ambas trabalham para
seu aprofundamento mútuo. Uma e outra constituem, na ordem dos valores, a comunhão da lembrança e da imagem.
Para ele, somente os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos.
Ainda ressaltando o papel da memória Candau (2012) evidencia que através dela o indivíduo capta e com-
preende continuamente o mundo, manifesta suas intenções a esse respeito, estrutura-o e coloca-o em ordem, tanto no
tempo como no espaço, atribuindo-lhe sentido. O autor reforça que é apenas à medida que as lembranças podem ser
dotadas de um sentido e vinculadas ao presente que a memória humana funciona apoiando-se sobre a imaginação. A
memória humana é representativa, capaz de escolher entre lembrar ou esquecer. Portanto, a memória acionada pode
representar ações de existência e resistência.
Assim, concluímos com Goodson (2013, p.70) que cita Mills ao afirmar que:

somente onde o povo e os líderes são compreensivos e responsáveis é que os interesses


humanos entram em ordem democrática e somente quando o saber tem importância pú-
blica é que esta mesma ordem se torna possível. Somente quando a mente possui uma base
autônoma, independente do poder, mas com o poder firmemente relacionado, é que pode
influir na formulação dos negócios humanos. Esta posição só é democraticamente
possível quando existe um povo livre e bem informado.

Imagem 5: Rédeas. Acervo pessoal da autora, 2017.

524
Mas, será que o saber tem importância pública? Qual saber? Interessa um povo livre e bem (in)
formado? Quais as consequências da formação de um povo para a autonomia? Qual o nosso papel na cons-
trução da sociedade e formação dos sujeitos?

Freire (2005, p.53) nos ajuda a reconhecer que ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado.
Assim ele afirma, “gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas consciente
do inacabamento, sei que posso ir mais além dele”.

Imagem 6: Fora de foco. Acervo pessoal da autora, 2017.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade:
Martins Fontes, 1998. uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizon-
CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Con- te: Autêntica, 2004.
texto, 2012. SAVIANI, Nereide. Saber escolar, currículo e didática:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes ne- problemas da unidade conteúdo/método no processo
cessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, pedagógico. Campinas: Autores Associados, 2006.
2005.
GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Petró-
polis: Vozes, 2013.

525
TEATRO E COMUNIDADE:
CONTRIBUIÇÕES À FORMAÇÃO
DE PROFESSORES NO BRASIL E PORTUGAL
Ramon Santana de Aguiar (UEMG)
Isabel Bezelga (CHAIA/UE)

A atividade teatral entendida como ação artística contribui para o desenvolvimento estético e
para o entretenimento. O Teatro, por vezes, também se propõe como ato social e lócus de reflexão e posi-
cionamento crítico filosófico.

No início de seu trabalho “O que é teatro”, Fernando Peixoto (1985) ensaia uma possível definição
dessa prática simbólica afirmando ser a interação entre dois seres humanos em um espaço previamente
determinado: um que observa e outro que age. Segundo o autor entre eles há uma consciência de cumplici-
dade, “que os instantes seguintes poderão até atenuar, fazer esquecer, talvez acentuar” (PEIXOTO, 1985, 09).

O ator, sozinho ou acompanhado, representa uma personagem “através de palavras ou gestos, talvez
através da imobilidade e do silêncio”, enquanto quem assiste, sozinho ou acompanhado, “sabe que tem dian-
te de si uma reprodução, falsa ou fiel, improvisada ou previamente ensaiada, de acontecimentos que imitam
ou reconstituem imagens da fantasia ou da realidade” (PEIXOTO, 1985, 09).

Neste encontro, ambos têm a oportunidade de participarem de uma “cerimônia” que permite que
fujam da própria realidade para o mergulho num universo inusitado, de experiências sensoriais, textuais
e estéticas. Mas também, os participantes podem aprofundar no conhecimento lúcido e crítico da própria
realidade que os cerca, contribuindo para que se tornem cidadãos mais conscientes, vigorosos e críticos.
(PEIXOTO, 1985, 09)

O teatro é um ato intencional passível de contribuir para transformações sociais. Essa intencionali-
dade é estabelecida anteriormente à audiência do espectador. A partir da assistência e incluindo-a. Nesta, o
espectador processa suas conexões, identificações, distanciamentos críticos.

Entre as diversas possibilidades estéticas em teatro, o Teatro e Comunidade vem se destacando como
ação privilegiada. A práxis em Teatro e Comunidade opera e mobiliza diferentes ciências e metodologias em
viés transversal. Seu movimento busca contribuir para projetos artísticos sociais que agregam e mobilizam
fenômenos que instauram a compreensão de quadros de referências - estéticas e comunitárias. Esses se dão
a partir do trabalho de criação cênica e dramatúrgica realizados por e/ou com um determinado grupo.

O conceito de Teatro e Comunidade é multifacetado, dada a natureza diversa das suas possibilidades de
aplicação. Esse coloca em evidência a pluralidade de intervenções em que o teatro é usado como meio de ex-
pressão, comunicação, encontro e desenvolvimento. Norteadas pela máxima “Of the People, By the People, and

526
For the People” (GEER, 1993) reconhecemos, no entanto, no percurso das várias práticas teatrais em contextos
comunitários, que a este lema correspondem distintas aproximações tipificadas: Teatro para comunidades;
Teatro com Comunidades; Teatro por Comunidades (VALENTE, 2005). Também na perspectiva de Nogueira
(2006, 2007), que salienta tratar-se de um olhar sobre as práticas, e por isso constituir-se tão só, como uma
possibilidade de análise, é possível distinguir esses 3 modelos em função das decisões sobre os objetivos e as
abordagens teatrais estarem imputadas ou não aos seus participantes.

Analisando a produção científica da área, constata-se que, apesar da heterogeneidade de signifi-


cados e da diversidade de nomes/designações adotados, todas elas respiram uma mesma perspectiva de
atuação para e com a comunidade. (BEZELGA; CRUZ; AGUIAR, 2016).

Os mais diversos contributos introduzem abordagens muito especializadas, quer referindo-se a es-
pecificidades dos grupos e subgrupos, objeto de intervenção, quer focando a dimensão política quer ainda
colocando a tónica no desenvolvimento sustentado, na promoção de valores e boas práticas e na afirmação dos
direitos humanos. Porém, a função social e transformadora do teatro está evidentemente presente em todas
estas acepções e nelas é possível rever um mesmo denominador comum, alicerçado pela visão educacional de
Paulo Freire e ainda pelas perspectivas do teatro de Brecht e do ‘Teatro para todos” de Augusto Boal.

O Teatro e Comunidade busca contribuir para o processo de conscientização de grupos e cidadãos


possibilitando interpretações críticas, fortalecendo identidades, constituindo grupos ou mesmo, realizando
a manutenção e atualização de tradições cênicas de determinadas comunidades.

As características dessas manifestações conferem possibilidades que corroboram com construções


de identidades coletivas possíveis graças a metodologias em Teatro e Comunidade dentre elas, a valorização
das memórias, das tradições e das experiências individuais e coletivas dos participantes.

Contribuindo com a memória pessoal, os participantes constroem a memória coletiva aproximando


do que Walter Benjamin (1996) chama de “narrativa de reminiscências”. Segundo esse filósofo, (...)“a remi-
niscência é que tece a rede que, em última instância, todas as histórias constituem entre si” (op. cit.: 211). A
reminiscência funda uma possível cadeia da tradição, permitindo a transmissão dos fatos, acontecimentos e
trocas de geração em geração. (BENJAMIN, 1996).

Nos momentos coletivos de construção e ou preparação das performances em Teatro e Comuni-


dade, a identidade pretérita da comunidade se mistura com o presente. “A memória se torna constituinte
do sentimento de identidade sendo importante como continuidade e coerência individual e de grupos”.
(POLLAK,1992, 204)

Esta dinâmica e seus resultados comprovam que também a memória e a identidade pertencem ao
espaço do corpus coletivo que venceu as teias do tempo e que, por vezes, podem estar silenciadas, o que não
quer dizer esquecidas. (POLLAK, 1992).

As ações em Teatro e Comunidade pretendem contribuir para que essas “teias” (GEERTZ, 1989)
possam constituir um tecido cultural que estabelece pertencimentos valorizando a identidade comum. Con-
tudo, não é criada uma “trincheira”, mesmo porque, no mundo globalizado isso é impossível, porém cria-se
um referencial de localização cultural nesse mesmo mundo globalizado.

Considerando suas especificidades, estudos e práticas dessa modalidade assim como encontros276,
seminários e outras ações têm possibilitado as diversas interseções possíveis com a educação e formação de
professores.

276. Destaque para o “Encontro Internacional de reflexão de práticas artísticas comunitárias” I e II realizados em 2015 e 2017 respectivamente em
Portugal tendo os autores deste texto como coordenação e comissão organizadora.

527
Para além de grupos comunitários ou de natureza semelhante, as práticas e pesquisas em Teatro e
Comunidade tem contribuído para a formação de professores na área artística e outras áreas com destaque
para projetos de extensão na Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), Brasil e na formação realiza-
da tanto em Educação (professores generalistas) como na formação em Teatro (atores e artistas pedagogos),
na Universidade de Évora, Portugal.

Todas elas reivindicam um aprofundamento científico e metodológico baseado num conhecimento


atualizado sobre os processos de aprendizagem colaborativa e de desenvolvimento de processos artísticos
criativos, participativos e dialógicos. locus de atuação docente dos autores deste artigo.

O projeto de extensão (UEMG-PROINPE) nomeado “Estudos em Teatro/Contação de histórias”


tem sido desenvolvido nos anos de 2016/2018 e configura-se como um curso voltado para alunos de gradu-
ação/licenciaturas e graduação/psicologia da UEMG unidade Divinópolis, MG.

No curso, considera-se o Contador de Histórias um Ator com o pleno domínio da cena. Para tal,
necessita dominar técnicas corporais, vocais e psicológicas que o auxiliam na performance e possíveis inter-
ferências do público. Ainda, conhecimentos e “atenção de mundo” para a escolha de repertório e a estrutu-
ração da caracterização através de figurinos, adereços, objetos etc.

Para escolha de repertório, o curso vem introduzindo na arte de contar histórias a valorização de
memórias individuais de seus participantes e memórias coletivas pertencentes ao imaginário da comunidade
de referência. Para além das memórias vivenciadas no bojo das relações sociais e familiares, também lendas
e mitos locais de domínio público. Essa escolha tem como referência metodologias do Teatro e Comunidade,
destacando: a experiência performativa e as memórias do conhecimento compartilhado; a diversidade esté-
tica possível em uma comunidade; a integração de elementos culturais populares; a dimensão festiva; o uso
de elementos expressivos da cultura popular e mecanismos de identificação comunitária (BEZELGA; CRUZ;
AGUIAR, 2016).

Para os “desafios” cênicos, a improvisação teatral, os jogos de regras e o estabelecimento de focos


de concentração (KOUDELA, 2001) têm também contribuído metodologicamente para a formação dos
Contadores de Histórias.

O curso (projeto) de extensão tem duração de seis meses com carga horária de 6 horas semanais.
Nos primeiros dois meses de curso, os participantes, na sua maioria leigos em formação teatral, têm uma
formação inicial em história do teatro no século XX juntamente com sessões de jogos teatrais, técnica vocal
e conscientização do movimento na acepção de Angel Viana. Segundo Teixeira (2008);

Em Angel, a experimentação da percepção do corpo leva-nos à apropriação – o reconheci-


mento de si próprio. O caminho é o da observação que compara, analisa, verifica outras mil
particularidades; neste estágio de olhar para si e para o outro se constata a multiplicidade
humana. A observação ajuda na assimilação dos trejeitos, hábitos, manias corporais que
favorece a condição primordial para o ator corporificar-se, buscando referências externas e
internas. (TEIXEIRA, 1998)

A presença corporal do ator contador de histórias é ingrediente fundamental para o ato. Perceber o
corpo do ator como depositário que observa e veicula memórias torna-se determinante para a metodologia
aqui relatada.

Nos meses seguintes do curso, as atividades de jogos teatrais, conscientização do movimento e técnica
vocal permanecem acrescidas de atividades de recolha e seleção de histórias. Neste processo, as histórias

528
recolhidas junto a memória individual e coletiva (comunitária) é escrita e reescrita num processo constante
de experimentação cênica. Também, mitos e lendas locais são recolhidas e trabalhadas com os objetivos aqui
apresentados.

Nos trabalhos desenvolvidos e resultados alcançados, constata-se através das performances e re-
cepção, que as metodologias empregadas têm possibilitado aos participantes do curso de extensão, desen-
volverem performances criativas e contextualizadas baseadas não só as prerrogativas e técnicas teatrais do
Teatro e Comunidade mas também o sentimento de pertença e valorização cultural de todos os envolvidos.
Nas apresentações realizadas no campus da UEMG e em outros espaços escolares de educação infantil e
ensino fundamental, segundo depoimentos, percebe-se a pronta recepção e entusiasmo para a proposta de
“Contação de Histórias” aqui relatada.

Na Universidade de Évora, Portugal, nos trabalhos desenvolvidos em Teatro e Comunidade, desta-


que-se neste texto, a participação de estudantes da Licenciatura e Mestrado em Teatro no Projeto Perfor-
mance património e comunidade. Este está vinculado à pesquisa desenvolvida na unidade ID CHAIA, que
articula a criação artística teatral e educação, numa perspectiva de vinculação comunitária e social.

A perspectiva que aqui se apresenta, decorre da constatação de necessidades urgentes de espaços ade-
quados ao desenvolvimento de projetos de criação e pesquisa artística com abordagem multidisciplinar e com
um profundo enraizamento na relação dialógica com as comunidades e diversidade de grupos presentes no
território. Territórios estes que constituem – em si mesmos – espaços de laboratório e experimentação me-
todológica no âmbito das artes performativas do Teatro e Comunidade, teatro educação e mediação artística.

Estes domínios têm eco na mais recente oferta de formação pós-graduada (com carácter de espe-
cialização) disponibilizada pela Universidade de Évora: Pós graduação em Teatro Educação e Comunidade;
Pós-graduação em Mediação Artística em contextos educacionais.

A ligação da Academia ao território onde se inscreve, mobiliza não apenas os agentes institucionais
e estruturas associativas como parceiros, mas igualmente implica o reconhecimento de grupos não formais
que promovem a vivência e fruição comunitária de manifestações culturais e artísticas na região como su-
portes “vivos” de um património imaterial ímpar. Esses são os pilares para a justificativa da criação destes
espaços no desenvolvimento da pesquisa e na promoção da oferta de um projeto artístico e cultural.

As linhas de atuação pela realização de projetos, no contexto académico, potenciam a autonomia de


indivíduos, grupos e comunidades, na implementação de ações artísticas e sócio educacionais, criando-se
assim as condições de sustentabilidade e alcance de objetivos.

Com a formalização da parceria entre o Instituto de Estudos Literatura Tradicional, (IELT) – FCSH/
Universidade Nova de Lisboa e o CHAIA – Universidade de Évora, começou a ser desenvolvida a linha
de pesquisa “Práticas performativas/artísticas e Comunidade” (Coord. Isabel Bezelga). Esta linha inclui
dimensões da Performance e Património na perspectiva da criação e prática artísticas como processo inves-
tigativo numa colaboração muito direta com os Ensinos Artísticos e de Formação de Professores da Uni-
versidade de Évora em articulação com a Câmara Municipal de Évora e a Direção Regional de Cultura do
Alentejo. Estas deram força ao desenvolvimento do sub-projeto em curso (2015-2020) no âmbito do tema
Teatro Comunidade, Performance e Património. 277

277. Estão igualmente protocoladas as relações com CIAC – UAlgarve, ESMAE e ESTC, no âmbito da colaboração dos membros da equipe, enquan-
to investigadores e docentes, ligados à formação pós-graduada em Teatro e Comunidade e ainda o desenvolvimento de parcerias ativas, através da
colaboração de equipe de especialistas (Prof. Dr. Claudio Bernardi, Prof. Dr. Tim Prentky, Prof. Dr.ª Márcia Pompeo Nogueira, Prof.ª Dr. Marina
Henriques, Prof.ª Grácia Navarro, entre outros) de diversas Universidades Europeias e da América Latina (Universidade Católica de Milão-IT,
Universidade de Barcelona-ES e University of Winchester-UK, na Europa e Universidade do Estado de Minas Gerais-UEMG, Universidade do Rio
de Janeiro-UniRIO, Universidade de São Paulo-USP, Universidade de Campinas-UNICAMP e Universidade de Santa Catarina-UDESC no Brasil),
através da realização de intercâmbios e orientações de Doutorado e Pós-Doutorado.

529
O projeto centra-se no estudo das expressões culturais e artísticas de diferentes grupos e comu-
nidades e pretende contribuir para o aprofundamento do conhecimento científico neste âmbito, sinali-
zando a sua existência, vitalidade, e contemporaneidade, dissipando a “invisibilidade” associada a estas
performances.

Estudos recentes da equipe envolvida (BEZELGA, 2015; BEZELGA et al, 2015; CRUZ, 2015) apon-
tam para fecundos diálogos entre as manifestações expressivas tradicionais e a performance contemporâ-
nea, pelo seu vínculo comunitário, abrindo a porta ao estabelecimento de novas interfaces.

Com os trabalhos em curso e envolvendo os estudantes nas diversas fases, identificamos e explora-
mos suas contribuições mútuas, através de:

1) realização dos mapeamentos das manifestações de teatralidade e performance populares na atualidade e


das práticas de Teatro e Comunidade, enquanto modalidade artística, tendo como referência o contexto do
espaço lusófono, nomeadamente Portugal, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe e Brasil; 278

2) sistematização de forma congruente das bases para uma compreensão das especificidades estéticas e dra-
matúrgicas destas práticas, moduladas por uma relação ética - necessariamente presente em processos de
co-criação - e assente nos diálogos interculturais entre o tradicional e o contemporâneo.

Neste contexto os estudantes da Universidade de Évora têm participado ativamente na concepção e


produção de espetáculos e intervenções performativas, articulando a dimensão patrimonial do espaço pú-
blico com as histórias, vivências quotidianas da comunidade e ressignificações simbólicas do espaço públi-
co, por parte quer das comunidades que os habitam, quer por parte daqueles que o visitam e usam movidos
por interesses diversos.

Estas práticas teatrais em contextos formativos apresentam-se como uma oportunidade e consti-
tuem um esteio novo que possibilita examinar e escrutinar as questões de identidade.

Outro processo de pesquisa e criação performativa comunitária intitulado “Sete Águas”, é o exemplo
que apresentamos em seguida. Realizado também em Évora, esse assentou nos processos auto reflexivos das
experiências pessoais de todos os elementos do grupo, incluindo a docente 279 através da realização de labo-
ratórios de pesquisa e criação em contexto, com recurso a diversas técnicas ativas e participativas de criação
coletiva inspiradas no Devising, no Teatro-debate e no Play-back theatre.

“Sete Águas” envolveu alunos dos 3 anos da Licenciatura em Teatro e Comunidade e foi desenvolvi-
do no centro histórico de Évora entre fevereiro e julho de 2016.

O projeto surge a propósito das comemorações dos 400 anos do Aqueduto, que rasga e costura a
paisagem desta cidade património da UNESCO. Com a sua rede de chafarizes, caixas de água e fontes a
paisagem urbana se impregnou nas vivências quotidianas dos cidadãos ao longo de séculos. O projeto rea-
lizou-se num laboratório de criação a céu aberto, implicando vizinhos e frequentadores de um dos espaços
de encontro emblemáticos da cidade: o “Chão das Covas”, local de antigas feiras e mercados. “Sete Águas”
desenvolvendo-se em torno dos significados simbólicos da água e dos seus usos por uma comunidade que
histórica e socialmente com ela tem convivido quotidianamente.

278. Neste domínio articula-se com o Projeto Disponibilização de Recursos e Divulgação das Brincas de Évora (responsável científica e de execução
Isabel Bezelga), desenvolvido em 2015 com apoio da EDP, e que permitiu o levantamento dos grupos de Brincas existentes em Évora, edição de livro
e documentário sobre as Brincas, como forma de divulgação pública. (as brincas são uma forma de teatro popular de índole comunitária, de raiz
tradicional característica do Alentejo)
279. Isabel Bezelga

530
A criação de “personagens” foi realizada com o recurso a formas simples de fácil identificação.
O Coro foi um recurso organizativo que potenciou a participação e a espectacularidade. A introdução
de figuras “bizarras” e uso de bonecos cabeçudos, provocou estranheza e ruptura, quebrando a seriedade
temática de determinadas cenas e apelando à ligação ao quotidiano e licenciosidade da fala. A ritualiza-
ção do mito dá lugar ao grotesco, ao improviso e à interação e interpelação espontânea com a audiência.
O uso do humor constituiu-se como que um piscar de olhos contemporâneo à audiência mais jovem e
recém chegada à academia, no sentido do reforço de laços que os integram numa vivência da cidade em
várias camadas.

O canto, a música e a dança reforçaram o vínculo comunitária o que surtiu efeito mobilizador ape-
lando à coparticipação.

A pesquisa acolheu testemunhos, documentos, memórias de quem voluntariamente se ia demo-


rando, conversando, simulando, bebendo e cantando. Este movimento acabou por ditar a construção
dramatúrgica.

Reflexões Finais

As práticas teatrais em contextos formativos e comunitários apresentam-se como uma oportunida-


de que constitui um esteio novo que possibilita examinar e escrutinar as questões de identidades:

A exploração temática, metodológica e técnica que percorre este tipo de prática, garante a riqueza
e a profundidade dos processos de formação. Perante o declínio do estatuto reverencial a códigos do teatro
convencional, a academia é por natureza o espaço de questionamento e laboratório das demandas artísticas
contemporâneas. Nesse sentido o posicionamento ativo de professor e do aluno, baseado numa análise e
experimentação crítica inscreve-se na tentativa da realização de um constante e atualizado mapeamento de
possibilidades.

A construção partilhada e comunitária de conhecimento é o motor de desenvolvimento e trans-


formação individual e possivelmente social, que remete para a consideração da abordagem do Teatro e Co-
munidade. Este percebido como eminentemente processual, onde se promovem no seio do grupo, as com-
petências co-investigativas, co-criativas e co-avaliativas de âmbito artístico, estético e social, insubstituíveis
para os levantamentos temáticos e conceptuais para a organização dramatúrgica em Teatro e Comunidade.
(BEZELGA; CRUZ; AGUIAR, 2015)

Estes diálogos e parcerias são fundamentais na (trans)formação dos sujeitos que habitam um mesmo
espaço-tempo de aprendizagem e criação, pois constituem-se como espaços de mediação de aprendizagens.

Destaca-se ainda a promoção do envolvimento de alunos e ex-alunos em iniciativas educacionais,


culturais e artísticas que reforçam a sua intervenção cívica enquanto futuros profissionais na promoção de
direitos fundamentais, nomeadamente de práticas inclusivas e de equidade, na prevenção de riscos e confli-
tos e na defesa e valorização patrimonial e ambiental de forma sustentada.

A experiência de mergulhar num processo criativo comunitário ou seja, defender a todo o custo
o desenvolvimento de um laboratório de criação colaborativa, pode e deve tornar-se numa rica plataforma
de formação cooperada, entre artistas!

A diluição gradual do que está consignado legitimado no desempenho dos distintos papéis (profes-
sor/aluno) instituídos na Academia, permite aproximar da vivência duma relação horizontal, questionadora
e desafiante.

531
Bibliografía

AGUIAR, R. A atualidade de São Gonçalo do Bação: En- GEER, R. Of the people, by the people, and for the pe-
tre a memória, o esquecimento e o teatro. In: Cadernos ople: The field of community performance. High Perfor-
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532
PRINCÍPIOS PRÉ-EXPRESSIVOS
E INVESTIGAÇÃO BIOMECÂNICA –
CAMINHOS DO ATUANTE280
PARA O AUTOCONHECIMENTO
Murillo Freire

C aro leitor, o presente trabalho tratadaquilo que seu autor acredita que deva ser buscado den-
tro de qualquer método, formato ou exercício utilizado para o Treinamento Pré-Expressivo de atuantes: a
compreensão dos Princípios Pré-Expressivos, não apenas transculturais, mas, sobretudo, Universais, pois
presentes nos processos de gênese e sistemas funcionais da própria Natureza, onde está inserida a espécie
humana, consequentemente suas criações, como se dá no caso da arte.

Para entendimento do pensamento proposto acerca dos Princípios Pré-Expressivos, recorro à práxis


etnocenológica, que reconhece a trajetória e trabalhodo pesquisador-objeto281, que admite a experiência práti-
ca como fonte de teorização, trazendo minha própria história e formação, primeiramente empírica, posterior-
mente acadêmica e finalmente dentro de um sistema de treinamento para atuantes. De modo empírico, ainda
na década de 1990, estudante do Curso de Artes Cênicas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do
Curso Regular de Teatro do Serviço Social do Comércio (SESC/PE), intérprete por cerca de cinco anos do per-
sonagem Mateus282, assim como em diversos experimentos cênicos desenvolvidos à época, voltei-me intuitiva-
mente para a compreensão das técnicas corporais como fundamento da minha arte como atuante. Na França,
estudante na Université de Paris 8 - Vincennes/Saint-Denis e ator-pesquisador do grupo A.R.T - Vivant (As-
sociationpourlaRechercheduThéâtreVivant283), sob a direção do espanhol Jorge Lapeña (in memorian), fui de
fato introduzido a um método e uma sistemática de treinamento, adotada e aplicada por mim aos meus alunos
e atores-pesquisadores até hoje, certamente com as evoluções e adaptações de minha própria assinatura ao tra-
balho. Foi no A.R.T. - Vivant que passei a compreender não apenas a ação do treinamento sobre minha técnica
como atuante, mas também e, sobretudo, sua ação sobre meu funcionamento energético, biológico, ecológico,
cosmológico... Compreendi, pois, como o trabalho me conduzia a uma compreensão holística de mim mesmo
no Universo, ao passo que respeitava, cada vez mais rigorosamente, as leis que regem a própria arte do teatro,

280. GROTOWSKI, Jerzy. “De la compagniethéâtrale à l’artcommevéhicule”, In RICHARD, Thomas, Travailler avec Grotowskisur les Actions Phy-
siques.Collection: Le TempsduThéâtre. Arles (France): Actes-Sud/Paris (France): AcadémieExpérimentaledesThéâtres. 1995.Termo sugerido pelo
diretor polonês para definir o artista da cena, de modo a resumir as diversas nomenclaturas possíveis, como Ator, Dançarino, Bailarino, Ator-
-Bailarino, performer, etc.
281. DUMAS, Alexandra Gouvêa, “Etnocenologia e comportamentos espetaculares: desejo, necessidade, vontade”, InVI Congresso de Pesquisa e
Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2010. http://portalabrace.org/vicongresso/etnocenologia/Alexandra_Gouvea_Dumas_-_Etnocenologia_e_com-
portamentos_espetaculares.pdf
282. Figura central do brinquedo do Cavalo-Marinho e Bumba-Meu-Boi (em Pernambuco) e Boi-Bumbá (no Maranhão).
283. Trad. Associação pela Pesquisa do Teatro Vivo

533
ou seja, seus Princípios. Eis, pois, o ponto chave para a “compreensão biomecânica” do corpo, tanto em sua
condição coletiva quanto individual, seja pela individualidade biológica, seja pela história e experiências vi-
vidas. “O segredo está nos Princípios, Murilo”! O Mestre apontou o caminho, que o tornou-se cerne de meu
trabalho: descobrir e compreender, através do estudo teórico e da investigação prática, a existência e o funcio-
namento dos mais diversos Princípios. Apropriado dos conceitos de “aculturação” e “inculturação”, classifico-
-osem dois grupos: os “Aculturáveis” e os “Inculturantes”, como veremos adiante. Também na França, após
deixar o A.R.T – Vivant, passei a trabalhar com outro Mestre, que considero de fundamental importância em
meu percurso, o camaronês Robert James ÉboumbouÉssoua (Bob Éboumbou), que já houvera trabalhadocom
Grotowski, quando da terceira fase de seu trabalho, calcado nos estudos sobre o Vodu haitiano284 e os chama-
dos “Estados Modificados de Consciência”285, popularmente chamados de “Transe”. Tais estudose experiências
foram fundamentais para a compreensão final do Treinamento Pré-Expressivo como caminho do atuante para o
processo de autoconhecimento, doravantedenominado “Investigação Biomecânica”, tema final deste artigo. De
que se tratam estas definições? Como se dá a aplicação e compreensão destes conceitos na prática e na práxis
do treinamento? Em que esta consiste essa nova apropriação do conceito, mais que dos exercícios ou resultados
estéticos, do trabalho desenvolvido por VsévlodMeyerhold, já tão estigmatizado?

Para a plena compreensão do tema, antes de abordarmos tais Princípios, sua já citada classificação
em “Aculturáveis” e “Inculturantes”, da influência do pensamento antropológico, dos conceitos de “acultu-
ração” e “inculturação” e da definição detécnicas “aculturadas” e “inculturadas” de representação286, devo
discorrersobre a acepção do “Corpo Humano”, ou seja, nós mesmos, dentro da minha prática com atuantes.
Analisemos o Corpo Humanoa partir da suposta dualidade, por exemplo, entre corpo e espírito, seja sua
materialidade e sua imaterialidade, donde passaremos a pensar em termos de “corpo material” e “corpo
imaterial”. Essa dualidade, não é, porém, a única “partição” que abordaremos do corpo. Vejamos primeira-
mente o corpo material. Consideremos nossa matéria como o resultado de uma tríplice fusãode “funções
orgânicas” distintas, porém complementares em seus funcionamentos, aqui separadas apenas para facilitar
nosso estudo e análise – a “função física”, a “função afetiva” e a “função racional”. De que se trata cada uma
delas e como se manifestam de modo prático em nossa existência? Deixemos primeiramente claro que não
há uma hierarquia entre tais funções orgânicas, mas, segundo cada circunstância vivida ou experienciada,
uma precisará ser primeiramente ativada, recorrendo às demais,passando as três a agirem simultaneamente.
Vejamos alguns exemplos de como se dá essa interação na prática, em nossa própria vida cotidiana: 1) Fico
gripado:minha função física é despertada. Sei, por meio de minha função racional que preciso alimentar-me,
do contrário meu caso só irá se agravar. Lanço mão, então de minha função afetiva, para encontrar algo que
me abra o apetite e instintivamente eu reconheça que será aceito pelo meu corpo; 2) Sofro de um mal de
amor, que interfere gravemente em minha função afetiva, desorganiza as ideias de minha função racional
e me leva a um processo depressivo que afeta significativamente minha função física; 3) Tenho um grave
problema em minha vida pessoal, material ou financeira, por exemplo, que põe minha função racional em
atividade para a resolução da questão. Quando, seja através de meus próprios esforços racionais, seja pela
ajuda externa, chego à resolução da questão, que já me tencionava os músculos e angustiava os sentidos,
neste exato momento, em que a questão se resolve em minha função racional, respiro profundamente, ali-
viando consequentemente as tensões de minha função física, trazendo profundo alívio e sensação de bem-
-estar à minha função afetiva. Eis o funcionamento do que chamamos de corpo material. O que vem a ser o
corpo imaterial? “Somos dois pássaros, um que bica e se alimenta, outro que voa e observa”287. Nosso corpo
imaterial seria justamente o segundo pássaro. Para darmos uma noção mais concreta e menos abstrata ao

284. GROTOWSKI, Jerzy.Op. Cit.


285. LAPASSADE, George. LesÉtatsModifiés de Conscience. France. Collection: PsychiatrieOuverte. PUF. 1987.
286. BARBA, Eugenio. The Paper Canoe – A Guide to Theatre Anthropology.London and New York.Routledge.1995.
287. GROTOWSKI, Jerzy. Op. Cit.

534
seu significado, diremos que o corpo imaterial corresponde à nossa consciência. Dela não podemos escapar.
Podemos mentir para quem quer que seja, menos para nós mesmos. Nossa consciência é, pois, a voz que
nos fala ao espírito quando estamos realizando algo e temos a sensação de justeza e coerência entre nossos
atos e nossa verdade, ou que nos diz que estamos tentando nos enganar. Não dá pra fugir de nossa própria
consciência, de nosso corpo imaterial. Ele é implacável!Dado que só se pode haver consciência num corpo
vivo, que pensa, que age e que sente, ainda que atuando de forma independente, coordenando e ajustando,
o funcionamento de nossa materialidade, uma conclusão surge portanto inexorável: consciência é corpo!288

Os Princípios Aculturáveis

Passemos a tratar daclassificação dos Princípios Pré-Expressivos em dois grupos – os “Aculturá-


veis” e os “Inculturantes”. Para tanto precisamos não apenas citar, mas discorrer, primeiramente sobre o
conceito de “aculturação” o qual, segundo o pensamento antropológico geral, é um fenômeno de imposição
cultural, onde uma cultura dominante (geralmente por fatores colonizadores e econômicos) se sobrepõe a
uma cultura dominada, donde os indivíduos autóctones passam, então, a comportar-se, vestir-se, falar, se
alimentar, entre outros aspectos culturais conforme a cultura que lhes foi imposta. Trata-se ainda de acultu-
ração quando culturas distintas são absorvidas uma pela outra, formando uma nova cultura, diferente, mas
com características das originárias. Além disso, aculturação pode ser também entendida como a absorção
de uma cultura pela outra, no sentido em que aspectos da cultura inicial – dominada – são adotadospela
cultura absorvida – dominante. Este aspecto, porém, considerado como um efeito reverso do processo de
aculturação, não é uma unanimidade entre os antropólogos, assunto que veremos mais adiante289.

Daí o conceito de “técnicas aculturadas”290, pois o atuante, antes de atingir sua capacidade expressiva,
precisa adquirir formas e cânones próprios daquela manifestação cênica específica. Estas técnicas existem tan-
to no Oriente - Nô, Kabuki, Jīngjù (etnocentricamente chamado de “Ópera Chinesa”), quanto no Ocidente -
Balé Clássico, Frevo, Capoeira... Em tais técnicas, antes de pretender atuar, ou dançar, o atuante precisa adestrar
seu corpo às formas que caracterizam e identificam aquela expressão cênica como tal. Eis porque, em nosso
trabalho, alguns Princípios são classificados de “Aculturáveis”, pois como numa academia de artes marciais ou
dança (clássica ou popular), o praticante passa por um processo severo e rigoroso de adestramento, tanto do
corpo, como se seu comportamento cênico e atitude perante si mesmo, através da imposição de certas técni-
cas, habilidades, caminhos, processos e qualidades energéticas que ele precisa adquirir, não importapor qual
expressão cênica o atuante deseje se manifestar, expressar – estamos falando ainda no nível da Pré-Expressivi-
dade291. Ao aplicar os “Princípios Aculturáveis”, estes passam a ser incorporados pelo atuante consolidando-se
numa “segunda natureza” (o jargão é antigo, mas o resultado é vigente e evidente). Classificamos neste grupo,
o dos “Aculturáveis”, os Princípios de: Precisão, Oposição, Élan,Equilíbrio Precário (ou de luxo, segundo Étien-
neDecroux), Variação Dínamo-Rítmica, Omissão, Decisão, Risco, Fluidez (ou “Início e Fim”, segundo Jorge
Lapeña), Mudança de Direção, Irradiação, Stop (ou Sats), Condensação e Alongamento.

288. Apesar destas nomenclaturas (“funções orgânicas”, “funções racional, física e afetiva”, bem como “corpo material” e “corpo imaterial”) terem sido
fruto pesquisas pessoais realizadas nos últimos 20 anos, seguindo uma lógica e pensamento acadêmicos e científicos ocidentais, é vasta a menção a
estas mesmas partições do SER nas literaturas de base de diversos sistemas de crença, das chamadas Terapias Holísticas e mesmo algumas correntes
científicas, como a física quântica. Reiteremos neste trabalho, a busca pelo sentido e argumentação acadêmico-científicos, excluindo quaisquer
abordagens que induzam a uma leitura tendenciosa ao misticismo ou religiosidade. Esta dualidade do corpo em materialidade e imaterialidade tão
pouco corresponde a uma suposta divisão entre corpo e mente, como se mente correspondesse ao cérebro.O cérebro é apenas um órgão do corpo,
compondo sua materialidade, enquanto que corpo/mente compõem uma unidade indivisível, sendo um a extensão do outro, no sentido em que o
corpo que age, também sente, pensa prevê e prepara a próxima ação.
289. O termo “Aculturação” surge em 1880, por J.W. Powel, posteriormente teorizada por W.I. Thomas e FlorianZnaniecki. LEAL, João.The past is a
foreign country? Acculturation theory and anthropology of globalization.In. Etnográfica. Journals Open Edition. Nº 314. Junho de 2011.
290. BARBA, Eugenio. Op. Cit.
291. BARBA, Eugenio. Op. Cit.

535
Os Princípios Inculturantes

Antes de avançarmos, contextualizemos a nomenclatura deste grupo,analisando o que se pretende


por “inculturação”, bem como por “técnicas inculturadas”292.

O termo “inculturação” foi utilizado pela primeira vez em 1985, pelo Papa João Paulo II, num
sentido político, para amenizar a carga negativa do processo de catequização católica, fortemente mar-
cado pela aculturação, ouseja, pela imposição da cultura cristã dominante sobre as culturas nativas e/ou
colonizadas, dominadas, preocupação, aliás, demonstrada desde o Concílio Vaticano II, marco no pensa-
mento ecumênico293. Na época, o Vaticano pretendia desfazer a negatividade do processo de catequização
da Igreja Católica Apostólica Romana, sobretudo, na África, Ásia e América Latina, defendendo a “incul-
turação” como processo reverso de apropriação dos costumes autóctones pela própria Igreja, rendendo-se
às críticas de suas correntes teológicas mais à esquerda, as chamadas “Teologias da Libertação”, notada-
mente a “Teologia Feminista”, assumindo então danças, cantos, ritmos das culturas de cada País onde
se fazia forte e presente. Ora, em Antropologia, como dissemos, este conceito não é unanimidade, por
alguns sendo considerado apenas como processo secundário da “aculturação”, ainda que a outros a nova
terminologia fizesse todo sentido, uma vez que um “processo secundário” é em si umnovo processo que
carece de nova terminologia, posto que carrega um novo sentido epistemológico. Passou-se, então a ser
admitido um outro conceito, que de fato corresponda ao contraponto do processo de aculturação: “EN-
culturacão”, partindo do radical “endo” (de dentro), donde “endógenos”, “endogenia”294. A “enculturacão”
seria, pois, o oposto da “aculturação”, ou seja, o processo tácito de assimilação cultural pelo indivíduo, a
partir do “Habitus Social”295, sotaques, linguagens e vocabulários, em fim, todos os costumes próprios de
seu lugar do origem, com condições geográficas e naturais próprios e inerentes à cada local da Terra e que
determina o “modos operandi” de cada povo, cada etnia, cada Cultura. Teria sido precipitada a definição
de “técnicas inculturadas”? Vejamos.

Se “inculturação” é o processo pelo qual o indivíduo,digamos”aculturado”,passa a influenciar a cul-


tura dominante a partir de seus próprios costumes, mesmo partindo das vivências e experiências “encul-
turadas” próprias do indivíduo atuante, este está sujeito às regras, ou Princípios, recorrentes a qualquer
manifestação espetacular e cênica, posto que em estado de representação extracotidiana, manipulando, suas
energias em gestos e ações, de modo a atingir o melhor sua expressividade. Neste sentido, mesmo que se
servindo de sua própria personalidade e comportamentos endógenos, como é comum no teatro ocidental,
por exemplo, o atuante estará sempre sujeito e submetido a Princípios que estão além de sua vontade e
que, se não respeitados,estará pondo a perder sua própria manifestação artística. Eis o porquê da justeza
do termo «técnicas inculturadas», que dá origem à classificação de «Princípios Inculturantes»: aqueles que,
independentemente de nossa vontade, agem sobre nosso corpo e nossas ações, interferindo diretamente no
curso e na execução técnica, energética e espiritual da atuação. Dessa forma, não temos como impedir, ou
aplicar conscientemente, como no caso dos Aculturáveis, os Princípios Inculturantes: eles simplesmente
agem. Podemos apenas reconhecê-los, compreender sua ação e funcionamento, de modo a nos servir deles,
segui-los, intensificando e ou refreando sua influência sobre nosso corpo e nossa ação. Lembrando que os
Princípios de ambos os grupos não apenas sãorecorrentes, mas Universais, posto que presentes e agentes
no próprio Universo, do qual somos apenas parte integrante, razão pela qual qualquer invenção humana,

292. BARBA, Eugenio. Op. Cit.


293. SOUZA, Flávio Fernando. Evangelização e Inculturação: Desafios Pastoraispara Evangelização em contexto Urbano na Contemporaneidade. In.
Anais do V Congresso ANPTECRE – Religião, Direitos Humanos e Laicidade. V. 05. Rio de Janeiro. 2015.
294. ASSIS, Cássia Lobão e NEPOMUCENO, Cristiane Maria. Processos Culturais: Endoculturação e Aculturação. UEPB/UFRN. Campina
Grande. 2008.
295. MAUS, Marcel, “LesTéchniquesduCorps”. InJournal de Psychologie. Comunicação apresentada à Société de Psychologie. France. 1934.

536
como as artes, regerem-se pelas mesmas Leis do Universo. Neste grupo, classificamos os Princípios de Es-
paço/Tempo, Linearidade/Circularidade, Expansão/Contração,Jo-Ha-Kyu, Impulso e Correspondência. Ao
menos enquanto não nos são revelados outros...

A Investigação Biomecânica

Passemos à análise final de nosso trabalho, o modo pelo qual o teatro torna-se uma via de autoco-
nhecimento. O que vem a ser a «Investigação Biomecânica», da qual eu tenho tratado, falado, trabalhado e
transmitido em cursos, processos laboratoriais e científicos; e porque afirmo ser o fio condutor do processo
de autoconhecimento promovido pelo teatro, mas, extensivo,também, às demais manifestações cênicas e
espetaculares? Evidente que estou falando, não da utilização comum e cotidiana do corpo em suas ações di-
árias, mas de um estado de representação organizada de si mesmo ou de um personagem, como preconizam
a antropologia teatral a etnocenologia296. Desta última, trazemos a noção epistemológica de cena, do grego
skêne/skênos como citado, referindo-se tanto ao corpo do ator quanto ao espaço cênico297, donde concluir
que “Artes Cênicas” são as manifestações artísticas e espetaculares do corpo no espaço. Esta conclusão não
é mera abstração, mas igualmente um parâmetro técnico aplicado ao treinamento, resultando em toda uma
visão holística e cosmológica do atuante diante de si mesmo, sua atuação e seu trabalho diante do público
presente e compondo o mesmo espaço (corpo) que ele.

Por outro lado, algo que sempre me incomodou como pesquisador e apreciador das artes e sua fruição,
é a recorrência com que o pensamento, a chama, a revolta, a centelha revolucionária eo desejo de comunicar
o indizível, métodos, técnicas, sistemáticas desenvolvidas pelos grandes gênios das artes em seus contextos
históricos, as quais promoveram(r)evoluções estéticas em suas épocas, acabam por perder seus sentidos e for-
cas originárias, muitas vezes por obra daqueles que se arvoram seus «discípulos fiéis», ou «continuadores».
Tornam-se formas fixas e rígidas, como peças de um museu.Ainda que, mesmoum museu, precise renovar-se,
reinventar-se, para continuar atraente... Foi o que ocorreu, por exemplo, com o trabalho do russo Constantin
Stanislavski e o seu método de preparação e formação de atores, muito maior que apenas uma proposta de
encenação realista. O realismo foi o melhor que ele conseguiu fazer enquanto encenador, ainda que tenha
tentado se reinventar e buscar novas formas. A metáfora não foi à toa. Vsévolod Meyerhold, ator dissidente de
Stanislavski, em sua expansão técnica e estética, como em sua busca por uma maior teatralidade que extrapo-
lasse os limites do realismo, desenvolveu a chamada Biomecânica298. Meyerhold desenvolveu todo um sistema
de treinamento para os atores de sua companhia, bem como uma estética formal e precisa de encenação. Neste
ponto, deixar claro que não iremos tratar a biomecânica segundo a forma de representação ou encenação,
menos ainda dos exercícios aplicados por Meyerhold. Buscaremos compreender a centelha donde surgiu seu
revolucionário trabalho, seu sentido etimológico, sugerindo consequentemente o epistemológico: bio = vida;
mecânica = funcionamento/movimento. Passaremos então a adotar a Biomecânica como a busca pela com-
preensão, ou seja, o domínio de seu funcionamento físico, vocal e energético na prática: “O Movimento da
Vida em Funcionamento” ou“O Funcionamento da Vida em Movimento.” Eis a origem de nossa “Investigação
Biomecânica” como via de autoconhecimento, lograda pela prática do Treinamento Pré-Expressivo, como dito,
não importando o método, sistema adotado ou exercícios aplicados à formação de atuantes. Não nos interessa-
rá a forma ou estética do trabalho que levouMeyholda desenvolver o conceito da Biomecânica, mas o conceito

296. BARBA, Eugenio. Op. Cit. e PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia. In. Etnocenologia: Textos Selecionados. GREINIER, Christine e BIÃO,
Armindo, organizadores. São Paulo. Annablume, 1999.
297. PRADIER, Jean-Marie.Op. Cit.
298. Falamos aqui da Biomecânica no teatro, fazendo bem a distinção da acepção do mesmo termo pelo campo dos esportes, apesar de haverem pon-
tos convergentes em ambos os campos tratarem-se, uma vez que se debruçam sobre as leis da mecânica e do sistema locomotor do Corpo Humano.
Este tema, porém, seria objeto de outro artigo. Voltemos para o nosso assunto.

537
em si e sua compreensão epistemológica e etimológica, de modo a ser aplicado ao treinamento de atuantes
- físico, vocal e energético. Tão pouco nos interessará tratar de exemplos de exercícios, nem os aplicados por
Meyerhold, muito menos os aplicados por mim: chega de criar «peças de museu» no campo das Artes Cênicas!
Mas será impossível não falarmos em treinamento. Pensemos em certas categorias de profissionais que, por
exigência do próprio ofício, precisam desenvolver habilidades físicas acima da média da população geral. Isso
não os torna seres humanos superiores(em hipótese alguma!), apenas os obriga a adestrarem seus corpos para
além das necessidades cotidianas, fazendo destes profissionais pessoas fora da curva da normalidade, possuin-
do níveis elevadíssimos de habilidades técnicas, reflexos, resistência, sensibilidade, percepção e propriocepcão.
São eles: lutadores de artes marciais, atletas de altíssimo rendimento, soldados de esquadrões de elite e táticas
especiais e, finalmente, atuantes das artes cênicas.

Ninguém vai ao teatro pra assistir a uma historia da forma como qualquer um contaria. Vamos
esperando o extraordinário, o arrebatador, o que nos cala, ou nos põe num frouxo de riso... Ninguém quer
assistir a uma dança que ele mesmo poderia executar. Se assim fosse iria a um salão de baile, não uma sala
de espetáculos! Quando vamos ao circo, nem piscamos os olhos, diante da eminência de um erro que venha
ser fatal. É a possibilidade da morte que nos atrai, assumamos! O que há em comum entreatuantes e pro-
fissionais das outras categorias citadas? Seus praticantes treinam além dos níveis comuns de exaustão.Em
todas essas atividades, fica evidente que o nível de autoconhecimento, inteligência motora, sensibilidade e
domínio das habilidades e energias pelo corpo desenvolvidos está acima da média. Os próprios pensamen-
tos e emoções passam a ser controlados e colocados em seus lugares, de modo a não atrapalhar a execução
da ação. No entanto a capacidade de dar-se ao autoconhecimento é oferecida a todos os seres humanos.
Da mesma forma que o corpo é o único instrumento do atuante (e a partir dele texto, cenário, iluminação,
figurino, ganham vida e passam a fazer sentido), para todo e qualquer ser humano, seus pensamentos, senti-
mentos, afetos, são processados e produzidos pelo corpo. Nós somos os nossos corpos (os sutis e imateriais,
inclusive), se não controlamos o nossos corpos, quem nos controla?

Recapitulando e deixando claro, mais uma vez, que nossa abordagem à Biomecânica não se trata de
uma suposta reprodução do trabalho de VsevlodMeyerhold, mas uma livre apropriação do aspecto semân-
tico do próprio termo: «o Funcionamento da Vida em Movimento» ou «o Movimento da Vida em Funcio-
namento» e que,conforme afirmamos, apenas através de um treinamento, não importa sob que formato, se é
possível percorrer o caminho que nos conduz ao processo de autoconhecimento, ora chamado «Investigação
Biomecânica». Ou seja, não importa como se treine, o importante é treinar! Apesar de, em 20 anos de prática
sistematizada, ter desenvolvido um método e uma sistemática de condução do trabalho através da práxis do
treinamento, não nos interessa aqui discorrer sobre esse trabalho, mas da descoberta, advinda dele, do que
se deve ser buscado, não importa o método de treinamento adotado, seja por um atuante, grupo, coletivo
ou escola de Artes Cênicas – lembrando: artes do corpo no espaço.Exercícios são ferramentas, o principal
objetivo éa aplicação, entendimento e consequente compreensão –domíniodo funcionamento na prática –
dos «Princípios Pré-Expressivos». Classificados por Eugenio Barba como“recorrentes” e “transculturais”299
e por nós como Universais, posto que presentes e regentes do próprio funcionamento do Universo, de seus
seres e, consequentemente suas criações, conforme afirmamos anteriormente. Eis a NASA que não me deixa
mentir, a partir da descoberta do “Bóson de Higs”300

Aqui, levantamos o último ponto de reflexão proposto por esse trabalho. Primeiramente, deixemos
claro que não estamos propondo uma discussão ou discordância aos legados de Barba ou Meyerhold, mas,

299. BARBA, Eugenio. Op. Cit.


300. “Bóson de Higgs ou bosão de Higgs é uma partícula elementar bosônica prevista pelo Modelo Padrão de partículas, teoricamente surgidas logo
após o Big Bang, de escala maciça hipotética predita para validar o modelo padrão atual de partículas e provisoriamente confirmada em 14 de março
de 2013. Representa a chave para explicar a origem da massa das outras partículas elementares.”Fonte: Wikipédia.

538
como um prisma jamais visto, refratar em cores diferentes a luz lançada pelos propósitos destes Mestres. A
classificação dos Princípios Pré-Expressivosem naturezas distintas, assim como uma pluralidade maior que
a proposta pelo italiano, advém das descobertas oriundas da prática, e dos estudos dos trabalhos de outros
diretores, pensadores e “reformadores” das artes cênicas, os quais não vêm ao caso serem mencionados aqui,
todavia ressaltando a necessidade de desenvolvimento do trabalho sobre este tema. De maneira análoga, a
livre apropriação do legado proposto por Meyerhold, que sustenta o desenvolvimento do trabalho sugerido,
ora denominado de Investigação Biomecânica, uma vez que implicando num trabalho voltado para o auto-
conhecimento, mais ainda, num caminho para este fim, consequentemente, conduz o atuante a um processo
notável de enfrentamento de si mesmo, seus bloqueios, suas limitações, medos, cristalizações, processos de
autossabotagem... bem como seus dons, capacidades, talentos desenvolvidos, maturidade cênica adquirida,
não obstante semelhante ao ocorrido em processos terapêuticos. Dessa forma, a via de autoconhecimento
aqui chamada de Investigação Biomecânica,por conduzir o praticante a um processo terapêutico, pode per-
feitamente servir de instrumento exclusivamente para esta finalidade, abrindo o leque dos estudos e práticas
de preparação do atuante, notadamente com foco no teatro, ao campo das práticas terapêuticas, dentro das
chamadas PICS – Práticas Integrativas e complementares em Saúde (SUS), como técnica de Teatro como Ve-
ículo, no âmbito das chamadas Terapias Holísticas301. Mais uma vez, discorrer sobre este tema seria fugir ao
assunto do presente trabalho, que consta, não de práticas terapêuticas, mas artísticas, chamando a atenção
ao fato que, ainda que resultados terapêuticos sejam observados durante a prática do Treinamento Pré-Ex-
pressivo para atuantes, o foco deste trabalho no âmbito artístico consiste em capacitá-lo artisticamente, em
seu desenvolvimento sensível para a criação artística que lhe será requisitada e à qual o praticante se propôs
desde o primeiro momento de ingresso neste ofício. Dessa forma, a quaisquer eventos de natureza psicoló-
gica, existencial e terapêuticas que venham a ocorrer, ou serem observados, durante este trabalho, é acon-
selhável que ao praticante/sujeito seja recomendado o acompanhamento por um terapeuta capacitado para
este fim, que possa conduzi-lo a resolução de seu processo pessoal, sem prejuízos para o resultado final da
obra de arte. Lembremos: apesar de terapêutico, o Teatro não é uma terapia quando o objetivo é fazer Arte!

301. Dentro de minha atuação como Terapeuta Holístico, tenho realizado encontros desta natureza, servindo-me desta técnica, ao que chamo de
Teatro como Veículo, numa clara referência à 4ªe última fase do trabalho do polonês JerzyGrotowiski, “Arte como Veículo”, classificada por ele como
uma fase “vertical” em seu trabalho, “levando o atuante e quem o observa a uma ‘alta conexão’”, diferentemente das três fases anteriores, que ele
classifica como “horizontais”. GROTOWSKI, Jerzy. Op. Cit.

539
O OUTRO CORPO, O OUTRO CAMINHO E
O OUTRO MOVIMENTO: REFLEXÕES SOBRE
O DÔ-HÔ COMO PROPOSTA FORMATIVA
PARA O CORPO-PROFESSOR DE ARTE
Alexandre Cardoso Oshiro - USP

Introdução

O questionamento sobre a importância do corpo como objeto de estudo vem-se encobrindo de


contornos e traços tangíveis à percepção. O constante investimento da ciência em tentativas para decifrá-
-lo criou um curso de água corrente repleto de afluentes, na medida em que a história encarregava-se de
registrá-lo em seu pulso cronológico. Foi pauta desde discussões antigas, quando seu valor era subjugado
pela supremacia da alma ou diante de um abandono total, em prol das postulações religiosas no conven-
cimento sobre uma existência além-corpo, invisível e propriamente divina. Em seguida, ganhou métrica
proporcional, foi fragmentado em partes, individualizou-se e, no presente momento, paira numa tentativa
de coletivar-se.

Em suma, o corpo sempre foi palco de uma discussão binomial. A alma e o corpo, a mente e o corpo,
a razão e o sensível e, finalmente, a teoria e a prática. Roupagens, as quais traduzem essencialmente umas às
outras, transparecendo o domínio de uma atmosfera etérea sobre estruturas biofísicas, orgânicas, na rústica
do carne e osso. Como ressalta Greiner (2012, p. 17), o termo “corpo” descende de krp (forma), combinando
o soma (corpo morto, pela antiga definição grega tradicional) e o demas (corpo vivo ou alma) (informação
de um antigo dicionário indo-iraniano), sinalizando, desde muito tempo, a tradição da não matéria corporal
sobre sua porção material. A diferenciação prevalece na antiguidade, diante da famosa concepção filosófica
ocidental de Platão e Aristóteles, incumbindo ao corpo “palpável”, o lugar de sarcófago da alma; uma exis-
tência efêmera de menor valor, pois padecia no tempo, enquanto a alma prevalecia por toda a eternidade. “É
necessário, pois, que a alma seja substância como forma de um corpo físico que tem vida em potência. Mas
a substância como forma é enteléquia (ato). A alma, portanto, é enteléquia de tal corpo [quem o coloca em
ação]”, como relembra Reale (2007, p. 79).

De receptáculo, transformou-se em morada dos atos pecaminosos, para destitui-lo de presença


sob qualquer circunstância. Foi desautorizado pela opressão religiosa, na violenta onda de choque cau-
sada por interesses cristãos na idade medieval. Como bem relembrou Goff e Troung (2006, p. 11) o papa
Gregório, o Grande, referiu-se ao corpo como “vestimenta abominável da alma”, na perspectiva de que
sua gêneses, derivada de uma relação carnal entre Adão e Eva, condenava-o para toda a vida em terra e
aprisionava-o numa conduta esterilizante de servidão aos interesses cristãos, para uma possível purifica-
ção de si quando morresse.

540
Nada mais do que o jogo entre visível e invisível, descrito por Merleau-Ponty, ao passo que o corpo
que se manifestava diante dos olhos (o corpo da verdade) perdia seu poder de persuasão, quando sobre ele,
posicionava-se a vontade de interesses minoritários, exclusivos de um corpo que não se podia ver, logo não
plausível de ser questionado. Segundo Moreira (2007, p. 27), a citar Martín-Barbero, “o corpo poderia deixar
de ser o instrumento de que se serve a mente para conhecer e converte-se no lugar do que eu vejo e toco, ou
melhor, do qual eu sinto como o mundo me toca”.

Adiante, o corpo que ganhou visibilidade, formas e partes, principalmente após o Iluminismo,
viu-se numa nova disputa entre indivíduo e coletivo. Na tentativa de procurar respostas sobre este corpo
terreno e antropomórfico, partilhou de um incessante jogo de interesses, de forma a desconstruir uma
unicidade apoderante. Em outras palavras, o pensamento científico positivista e o cerceamento do estudo
do corpo pelos mais diversos campos do saber, descentralizou a compreensão global sobre si, ao mesmo
tempo que restringiu o corpo à “redução interteórica” (GREINER, 2012, p. 17-18). Deleuze e Guattari
(1997, p. 42-43) afirmam que o conhecimento da parte-órgãos não favorece à compreensão do todo-
-corpo, uma vez que sua significação surge “pelos afetos e movimentos com o outro”. Quer-se dizer que
a verdade pode estar incidida nas relações intersubjetivas e na compreensão do corpo como um total
mente-corpo-coletivo ou confluir na visualização de uma “experiência intercorpórea” (MANZI, 2008, p.
168). Além disso, o corpo não pode receber o posto de forma universal, uma vez que é provisório pelo
seu caráter de mudança em fluxo contínuo. É “consonante com as leis, códigos morais, representações e
discursos sobre o que o corpo produz e reproduz” (GOELLNER, 2005, p. 28), não é formalizado, acom-
panhando as transformações do que é ser ser humano. É objeto, intermediador, registro e provedor de
saber científico.

O corpo-professor de arte: o sensível, a experiência e o movimento político

De frente ao reconhecimento do corpo e total união entre as características inteligíveis e sensíveis,


em concorrência com a partilha entre indivíduo e coletivo, suscita-se uma possível leitura sobre o corpo do
professor de Arte, como aquele que promulgue em si a articulação dinâmica entre teoria e a prática para
o fenômeno de seu fazer. Deveras, não haveria propósito de discutir esta problemática, caso o paradigma
corpo versus mente não houvesse assumido o poder, ao viabilizar uma definição incipiente sobre as possibi-
lidades corpóreas. Por outro lado, a mente travestida de alma e razão enfatizou este desprestigio das ações,
da prática, da ação criadora a ser modelada mão à mão.

De maneira bastante generalizada, a desvalorização do professor/ensino de Arte no Brasil este-


ja, dentre muitos outros motivos, atada a esta problemática elementar e conceitual, vinculando-se a uma
questão de que já não se faz refletir cotidianamente, de um corpo esquecido e revelado pelos ditames rare-
feitos; ideologias de poder em função de minar aquilo que individualmente se conhece, antes de ser, pelos
outros, enunciado. Trata-se de um corpo- professor de artes na união elementar entre o “ser” e o “fazer”, a
deteriorar os pilares do poder vigente no incentivo da (auto) reflexão pela educação do sensível, pelo propor
de experiências estéticas (também de “um sentir”) e, por fim, pelo semear de um movimento instaurador de
propósitos políticos.

Como reflete Duarte Jr. (2010), é fundamental que a relação entre o eu e o outro seja intermediada
pelo estabelecimento de um diálogo, em parceria direta com os sentidos. Neste parecer, o autor vem a agru-
par, não só as passagens anteriores sobre a mente e o corpo, mas ainda num saber que não surja puramente
de um pensar individualizado. Fala-se que o valor do sensível está em colocar o corpo como veículo comu-
nicante, o qual provoca e é afetado por interferências do aparato sensível, de modo ininterrupto. É desta

541
maneira que a experiência ganha cena significante, deslizando-se como conteúdo aquoso entre as pessoas;
sem dúvidas e hesitações, como num ato abdutor. Fala-se desse “passar ao espectador outra percepção, mais
sensível, para que a leve como uma nova experiência, sendo esta que o sujeito acaba, consciente ou incons-
cientemente, levando como herança” (JUNIOR, 2017, p.165).

O ciclo de experiências compartilhadas aparece com força motriz da criação, compreendendo-


-as como conteúdos inacabados, os quais montam e desmontam de um indivíduo ao outro. Segun-
do Salles (1998, p. 27 e 28), “a própria ideia de criação implica em metas não estabelecidas a priori:
constrói-se à custa de destruições. É a criação como movimento, cujo o produto deste processo é, per-
manentemente, experienciada pelo artista e, um dia, por seus receptores”. Diante deste fato, a paralisia
desta continuidade pelo ensino postulado desfavorece o sincretismo presente no fazer compartilhado,
cuja permuta final seja o empobrecimento da prática artística em incidências de produtos replicáveis.
Como Dewey (2010, p. 59) afirma, olhar para a obra apenas como um objeto terminado “opacifica sua
significação geral”.

Ademais, a experiência estética mobiliza o pensar em movimento incessante, impedindo que


coágulos obstruam os vasos de nossas correntes sensíveis. Este curso perene promove um duplo mo-
vimento: aquele que é característico de nossas estruturas osteomusculares e outro relacionado ao agir
diante de uma problemática opressiva do sistema. Trata-se de um movimento político, o qual apodera
aquele quem persiste neste mover. Neste sentido, a despotencialização da Arte é favorável aos interesses
do sistema, uma vez que “é responsável pelo ativação do sensível, dizível, visível e invisível, além de criar
vetores de subjetivação e novos modos coletivos de enunciação” (RANCIÈRE, 2010, p. 173). O status
quo é uma bela representação a ser utilizada no contexto do ensino das artes no Brasil, “tratando-se
do equilíbrio, onde novas forças podem intervir, forçando-o a uma qualidade dinâmica e de progresso”
(NISKIER, 2001, p. 263).

Por fim, a circunstância do corpo-professor de Arte está encravada nas estruturas modernistas, as
quais convergem para um caminho dessensibilizante de direção única. O ensino da Arte, desde a lei 5692/71
é exibida como “formas expressivas” ou como “área bastante generosa e sem contornos fixos, flutuando ao
sabor das tendências e dos interesses” (FUSARI & FERRAZ, 1992, p.38), a qual clama pela ressurreição dos
ânimos em movimento. É necessário caminhar para a contemporaneidade, na fuga da pura expressão como
molde artístico-pedagógico, em detrimento de elucidar uma educação da Arte democratizante. Propõe-se
um ideal da ação pelo corpo que vibre na contramão desse panorama de idealização. Sua potência está na
forma como ele ajudaria a humanidade a se alimentar de conhecimentos com base na desestabilização de
antigas certezas” (GREINER, 2012, p. 138).

Dô-hô

Em vista de atender inquietações, este texto surge como propósito de preencher lacunas, ocupar um
espaço gestáltico, produzido pela pesquisa de mestrado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Língua,
Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo, quando se refletiu sobre o corpo no processo
ensino-aprendizagem de Ryûkyû Buyô (Danças Tradicionais de Okinawa).

Indagou-se, então, sobre os motivos pelos quais o corpo dos mestres das artes japonesas deti-
nham em si, tamanho apoderamento, além de uma relação ímpar com o espaço que ocupam. E quais
destes conhecimentos poderiam cooperar para um aprimoramento da criação e práxis artístico-peda-
gógica em sala de aula, entendendo que os professores de Arte partilham de características semelhantes
no fazer?

542
Na Japão, o signo “professor” foi concebido em meio sociocultural para designar “literalmente, ‘o
que nasceu antes’” (LEAL, 2001, p. 217), aquele que está adiante, o detentor de maior experiência e, portan-
to, quem guia as sementes cruas pelo seu processo de formação. De mesmo modo, o termo sensei (先生) é
recorrente “para descrever o professor de escola, além de cursos de artes tradicionais, como Aikidô, Judô,
Kendô, Shodô, Butô, entre outras” (HOEFT, 2016, p. 16), enquanto o conceito de mestre é expresso pela pa-
lavra Kyoshô ou kyoshou (巨匠), sendo determinada pela combinação dos ideogramas “grande” e “artesão”.
Por este motivo, enquanto há correspondências entre a concepção de professor entre as culturas japonesa e
brasileira, o mesmo não vem a ocorrer para o ideal de mestre. Nesta perspectiva, os mentores tradicionais
guardam a prática pedagógica, ao mesmo tempo que administram tal função, junto a práxis criadora de sua
linguagem artística.

Para tanto, reforça-se esta evidência no desdobramento da palavra dôjô (道場), a significar li-
teralmente “caminho de lugares” ou “caminho para vários lugares”.Esta mesma, “tem correspondência
com a palavra sânscrita bodhimanda, a qual é traduzida como o lugar onde Buda obtém sua iluminação/
esclarecimento” (DAVIS, 1980, p. 1), além de elocubrar o retrato de um espaço onde mestres intercedem
seus alunos, para orientá-los sobre o caminho que devem seguir e as possibilidade de lugares, as quais
podem alcançar.

Por conseguinte, as semelhanças entre professores de Arte/salas de aula e mestres japoneses/dôjô


são visíveis. Encontra-se um elo primordial, no que diz respeito à essência artesã e a união da articulação de
conceitos teóricos e práticos, os quais são mais familiares a estes profissionais do que a outros. Quer-se dizer
que o corpo de ambos estabelece relação dialógica equilibrada entre o “pensar” e o “fazer”, direcionados para
o resultado comum de um “saber”.

Neste compasso, a prática Dô-hô (動法) desenvolvida pelo mestre Toshi Tanaka em seu dôjô, é um
bom exemplar das informações supramencionadas, preocupando-se em perpetuar os processos de signifi-
cação do corpo japonês, ao mesmo tempo que insurge de um ímpeto renovativo para o corpo-artista e para
o corpo-professor, quanto suas práxis.

Toshi, em uma breve entrevista, cedeu algumas informações para este texto, gentilmente:
“Toshiyuki Tanaka ou melhor conhecido como Toshi Tanaka é um artista japonês nascido em Tóquio
no ano de 1960. Antes de imigrar ao Brasil em 1994, estudou no Colégio Municipal de Arte em Tóquio,
pintura à óleo tradicional no Bigakko, Zen e Sho na Escola Tetsushukai Rinzai, Seitai-hô sobre a orienta-
ção do mestre Masanori Sasaki, criação artística e Dô-hô sob a orientação do mestre Hiroyuki Noguchi
e Teatro Noh na Escola Tesenkai Kanze. Em 1996, formou o núcleo Fu Bu Myo In, onde orienta a pes-
quisa de corpo e processos criativos em Arte. Por fim, desenvolveu o projeto ‘Jardim dos Ventos’, além
de lecionar na Faculdade de Filosofia, Comunicação, Literatura e Artes da PUC - São Paulo” (Toshi, 9
de agosto de 2017).

Quanto ao Dô-hô, trata-se do termojaponês composto por dois ideogramas, os quais significam,
respectivamente “movimento” e “técnica”, assim comoexplica Ohno (2007).

ODô-hô é uma educação corporal fundamentada nos princípios básicos, encontrados


na tradição corporal japonesa. O resultado foi uma nova técnica corporal que possibilita
compreender os princípios do corpo, os movimentos realizados no Seitai-hô e nas diversas
culturas, criando uma base corporal fundamental para a criação de uma nova cultura. É
nova técnica, porque tradicionalmente o movimento se dá através da imitação e da repe-
tição, e o que o Dô-hô se propõe é realizar a integração do movimento – movimento com
a percepção interna do corpo, seja a partir da via interna ou da via externa. Além disso, é
nova cultura, porque é fundamentada no corpo.

543
Figura 1: Toshi Tanaka.
Fonte: http://fomentoadanca.blogspot.com.br/p/nucleos-artisticos.html.


O “criar-se pelo corpo” perpassa um pensamento sobre os registros e memórias de um povo, guar-
dadas corporalmente. Toshi insiste num kata (型302) fundamental, numa forma dinâmica de corpo, onde os
princípios culturais estão contidos e, pelo movimento, acabam por revelar-se em intencionalidades.Afinal,
já dizia Merleau-Ponty(1994, p. 313) que “o corpo se ordena por todos os meios para finalidade única de seu
movimento, concebendo, portanto em si, uma intenção”.

Há, na verdade, uma preocupação permanente que move sua pesquisa, concebendo-se na constante
ocidentalização do corpo japonês e na destruição de formas corporais, as quais carregam a essência do “ser
nipônico”. Segundo ele, está presente numa forma de vontade arqueológica, em (re) descobrir o corpo em
questão, através de uma busca de seus antecessores. Em outras palavras, trata-se de abrir espaço para o ou-
tro, indagando sobre o processo constitutivo do próprio Japão. Um possível fim para o isolamento cultural
e pensamento formativo hegemônico e auto suficiente, os quais perduraram por centenas de anos. Hiroyuki
Noguchi (2004), enfatiza que o corpo dos japoneses passou por uma profunda transformação a partir da
Restauração Meiji, colocando em questão uma cultura com 2 mil anos de tradiçãoque, em 136 anos, tornou-
-se quase outra. Segundo este autor, “os japoneses nunca compreenderam a sensibilidade tradicional dos
povos ocidentais, e essa é a tragédia do Japão hoje” (NOGUCHI, 2004 apud CASTRO, 2005).

A vinda de Toshi ao Brasil está de acordo com este interesse em estar próximo de povos originários
(outrora nômades, em um passado primordial) colocando-o em contato com saberes indígenas, os quais
ainda carregam saberes fundamentais (incluíndo dos próximos japoneses). Sendo assim, é neste resgate que
este ilustre performer desenvolve suas aulas e trabalhos, juntoa complexidade do Dô-hô, compartilhando seu
conhecimento sobre como encontrar-se a partir de seu movimento corporal e como este ato flui para uma
tônica na práxis criadora.

Segundo o mestre Toshi, pesquisa-se o corpo antigo, mas de um ponto de vista contempo-
râneo.Em sua perspectiva, antigamente, não se pensava sobre o treinamento de determina-
dos hábitos corporais, porque esses já eram construídos pelo cotidiano. Contemporanea-

302. Kata (型) – ideograma japonês, a significar “formato” ou “modelo”.

544
mente, em sua visão, há uma diferença na maneira de abordar o corpo, há uma distância
em relação ao modo de ser antigo, por isso é que as pessoas que vivem nas metrópoles
buscam outras referências de povos distantes, seja no tempo ou no espaço. Toshi se coloca
como portador de um ponto de vista estrangeiro, e como alguém que está em processo de
pesquisa e investigação (CASTRO, 2005).

Figura 2:光るの水に (Hikaru no mizu ni – Na água luminosa) – registro cartográfico do movimento corporal de
Toshi Tanaka, em sua performance realizada na 10a edição do Visões Urbanas em 2017.
Fonte: Elaborada pelo autor.

Considerações Finais

Os ventos sussurrantes encontrados no projeto artístico e pedagógico de Toshi Tanaka manifesta-
ram-separa confabular poeticamente o dô303– movimento e dô304– caminho, conduzindo um eixo norteador
desta pesquisa, em processo. Reflete-se, deste modo, qual poderia ser o kata do corpo-professor de Arte?
Além disso, no desejo de outras respostas, as quais não parecem surgir do saturado corpo ocidental, quais
caminhossurgiriam de uma prática ancestral japonesa, na perspectiva criativa da práxis artístico-pedagógi-
ca? Encontrar uma resposta para estas indagações, parece propor um profundo debruçar sobre novas for-
mas de sensibilização, novas formas para compreender a experiência estética, novas pedagogias do corpo e
gestos de resistência, as quais incidam luz revigorante no pensamento sobre a importância da corporiedade
durante cursos de formação e atualização para os exauridos corpos-professores de Arte.

303. Dô (動) – ideograma japonês, a significar “movimento”, encontrado na nomeação da prática “Dô-hô”.
304. Dô (道) – ideograma japonês, a significar “caminho”, encontrado na palavra “Dôjô”.

545
Referências Bibliográficas

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Psicanalítica. Curitiba: Appris Editora, 2017.

546
O ARTE-EDUCADOR EM OFICINAS CULTURAIS
E ARTISTÍCAS NO TERCEIRO SETOR
Fernanda Roberta Lemos Silva
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Introdução

Esse relato de experiência compartilha a minha trajetória como arte-educadora, educadora social,
oficineira, instrutora de cursos livres e professora de Teatro. Desafie-me, após a minha Graduação em Ba-
charelado em Artes Cênicas, a enfrentar o território da educação não-formal305, atuando em projetos sociais
que oferecem atividades artísticas e culturais para crianças e adolescentes moradores de regiões periféricas
na cidade de Campinas/SP. De acordo com Sposito (2008)

As propostas de educação não-formal, influenciadas pelo debate europeu, incluem o re-


conhecimento das necessidades contínuas de educação que vão além da escola, derivada
das grandes transformações do capitalismo nos últimos decênios. Neste âmbito são intro-
duzidos os temas da informação e, do conhecimento como variáveis fundantes dos me-
canismos da sociabilidade e do poder na contemporaneidade. (REYMOND, 2003; SILVA,
2006 apud SPOSITO, 2008, p.88)

Os projetos sociais, majoritariamente coordenados por Organizações não governamentais (ONGs),


propõem em suas diretrizes educacionais, por meio de atividades educativas, combater a exclusão social.
A autora Maria da Glória Gohn (1997), ao definir a expressão Organização não governamental, afirma que
esta foi criada pela ONU na década de 1940. Originalmente, esse termo era utilizado para classificar entida-
des não oficiais que recebiam recursos financeiros de órgãos públicos para desenvolver projetos de interesse
social. Carvalho (2008) considerou em sua pesquisa “O ensino de artes em Ongs 306 que:

Muitas dessas entidades têm obtido admirável êxito ao criar alternativas e facilitar a inclu-
são social, ao prestar serviços de educação integral e a trabalhar em favor da defesa dos di-
reitos das crianças e dos adolescentes que vivem em circunstâncias difíceis. Examinando

305. O conceito de educação não-formal, aqui compreendido de acordo com Sposito (2008), considera que as propostas de educação não-formal,
influenciadas pelo debate europeu, incluem o reconhecimento das necessidades contínuas de educação que vão além da escola, derivada das grandes
transformações do capitalismo nos últimos decênios. Neste âmbito, são introduzidos os temas da informação e, do conhecimento como variáveis
fundantes dos mecanismos da sociabilidade e do poder na contemporaneidade. (REYMOND, 2003; SILVA, 2006 apud SPOSITO, 2008, p.88)
306. Carvalho (2008) apresenta, em sua perspectiva, de que forma é visto o papel das atividades artísticas nos projetos voltados para a diminuição
da exclusão social. Sua obra apresenta a relevante discussão sobre o ensino de artes em Ongs voltadas para o atendimento de crianças e adolescentes
em situação de risco.

547
as diversas propostas pedagógicas desenvolvidas em seus programas, observa-se um traço
comum: Praticamente todas utilizam atividades artísticas em suas diretrizes educacionais
(CARVALHO, 2008, p.16)

No Brasil, o Serviço de Proteção Social, Convivência e Fortalecimento de Vínculos destinados a crian-


ças e adolescentes de 06 a 14 anos em situação de vulnerabilidade social é desenvolvido através de projetos
coordenados/administrados por Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP),307 financiadas
por prefeituras ou empresas e instituições que apóiam projetos sociais. È importante compreender a condição
de vulnerabilidade social e risco social em que estão inseridos os participantes desses projetos de acordo com
a Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Vivenciar situações de vulnerabilidade social inclui aqui:

(...) perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade, ciclos


de vida, identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual, (...) exclusão pela
pobreza e, ou, no acesso as demais políticas públicas (...). Já as situações de risco pessoal
e social se diferem da vulnerabilidade social. São exemplos desta última abandono, maus
tratos físicos e ou psíquicos, abuso sexual uso de substâncias psicoativas, cumprimento
de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras.
(PNAS, 2004, p.33-34)

O público alvo desses projetos são crianças e adolescentes moradores de bairros populares, mem-
bros de famílias de baixa renda. Aos usuários, são oferecidas atividades socioeducativas pautadas nas defesas
de direitos, buscando o desenvolvimento da autonomia, incentivo à socialização e convivência familiar,
oportunizando a participação de crianças, adolescentes e jovens em atividades educativas no âmbito da
cultura e iniciação profissional, para de certo modo construir alternativas para o enfrentamento das vulne-
rabilidades sociais que atingem as regiões desfavorecidas e territórios precários de ofertas de oportunidades
de estudo, trabalho convivência familiar e comunitária.

As crianças e adolescentes, público alvo desses projetos, são encaminhados pelos serviços de Prote-
ção Social e Especial: Progama de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e Serviço de Proteção e Atendi-
mento a Famílias e Indivíduos (PAEFI), reconduzidos ao convívio familiar após medidas protetivas de aco-
lhimento, medidas socioeducativas de privação de liberdade (adolescentes egressos da Fundação Casa) e ou
inseridos em medidas de meio aberto (Liberdade Assistida ou Prestação de Serviços à Comunidade), entre
outros. Em suas trajetórias biográficas, os educandos, inseridos nesses projetos nas comunidades e periferias
das grandes cidades, direcionadas pelos serviços citados a esses projetos sociais, vivenciam diariamente a
violação de seus direitos e estão em situação de risco eminente.

Na minha trajetória como arte-educadora, vivenciei como educadora social nesse cenário situações
que me indagaram e me fizeram questionar a minha atuação profissional nesse segmento: Qual a contri-
buição de linguagens artísticas no trabalho com crianças e adolescentes em vulnerabilidade social? E de
que maneira a atuação desses profissionais artistas e educadores sociais permite estabelecer diálogos entre
vivências proporcionadas pela arte e o desenvolvimento social e cultural do público alvo desses projetos?

Nessa trajetória, inquietações profissionais também me fizeram trocar com certa freqüência de pro-
jeto, como: a precariedade do trabalho, a baixa remuneração, o acúmulo de atribuições e ainda as atividades

307. Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) é uma qualificação jurídica atribuída a diferentes tipos de entidades privadas
atuando em áreas típicas do setor público com interesse social, que podem ser financiadas pelo Estado ou pela iniciativa privada sem fins lucrativos.
Ou seja, as entidades típicas do terceiro setor. Disponível em: http://www.sebrae.com.br; Consultado em 19/05/2018.

548
artísticas compreendidas como lazer, entretenimento assim como as atividades de caráter educativo utiliza-
das para preencher o tempo ocioso de crianças pobres, vulneráveis aos territórios marcados pela dinâmica
do tráfico de drogas e pela exposição a múltiplas situações de violência.

Nessa direção, na minha dissertação de Mestrado intitulada: “O trabalho do arte educador de Teatro
na Fundação Casa”(Silva,2014), ao analisar a proposta pedagógica das oficinas culturais oferecidas a adoles-
centes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa de Internação (privação de liberdade) e o sen-
tido atribuído ao trabalho do arte-educador em centros socioeducativos, 308 busquei compreender, inicial-
mente, os significados e conceitos/ definições de “arte”, “arte-educação”, “lazer” e as atribuições direcionadas
aos profissionais que atuam nesse contexto (arte-educadores, oficineiros, educadores sociais, instrutores de
cursos livres) para, desse modo, encontrar caminhos possíveis de enfrentamento das contradições próprias
dessas atividades artísticas.

Conforme o dicionarista Aurélio a palavra “arte” é definida como a capacidade criadora do artista
de expressar ou transmitir sensações ou sentimentos, enquanto “cultura” é traduzida como a atividade de
desenvolvimento intelectual, saber, instrução. Para Coelho (1999) “arte-educação é a ciência do ensino da
arte” e de acordo com o autor:

È sob esse aspecto educacional que arte-educação tem o potencial de tornar-se um instru-
mento de ação cultural ou de mudanças sociais pelo desenvolvimento da percepção visual
da imaginação criativa, do desenvolvimento da flexibilidade na resolução criativa de pro-
blemas de todo tipo e da formação de valores estéticos que se refletem tanto no entorno
humano e urbano quantos nas obras de arte. (COELHO, 1999, p.56)

De acordo com o “Dicionário de Política Cultural”, as práticas culturais e o lazer podem propor-
cionar às pessoas, na perspectiva de Coelho (199, p.229) “uma liberdade do tédio cotidiano que nasce nas
tarefas repetitivas, das rotinas e estereótipos, permitindo-lhes o acesso a dimensão do imaginário e àquilo
que é normalmente interditado pela sociedade ou pelo grupo”. Nesse sentido o lazer é considerado:

(...) o tempo concebido ao indivíduo depois de ter ele cumprido suas obrigações
profissionais familiares sociopolíticas e outras. O lazer é um valor social próprio
da sociedade industrial desenvolvida decorrente de uma evolução social que re-
conhece o indivíduo o direito de dispor de um tempo destinado basicamente
a auto satisfação. (COELHO, 1999, p.227 apud SILVA, 2014, p.11)

Pude observar na minha experiência profissional, como arte-educadora em centros socioeducativos


e educadora social em projetos sociais, características comuns em suas propostas pedagógicas, sendo elas o
oferecimento de oficinas artísticas e culturais no contra turno escolar, criadas como estratégias para retirar
das ruas crianças pobres evitando que elas fiquem ociosas e expostas às violências do território. Para Coelho
(1999, p.281), a proposta de uma oficina cultural considera que da atividade desenvolvida “não sai um pro-
duto ou obra cultural (uma peça de teatro, um filme, um livro), o objetivo é disseminar informações para
um público profissional ou amador, que levem a realização de obras culturais”.

308. As oficinas culturais no âmbito dos centros socioeducativos também são desenvolvidas por Ongs, o trabalho aqui mencionado realizado em
centros socioeducativos da cidade de Ribeirão Preto/SP, é coordenado pela Ong Grupo de Amparo ao Doente de Aids (GADA) de Ribeirão Preto/SP,
através do Projeto “Arte para todos” , esse projeto tem como objetivo promover o exercício pedagógico da experimentação das linguagens artísticas
, com o oferecimento de oficinas culturais de maneira que contribua na construção humana e social de jovens em cumprimento de medidas socio-
educativas de Internação, Internação Provisória e Semiliberdade , são oferecido aos adolescentes oficinas de Teatro, Dança, Circo, Artes Plásticas,
Capoeira, Literatura e Fotografia. Disponível em: www.gada.org.br; Consultado em: 20/05/2018.

549
Embora haja aspectos considerados relevantes no papel de algumas Ongs, há também algumas crí-
ticas. Vaz (2011) apontou em sua pesquisa: “Oficina de dança em Projetos Socioculturais – Experiências
estéticas e educativas de jovens e professores”, que o discurso de muitas Ongs que atuam com arte-educação
é o da transformação social, no entanto, boa parte delas prioriza o fazer e não investem na construção do
conhecimento da arte.

Na perspectiva da atuação profissional, o termo oficineiro, como explica Carvalho (2008, p.114),
vem sendo utilizado no terceiro setor, para “designar ministrante de oficinas, independentemente de sua
formação, sendo alguém que foi convidado, ou contratado temporariamente, para ensinar determinado
assunto ou técnica”. È recorrente também nos aspectos contratuais, o arte-educador ou instrutor de cur-
sos livres309.

Os arte-educadores são artistas que entraram para educação artística, nos três graus de
ensino e se tornaram, a partir de então, mais preocupados com aspectos educacionais
do ensino da arte do que os processos de ensino de desenho, da pintura da escultura, da
gravura etc. (COELHO, 1999, p.56)

De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupação (CBO), o arte-educador está inserido na


Família Ocupacional 5153, onde agrupa os profissionais que trabalham para a atenção, defesa e proteção a
pessoas em situação de risco e adolescentes em conflito com a lei.Em relação à experiência e formação ne-
cessária para atuar nessa função, o acesso é livre e sem requisitos de escolaridade. Essa família ocupacional
é composta pelo Educador social (arte-educador, educador de rua, educador social de rua, instrutor educa-
cional, orientador socioeducativo).

De acordo com a CBO 515, o profissional desse grupo deverá através de atividades “sensibilizar os
assistidos/usuários/educandos a resgatar a auto estima, conscientizar sobre regras e normas, apontar alter-
nativas, despertar aptidões, habilidades”. Um aspecto considerável no campo de atuação desse profissional é
que: “os trabalhadores dessa família ocupacional lidam diariamente com situações de risco assistindo indi-
víduos com alteração de comportamento, agressividade em vulnerabilidade”.310

Em relação ao educador que atua em projetos sociais, não há exigência legal de qualifi-
cação ou formação. Os projetos sociais convivem com profissionais que muitas vezes não
priorizam o domínio do conhecimento da área em que se propõe atuar. Além disso, não
há um conteúdo comum a ser trabalhado, sob a justificativa de cada educador ter a liber-
dade de construir sua própria metodologia. (VAZ, 2011, p.46)

Por outro lado, Carvalho (200) destaca que, quanto ao perfil do educador, os dados apresentados
indicam que a qualificação acadêmica não é requisito fundamental. Para a autora: “a qualidade do ensino de
arte nas Ongs não está, necessariamente, relacionada à titulação. Ao lado das habilidades técnicas profissio-
nais, o saber, as aptidões e as características pessoais são muito importantes para a realização de um trabalho
competente.” (CARVALHO, 2008, p. 138).

309. De acordo com a CBO 3301 O Instrutor de Cursos Livres, é o profissional que ministra cursos livres em diferentes linguagens, o curso livre não
estão sujeitos a regulamentação do MEC, requer-se desse profissional escolaridade mínima e qualificação profissional variada, em muitas situações
contratuais esse profissional atua como autônomo.
310. Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br; Consultado em: 20/05/18.

550
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante a minha trajetória como educadora social em projetos sociais, muitos problemas me fize-
ram investigar esse campo de atuação profissional. A precariedade do trabalho em que os educadores são
submetidos, baixa remuneração o acúmulo de atribuições, carga horárias extensas de trabalho ausência de
planejamento, rotatividade de profissionais entre outros. Ao compreendermos esse cenário, identificamos
políticas públicas preocupadas com a situação que estão inseridos crianças e jovens pobres moradores das
periferias do nosso país. Picollo (2010), nesse sentido explica que nos últimos anos têm sido implementadas
políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes: “Muitas dessas ações assumiram a forma de “pro-
jetos sociais”, a partir dos princípios de “descentralização”, “renda mínima” e, especialmente, de conjugação
de esforços públicos e privados” (CORTI, 2003; COSTA, 2003, GONÇALVES, 2003, SPOSITO, SILVA e
SOUZA, 2006; NOVAES, 2006 apud PICCOLO, 2010, p.111)

É importante destacar os resultados apresentados nas pesquisas realizadas por Vaz (2011) e Car-
valho (2008) “é preciso pensar como superar as barreiras que separam arte de crianças e jovens de classes
menos favorecidas.”

As desigualdades sociais constituem por si sós, um grave problema por ensejar a desin-
tegração e a vulnerabilidade social, além de impedir que uma parte expressiva de nossa
população possa usufruir dos direitos mais elementares para a sobrevivência do ser huma-
no: subsistência, saúde, habitação, segurança, educação e lazer. O impacto dessa realidade
afeta de forma mais dramática aqueles que, como as crianças e os adolescentes ainda se
encontram em processo de formação. (CARVALHO, 2008, p.13)

O desenvolvimento de oficinas culturais com crianças e adolescentes objetiva ampliar o repertório


cultural e de sensibilidade dos educandos, além de ser um importante instrumento para o reconhecimento
de suas habilidades.

A Arte pode consistir num precioso instrumento para a educação do sensível, levando-
-nos não apenas a descobrir formas até então inusitadas de sentir e perceber o mundo,
como também desenvolvendo e acurando nossos sentimentos e percepções acerca da rea-
lidade vivida. (DUARTE JUNIOR, 2011, p.23)

Desse modo, a compreensão da arte-educação nos aspectos pedagógicos para promover a inclusão
social e cultural dos usuários, está atrelada a qualificação dos profissionais que atuam nas Ongs, pois a fra-
gilidade da formação acadêmica ou específica para atuar com o público alvo de projetos sociais, e a ausência
de aptidões que vão além da propriedade das linguagens artísticas que ministram nas oficinas poderá de
diferentes maneiras gerar conflitos e interferir na qualidade do trabalho desenvolvido visto trabalharão com
crianças e adolescentes que vivem em condições sociais adversas o que exigiria posicionamentos do educa-
dor alinhados ao da instituição somente uma formação específica poderá subsidiá-lo.311

311. O projeto de Lei do Senado nº 328 de 2015, dispõe sobre a regulamentação da profissão educadora e educador social. A Lei ressalta que os
profissionais deverão ainda ter formação superior em nível de graduação, admitida a escolaridade mínima de nível médio para aqueles que exercem
a profissão até o início da vigência da lei. Disponível em: https://www12.senado.leg.br; Consultado em: 20/05/2018.

551
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Política Nacional de Assistência Social. Mi- LHO, Gilberto & DUARTE, Luiz Fernando (Orgs.) Ju-
nistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome: ventude contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, p.110-
Brasília, 2004. 128, 2010.
CARVALHO, Lívia Marques.  O ensino de artes em SILVA, Fernanda Roberta Lemos.  O trabalho do arte-
ONGs. São Paulo, SP: Cortez, 2008. -educador de teatro na Fundação CASA.  2014. 135 p.
COELHO, Teixeira. Dicionário de Política Cultural. Ilu- Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Cam-
minuras Ltda. São Paulo, 1999. pinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP

DUARTE JUNIOR, João Francisco. Fundamentos estéti- SPOSITO, Marília Pontes. Juventude e educação: intera-
cos da educação. Campinas, SP: Papipurs, 1988. ções entre a educação escolar e a educação não-formal,
Educação & Realidade, 33 (2): 83-98, Julho/ Dezembro
____________________. O sentido dos sentidos a edu- 2008.
cação (do) sensível. Paraná, Curitiba: Edições Criar, 2001.
VAZ, Violeta Penna. Oficinas de danças em projetos so-
GHON, Maria da Glória. Educação não formal e o edu- cioculturais: experiências estéticas e educativas jovens
cador social. Atuação no desenvolvimento de projetos e professores. Dissertação (mestrado); Universidade do
sociais. São Paulo: Cortez, 2010. Estado de Minas Gerais, Programa de Pós Graduação em
PICCOLO, Fernanda. Desigualdades sociais, práticas Educação, 2011.
educativas e juventude numa favela carioca. In: VE-

REFERÊNCIAS VIRTUAIS
Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Disponível Lei do Senado nº 328 de 2015, Disponível em: <https://
em: <http://www.mtecbo.gov.br> Acesso em: 20/05/18. www12.senado.leg.br> Acesso em: 20/05/2018.
Grupo de Amparo ao Doente de Aids (GADA). Disponí- SEBRAE. Disponível em: <http://www.sebrae.com.br>
vel em: <www.gada.org.br> Acesso: em 20/05/2018. Acesso em: 20/05/2018.

552
PERFORMANCE ARTÍSTICA E EDUCAÇÃO
POPULAR: CATAVENTO PARA ESTRATOSFERA,
UMA PRÁTICA DE ENSINO INTEGRADA EM
HOMENAGEM A DANIEL LIMA SANTIAGO
Isaac de Souza Assunção (PPGECI/UFRPE, Pernambuco, Brasil)
Lindinaldo Caitano (CENSUPEG, Pernambuco, Brasil)
Ana Paula Abrahamian de Souza (PPGECI/UFRPE, Pernambuco, Brasil)

INTRODUÇÃO

Este texto tem como objetivo compreender os efeitos do ensino de artes sob a ótica da performance
artística, partindo da performance Poesia para Estratosfera312 do performer e artista plástico pernambucano
Daniel Lima Santiago e Grupo TOTEM313.

A prática arte/educativa aqui apresentada a partir da relação de duas linguagens artísticas - Ar-
tes Visuais e Dança - nos encontros314 oferecidos na Organização Não Governamental (ONG, doravante)
Fundação Fé e Alegria Pernambuco, com o intuito de proporcionar as crianças no extraturno escolar uma
formação para a cidadania pautados pelos pressupostos teórico-metodologicos da educação popular.

Esta prática foi desenvolvida em comemoração ao mês da juventude315, e teve como homenageado
um dos maiores performeres brasileiro vivo, Daniel Lima Santiago e toda juventude. Embora essa comemo-
ração no Brasil esteja localizada no calendário no mês de março, foi desenvolvida no mês de abril devido ao
período de reconhecimento e adaptação dos educandos na escola e no projeto da ONG.

312. A performance foi idealizada pelo performer e artista plástico Daniel Santiag, coordenada pelo Grupo Totem
foi inspirada no poema Choop do poeta pernambucano Carlos Pena Filho que no dia 01 de julho completa 58 de seu
falecimento, mas que ainda continua vivo por meio de sua obra. Performance disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=BVfo1xg3CLI.
313. O Grupo Totem participa da cena Pernambucana desde 1988. Fundamenta-se principalmente nas propostas de Antonin Artaud, na Antropo-
fagia Cultural de Oswald de Andrade, na Dança-Teatro de Pina Bausch, no pensamento de Carl Gustav Jung. O grupo lança mão de uma multilin-
guagem. Na construção de seus espetáculos o Totem não parte da dramaturgia tradicional. Blog do grupo disponívem em: http://grupototemrecife.
blogspot.com.br/.

314. Comumente encontramos em atividades ou linguagens artísticas desenvolvidas em espaços formais e não formais
da educação convencionadas de Oficina, mas ao fazer um estudo dos significados de aula, encontro e oficina pelo Di-
cionário Houaiss, percebemos em nossa ONG que o que realizamos é um encontro e essa ação de refletir sobre nossa
prática nos fez mudar o nome do que fazemos.
315. No contexto nacional, o dia 07 de julho de 2010, na gestão presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, no final de seu segundo mandato, houve a
aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC, doravante) de número 42/2008 no Senado Federal em duas votações unânimes denomina-
da de PEC da Juventude. No âmbito internacional, o dia mundial da juventude foi instituído em 1985, durante o Ano Internacional da Juventude,
promovido pela Organização das Nações Unidas. Uma compreensão sofisticada de que a juventude precisava mobilizar-se e buscar construir espaços
de participação social para pensar e repensar a sociedade.

553
A ONG Fundação Fé e Alegria316 Pernambuco, constitui-se de um movimento internacional de
Educação Popular e existe desde 05 de março de 1955 com a primeira escola na cidade de Caracas, capital da
Venezuela, e foi idealizada pelo padre jesuíta José María Vélaz, acompanhado de estudantes da Universidade
Católica Andrés Bello, com moradores de um bairro sem escolas. Em Pernambuco, Fé e Alegria funciona na
Escola Liceu Nóbrega de Artes e Ofícios, a única escola do Estado que tem pareceria com uma universidade
privada, a Universidade Católica de Pernambuco.

A referida ONG atende 120 crianças dos sextos anos que são divididas em oito grupos de quinze crian-
ças, vivenciado experiências educativas, totalizando uma carga horária semanal de seis (6) horas. A perspectiva
deste atendimento não é para suprir a necessidade da escola, mas, junto a ela, contribuir para a formação integral
dos seus educandos, ou seja, a educação formal e a educação popular aliadas ao processo de formação humana.

Por se tratar de uma escola pública que tem tradição em ensino no Estado de Pernambuco, seu maior
público está situado na Região Político Administrativa 1 (RPA 1), que é composta pelos bairros: Recife, Santo
Amaro, Boa Vista, Cabanga, Ilha do Leite, Paissandu, Santo Antônio, São José, Coelhos, Soledade e Ilha Joana
Bezerra. E, também, conta com crianças de diferentes cidades da Região Metropolitana do Recife (RMR).

Este trabalho foi organizado em seis seções: (1) Introdução onde apresentamos a pretensão deste
texto e da contextualização do objeto de estudo; (2) O referencial teórico que está dividido em duas cate-
gorias por tema; (3) Descrição da prática de ensino construída com as crianças da ONG; (4) A análise dos
efeitos do ensino de arte sob a ótica da performance artística; (5) As considerações sobre a experiência arte/
educativa e (6) as referências utilizadas.

1. REFERENCIAL TEÓRICO

1.1. PERFORMANCE: CORPO MANIFESTO

Quando nos referimos a arte contemporânea, nos arriscamos a discutir sobre um campo que cada vez
mais tem se dissolvido as fronteiras entre as suas diversas linguagens. Nesse caminho, o corpo em suas estân-
cias apreciativas se apresenta como centro irradiador destas práticas como na Arte da Performance, que, como
manifestação artística surge em meio a algumas transformações filosóficas, sociais culturais, alterando alguns
pensamentos da modernidade em busca de novos anseios que contemple o mundo contemporâneo.

São muitas as envestidas de definir o que chamamos de performance e, também, são várias as tenta-
tivas de formatá-la como campo artístico específico. No ambiente da performance se requer um espaço, um
clímax mutante e mimético, pois estamos falando de um campo flexível que pode desenvolver diálogos entre
áreas do conhecimento humano, a performance nesse sentido é transdiciplinar.

Para Cohen (2002), a Arte da Performance pode ser entendida como uma linguagem. Nesse con-
texto, a performance construiu-se num espaço híbrido317, multifacetado no contexto das artes contemporâ-
neas, que estabelece diálogos provenientes de diversos contextos como artes visuais, dança, teatro, música,
podendo ser acrescentado as linguagens citadas pelo autor: circo, ópera e literatura, se tornando um espaço
que permitiu questionar sobre as formas clássicas de fazer arte.

316. Site da Fundação Fé e Alegria do Brasil, disponível em: https://fealegria.org.br/


317. [...] Ela é híbrida, funcionando como uma espécie de fusão e ao mesmo tempo como releitura, talvez a partir da sua própria ideia da arte total,
das mais diversas e as vezes antagônicas propostas modernas de atuação[...] A Performance híbrida é a conexão que extrapola as diversas linguagens,
culturas, sociedades para formar algo novo. (COHEN, 2004, p.108)

554
A performance nos tempos atuais está ainda muito associada a ideia de desempenho e nesse sentido,
desenvolvido no seu mais alto padrão e no campo das artes está associada ao artista/performer. Segundo
Schechner (2003), na arte, o performer é aquele/a que atua num show, num espetáculo de teatro, dança, mú-
sica. Na vida cotidiana, performar é ser exibido ao extremo nas suas ações diárias.

No entento, para que esse avanço acontecesse, devemos lembrar que o corpo nem sempre foi tido
como lugar de estudo poético ou se quer de pesquisa em artes. Foram muitos desafios e marcas que atraves-
saram os corpos e os pensamentos artísticos em relação ao corpo, pouco antes do século XX.

Na década de 70, a arte da performance ganha força como gênero artístico, no qual diversos tipos
de linguagens se agregam, perpassando caminhos que atribuem várias manifestações artísticas, que tem o
corpo como centro de suas práticas (GLUSBERG, 1987 apud CAMARGO, p 03).

Richard Schechner (2003, p.27), destaca que “toda gama de experiências, compreendidas pelo de-
senvolvimento individual da pessoa humana pode ser estudada pela performance”. O mesmo autor, destaca
oito situações em que a performance pode ocorrer e sete funções em que o campo da performance contem-
plaria. Das ocorrências, a performance estaria: na vida diária, cozinhando, socializando-se, nas artes, nos
esportes, e outros entretenimentos populares, nos negócios, na tecnologia, no sexo, nos rituais sagrados
seculares e nas brincadeiras.

Das funções destacam-se: entreter, fazer alguma coisa que é bela, marcar ou mudar a identidade,
fazer ou estimular uma comunidade, curar, ensinar, persuadir ou convencer, lidar como sagrado ou com o
demoníaco. É importante salientar que o autor não está afirmando que tudo é performance, mas que tudo
pode ser visto como se fosse performance e que nenhuma exerce todas as funções.

A próxima categoria teórica se propõe a discutir sobre uma das tendências mais atuais em arte/
educação no Brasil que orientou este trabalho.

1.2. Abordagem Triangular do Ensino das Artes e Culturas Visuais

Utilizamos como fundamento teórico-metodológico para a experiência empreendida, a Abordagem


Triangular, sistematizada pela professora Ana Mae Barbosa, e que hoje é uma das principais referências de
ensino de arte no Brasil. Sobre uma das funções da arte, (re)lembrando o francês FrantzFanon, Barbosa
(2007), afirma que:

arte capacita um homem ou uma mulher a não ser um estranho em seu meio ambiente,
nem estrangeiro no seu próprio país. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o
indivíduo no lugar ao qual pertence, reforçando e ampliando seus lugares no mundo. (p.01)

Pois, a arte como expressão sublime da cultura tem o poder de contextualizar seus sujeitos no bojo
da produção cultural o fazendo se reconhecer como integrante daquela realidade, impactando diretamente
na formação de sua identidade.

O professor Fernando Gonçalves de Azevedo na sua tese de doutoramento que transformou-se em


livro e foi lançado no V Congresso Internacional SESC-PE e UFPE de Arte/Educação no ano de 2016, inti-
tulada “A Abordagem Triangular no Ensino das Artes como Teoria e a Pesquisa como Experiência Criadora”
no capítulo: História da Abordagem Triangular – Uma Versão, diz que: [...] a AT é uma teoria de interpretação
porque ela se constitui a partir de conceitos e proposições, gerada na compreensão da Arte/Educação como
epistemologia, por estudar as diversas maneiras de como se ensina e se aprende Arte (AZEVEDO, 2016, p.79).

555
A Abordagem Triangular é defendida por Azevedo como teoria e não como metodologia, caracteri-
zando-a como uma tendencia pós-moderna, em que na leitura de imagem é necessário uma contextualiza-
ção para que haja produção de sentidos sobre aquela leitura.

Nesta perspectiva, a professora Ana Mae, postula que:

Em nossa vida diária, estamos rodeados por imagens impostas pela mídia, vendendo pro-
dutos, ideias, conceitos, comportamentos, slogans políticos, etc. como resultado de nossa
incapacidade de ler essas imagens, nós aprendemos por meio delas inconscientemente.
A educação deveria prestar atenção ao discurso visual. Ensinar a gramática visual e sua
sintaxe através da arte e tornar as crianças conscientes da produção humana de alta qua-
lidade é uma forma de prepará-las para compreender e avaliar qualquer tipo de imagem,
conscientizando-as de que estão aprendendo com estas imagens (BARBOSA, 1998, p.17).

Faz-se necessário, desta forma ensinar e despertar o olhar das crianças para estas imagens, este dis-
curso visual que nos cerca, que nos forma e que nos afeta de forma consciente e inconsciente.

Sendo assim, ler é uma das ações da Abordagem Triangular, assim também como a contextualização
e o fazer artístico, nesse movimento, o ler não está desassociado da contextualização; pois, o exercício de
ler uma imagem traz consigo elementos históricos e sociais do contexto de produção e autoria da mesma.

Com relação a contextualização, é necessário compreender que a arte é um resultado do seu tempo,
que é produzida pelos/as seus/suas artistas e que ela é uma área de conhecimento transdisciplinar, ou seja,
está em constante diálogo com o mundo e as diferentes áreas de conhecimento como nos indica Barbosa:

A metodologia de análise deve ser de escolha do professor e do fruidor, o importante é


que obras de arte sejam analisadas para que se aprenda a ler a imagem e avaliá-la; esta
leitura é enriquecida pela informação acerca do contexto histórico, social, antropológico
etc. (BARBOSA, 2009, p. 39)

É recomendado para a utilização dessa abordagem o princípio da interculturalidade, termo mais


adequado numa arte/educação que se propõe a trabalhar com os diferentes códigos culturais e de diferen-
tes grupos sociais sem a subordinação ou marginalização de um pelo outro (BARBOSA, 2002; RICHTER,
2003).

Na próxima sessão, apresentaremos uma tentativa de descrever a prática de ensino construída a


partir de um recorte dessa experiência formativa.

DESENVOLVIMENTO DA SITUAÇÃO DIDÁTICA

O desenvolvimento da experiência arte/educativa se deu durante o mês de abril de 2017 dentro do


Projeto Catavento, essa atividade se desenvolveu de 3 a 28 de abril, nas semanas: (03-06; 17-20; 24-28), com
a exceção da segunda semana que foi cortada para dedicação a semana de prova dos educandos na escola.
O projeto para as crianças efetivou-se com uma carga horaria de 30 horas.

Para os educadores, ela teve uma duração de 4 meses, desde a sua ideia proposta em janeiro de 2017,
sendo incluída e pensada no Plano Operacional Anual de Artes (documento orientador das ações da ONG),
a apresentação da proposta as crianças e sua aceitação até a finalização do projeto em 28 de abril.

556
É importante destacar que a ideia deste trabalho surgiu de uma experiência já desenvolvida
na Escolinha de Artes do Recife318 da Professora Noemia Varela, numa menor proporção, em um curso de
férias onde Daniel Santiago foi homenageado por um grupo de 45 crianças entre bebês de 2 anos e crianças
de até 12 anos.

Fé e Alegria trabalha na metodologia da educação popular que considera os conhecimentos que os


educandos trazem, a prática arte/educativa em dança e artes visuais começou com a primeira semana em 03
até 06 de abril de 2017, com um mapeamento do que as crianças conheciam ou entendiam por performance
a partir da pergunta detonadora: O que é Performance? Em grande medida, as crianças diziam que é uma
arte, outras não conheciam mas já escutaram a palavra, ou até mesmo não sabiam o que era.

A partir daí, os educandos entraram num processo de reflexão e descoberta sobre um novo termo.
No encontro de dança, foi exposto um vídeo319 sobre o que é performance na dança, com intuito de trazer
reflexões e incitar o debate.

Em artes visuais, as crianças faziam leitura de imagem dos recortes da performance Poesia para
Estratosfera e identificavam o artista, o cenário, a proposta, buscando entender sua produção social naquele
contexto. Finalizando os trabalhos por meio do desenho com diferentes materiais de pintura (papel A3,
pincéis, lápis de cor, lápis de cera, lápis hidrocolor, lápis grafite, guache de diferentes cores), expressaram sua
compreensão sobre aquela expressão artística, atribuindo seus olhares.

No período de 17 a 20 de abril de 2017, em dança foi apresentado o vídeo da performance Poesia


para Estratosfera e “Golden Indol”320 da autoria do educador de dança, Lin Caitano, foi usado como outra
fonte e como material demonstrativo do artista que usa o corpo como meio dramatúrgico e que é meio de
expressão e empoderamento durante a ação performática.

Em diálogo, após assistir aos vídeos das obras, as crianças perceberam como o corpo estava pre-
sente nas performances, que tipos de elementos a constituiam, que configurações corporais estavam sendo
apresentadas, como os artistas se relacionavam com o espaço, com o público, meio pelo qual foi buscado
aguçar o olhar deles para os exercícios performáticos que realizaríamos.

Em arte visuais, as crianças assistiram o vídeo da performance e indentificaram elementos visuais


que construíram aquela obra, o vestuário, os balões, a poesia usada, o poeta que a construiu, a figura de Da-
niel Santiago, a escultura em homenagem a Chico Science, o bar, o Recife Antigo, a estratosfera naquela dia.

Tiveram acesso ao poema Choop do recifense Carlos Pena Filho e conheceram um pouco da sua
história. Tiveram acesso a biografia de Daniel Santiago e produziram dádivas para homenageá-lo (cartas,
arte postal, desenhos, bilhetes).

Foi escolhido pelos arte/educadores o poema Nuvens321 de Ana Martins para compor a perfor-
mance, a escolha se deu pela luducidade do poema e por ter a ver com estratosfera, mistérios, sonhos.

A partir dessa construção, dança e artes visuais se encontram, durante 24 a 28 de Abril de 2017,
demos início aos trabalhos corporais, que visavam preparar e possibilitar o empoderamento no corpo das
crianças para o ato performático que seria realizado para homenagear o artista.

318. Localizada na Rua do Cupim, 124 - Graças, Recife - PE, 52011-070. Facebook da EAR, disponível em: https://www.facebook.com/escolinha.
dearte/
319. Link do vídeo “O que é performance?”-https://www.youtube.com/watch?v=HhGiDE8a5XM
320. Link do vídeo“Golden Indol”, Lin Caitano - https://www.youtube.com/watch?v=t5jnfKonAe8
321 Link do Poema Nuvens de Ana Martins: https://algarve-saibamais.blogspot.com.br/2011/09/nuvens-poema-de-ana-martins.html

557
Nesse lugar de empoderamento, foi sugerido pelo encontro de dança, um programa performático322
com o objetivo das crianças experenciarem os corpos através de ações em que: relacionasse o corpo com
diferentes espaços da escola, tivessem contato da presença de público enquanto realizavam movimentações
pré-estabelecidas em sala, e também da prática da movência com e sem uso da música. Nesse mesmo pro-
cesso, trouxemos a música Uni Duni Tê323 para pensar a performance de homenagem a partir dela, a escolha
se deu por considerarmos que seria preciso fazer um resgate a infância, aos sonhos, a infância de outras
gerações, dessa mesma nação por meio da música.

No dia da culminância da juventude e de homenagem ao artista Daniel Santiago, foi realizado um


intervalo artístico na quadra da escola para qua as crianças pudessem conhecer mais sobre, e, também, para
poder entregar as dádivas produzidas durante o desenvolvimento do processo, parecia que as crianças já o
conheciam e produziram suas dádivas com carinho, dedicação, concentração para o encontro com o artista.

Perguntas tão interessantes surgiram nesse intervalo: Quantas performances voce já fez em toda
a sua vida de artista? Você teve quantas namoradas? Quantos filhos você têm? Quando foi feita sua última
performance? O artista aproveitou e fez sua última performance diante das crianças com uma educanda
que ele intitulou de Entrevista de Joelhos (Forma de desconfigurar a formalidade da entrevista). Após isto,
os arte/educandos realizaram um circuito de poesias. Em seguida, em voz alta recitaram juntas o poema
Nuvens e convidaram Daniel a assistir a performance criada para homenageá-lo.

De pronto foi possivel perceber a emoção do artista diante do feito das crianças e o desejo delas
de apresentar aquela performance para toda a escola. Como a performance foi inspirada em Poesia para
Estratosfera que utilizava poesias que foram lançadas com balões de cor preta em gás hélio para estratosfera,
a performance das crianças também levaram para a estratosfera em balões coloridos os seus sonhos, desejos
e pedidos que seriam lançados sem rumo ao céu de Recife.

Foto 1: Acervo do ator.

322. Nessa descrição educativa, “programa” é inspirada pela uso da palavra por Gilles Deleuze e Félix Guattari no famoso “28 de novembro de 1947”.
Os autores sugerem que o programa é o “motor da experimentação”. Programa é motor de experimentação porque a prática do programa cria corpo
e relações entre corpos; deflagra negociações de pertencimento; ativa circulações afetivas impensáveis antes da formulação e execução do programa.
Programa é motor de experimentação psicofísica e política.
323. Artista: Trem da Alegria. Álbum: Trem da Alegria do Clube da Criança de 1985.Gênero: Música infantil. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=y8cNK0EmV0Q.

558
RESULTADOS E ANÁLISES PARCIAIS

Para uma melhor compreensão do que representaria essa performance realizada pelos arte/educandos
no contexto nacional e internacional, fizemos uma pesquisa no google e no youtube. Ao inserirmos a palavra
chave “performance infantojuvenil” a ferramenta de pesquisa de ambos não indicou nenhum resultado que fi-
zesse relação com qualquer outro trabalho parecido com o que foi desenvolvido. Desta forma, entendemos que a
performance realizada por nossas crianças é, até então, a maior performance infantojuvenil já realizada no Brasil.

O ensino de artes desenvolvido nessa ONG no período de um mês convocaram as nossas crianças a
assumirem papéis de sujeito: interculturais, do afeto, da diferença. Nesse período, não houve nenhum movi-
mento de marginalização ou de subordinação de uma coisa pela outra. Entendemos que o trabalho com a per-
formance artística destruiu com as fronteiras que separam o pensar, o relacionamento, a afetividade, a união.

É importante destacar, que o intervalo artístico mostrou a potência que o ensino de arte propor-
ciona ao trazer o artista trabalhado para o contato com os arte/educandos e, essa foi toda a diferença, pois,
ela conectou vida e obra, artista, aprendizagem, realidade e atribuiu sentido a todo trabalho desenvolvido.

CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Diante das tão diversas contribuições aqui expostas sobre o que poderíamos chamar, apontar,
sublinhar sobre o que é performance, e partindo da experiência arte/educativa desenvolvida com os arte/
educandos, queremos dizer que a performance é uma forma de sonhar, motivada pela emoção e que repre-
senta a revolução dos nossos afetos, com carácter transdiciplinar. Entendemos a performance artística como
sendo uma raiz fasciculada, onde não podemos distinguir a raiz principal das demais raízes.

A performance enquanto arte tem lugar na vivência e na experiência. O ato de performar é tam-
bém o espaço onde o corpo se percebe e produz conhecimento sobre sí, alimentando-se e produzindo novas
impressões sobre ele mesmo.

Sabiamos como performeres e artistas docentes que a performance possibilitaria nossas crianças so-
nharem (no sentido de que seria um lugar onde tudo se tornaria possível), a perda da timidez, o senso de cole-
tividade, a disposição para a expressão do carinho, a sensação de sucesso, o desejo de querer mais, a expansão
da alegria cotidiana, o sonho extraído da mente e lançado na estratosfera por meio de cores flutuantes.

Ao avaliar as ações desenvolvidas no Projeto Catavento em novembro de 2017 junto aos arte/edu-
candos, todas as crianças mencionaram o nome do artista Daniel Santiago e falaram da performance em co-
memoração ao mês da juventude. Isso nos mostrou que o trabalho com performance artística se converteu
numa experiência para a vida das crianças, pois, ao passarem sete meses da culminância ainda lembravam
com alegria daquele momento tão especial para elas.

Sendo assim, a prática arte/educativa construída na ONG nos possibilitou compreender o univer-
so que a performance artística pode oferecer ao campo da arte/educação em um movimento de reflexão
sob a práxis educativa.

Podemos ainda concluir que o objetivo deste módulo foi alcançado com sucesso e que trabalhar
com a Abordagem Triangular do Ensino das Artes e Culturas Visuais configurou uma experiência na vidas
dos arte/educandos, na vida do artista, na vida da escola, assim como, na vida dos arte/educadores, possibi-
litanto o desenvolvimento da autonomia, da capacidade criadora e do empoderamento do corpo em ativida-
des individuais e coletivas. É importante destacar que a performance desenvolvida pelos arte/educandos foi
noticiada no site da UNICAP324, no jornal virtual da escola e na revista Nacional de Fé e Alegria.

324. Link da notícia, disponível em: http://www.unicap.br/assecom1/projeto-fe-e-alegria-da-unicap-presta-homenagem-a-daniel-lima-santiago/

559
REFERÊNCIAS

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zoldo de Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2006. de 2018.

560
ENSINO DE ARTE NO PAÇO DO FREVO:
UM ESTUDO SOBRE AS PRÁTICAS
DE EDUCAÇÃO NÃO FORMAL DOS
ARTE/EDUCADORES DE UM ESPAÇO CULTURAL
Inácio Alves Dantas Neto – UFPE e Caixa Econômica Federal
Cristiane Maria Galdino de Almeida – UFPE

Introdução

O presente artigo trata de uma pesquisa em andamento, desenvolvida no curso de mestrado do Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O trabalho aqui
apresentado corresponde à estrutura definida após exame de qualificação do projeto de pesquisa, realizado
no mês de setembro de 2017. O estudo utiliza como temática as práticas de ensino de arte desenvolvidas em
um espaço cultural, compreendido como um espaço de educação não formal. A abordagem teórica adotada
serão os estudos sobre arte/educação, prática pedagógica e educação não formal.

O estudo propõe a pesquisa sobre as práticas de ensino de arte desenvolvidas nos espaços culturais
do Bairro do Recife por percebermos a relevância desse bairro como polo destas instituições de educação
não formal. Para descrever a grande concentração de espaços culturais no Bairro do Recife, podemos citar
quatro instituições da região: o Observatório Cultural Torre Malakoff, a CAIXA Cultural Recife, o Museu
Cais do Sertão e o Paço do Frevo.

Para delimitarmos nosso trabalho, verificamos a necessidade de conhecer os espaços culturais em


funcionamento no Bairro do Recife através da realização de uma fase exploratória, no intuito de adequar-
mos nossa questão de pesquisa ao campo investigado e para percebermos se de fato estas instituições confi-
guram-se como espaços de educação não formal, além de compreendermos a relevância de nossa proposta
para a área da Educação.

A fase exploratória da pesquisa foi realizada nos meses de abril e maio de 2016, através da visita
aos quatro espaços culturais citados anteriormente neste artigo. Realizamos uma tarde de observação das
atividades desenvolvidas em cada local e entrevistamos um profissional em cada instituição, com o objetivo
de conhecermos quais as práticas de educação não formal são realizadas e qual o número e a formação dos
profissionais envolvidos nestas ações educacionais. Dos espaços pesquisados, o Paço do Frevo configurou-se
como o campo mais adequado para a realização da pesquisa pelos seguintes aspectos: possui uma equipe
de educação estruturada, denominada de educativo, composta por cerca de 14 pessoas das mais variadas
formações, licenciados, bacharéis ou artistas com vivências em linguagens artísticas específicas (dança,

561
música, teatro ou artes visuais); possui dois setores voltados para o ensino do Frevo, sendo uma escola de
música e uma escola de dança, responsáveis pelos cursos de longa duração do espaço; possui uma gerên-
cia de conteúdo, responsável por todas as ações educativas do espaço; desenvolve um grande número
de ações em arte/educação, como mediações culturais em formatos diferenciados, oficinas, cursos de
longa e curta duração, apresentações culturais, palestras, entre outras atividades.

Após a revisão do nosso projeto de pesquisa inicial, a realização da fase exploratória e do exame de
qualificação, definimos o seguinte problema de pesquisa: como são desenvolvidas as práticas de ensino de
arte em um espaço cultural do Bairro do Recife?

Para respondermos ao nosso problema de pesquisa, traçamos o seguinte objetivo geral: compreen-
der como se desenvolvem as práticas de ensino de arte de um espaço cultural do Bairro do Recife. Para o
alcance do objetivo geral, definimos os seguintes objetivos específicos:

- Apreender as concepções sobre arte e ensino de arte de um espaço cultural do Bairro do Recife;

- Caracterizar o percurso formativo dos educadores que desenvolvem o ensino de arte em um espaço cul-
tural do Bairro do Recife;

- Identificar as práticas de ensino de arte realizadas em um espaço cultural do Bairro do Recife.

Fundamentação teórica

As bases teóricas que serão adotadas para o presente trabalho serão os estudos sobre educação não
formal ou não escolar de Afonso (1992), Gohn (2015), Libâneo (2010) e Trilla (2008); a literatura a respeito
de ensino de arte e arte/educação de Barbosa (2009, 2010 e 2012), Dewey (2010), Coutinho (2009), Ferraz e
Fusari (1993), Helguera (2011), Read (2013) e Tourinho (2012); e os trabalhos sobre prática pedagógica de
Freire (2011), Souza (2012) e Zabala (1998).

Muitas vezes associamos o conceito de educação com o de escolarização, porém grande parte dos
processos de ensino e aprendizagem são desenvolvidos em espaços fora da escola. Segundo Trilla (2008),
“há educação na escola e na família, mas ela também se verifica nas bibliotecas e nos museus, num processo
de educação à distância e numa brinquedoteca. Na rua, no cinema, vendo televisão e navegando na internet,
nas reuniões, nos jogos e brinquedos” (TRILLA, 2008, p. 29). Podemos descrever três tipos de educação: a
educação informal, que inclui a educação não sistematizada, que pode ser efetuada pela família ou no coti-
diano dos indivíduos; a educação formal, tradicionalmente associada à educação escolar; e a educação não
formal, que pode ser distinguida da educação formal a partir de diversos critérios, como a metodologia em-
pregada, a estrutura da ação educativa e seus agentes. A educação não formal normalmente está ligada aos
âmbitos da formação para o trabalho, ao lazer e à cultura, e à educação social, e é neste contexto da educação
não formal que nossa pesquisa está inscrita.

A arte apresenta papel fundamental no processo de formação dos seres humanos. Segundo Read
(2013), é através dela que o homem experimenta um processo de comunicação específico, o da expressão
artística. A arte possibilita o desenvolvimento da subjetividade, fazendo com que o homem possa criar além
do que lhe é apresentado em seu ambiente. A educação pela arte gera o desenvolvimento do pensamento
imaginativo, aspecto humano capaz de dar ferramentas para que possamos criar possibilidades de mudança
do nosso mundo, fazendo com que entremos em contato com nossos sentimentos, emoções, instintos e
pensamentos que compõem a nossa personalidade, pois “tanto o artista que cria a obra de arte quanto o ob-
servador desta estão penetrando de maneira mais ou menos profunda no mundo dos sonhos” (READ, 2013,

562
p. 35). Inicialmente, podemos perceber que a educação pela arte constrói duas importantes características
da relação do homem com o mundo: a percepção, na medida em que entramos em contato com diferentes
formas artísticas; e a imaginação, ao experimentarmos o processo de criação através da arte. Em consequên-
cia disso, a arte possibilita o desenvolvimento da atividade mental do pensamento, ao auxiliar a construção
da linguagem através da relação do homem com signos e símbolos específicos.

A presença da arte na educação é ainda mais indispensável nos anos iniciais do ser humano e “as
atividades lúdicas são também indispensáveis à criança para a apreensão dos conhecimentos artísticos e
estéticos, pois possibilitam o exercício e o desenvolvimento da percepção, da imaginação, das fantasias e de
sentimentos” (FERRAZ; FUSARI, 1993, p. 84). Para Barbosa (2009), o conceito de educação está atrelado ao
de mediação, pautando-se nos estudos de Paulo Freire para afirmar que aprendemos uns com os outros me-
diatizados pelo mundo. A autora afirma que espaços culturais são excelentes ambientes para que o processo
educacional em arte possa ser desenvolvido, principalmente pelo fato de que após se depararem com uma
exposição, as crianças são capazes de realizar criações mais elaboradas, rompendo com esquemas simples de
desenho, mais ainda do que em sala de aula. A experiência criadora, dentro do próprio espaço de arte como
um museu, pode gerar resultados surpreendes.

Os espaços ou centros culturais apresentam-se como um rico campo de estudo e disseminação


de conhecimento. Em nossa pesquisa, utilizamos a seguinte perspectiva para descrevermos estas ins-
tituições:

Os centros de cultura são espaços que aglutinam atividades de criação, reflexão, fruição,
distribuição de bens culturais. Constituem um núcleo articulador e gerador de ações cul-
turais de criação. Devem dispor de infraestrutura que permita o trabalho cultural e de-
vem propiciar o encontro criativo entre as pessoas. Se a atividade cultural deve instigar e
provocar, a sua casa, o centro de cultura, não pode ser um espaço exclusivamente de lazer;
ao contrário, ele deve atrair as pessoas para o novo e a reflexão, deve negar o conformis-
mo e a familiaridade com o conhecido. O que se realiza nesses espaços é a ação cultural
entendida como processo, sem começo e sem fim demarcados, que não deixa atrás de si
produtos formais acabados, mas uma nova cadeia de ações (RAMOS, 2007, p. 94-95).

Pretendemos investigar as práticas de ensino de arte em um espaço cultural a partir da visão de


práxis pedagógica proposta por Souza (2012), percebendo esta ação como o resultado da prática docen-
te (do mediador cultural, do oficineiro, etc), da prática discente (dos visitantes espontâneos, do alunos das
escolas agendadas, etc), da prática gestora (dos coordenadores do educativo, das escolas de música e
dança e do gestor de conteúdo), da prática epistemológica (saberes sobre arte, experiências artísticas,
etc), permeadas pelas relações de afeto entre os sujeitos do Paço do Frevo.

Metodologia

Tendo em vista o problema e os objetivos apresentados nesta pesquisa, relacionados às práticas


de ensino de arte, aos percursos formativos, e às concepções de ensino de arte dos arte/educadores de um
espaço cultural, optamos pela abordagem qualitativa de pesquisa. Esta escolha deve-se principalmente aos
aspectos elencados por Triviños (2013) a respeito de um estudo do tipo qualitativo: ter o ambiente natural
como fonte de dados e o pesquisador como elemento chave; ser descritiva; possuir a preocupação com o
processo e não apenas com os resultados e o produto; possibilitar uma análise indutiva dos dados e apresen-
tar o significado dos processos como preocupação essencial.

563
Para a realização do presente estudo, escolhemos a perspectiva fenomenológica. A escolha da Feno-
menologia como linha de pensamento deve-se principalmente ao fato de que ela “busca a interpretação do
mundo através da consciência do sujeito formulada com base em suas experiências. Seu objeto é, portanto,
o próprio fenômeno tal como se apresenta à consciência, ou seja, o que aparece, e não o que se pensa ou se
afirma a seu respeito” (GIL, 2010, p. 39). Tendo em vista que desejamos realizar o estudo a partir das práticas
e experiências dos próprios arte/educadores, esta escolha se justifica pelo fato de que “a Fenomenologia exal-
ta a interpretação do mundo que surge intencionalmente à nossa consciência. Por isso, na pesquisa, eleva o
ator, com suas percepções dos fenômenos, sobre o observador positivista” (TRIVIÑOS, 1987, p. 47). Dessa
forma, seguiremos as etapas propostas por Gil (2010) para a realização de uma pesquisa fenomenológica:
formulação do problema; escolha das técnicas de coleta de dados; seleção dos participantes; coleta de dados;
análise de dados; e redação da dissertação de mestrado.

A pesquisa de campo do presente projeto será do tipo estudo de caso. Para Bogdan e Biklen
(1994), um estudo de caso “consiste na observação detalhada de um contexto, ou indivíduo, de uma úni-
ca fonte de documentos ou de um acontecimento específico” (p.89). A escolha do Paço do Frevo como
campo de pesquisa deve-se ao fato de que, após a realização da fase exploratória, identificamos que o
espaço possui algumas características que o configuram como um caso relevante para a investigação:
possui um setor educativo estruturado, gerido por uma coordenadora e subordinado à uma gerência de
conteúdo; apresenta um grande número de arte/educadores das mais diversas formações e experiências
artísticas; e possui atividades regulares e sistemáticas em arte/educação, como mediações em diferentes
formatos, oficinas de curta e longa duração e atividades formativas diversificadas, como palestras e
aulas-espetáculo. Dessa forma, compreendemos que a presente pesquisa enquadra-se na definição
de estudo de caso proposto por André (2012): trata-se do estudo de uma instância em particular
(um espaço cultural); existe a necessidade de conhecê-la em sua complexidade e particularidade (as
práticas de ensino de arte de um espaço de educação não-formal); há um interesse maior nos processos
do que nos resultados; existe a busca por descobrir novas hipóteses teóricas e novas relações de
um fenômeno; e há uma procura por retratar a dinâmica de uma situação a partir de seu próprio desen-
volvimento.

Como instrumentos de coleta de dados, propomos a utilização dos seguintes métodos: ques-
tionário, observação, entrevista e análise documental. O questionário será empregado na primeira fase
da coleta, na qual iremos conhecer ao profissionais que atuam como educadores do Paço do Frevo,
identificando seus perfis e formações. Após a análise dos dados obtidos com o questionários, identifi-
caremos quatro educadores de diferentes cargos e atividades, para que possamos realizar a observação
participante e as entrevistas. A observação participante será empregada para que as práticas de ensino
de arte sejam conhecidas a partir de sua própria realização, pois “as principais características do método
dizem respeito ao fato de o pesquisador mergulhar de cabeça no campo, que observará a partir de uma
perspectiva de membro, mas deverá, também, influenciar o que é observado graças a sua participação”
(FLICK, 2009, p. 207). Entendemos a entrevista como “técnica de coleta de informações sobre um deter-
minado assunto, diretamente solicitadas aos sujeitos pesquisados. (...) O pesquisador visa a apreender
o que os sujeitos pensam, sabem, representam, fazem e argumentam” (SEVERINO, 2007, p. 124). Uti-
lizaremos as entrevistas no modelo semiestruturado para que tenhamos algumas questões norteadoras,
que poderão ser ampliadas a partir da interação com os quatro sujeitos selecionados na pesquisa. Por
fim, realizaremos a análise dos mais diversos documentos da instituição, como o Plano Museológico,
a Plataforma do Educativo e o Caderno do Professor do Paço do Frevo, documentos que dão suporte à
atuação dos arte/educadores da instituição. A análise documental será utilizada tendo em vista que “o
documento escrito constitui uma fonte extremamente preciosa para todo pesquisador nas ciências so-
ciais” (CELLARD, 2014, p. 295).

564
Como procedimento para organização, tratamento e análise dos dados, utilizaremos a análise de
conteúdo. Essa ferramenta foi escolhida pois “a análise de conteúdo aparece como um conjunto de técnicas
de análise das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo
das mensagens” (BARDIN, 2011, p. 44).

Considerações finais

Levando em consideração que o ensino de arte é um aspecto de extrema importância para a forma-
ção integral do ser humano, em alguns espaços educacionais, as práticas em arte/educação podem não co-
laborar para que este objetivo seja alcançado. Os espaços culturais, por possuírem obras de arte como parte
integrante de seu espaço, podem contribuir de forma excepcional para a educação, pois:

Não é possível o desenvolvimento de uma cultura sem o desenvolvimento de suas formas


artísticas.

Não é possível uma educação intelectual, formal ou informal, de elite ou popular, sem arte,
porque é impossível o desenvolvimento integral da inteligência humana sem o desenvol-
vimento do pensamento divergente, do pensamento visual e do conhecimento presenta-
cional que caracterizam a arte.

Se pretendemos uma educação não apenas intelectual, mas principalmente humanizado-


ra, a necessidade da arte é ainda mais crucial para desenvolver a percepção e a imaginação,
para captar a realidade circundante e desenvolver a capacidade criadora necessária à mo-
dificação desta realidade (BARBOSA, 2010, p. 5-6).

Por isso, é importante perceber que o espaço cultural tanto pode ser, de forma independente, um
importante espaço para a formação humano, como pode atuar em conjunto com a educação formal, através
dos seus programas educativos e da visita de escolas e instituições de ensino através de agendamentos, pro-
porcionando uma formação integral através da inserção da arte e de seu ensino.

Compreender as práticas de arte/educação dos espaços culturais nos possibilitará verificar de que
forma o ensino da arte está sendo realizado nesse campo não formal de educação, e de que forma o cenário
atual pode ser alterado com o objetivo de alcançarmos práticas mais adequadas em arte/educação. Assim, os
centros culturais poderão utilizar toda a sua potencialidade para o desenvolvimento cultural e educacional
da sociedade.

Além disso, é de extrema importância conhecer os sujeitos que estão no setor educativo dos espa-
ços culturais a partir de suas próprias percepções, para que possamos verificar se há a necessidade de uma
formação específica para os arte/educadores atuantes e se os arte/educadores formados pela academia es-
tão ocupando estes espaços de trabalho, desenvolvendo metodologias e selecionando conteúdos adequados
para o ensino de arte em sua atuação profissional.

565
Referências

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pação da sociedade civil e estruturas colegiadas nas es- e contrapontos. São Paulo: Summus, 2008.

566
TEATRO DE RUA NA FESTA DO SANTO
Sergio dos Santos Reis
Licenciado em Teatro pela Universidade Federal da Bahia
artitudederua2000@gmail.com

P autados nas possíveis relações entre o saber empírico e conhecimento cientifico trazemos o
relato das oficinas de teatro que foram promovidas pelo Coletivo Artitude que desde 2010 realiza oficinas
de artes com os moradores da Nova Constituinte. A oficina de teatro foi direcionada para não-atores e foi
desenvolvida a partir da utilização de jogos e improvisações teatrais, técnicas de interpretação teatral, estudo
de diferentes estéticas e montagem cênica com finalidade de, por meio da arte-educação, proporcionar a
sensibilização e a formação integral do indivíduo.

A oficina culminou com uma mostra cênica que teve participação na Trezena de Santo António de
Dona Nice no Bairro de Periperi, subúrbio ferroviário de Salvador. Esta trezena é realizada ao longo de duas
décadas e reuni pessoas de diferentes grupos culturais a exemplo do grupo de rezadeiras, do Grupo de Sam-
ba E.T. e, recentemente, o Coletivo Artitude que surgiu em 2006 com as experiências dos mutirões culturais
que aconteceram no Bairro de São Cristóvão Parque.

Com o objetivo de promover a prática, a produção artística local e sua disseminação, bem como o
acesso aos bens culturais, utilizando as ações comunitárias com intervenções de multiplicidade artística,
o Coletivo Artitude é constituído por vários segmentos da arte como o grafite, a pichação, teatro de rua,
música etc. e passou a atuar nos bairros da Cidade de Salvador dentre os quais destaco o Bairro de Periperi,
especificamente a Comunidade da Nova Constituinte na articulação da atividade teatral na referida trezena.

Membros do Coletivo ARTITUDE (da esquerda pra direita) Jaime Ferreira, Thomas
Nogueira e Sergio Reis (fotos do acervo do autor)

567
Além do desejo de promover ações comunitárias, o retorno para Periperi também foi impulsionado
por memorias afetivas que estão ancoradas em vivencias estabelecidas desde a infância quando a minha avó
Eliza me levava para veranear nos períodos de férias. Periperi está localizado entre os Bairros de Coutos e
Praia Grande, no subúrbio ferroviário de Salvador, seu nome é de origem indígena e está associado à multi-
plicação da planta junco em planície alagada, onde desemboca o Rio Paraguari.

É possível chegar a Periperi através da Avenida Suburbana, pela BR 324 ou de trem, desfrutando de
uma belíssima paisagem do Subúrbio e de parte da Baía de Todos os Santos. Periperi originou-se de uma
fazenda em meados do século XIX e durante o século XX tornou-se um bairro conhecido por ser uma
importante estância para veraneio e moradia para aposentados, que se recolhiam para descansar à beira
do mar, após anos de serviço. Periperi deu início a seu crescimento desenfreado a partir da construção do
trecho que liga a Calçada á Paripe.

A memória afetiva particular ganhou novos sentidos à medida que encontrei um ambiente cultu-
ralmente rico composto por diversos grupos artísticos. Assim, articulei meu trajeto pessoal com diversos
aspectos da coletividade que permeiam esses grupos e entendi a dinâmica que prevalece no cotidiano da
Comunidade da Nova Constituinte.

Tudo Haver sem DST – 2011 ( da esquerda pra direita) Sergio Reis, Cibele Salles e Mariana Damásio ( fotos de acervo do autor)

De acordo com o entendimento pautado nas características desta comunidade desenvolvi uma
pedagogia teatral em conformidade com as especificidades deste contexto, ou seja, juntamente com alguns
integrantes destes grupos, identifiquei as lideranças comunitárias; aproveitei o potencial criativo dos não-
-atores e, desta forma, utilizei uma linguagem teatral que possibilitou o acesso a todos os participantes.
Os encontros e ensaios foram na sala ou na varanda da casa de Dona Nice, diante das imagens dos
santos, os únicos de estancias mais elevadas de quem poderíamos esperar algum apoio e proteção até o dia
da apresentação que foi na Trezena de Santo Antônio que é realizada no mesmo local. O processo criativo
foi desenvolvido em vinte e quatro encontros noturnos, e, por se tratar de um elenco formado por trabalha-
dores, que se reuniram depois de seus respectivos trabalhos. Durante todo o período da oficina, Dona Nice
vinha mais cedo da feira e preparava um lanche que, às vezes, era um jantar para os integrantes do grupo.
É bonito ver pessoas que amadureceram e que convivem com uma geração mais nova a renovar as energias
pela arte e participação coletiva.

A princípio, a ideia dos participantes foi construir um texto teatral que contasse a história do bairro,
e que envolvesse fatos e acontecimentos da vida cotidiana dos mesmos, porém por temer não conseguir
elaborar um texto em curto período, resolvemos trabalhar com referência no texto dramático Sociedade

568
de Consumo de autoria do ator e diretor Orlando Martins, criado para teatro de bonecos de luva. O texto é
uma comédia de costume que narra o dia-a-dia de uma família que vive o conflito da prática do consumo
alienado e um consumo consciente.

O Casamento na Roça (2012) ( fotos de acervo do autor)

O tema suscitou um debate, e então, abrimos uma roda de conversa a respeito de linha de cartões
de crédito e o assédio de mídias como propagandas na televisão, outdoor. Discutimos sobre prioridades e
futilidades no momento das compras, o endividamento e seus reflexos na vida familiar. A discussão se acir-
rava à medida que os participantes identificavam em seu cotidiano algumas práticas de consumo alienado,
que refletiam em colocações como “– Sobre sociedade de consumo! Entende que não devemos gastar muito,
economizar para objetivos como, saúde, estudo, educação e gastar com o necessário.”325

No processo criativo foi utilizada a técnica de teatro de bonecos do Grupo Pirilampo326 que tem na
voz e na oralidade seus principais recursos para a interpretação com bonecos, e exige do ator o domínio do
tema central e suas relações com outros temas, possibilitando que os mesmos criem um repertorio de ações
para serem desenvolvidas diante da necessidade de improviso. A intenção é trabalhar o texto, esgotando as
possibilidades de entendimento do mesmo sem que os atores se tornem dependentes do dialogo escrito e
assim, travem a ação criativa, o improviso e a continuação da cena.

325. Fabiana Santos, questionário respondido para pesquisa no trabalho de conclusão de curso.
326. Grupo de teatro de bonecos, bonecões e animação de festas, atuante em espaços alternativos, seu público durante a década de 90, foram os
passageiros dos ferry-boate na travessia Salvador/Itaparica, os estudantes de cursos preparatórios para concursos como os vestibulares entre os anos
2000 a 2010, abordando sempre temas didáticos, período em que atuei no grupo que predominantemente teve como fonte financiadora a animação
de festas, como aniversários e peça sobre encomenda, dirigido por Orlando Martins, discípulo do mestre bonequeiro Antônio Mendes, diretor tea-
tral do grupo Teatro de Gente, e foi vice-presidente da Associação de Teatro de Bonecos da Bahia (ATBB) nos anos 80.

569
Edinícia Fernandes ( Dona Nice) e Sergio Reis A Velha (2013) (fotos do acervo do autor)

Citado por Ana Maria Amaral (1996, p.166), Roger Daniel Bensky afirma: “não fazer no teatro
de bonecos, distinção entre o teatro popular e teatro erudito e sim uma expressão artística que refletira
quem a realiza”. Com base no pensamento de Bensky podemos afirmar que há influências do texto
dramático Sociedade de Consumo sobre a estética da encenação realizada na Comunidade da Nova
Constituinte.

Para Bensky, na dramaturgia para bonecos encontramos dois aspectos fundamentais: a ca-
ricatura social ou satírica, e a poético maravilhoso, aspectos também evidentes no texto trabalha-
do pela experiência no conflito entre a prática do consumo alienador ou um consumo consciente, re-
presentados respectivamente pelas personagens Idalina e Moacir. Enquanto a primeiro pretende a
transformação social através da exacerbação dos defeitos humanos, como pode ser visto no consumo
alienado e doentio da personagem Idalina, provocando o riso, torna manifesta certas forças anárquicas,
propõem inversão de valores, a exemplo do empregado contra o patrão ou ridicularizando o patrão. A
segunda pretende a transformação do universo, imersão no mundo irreal, provocando liberação do poé-
tico, propondo a desintegração do material, pois, modificando-se a realidade, é que se chega ao fantástico.

570
Dona Ludinha ( 2014 ) Klea Cardoso, Sergio Reis, Cibele Salles, Paulo
Sergio na bateria (foto do acervo do autor)

No poético fantástico, destaca-se a música como um recurso que exerce uma importante função nos
âmbitos metodológico, dramatúrgico e estético. Na metodologia muitos entraves na relação entre os parti-
cipantes foram revolvidos com a realização das músicas do repertorio que favoreciam o surgimento de um
ambiente fértil para o acontecimento dos ensaios que, geralmente, eram acompanhados por instrumentos
percussivos, garrafas e pratos. Outra atividade que fomentava um ambiente favorável aos ensaios com os
textos era a realização dos cortejos como um exercício do que se pretendia para a apresentação.

Nos aspectos dramáticos e estéticos, encontramos nas experiências de vida dos participantes da
oficina de teatro, um rico material para a construção dramatúrgica em contraponto a uma sociedade con-
sumista, como propõem o texto trabalhado. Assim, fatos históricos, notícias e músicas que permeavam o
imaginário dos participantes foram inseridos no texto de modo que, as experiências vividas puderam im-
pulsionar as ações das personagens.

As cenas e partituras cênicas criadas e construídas abordaram temas como, violência contra a mu-
lher, misoginia e a Lei Maria da Penha, cenas inspiradas em recortes de revistas e em dramaturgias pessoais
como relata uma das participantes da oficina:

– Com papel, caneta, pessoas que tenham humildade e participação, uns relatórios sobre
minha vida fazem uma peça teatral, desta forma só tenho que mudar para uma coisa me-
lhor, também tem importância para que as pessoas venham entender o que passa da vida
para o teatral, pois elas entendem melhor a realidade quando sentadas assistindo teatro327.

Outro aspecto em destaque da metodologia é que, ao propor a compreensão do texto por partes, a
construção do processo criativo rompeu com o entendimento linear do texto, levando os atores a perceber
diferentes possibilidades de finalização do mesmo. Deste modo, os atores foram direcionados a desenvolver
uma atitude corporal simultânea a necessidade de compreensão de cada cena, suportando o fato do texto
ser literalmente cortado em pedaços, permanecendo vivo cada um desses pedaços, não obstante refletimos
também a possibilidade de mudança de atitude na cena. Como aponta Ingrid Koudela (1991, p.103):

O gesto é, segundo Benjamin, “um elemento de uma atitude”. Por meio da interrupção,
o gesto tem “um começo e um fim” passíveis de serem fixados individualmente (...) a

327. Trecho extraído de um questionário que foi respondido pela participante da oficina de teatro, Milena Ferreira.

571
atitude, enquanto tal, se encontra na corrente viva”. À medida que o gesto se constitui o
material do teatro épico seu uso apropriado leva à mudanças de atitude.

A intenção na construção das cenas de O Consumido é a quebra temporal e o estranhamento breshti-


niano, e tirar o atuante, e no caso da experiência, o expectador do olhar habitual para um olhar atento e
racional, pois, a partir das memórias relatadas pelos participantes da oficina, não só, experimentamos alte-
rações nas atitudes das personagens, mais também na dramaturgia em que ao comparar os bens de consumo
ofertado pelo mercado do país, antes e depois da ditadura militar, o consumismo da personagem Idalina,
em conflito com o consumo consciente de Moacir, seu marido, levaria o casal, que se ama, ao desquite no
tribunal. E para sanar as diferentes opiniões, em uma disputa de argumentos, foi realizada uma enquete com
a plateia, provocando-a a influenciar na decisão da juíza.

A respeito da dramaturgia um participante da oficina de teatro tece a seguinte opinião:

– O texto tem que está relacionado com a sociedade, para que ações como esta, (referindo-
-se ao teatro) tenham mais apoio politico, social, pesquisa do assunto que esta sendo abor-
dado e leva para o povo a cultura, critica a sociedade, mostrando a realidade da vida, do
cotidiano, para compreender e se defender do sistema328.

Joildes Santos, Santo Antônio e Dona Nice. (2015) As Amigas: Lucí, D. Nice e Dinha (2011)

Além de prover materiais para a criação das personagens e composição das cenas, as experiências
de vida dos participantes também me apontaram caminhos para o trabalho corporal em que tracei um pa-
ralelo entre a poética comum ao teatro de bonecos e a expressão corporal dos atores. No tocante ao trabalho
corporal dos atores destaco a comicidade majoritariamente presente em seus corpos e em suas vivências. Tal
observação me levou a acessar Henri Bergson (2001, p. 7) que diz:

Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. [...] O riso não tem maior
inimigo que a emoção. Quero com isso dizer que não podemos rir de uma pessoa que nos
inspire piedade, por exemplo, ou mesmo afeição: é que algum instante será preciso es-
quecer essa afeição e calar essa piedade. Numa sociedade de puras inteligências provavel-
mente não mais se choraria, mas talvez ainda se risse; ao passo que almas invariavelmente
sensíveis harmonizadas em uníssono com a vida, nas quais qualquer acontecimento se
prologasse em ressonância sentimental, não conheceria nem compreenderia o riso.

328. Trecho extraído de um questionário que foi respondido pelo participante da oficina de teatro, Ailton Villaça.

572
Com base nessas afirmações procurei por intermédio dos jogos e improvisações teatrais, entender
a função social do riso e a coesão social que o mesmo provoca. Posto que, como também aponta Bergson
“Somos cúmplices, nosso riso é sempre em grupo, contagiante, quantas vez já não se disse que o riso do
espectador, no teatro, é tanto mais longa quanto mais cheia está a sala?” (Idem).

A partir destas exposições reflito sobre as paixões das personagens, Idalina e Moací, que, de tão
mecânicas se tornam risíveis típico de personagens “tipo” da cultura cômica popular, reproduzindo aqui, o
que era feito nas comédias de Aristófanes na Grécia e na Comédia Dell’art329, articulado com os elementos
de tempos remotos do teatro de bonecos como um meio de expressar fazeres e saberes, de diferentes povos e
seus costumes, sejam eles de marionete, títere ou bonecos rústicos. Sendo pré-textos para uma investigação
do homem em sua multiplicidade, seu contexto social e seu percurso de desprazeres, o boneco e o riso foram
e continuarão sendo um meio de construir um próprio “ser” melhor, ou leia, mais habilidoso, refletindo,
consequentemente, na realidade que o cerca.

A apresentação seguiu os moldes do teatro de rua, feito um circulo e trabalhado com os princípios de
triangulação, preparando o grupo para cena aberta (arena), tecnicamente houve problemas de visibilidade e
acústica, os ensaios muitas vezes incomodavam os vizinho, já que ocorriam ali mesmo na porta de Dona Nice,
o que nos obrigou a trocar de lugar diversas vezes, para a quadra de futebol ou no asfalto da rua, sugerindo o
questionamento da separação nítida entre ator e espectador, a sala de espetáculo e a cena aberta e a relação do
estado e seus cidadãos, sobre a falta de espaço para lazer na comunidade, recorda uma das participantes.

_ A exposição dos exercícios em espaço aberto me deixa pressa, eu não me saio muito
bem nos exercícios na rua. Tenho medo de levar um pancada. (Lembra) A mulher de meu
primo tomou uma bolada no rosto e desmaiou, foi horrível, ninguém tinha intenção, foi
uma brincadeira, é sério.330

Os ensaios na rua sempre aglomeravam pessoas, proporcionando aos atores algumas noções da rela-
ção palco/plateia, como as possibilidades de improviso e interação, a principio, os atores tinham dificuldade
com a interpretação, também se sentiam inibidos, mas eram logo influenciados pelos atores mais dispostos
e assim superavam as dificuldades, no final do ensaio, abrimos a roda e ouvíamos a opinião do público.

Letícia Santos, Klea Cardoso, Sergio Reis em O Consumido (2015) fotos do acervo do autor

329. Suas origens exatas são desconhecidas porém os primeiros registras datam entre o século XV e XVI, na Itália, país que ainda mantinham viva a
cultura do teatro popular da antiguidade clássica, a “Commedia dell’arte” vem se opor a Comédia Erudita, se afirmando até o século XVII. Também
foi chamada de “Commedia dell improviso” e “ Comedia Soggeto”. Suas apresentações eram feitas pelas ruas e praças públicas, ao chegarem em
uma cidade pediam permissão para se apresentar, em suas carroças ou praticáveis, pois eram raras as possibilidades de conseguir um espaço cênico
adequado. Ela se fundamenta no seguinte parâmetro: A ação cênica ocorria no improviso dos atores, que passavam a serem autores dos diálogos
apresentados, seguiam apenas um roteiro que se denominava Canovecci, possuindo total liberdade de criação, os personagens eram fixos e muitos
atores desta estética de teatro viviam seus papeis até a morte.
330. Roda de conversa realizada na oficina de teatro ano de 2015.

573
Assim, há dez anos os maiores desafios do Coletivo Artitude é o desenvolvido de politicas públicas
que proporcione continuidade de seu trabalho nas comunidades, com recursos para manutenção de suas
atividades, aquisição de uma sede, espaço adequado de formação e memoria para uma perspectiva segura de
profissionalização de seus membros e circulação de sua produção, já que o teatro de rua não atende a lógica
capitalista que seguem quase todas às casas de espetáculo, a de sustentar-se da bilheteria, não, é resultado das
vivências dos atores e da transformação de simples transeuntes em público de arte, é gratuito e democrático
o que reforça o caráter popular do teatro realizado na experiência da Comunidade da Nova Constituinte e,
do mesmo modo, sugeri a reflexão sobre proposições teatrais em comunidades e outros contextos não for-
mais nos quais predominam expressões e saberes que contam histórias do povo.

Referências

AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas: Más- BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas po-
caras, Bonecos, Objetos. 3ª Ed. – São Paulo: Editora da líticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
Universidade de São Paulo, 1996. (Texto & Arte; 2).
KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: Um Jogo de Apren-
BERGSON, Henri. O Riso. 2ª ed. Rio de Janeiro,RJ: Zahar dizagem. Perspectiva / Editora da Universidade de São
editores, 1983 Paulo, 1991.

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A EXPERIÊNCIA DO TEATRO
POPULAR EM SALA DE AULA
Nathalia Cesar Goulart- UNIRIO

1) CULTURA, AÇÃO SOCIOCULTURAL E TEATRO POPULAR


A palavra cultura tem em suas raízes no latim colare que, entre os romanos, significa cultivar, ha-
bitar, tomar conta, criar e preservar. Relacionando-se assim, essencialmente, com o trato do homem com a
natureza, com o cuidado que se deve ter com aquilo que se cultiva. A ideia de cultura liga-se, então, ao modo
de relacionamento do homem com o mundo.

A noção de cultura, segundo a antropologia clássica, refere-se ao estudo do indivíduo e do seu com-
portamento, através de um sistema de símbolos que os orientam uns em relação ao outro, com o mundo e
consigo mesmo.

Já na abordagem sociológica, acredita-se que a cultura pertencente a um subgrupo restrito, que tem
o conhecimento, o saber e o poder de decisão, e que deve ser adaptada e interpretada para uma maior com-
preensão da camada popular, ou seja, o saber, nessa compreensão, relaciona-se ao poder.

Patrice Pavis, professor de estudos teatrais e autor do livro “O Teatro no Cruzamento de Culturas”,
afirma que o popular representa muito mais do que um bem cultural, é uma aquisição que conduz à pro-
moção social, e a cultura não deveria ser vista com uma visão uniformizadora, pura e autêntica, destinada
a uma classe esclarecida que esteja no poder, mas ser assimilada e vivenciada por aqueles que dela partici-
pam. Entretanto, na política de consumo e da produção acelerada, proporcionada pela revolução social da
implantação das indústrias, na qual o ritmo humano se torna urgente e mecânico, a cultura passa a ser ma-
nipulada como mercadoria, rompendo com o fio da tradição, deixando de ser um fenômeno de um mundo
construído pelo ser humano.

A ação sociocultural, na perspectiva crítica e emancipatória, questiona a supremacia do discurso


consumista e da homogeneização da cultura proposta pela globalização e pela mídia. Essa ação cultural
tem um campo fértil no teatro, pois promove a consciência do eu, do coletivo, ou seja, a integração social,
tendo em vista que na origem do drama, do grego agir, está intrínseco o caráter político. Ao trabalhar
com os jogos, a criatividade, a improvisação, tem-se um confronto com os pensamentos, as sensações e
as percepções.

Em seus estudos sobre a crise da cultura e o papel do teatro, Suzanna Schmidt Virganó afirma:

[...] teatro, tomado a partir do ponto de vista da educação, é capaz de gerar processos que
ampliem a experiência pessoal e coletiva dos indivíduos, agindo como catalisador no pro-

575
cesso de emancipação e tornando-o capazes de construir os seus próprios discursos sobre
a realidade, questionando-a e reinventando-a. (2006, p. 16)

A experiência prática do teatro popular em sala de aula foi realizada no colégio estadual Arruda Ne-
greiro, localizado na cidade de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, com alunos do primeiro ano do curso normal.
O curso tem como propostas fornecer aos alunos a primeira formação profissional para exercerem a função
de professores da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental e o ensino propedêutico que
os prepare para prestar exames de vestibulares, a fim de darem continuidade aos estudos em nível superior.

Na referida escola, lecionamos a disciplina artes, na qual, segundo o currículo mínimo dessa mo-
dalidade de ensino, faz-se necessária a construção de estratégias de ensino que levem os alunos a desen-
volverem competências e habilidades, a se apropriarem de conceitos e a tomarem consciência das próprias
atitudes, tornando-se, desse modo, imprescindível a adoção de princípios como os de “reflexão na ação” e
“reflexão sobre a ação” no campo da arte. Para isso, docentes e alunos devem refletir continuamente sobre
os resultados obtidos a partir de cada atividade vivenciada, com o objetivo de alcançarem plenamente a
potência das diversas linguagens artísticas.

Abordar o teatro nesse contexto educativo foi um desafio. Tivemos que apresentar uma reflexão
crítica sobre as práticas pedagógicas da disciplina, uma vez que o Curso Normal tem como principal atri-
buição preparar o professor do primeiro segmento do Ensino Fundamental, exercitando a prática, a expres-
são corporal, a imaginação, o autoconhecimento, a consciência crítica e política, a cidadania e a motivação
interativa a partir do tema “Fundamentos e Matrizes da Arte”, considerando-se, no nosso contexto, a cultura
popular e suas manifestações no teatro.

Na busca de uma tradição oral e no estudo de intercâmbios entre as culturas, encontramos na re-
gião do Crato, no Ceará, a festa popular do Pastoril, que tem como característica a narração dramatizada
da história do nascimento do menino Jesus. Nela, apresentam-se dois cordões de pastoras, que são, por sua
vez, divididos nas cores azul e vermelha (ou encarnada). Os personagens da Mestra e Contramestra ficam
à frente de cada cordão, intermediado pela Diana, que participa dos dois cordões. Essa particularidade de
Diana pode ser observada no seu figurino, no qual há a mistura das duas cores.

Conhecido como dança dramática ou teatro popular, o Pastoril apresenta a dramaturgia ligada à
religiosidade, contendo também um caráter profano. Os personagens que compõem o festejo são José, Ma-
ria, o Anjo Gabriel, os Reis Magos, misturando-se à ludicidade de outros personagens que aparecem para
celebrar o nascimento de Jesus, como a Estrela, a Borboleta, as Floristas e as Ciganas, estas são representadas
com algumas adaptações de pastoris como o agente causador de conflitos entre os cordões por não terem
sido convidadas a participar da festa.

Esse teatro popular, realizado para as massas e aberto a todos, foi utilizado como meio de propaga-
ção da doutrina cristã, que se dissipou pelo território brasileiro a partir da colonização portuguesa. Apresen-
ta elementos do teatro medieval e da Commedia Dell´Arte, havendo também o hibridismo de linguagens
do teatro, da dança e do canto, na entonação das cantigas de adoração ao nascimento do menino Jesus.

A partir de tais referências tem-se como proposta a utilização do Pastoril no ensino do teatro po-
pular na sala de aula, resgatando o conceito de cultura que se vincula à relação do homem com o mundo
na busca de uma raiz, de uma identidade, da ação sociocultural onde o indivíduo, aluno, é atuante em
debates sobre temas e propostas do currículo mínimo, e da criação coletiva através do compartilhamento
do conhecimento, transportando assim para a realidade da modalidade do curso normal o processo de
ensino-aprendizado.

576
2. O PROCESSO E O JOGO

Para isso, foram desenvolvidas aulas temáticas, partindo de manifestações populares que priori-
zaram a reflexão sobre a identidade cultural presente na cidade de Nova Iguaçu e no contexto dos alunos.
Também foi enfatizado o processo coletivo na prática dos Jogos Dramáticos, acepção francesa do “jeu dra-
matique”, influenciado por Léon Chancerel e sistematizado por Jean Pierre Ryngaert. Os Jogos Teatrais,
baseados nas concepções de Viola Spolin, foram igualmente utilizados, bem como o estudo da relação da
cena com texto de acordo com a improvisação, criando um roteiro coletivo de ação que resultou em uma
releitura do Pastoril.

Metodologicamente, o desdobramento das aulas seguiu quatro etapas. Na primeira, realizada no


primeiro bimestre, houve a contextualização do teatro na educação. Partindo da proposta de formação do
professor a qual o curso normal se destina, apresentamos a introdução da história do teatro no Brasil através
da catequese e a compreensão dos elementos da linguagem teatral a partir dessa temática. Nesse momento,
valemo-nos do conceito de “jogo dramático” (jeu dramatique), que, segundo Pupo (2005) é uma modali-
dade lúdica com intenção pedagógica, que utiliza a improvisação com regras partindo de temas, enredos,
elementos da relação do corpo com o espaço, música, imagens, objetos, poemas ou palavras, utilizado tam-
bém como uma forma de buscar a relação entre trabalho em grupo e a expressão pessoal dos participantes.

Nas improvisações realizadas com o grupo de alunos, observamos que se instaurou um ambiente
favorável e integrador, no qual foi explorado o deslocamento do corpo no espaço, resgatando a percepção
sensorial e consciência corporal é a troca entre quem assiste e quem faz a cena, reconhecendo nesse aspecto
o caráter formador do teatro (DESGRANGES, 2006).

A partir dessa experiência foi proporcionado o espaço de discussão das atividades realizadas duran-
te o processo criativo, tem-se como exemplo a aplicação do jogo “Pessoa, Cabana, Tempestade”, que ocorre
do seguinte modo: em duplas, os alunos formam uma cabana, dando as mãos de frente uns para os outros,
outro participante deve entrar nessa cabana, assumindo a “Pessoa”. Nesse jogo, um participante deve ficar de
fora. Ao comando de quem está de fora, as “Pessoas” devem sair de suas cabanas e procurar outras, sendo
que quem está fora irá ocupar uma delas, assim alguém, ficará sobrando no grupo. Se houver o comando
“Cabana”, as duplas se desfazem e procuram outra pessoa para forma novas configurações de cabanas, caso
seja dito “Tempestade”, todos devem se revezar, formando novos subgrupos de Cabanas e Pessoas, sobrando
alguém que dará novo comando. Esse jogo é uma adaptação de uma brincadeira infantil intitulada “Jana
Cabana”. A brincadeira, ao ser adaptada para a prática pedagógica em sala aula, pode ser observada a partir
da modalidade de “jogo dramático” por ter uma regra partindo da relação entre o corpo e o espaço, valori-
zando combinações aleatórias lançadas pelos participantes.

Na segunda etapa, realizada no segundo bimestre, houve a compreensão das características da cul-
tura popular na correlação com a linguagem teatral. Nesse momento foram utilizados os jogos propostos
por Viola Spolin, visto que estabelecem um sistema que oferece com clareza as bases da ação dramática de
espaço, tempo, personagem e ação, partindo das perguntas “o que?”, “onde?” e “quem?”. Utilizou-se também
o uso de regras no direcionamento do foco onde o jogador fixa sua atenção, a instrução (retomada do foco
pelo orientador) e a separação entre quem joga e quem assiste, bem como a avaliação (efetuada pela plateia
na troca com o grupo), e a fiscalização da ação, ou seja, o ato de mostrar as imagens e não contar, caracterís-
ticas analisadas por Viola (2012). Nessa etapa observamos os ditados populares como exemplo da utilização
do tema norteador, partindo do conhecimento e das referências dos alunos de sentenças que fazem parte
domínio público tal como “filho de peixe, peixinho é”, relembrando assim, o conhecimento da tradição e dos
ensinamentos embutidos que passam de geração em geração. Jogos com o foco no “que” marcados pela ação
improvisada, foram mais utilizados nesse momento.

577
Já na terceira etapa, ocorrida no terceiro bimestre, os alunos se aproximaram da expressão dramáti-
ca ao criarem uma releitura das cenas a partir do tema norteador do Pastoril, que é conhecido como dança
dramática ou teatro popular. Essa fase teve como proposta a composição de uma obra a partir da releitura
dos conceitos de identidade e de manifestação popular dos alunos. O grupo sugeriu que houvesse a divisão
de papeis em subgrupos de acordo com as suas identificações no evento teatral. Uma parte dos alunos se
dividiu em encenadores, responsáveis por representar as personagens, e outra em dramaturgos, que fizeram
a adaptação da história na escrita coletiva das cenas a partir dos improvisos dos jogos, proporcionando o
fortalecimento da sala na composição de roteiro de ação da dramatização do Pastoril.

A proposta favoreceu diálogo entre o texto e a cena, fazendo uma correlação da narrativa com a
realidade dos alunos, que, aos poucos, começaram a criar uma ação permeada de características do seu co-
tidiano. Em uma das aulas, por exemplo, após a aplicação de jogos de sensibilização com foco na situação,
foi solicitado que eles fizessem uma cena de improviso com os fragmentos narrados pelas pastoras, como a
anunciação da gravidez de Maria e sua revelação para José. Na cena, adaptada para o contexto urbano, duas
vizinhas comentam sobre a suspeita de gravidez de Maria, que supostamente teria traído José, pois ela havia
falado que casaria virgem. Ao encontrarem com José na rua, as vizinhas fazem esse comentário; ele, enfu-
recido, vai ao encontro de Maria, que explica, como na história narrada pelo Pastoril, que a criança é uma
bênção do Espírito Santo. José acha que esse é o nome do rapaz com quem Maria poderia estar traindo-o,
o anjo, então, aparece para resolver a discussão. Em uma das falas improvisadas, a aluna que interpretou a
personagem de José afirma: “Quem é esse altíssimo? Se eu sou baixo? E nunca pensei em colocar o nome de
um filho de Jesus e sim Joaquim...”. A cena é finalizada com a aparição de um anjo lutador, que, ao intimidar
José, faz com que ele compreenda o milagre, convencendo-o e fazendo-o pedir desculpas a Maria. Podemos
observar que a apropriação da cena a partir da realidade vivenciada por eles no cotidiano foi um caminho a
ser seguido no processo de composição da obra.

A última etapa, no quarto bimestre, com o roteiro de improvisação articulado em torno do tema
central do Pastoril, as cenas a serem apresentadas foram discutidas. Uma das características da releitura foi a
adaptação da narrativa realizada pelas pastoras, que foi substituída pela narrativa dos anjos, pois eles teriam
vivenciado o episódio da anunciação do nascimento do menino Jesus e assim pediram ao grupo de pastores
(homens e mulheres), para que, através das danças e cantorias, pudessem guiar as outras personagens, como
mostra a letra a seguir:

Boa noite, meus senhores, todos! Boa noite, senhoras, também! Somos pastoras, pastori-
nhas belas, que alegremente vamos a Belém. Sou a Mestra do cordão encarnado, o meu
partido eu sei dominar, com minhas danças, minhas cantorias, senhores queiram apreciar.
(Domínio Público)

As personagens do Pastoril, como as floristas e a borboleta, foram transformadas em ativistas da


natureza. A estrela foi personificada como uma artista que indicava o caminho para o estábulo por meio da
música. Os Reis Magos, que iriam presentear o Menino Jesus, se perdem no meio caminho por discutirem
de quem seria o melhor presente. Já as vizinhas fofoqueiras, presentes nas primeiras improvisações, foram
transformadas em ciganas que não haviam sido convidadas pelos pastores para festejar o nascimento por
serem consideradas bruxas, feiticeiras, ou seja, representavam o lado profano. As ciganas se vingam com
uma fofoca que coloca a líder do grupo de pastores do cordão vermelho, a Mestra, contra a líder do azul, a
Contramestra, nesse conflito, nem mesmo Diana, personagem que é importante para intermediar a disputa
entre os cordões encarnado e azul, consegue apaziguar a situação. Os alunos criaram uma letra inspirada no
rap para apresentar essa briga:

578
Tadinhos, vou lhes dá o raciocínio, o time azul é o perigo, Meu irmão, tá dado o recado, o
time azul é visionário.
(Criação coletiva)

Vocês acham que tem desprezo? Que peninha seu rap é moleza, aqui é o time vermelho e
vamos arrasar porque inteligência nunca vai nos faltar.
(Criação coletiva)

As letras criadas e o final dessa cena, que é o assassinato da Mestra do time azul pela Contramestra
do time vermelho, resgatam a característica dos costumes da região dos alunos, seja na música ou no alto
índice de violência presente na cidade de Nova Iguaçu, aspecto refutado no encerramento do espetáculo,
no qual foram encenados o arrependimento da assassina e o perdão dos anjos, ressaltando as montagens
tradicionais do Pastoril nordestino.

Percebemos que outras características foram mantidas, como a presença das cantigas do cordão
para festejar momentos do nascimento de Jesus e a dança, na qual a coreografia foi criada pelos alunos, bem
como as personagens características do Pastoril, como a Diana, a Contramestra do Encarnado e Mestra do
Azul, a Cigana, o Anjo, José, Maria, a Borboleta, a Estrela, as Floristas e os Reis Magos. A anunciação do
nascimento de Jesus de forma teatral, como é o caso do Pastoril “Mariinha da Ló” de Pacatuba, no Ceará,
com a presença do Velho, conhecido como palhaço, que propõe o intermédio entre o Pastoril e o público
e que se faz presente em grupos populares no Rio de Janeiro, como o “Céu na Terra”, não foi utilizado na
releitura dos alunos.

A culminância da apresentação pública foi realizada na escola, em um evento intitulado Semana


Literária organizado pela agente de leitura. Pelo fato das cenas terem sido construídas no decorrer das aulas
através de jogos baseados na história do Pastoril e na oralidade da cultura dos alunos, esse momento final
pareceu um ensaio aberto, possibilitando, inclusive, a apresentação de outro Pastoril direcionado pela pro-
fessora português da mesma escola.

Diante da insegurança do grupo antes da apresentação, repassamos a importância da construção


democrática da cena, do trabalho autoral e da criatividade empregada no projeto, destacando a ação de
brincar, de reinventar do Pastoril e da experiência teatral. A segurança do grupo em cena foi surpreendente,
seja no domínio das ações, seja nas improvisações, visto que um dos anjos narradores pulou a cena das ci-
ganas, primordial para explicar a batalha de rap, que foi apresentada em outro momento, não prejudicando
a condução da história.

O entusiasmo dos alunos envolveu a plateia, deixando-os felizes com o resultado final. Alguns, na
sequência, participaram do outro Pastoril. Posteriormente, mostraram-se mais envolvidos com nosso pro-
jeto, porque foram eles “quem fizeram”. Reforçamos que o importante não era a disputa entre os estilos de
apresentação e que não existe certo ou errado na forma de compor, provocando a reflexão sobre o processo
criativo colaborativo de composição e o ensino desse conhecimento para seus futuros alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o processo, notamos grande disponibilidade dos alunos para o jogo e para a improvisação,
principalmente na liberdade de manipulação da linguagem teatral adquirida durante os encontros, obser-
vando, inclusive, o fortalecimento da relação de grupo, como na situação de duas alunas que constantemente
brigavam. Inicialmente, as duas se negavam a assumir trabalhos em conjunto. Na dinâmica dos jogos esse

579
quadro foi aos poucos sendo modificado, não forçando a integração, mas partindo do entendimento de que
teatro se faz em grupo e como tal precisa estar estruturado.

Na divisão dos papéis, os outros alunos sugeriram que elas assumissem as personagens da
Mestra e da Contramestra dos cordões vermelho e azul do Pastoril, como uma forma de trazer à tona o
entendimento de que suas discussões proporcionavam a quebra da relação não somente entre elas, mas
também entre todo o grupo. A disponibilidade das alunas em aceitar os papéis nos mostrou a necessidade
da realização da montagem.

A abertura do grupo e a disponibilidade para o jogo, para o conhecimento do outro, respeitan-


do as diferenças, levando a liberdade para a criação, esteve presente em todo o processo com a classe, bem
como a confiança mútua, possibilitando a busca pela expressividade da coletividade, da ação cultural e do
fazer do teatro popular.

Referências

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de SPOLIN, Viola. Jogos Teatrais na Sala de Aula: um ma-
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. nual para o professor. Tradução Ingrid Dormien Koudela.
São Paulo: Perspectiva, 2012.
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: Provoca-
ção e Dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006. PAVIS, Patrice: O Cruzamento de Culturas. Tradução
Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como ele-
mento da cultura, 5° edição. São Paulo: Perspectiva, 2005. PUPO, Maria Lucia. Para Desembaraçar os Fios. Edu-
cação e Realidade, Rio Grande do Sul, 30(2), 217-228,
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VIRGANÓ, Suzanna Schmidt. As Regras do Jogo: a ação
JAPIASSU, Ricardo. Metodologia do Ensino de Teatro.
sociocultural e o ideal democrático. São Paulo: Editora
São Paulo: Papirus, 2001.
Mandacaru, 2006.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais, 5° edição.
São Paulo: Perspectiva, 2004.

580
RELATO DE EXPERIÊNCIA:
O ENSINO DAS ARTES INDÍGENAS
NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Flávia Roberta Alves Costa

Há um quantitativo enorme de povos indígenas no Brasil que sofrem preconceitos e es-


tigmatização. Atualmente, em Pernambuco é contabilizada uma população indígena em torno de 26.000
indivíduos (IBGE, 2010), distribuídas entre 13 povos indígenas. Esses povos são discriminados por serem
considerados “atrasados” e avessos ao progresso, enquanto inversamente são muitas vezes colocados na
condição de “inautênticos” (ou “falsos índios”) por apresentarem formas socioculturais e um tipo físico que
não remete às representações do senso comum sobre o que são os “índios”, em geral, associada ao biotipo-
xinguano e amazônico.

Para fins de minimizar os preconceitos acima mencionados, no Brasil, institui-se a Lei nº 11.645/2008
determinando que: “nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados,
tornasse obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” (BRASIL, 2008) fez com que
práticas de ensino sobre africanidades na escola se elevassem, mas poucas são relacionadas com os indíge-
nas, principalmente, os do Nordeste.

A lei referida acima surge num contexto em que os povos indígenas buscam autoafirmação e lutam
pela vinculação de imagens mais condizentes com as suas realidades. Dito isso, compactuo com as ideias de
Bergamschi(2015), ao afirmar que

(...) a escola terá que fazer um esforço para conhecer esses povos, sua história e sua cultura
e, mais especialmente, afirmar uma presença que supere a invisibilidade histórica que se
estende até o presente. Apesar da colonização, do genocídio, da exploração, da catequi-
zação, da tentativa de assimilar os indígenas à sociedade nacional, estes povos mantive-
ram-se aqui, resistentes, mesmo que por vezes silenciosos. Apresentam-se fortes, num
movimento político de afirmação étnica, mostrando que aqui estão e permanecerão. No
contato, a todo o momento são postos à prova quanto as suas identidades étnicas, visto
que a concepção que predomina nas sociedades não-indígenas é de povos do passado, não
compreendendo que a dinâmica cultural, que é própria de todas as sociedades, faz com
que incorporem alguns elementos da cultura ocidental, o que não significa que deixaram
de se identificar como indígenas (BERGAMASCHI, 2015).

581
Diante desse movimento nacional e local, o que a Escola tem feito para garantir a Lei 11.645/2008,
no que se refere à obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena? Mais especificamente, como os
professores de artes podem trabalhar a imagem do índio e sua cultura material?

Adentrando ao universo da Prefeitura da Cidade do Recife (PCR), duas iniciativas de cumprimento


da legislação brasileira referente ao assunto foram implantadas. A primeira, com a inserção ao componente
curricular de Artes, a temática de artes indígenas local e/ou regional e/ou global e seu diálogo com a con-
temporaneidade (tatuagem e/ou BodyArt, dentre outras), dedicada ao sexto ano do ensino fundamental, no
segundo bimestre do ano letivo. A segunda, no âmbito da Secretaria de Educação, desde 2006 (dois anos
antes de instituição da referida lei), com a criação do GTERÊ (Grupo de Trabalho em Educação das Rela-
ções Étnico-Raciais) que realiza periodicamente formações para os professores da rede com a temática das
relações étnico-raciais.

Diante desse cenário, relatarei como as artes indígenas local foram trabalhadas nas aulas de artes
visuais dos sextos anos na Escola Municipal Divino Espírito Santo, no Recife.

DESENVOLVIMENTO

Em 2013, com a reelaboração do currículo de ensino da PCR, a temática da arte indígena foi inclu-
ída a grade de conteúdos de artes do 6º ano. Como professora da rede, busquei realizar uma pesquisa sobre
o tema para trabalhar não só a produção artística indígena Pré-Cabralina, comumente ressaltada nos livros
didáticos, mas também a produção contemporânea dos índios da nossa região (Pernambuco).

Começando a etapa de pesquisa sobre a temática, o a primeira dificuldade foi a de encontrar um


material sistematizado da produção artística indígena no território de Pernambuco. Essa lacuna impulsio-
nou-me a elaborar um projeto de pesquisa visual indígena em Pernambuco, em parceriacom a historiadora
Rita de Cássia Santos331, no Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (FUNCULTURA) em 2013. Nosso
projeto foi aprovado e realizado nos anos de 2014 e 2015. Cultura Material Indígena em Pernambuco332 é
um inventário preliminar dessa produção indígena no território pernambucano. Preliminar porque nessa
primeira etapa, apresentamos quatro dos treze povos indígenas situados no Estado de Pernambuco, a saber:
Fulni-ô, Kapinawá, Pankararu e Xucuru. No relatório, abordamos alguns dos objetos que os indígenas pro-
duzem, o contexto de seu uso e a matéria prima empregada em sua fabricação.

A escolha das peças que compõem esse material de pesquisa foi realizada em conjunto com as
comunidades indígenas. A nossa proposta almejava apresentar os objetos que os indígenas julgassem per-
tinentes e apropriados para esse fim. Fazem parte do inventário diferentes categorias de objetos: os de uso
decorativo e performático (cocares, bordunas e arcos) e os de uso cotidiano (arupemba, prato e aiol). Alguns
deles, como o cachimbo, o maracá e a flauta são utilizados tanto em cerimônias religiosas quanto em atos
políticos. Todos têm em comum a inexistência de restrições para a sua apresentação pública. Uma das nos-
sas preocupações desde o início do projeto foi respeitar os domínios do sagrado e do segredo estabelecidos
pelos povos indígenas acerca de sua cultura.

331. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2007), mestrado em ANTROPOLOGIA SOCIAL pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (2011) e doutorado em ANTROPOLOGIA SOCIAL pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016). Atualmente é
professora adjunta da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de História e Antropologia, atuando principalmente nos seguintes
temas: coleções etnográficas, museus, imagens, populações indígenas e história da ciência.
332. COSTA, Flávia Alves & SANTOS, Rita de Cássia Melo. Cultura Material Indígena em Pernambuco. Relatório de pesquisa, Recife: FUNCULTU-
RA, 2015. Disponível em:<http://laced.etc.br/site/arquivos/Relatorio_Final_Pesquisa_Cultura_Material_Indigena_em_Pernambuco.pdf>. Acesso em:
11/2017.

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Figura 1 - Cachimbo Pankararu

Fonte: Costa e Santos (2015, p.34)

Fizemos também um comparativo das peças encontradas nas comunidades indígenas com as ex-
postas do Museu do Homem do Nordeste e o Museu Nacional do Rio de Janeiro. A pesquisa foi publicada
no site do Laboratório de Pesquisa em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento e apresentada na formação
de professores de artes na PCR em 2016.

Após o levantamento do material, construí um projeto didático de ensino de arte intitulado “Ins-
pirações Indígenas”, realizado com cem estudantes dos sextos anos, o qual recebeu, em 2017, os prêmios:
Educador Nota 10 e Professores do Brasil (etapa estadual).

Nos caminhos possíveis para trabalhar os conteúdos busquei abordar a pluralidade cultural desses
grupos indígenas, estimulando uma nova maneira de ver e pensar sobre o modo de vida dos povos indíge-
nas, como forma de superação dos preconceitos e discriminações tendo como objetivos:

• Incluir a temática indígena nas aulas a ser abordada na perspectiva da pluralidade cultural,
através de estudos específicos e interdisciplinares sobre os índios de Pernambuco;
• Elaborar uma pesquisa etnográfica da descendência indígena dos alunos da escola;
• Produzir trabalhos artísticos com materiais diversos, inspirados nas artes dos grupos indígenas;
• Visitar espaços expositivos que abordem o tema;
• Trazer a comunidade indígena para a escola, permitindo diálogos entre os estudantes e os
grupos indígenas;
• Promover uma exposição para a comunidade sobre o percurso da pesquisa, bem como a
produção artística dos alunos.

Etapas do projeto

1. Diagnóstico dos saberes dos alunos

Na etapa diagnóstica do projeto, por meio de conversas e debates, percebi que os preconceitos eram
comumente relatados pelos estudantes, em se tratando da temática indígena. Alguns não se auto-afirmavam
descendentes diretos de grupos indígenas. Ouros estudantes relacionavam os indígenas ao discurso euro-
cêntrico, ao colocá-los nas condições de “pré-históricos” e “incivilizados”.

Em seguida fizemos uma pesquisa com todas as turmas do ensino fundamental, aplicada durante
as aulas de artes, para analisar a descendência indígena dos estudantes. Construímos um questionário com

583
quatro perguntas elaboradas por um grupo de alunos e o professor de matemática Ronald Santana. Nesse
questionário, perguntamos se eles tinham algum parente indígena, de onde veio sua família (lugares onde
existem comunidades indígenas apareceram como opções para marcar), se eles conheciam alguma comu-
nidade indígena e se reconheciam como índios. Um grupo de estudantes fez a contagem das respostas e
transformou em gráficos com a orientação do professor de matemática.

Na ocasião, os quantitativos finais da pesquisa indicaram que 6% dos estudantes declararam ter
parentes indígenas, 22%dos estudantes possuíamparentes em regiões que se concentram comunidades in-
dígenas, 9% afirmaram conhecer alguma comunidade indígena, 12%se autodeclaravam indígenas e 56% se
reconheciam, em partes, indígenas. Os percentuais indicaramo distanciamento entre a realidade dos grupos
indígenas e dos estudantes da escola.

2. Conhecendo os índios de Pernambuco

Algumas comunidades indígenas de Pernambuco foram apresentadas para os alunos em forma de


imagens, gráficos e contação de histórias. Os estudantes se surpreenderam ao saber que nossos índios usam
roupas como nós, falam português, estudam, fazem faculdade e não vivem em oca. E que temos um aluno
no 9ºano que é índio Xucurú, branco e dos olhos verdes, o que os deixaram mais confusos.

Muitas perguntas surgiram como: “ele deixou de ser índio por estar na cidade?”, “Eles só comem o
que plantam?”, “usam celular?”. Respondidas as perguntas, houve um impasse e divisão de opiniões. Alguns
achavam que índios tinham que viver na “floresta”, outros afirmaram que não precisam viver isolados, po-
dem estar na cidade, mas que ainda preservasse suas crenças e ritos.

Na finalização do debate,concluímos que “ser índio é ter descendência dos povos que aqui habita-
vam antes da chegada dos europeus ou se reconhecer como índio. Ter orgulho de sua identidade e com ela
fortalece sua cultura”.  

3. As artes dos povos indígenas

Artefatos dos povos Fulni-ô, Kapinawá, Pankararú e Xukuru como cachimbo, instrumentos musi-
cais e objetos ritualísticos foram observados, analisados e discutido suas funções. Observamos os materiais
utilizados (a palha, o barro e a madeira)e como, em sua maior parte, originam-se das regiões do Sertão e
Agreste pernambucano. Esses materiais diferenciam-se das penas coloridas, comumente pertencentes à na
arte indígena amazônica. Percebemos que cada povo tem características próprias e que sua produção difere
de uma comunidade para outra.

Em seguida, trabalhamos o desenho de observação dos objetos que os alunos mais se identificaram
com lápis, hidrocor e tinta aquarela. Essa etapa foi a mais difícil de ser realizada pela resistência a desenhar,
entretanto com paciência e dedicação conseguimos concluir.

4. Visita do povo Fulni-ô

Recebemos os índios Fulni-ôs na quadra da nossa escola. Prontamente, a comunidade escolar se


mobilizou para arrecadação de alimentos concedidas aos Fulni-ôs. Trata-se de um trabalho educativo nas
escolas que, em consonância com as trocas de conhecimento com os estudantes,os Fulni-ôs arrecadam ali-
mentos nas comunidades próximas as escolas, em virtude da impossibilidade de plantar no período de seca.

584
Começando os diálogos, os Fulni-ôsfalaram sobre seu povo e responderam às perguntas feitas pelos estu-
dantes. Os alunos fizeram várias perguntas como: “o trabalho na aldeia é diferente de homem e mulher?”, “existe
brigas entre aldeias diferentes?”, “Qual material vocês usam para pintar seu corpo e o que significa esses símbo-
los?”. Em seguida, fizeram suas danças e inseriram alguns alunos e funcionários da escola nos rituais dançantes,
explicando o significado de cada um deles. Falaram em seu dialeto (Yathê) e depois traduziram para o português.

Os alunos se encantaram pelos índios por vários motivos: por eles serem jovens (a faixa etária foi de
17 a 21 anos), inteligentes e ter um biotipo diferente do que eles imaginaram.

Ao final da apresentação e debates, houve uma partida de futebol entre o grupo de estudantes da
escola e os Fulni-ôs. A maioria dos alunos torceu pelos indígenas e vibrou com o jogo, mesmo o grupo da
escola tendo ganhado. O contato se estendeu para além da escola com a troca deFacebook.

O conhecimento e a interação com os Fulni-ôs e sua produção artística, constituiu uma possibi-
lidade de apreensão de outras perspectivas culturais, onde o “ser indígena” pode ser visto e sentido como
elemento integrante e participante de uma mesma sociedade.

5. Pintura Corporal

Os estudantes ficaram impressionados com a pintura corporal dos Fulni-ôs. Após a visita desses
índios à nossa escola, estudamos as formas e significados delas. Em seguida discutimos sobre a bodyart e
relacionamos com a pintura corporal.

Num trabalho em equipe, planejamos e realizamos pinturas (com tinta guache) corporais/protesto
fazendo uma releitura, através de palavras que simbolizassem a vida desses índios. Algumas das palavras
escolhidas foram: cultura, luta, fé e força.

Os alunos gostaram de pintar seu corpo e muitos não tiraram a pintura após a aula. Passaram o dia
com o corpo pintado e quando saía um pouco da tinta, voltavam na sala de artes para retocar. O trabalho de
pintura foi realizado na área verde da escola e fizemos registros fotográficos dessas pinturas.

Figura 2 - Trabalho de pintura corporal dos estudantes

Fonte: Elaborada pela autora

585
6. Tramas indígenas

As tramas encontradas nos objetos indígenas produzidos com palha também foi nossa inspiração
para construção de tramas com material reciclado. Utilizamos os descartados pela escola (como papéis di-
versos) para construir um trabalho em equipe.

Papéis, tesoura, estilete e fitas se transformaram pelas mãos dos estudantes em composições colo-
ridas e diversificadas. Cada grupo escolheu sua forma de trançar. O trabalho precisou de um planejamento
anterior, montagem da base, escolha e corte de tiras para construir o trançado.

Em comparação às etapas iniciais do projeto, apesar desse trabalho exigir mais habilidades dos es-
tudantes, percebi uma crescente autonomia criativa dos mesmos.

7. Visita ao Museu do Homem do Nordeste

Como forma de aprofundar os conhecimentos sobre a temática indígena, fizemos uma visita me-
diada ao Museu do Homem do Nordeste, o qual conta com um acervo riquíssimo sobre os povos indígenas.

Aprendemos nesse espaço que o homem do Nordeste é múltiplo e sua identidade foi construída
pela miscigenação de tantas outras, inclusive dos indígenas e observamos nesse espaço vários objetos que
estudamos, através de fotografias nas aulas.

A visita ao museu foi importante, tanto em decorrência do aprofundamento dos conhecimentos


sobre os povos indígenas, quanto em possibilitar a ida dos estudantes que desconheciam o espaço.

8. Exposição

No dia da família, foi realizada uma exposição dos trabalhos e pesquisa produzidos pelos alunos
para que toda a comunidade tivesse acesso às produções e descobertas envolvidas no projeto. A exposição
foi montada com a colaboração dos estudantes, ficando bastante felizes ao observarem os seus trabalhos e
pesquisas expostos para toda a comunidade. As fotografias das pinturas corporais foi o trabalho que mais se
destacou na mostra.

9. Avaliação

A avaliação dos estudantes foi realizada com base nos conteúdos, objetivos, orientações didáticas e
em três momentos:

Uma avaliação prévia para diagnosticar o nível de conhecimento dos estudantes sobre
o conteúdo do projeto. Realizamos debates sobre a situação atual dos índios e sobre a
existência de comunidades indígenas em Pernambuco. Nesta etapa, utilizei questionário
de pesquisa sobre a descendência indígena dos estudantes, que foi aplicado com todas as
turmas do ensino Fundamental. Não foi atribuída nota aos alunos. Ela teve como objetivo
verificar o que as turmas não sabiam ou até que ponto conheciam sobre o assunto. Foi uti-
lizada como fonte de incentivos e como introdução, a fim de prepará-los para receberem
o que íamos trabalhar. Gerou curiosidade e reflexão sobre o tema. Muitos ficaram interes-
sados sobre as descendências indígenas e como vivem os índios na contemporaneidade.

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A avaliação durante as situações de aprendizagens: Avaliaram-se os momentos das
produções artísticas, participação nas discussões e envolvimento nos trabalhos em gru-
po. Esta etapa ajudou os estudantes a perceberem o que estava faltando, no que eles esta-
vam errando, permitindo-lhes oportunidade de se esforçarem a fim de atingir os objeti-
vos. Durante a produção dos desenhos de observação, das tramas indígenas e da pintura
corporal, os estudantesplanejaram e replanejaram seus estudos e práticas. Também lemos,
fizemos exercícios e debatemos sobre as produções artísticas dos indígenas; as técnicas,
materiais, temas e função dessa arte. Houve atribuição de nota nessa etapa, sendo valo-
rizado mais o processo do que o produto final. As notas foram duas, uma da produção
dos trabalhos em grupo e outra do caderno de cada aluno, onde constam as pesquisas,
anotações e exercícios.

Uma avaliação ao término do conjunto de atividades para analisar como a aprendi-


zagem ocorreu por meio de atividade escrita, participação na curadoria e montagem da
exposição dos trabalhos artísticos e de pesquisa. Foi realizada uma avaliação semestral
escrita com questões de múltipla escolha e questões abertas versando sobre o que estu-
damos no projeto. Os estudantes que participaram de todas as etapas e são assíduos na
escola, mesmo aqueles que têm dificuldade de ler e escrever, reconheceram os conteúdos
abordados e tiveram um grau baixo de dificuldade para fazê-la. A seleção dos trabalhos
escolhidos para exposição (pois não caberiam todos no espaço) foi feitas por eles, seguin-
do a orientação dos trabalhos que melhor atingiu os objetivos (não os que estavam mais
bonitos). Para esse processo de curadoria, foram atribuídos pontos que se somaram às
notas anteriores.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto despertou na escola um sentimento de pertencimento, respeito e admiração aos povos


indígenas, bem comopossibilitou uma autonomia criativa, ampliando os fazeres ao acessar diferentes mo-
dos, técnicas, materiais e ferramentas. Os objetivos iniciais do projeto foram atingidos com a maior parte
dos estudantes.

As vivências dos estudantes com a temática permitiu a emergência da autodeclaração de descen-


dência indígena, escondida nas etapas iniciais do projeto. Hoje percebo que muitos sentem orgulho da des-
cendência direta ou indireta. Descobrimos que cada povo tem sua arte com características próprias e que as
diferenças individuais e/ou coletivas constituem nossa sociedade.

587
REFERÊNCIAS

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Pereira; MEINERZ, Carla Beatriz.  “Interculturalidade na Escola. Novos Subsídios para professores de 1° e 2°
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588
O MITO DA POMBA-GIRA
CIGANA SARAH - O REENCONTRO
COM A MATRIZ ARQUETÍPICA
NO CORPO DA INTÉRPRETE
Elze Maria de Oliveira Barroso- UFRN

Fragmentos Do Diário De Uma Sobrevivente Selvagem

Preciso descansar. Cada parte de mim, meus pensamentos, meus olhos exaustos de testemunhar a his-
tória, minhas folhas, minhas raízes, meu caule, minha penugem, meus órgãos, estão todos esfacelados por
dentro. Já deveriam ter se tornado um montante de pó, há mais de um século. Entretanto por razões ainda
inexplicáveis, caminho sobre a terra, e até agora não nos misturamos por mais que tentativas de carregar
todas as minhas partes para estarem finalmente emaranhadas.

Eles simplesmente ignoravam que a alma contém todas as imagens das quais surgiram
os mitos, e que nosso inconsciente é um sujeito atuante e padecente, cujo drama o ho-
mem primitivo encontra analogicamente em todos os fenômenos grandes e pequenos
da natureza (JUNG, 2002, p10)333.

O esforço foi demasiadamente em vão. Caminho sobre ela, isso me faz ver cada movimento dos seres,
eles atravessam aminha estrada, e, agora por último, assim espero, vejo você, este ser vivente, esta pessoa que
agora me lê, peço que tenha a calma de uma árvore centenária e uma curiosidade infantil. Estou cansada e por
vezes em pequenos ou grandes delírios, estou velha, embora não pareça, mais de trinta e nove anos, mas estou.

Preciso partir. Mas não antes de te contar algo que carrego há tempos comigo e que preciso deixar
para levar contigo. Se chegastes até a estas linhas descritas de meu pensamento, posso finalmente descansar
ou algo por vir, guardado para mim, que só quando atravessar saberei, mas não compete mais a ti, só a mim.
Cada um faz a sua travessia. A minha tem sido longa, distante, pedregosa, ramificada, rastejante, festejante,
arruinadamente exuberante. Esses detalhes, agora, não vêm ao caso. O que verdadeiramente importa, se
existe sentido nessa palavra, verdade, ou a eterna busca desta, seguirá nas próximas linhas que entrego a ti.
(BARROSO, p.14, 2017).334

333. Calr Gustav Jung, “Os arquétipos e o inconsciente coletivo” de 1969. É importante dizer que muitos dos conceitos deste estudo baseiam este
Teatro Ritual que é desenvolvido dentro das pesquisas do grupo de Pesquisa e Extensão Arkhetypos Grupo de Teatro Coordenado pelo prof. Dr.
Robson Carlos Haderchpek, no qual participo como integrante desde fevereiro de 2016; e que foi também uma das referencias para a composição da
minha personagem ou persona mítica Sobrevivente Selvagem, que segue em descrição num tom de eu-lírico performático.
334. Recorte do “Diário Ritual Antropofágico Por Uma Sobrevivente Selvagem”, meu Trabalho de Conclusão Cientifica em Licenciatura em Teatro
graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2017, que teve como orientador prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek.

589
Após esta introdução de um fragmento do texto performático da Sobrevivente Selvagem num tom
poético eu lírico, retirado do meu TCC, discorrerei nas próximas linhas, um recorte da minha formação
sócio cultural religiosa de matriz africana com raízes culturais espanholas, árabes, turcas no qual influenciou
toda a construção que vai desaguar justamente na composição da figura mítica, citada acima e por último
apresentarei um relato de experiência da disciplina Performance e Cultura ministrada pela professora Dra.
Luciana Lyra, no curso Artes Cênicas de Mestrado da UFRN, para o qual este artigo foi escrito trazendo
questões no texto sobre mito, jogo ritual, arquétipo e matriz.

Com isto, apresento então, a minha formação cultural religiosa que foi iniciada de modo marcante
na Umbanda. Eu tinha por volta dos meus quatro, cinco anos e influenciada pela minha mãe, freqüentado-
ra nos anos oitenta, no bairro de Jacarepaguá do Rio de Janeiro, nos Centros Espíritas de Allan Kardec ou
como muitos chamam de modo preconceituosos e que se tornou vício de linguagem: ritual de Mesa Bran-
ca, (assunto que não debaterei neste momento, porém ressalto que é extremamente preconceituoso). Após
estes primeiros contatos, desde tomar passes com rosas vermelhas, uma das minhas primeiras lembranças
remotas, por volta dos meus quatro anos e que identifico como um primeiro batismo neste mundo Espírita.
E assim, ela foi migrando de centros e encontrando na Umbanda, lugar que abarcasse muito das suas enti-
dades e manifestações espirituais, dentre elas, a sua Pomba-Gira, a Dama da Noite, figura identificada como
entidade da falange do Orixá Exú.

Lembro ainda das cantigas e dos dizeres quando as entidades “baixavam na terra”: Todos diziam:
“Salve Dama da Noite!” e a Dama da Noite respondia: Salve! Ia ,Ia, Ia (um som com uma espécie de garga-
lhada) ou ainda com a cantiga: “Hooo abra a roda, deixa a Pomba-Gira passear!”.

Essas lembranças, memórias que comento acima e que vieram se transformar e se materializar em
imagens e depois em ações para o corpo nos estudos durante o percurso das investigações com a figura
mítica que surgiu no Jogo Ritual na disciplina de Atuação III em 2015, ministrada pelo professor Robson
Haderchpek, seguiu nos laboratórios para o espetáculo Éter do grupo de extensão da UFRN Arkhétypos de
Teatro em 2016 e estreando em 2017, no qual faço parte desde então e que veio surgir novamente no labo-
ratório das aulas da disciplina do artigo em questão, também no ano de 2017, no qual farei um relato mais
a seguir, porém, não antes de refletir alguns pontos dessas matrizes culturais que apareceram durante toda
a trajetória da personagem.

Sendo assim, dou continuidade a minha trajetória religiosa, que construí familiaridades com estas
crenças, com as danças de afro descendências, seus costumes, suas seitas ritualísticas que fui adquirindo
numa casa no Rio de Janeiro, localizado no município de Itaipú, que freqüentei e que são uma das minhas
formações sócios culturais pelo contato com a religião da Umbanda e depois no Candomblé. Este exemplo
que descrevo da minha própria história cultural religiosa, dentro desta comunidade ou de um terreiro, é
visto na antropologia, pelo qual o autor Victor Turner, no seu livro O Processo Ritual - Estrutura e Anties-
trutura, nos aponta como idéia de formação de uma comunnitá, do conjunto de fatores que compõe estes
“agrupamentos” em torno dos ritos, das religiões, das festas no terreiro e assim separando os indivíduos do
“espaço de vida comum”, deslocando para este modo de compartilhamento desta comunidade, saindo do
cotidiano para o extra cotidiano das relações que se constroem, dos laços de afetividades, das etapas hie-
rárquicas dentro de um grupo, religião, seita, e assim a através do que ele identifica das separações entre o
sagrado e o profano. Segundo o autor Victor Turner, define communitas como:

Prefiro a palavra latina comunitas à comunidade, para que se possa distinguir esta mo-
dalidade de relação social se uma “área de vida comum”. A distinção entre estrutura
e “communitas” não é apenas a distinção familiar entre “mundano” e “sagrado”, ou a
existente por exemplo entre política e religião. Certos cargos fixos nas sociedades tribais

590
têm muitos atributos sagrados; nas realidade toda posição social tem algumas carac-
terísticas sagradas. Porém este componente sagrado é adquirido pelos benefícios das
posições durante os “rites de passage”, graças as quais mudam de posição ( p. 119, 1974).

Desta forma, esta idéia de “rites de passage”, e as experiências de communitas, pelo qual vivenciei den-
tro das duas religiões, como aprendiz, admiradora e observadora na infância e adolescência e que somente na
juventude, na fase adulta aos vinte um anos, viveria finalmente a experiência dos três “estados” que o autor
nos seus estudos antropológicos denomina tais como: do “estado de separação”, rompimento com o que eu fui,
“estado de limiaridade”, margens, transição, deixar de ser, ambigüidade, no caso dentro do terreiro “abiâ” ou
“aprendiz”, desnudamento dos velhos modos de operar na “velha estrutura” para finalmente ser absorvida na
“nova estrutura”, passar para o “estado de agregação” pela nova religião no caso do Candomblé, após ser inicia-
da ou como se diz: feita pelo determinado Orixá. Turner comenta ainda neste livro que segundo os estudos do
autor Van Gennep distinguia os ritos de passagem como: “caracterizam-se por três fases: separação, margem
(ou “limen”, significado de limiar em latim) e agregação” (GENNEP apud TURNER p. 116, 1974)”.

Portanto, pude vivenciar a minha comunnita e meus “ritos de passagem” que fez perpassar pelos
três estados dito acima e entrar em contato com os símbolos e seus significados que constroem seus espaços
sagrados e profanos, seus mitos e arquétipos, ou seja, a partir da minha trajetória cultural religiosa, possi-
bilitou através do jogo, dos laboratórios com foco num Teatro Ritual desenvolvido dentro do meu curso de
teatro pelo prof. Dr. Robson Haderchpek, pude chegar nestas figuras, nestes mitos que reverberaram numa
construção poética cênica, enquanto artista nas investigações com suas memórias como estímulos de com-
posição dentro do jogo ritual.

Neste caso, através das pesquisas com a mitológica, mais as vivências, as memórias, o universo do
inconsciente coletivo (JUNG), que veio a tona para a criação da figura mítica; e que segue como um dos
estímulos dentro das improvisações no jogo ritual, dando continuidade nos estudos deste universo sócio
antropológico cultural religioso com os Mitos, Pombas-Giras, Entidades, Orixás que resultam na concepção
de um corpo cênico, performático e na construção da personagem Sobrevivente Selvagem e que veio rever-
berar na disciplina, que descreverei mais adiante.

Porém, antes, gostaria de contar um pouco mais sobre a trajetória sócio cultural comentada acima,
sobre a ótica dos Mitos e de como o inconsciente, faz caminhos diversos e por vezes aparentemente sem
sentido para chegar a um determinado ponto, ou história. Esses caminhos são nossas jornadas, a “Jornada
Do Herói”, termo emprestado do autor americano Joseph Campbell do seu livro “O Herói De Mil Faces”335
no qual ele traça uma trajetória de começo, meio e fim, ao observar nas culturas, lendas, mitos, filosofia,
psicologia, contemporaneidade, e nos diversos povos, as personagens que vão experiênciar a jornada, que
se divide nas seguintes etapas:

[...] o herói inicia uma jornada por um mundo de forças desconhecidas e, não obstante,
estranhamente íntimas, algumas das quais o ameaçam fortemente (provas), ao passo
que outras lhe oferecem uma ajuda mágica (auxiliares). Quando chega ao nadir da jor-
nada mitológica, o herói passa pela suprema provação e obtém sua recompensa... pela
sua própria divinização (apoteose) ou, mais uma vez se as forças se tiverem mantido
hostis a ele...; intrinsecamente, trata-se de uma expansão da consciência e, por conse-
guinte, do ser (iluminação, transfiguração, libertação). O trabalho final é o do retorno.
Se as forças abençoaram o herói... No limiar de retorno, as forças transcendentais devem

335. Joseph Campbell, “O Herói de Mil Faces” de 1949 e “O Poder do Mito” de 1988. Livros extremamente importantes para os estudos de mitos e
lendas e que contribuíram imensamente para as pesquisas da figura e como base para a continuidade das investigações desses estudos.

591
ficar para trás; o herói reemerge do reino do terror (retorno, ressurreição). A bênção que
ele traz consigo restaura o mundo (elixir) (CAMPBELL,1997, p.137).

Por consequência à toda esta trajetória ou jornada, como conceitualiza Joseph Campbell, sobre os
Mitos em seus livros, percebi no caso da Pomba- Gira Cigana Sarah, que retrata e traz consigo o arquétipo
do feminino, da sensualidade, da transgressão através do mito ocidental cristão da Lilith, também, da figura
andarilha, nômade, idéia de diáspora, transitória, migratória, do amor ferido, da mulher que sofre por amor,
assim como nas histórias das Pomba-Giras, seus amores, seus desejos e que foi uma das facetas da minha
persona mítica que se misturava com o mito de Medeia. Que são mulheres feiticeiras, também traídas pela
paixão, estrangeiras em terras distantes, subjugadas pela figura masculina, no qual venho trabalhando e
que segue se apresentando no corpo da intérprete, no caso esta que vos fala, nos momentos de laboratório,
encenação ou na recente disciplina no mestrado, que neste momento descreverei nas linhas seguintes, para
que possamos compreender esta jornada, que vem se constituindo devido a toda um em torno cultural que
fundamentou a atriz performer nestes últimos trabalhos. E que revela o poder do mito, como um grande
catalizador de arquétipos multifacetados e como dispositivo de composição de um corpo cênico para este
teatro Ritual, a partir do mito da Pomba- Gira Cigana Sarah.

Com toda esta descrição sócio religiosa e desta jornada, enquanto interprete artística da figura mí-
tica, faço um relato de experiência através da disciplina Performance e Cultura ministrada pela prof. Dra
.Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra336, no curso de Mestrado em Artes Cênicas da UFRN, como aluna
especial do mestrado de 2017.2. Pelo qual, pude ter nestas aulas um contato com suas pesquisas e mais uma
vez com o teatro Ritual através do seu olhar, da sua metodologia empregada a partir dos seus estudos dos
mitos: a Mitodologia Em Arte337 no qual trouxe para as alunas e alunos da disciplina seus modos de proposi-
ção para acionarmos nossos Mitos e Arquétipos.

Sendo assim, conseguiria dizer que surgiu uma nova personagem, aparentemente diferente do que
vinha sendo apresentado. Apresentou uma figura jovial, lasciva, sexual, provocativa entre a idéia de sagra-
do e profano num jogo ritual dentro dos laboratórios das aulas da disciplina, porém, reconheço traços de
suas raízes árabes, ciganas, das quais lá no principio das primeiras inspirações, referencias dos mitos com
a Cigana Sarah como raiz, ressurgiram numa espécie de uma mulher árabe, turca, e percebi que o estímulo
mais uma vez foi através da energia do fogo. Neste dia, foi trabalhado na disciplina e que despertou a figura;
e assim a partir do jogo e do comando da professora de levarmos um objeto mágico e uma roupa. E assim,
a turma providenciou de levar e no caso, o meu objeto mágico, foi a princípio uma tentativa de uma bolsa
de água, feita com saco plástico transparente que não deu certo, vazava, molhava e começou nos primeiros
segundos a incomodar e a escorrer pelo corpo e espaço. Neste dia, estávamos trabalhando com o fogo e
com isto abandonei o saco de água que não sentia nenhuma relação com a energia e além do objeto mágico,
levamos também a vestimenta sagrada conforme o pedido.

No caso da veste, eu escolhi levar uma saia com uma estampa de arabesco de motivos indianos, em
tons vermelhos e crus e assim, amarrei a saia na cabeça como um véu de freira, brincando com as abas virando
um leque grande que manipulava com as mãos, deixando somente o rosto de fora. O jogo começou elegendo
uma parte do corpo que saísse a energia e que levasse ao restante do movimento, no caso saindo dos quadris, o
calor então como se fosse subindo pela coluna e reverberasse através do som, dos gestos concentrando a ener-

336. Professora Dra. Luciana de Fátima Rocha Lyra , professora da UERJ, convidada pelo (PPGARC- UFRN) e atualmente como minha orientadora no
mestrado no projeto de pesquisa sobre o mito da Cigana Sarah a partir da perspectiva do método trabalhado por ela, de Mitodolodia Em Arte.
337. Mitodolodia Em Arte“lida com forças pessoais que movem o atuante na relação consigo mesmo e com a alteridade, em retroalimentação, pro-
curando dar vazão a um Teatro das Profundidades, que atinge camadas da psique pessoal e coletiva, na percepção inequívoca das margens sociais.
A partir do trânsito entre o eu e a alteridade.” (LYRA,2015).

592
gia na face, e de repente comecei com movimentos circulares colocando a língua para fora em gestos lascivos,
sexuais, profanando a língua, provocando, lambendo o ar, mexendo para todos os cantos para fora da boca.

Sendo assim, ao ouvir o comando da professora, para emitirmos sons, palavras, poemas. Foi saindo o
som, como fazem as mulheres árabes e de várias tribos de regiões da África, ou em outras culturas tribais, que
foi ao tremer a língua rápido colocando as mãos na frente da boca, protegendo do gesto e ao mesmo tempo
fazendo uma pequena concha com as mãos para que possa reverberar melhor este som. Pesquisando na inter-
net, sobre este o som feito com a boa, descobri que se chama zaghareetou salguta em árabe, nome ao som que
significa celebração, festividade, alegria, demonstração de aprovação ou estimulo paras as mulheres quando
estão fazendo a dança do ventre, em casamentos ou/ e entre outros instantes de euforias dentro da communita.

E para além dessa profanação com algo religioso dentro do laboratório, veio o movimento com o
objeto de poder, do colega Hórus, que levou o seu baralho,como algo sagrado e íntimo que pertencia a sua
figura. No entanto, durante o jogo, através da minha figura mítica, suas cartas do baralho foram “roubadas”
e preenchendo as minhas mãos, os dedos dos pés, espalhando pelo espaço, abanando, colocando pelo cor-
po das pessoas que encontrava, brincando e desorganizando seu carteado. E minha figura, uma espécie de
cigana com seu baralho de gestos com as pernas elásticas, acrobáticas, com sons árabes e de energia sexual
com brincadeiras de uma espécie de catiço, de Exú, de Pomba-Gira, gargalhando, achando graça, encontrou
durante sua jornada, uma outa figura que também tinha essa energia erótica e de diversão, também se esfre-
gando nas outras figuras do jogo ritual; “perturbando” até a figura aparentemente de uma velha, com gestos
lentos feito pelo colega da turma, João Vitor, causando contrastes de energias e histórias.

Ao analisar agora, estas cenas do dia da aula, me fez lembrar imagens do quadro de pintura da idade
média de Bosch com seu “Jardim das Delícias”, referencia esta, também já visitadas antes na construção da So-
brevivente Selvagem. Nesta pintura, a representação do caos que se instaura através da desordem, dos desejos,
das coisas esdrúxulas, no qual a mistura com o sagrado na imagem da figura de João Vitor e da minha figura
dessacralizando com gestos obscenos, por trás despertando a luxuria, o sexo, o fogo, os desejos reprimidos.

Ou seja, toda essa vivência na disciplina, em certos aspectos me fez repensar, que as raízes não mu-
daram, foram às mesmas, mais uma vez o mito da Pomba-Gira Cigana Sarah com suas as raízes turcas, ára-
bes, espanholas e claro africanas e mais uma vez, através da energia do fogo, ressurgiram no jogo. E assim, as
influencias se metamorfosearam em novas facetas. Pode se dizer então, é como se ancestral do Éter, a versão
anciã da Sobrevivente Selvagem na peça, retornasse ao começo de sua jornada, viesse reencarnada numa nova
faceta, ou no esplendor da sua juventude, na mocidade caminhando pelas terras árabes, turcas e espanholas.

Com isto, nesse caldeirão de matrizes de origens de povos antigos, os mitos se ressignificaram e
trouxeram de volta a Pomba-Gira Cigana Sarah e com ela, carrega todo um discurso do feminino, do em-
pedramento, da transgressão, do lugar de igualdade da mulher e junto provocam as potencialidades de
expansão deste corpo de atriz atuante, que joga, que dança, que mimetiza certos aspectos que vinha quando
criança nos centros de Umbanda e nos terreiros de Candomblé, cruzando com a formação da graduação em
Teatro, no qual tendo visto nas pesquisas, laboratórios, metodologias influenciadas pelos estudos da perfor-
mance, do teatro ritualístico, energético e do treinamento pré expressivo, vai construindo suas jornadas de
investigações internas, de cura e artísticas.

Portanto, esta disciplina, veio somar de modo ainda imensurável com o que vim trabalhando du-
rante o percurso na graduação, e segue no aprofundamento no campo das pesquisas em Mitologias, Arqué-
tipos, Teatro Ritual; seus métodos que se encontram próximos ao trabalho que já vinha sendo desenvolvido,
contudo foi uma experiência que enriqueceu a percepção e abriu outras perspectivas sobre as pesquisas da
personagem Sobrevivente Selvagem e de fortalecimento investigativo do corpo da intérprete enquanto atriz
e performer em formação em arte.

593
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Cândida Ferreira. Tornar-se outro: o HADERCHPEK, Robson Carlos. A Poética dos Elemen-
Topos Canibal Na Literatura Brasileira. São Paulo: An- tos e a Imaginação Material nos Processos de Criação
nablumeFapesp, 2002. do Ator: Diálogos Latino-Americanos”. In: Memória
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: ABRACE XVI - Anais do IX Congresso da Associação
Martins Fontes, 1993. Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cêni-
cas. Anais. Uberlândia (MG) UFU, 2017. p. 2645-2664.
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio so-
bre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente cole-
1998. tivo. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

BARROSO, Elze Maria de Oliveira. Teatro Ritual An- LYRA, Luciana de Fátima Rocha Pereira. Mitodologia
tropofágico Por Uma Sobrevivente Selvagem. Texto em Arte no cultivo do trabalho do ator: Uma experi-
de Conclusão de Curso em Artes Cênicas. Natal (RN) ência de f(r)icção. Relatório final de atividades programa
UFRN, 2017. nacional de pós-doutorado / capes programa de pós-gra-
duação em artes cênicas /. Natal (RN) UFRN, vigência:
CAMPBELL, Joseph. Heróis de Mil Faces. São Paulo: 2015.
Pensamento, 1997.
TURNER, Victor W. O Processo Ritual Estrutura e An-
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas tiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
Athena, 1991.

594
VIVÊNCIAS E RELATOS NA
OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS:
MACHISMO E RACISMO TRABALHADOS
EM SALA DE AULA
Mauricio Igor Neves Almeida de Almeida – UFPA
Arthur Leandro de Moraes Maroja – UFPA (In Memoriam)

1. Introdução

A necessidade de formação na Licenciatura em Artes Visuais foi o motivo de participarmos do PI-


BID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência) no subprograma de Artes Visuais que tem
por objetivo consolidar a formação dos licenciados para reconhecerem, interpretarem, estabelecerem e in-
teragirem com metodologias do ensino de Artes Visuais, mas também considerando os diferentes processos
e contextos sociais da Escola Pública e apontando para resolução de desafios da valorização do ensino das
artescom identidade étnica e racial e geo referenciada na Amazônia.

Isto porque uma das questões fundamentais em mudanças no currículo do Curso de Artes Visu-
ais é a determinação, em Leis e Resoluções, de inclusão a obrigatoriedade da temática História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena; da Educação Ambiental e da Educação em Direitos Humanos no currículo
oficial da rede de ensino, e, considerando que atuamos em uma região com traços raciais bem demarca-
dos na origem negra e indígena, colocamos como desafio a importância de se pensar a partir do ponto de
vista que de quem vive na Amazônia.

Nesse caminho, o PIBID de Artes Visuais possibilita uma experiência muito relevante, que envolve
escolas localizadas no entorno desta Universidade, no reconhecimento da identidade dos estudantes e da im-
portância de seu lugar no mundo. Acontecendo com duplas em cada sala sob orientação do (a) professor (a)
da escola.

Assim sendo, o presente artigo se trata de umrelato reflexivo de experiência acercado desenvolvimento
do projeto do PIBID de Artes Visuais na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Mário Barbosa. Por
se tratar do campo das artes, o projeto funciona em cinco encontros, uma vez por semana, nos quais devem
ser ministradas oficinas que devem estar vinculadas ao conteúdo ministrado pela professora supervisora na
disciplina de artes de acordo com o cronograma da escola e com o planejamento da professora.

Para nós, era importante relacionar os conteúdos com os conhecimentos artísticos que mais
dominávamos,talvez por isso nosso planejamento inicial, então, foi pensado como uma oficina de fotografia.

Tínhamos como informação para a construção da nossa proposta de aula o planejamento da pro-
fessora que, para aquele período em que estaríamos em parceria com ela em sala de aula para o primeiro
ano do ensino médio, previa abordar o Renascimento, e também havíamos como orientação da coor-

595
denação do PIBID a abordagem e o enfoque do ensino de artes visuais para a educação para as relações
étnico-raciais, a valorização dos direitos humanos, a educação ambiental, e as questões de gênero e da
diversidade sexual.

Para nós, então, havia um problema posto: na história da arte que estudamos na faculdade a arte
feita por mulheres, negros, indígenas, ou seja, a arte da diversidade, só começa a ser destacada e estudada
a partir do início do século XX, então como poderíamos abordar esses temas nos conteúdos da Renas-
cença?

Foi então que chegamos em sala de aula e tocamos no assunto sobre a escassez de artistas mulhe-
res no renascimento. A turma do primeiro ano do ensino médio, na qual iríamos trabalhar, era formada
por cerca de oitenta por cento de mulheres. Assim sendo, este foi o pontapé inicial para o desenvol-
vimento do nosso projeto, que trataria, inicialmente, sobre a temática da mulher. Entretanto, nossos
planos mudaram ao conhecer a turma, semanas antes de iniciar o projeto, e constatar que eles já haviam
trabalhado com fotografia em edições anteriores do PIBID e que preferiam algo voltado à produção
manual. Apresentamos o estêncil338, ideia que foi recebida de forma positiva. Nessa situação, refizemos
o plano de aula.

2. Relatos

2.1 violências contra a mulher

Hoje, apesar de homens e mulheres terem os mesmo direitos legalmente, socialmente ainda há uma
disparidade grande entre os gêneros. A construção social do masculino e feminino implica em diferentes
papéis na sociedade.

O conceito de gênero é uma construção sociológica relativamente recente, respondendo


à necessidade de diferenciar o sexo biológico de sua tradução social em papéis sociais e
expectativas de comportamentos femininos e masculinos, tradução esta demarcada pelas
relações de poder entre homens e mulheres vigentes na sociedade. Embora biologicamen-
te fundamentado, gênero é uma categoria relacional que aponta papéis e relações social-
mente construídas entre homens e mulheres (PENA; CORREIA, 2003, p. 37).

Simone de Beauvoir (1949) escreveu sobre a relação de subordinação e submissão existente entre
homens e mulheres. Para ela as mulheres não são vistas a partir de si mesmas, mas em comparação com os
homens, colocadas em uma posição a qual denominou de “o outro” a partir do olhar masculino. Portanto, a
mulher sempre será vista como submissa.

Essas diferenças de tratamentos sociais vêm desde a infância. Aos meninos é dada uma educação
mais livre, podem brincar de lutas, carrinhos, isto é, são socializados para serem mais agitados. Às meninas,
por outro lado, são apresentadas as bonecas e as casinhas, o que as leva a terem uma educação mais podada.
Assim relata Beauvoir (1980, p. 23) “ela deverá reprimir seus movimentos espontâneos; pedem-lhe que não
tome atitudes de menino, proíbem-lhe exercícios violentos, brigas: em suma incitam-na a tornar-se, como
as mais velhas, uma serva e um ídolo”.

338. Trata-se de uma técnica usada para aplicar um desenho que pode representar um número, letra, símbolo ou qualquer outra forma ou imagem,
por meio da aplicação de tinta, aerossol ou não, com cortes ou perfuração em papel ou acetato.

596
A desigualdade de gênero parte de uma relação de poder estabelecida entre homens, vistos como domina-
dores, e as mulheres, as dominadas. Há, então, diferentes formas de esse poder ser manifestado. De acordo
com Costa; Silvera; Madeira (2012):

No seio das relações de poder se apresentam desigualdades e diferenças, expressas nas


análises das categorias de gênero, classe social, sexualidade e raça/etnia, que são demar-
cadas historicamente por hierarquias, violências, discriminação e desigualdades, já que
o poder pode se manifestar de maneira sutil e invisível, e no caso das relações de gênero
acarreta malefícios a algumas mulheres quando expresso pelas várias manifestações da
violência. (p. 235)

Entender essas diferenças e relações de poder entre homens e mulheres é essencial para se discutir
sobre machismo. E foi essa a nossa diretriz para a construção da oficina de estêncil com a turma de 1º ano:
relacionar a escassez de mulheres artistas na história da arte mundial com o universo de violência de gênero
vivido pelas estudantes em seus contextos sociais, e dessa conjunção propor a realização de um trabalho que
se baseie num referencial histórico da arte, mas que faça sentido para aquela turma.

Tendo em vista que a turma do primeiro ano, destinada para o projeto do PIBID, era formada
predominantemente por mulheres e que o machismo é um nítido problema na escola, resolvemos abor-
dar tal temática em nosso projeto. Todavia, deparamos com um problema: como abordar este assunto
sendo que os dois bolsistas eram homens? Isto é, mesmo que tenhamos empatia, não possuímos as vi-
vências e tampouco sofremos os preconceitos e estigmas que atingem as mulheres, além de que nossa
posição social privilegiada nos impede de enxergar muitos deles. “saber o lugar de onde falamos é fun-
damental para pensarmos as hierarquias, as questões da desigualdade, da pobreza, do racismo, sexismo”.
(Borges, 2017).

Então, optamos por adotar uma posição de escuta e, já que as meninas eram maioria na turma, conclu-
ímos que seria interessante instigá-las a refletir, relatar e expor suas vivências em relação ao machismo. Já para
os meninos, pedimos que conversassem com mulheres próximas da família e nos contassem o que lhes foi dito.

Como procedimento metodológico, foram utilizadas rodas de conversa, nas quais inicialmente fazí-
amos a leitura coletiva de um texto e depois discussões em conjunto com a turma. Assim sendo, a primeira
leitura se tratou do relato de Claudia Regina, “Como se sente uma mulher”, em que reflete acerca das violên-
cias que sofre só por ser mulher. Por exemplo:

Andava pela calçada quase vazia ao lado de uma grande rodovia. Dessas caminhadas, me
recordo dos primeiros momentos memoráveis desta violência urbana. Carros que passa-
vam mais devagar do meu lado e, lá de dentro, eu só ouvia uma voz masculina: “gostosa!”.
Homens sozinhos que cruzavam a calçada, olhavam para trás e suspiravam: “que delícia.”
Eu tinha treze anos. Usava calça comprida, tênis e camiseta. (REGINA, 2013).

Cada um dos alunos lia um parágrafo do relato e, em alguns momentos, perguntávamos para as
meninas se elas já haviam passado por alguma situação semelhante.

Todas já haviam sofrido algum tipo de violência por serem mulheres. Por conseguinte, identifica-
ram-se em vários momentos do texto. A partir das suas vivências e relatos, muitos ocorridos na própria es-
cola, deram-se os desdobramentos das discussões sobre machismo. Posteriormente, pedimos que escreves-
sem em um pequeno pedaço de papel frases machistas que elas próprias ou pessoas próximas já escutaram.
As frases foram recolhidas para serem usadas em outro momento.

597
2.2 As relações étnico-raciais

A EEEFM Mário Barbosa, escola em que atuamos, localiza-se em um bairro periférico de Belém com
altos índices de violências. Certo dia, presenciamos uma tentativa de assalto à mão armada a alguns estudantes
que se encontravam na parada de ônibus em frente à escola. Como consequência das desigualdades sociais e
raciais, a predominância dos alunos na escola pública com precárias condições é formada por negros. Já que:

A exclusão socioeconômica a que está submetida a população negra produz perversas


consequências. De um lado, a permanência das desigualdades raciais naturaliza a parti-
cipação diferenciada de brancos e negros nos vários espaços da vida social, reforçando a
estigmatização sofrida pelos negros, inibindo o desenvolvimento de suas potencialidades
individuais e impedindo o usufruto da cidadania por parte dessa parcela de brasileiros à
qual é negada a igualdade de oportunidades que deve o país oferecer a todos. (JACCOUD
E BEGHIN, 2002, p.37).

A turma destinada ao projeto, seguindo este padrão, também era composta por alunos negros e
pobres. Entretanto, em certa aula, na semana do Dia da Consciência Negra, perguntamos se sabiam do que
se tratavam os quilombos. Um aluno se pronunciou: “Sei sim professor, olha ali um quilombo” e apontou
para o menino que tinha a pele mais escura na sala. Alguns alunos riram. Imediatamente, repreendemos a
atitude. Constatamos, contudo, que ali havia mais que uma piada racista, mas um possível conflito de iden-
tidade, já que quem fez a piada também se tratava de uma pessoa negra, apenas com diferente tonalidade de
pele. A partir da concepção do sujeito pós-moderno, segundo Hall (2011), a identidade já não é vista como
estável e centrada, mas sim fragmentada. Não existe uma única identidade, mas várias identidades, por ve-
zes contraditórias. O que pode ter influenciado o aluno a ter tal atitude.

Novamente, a orientação da coordenação do PIBID de artes visuais, da abordagem da educação


para as relações étnico raciais, valorização de direitos humanos e outras, se impôs pela realidade vivida
pelos estudantes, muito mais do que pelos conteúdos estabelecidos no planejamento da professora de artes
naquela escola. Resolvemos, então, abordar mais esta temática em sala de aula. Vale ressaltar que história e
cultura afro-brasileiras e, portanto, relações étnico-raciais, são, segundo estabelece a Lei nº 10.639/03, as-
suntos obrigatórios no ensino das escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio. As Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana (2004) são políticas afirmativas para atuar no combate ao racismo e para promo-
ver a inclusão social de povos historicamente marginalizados.

Então, ainda mantendo a mesma metodologia de rodas de conversa, inicialmente discutimos acerca
do conceito de colorismo. O colorismo, também denominado como pigmentocracia, é uma discriminação
racial baseada na tonalidade de pele, isto é, quanto mais escura a pele de uma pessoa, mais exclusão era
sofrerá, assim também ocorre com características fenotípicas, como um cabelo mais crespo ou nariz largo.
Dessa forma, este processo acarreta em uma tentativa de “embranquecimento” como forma de se ter maior
aceitação social, o que motiva muitas mulheres a alisarem seus cabelos crespos, por exemplo – afirmação
que foi confirmada por algumas das meninas da sala.

O colorismo funciona como um sistema de favores, no qual a branquitude permite a pre-


sença de sujeitos negros com identificação maior de traços físicos mais próximos do euro-
peu, mas não os eleva ao mesmo patamar dos brancos, ela tolera esses “intrusos”, nos quais
ela pode reconhecer-se em parte, e em cujo ato de imitar ela pode também reconhecer o
domínio do seu ideal de humano no outro. (DJOK, 2015).

598
Dessa vez fizemos leitura coletiva de textos do projeto “Senti na Pele”339, o qual mostra casos de
racismo com denúncias coletadas a partir da página no facebook.

Ainda que sejam bem novos, média de 16-17 anos, os estudantes já conheciam bem o que era o
racismo. Novamente, pedimos para que escrevessem em um pequeno pedaço de papel relatos que já tinham
sofrido. Muitos deles, tratavam-se de serem confundidos com bandidos, como dois meninos que saíram de
bicicleta para comprar refrigerante para festa na escola e no meio do caminho foram revistados pela polícia
ou, como mostrado na fig1, o depoimento de duas meninas que foram revistadas em uma loja no shopping
devido ao desaparecimento de um celular.

Fig1. Depoimento de estudantes da EEEFM Mário Barbosa escrito em papel

Fonte: arquivo pessoal

3. Ocupação de espaço

A diretora havia nos informado sobre uma sala, localizada no fundo da escola, que estava abando-
nada. Resolvemos que nosso projeto trataria de uma ocupação deste espaço. Assim, inicialmente ministra-
mos uma oficina sobre estêncil. A ideia era aplicar as frases escritas por eles nos moldes feitos de papel kraft
e depois estampar as paredes com o uso de spray.

A maior parte dos alunos gostou da ideia e se empenhou nas atividades. Com os moldes feitos, co-
meçamos a reformar o lugar. Varremos, arrastamos móveis e pintamos. Antes de se iniciar a pintura final da
sala, conversamos brevemente sobre misturas de cores e como se chegar ao tom e à cor desejada. Então, os
alunos iniciaram as produções nas paredes, como se pode ver na fig. 2.

Fig2. Alunos durante reforma da sala.

Fonte: arquivo pessoal.

339.Página do projeto pode ser acessada em: https://www.facebook.com/sentinapele/

599
A próxima etapa foi a aplicação dos estêncis na parede, a qual empolgou bastante os alunos. Todos
queriam experimentar o uso do spray nas frases que escreveram. Assim, em pouco tempo, mais essa etapa
do projeto estava finalizada.

3.1 Móveis reciclados

Não são novidades questões relacionadas às consequências da interferência do ser humano no meio
ambiente. Vê-se nos jornais catástrofes e efeitos que a má preservação da natureza causa. Então, indo contra
a isto, tendo preocupação com o meio ambiente, há também uma demanda por produtos que não agridam
o meio ambiente. O design sustentável, utilizando móveis de paletes, é um deles.

Quando se pensa em desenvolvimento sustentável, de acordo com SACHS (2000), é necessário to-
mar consciência de nossas próprias atitudes, para que não danifiquem ainda mais o planeta, e utilizando os
recursos naturais de maneira adequada.

Acerca da reutilização de paletes como móveis:

[...] paletes de madeira descartados pelas indústrias podem ser reutilizados na fabricação
de mobiliários, buscando compreender o design sustentável, no que tange o ciclo de vida,
reaproveitamento e reutilização dos paletes desenvolvendo alternativas de mobiliário uti-
lizando-se dos mesmos. (MATOS; MÁXIMO, 2015).

Desta maneira, como forma de se ter os móveis a baixo custo e contribuindo de certa forma para uma boa
educação ambiental, procuramos paletes e pneus para fazer os móveis (fig. 3). Fomos às ruas e contamos
com ajuda de algumas pessoas, que nos cederam os pneus e ajudaram a fazer cortes em madeiras para utili-
zar nos acentos. Assim, fizemos cerca de seis acentos para compor a ocupação.

Fig. 3 – móveis feitos de paletes e pneus na ocupação do espaço.

Fonte: arquivo pessoal.

4. Considerações finais

A escola pode ser um espaço para além de matérias a serem memorizadas, provas e simulados.
Segundo o método de Paulo Freire (1979) é possível inserir no educativo assuntos contextualizados com a
realidade dos estudantes e da sociedade. Assim, a figura do professor organiza as atividades a serem desen-
volvidas juntamente com os alunos.

600
Quando perguntamos à turma o que acharam do projeto, deram um retorno positivo e disseram que
nunca haviam debatido temas como esse em sala de aula. Fica claro, portanto, a importância de um projeto
como o PIBID que, mesmo com constantes ameaças de cortes, luta para manter sua permanência.

Trabalhar machismo e racismo em sala de aula não é tarefa fácil. São assuntos que estão em nosso
cotidiano e inseridos em nossas vidas, muitas vezes sem percebermos. Portanto, um projeto como a ocupa-
ção deste espaço, que transversalmente tange a outros temas de suma importância, como relações étnico-
-raciais e educação ambiental, é extremamente importante de ser executado em uma escola como o Mário
Barbosa, em que racismo e principalmente o machismo são problemas alarmantes.

Nossa ideia era que os alunos produzissem um lugar para eles próprios, para o seu convívio, e que
durasse não somente o tempo do projeto, mas que ficasse como legado para a escola, cabendo aos próprios
alunos a manutenção dele. Não há uma finalidade específica para o espaço, pode ser usado para atividades
extra classes ou para palestras.

Arthur Leandro foi o coordenador do PIBID desde junho de 2017. Desde o início de sua coordena-
ção, pude acompanhar de perto sua dedicação em todos os projetos do programa. Era nítida sua paixão pelo
ensino e pelas artes. O PIBID foi suspenso temporariamente em fevereiro de 2018 e, mesmo assim, Arthur
continuou de forma voluntária, juntamente com alguns alunos de Artes Visuais da Universidade Federal
do Pará, com um projeto pessoal de ocupação artística na EEEFM Mário Barbosa, negociando junto com a
diretora para ocupar os horários vagos da instituição com o ensino de artes. Arthur Leandro, em maio deste
ano, partiu e deixou uma lacuna naquilo que se chama arte-vida. Fica aqui uma singela lembrança pelo pro-
fessor, artista e ser humano incrível que ele era. E que, sem dúvidas, deixa muitas saudades.

Referências
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601
O ESTUDO DAS PERFORMANCES
AFRO-BRASILEIRAS E A CONGADA
DA VILA JOÃO VAZ (GOIÂNIA – GO)
Me. Cleber de Sousa Carvalho (UFG/UEG/SME)

A INTEGRALIDADE DA PERFORMANCE AFRO-BRASILEIRA

Este texto investiga aspectos das manifestações da cultura afro-brasileira presentes na Congada,
partindo da compreensão de que estas manifestações são performances constituídas por uma complexidade
de sentidos e por uma multiplicidade de elementos que adquirem materialidade no corpo dos congadeiros.
O estudo foi realizado com os participantes do Terno de Congo Verde e Preto que, juntamente com os parti-
cipantes de outros grupos, compõem a comunidade congadeira da Vila João Vaz, bairro localizado na região
noroeste da cidade de Goiânia – GO.

A Congada pode ser identificada como uma performance afro-brasileira que apresenta aspectos
simbólicos do catolicismo e da ancestralidade africana predominantemente Banto. Esta multiplicidade de
referências é característica dos contatos interculturais decorrentes das relações sociais e econômicas su-
cedidas com a diáspora africana no Brasil, sobretudo dos povos que habitaram a região do antigo reino
do Congo. Nos tensionamentos decorrentes dos contatos interculturais surgem fenômenos da cultura que
produzem novas identidades e práticas que são ressignificadas a partir do vínculo às memórias ancestrais.

Refletir a respeito de manifestações da cultura afro-brasileira, como a Congada, requer a busca de


uma perspectiva de análise que abranja a complexidade de elementos que a compõem. As danças, a musi-
calidade expressa nos cantos e na execução de instrumentos musicais, as vestimentas e a ritualidade, geral-
mente manifestada na forma de festejos e celebrações religiosas, devem ser observadas em seu conjunto, de
maneira necessariamente inseparável para a composição de sentidos e significados que são compartilhados
pelos membros do grupo social em tela.

O escopo deste estudo ressalta a importância de que as pesquisas em manifestações da cultura afro-
-brasileira superem as análises que privilegiam apenas algum de seus elementos como a dança, a música e os
aspectos referentes à linguagem, principalmente os que se efetivam na forma escrita, avançando para uma
percepção integralizadora da manifestação.

As análises dos diversos fenômenos da cultura por meio dos estudos das performances têm contri-
buído para a observação da integralidade presente nestas manifestações, ressaltando aspectos referentes à
instantaneidade da ação, assim como o destaque à ação corporal como produtora de sentidos. Os estudos
das performances, como campo de pesquisa, partem de um pensamento interdisciplinar que aproxima sabe-

602
res das ciências humanas e das artes, alcançando destaque no meio acadêmico desde meados do século XX.
São diversas as orientações epistemológicas que delineiam este campo de pesquisa.

OS ESTUDOS DAS PERFORMANCES CULTURAIS

Robson Camargo (2013) apresenta os estudos das Performances Culturais como uma possível abor-
dagem de análise dos fenômenos da cultura. Sua discussão é desenvolvida principalmente a partir da refle-
xão sobre as produções de Milton Singer e Robert Redfield, que sugerem um processo de análise através da
comparação, assim como do estudo das inter-relações entre fenômenos que se tangenciam.

Esther Langdon (2007) propõe uma sistematização de questões que seriam reincidentes nas aborda-
gens de Richard Bauman, Charles Briggs, Victor Turner e Richard Schechner. Langdon (2007) ressalta que,
para estes autores, as performances teriam, em suas características, de maneira geral, o fato de serem con-
sideradas como uma experiência em relevo; por possuírem a perspectiva da existência de uma participação
expectativa, de uma experiência multissensorial, de haver o pressuposto de um engajamento corporal, sen-
sorial e emocional; por se constituírem de um significado emergente em constante processo de transforma-
ção. Como uma experiência sensorial, as performances culturais se localizam “na sinestesia, na experiência
simultânea dos vários receptores sensoriais, recebendo os ritmos, as luzes, os cheiros, a música, os sons em
geral e o movimento corporal. A recepção simultânea de vários recursos cria uma experiência unificada”
(LANGDON, 2007, p. 175).

Há um momento de ressignificação nos estudos das Performances Culturais com a aproximação da


produção do antropólogo Victor Turner e do diretor de teatro Richard Schechner. A aproximação intelectu-
al destes estudiosos promoveu o contato entre as noções de drama cênico e de drama social, a partir das es-
pecificidades dos estudos sobre teatro e ritual, possibilitando a discussão sobre o quanto de ritualístico está
presente no drama cênico, assim como o quanto de cênico há, também, na realização dos rituais. Outro as-
pecto a ser destacado refere-se à atenção para a distinção entre as percepções de quem realiza a performance
com as de quem a assiste, lançando um olhar para os sujeitos que participam do fenômeno diretamente ou
como público, para além do fenômeno em si como uma produção acabada.

O QUE VEM PRIMEIRO: A LINGUAGEM, A VOZ, O GESTO, A ESCRITA?

Tem sido crescente o interesse por abordagens que buscam linhas interpretativas por meio dos estu-
dos da performance. Dentre estas, constitui-se um movimento transdisciplinar sensível à ideia de processo,
de diálogo e de ação, que sobrepõe-se à busca pela definição de objetos de estudo enquanto produtos que se
apresentam como obras definitivas. A questão desencadeada é a de que “mais do que sobre arte, agora falamos
sobre artistas e sobre como eles fazem as coisas e como lidam com seus contextos e universos. Mais do que
olhar para as obras, observa-se como estas práticas são recebidas e experienciadas” (FINNEGAN, 2008, p. 21).

Ruth Finnegan (2008) avança nesta reflexão perguntando se seria o texto, a música ou a perfor-
mance que ocuparia lugar de maior importância nas pesquisas sobre a palavra cantada. A autora destaca
como a linguagem, excepcionalmente a escrita, tem assumido a frente nas análises dos fenômenos culturais
desencadeados pela voz. A escrita, seja ela decorrente da codificação da oralidade ou da codificação musical,
tem assumido o arquétipo da racionalidade, colocando-se à frente dos estudos da cultura no empenho de
explicar os diversos contextos situacionais e de seus agentes, deixando de lado aspectos imprescindíveis para
a visão de totalidade compartilhada pelas pessoas que efetivamente compõem e vivenciam os fenômenos
pesquisados.

603
Finnegan (2008) enfatiza a importância do destronamento do que é observado apenas como lin-
guagem e enunciado para a percepção de camadas geralmente desprestigiadas no meio acadêmico, como os
sentimentos, as emoções, a fé, a dor e o contingenciamento do presente. A saída apresentada pela autora é
a performance. Os improvisos e duelos cantados no “repente”, por exemplo, podem ser vistos como perfor-
mance musical, como palavra cantada, em que o que vem primeiro não é aquele texto específico nem aquela
interpretação musical específica, uma vez que ambos não têm existência autônoma antes da performance.
Neste caso, é a performance que vem primeiro, o conjunto e não o texto ou a música de maneira separada
(FINNEGAN, 2008).

Em seu artigo Fundamentos da Performance340 (2014), Richard Bauman apresenta, de maneira pa-
norâmica, as implicações da noção de performances culturais nas pesquisas em linguística no âmbito da an-
tropologia linguística e da etnografia da fala. Bauman (2014) pondera sobre como as performances culturais
se configuram como uma perspectiva de análise para os estudos dos fenômenos da cultura, permitindo um
olhar ampliado e sensível para a complexidade presente na relação entre a execução e a recepção. Isto, em
detrimento das tradicionais abordagens formais desenvolvidas principalmente pelos estudos da antropolo-
gia linguística e da sociolinguística variacionista, ambas, mais preocupadas com os padrões fonológicos e
gramaticais recorrentes nos diversos grupos sociais.

A tradição da sociolinguística variacionista, assim como a antropologia linguística, estabeleceu o


foco nas palavras e em suas respectivas morfologias, sintaxes e especificidades da fala, deixando de fora
enunciados que são manifestados pelo próprio corpo. Somente a partir da etnografia da fala é que a perfor-
mance ganhou papel significativo, inicialmente como princípio organizador conceitual (BAUMAN, 2014).

A virada da performance na etnografia da fala retirou-a do papel vinculado a fatores con-


siderados “gramaticalmente irrelevantes”, como distrações, limitações da memória, erros,
mudanças de foco de atenção e de interesse entre outros, ressaltando uma concepção nos
termos da interação entre recursos e competências individuais, dentro do contexto de
determinadas situações (BAUMAN, 2014, p. 732).

Compreender as manifestações da cultura enquanto performance constitui-se em um ato de toma-


da de posição na medida em que a pessoa que performa invoca um enquadramento, adotando uma postura
reflexiva que alinha a multiplicidade de uma determinada forma de expressar-se. A performance é consti-
tuída, também, pela assumência de responsabilidade pela exposição de habilidades, eficácia comunicativa
subjetividades e afetos envolvidos na ação.

AS MOTRIZES CULTURAIS E AS PERFORMANCES


AFRO-BRASILEIRAS

As motrizes culturais possibilitam a percepção de como o cantar, o dançar e o batucar341 con-


figuram-se como elementos indissociáveis das práticas incorporadas342 nas manifestações da cultura
afro-brasileira por tratarem-se de

340. Texto publicado em 2011 no Journal of Sociolinguistics, com o título “Commentary: foundation in performance”. O texto original foi poste-
riormente adaptado para a edição brasileira por Richard Bauman e por João Gabriel L. C. Teixeira no Departamento de Sociologia da Universidade
de Brasília (UNB).

341. O termo batucar é, aqui, compreendido como a execução de instrumentos musicais de percussão.
342. Ver Paul Connerton em “Como as sociedades recordam” (1999).

604
(...) um conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar
comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performati-
vas, e se refere à combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o
espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações do
mundo afro-brasileiro (LIGIÉRO, 2011, p. 107).

Zeca Ligiéro (2011) estudou alguns rituais religiosos do Candomblé de Keto, do Povo de Rua da
Umbanda e da roda de Capoeira Angola e, entre as suas reflexões a respeito das performances brasileiras,
mencionou dois pontos que merecem destaque: a discussão do filósofo congolês, Bunseki K. Kia Fu-Kiau,
que o subsidiara no delineamento da noção de motrizes culturais, bem como as contribuições dos estudos
da performance para o desenvolvimento de suas análises.

Bunseki K. Kia Fu-Kiau é um estudioso dos simbolismos das culturas dos povos de origem africana
Banto. Ele comenta a respeito da junção das artes corporais às musicais, considerando “o uso do canto como
algo simultâneo e percebido como uma unidade dentro da performance africana, (...) não sendo possível
existir performance negra africana sem este poderoso trio, e o mesmo é aplicável em relação às performan-
ces afro-brasileiras” (LIGIÉRO, 2011, p. 108-109).

Neste sentido, motrizes culturais se referem a um conjunto de técnicas que são realizadas simultane-
amente, formando um sistema complexo de valências e tipos de saberes que operam a partir do corpo com-
pondo uma integralidade das performances afro-brasileiras. Ao definir motrizes culturais afro-brasileiras,
Ligiéro (2011, p. 111) afirma que “o adjetivo motriz, do latim motrice de motore, que faz mover, é também
substantivo, classificado como força ou coisa que produz movimento”. Sua intenção é atribuir às motrizes
africanas uma qualidade “do que se move”, do que está em constante movimento, algo que seja movente por
fundamento.

Ligiéro (2011) opta pelo uso do termo “motrizes culturais” ao invés de “matrizes culturais”, geral-
mente utilizado para referir-se aos elementos fundacionais de determinadas tradições da cultura.

A palavra matriz pode ser definida inicialmente do latim matrice, usada, no passado, para
definir o órgão das fêmeas dos mamíferos onde se gera o feto, o útero; lugar onde alguma
coisa se gera. É compreendida também como o molde, depois de ter recebido uma deter-
minada impressão sobre vários objetos (LIGIÉRO, 2011, p. 111).

O termo matriz é considerado insuficiente para a percepção do dinamismo das culturas africanas
porque estas são produzidas com uma amplitude possível de ser vislumbrada apenas a partir das motrizes
culturais (dança, canto e batuques). As motrizes culturais são compreendidas como uma ação conjunta
produtora de sentidos e significados, sendo processadas no corpo do performer, do ator ou do mestre da
cultura popular. Neste sentido, o corpo é seu texto e nele manifesta-se uma literatura viva, desenvolvida a
cada apresentação, refletindo o conhecimento que se tem da tradição.

Ligiéro (2011) destaca a necessidade de entendimento das performances afro-brasileiras pelo pres-
suposto de não existir uma única matriz africana, e sim da existência de “motrizes” produzidas por africanos
e por seus descendentes e simpatizantes no Brasil, em fluxo na diáspora, a partir de rituais e festividades
realizados no continente americano, independentemente das especificidades territoriais, geográficas ou lin-
guísticas dos sujeitos.

Heller (2006), Freitas (2008) e Zagonel (1992), aproximados a esta linha de pensamento, discutem
o conceito de gesto musical considerando a ideia de interação entre as múltiplas valências corporais no

605
fenômeno musical. A noção de gesto musical não se vincula estritamente aos aspectos relativos ao desem-
penho de técnicas, leituras e métodos específicos destinados à execução de instrumentos musicais ou para a
execução dos ritmos de manifestações da cultura afro-brasileira fora do seu contexto ritual. O gesto musical
estende-se aos domínios do campo dos sentidos que figuram nas diversas cerimônias e rituais da cultura
afro-brasileira como forma de expressão simbólica de ancestralidade.

O gesto musical estabelece-se em uma intrincada relação de causas e efeitos, (...) como
partes de um fenômeno expressivo. A separação entre “gesto que efetua” e o “gesto que
acompanha”, não é clara, nem se mostra efetiva na prática, pois no momento da perfor-
mance todo corpo está engajado no fazer musical. O gesto de um percussionista ao tocar
uma peça de percussão múltipla não está restrito aos dedos que controlam as baquetas. Os
braços, o tronco, o corpo inteiro do músico influenciam o toque instrumental, direta ou
indiretamente (FREITAS, 2008, p. 45).

O gesto musical é observado por meio de sentidos e significados manifestados corporalmente e


expressos em conjunto, em comunidade. “Nas músicas tradicionais, como no caso da música percussiva
afro-brasileira, o gesto musical não pode ser destacado de seu contexto sociocultural, pois ele é engendrado
e produzido coletivamente” (FREITAS, 2008, p.48). Nas manifestações culturais afro-brasileiras, os aspectos
técnicos encontram-se imbricados com os aspectos simbólicos e estéticos de cada cultura. A interpretação
musical é acompanhada por movimentos que, se praticados isoladamente, perdem o sentido e destoam do
contexto geral da performance (FREITAS, 2008).

A forma como os performers cantam, dançam e batucam seus instrumentos produz um comparti-
lhamento de saberes e condutas próprias. Em diferentes estilos e ritmos executados são identificadas refe-
rências particulares de cada cultura. A interpretação de cada performer é materializada no gesto musical e,
apesar das particularidades de cada pessoa que executa o gesto, há um nível de compartilhamento coletivo
de sentidos e significados no grupo.

A própria palavra ‘interpretação’ nos ilumina nesse fato: inter-petras – entre as pedras. É
na expressividade do gesto que une notas, que reside o artístico em música, na abertura
entre as notas, no vazio criativo, no movimento. É esse movimento que assegura a vivência
e a espontaneidade do fazer musical. (HELLER, 2006, p. 22).

O esforço de delimitação do conceito de gesto musical situa-o na dimensão do movimento humano


enquanto expressão cultural. O gesto musical percorre os intervalos dos sons emitidos na música, promo-
vendo o encontro entre música e gesto que se relacionam de maneira interdependente.

(…) a expressividade musical reside no vazio, no espaço entre as notas percorrido através
do movimento, do gesto musical, na maneira particular e intencional de conectar os sons
musicais. O gesto musical é então este movimento intencional que liga os sons, percurso
trilhado pelo corpo em contato com o instrumento, percurso expressivo que direciona
as frases musicais. Este movimento, deslocamento espacial e temporal, não é considera-
do apenas como deslocamento físico, mas também como qualquer intenção expressiva.
(FREITAS, 2008, p. 46).

Os movimentos e as expressões executadas entre as notas musicais constituem o gesto musical. Já


a sua realização nas manifestações da cultura afro-brasileira anunciam ações corporais identitárias que são

606
revividas e ressignificadas por comunidades negras, manifestando suas concepções de mundo, suas formas
de lidarem com o cotidiano, suas memórias, sua fé e sua ancestralidade.

AS PERFORMANCES DO TERNO DE CONGO VERDE E PRETO

O Terno de Congo Verde e Preto é composto por dançadores, bandeirinhas e capitães. Cada um
possui um papel diferente dentro do grupo. Todos dançam e cantam, contudo, apenas os dançadores tocam
instrumentos musicais. As bandeirinhas são as únicas mulheres que participam do terno e posicionam-se
à frente do grupo conduzindo a bandeira, que tem em uma de suas faces a imagem de Nossa Senhora do
Rosário e na outra a imagem de São Benedito. Os dançadores tocam as caixas343, sanfona, pandeiro e afoxé.
Os capitães utilizam bastão e apito para a condução do grupo.

Quando o terno está “formado”344 para a realização dos cortejos, os dançadores ficam alinhados
em duas filas posicionadas uma ao lado da outra, separadas a uma distância de aproximadamente três me-
tros. À frente dessas duas filas, forma-se uma coluna de dançadores posicionados lado a lado, formando a
guia do terno. Nas duas extremidades da guia localiza-se o primeiro dançador de cada fila. A guia “puxa”
as duas filas de dançadores e é composta pelos dançadores mais experientes do terno. A guia posiciona-se
logo atrás das bandeirinhas. Os outros dançadores (sanfoneiro e pandeirista) e capitães posicionam-se
entre as duas filas. É nesta disposição que o terno realiza os cortejos durante as festas de Congada em que
participa.

Diferentemente de outros tipos de ternos, por exemplo, os Catupés345, o Verde e Preto geralmente
utiliza apenas um ou dois pandeiros e não possui tarol e chocalhos em sua configuração. Assim, a maior
parte da gestualidade do terno está vinculada ao toque da caixa ou à performance das bandeirinhas que não
tocam instrumentos, mas se destacam por seu papel nas danças e nos cantos. São os capitães que se revezam
“orquestrando” todos os momentos e os movimentos do terno. Também são eles que definem quais os can-
tos serão realizados em cada momento da festa. O capitão puxa a metade do verso cantado indicando qual
fileira do terno irá cantar, em seguida canta o restante do verso indicando a outra fila. Deste momento em
diante, cada lado do terno responsabiliza-se pelo canto de metade do verso, que é seguidamente respondido
pelo outro lado. Esse jogo de canto e reposta é acompanhado, também, com variações rítmicas na execução
das caixas, às vezes realizadas pelos dançadores em tom de desafio entre uma fila e outra, instigando a com-
plementação da frase rítmica e a virtuosidade musical e coreográfica do instante.

Os rituais realizados pelo Verde e Preto acontecem em espaços públicos e privados. É utilizado
o terreno da Irmandade, as ruas da Vila João Vaz e até mesmo a própria capela da Vila. O Verde e Preto
também visita outras festas de Congada em Goiânia, Três Ranchos e Catalão. Em cada um desses espaços
existem posturas e procedimentos diferentes. Ao percorrerem as ruas do bairro, nota-se, em alguns momen-
tos, variações na performance dos dançadores e das bandeirinhas, desencadeadas por alterações nos ritmos
executados e principalmente pelos cantos realizados. Essas alterações proporcionam mudanças na cadência
do terno e parecem instigar dançadores e bandeirinhas. Dentro da capela, assim como quando o terno está
realizando uma visita, os processos dos rituais são mais constantes, havendo pouca variação e maior vincu-
lação aos aspectos sagrados do ritual. Assim, o espaço da rua se configura como um momento mais propício
às variações da performance dos congadeiros.

343. Instrumento de percussão que possui formato semelhante ao da zabumba, contudo, confeccionado com couro de gado.
344. Considera-se que o terno está formado quando cada congadeiro ocupa o seu devido lugar, previsto na disposição do grupo.
345. Existem diferentes tipos de ternos de congada, dentre eles Moçambiques, Congos, Catupés, Marinheiros, Penachos, etc. Ver Macedo (2007).

607
Durante os cortejos, o capitão pode incitar a realização de movimentos laterais com as caixas. Em ou-
tros momentos (movimentos), os dançadores simulam que a caixa é uma peneira. O capitão determina essas
variações com a ajuda de seu bastão, realizando giros apontados ao céu, riscos no chão e movimentos laterais
indicando aos dançadores os movimentos do terno. A realização de cantos específicos e ritmos mais acelerados
instigam a realização de movimentos diferenciados nem sempre realizados em outros momentos do ritual.

Em alguns momentos, ao passar por cruzamentos, os dançadores realizam a meia-lua, uma coreo-
grafia geralmente desempenhada com certa intensidade, com os dançadores mantendo os joelhos flexiona-
dos e os instrumentos quase tocando o chão, enquanto as bandeirinhas aguardam o retorno da formação.
Ao ser perguntado sobre essa coreografia, o presidente da irmandade Nossa Senhora do Rosário da Vila João
Vaz afirma que “(...) isso é coisa dos antigos, crendices, gente que acredita que outros fazem feitiço para o
terno se sair mal na apresentação, e quando passa em encruzilhada ou pontes, tem que passar de costas, ou
então fazer a meia-lua nos cruzamentos das ruas”.

Estas performances já haviam sido observadas na ocasião da Festa de Congada de Catalão, no ano
de 2014, quando foi percebido que todos os participantes de um dos ternos da cidade viravam de costas
ao cruzarem a linha férrea, inclusive a equipe de apoio que fotografava ou carregava água e mantimentos.
Apesar de boa parte das tradições da Congada serem identificadas como decorrentes dos povos Bantos, fato
curioso é o de que existem também no Candomblé de Ketu, decorrente dos povos de língua Iorubá, proce-
dimentos referentes a passagens por portais e cruzamentos, onde iniciados também devem fazê-lo de costas
a fim de evitar quizila346 de orixá.

No Terno de Congo Verde e Preto, assim como na Festa da João Vaz, predomina um tipo de catoli-
cismo popular (BRANDÃO, 2004). Símbolos e signos católicos são ressignificados e rituais como as novenas
são realizados dentro do espaço oficial da igreja católica, porém geralmente celebrados por pessoas leigas,
seguindo um modelo de organização social em irmandades negras (BORGES, 2005), (MORAES, 2012).
Toda essa “ambiência” católica é produzida ao som de grandes tambores – as caixas, dentre outros instru-
mentos, e por gestos que ora parecem aludir a uma estética retilínea do corpo, característica das marchas
militares, e ora subvertem essas posições, extravasando os movimentos, alterando os planos (alto, baixo,
laterais), lançando as caixas ao alto e dando saltos. Atos de referência católica e africana predominantemente
Banto são anunciados a partir de uma substância polissêmica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudos das performances tornaram-se um quadro de referência bem aceito para a análise das
artes da enunciação vocal, e o foco recai sobre a substância encarnada e temporal da performance, assim
como na organicidade dos diversos elementos que a compõe. A única vida da performance é no presente,
contudo esta vida remete-se e é alimentada por noções de passado e futuro. A memória, a ancestralidade e
as projeções de futuro bailam no presente da performance. É ela quem vem primeiro e constitui-se na forma
mais original, demandando a atenção do olhar para as pessoas que a realizam.

Esta mudança de perspectiva ressalta o papel e a existência das pessoas que vivem a cultura afro-
-brasileira, mais do que a própria manifestação como obra finalizada, pois coloca em evidência os contextos
situacionais, as contingências e motivações que movem a tradição.

346. O termo quizila é recorrente entre os participantes do Candomblé de nação Keto. Geralmente refere-se a algum tipo de consequência con-
siderada negativa, desencadeada por forças espirituais, e que os participantes estão sujeitos mediante a possível realização de condutas que sejam
consideradas inapropriadas perante as tradições do Candomblé.

608
Na performance, todos os elementos se aglutinam numa experiência única e encantadora que trans-
cende a separação de seus componentes individuais. Nesse momento, o texto, a música e a fé são camadas
simultaneamente anteriores e sobrepostas de um ato performatizado que não pode ser dividido. As danças,
os cantos e batuques afro-brasileiros, em ação conjunta, materializam o instante movente da ancestralidade
e ressignificam as identidades, os rituais e as tradições.

REFERÊNCIAS

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609
ABAYOMI, O RITO DE ORIGEM:
A PERFORMANCE EM SALA
DE AULA BASEADA NOS PRINCÍPIOS
DO AFROLETRAMENTO
Amanda Caline da Silva Omar – PMJP
Virna Vasconcelos Lopes – PMPJ

A disciplina de artes na escola possibilita muitas atividades sensoriais, criação de histórias, pla-
nos que inundam o pensamento de qualquer professor, com ideias que permitem viajar em diversas áreas do
conhecimento e trabalhar na escola de forma transdisciplinar. Com as aulas de teatro isso não é diferente.

As práticas do ensino de teatro são diversas em cada parte do Brasil, permitindo criações multicul-
turais que enriquecem os alunos. Essa pluralidade colabora para produção da arte não apenas como algo a
ser apreciado, mas para firmá-la como conhecimento, com conceitos elaborados e que alicerçam práticas
pedagógicas importantes na formação da identidade cultural dos estudantes.

A criação em arte dentro do processo pedagógico pode contribuir com vários aspectos e é impor-
tante pensar principalmente em relação ao seu caráter lúdico, da brincadeira, da infância, mas sem deixar
de lado o fazer artístico, que pode ser elaborado a partir de vários pontos de vista, um deles é a pedagogia
da performance.

Pensar a performance no ensino de artes na escola pode parecer, a princípio, algo incomum, porém
elaborar pedagogicamente atividades envolvendo essa linguagem possibilita introduzir um novo olhar artís-
tico. Pois a performance, enquanto linguagem artística, nos permite experimentar de diferentes maneiras as
potencialidades da criação humana, e sua presença na escola permite a produção de atividades diferenciada
das práticas tradicionais.

Nesse texto discutimos a experiência da pedagogia da performance desenvolvida a partir da confec-


ção da boneca Abayomi, aliada ao processo de afroletramento pensado para o trabalho com o grupo do 1º
ano da Escola Antônia do Socorro Silva Machado. Nessa escola localizada no Quilombo Urbano de Paratibe,
na região sul de João Pessoa, Paraíba, são desenvolvidas atividades que visam à integração com a comunida-
de e, sobretudo, que valorizem e afirmem a identidade cultural local.

Por sua característica peculiar, por se tratar de uma escola localizada em área de quilombo, a Escola
Antônia do Socorro Silva Machado desenvolve atividades voltadas para valorizar a cultura e saberes quilom-
bolas. Tendo em vista que para se adequar às propostas das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação
Escolar Quilombola na Escola da Educação Básica (BRASIL, 2013), se fez necessário que a proposta curri-
cular executada por essa instituição promovesse uma pedagogia própria, que respeite às especificidades da
Comunidade de Paratibe.

610
Tendo em vista essa proposta curricular, durante o ano de 2016, a turma do 1º ano ‘A’ se envolveu em
atividades sobre reconhecimento de sua ancestralidade a partir das relações com as histórias pessoais dos
moradores da comunidade. As narrativas trabalhadas em sala de aula apresentavam o contexto do trabalho e
da luta das famílias quilombolas, maior parte das narrativas apresentadas por familiares. Trata-se da história
de quando vieram morar na comunidade e como é a vida em Paratibe.

A partir das histórias narradas houve indagações por parte dos alunos sobre a história das crianças
no quilombo e, sobretudo as relações das narrativas com a infância na comunidade de Paratibe. Percebemos
que havia pouco ou quase nenhum registro histórico que pudesse tratar do tema, e isso aguçou a curiosidade
dos alunos que precisavam descobrir algo que fosse concreto, visto que na etapa da aprendizagem em que se
encontravam (entre 6 e 7 anos) o pensamento abstrato é menos eficaz do que o concreto.

Compreendendo as necessidades do grupo e pensando também sobre a aplicabilidade da Lei


10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas, surge a oportu-
nidade trazer os brinquedos como referência nesse contexto. Concordando com o pensamento de Gilles
Brougère (2010a), de que “o brinquedo contribui para o desenvolvimento da cultura lúdica” (p.54), constru-
ímos um processo artístico pedagógico que envolveu os aspectos ligados ao letramento, à cultura, infância,
brinquedos e na tentativa de vincular aos conteúdos de história e cultura afro-brasileira.

Para Nascimento, o afroletramento é capaz de, além de promover a diversidade, promover o Le-
tramento numa perspectiva afrocentrada (NASCIMENTO, 2010). Não se trata de ensinar a ler e escrever,
o afroletramento trata de letrar a partir dos princípios do afrocentrismo, ou seja, tornar a africanindade o
tema central para as atividades consequentes.

A partir disso, buscamos brinquedos e brincadeiras de origem afro-brasileira para colaborar de


modo mais eficiente com o processo de aprendizagem dos conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira,
tornar mais lúdico e interativo o processo de ensino-aprendizagem, além de aguçar a curiosidade dos alunos
sobre tais conteúdos históricos. Selecionamos brincadeiras como pião e papagaio (ligados aos engenhos bra-
sileiros), Yoté e Mancala (jogos de tabuleiro), Terra-mar, chicotinho queimado e capitão-de-campo-amar-
ranegro (brincadeiras corporais).

Pensar os brinquedos e jogos é pensar também em identidade cultural. Para Walter Benjamin
(2009) os brinquedos imitam instrumentos dos adultos, incentivando certas atividades e brincadeiras que
mudam de acordo com o lugar no qual se encontram. As bonecas, por exemplo, eram trajadas como adultas
e dependendo de onde eram feitas, refletiam costumes de brincadeiras de cada lugar, como as bonecas de
porcelanas originárias da Rússia, ou a Barbie americana, cada boneca carrega traço característico da cultura
de cada região, ou país.

A ludicidade, que envolve costumes, brincadeiras individuais, coletivas, tradicionais ou universais,


inclui também o ambiente, objetos e pessoas que rodeiam o universo cultural. Tal universo não é fechado e
integra elementos externos que influenciam a brincadeira, como o meio social, a cultura local, atitudes e ca-
pacidades. Para Brougère (2010a) essa cultura ficou presa por algum tempo ao objeto do brinquedo, inclusi-
ve aos jogos eletrônicos e de vídeo game, que foram se desenvolvendo em detrimento de outras brincadeiras.

A partir dessa compreensão, Brougère (2010a) afirma que “o brinquedo contribui para o desenvolvi-
mento da cultura lúdica” (p.54), e colabora para o desenvolvimento do indivíduo em diferentes fases da vida.

Diante disso começamos a observar que nas vivências dos alunos no ambiente escolar, eram escas-
sas as referências da cultura lúdica tradicional da comunidade. Quando indagados sobre as brincadeiras
preferidas muitos afirmavam ser os jogos eletrônicos a escolho principal. Afastando-se das brincadeiras
populares e sem conhecer a origem das próprias brincadeiras originárias na comunidade de Paratibe. Quan-

611
do as narrativas associadas à história do quilombo tratam de relatos sobre resistência, resgate de tradições,
sobre o sofrimento dos ancestrais e suas rotinas no contexto da escravidão e pós-escravidão.

Perante esse impasse, a descoberta de brinquedos e brincadeiras que pudesse dar novo rumo
ao contexto em sala de aula tornou-se imprescindível para manter alto o interesse dos alunos sobre sua
própria história.

Iniciamos os estudos sobre o tema e nas pesquisas sobre brinquedos e brincadeiras descobrimos
a boneca Abayomi, que se destacou por está imersa numa história peculiar e ser feita de pano, geralmen-
te preto. Abayomi significa aquele que traz felicidade ou alegria, encontro precioso: abay = encontro e
omi=precioso. (MASCIOLI, 2006). Essa boneca é construída com sobras de pano, apenas com nós ou tran-
ças. Sem costura alguma, as bonecas não possuem demarcação de olho, nariz ou boca, isso para favorecer o
reconhecimento das múltiplas etnias africanas.

A história conta que as mulheres negras produziam as bonecas como amuleto de proteção. Durante
a travessia da África para o Brasil em meio à diáspora africana, elas rasgavam partes de suas próprias roupas
para dar vida às Abayomis e presentear as crianças para brincarem. Após o processo de imigração forçada,
já no Brasil, como escravos, reuniam-se todos os dias na senzala e confeccionavam as Abayomis pedindo
saúde e prosperidade (FUNARTE, 1995).

A partir dessas descobertas, produzimos sequências de atividades desenvolvendo reflexões sobre a


ideia de brinquedo, entendendo que muitas das brincadeiras das crianças estão ligadas a objetos e eles ge-
ralmente são brinquedos, na maioria vista em campanhas publicitárias. Decidimos que iríamos partir dessa
ideia dos brinquedos atuais para desconstruir as ideias publicitárias até chegar à Abayomi.

Os brinquedos fazem parte de uma indústria que reflete a sociedade. Os bonecos, de acordo com
Brougére (2010b), são a existência de uma representação humana oferecida à criança ou criada por ela
mesma através da boneca que parece ter extensão quase universal, criando formas de representação sociais.

A partir disso, construímos com os alunos uma linha do tempo, do presente ao passado e conhe-
cemos as bonecas de materiais, períodos históricos e culturas diferentes. Isso fez os alunos se questiona-
rem e imaginarem como seus parentes mais antigos brincavam e que tipos de brinquedos eles tinham. Da
mesma forma, imaginaram as atividades com brinquedos realizadas por pessoas de culturas diferentes,
de outros países.

Ao tratar das bonecas confeccionadas de pano, os alunos conheceram os modelos mais tradicionais,
bem elaboradas, com vestidos de renda e vendidas como objetos de artesanato. Neste ponto foi narrada a histó-
ria da Abayomi para os alunos, como uma referência a existência das bonecas de pano em contextos diferentes.

Para desenvolver o projeto e trabalhar de forma significativa a história da boneca, nós buscamos
várias formas de contextualizar a trajetória da origem da Abayomi. Porém, utilizar o recurso da contação
de histórias com uso da narrativa oral aliado à demonstração de confecção da boneca, não pareceu, em um
primeiro olhar, uma metodologia atrativa. Pois sobre os relatos da história da boneca não existem livros, sua
narrativa foi passada durante anos de forma oral, sendo assim, não foram encontrados detalhes sobre seu
processo de confecção que estivessem organizados como histórias tradicionais.

Para desenvolver um momento lúdico de contação de histórias com os alunos foi necessária a inclu-
são de elementos do imaginário, de forma que pudessem atrair os alunos não apenas com aquilo que escu-
tavam, mas teriam que ver de forma diferente sua elaboração. Partindo do que se conhecia sobre a história
da boneca, relatado rapidamente em sala quando apresentadas as bonecas de pano, criou-se a possibilidade
de narrar corporalmente o ritual de origem da Abayomi. Inspirado na ideia de que a boneca foi criada para

612
proteger, cuidar, como algo precioso para quem recebe a sua confecção se originara então de um ritual de
partilha, de algo de si para o outro, um presente.

Tendo vista esse entendimento, a criação dessa narrativa corporal performática colaborou para que
o processo de ensino/aprendizagem tivesse o aspecto artístico pedagógico ressaltado e tornasse mais signifi-
cativa a apreensão do conhecimento, permitindo com que os estudantes pudessem interpretar, ao seu modo
a história contada.

No processo de construção buscamos trazer também a ideia de oralitura, conceito proposto por
Leda Martins para falar da visão da literatura afro-brasileira no Brasil, que considera não só a produção
escrita como também as manifestações da oralidade.

A esses gestos, a essas inscrições e palimpsestos performáticos, grafados pela voz e pelo corpo,
denominei oralitura, matizando na noção deste significante a singular inscrição cultural que,
como letra (littera) cliva a enunciação do sujeito e de sua coletividade, sublinhando ainda no
termo seu valor de litura, rasura da linguagem, alteração significante, constitutiva da alteri-
dade dos sujeitos, das culturas e de suas representações simbólicas (MARTINS,2002, p. 87).

A oralitura permite desenvolver um diálogo entre aquilo que fora passado pela tradição oral, criando
relações com o passado e o presente de forma a promover as relações entre corpo, ancestralidade, ritual e a história
oral da boneca, previamente conhecida. Assim criar uma escritura performática, corpórea capaz de pensar no uso
do espaço educacional como ambiente para a prática do professor artista, possibilitando-lhe não só o trabalho
com dança e teatro, mas nele incluir a performance como estética a ser também apreciada nesse contexto.

A ideia de trazer para essa experiência o conceito de oralitura decorre da necessidade


de considerar não apenas a produção escrita como também as manifestações da oralida-
de, como a história da boneca. Dessa forma a construção corporal poderia se apresentar
como resultado das narrativas orais, pois atrelar a oralitura à experiência realizada em sala
de aula, seria trazê-la para o ambiente da comunidade quilombola, aliando a ela elementos
de uma realidade local, como lugar histórico, que pudesse materializar e dar significado
aos gestos que envolvem o processo da performance, numa espécie de ritualização da
narrativa sobre a origem da Abayomi (OMAR, 2017, p.7).

Para o encontro dos alunos com a história não bastava apenas criar uma tessitura corporal, inter-
ligar os registros sobre criação da boneca e reproduzir para eles. Tornou-se importante relacionar com a
realidade local, do espaço escolar e também com a comunidade de Paratibe.

Realizou-se levantamento das manifestações tradicionais da comunidade e a pesquisa trouxe para


a performance elementos comuns do contexto quilombola, como o ritmo e os movimentos do afoxé e prin-
cípios do movimento de algumas danças de matriz africanas como maracatu e o maculelê. Junto a isso, a
incorporação dos instrumentos musicais que colaboraram para construção imaginária de um ambiente que
se relacionasse aos movimentos corporais pensados para o enredo a ser apresentado.

A performance trouxe para o debate a relação do rito de origem da boneca Abayomi a partir das
relações de compartilhamento com o outro de um pouco de si. Como acontece na construção da boneca,
confeccionada com tecidos retirados do corpo das mulheres, o doarem-se; a relação de tirar um pedaço de
si, representado no tecido do vestido para oferecer ao outro, como um ritual de criação daquilo que é ofer-
tado com carinho e apreço; algo precioso e que se torna proteção, tirando energia de si para injetar em cada
parte arrancada e amarrada de tecido.

613
Cada nó que constitui as partes do corpo da boneca é feito partindo dos desejos e intenções com
as quais ela vai sendo confeccionada, apresentando as relações de ritual de criação de amuletos sagrados de
proteção e cuidado, ofertando o bem precioso, doado e criado com partes de si para a entrega àquele que
seria o merecedor de tais sentimentos por parte de quem as cria.

A proposta apresentada foi pensada para o ambiente escolar, como parte das atividades do 3º bimes-
tre relacionadas aos brinquedos e brincadeiras347. Dessa forma, o aspecto pedagógico foi o principal foco no
processo de criação da performance que se justifica com a ideia da pedagogia como prática performativa.
Superando a ideia do ensino como depósito de informações, para dar espaço a negociação e a encenação de
novas formas de conhecimento (PINEAU, 2010).

Assim, a confecção da boneca permitiu o uso das narrativas de formas diversas, e possibilitou um
conjunto de práticas educacionais que colaborariam para construção do conhecimento e não apenas a trans-
missão de informações ligadas ao tema.

Performatizar o ritual de criação da Abayomi foi uma forma de apresentar os conteúdos de história
e cultura afro-brasileira de uma nova forma, e assim abrir margens para interpretações e debates sobre as re-
lações humanas existentes no ritual. Tendo em vista que a performance também é capaz de contar histórias
(SCHECHENER,2003), a trajetória da construção desse trabalho se confunde com um processo performativo
pedagógico de contação de histórias e construção de conteúdos da disciplina de teatro, como forma de relacio-
nar também os conteúdos de história e cultura afro-brasileira, à ancestralidade africana.

A experiência possibilitou com que os alunos pudessem compreender o contexto apresentado a par-
tir dos elementos comuns e distintos existentes na confecção da Abayomi. Além de refletir sobre as relações
étnico-raciais existentes na origem da história dessa boneca.

Nessa perspectiva, contrariando ideia de Marvin Carlson (2010) de que a prática da performance se
configura como uma atividade de entretenimento conscientemente produzida para uma audiência, na cons-
trução desse trabalho prático, pretendeu-se não entreter, mas desenvolver um diálogo entre a apreciação es-
tética e o conhecimento, entre a boneca confeccionada e os conteúdos trabalhados em sala de aula em torno
dos conteúdos de história e cultura afro-brasileira. Mostrar, performaticamente, o contexto de histórias e nar-
rativas orais através do corpo, sem pretender divertir, mas construir conhecimentos de forma não tradicional.

Apoiando-se na ideia de ensinar com performance, e pensar a sua relação com a pedagogia essa me-
todologia traz maiores significado para as questões étnico-raciais abordadas em sala. Isso porque se supõe
que essa metodologia permite materializar nela supostamente, como signo, como abstração, a narrativa, o
sentido que quer se passar, a sensação, a ideia e significado transmitido (PEREIRA, 2010).

Assim como os sentimentos presentes na relação de compartilhamento, todos os signos apresen-


tados são decodificados a partir da apreciação estética, com a compreensão e criação de correlações com
conteúdo já conhecido, o que permite também a criação de novos entendimentos e ideias.

A ligação com o corpo, como aquele que narra a história, como espaço onde a performance aconte-
ce, é marcado e moldado, um espaço determinado. A performance dá ao corpo uma intenção, sentido e di-
recionamento, cria outra forma de expressar, remontando uma história, ou como afirma Schechner (1995),
uma restauração de comportamento348. Essa metodologia não se refere apenas a uma habilidade, mas a um
comportamento restaurado, “simbólico e reflexivo: não comportamento vazio, mas pleno, que irradia plura-
lidade de significados” (idem, p. 206).

347. O resultado pode ser visto no Youtube através do endereço: http://bit.ly/Abayomi-origem.


348. Comportamento restaurado: Termo utilizado por Richard Schechner para designar a qualidade viva, a experiência de recuperação, de restitui-
ção de comportamentos organizados.

614
Após a apresentação performática os alunos puderam experimentar a construção das bonecas e eles
mesmos produziram seus amuletos e apresentaram uns para os outros.

Além da pluralidade de significados, sentimentos e intenções presentes no processo de construção


da boneca, há ainda nessa experiência metodológica artístico/pedagógica, a ideia de que essa metodologia se
refere à noção de criação de laços, os quais de acordo com Pereira (2010) unem o conceito e o sentido dado,
ao sentido produzido em uma dialética reflexiva.

A confecção da boneca Abayomi é uma história que apresenta sua origem performática como forma
de propagação, enfatiza a disseminação de uma narrativa grifada no corpo, mostrada de modo a vivificar
histórias antepassadas. Um ato de teatralização que têm muito a dizer, soar e transmitir sobre a vida de mu-
lheres negras e mães num período tenebroso de suas histórias.

Aliada ao processo de afroletramento, essa proposta colaborou uma efetiva construção de aprendi-
zados, contribuindo para solidificação de conhecimentos trabalhados ao longo das atividades vivenciadas.

A performance apresenta as origens identitárias e as heranças afro-brasileiras, e teve a intenção de


retratar sobre o contexto da origem ancestral da relação humana, e serviu como momento de reflexão, no
qual os alunos puderam reconhecer aspectos da história e cultura afro-brasileira na corporeidade apresen-
tada, e assim os alunos puderam compreender a narrativa histórica a partir da leitura do corpo, gestos e
sentimentos, como parte da história dos ancestrais do povo brasileiro.

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615
MULHERES/ARTISTAS NA HISTÓRIA
DA ARTE: A BUSCA PELO
RECONHECIMENTO E VISIBILIDADE
Larissa Rachel Gomes Silva - UFPB

1. Mulheres/Artistas na História da Arte

Ser mulher, me tornar mulher, lutar pelo meu lugar na sociedade, mostrar a capacidade, e conquistar a
liberdade. A arte abre esse espaço, porém poucas mulheres se destacaram e foram reconhecidas como artistas.

Em livros como A História da Arte, de Ernst Hans Gombrich temos uma visão ocidental, branca e
patriarcal. Nesse livro, em específico, apenas uma mulher/artista é citada, Kathe Kollwitz, p. 566, capítulo
Arte experimental, porém as páginas estão repletas de representações do nu feminino. Em respeito à repre-
sentação do feminino na arte, concordo com Berger quando ele afirma que:

Na forma artística do nu europeu os pintores e os proprietários- espectadores eram geral-


mente homens, e as pessoas, em geral mulheres, eram tratadas como objetos. Esse rela-
cionamento desigual está tão fortemente fincado em nossa cultura, que ainda estrutura a
percepção que muitas mulheres têm de si próprias. Elas fazem consigo mesmas o que os
homens fazem com elas. Como homens, elas fiscalizam a própria feminilidade (BERGER,
1999, p.65).

Ou seja, a mulher poderia ser representada de acordo com a vontade do artista, porém como mu-
lher/artista, não podia criar representações da sua própria sexualidade, fosse ela, relacionada ao nu masculi-
no ou feminino, pois até meados do século XIX, não era recomendado às mulheres que enveredavam na arte
estudar a pintura histórica, em função das aulas de anatomia, onde havia o estudo de modelos nus.

Na arte o espaço para a mulher era insignificante, sempre ofuscada pelos talentos de seus mestres,
não passavam de aprendizes, o reconhecimento de seu talento foi tardio como destaca Janson e Janson:

As mulheres só começaram a surgir como personalidades artísticas inconfundíveis por


volta de 1550, mas até meados do século XIX restringiam-se, em grande parte, à pintura
de retratos, pinturas de gênero e naturezas-mortas. Entre outros obstáculos, raramente
eram admitidas às aulas com modelos nus, uma prática que estava no centro do aprendi-
zado acadêmico tradicional e fornecia a base da pintura narrativa. Naqueles outros domí-
nios, porém muitas mulheres fizeram carreiras bem- sucedidas, tornando-se muitas vezes
iguais ou superiores aos homens em cujo estilo haviam feito seu aprendizado. As poucas
exceções a essa regra geral foram mulheres italianas que pertenciam à família de artistas e
começaram a ter um papel de destaque no século XVII (JANSON; JANSON, 1996, p. 252).

616
Além de serem deixadas em segundo plano, as mulheres que almejavam seguir a carreira de artista,
ficavam limitadas no estudo da pintura, enquanto a pintura histórica, ficava a cargo dos homens, isso por que:

A vida cotidiana das mulheres pintoras não era fácil. O ateliê é um mundo de homens no
qual elas só são admitidas como modelos. Como não dispõem de meios para ter um ateliê,
pintam num canto de seu apartamento e não tem dinheiro para comprar os materiais ne-
cessários. E não é tão simples montar seu cavalete em local público (PERROT, 2008, p.103).

As mulheres que seguiam o caminho da arte enfrentavam diversas dificuldades, não podiam estudar
os gêneros maiores da pintura, dificilmente faziam pinturas ao ar livre, normalmente estudavam os temas
florais e as naturezas mortas, pois eram de fácil acesso, já que muitas estavam limitadas as paredes de sua casa.

Em uma entrevista Ana Mae Barbosa questiona Gombrich sobre resgatar as obras de artes feitas por
mulheres na história da arte, sua resposta foi indiferente:

Ana Mae: Mais uma pergunta, professor. O que o senhor pensa da nova tendência de
estudar a História da Arte da mulher?
Gombrich: Nada.
Ana Mae: Terrível resposta...
Gombrich: Não penso nada, porque nós simplesmente não sabemos nada. Veja: há
muitas tapeçarias, coisas muito belas, feitas na Idade Média. Como se pode dizer se fo-
ram feitas por homens ou por mulheres? Não se sabe. Não tem sentido. E não importa.
Se eu ligo rádio e ouço alguém tocando algo muito bem, não posso dizer se é homem
ou mulher. Não tem o menor sentido. É irrelevante. Na literatura também, como saber
em alguns casos? Jane Austen, por exemplo, sabemos que era mulher. Mas, Georges
Sand poderia não ter sido mulher, ela inclusive tentou não ser. É algo que não posso
realmente conceber. Não há uma arte da mulher (BARBOSA, 2011, p. 39-40).

Gombrich de fato se equivoca ao falar que não existe uma arte da mulher, pois antes de qualquer coisa,
ser uma mulher/artista durante séculos era algo inconcebível para uma mulher. Foi necessária resistência e
luta. Apesar de algumas terem alcançado destaque dentro da corte como Sofonisba Auguissola (Imagem 1),
Lavinia Fontana (Imagem 2) e Artemisia Gentileschi (Imagem 3). Isso também diz que existe uma arte da mu-
lher, ou seja, a história da arte das mulheres, que persistiram nesse caminho e hoje ainda lutam por visibilidade.

Imagem 1: Sofonisba Anguissola. Imagem 2: Lavinia Fontana. Imagem 3: Artemisia Gentileschi


Autorretrato. 1556. Fonte: https:// Retrato de Ginevra Aldrovandi Hercolani. 1595. - Autorretrato como alegoría de la
sofonisbaanguissolaweb.wordpress.com/ Fonte: https://it.wikipedia.org/wiri/Fire:Lady_ pintura.1638-1639. Fonte: https://
portfolio/autorretrato-1556/ with_a_Lapdog_(Lavinia_Fontana).jpg pt.wikipedia.org/wiki/Artemisia_Gentileschi

617
No ano de 1970 foi o momento onde as mulheres/artistas, com influência do feminismo, resgataram
a história da mulher na arte, se apropriaram dos seus corpos, para questionar o seu lugar na arte e questionar
o lugar de suas antecessoras.

“Por que não houve grandes mulheres artistas” questão levantada por Linda Nochlin em 1971.
Como vimos existiram mulheres/artistas, mas nenhuma delas fundou escola, ou seja, mesmo que suas pro-
duções fossem superiores aos grandes nomes da arte de sua época, por serem mulheres não conseguiam o
mesmo mérito.

O grupo anônimo de mulheres/artistas, as Guerrillas Girls buscou em grandes instituições da arte


as mulheres/artistas, elas se depararam com um fato que nos grandes museus do mundo existem mais mu-
lheres representadas como objetos, do que como artistas.

O corpo feminino foi sendo representado nas mais diferentes formas, é evidente que por muito
tempo foram os artistas que representaram a mulher e poucas foram as mulheres/artistas que representaram
a sua própria figura

Embora o corpo feminino na arte ocidental estivesse em evidência, isso necessaria-


mente não queria dizer que a própria mulher (com sujeito com vontade própria) e a
sua sexualidade também o estivesse. Na verdade, nas representações dos nus femi-
ninos, é a sexualidade masculina que está em jogo, tendo muito pouco a ver com a
própria sexualidade feminina (LOPONTE, 2002, p. 287).

Ou seja, a mulher poderia ser representada de acordo com a vontade do artista, porém como mu-
lher/artista, não podia criar representações da sua própria sexualidade, fosse ela, relacionada ao nu masculi-
no ou feminino, pois até meados do século XIX, era recomendado às mulheres que enveredavam na pintura
estudar gêneros menores como naturezas-mortas e retratos.

E assim, por meio de seus trabalhos as Guerrillas Girls fazem denúncias sobre a representação da
mulher na arte. Quando o grupo esteve no Brasil em 2017 fez o levantamento a respeito da representativida-
de feminina no Museu de Arte de São Paulo (Imagem 4), elas constataram que 60% das pinturas que estão
no museu são de representações do corpo feminino desnudo e menos de 6% são de artistas/mulheres, ou
seja: para uma mulher entrar em um museu ela tem que estar nua?

Imagem 4: As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? Guerrilla
Girls. 2017. Fonte: https://www.guerrillagirls.com/projects/

O movimento abriu caminho para estas reivindicações, pois não era apenas uma luta política, mas
uma luta por reconhecimento, por espaço e igualdade. Desta forma entendemos que:

618
O feminismo se constrói, portanto, a partir das resistências, derrotas e conquistas que
compõem a História da Mulher e se coloca como um movimento vivo, cujas lutas e es-
tratégias estão em permanente processo de re-criação. Na busca da superação das rela-
ções hierárquicas entre homens e mulheres, alinha-se a todos os movimentos que lutam
contra a discriminação em suas diferentes formas (ALVES; PITANGUY, 2007, p. 74).

Assim, passo a me questionar sobre a mulher/artista no contexto brasileiro. Como se deu a presença
de mulheres na arte no Brasil? Existiram grandes mulheres/artistas brasileiras?

2. Mulheres/Artistas na História da Arte Brasileira

As artistas citadas anteriormente fazem parte do contexto europeu, logo é necessário pensar no con-
texto de Brasil, quando penso em mulheres/artistas brasileiras, a primeira que me vem em mente é Tarsila do
Amaral, filha de ricos fazendeiros, estudou pintura na Europa, e fez parte do movimento modernista, apesar de
não ter participado da Semana de Arte Moderna em 1922, seu marco inicial. Conhecida internacionalmente,
por obras que representam temas nacionais, ela também possui trabalhos pouco conhecidos que sai desses pa-
drões a exemplo da pintura “Nu – 1923” (Imagem 5), onde ela faz uma representação do nu feminino, apesar
de ser uma das obras de pouca visibilidade na sua carreira, ainda assim é ousada para os padrões da época.

Imagem 5: Tarsila do Amaral. Nu. 1923.


Fonte: https://literarteentrepedraseflores.blogspot.com/2012/03/
nu-de-tarsila-do-amaral-1923-pablo.html

Em seguida me vem a mente Anita Mafaltti (1889-1964), também fez parte do movimento Moder-
nista Brasileira, participou da Semana de Arte Moderna de São Paulo, com diversos trabalhos, entre eles O
Homem Amarelo (Imagem 6). Paulistana, aprendeu o oficio da arte com a mãe Bety Malfatti (1866-1952). Ela
frequentou a Academia Imperial de Belas Artes em Berlim, também entrou em contato com diversos artistas
quando resistido em Nova York, mas só passou a ser reconhecida depois que protagonizou uma exposição, que
recebeu a critica nada agradável de Monteiro Lobato (1882-1948), intitulada A propósito da Exposição Malfatti,
onde ele trata o trabalho de Anita como uma arte anormal, que faz com que os modernistas se afastem dele.

619
Imagem 6: Anita Malfatti. O Homem Amarelo. Fonte: ENCICLO-
PÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú
Cultural, 2017.

Porém, existe um fato que precisa ser salientado, mesmo tento lugar dentro da arte paulistana, o
reconhecimento como artista não foi imediato, como salienta Ana Paula C. Simioni:

Embora pudessem expor suas obras ao lado das realizadas por homens, isso não sig-
nifica apreciações equivalentes por parte dos críticos. Um dos aspectos determinantes
para a exclusão feminina da história da arte local foi o modo como as artistas foram
julgadas pelos críticos da época, que as rotulavam de amadoras, termo reiteradamente
utilizado por autores como Félix Ferreira, Gonzaga Duque, João do Rio etc. O termo
trazia conotações negativas: a ideia de um passatempo erudito com oposição ao tra-
balho árduo; frivolidade; ausência de profissionalismo e desconhecimento técnico.
Quando os homens eram chamados de “amadores” significava que eram ou colecio-
nadores ou amantes das artes, ou seja, apreciadores qualificados; raramente o termo
era utilizado para significar “produtores” ou “artistas”. Assim, tratava-se de um termo
sexuado e relacional, que tinha como contra - ponto a noção de artista, conjugado
sempre no masculino (SIMIONI, 2015, p.91)

Ser mulher/artista no Brasil também teve suas imposições e preconceitos, mesmo que estivessem
em um lugar privilegiado pelo circuito cultural e artístico como São Paulo era e continua sendo, como ex-
plica Madalena Zaccara:

No início do século XX, a industrialização crescente traz para o Brasil (leia-se prin-
cipalmente para São Paulo) uma sociedade mais permeável às transformações. Um
maior cosmopolitismo marca as ações de artistas advindos de uma classe média alta
(ou de seu mecenato) e da aristocracia rural remanescente. O descompromisso para
com as exigências da antiga Academia Imperial de Belas Artes que caracterizou a
trajetória dos artistas do século anterior, gerou um vocabulário em um processo de
atualização mais veloz com as correntes artísticas desenvolvidas, então, em uma Eu-

620
ropa referencial. Nessas novas relações, a discriminação por gênero se amenizou. Foi
nesse momento que algumas mulheres se destacaram como artistas e influenciaram o
modernismo nascente. A presença de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral foi decisiva
para o desencadeamento da gênese do movimento que levará os próximos trinta anos
para se consolidar. A partir daí se processa a inclusão da mulher artista no Brasil, ain-
da de forma lenta, hesitante, até que, num processo gradativo, sua presença marcará
as gerações posteriores (ZACCARA, 2011, s/p).

Desta forma podemos notar que duas das mulheres/artistas mais divulgadas da História da Arte
brasileira são paulistanas, mas quem além delas abriu caminho para a arte da mulher no Brasil? Alguma
seria nordestina?

Em 2015 a Pinacoteca do estado de São Paulo realizou uma exposição em homenagem as Mu-
lheres/Artistas Pioneiras, das 21 artistas selecionadas 16 são de fato nascidas no Brasil, entre elas uma
nordestina.

Lucília Fraga (1895-1979) nascida na cidade de Caetié-BA, porém acaba se mudando com a famí-
lia para o estado de São Paulo, inicia seus estudos em pintura no Rio de Janeiro, orientada por Henrique
Bernardelli, participa de diversos Salões Nacionais de Belas Artes, sua especialidade é a pintura de flores
(Imagem 7), um caminho que muitas mulheres/artistas tiveram que seguir devido as limitações que eram
impostas as pintoras, os temas florais, naturezas mortas, retrato foram os temas mais explorados por elas,
pois eram os mais próximos da sua realidade.

Imagem 7 : Leitura Oleo sobre madeira. Lucília Fraga.


Fonte: https://peregrinacultural.wordpress.com/2009/06/25/imagem-de-leitura-lucilia-fraga/

621
Apesar de ter nascido na região nordeste, sua vida e carreira foram estruturadas na região sudeste.
Mas seria correto afirma que a exposição que deveria fazer uma homenagem às mulheres/artistas brasileiras,
na realidade está reconhecendo apenas artistas que tem formação no sudeste?

A questão é que foi deixada de fora desta exposição, por exemplo, a artista pernambucana Fédora
do Rego Monteiro, que estudou em 1910 na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, que após
terminar os estudos ingressou na Academia Julian, neste período foi morar em Paris, de 1911 a 1915. Con-
temporânea de Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, como observa Madalena Zaccara:

Observe-se que a artista premiada e legitimada em nível nacional e internacional é


reconhecida pela crítica brasileira do eixo hegemônico. Em 1917, o mesmo ano da
discutida exposição de Anita Malfatti, Fédora volta para Recife onde, no mesmo ano,
faz uma mostra individual na Associação dos Empregados do Comércio. É também
em 1917 e no seguinte que ela expõe novamente na XXIII e na XXIV Exposição Geral
de Belas Artes da ENBA, no Rio de Janeiro. Trata-se, portanto de alguém competen-
te e antenado com o que se passava na França e no sudeste do Brasil, o que deveria
corresponder, naturalmente, a certo destaque no cenário provinciano pernambucano
(ZACCARA, 2011, s/p)

Seus trabalhos possuem temas variados, tendo destaque na pintura de paisagens (Imagem 8), com
tendência impressionista, o que não é tão comum, pois mulheres/artistas tinham dificuldade em pintar
ao ar livre.

Imagem 8: Caminho. Oleo sobre tela.Fédora do Rego Monteiro.


Fonte http://www.brasilartesenciclopedias.com.br/mobile/nacional/fernandes_fedora_do_rego01.htm

É importante ressaltar que ela foi uma das fundadoras da Escola de Belas Artes de Pernambuco,
mas esse fato não fez com que esquecessem que ela era uma mulher, e como todas as outras mulheres que
tentaram ingressar na carreira artística, ele enfrentou dificuldades, talvez ainda maiores por ser nordestina,
como lembra Madalena Zaccara:

622
Não é difícil deduzir que a atividade artística feminina era encarada, no início do
século XX em Pernambuco, como uma atividade para moças prendadas e casadoiras.
Não era levada a sério. Nesse cenário Fédora atuou quase que de forma isolada, com-
partilhando com raras companheiras os anseios de mulher artista profissional que se
vê tolhida pela sociedade que a cerca. Apesar de professora da Escola de Belas Artes,
de artista que abandona uma arte considerada “feminina”, amadorística, e integra, na
medida do possível, um mercado de trabalho provinciano e masculino, de ser uma
figura bem distante da bonequinha que enfeita o piano na sala de visitas ou da pro-
dutora de aquarelas suaves para orgulho familiar e parte do dote proporcionado para
uma posição bem sucedida no mercado de casamentos, Fédora do Rego Monteiro não
consegue ocupar a posição de destaque a que tinha direito (ZACCARA, 2011).

O que Fédora enfrentou, é o que muitas mulheres enfrentaram e ainda enfrentam, a falta de reco-
nhecimento, não importa se é no meio artístico ou em qualquer outra área de atuação, enfrentamos a indi-
ferença devido ao nosso sexo, mesmo hoje ainda precisamos reafirmar a nossa posição e lutar para avançar.

3. Questões sobre ser Mulher/Artista/Nordestina

Como artista do Nordeste é frustrante perceber o quando o nordeste é pouco reconhecido dentro
do cenário artístico, Mulheres Artistas: As pioneiras 1880-1930, um recorte de 50 anos que deveria destacar
a inserção das mulheres na arte brasileira, porém é extremamente curioso notar que dentre as 21 artistas se-
lecionadas para a exposição, apenas uma é nordestina. Por que será que Fédora, por exemplo, foi ignorada?
Sua produção não ficava atrás de nenhuma das artistas que participaram da exposição.

O que isso pode revelar? Se há uma exclusão da mulher na história da arte, essa exclusão é ainda
mais evidente quando se trata do lugar de origem que ela advém?

Referências

ALVES, Branca Moreira e PITANGUY, Jacqueline. O dos Feministas, v. 10, n. 002, s/p. Rio de Janeiro: UFRJ,
Que é Feminismo. São Paulo: Brasiliense, 2007. (Coleção 2002.
primeiros passos; 44).
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Tra-
BARBOSA, Ana Mae. Entrevista com Ernest Gombrich, dução Angela M.S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2008.
p. 27-41. In: . Arte – Educação: Leitura no subsolo. São
SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres Invisíveis:
Paulo: Cortez, 2011.
Pintoras e Escultoras no Brasil (1880-1930), p. 90-104. In:
BERGER, John. Modos de Ver. Tradução Lúcia Olinto. Mulheres Artistas: As pioneiras (1880-1930) - São Paulo,
Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 2015.
JANSON, H.W; JANSON, Anthony F. Iniciação à Histó- ZACCARA, Madalena. Uma artista mulher em Pernam-
ria da Arte. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: buco no início do século XX: Fédora do Rego Monteiro
Martins Fontes, 1996. Fernandez. 19&20, v. VI, n. 1, jan./mar, s/p. 2011. Rio de
Janeiro. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/
LOPONTE, Luciana Grupelli. Sexualidade, Artes Visuais
e Poder: pedagogias visuais do feminino. Revista Estu- artistas/frm_mz.htm. Acesso: 8 jun. 2018, 11:39:21.

623
TERRITÓRIO DAS CIÊNCIAS:
RELAÇÕES DE GÊNERO PRESENTES
NA UNIVERSIDADE
Emanuely Arco Iris Silva – UFPE/ Sesc Piedade

Introdução

A segunda onda do movimento feminista buscou questionar os valores sociais que justificavam a
dominação masculina e a subordinação das mulheres, cujas teorias, na perspectiva de conhecimento da mo-
dernidade, assumiam uma posição de suposta neutralidade do sexo nas produções acadêmicas, buscando, a
partir desse entendimento, fundamentar a inferiorização das mulheres através de teorias de cunho determi-
nístico naturalista, cuja ausência feminina em certas carreiras ou sua incapacidade para o desenvolvimento
de algumas tarefas como sendo próprias ao sexo, estavam determinadas por aspectos biológicos. Do lado
oposto, as feministas defendiam que essas questões determinísticas deveriam ser entendidas sob uma pers-
pectiva de gênero, colocando o debate da desigualdade entre os sexos como uma construção social, e não
apenas biológica.

Nessa perspectiva, o que se pretendeu através dos estudos feministas foi colocar a mulher como sujeito
de análise, possibilitando uma visibilidade das principais questões que levam à sua subordinação, trazendo
para o debate estudos sobre a mulher na educação, na política, a mulher e a maternidade e muitos outros.

Em face disso, a nossa pesquisa pretendeu oferecer reflexões sobre a seguinte questão: De que ma-
neira vem se desenhando as relações de gênero no corpo docente, tendo por referência a presença das mu-
lheres docentes, dentro das Universidades Federais?

Para tanto, o nosso foco principal foi a análise da evolução do número de mulheres docentes na
UFPE, a partir da década de 1950 a 2015, em quatro áreas do conhecimento: Ciências Humanas, Ciências
Exatas e da Terra, Engenharias e Ciências da Saúde, com o intuito de buscar refletir, através dos números
levantados, as trajetórias decorrentes da presença das mulheres nas Universidades Federais.

Um olhar sobre a ciência

A modernidade se caracterizou por uma ruptura com tradições anteriores, inaugurando a partir disto o
paradigma subjetivista, tendo o sujeito pensante como o centro, na qual o conceito de verdade estaria nas mãos
dos homens. Neste período a ciência adquiriu um poder de explicar o mundo, assumindo um caráter de sinôni-
mo de verdade, o que atualmente parece ser aceito de forma natural.

624
Deste modo, podemos identificar que, o que ocorreu com a ciência, foi a imposição de um conheci-
mento sob um ideal universalizante, que está expresso na tentativa de infundir nas outras formas de conhecer e
compreender o mundo alheio a estas, subalternizando outras formas locais de percebê-lo (LAGE, 2008 p. 196).
Nessa perspectiva, as promessas da modernidade e da ciência não se cumpriram, apesar de considerarmos que
o advento da ciência trouxe grandes avanços para o desenvolvimento do conhecimento no mundo moderno. O
que assistimos é uma forte relação da produção do conhecimento e o poder, que segundo Lage tem provocado
um verdadeiro holocausto:

A simbiótica relação entre poder e conhecimento tem se traduzido num verdadeiro holocaus-
to, protagonizado pela ciência, sobre todas as outras formas de conhecimento. Dentro desta
perspectiva inscreve-se a idéia da competição epistemológica. Uma competição predatória,
onde o ocidente civilizado canibaliza culturas e conhecimentos numa acirrada e desigual dis-
puta por espaços e poder. Assim, a imposição desta supremacia tem limitado as possibilidades
cognitivas do mundo, na medida em que se constrói como universalidade uma única forma
de conhecimento [...] (LAGE, 2008, p. 198).

Nesse panorama, também no século XIX surge, em consequência da modernidade, as ciências sociais.
Esta emerge num contexto de expansão da industrialização e da crescente urbanização, necessitando de novas
formas de pensar a sociedade. No entanto, as ciências sociais tendiam a assumir características da ciência na-
tural, pois segundo Santos (2009) a vertente dominante científica tendia a aplicar aos estudos da sociedade os
princípios epistemológicos e metodológicos dos estudos da natureza, e nesse aspecto, fez-se necessário a reivin-
dicação de metodologias próprias às ciências sociais, com base na especificidade do ser humano e sua distinção
em relação a natureza (SANTOS, 2009 p. 33-34).

Na perspectiva dos estudos pós-coloniais, Walter Mignolo (2003) diz que a racionalidade negada a ou-
tras formas de conhecimento parte da ideia de que hoje existe uma forma de colonialidade entre os poderes e os
saberes. Para este autor a descolonização já não é um processo de libertação das colônias, com vista a formação
de Estados independentes, “mas sim o processo de descolonização epistêmica e de socialização do conheci-
mento” (p. 632). Dessa maneira, e em convergência com Santos (2009), outras formas de conhecimento e de
racionalidade devem ser pensadas a fim de criarmos formas e saberes para uma vida decente, buscando uma
diversidade epistêmica nesse novo paradigma, onde os saberes subalternizados são valorizados.

Ainda para Mignolo

O poder da modernidade oculta, ao mesmo tempo, a colonialidade (do poder, do saber, do


ser). A colonialidade do poder abre uma porta analítica e crítica que revela o lado obscuro
da modernidade e o fato de nunca ter havido, nem poder haver, modernidade sem coloniali-
dade. [...] A colonialidade (do poder, do conhecimento e do ser) aponta, por outras palavras,
para a sempre oculta implicação de negação e repúdio em nome dos valores da modernidade
ocidental (valores cristãos, entenda-se de base católica e protestante: a fé, a ciência, a liberda-
de, a democracia, ajustiça, os direitos humanos, etc.) (MIGNOLO, 2003, p. 634).

Sendo assim, a modernidade pressupõe a colonialidade. Só existe a modernidade se comparada a co-


lonialidade, ao atraso, como se esta fosse necessária àquela para se sustentar e aparecer como a única realidade
existente, credível. Assim como aponta Santos (2000) e Mignolo (2003) o conceito de ciência na modernidade
é totalitário, e esta ainda pode ser tanto regulatória como emancipatória. Regulatória, pois tem servido como
padrões para avaliar todas as formas de conhecimento que não se enquadram nos limitem da “supremacia epis-
têmica”. A nosso ver é emancipatória quando vistas por paradigmas emergentes.

625
O que se quer abordar é que não pode haver apenas uma direção, mesmo que esta seja considerada
boa. O que não significa dizer que apenas o olhar da colonialidade seja mais viável, mas que possa haver várias
direções, pois uma única direção levaria ao totalitarismo. Nas palavras de Mignolo “o problema é que não pode
haver um caminho, uni-versal. Tem de haver muitos caminhos, pluri-versais. E este é o futuro que pode ser al-
cançado a partir da perspectiva da colonialidade com a contribuição dada pela modernidade, mas não de modo
inverso” (MIGNOLO, 2003 p. 642).

Crítica Feminista da Ciência

A crítica feminista da ciência, que se intensificou apenas por volta da década de 1960, buscou romper
com a ciência androcêntrica, na qual possui metodologias orientadas pela experiência masculina. Entretanto,
com isso, não se quer dizer que devemos construir agora uma ciência apenas feminina, mas que essa crítica
buscou trazer contribuições para se pensar as desigualdades em torno das ciências. Para Mignolo (2003), é
possível considerarmos três dimensões que a crítica feminista aponta. A primeira está ligada à visão da ciência
moderna, na qual foi e é uma construção epistêmica a partir de uma perspectiva masculina; outra questão fun-
damental para refletirmos é que, ao considerarmos a visão masculina de ciência, tornam-se invisíveis outros
tipos de conhecimento e outras perspectivas de compreensão do mundo. Por fim, a crítica feminista da ciência
serviu para desalojar o mito de que a ciência estaria “purificada e vacinada contra a infecção sexual e da diver-
sidade” (MIGNOLO, 2003, p. 649).

Diante disso, a contribuição da crítica feminista trouxe novas possibilidades para pensar a produção
de conhecimento em um campo hierarquizante que é a ciência. Nesse sentido, conforme Lage (2008) apre-
senta, os estudos feministas

Impulsionam o surgimento de espaços para questionar e desconstruir identidades subal-


ternizadas, que sempre foram utilizadas para justificar ausências dentro do mundo cien-
tífico, pondo fim aos silenciados questionamentos sobre os rumos da ciência e dos seus
projetos, interesses e compromissos. Dentro desta perspectiva, fica claro que o caminho
trilhado pela ciência tem sido marcadamente sexista, pois a generalização da raça huma-
na, enquanto uma categoria masculina assume uma universalidade que não representa
nem no mínimo, a metade da humanidade (p. 203).

Ademais disso, se levarmos em consideração que a ciência tem como referência não apenas uma vi-
são masculina, mas também branca e eurocêntrica, fica ainda mais evidente o caráter excludente da mesma,
que segrega outros tipos de conhecimento que não se enquadram no padrão determinado.

A crítica feminista, sobretudo, contribuiu para a reflexão da ciência na sua perspectiva binária, pois
foi sempre essa perspectiva que buscou justificar desigualdades em sociedades divididas entre dominantes e
subalternos. Nessa direção, a ciência serve como uma expressão de sua ideologia que, por sua vez, representa
a maneira de pensar necessária à preservação da hegemonia de um grupo. Conforme esse entendimento,
Jaggar (1997) considera que o conhecimento separa mente/corpo, razão/emoção, desse modo a emoção e o
corpo são considerados prejudiciais ao conhecimento (p. 158).

A crítica feminista questiona a neutralidade na ciência, considerando que o/a pesquisador/a não
vai ao campo de pesquisa sem seus valores e sua moral pré-estabelecida. Na perspectiva de Jaggar, o pen-
samento feminista contribui para acabar com o mito da investigação imparcial, pois, como a razão tem
sido associada a grupos dominantes, esse mito serviria para reproduzir suas autoridades epistêmicas, vis-

626
to que “o ideal do investigador imparcial é, portanto, um mito classista, racista e, sobretudo, masculinista”
(JAGGAR, 1997, p. 172).

Em face dessas discussões, Lage (2008) defende que a superação da condição histórica de subalter-
nização de grupos exige uma ciência militante que faça do ato de produzir conhecimentos um ato político
e socialmente responsável e o compromisso com a transformação social. Para esse fim, segundo a autora, a
militância científica exige competência e paixão.

Competência para produzir conhecimentos de alta qualidade, com profundidade e emba-


samento teórico e prático. Paixão pelo esforço intelectual exigido para a transgressão das
amarras da colonialidade do saber, que impõe limite para o avanço das reflexões pós-co-
loniais que desmascaram a farsa da universalidade do saber e da subalternidade dos ou-
tros conhecimentos. Nessa direção, a militância dentro da ciência colonial tem inúmeros
desafios a ultrapassar, que vão desde o questionamento de sua credibilidade até a quebra
do silenciamento de seu compromisso social e ético. Por isto faz-se necessário atingir sua
hegemonia, vulnerabilizando-a (LAGE, 2008, p. 211).

Sendo assim, as discussões feministas em torno da ciência inaugura uma perspectiva crítica que busca
superar a ideia de ciência universal e de uma ciência totalitária, que historicamente excluiu grupos sociais do
mundo da ciência, considerando esses como incapazes de produzir conhecimento. Nessa direção, a concepção
feminista de conhecimento constitui um passo importante para a superação da ciência androcêntrica e para
a criação de novas formas de perceber o mundo e de romper os silenciamentos. Devemos considerar que, ao
romper com formas tradicionais de construção de conhecimento, a criação de outras epistemologias, como a
feminista, permitiu também uma reflexão maior sobre outros grupos subordinados que estavam inferiorizados
pelo discurso da modernidade, como grupos étnicos raciais e geograficamente diferentes.

Metodologia

Nossa metodologia esteve pautada em uma pesquisa quantiqualitativa, na qual utilizamos esta pers-
pectiva para analisarmos como vêm se desenhando as relações de gênero no corpo docente da Universidade
Federal de Pernambuco, no que toca o lugar acadêmico de mulheres e homens. Para tanto, analisamos o nú-
mero de mulheres docentes a partir da década de 1950 a 2015, em quatro áreas do conhecimento: Ciências
Humanas, Ciências Exatas e da Terra, Engenharias e Ciências da Saúde. Nesse sentido, o trabalho de coleta
de dados foi realizado a partir das seguintes fontes de informação:

• Os arquivos históricos da Progepe


• Arquivos históricos da Propesq;

Utilizamos na técnica de coleta de dados a pesquisa documental.

Análise da presença de homens e mulheres nos Centros da UFPE

A nossa investigação foi baseada no levantamento da evolução do número de mulheres e homens


docentes em quatro Centros: Centro de Ciências da Saúde (CCS), Centro de Tecnologia e Geociências
(CTG), Centro de Educação (CE), Centro de Ciências Exatas e da Natureza (CCEN), a partir da década de
1950 a 2015. Buscamos coletar dados de forma geral, do número de mulheres e homens nesses quatro Cen-

627
tros, considerando também a evolução da presença das/os docentes da graduação e da pós-graduação, a fim
de ter um panorama geral dessa evolução na UFPE.

O Centro de Ciências da Saúde (CCS) é formado pelos departamentos de Medicina Clínica, Prótese
e Cirurgia Buco-Facial, Ciências Farmacêutica, Cirurgia, Fisioterapia, Medicina Social, Patologia, Mater-
no Infantil, Clínica Odontológica Preventiva, Enfermagem, Nutrição, Educação Física, Medicina Tropical,
Neuro-psiquiatria, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia e outros. No Gráfico 1, fica evidenciado a evolu-
ção, em termos quantitativos, da presença da mulher enquanto docente nesse Centro. De 1941 a 1950 não
existem registros de presença feminina nesse, mas é a partir de 1951 que aprece os primeiros registros de
mulheres docentes, estas representavam apenas 9,5% do total.

A partir da década de 1970, o quantitativo de mulheres docentes no CCS, aumenta significativa-


mente, passando de 51 na década de 1960 para 191 na década seguinte. Este aumento pode estar ligado
à criação de novos cursos, a exemplo de Nutrição, Farmácia e Terapia Ocupacional. A presença feminina
representava, apesar do avanço, apenas 27% do total dos docentes neste período. Todavia este percentual
vem avançando ao longo das décadas, pois na década de 1990 representou 33,2% de docentes mulheres e
atualmente este corresponde a 42,7% do total de docentes. Apesar desse avanço, não podemos ainda afirmar
que existe igualdade nas relações de gênero entre docentes da UFPE, cabendo analisar se esse avanço aconte-
ceu da mesma forma em todas as áreas ou departamentos do CCS e se existe a formação de “guetos” nesses.

Ao analisarmos o quantitativo de docentes do Centro de Tecnologia e Geociências (Gráfico 2), logo


percebemos que o acesso das mulheres a este Centro não aconteceu da mesma forma como observada no
Centro de Ciências da Saúde. O Centro que é formado pelos Departamentos de Engenharia Mecânica, En-
genharia Química, Geologia, Engenharia Civil, Engenharia Cartográfica, Engenharia de Minas, Engenharia
Nuclear, Oceanografia, Engenharia Eletrônica e Sistemas, de Engenharia Elétrica, Sistema e Potência, Enge-
nharia de Produção, Engenharia Biomédica, e outros carrega historicamente uma tradição masculina.

628
Diante disto, na década de 1950, as mulheres docentes no CTG representavam apenas 10%; na dé-
cada de 1980, quase 30 anos depois, o percentual de mulheres representa apenas 14,4%; na década de 1990,
esse reduz para 14% e, atualmente, essas representam apenas 16,8% do total que atuam enquanto docente
nos departamentos de graduação e pós-graduação na UFPE.

Os dados apresentados no Gráfico 3, referentes ao levantamento feito sobre o Centro de Educação


nos revela que as mulheres estão mais presentes em termos proporcionais nos departamentos de Educação,
dados estes que nos possibilitou entender que também em níveis mais elevados de atuação docentes, apesar
de haver uma presença considerável masculina, se compara com a Educação Infantil e o Ensino Fundamen-
tal primeiros anos, há uma presença maior feminina, que serviu para revalidar o que está posto socialmente
que ver a educação como um espaço socialmente feminino.

Na década de 1950, quando da iniciação do processo de construção dos cursos, o quantitativo de


mulheres e de homens era quase equivalente. Na década de 1960, as mulheres representaram 57,1% do to-
tal de docentes, que, apesar de ser maior, faz-nos refletir que a chegada das mulheres a níveis mais altos de
escolaridade ainda não era tão comum no Brasil. Na década de 1970, o percentual de mulheres passa a ser
74,6% e, atualmente, este permanece quase o mesmo: 71,6%.

Já com relação ao Centro de Ciências Exatas e da Natureza, representado no Gráfico 4, observamos


que acontece o mesmo que o observado no Centro de Tecnologia e Geociências. A presença masculina
supera consideravelmente a feminina. Na década de 1940 e 1950, o Centro era formado de 100% docentes
homens. Na década de 1960, o percentual foi de 12%, que se repete em 1980. Já nos dias atuais, do total de
docentes do CCEN, apenas 16% dos docentes são mulheres.

Nesse sentido, a partir desses dados, podemos observar que a escolha das áreas de atuação está liga-
da ao processo histórico de escolha profissional que direciona mulheres e homens para campos opostos do
conhecimento, o que pode, atualmente, ainda influenciar na escolha destes. Assim, percebemos que há uma

629
distribuição dos sexos nas diferentes áreas e os dados apontados nos fazem perceber que existe um processo
de segregação com relação ao sexo feminino, que sugere estereotipias sexuais, que dividem socialmente as
áreas em femininas e masculinas, de forma que as áreas que apresentam maior valor social, as mais credibi-
lizadas, são aquelas convencionadas masculinas.

Considerações Finais

Sobre a evolução do número de mulheres docentes na UFPE – graduação e pós-graduação – nas


áreas de conhecimento de Ciências Humanas, Ciências Exatas e da Terra, Engenharias e Ciências da Saúde
nas décadas de 1950 a 2015, os dados e informações obtidas nos revelaram que, dos quatro Centros sele-
cionados para a pesquisa (CCS, CE, CTG e CCEN), apenas um (CE) possui, no levantamento geral, uma
maior quantidade de mulheres docentes. Essa constatação nos levou a perceber que ainda existe dentro da
universidade diferenças e lugares definidos por sexo, conforme se delineiam as relações de gênero, mesmo
após quase sete décadas de sua fundação.

Apesar do aumento do acesso das mulheres na docência do ensino superior, em termos proporcio-
nais elas/nós ainda são/somos minoria. A presença feminina tem sido ainda mais efetiva em áreas conven-
cionadas como “femininas”, conforme observamos no Centro de Educação. Este fato sugere que as mulheres
fazem a sua escolha profissional considerando um conjunto de fatores, que podem estar ligados principal-
mente a questões culturais internalizadas pela mulher e pelas pessoas que a influenciam sobre o seu lugar
social nas diversas áreas de atuação.

O levantamento total que fizemos do Centro de Educação nos revelou que essa é uma área na UFPE
predominantemente feminina, pois nas últimas cinco décadas é possível vermos mais que o dobro de mu-
lheres docentes. Entretanto, apesar de ser uma área dominantemente feminina, também observamos que em
alguns departamentos do CE é possível vermos um número considerável, e até mesmo superior, de homens.

No Departamento de Fundamentos Sócio-Filosóficos da Educação há uma quantidade maior de


docentes homens, e o departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional caminha para
uma equidade, que pode estar justificada por essas serem áreas que preparam para a inserção em diferentes
níveis de poder e de tomada de decisões. Além disso, o fato de as mulheres estarem em maior número nos
Departamentos de Psicologia e Orientação Educacional e no Departamento de Métodos e Técnica de Ensi-
no, reforça a afirmativa de que, mesmo na Educação, as mulheres dominam campos relacionados à prática
e ao cuidado e aconselhamento e os homens estariam em campos ligados à reflexão teórica e a tradição
filosófica, como observado no Departamento de Fundamentos Sócio-Filosóficos.

No centro de Ciências da Saúde, ao analisarmos os dados totais sobre as/os docentes da graduação
e da pós-graduação da UFPE, constatamos que, ao longo das sete décadas, a superioridade masculina em
termos quantitativos foi uma constante. Apesar de a presença da mulher docente ser crescente, também há
a reprodução de hierarquias e segregação feminina, pois existem departamentos, assim como observamos
no CE, ligados a área de maior prestígio acadêmico, que possui uma maior presença masculina e aquelas
ligadas à prática e ao cuidar, com uma presença maior feminina.

No CCS a mulher docente está concentrada em áreas como Fisioterapia, e Nutrição, assumindo
mais que a metade do total de professoras/es. Em Terapia Ocupacional, todas são mulheres. Já em outros
Departamentos, como o de Cirurgia e Neuro-Psiquiatria, que dentro da área de saúde são mais valorizados,
considerados de maior complexidade, especificidade e que exige um trabalho mais refinado, há mais que o
dobro de homens.

630
Na trajetória das docentes mulheres no Centro de Tecnologia e Geociências, percebemos que esse
não aconteceu da mesma forma como analisamos no CCS e no CE. Apesar de o número de mulheres serem
crescente ao longo das décadas, em termos quantitativos, há mais homens, que também foi crescente, mas,
em termos proporcionais, manteve-se em número superior, vincando uma desigualdade crescente. Isso nos
leva a observar que, na UFPE, o CTG é um campo hegemonicamente masculino, pois, nos dias atuais, dos
doze departamentos, todos possuem uma quantidade superior de docentes homens.

No CTG, a presença feminina está limitada a poucas áreas, sendo possível ver um número expres-
sivo destas apenas nos Departamentos de Engenharia de Produção, Engenharia Química e Oceanografia.
Uma abertura maior para a presença feminina nesses departamentos pode se justificar por esses serem cam-
pos de atuação diversos. A Engenharia da produção, por exemplo, está ligada, também, ao administrativo
das indústrias e empresas; a Oceanografia trabalha com pesquisas animais e vegetais no ambiente marinho e
está ligada à biologia e zoologia, e ao cuidado, à gestão e à preservação do meio ambiente e o seu campo de
atuação, além de setores públicos e privados, também podem ser em ONGs. Já a Engenharia Química não
tem um campo de atuação restrito apenas às indústrias petroquímicas, essa atuação também se estende aos
setores de cosméticos, perfumes, produtos de limpeza, higiene, farmacêuticos, entre outros.

Diante disto, constatamos que, mesmo inconscientemente, as mulheres ainda escolhem áreas de
atuação que tenham um âmbito educativo e afetivo, que se relacionam de algum modo com o âmbito do-
méstico, concebido por muito tempo como próprio à mulher. Já os homens são influenciados a selecionar
profissões relacionadas com a produção externa ou que lhes permitem atingir cargos de liderança e de
condução. Assim, a existência de uma quantidade maior de mulheres docentes em Departamentos como
Métodos e Técnicas de Ensino, Psicologia e Orientação Educacional, Terapia Ocupacional e Nutrição e
Fisioterapia e de uma quantidade maior de homens em Departamentos como Neuro-psiquiatria, Cirurgia,
em todas as Engenharias e em todos os departamentos do Centro de Ciências Exatas e da Natureza, são
exemplos disso.

Da mesma forma, também observamos que há um processo de segregação territorial ou horizon-


tal, no qual as mulheres se encontram majoritariamente em poucas áreas, todas tendo como denominador
comum aspectos considerados como “femininos”, ligados também à prática, ao cuidado, sendo, portanto, de
menor prestígio social. As situações descritas permitem considerar que na UFPE existem áreas do conheci-
mento “femininas” e áreas “masculinas”.

Cabe observar que esse processo de segregação não é explícito. A concentração feminina em de-
terminadas áreas e sua ausência em outras não está sustentada em limitações objetivas, pelo contrário: são
argumentos mais subjetivos, como a escolha e da afinidade acadêmica, do gosto e do jeito mais para uma
área do que para outra. Essa é uma força tão poderosa, impregnada socialmente, que pode ocorrer processos
de auto exclusão a partir da crença de que a mulher é melhor em determinadas áreas e os homens em outras.

Isto também nos diz que estas desigualdades históricas, nos desenhos da ciência, têm sua origem bem
antes da universidade, na formação das meninas e dos meninos, antes da educação superior. O ensino superior
reproduz uma guetização que já vem da escola, o que nos leva a refletir sobre quais as estratégias para superar.
Nessas etapas, apesar de muitos estudos na área da educação, pressionado pelo diálogo com os movimentos
feministas e LGBT, os avanços ainda são bem aquém do que se imagina uma educação que forme cidadãs e
cidadãos para uma cultura de equidade de gênero e sem preconceito em todos os campos sociais.

Sendo assim, após a análise dos dados da nossa investigação, compreendemos que as relações de
gênero no corpo docente da pós-graduação Stricto Sensu da UFPE, como uma janela pela qual se olha as
demais universidades federais do Brasil, é o resultado de arraigados estereótipos sócio-culturais e ideológi-
cos que se manifestam dentro do processo educativo desde os primeiros anos e se aprofundam nas escolhas

631
das carreiras profissionais do ensino superior, resultando em desenhos institucionais dos quadros docentes,
com claras clivagens em termos da presença e da liderança científica entre mulheres e homens, quer seja
dentro das áreas do conhecimento, dos Programas de Pós-Graduação e dos Grupos de Pesquisa.

REFERÊNCIAS

JAGGAR, Alison. Amor e conhecimento: a emoção na MIGNOLO, Walter D. Os esplendores e as misérias da


epistemologia feminista. In: JAGGAR, Alison; BORDO, «ciência»: colonialidade, geopolítica do conhecimento e
Susan (Orgs.). Gênero/corpo/conhecimento. Rio de Ja- pluriversalidade epistémica. In: SANTOS, Boaventura de
neiro: Rosa dos Tempos, 1997. Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida
decente: “Um discurso sobre as ciências” revisitado. Por-
LAGE, A. C. Entre hegemonias e subalternidades, dis-
to: Edições Afrontamento, 2003.
cursos e militâncias que apontam para uma ciência pós-
-colonial: é possível uma ciência mestiça? In. Revista do SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. São
Observatório dos Movimentos Sociais, Caruaru, Ano I, Paulo: Cortez, 2009.
n. 1, Jul./Ago./Set./Out. 2008.

632
“TODAS AS VOZES, TODAS ELAS” -
RELATO DE EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO
DO GRUPO DE TEATRO DAS OPRIMIDAS
MULHERES NO ESPELHO COM O GRUPO
DE TEATRO MULHERES DE LUTA
Marilene Aparecida Batista (UFMG)

13 de março de 2018, 19 horas. Um ônibus estaciona na Avenida Afonso Pena, 2300, Belo
Horizonte, Minas Gerais. Trata-se da caravana das mulheres integrantes do Grupo de Teatro das Oprimidas
Mulheres no Espelho (GTO-ME). Saímos da Organização Não Governamental (ONG) Casa Sr Tito no
bairro Palmital em Lagoa Santa para conhecer a Ocupação Carolina Maria de Jesus e assistir à cena “Todas
as vozes, todas elas” do grupo de teatro Mulheres de Luta, dirigido por Cristina Tolentino349.

Para compreender a potência deste encontro, faz-se necessário resgatar um pouco da história do
grupo de mulheres da Casa Sr Tito. Criado em 2016 com o nome “Projeto Vestindo a saia – transformando
a realidade”, sob a coordenação de Thayara Barcelar e Nanci Alves, um de seus objetivos era buscar oportu-
nidades para o exercício da cidadania plena de cada uma das mulheres, com segurança e garantia de seus
direitos. Os encontros ocorriam semanalmente e sua proposta era articular mulheres em prol da criação de
uma rede de suporte e enfrentamento a situações de violência e outros problemas. São constantes os relatos
de violência doméstica e violações de direitos vividos no bairro Palmital onde a ONG se localiza, mas vem
se notando um avanço na percepção crítica da realidade e uma movimentação no sentido de revertê-la.

O trabalho com técnicas teatrais junto ao grupo de mulheres iniciou-se, de forma mais direta,
em agosto de 2017, quando fui convidada a conduzir as atividades do grupo. Este convite se deu graças ao
workshop “Mulheres em Ação: uma performance política e transformadora” realizado em parceira com
Karol Monteiro350. Tal experiência, conduzida pelas técnicas do Teatro do Oprimido (TO), envolveu o cole-
tivo, reverberando no cotidiano das mulheres e em situações públicas de opressão. Logramos interferir em
uma dada situação do posto de saúde do bairro e algumas mulheres se tornaram referência no diálogo com
o poder público municipal.

Percebeu-se, com tal experiência e pela fala das mulheres, uma identificação e desejo de seguir
experimentando o método. Desta forma, entre agosto de 2017 e março de 2018, realizamos 11 encontros do
grupo de mulheres conduzidos pela metodologia do TO. Com um público flutuante de 21 mulheres, o grupo

349. Ficha técnica da cena “Todas as vozes, todas elas”: Direção: Cristina Tolentino. Roteiro: Cristina Tolentino e Coletivo. Elenco: Cristina Elisânge-
la Gomes, Nilmara de Freitas Ramos, Ana Luiza C. de Macedo, Poliana Campos, Priscila Santos Anacleto, Liliana Ramos das Mercês, Stefani Santos,
Emanuelle Aparecida de Oliveira, Zilmara Moreira. Videomaker: Edinho. Iluminação: Tainá Rosa.
350. Karol Monteiro foi aluna do curso de Licenciatura em Teatro da UFMG. Fomos colegas na disciplina Projetos Especiais em Educação. Como
atividade avaliativa desta disciplina desenvolvemos e realizamos o workshop “Mulheres em Ação: uma performance política e transformadora”.

633
passa a se chamar Grupo de Teatro das Oprimidas Mulheres no Espelho. Nos encontros experimentamos
alguns procedimentos do Teatro Imagem, uma das técnicas do TO. Boal (2015, p. 47) enuncia que “o Teatro
Imagem é uma ferramenta essencial para envolver o espectador, estimulando a sua criatividade”. Esta técni-
ca baseia-se “no reflexo múltiplo do olhar do outro” (Ibid., p. 216).

O Teatro Imagem tende a desenvolver a linguagem visual, prescindindo da palavra. Propõe-se aos
participantes ler a imagem como quem lê um texto. No documentário “Augusto Boal e o Teatro do Opri-
mido”, Boal expõe que, quando o sujeito entra na imagem, ele a transforma. Quando voltamos para casa, a
imagem desaparece, mas levamos conosco uma transformação operada pela ação, pelo ato transformador.
Diz ele: “Você transformou, então foi transformado. É impossível uma coisa sem a outra”351.

A escolha por esta técnica teatral deve-se ao fato das mulheres já a terem experimentado no
workshop realizado anteriormente, como também por sua potência em suscitar representações, leituras,
discussões e reflexões que colocam os corpos dos sujeitos em ação. Saindo do campo estritamente verbal, as
abordagens imagéticas logram multiplicar perspectivas. Desta forma, nos encontros com o GTO-ME nos
detivemos sobre as experiências pessoais e coletivas das mulheres, numa tentativa de ler o pensamento e
as emoções do grupo, como também de mapear situações de opressão. Refletindo sobre o mundo ao nosso
redor, como ele nos toca e nos afeta.

Tendo em vista os processos vividos com o grupo articulamos uma ação conjunta com o grupo de
teatro Mulheres de Luta, da Ocupação Carolina Maria de Jesus, numa proposta de encontro, diálogo, troca
e transformação através do teatro. Guiadas pelo desejo expresso pelas mulheres integrantes do GTO-ME
de realizarem passeios, saindo da rotina de atividades propostas pela Casa Sr Tito e do próprio contexto
do bairro Palmital, carente no que se refere à oferta de atividades artísticas e culturais. Como também pela
minha percepção enquanto Curinga352 de certo isolamento vivido por algumas mulheres, que não experien-
ciam outros espaços além daqueles de convívio imediato ao bairro. Além da peculiaridade de abordagem
do tema da violência de gênero numa proposta de troca entre comunidades. Bárbara Santos e Augusto Boal
(2009, p. 219) sugerem que, no trabalho sobre violência doméstica, pode ser positivo apresentar-se para
outros grupos, outras comunidades, evitando assim, expor as mulheres ao risco de intimidação por parte
de seus companheiros, por exemplo. As situações de opressão compartilhadas, porém encenadas por outras
mulheres, poderiam auxiliar as mulheres a enxergá-las por outra perspectiva e talvez, vislumbrar com mais
clareza possibilidades de solucioná-las. Fato que Boal (2009) denomina de “distância estética”.

Desta forma, organizamos junto ao grupo de teatro Mulheres de Luta um encontro para apresenta-
ção da cena “Todas as vozes, todas elas” seguida de um bate papo, compartilhando experiências no espaço da
Ocupação Carolina Maria de Jesus. Assim, na noite do dia 13 de março de 2018, o ônibus com as mulheres do
GTO-ME estacionou em frente ao prédio da Ocupação, no bairro Funcionários, zona sul de Belo Horizonte.

A primeira reação de nosso grupo ao avistar a Ocupação foi de excitação por estar ali e surpresa
por ser um prédio tão grande. As mulheres questionaram se ele estava ocupado em todos os andares e se
mostraram curiosas com as faixas e frases escritas nos muros.

Ao entrar, fomos conduzidas à biblioteca da Ocupação que fica no segundo andar, próximo ao local
onde seria realizada a apresentação teatral. Enquanto o grupo teatral terminava de se preparar, algumas
mulheres se sentaram na biblioteca, descansando da viagem (a ONG está a 46 km da Ocupação), outras fica-

351. cf. AUGUSTO BOAL e o Teatro do Oprimido. Direção: Zelito Viana. Rio de Janeiro: Canal Brasil, 2012. 1 DVD (62 min.), son., color., legendado.
352. Curinga é o nome dado ao mestre de cerimônias, ao mediador do espetáculo fórum e também ao agente comunitário, multiplicador do Teatro
do Oprimido. São artistas com função pedagógica, praticantes, estudiosos e pesquisadores do TO. É o Curinga quem orienta o processo criativo e
pedagógico do grupo, buscando uma forma mais democrática de diálogo.

634
ram pelo hall conversando, e as adolescentes visitaram a cozinha comunitária. Registramos nossa presença
naquele espaço através da assinatura na parede da biblioteca. Aproveitei o momento de espera para o come-
ço da apresentação para entregar a doação de material escolar e colher depoimentos, impressões iniciais e
expectativas das mulheres com relação à cena teatral.

Ana353 (16 anos) falou sobre sua primeira impressão da Ocupação: “aqui é legal, até ‘pixei’ na parede”
(faz referência à parede da biblioteca onde assinamos nossos nomes). Ana e duas adolescentes, Raquel (16
anos) e Gisele (15 anos), falaram em vários momentos do desejo de morar na Ocupação. Raquel: “É doido
pra caramba. Dá a impressão de que as pessoas nem se conhecem e conseguem conviver”. Podemos nos
questionar, baseadas neste comentário, em que medida operou-se nesta dada situação o desconhecimento
da condição do outro em um desejo de “ser ele”. Ao conhecer apenas uma parte da situação, corre-se o risco
de romantizar a Ocupação, sem levar em consideração os conflitos e enfrentamentos vivenciados na luta
pela moradia digna. O TO, em sua poética, prioriza o conhecimento da realidade do outro quando nos dis-
pomos a lutar juntos contra as opressões. E lutar junto implica correr os mesmos riscos.

Perguntei a outra adolescente, Gisele, qual a expectativa com relação à cena de teatro e ela disse:
“pela força que elas estão mostrando aqui, vai ser muito bom”. Logo na entrada da Ocupação percebemos a
presença e articulação das mulheres. Elas são maioria e assumem papéis de liderança. Tal fato foi confirma-
do por uma das mulheres do grupo teatral Mulheres de Luta. Ela nos disse que grande parte da Ocupação
era formada por mulheres, e que:

o grupo de teatro surgiu com esta observação. E na maioria das vezes a gente tem espaços,
vários espaços (gesticula fazendo referência a seu próprio corpo) que requer uma ocupa-
ção. E grande parte deles, são as mulheres quem estão ocupando. As lideranças... são as
mulheres que estão o tempo todo motivando, indo pra frente, e se dispondo a fazer as
coisas. Seja na segurança, na portaria por onde vocês passaram hoje, seja na cozinha, seja
na coordenação. Todos os espaços hoje, a grande maioria, quem ocupa hoje, na “Carolina”
são mulheres. Então, a Ocupação, hoje, grande parte dela é feita pelas mulheres. Somos
nós mulheres... Grande parte de nós é que precisamos de moradia, precisamos de mais
segurança. (...) São as mulheres que estão correndo atrás de seus direitos, são as mulheres
que precisam recuperar o que foi perdido, o que foi tirado de nós.

Esta fala nos auxilia a visualizar e dimensionar a experiência vivida naquele momento no que se
refere ao posicionamento político das mulheres no teatro, na divisão de tarefas da Ocupação, na liderança,
no exercício constante de debater e ocupar todos os espaços, inclusive o próprio corpo.

Outro depoimento colhido antes da apresentação é o de Joana (55 anos). Perguntei a ela sobre sua
primeira impressão da Ocupação e ela respondeu:

Muito interessante. Nós fomos conhecer a cozinha comunitária, e aqui, a gente tá em fren-
te à creche. Tem também aula para as outras crianças maiores, tem aula para idosos. E o
mais interessante é que todo mundo ajuda, existe uma escala, todo mundo participa. Nós
encontramos um ambiente super limpo, arrumado, tô impressionada.

Acerca da expectativa com relação à cena, Joana disse achar que “vamos ver um pouquinho daquilo
que a gente não conhece, aquela realidade que a gente pensa que conhece, mas não sabe exatamente como é”.

353. Optei pelo uso de nomes fictícios para preservar a identidades das mulheres.

635
Percebe-se que a organização da Ocupação gerou uma alteração do olhar e do imaginário que as mulheres
da ONG traziam sobre a Ocupação.

Cristina Tolentino, diretora do grupo, também nos falou brevemente sobre o trabalho com as Mu-
lheres de Luta. Ela disse que as aulas de teatro começaram com as crianças e então surgiu a ideia de se
fazer teatro com as mães das crianças. A cena “Todas as vozes, todas elas” foi sendo construída de maneira
coletiva e pretendem torná-la um espetáculo. Na sinopse consta que: “A CENA nos traz à tona, a realidade
da violência patriarcal e a tomada de consciência de SER MULHER. A luta, a liberdade, a independência, a
união, a beleza, a VOZ que surge e se coloca, sonhos para além do dia-a-dia, derrubando as barreiras para
se SER EU-MULHER, força motriz do mundo. O antes - o agora - o que há de vir”.

Em texto crítico, Domingos (2018, p. 4) descreve a cena como “ato performativo que articulou


materiais sonoros e poéticos (a partir de artistas como Mercedes Sosa e Conceição Evaristo), com depoi-
mentos sobre a vida de cada atuante e sua experiência de fazer parte de uma moradia coletiva”.

Descrevo a seguir fragmentos da cena que, a meu ver e pelas falas das mulheres do GTO-ME, mais
reverberaram em nós, nos afetando, transpassando, inquietando e emocionando. Proponho também um
exercício reflexivo costurado por impressões pessoais das mulheres presentes.

Após certo tempo de espera, somos convidadas a entrar na sala de apresentação. O espaço está or-
ganizado ao modo de palco italiano, a luz da plateia está apagada e a cena já começou: no palco, sentadas,
uma ao lado da outra, nove mulheres com bacias de plástico no colo, descascam batatas e conversam, todas
falando ao mesmo tempo. Numa atmosfera que, a meu ver, remete à preparação da janta, à confraternização
típica das cozinhas mineiras quando várias mulheres se juntam para preparar o alimento. Como havíamos
conhecido a cozinha comunitária da Ocupação, é possível fazer a leitura de que aquele era um momento re-
corrente no cotidiano daquelas mulheres. O clima é de descontração e nós, o publico, nos acomodamos nas
cadeiras enfileiradas da plateia. A iluminação, em formato ribalta, projeta sombras das mulheres na parede
de fundo, o que faz com que se multipliquem as imagens dos corpos em cena.

De repente, em meio à conversa geral, uma das atrizes grita um nome de mulher e todas respondem:
“presente!”. Segue-se o som das conversas das mulheres, até que outra atriz grita mais um nome de mulher.
Todas respondem: “presente!”. A dinâmica da cena se repete algumas vezes, seguindo este padrão, até que
todas se calam e se inicia um jogo de pergunta e resposta. Elas “vão gritando/convocando os nomes de mui-
tas outras mulheres e a resposta em coro é enfática: “presente”” (DOMINGOS, 2018, p. 5).

Instaura-se um novo clima na cena. Outrora de confraternização do momento de preparo do ali-


mento, agora de protesto e memória. Minha leitura é a de que esta cena nos conduz por um caminho da
reverência e reconhecimento da luta de mulheres que vieram antes de nós ou estão ali, caminhando a nosso
lado. Também remete àqueles corpos femininos presentes ali, na Ocupação Carolina Maria de Jesus, no mo-
mento histórico de desapropriação de direitos que temos vivenciado atualmente em nosso país. Conectam-
-se também à cena, a transgressão empreendida por mulheres, integrantes do Movimento de Luta nos Bair-
ros, Vilas e Favelas (MLB), que, ao lutar por moradia digna ocupam um prédio de 14 andares no centro de
uma das maiores capitais do país. E, naquele dia, outras mulheres se juntam a elas, as mulheres do GTO-ME,
transpondo suas barreiras geográficas e sociais, avançando do espaço particular (e muitas vezes solitário de
suas casas354) para o espaço público ocupado pela militância. E ali, descobrem um novo mundo, uma nova
forma de organização social e de luta por direitos.

354. Em um dos meus primeiros encontros com o grupo de mulheres da ONG Casa Sr Tito, foi apontado por elas o desejo de sair, fazer passeios,
conhecer outros lugares.

636
Relato a seguir, uma cena apontada pelas mulheres do GTO-ME como uma das que mais as to-
cou, fato que pôde ser percebido por algumas falas no momento de bate-papo, posterior à apresentação e
também no retorno para casa. A cena ocorreu da seguinte forma: em determinado momento, as atrizes saem
do palco e se dirigem ao fundo da sala, atrás da plateia. Então, uma por vez entra no espaço cênico novamen-
te, hora pelo corredor central, hora pelos lados externos da plateia. Elas chegam se apresentando, dizendo
em alto e bom som o seu nome e um pouco de sua história, como chegaram à Ocupação, sua luta diária e
enfrentamentos constantes aos preconceitos e abusos vividos por serem mulheres e negras. Como também
compartilham seus sonhos e desejos. Elas caminham até o palco e se sentam nas cadeiras aí posicionadas,
uma ao lado da outra.

Conforme dito anteriormente, após a apresentação da cena, foi realizado um bate papo entre
os presentes. Neste momento, algumas mulheres do GTO-ME falaram em apoio às atrizes da Ocupação
Carolina Maria de Jesus. Também abordaram aspectos compartilhados com elas, as parabenizaram e até
mesmo oraram por elas, para que conquistassem o que almejavam (há muitas integrantes do GTO-ME
que são evangélicas).

Patrícia (40 anos), uma das mulheres do GTO-ME, fez um depoimento sobre o impacto da par-
ticipação na Casa Sr Tito em sua trajetória pessoal de superação de situações de violência e do quadro de
depressão vivido naquele momento. Ela relatou sua história na Casa, desde a entrada no “Projeto Vestindo
a saia – transformando a sociedade”, do acolhimento que recebera, do acompanhamento psicológico e da
transformação que começou a viver dentro de sua casa.

Quando eu cheguei dentro de casa, que meu marido começou a olhar, ver que eu mudei as
atitudes. Porque eu quero falar uma coisa pra vocês, se você quer mudar alguma coisa, co-
meça a mudar suas atitudes, dentro da sua casa. Porque outrora você recuava, mas quando
você começa a falar, aí ele fala “Opa! Alguma coisa mudou!” Ela (a mulher) se sente mais
segura. E foi isso que aconteceu. (...) Até chegar ao ponto dele falar com uma amiga mi-
nha: “Ela tá diferente. Não é a Patrícia de antes. Ela tá diferente”. E aquilo me empoderou
mais. Me deixou mais forte.

No ônibus, retornando para Lagoa Santa pergunto à Madalena (34 anos) o que ela achara da cena.
Foi interessante perceber como ela falou neste momento com muito mais desenvoltura. Antes da apresenta-
ção fui colher seu depoimento e ela não quisera falar. Porém, depois da apresentação ela disse:

Eu gostei muito da peça hoje, foi uma experiência nova. Ver aquelas mulheres empode-
radas. A gente pode seguir o exemplo delas. Ou (fazer) melhor. Eu gostei do depoimento
delas, falando o que elas vivem. Muita gente aqui fora passa igual, e a pessoa não tem
aquela capacidade, não tem coragem de ta falando e elas estão falando pra todo mundo, é
muito bonito. É uma experiência muito bonita de viver.

Faz-se importante frisar o impacto perceptível nas mulheres do GTO-ME gerado pela visita à Ocu-
pação Carolina Maria de Jesus. Percebe-se que a experiência vivida ao assistir à cena “Todas as vozes, todas
elas” atuou como um disparador para que todas nós refletíssemos sobre nossas presenças no mundo, sobre
as formas de interação e enfrentamento a situações de opressão. Em meu Diário de Itinerância relato:

Acho que foi realmente um choque elas conhecerem esse novo modo de vida e foi in-
crível como as coisas foram caminhando de uma maneira, com uma potência incrível.
Desde o início dos encontros deste ano, uma das situações de opressão que elas sempre

637
traziam através das práticas com a técnica do Teatro Imagem, era a relação com o bairro
Palmital. A relação com os vizinhos, os moradores dos “predinhos355”.

A questão da moradia esteve sempre em pauta nos encontros do GTO-ME. Muitos moradores do
bairro Palmital consideram que os problemas que hoje vivem iniciaram a partir da construção do condo-
mínio Bem Viver. Julgam que o bairro não estava preparado para receber o contingente populacional (620
novas famílias) e seu impacto. Os moradores convivem com homicídios, tráfico, além de problemas estru-
turais, como ausência de calçadas, ruas esburacadas, escassa limpeza urbana, poucos horários de ônibus,
dentre outros. A congruência para a visita à Ocupação e a experiência com a cena “Todas as vozes, todas
elas” veio ao encontro de uma questão que era recorrente nos encontros do GTO-ME: como enfrentar as
situações de violência vividos no residencial Bem Viver? A troca com as mulheres da Ocupação Carolina
Maria de Jesus proporcionou reflexões, redimensionou nosso papel social frente à questão. O depoimento
de Jussara (37 anos) confirma este aspecto:

A primeira impressão que eu tive do espaço aqui é que eles são bem organizados, acho que
(eles têm) companheirismo, acho que eles dividem muito bem as tarefas para se mante-
rem organizados. O que em muitos lugares falta, até mesmo perto de casa assim, entre os
vizinhos. Então acho que se todos se unissem, em prol dessas coisas, o mundo seria muito
melhor. (E completa) Aqui tem uma organização que no Palmital não tem.

Realizar este encontro com um grupo de mulheres de uma ocupação traz sentidos, significados, que
redimensionam a nossa prática. Redimensionam o nosso lugar, as nossas discussões. O fato de ver mulheres
em cena, da faixa etária da maioria das integrantes do GTO-ME; mulheres que, assim como elas, são mães,
causou um impacto no grupo. Relato em meu diário: “Isso aí foi um espelho, com certeza”.

Na volta para casa, no ônibus, indaguei a algumas mulheres do GTO-ME se elas se viam em cena,
tal qual as companheiras da Ocupação e elas disseram que sim. Reproduzo a seguir trecho do meu Diário de
Itinerância, no qual registro este momento:

E na volta, no ônibus, perguntei àquelas que estavam mais próximas a mim (Patrícia, Jus-
sara, Marcia, Mariana, D. Rosa), se elas se viam no lugar daquelas mulheres que elas assisti-
ram hoje, se elas se viam atuando, se elas achavam que as histórias delas também poderiam
render uma peça de teatro. E elas disseram que sim! Mostraram-se entusiasmadas com essa
possibilidade. Principalmente a Márcia que estava caladinha desde o início, chegou a co-
mentar que se fizéssemos uma peça sobre a vida dela seria muito longa, pois desde cedo ela
está na luta, na batalha. Foi muito lindo ouvir isso! (...) E eu vi que elas começaram a se ver
no teatro, quando elas começaram a ver mulheres como elas fazendo teatro. Quando elas vi-
ram que as histórias delas são teatro. Eu não gravei esse trecho em que uma das mulheres da
Ocupação disse, mas achei tão forte. Ela falou: “nós somos teatro”. E isso é lindo! Isso é Boal.
Isso é Teatro do Oprimido. Mesmo que a técnica não seja, mas o “espírito” é, a poética é.

Outro momento da cena, especialmente marcante para nosso grupo, foi quando as atrizes se posi-
cionaram uma ao lado da outra, de frente para o público e levantaram cartazes escritos à mão denunciando
machismos, feminicídios, abusos, violências de gênero. Elas permaneceram assim por certo tempo. Seus
corpos presentes empunhando os cartazes interpelavam a plateia.

355. Referência ao condomínio residencial “Bem Viver” construído através do programa do Governo Federal “Minha Casa, Minha Vida”.

638
Este trecho da cena foi particularmente significativo para nós, enquanto GTO-ME e para mim,
enquanto curinga, pois foi o mote para abordar com as mulheres do grupo as questões de violência de
gênero.

Eu olhava para cada mulher sentada ali naquelas cadeiras no palco, e via um espelho da
gente sentada ali na plateia. Cada mulher que tava na plateia, vidrada na cena, se via ali
naquelas histórias. Mesmo que, às vezes, não fossem histórias exatamente iguais às que
elas vivem, refletiam muitos aspectos. Abordar o tema da violência, que é um tabu para a
maioria das mulheres ali e perceber que essa barreira começou a trincar. Eu mesma come-
cei a me posicionar, a contar a elas as situações de violência e abuso que já sofri. E outras
colegas também relataram experiências e como sobreviveram.

Sandra (34 anos), integrante do GTO-ME também abordou este aspecto quando pergunto se que o
vimos tem a ver com a vida no bairro Palmital:

Eu achei muito importante elas falarem sobre violência sexual, sobre agressão física,
agressão verbal, porque isso empodera muito a gente. Porque tem muitas mulheres que
sofrem tudo isso caladas, não têm coragem de falar, por vergonha, por medo, por pre-
conceito dos outros. E isso é muito importante. Isso fortalece a gente. Essas são feridas
que jamais vão ter cura, mas que servem de exemplo para muitas mulheres que passam
por isso, levantar a cabeça e seguir em frente. (E completa) Achei (a cena) ótima, inspi-
radora, são mulheres muito fortes, muito guerreiras, elas estão de parabéns! Servem de
exemplo pra gente lutar.

Até então tinha tido dificuldade em abordar a questão da violência de gênero com o GTO-ME.
Logo, este momento da cena se mostrou como um grande potencial sensibilizador para a abordagem do
tema. Após o encontro com as mulheres da Ocupação Carolina Maria de Jesus, realizamos apenas um en-
contro com o GTO-ME, pois, o combinado inicial com a coordenação da ONG era que encerraríamos o
trabalho no mês de março.

Neste encontro, resgatamos o tema da apresentação da cena. Para minha surpresa, as mulheres não
apontaram a questão da moradia, mas sim a violência de gênero. Assim, realizamos uma sequencia de ações,
tendo como objetivo abordar a questão da violência contra a mulher sob a perspectiva da “ascese”. “Palavra
de origem grega que significa treino, exercício mental, com o objetivo de se atingir a compreensão mais
ampla dos fenômenos, subir ao mais geral, para melhor se compreender cada caso particular” (BOAL, 2009,
p. 189). Logramos com as ações compartilhar e discutir através do Teatro Imagem situações de opressão
vividas pelas mulheres.

Neste texto não alcançarei refletir sobre estas ações especificamente. Mas a experiência prática de
encontro e partilha entre os dois grupos, nos leva a concluir que embora tenham origens e endereços dis-
tintos, as mulheres da Ocupação e do GTO-ME compartilhem sonhos e vivenciam o mesmo caráter de
situações de opressão – a opressão de gênero. O encontro proporcionou ao GTO-ME enxergar a ação teatral
sob uma nova perspectiva. Trazendo a potência de, ao verem outras mulheres em ação, gerou-se um inte-
resse por ocupar a cena enquanto protagonista de suas próprias histórias de vida. Finalmente, o encontro
redimensionou nossos lugares e papeis sociais, instigando-nos a refletir, expressar e lutar contra as opressões
que vivemos em nosso cotidiano, como mulheres.

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REFERÊNCIAS
AUGUSTO BOAL e o Teatro do Oprimido. Direção: Ze- DOMINGOS, Clóvis. Dois espaços cênicos singulares para
lito Viana. Rio de Janeiro: Canal Brasil, 2012. 1 DVD (62 vozes femininas. 2018. Disponível em: http://www.hori-
min.), son., color., legendado. zontedacena.com/category/criticas/page/2/ Acesso em
17 de abril de 2018.
BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. São Paulo:
Cosac Naify, 2015.
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro:
Garamond, 2009.

640
AUDIOVISUAL: CINEMA,
TELEVISÃO, VÍDEO – DEFINIÇÕES
E POSSIBILIDADES NA ESCOLA
Diogo José de Moraes Lopes Barbosa (UFPB)

Uma sociedade audiovisual

Iniciaremos esse texto a partir de uma afirmação sobre a contemporaneidade: vivemos em uma so-
ciedade audiovisual. E essa ideia tem ficado mais clara nas últimas décadas. A realidade do mundo mediada
em forma de simulacro pelas muitas telas que nos rodeiam faz parte do nosso cotidiano e está extremamente
presente em nossas relações. Quando trazemos o termo audiovisual vinculado à sociedade, não nos referi-
mos somente às linguagens clássicas do cinema, do vídeo e da televisão, mas a tantas outras.

Temos feito uso do som e da imagem em movimento de muitas formas e com diferentes propósi-
tos. Encontramos câmeras de segurança em bancos, em prédios públicos e privados, nas ruas, e até no alto,
nos satélites que circulam o planeta. As técnicas mais eficientes de Educação a Distância (EAD) tem como
reforço o uso de uma estrutura equivalente a de estúdios de televisão. Até em nossos momentos familiares,
quando registramos com nossos smartphones os primeiros passos de nossos filhos, estamos vivenciando esta
ideia de sociedade audiovisual. Pensar em um mundo sem a presença da imagem em movimento nos parece
hoje, impraticável, sobretudo, quando lidamos com este conceito mais amplo do termo. Mas afinal de con-
tas, como definir exatamente o que é audiovisual hoje, após mais de cem anos do surgimento do cinema? E
o próprio cinema, como definir? O que conhecemos como cinema na contemporaneidade, nos parece bem
diferente daquele inventado no fim do século XIX.

Quanto ao termo audiovisual, a nomenclatura que utilizamos, na verdade, é ainda bastante con-
troversa, gerando certas imprecisões acerca de seu significado. Podemos dizer que a utilização do termo
audiovisual talvez tenha trazido mais incertezas do que definições concretas. Além do cinema, outros meios
capazes de se expressar através de imagens em movimento são, da mesma forma, considerados audiovisuais:
a televisão, o vídeo analógico ou digital, além das suas formas de produção e difusão. O conceito pode se en-
caixar em diversas estruturas, tecnologias e linguagens. Contudo, em determinadas situações será necessária
uma maior precisão sobre qual tipo de audiovisual utilizamos, produzimos ou pesquisamos.

Aqui, desejamos expor um conceito muito específico de cinema, ao qual nos permite fazer uso dele
em sala de aula em uma perspectiva pedagógica e de criação artística. É a partir desta visão do fazer cine-
matográfico que podemos desenvolver um trabalho de criação de filmes com os alunos. No entanto, antes
de expor nossa noção de Cinema no Contexto Escolar, acreditamos que seja necessário apresentar algumas
formas de audiovisuais criados no decorrer da história, deixando mais claro onde se encontra o cinema em

641
meio a tudo isto e, sobretudo, que cinema estamos considerando quando este é estudado pelas crianças e
pelos adolescentes em uma proposta prática de criação de filmes.

A invenção do cinema

Não é apenas em nossa sociedade do século XXI que fazemos tanto uso da linguagem audiovisual.
Desde a invenção do cinematógrafo356 pelas mãos dos irmãos Lumière na França (1895), as práticas audio-
visuais acompanham o cotidiano de diversas culturas espalhadas pelo planeta. Há quem diga ainda que
muito antes das primeiras projeções cinematográficas, o homem já usufruía de experiências estéticas de
imagens em movimento e projeções animadas. Ainda que as primeiras filmagens tenham ocorrido apenas
em 1895357, acontecimentos anteriores foram importantes para que a máquina dos Lumière tivesse êxito,
pois, como afirmar Arlindo Machado:

[...] autores dos volumes mais respeitados sobre a invenção técnica do cinema, assina-
lam como significativos a invenção dos teatros de luz por Giovanni della Porta (século
XVI), da lanterna mágica por Christiaan Huygens, Robert Hook, Johannes Zahn, Samuel
Rhanaeus, Petrus van Musschenbroek e Edme-Gilles Guyot (séculos XVII e XVIII), do
Panorama por Robert Barker (século XIX), da fotografia por Nicèphore Nièpce e Louis
Daguerre (século XIX), os exercícios de decomposição do movimento por Étienne-Jules
Marey e Eadweard Muybridge (século XIX) [...] (1997, p.12).

Neste período dos pré-cinema, apesar dos estudos e esforços descritos, a sétima arte ainda iria ser
criada. E mesmo que as invenções dos Lumière, de Thomas Edison e outros, tenham surgido no final do sé-
culo XIX, foi o século XX que nos trouxe efetivamente o consumo das narrativas audiovisuais, primeiro com
o cinema, depois com a televisão e o vídeo, e mais recentemente com as novas formas de produção, difusão e
consumo de imagens em movimento, geradas e veiculadas pelas tecnologias digitais e pela internet. Antes do
século passado, as maneiras conhecidas de contar histórias eram as formas advindas do teatro e da literatura.
Espetáculos teatrais eram apresentados na cena naturalista tentando retratar o mundo dentro do palco. Os ro-
mances, as novelas e, sobretudo, os folhetins vendidos nos jornais, ocupavam o tempo da classe burguesa. Esta
visitava os cafés para verem os shows de variedades e as apresentações de mágica e ilusionismo. Às classes mais
populares, restavam os circos e as apresentações de grupos mambembes em ambientes públicos.

Após o cinematógrafo, estas linguagens foram aos poucos cedendo espaço ao cinema. Primeiramen-
te, as exibições eram realizadas em vaudevilles para um público seleto. Depois, outras formas de fruição fo-
ram conquistando novas plateias. Na primeira década do século XX, um local muito utilizado para projetar
os filmes eram os nickelodeons.

Os nickelodeons surgem a partir de 1905, quando muitos empresários de diversões come-


çam a utilizar espaços bem maiores que os vaudevilles para exibição exclusiva de filmes.
Ao contrário dos teatros, cafés ou dos próprios vaudevilles frequentados por uma classe
média de composição diversificada, esses novos ambientes eram, em geral, grandes depó-
sitos ou armazéns adaptados para exibição de filmes para o maior número possível de pes-

356. O cinematógrafo foi uma máquina inventada pelos irmãos August Lumière e Louis Lumière capaz de filmar a partir de películas fotográficas.
Além de captar as imagens, o cinematógrafo conseguia projetá-las.
357. A apresentação dos irmãos Lumière aconteceu em Paris, no Grand Café, em 28 de dezembro de 1895. Apesar de ter ganhado mais notoriedade,
no mesmo ano, em 1º de novembro, os irmãos Max e Emil Skladanowsky realizaram uma exibição de 15 minutos em um teatro de vaudeville em
Berlim, utilizando o seu invento, o bioscópio.

642
soas, em geral trabalhadores de poucos recursos. Eram locais rústicos, abafados e pouco
confortáveis, onde muitas vezes os espectadores viam os filmes em pé se a lotação estivesse
esgotada. Mas ali se oferecia a diversão mais barata do momento: o ingresso custava cinco
centavos de dólar – ou um níquel, daí seu nome (COSTA in MASCARELLO, 2006, p.27).

Com o passar do tempo, querendo atingir um público ainda maior, surgiram locais e estruturas mais
confortáveis. O cinema ganhou rapidamente o apreço de todas as classes sociais. Desta forma, uma cultura
de espectadores da sétima arte começou a se formar, permanecendo hegemônica por décadas.

Assim, esses primeiros anos foram essenciais para que se desenvolvesse uma linguagem específica
que iria ser compartilhada com outras formas de audiovisuais no futuro. Tais pesquisas estéticas foram
fundamentais também para que o cinema alcançasse um respeito entre estudiosos do campo das artes. Este
início foi importante, sobretudo, para que os espectadores, de uma forma geral, pudessem trazer a sétima
arte para seus cotidianos, consolidando assim, esta ideia de sociedade audiovisual. O fascínio exercido no
homem pelas imagens projetadas se abalaria apenas com o surgimento e a disseminação de outro grande
meio audiovisual, a televisão, cujo aparecimento e popularização se deram nos EUA na década de 1950.

O aparecimento da televisão

O aparelho de televisão quando entrou nas casas da população, trouxe também a promessa de for-
necer tudo que o cinema oferecia, mas dentro do conforto do lar. Mesmo com uma menor qualidade visual
se comparada à película, o público logo abraçou aquela nova invenção. As imagens eram em preto e branco
(a TV colorida só iria aparecer na década de 1970). As dimensões das telas eram extremamente pequenas.
Enquanto uma projeção cinematográfica podia ocupar a parede inteira de uma sala de exibição, o equipa-
mento televisivo só contava com poucas polegadas. Apesar disso, a TV era capaz de transmitir conteúdos ao
vivo, algo apenas possível ao rádio. Quanto à programação, ela mostrava já uma grande variedade de produ-
tos audiovisuais. Além de filmes (que estiveram em cartaz no cinema) e telefilmes (produzidos diretamente
para televisão), outras formas de entretenimento e informação compuseram a programação televisiva desde
seu surgimento, algumas trazidas da mídia radiofônica como o radiojornalismo, os programas musicais, as
radionovelas e os radiodramas (peças de teatro interpretadas para o rádio).

Tecendo comparações entre o cinema e a televisão, apesar de falarmos de veículos muito similares
no sentido de gerar e difundir imagens audiovisuais, ambos sempre possuíram características bem distintas
quanto aos seus modos de produção, exibição e mesmo, consumo por parte dos espectadores. A qualidade
e o tamanho das imagens cinematográficas, como já mencionamos, eram superiores às televisivas. A fil-
magem em cinema, a priori, era realizada com apenas uma câmera, decorrente dos altos custos da película
cinematográfica. Já a televisão, fazia uso de multicâmera (gravações com mais de uma câmera), pois esta não
funcionava com película e sim através da transmissão de imagens por sinais elétricos até a casa dos teles-
pectadores. Lembremos que a televisão, em seus primeiros anos, não exibia seus conteúdos com gravações
prévias, os transmitia ao vivo. Apenas posteriormente, com a invenção do videoteipe (a fita de vídeo), as
imagens puderam ser gravadas e editadas.

Outro aspecto que difere os dois modos de produção é o processo de montagem (edição). No cine-
ma, o material filmado, durante décadas, foi editado através de um equipamento chamado moviola358. Era
um trabalho praticamente artesanal de juntar e separar cenas e sequências cortando, literalmente, a película

358. Moviola foi o nome de uma marca de um equipamento de edição que permitia visualizar fotogramas ou a sincronia deles.

643
cinematográfica. Na televisão, a edição era feita enquanto o programa acontecia, seja ele, de auditório, tele-
novela ou telejornal. Os diretores escolhiam as imagens dos pontos de vistas de cada câmera e as intercala-
vam através de uma máquina de edição em tempo real (mesa de corte ou switcher). Após alguns anos, surgiu
a possibilidade de gravar os programas em fitas magnéticas de vídeo, isto permitiria com que a edição deles
fosse realizada com maiores cuidados antes da veiculação. Ainda assim, o processo de edição pela mesa de
corte é utilizado frequentemente, haja vista a importância da transmissão em tempo real para o meio de
comunicação televisivo e da quantidade de material que precisa ser produzido e editado diariamente (não
havendo tempo pra os processos de montagens similares aos que acontecem no cinema).

O vídeo

Depois do cinema e da televisão, outra revolução iria começar com o surgimento do vídeo. Esta
tecnologia já estava presente na televisão. Para gerar suas imagens, ela faz uso de informações captadas (por
uma câmera), codificadas em ondas eletromagnéticas e posteriormente, decodificadas pelo aparelho de tele-
visão. A informação eletromagnética captada pode ser transmitida pelo ar através de ondas hertzianas, mas
também pode ser guardada em suportes magnéticos (a fita de vídeo).

Nos primeiros anos da televisão, como já foi mencionado, as gravações nem sempre eram armaze-
nadas, isto aconteceu apenas com o surgimento do videoteipe. Até a década de 1960, a produção em larga
escala da imagem videática (televisiva) permaneceu sob controle das emissoras de televisão. De acordo com
o texto abaixo:

[...] No terreno específico do vídeo, a vídeo-arte, de um lado, e as alternativas militantes


ou comunitárias, do outro, experimentaram soluções de linguagem francamente opostas
aos modelos praticados nos canais televisuais, estes já bastante diversificados e híbridos.
Por essa razão, a questão de uma linguagem “natural” ou “específica” para o vídeo nunca
encontrou um terreno muito fértil para germinar e, se alguém tentasse enfrentá-la com
seriedade, muito breve se desencorajaria diante da descomunal diversidade das experiên-
cias (MACHADO, 1997, p.192).

Os meios audiovisuais até então, estiveram nas mãos das grandes empresas de entretenimento, os
estúdios de Hollywood, os canais de televisão, raras eram as práticas independentes. A chegada do vídeo
funcionaria como uma alternativa de uso da linguagem audiovisual pelos artistas e produtores independen-
tes. Logo surgiu uma grande pluralidade de gêneros e estilos, como expõe Arlindo Machado (ibid.). Com
isto, maneiras de realizar gravações a partir de uma linguagem própria do vídeo começaram a ser pensadas.
O que se queria era algo diferente da televisão e do cinema. Buscou-se trabalhar com enquadramentos re-
lativamente fechados, devido à qualidade inferior comparando à película. Além disso, dava-se preferência a
poucas pessoas no quadro.

A criação em vídeo beneficiou, sobretudo, cineastas independentes, videodocumentaristas, artistas


plásticos e performáticos, ou seja, ainda uma pequena parcela da sociedade. O grande público permanecia
na condição apenas de espectador. Contudo, o desenvolvimento desta tecnologia gerou possibilidades para
o mercado doméstico. É necessário aqui, fazer menção ao aparecimento do aparelho de videocassete, sur-
gido em meados da década de 1970. Mesmo havendo a produção independente em vídeo já citada, grande
parte dos espectadores ainda estava preso ao que o cinema comercial e os canais de televisão ofereciam. O
videocassete talvez tenha sido a primeira invenção a dar certa autonomia às pessoas, elas agora teriam aces-
so a uma gama maior de conteúdos audiovisuais. Além disso, havia no aparelho a possibilidade de avançar

644
a cena, retroceder ou pausar. Alguns equipamentos ainda tinham o recurso de gravação, permitindo a copia
de filmes e programas de televisão.

Estas opções, apesar de nos parecerem simples hoje, modificaram efetivamente a relação do espec-
tador com a imagem. Sem dúvida, o videocassete teve uma forte influência na mudança de costumes na
sociedade audiovisual construída até aquele momento.

As tecnologias digitais

O próximo passo da evolução das tecnologias audiovisuais se tornou a base das culturas audiovisu-
ais contemporâneas, o ser humano chega ao ponto mais alto de suas relações mediadas pelo som e imagem.
Estamos falando das Novas Tecnologias. A internet, por exemplo, inicialmente teve uso militar, depois aca-
dêmico, interligando universidades em várias partes dos EUA, e finalmente, em meados da década de 1990,
o acesso estava aberto para o usuário comum. O salto foi rápido. No ano de 1996, já havia no mundo 56
milhões de usuários conectados. Nesta época, a web não era como hoje, a interface gráfica era muita mais
simples, limitando o uso de imagens e vídeos.

A World Wide Web é um ambiente virtual onde a base de seu funcionamento consiste na troca de
conteúdos, seja texto, som, imagem, vídeos ou animações. Desta forma, um grande acervo de filmes, séries
televisivas, músicas e vídeos de toda natureza foram compartilhados através de sites como o Napster ou o
Audiogalaxy ou programas como o Kazaa, o Morpheus ou o Utorrent, citando apenas algumas das opções
mais populares de compartilhamento de arquivos de suas épocas. No entanto, para que o próprio internauta
produza conteúdo (de âmbito audiovisual), é necessário lançar mão de outros recursos, neste caso, materiais
capazes de produzir vídeo digital.

A transição das tecnologias de captura de imagem e som analógicos para os suportes digitais se deu
em meio a muitas polêmicas, sobretudo, no campo do cinema. Termos como cinema digital começaram
a surgir criando muitas discordâncias. Em defesa da película cinematográfica, alguns profissionais de au-
diovisual colocaram logo em dúvida a qualidade da informação visual armazenada em bits e bytes. Outros
levantam a questão da redução de custos com a filmagem digital, mesmo comparando a bitolas359 mais
econômicas como a de 16 mm. Outra vantagem encontrada na tecnologia digital está na pós-produção, o
processo de edição não-linear utilizando computadores e softwares facilita o trabalho dos montadores, além
de permitir outras possibilidades estéticas com o uso de efeitos visuais gerados por computação gráfica.

Isto tudo reforça a imaterialidade do produto audiovisual que temos hoje. Abandonar a película ou
a fita de vídeo não representa apenas uma melhora ou piora na qualidade estética da imagem, mas também,
o abandono dos últimos resquícios de aura na visão benjaminiana. Para Walter Benjamin (1985), todas as
obras de arte possuem uma aura, elemento que as torna únicas. O aparecimento das técnicas de reproduti-
bilidade fez com que esta aura fosse quebrada. Assim, a materialidade das obram e das imagens deram lugar
um fenômeno de proliferação e difusão destas. A perda desta aura não representa apenas uma simples mu-
dança nos meios de produção audiovisuais, mas também, a própria noção de quem é capaz de criar filmes.

Na década de 1990, o público, sobretudo, uma pequena parcela da classe média, já se encontrava na
posição de produtor de conteúdos audiovisuais através de câmeras filmadoras de uso doméstico. A partir
da tecnologia do vídeo analógico, alguns formatos utilizados por estas filmadoras como o VHS-C, popular-

359. Bitola é a largura de uma película cinematográfica. Os primeiros filmes possuíam 35 mm de largura. Outros formatos de bitolas foram também
bastante usados como os de 16 mm ou os de 8 mm.

645
mente chamado de mini VHS, traziam a possibilidade de gravar e reproduzir as gravações nos videocassetes
com o uso de um adaptador.

Ainda assim, não era um processo tão simples e barato, a edição das imagens só era possível com
dois videocassetes. Com a chegada das filmadoras domésticas digitais (as handycams) ao mercado, nos anos
2000, a produção de imagens audiovisuais por um público maior e mais heterogênio economicamente, fi-
nalmente foi possível.

Outro equipamento essencial neste processo foi o computador, que se tornou um eletrodoméstico
presente nas casas da população. Unindo isto a sites de compartilhamento de vídeos digitais como o youtube,
o dailymotion, o vimeo, chegamos à fórmula básica para o início de uma produção de vídeos por um público,
que até então, era apenas espectador. Este, talvez seja o ponto de divisão entre uma sociedade audiovisual
de espectadores para uma sociedade audiovisual de criadores. “Não é á toa que a revolução tecnológica que
marca essa época se concentrou não na escrita [...] mas no registro, reprodução e difusão de sons e imagens.
Dessa segunda revolução emerge uma cultura planetária eminentemente audiovisual na qual as pessoas se
inserem e com a qual convivem” (COSTA, 2013, p.21).

Com tudo isto, as novas tecnologias de produção/recepção audiovisuais transformaram, de forma


permanente, nossa cultura. As formas de fruição do cinema e do vídeo não vêm apenas das salas de exibi-
ções convencionais, tão pouco, dos aparelhos de televisão. A fruição (espectatoriedade) acontece também
nos computadores, laptops, tablets, videogames, aparelhos de celular e tantos outros equipamentos.

É possível afirmar que hoje, viver em nossa sociedade seja inviável sem a presença de todas estas
telas, afinal, quem tem um smartphone e não acessa conteúdos audiovisuais? O cinema não está apenas na
tela grande, mas principalmente, na pequena. O próprio ser humano do presente parece não viver mais no
mundo físico e palpável ao seu redor, e sim, em um universo paralelo, onde as portas de acesso são estas
inúmeras telas que cercam nosso cotidiano. Além de toda a interatividade prometida pela televisão digital,
da utilização de serviços de compras e da exposição de informações (nossas) personalizadas. Tecnologias
como realidade virtual e realidade aumentada já existem e estão presentes. O que esperar do futuro?

O que é o cinema no contexto escolar?

É dentro deste panorama que conceitos como o de cinema expandido cunhado por teóricos da
imagem como Gene Youngblood na década de 1970360 parecem fazer mais sentido. E são justamente tais fe-
nômenos de hibridação do cinema, do vídeo, das tecnologias digitais que permitem uma possível produção
de cinema (dentro de um conceito mais amplo e expandido) nos ambientes educacionais. Segundo Adriana
Fresquet (2013, p.61), nos podemos “olhar” para o cinema, “fazer cinema” e “fazer cinema na escola com
crianças e adolescentes”.

Neste caso, a criança e o adolescente podem ser realizadores de filmes e as escolas, ONG, instituições
educacionais, se tornam estúdios, locações e locais de experimentações. O propósito de tais vivências não é
formar cineastas, diretores de fotografia, montadores, cenógrafos ou figurinistas profissionais, mas sim, per-
mitir com que o aluno tenha contato com a arte cinematográfica. Que ele seja capaz de compreendê-la em
seu todo, de decodificá-la e de fazer um melhor uso dela, não apenas como espectador crítico e consciente,
mas também como produtor em seus diversos usos contemporâneos, que vão desde a criação de tutoriais
com fins informativos e pedagógicos até videodiários.

360. O conceito de cinema expandido foi proposto na década de 1970 pelo teórico Gene Youngblood. Em tais proposições, ele sugere um alarga-
mento nos conceitos de cinema e audiovisuais, isto influenciado pela convergência das mídias, contemplando também outras expressões como os
ambientes virtuais, a videoarte, as instalações, dentre outras (SATT, 2009).

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Não usamos câmeras com películas ou resoluções digitais altíssimas, mas podemos criar ambientes
próximos a estruturas profissionais com divisões de trabalho e funções como na indústria cinematográfica
(enquanto um aluno filma, outro interpreta diante das câmeras e outro dirige a cena). Podemos manejar
objetos similares aos usados em filmagens profissionais como claquetes, rebatedores de luz, isto para que o
aluno visualize o que acontece em uma produção profissional, mesmo com materiais e equipamentos não
profissionais (celulares, folhas de isopor substituindo rebatedores, claquetes feitas de papelão).

Podemos também chamar isto tudo de cinema, no entanto, realizado na escola. Da mesma forma
que assistimos a filmes, não na sala de cinema convencional dos shoppings, mas na sala de aula. O filme,
independente da mídia utilizada para sua criação, seu armazenamento ou sua exibição, seja película, fita
eletromagnética, suporte digital material ou imaterial (nuvem), permanece sendo filme, mesmo que even-
tualmente sua qualidade em termos de imagem diminua ou as condições de recepção sejam diferentes da
sala escura. Todas estas ações (produzir e assistir a filmes na escola) podem ser consideradas cinema no
contexto escolar.

Desta forma, quando utilizamos a expressão cinema no contexto escolar, estamos nos referindo a
todas as atividades educacionais do Componente Curricular Cinema e da linguagem artístico/cultural de
mesmo nome que são possíveis (e necessárias, pedagógica e ideologicamente falando) de serem realizadas
dentro da escola de educação formal. “Se parece pretensioso falarmos em produção de cinema na escola,
falemos então na produção de um audiovisual na escola [...]” (FANTIN, 2006, p.316, grifo da autora), no
entanto, como vimos no decorrer deste capítulo, cada expressão audiovisual tem suas particularidades. É
possível sim, realizar outras formas de audiovisuais na escola. O aluno pode produzir programas jornalís-
ticos no contexto escolar, peças publicitárias, gravações de videoclipes a serem distribuídos pela internet.
Isto tudo acompanhados por uma teoria pedagógica. Temos o campo da mídia-educação que se ocupa de
pesquisas de todas estas expressões, inclusive do cinema no contexto escolar.

O perigo, na verdade, de confundirmos os termos cinema e audiovisual, é lidar com o cinema como
se estivéssemos lidando com a televisão ou com outra linguagem audiovisual. Alan Bergala, que foi incum-
bido de implantar o ensino de cinema em escolas francesas de educação básica no início dos anos 2000,
afirma que quando se tornou

[...] responsável pelo cinema dentro do plano para a arte na escola, o sintagma enrijecido
“cinema-e-audiovisual” estava terrivelmente em vigor, tanto no ministério como em todo
o campo pedagógico. Minha posição constituiu simplesmente em afirmar que seria pre-
ciso, por um lado renunciar à palavra audiovisual – demasiado imprecisa, já que nunca
se sabe se remete a uma montagem de slides sonorizados ou à televisão pública, o que
evidentemente não tem nada a ver, ou ainda a outras técnicas que recorrem a um misto de
imagens e sons. E, em seguida, afirmar que se o objeto desta missão era a arte, esta compa-
rece muito pouco na televisão, excetuando-se precisamente o que provem do imaginário
do cinema (2008, p.52).

Com isto, apesar da ingenuidade de pensarmos que os termos e as nomenclaturas nada influenciam
no produto final, eles carregam em si uma significação em nossas mentes capaz de agregar muito em nossos
objetivos enquanto educadores no âmbito do universo da arte. Assim, utilizar a expressão cinema no con-
texto escolar é considerar a possibilidade de educarmos e aprendermos para o uso e consumo consciente
das imagens, das narrativas fílmicas, das novas tecnologias, da arte e até mesmo, do cinema no contexto
geral. Educamos no campo das letras, da matemática, da história e de tantas outras ciências fundamentais
à formação do ser humano. Por que não alfabetizar também para o cinema, que é uma arte tão antiga e tão
presente no cotidiano de nossos alunos?

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REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua repro- FRESQUET, Adriana. Cinema e educação: reflexões e
dutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: experiências com professores e estudantes de educação
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte, MG:
Brasiliense, 1985, p. 165-196. Autêntica Editora, 2013.
BERGALA, Alain. A hipótese-cinema. Rio de Janeiro: MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas.
Booklink; CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2008. Campinas, SP: Papirus, 1997.
COSTA, Cristina. Educação, imagem e mídias. São Pau- MASCARELLO, Fernando. História do cinema mun-
lo: Cortez, 2013. dial. Campinas, SP: Papirus, 2006
FANTIN, Mônica. Crianças, cinema e mídia-educação: SATT, Maria Henriqueta Creidy. Cinema expandido:
olhares e experiências no Brasil e na Itália. 2006. Tese estratégias e conceitos audiovisuais. Famecos/PUCRS,
(Doutorado) apresentada à Universidade de Federal de Porto Alegre, nº 22, p. 11-13, dez. 2009.
Santa Catarina.

648
MEMÓRIA OU A PERSISTÊNCIA
DA LEMBRANÇA
Dado Sodi – UFPE/UFPB

A cerca do plano da memória, Ricoeur (2007) realiza a seguinte reflexão fenomenológica361:


“lembrar-se de alguma coisa é, de imediato, lembrar-se de si” (2007, p.23). Eis a constatação que alimenta
as linhas a seguir. É interessante ainda perceber que Bergson362 (1896), referindo-se ao ato de ‘lembrar-se de
algo ou alguém’, diferentemente da ideia de profundidade aludida por expressões populares como ‘ir fun-
do nas memórias’ ou ‘mergulhar nas memórias’, opta pela sugestão a algo elevado, superior. Construindo,
assim, uma metáfora na qual equipara a memória a uma encosta a ser escalada. Desta forma, faz com que
Ricoeur, ao “conversar” com a reflexão do autor, associe o verbo lembrar ao verbo subir. Tal representação
será amplamente referida ao longo deste texto.

Ora, se a ação de lembrar é metaforicamente uma ação de subir, subindo-se, eleva-se a um es-
paço denominado cima. E de cima, tem-se uma visão mais ampla, mais abrangente, tornando possível
entender conexões e traçar relações improváveis de serem executadas anteriormente, devido à proximi-
dade sujeito-objeto. E se o ato de lembrar-se de algo é também lembrar-se de si mesmo, constatamos,
então, que “subir a encosta” da memória nos leva a olhar de cima para ter uma visão melhor e mais ampla
de nós mesmos. Este é o distanciamento necessário para a compreensão de um determinado fenômeno.
Se eu conhecesse a metáfora de Bergson antes, talvez não tivesse ficado tão surpreso ao perceber que
investigando meu processo criativo, eu investigava minha memória e consequentemente investigava a
mim mesmo.

Para começarmos a “subir a encosta” da minha vida passada, retomamos uma experiência vivida
no segundo semestre de 2012. Período no qual, comecei a exercer a função de professor de interpretação no
Curso de Teatro da Casa Mecane363, aí permanecendo até o primeiro semestre de 2016. O curso era dividi-
do em três módulos, cada um com duração de quatro a cinco meses. A primeira turma iniciou o Módulo
I em agosto de 2012 e finalizou em dezembro do mesmo ano. Como conclusão daquela etapa, realizei com
os alunos uma montagem pedagógica intitulada ‘Então, bate!’. Esta foi a minha primeira experiência como
diretor de um espetáculo teatral. Efetivamente, estive a frente do processo criativo de todos os elementos de

361. Esta reflexão está ancorada na fenomenologia husserliana, pois, segundo Ricoeur : “Privilegiou-se, nessa herança, a indagação colocada sob o
adágio bem conhecido segundo o qual toda consciência é consciência de alguma coisa” (2007, p. 25).
362. “É privilégio da lembrança-representação permitir-nos voltar a subir ‘a encosta de nossa vida passada para nela buscar uma determinada
imagem’”. BERGSON, Henri. Matière et Mémoire. Essai sur la relation du corps à l’espirit (1896). Paris: PUF, 1963. p. 227 apud RICOEUR (2007,
p.44).
363. Casa Mecane foi um espaço cultural fruto de uma iniciativa minha que mantive em Recife (PE), entre os anos de 2011 e 2016. Nele, havia um
café, aulas de Teatro e Dança, apresentações de espetáculos e pocket shows e um espaço para exposição de Artes Visuais. Apesar de o espaço cultural
ter sido fechado, a Casa Mecane continua existindo como uma empresa de produção cultural. Além disso, junto a ex-alunos de diferentes turmas do
Curso de Teatro, criei a Cia. Mecane.

649
composição cênica: iluminação, sonoplastia, cenário, figurino e maquiagem. Assumi, até mesmo, um papel
similar ao do dramaturgo. Pois o texto que escolhi para a montagem não se tratava de uma peça, mas, de um
romance de Nelson Rodrigues (1912-1980) intitulado A Mentira (2010). Sendo assim, eu me encarreguei de
fazer a adaptação do texto de romance para drama.

No início dos ensaios, levei duas imagens para, a partir delas, construir a composição visual das
cenas. Ao final, a plasticidade e os significados identificados pelos alunos e por mim naquelas imagens es-
tavam presentes ao longo do espetáculo. Essa prática configurou-se, assim, como um recurso criativo para
a composição cênica, no qual, a imagem pictórica de uma obra bidimensional foi tomada como referência,
direta ou indireta, para a criação da cena tridimensional no palco.

Esta é uma experiência que diz muito sobre o caminho que percorri até então e sobre as refe-
rências que tomaram parte na minha formação estética. Recorrer às imagens pictóricas como inspiração
para a composição visual passou a ser, desde aquele momento, um importante recurso no meu processo
criativo cênico.

Pertenço a uma geração que cresceu sendo incessantemente submetida a um bombardeio imagético,
através da fotografia e do vídeo. Fluxo que tomou dimensões superlativas com a popularização da internet. É
compreensível, portanto, que as imagens tenham exercido uma forte influência na minha formação estética.
Porém, para entender como cheguei a esse processo de criação cênica a partir da referência à plasticidade de
uma imagem, empreendo uma investigação das minhas lembranças, a fim de identificar quais impressões
se fizeram imprescindíveis para tal.

Na metáfora do bloco de cera proposta por Sócrates, ele concebe que nossas almas possuem um
bloco de cera maleável, sendo esta maleabilidade um tanto variável em consistência de um indivíduo para
o outro. Este mesmo bloco, quando submetido às sensações e aos pensamentos, como se fazia ao pressionar
sob a cera quente um anel com determinada marca ou “assinatura”, adquire as impressões que iremos recor-
dar, seja através de coisas que vimos, ouvimos ou recebemos no espírito (RICOEUR, 2007). Sócrates ainda
explica que “aquilo que foi impresso, nós o recordamos e o sabemos, enquanto a sua imagem (edidolon) está
ali, ao passo que aquilo que é apagado, ou aquilo que não foi capaz de ser impresso, nós esquecemos (epile-
lesthai), isto é, não o sabemos” (op. cit. p. 28).

Indo ao encontro das impressões que se mantiveram em mim, das recordações que me levaram
a esse saber, volto aos meus 13 anos de idade, quando assisti ao videoclipe da música Entre el mar y una
estrella364 (2000), interpretada pela cantora mexicana Thalia (1971-). Lembro-me de como fiquei fascinado
pela visualidade do vídeo, mas o impacto maior foi ao ler, algum tempo depois, que o vídeo era inspirado em
uma pintura da artista espanhola Remedios Varos (1908-1963). Naquele momento, eu não podia imaginar o
quanto aquela possibilidade criativa iria me influenciar. O que senti é que aquela ideia era o caminho para a
materialização do que minha imaginação já concebia ao olhar uma pintura ou fotografia. Frequentemente,
ao contemplar uma imagem, eu tendia a vê-la como um momento congelado no tempo. Imaginava o que
havia acontecido antes e o que aconteceria depois daquele instante.

Ostrower formulou “a ideia de a imaginação criativa vincular-se à especificidade de uma matéria, de


ser uma ‘imaginação específica’ em cada campo de trabalho. Haveria uma imaginação artística, uma imagi-
nação científica, tecnológica, artesanal, e assim por diante” (2008, p. 32). Hoje, parece-me que aquele jogo
lúdico era mais do que uma atitude comum ao universo infantil, mas um indício da imaginação artística in-
dicada por Ostrower (2008). E foi o encontro com o recurso utilizado na produção do videoclipe associado

364. ENTRE el mar y una estrella. Direção de Simón Brand. Intérprete: Thalia Sodi. S. I.: Emi, 2000. (3 min.), son., color. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=1kit9W0J4cA>. Acesso em: 11 maio 2017.

650
ao jogo lúdico da minha imaginação artística que deixou impresso em mim o recurso que veio a marcar o
meu processo de criação artística.

Essa referência ficou adormecida, mas bem viva dentro da minha imaginação por alguns anos. Até
vir a acessá-la, eu teria antes outro impulso em direção a esse processo criativo: as aulas de teatro que parti-
cipei como aluno. Especificamente, na Escola Sesc de Teatro365.

Neste que foi meu segundo curso de teatro, tive contato com a técnica de composição cênica cha-
mada Tableau Vivant (quadro vivo)366. Em sua origem, esta se referia apenas à reprodução de imagens pic-
tóricas fazendo uso de atores ou modelos para a fotografia. Com o passar do tempo, é incorporada ao teatro
como recurso de encenação.

Segundo Pavis367, a técnica do quadro vivo já era encontrada:

Na Idade Média e no Renascimento, mas a moda e a “teorização” remontam, sobretudo,


ao século XVIII. (...) O quadro vivo inaugura uma dramaturgia que descreve ambientes,
apreendendo a vida em sua realidade cotidiana e dando um conjunto de imagens poéticas
do homem com o auxílio de quadros de gênero. Supõe-se (...) que a imobilidade contenha
em germe o movimento e a expressão da interioridade. O quadro vivo se apresenta mais à
evocação de situações e condições que àquela de ações e de caracteres. Certas peças fazem
dele um uso sistemático. (...) Mas é antes de tudo no trabalho de encenação que esta técni-
ca do instantâneo é hoje reutilizada (PAVIS, 2008, p. 315) (grifos do autor).

A ideia de “quadros vivos” fundamentou em mim como artista uma profunda relação entre artes
visuais e artes cênicas. Assim como geralmente o pintor compõe sua obra a partir de uma tela em branco,
o diretor também compõe seu espetáculo a partir de um palco em branco. Ou melhor, muitas vezes, a
partir de uma caixa cênica preta368. Ambos preenchem o vazio. E nesse processo de ocupação, pintando
ou encenando, a imaginação é a principal ferramenta, trazendo consigo o que a memória registrou como
referência.

Ao iniciar o processo criativo como diretor de ‘Então, bate!’, eu tinha em mente a composição cê-
nica como um “quadro vivo”, mas não trazia conscientemente a referência bem mais anterior do videocli-
pe. Provavelmente, pelo fato de que a técnica do Tableau Vivant tinha sido adquirida em um contexto de
aprendizagem formal, no qual, foi-me oferecido um nome para o recurso e a chancela de uma metodologia
do uso. Enquanto a imagem do videoclipe é uma referência adquirida informalmente através dos meios de
comunicação e por uma cultura de massa. Ademais, não foi discutido no curso de teatro os desdobramentos
ou as possíveis influências do Tableau Vivant em outras formas de expressão como o cinema, por exemplo.
Expressão a qual abrange a produção de videoclipes.

No entanto, é provável que a forte identificação com essa técnica se deu por já haver em mim,
inconscientemente (até então), um sentimento de reconhecimento. Uma espécie de empatia estética com

365. A Escola Sesc de Teatro, no Sesc Piedade (Jaboatão dos Guararapes/PE) era um curso regular de teatro, com aulas de segunda à quinta e dura-
ção de dois anos. Eu fui aluno entre os anos de 2007 e 2008. O curso ainda existe, porém, agora é denominado Curso de Interpretação para Teatro.
366. Encenação de um ou vários atores imóveis e congelados numa pose expressiva que sugere uma estátua ou uma pintura. (PAVIS, Patrick. DICIO-
NÁRIO DE TEATRO. 3 ed. São Paulo: Pespectiva, 2008.)
367. Op. Cit. p. 315.
368. O palco mais comum e amplamente difundido em todo o mundo é o palco com vista à italiana. Trata-se de um palco delimitado por vestimentas
cênicas pretas, o que faz com que se assemelhe a uma caixa preta. Nesta formatação cênica, a plateia fica situada em posição frontal em relação ao
palco. Assim, observa à cena “enquadrada” em uma espécie de moldura chamada comumente de boca de cena. Mais um elemento propício a ver a
cena como uma pintura, um quadro, um quadro vivo.

651
aquela visualidade alcançada pelo uso do recurso, relacionando-se com a imagem que tinha me impres-
sionado em um videoclipe há alguns anos. De forma tal que, ao deparar-me frente ao primeiro processo
criativo cênico como diretor, foi a essas imagens-memórias que recorri.

Ostrower (2008) compreende:

Que todos os processos de criação representam, na origem, tentativas de estruturação,


de experimentação e controle, processos produtivos onde o homem se descobre, onde
ele próprio se articula à medida que passa a identificar-se com a matéria. São transferên-
cias simbólicas do homem à materialidade das coisas e que novamente são transferidas
para si. Formando a matéria, ordenando-a, configurando-a, dominando-a, também o
homem vem a se ordenar interiormente e a dominar-se. Vem a se conhecer um pouco
melhor e a ampliar sua consciência nesse processo dinâmico em que recria suas poten-
cialidades essenciais (2008, p. 53).

Nesse processo, não realizei uma referência visual que tencionava ser idêntica à original. Segui-
mos com Ostrower (2008): “Todo processo de elaboração e desenvolvimento abrange um processo dinâ-
mico de transformação, em que a matéria que orienta a ação criativa, é transformada pela mesma ação”
(2008, p. 51). O resultado alcançado é fruto de uma série de aproximações pictóricas e relações visuais
estabelecidas com a imagem inspiração. Algo naturalmente diferente do que havia me impressionado no
videoclipe, uma vez que cada forma de expressão guarda possibilidades próprias aos meios que utiliza.
Uma adequação que se explica na fala de Ostrower (2008) quando ela afirma que a “imaginação criativa
levantaria hipóteses sobre certas configurações viáveis a determinada materialidade. Assim, o imaginar
seria um pensar específico sobre um fazer concreto” (2008, p. 32) (Grifos da autora). Lidando, então, com
a materialidade do que compunha a cena teatral, o resultado ainda distingue-se do uso primário do Ta-
bleau Vivant, quando a imobilidade era mantida. Enquadrando-se, portanto, no uso enquanto recurso de
encenação, mencionado por Pavis (2008).

A aplicação do recurso enfrentou a diferença “entre possuir um saber e utilizá-lo de forma ativa, do
mesmo modo que ter uma ave nas mãos é diferente de tê-la na gaiola” (RICOEUR, 2007, p.29). Eu já havia
contemplado o pássaro, mas ele estava na gaiola. Ao iniciar o processo de montagem do espetáculo ‘Então,
bate!’, tive que lidar com o pássaro em minhas mãos pela primeira vez. Resultou que, passo a passo, fui ten-
tando fundamentar uma forma própria de criar cenas a partir das imagens. Sendo a primeira vez que fazia
uso do recurso, necessitava de ajustes e aprimoramentos para aplicar a técnica que somente o tempo e a prá-
tica didática forneceriam. Ainda mais por se tratar de um espetáculo pedagógico que demandava posturas
e etapas próprias ao processo de ensino-aprendizagem.

Fato é que eu havia sido afetado por aquelas impressões e a experiência de dirigir ‘Então, bate!’, doze
anos após o primeiro contato com o videoclipe e cinco anos após as aulas do curso de teatro, evidenciam a
tamanha intensidade dessas memórias. Pois, hoje, ao me propor a mapear as referências que fundamenta-
ram esse saber em mim, eu as encontro presentes nas minhas recordações.

Para Ricoeur (2007),

A recordação consiste numa busca ativa. Por outro lado, a simples lembrança está sob o
império do agente da impressão, enquanto os movimentos e toda a sequência de mudan-
ças que vamos relatar têm seu princípio em nós. Mas, o elo entre os dois (...) é assegurado
pelo papel desempenhado pela distância temporal. O ato de se lembrar produz-se quando
transcorreu um tempo. E é esse intervalo de tempo, entre a impressão original e seu retor-

652
no, que a recordação percorre. Nesse sentido, o tempo continua sendo a aposta comum à
memória-paixão e à recordação-ação (2007, p. 37).

Recorrer às imagens para a criação cênica foi uma ‘recordação-ação’ que me levou ao encontro de
‘memórias-paixões’ que, por sua vez, contribuíram para minha formação estética. Alcançando primeiro as
aulas de teatro nas quais aprendi sobre o Tableau Vivant e, hoje, empreendendo uma busca no meu passado,
a lembrança de um videoclipe que considero minha primeira impressão com esse processo criativo. Ricoeur
(2007) adverte que o esforço de recordar pode ser bem sucedido ou não; e quando a recordação obtém
sucesso, ele a chama de memória ‘feliz’. Refletindo sobre como me sinto ao reencontrar essas lembranças,
entendo o porquê do autor fazer uso deste adjetivo para classificar a recordação bem sucedida.

Há outras imagens que estiveram presentes ao longo da minha vida e principalmente da minha
formação como artista, mas que, no entanto, eu não as percebia presentes na criação cênica referenciada por
imagens pictóricas. Refiro-me aos filmes do espanhol Pedro Almodóvar (1949-).

Meu primeiro contato com a estética de Almodóvar aconteceu durante a noite de 08 de setembro de
2001, ao assistir o filme Carne Trêmula369 (1997). Eu tinha 14 anos de idade e fiquei fascinado por aquelas
imagens de cores tão intensas. Naquele momento, não fiz nenhuma associação com o que havia visto por
volta de um ano antes no videoclipe já mencionado. Não sabia que aquele filme continha cenas criadas como
referência à imagem pictórica de uma pintura370. Vemos nessa construção visual uma espécie de versão cine-
matográfica da técnica do Tableau Vivant. Deixando claro que essa não é uma relação apontada por estudos
da cinematografia, mas um ponto de vista levantado por esse estudo, ao lançar um olhar sobre o cinema a
partir de uma perspectiva teatral.

No universo dos estudos cinematográficos, o processo de citação a uma obra pictórica em uma
cena vem sendo tratado por uma abordagem intertextual, levando as pesquisas a terem um forte enfoque
no campo da semiótica. Para esta pesquisa, porém, interessa uma investigação do processo criativo, algum
entendimento do fazer artístico e não uma análise da obra artística “final”. Como mais resumidamente de-
fine Salles (2007), este estudo “não é uma interpretação do produto considerado final pelos artistas, mas do
processo responsável pela geração da obra” (p. 13).

Continuei assistindo os filmes de Almodóvar com um fascínio cada vez maior. E quando comecei
minha formação profissional artística, em 2006, passei a ter nesses filmes uma grande referência para mim
como artista, principalmente, pelo forte apelo visual. Porém, ainda não havia identificado neles o recurso
criativo que tanto me interessava. Até que, em 2015, ao assistir pela segunda vez o seu décimo oitavo fil-
me, A Pele Que Habito371 (2011), dei-me conta de como os quadros que compunham a cenografia da obra
eram representados pela partitura corporal dos atores ou pelos elementos de composição cênica. Tornou-
-se evidente que aquela construção visual se configurava como parte significativa do estilo do artista, pois,
começando a pesquisar, verifiquei que tal característica está presente em vários momentos da sua produção
cinematográfica. Fiquei tão impressionado com essa construção visual nas obras de Almodóvar que fiz dela
o meu objeto de pesquisa acadêmica. Sem perceber, no entanto, o quanto eu tinha de afinidade com aquela
construção visual. Já que o processo de criação e as apresentações do espetáculo ‘Então, bate!’ haviam sido
encerrados desde 2014. E quanto à memória do videoclipe, eu não a acessava há ainda mais tempo.

369. CARNE Trêmula. Direção de Pedro Almodóvar. Produção de Agustín Almodóvar. Roteiro: Pedro Almodóvar, Jorge Guerricaechevarría, Ray
Loriga. Música: Alberto Iglesias. Madrid: El Deseo S.A., 1997. (97 min.), son., color. Legendado.
370. A pintura em questão é a obra Dânae a receber a chuva de ouro (1551-53), do pintor italiano conhecido como Ticiano (1473/1490-1576).
371. PELE que habito, A. Direção de Pedro Almodóvar. Produção de Agustín Almodóvar, Esther García. Roteiro: Pedro Almodóvar, Agustín Almo-
dóvar, Thierry Jonquet. Música: Alberto Iglesias. Galícia, Madrid, Toledo: El Deseo S.a., 2011. (117 min.), son., color. Legendado.

653
A fim de empreender uma pesquisa sobre aquele recurso criativo identificado no filme de Almo-
dóvar, iniciei o processo de submissão e seleção para o Mestrado em Artes Visuais naquele mesmo ano. Ao
ingressar no programa, estava seguro de que me tornaria um expert em Pedro Almodóvar. Era apenas o
início de um percurso labiríntico – exatamente como nos filmes do cineasta – que me levou ao encontro de
uma afinidade muito mais profunda entre a construção visual a qual eu me propunha a estudar e a minha
própria produção artística.

Um projeto científico deve se permitir ser dinâmico, auto transformável a cada aplicação, a cada
fase do processo investigativo (IASBECK, 2004). É por esse caminho de transformação que a pesquisa segue,
no qual nós nos perdemos para nos encontrarmos. E vemos uma inquietação pessoal desvelar-se em um
sentimento de real identificação visual, um reencontro com a mesma empatia estética que senti há 16 anos
quando soube que o videoclipe Entre El Mar Y Una Estrella (2000) havia sido inspirado em uma pintura.

Com o percurso até aqui percorrido, quero evidenciar que essa pesquisa iniciou com a intenção de
estudar, como já mencionei, a construção visual realizada por Almodóvar em seus filmes. No entanto, logo
no princípio dos estudos, a investigação apontou evidências da relação desta construção visual com o meu
próprio processo criativo. Esta não era uma influência consciente até aquele momento. Eu percebia sim a
influência de Almodóvar, mas, em outros elementos. Como na composição cênica com forte apelo visual,
um dos aspectos mais famosos e estudados do cineasta, e até mesmo, na escolha do título. Pois, assim como
em Ata-Me372 (1989), o título do filme é pronunciado em determinado momento por uma das personagens,
eu elaborei uma estrutura similar para ‘Então, bate!’, no qual, o título da peça era pronunciado em dois mo-
mentos por diferentes personagens. Contudo, não me dei conta da influência na composição visual da cena
a partir da referência a imagens pictóricas. Foi quando busquei identificar como eu havia percebido aquela
construção visual no filme A Pele Que Habito (2011) e por que eu havia me debruçado sobre ela como meu
objeto de pesquisa. Perguntas, cujas respostas residiam sutilmente no plano da consciência, mas que esta-
vam profundamente relacionadas no plano criativo.

Uma relação que pode parecer evidente ao ler este relato, mas que não era assim, até eu empreen-
der uma busca nas minhas memórias. Levo em conta que constatações aparentemente óbvias podem ficar
um tanto difusas para quem está mergulhado no processo criativo. Apenas tornando-se mais claramente
acessíveis após um distanciamento temporal. O “intervalo de tempo” citado por Ricouer (vide citação p. 5).

Foi preciso esse distanciamento temporal e uma análise do meu processo criativo para perceber que
fenômenos que aparentemente se tratavam de escolhas estéticas meramente baseadas no meu gosto e apreço
por determinadas expressões artísticas são, na verdade, frutos de uma série de relações estabelecidas e em
constante reestruturação ao longo da vida.

Uma vez identificado o paralelo entre os processos criativos, ficou claro que eu não poderia partir
de outro ponto, senão de onde me encontro. E, de fato, hoje compreendo que nunca partimos de outrem,
mas sempre de nós mesmos. Uma percepção que não visa, de forma alguma, tornar qualquer processo de
busca egocêntrico. Ao contrário, fornece uma base, a partir da qual, pode-se lançar um olhar muito mais
amplo do seu entorno.

Emergindo dessa percepção a necessidade de “subir a encosta” da minha vida passada para nela
buscar determinadas imagens que constituem o imaginário do meu fazer artístico. Eis a importância da
memória no processo criativo. Não há criação sem referência. Ninguém cria a partir do nada. Se ensinar-
mos a um estudante de arte que tudo que ele viveu é o ponto de partida para o seu trabalho, estaremos

372. ATA-ME!. Direção de Pedro Almodóvar. Produção de Enrique Posner. Roteiro: Pedro Almodóvar, Yuyi Beringola. Música: Ennio Morricone.
Madri: El Deseo S.a., 1990. (97 min.), son., color.

654
fornecendo-lhe a confiança necessária para arriscar-se na criação, pois ninguém dominará melhor do
que ele o registro imaterial dos fatos: as suas memórias (Grifo nosso).

Sendo assim, a pesquisa encaminhou-se para um mapeamento das referências que contribuíram
para a construção visual das minhas próprias criações artísticas. É quando eu me proponho à ação de recor-
dar e surge a consciência da relação entre o recurso utilizado no videoclipe, com a técnica do Tableau Vivant
apreendida nas aulas de teatro e a influências dos filmes de Pedro Almodóvar na minha formação estética,
desembocando no processo criativo de ‘Então, bate!’.

Portanto, concluo com uma citação que representa a transformação do estudo, do qual este relato é
parte integrante, e que resultou na minha dissertação de Mestrado.

Para Munro (1997):

Uma história não é um caminho a seguir... É mais como uma casa. Você entra e
fica lá por um tempo, andando de um lado para o outro [...] e descobrindo como
quartos e corredores se relacionam uns com os outros, como o mundo lá fora é
alterado quando visto destas janelas. E você, o visitante, o leitor, é também altera-
do por estar neste espaço fechado, quer ele seja amplo e confortável ou cheio de
curvas sinuosas [...]. Você pode voltar muitas vezes, e a casa, a história, sempre
contém mais do que você viu da última vez. Ela também tem uma forte percepção
de si mesma, de ter sido construída por sua própria necessidade, não apenas para
lhe abrigar ou lhe iludir (1997, p. 35, tradução minha).

Mapa Conceitual Imagético – Processo Criativo de ‘Então, bate!’.

Fonte: fotografias do acervo pessoal do autor e imagens da internet. Arte gráfica: Júnior Melo (2018).

655
REFERÊNCIAS

ATA-ME!. Direção de Pedro Almodóvar. Produção de MUNRO, Alice. Selected Stories. New York: Vintage
Enrique Posner. Roteiro: Pedro Almodóvar, Yuyi Berin- Books, 1997.
gola. Música: Ennio Morricone. Madri: El Deseo S.a.,
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Cria-
1990. (97 min.), son., color.
ção. 23 ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo:
PAVIS, Patrick. Dicionário de Teatro. 3 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1993.
Pespectiva, 2008.
CARNE Trêmula. Direção de Pedro Almodóvar. Produ-
PELE que habito, A. Direção de Pedro Almodóvar. Pro-
ção de Agustín Almodóvar. Roteiro: Pedro Almodóvar,
dução de Agustín Almodóvar, Esther García. Roteiro:
Jorge Guerricaechevarría, Ray Loriga. Música: Alberto
Pedro Almodóvar, Agustín Almodóvar, Thierry Jonquet.
Iglesias. Madrid: El Deseo S.A., 1997. (97 min.), son., co-
Música: Alberto Iglesias. Galícia, Madrid, Toledo: El De-
lor. Legendado.
seo S.a., 2011. (117 min.), son., color. Legendado.
ENTRE el mar y una estrella. Direção de Simón Brand.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimen-
Intérpretes: Thalia Sodi. S. I.: Emi, 2000. (3 min.), son.,
to. 05 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
color. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=1kit9W0J4cA>. Acesso em: 11 maio 2017. RODRIGUES, Nelson. A Mentira. Rio de Janeiro: Agir,
2010.
IASBECK, Luiz Carlos Assis. O Método semiótico de
Pesquisa Científica. 2004. Disponível em: <http://www. SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado. 3. Ed. São
usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=33300&cat= Paulo: Annablume, 2007.
Artigos&vinda=S>. Acesso em: 11 set. 2016. TICIANO. Dânae a receber a chuva de ouro, 1551-53. 1
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido original de arte: óleo sobre tela; 129 x 180 cm. Museo Na-
Comunista. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. cional del Prado.

656
INTERFACES DA FOTOGRAFIA
NAS AULAS DE ARTE: UM ESTUDO DE CASO
Maria José Negromonte-Oliveira (PCR)
Taciana Pontual da Rocha Falcão (UFRPE)

1. Introdução

Essa pesquisa averiguou o uso de mídias digitais utilizadas no Ensino de Arte de forma integrada
ao currículo escolar. É uma pesquisa de abordagem qualitativa que foi realizada com 20 professores de Arte
da Rede Municipal de Ensino do Recife (RMER) e com os estudantes do 6º ao 9º Ano, da Escola Municipal
Pedro Augusto (EMPA), em Recife, nas aulas de Artes. Nessa investigação, verificamos em que medida os
professores de Arte da RMER trabalham os conteúdos de Artes Visuais por meio de mídias digitais, anali-
sando as formas e as condições de uso dessas tecnologias na RMER. A aplicação de questionários com 20
professores de Arte auxiliou a mapear o uso de mídias digitais nas aulas de Arte. Porém, esses resultados não
serão detalhados nesse texto. Os dados coletados indicaram que apesar da unanimidade sobre a importância
de usar TICs, nem todos os professores entrevistados a utilizam nas aulas.

Os pilares de sustentação dessa pesquisa estão nos pressupostos de teóricos que discutem sobre
Arte, Ensino de Arte e Tecnologias, como Ana Mae Barbosa (2012), Arantes (2005), Nunes (2007), Ostrower
(2010), Santaella (2012), entre outros. Por intermédio da Arte, o homem busca sua realização pessoal, cul-
tural e histórica, demonstrando por diferentes formas artísticas seu processo de criação. Para melhor funda-
mentar esse estudo realizamos uma revisão sistemática nos Anais do Confaeb – Congresso Internacional de
Arte Educadores do Brasil, promovido pela FAEB - Federação de Artes do Brasil. Nesse acervo selecionamos
18 experiências de escolas brasileiras, a fim de aprofundar o conhecimento sobre as possibilidades de uso
das mídias digitais, como ferramentas no ensino de Arte.

Outra fase da pesquisa consistiu de um estudo de caso realizado na Escola Municipal Pedro Augusto
em colaboração com a professora de Arte, realizando 4 projetos com os estudantes, em que as TICs deram
suporte pedagógico aos conteúdos de Artes e contribuíram para as construções poéticas dos estudantes.
Algumas dessas aulas foram acompanhadas pela pesquisadora e a experiência vivenciada pela professora
Suzana Vital será descrita nos projetos apresentados nesse artigo.

Nos 4 projetos, a fotografia foi a modalidade mais explorada, seja para fazer retratos ou autorretratos
(“selfies”). Nas produções utilizaram-se câmeras fotográficas, aparelhos celulares e computadores para editar
as imagens. As fotografias serviram para contextualização e inspiração dos estudantes para a realização de
documentários, micro metragens e filmes de animação editados com os recursos do software Movie Maker e
o aplicativo Photo Grid para a técnica do Stop Motion. Outros aplicativos empregados foram o Long Exposure

657
2, para desenhar com Light Paint (técnica que permite desenhar com luzes coloridas, enquanto a câmera capta
as imagens geradas pelos movimentos da luz); e Green Screen Lite, para aplicar em fotografias com Chroma Key
(técnica de substituição de cenários em imagens captadas com determinados tons de verde ou azul).

Os experimentos vivenciados pelos estudantes apresentaram a fotografia em aspectos conceituais,


técnicos e tecnológicos. A fotografia foi empregada como recurso de transmissão de produções realizadas
por diferentes artistas ou como ferramenta do fazer artístico, ou seja, as fotografias foram utilizadas nas
aulas tanto como veículo de aprendizagem, quanto como instrumento facilitador de criações poéticas sig-
nificativas.

Estruturamos o artigo com uma breve contextualização da educação, da Arte e das tecnologias, a
interação entre a Arte e as TICs, com enfoque especial para a fotografia. Sintetizamos os métodos, análises
e as discussões sobre os resultados obtidos. Por fim, tecemos as considerações finais. Com isso, almejamos
ampliar o acesso dos estudantes a diversas produções artísticas, proporcionando nutrição estética e expe-
riências poéticas por meio de mídias digitais que perpassam pelos novos paradigmas contemporâneos da
produção em Arte.

2. Interfaces da educação, da arte e das tecnologias

É pela Arte que se vê a busca incessante do homem por realização pessoal, cultural e histórica.
Demonstrada por diversas manifestações artísticas. Nesse sentido, podemos considerar a Arte como uma
linguagem universal, atemporal e etnocêntrica. 

A Arte é inerente ao homem. Por meio dela as pessoas desenvolvem melhor sua criatividade, afeti-
vidade e percepção do mundo, proporcionando mais humanização no cotidiano e uma melhor qualidade
de vida. Na Arte, a emoção é movimento e a imaginação dá forma e densidade à experiência de perceber o
entorno. Assim o sentir e o pensar podem criar imagens que se interiorizam no âmago do conhecimento.

A complexidade da Arte está justamente na relação que se estabelece entre os saberes e os indivídu-
os. Ernest Fischer (1983, p. 13) frisa que “a Arte é necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e
mudar o mundo. Mas, a Arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente”. É nesse contexto
poético que destacamos a importância da Arte e das tecnologias na era contemporânea.  

As linguagens artísticas mostram a dimensão estética presente na vida. A Arte não está confina-
da aos museus ou salas de espetáculos. Percebemo-la em todos os espaços, principalmente por meio das
imagens multimidiáticas apresentadas em revistas, jornais, campanhas publicitárias, filmes, programas de
televisão, cinemas, videoclipes e outros.

Por meio das TICs, os educandos podem dialogar com as temáticas atuais, do nosso tempo e dos
mais diversos espaços, sejam físicos ou virtuais. Para Teles; Nino (2010, p. 293), “a Arte se alimenta de toda a
civilização de seu tempo, nela estão presentes as maneiras de pensar, viver e sentir, de interpretar a realidade,
de descobrir os ideais, identificar as tradições, esperanças e lutas de uma época”. Logo, é uma produção,
essencialmente, humana que transversaliza o tempo e os contextos culturais.

Na visão de Barbosa (2011, p. 1) “na Arte e na vida, memória e história são personagens do mesmo
cenário temporal, mas cada um se veste a seu modo”. Para ela, a “história intelectual e formal, usa a ves-
timenta acadêmica, enquanto a memória não respeita regras, nem metodologias, é afetiva e revive a cada
lembrança”. São essas lembranças que vamos cultuando ao longo da história e rememorando sob diferentes
movimentos e formas artísticas.

658
2.1 A Arte e as Tecnologias

No contexto das Tecnologias e da Arte, Nunes (2007, p. 21) faz a seguinte reflexão: “se a vida con-
temporânea pudesse ter também uma combinação capaz de nos fazer reiniciar nossos pontos de vista, cer-
tamente uma opção seria a confluência de três elementos: o contexto, a Arte e a tecnologia”.

A interação da Arte com as TICs proporciona nutrição estética (quando a Arte é empregada
como veículo) e amplia as experiências poéticas (quando ela é empregada como instrumento), por
meio de aplicativos, programas de software e sites que facilitam a produção em Arte e procuram inovar
a transmissão e aplicabilidade de conhecimentos. Contudo, para transformar uma prática se faz neces-
sário conhecer o contexto e a finalidade almejada com o uso efetivo das tecnologias, por professores e
estudantes. 

O uso das tecnologias contemporâneas possibilita a professor@s e alun@s desenvolverem


sua capacidade de pensar, fazer e ensinar Arte em uma vida contemporânea, representan-
do um componente importante na vida de quem aprende/ensina, uma vez que abrange
uma gama de possibilidades de conhecimento e expressão. Não se trata de substituir ma-
teriais e procedimentos já consagrados, mas de poder escolher o mais adequado processo
de construção do trabalho (PIMENTEL, 2007 p. 292).

Em meio às tecnologias empregadas para educação em Arte, a câmera fotográfica (analógica ou


digital) se destaca. As imagens tecnológicas obtidas por meio desse instrumento estão sendo cada vez mais
exploradas nas salas de aulas, principalmente porque a maioria dos aparelhos celulares tem câmeras acopla-
das, são acessíveis a muitos estudantes e os resultados obtidos têm um baixo custo.

2.2 Fotografias: história, técnica e Arte

Estudar fotografia exige um aprendizado constante, suas principais matérias-primas são a luz e o
olhar, além do equipamento fotográfico, claro, que pode ser tradicional ou alternativo. A fotografia pode ter
um condão de simplicidade ou de complexidade. Desde seu surgimento, as câmeras vêm se modernizando,
passando por fases históricas como: lambe-lambe (mecânica), monóculos (filme e lente), analógicas (filme)
e digitais (cartão de memória), além dos dispositivos integrados a muitos celulares. O domínio técnico da
fotografia chega até a dispensar o uso do equipamento, com as imagens captadas em latas (com papel foto-
gráfico dentro) como a pinhole.

O uso da fotografia nas aulas de Arte valida-se por sua importância em ‘perpetuar’ a cena, o epi-
sódio, ‘congelar’ o tempo, a paisagem, o espaço vivido. Ao olhar as fotografias elas nos remetem a essas vi-
vências e vamos rememorando acontecimentos, pessoas, lugares, etc. Além de proporcionar conhecimentos
sobre muitas coisas, aguçam a curiosidade e despertam sentimentos bons ou ruins. Para Santaella (2012),
fotografar é, portanto, um ato de escolha, fruto de uma atenção seletiva. Depois do clique nada mais pode
mudar. A imagem se congela para sempre.

O processo de criação, ou seja, o ato de criar não é exclusividade dos artistas, faz parte do processo
de todas as pessoas sejam artistas ou não, em algum momento elas sentem a necessidade de criar. Ostrower
(2010, p. 147) aponta que a criação não é apenas uma questão individual, mas não deixa de ser questão do
próprio indivíduo.

659
Em tudo que se produz em Arte há uma intenção. Se há uma intenção em cada ação, cor, movimen-
to, postura e gesto, na fotografia não poderia ser diferente. Portanto, a próxima seção apresenta uma síntese
dos caminhos que corroboraram para ratificar a importância do uso de mídias digitais no Ensino de Arte,
especialmente, para práticas pedagógicas que usam a fotografia.

3. Métodos, análises e discussão

A investigação em educação de forma qualitativa e participante proporciona ao investigador viven-


ciar e interagir com o contexto no qual está o objeto de estudo, e ainda, perceber as relações e interações dos
sujeitos. Neste ponto, a observação é firmada como um importante método de pesquisa, pois possibilita um
contato direto entre o pesquisador e o objeto de pesquisa.

Nessa pesquisa investigamos o uso de mídias digitais utilizadas nas aulas de Arte e sua integração ao
currículo escolar. O estudo foi desenvolvido através da observação participante das aulas de Arte dos 389 estu-
dantes do 6º ao 9º Ano da Escola Municipal Pedro Augusto (EMPA), em Recife/PE. Verificamos em que me-
dida os professores trabalham os conteúdos de Artes Visuais por meio de mídias digitais, analisando as formas
e as condições de uso dessas tecnologias na escola e como os estudantes interagem com a Arte e essas mídias.

Para fundamentar essa pesquisa realizamos, além da pesquisa bibliográfica e documental, uma
revisão sistemática nos anais do Confaeb. Identificamos 18 experiências desenvolvidas por escolas brasi-
leiras que usaram TICs nas aulas de Arte. Há unanimidade quanto ao uso da Internet; ou seja, o uso de
computadores, mesmo não estando explícito, existe. Também foram utilizados nos trabalhos: aparelho
celular, câmera fotográfica e projetores (data show). A maioria dos trabalhos utilizou a abordagem trian-
gular (fazer/pensar/conhecer Arte) como norteadora das proposições. Nessa abordagem não há uma
sequência estabelecida e as leituras de imagens propostas são subsídios para a alfabetização estética do
grupo. Além disso, nos 18 artigos analisados, a fotografia está presente em 13, ou seja, os professores
utilizaram-se de imagens tecnológicas, com uso de ferramentas como câmeras fotográficas, celulares e
computadores para captar imagens.

As fotografias foram usadas nos projetos como veículos e como instrumentos do fazer artístico. As
câmeras fotográficas digitais e os celulares usados dão uma certa liberdade a quem fotografa, é possível ver o
resultado sem investir em custos de revelações (fotos físicas). Dessa forma, a fotografia passou a ser um ato
indiscriminado e a busca da imagem “tida como perfeita” passou a banalizar o descarte das fotos indeseja-
das. Com isso muitas vezes a leitura realizada é superficial.

Por fim, a terceira etapa da pesquisa consistiu em estudos de caso que tiveram como cenário as
aulas de Arte da RMER. Durante as observações realizadas, pudemos acompanhar 4 projetos, cuja fun-
damentação teórica foi permeada de estudos de textos e leitura de imagens (veiculados pela Internet e do
acervo da professora). Nas aulas foram discutidas: a história da fotografia; câmeras e lentes (diafragma,
obturador e ISO); função da fotografia e fotógrafos famosos (como a inglesa Maureen Bisilliat e o brasi-
leiro Sebastião Salgado); composição (regra do terço), e exercícios práticos explorando fotografias e suas
possibilidades criativas.

3.1 Uso da fotografia: 4 propostas exitosas

O primeiro projeto relata a vivência com a técnica “Light Paint: exploração do espaço e do desenho
com luz”, desenvolvido com 105 estudantes do 6º Ano. Que foi inserido no contexto da Matriz Curricular

660
da RMER, que aborda a Figura Humana, com os retratos e autorretratos em diferentes tempos históricos e
estéticas (antiguidade, modernidade e contemporaneidade).

Durante os encontros que tivemos com a professora, verificamos que as abordagens ao tema cons-
tavam de leituras de imagens que apresentavam uma cronologia da antiguidade a era atual. As imagens
apresentadas pela professora mostravam retratos e autorretratos de artistas de diversas épocas. Dentre as
imagens apresentadas, uma atraiu muito a atenção do grupo: um retrato em que aparece Pablo Picasso,
desenhando com uma lanterna. O desenho sobreposto ao retrato instigou o grupo a querer aprender a
técnica.

Para realizar as fotografias usou-se câmera digital capaz de ajustar manualmente, e aparelho celular
por meio do aplicativo “Long Exposure Câmera 2”, ou seja, era preciso uma câmera capaz de registrar ex-
posições longas ou um celular com aplicativo que permitisse longa exposição da câmera. Nesses desenhos
foram utilizados: uma ou mais fontes de luz como pequenas lanternas, objetos decorativos com lâmpadas,
chaveiros com leds, espadas com luzes, velas, lã de aço queimando, aro de bicicleta com iluminação, enfim
vários objetos com cores únicas ou multicoloridos.

Para essa captação de imagens, Carvalho (2011) sugere que a sala fique suficientemente escura e a
câmera parada fixada em um tripé enquanto os estudantes vão “pincelando” a cena com lanterna ou outro
objeto similar (para não tremer). Alguns dos resultados alcançados estão na Figura 1.

Figura 1 - Foto/pintura realizada pelos estudantes

Fonte: Acervo da Professora Suzana Vital

O segundo projeto, intitulado “Recife, a Veneza Brasileira: olhares sob a paisagem líquida” teve a
participação de cerca de 95 alunos das turmas de 7º Ano. Os conteúdos selecionados para essa unidade, de
acordo com a Matriz Curricular da RMER, foram a Arquitetura local, com enfoque nas diferentes formas de
habitar em diferentes tempos históricos, estéticas.

A professora apresentou fotografias de painéis grafitados no Recife e iniciou as discussões sobre as


intervenções urbanas, instigando os estudantes a desenvolver um olhar atento à paisagem da cidade, subsi-
diando assim a proposta de intervenção, que tinha como propósito criar uma campanha de sensibilização
para que as pessoas não sujassem o rio Capibaribe. Assim, os estudantes criaram o nome do projeto, pes-
quisaram poemas e músicas que falassem do rio e imprimiram para colocar na ponte, fizeram barquinhos
de papel, e articularam uma forma de chamar a atenção dos transeuntes da ponte. Algumas dessas imagens
são mostradas na Figura 2.

661
Figura 2 - Intervenção na Ponte: Campanha de Sensibilização Ambiental

Fonte: Acervo da Professora Suzana Vital

As ações realizadas na ponte foram fotografadas e filmadas, assim é possível ver as abordagens do
grupo recitando poemas e chamando a atenção da população para o rio, além de depoimentos de pessoas
que passaram no local durante a intervenção. As fotos dessa intervenção foram reveladas para criar um pai-
nel que ficou exposto na sala de aula e visitado pela comunidade escolar.

O terceiro projeto, intitulado “Chroma Key: o simulacro de cenários”, foi realizado com 95 estu-
dantes. O conteúdo previsto na Matriz Curricular da RMER é a Fotografia, em diferentes técnicas, suportes
(digital e analógica) e cores. A técnica escolhida foi o Chroma Key, cuja intenção era substituir a imagem de
fundo e criar uma campanha de sensibilização ambiental.

Para fazer as fotografias os estudantes instalaram um aplicativo no celular chamado “Green Screen
lite”. Com esse aplicativo é possível editar a fotografia realizada com o fundo verde ou azul e inserir novas
imagens como pano de fundo, que podem ser paisagens, objetos ou outros retratos. A imagem retratada
pode ser inserida noutra cena, de acordo com o resultado idealizado.

Além da troca de imagens, foram inseridas nas produções frases, usando o aplicativo o “PicsArt - make
pictures”, com o intuito de sensibilizar o leitor e o estudante/produtor para as questões socioambientais. Assim,
foi desenvolvida uma campanha publicitária criativa. Portanto, o Chroma Key pode ser um verdadeiro simula-
cro, transformando imagens, criando outra realidade da virtualidade, como mostra a Figura 3.

Figura 3 - Estudantes sendo fotografados.

Fonte: Acervo da Professora Suzana Vital

Na visão de Ostrower (2010, p.17), os processos de conscientização dos indivíduos são influencia-
dos pela cultura, orientando formas de participação social, objetivos e ideais, e assim, “a cultura orienta o ser
sensível ao mesmo tempo que orienta o ser consciente”. A intenção da professora ao propor o Chroma Key,
foi provocar reflexões sobre os problemas ambientais para, ao menos, minimizá-los.

662
No quarto projeto, intitulado “Stop Motion: quando a animação vai além da sala de aula”, os 74 es-
tudantes do 9º Ano, trabalharam as representações de temáticas sociais na Arte Moderna e na Contemporâ-
nea, em diferentes instâncias. Sendo a Arte desses períodos marcada fortemente pelo avanço das tecnologias
e o aparecimento da câmera fotográfica, a professora propôs aos estudantes experimentações que aglutinas-
sem sequências de fotos e dessem a ideia de movimento, como a técnica do Stop Motion.

A técnica do Stop Motion é bastante difundida no meio cinematográfico em filmes de animação. A


expressão Stop Motion pode ser traduzida como “movimento parado”, e pode ser aplicada em filmes de de-
senho animado ou em filmes com atores reais. Nesse trabalho foi utilizado, além do editor de vídeos Movie
Maker, o aplicativo “Photo Grid”. Esse aplicativo ocupa pouco espaço na memória do celular e é gratuito.
Porém, há um limite de imagens que podem ser usadas (até 50 quadros). Em compensação dispensa o com-
putador e provê resultados interessantes e com qualidade.

Depois das cenas fotografadas e selecionadas os vídeos são editados. No aplicativo Photo Grid, a suges-
tão é que seja utilizado o recurso “slide de vídeo”, clicando nesse ícone é possível organizá-las, combinar fotos,
transformá-las usando filtros de luz, adesivos ou textos. Pode-se usar fotos que estejam na galeria do celular.

Figura 4 - Estudantes captando imagens para filme com Stop Motion.

Fonte: Acervo da Professora Suzana Vital

Na Figura 4, podemos ver o processo de captação dessas imagens, o cenário e o registro dessas
construções poéticas. Outra forma de fazer vídeo é usando o software Movie Maker. Porém, essa técnica
necessita de computador ou tablet, diferentemente do Photo Grid, que permite a captação de fotografias e
edição das mesmas no celular. No Movie Maker, depois de editadas as imagens, colocam-se sons, textos e
outros efeitos. O vídeo pode ser compartilhado nas redes sociais ou arquivado no computador.

Para Arantes (2005), o reconhecimento da Arte proporciona ao ser humano melhor compreensão
de si mesmo e do mundo que o rodeia. Ressaltamos que nossas intervenções foram no sentido de colaborar
como facilitadora na condução de algumas práticas. Porém, todo o mérito é da professora Suzana Vital e de
seus estudantes.

4. Considerações Finais

A Arte é uma criação humana repleta de valores estéticos que sintetizam sentimentos, pensamentos,
ideias, tradições, culturas, atitudes, intenções, entre outros, por meio de procedimentos específicos e técni-
cos que, aliados ao conhecimento, contribuem para a alfabetização estética das pessoas.

663
Percebemos com a pesquisa que a Arte e as TICs proporcionam novas formas de compreensão do
mundo e ampliam as possibilidades de interação com diversas culturas estabelecendo de forma simultânea
uma ponte entre a produção artística de diferentes épocas, ou seja, uma forma dialógica de interpretar o
mundo cultural, despertando um novo olhar pensante, ressignificando conceitos e práticas.

As fotografias como forma de expressão e comunicação embasam o conhecimento humano e assu-


mem também importante papel disseminando novas ideias e padrões que passam a influenciar as pessoas
em diferentes aspectos. Nos projetos apresentados a fotografia foi utilizada em aspectos conceituais, técnicos
e tecnológicos, sendo exploradas as técnicas Light Paint, Chroma Key e Stop Motion.

Considerando as múltiplas possibilidades que as TICs oferecem nas aulas faz-se necessário con-
tinuar pesquisando sobre o tema na perspectiva de atualizações e de ampliação de opções de inserção das
TICs, nos conteúdos propostos na Matriz Curricular RMER para os estudantes do Ensino Fundamental.
Além disso, a atualização do Blog contribuirá com uma maior interação dos estudantes com as tecnologias
e estender-se-á para além da sala de aula.

REFERÊNCIAS

ARANTES, P. Arte e Mídia: perspectiva da estética digi- NUNES, F. O. Ctrl+Art+Del: contexto, arte e tecnologia.
tal. São Paulo: SENAC, 2005. 2007. 238p. Tese (Doutorado em Artes) Escola de Comu-
nicações e artes da Universidade de São Paulo. São Paulo.
BARBOSA, A. M. Ensino da Arte: memória e história.
Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponi-
São Paulo: Perspectiva, 2011.
veis/27/27131/tde-05072009-202105/pt-br.php Acesso
CARVALHO, D. A. Aplicações da Técnica Paint Light de em: 15 out. 2015.
fotografia em alunos do Ensino Médio: como facilita-
OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. 7.
dor de comunicação e socialização, 2011 (Mono. de Artes
ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
Visuais do Instituto de Artes de Brasília). Disponível em:
<http://bdm.unb.br/handle/10483/4426> Acesso: 20 jun. PIMENTEL, L. G. Tecnologias contemporâneas e o en-
2016. sino da Arte. In: BARBOSA, A. M. (org). Inquietações e
mudanças no ensino da Arte. São Paulo: Cortez, 2002.
FAEB, Federação de Arte/Educadores do Brasil. Anais da
FAEB. Disponível em: <http://faeb.com.br/24o-confaeb/ SANTAELLA, L. Leitura de Imagens. São Paulo: Melho-
confaebs/anais/> Acesso: dez. 2016. ramentos, 2012.
FISCHER, E. A Necessidade da Arte. São Paulo, Zahar, TELES, S. M. B.; NINO, M. C. Cor e Luz em Johannes
1981. Vermeer. In: ARRAIS, I. C. P. A. (Org.). Arte na Educa-
ção: múltiplos Olhares. Recife/PE: SESC, 2010.

Agradecimentos
Professora de Arte Suzana Vital e estudantes da Escola Municipal Pedro Augusto.

664
INTERDISCIPLINARIDADE E EMANCIPAÇÃO
NA VIVÊNCIA EM ARTES DO INSTITUTO
FEDERAL DE SANTA CATARINA:
POSSIBILIDADES DE (RE)PENSAR A
ESCOLA TÉCNICA E PROFISSIONAL
Mariana Reis Leal Fernandes

Introdução

A Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008 instituiu a Rede Federal de Educação Profissional,
Científica e Tecnológica e criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Para garantir a
ampliação do acesso à educação nos sistemas de ensino, o governo federal criou uma instituição inovadora.
A princípio os Institutos Federais deveriam garantir 50% das suas vagas para cursos técnicos, priorizando
a oferta do integrado, 20% de suas vagas para cursos de licenciatura, com a justificativa de que a docência
no nosso país deve der incentivada pela falta de profissionais qualificados e os 30% restantes para cursos
superiores de tecnologia, especializações, mestrados, doutorados e aperfeiçoamentos. No estado de Santa
Catarina havia a atuação de uma instituição profissionalizante que foi oriunda de todo o processo do ensino
industrial no Brasil, o CEFET-SC. No dia 07 de março de 2008, através do voto, na consulta pública à comu-
nidade escolar, o CEFET se transformou no Instituto Federal de Santa Catarina.

O Instituto Federal de Santa Catarina é uma instituição de cunho científico, tecnológico e profis-
sional, cuja missão é “promover a inclusão e formar cidadãos, por meio da educação profissional, científica
e tecnológica, gerando, difundindo e aplicando conhecimento e inovação, contribuindo para o desenvol-
vimento socioeconômico e cultural” (IFSC, 2017). A instituição mantém, além do ensino regular, outras
atividades que complementam a formação dos estudantes, entre elas estão os projetos de extensão. Estes
podem ser voltados tanto para o público interno como para o público externo, pretendendo auxiliar no de-
senvolvimento de cada região em que estão inseridos. Por serem mais abrangentes, os projetos de extensão
muitas vezes estão relacionados a atividades artísticas e culturais.

Por ser uma instituição atual e com uma modalidade de ensino diferenciada, acredito que os IF’s
podem se tornar um campo fértil para discussões sobre o papel da escola hoje, principalmente o ensino
profissional, juntamente a discussões sobre o ensino de artes na escola. Portanto o artigo pretende enfati-
zar como as atividades artísticas devidamente mediadas podem ser a ponte para um novo pensar perante
a escola, nesse caso a realidade da escola técnica, o IFSC, transformando os agentes envolvidos através
do processo artístico e interdisciplinar, em seres emancipados e críticos em relação a sociedade ao qual
estão inseridos.


665
A inserção das artes no ensino profissional

O desenvolvimento da sociedade em um sistema capitalista, voltado para o lucro e a otimização
da mão de obra, modificaram a organização familiar e da sociedade a partir das transformações com o
processo de urbanização e industrialização. No Brasil o sistema educacional acompanhou essas mudanças,
apresentando uma nova modalidade de ensino que ficou conhecida como formação técnica. Essas escolas
foram marcadas por muitos anos pela dualidade entre a formação para o mercado de trabalho e a formação
intelectual. A cultura do bacharelismo ainda está presente no nosso país, reforçando a ideia de que um saber
seria inferior ao outro.

Os Institutos Federais estão organizando seus processos institucionais para modificar esse pensa-
mento. Os campus buscam, através de sua maneira de ensinar, mostrar que todos os saberes são importantes
na construção da sociedade e merecem ser valorizados da mesma forma. A proposta que se leva aos Ins-
titutos Federais não somente procura unir o conhecimento científico com o humanístico, mas também os
unir ao conhecimento técnico, atribuindo a cada um deles o mesmo peso na formação do estudante, como
afirma Moraes:

Mesmo entre as pedagogias mais antigas, costumamos encontrar uma preocupação que
aponta para a promoção desta interdisciplinaridade ampla, que não dissocie a formação
técnica da formação intelectual. Esta expectativa educacional – geralmente aquém das
estruturas classistas, que hierarquizam os saberes – perpassa o curso da pedagogia moder-
na, recebendo diferentes nomes que, apesar de distinções pontuais, parecem exaltar uma
desejada “formação integral do ser humano” (MORAES, 2016, p.19)

A sociedade humana é histórica, transforma-se de acordo com o padrão de progresso da produção,


das regras e valores sociais. Conforme acontecem certas mudanças, as atuações são atingidas, construindo
um novo entendimento sobre os papéis de cada um em seu modelo de ser. É uma concepção cultural que
ultrapassa os séculos, passando pelas identidades construídas e repassadas por gerações, constituída em
“cultura”, define o lugar do ser humano, com espaços diferenciados e contrastantes (Swain, 2001).

A educação profissional proposta pelos Institutos Federais está além do ensino de uma técnica para
ser aplicada no mercado de trabalho. Hoje nas discussões sobre essa modalidade de ensino reitera-se a
formação para o trabalho como inerente a formação do ser humano. Corroborando com esse pensamento,
o ensino de artes vem abrindo caminho nessas instituições, não somente com o trabalho de sala de aula
obrigatório ao ensino médio, mas principalmente através de projetos de extensão de diferentes vertentes da
área artística e cultural e interdisciplinares, proporcionando uma rede de conhecimentos e uma construção
de saberes mais concreta.

O ensino de artes vem sendo modificado na educação brasileira nos últimos anos. Antes da criação
e aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n.5692/71, a chamada Educação Artística
era aplicada nas escolas como uma atividade complementar, não sendo vista como uma unidade curricular.
Assim sendo, o ensino de artes não priorizava processos como conceber, fazer/criar, perceber, ler e inter-
pretar e apreciar. Com o surgimento da LDB 9394/96 e a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais
em 1997, a arte passou a ser diferentemente valorizada nos currículos escolares. “Arte tem uma função tão
importante quanto a dos outros conhecimentos no processo de ensino aprendizagem. A área de Arte está
relacionada com as demais áreas e tem suas especificidades.” (PCNs –Arte, 1997, p. 19).

Os cursos técnicos integrados dos Institutos Federais mantém a formação propedêutica de nível
médio como nas outras instituições de ensino. Portanto, as leis e sanções que regem o ensino de artes no

666
Brasil também se aplicam aos IF´s. Mesmo as sedes que não tem ensino integrado, mantém a modalidade
chamada concomitante, ou seja, o instituto oferece a parte técnica enquanto o aluno, obrigatoriamente, deve
estar cursando o ensino médio em outra escola. Portanto as mudanças de leis sobre a educação básica no
Brasil impactam diretamente os Institutos Federais e sua abordagem educacional.

Devido a esses fatores, os Institutos Federais de Educação demonstram uma preocupação com a
formação geral do ser humano, e não só com a sua formação profissional. Para tanto, o contato artístico e
cultural que os estudantes têm não está somente em sala de aula, na disciplina de artes, já que nem todas
modalidades de ensino técnico ofertadas mantém a educação básica, mas também em projetos de extensão.

Assim como nas universidades, os Institutos Federais desenvolvem, juntamente a comunidade aca-
dêmica, projetos de pesquisa e extensão, para atender as demandas da comunidade. A extensão, princi-
palmente, está muito ligada a atividades artísticas, pois tem certas características que fazem com que ela
consiga penetrar mais facilmente na realidade das comunidades. A extensão é na realidade a interação entre
a instituição e a comunidade na qual está inserida. É um processo de retroalimentação, onde o instituto leva
a comunidade os saberes que estão sendo produzidos em suas sedes e a comunidade traz à instituição seus
anseios, necessidades e saberes. Portanto, o instituto executa as atividades de extensão respeitando e preser-
vado os valores culturais da comunidade a qual atende. Tal visão fica clara nos documentos norteadores da
instituição, como apresentado a seguir:

A Extensão do IFSC reúne estratégias de relacionamento de seus estudantes e educadores


com a comunidade externa. Para isso, promove anualmente centenas de atividades plane-
jadas para tirar ideias do papel, transformar um pensamento em ação, prototipar uma en-
genhoca ou movimentar uma turma em torno de um objetivo. E sabe o que é mais bacana?
Tudo é feito em parceria com estudantes, professores e cidadãos externos.

Com esse movimento vivo entre ensino e pesquisa, a Extensão dá significado aos conteú-
dos da sala de aula e coloca em xeque continuamente as certezas da ciência, reorientando
avanços sempre próximos da realidade do entorno de seus 22 câmpus.

As empresas, indústrias, governos, empreendedores, autônomos e outros públicos tam-


bém podem demandar atividades extensionistas ao IFSC. A sinergia entre instituto de
ciência e tecnologia, sociedade civil organizada e empresariado é uma excelente forma de
promoção do desenvolvimento educacional integral. (IFSC, 2017).


Os projetos de extensão vem como suporte a outras atividades acadêmicas e como meio de estar
mais próximo da comunidade. Por isso acredito que através deles é possível gerar saberes relevantes para o
profissional técnico que a instituição se propõe a preparar.

Interdisciplinaridade e emancipação como novas possibilidades

Atualmente, nas pesquisas sobre educação, termos como interdisciplinaridade e contextualização


são pauta de discussões. A interdisciplinaridade principalmente se encontra deveras destacada, e é ampla-
mente vista em diferentes linhas de pensamento pedagógico. O conceito de interdisciplinaridade utilizado
pelo Conselho Nacional de Educação (CNE, 2010, Art.13), a apresenta como referente à abordagem episte-
mológica dos objetos de conhecimento, ou seja, a interdisciplinaridade no meio educacional nos propicia
estabelecer um diálogo entre o campo das ciências e das humanidades. Em uma instituição como o Instituto
Federal de Santa Catarina, é necessário se debruçar para a questão da interdisciplinaridade, já que esse tipo

667
de ambiente educacional carrega consigo preconceitos enraizados em nossa sociedade há muitos anos e que
ainda hoje se verifica dificuldade em deixá-los de lado. No ensino profissional, não somente se procura unir
o conhecimento científico com o humanístico, mas também o conhecimento técnico, por isso se trata de
uma interdisciplinaridade ampla, como retratado por Moraes:

São dois grupos docentes separados pela divisão, milenar, entre a escola do saber e a escola
do fazer – uma divisão ideológica, marcada pela repulsa ao trabalho e pelo preconceito
com as atividades manuais. Dentro deste recorte ideológico, apenas a reflexão filosófica –
que enobrece a alma e não fatiga o corpo – constitui o conjunto de saberes necessários à
formação intelectual. O pesquisador interdisciplinar, contudo, deve enxergar além desta
cisão maniqueísta que separa mãos e cérebro. Deve-se lembrar que uma interdisciplinari-
dade ampla não ignora que fazer é saber! (MORAES, 2016, p.18)

Trazendo as questões de interdisciplinaridade para a minha realidade no Instituto Federal de Santa


Catarina, penso em uma reinvenção da escola, de exercitar um novo “estar” e “perceber” a escola. Encontrar
um novo meio para se relacionar com ela. E nesse contexto, uma nova perspectiva para se relacionar com o
ensino profissional. Para isso, vejo o caminho das artes atrelado ao da interdisciplinaridade de grande valia,
pois é possível, de maneira lúdica, fazer com que o próprio estudante seja protagonista da sua formação.

Além da interdisciplinaridade, Rancière (2010) mostra, na sua explanação da experiência vivida por
Joseph Jacotot, ao ensinar aos seus alunos o que o próprio mestre ignorava, que essas assimilações são pos-
síveis, desde que os estudantes sejam emancipados, ou seja, que os próprios estudantes façam suas conexões
através do que lhes é apresentado e se forcem a construir suas hipóteses e conclusões, como apresentado no
trecho da obra a seguir:

Mestre é aquele que encerra uma inteligência em um círculo arbitrário do qual não poderá
sair se não se tornar útil a si mesma. Para emancipar um ignorante, é preciso e suficiente
que sejamos, nós mesmos, emancipados; isso é, conscientes do verdadeiro poder do espí-
rito humano. O ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ignora, se o mestre acredita
que ele o pode, e o obriga a atualizar sua capacidade. (RANCIÈRE, 2010, p.34)

A transmissão de conhecimentos aos seus alunos seguida da averiguação se ele aprendeu, vista
como a maneira tradicional de se ensinar na escola, é chamada por Jacotot de princípio do Embrutecimento.
Em oposição a esse princípio, está o princípio da Emancipação. Neste segundo, o ponto chave é estimular
o estudante para que ele desenvolva sua própria inteligência, ou seja, se torne emancipado, podendo assim
aprender qualquer coisa.

Assim como Rancière (2010) revela em sua obra, a vontade de aprender é o que nos leva a aprender.
Aqui, reforço o papel do professor, que através de seu método diferenciado, estimulará o aluno a aprender.
E enfatizo novamente que a vivência artística no ensino profissional, seja ela na unidade curricular de artes
ou nos projetos de extensão, devidamente mediada por um método emancipador, seria uma possibilidade
de estudantes e servidores compreenderem que não existe desigualdade de inteligências, mas sim a vontade
de aprender e querer saber cada vez mais.

Do modo de pensar a escola hoje emerge o objetivo de (re)pensar uma outra escola, um reinventar
do espaço escolar, de seus sujeitos e conexões, na reafirmação do seu contexto social e emancipatório. Ao
encontro com a ideia de que a escola é o lugar certo para acontecer o aprendizado emancipado, e não um
lugar obsoleto que devemos deixar para trás e buscar novos lugares de aprendizagem, defendo a escola, e

668
principalmente o ensino de artes, inclusive dentro de uma instituição profissional e técnica, como pautado
por Masschelein e Simons:

Nós nos recusamos, firmemente, a endossar a condenação da escola. Ao contrário, defen-


demos a sua absolvição. Acreditamos que é exatamente hoje – numa época em que muitos
condenam a escola como desajeitada frente a realidade moderna e outros até mesmo pa-
recem querer abandoná-la completamente – que o que a escola é e o que ela faz se torna
claro. Também esperamos deixar claro que muitas alegações contra a escola são motivadas
por um antigo medo e até mesmo ódio contra uma de suas características radicais, po-
rém essencial: a de que a escola oferece “tempo livre” e transforma o conhecimento e as
habilidades em “bens comuns”, e, portanto, tem o potencial para dar a todos, independen-
temente de antecedentes, talento natural ou aptidão, o tempo e o espaço para sair de seu
ambiente conhecido, para se superar e renovar (e, portanto, mudar de forma imprevisível)
o mundo. (MASSCHELEIN e SIMONS, 2013, p.4)

Como apresentado no texto acima, o discurso é de que a escola não é o ambiente mais adequado
para o aprendizado, e por não ser o único lugar de conhecimento, que a escola como tradicionalmente
conhecemos deve desaparecer. Devido as novas tecnologias, o que se ouve é que o aprendizado se dá em
qualquer momento e lugar, não precisando necessariamente da escola. Mesmo dentro de uma instituição
profissional, científica e tecnológica, ouço esses argumentos de que a nossa forma é ultrapassada e não con-
versa com a realidade dos estudantes. É nesse momento do discurso crítico, que proponho, principalmente
tratando do ensino profissional, um novo olhar para essa escola, uma proposta para novos caminhos, onde
as atividades artísticas sejam valorizadas e se tornem também protagonistas no caminho de aprendizagem
do aluno, na formação integral que se propõe, para que ele, na vida e no mercado de trabalho, seja emanci-
pado e percorra seu trajeto da melhor maneira possível. O professor de artes em sala de aula e na extensão,
ou aquele que se propõe a trabalhar com atividades artísticas no extracurricular, pode ser o mediador para
essa trilha de emancipação do estudante para a vida.


Considerações Finais

O Instituto Federal de Santa Catarina tem o papel de formar os estudantes em variadas áreas do
conhecimento. Devido a essa tarefa, há um aprofundamento em algumas áreas do conhecimento em detri-
mento a outras. Isso é natural devido a grande demanda de conteúdo que a instituição enfrenta por ter que
cumprir uma grade técnica e outra propedêutica nos cursos técnicos integrados ao ensino médio.

Antes da minha vinda para o Instituto Federal de Educação campus Garopaba, ele não possuía
professor de artes, pois não havia sido implantado ainda o técnico integrado. Mesmo sem a figura desse
professor, que teoricamente seria o que se disporia a trabalhar com atividades artísticas na extensão, haviam
projetos desse cunho acontecendo naquela sede. Fiquei comovida ao ver que ali haviam projetos de extensão
com a temática artística que resistiam, fruto da vontade dos próprios estudantes e servidores que abraçaram
a ideia. Isso me fez pensar na figura do professor. Como este através de sua atuação, faz toda diferença na
relação que o estudante criará com a aprendizagem, a escola e sua formação.

Se a instituição se propõe a apoiar esses projetos e servidores se propõem a coordená-los mesmo


que não seja sua área de formação específica, presumo que o IFSC está engajado na proposta de um novo
entendimento da vivência e da aprendizagem na escola, valorizando todas as experiências igualmente do
ponto de vista epistemológico. Sendo assim, vejo que o contato com as artes nesse ambiente, seja em sala de

669
aula na disciplina de artes ou em projetos de extensão ofertados pela instituição, é um promissor caminho
para se transformar o pensamento atual da escola de anacrônico para indispensável, e para o ensino inter-
disciplinar e emancipado.

O Ensino Médio é uma fase da vida atrelada a adolescência, consequentemente uma fase atribulada e
atordoada da vida desses jovens. Esse pulsar adolescente, na minha visão, não pode ser amortecido pela escola,
muito pelo contrário, deve estimular os estudantes a encontrarem seus caminhos e soluções, estimulá-los a
pensar e repensar a vida e a sociedade e também modificá-la se assim desejarem.

Referências

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670
IMPROVISAR-SE DANÇANDO:
INVESTIGANDO A EXPERIÊNCIA DE MOVER-SE
Giorrdani Gorki Queiroz de Souza (CENSUPEG)

A improvisação é uma forma de pesquisa, uma forma de exa-


minar o complexo sistema natural que é um ser humano. É,
em certo sentido, outra maneira de “pensar”, mas que produz
ideias impossíveis de conceber na quietude.
(DE SPAIN, 1993, p.21, tradução minha)373

E ste artigo apresenta um recorte da pesquisa improvisar-se dançando: cognição e investigação


da experiência, realizada durante o mestrado em dança no Programa de Pós-Graduação em Dança da Uni-
versidade Federal da Bahia (PPGDança; UFBA – 2017). Partindo do pressuposto apresentado por Varela,
Thompson e Rosch (1991) de que ser é igual a fazer e fazer é igual a conhecer, e de que a cognição é corpórea,
apresento algumas articulações entre a improvisação em dança, as práticas somáticas e as Metodologias de
Primeira-Pessoa374. Um quadro de referencial teórico e uma perspectiva sistêmica sobre a improvisação em
dança são aqui apresentados como abordagem interdisciplinar articulando-a com as ciências cognitivas e as
práticas somáticas.

Para se tornar dançarino(a), aprender passos e repeti-los até executá-los perfeitamente não deveria
ser o único caminho possível para se atingir este objetivo. Uma formação em dança, de forma geral, visa
a desenvolver, no movente, habilidades corporais que permitam a ele mover-se com consciência e tornar
seu corpo disponível para a dança. Para dançar, precisamos saber andar, transferir o peso de uma base de
apoio a outra, girar, cair, levantar, correr, saltar, lidar com a temporalidade e espacialidade do movimento,
entender como o corpo funciona e, principalmente, investigar como tudo isso acontece para cada um, como
experiência singular. É uma pesquisa individual que objetiva desenvolver, no soma375, suas próprias “téc-
nicas” e habilidades, ou seja, possibilitar ao movente desenvolver um repertório particular de habilidades
sensório motoras, mover-se de forma consciente e evitar lesões. Neste artigo apresento a improvisação em
dança como um caminho possível para movente desenvolver estas habilidades em seu processo de formação
e desenvolvimento enquanto artista da dança.

373. Improvisation is a form of research, a way of peering into complex natural system that is a human being. It is, in a sense, another way of “think-
ing,” but one that produces ideas impossible to conceive in stillness. (DE SPAIN, Kent. 1993, p.21)
374. “Podemos distinguir metodologias de primeira, segunda e terceira pessoa a partir do dispositivo utilizado para a coleta de dados e o tipo de
dado coletado [...] A metodologia de primeira pessoa é aquela na qual o dado é fenomenológico, no sentido daquilo que aparece para o sujeito, como
experiência, a partir da atenção que o sujeito porta sobre si próprio, sobre isso que ele pode acessar de sua experiência ou a posteriori (retrospecti-
vamente). Ela pressupõe a relação do sujeito consigo mesmo em função de uma atenção a si.” (VASCONCELOS, 2009, p.12).
375. No decorrer deste artigo utilizarei a palavra soma para me referir ao corpo com abordado nas práticas somáticas, ou seja, nas práticas somáticas,
corpo e soma são abordagens diferentes do mesmo fenômeno. Enquanto o “corpo” seria aquilo que pode ser objetivado pela perspectiva da terceira
pessoa, o “soma” seria o corpo como experienciado subjetivamente na perspectiva da primeira-pessoa.

671
Como desdobramento de minha experiência profissional enquanto artista, pesquisador e docente,
que trabalha sistematicamente com improvisação em dança há mais de três décadas e das investigações que
venho realizando em contextos artísticos e pedagógicos nos últimos anos, muitas são as questões que pas-
saram a fazer parte das reflexões e discussões pertinentes às práticas que realizo e, para este recorte, trago a
que mais me ocupa neste momento: será que uma prática regular e pedagogicamente sistematizada de im-
provisação em dança, que se utiliza de metodologias investigativas que privilegiem os dados da experiência
na primeira-pessoa, seria capaz de interferir nos hábitos sensório-motores (cognitivos) do movente e, com
isso, contribuir para sua formação e aperfeiçoamento enquanto dançarino(a)?

Minha hipótese inicial para esta questão é a de que as práticas somáticas podem ser abordadas enquanto
metodologias de primeira-pessoa, devido à proximidade em seus objetivos experienciais. Ambas visam uma
investigação regular, organizada e sistemática da experiência através da articulação de dados subjetivos. Por abor-
darem o corpo como um processo de circularidade entre a ação e a percepção, a abordagem corpórea da cogni-
ção pode contribuir para expandir alguns entendimentos sobre as práticas improvisacionais em dança e as práti-
cas somáticas, principalmente, no que se refere a como essas práticas produzem conhecimento para o movente.

É nessa perspectiva que venho experimentando, em minha prática como artista-docente-pesquisa-


dor, procedimentos que possibilitem ao dançarino-improvisador acessar os conteúdos da própria experiên-
cia. Venho investigando práticas que fomentem este lugar de atenção a si, de investigação dos conteúdos e
propriedades da experiência de mover-se, um lugar de abertura para o que surge desta experiência, para o
atravessamento de afetos e o devir consciente. Acredito que para improvisar em dança é preciso desenvolver
um tipo específico de atenção à experiência diferente dessa que mobilizamos no nosso cotidiano que, em
geral, é voltada para o exterior e para resolução de tarefas sem que estejamos atentos ao que nos acontece.

De forma a podermos construir conhecimento via experiência corpórea, aprimorar nossas habilida-
des físicas e criativas, ao improvisarmos, seja em um contexto pedagógico ou artístico, é preciso desenvolver
uma atenção à experiência mais receptiva e panorâmica. Esta forma não cotidiana de atenção pode ajudar o
movente tanto a reconhecer seus padrões sensório-motores, suas preferências perceptivas e, se for seu dese-
jo, pode ajudá-lo a reorganizá-los e expandi-los. Ela não nos é natural, mas pode ser aprendida e praticada.
Para improvisar, um(a) dançarino(a) precisa construir um amplo repertório sensório-motor e a habilidade
de conexão e reestruturação permanente desses padrões. Podemos inferir aqui que as práticas somáticas,
por terem exatamente o movimento e a consciência cinestésica como núcleo de seus procedimentos e por
objetivarem sua reorganização de acordo com as possibilidades individuais, possam ser uma via para reor-
ganizar nossos padrões e hábitos corporificados.

As diferentes abordagens em Educação Somática também são chamadas práticas, técnicas ou mé-
todos, e todos esses nomes tentam definir a aplicação específica e singular de exercícios e procedimentos
derivados de um determinado entendimento educacional. Entre elas, algumas das mais conhecidas são a
Técnica de Alexander376, a Eutonia377, o Movimento Autêntico378, o Bartenieff Fundamentals379, o Body-Mind

376. A Técnica de Alexander, criada pelo ator australiano Frederick Matthias Alexander (1869-1955), é uma técnica de reeducação corporal e coor-
denação realizada a partir de princípios físicos e psicológicos. A técnica se baseia na autopercepção do movimento e é aplicável a diversos casos como
alívio de dores na coluna, reabilitação após acidentes, melhora na respiração, posicionamento correto ao tocar instrumentos musicais ou cantar, além
de outros hábitos relacionados. A técnica é ensinada em aulas, através de uma combinação de instruções verbais e de demonstrações práticas, nas
quais o professor toca o aluno e posiciona seu corpo adequadamente.
377. A Eutonia, criada pela alemã Gerda Alexander (1908-1994), é uma prática terapêutica e pedagógica, cuja busca é a regulação tônica. A Eutonia
integra educação, terapia e arte; e o soma não fragmentado, como unidade corpo-mente, é o foco do trabalho. Essa prática tem como princípios bási-
cos: conscientização superficial e profunda da pele; conscientização do volume do espaço interno; conscientização dos ossos; e o contato consciente.
378. Movimento Autêntico (do inglês Authentic Movement) é um trabalho corporal iniciado na década de 1950 por Mary Starks Whitehouse (1911
– 1979), bailarina e terapeuta junguiana. Baseia-se na técnica da imaginação ativa. A técnica se utiliza do movimento improvisado por um ou mais
movedores que é testemunhada por uma ou mais testemunhas. Ele visa a expressão no presente, sem julgamentos, permitindo o afloramento de
conteúdos do inconsciente, que são, então, integrados ao ego através da escrita, do desenho, ou outra forma.
379. Os Fundamentos Corporais Bartenieff (Bartenieff Fundamentals) foram criados por Irmgard Bartenieff (1900-1982), dançarina, coreógrafa e

672
Centering380, o Método Feldenkrais381, entre outras. Aqui no Brasil, podemos citar o Método Angel Vianna
de Conscientização do Movimento382 e Método de Reorganização Postural Dinâmica de José Antônio de
Oliveira Lima383. O diálogo entre a dança e a somática vem crescendo cada vez mais e, com isso, expandindo
os horizontes de ambos os campos, principalmente, no âmbito acadêmico.

Segundo Fortin (1999), em seu primeiro texto traduzido para o português, esse novo campo de
estudo, a Educação Somática, “[...] engloba uma diversidade de conhecimentos onde os domínios senso-
rial, cognitivo, motor, afetivo e espiritual se misturam com ênfases diferentes” (FORTIN, 1999, p. 40) – um
entendimento que facilmente poderia estar imbricado com a improvisação em dança, que, por sua vez,
também engloba esses domínios no seu fazer.

Partindo de alguns entendimentos que a abordagem enativa384 ou atuacionista da cognição corpórea


nos apresenta e do meu interesse pelo ato de conhecer, que acontece no corpo, parece-me coerente articular
alguns pressupostos das ciências cognitivas, em particular, com sua abordagem denominada “embodied
cognition”385 (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1991), com as contribuições que o entendimento das prá-
ticas somáticas enquanto metodologias de primeira-pessoa podem trazer para as práticas improvisacionais
em dança dentro dos contextos já citados.

Mas o que é que é cognição? A palavra vem da raiz latina cognoscere, que significa “conhecer”.
Quando falamos de cognição, geralmente nos referimos a tudo o que está relacionado ao conhecimento
ou ao ato de conhecer. Em outras palavras, o acúmulo de informações que adquirimos através da aprendi-
zagem ou experiência, sendo isto já uma pista para articulá-la com a dança. A definição de cognição mais

fisioterapeuta alemã, discípula de Rudolf Laban. Bartenieff desenvolveu seu trabalho como parte integral do Sistema Laban e desenhou exercícios
flexíveis, baseados em princípios de movimento ao invés da imitação de um modelo ideal, focando no direcionamento criativo e conectando os
impulsos pessoais às demandas do ambiente.
380. Body-Mind Centering® (BMCSM) é uma abordagem integrada e corporificada do movimento, do corpo e da consciência. Desenvolvido
pela americana Bonnie Bainbridge Cohen (1943-), é um estudo experiencial baseado na corporificação e aplicação de princípios anatômicos,
fisiológicos, psicofísicos e de desenvolvimento sensório motor, utilizando o movimento, o toque, a voz e a mente. A sua singularidade reside na
especificidade com que cada um dos sistemas do corpo (ósseo, celular, fluido, muscular, nervoso, embrionário, entre outros) pode ser pessoal-
mente incorporado e integrado.
381. O Método Feldenkrais foi criado pelo engenheiro israelita Dr. Moshé Feldenkrais (1904-1984). É um processo de aprendizagem somática que
se transmite em sessões de grupo chamadas ATM (Consciência pelo Movimento, pela sua sigla em inglês – Awareness Through Movement), ou em
sessões individuais chamadas IF (Integração Funcional). O Método Feldenkrais é uma prática somática que tem como objetivo alcançar um corpo
equilibrado e saudável. Em seu estudo, Feldenkrais se baseou no desenvolvimento infantil do sistema neuromuscular e sensório-motor e, assim
como as outras técnicas somáticas, colocou o movimento como forma de investigação e autoconhecimento. O método é baseado em princípios da
física, neurologia e psicologia, e explora aspectos biológicos e culturais do movimento, postura e aprendizado.
382. O método de Angel Vianna de conscientização do movimento, criado pela bailarina, coreógrafa e pesquisadora do movimento Angel Vianna
(1928-), contribui para a formação de um ser humano sensível e consciente. Essa pesquisa sobre o movimento do corpo cria um espaço inaugural
de reflexão e análise sobre si que possibilita nos constituir em um novo território existencial, outro modo de se relacionar consigo e com o mundo.
383. “A técnica chamada de Reorganização Postural Dinâmica (LIMA, 2010a), criada pelo médico, filósofo, pesquisador e doutor em educação José
Antônio de Oliveira Lima (1949 -), baseia-se em exercícios de força e alongamento, de auto-observação e de reorganização do alinhamento corporal
e, principalmente, na utilização da tensão lenta. A tensão lenta é um modo de trabalho muscular lento e contínuo contra uma resistência oferecida
pelo próprio corpo; consiste em “uma velocidade lenta e uma tensão alta o suficiente para permitir o movimento” - “A tensão lenta é uma forma de
se fazer
384. “Enação” (“enact”, “em-ação”, “fazer-emergir”). A abordagem da enação ou atuacionista, como também é conhecida, afirma que todo conheci-
mento é inseparável do sujeito cognoscente, sujeito e mundo constituem-se mutuamente, assim toda ciência cognitiva habita uma circularidade, na
qual a cognição estudada não pode ser isolada da estrutura e experiência (corporificação) do sujeito (SADE, 2009). Ela está baseada na complexidade
das maneiras de estar no mundo. Mostra que a cognição não é a representação de um mundo preestabelecido, elaborada por uma mente predefinida.
É a conjugação de uma rede de atores e de ações executadas no mundo, e por ele percebida. Ela coloca que há um agente para a ação e o surgimento
da cognição estaria relacionado à atuação desse agente no mundo.
385. Coaduno com o entendimento de Silva Neto (2014,) quando ele em sua tese em filosofia, nos traz que: “em inglês tem sido usada a expressão
embodied cognition para designar a abordagem das ciências cognitivas que valoriza o papel do corpo na cognição. Dentre as traduções de embodied
já feitas para o português, encontra-se – para o caso da cognição –, além de “corpórea”, “incorporada” e “corporificada”. Neste trabalho optou-se
por não adotar o adjetivo “incorporada”, por este induzir à ideia de que a cognição possa ser pensada como algo que passa a integrar o corpo – se
incorpora --, a partir de um certo momento, mas que antes poderia ser concebida como separada do corpo. Já a qualificação “corporificada” não foi
escolhida por denotar algo que não constituía um corpo, mas passou a constituir a partir de um dado instante. A expressão cognição corpórea foi
eleita neste artigo por ser mais capaz de traduzir, em português, a ideia da cognição como desde sempre sendo realizada com o corpo, sendo dele
sempre inseparável.” (SILVA NETO, 2004, p.1)

673
aceita é a de que ela é a capacidade que temos de assimilar e organizar a informação que recebemos de
diferentes fontes (percepção, experiência, crenças, etc.) para convertê-las em conhecimento. Ao improvi-
sar organizamos diversas informações que acessamos via percepção, propriocepção e sentidos, para assim
tomarmos decisões e construirmos conhecimento sobre nossa prática e sobre nós mesmos.

A abordagem corpórea da cognição surge como desenvolvimento e evolução das pesquisas e res-
pectivos entendimentos inaugurados no campo das ciências cognitivas pela abordagem cibernética (cog-
nitivismo) e pelo conexionismo. Em síntese, na abordagem cognitivista a cognição consiste no tratamento
da informação enquanto computação simbólica, seguindo um modelo “input/output” (entrada e saída).
No conexionismo prevalece a ideia de que o mundo é anterior à experiência do observador e a cognição
corresponde a representações mentais. Já na enação, a cognição é abordada como a história da acoplagem
estrutural dos organismos com o meio de forma não representacional e as experiências perceptivas adqui-
rem conteúdos graças as nossas habilidades corporais.

Na contemporaneidade a abordagem da cognição corpórea abriu um vasto campo de possibilidades


e perspectivas para um novo entendimento de corpo e cognição e da relação entre eles. Esta abordagem
aponta para a dissolução de vários dualismos ainda presentes no paradigma positivista e na dança, entre
eles, os binômios corpo/mente, natureza/cultura, teoria/prática e sujeito/objeto. Este aspecto – o da dis-
solução de binarismos - é o que mais me interessa enquanto artista e pesquisador, uma vez que, na dança
contemporânea tanto vem se discutindo e refletindo sobre a dissolução destas dualidades. Mesmo com
algumas diferenças sutis entre as abordagens da corrente da cognição corpórea, um pensamento fundante é
compartilhado por elas, ou seja, o de que a experiência é o meio elementar através do qual o corpo do indi-
víduo não apenas condiciona as suas crenças, conceitos, pensamentos e ações, como vai sendo modificado
ao longo de interações cognitivas em um mundo natural e social.

Nas últimas décadas as ciências cognitivas e a neurociência no intuito de apresentarem novos entendimen-
tos sobre a cognição que não mais abordem o ato de conhecer como um processamento simbólico ou como
algo puramente cerebral, vêm se dedicando ao estudo da experiência como forma de superar o problema
corpo/mente e se aproximando das metodologias de primeira-pessoa como um caminho para acessar os
dados subjetivos da experiência em suas pesquisas.

O campo das ciências cognitivas, desde o final dos anos oitenta, tem enfatizado o in-
teresse pelo problema da consciência, e da experiência, o que tem levado a uma re-
avaliação das teorias e métodos desse campo. Essa reavaliação tem apontado para a
necessidade de se incluir nos estudos da cognição o uso de metodologias de primeira
pessoa. A metodologia experimental padrão utilizada pelas ciências cognitivas, basea-
da em dados comportamentais e neuronais, não dá conta do domínio da experiência,
na medida em que esta é definida como manifestação fenomenal, que é a noção de
experiência em primeira pessoa (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993, VARELA,
1996a, VARELA; SHEAR, 1999, LUTZ; THOMPSON, 2003, JACK; ROEPSTORFF,
2002, 2003, 2004, VERMERSCH, 1994, 1999, 2004, PETITMENGIN-PEUGEOT, 1999,
2006). (SADE, 2009, p. 45).

Se aceitarmos, como nos aponta a abordagem corpórea da cognição, que todo conhecer se realiza
pelo fazer de um ser vivo, ligado à sua experiência no mundo, então podemos compreender o fenômeno
da experiência analisando o modo como os organismos organizam suas ações. A nossa experiência está
ancorada na nossa estrutura somática e existe uma co-implicação entre cognição e experiência, entre ação e
percepção e entre um modo particular de ser e o modo como o mundo nos aparece. Se sem um corpo físico

674
que conheça não há conhecimento, podemos ainda inferir que não existe capacidade cognitiva separada e
independente das capacidades corporais como percepção e movimento.

Tendo isto em perspectiva, aponto as práticas somáticas como um caminho possível para disponibi-
lizar o corpo à improvisação e para a investigação dos dados que surgem dessa experiência, nos seus vários
contextos, artísticos e pedagógicos. Mas a que tipo de experiência estou me referindo? Para especificar
com qual entendimento de experiência estou dialogando, trago a fala de Depraz, Varela e Wermesch (2003)
quando os autores nos dizem que:

O que nós queremos dizer com experiência? Queremos dizer o vivido, entendi-
mento em primeira-mão, uma narrativa, de todo o alcance de nossas mentes e
ação, com a ênfase não no contexto da ação, mas na natureza imediata e corpo-
rificada, portanto, inextricavelmente pessoal do conteúdo da ação. A experiência
é sempre aquela a que um sujeito singular é submetido em qualquer momento e
lugar dado, ao qual ela/e tem acesso “na primeira pessoa”. (DEPRAZ, VARELA e
VERMESCH, 2003, p. 3, tradução minha386).

Nos contextos em que a improvisação em dança atua como mediador da experiência criativa e/ou
pedagógica, o soma organiza os dados desta experiência para construir seus saberes, e é preciso desenvolver
a habilidade de escutá-los, de focar a atenção neles, de observá-los, de entendê-los e de vivenciá-los de for-
ma mais consciente. Estes dados (informações) podem vir do próprio corpo, na forma de sensações táteis,
hápticas, visuais, cinestésicas, entre outras, na percepção de como o corpo se relaciona com espaço/tempo
e do contexto no qual está inserido, bem como informações vindas do próprio movimento, seu iniciar, seu
sequenciar, sua trajetória, seus princípios organizativos e suas qualidades tônicas. As práticas somáticas,
enquanto metodologias de primeira-pessoa, nos oferecem exatamente os meios para disponibilizar o corpo
a esta escuta atenta e investigação da experiência.

Com base na auto-observação, as metodologias de primeira pessoa, bem como as práticas somáti-
cas, têm como objetivo comum aprender e reeducar a percepção para aumentar o discernimento e a liberda-
de de escolha para a ação no momento presente. As metodologias de primeira pessoa acessam e constroem
conhecimento no/do soma.

As abordagens de primeira pessoa engendram conceitos que valorizam a atenção


aos sentidos, a importância da prática e do self como instrumentos da percepção.
Estes ecoam nas habilidades desenvolvidas nas práticas corporais de Educação
Somática. (SCHIPHORST, 2009, p.57, tradução minha)387

Para apresentar esta relação entre a improvisação em dança e as práticas somáticas de forma a ofe-
recer pistas que indiquem o imbricamento entre elas na produção de conhecimento pelo movente, parto
aqui do pressuposto apresentado pela abordagem da cognição corpórea, considerando a compreensão de
que o conhecer emerge da experiência vivida, e não, da representação de mundo exterior ao indivíduo. Esse
conhecer está intrinsicamente imbricado com o mundo em uma relação de coespecificação mútua. Com tal
maneira de entender, é possível indicar que a improvisação, como experiência vivida produz conhecimento
para o improvisador.

386. “What do we mean by experience? We mean the lived, first-hand acquaintance with, and account of, the entire span of our minds and action,
with the emphasis not on the context of the action but on the immediate and embodied, and thus inextricably personal nature of the content of the
action. Experience is always that which a singular subject is subjected to at any given time and place, that to which s/he has access ‘in the first person’.”
(DEPRAZ, VARELA e VERMESCH, 2003, p. 3).
387. First-person approaches engender concepts that value attention to the senses, the importance of practice and the self as an instrument of per-
ception. These are echoed in the skills developed within the body-based practices of somatics. (SCHIPHORST, 2009, p.57)

675
Quando relaciono estas práticas com as práticas improvisacionais em dança estou me referindo à in-
tegralidade da experiência de mover-se, pois que, como já argumentado anteriormente, o corpo se apresenta
como referência intrínseca da experiência de si mesmo, do outro e do mundo. Integralidade aqui significa
que a improvisação articula todos os aspectos da corporeidade, estrutura, função, intencionalidade e rela-
ção. Isto nos aponta para a profundidade relacional que o movimento possibilita entre nós e nós mesmos
e entre nós e o mundo a nossa volta. Quanto a esta relação entre movimento e mundo Turtelli, Tavares e
Duarte (2002) nos trazem que:

O ato de colocar-se em movimento possui um grande potencial transformador. Quando a


pessoa é considerada na sua totalidade, e o ato motor realizado em conexão constante como
seu sentir, vemos um caminho para o autoconhecimento, no qual o contato com a experi-
ência física promove o desenvolvimento pessoal do indivíduo. Nesse contexto, o indivíduo
tem a possibilidade de, ao colocar-se em movimento, reorganizar suas experiências vitais,
redescobrindo-se e articulando novas integrações. O movimento integrado é um caminho
para o fluir no contato dentro e fora do ser humano e um agente para a eficácia da ação
significativa do ser humano com o meio. (TURTELLI; TAVARES e DUARTE, 2002, p.164)

Durante a experiência de improvisar em dança, temos que lidar com muitas propriedades e conteú-
dos da experiência e integrá-los de forma a fazer sentido para nós, ao mesmo tempo em que tomamos deci-
sões em tempo real sobre o que fazer a partir destas informações que chegam à consciência. De acordo com
a abordagem enativa da cognição corpórea, as experiências perceptivas de conteúdo espacial e de apreensão
do mundo dependem do conhecimento implícito na forma como estímulos sensoriais variam em função
dos movimentos do corpo, variando, com isso, seus conteúdos e suas propriedades.

A abordagem enativa da cognição, um ramo da ciência cognitiva corpórea, apresenta a possibilida-


de de conceituar a improvisação em dança como uma enação, pois, considera os indivíduos como sistemas
vivos caracterizados por plasticidade e permeabilidade (adaptações momento a momento entre sujeito e
o ambiente), autonomia, tomada de sentido, emergência, experiência e busca de equilíbrio. A abordagem
enativa da cognição corpórea enfatiza os papéis que o movimento do corpo e a experiência sensório-motora
desempenham na formação de conceitos, do pensamento abstrato, logo, no próprio ato de conhecer.

Thompson (2007) nos apresenta cinco ideias essenciais da abordagem enativa da cognição. A pri-
meira ideia é que os seres vivos são agentes autônomos, eles ativamente geram e mantem a eles mesmos, e
com isto enagem (enact) ou produzem seus próprios domínios cognitivos. A segunda ideia é que o sistema
nervoso é um sistema autônomo e dinâmico que ativamente gera e mantem sua própria coerência e padrões
significativos de atividade, ele não é como um sistema computacional simbólico que recebe informações do
mundo externo e processa estas informações de alguma forma. A terceira ideia delineia a cognição como o
exercício de um saber-fazer (know-how) habilidoso em uma ação situada no mundo e corporificada, que o
sistema nervoso pode ser perturbado por eventos externos, mas não determinado por eles. Este saber-fazer
habilidoso é o que se desenvolve ao praticarmos a improvisação. A quarta ideia é a de que o mundo de seres
cognitivos não é pré-especificado, que o ambiente externo não é representado internamente pelo cérebro,
mas sim um domínio relacional enagido ou produzido pela maneira como ele se acopla com o meio am-
biente, Esta “produção” também é referida como “fazer sentido”, a capacidade do agente de dar sentido ao
seu ambiente e ao seu estar nele. Ao improvisar o movente produz sentido sobre o seu fazer e sobre o mundo
a sua volta. E a quinta ideia trazida por Thompson é que a experiência é central para qualquer possível en-
tendimento da mente e precisa ser investigada de forma fenomenológica. O autor diz ainda que a cognição
não acontece em abstração, mas sempre em um contexto que inclui não apenas o ambiente que o agente se
encontra, mas também sua própria corporeidade. Ao dançarmos, ou nos movermos, estamos sempre inse-

676
ridos em um contexto, em um ambiente, corporificando esta relação de sentidos que travamos com o que
estamos fazendo no mundo e com a percepção e vivência desta experiência.

Considerações finais

Levando estas reflexões em consideração, as articulações apresentadas nesse artigo e o histórico de


experiências pessoais como artista, pesquisador e docente, aponto aqui para a possibilidade de que uma
prática regular, organizada e sistematizada pedagogicamente de investigação da experiência de improvisar
em dança, pautada em procedimentos que abordem a investigação da experiência na primeira pessoa e uti-
lizando estratégias que aproximem o movente do seu fazer, de forma mais consciente, podem atualizar hábi-
tos sensório-motores e disponibilizar o soma para a dança. Atualizar estes padrões, nesse contexto, significa
tanto o processo de aprendizagem para o movente inexperiente quanto o refinamento de suas habilidades
para o profissional em dança.

Improvisar-se dançando é uma ação no mundo de grande complexidade capaz de reorganizar


nossa cognição e torná-la mais flexível. Improvisar como um processo de circularidade implica em um
conjunto de coordenações de autorreferências recursivas de movimento e percepção. Experiências de
movimento improvisado são uma fonte de agentividade (ações intencionais), de relações se-então, de va-
riáveis espaço-temporais. Elas estão repletas de conceitos cinéticos que têm a ver com distância, energia,
velocidade, amplitude de movimento, direção, ou seja, um conjunto complexo de qualidades dinâmicas
inerentes à experiência do próprio movimento. Ao mergulharmos nessa experiência, a cognição precisa
flexibilizar-se e complexificar-se, possibilitando o surgimento de novas formas de estar no mundo e de
mover-se.

Ao expor o soma (corpo na primeira pessoa) à situação de uma prática regular, sistematizada e
constante de improvisação, é disponibilizada ao corpo a oportunidade de descobrir como se mover, como
se organizar e como construir uma técnica própria a partir de suas próprias descobertas. E isso é produção
de conhecimento.

É importante para o campo da dança que mais pesquisas e investigações se dediquem a melhor
entender como movimento produz conhecimento e como esse conhecimento pode ser articulado com seus
processos criativos e pedagógicos. Através da interdisciplinaridade e do diálogo com outros campos do sa-
ber, a dança pode se beneficiar no sentido de expandir sua produção de conhecimento.

REFERÊNCIAS

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f. il. 2017. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
-Graduação em Dança, Universidade Federal da Bahia, deral do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Salvador, 2017.

678
REFLEXÕES ACERCA DO PROCESSO
DE MEDIAÇÃO TEATRAL: UM CONVITE
AO PENSAMENTO INTERDISCIPLINAR
Layane Pereira Pavão – UFMG

Nos últimos anos, os estudos acerca do espectador teatral têm estado em voga e “[...]
despertado o olhar de muitos pesquisadores ao redor do mundo [...]” (CARNEIRO, 2017, p. 21). Desta
maneira, esta escrita se propõe a refletir acerca do processo de mediação cultural por meio de práticas que
privilegiam este momento no evento teatral, discutindo as especificidades de dois projetos ou programas
culturais e/ou educativos, sendo eles o projeto Teatro La Montagne Magique e o programa educativo SESC
Arte-Educação: transformando plateias.

O primeiro projeto é vinculado ao Centro de Sociologia do Teatro da Universidade Livre de Bru-


xelas, na Bélgica. Ele traça seus estudos a partir de três concepções que se complementam: “[...] a criação,
a recepção e a mediação [...]” (DELDIME, 2002, p. 229). O Centro foi criado em 1970 e tem como uma de
suas principais atividades o projeto La Montagne Magique.

Concebido em 1995, o projeto “[...] oferece espetáculos criados por companhias profissionais que
abordam temáticas diversas e se apoiam em estéticas contrastantes [...]” (Idem, p. 229). Fazem parte da pro-
gramação do projeto aproximadamente 250 espetáculos ao ano, belgas e estrangeiros, privilegiando sempre
o contexto escolar e familiar.

Tal programação visa “[...] aprimorar a formação teatral de professores e futuros professores [...]”
(Ibidem, p. 229). O projeto também objetiva, com suas atividades, habituar crianças e jovens a instaurar
uma relação “[...] com o teatro enquanto espectadores atentos, estimulá-los a experimentar a arte dramática
enquanto aprendizes criativos [...]” (Ibidem, p. 229).

Durante a execução do projeto, são contempladas quatro etapas, que são: “a descoberta do espe-
táculo”, que consiste em uma aproximação dos alunos aos artistas e, por consequência, dos signos teatrais
e dos elementos espetaculares. Nesta etapa, os estudantes assistem o espetáculo que servirá de disparador
para a ação teatral do projeto. A segunda etapa trata de momentos formativos com professores, aos finais de
semana, podendo ser um ou mais.

A terceira etapa privilegia a criação teatral por parte dos estudantes. A equipe do projeto concede
suporte aos professores que orientam o processo. E a última etapa trata da representação teatral, momento
em que as turmas apresentam as suas cenas no palco do La Montagne Magique.

679
A segunda experiência a ser abordada nesta escrita é o projeto SESC Arte-educação: Transforman-
do Plateias, em Taguatinga – DF, Brasil, que surgiu em 2010 com a idealização da gestora cultural do espaço,
Martha Lemos de Moraes. Este trabalho tem como base a dissertação de mestrado da pesquisadora, em que
foi abordado o projeto por ela desenvolvido no espaço cultural citado. O projeto surgiu a partir da percepção
da pesquisadora do desuso do Teatro SESC Paulo Autran/Taguatinga Norte e da “[...] escassez de público
nas programações do teatro [...]” (MORAES, 2014, p. 68).

Trataremos especificamente da experiência relatada pela autora no desenvolvimento do projeto


em 2013. Inicialmente, ela se propôs a estabelecer uma relação de “triangulação entre professor, estudante,
artista/obra”. Mas com a reformulação do projeto, as ações contemplaram parcerias até então não firmadas.
De modo que o projeto se desdobrou no Educativo 2013: guarda-chuvas de ações mediadoras.

Nesta fase do projeto, o primeiro aspecto da triangulação permaneceu; o professor também foi con-
templado. Foram oferecidas palestras/oficinas que objetivavam a formação continuada dos professores, em
dia e horário fixo. O ciclo foi aberto aos “[...] educadores de uma forma geral, pais de alunos, estudantes de
Artes, Pedagogia ou licenciaturas [...]” (MORAES 2014, p. 112).

Após a reformulação do projeto, a proposta de mediação sofreu alterações; houve a inclusão dos
estudantes do EJA EDUSESC nesta etapa. A mediação, que antes era feita em sala de aula, foi realizada no
próprio teatro em forma de minipalestra, com duração de 20 minutos, antes do espetáculo. O momento
também foi aberto ao público em geral. Este momento foi conduzido por um mediador, que tratou sobre
alguns aspectos tais como nome e temática da obra, bem como introduziu, por meio de vídeos, a estética
teatral contemplada no espetáculo, além de possibilitar um primeiro contato com os atores.

Houve também uma proposta de mediação logo após o espetáculo no teatro, em que o me-
diador buscou fomentar o debate por meio de um bate papo com os atores. Mas, conforme observado
pela autora, esta ação não se mostrou tão eficiente, uma vez que, após o espetáculo, os estudantes
encontravam-se cansados e o momento não fluiu tão bem como desejado devido às saídas constantes
dos estudantes.

Ocorreu ainda outra mediação pós-espetáculo, agora em sala de aula. O momento foi idealizado em
forma de oficina, com todas as turmas que assistiram o espetáculo. Foi utilizado também, em alguns mo-
mentos, espaço do teatro. A mediadora retomou alguns assuntos discutidos no espetáculo e trabalhou jogos
de sensibilização e improviso que privilegiavam o prisma da estética do espetáculo apreciado.

Este formato de mediação propiciou aos estudantes refletirem acerca do espetáculo por meio dos
questionamentos lançados pela mediadora, bem como vivenciarem por meio dos jogos um processo, mes-
mo que em pequena escala, de construção cênica.

Após esta breve introdução acerca dos projetos, lancemos o olhar sobre algumas especificidades de
cada um. O primeiro projeto, La Montagne Magique, é um trabalho que existe há 23 anos, já consolidado e
tido como referência na formação do espectador infanto juvenil. Observa-se a delimitação de público, há
uma preocupação em apresentar obras apropriadas a cada faixa etária, de modo que os espetáculos são ofe-
recidos conforme a classificação de nível escolar.

O segundo projeto, por sua vez, entre 2010 e 2013 estava em seu estágio inicial, e lhe fora atribuído
um aspecto experimental de modo que as ações foram se modificando no decorrer destes três anos. Mas, fo-
cando nas ações realizadas em 2013, observa-se que, diferente do projeto belga, privilegiava “[...] um público
bastante heterogêneo, de diversas idades e gerações [...]” (MORAES, 2014, p. 120), uma vez que as turmas do
EJA EDUSESC eram compostas por adultos, senhores, senhoras, jovens e adolescentes.

680
Em ambos os projetos, a formação do professor é contemplada e caracteriza-se como o primeiro mo-
mento. Porém, se diferencia em alguns aspectos: enquanto no La Montagne Magique a formação é promovida
pelos artistas do espetáculo a ser assistido, no projeto brasileiro para o ciclo de formação continuada foram
convidados professores universitários e de notório saber, especializados nos temas que foram abordados.

Ainda acerca do momento formativo docente, observa-se que, na experiência belga, há uma pre-
ocupação em ofertá-lo aos professores dos estudantes que participarão do projeto. Já na experiência bra-
sileira, o ciclo formativo não destina-se apenas aos professores do EDUSESC, apesar de que, inicialmente,
a formação continuada fora pensada para estes profissionais, mas também para os demais profissionais da
rede. Nota-se que, nos dois projetos, a formação busca “[...] iniciar os seus professores no domínio desta arte
[...]”, do teatro (DELDIME, 2002, p. 229).

Tratando do processo de mediação teatral, os projetos seguem caminhos diferentes, mas que, em
certos momentos, se cruzam. Nos dois projetos há um trabalho de aproximação dos elementos teatrais que
se antecipa ao espetáculo. As ações voltadas aos estudantes também se assemelham, uma vez que, em am-
bos as atividades, são executadas em formato de oficina, ofertada pela equipe do projeto. Mas no caso do
projeto belga, as oficinas são oferecidas com o propósito de estimular a representação, enquanto as oficinas
no Teatro Paulo Autran objetivaram um despertar da reflexão, apesar de também contemplarem momentos
voltados à representação teatral como fruto dos jogos.

Um e outro possuem como referência um espaço físico, um palco. O que mostra a potência do edi-
fício teatral na construção do processo de recepção teatral, principalmente, por tais projetos privilegiarem a
aproximação do público com os elementos cênicos.

Ao pensarmos o espaço físico como este disparador de uma ação cultural, alcançaremos um ponto
de intersecção entre a cultura e o espaço, que se trata de um dos pontos fortemente abordados dentro do
contexto da geografia cultural. Sobre este aspecto, o autor francês Vincent Berdoulay (2012, p. 123) destaca:

O papel ocupado pelas imagens nesse processo é central. São elas que midiatizam de ma-
neira sensível a relação do sujeito com espaço. Elas têm, em níveis diversos, uma mate-
rialidade que lhes permite funcionar como veículos de símbolos e entrar nos processos
complexos de simbolização de elementos do meio ambiente.

As considerações do autor nos direcionam a um olhar reflexivo sobre o palco como não apenas um
lugar onde as cenas são executadas e ações são propostas, mas como um espaço carregado de simbolismo,
altamente ligado à memória e aos sentidos. A esse respeito, Moraes (2012, p. 14) considera que “[...] por
meio da arte o ser humano pode simbolizar mais de perto o seu encontro primeiro, sensível, consigo mesmo
e com o mundo [...]”.

Ao observamos o La Montagne Magique, nota-se tal centralidade do projeto em torno do edifício


teatral. É neste espaço onde se concretiza a ação, de modo que as atividades iniciam e são concluídas no
palco. O próprio nome do edifício, que nomeia também o projeto, é um convite à imaginação. A “montanha
mágica” já remete à fantasia, algo intimamente relacionado ao contexto infanto juvenil, principal público
do projeto.

O projeto desenvolvido pelo SESC surgiu a partir da percepção da gestora cultural de que “[...] na
visitação de escolas ao teatro SESC Paulo Autran, há certo “ senso comum” de que o conhecimento racio-
nal/intelectual é desconectado dos saberes sensíveis – e a estes, é dada menor importância [...]” (MORAES,
2014, p. 14).

681
Nota-se que o projeto brasileiro também atribuiu ao espaço uma característica de disparador da
ação de gestão cultural. Neste caso, a partir da ótica da constatada ausência de uma relação entre a refle-
xividade e o saber sensível. Além, ainda, de emitir um alerta acerca do tipo de experiência ali vivenciada,
classificada pela autora como “senso comum”, o que anularia tal experiência como singular e pessoal.

Vale ressaltar que, assim como o espaço teatral, o próprio espetáculo e as intervenções propostas
pelos projetos constituem um convite a uma “experiência intersubjetiva”, ou seja, ao mesmo tempo que se
deve valorizar a experiência individual e espacial do espectador, a experiência coletiva não deve ser ignora-
da. Conclui-se então:

O lugar do espectador está ligado à identidade e à alteridade, e é construído na experiência


intersubjetiva do sujeito que presencia o evento teatral, não se limitando ao momento no
qual ele ocorre, mas interligando experiências passadas e futuras (expectativas). Portanto,
ainda que hajam alterações físicas no lugar, o local propriamente dito do espectador pos-
sui uma estabilidade. (CARNEIRO, 2017, p. 23).

Tal afirmação se mostra um convite a refletir, mesmo que introdutoriamente, acerca da experiência
estética a partir das concepções de identidade e espaço. Segundo Carneiro, o espectador encontra-se conec-
tado à identidade e também à alteridade, de modo que se pode supor que uma não é opositora à outra, pelo
contrário “a identidade depende da diferença” (WOODWARD, 2014, p. 40).

Ressalta-se, assim, a importância que o “outro” traz aos estudos da recepção teatral. Segundo Mo-
raes (2014, p. 64), pode-se compreender “[...] a noção de “espectador” como sujeito passível de experiências
estéticas pessoais e intransferíveis, mas que fazem parte de uma coletividade [...]”.

Nota-se que, nos projetos abordados, houve o favorecimento da experiência coletiva tanto nas ações
realizadas com os professores como nas oficinas realizadas com os estudantes. Isso nos leva ao questiona-
mento de qual a potência do trabalho coletivo dentro de ações específicas de mediação teatral?

Atrelada à experiência intersubjetiva destacada por Carneiro, considera-se também o tempo, que
não deve se restringir apenas ao momento presente, mas propõe uma conexão com o tempo passado e tam-
bém futuro. Deste modo, a experiência estética não se limita às conexões com o outro no presente, mas faz
relações com a memória e com as projeções.

Acerca da compreensão de cultura, a partir desta ótica, Berdoulay (2012, p. 122) afirma que “[...] a
cultura não é somente uma questão de herança do passado nem é feita da experiência presente; ela corres-
ponde, talvez, antes de tudo, a uma projeção no futuro.”

Pode-se supor que a experiência de expectação teatral se realiza com primazia no período pós-espe-
táculo? Notou-se que as mediações ocorridas nos projetos, em especial no programa SESC Arte-educação:
transformando plateias, foram desenvolvidas de forma mais ampla após o espetáculo.

Observa-se que as mediações realizadas no espaço do teatro Paulo Autran, caracterizaram-se como
um espaço de trocas, compartilhamento de leituras, desdobramento de sentidos, pois, segundo a gestora do
projeto, “[...] o caminho da arte é o da sugestão, da provocação e não o da proposição [...]” (MORAES 2014,
p. 69). Enquanto que as ações desenvolvidas no La Montagne Magique conduz o processo de mediação a
partir do “[...] estímulo às práticas de expressão dramática [...]” (DELDIME, 2002, p. 23).

Portanto os projetos revelam a importância do trabalho de mediação nas ações de gestão cultural. É
necessário, sobretudo, que tais ações privilegiem o aspecto sensível de modo que as propostas não se encer-
rem apenas na disponibilização de espetáculos ao espectador, mas propiciem momentos de reflexão, debate
e experimentação.

682
Diante das reflexões obtidas durante a escrita, resta um questionamento: de que modo a compreen-
são de conceitos como cultura, espaço, memória e identidade podem fomentar o debate acerca da experiên-
cia intersubjetiva dentro do processo de mediação teatral? Esta escrita caracteriza-se antes, de tudo, como
um convite a uma reflexão interdisciplinar.

REFERÊNCIAS

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683
DENUNCIANDO O AMOR
NO ESPAÇO COMUM DA GALERIA
Nata Borges Ferreira- UFRN

Prólogo

Esse relato de experiência apresenta a exposição Arremedos feita no Sesc Cidade Alta em Natal/
RN em 2017, entre os meses de setembro e outubro. Discorre também sobre as referências que sustentam
a exposição, através dos elementos da instalação imersiva criada na galeria, e do diálogo deixado pelos
visitantes-participantes. Por se tratar de uma exposição relacional, questiono seus desdobramentos através
dos conceitos de espaço comum trabalhado por Negri e Hardt, na perspectiva dos afetos como elemento
político, na ótica de Safatle.

Centralizo na discussão as manifestações de Amor e suas concepções na contemporaneidade, do amor ro-


mântico ao amor cristão, do amor monogâmico ao amor livre. O mito amor. Amor que vem associado com
ideia de poder, posse, fronteiras, territórios. Que é usado como legitimador de violências, dentro do que
chamamos de família, relacionamentos, educação e que é também reflexo da política que vivemos e é feita
no Brasil atualmente, um conservadorismo em nome da família. E se somos movidos por afetos e não por
argumentos, como diz Safatle, precisamos principalmente pensar outras maneiras de sermos afetados.

Nunca seremos capazes de pensar novos sujeitos políticos sem nos perguntarmos inicial-
mente sobre como produzir outros corpos. Não será com os mesmos corpos construídos
por afetos que até agora sedimentaram nossa subserviência que seremos capazes de criar
realidades políticas ainda impensadas. (Safatle, 2016. Pg.29)

O espaço dos afetos

Imagem 01 – Abertura daexposição Arremedos, dia 27/09/2017,


galeria do Sesc Cidade Alta, Natal/RN, 2017. Foto: Natã Ferreira

684
Na exposição Arremedos o espaço da galeria se tornou em uma instalação imersiva, retomando o
conceito de cubo branco de O’Doherty, destronando a ideia de um espaço nulo e anestesiado que recepciona
a obra de arte.A relação do público com o espaço inteiro da galeria se tornou parte integrante da exposição:
teto, chão e objetos envelopados da cor branca, que foram o suporte para os desenhos-traços-palavrasdos vi-
sitantes-participantes, como mostra na imagem 01 acima. Na entrada da galeria ficaram à disposição papeis
pardos, carvão vegetal e canetões hidrocor, os papéiseram preenchidos e colocados dentro dos Vodus. Sus-
penso no espaço tinham 100 Vodus feitos de feltro vermelho, com buracos na região da “barriga” do objeto.
Ao fundo da sala um vídeo-performance denominado O amante.E na parede oposta ao vídeo-performance
seguia o seguinte texto do artista:

Somos da guerra também por causa do Amor. O mito Amor. O Amor moldado até os dias
de hoje que é reflexo da política que vivemos: poder, domínio, posse, fronteiras, territó-
rios. A violência passional é o ápice desse Amor.
“ ‘Como pode um homem afirmar seu poder sobre o outro, Winston?’ Winston pensou
um pouco. ‘Fazendo-o sofrer’, ele respondeu. ‘Exatamente. Fazendo-o sofrer. Não basta a
obediência’ ”. (“1984” - George Orwell).
O Deus do cristianismo e catolicismo é um exemplo de Amor totalitário, que devastou
em nome de educar à humanidade. Que é a mesma educação que flui nas famílias, e vem
em forma de surra para o “bem”. Pais ferem os filhos. Homens às mulheres. A cultura da
tortura animal da indústria. O capitalismo...
Arremedos são cópias e repetições, por definição, mas essa repetição aqui começa no âm-
bito simbólico, ideológico que alimenta o cultural. A exposição Arremedos é uma instala-
ção imersiva, que convoca o simbólico e que convida o público a reconhecer o seu Amor
e expurga-lo. Parte da ação com o vídeo-performance “O amante” que remete a obra de
Magritte “Os amantes”. E os Vodus que referenciam um elemento da cultura Haitiana de
origem africana. Elemento de resistência negra perante ao Amor Branco Ocidental. Na
prática e cultura Vodu não há separação entre a matéria e o espírito, sagrado e profano,
sagrado e temporal. A instalação é passível da ativação do público, num rito artesanal, ao
inserir no Vodu seus questionamentos próprios, e talvez gritar por uma possível reconci-
liação metafísica e física com o cosmos. Não é ressignificar Amor, mas renomear os afetos
para que se derivem de compaixão e respeito. Uma tentativa de furar, buscar brechas nesse
manto cultural opressor que somos cobertos, manto esse que vem sobrecarregado de con-
ceitos como o Amor.

O vídeo performance O amantefaz referência ao quadro “Os Amantes” de Magritte, simbolica-


mente como se o performer estivesse separado do par no quadro, mas ao mesmo tempo ligado ao obser-
vador [a câmera filmadora] através de uma linha vermelha. Os Vodussuspensosna instalaçãofazem refe-
rência a um dos elementos da cultura Haitiana que é de origem africana. Na prática e cultura Vodu não há
separação entre a matéria e o espírito, sagrado e profano, sagrado e temporal. Os vodus no ritual haitiano
são feitos com elementos da natureza (gravetos, folhas, etc.), objetos pessoais e ou até partes retiradas do
corpo (cabelo, unha, pelos...). Como a matéria e o mundo espiritual são híbridos, o vodu carrega o poder
de transformar o derredor.

O Vodu constrói uma estreita ligação com a natureza, não no sentido de que a natureza é
adorada, mas sim no sentido de que os fiéis acreditam que o homem está profundamente
inserido nela, tornando-se um microcosmo a partir do qual o mundo inteiro pode ser lido
e desde onde a teia de significados da cultura constrói todos os seus sentidos. (PROSPE-
RE, Renel& GENTINI, Alfredo Martin. 2013)

685
A galeria por inteiro se tornou uma instalação passível da ativação do público, como um objeto rela-
cional, recriando um rito simbólico, um espaço de discussão de afetos. E mesmo quase em estado literal de
cubo branco, fica claro que não é um espaço neutro, mas recheado em camadas de imbricações já instaura-
das pela instituição Arte. Essa relação com o público retira o artista do espaço privilegiado hierárquico, mas
retoma o conceito de Escultura Socialde Beyus:

A Escultura social pode ser definida em como nós moldamos e damos forma ao mundo
em que vivemos. É a escultura vista como um processo evolucionário onde todo ser hu-
mano é um artista. (DURINI, 1997)

Dessa maneira a exposição Arremedos também construiu com o público um trabalho imaterial dialé-
tico, tornando a galeria em um espaço de livre manifestação de ideias. O artista enquanto propositor lançou
“provocações” com os demais elementos inseridos no espaço (texto, vodus e vídeo), centralizou o conceito
Amor e convidou o público para apreciá-lo e discuti-lo de outras formas. Não em busca de uma verdade, e
sim de múltiplas (im)possíveis perspectivas. Esse espaço construído em conjunto pode ser visto como um
espaço comum:

Também consideramos fazer parte do comum os resultados da produção social que são
necessários para a interação social e para mais produção, como os conhecimentos, as
imagens, os códigos, a informação, os afetos e assim por diante. (...) Centra-se antes, nas
práticas de interação, cuidado e coabitação num mundo comum, promovendo as formas
benéficas do comum e limitando as prejudiciais. (Hardt; Negri. 2016, P. 08.)

Imagem 02 – Encerramento daexposição Arremedos, dia 25/10/2017,


galeria do Sesc Cidade Alta, Natal/RN, 2017. Foto: Natã Ferreira

Desconstruir um termo superestimado do senso comum, como o Amor, na galeria, foi uma pro-
vocação necessária para que o diálogo com o público trouxesse conflitos de ideias, muitos reafirmando um
amor de forma positiva, outros o negando, ou questionando seus próprios conflitos enquanto mulher, gay,
travesti, até mesmo enquanto homem. Houve manifestações pedindo afeto, oferecendo ocontato do aplicati-
vowhatsapp, cantadas, pornografia. Também os que deixaram versículos bíblicos, cumprimentos aos orixás.
Houve muitos desenhos e até de forma continuada como em quadrinhos.

686
Imagem 3 – Interação deixada pelo público
nas paredes da galeria, dia 25/10/2017,
galeria do Sesc Cidade Alta, Natal/RN, 2017.
Foto: Natã Ferreira

A desconstrução do amor não passa só pelo desejo de provocação, mas também como necessidade
de desestabilizar estruturas de uma sociedade pautada na alienação, que carrega grossos rabiscos coloniais,
que tem como base uma religião, cor de pele, sexualidade e gênero, específicos. Desestabilizar é se permitir
a experiência (LARROSA, 2015. Pg. 15), permitir-se estar exposto, diluir a si, ser-se outro e não se concluir
em sujeito de essência bruta, imutável.

“Paixão” pode referir-se, por fim, a uma experiência do amor, o amor-paixão ocidental,
cortesão, cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de um desejo que permanece
desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação para um objeto sempre inatingível. Na
paixão, o sujeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Por isso,
o sujeito apaixonado não está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodomínio, mas
está fora de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, alienado, alucinado. (LARROS-
SA, 2015. Pg. 29).

Nesse ponto talvez seja necessário questionar se precisamos ressignificar Amor, ou criar formas ou-
tras de se relacionar.Partindo daqui com afetos que se equilibrem em Respeito (no sentido de fazer justiça
a algo/alguém; reconhecer algo/alguém), da empatia (no sentido de se permitir ver pelo olhar do outro,
sentir-se no lugar do outro). Para que a paixão-amor não nos faça tornar o outro em expectativas, em uma
coisa inatingível e inalcançável, em um território material do Eu, mas coabitar em um lugar comum sem
hierarquias entre pessoas, bichos, objetos, natureza (HARDT; NEGRI. 2016. Pg. 8) . E nesse coabitar buscar
negociações saudáveis para todos nesse espaço Terra.

687
Espaço heterotópico da democracia

Imagem 4 – Desmontagem da exposição Arremedos e leitura dos bilhetes


deixados dentro dos Vodus, dia 25/10/2017, galeria do Sesc Cidade Alta,
Natal/RN, 2017. Foto: Natã Ferreira

Na tentativa de estabelecer conexões com o momento de instabilidade e não credibilidade da política


atual brasileira, sendo mais específico: pós impeachment da Dilma e pós prisão Lula em ano eleitoral. E além
de uma polarização de afetos da população afirmando lados, esquerda ou direita. A exposição Arremedos
convoca um espaço democrático em que todos os envolvidos se manifestem e coabitem, mesmo alguns com
ideias divergentes, ou extremistas e desumanas. (Na exposição algumas pessoas, por exemplo, desenharam
nas paredes um símbolo nazista e outra “Bolsonaro 2018”). Assim também como o texto do artista também
foi refeito pelo público:

Imagem 5 – Rasura da palavra “Deus” no texto do artista. Encerramento


daexposição Arremedos, dia 25/10/2017, galeria do Sesc Cidade Alta,
Natal/RN, 2017. Foto: Natã Ferreira

A instalação talvez grite por uma possível reconciliação metafísica e física nossa com o cosmos. Não
só para ressignificar Amor, mas renomear os afetos para que se derivem de empatia e respeito. Uma tentativa
de furar, buscar brechas nesse manto cultural opressor que somos cobertos e/ou muitas vezes o reforçamos,

688
a exposição assim não cria um espaço utópico, mas atua nas heterotopias, como traz Foucault, “espaços
absolutamente outros”. Partindo desses conceitos levantados podemos pensar talvez em um espaço demo-
crático para a educação, um em que todas as manifestações individuais têm lugar de existência e de diálogo.
E assim talvez pensar em um Estado como um artista propositor, feito por todos e para todos, retomando a
epistemologia grega (demokratia - demos ou “povo”, e kratos“poder”).

REFERÊNCIAL

CLARK, Lygia.Objeto Relacional. In: Lygia Clark (Rio de LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência.
Janeiro: FUNARTE, coleção ABC, 1980. P.51). Reprodu- Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2015.
zido In:ManuelJ.BorjaVillel e NuriaEnguitaMayo (Edit),
O’DOHERTY, Brian. No Interior Do Cubo Branco: a
Lygia Clark (catálogo de exposição), FondacióAntoniTà-
ideologia do interior da arte. São Paulo, Martins Fontes,
pies (Barcelona), RéuniondesMuséesNationaux/MAC,
2002.
galeriescontemporainesdesMusées de Marseille (Mar-
selha), Fundação de Serralves (Porto) e PalaisdesBeaux- PROSPERE, Renel& GENTINI, Alfredo Martin. O Vodu
-Arts (Bruxelas), 1997; p. 321)(com a colaboração de no universo simbólico haitiano. Revista Universitas Rela-
Suely Rolnik). ções Internacionais, Brasília. 2013.

DURINI, Lucrezia De Domizio. The Felt Hat A Life Told. TIBURI, Márcia. Entrevista: Recalculando Rotas: Amor
Charta: Milão, 1997, p. 54. mamífero. Acesso no link < https://youtu.be/1yy4UisnVks
>
FOULCAULT. Michel. O corpo utópico, as heterotopias.
São Paulo, n-1 Edições, 2013, p. 21. TIBURI, Márcia. Café Filosófico: Democratizar o amor e
a amizade I. Acesso no link <https://youtu.be/eZAHne-
HARDT, Michael;NEGRI, Antonio. Bem-estar Comum.
dzr10>
Rio de Janeiro, Record, 2016, p. 08.

689
MEDIAÇÃO DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
NA ESCOLA: ILUSTRAÇÕES DE ELENA POIRIER
VISTAS POR ESTUDANTES DA EDUCAÇÃO
INFANTIL E DO ENSINO FUNDAMENTAL
Rachel de Sousa Vianna - UEMG
Isabel Alves Corrêa de Abreu - UEMG
Eraldo Leandro Moraes Junior

De caráter polêmico, o termo “mediação” tem sido comumente utilizado na educação mu-
seal para referir-se às atividades de cunho dialógico voltadas para ampliar a capacidade do público de inter-
pretar imagens, vivenciar experiências estéticas na sua relação com obras de arte e se posicionar de forma
crítica em relação aos jogos de poder que estruturam os campos da arte e da cultura. Nesse trabalho, enten-
de-se que as atividades de mediação correspondem ao eixo de ensino de arte denominado pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais – PCN como “apreciação” ou “fruição” (BRASIL 1997; 1998; 2000). Embora teóricos
e pesquisadores enfatizem essa dimensão do ensino, há indícios de que ela ainda não foi devidamente in-
corporada à prática docente nas escolas brasileiras. Uma pesquisa realizada com professores participantes
do Programa Circuito de Museus388, realizado pela Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte –
SMED, confirma essa suposição no âmbito do estudo (VIANNA, REZENDE 2016).

Esse resultado inspirou o projeto de pesquisa e extensão Mediação da experiência estética na esco-
la, cuja proposta consiste em oferecer materiais didáticos criados por estudantes da Escola Guignard na
disciplina “Mediação em artes visuais” para utilização por professores da educação básica.A criação desses
materiais tomou como referência os parâmetros apontados por John Dewey (2010) para caracterizar uma
experiência estética e as ideias de Hans UlrichGumbrecht (2010), para quem a arte constitui um campo
privilegiado para nos reaproximar da substância do mundo, que desde o ingresso na modernidade tem sido
relegada em favor da interpretação.

Em termos metodológicos, a proposta de mediação para a compreensão crítica da arte desenvol-


vida por Teresinha Franz (FRANZ 2003; 2011; RANGEL&FRANZ, 2009) constitui a principal referência
na construção dos materiais educativos disponibilizados nesse projeto. Na perspectiva dessa estudiosa,
as atividades de mediação devem contemplar os âmbitos histórico/antropológico, estético/artístico, bio-

388. Em funcionamento desde 2011, o Circuito facilita o acesso do público escolar aos espaços museológicos da cidade, organizados em torno de
Circuitos Temáticos. As artes visuais sempre estiveram presentes no leque de opções, envolvendo os principais equipamentos culturais de Belo
Horizonte.

690
gráfico e crítico/social. A mediação como investigação crítica, defendida por George Geahigan (1997),
constitui outra baliza importante.Em comum, Franz e Geahigan afirmam que embora estudantes pos-
sam ser capazes de ver e entender muita coisa com base na sua experiência de vida, há modos convencio-
nais de entender as artes visuais que provavelmente irão permanecer inacessíveis para eles, a menos que
adquiram certos tipos de conhecimento e de habilidades. Para Geahigan, é essencial promover oportu-
nidades para desenvolver o conhecimento conceitual e as habilidades perceptivas. Franz recomenda ao
mediador criar situações de “desconforto cognitivo” que ajudem o estudante a superar as respostas de
senso comum.

Respaldados pela base teóricadefinida pelos autores citados, os estudantes de graduação que cur-
saram a disciplina no primeiro e segundo semestre de 2016 tiveram total liberdade para definir o públi-
co alvo, construir a curadoria educativa e compor o formato dos materiais de mediação. Dos cerca de
quarenta trabalhos produzidosnas três turmas, dez foram escolhidos para integrar o projeto. A maior
parte dos materiais consiste em orientações para o professor, impressas em preto e branco, e reproduções
coloridas de obras de arte impressas em papel couché. Os autores assinaram um documento de cessão de
direitos autorais e todos foram convidados a participar do projeto, fosse aplicando os materiais ou atuan-
do como observadores nas aulas.

A 1ª Edição do projeto aconteceu entre maio e dezembro de 2017. Com o apoio da coordenação do
Programa Circuito de Museus, todos os professores que estavam participando ou já haviam participado dos
circuitos de arte foram convidados para assistir à apresentação do projeto. Também foram chamados os pro-
fessores de arte do Instituto de Educação de Minas Geraise estudantes e egressos da Licenciatura em Artes
Plásticas da Escola Guignard que estavam atuando como professores à época do início do projeto. Aqueles
que atenderam nosso convite puderam escolher, entre os materiais disponibilizados, o que consideravam
mais adequado para suas turmas. Tambémpuderam optar por experimentarem eles mesmos o material edu-
cativo ou ceder suas aulas para o autor ou para um mediador aplicar a proposta enquanto atuavam como
observadores.

Elena Poirer: Corazón de niña, criado pelo estudante do Bacharelado em Artes Plásticas Carlo Fre-
derico de Souza Ferrara Marcolino, foi o segundo material mais requisitado. Um dos fatores que levou a essa
procura está relacionado com o fato de esse material, em comparação com os outros, ser mais apropriado
para o público da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental. É provável que outro motivo
de atração tenha a ver com o formato e o conteúdo mais tradicional das aquarelas de Poirer. De toda forma,
é interessante que o trabalho de uma ilustradora pouco conhecida no Brasil tenha tido tamanho apelo. As
próximas seções descrevem o material e o modo como foi aplicado em três escolas públicas de Belo Hori-
zonte. Por fim, compara os resultados obtidos em cada turma e, a partir dessa análise, discute o potencial da
mediação em artes visuais no ensino infantil e fundamental.

1. Material educativo: Elena Poirier: Corazón de Niña

O material de mediação é composto por uma brochura de treze páginas destinada ao professore
sete pranchas tamanho A4, com imagens coloridas. Quatro delas são reproduções de ilustrações de Elena
Poirier e três de imagens da cultura visual relacionadas com as obras de Elena: a animação “Aladim”, de Walt
Disney; duas capas de revistas em quadrinhos – Zé Carioca e Mônica e uma série de releituras da Mona Lisa
retiradas da internet. A ficha técnica aparece no verso das pranchas. O caderno do professor contém uma
fotografia e uma minibiografia da ilustradora, breves informações sobre o Chile e propostas de atividades
relacionadas com as imagens.

691
Imagem 1 – Material educativo Elena Poirier – Corazón de niña

Ao propor um diálogo entre as ilustrações de Elena Poirier e imagens da cultura de massa produzi-
das em épocas diversas, o material permite um duplo movimento. Por um lado, apela ao universo estético
dos estudantes. Por outro, estabelece as bases para explorar os quatro âmbitos da compreensão crítica de arte
propostos por Teresinha Franz. Por exemplo, ao sugerir uma comparação formal entre o Aladim de Poirier e
o Aladim de Walt Disney chama atenção para a delicadeza dos traços, transparências e suavidade das cores
do primeiro e parao movimento e a vibração das cores do segundo. Do âmbito formal, passa ao histórico an-
tropológico, perguntando se essas diferenças estariam relacionadas com materiais e tecnologias disponíveis
em cada época. Para além disso, convida os estudantes a refletir sobre as diferenças entre a infância deles e
a de seus pais e avós, incorporando a dimensão pessoal à discussão.

Imagem 2 – Fichas do material educativo, com as ilustrações de Aladim por Elena Poirier e por Walt Disney

Esse mesmo movimento aparece nas questões levantadas sobre a ilustração monocromática da capa
da revista em quadrinhosSimbad, publicada em 1953 no Chile. O autor do material informa que nessa dataa
cartela de cores para impressão era reduzida e mostra revistas populares no Brasil na mesma época. Pergunta
se os estudantes conhecem essas revistas, se sabem o que seus pais liam naquela época e se hoje ainda há espaço
para revistinhas. A partir da ilustração sobre o conto “O flautista de Hamelin” discute a questão da releitura na

692
arte, apresentando diferente versões da Mona Lisa retiradas da internet. Usando a ilustração do conto “A Pe-
quena Sereia” apresenta uma breve história da técnica da aquarela e sugere que os estudantes façam uma busca
na internet para conhecer o trabalho de artistas eruditos conhecidos que utilizam essa técnica.

2. Aplicação do material nas Escolas

Elena Poirier: Corazón de Niñafoi escolhido por três professoras, cada uma lecionando em uma es-
cola diferente da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte.A professora Juliana389utilizou o material
em umaUnidade Municipal de Educação Infantil – UMEI, em uma turma com cerca de 25 crianças de cinco
anos.As professoras Mariana e Rosângela optaram por atuar como observadoras, enquanto um dos media-
dores da equipe aplicava o material.A turma de alunos de Mariana atendida pelo projeto tinha aproximada-
mente 21 alunos do 2º ano do ensino fundamental. Na escola de Rosângela, o trabalho envolveu três turmas
de 4º, 5º e 6º anos do ensino fundamental, atendendo em torno de 64 alunos com idade entre oito e doze
anos.Somando todos as turmas, o material com as ilustrações de Elena Poirieralcançou aproximadamente
109 estudantes na 1ª Edição do projeto.

2.1. As crianças da Educação Infantil

Como a professora Juliana optou por aplicar o material sozinha, a descrição das atividades se baseou
em uma breve apresentação oral feita na reunião de encerramento do projeto e nas fichas de avaliação que
ela entregou. Juliana relatou ter montado uma exposição com as ilustrações de Elena Poirier no corredor
da escola, organizando a turma para visitar o espaço como se estivesse em um museu e mediando as ima-
gens como se fossem quadros. A professora organizou uma votação e as crianças escolheram as imagens da
Mona Lisa como favoritas. Depois, realizaram atividades de releitura, usando as ilustrações como ponto de
partida para produzir desenhos com lápis de cor, lápis de cera e caneta hidrográfica. O Gráfico 5 representa
os resultados das avaliações dos alunos.

É importante ressaltar que a avaliação foi respondida coletivamente pelas crianças, a partir da apre-
sentação de cada quesito pela professora. Assim, os resultados registram apenas a avaliação da maioria, sem
haver possibilidade de computar diferenças pessoais. Entre os 24 alunos participantes, a maioria se mostrou
satisfeita com a temática, as obras e as atividades realizadas em sala, consideradas “ótimas”. A artista e as
conversas foram avaliadas como “médias”. Uma possível explicação para esse resultado seria a falta de cos-
tume dos alunos com atividades de mediação estética.

Gráfico 1 – Avaliação dos alunos da educação infantil sobre o material e as aulas

389. Os nomes das professoras foram trocados, conforme estabelecido no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

693
2.1. Uma turma de alunos do 2º ano do ensino fundamental

Na Escola da professora Mariana, a mediação ficou por conta de Eraldo, Bolsista de Extensão do
projeto e um dos autores desse trabalho. A aplicação do material foi dividida em quatro encontros, um por
semana, com duração média de uma hora e trinta minutos cada. No primeiro encontro, todos sentaram em
círculo para as apresentações do projeto e de si. No centro do círculo foram dispostas todas as ilustrações de
Elena. Primeiro os estudantes conversaram livremente e depois o mediador levantou algumas questões so-
bre as imagens. Ao final, como os estudantes reconheceram a ilustração do Aladim, o mediador pediu para
que cada um pensasse em três desejos que gostaria de fazer se encontrasse um gênio da lâmpada mágica.

O início do segundo encontro começou com os alunos desenhando um dos três desejos que pen-
saram durante a semana. Em seguida, compararam as duas ilustrações do Aladim, de autoria de Elena Poi-
rier e de Walt Disney. No terceiro encontro, Eraldo mostrou a ilustração da capa da revista em quadrinho
chilena Simbadeconvidou os alunos a compará-la com capas de revistas em quadrinhos nacionais. Cada
grupo recebeu uma revista em quadrinho atual e, a partir da capa, inventou uma história para contar para
os colegas da sala. No final, os alunos trocaram os desenhos dos desejos elaborados no dia anterior e, a partir
do desenho do colega, escreveram uma pequena história.

No último encontro, os alunos analisaram a ilustração da Pequena Sereia. Como as cores claras fo-
ram um dos aspectos que mais chamou atenção dos alunos, o mediador explicou um pouco sobre a técnica
da aquarela. Em seguida, conversaram sobre releitura, atividade com a qual eles já estavam familiarizados.
Eraldo entregou aleatoriamente uma história elaborada na aula anterior e uma folha A3 para cada aluno
ilustrar a história do colega, fazendo um paralelo com Elena Poirier, que criava desenhos para histórias de
outras pessoas. O gráfico a seguir ilustra os resultados das avaliações sobre o material Elena Poirier – Cora-
zón de Niña que os alunos responderam no quarto encontro.

Gráfico 2 – Avaliação dos estudantes do 2º ano do ensino fundamental sobre o material e as aulas

Conforme se pode observar no Gráfico 1, de modo geral a avalição foi positiva. Conversas sobre
as obras foi o item que menos agradou, provavelmente porque os estudantes não estão acostumados com
experiências de mediação.Ao longo da aplicação, Eraldo percebeu que os alunos associam as aulas de artes
somente com o fazer artístico, especificamente com o desenho e a pintura. Em todos os encontros os estu-
dantes se mostraram ansiosos em realizar alguma atividade prática - a apreciação e o debate sobre as ilustra-
ções não pareciam suficientes. A ilustração de Walt Disney e as revistas em quadrinho atuais despertaram
maior interesse e envolvimento, fato que reforça a importância de estabelecer um diálogo com o repertório
dos estudantes.

694
2.2. Ilustrações e literatura para turmas de 4º, 5º e 6º anos

Responsável pelas aulas de literatura e de artes, embora não tenha formação na área de artes, a
professora Rosangela escolheu o material sobre Elena Poirier imaginando que seria possível desenvolver
atividades interdisciplinares envolvendo as duas disciplinas. A escola em que ela trabalha fica situada em um
bairro de classe média, mas a maioria de seus estudantes é formada por crianças, jovens e adultos moradores
de uma favela próxima. O material foi aplicado por Isabel,Bolsista de Extensão do projeto e uma das autoras
desse artigo. O trabalho envolveu três turmas de 4º, 5º e 6º anos do ensino fundamental, ou seja, alunos en-
tre 8 a 12 anos. Em comum acordo, professora e mediadora decidiram que seriam quatro aulas por turma,
utilizando as mesmas propostas didáticas, mas adaptando o nível de aprofundamento das discussões para
cada faixa etária.

Na primeira aula, queaconteceu na biblioteca da escola,Isabel buscou explorar o que os estudantes


conheciam sobre ilustração, seus tipos e técnicas. Além de usar livros da biblioteca, apresentou algumas
ilustrações de sua autoria para que os estudantes pudessem ver uma ilustração original. A essa introdução,
se seguiu uma apresentação da artista chilena e de seu trabalho. A mediadora, então, contou a história do
Aladim e apresentou as ilustrações da personagem, causando grande agitação em todas as turmas.

O Aladim da Disney, reconhecido por todos, foi unanimemente apreciado pelo desenho bem feito
e harmonioso e pela beleza de suas cores. Já o Aladim de Poirier provocou reações diversas. As crianças do
quarto ano tiveram dificuldade para analisar a obra, se atendo mais ao fato de o desenho ter cores menos
vibrantes e estranhando asroupas das personagens. Em geral, esta turma preferiu a ilustração da Disney,
justificando apenas que era mais bonita por ser mais bem desenhada. As turmas do quinto e sexto ano, por
sua vez, conseguiram abordar questões formais da obra de Poirier. Apontaram características físicas das per-
sonagens de Elena, a suavidade na paleta de cores e as diferenças entre os desenhos de Poirier e da Disney. A
aula foi encerrada com a produção de uma ilustração de como seria o Aladim do ano de 2017. Os resultados
incluíram desde desenhos copiados das ilustrações de Poirier e da Disney até versões inusitadas, como um
Aladim MC, cantor de funk, e Aladim empresário, cuja lâmpada mágica era sua maleta de executivo.

A segunda aula mediada teve como tema a ilustração “O flautista de Hamelin”. Os alunos conversaram
sobre a estética da mesma, como também sobrediferentes tipos de ilustrações. A ficha com reproduções de
diferentes imagens de Mona Lisaprovocou um debate sobre releituras de obras de arte e sobreos memes serem
uma forma de releitura. É fato que as observações ainda estavam muito no campo do gosto ou não ou porque
é bonito ou feio, raramente justificadas por alguma observação de composição estética. No entanto, dada a
inexperiência dos alunos com esse tipo de atividade, a conversa em si já foi considerada como um fato positivo.

No terceiro encontro Isabel distribuiu revistinhas em quadrinhos com as quais os alunos já estavam
familiarizados, juntamente com a ficha das revistinhas do material, e pediu que eles falassem sobre a estética
das capas das revistas. Os estudantes apontaram questões como fonte, cor, traço dos personagens. A ficha da
ilustração de Elena Poirier para a revistinha Simbadprovocou grande estranhamento. A primeira e principal
questão levantada em todas as turmas foi a pouca variedade de cores.

Na quarta e última aula, a mediadora colocou todas as reproduções de ilustrações de Elena Poirier,
juntamente com as ilustrações de sua própria autoria em cima de uma mesa grande da escola, de forma
que todos os alunos pudessem ver todas as obras. Os alunos observaram e teceram comentários sobre os
trabalhos.Depois do diálogo sobre as obras, teve início uma conversa sobre técnicas de pintura (tinta a óleo,
guache, acrílica, aquarela). Os alunos demonstraram que estavam vendo alguns tipos de tinta pela primeira
vez, apontando diferenças na textura, brilho, cor e cheiro entre os trabalhos. A aula foi encerrada com uma
atividade de ilustração com pintura em grupo.

695
Para finalizar o projetofoi necessário utilizar uma quinta aula. Isabel foi a cada sala, fez um breve en-
cerramento do projeto e distribuiu as fichas de avaliação do material e das aulas. O gráfico a seguir represen-
ta uma média das avaliações das três turmas (4º, 5º e 6º anos). Em geral, a avaliação dos alunos foi bastante
positiva. Chama atenção o fato de a categoria “conversas sobre as obras” ter recebido a melhor avaliação em
todas as turmas, inclusive do 6º ano. Esse resultado contraria a experiência vivenciada em sala de aula, uma
vez que a maior parte dos estudantes se mostrou resistente às propostas de mediação, preferindo sempre as
atividades de produção artística.

Gráfico 3 – Média da avaliação dos alunos do 4º, 5º e 6º anos sobre o material e as aulas

Considerações finais

Com base nas experiências dos mediadores e nas devolutivas apresentadas nas fichas de avaliação,
pode-se dizer que o material Elena Poirier:Uncorazón de niña apresenta grande potencial para utilização
em atividades de mediação em artes na educação básica, incluindo estudantes da educação infantil até o 5º
ano do ensino fundamental. A adequação da proposta para estudantes do 6º ano deve ser objeto de nova
experimentação, visto que houve uma contradição entre o baixo nível de envolvimento dos estudantes nas
atividades em sala e a avaliação positiva que a maioria fez do material. Mesmo sem consenso, os dados in-
dicam que a maior parte dos alunos se mostrou satisfeita por participar de um projeto que proporcionou
novas formas de trabalhar com arte na escola.

Um fator indicado pelos mediadores como fundamental para o sucesso do material diz respeito ao
diálogo proposto entre as ilustrações de Poirier e o universo imagético dos estudantes. Foram justamente as
imagens com as quais os alunos já estavam familiarizados, como o Aladim de Walt Disney, as revistas em
quadrinhos atuais e as releituras da Mona Lisa retiradas da internet que despertaram maior interesse, mes-
mo entre as crianças da educação infantil. Importante salientar também que mesmo pertencendo a famílias
de baixo poder aquisitivo, muitas crianças conheciam os desenhos de Walt Disney. Nesse sentido, a pesquisa
comprova a importância estratégica de estabelecer pontes com a cultura visual em que o estudante está in-
serido, já indicada por autores como Vincent Lanier (1999), Kerry Freedman (2005) e Imanol Aguirre (s/d).

Com relação à prática da mediação, depoimentos informais das duas professoras que observaram
a atuação dos mediadores reforçam a suposição que deu origem ao projeto, qual seja: de que a apreciação
de obras de arte e de imagens da cultura visual ainda não faz parte da prática das aulas de arte na educação

696
básica. Mariana confessou surpresa diante do envolvimento dos estudantes do 2º ano nas conversas sobre
as obras. Bacharel em pedagogia e sem uma formação específica na área de artes, suas aulas se restringiam
às atividades de produção. A experiência de observar o mediador do projeto apontou possibilidades que a
deixaram animada para propor atividades voltadas para a interpretação e análise de imagens. Do mesmo
modo, a professora Rosângela comentou que a oportunidade de observar práticas diferentes do que ela es-
tava acostumada a utilizar abriu novas perspectivas para ministrar as aulas de artes.

Em termos gerais, o diálogo entre estudantes e professores da educação básica e da universidade se


mostrou muito produtivo. Os professores das escolas puderam experimentar ou observar atividades de me-
diação. Os autores dos materiais tiveram oportunidade de ver seus trabalhos colocados em prática, receben-
do um feedback dos resultados. E os mediadores experimentaram os desafios de trabalhar em sala de aula,
enriquecendo sua formação para a docência. A expectativa é que as novas edições do projeto consolidem
essa parceria, que se mostrou valiosa para todos os envolvidos.

Referências
AGUIRRE, I. Imaginando um futuro para a educa- GEAHIGAN, G. Art criticism: From theory to practice.
ção artística. Disponível em: <http://pt.scribd.com/ In: WOLFF, T; GEAHIGAN, G. Art Criticism and Edu-
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internacionais. São Paulo: Cortez, 2005, p.126-142.

Agradecimentos: àPró-Reitoria de Extensão da Universidade de Minas Gerais – PAEx/UEMG,pelas duas bolsas de


extensão e pelo Prêmio concedido ao projeto no âmbito do Edital PAEx/2017; à coordenação do Programa Circuito
de Museus; a todos os professores e estudantes que colaboraram com o estudo; aos autores dos materiais didáticos, em
especial à Carlo Frederico de Souza Ferrara Marcolino, que criou Elena Poirier: Uncorazón de niña.

697
DESALINHOS: ARTE, PESQUISA
E DOCÊNCIA EM GÊNERO E SEXUALIDADES
Ingrid Borba de Souza Pinto Domingos/UFPE
Luciana Borre/UFPE

D esalinhos é o projeto artístico, de pesquisa e de docência que desenvolvi pelo Programa Ins-
titucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), no curso de Artes Visuais da Universidade Federal de
Pernambuco, em 2017 e 2018. O projeto ancorou-se na metodologia Narrativa Artográfica, pois relacionou
o desenvolvimento da poética “Desalinhos” com reflexões acerca dos principais embates e potencialidades
nos processos de formação docente para questões de gênero e sexualidades.

Inicialmente idealizado como processo artístico o trabalho ampliou-se para o campo da pesquisa
onde busquei mapear como se constroem as questões de gênero e sexualidade na formação Arte/educado-
res. Posteriormente, a pesquisa desdobrou-se para projeto pedagógico no ensino da arte mesclando, assim,
minhas experiências de vida a um universo totalmente novo de conhecimentos.

Gênero, sexualidades, corpo, identidades, subjetividades, cultura e arte sempre foram temas que
despertaram minha curiosidade e interesse. A partir dessas premissas busquei referências artísticas e con-
ceituais que permitiram a realização, no decorrer do projeto Pibic, de imagens de exames de ultrassom que
foram bordadas com narrativas autobiográficas.

Ancorada na metodologia Narrativa Artográfica e nos estudos Cultura Visual realizei ações pe-
dagógicas durante meus períodos de estágio em escolas públicas, nos ensinos fundamental e médio, que
estiveram relacionadas a temática de gênero e sexualidades.

Enquanto pesquisadora, artista e docente em formação acredito que arte apresenta-se na contem-
poraneidade como um local social onde os artistas e professores criam estratégias que visam questionar
e repensar os regimes de poder. Além de buscar melhores relações com a vida presente, consigo próprio
e com o outro. A pesquisa acadêmica, a atividade docente e a produção artística, desta maneira, podem
se tornar um local de práticas libertárias, de resistência e contestação dos movimentos éticos, políticos e
culturais atuais.

O projeto Desalinhos como um todo compreende-se neste espaço contemporâneo de produção do


conhecimento, de práticas do olhar e do desenvolvimento de poéticas artísticas que estejam comprometidas
com a construção de si e do outro. Organizo este artigo em três principais correntes: 1) Desalinhos como
poética artística; 2) Desalinhos como caminho de pesquisa e; 3) Desalinhos como prática pedagógica.

698
Desalinhos como poética artística

Ser mulher foi a primeira identidade que desenvolvi. Ao longo da minha graduação em Artes Visuais
fui convidada a repensar duas coisas: o que seriam identidades e o que seria ter um corpo do sexo feminino?
A arte e a prática artística constitui esse lugar questionador, relocador de olhares e intensificador de memórias
e vivências. Nas aulas de metodologia do ensino da arte, estágio e fundamentos da Arte/educação sempre fui
instigada a refletir na minha autobiografia como ponto de partida para a construção do conhecimento. Diante
deste cenário comecei a idealizar uma proposta artística que estivesse ligada a minha experiência de vida e ao
meu processo de formação de identidade em consonância com outros sujeitos nas problemáticas de gênero.

Na minha formação como mulher e na transformação do meu corpo apresentei um problema fi-
siológico nos seios que me obrigou a estar em constante acompanhamento médico. A ida ao médico me fez
estar em convivência com outras mulheres que detinham outros tipos de doenças que acometem a anato-
mia do sexo feminino. Escutar essas histórias me fez repensar sobre: qual seriam as possíveis identidades do
corpo feminino e suas funções biologicamente, historicamente e culturalmente definidas? Além de, perce-
ber que estava imersa em uma rede de narrativas que se cruzavam com a minha biografia e precisavam, de
alguma forma, serem compartilhadas.

Neste contexto, questionei-me: será possível repensar e (re)construir histórias sobre o corpo femi-
nino? Como ressignificar este corpo historicamente estigmatizado por relações de poder e preconceitos?
Como “narrar-se” e, neste ato, repensar a si mesmo e possibilitar processos de cura?

A série de Desalinhos busca através da técnica de bordado livre, executada em imagens de exames de
ultrassom impressas em papel de fibra de algodão (21cm x 29,7cm), praticar o exercício da escrita autobio-
gráfica, ou a escrita de si, rememorando e legitimando fatos que carregam uma carga subjetividade, desejo,
crítica e problematizações.

“Você continua virgem?,


Série Desalinhos,
Ingrid Borba, 2017.
Bordado sobre fotografia
impressa em papel de algodão.

“Parto Natural”,
Série Desalinhos,
Ingrid Borba, 2017. Bordado sobre
fotografia impressa em papel de algodão.

699
“Chá de Revelação”,
Série Desalinhos,
Ingrid Borba, 2017. Bordado sobre
fotografia impressa em papel de algodão.

Por muitas vezes veladas, seja por vergonha ou por angústia, as narrativas de vida das mulheres e
das transformações que ocorrem no seu corpo são marginalizadas, subjugadas, estereotipadas e estigmati-
zadas dentro de um regime de verdades absolutas. O ato de narrar essas histórias de através do bordado se
transformou numa ferramenta micropolítica e ética criando um espaço de resistência e estratégias de novas
formas de se pensar dentro das normatividades. Neste aspecto Tvardovskas afirma que:

A arte possui grande potencial de transformação da experiência vivida, sendo um dos campos pro-
fícuos para a criação de modos de viver mais intensificamente livres - tão urgentes perante os fascis-
mos cotidianamente experimentados por nós. É justamente nessa capacidade de ativação do sensível
da arte - compreendida como a possibilidade de liberação de padrões de recalque das emoções, da
criatividade, da sensibilidade - que essa problemática investe. (TVARDOVSKAS, 2015, p. 114)

As produções artísticas femininas contemporâneas passeiam no território das experiências de vida,


na problematização da cultura, dos regimes de verdade, buscam intensificar as atividades cotidianas com o
fazer artístico. À vista disto, problematizo também na minha produção artística a prática manual do borda-
do na acadêmia e no circuito das artes.

Historicamente, os lugares sociais das mulheres foram os privados e os domésticos, deste modo, as
mesmas foram privadas de participar ativamente de decisões e construções históricas, sociais, educacionais,
políticas, econômicas e culturais. Essas esferas do poder estiveram sempre nas mãos de homens constituin-
do assim umas sociedade ocidental patriarcal e falocêntrica. São instituídos desta maneira separações e desi-
gualdades de sexo onde é atribuído ao gênero feminino a concepção de domesticidade e docilidade natural.

Tal formação social definiu que a educação, nas classes mais abastadas, fossem divididas em funções
previstas ao futuro de homens e mulheres. Observa-se na história, principalmente no século XIX, que os pa-
drões de educação para as mulheres estavam intimamente ligados a função da maternidade e do casamento.
A mulher somente estaria apta para a vida se recebesse uma instrução adequada onde, aprenderia as prendas
do lar, o bordado, a costura, o piano e a pintura (ALVES, 2002).

O bordado é uma prática manual feminina “desalinhada” do campo das legitimadas artes (pintura,
desenho, escultura e gravura). Bordar possui um relacionamento próximo com a intimidade feminina, pois
sempre esteve presente nesse cotidiano privado das mulheres. A prática encontra-se muito presente em
obras feministas de artistas brasileiras e argentinas que representam, para mim, e para minha poética em
Desalinhos bastante significado. Sobre o bordado como prática artística e as referências visuais de artistas
brasileiras Tvardovskas afirma :

700
A tapeçaria, arte têxtil de grande complexidade, longe se se constituir um campo menor, foi con-
siderada por diferentes culturas e épocas como uma elaborada expressão do pensamento e desejos
humanos - sendo até mesmo produzida por homens, por exemplo na França no período gótico. Para
as mulheres na contemporaneidade, essa prática têxtil conjuga experiências pessoais e familiares a
significados simbólicos e míticos, com os quais artistas moldam aspectos subjetivos. Desta forma,
não se trata de afirmar uma visão essencialista (mulheres expressam-se por meio de tecidos, por sua
delicadeza e destreza, imitando a natureza), mas de observar como essas poéticas investem na trans-
formação e elaboração dos enunciados sociais. (TVARDOVSKAS, 2105, p. 185)

Desalinhos busca o exercício do contar-se a partir das linhas e das agulhas de bordado narrando as
histórias que remetem a fragilidade do corpo e como este pode ser perecível biologicamente e simbolica-
mente. Partindo dessas referências históricas, conceituais e artísticas busquei referências bibliográficas para
legitimação da pesquisa e criação de ações educativas.

Desalinhos como campo de pesquisa

A pesquisa científica em artes necessita de metodologias que consigam atender as demandas da ação
artística com a teoria (DIAS, 2013). A metodologia a/r/tográfica configurou-se como chave desta investiga-
ção para criar a conexão entre os conteúdos, a biografia e a construção de um fazer pedagógico. Desalinhos
também está inserido nos campos de estudo da Cultura Visual e do Pós- Feminismo. A Cultura Visual,
advinda dos estudos do Pós- estruturalistas, realoca os nossos olhares e enfoques de pesquisa. Considera
nossas representações visuais como formadoras de aspectos identitários e biográficos e como eles impreg-
nam nossas posições de pesquisa.

Podemos dizer que essa narrativização da pesquisa é uma espécie de “fabricação do mundo”. Por
mais engenhosa ou surpreendente que possa parecer, a pesquisa é uma maneira de interpretar o
mundo e o contexto em que foi realizada. É possível afirmar que a prática de escrever uma investi-
gação é uma aventura/exercício de construir versões de realidade, ao mesmo tempo que editamos
nossa própria criação do mundo. (TOURINHO, MARTINS, 2013, p.65)

A pesquisa então procura refletir e legitimar as narrativas autobiográficas como temas centrais de
pesquisa rompendo com a ideia de imparcialidade e distanciamento científico do conhecimento. Para este
intuito, baseei-me em estudos pós-feministas que buscam legitimar as narrativas como fazer científico le-
vando em conta as subjetividades, os desejos, as identidades, e as barreiras do que seria privado e público.
Sobre as contribuições do movimentos feministas para as esferas do conhecimento e poder Margareth Rago
nos mostra que:

Hoje é possível constatar que o feminismo introduziu outras maneiras de organizar o espaço, outras
“artes de fazer” [...] no cotidiano e outros modos de pensar, desde a produção científica e a formu-
lação das políticas públicas até as relações corporais, subjetivas, amorosas e sexuais. Conferiu novos
sentidos às ações das mulheres e à sua participação na vida social, política, econômica e cultural,
tanto quanto na esfera privada. Aliás, desfez as tradicionais fronteiras instituídas entre essas dimen-
sões da vida em sociedade, afirmando que os problemas domésticos deveriam ser denunciados como
questões de domínio público, o que alterou profundamente a imagem de si mesmas que as mulheres
podiam construir. (RAGO, 2013, p.25)

701
O que apresento como pós-feminismo é fruto das lutas e conquistas da segunda onda feminista dos
anos 60, no qual questionou-se aspectos identitários do sujeito até então entendidos como imutáveis. Essa
problematização provocou novas formas de se construir o conhecimento e, consequentemente, mudou a
compreensão daquilo que já havia sido registrado como fato.

A identidade feminina que temos hoje é algo amplo, fluído que está para além de construções sobre
os binarismo entre sexos. A pesquisa Desalinhos se entende nesse contexto teórico as narrativas da “escrita
de si” coloca o sujeito feminino em primeira pessoa protagonista e legitimadora não só das vivências pesso-
ais ou coletivas, mas do conhecimento.

Desalinhos como ação educativa

Gênero e sexualidades encontram-se “desalinhados” dos conteúdos curriculares programados para


o Ensino Fundamental e Médio. No entanto, o assunto é uns dos principais quando se anda, observa e con-
vive no ambiente escolar com os sujeitos que dele fazem parte. De fato, o ambiente escolar é um recorte da
sociedade na qual estamos inseridos sendo a instituição principal local de formação de conceitos e reconhe-
cimento gêneros e identidades dos sujeitos. Cursando uma licenciatura percebo mais um aspecto de cons-
trução na minha identidade: ser professora. A profissão, quase uma herança de família, também possuía em
meu repertório de vida imagens e representações do que seria uma boa professora. Essa imagem foi cons-
truída nas escolas em que estudei durante a infância e também, na convivência em família com tias e avós
que se dedicaram ao magistério. Em prática na sala de aula e na pesquisa acadêmica me confrontei com essa
visualidade nas questões de gênero. Questionada sobre minha sexualidade pelos estudantes, no primeiro dia
de aula com o ensino médio, percebi como a imagem da “professora” e criada em torno de uma não sexu-
alidade. Em sua pesquisa sobre a formação docente Guacira (2016) nos mostra que na concepção histórica
e social da profissão: “professoras foram vistas em diferentes momentos, como solteironas ou “tias”, como
gentis normalistas, habilidosas alfabetizadoras, modelos de virtudes, trabalhadoras da educação” (LOURO,
2016, p.104). Compreender essas representações de gênero construídas nos sujeitos e suas relações de poder
foi um dos enfrentamentos que tive durante os estágios.

O período em que estagiei com o 7ª ano do ensino fundamental busquei relacionar a proposta
Desalinhos para as questões subjetivas e invisíveis da mulher na arte. Baseadas em Linda Nochlin (2016) em
seu texto: “Por que não houve grandes mulheres artistas?” trouxe apenas referências femininas e um pouco
de suas narrativas pessoais. Expus as narrativas de vida Francesca Woodman e Vivian Mayer, artistas que
mostravam em seus registros fotográficos críticas sociais, cotidianos, autorretratos, poéticas melancólicas e
depressivas em relação ao seus corpos. Meu intuito era abordar algumas reflexões teóricas e práticas sobre
gênero como construção social, de modo a entender como as/os estudantes poderiam refletir criticamente
sobre o assunto. Na prática procurei aproximar e contextualizar a vida dessas artistas com a realidade dos/
das estudantes criando um ambiente favorável para a troca de conhecimentos.

A prática de estágio com o 1ª ano do ensino médio, já possuía algumas imagens bordadas prontas,
decidi levar a série Desalinhos para uma ação em sala de aula. O primeiro desafio era conseguir falar de
gênero e sexualidade com os adolescentes de maneira honesta, aberta e autocrítica. Falo em autocrítica,
pois enquanto professora em formação acredito que se compreender como parte integrante da “trama” das
relações de poder, das políticas de representação e dos regimes de desigualdades é que seria uma prática
educativa pós- feminista. Criei uma atividade de narrativas com storyboards onde os/ as estudantes pode-
riam contar histórias em formato de quadrinhos. E expus o trabalho de resgates de narrativas autobiográ-
ficas de fazia em Desalinhos. A atividade gerou uma roda de debate e compartilhamento de experiências

702
vividas pelos sujeitos ali presentes. Os mesmos mostraram suas visões e falas sobre feminismo, gênero,
homossexualidade, política, racismo, preconceito e bullying vividos no ambiente escolar. Naquela tarde
eu e os/ as estudantes pudemos exercitar a prática da escrita do sensível ou escrita de si questionando e
refletindo sobre comportamentos e ações no ambiente escolar. Sobre essa atividade gosto de relacioná-la
ao que fala Louro:

Se existe algo que pode ser comum a essas iniciativas talvez seja a atitude de observação e de questio-
namento - tanto para os indícios das desigualdades como para com as desestabilizações que eventu-
almente estão ocorrendo. Esse “afinamento” da sensibilidade (para observar e questionar ) talvez seja
a conquista fundamental para a qual cada um/ uma e todos/ as precisaríamos nos voltar. Sensibilida-
de que supõe informação, conhecimento e também desejo e disposição política. As desigualdades só
poderão ser percebidas - e desestabilizadas e subvertidas - na medida em que estivermos atentas/ os
para sua forma de produção e reprodução. (LOURO, 2016, p. 125).

Uma prática educativa pós-feminista estaria ligada a iniciativa de integração de todos os sujeitos
com postura reflexiva em suas ações mais cotidianas. Saber que em nossas ações e relações todos estamos
exercendo ou sofrendo algum tipo de poder. É enfim, nos perceber como linhas nos pontos dos bordados
cruzados e tramados nos tecidos sociais.

Considerações finais

O projeto Desalinhos buscou refletir e mapear os enfrentamentos para questões de gênero e sexuali-
dade na formação docente. Partindo da perspectiva pós-feminista, percebi a importância das minhas vivên-
cias históricas como ponto de partida para a formação de um projeto que unisse arte, pesquisa e educação.

Para desenvolver a poética artística busquei referências de artistas mulheres que propuseram em suas obras
o questionamento dos enunciados normativos para o gênero feminino e criar formas mais igualitárias e
livres de viver. Essa abertura artística e conceitual trouxe novas paisagens sobre as minhas visualidades for-
madas sobre o que seria ser mulher, artista, professora e pesquisadora.

Minha investigação está carregada de histórias, representações e conceitos que transitam em terri-
tórios fluídos e mutáveis. Desalinhos, por fim compreende que auto reflexão através de práticas rotineiras é
um exercício micropolítico que busca criar maneiras sensíveis do viver.

Referências

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GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: carto- tiva pós estruturalista. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2013.

703
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práticas de pesquisa em cultura visual e educação. Santa si e invenções da subjetividade. São Paulo: editora UNI-
Maria: Editora da UFSM, 2013. CAMPI, 2013.

Louro, G. L. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspec- Tvardovska, L. S. Dramatização dos corpos:  Arte contem-
tiva pós estruturalista. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2013. porânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina. São
Paulo: Intermeios, 2015.
Nochlin, L. Por que não houve grandes mulheres artistas?
São Paulo: Edições Aurora, 2016.

704
“AQUI ESTÁ MINHA CARA.
FALO POR MINHA DIFERENÇA.
DEFENDO O QUE SOU.”390
Lucas Viera de Oliveira
Fábio José Rodrigues da Costa

Introdução

As questões e pautas do movimento LGBTT tem ganhado força nas produções de artistas visuais tan-
to nacionais quanto em contextos internacionais, principalmente nos últimos anos do século XX, em razão da
opressão a gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, bem como, no trato com à epidemia da AIDS. Neste
artigopropomos analisar tais questões na produção do artista chileno Pedro Lemebel (1952-2015) e, principal-
mente, sua produção no coletivo “Yeguas Del Apocalipsis” durante a ditadura chilena391. Suas ideias e produção ar-
tísticainfluenciaram não somente as artes visuais, mas tem provocado um significativo debate no que diz respeito
aos modos de viver dacomunidade LGBTT, tanto no Chile quanto em diferentes contextos culturais e de exclusão.
O artigo é um recorte da pesquisa em andamento “Ensino de Artes Visuais e Escola sem Homofobia”, vinculada
ao Grupo de Pesquisa Ensino da Arte em Contextos Contemporâneos – GPEACC/CNPq e ao Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Ensino da Arte – NEPEA do Centro de Artes da Universidade Regional do Cariri – URCA.

“A vida como obra de arte – ‘ a existência não como sujeito,


mas como obra de arte’”392

Pedro Lemebel nasceu em Santiago, em 1952 e,aos 62 anos de idade, sofrendo de câncer na larin-
ge morre no dia 23 de janeiro de 2015. Foi escritor, cronista, artista visual e ativista social,um ativista da
luta do movimentoLGBTT. Aos 26 anos passou a trabalhar como professor de Artes Plásticas em duas es-
colas secundárias, experiência de curta duração, pois foi demitido no mesmo ano devido à sua aparência,
pois fazia questão de deixar clara a sua homossexualidade por meio de uma estética queer. Sua militância
na esquerda foi problemática, causava desconfortos por onde passava devido a sua aparência e de suas
posições como homossexual. Em 1986, em uma reunião daesquerda na estação Mapocho, Lemebel leu
um manifesto “Eu falo pela minha diferença” provocando inquietações e impacto no público presente.
Como artista, performer e como escritor, seu trabalho causou provocações em razão das denúncias sobre
questões políticas, sociais e da violência contra gays.

390. “Aquí está mi cara. Hablo por mi diferencia. Defiendolo que soy.”Esta frase faz parte do manifesto apresentado como intervenção em um ato
político da esquerda em setembro de 1986, em Santiago no Chile.
391. A ditadura militar chilena foi um governo autoritário presidido por Augusto Pinochet entre o período de 1973 e 1990 que durou 17 anos e
chegou ao fim após a posse de um novo presidente eleito pelo povo.
392. Gilles Deleuze 2008, p. 120 citado por Ângela Saldanha 2014, p. 23.

705
Junto com Francisco Casas fundou o coletivo “Yeguas del Apocalipsis” que esteve em atividade entre
1987 e 1997. O coletivo tinha uma forte oposição ao sistema de legitimação de instituições artísticas e se
negava aos registros formais e tradicionais de exposições e circulações artísticas.

Yeguas Del Apocalipsis

Criado em 1987 por Pedro Mardones Lemebel (1952- 2015) e Francisco Casas Silva (1959), na cidade
de Santiago - Chile, o coletivo teve uma intensa produção em fotografia e performances, muitas delas exibidas
em espaços públicos e sem aviso prévio. Devido aoposicionamento dos dois artistas sobre as formas tradi-
cionais dos roteiros e espaços destinados às artes, suas performancestransitaram principalmente em espaços
alternativos da cultura punk e/oude encontros de artistas da música, da poesia, da pintura e do cinema.

O forte posicionamento político do coletivo e suas alianças com agentes do campo político e intelec-
tualde esquerda, tiveram grande importância nas lutas pela redemocratização do Chile durante a ditadura
militar, e se vinculando aos grupos de defesa dos direitos humanos, participando de agitações politicas e
movimentos de resistências que se colocavam contra a ditadura. Uma das alianças que Yeguas Del Apocalip-
sis firmou foi com o coletivo Ayuquele’n e Gay LiberationMovementlesbo-feminista (MOVILH), onde com
outr@scompanheir@s de luta realizaram o primeiro encontro nacional de gays, lésbicas e travestis de todo o
país com o tema “BreakingtheSilence” que ocorreu em uma Igreja Adventista.

A produção artística
“Homossexuais para a mudança”393
Yeguas Del Apocalipsis

¿De que se ríe presidente?

A performance foi realizada quando o então candidato a presidente Patrício Aylwin apresentava no
Teatro Cariola, as propostas que seriam realizadas caso viesse a vencer as eleições. Na reunião estavam pre-

393. Homosexuales por el cambio.

706
sentes artistas e intelectuais e nomes importantes da politica chilena, Lemebel e Casas abriram uma grande
faixa que continha a frase “Homossexuais para a mudança”, que causou grande desconforto nos democratas
cristãos que se faziam presentes na ocasião.

Imagem 1, ¿De que se ríe presidente?,fotografia, 1989.

Em uma entrevista cedida ao jornalista Luiz Albert Mancil, publicado na revista Punto Final.394
Pedro fala:

“Tivemos que sair quase correndo do teatro Cariola, porque queriam nos linchar,
acrescenta Pancho Casas. PatricioAylwin, em pessoa, mandou cancelar as noticias
essa noite, o gesto não saiu em nenhuma parte por ordem presidencial. Dez anos de-
pois foi publicada na revista Página Aberta, mas já havia passado o impacto, relembra
Pancho Casas”.

A performance, enquanto ato estético/artístico/político colocou o corpo gay nos debates, que até en-
tão estavam fora do cenário das discussões políticas. Pedro e Casascostumavam usar batom e roupas femi-
ninas e devidoàs agressões e preconceito sofridos resolveram a partir disso montar o coletivo que procurava
dar visibilidade as travestis, gays e transexuais.

Graças a coletivos que foram surgindo em defesa das pautas LGBTTs como o MOVILH (Movimien-
to de Integración y LiberaciónHomosexual)que surgiuem28 de junho de 1991, como organismo defensor
dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestise transexuais (LGBTT) surge como citada por
Colling em um artigo publicado na Revista Lua Novatendo com um de suas bandeiras de luta a descrimi-
nalização da homossexualidade, que era considerada crime de acordo com o artigo 365 do Código Penal do
país,sendo modificado no ano de 1999.

394. Revista fundada em 1984 noCentro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC).

707
As duas Fridas

Imagem 2, AS DUAS FRIDAS, Fotografia, 1989


Fonte: http://www.yeguasdelapocalipsis.cl/

Inspirado no trabalhoas “As duas Fridas” (1939) da artista mexicana Frida Kahlo, as duas Fridas de
Yeguas Del Apocalipsis é um projeto que teve início em 1989 com um ensaio fotográfico em preto e bran-
coe realizado no estúdio do fotografo Pedro Marinello. Na imagem os artistas estão em posição contraria
a pintura original, Lemebel se encontra a direita vestido com saia mexicana e em seu peito uma pintura de
umcoração fechado. Francisco à esquerda com vestido com uma saia vitoriana e,também com umcoração
pintado em seu peito, porém aberto. Os dois artistas estavam conectados por uma sonda de transfusão de
sangue em uma demonstração de amor e afeto existente entre dois homens, e ambos maquiados e com peças
do vestuário feminino fazendo referência as travestis.

A partir desse trabalho, em 1990, um ano depois do ensaio fotográfico,os dois artistas realizam uma per-
formance (imagem 3) inspirada em as duas Fridas na Galeria Bucci onde permaneceram sentados por mais de três
horas e era projetado em um plástico transparente a frentes dos artistas, uma imagem do trabalho de Frida Kahlo.

Imagem 3, AS DUAS FRIDAS, perfomance, 1990.


Fonte: http://www.yeguasdelapocalipsis.cl/1990-las-dos-fridas-en-galeria-bucci/

708
O que a AIDs tirou395

A Aids causou uma serie de devastaçoes em todo o mundo, além da economica e da saúde, causou
grandes transtornos a comunidade LGBTT, em razão da associação entre a doença e a comunidade gay
como estaca Renato Caio Silva Santos e Néia Schor (2015) em artigo publiado na Psicologia Revista da Fa-
culdade de Ciencias Humanas e da Saude da Universidade de São Paulo - USP:

Nesse primeiro momento, a suspeita sobre as formas de transmissão concentraram-se nos


comportamentos comuns aos gays. Algumas teorias diziam que a repetida exposição retal
ao sêmen de diferentes parceiros poderia ter acarretado um colapso no sistema imunológi-
co. Outros acreditavam que os surtos freqüentes de doenças sexualmente transmissí- veis
– DSTs, levaram a um grande consumo de antibióticos, que tinham devastado a comuni-
dade gay. Finalmente, um terceiro grupo, baseado na semelhança entre a aids e a hepatite
B, consideravam que um novo agente estava em circulação entre a população gay, para, em
seguida, atingir o resto da população (Rotello, 1998; Beltrame, 2002). Nota-se que as explica-
ções formuladas por cada pessoa tende a revelar suas opiniões sobre uma série de assuntos,
muitos deles não relacionados com a aids em si. (SANTOS; SCHOR, P. 54, 2015)

Imagem 4, O que a AIDS tirou, fotografia, 1989.


http://www.yeguasdelapocalipsis.cl/1989-lo-que-el-sida-se-llevo/

Imagem 4, O que a AIDS tirou, fotografia, 1989.


http://www.yeguasdelapocalipsis.cl/1989-lo-que-el-sida-se-llevo/

395. Lo que el sida se llevó.

709
Partindo dessa problemática o Instituto de Cultura Chileno-Frances convida os artistas para par-
ticiparem das “Intervenções Plásticas na Paisagem Urbana” organizado pelo fotografo Mario Vivado. Uma
produção em que os doisperformers se transformavam em artistas que haviam falecido ou perdido alguém
para a AIDS. Uma produção sensível que mostra as perdas que o vírus HIV e a AIDS causam além da morte,
como transtornos psicológicos influenciados pela sensação de vida limitada, encurtada e a falta de prazer na
existência como uma tendência a depressão.

La Última Cena – Video Casa Particular.

Imagem 5, La Última Cena – Video Casa Particular, vídeo caseiro, 1989.


http://www.yeguasdelapocalipsis.cl/1989-la-ultima-cena-video-casa-particular/

Inspirado na última Ceia (1495–1498) de Leonardo Da Vinci, Pedro Lemebel e Francisco Casas,
visitam casas de prostituição de travestis, mas especificamente a “casa particular”, convida as travestis
para realizar uma releitura em que elas estarão perfomando com Lemebel sentadasa mesa reproduzindo
a cena.

Uma das travestis localizada no que seria o espaço reservado para Jesus, com um pedaço de pão e
um copo de vinho anuncia “esta é a última ceia, a última ceia deste governo, este é meu corpo, este é o meu
sangue396”. Uma totalinversão das tradições católicas e de questionamento dos padrões ao tirar os homens e
colocar travestis em seus lugares. Causando rupturas na concepção de sociedade que criminaliza o corpo, o
feminino e o que dele se aproxima.

Considerações Finais

Na análise da produção de Pedro Lemebel no coletivo Yeguas Del Apocalipsis é possível constatar
como suas performances tinham cunho politico e a importância das mesmas para a reformulação dos
partidos da esquerda chilena. Durante o período de atividade do coletivo, os dois artistas tiveram grande
importância nas lutas pelos direitos dos gays e travestis e questionaram os padrões de gênero e sexua-
lidade existentes na sociedade, e quando travestidos performavam em espaços que nem sempre eram
destinados a arte.

396. “Esta es las última cena, la última cena de este gobierno. Este es mi cuerpo, esta es mi sangre.”

710
Em pouco mais de 10 anoso coletivo teve uma vasta produção direcionada as tensões causadas pela
exclusão e opressão. Neste sentido fazendo a análise da produção estético/artística de Pedro Lemebel e o
travestismo presente, uma produção que nos sugere novas formas de pensar a cultura, o poder e a força da
arte na luta contra as intolerâncias de gênero e sexualidade e no combate a homofobia sendo de extrema
importância para o ensino das artes visuais contemporâneo.

Referências Bibliográficas

COLLING, Leandro. Panterase Locas Dissidentes: o GOMES, Ângela Maria Mendes Saldanha Silva. No ca-
ativismo queer emPortugaLe Chilee suas tensões com minho para casa. Um estudo a/r/tográfico de recolha de
o movimento LGBT. Lua Nova [en linea] 2014, (Sep- memórias numa comunidade informal. Tese (Doutorado
tiembre-Diciembre): [Fecha de consulta: 4 de abril de em Educação Artística) – Faculdade de Belas Artes da
2018] Disponible en:<http://www.redalyc.org/articulo. Universidade do Porto. Porto, 2014.
oa?id=67335779009> ISSN 0102-6445
SANTOS, Renato Caio Silva; SCHOR, Néia. As primei-
SITES:
ras respostas à epidemia de aids no Brasil: influências dos
conceitos de gênero, masculinidade e dos movimentos http://www.yeguasdelapocalipsis.cl/
sociais. Psicologia Revista, [S.l.], v. 24, n. 1, p. 45-59, ago. http://banderahueca.blogspot.com.br
2015. ISSN 2594-3871. Disponível em: <https://revistas. http://www.suplementopernambuco.com.br/
pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/24228>. edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/71-ensaio/1239-a-
Acesso em: 05 abr. 2018. -politica-do-desejo-de-pedro-lemebel.html

711
UM CORPO NO MUNDO397:
LUGAR UTÓPICO DE PRÁTICAS
DE (RE)EXISTÊNCIA
Stefany Lopes de Lima - UFPE
Thaysa Cordeiro Silva - UFPE

Arte/educação como poema do esforço de (re)existência

O animal jovem, bem como a criança, experimenta todas as situações imagináveis: ata-
que, defesa, tocaia, ardil, vôo, medo, e sempre a coragem é exibida. Acompanha esses ex-
perimentos a busca das melhores combinações possíveis de esforço, para cada ocasião. O
corpo-mente fica treinado para reagir de imediato, por meio de configurações de esforço
cada vez mais aprimoradas [...]398

O que difere a criança do animal, diria Laban399, é a possibilidade de estímulos interiores, capazes de
variar as qualidades de seus movimentos corporais. Com isto Laban, em seus estudos sobre o esforço, permi-
tiu-me entender o nível em que estavam as tensões do meu corpo. Ouvir a eloquência dos meus rumores cor-
porais: de cidade, de solidão, de periferia, e de estudante universitária, me fez percebê-los guardados na memó-
ria dos meus gestos. Tomei o poema do esforço como exercício de (re)existência, a partir do qual, perceberia a
potência expressiva das minhas regiões de instabilidade, entre elas: ser mulher moradora da periferia da Região
Metropolitana do Recife e estudante de licenciatura em artes visuais na UFPE, uma universidade pública.

Além de minhas leituras sobre o esforço em Laban e vivências corporais com dança e teatro, iniciei
uma pesquisa sobre feminicídio e violência contra a mulher, ao mesmo tempo que, nas aulas da universida-
de, experimentava diversas linguagens artísticas; performance, gravura e fotografia

Por este motivo escrevi um projeto intitulado “Matadouro”, o qual consistiria no registro fotográfico
de uma performance minha. Enviei a proposta para o IX Salão Universitário de Arte Contemporânea –
UNICO, realizado pelo Sesc Pernambuco, apropriando-me do tema “Arte e Participação”, e o meu trabalho
foi um dos selecionados. O edital aberto para o Salão contava com a proposta de estimular experiências es-

397. Um Corpo no Mundo dá título ao primeiro álbum da cantora e compositora baiana Luedji Luna. Pensando identidade, um olhar sobre si mes-
ma, a partir do contato com os imigrantes africanos em São Paulo, o projeto se fundamenta na ideia do não pertencimento, do corpo que ocupa o
espaço, mas não se identifica. Fala da necessidade de conexão com sua ancestralidade africana para encontrar um lugar de pertencimento, ao qual
possa chamar de seu. Aqui, esse “corpo no mundo” é uma metáfora (e acalanto) para pensar nossas experiências de deslocamento e travessia.
398. Rudolf Laban. Domínio do movimento. Grupo Editorial Summus, 1978. p. 41.
399. Rudolf Laban, coreógrafo húngaro (1879-1958). Autor de várias coreografias famosas, renovador da dança e de seu enfoque teatral. Dirigiu seu
trabalho principalmente para a dança, como meio de educação.

712
téticas e conceituais em arte contemporânea, em artistas universitários, oferecendo uma formação completa
do processo de exposição e mediação em galeria.

Matadouro teve o intuito de levar à galeria o debate do feminicídio bem como das pequenas violências
sofridas pelas mulheres, pois, como sabemos, e o Mapa da Violência (WAILSELFISZ, 2015) reitera, a violência
tem raízes no lar da vítima. E, embora a morte de mulheres aconteça, em grande parte, na rua, segundo o Mapa
da Violência, a vitimização inicia-se prioritariamente no ambiente residencial da vítima. São, portanto, meni-
nas violentadas pelos responsáveis, mulheres jovens/adultas violentadas pelo cônjuge e idosas pelos filhos, em
sua maioria. Sendo a população negra e moradora da periferia a que apresenta o maior número de vítimas.

Durante a pesquisa, fiz seleção de algumas manchetes de jornal, e pude perceber que as matérias rela-
tam, além dos locais em que ocorrem os feminicídios, o abandono deste corpo violentado - encontrado muitas
vezes em estado avançado de decomposição. Além de observar os recortes de jornais, visitei a Delegacia de Cri-
mes Contra a Mulher no bairro de Santo Amaro - PE acreditando que “cada obra de arte particular seria a pro-
posta de habitar um mundo em comum, enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de relações com
o mundo” (BOURRIAUD, 2009, p. 30-31). Pude com isso buscar, através da presentificação estabelecida em
meu trabalho, a ligação e o fortalecimento deste “mundo em comum” que é a condição feminina dos dias atuais.

Para o trabalho exposto na galeria, uma performance minha realizada em matadouro de animais,
convidei três amigos com trabalhos em fotografia, igualmente universitários de artes visuais: Jessika Bianca
- UFPE, Marcela Dias - UFPE, Leandro Roberto - AESO, com os quais compartilhei de algumas vivências
e pesquisas. Nos atamos com laços viscerais à execução do trabalho artístico, tecendo, a partir das poéticas
individuais de cada integrante, maneiras de aprofundar nossas práticas de (re)existência bem como de al-
cançar exercícios de mediação cultural na somatória de nossos olhares.

Durante a performance me utilizei do esforço presente em minha memória corporal para ressigni-
ficar o animal comumente disponibilizado para o sacrifício, trazendo à contração do meu corpo, feminino e
habitante da região periférica do Recife, a resistência, presente na força de meus músculos vivos e sensíveis
ao peso do corpo bovino fatiado e disponível à venda. Construindo, desde meu corpo à toda a equipe, a
metáfora de (re)existência presente nas imagens, a qual permanece ecoando, além do universo acadêmico,
em nossas práticas pessoais e pedagógicas.

Fig. 1: Fotografia da performance Matadouro.

Fonte: Arquivo da Performance Matadouro - fotografia de Leandro Roberto, edição de Chico Ludermir.

713
Pensar as práticas de mediação cultural a partir de minhas pesquisas e práticas de (re)existência
presentes no trabalho artístico Matadouro ampliou minhas perspectivas de arte relacional, na qual a
“essência da prática artística residiria (...) na intervenção de relações entre sujeitos” (BOURRIAUD,
2009, p. 30). A performance Matadouro ao habitar as galerias do Sesc ganhou, desde seus primeiros
instantes, coautores, em cerca de oitocentos visitantes que passaram pela exposição. Tais coautores
capazes de ler, reinterpretar e recriar a obra dentro de seus universos subjetivos, foram estimulados
a pensar seus contextos, suas práticas de (re)existência, impulsionados pelos processos de mediação
cultural e atividades educativas da galeria.

A exposição ficou em cartaz na galeria do Sesc Casa Amarela por cerca de três meses e meio - de
30 de novembro de 2017 a 12 de março de 2018 -, recebendo turmas agendadas de estudantes e público
espontâneo. Recebendo, inclusive, o público infantil, no qual comumente a experiência é primeiramente
“incorporada” isto é, apreendida a partir do corpo, como ressaltam Carvalho e Lopes ao citar a importância
dos educativos de museus não limitarem ao “público, principalmente o segmento infantil, apenas à con-
templação dos objetos, e sim, que promovam a emoção e a interpretação crítica acerca do patrimônio ali
exposto, a partir de um trabalho consistente de mediação”.

Fundamentos da malícia como movimento na arte/educação

Iêêêê!
Quem não resgata seu passado
Não protege seu futuro
Cada história respeitar, ai meu Deus
É um espaço seguro
Para que nossa identidade, ai ai ai
Não se perca no futuro
Nossa história está ligada
A um povo muito sofrido
Que aqui para o Brasil
Foi arrastado e trazido, camará

Em novembro de 2017 me inscrevi e fui contemplada pelo edital do IX UNICO – Salão Universi-
tário de Arte Contemporânea do SESC Pernambuco, com o tema “Arte e Participação”, expondo no Sesc
Casa Amarela e, posteriormente, no Sesc Petrolina, o trabalho intitulado “Por que meus estudos me con-
frontam?”. Este, consiste em uma instalação, cujo objeto principal são cadernos, com capas customizadas
a partir de intervenções sobre uma das mais icônicas fotografias brasileiras do século XIX, feita em 1860
no Recife, por João Ferreira Vilella: o retrato de Mônica junto ao menino Augusto Gomes Leal. Mulher,
negra, escravizada. Sobre sua história pouco sabemos, apenas da sua condição como ama de leite. A his-
tória contada a partir do outro.

714
Fig. 2: Registro da instalação “Por que meus estudos me confrontam?”

Fonte: Fotografia por Olga Wanderley

Os cadernos ficam dispostos em duas prateleiras fixadas na parede e, abaixo, nas gavetas de um
criado-mudo, foram colocados materiais diversos para que o público possa intervir nas folhas em branco. O
móvel, comumente definido como um “objeto inanimado no qual se guarda as coisas que não se deseja car-
regar” e que “tem utilidade prática equivalente à de um servo”, análogo às amas de leite, dispostas ao lado da
cama dos filhos de senhores de engenho, prontas a suprir a necessidade substancial do alimento e do afeto.

Fig. 3: Registro da instalação “Por que meus estudos me confrontam?”

Fonte: Fotografia por Olga Wanderley

Água de beber
Iêê, água de beber, camará
Água pra lavar
Iêê, água pra lavar, camará

715
A amarga condição dessas mulheres e mães negras, interrompeu o vínculo com os próprios filhos
e, consequentemente, de gerações com o alimento substancial que é a compreensão da própria história.
Assim, a feitura coletiva dos cadernos de artista é um convite para tecer outras narrativas, para a imersão
em processos de criação que insistem em (re)contar histórias, mesmo que fragmentadas, em busca de pro-
fundidades e pertencimento.

A proposta do trabalho surge do contato com a obra “Pele negra, máscaras brancas” de Frantz Fa-
non, especificamente com o primeiro capítulo, intitulado “O negro e a linguagem”, onde o autor trata da for-
ma como a linguagem construída pelo colonizador adentra os modos do negro ser, se (re)conhecer e estar
no mundo, naturalizando um lugar de subalternidade, “a história que os outros fizeram” (FANON, 2008).
Assim, proponho uma analogia de minha experiência vivida com a vivenciada ao ingressar na esfera acadê-
mica, onde brotaram inquietações e confrontos com a construção de ensino/aprendizagem institucional das
artes visuais, cujos referenciais há muito apagam outros saberes, expressões, linguagens, estéticas, corpos,
memórias e afetos. Há necessidade de beber em outras fontes.

Ê, faca de ponta
Ê, pode furar
Ê, ferro de bater
Ê, ferro pra passar
Ê, volta do mundo
Ê, que mundo deu
Ê, que mundo dá, camará

Nas minhas nascentes, fui buscar referências de uma bibliografia vivida, ainda pouco registrada e
valorizada nos formatos e normas do território que meu corpo passou a habitar: a universidade. Terreno
firmado no conceito de “universalidade” que não combina singularidades, foge à complexidade e às contra-
dições, ainda mais ao reconhecimento dos fundamentos e segredos ancestrais de ensino e aprendizagem que
fizeram a travessia atlântica.

Entre fronteiras invisíveis, se faz o campo de batalha. Para existir nesse espaço, se faz necessário
resistir. E para resistir, se fazem necessárias as estratégias de jogo. É preciso adaptar-se “como se fosse um rio
que está correndo e toma um pouco a forma do leito em que está, mas é sempre rio” (CAPOEIRA, 1992).

Para aprender a jogar, venho buscando referências nos fundamentos de Angola, a capoeira com suas
nascentes na artimanha de sobrevivência, adaptação, (im)previsibilidade, esquiva, potência (axé), comuni-
dade, percepção de espaço-tempo, caminhos possíveis, visão do entorno, movimento e ação no mundo. O
jogo de corpo opera enquanto arma de resistência, aqui simbolicamente representado pela navalha no pé
que transita pelos espaços instituídos, pela palavra afiada e pontiaguda que desafia os discursos estabeleci-
dos, pela metáfora (demanda) que chega aos ouvidos atentos.

Ê, aqui tem rei


Ê, campo de mandinga
Ê, campo de batalha
Ê, estamos na escola
Ê, para aprender, camará400

400. “Seu passado”, ladainha de capoeira angola por Mestre Jogo de Dentro (Salvador - BA), faixa do álbum “No toque do berimbau”.

716
A extinção da lei que proibiu a prática da capoeira, seguida da tentativa de instituí-la em academias, foi
um mecanismo de controle às manifestações culturais negras, afinal “uma sociedade que se pretende auto
regulada, sob controle, deve preocupar-se com a disciplina dos corpos que nela atuam” (TAVARES apud
CAPOEIRA, 1992). Dentre seus fundamentos, há muito a malícia se fez escola, não como sinônimo de mal-
dade ou má intenção, mas de astúcia. Segundo Nestor Capoeira (1992), ela é a chave de desenvolvimento do
jogo. Embora o conhecimento técnico dos golpes seja importante dentro das academias, o angoleiro401 liga-
do ao dinamismo da vida e ao cotidiano, sabe que a malícia é o que ajuda a caminhar em diversas situações,
sejam elas favoráveis ou adversas.

Assim, os fundamentos da malícia aplicados na capoeira me orientam nas práticas de resistência,


permanência e lida diária enquanto corpo negro na universidade (academia), esquivando de emboscadas cien-
tificamente e artisticamente legitimadas. As “sabedorias de fresta e ginga (re)inscrevem rotas de fuga do que é
destinado para as populações negras enquanto lugar absoluto: a condição de não existência” (RUFINO, 2016),
no esforço de transpor limites, buscar compreender e restituir meu lugar na história, meu corpo no mundo.

A experiência de ocupar uma galeria de arte com os fios dessa narrativa e me propor a costurar
feridas (históricas, coletivas, individuais) com o outro através das intervenções na obra e mediações junto
ao educativo, abriu o corpo, o tirou da guarda contra possíveis golpes, convidou outros a participar e com-
por uma roda, compartilhando ali suas presenças, gingas e (re)existências. E “desta rede constituída pelos
corpos-parciais, considerados como força de trabalho somente, surge um novo corpo: o corpo produtivo”
(CAPOEIRA, 1992).

REFERÊNCIAS

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: tps://www.youtube.com/watch?v=V-G7LC6QzTA> .


Martins Fontes, 2009. Acesso em 23 de maio de 2018.
CAPOEIRA, Nestor. Capoeira: os fundamentos da MOLES, Abraham. Doutrinas sobre a comunicação de
malícia. Rio de Janeiro: Record, 1992. massas. In: ADORNO, T. et al. Teoria da cultura de
massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 75-102.
CARVALHO, Cristina; LOPES, Thamiris. O público
infantil nos museus. Educação & Realidade, v. 41, n. 3, RUFINO, Luiz. Performances afro-diaspóricas e deco-
2016. lonialidade: o saber corporal a partir de Exu e suas en-
cruzilhadas. Niterói: Revista Antropolítica, n. 40, 2016,
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salva-
pág. 50-80..
dor: EUFBA, 2008.
VON LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. Grupo
JOGO DE DENTRO, Mestre. No toque do berimbau.
Editorial Summus, 1978.
Álbum-áudio, 52 min. Disponível em <https://www.
youtube.com/watch?v=lgIj3pIsXtI>. Acesso em 23 de WAILSELFISZ, J. J. Mapa da violência 2015: homicídios
maio de 2018. de mulheres no Brasil. Brasil: Brasília, 2015. BOUR-
RIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins
LUNA, Luedji. Um corpo no mundo. Vídeoclipe, 6’43.
Fontes, 2009.
São Paulo: Oxalá Produções, 2016. Disponível em <ht-

401. Praticante da tradicional capoeira angola.

717
PROGRAMA MAIS: MANIFESTAÇÕES
DE ARTE INTEGRADAS À SAÚDE
HUMANIZANDO E EDUCANDO
ATRAVÉS DA ARTE
Leniée Campos Maia (UFPE)
Artur Duvivier (UFPE)
Claúdia Ângela Vilela de Almeida Buril (UFPE)
Cláudia Cazal Lira (UFPE)

INTRODUÇÃO

O ambiente hospitalar congrega uma ampla variedade de fatores desencadeantes de estresse: os


sentimentos de insegurança, angústia e medo em quem busca atendimento, a carga de responsabilidade, a
sobrecarga de trabalho e as precárias condições oferecidas aos profissionais que atuam na área de saúde, o
elemento “Morte”- presente em todos os espaços para o qual nossa formação acadêmica não nos prepara
- esse conhecimento tem levado pesquisadores da medicina holística a se posicionarem sobre os benefícios
da arte nos espaços da saúde.

A associação entre a medicina e a arte não é um fenômeno novo. Foi estabelecida há milhares de
anos quando, na mitologia grega, Febo Apolo foi separado como o Deus da Medicina da Música e da Poesia
(SOUZA, 2000).

Conforme Carvalhal Ribas, da Universidade de São Paulo, as primeiras referências sobre a influ-
ência da música no organismo humano foram encontradas em um papiro médico egípicio de 2.500 a. C.,
descoberto em Kahum, por Petrie em 1889 (DÉCOURT 1988).

Segundo Stevens (1996) há pesquisas no campo da enfermagem holística que defendem que se deve
“cuidar da música da alma”, pois vibrações musicais poderiam ajudar a restaurar funções reguladoras em um
corpo fora de sintonia assim como ajudar a manter a sintonia destas atividades.

Afirma Campello (2006) que a arte é capaz de exercer um poder medicinal de desvendar o homem na
sua totalidade – corpo e mente. Acredita o autor que a compreensão das necessidades dos cuidados com a alma
dos nossos pacientes, além do tratamento dos sinais e sintomas clínicos, aumenta as possibilidades de cura.

Nos últimos anos, a arte circense tem oferecido uma intensa participação nos hospitais brasileiros,
através dos Doutores da Alegria, artistas profissionais que seguem o trabalho idealizado pelo palhaço ame-
ricano Michael Christensen (CAMPELLO, 2006).

718
Pessoas que sofrem de raiva crônica têm alta incidência de pressão sanguínea elevada, níveis mais
altos de colesterol e ataques cardíacos. Enquanto a raiva, a depressão e frustração perturbam a função de
muitos sistemas fisiológicos, incluindo o sistema imune, o riso ajuda estes sistemas a funcionarem melhor.
Por exemplo, o riso ajuda o sistema imune a aumentar o número de células que auxiliam contra a infecção,
as células T, no sangue. O riso também pode promover mudanças hormonais benéficas. Cientistas especu-
lam que o riso libera transmissores neuroquímicos chamados endorfinas, os quais reduzem a sensibilidade
à dor e promovem sensações prazerosas e de bem estar (CARDOSO, S.H, 2002).

A leitura também se mostra um elemento importante como coadjuvante terapêutico. Eva Seitz (2005)
realizou estudos com pacientes internados em clínica médica. O estudo aponta para o importante papel da
leitura enquanto atividade de lazer para pacientes hospitalizados, humanizando o processo de hospitalização.

Caldin (2001) avaliou o projeto “Literatura infantil e Medicina pediátrica: uma aproximação de in-
tegração humana”, desenvolvido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Verificou que
as histórias contadas às crianças diminuíam seu estado de incapacidade e proporcionaram alívio temporário
das dores e dos medos advindos da doença e do ambiente hospitalar. O resgate do sonho, do imaginário e do
lúdico forneceu um suporte emocional às crianças enfermas.

A Arteterapia pode ser um caminho revelador e inspirador que nos ajuda a entrar em contato com a
possibilidade abundante e generosa de acreditar, desafiar, reconstruir, criar e expressar emoções, sentimen-
tos e imagens que trazemos dentro de nós (GUTTMAN, 2006).

O Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE) atua como hospi-
tal-escola e Centro de pesquisa em Biomedicina. Possui 411 leitos atendendo exclusivamente ao SUS, com
média mensal de 17.000 consultas e 1.011 internamentos. Esse perfil confere ao HC-UFPE a necessidade
de projetos de Humanização.

Neste contexto, o Programa MAIS: Manifestação de Artes Integradas à Saúde, é elaborado com o
objetivo de humanizar os espaços do HC-UFPE, oferecendo vários tipos de manifestações artísticas, para
pacientes, acompanhantes e corpo funcional, englobando vários projetos com participação expressiva de
docentes, alunos e técnico-administrativos da UFPE, oferecendo um espaço de extensão com verdadeira
oportunidade de integração com a comunidade usuária dos serviços do Hospital.

METODOLOGIA

A metodologia vem sendo construída de acordo com a vivência das dificuldades e as necessidades
apresentadas, o que lhe confere uma natureza dinâmica. Hoje, o Programa MAIS: Manifestação de Artes In-
tegradas à Saúde é composto pela agregação de vários projetos cujas diversidades artísticas são coordenadas
por docentes e/ou técnicos, com ampla participação de alunos da UFPE e outras Instituições. São exemplos
de projetos em andamento: “Musica para o Coração e a Alma”, “Musica para o Corpo e Alma”, “Palhaçotera-
pia da UFPE: Projeto Encontro e Risos Terapêuticos-PERTO”, “Bonecos de Travesseiro: Teatro de animação
no HC/UFPE”, “Arteterapia: uma ação reveladora”, “Arte como terapia: um novo olhar na Saúde”, “Brincando
com Arte”, “Oficina de Cordel”, “CineClube+”, “Dia do Canto” e “Dia da Música”.

Selecionado pelo Ministério da Cultura (MinC) através do Pontos de Leitura – Edição Machado
de Assis 2008, o Programa MAIS: Manifestação de Artes Integradas à Saúde foi contemplado com uma
biblioteca, constando cerca de 500 títulos, o Ponto de Leitura MAIS, funcionando no HC, que abriga os
projetos “Mala Direta” e “Contos no Ponto”, além de promover Saraus poético/literários e produção de cor-
déis educativos.

719
Vários dos projetos contam com apoio financeiro e/ou bolsas de extensão para alunos de gradua-
ção de diversas áreas, o que permite aquisição de equipamentos, materiais de consumo além de estimular a
participação discente.

Diferentes centros e departamentos participam do programa, tais como Centro de Ciências da Saú-
de - CCS (Departamento de Patologia, Serviço de Dermatologia, Cursos de Medicina, Enfermagem, Terapia
Ocupacional, Nutrição, Biomedicina, Farmácia e Odontologia), o Centro de Artes e Comunicação – CAC
(Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística, Departamento de Música, Departamento de Ciên-
cia da Informação, Departamento de Comunicação Social), Centro de Ciências Biológicas – CCB (Depar-
tamento de Micologia, Curso de Biomedicina), Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFCH (Curso
de Psicologia), além da participação de outras Instituições como a Faculdade Integrada de Pernambuco -
FACIPE e Faculdade Maurício de Nassau além de outras externas à UFPE – Escola Municipal de Arte João
Pernambuco - e de artistas convidados, caracterizam sua natureza multicêntrica.

As apresentações musicais, de teatro, palhaçoterapia, contação de história, oficinas de arteterapia e


artesanato entre outras, são levadas aos diversos espaços do HC (ambulatórios, enfermarias, hemodiálise, UTI,
quimioterapia, pediatria, “halls”, alojamento das mães, pediatria), em locais e horários previamente selecio-
nados, definidos a partir do consenso entre as diversas Chefias de Enfermagem do HC, de acordo com as
necessidades e especificações do espaço. A duração das intervenções varia de 00:15min à 02:002h, a depender
da complexidade da proposta, e são divulgadas semanalmente, sendo encaminhada às chefias de Enfermarias,
Ambulatórios, Assistência Social e Direção do HC. São realizadas cerca de 25 intervenções semanais.

Fig 1: : Projeto Música para o corpo e a alma (UTI). Fig. 2: Projeto Música para o coração e a alma no HC

Fig. 3: Palhaçoterapia da UFPE: Projeto Encontro e Risos Terapêuticos-PERTO.

720
Fig. 4: Projeto Bonecos de Travesseiro. Fig. 5: Projeto Arte como terapia: um
novo olhar na saúde.

Teatro de animação no HC/UFPE.

Fig. 6: Ponto de Leitura MAIS. Fig.7: Dança na Enfermaria de pediatria

Fig. 8: Projeto Contos no Ponto Fig. 9: Projeto CineClube+.

721
RESULTADOS E DISCUSSÃO

Cerca de 7.800 apresentações já foram realizadas desde a criação do Programa, assim como muitos
foram os beneficiados, entre pacientes funcionários, médicos, docentes e discentes. Os resultados são ob-
servados através dos diversos relatos de satisfação e alívio do estresse do internamento, da construção de
espaços de compartilhamento e criatividade, dos sorrisos que afloram durante as intervenções artísticas.
Ao oferecer, através da Arte, elementos que alimentam o imaginário contribuímos para construir janelas de
liberdade e sonho no espaço hospitalar, melhorando significativamente a qualidade de vida de seus ocupan-
tes. Em espaços como a UTI é possível mensurar indicadores como, redução de ansiolíticos e analgésicos
assim como a melhora do sono e facilidade no desmame dos aparelhos ventilatórios nos dias em que as
intervenções são levadas. Nos questionários aplicados, a melhora do bem estar e sensações de paz, relaxa-
mento, alegria e prazer são comumente referidos após as intervenções.

É evidente, através dos relatos apresentados, a contribuição acadêmica na construção humanística


e ética dos alunos envolvidos, expressa pela participação cada vez maior nos diversos projetos do Programa
conforme a tabela abaixo.

Número de apresentações
Número de alunos

É indiscutível que a soma destes achados resultam em uma melhoria das condições de trabalho e
de atendimento dos usuários do HC-UFPE. Além disso, diversos produtos acadêmicos já foram gerados,
como participação em diversos congressos, simpósios, encontros, assim como em programas de TV e rádio.

CONCLUSÕES

O Programa MAIS: Manifestações de Arte Integradas à Saúde, acolhendo e divulgando as múltiplas


expressões de arte, tem sido reconhecido como um benefício inestimável ao ambiente do HC, reforçando a
eficácia da arte no espaço hospitalar como elemento terapêutico complementar e vetor humanizador, esti-
mulando a criação de vínculos solidários e participação coletiva. Sua proposta incita, fortalece a articula ati-
tudes humanizadoras nas instituições de saúde, desperta e reforça valores éticos e humanísticos nos alunos
participantes, contribuindo assim na sua formação acadêmica.

722
A Arte inserida no espaço hospitalar descontrai, alivia, alegra, aproxima, estimula a empatia, fatores
essenciais para a construção de uma boa relação entre quem procura e quem acolhe e cuida.

O Programa MAIS: Manifestações de Arte Integradas à Saúde, foi contemplado pelo Ministério da
Cultura com o Prêmio Cultura e Saúde 2010, concorrendo com projetos e programas de todo o território
nacional obtendo o 10 Lugar. Recebeu o 10 Lugar em Humanização no Premio Pastoral da Saúde 2011 com
o Projeto Música para o Corpo e a Alma na UTI, e o 10 e 20 Lugares em Humanização no Premio Pastoral
da Saúde 2012 com o Programa MAIS e o Ponto de Leitura MAIS respectivamente. Foi também contem-
plado com o 10 lugar no PRÊMIO ENEXT 2012: Universidade & Sociedade em Diálogo: XII Encontro de
Extensão, V Fórum de Extensão, Pesquisa e Ensino com o Projeto Música para o Corpo e a Alma na UTI e
o 10 lugar no PRÊMIO ENEXT 2014: Universidade & Sociedade em Diálogo: Ensino / Pesquisa / Extensão:
Indissociabilidade Possível e Necessária com o Programa MAIS: arte e saúde, as duas faces de Apolo.

BIBLIOGRAFIA

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to New Age. NEW York: Springer, 1996.

723
TÁ NA PELE: DIÁLOGOS MUSICAIS
ENTRE SURDOS E OUVINTES
Bruna Caroline Nazário de Souza, discente Licenciatura em Música– UFPE
Débora de Lima Cabral, discente Licenciatura em Música– UFPE
Maria Aida Falcão Santos Barroso, docente – UFPE
Uiaracy Maria Santana Vieira, discente Licenciatura em Letras Libras – UFPE

Introdução

Este artigo apresenta um relato de experiências vivenciadas durante os 4 semestres em que se


desenvolveu o projeto “Tá na Pele - diálogos musicais entre surdos e ouvintes”. O projeto teve como obje-
tivo geral realizar ações que promovessem diálogos musicais entre surdos e ouvintes com a finalidade da
formação de grupo um musical inclusivo, o ‘Tá na Pele’. Além disso, pretendia o diálogo com a comuni-
dade surda buscando compreender seus anseios com relação à música e investigando sua musicalidade,
possibilitando, assim, articulação de saberes interdisciplinares relacionados à música, linguagem (libras)
e movimento.

O ‘Tá na Pele’ surgiu de uma inquietação relacionada às práticas na disciplina Percepção Musical
do Departamento de Música da UFPE. Essa inquietação diz respeito ao pouco proveito que os músicos
fazem das diferentes possibilidade de percepção, fiando-se quase que exclusivamente no ouvido como
meio de entendimento e aprendizagem musical. Sabe-se, no entanto, que os sons no meio físico nos ‘to-
cam’ - além do ouvido que os captam e decodificam em sons - por toda a pele. Ao contrário dos músicos
ouvintes, os surdos, vão decodificando as vibrações em sons, percebem-nas de outras maneiras. Além de
uma maior sensibilidade às vibrações, demonstram grande habilidade rítmica e motora no aprendizado
da língua de sinais e possuem noções bastante acuradas de espacialidade. Junto a essas habilidades, outro
ponto de motivação para as investigações do grupo foi a observação de que ao se comunicarem através
da língua de sinais os surdos emitem tanto sons vocais quanto sons provocados pelo contato das mãos na
produção de alguns sinais.

A partir dessas reflexões surgiu a proposta de promover um diálogo entre ouvintes e surdos a fim
de investigar as possibilidades musicais existentes nesse ponto de interseção entre os dois grupos, a sensibi-
lidade tátil das vibrações através da pele e a musicalidade presente na Língua Brasileira de Sinais.

Conceitos musicais como ritmo, intensidade, harmonia, timbre, altura, podem ser trabalhados de
forma concreta, tanto através de imagens quanto através da sensação tátil. Podem ainda ser utilizados como
elementos na construção de performances que tenham como base estruturante e criadora de significado a
Língua de Sinais.

724
Surdos e Música

Considerando os principais aspectos teóricos que norteiam nosso relato, é importante que se apre-
sente uma primeira definição de quem é o sujeito surdo. Conforme a definição apresentada no Decreto
5.626/2005, a pessoa surda é aquela que “por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por
meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de
Sinais - Libras.” (BRASIL, Decreto 5.626/2005, Art. II) Então, consideramos pessoa surda aquela que tem
perda auditiva, seja desde o nascimento ou não, mas que se identifica com a comunidade surda e se comu-
nica através da língua de sinais.

As pesquisas de MONTEIRO (2006) revelam que há muito tempo várias famílias limitavam as relações
sociais dos filhos surdos, e inclusive não havia uma boa comunicação entre eles, por não considerarem a língua
de sinais como língua oficial dos surdos. Essa marginalização e preconceito gerou na própria pessoa surda um
bloqueio no aprendizado da língua, nas emoções, e relações sociais. Além disso, a ousadia para conquistar as
metas e anseios pessoais também estava sendo prejudicada. FIGUEIRA (2008) afirma que a conscientização e
movimentação política das pessoas com deficiência começaram desde o final de 1979, quando começaram a
reagir contra a falta de serviços públicos, por exemplo. Essa coesão de forças logrou êxito na conquista de leis
que os atendessem. Hoje podemos perceber que movimentos de reivindicação e lutas continuam sendo feitos,
inclusive considerando o percentual de pessoas que apresentam surdez em nosso país.

Dados recentes do IBGE apontam que o número total de Surdos brasileiros é de 5,7 milhões
(surdos profundos e deficientes auditivos). Os números também apontam que somente no
estado de São Paulo há 480.000 e que na capital este n° é de 150.000 Surdos e Deficientes
Auditivos. Diante deste quadro gigantesco de pessoas surdas, era de se esperar que, de uma
forma ou de outra, houvesse um movimento social e político para o resgate dos Surdos da
marginalização lingüístico-educacional. (MONTEIRO 2006, p.293)

Em nosso país, o reconhecimento legal da Língua Brasileira de Sinais - Libras como língua se deu
em 2002 e 2005 com a lei n. 10.436/2002 e a regulamentação 5.626/2005, sendo uma contribuição a mais
para a inclusão social da comunidade surda.

A realidade da inclusão no Brasil vem há mais ou menos duas décadas, e teve como impulso prin-
cipal a Declaração de Salamanca em 1994, a nível internacional. Tendo em vista que a inclusão nos espaços
educacionais e musicais estão ainda sendo postos em vigor, mesmo com as questões legais já efetivadas. São
muitos os desafios para se estabelecer um ensino de música contextualizado aos alunos com deficiência.
Com relação à pessoa com surdez, temos várias questões além da abordagem pedagógica, como as barreiras
sociais e culturais da não possibilidade do desenvolvimento musical.

Sabendo que a Língua Brasileira Sinais é a principal forma de comunicação entre a comunidade
surda e estabelecida oficialmente a partir da lei 10.436/2002, buscamos refletir sobre a sua utilização no
contexto musical. Considerando a Libras como uma língua que possibilita a musicalidade, identifica-se nela
vários parâmetros musicais como a interpretação, a realização de sons diversos, a intensidade (forte e fraco),
ritmo (movimento), altura (grave e agudo), duração (longo e curto) timbre, fraseado.

Apesar da Libras proporcionar a musicalidade, os estigmas sociais mencionados por Haguiara-


-Cervellini (2003) levam por caminho inverso. A sociedade por vezes desconfia da possibilidade do tra-
balho musical com os surdos, incluindo nesse conjunto os intérpretes de Libras, professores e até mesmo
a comunidade surda. Muitas vezes há inaptidão para adaptar as metodologias de trabalho e o desconhe-
cimento da possibilidade do trabalho musical para o surdo. Reconhecemos que esse é um assunto novo,

725
e que esses paradoxos precisam ser quebrados. SÁ (2008) e BENASSI et. al (2014), afirmam que para ga-
rantir que a música seja bem aproveitada como conteúdo para os alunos surdos nos espaços educacio-
nais, é preciso partir do conhecimento prévio das pessoas envolvidas. Perceber as metodologias mais co-
erentes com a realidade, valorizar o contato visual e tátil, procurando junto a ela estabelecer os melhores
caminhos para que esse contato seja sempre agradável e prazeroso. Outra postura a ser tomada por par-
te do educador musical é a inserção da língua de sinais nas aulas de música. KUNTZE e FINCK (2014,
p.83) afirmam que o uso da língua de sinais nas ações educativas é essencial e a presença de um profes-
sor que saiba a língua de sinais melhor ainda. A garantia de uma boa comunicação é importante tendo
um professor habilitado ou um intérprete, evitando assim uma dificuldade desnecessária a ser vencida.
O acesso à música, como bem cultural, é um direito de todos. Para Fink (2009, p.56), “pensar o surdo
como musical pressupõe transformações das representações já estabelecidas. Ser musical não é privilégio de
seres especiais e bem dotados, mas possibilidades do homem como ser.” Assim, apostamos na interação dialó-
gica entre surdos e ouvintes para a construção deste trabalho, entendendo que o conhecimento se dá através de
“relações de transformação, e se aperfeiçoa na problematização crítica destas relações” (FREIRE, 1983, p.22).

Sendo assim, é importante também considerar que a música é essencial à pessoa surda, isso porque ela
contribui para a ampliação da compreensão e permite o “acesso à maior diversidade possível de manifestações
musicais, pois em suas mais variadas formas, é um patrimônio cultural capaz de enriquecer a vida de cada um.”
(PENNA, 2008, p.25). SÁ (2008) afirma que o trabalho musical específico para o surdo favorece a própria iden-
tidade, além do aprendizado cognitivo. Isso se dá quando abordado de forma correta e plena, isso é, quando se
aproveitam as características peculiares, tornando o espaço escolar, um espaço de vida cultural.

Tá na Pele - diálogos musicais entre surdos e ouvintes

O projeto ‘Tá na Pele’ foi realizado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), como parte
das atividades do programa de extensão LEMEI - Laboratório de Educação Musical Especial e Inclusiva, do
Departamento de Música. Suas duas edições foram realizadas com apoio do Edital PIBExC, que concedeu
bolsas de extensão para discentes participantes. Aberto à comunidade, aconteceu mediante engajamento
de estudantes do curso de Letras/Libras e Música. Esse diálogo entre os cursos possibilitado pelo projeto
também abrangeu pessoas da comunidade externa à universidade e permitiu a realização da pesquisa-ação.
O projeto contou com duas bolsistas PIBExC, uma do curso de Licenciatura em Música e outra do curso
de Letras/Libras (intérprete de Libras). A presença da intérprete, apesar de não ter conhecimentos musicais
prévios foi de extrema importância, contribuindo tanto no sentido da comunicação durante as aulas, como
facilitando na divulgação do projeto, que contou também com o apoio do Departamento de Letras/Libras
através de consultoria, indicação e liberação dos alunos para participação. A divulgação foi feita através de
um vídeo compartilhado nas redes sociais que explicava sobre o grupo e convocava as pessoas a participa-
rem. A coordenação do curso de Letras/Libras contribuiu divulgando o projeto para os alunos, pois para
além do interesse em atividades musicais a participação no projeto computaria carga horária para Ativida-
des Complementares, o que também colaborou para despertar o interesse dos alunos.

O projeto buscou o desenvolvimento de atividades musicais com participantes surdos e ouvintes


e todas as atividades musicais realizadas priorizaram a utilização da Língua de Sinais. Sua utilização evi-
denciou os aspectos que a Libras tem em comum com a música, como fraseado, ritmo, timbre, interpre-
tação, entre outros, permitindo a criação de performances visuais e sonoras. O grupo fez sua investigação
partindo das considerações feitas por alguns autores como Haguiara-Cervellini (2003) e Sá (2008), de que
a percepção musical está além do aparelho auditivo (por ser um aspecto essencial nas aulas de música em
geral), podendo se valer de outros órgãos como a pele. O aspecto visual foi bastante valorizado durante
as atividades, assim como a maneira como as vibrações podem ser captadas pelos surdos e transforma-

726
das em informações musicais. Sendo a música movimento e vibração, Sá afirma que “as pessoas surdas
podem perceber o ritmo, a dinâmica da música, o timbre do cantor, as vibrações, mas tudo isto tem que
ser apresentado num contexto significativo, não num contexto mecânico, dificultoso, obrigatório.” (2008,
p.10) A experiência diferenciada (tato e visão), permitiu as mesmas sensações de prazer que os que têm
uma audição preservada (Haguiara-Cervellini, 2003).

Sá (2008) afirma ainda que a pele é órgão sensitivo de extrema importância para os surdos por
possibilitar a percepção de vibrações diversas. Para ela, “a experiência da surdez potencializa não apenas
a visão, mas todo o corpo do surdo, levando-o a experimentar as vibrações de forma até mais intensa que
os ouvintes” (SÁ, 2008, p.3). Sendo assim, toda uma série de atividades pode ser realizada tendo o próprio
corpo como meio de contato com as diferentes formas de abordagem da música, tanto para a percepção das
vibrações de instrumentos musicais diversos, com suas características específicas de produção sonora (e,
consequentemente, vibratórias), quanto como produtor, ele mesmo, da música. Caldas (2011) aponta na Li-
bras características que nos permitem ouvir seus sons. Dentre elas podemos apontar: o sequenciamento dos
sinais que nos permite uma ideia de cadenciamento, podendo ser organizados ritmicamente; o deslocamen-
to dos sinais em diversas direções e seus contato com o corpo evidenciando o movimento; as repetições ou
paradas em pontos do discurso que sugerem a ideia de rima ou de forma; as expressões faciais que auxiliam
e reforçam o discurso; e a intensidade da sinalização que nos dá ideia de volume – forte ou fraco. Assim, são
investigados e selecionados sinais que permitem a exploração dessas características e, transformados em
gestos sonoros, sejam empregados na criação musical.

Os encontros semanais contavam com a mediação de músicos e intérprete de Libras. Durante os


encontros foram desenvolvidas diversas atividades, com e sem utilização de instrumentos musicais. Esses
foram utilizados para sensibilização dos participantes com relação às diferentes vibrações sonoras. Foram
realizadas atividades envolvendo o entendimento de pulsação através do andar, da utilização de instrumen-
tos de percussão e de jogos utilizando bolas. Foram investigados os sinais que produzem sons e sua cataloga-
ção para a construção das performances musicais e para que pudéssemos registrá-las em partitura. A partir
dos sinais coletados foram elaboradas frases rítmicas aplicando gestos sonoros aos sinais selecionados para
a criação da performance musical.

O repertório foi construído a partir de sugestões de próprio grupo, levando em consideração os


pontos de vista de todos os envolvidos. A construção desse repertório teve como objetivo tanto a realização
de apresentações artísticas públicas como o compartilhamento para mediação de atividades musicais inclu-
sivas. A cada encontro as atividades foram gravadas em vídeo para que pudéssemos registrá-las e para que
tivéssemos a memória do que foi feito. Todas as gravações foram realizadas mediante consentimento dos
participantes e utilizadas apenas para fins de registro. As atividades propostas só se concretizaram a partir
das experiências vivenciadas com os surdos, não cabendo aos músicos participantes uma decisão unilateral
a respeito das atividades realizadas.

Com relação à escolha dos sinais, usamos como base o vocabulário bilíngue LIBRAS-Música pro-
posto por Ribeiro (2013), o Dicionário Ilustrado de Libras de Brandão (2011) e sinais que fazem parte do
vocabulário dos participantes do projeto. Esses sinais foram organizados em um glossário e utilizados na
criação das performances. O catálogo de sinais continua em construção, com cada sinal sendo fotografado
e descrito na forma apresentada pelos dicionários. A figura 1 mostra a maneira como as frases foram sendo
criadas ritmicamente, junto à descrição visual dos sinais catalogados. Embora o Tá na Pele faça o registro
completo das performances em partitura, há o cuidado de trazer legenda referente aos sinais. Isso se dá por
dois motivos: em primeiro lugar para permitir que outros educadores se utilizem do material. Em segundo
lugar pois ainda é a notação utilizada para memória dos surdos participantes do grupo. Não tivemos a in-
tenção primeira de ensiná-los a escrita musical tradicional.

727
Obrigatório Estudar Disciplina
Fig. 1 Legenda para a partitura. Fonte: Tá na pele.

Ao final do primeiro ciclo de atividades do grupo, chegamos à construção da performance nomeada
“Problema seu”. O tema traz de forma humorada, situação cotidiana do estudante universitário. A partitura
traz a proposta rítmica para a repetição dos sinais, transformando-os em gestos sonoros. Nesse caso, ao
invés da distribuição silábica da letra, o que temos é a legenda do sinal sob o grupamento rítmico referente
a ele. A performance propõe uma realização rítmica de gestos sonoros, utilizando os diferentes timbres do
contato das mãos na realização dos sinais e inclui momentos de simples acompanhamento rítmico. O for-
mato lembra o do hip-hop, tanto na atitude corporal da performance quanto nos solos que utilizam sinais
não sonoros acompanhados de batida rítmica em forma de ostinato. Os solos são alternados com frases rít-
micas que se repetem como refrão. A performance é, ao mesmo tempo sonora para os ouvintes e visual para
os surdos, trazendo os elementos musicais possíveis: ritmo, textura, fraseado, dinâmica. O texto, não sendo a
simples tradução da letra de uma música, surge da própria língua de sinais, como pode ser visto na figura 2.

Fig. 2: “PROBLEMA SEU”​. Para Libras e ​Gestos Sonoros​. Criação coletiva Tá na Pele, 2016/2017

728
O projeto colaborou tanto para a formação acadêmica dos estudantes como para a sociedade, pois
nos trouxe reflexões sobre a educação musical inclusiva, oferecendo meios para a criação e desenvolvimento
de atividades pedagógicas e artísticas. Possibilitou à comunidade surda do Centro de Artes e Comunica-
ção um contato mais próximo com as atividades musicais realizadas no Centro e atendeu às necessidades
dos planos pedagógicos dos cursos referentes à inclusão, enriquecendo o currículo dos cursos, articulando
saberes interdisciplinares relacionados à música, linguagem (Libras) e movimento, promovendo ainda a
participação dos envolvidos em eventos acadêmicos artísticos e/ou científicos.

A experiência enriqueceu as possibilidades de abordagens metodológicas nas aulas de Percepção


Musical, evidenciando a importância da utilização do corpo como um meio receptor e produtor de som.
Questões relacionadas à comunicação visual, à espacialidade e à comunicação através de gestos foram incor-
poradas ao conteúdo teórico e prático da disciplina.

Apesar dos evidentes ganhos relacionados à vida acadêmica, uma das dificuldades encontradas
na realização do projeto foi referente à assiduidade dos participantes. Para que houvesse desenvolvimento
das atividades era necessário que houvesse presença constante da comunidade surda, mas esta se fez de
forma irregular, com grande rotatividade de participantes. Assim, para continuidade do projeto optou-
-se por novo formato em forma de oficinas, adotado a partir de 2018. Nossa intenção é compartilhar os
resultados da proposta e discutir sua aplicabilidade em salas de aula de música inclusivas, por entender
que os parâmetros comuns à libras e à música podem contribuir para a educação musical tanto de surdos
quanto de ouvintes.

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730
A OFICINA DE FOTOS&GRAFIAS
COMO PRÁTICA INCLUSIVA
EM ARTE EDUCAÇÃO
Ana Elisabete R. de C. Lopes
UNESA-RJ e PUC-RIO

E ssa comunicação tem como objetivo apresentar o trabalho desenvolvido em dois contextos
educacionais distintos onde foram desenvolvidos projetos de pesquisa-intervenção, no formato de “Oficina
de Fotos&Grafias”. Inicialmente, a investigação foi realizada na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro,
numa escola especial, com o objetivo de pesquisar o potencial do trabalho com a linguagem da fotografia
mobilizar a criação artística, o aprendizado em arte e pela arte e a construção de processos inclusivos.

A partir desse estudo, que envolveu a investigação sobre a dimensão alteritária e dialógica da Fo-
tografia (Lopes, 2005) e sobre seu potencial como linguagem inclusiva no contexto escolar (Lopes, 2006;
Lopes, A. & Pereira, R., 2015), um novo projeto foi realizado numa instituição privada de ensino superior,
no Rio de Janeiro. Este segundo trabalho teve como objetivo promover a inclusão no espaço da universidade
de jovens alunos com deficiência intelectual, maiores de 18 anos, visando à continuidade da formação edu-
cacional através da Arte/Educação. Incluídos no ambiente universitário e usufruindo dos serviços, recursos
e da estrutura disponível, a proposta da “Oficina de Fotos&Grafias” foi desenvolvida como parte integrante
de um Curso de Extensão, denominado “Arte, Educação e Inclusão com Orientação Universitária”.

O diálogo com o pensamento de Vygotsky (1987a; 1987; 2009) orientou a construção de uma pro-
posta de trabalho que reconhece a dimensão inclusiva da arte na formação de todo ser humano. Nesse
sentido, compreendemos o espaço da oficina como campo de trabalho, de ação e interação, que explora a
linguagem fotográfica como meio e mediação facilitadora do desenvolvimento no campo estético-sensível,
artístico e cognitivo de alunos com necessidades específicas. A partir de mediações que exploram a produ-
ção, fruição e o conhecimento da linguagem da Fotografia (Barbosa, 1991; 1997; 2015) e da experiência do
ato fotográfico (Dubois, 1994), que envolve todo o processo anterior e posterior de produção da imagem,
nos dois contextos de pesquisa-intervenção citados, os alunos puderam explorar o potencial inclusivo da
Arte na Educação, através do trabalho com a Fotografia.

Com esse objetivo, a prática pedagógica desenvolvida ao longo dos encontros foi fundamentada e cons-
truída a partir dos pressupostos teóricos e metodológicos que orientam o campo da Arte/Educação ( Barbosa,
1991; 1997; 2015; Dubois, 1994; Lopes 2005; 2006; 2015), como também, a partir das contribuições do pensa-
mento de Vygotsky (1987; 1997; 2009). Em seus estudos, Vygotsky ressalta a importância da Arte como lingua-
gem simbólica e campo de construção de conhecimentos que amplia o horizonte de percepção, expressão e sig-
nificação. Segundo o autor, “poesia e arte representam uma forma particular de pensamento, a qual certamente
conduz ao mesmo que o conhecimento científico, porém por outro caminho” (Vygotsky, 1998, p.50).

731
Na exploração desses caminhos abertos pelas linguagens da Arte, destacamos o papel do educador
como mediador do processo de criação e fruição artística dos educandos. Segundo Vygotsky (1982, p. 26),
todo ser humano tem potencial criador e capacidade de desenvolver a imaginação criadora. Para que possa
desenvolver este potencial, necessita de estímulos do meio e da mediação do adulto: “a criação consiste, no
seu verdadeiro sentido psicológico, em fazer algo novo; é fácil chegar à conclusão de que todos podemos
criar em grau maior ou menor e que a criação é o acompanhante normal e permanente do desenvolvimento
infantil”. Nesse sentido, destacamos o papel da Arte na Educação Inclusiva, abrindo possibilidades para
que cada ser humano desenvolva sua linguagem expressiva singular, de acordo com suas possibilidades e
características pessoais. Através das experiências lúdicas, cognitivas e sensíveis, que envolvam a produção e
fruição artística, cada educando desenvolve seu potencial criador e encontra outros caminhos para explorar
e conhecer o mundo.

Ao propor desafios estéticos e ao procurar ampliar as possibilidades de contato com as diferentes


formas artísticas, tendo a Fotografia como fio condutor desse processo, o trabalho nas oficinas procurou
favorecer a experiência com a Arte e através da Arte. Dessa forma, reafirmamos a concepção de que todo
ser humano, independente de suas características ou limitações, tem potencial criador e de imaginação, que
poderá ser desenvolvido de variadas formas e através das diferentes linguagens. As linguagens artísticas des-
tacam-se como facilitadoras do processo de construção de conhecimentos e encontram na mobilização da
imaginação e da fantasia a base de desenvolvimento do ato de criação e de expressão artística. (Lopes, 2005).

Nesse ambiente facilitador da fruição artística, as interações são estabelecidas e desencadeiam os


processos de constituição do sujeito e de aprendizagem. Na interação com o outro, mediada pela linguagem,
ou seja, no contato social com o outro e com suas produções, ocorrem a internalização da linguagem e dos
conceitos e são ampliadas as perspectivas de desenvolvimento do processo de produção, fruição e conheci-
mento no campo da Arte (Lopes, 2005).

Nas propostas desenvolvidas, as linguagens artísticas são exploradas pelos alunos e educadores em
sua riqueza expressiva e se apresentam como campo aberto de criação e de compreensão da realidade, de
si mesmo e do outro. As mediações desenvolvidas exploram o potencial criador e estimulam o pensamento
divergente, a busca de diferentes alternativas, soluções e formas de expressão. Através da experiência artís-
tica, todos são estimulados a explorar seu potencial e a buscar novas soluções, possibilidades alternativas e
caminhos não convencionais para solução dos desafios que o processo criador apresenta. Dessa forma, são
incentivados a construir um percurso de investigação sobre sua forma própria e única de expressão e cria-
ção, a partir da produção e fruição de imagens.

Na articulação entre experiências que envolvam o fazer, o pensar e o conhecer a Arte, a partir da lin-
guagem fotográfica, a livre expressão é o foco do trabalho e seu exercício amplia as possibilidades de redimen-
sionamento da realidade a partir da imaginação e da fantasia. A mediação do educador/pesquisador procura
abrir espaço para a expressão não verbal e a compreensão do indivíduo e do mundo, para além do que pode ser
traduzido em palavras. Dessa forma, o olhar através e sobre as fotografias mobiliza a produção de narrativas e
o resgate da história vivida pelo grupo e por cada um dos envolvidos no projeto de pesquisa-intervenção. Esse
olhar mediado pela câmera fotográfica e pela fotografia pode estimular outras formas de perceber, compreen-
der, de ser e de estar no mundo, valorizando a diversidade como característica do ser humano e reconhecendo
a diferença como fator mobilizador da criação e da experiência plena de criar e de viver.

A primeira pesquisa-intervenção desenvolvida no formato de “Oficina de Fotos&Grafias” foi reali-


zada numa escola especial municipal no Rio de Janeiro, como trabalho de campo do Doutorado e resultou
na tese com o título “Olhares Compartilhados: o ato fotográfico como experiência alteritária e dialógica”
(Lopes, 2005). Neste estudo, é construída uma abordagem metodológica de pesquisa que explora a foto-

732
grafia como registro e objeto de investigação. Durante o trabalho de campo, os alunos com necessidades
específicas puderam entrar em contato com essa linguagem, conhecendo noções básicas sobre a técnica
fotográfica e explorando o processo criador através da produção de fotografias e da articulação dessas ima-
gens com outras formas de representação visual, tais como, o desenho, a pintura, a colagem e a animação.

O segundo projeto de pesquisa-intervenção no formato de “Oficina de Fotos&Grafias” foi a realiza-


do numa universidade privada, na cidade do Rio de Janeiro, no período de entre setembro e dezembro de
2016. Neste segundo contexto, investigamos a dimensão inclusiva da experiência do ato fotográfico no es-
paço da universidade. Algumas questões centrais orientaram essa etapa do projeto de pesquisa-intervenção,
tais como: - Como o grupo de jovens com deficiência intelectual se relacionam com a linguagem da foto-
grafia e a partir da fotografia? – Que narrativas constroem sobre si e seu universo circundante a partir da
produção de fotografias no ambiente universitário? – De que forma a fotografia pode mobilizar a interação
com outros jovens estudantes, professores e a comunidade? –Como o trabalho no formato de oficinas pode
favorecer a inclusão do grupo no ambiente universitário?

Durante o projeto de pesquisa-intervenção desenvolvido na universidade procuramos observar


como o grupo de alunos com deficiência intelectual se apropria da fotografia como linguagem e explora
novas formas de expressão e de produção de imagens que falam de si, da relação com o outro e das intera-
ções estabelecidas no ambiente universitário. O trabalho foi desenvolvido explorando diferentes espaços
da universidade, tais como: sala de aula do Departamento de Artes, sala de aula entre as árvores, estúdio
fotográfico do Departamento de Comunicação, sala de aula externa, espaços de convivência da universi-
dade. Envolveu a participação de um grupo de 8 alunos, sendo 2 rapazes e 6 moças, todos com deficiência
intelectual e maiores de 18 anos. Os encontros ocorreram na universidade, uma vez por semana, totalizando
12 encontros de 2 horas/aula cada um, com foco na investigação sobre como os jovens se apropriam da fo-
tografia como forma de comunicação, expressão e de interação social.

As estratégias metodológicas construídas na oficina resultaram, não apenas na potencialização da


produção de imagens pelos jovens, mas também fomentaram processos subjetivos e socializadores media-
dos pela fotografia. A “Oficina de Fotos&Grafias” fez parte do primeiro módulo do curso de extensão “Arte,
Educação e Inclusão com Orientação Universitária”, oferecido para jovens com necessidades específicas
pela universidade, através do Departamento de Artes e Design da PUC-Rio. Esse módulo de trabalho piloto
incorporou a atuação de duas professoras da universidade desse departamento e mais três professoras con-
vidadas, sendo duas com Licenciatura em Artes Visuais e uma em Dança, especializadas no trabalho com
Arte/Educação para alunos com diferentes tipos de deficiência. No primeiro módulo do curso de extensão
foram oferecidas cinco modalidades de oficinas: Oficina de Desenho Vivo, Animação, Dança, Papel Reci-
clado e Fotos&Grafias.

O trabalho na “Oficina de Fotos&Grafias” propiciou elementos para que o grupo de jovens com
deficiência intelectual pudesse interagir com imagens, experimentá-las como uma possibilidade de contar e
compartilhar histórias e, por outro lado, caracterizou-se como uma estratégia de trabalho inclusivo, mobili-
zando diferentes formas de interação e socialização, entre alunos, professores e profissionais que trabalham
na instituição, como também, possibilitou a ocupação de diversos espaços da universidade. Foram reali-
zadas variadas propostas de produção de imagens fotográficas com câmeras digitais e os alunos vivencia-
ram experiências criadoras que os colocaram em papéis diversos, não apenas como sujeitos captados pela
câmera, mas também, como produtores e fruidores de imagens. Partimos do pressuposto que é essencial
resgatar o potencial inclusivo das ações compartilhadas, das interações dialógicas na prática pedagógica e
suas diferentes formas de mediação através da experiência artística. No contexto da pesquisa-intervenção,
isso envolve o fazer, o pensar e o conhecer a linguagem da fotografia como forma de expressão, criação, de
interação e inclusão social.

733
No final dessa etapa de trabalho, uma exposição foi organizada como culminância da experiência
vivida pelo grupo de alunos e professores/pesquisadores, com o objetivo de resgatar, registrar e divulgar o
processo construído ao longo da oficina. Foi também produzido um vídeo com imagens e depoimentos do
grupo sobre a experiência vivida e compartilhada, na “Oficina de Fotos&Grafias”.

A pesquisa-intervenção ofereceu oportunidade de compartilharmos experiências e construirmos


estratégias de trabalho no ambiente universitário que favoreceram a livre expressão dos jovens, oferecendo
novas oportunidades, meios e mediações para a expressão artística, construção de conhecimentos e intera-
ções sociais.

O trabalho desenvolvido ofereceu subsídios para a reflexão sobre os fundamentos teóricos e me-
todológicos que orientam a educação inclusiva e a investigação sobre o potencial inclusivo das linguagens
artísticas no ambiente universitário.

A partir do trabalho desenvolvido, o curso de extensão denominado “Arte, Educação e Inclusão


com Orientação Universitária” foi incorporado ao calendário de cursos de extensão oferecidos regularmen-
te pela universidade. Durante o ano de 2017, foram oferecidos dois novos módulos do curso, iniciados em
março e agosto. Nesse ano de 2018, o curso continua sendo oferecido com outras diferentes modalidades de
Oficinas de Arte, coordenadas por professores da própria universidade.

Dessa forma, destacamos a importância do projeto de pesquisa-intervenção para a consolidação


desse trabalho inclusivo na universidade, abrindo novas oportunidades de formação com orientação uni-
versitária para jovens com deficiência intelectual, que antes não eram público-alvo dos cursos oferecidos
pela instituição.

Concluímos que o projeto de pesquisa-intervenção desenvolvido pela “Oficina de Fotos&Grafias”,


como também, o trabalho das outras oficinas que fazem parte do programa do “Curso de Extensão Arte,
Educação e Inclusão com Orientação Universitária” alcançaram o objetivo central do projeto que é a promo-
ção de processos de aprendizado inclusivos no ambiente universitário, através da Arte/Educação. As experi-
ências compartilhadas pelo grupo de professores e alunos promoveram oportunidades ricas e diversas para
a reflexão e ação visando à identificação e superação de obstáculos que impedem ou dificultam a inclusão de
jovens com deficiência intelectual como alunos no ambiente universitário.

Nessa perspectiva, a Fotografia é compreendida como uma linguagem, uma forma de expressão e
comunicação que abre um campo de produção de sentidos e significados, no diálogo entre todos os envolvi-
dos no processo fotográfico. Essa “grafia em imagens” abre novas possibilidades e caminhos para a expressão
e participação de todos os alunos.

Na oficina, a produção de imagens através da fotografia também ocupa a função de registro e de


objeto de análise, propiciando ao grupo a experiência coletiva de rememorar e compartilhar a vivência du-
rante os encontros.

Com a continuidade do trabalho nessa perspectiva, podemos afirmar que novos alunos, educadores e
outras modalidades de oficinas poderão contribuir para a ampliação das possibilidades de transformação da
universidade em um espaço mais acessível e de construção de processos inclusivos de ensino e aprendizado.

734
REFERÊNCIAS

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vistas: álbum de fotografias com jovens cegos e com baixa da Defectologia. Madrid: Visor.

735
A MÚSICA COMO EXPRESSÃO
ARTÍSTICA SIGNIFICATIVA NA VIDA DO IDOSO
Miclene Batista Souza -UNEB
Ana Claudia O. Freitas - UNEB

INTRODUÇÃO

Este estudo foi elaborado no âmbito da disciplina de Pesquisa e Estágio I: Espaços não formais, ten-
do em vista desfechos resultantes das mediações realizadas em um projeto específico para a terceira idade,
que será melhor apresentado posteriormente. O Estágio ocorreu durante dois meses - agosto e setembro
de 2016, período em que foi possível observar o grupo e, posteriormente, desenvolver planos de ação que
culminaram nos resultados que serão exibidos no decorrer do texto.

O interesse pelo tema música surge desde muito cedo, devido à minha inserção no campo mu-
sical, oportunizada pelo caminho religioso, lá por fazer parte do coral e da orquestra, fazia-se necessário
saber a teoria musical, conhecimento este disponibilizado no espaço. Hoje toco dois instrumentos musicais:
clarinete e sax, além de trabalhar musicalização infantil com crianças de 4 a 12 anos na igreja e em aulas
particulares, sempre buscando o olhar ampliado sobre a música dentro da escola e na formação integral do
indivíduo. Diante do percebido com as crianças, decidimos investir na mesma ideia de trabalho, levando a
música a espaços não formais, especificamente no projeto para idosos.

A escolha desse espaço se deu a partir da experiência adquirida em outro componente curricular
que tratou do tema Terceira idade, que nos possibilitou conhecer um pouco da realidade do grupo de idosos.
Outras disciplinas estudadas no curso de Pedagogia também contribuíram para este estudo, principalmente
Arte Educação.

Durante as observações, feitas na ocasião, foi possível identificar a existência da música em todas
as atividades, no entanto, somente como “pano de fundo”, sem se perceber ali o potencial existente, confor-
me as reflexões construídas na disciplina Arte Educação, no sentido da música ser vivenciada de maneira
consciente.

O estudo teve como objetivo compreender como a música estava sendo utilizada no projeto, bem
como, propor uma vivência significativa em relação a essa linguagem. Para a geração de dados, foram utili-
zados vários mecanismos que possibilitaram o entendimento no que se refere às propostas como: entrevistas
semiestruturadas, rodas de conversa, registros no diário de campo, observação participativa e a mediação.

O aporte teórico que orientou a construção destas reflexões foi baseado em levantamentos bibliográ-
ficos nos textos de Penna (2010), Gonh (2006), Estatuto do Idoso (2016), Mateiro e Ilari (2011), Brito (2003)
que propiciou diálogos pertinentes no que diz respeito à utilização da música dentro do projeto em questão.

736
Os nomes dos participantes aqui mencionados são fictícios, adotados como procedimento ético
com o intuito de preservar a identidade dos indivíduos. Em relação ao projeto, trataremos apenas como
projeto para idosos, objetivando também preservar o nome do espaço.

O artigo está organizado em três seções. Na primeira, relata-se uma breve contextualização do es-
paço e o grupo onde a ação foi desenvolvida; na segunda, apresentam-se os dados gerados e resultados
adquiridos e na terceira, encontram-se as considerações finais.

1. NOTAÇÕES SOBRE O PROJETO

O projeto em questão está vinculado ao programa de Serviço de Convivência e Fortalecimento de


Vinculo no CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) do Governo Federal e conta com a parceria
da Prefeitura Municipal de Pindaí-Ba, cidade localizada   na região da Serra Geral, sudoeste do estado da
Bahia, distante 726 km de Salvador capital do Estado.

Tal projeto iniciado em 2014 e atendia na ocasião deste trabalho em torno de 197 (cento e noventa
e sete) idosos divididos em 8 (oito) subgrupos, sendo sede, distritos e povoados. O grupo da sede, lócus da
ação de trabalho, era composto por cerca de 40 pessoas, dos quais 36 (trinta e seis) mulheres e 4 (quatro)
homens que se reuniam no Centro Comunitário de Múltiplo Uso, espaço este utilizado por eles dois dias por
semana, especificamente nas terças e quintas-feiras no horário das 16h às 18h.

A equipe estava composta por 1(uma) secretária, 1(uma) coordenadora pedagógica, 1(uma) psicó-
loga e 1 (uma) educadora geriatra, que realizava as atividades com os idosos. A gestão do grupo compre-
endida como um processo político através do qual as pessoas que atuam identificam problemas, discutem,
deliberam e planejam controlando e avaliando o conjunto de ações voltadas ao desenvolvimento do espaço,
procurando a solução adequada para aqueles problemas. A identificação desse processo se deu diante das
falas da educadora.

Existe uma programação que é construída, a princípio, pela educadora, após a consulta dos
idosos, pensando exclusivamente no bem-estar do grupo. Desde as músicas, atividades lúdi-
cas e as atividades físicas. Posteriormente o documento é apresentado para a coordenação
que opina ou simplesmente aprova (ADRIANA, diário de campo, 16/08/2016).

Foi perceptível a preocupação da equipe gestora em acolher estes indivíduos da melhor forma pos-
sível, buscando sempre entender os seus desejos, já que o principal objetivo da instituição é promover ativi-
dades direcionadas para a prevenção, promoção, integração e participação efetiva da pessoa idosa, visando
a melhoria da qualidade de vida. Segundo a educadora Adriana, o projeto foi pensado por etapas e a cada
dois meses se fez necessário a realização de um planejamento, seguido do levantamento de opiniões dos
integrantes, possibilitando visualizar pontos positivos e negativos.

Quando comecei meus trabalhos aqui, fiz uma caixinha de sugestões para que todos opinas-
sem no que seria mais viável para o grupo. Os resultados foram ótimos e aí me senti mais
segura para dar continuidade nos trabalhos. (ADRIANA, dados da entrevista, 16/08/2016)

As sugestões dadas pela educadora, assim como as músicas reproduzidas, não eram suficientes para
deixar os integrantes com muita vontade de se movimentar, mesmo sendo músicas dançantes sempre havia
um pedido referente ao estilo musical forró. Dessa forma foi utilizada a estratégia da caixinha de sugestões.

737
No período de observação, o uso da música estava presente somente como fundo musical para a
prática dos exercícios físicos e de algumas brincadeiras, não havendo ali uma preocupação em trabalhar a
música conscientemente. As músicas que faziam parte do repertório haviam sido escolhidas pelos partici-
pantes, no entanto não estavam relacionadas às histórias de vida ali presentes que nem sequer sabiam as
letras (praticamente todas as músicas possuíam a letra em inglês). Subtende-se que o que importava mesmo
era o ritmo dançante.

Não tratamos de questões musicais com os idosos... Aliás, nunca pensei assim, porque não
tenho este conhecimento. Utilizamos a música como meio de tornar as atividades aqui rea-
lizadas mais produtivas... Mais animados. (ADRIANA, dados da entrevista, 16/08/1016).

A educadora Adriana deixa claro o distanciamento no trato da música como linguagem, o que pode
ser justificado pela ausência da música em sua formação como área de conhecimento, pois para que esta lin-
guagem tivesse significado na vida de Adriana e nas suas ações com os idosos, era necessário que lhes fosse
apresentada desde muito pequena, para que a mesma pudesse compreender a música de forma consciente
dentro de sua cultura.

2. OS SABERES VISTOS EM OUTRO TOM

A música está composta por dois elementos básicos que são sons por um lado e pelo outro os silên-
cios. O som é aquilo que soa através da pressão gerada pelo movimento vibratório dos corpos sonoros. O
silencio é a ausência perceptível de som, no entanto não existe, segundo alguns autores, o silêncio absoluto,
porque “tudo vibra, em permanente movimento, mas nem toda vibração transforma-se em som para os
nossos ouvidos” (BRITO, 2003, p. 17). Portanto compreendemos que a música faz parte de todas as culturas
e povos e cada um deles expressa de forma musical seus costumes, alegrias e ansiedade.

Tendo em vista essas especificidades, é importante entendermos que a música é como qualquer
manifestação artística, ela influencia na vida e na formação da identidade de qualquer pessoa e é com este
pensamento e afirmação que se faz necessário pensar em uma educação musical em todo espaço de conhe-
cimento, seja ele formal ou não formal.

Pensando assim, adotamos neste texto abordagens sobre a educação existente em espaços não for-
mais que para Gonh (2006, p. 28), “é aquela que se aprende no mundo da vida, via os processos de compar-
tilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivas cotidianas”. A educação não formal
é o tipo de educação que agrega ao ser um conhecimento diferenciado, desenvolvendo no indivíduo vínculo
que permite olhar a vida por outro ângulo.

Segundo Gonh (2006), a metodologia desses espaços não formais é diferenciada, quer dizer, que não
acontece previamente e são construídas de acordo às necessidades do grupo, não existindo um momento
certo para que aconteça o aprendizado, ele acontece de acordo o elo existente entre os indivíduos, permitin-
do o resgate do sentimento de valorização de si próprio.

Nessa perspectiva, no trato com o idoso, o Estatuto do Idoso elenca algumas disposições que permi-
tem associarmos as necessidades desse público e os direitos que possuem.

Art. 20 o idoso tem direito a educação, cultura, esporte, lazer, diversão, espetáculos e pro-
dutos que respeitem sua peculiar condição de idade.

738
Art. 21 § 1º Os idosos participarão das comemorações de caráter cívico ou cultural para
transmissão de conhecimentos e vivências às demais gerações, no sentido da preservação
da memória e da identidade culturais. (BRASIL, 2016, p.11).

Dessa forma, a metodologia utilizada nos espaços que contemplam o idoso deve ser necessariamen-
te pensada para a valorização do ser, pois nesta fase se dá o novo reconhecimento do eu que está presente em
cada um. À medida que houver estímulo das percepções, dos processos motores e da experiência intelectual,
entendemos que a vida passa a ter outro significado, adquirido através do resgate da memória. Sabemos que
sem a memória não existe aprendizado nem o desenvolvimento, logo não existirá a compreensão de nossa
identidade.

Nessa lógica, há várias possibilidades que permitem o resgate de valorização dentro dos espaços não
formais, dentre elas a música. Maura Penna (2010, p. 24), “explica que a música é uma linguagem artística,
culturalmente construída”, a partir desta concepção de Penna, podemos entender que a linguagem musical
é ampla, sendo possível despertar a criatividade, a sensibilidade e o respeito para com o outro. Assim, o
aprendizado musical é um fim em si, mais do que um meio para um determinado fim.

Para que fosse possível a compreensão da linguagem musical, desenvolvemos com o grupo da ter-
ceira idade o projeto com o título “A música como expressão artística significativa na vida do idoso”, que
contempla várias ações voltadas para a percepção musical, como: o estimulo da atenção, memória, coorde-
nação motora e o estímulo para a atenção auditiva

As ações propostas no projeto supracitado foram desenvolvidas em cinco encontros através de ati-
vidades de reflexão como a realizada com a música “O princípio do prazer” de Geraldo Azevedo, jogo da
memória, bingo sonoro, brincadeira do passando a bola com a música Asa Branca. Com o intuito de apro-
ximar os laços afetivos entre os idosos, foi necessário também o desenvolvimento de outras atividades que
não serão detalhadas no texto, mas que foram de extrema importância para o trabalho relacionado a música.

Mantendo algumas atividades propostas pela educadora Adriana com a finalidade de preservar es-
sas práticas, foi resinificada a mediação dos alongamentos e exercício desenvolvidos em todos os encontros
na perspectiva musical justificada pelo pensamento de Dalcroze (1992 apud MONTEIRO; ILARI, 2011, p.
41), afirmando que “[...] o movimento corporal é utilizado como meio de sensibilização e experimentação
não somente do ritmo, mas de todos os elementos da linguagem musical [...]”.

Neste aspecto, o autor nos faz acreditar que podemos e devemos utilizar o corpo para desenvolver a
compreensão da música, é inclusive um dos recursos mais potentes, pois instiga o indivíduo a prestar aten-
ção no seu corpo e na rítmica, proporcionando assim o aprendizado conjunto e contínuo. Desta maneira
os alongamentos foram conduzidos com o som no comando, os indivíduos deveriam realizar movimentos
longos, curtos, sinuosos ou estanques, conforme os sons musicais que ouviam.

O resultado foi bastante produtivo e divertido, pois na medida do entendimento de cada parti-
cipante, houve compreensão do objetivo da proposta em integrá-los aos exercícios sugeridos focando na
perspectiva musical.

Na continuidade das atividades acima citadas ocorreu a apresentação da música “O princípio do


prazer” de Geraldo Azevedo que culminou em uma reflexão norteadora dos trabalhos a serem executados
com os idosos. A princípio, a música foi reproduzida e logo após abriu-se o espaço no qual cada participante
pudesse falar um pouco de sua vida se remetendo a letra da música. Alguns relatos foram pertinentes.

Essa letra faz a gente lembrar de como é importante a nossa vida... já chegamos numa idade
que mostra a canseira do corpo, mas ficamos felizes de ainda está vivendo e fazendo parte

739
desse projeto e ainda ouvindo sobre música... nunca ninguém falou sobre isso comigo. (Sr.ª
MARIETA, 59 anos, diário de campo, 20/09/16).
Essa música faz a gente sonhar (risos), porque a gente é feliz, mas... tem hora que precisa
de outra pessoa mostrar isso pra nós. (Sr.ª IZABEL, 66 anos, diário de campo, 20/09/16).

A partir das falas apresentadas, podemos compreender o quão importante é falar de música e ao
mesmo tempo possibilitar aos indivíduos pensar em seu interior através da reflexão. Podemos nos emo-
cionar, porque independente do gênero, a música mexe com nossos sentimentos e consequentemente as
impressões afetivas. Portanto a ação trouxe êxito aos participantes, mantendo-os focados no propósito das
mediações de cada encontro.

No decorrer das atividades sugerimos uma brincadeira do passando, a bola, com a música Asa
branca. A cada pausa dada na música, o idoso que estivesse com a bola cantaria um trecho da música. Essa
atividade teve um alcance pequeno, porém favorável ao objetivo proposto, que era justamente focar atenção
nos movimentos motores, a atenção auditiva e na música trabalhada. A timidez, a dificuldade em relembrar
a letra da música e até mesmo o ritmo foram alguns obstáculos encontrados no desempenho desta ação,
permitindo assim pensarmos em alternativas que pudessem favorecer o resgate da memória.

Ao falarmos em resgate de memória, automaticamente nos remetemos à cultura na qual o indiví-


duo fez ou faz parte. Para Schafer (1992 apud MATEIRO e ILARI, 2011), a cultura é construída a partir da
linguagem musical e se dá através da escuta, a experimentação. Brincar com os sons, montar e desmontar
sonoridades, descobrir, criar organizar, são fundamentos do prazer que apontam para uma nova maneira de
compreender a vida através de critérios sonoros.

Nessa perspectiva foi utilizado como estratégia metodológica para entender essa dinâmica, o jogo
da memória sonoro, que tem como objetivo principal estimular o indivíduo a ouvir os sons com mais pre-
cisão e atenção, se caracterizando no brincar e criar sons resultando no descobrimento dos pares no jogo.
Esse recurso proporcionou divertimento, mas no início houve resistência pela falta de compreensão do seu
significado, podemos perceber este fator na fala de D. Maria, Acho que não vou jogar, porque de jogo não
entendendo nada.

Quando e explicamos que o propósito do jogo não era simplesmente jogar, mas de perceber o som,
a idosa abriu um sorriso e disse Agora sim, vou brincar. Foi importante perceber a atenção com o som,
uma forma de limpeza dos ouvidos como propõe Schafer, os idosos tinham que encontrar o par sonoro ao
sacudir uma caixinha, e depois outra, o faziam várias vezes para ter certeza de ser o mesmo som, inclusive
reproduzindo o mesmo movimento, força e ritmo para se assegurar da resposta correta. Parte dessa lacuna
auditiva é proporcionada pela falta de conhecimento do som e da música como linguagem, dentro do proje-
to e até culturalmente, pois não fez parte da sua vida o que acaba se tornando algo estranho.

O bingo sonoro foi também um outro recurso utilizado com a finalidade bem próxima ao jogo
da memória, consistia na audição de sons diversos reproduzidos em um aparelho de som, e que eram
representados através de desenhos em uma cartela. O intento era que os participantes pudessem ouvir e
marcar somente o que tinha na sua cartela. No entanto houve um ponto negativo na realização desta ati-
vidade, porque neste dia havia ali presente uma idosa surda e outros idosos com um pouco de dificuldade
de ouvir, gerando um pouco de tumulto, pois os outros integrantes queriam a todo custo responder para
os colegas.

A linguagem musical possibilita a construção de uma cultura, dessa forma devemos também enten-
der que esse fator só é possível quando se trabalha música de maneira consciente.

740
O quadro, a música da minha vida, foi outro recurso utilizado para nos mostrar o quanto a música
marca uma vida. A estratégia pedagógica foi desenvolvida através de uma roda de conversa, com o intuito
de que todos pudessem se ouvir e apreciar as falas de modo a sentir-se contemplados naquele meio. Alguns
desses relatos são apresentados a seguir:

É confeccionado com mini caixinhas e dentro delas são colocados vários tipos de produtos como:
feijão, arroz, sal grosso, areia fina que consequentemente produzirão vários sons distintos.

No tempo de grupo de jovens, cantava muito, fazíamos rodas de cantigas de violão. Não era
tão nova, mas foi uma época inesquecível e a música que mais me toca tem o título de Ma-
dalena. (Sr.ª CELMA, 53 anos, diário de campo, 27/09/16)
Asa Branca é a música que mais me toca, porque é uma música sentida, fala da realidade
do nosso sertão... Não tenho água e não tenho o que comer a gente cai. (Sr.ª SANTINA, 62
anos, diário de campo, 27/09/16))
Tem uma música de Roberto Carlos “a namoradinha” que me marca demais e que me faz
recordar uma época muito boa, o início do meu namoro com meu marido (risos). É muito
bom lembrar desses momentos, é difícil alguém querer falar com a gente sobre este assunto de
música. Gostei muito!! (Sr.ª BEATRIZ, 74 anos, diário de campo, 27/09/16))

As narrativas só reafirmam as várias facetas que a linguagem musical pode proporcionar ao in-
divíduo, o retrospecto de uma realidade vivenciada, a sensibilidade, a emoção. A fala da senhora Beatriz,
deixa mais evidente a distância com que a música é abordada em certos espaços e culturas e é por isso a
necessidade de retoma-la como expressão artística se tornando muito presente nesse momento de partilha,
possibilitando um entrelace de fatos que fizeram parte da vida dos integrantes do grupo.

O brilho nos olhos de Beatriz e dos demais participantes ao falar da música que marcou a sua vida,
a vontade dos companheiros ali presentes em compartilhar momentos de alegria proporcionados por esta
linguagem foi gratificante e importante, pois a música precisa ser entendida como uma necessidade nata ao
ser humano, um incentivo para manter o corpo saudável.

Como fechamento dos trabalhos houve a culminância com um baile temático anos 60, que designou
integrar resultados, aprendizados e vivências das ações realizadas no decorrer do estágio. O quadro a música
da minha vida teve destaque principal, pois através desta proposta chegamos a seleção do repertório musical
tocado no baile. As músicas foram o retrospecto da vida de cada um que estava ali, mostrando que é possível
integrar a linguagem musical a qualquer espaço.

Em se tratando do entendimento do espaço que pode se desenvolver a música, Maura Penna, assim
conceitua:

[...] não é apenas a escola que musicaliza. Musicalizam também as chamadas formas de
educação não formal, ligadas a diferentes práticas culturais populares, como as que dizem
respeito ao processo de aprendizagem das crianças numa escola de samba ou dos partici-
pantes de um grupo de ciranda ou de folia de reis. (2010, p.33).

Portanto, compreende-se que a musicalização pode acontecer em qualquer espaço, desde que o su-
jeito esteja aberto a tais práticas. Sendo assim, é importante entender o nosso ambiente sonoro e levar em
consideração a diversidade existente na cultura de um idoso e a de uma criança, o porquê que o idoso mui-
tas vezes não suporta ouvir alguns estilos musicais. A justificativa está nas diferentes culturas de diferentes
indivíduos e a música contribui no intuito de fazer com que o idoso se perceba e se reconheça como um ser
culturalmente construído.

741
CAIXA DE RESSONÂNCIA

O desenvolvimento deste trabalho no projeto para idosos proporcionou conhecimentos diversos em


relação ao idoso, às diferentes maneiras de se entender música e, principalmente, a relação teoria e prática.

No que diz respeito à aplicabilidade das atividades, houve diversas dificuldades e entraves, que de
certa forma, serviram para construírmos pilares para alcançar os conhecimentos acerca da proposta. Os
jogos sonoros (bingo e jogo da memória) utilizados no decorrer das mediações, foram um dos precursores
importantes neste processo, pois através dos mesmos foi possível visualizar uma certa dificuldade na identi-
ficação dos sons. Afinal a audição é um dos sentidos que, normalmente ficam comprometidos com a idade,
e além da audição em si vem também a falta de atenção ao que se ouve, no caso dos idosos essas lacunas são
ainda mais presentes.

Na lógica do entendimento da música dentro do projeto, chegamos à conclusão através das inda-
gações aos participantes e à equipe que gerencia os trabalhos neste espaço, que não há compreensão da
linguagem musical consciente, mas como uma estratégia pedagógica para o desenrolar das outras atividades
ministradas com os idosos. É entendida como uma válvula de escape ou simplesmente um pano de fundo.

Sabemos da dimensão do tema música e do curto tempo de estágio, mas podemos afirmar que hou-
ve interesse da parte de todos que compõe o projeto de estar mais atentos a essa diferença entre música como
expressão artística e música como estratégia pedagógica.

Foi notável a compreensão da proposta tanto pelos gestores e educadora, que se disponibilizaram
em procurar, a partir daquele momento, desenvolver algo significativo na perspectiva musical, já que a
música se faz presente em todas as atividades. Quanto aos participantes idosos, na medida do possível se
sentiram contemplados com as ações, sendo perceptível principalmente ao se apresentarem em maioria nos
encontros.

Em suma, concluímos que houve um aproveitamento considerável, em especial no estímulo emo-


cional, no despertar para a criatividade, no respeito com o próximo, na socialização e na valorização da
identidade, fatores de grande relevância que estão ligados ao conceito de linguagem musical consciente.

Percebemos que existe um solo fértil para a ampliação do conhecimento musical entre os indivíduos
participantes deste projeto, fica então o desejo de ampliá-lo, buscando o aprofundamento do conhecimento
específico de música.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Estatuto do idoso: Lei nº 10.741, de 1º de outu- GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal,
bro de 2003, e legislação correlata. -5. Ed., ver. E ampl. – participação da sociedade civil e estruturas cole-
Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2016. giadas nas escolas. Ensaio: aval. pol. Públ. Educ.,
Disponívelem:<http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/ Rio de Janeiro, v.14, n.50, p.27-38, jun./ mar.2006.
handle/bdcamara/763/estatuto_idoso_5ed.pdf>. Acesso
em: 07 de setembro 2016. MATEIRO, Teresa; ILARI, Beatriz, (Org.). Pedago-
gias em educação musical. Curitiba: Ibpex, 2011.
BRITO, Teca Alencar. Música na educação infantil. São
Paulo: Peirópolis, 2003.

742
A OBRA COMO RESISTÊNCIA:
UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO DO ARTISTA
DAVID WOJNAROWICZ E SUAS CONEXÕES
COM O ENSINO DAS ARTES VISUAIS
Wellington Soares Gomes
Fábio José Rodrigues da Costa

Introdução

Recentemente assistimos ao cancelamento da exposição “Queermuseu — Cartografias da diferença


na arte brasileira”, promovida pelo Santander Cultural de Porto Alegre. O principal motivo do cancelamento
teria sido em razão da mesma promover a “pedofilia, a zoofilia e o desrespeito às religiões”, conforme publi-
cado pelo jornal O Globo em março de 2018. No entanto, essa não foi a primeira vez que uma exposição foi
atacada por uma onda de conservadorismo que tem tomado nosso país. Em 2006, tivemos a censura a obra
“Desenhando com Terços” de Marcia X que fazia parte da exposição Erótica e exibida no Centro Cultural
do Banco do Brasil – CCBB Rio de Janeiro. Logo após o ocorrido, o Ministro da Cultura, Gilberto Gil, tonar
público nota que reproduzimos abaixo:

Brasília, 25 de abril de 2006.


Toda censura é inaceitável. Os critérios para seleção de obras exibidas numa instalação de-
vem ser de natureza estética, sob a responsabilidade de curadores ou de quem for designado
para a tarefa.
Dessa forma, o Ministério da Cultura estranha a censura feita à obra de Márcia X, na insta-
lação Erõtica, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro.
Acreditamos na capacidade de discernimento crítico dos espectadores e do público em geral.
Assim como acreditamos que toda tutela na relação entre obra de arte e espectador é ina-
ceitável.
Segundo a Constituição Brasileira, é “livre a expressão da atividade intelectual, artística, cien-
tífica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Por isso, não pode haver
mais em nosso país nenhum tipo de interdição a obras de arte e a outras formas de expressão.
Esperamos que a decisão do CCBB seja revista em nome da liberdade garantida por lei.
Gilberto Gil
Ministro de Estado da Cultura402
Artistas, curadores, museus, centros culturais e galerias estão enfrentando situações semelhantes
em diversos outros lugares do Brasil e do mundo e esta onda neoconservadora tem sérias implicações para

402. http://marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=47, consultado em 19 de março de 2018

743
a produção artística contemporânea, mas também para um ensino de artes visuais contemporâneo uma vez
que todo o sistema da arte tem sido alvo de policiamento e criminalização quando o objeto de exibição e
apreciação é interpretado sob o viés de olhares que se educaram ou são educados para negar a diversidade
cultural e humana ao longo da história e da história atual.

Nesse artigonos propomos a analisar a obra do artista estadounidense David Wojnarowicz (1954-
1992) que em 2010 foi vitima também da censura nos Estados Unidos pela Liga Católica que “pressionou
a NationalPortraitGallery a retirar de uma exposição em cartaz sobre sexualidade o vídeo “A Fire in My-
Belly” (trecho)”403. A obra de 1987 tem duração de 30 minutos e ao longo de 11 segundos apresenta formigas
caminhando sobre uma imagem de Jesus Cristo na cruz(Imagem 1).

Imagem 1: “A Fire in My Belly” (trecho) de David Wojnarowicz, 1987. http://noholodeck.blogspot.com.br/2011/06/video-de-


-david-wojnarowicz-e -retirado.html– consultado em 19 de maio de 2018.

O trecho do vídeo situado em seu contexto de produção nos coloca diante das questões referentes ao
HIV/AIDS que nos anos de 1980 passou a ser um problema enfrentado mundialmente e que ainda nos afeta,
pese os avanços obtidos nas últimas décadas. Wojnarowcz não foi o único artista a tratar do tema em sua
obra e como ele muitos procuraram abordar o sofrimento das pessoas vitimadas pela doença, assim como,
pela perda de seus parceiros. O vídeo, portanto, é uma homenagem a seu parceiro que faleceu de AIDS e,
também, as demais vítimas da epidemia no mundo.

O referido artigo é um recorte da pesquisa, em andamento, “Ensino das Artes Visuais e Escola sem
Homofobia” vinculada a linha de pesquisa Didática do Ensino das Artes Visuais do Grupo de Pesquisa En-
sino da Arte em Contextos Contemporâneos – GPEACC/CNPq. A pesquisa em sua fase de catalogação e
análise da produção de artistas gays/artivistas que tenham produções que remetam as práticas e vivências
dos mesmos enquanto membros da comunidade LGBTT. Aqui apresentamos a obra do artista David Wo-
jnarowczassumidamente gay e que colaborou ativamente pelos diretos LGBTT e lutou até sua morte para
erradicar a AIDS.

A pesquisa nos aproximou até o momento dealguns artistas e sua produção como: Felix Gonza-
lez-Torres (1957-1996), Hudimilson Junior (1957-2013), José Manuel Hortelano (1979), Keith Haring
(1958-1990), Sergio Augusto (1993), Fernando Carpaneda (1967), Gilbert (1943) & George (1942), Juan
Davila (1946), Pierre (1950) et Gilles (1953), Robert Mapplethorpe (1946-1989), Jürgen Klauke (1943)
e Sergio Zevallos (1962) e muitos outros que ainda estão sendo pesquisados. Trazemos os nomes desses

403.http://www.nonada.com.br/2010/12/obra-de-david-wojnarowicz-gera-polemica-em-washington/

744
artistas para demonstrar que temos muitos artistas gays que estão produzindo arte e como esses nomes
citados estamos indo contra muitos pensamentos normativos que negam qualquer trabalho que não seja
de homens heterossexuais, esses artistas estão questionando os padrões que a sociedade heteronormativa
vem impondo ao longo de décadas e como estamos resistindo as práticas opressoras em diferentes con-
textos culturais.

HIV/AIDS e artivismo

O número de pesquisas sobre a sexualidade cresceu na década de 1980, por causa da epidemia de
AIDS. A princípio, tal doença foi atribuída equivocadamente, ligada aos homossexuais, o que provocou uma
reação imediata, renovando e intensificando a homofobia e a discriminação. “(...) além de viverem com a
incerteza permanente em relação à cura da doença, convivem com as reações de medo, de ódio e distancia-
mento de amigos e familiares quando se descobrem portadores do vírus.” (FILHO, 2007, p. 32).

Por conta da vinculação DST/HIV/AIDS grande parte das pesquisas relacionadas aos homosse-
xuais se concentraram na área da saúde. No entanto, a discussão se estendeu ampliando-se para outros
campos de conhecimento como a Sociologia, a Antropologia, a Arte etc. Artistas como Gilbert e George,
Felix Gonzalez-Torres, José Leonilson (Ceará/Brasil), David Wojnarowcz entre tantos outros, enxergaram
a possibilidade de incorporar a AIDS como tema de seus trabalhos questionando as perdas (de parentes e
amigos) causadas pela doença e alguns por terem sido contaminados pelo vírus.

As ações lideradas por ativistas, militantes e apoiadores fez com que o movimento tomasse gran-
des proporções e se consolidasse em diversos países. Essas lutas estão associadas a direitos iguais, união
civil. Dessa forma, “a ação política empreendida por militantes e apoiadores torna-se mais visível e assu-
me um caráter libertador. Suas críticas voltam-se contra a heterossexualização da sociedade”. (LOURO,
2001, p. 543).

A partir da década de 80, expandiram-se as discussões sobre essa questão no Brasil. Ganhou mais
visibilidade, principalmente, através dos grupos de pesquisa e universidades que acabam tendo a temática
como objeto de estudo, sobretudo, fundamentado nos estudos de teóricos como Michel Foucault, importan-
te ativista do movimento LGBT internacional.

Em conexão com o movimento político, cresce, internacionalmente, o número de trabalhador@s


que se assumem como lésbicas, gays, bissexuais e transexuais na mídia, na imprensa, nas artes e nas univer-
sidades. Entre esses, alguns passam a “fazer da homossexualidade um tópico de suas pesquisas e teoriza-
ções”. (LOURO, 2001, p. 544)

Segundo Filho (2007) “Através das paradas – dia da liberdade (freedomday) -, gays, lésbicas, transexuais,
travestis, bissexuais ganham visibilidade nunca antes alcançada, aproveitando para celebrar a diversidade e
o amor sem preconceito.” (p. 84).

A luta do movimento LGBT é, acima de tudo, comprometida com ações que vislumbrem mudanças
profundas na sociedade em todos os aspectos no tocante ao desenvolvimento de “um processo cultural e
sexual aberto, livre de repressões.” (OKITA, 2007, p. 103).

Ao longo da história da arte muitos trabalhos foram elaborados por artistas que se dispuseram a
retratar, entre tantos motivos, a vida íntima, a sexualidade (homossexualidade) e gêneros através dos meios
expressivos mais tradicionais até os recursos atuais mais avançados tecnologicamente. No entanto, nem
todas essas imagens têm ou tiveram uma ampla veiculação.

745
Os artistas escolhidos para reforçar o discurso predominante sobre arte, nesses livros, geral-
mente são aqueles já iluminados pela glória e fama, os chamados “gênios”. Nas listas preferidas,
constam quase invariavelmente Leonardo da Vinci, Michelangelo, Van Gogh, Monet, Picasso.
Em geral, reforça-se a figura do artista homem, branco e europeu. (LOPONTE, 2005, 249.)

Há, de fato, imagens que registram a existência e práticas homoeróticas, em diversos períodos da
história da arte. Porém, ainda são pouco divulgadas e, em alguns casos, censuradas como o trabalho da
artista brasileira Marcia X, dos artistasestadounidenses Mapplethorpe e David Wojnarowicz, por exemplo.

Ao longo da história da arte que aprendemos nas escolas (quando aprendemos) nos fazem acreditar
que só existiram ou existem artistas brancos, ricos, gênios e heterossexuais. Segundo Loponte“A arte univer-
sal ou a históriada arte legitima em grande parte, já desconfiávamos, um olhar masculino, branco, europeu
e heteronormativo”. (LOPONTE, 2005, 246.)

David Wojnarowicz: uma vida de militância nas artes visuais.

Imagem 2: autorretrato de David Wojnarowicz.


1http://arteseanp.blogspot.com.br/2015/07/david-wojnarowicz.html

O artista David Wojnarowicz (Imagem 2) nasceu em 14 de setembro de 1954 e veio a falecer no


ano de 1992.Foi pintor, fotógrafo, escritor, diretor de cinema e artista performático.Uma das características
fundamentais do seu trabalho é a natureza autobiográfica, abordando sua sexualidade, vida e experiências
com pessoas desconhecidas.

Como escritor escreveu muito sobre sua vida, abordando todas as experiências vividas no decorrer
de sua trajetória marcada pela desistência da escola até sua condição de portador do HIV. Se destacou nas
artes visuais com trabalhos nas linguagens da pintura, fotografia, performance, embora tenha também en-
veredado pelo cinema.

Se tornou ativista na cidade de Nova York na década de 1980, quando foi diagnosticado coma Sín-
drome da Deficiência Imunológica Adquirida - AIDS a partir daí seu trabalho assumiu um caráter político,
onde nesse período se envolveu no combate as políticas públicas que negligenciavam atendimento as pesso-
as vítimas da doença denunciando deste procedimentos médicos, criticando a falsa moralidade, a censura-
aos artistas e sua produção.

746
A obra do David como autobiografia, carrega elementos muito fortes como a perda de pessoas que-
ridas, seus trabalhos incorporam força e a tristeza resultante de todos os danos e perdas que passou em sua
vida.Lembrando que o David Wojnarowicz representou de modo significativo a sua sexualidade nas suas
obras caracterizando-se como um artivista404.

Na obra “Sem título (Peter Hujar)”, imagem 3, o artista faz um registro fotográfico do leito de morte
de seu amado companheiro e mentor, na citação o artista fala “sua morte é agora como se estivesse impressa
em celuloide nas costas de meus olhos.” Peter Hujar faleceu vítima da AIDS em 1987.  O David fez muitas
representações da morte de Hujar em várias linguagens com maior foco na fotografia.

Imagem 3: Sem título (Peter Hujar), 1989 impressão em gelatina.


Fonte:https://www.visualaids.org/artists/detail/david-wojnarowicz#

Naimagem 4, uma de uma série fotográfica em preto e branco na qual David fotografoudiferentes
paisagens da cidade, como se fosse um ato performático no qual um homem usa uma máscara com a ima-
gem do poeta francês Arthur Rimbaud. Essa série questiona as situações urbanas, lugares e marginalização
da comunidade LGBTT, foi inspirada no movimento de mobilização e organização da comunidade LGBTT
após Stonewall e a pré-AIDS, o amor, a arte e a boêmia.

Imagem 4: Série Arthur Rimbaud in New York, 1978-1979.


Fonte:https://www.visualaids.org/artists/detail/david-wojnarowicz#

404. O Artivismo é um termo que é atribuído a ações sociais, políticas que são desenvolvidas por pessoas ou grupos, que desenvolvem atividades
artísticas, estéticas ou simbólicas para gerar questionamentos acerca de determinado assunto para sensibilizar e ou problematizar. Fonte:https://
outraspalavras.net/blog/2014/01/20/artivismo-criacoes-esteticas-para-acoes-politicas/

747
Em 1990 produziu em colaboração com Phil Zwickler e Rosa von Praunheim o filme “Silence =
Death”(Imagens 5 e 6). O filme é uma resposta de alguns artistas da cidade de Nova Iorque à epidemia de-
AIDS. O entrevistado inclui o artista David Wojnarowicz, o poeta Allen Ginsberg, o grafiteiro Keith Haring
(que morreu de AIDS três meses antes do lançamento do filme), Peter Kunz, Bern Boyle e muitos outros.
É a primeira parte da trilogia de von Praunheim e Phil Zwickler sobre AIDS e ativismo que foi seguida por
Positive (a terceira parte, sobre a epidemia de AIDS na Alemanha, nunca foi divulgada).

Imagem 5: “Silence = Death”, 1990.


http://www.fadingad.com/fadingadblog/2008/05/26/remembrance-of-our-dead-the-war-with-aids-isnt-over/

Imagem 6: “Silence = Death”, 1990.


http://www.fadingad.com/fadingadblog/2008/05/26/remembrance-of-our-dead-the-war-with-aids-isnt-over/

O artivismo de David Wojnarowicz acompanha sua prática artística como podemos observar em
Peter Hujar Dreaming(Imagem 7) na qual faz novamente uma homenagem a seu falecido companheiro.

748
Imagem 7: Peter Hujar Dreaming/Yukio Mishma: St Sebastain, 1988
Fonte:https://www.visualaids.org/artists/detail/david-

A trajetória de vida e prática artística de David Wojnarowicz é uma referência no combate à discrimi-
nação, ao preconceito, à falta de assistência as vitimas da AIDS. O mesmo se tornou um importante ativista dos
direitos LGBTT nos Estados Unidos e, também para outros contextos sociais que enfrentaram e ainda enfren-
tam situações de silenciamento e morte como é o caso de nosso país, que ocupa a primeira posição mundial em
crimes contra a comunidade LGBTT. Abaixo (Imagens 8, 9, 10 e 11) elencamos outros trabalhos do artista como
contribuição para aleitura/apreciação/contextualização/interpretação desse importante artista gay. As imagens
estão disponíveis no site Visual AIDS importante plataforma política de divulgação de artistas com AIDS.

Imagem 8: Imagem 10:


Untitled (map), Portrait/Self
1990 Portrait of
David Wojnaro-
wicz, 1983-85
mixed media,
60” x 40”

Imagem 9:
Untitled, 1993
gelatin silver print,
28.5x28.5

Imagem 11: Street


Kid, 1986
acrylic and collage 

749
Considerações finais

A pesquisa tem apontado para a existência de artistas ativistas em diferentes contextos culturais de
nossas sociedades contemporâneas, ao mesmo tempo em que tem revelado que a prática artística surgida
nos anos de 1960 nos Estados Unidos não só contribuiu para o surgimento das Artes Visuais, mas também
para revelar que o conceito de artista não poderia permanecer centrado na ideia de heterossexual, branco,
estadounidense e/ou europeu, dotado de genialidade descontextualizada de sua condição de gênero. Hoje,
em pleno século XXI os desafios estão postos diante de nossos olhos mostrando que uma sociedade livre da
homofobia, da transfobia, da lesbiofobia ou outras formas de fobia aos diferentes passa por somarmos esfor-
ços no sentido de repensar os objetos de conhecimento dos componentes curriculares da escola de educação
básica de nosso país. O gênero está em nós e como nos posicionamos, portanto, compreender as diferenças
de gênero é ultrapassar os binarismos e as práticas opressoras.

No tocante ao componente Arte e, especificamente, o ensino das Artes Visuais exige que @ profes-
sor@ ao selecionar artistas e imagens de seus trabalhos reconsidere o modelo tradicional de seleção que tem
acompanhado a história da arte universalmente aceita. Devemos colocar em evidencia outras abordagens
que não só colocam em xeque a colonização pelo conhecimento, mas demonstram a existência de artistas
mulheres, artistas mulheres lésbicas, artistas negras e negros, artistas gays.

Não se trata de apontar quem é gay, lésbica, bissexual, travesti, transexual, mas de dar visibilidade
a qualidade estético/artística do trabalho desses artistas em diferentes contextos socais/culturais e o por-
quêd@smesm@s problematizarem sua condição humana nesses mesmos contextos. Entendemos, portanto,
que ações educativas que resistem ao neoconservadorismo, o fazem também repensando os conteúdos de
ensino/aprendizagem procurando evitar reproduzir os mesmos padrões e comportamentos que geraram
e ainda geram discriminação, preconceito, violência e extermínio da comunidade LGBTT em nosso país.

Referências Bibliográficas

FILHO, Adair Marques. Arte e cotidiano: experiência Sites:


homossexual, teoria queer e educação. Dissertação (mes-
https://www.instagram.com/explore/tags/davidwojnarowicz/
trado) UFG. Goiânia, 2007.
https://www.visualaids.org/artists/detail/david-wojnarowicz
LOURO, Guacira Lopes. Teoria Queer: uma política pós-
-identitáriapara a educação. Revista Estudos Feministas, https://www.visualaids.org/gallery/detail/869  
Florianópolis, UFSC, v.9, nº.2, p. 541-553, 2001. http://www.queerculturalcenter.org/Pages/DavidW/DW_
OKITA, Hiro. Homossexualidade da opressão à liberta- Hujar.htmlhttps://imageobjecttext.com/tag/felix-gonzalez-
ção. São Paulo: Editora Sundermann, 2007. -torres/https://www.interviewmagazine.com/art/david-
-wojnarowiczhttps://www.nytimes.com/1992/07/24/arts/
LOPONTE, Luciana. Gênero, Educação e Docência nas
david-wojnarowicz-37-artist-in-many-media.htmlhttp://ar-
Artes Visuais. Disponível em: >http://seer.ufrgs.br/index.
teseanp.blogspot.com.br/2015/07/david-wojnarowicz.html
php/educacaoerealidade/article/view/12469> Acesso em:
27 de marco de 2018. http://marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=4&sText=47

750
ARTE TECNOLOGIA: INTERFACE
DE CRIAÇÃO COLETIVA PARA
A SEGUNDA INTERATIVIDADE.
Judivan José Lopes-Ifal/Unesp
Adriana Ferreira Santana-Ifal
Ziel dos Santos Mendes-Ufpe
Natan Santos Ferreira-Ifal

Introdução

Este trabalho é fruto de uma pesquisa de desenvolvimento de obras de arte com interfaces de tecno-
logia emergente e interatividade - objetos e instalações artísticas multissensoriais, com o coletivo artístico,
Geparti – Grupo de Estudo e Produção de Arte Tecnologia e Interatividade, atualmente composto por pro-
fessores de diversas áreas do conhecimento, colaboradores externos e, principalmente, de jovens estudantes
dos cursos de Informática e Eletroeletrônica do Instituto Federal de Alagoas – IFAL Campus Arapiraca, no
agreste alagoano.

O Geparti é um grupo de trabalho de criação coletiva colaborativa e participativa iniciado em ju-


nho de 2016, com jovens do Ensino Médio Técnico Integrado que foram se aglutinando voluntariamente
em torno da ideia de arte tecnologia, trazida pelo até então professor coordenador/orientador do grupo,
professor de estudos das artes do IFAL Campus Arapiraca. Todos se sentido desafiados em torno da ideia de
desenvolver arte com as interfaces tecnológicas.

Projeto este que, posteriormente, foi se consolidando em um projeto de extensão para criação e
exposição de arte tecnologia e interatividade, logo no início de 2017, no sentido de criar e mostrar para a
população as obras com esse “novo” conceito.

Teoricamente, tanto o grupo como sua produção vem se caracterizando como sistema aberto, ideia de
sistema concebida por Bertalanffy em 1932, como organismos com dinâmica interna que se permitem influen-
ciar pelo meio ambiente, em suas palavras, se caracteriza sistema, pela “ordem dinâmica de peças em processos
que subsistem em interação mútua” (BERTALANFFY, 1976, p. 4) e sistema aberto por que é “mantido em
importação e exportação, em construção e destruição de componentes materiais” (Idem, p.5), “ativo-reativo”
(idem, p. 6), nas capacidades de percepção-reflexão-interação com o contexto ambiental e temporal.

O Geparti e sua obra vêm se comportando como um organismo vivo de ações dinâmicas internas
e externas, se inter-relacionando com saberes interdisciplinares e multidisciplinares, tanto para manter-se
como grupo, como para o desenvolvimento das suas ações, se deixando permear por contribuições que le-
vam a homogeneização e convergências como por derivas de ações heterogêneas e dispares.

751
Esse trabalho de pesquisa de criação artística em arte tecnologia, tem se consolidado inter e multi-
disciplinarmente como base nas principais características das vertentes das epistemologias Cibernética de
segunda ordem e Complexidade, produzindo frutos de cibercultura em arte contemporânea. Nessa reflexão
cibernetizada, construindo conhecimento sem a dependência de um roteiro hermético, onde o pensamen-
to interdisciplinar se comunica com facilidade em um mesmo idioma – a obra de arte com problemas de
controle, recursividade e informação, lidando com circularidades de várias proporções, sendo percebido e
percebedor ao mesmo tempo.

Com essa concepção de trabalho artístico e de narrativa, de ser cibernético, que na voz de Foerster
(1991, não paginado) “[…] é adentrar um terreno onde não está proibido falar de si mesmo”, em proporções
maiores, quando o si-mesmo “se considerar um ator participante no drama da interação mútua entre dar
e receber a circularidade das relações humanas.”, é essa dimensão que o torna um cibernético de segunda
ordem, de segunda cibernética, e é por ela que vem se dando a tonalidade a essa exposição.

Hoje, os estudantes envolvidos, uma parte deles são bolsistas em um programa de extensão fomen-
tado pela Pró-reitoria de Extensão -ProEx do IFAL, outros estudantes e os demais colaboradores que atuam
voluntariamente. O grupo é parte da ação produtiva de uma das linhas do grupo de pesquisa Lambe-Lambe
Digital: As mil faces do mundo, certificado pelo IFAL e CNPQ, que tem como membros professores de arte,
de eletricidade, eletrônica, filosofia, sociologia e geografia, colaboradores da computação, biologia, dentre
outras áreas e egressos.

Uma diversidade formativa que juntos têm buscado o desenvolvimento de obras de arte com in-
terfaces dos meios emergentes tecnológicos capazes de promover a segunda interatividade referida por Ed-
mond Couchot (2003, p. 27-38). Interatividade que une ou cruzam interatividade exógena e interatividade
endógena, para criar uma arte capaz de perceber o percebedor, “capazes de se comportar não mais como
coisas […] mas como espécies de seres artificiais mais ou menos sensíveis, mais ou menos vivos, mais ou
menos autônomos” (Idem, p.29).

Os frutos dessa conjunção complexa e sistêmica são práticas artísticas e reflexões com arte tecnolo-
gia e interatividade envolvendo uma equipe multidisciplinar, trabalhando em rede e sistema, na coautoria
das obras. Em que ao longo do processo de criação são desenvolvidos estudos teóricos sobre as práticas
artísticas de artistas e de coletivos artísticos que concebem o trabalho poético com tecnologias emergentes,
chamadas até então, sem muito consenso, de Media Art, Arte Eletrônica ou Arte Tecnologia, por se caracte-
rizarem componentes de diversas áreas: das técnicas emergentes, dos princípios científicos, dos conceitos
artísticos, e da participação do ser humano na composição da obra, com a interatividade.

Por esse princípio intrinsecado, a interatividade como parte imprescindível na elaboração da obra
de arte e o processo de criação artística não se encerra na obra, se estende pelo ambiente pensado e prepa-
rado para a exposição, procurando contemplar o formato, dimensões e organicidade da obra, adequando-a
aos espaços expositivos existentes e aos procedimentos que proporcione o contato do público.

O que se pode perceber, até então, na busca da compressão e delimitação da arte tecnologia ou Me-
dia Art, é que são organismos de arte gerados em sua totalidade ou em parte, nas interfaces das tecnologias
emergidas a partir da segunda metade do século XX e que tomou expoência no século XXI. Mesmo carac-
terizada como segmento da arte contemporânea, as Media Art são obras que se diferenciam das do passado
por articular novas configurações em todas as etapas desde a criação até a fruição: agentes de criação; pro-
cessos e procedimentos de criação; recursos utilizados; espaços expositivos; as formas de presentificação da
obra como também as formas de interação.

Inicialmente, pode-se perceber que pela caracterização o organismo obra de arte se torna sistêmico
na inter-relação da interface objetiva da tecnologia e na ação subjetiva do interator. De um dos lados vê-se

752
as obras de arte composta por máquinas e virtualidades, por aparatos geralmente desenvolvidos por profis-
sionais tecnólogos e engenheiros. Máquinas que dão corpos físicos e mediam softwares, que por sua vez dão
‘vida’ a obra de arte, e, do outro lado, a ação do interator que retira a obra de arte da inercia maquínica para
exploração de suas potencialidades, agindo em seu sistema, impregnando-a de subjetividade.

Obras de arte compostas de partes mecânicas, impulsos elétricos, circuitos eletrônicos e códigos nu-
méricos da computação dotados de vida gerada a partir da ‘alma’ criada, por motores, circuitos e programação
computacional e outros dispositivos, coisas da racionalidade. São ainda, lhes acrescentada o imaginário cria-
tivo de artistas, e juntos combinados e miscigenados com o envolvimento do fruidor/interator. Nessa obra,
pode tanto se concentrar como expandir conhecimentos e talentos, que geralmente só se encontra em equipes.

Obras de Arte, Interface e Interação

Arte tecnologia é obra criada por artistas cientistas ou cientistas artistas que se organizam em gru-
pos, por participação ou colaboração utilizam “aparatos” tecnológicos e da linguagem numérica para ofe-
recer ao público, como diz Domingues (2002. p.46), “ambientes com uma realidade ampliada em aspectos
biológicos e emocionais que se caracterizam em formas de vida, simulando o existir pós-biológico ou ex-
pandido por tecnologias”.

São obras desenvolvidas com as interfaces dos computadores, equipamentos eletrônicos e da ro-
bótica, e que podem proporcionar hiperconexão, telepresença, ação remota, realidade virtual imersiva, si-
mulação de fenômenos físicos dentre outras possibilidades. E outros dispositivos de interfaces que sugere
possibilidades interpretativas da ação do interator, dessa forma:

“[…] mouses, teclados, modens, câmeras, sensores, capacetes, luvas, sondas espaciais, mi-
croscópios de varreduras são dispositivos que capturam vidas, ações do corpo e do ambiente
em suas capacidades de emitir sinais, pensar, imaginar, simular e interpretar micromundos
celular, codificar partículas do universo, tarefas de mundos virtuais, robôs, permitem a tele-
presença e encarnam identidades vividas na rede.” (DOMINGUES, 2002. p. 33).

Por essas características complexas de variado recurso tecnológico, que se justifica o envolvimento
de equipe de multi saberes para pensar/criar a obra de arte. Os objetos ou instalações de corpo maquínico,
a ocupação dos espaços tridimensional, ambientes espaciais, físicos, virtualizados e imersivos preparados
para a presença do fruidor, esse por sua ação ativa e participativa se torna cocriador por modificar a obra
de arte, tirando-a da inercia. Pode-se dizer também que por esses aspectos a obra se configura como um
sistema, onde todos os componentes dessa relação se comunicam.

Gianetti (2006, p.199.), salienta sobre a dinamicidade das obras, “da Media Art, e especificamente
com a arte interativa” que são capazes de nos levar à concepção de sistema, e em complementaridade (OLI-
VEIRA; HILDEBRAND, 2010), nos dizem que “são obras de arte que desloca o foco da obra circunscrita em
si para abarcar as relações em que ela se situa”; as conexões dos universos que se envolvem na construção
das obras de arte, linguagens, materialidades, territorialidades, intencionalidades e subjetividades. Onde a
mediação do sujeito é feita pelo outro na linguagem e na cultura e, das forças que nos cerca no mundo.

A obra de arte como sistema tem em princípio como característica básica a dimensão da interati-
vidade, onde pode proporcionar uma relação íntima com o fruidor interator, deslocando-o para o mundo
maquínico e/ou o mundo maquinico para o seu mundo biológico, alterando concepções e conceito pela
reflexão.

753
A obra de arte interativa, segundo Sogabe (2016), pode ser entendida como sendo obra de arte de
prática recorrente baseada em um sistema de estímulo/resposta, que convida o público a reencontrar, com
ela, o gesto natural. Assim, o público inter(ator) pertence a obra, já que, por exemplo, “o espaço das instala-
ções que era ocupado com elementos tridimensionais dá lugar ao público que precisa se movimentar e atuar
dialogando com os elementos virtuais que se atualizam” (SOGABE, 2008, p.1990).

A obra pode se configurar como o acontecimento da relação artista-obra-interator, ela abarca possi-
bilidades conceituais desde a concepção possibilitada pela multiplicidade de interfaces tecnológicas, exigin-
do multiplicidade de conhecimentos e técnicas, não mais de um único artista em torno da obra, mas, agora,
da equipe de criação.

Por ser imprescindível a presença do fruidor em ação com a obra de arte, seja no seu acionamen-
to como sujeito aparelhado, por interatividade em acoplagem, conectividade, vivencia e/ou toque, em
que dialoga com ela em percepção sináptica, (COUCHOT, 2003, p.38), em que nessa relação obra-inte-
rator o envolvimento pode se doar de corpo, coração e mente, tornando seu corpo expandido, sentidos
ampliados e amplificados e de consciência “cibernetizada”. “a obra está então inteiramente contida na se-
quência das experiências perceptivas que o expectador vive e pode reviver indefinidamente no decorrer
do diálogo.”

Consciência em que convergem inteligência individual e coletiva, objetividade e subjetividade entre


significantes e significados, e se “estabelece uma comunicação entre as ordens díspares de grandeza ou de
realidade; ou que ela atualiza a energia potencial ou integra as singularidades; organizando uma dimensão
nova na qual eles formam um conjunto único de grau superior” (DELEUZE, 1969, p. 119).

Essa consciência “cibernetizada” propõe as trocas entre a inteligência humana e a inteligência da


máquina, em processos de trocas de conhecimentos estabelecidos e de aprendizados constantes e indefi-
nidamente limitados, na medida em que exploram a percepção dos sentidos: visualidade, espacialidade,
sonoridade; imersão e imaginação, articulação de cognição e cultura em diferentes níveis proporcionais aos
níveis de articulação e interatividade dos fruidores inseridos no sistema obra.

Metodologia

Atualmente, alunos bolsistas e voluntários juntos com outros profissionais de diversas áreas do sa-
ber, se organizam para conceber, desenvolver, produzir e expor obras de arte interfaceadas com as tecnolo-
gias emergentes. Trabalhando no coletivo, em processos criativos colaborativos. Trabalho que se desenvolve
por processos exploratórios, estudos teóricos e empíricos das áreas de arte, mecânica, eletroeletrônica e
informática para a composição de objetos e instalações sensíveis e interativas. Busca-se inspiração e solução
pela internet, em obras de autores conceituados da área. Reunindo-se em laboratórios e atelier, em encon-
tros presenciais e por meio virtuais, Skype, Hangouts, Trello, Whatsapp, E-mails e Facebook, para desenvolvi-
mentos de práticas, discussões, reflexões e trocas de ideias e materiais teóricos.

Seguindo a uma dinâmica de organização e prazos estabelecidos em cronogramas institucionais,


pois os alunos bolsistas são vinculados a projetos de professores, orientados por editais, com metas pré-
-determinadas para apresentações de relatórios parciais e finais. Com etapas internas ao grupo, encontros
de criação, descrição visual das ideias por imagens, escolha do que será desenvolvido, desenvolvimentos de
criação das obras, apresentação para o público interno e externo e desenvolvimento escrito de relatórios.

As obras geradas são frutos sintomáticos da cibercultura e da interatividade que vislumbra com-
plementaridade com sentimentos, emoções e cognição do público, propiciando experiências estéticas de

754
humanização das tecnologias, como pensa Domingues (2002), reflexão que nos leva a compreensão a
partir dessa prática, que “os processos de criação são baseados em rede de sistemas complexos” e em que
“o artista não é mais o ser supremo e isolado, ele trabalha em conjunto com pessoas portadoras de outras
habilidades e conhecimentos” e, percepção criadora. Pensamento reflexivo que se encontra a mesma con-
formidade, em Salles (2006).

Por outra ótica, a interatividade é ampliada em concepção e prática. As possibilidades de aplicação


desse novo nível são apresentadas como segunda interatividade, de cibernética de segunda ordem por Cou-
chot (2003), nela é percebível que a interatividade é parte implícita da rede de criação, onde o percebedor se
inseri no sistema organismo obra de arte, que envolvem comportamentos de máquinas aproximados aos dos
humanos. E que proporciona movimentos de idas-e-vindas entre interator e obra de arte. O interator age na
obra, a obra se modifica provocando novas possibilidades de interação, modificando consequentemente o
comportamento do interator.

Com a segunda interatividade todo processo de criação é focado na solução de problemas em cir-
cularidade, tanto de ordem teórica quanto de prática, buscando em sua finalização o efeito mágico, sedutor
e encantador, o simulacro artístico de uma realidade desconhecida abrigada na virtualidade. O processo
enquanto artístico procura ainda seguir as várias etapas de produção da obra de arte, desenvolvimento
de criação, descrito acima, exposição onde se pretende a interação com as pessoas e reflexão do processo
produtivo a ser feito após a finalização e exposição da obra, levando em consideração os resultados da ob-
servação da interatividade.

Além das etapas do processo de criação da obra de arte, exposição pública e reflexão, se tem previs-
to as etapas tecno-interativas, que serão consideradas os princípios da relação de interação entre homem e
maquina. A obra procurará distanciar-se das formas de arte do passado, se inserindo dentro de possibilida-
de de obras de arte do pós-humano, como explicita Santaella (2002), “se aproximará de modelos, híbridos,
cibernéticos, da relação de convergência entre arte-ciência-tecnologia, a arte que propõe a partir do uso de
atributos tecnológicos para a exploração estética”, novos processos de subjetivação.

Resultados e Discussão

O que se tem até então, são um conjunto de obras de arte, algumas conclusas, compostas para expo-
sição “Corpo: arte contato”, expostas no Museu Zezito Guedes de 31 de julho a 28 de agosto de 2017 e outras
em processo de criação, mas que buscam se configurar como o propositado, arte tecnologia interativa são
instalações concebidas e trabalhadas em grupos, desde a reflexão para levantamentos de ideias e intenciona-
lidade para a obra, o desenvolvimento de práticas para a utilização dos dispositivos tecnológicos, criação de
sistemas eletrônicos e informáticos, formatividade e organicidade das obras, proposta de exposição, expo-
grafia e a avaliação dos processos. Enfim, em todas as etapas se percebe o coletivo por interconexões de in-
dividualidades contemplando características, experiências, conhecimentos e vivências de vários indivíduos
nas inter-relações sistêmicas.

Na exposição, autores e públicos ficam diante de obras coletivas, criadas por multiautorias, por pro-
cessos colaborativos, ora compartilhado, ora integrado, mas em todas as possibilidades de criação manifesta
percebe-se a presença de criação em grupos, e que evidencia pela característica transdisciplinar os princí-
pios de complexidade, resultando em uma trama tecida no conjunto, juntos, em ação e “pensamento que se
esforça para unir, não na confusão, mas operando diferenciações” (MORIN, 1999, p. 33). Saberes diversos
agindo por divergências e convergências, de receber e produzir sentido para o encontro de subjetividade, em
sentido novo como referencia Castoriadis, (1999, p. 35).

755
O sentimento de grupo se caracteriza como algo que é construído ao longo do tempo e das vi-
vências, pela partilha das ideias, flexibilidade de como opera o trabalho de apropriar o que o outro tem de
melhor e de ceder seus saberes para o uso da ideia coletiva com interação de talentos e de diversidade para
obtenção de resultados e pelo sentimento e sentido de pertencimento. Atributos que geralmente operam em
conflitos com os sentimentos de posse as ideias e habilidades, rigidez de posicionamentos congestionando
os fluxos de criatividade e a esterilidade da individualidade.

O pensamento aqui explícito de segunda cibernética tem sido aqui referenciado por entender que o
trabalho criativo de grupo não pode ser regido por princípios dedutivos da ciência clássica, edificados nos
pilares da certeza, que de acordo com Morin (2000, p. 95), “se fundamentou sobre quatro pilares” ordem,
separação, redução e dedução identitária “que tem por causa e efeito dissolver a complexidade pela simpli-
cidade”. O contrário desse pensamento e prática conduz a um sistema aberto.

É tendo por base a obra de arte como sistema aberto que se percebe as buscas por confluências.

Conclusão/Considerações Finais

Para tecer essas considerações utilizam-se as citações abaixo. Primeiro por considerar a dinâmica do
fazer artístico como uma busca de pesquisa interminável e incompleta, considerando a condição instável da
completude da obra arte por consequência do desejo insaciável do artista alcançar a forma perfeita. Segun-
do, a partir dessa consideração da obra como inacabada que vem valorizar o processo como obra:

A obra que chega ao público não é considerada como uma completude necessária que
resulta de sua elaboração, mas como possibilidade de um processo que não se completa
nunca, mas pode se interromper. … Pois o que interessa é o movimento do processo,
bem como as relações estabelecidas entre os documentos – o processo como mobilidade e
como rede relacional. (BERNARDET, 2006, Prefácio, p. 11, apud. SALLES, 2006.).

Para Salles (2006) a construção do objeto artístico é um processo permanente de busca, “flui no
tempo, implica ser algo que tende a escapar” o objeto é constituído de transitoriedade que chega a acarretar
inacessibilidade e inacabamento:

A relação entre o que se tem e o que se quer reverte-se em contínuos gestos aproximativos
– adequações que buscam sempre inatingível completude. O artista lida com sua obra em
estado de contínuo inacabamento, o que é experienciado como insatisfação. … o objeto
dito acabado pertence, portanto a um processo inacabado. (SALLES, 2006. P. 21.).

O que se vê nesse relato, parte por referência dessa concepção, da busca do ideal da criação de
obra de arte, resultado localizado entre aquilo que a priore é desejado e o que se tem realizado como sa-
tisfação e insatisfação.

As obras de arte interativas, tanto as prontas, como as que, até então, estão em processo de finaliza-
ção, ao mesmo tempo em que deixa a sensação de incompletude, pois reflete na subjetividade em alcançar
o idealizável, deixa também a sensação da completude da obra, causada pelo processo bem trilhado, que já
vislumbra o vir-a-ser.

De um lado percebe-se com clareza que no caminho trilhado houve desencontros, desconfortos e
insatisfações, angustias e ansiedades. Sentimentos típicos de processos de criação e de desenvolvimento de

756
trabalho em grupo. Por outro lado, entende-se os limites dados pelas contingências diversas que não resul-
tam nas condições ideais do processo produtivo da obra de arte, a ausência de atelier, ferramentas e recursos
materiais e financeiros são alguns exemplos que se pode citar, mas que também se pode dizer que são obs-
táculos que vem sendo superados pela força do coletivo, pelo entusiasmo a cada efeito desvelado na obra,
pelas surpresas desprendidas, em expressivas emoções transpiradas pelos fruidores das obras em processo.

O trabalho criativo em grupo é gerado no caos e nas imprevisibilidades, no locus dos opostos que
se encontram em dialogicidade. Como diz Morin (2000, p. 103), as revoluções científicas impulsionadas
nos séculos XX e XXI, primeiro opera a crise da ordem, da separabilidade, da redução e da lógica. Segundo,
que “manifesta pela emergência das ciências sistêmicas dos reagrupamentos de disciplinas muito diversas,
em torno de um complexo de interações e/ou de um objeto que se constitui um sistema e afeta na base a
separabilidade e a redução.”. Sacodem os pilares da certeza anterior, com o surgimento da “desordem, da
não-separabilidade, da não-redutibilidade, da incerteza lógica”, cedendo lugar a uma ordem organizacional
que pode nascer nas condições próximas à turbulência, complementaridade entre ordem e desordem. Onde
ambas coabitam, ou melhor, coexistem.

Referências Bibliográficas

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757
ARTE-EDUCAÇÃO E INCLUSÃO:
PRÁTICAS DESVIANTES
Niara Mackert Pascoal - UFPE

Educação especial: um panorama

As primeiras instituições específicas de educação especial nasceram na época do império, com a cria-
ção do Imperial Instituto dos Meninos Cegos (atual Instituto Benjamin Constant, IBC) e Instituto dos Surdos
Mudos (atualmente Instituto Nacional da Educação dos Surdos, INES) em 1854 e 57, respectivamente.

Atualmente, o IBC não se limita mais ao âmbito educacional, mas tornou-se referência em questões
de deficiência visual, capacitação, pesquisa e prestação de atendimento à população. E, assim como o INES,
são instituições de apoio integral aos deficientes.

Após esse período, foram surgindo locais de ensino que fariam parte da “educação especial”, que
eram específicos para alunos com deficiência e que, apesar do atendimento especializado, excluíam essas
pessoas da convivência social e da relação com os outros alunos, ditos “normais”. Nesse período que temos
as “escolas dos anormais”, como a Escola Especial Ulysses Pernambucano, em Recife, criada em 1941.

Atualmente, a educação regular abarca o ensino para pessoas com deficiênci e o governo garante,
pelo menos em lei, que esse estudante disponha de todo aparato necessário para sua aprendizagem, inclusive
professores com formação específica (o que nem sempre ocorre, como observo em minhas experiências do
estágio, relatadas mais adiante).

Segundo a legislação brasileira, na lei 13.146, de 2015, Art. 27:

A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional


inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o
máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, inte-
lectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.

Seria papel do Estado e da sociedade garantir a educação de qualidade às pessoas com de-
ficiência, “colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação” (BRA-
SIL, 2015). Interpretando o texto dessa lei, seria papel de cada um zelar pela educação, não só des-
sas pessoas, mas de todas as crianças. Além disso, devemos garantir que essa educação seja de qua-
lidade, ou seja, em todas as esferas da educação (formal, não-formal e informal405), devemos contri-
buir para a formação integral desse indivíduo. Garantindo o acesso e a permanência dele na escola.

405. Educação formal seria a educação escolar; a não-formal seria a realizada fora das escolas, em ONGs e espaços independentes; a informal seria
aquela incumbida aos meios sociais, familiares, religiões, etc.

758
Ensino e formação: experiências sensíveis

Na grade do curso de Artes Visuais da UFPE existe uma disciplina chamada Fundamentos Psico-
lógicos da Educação. A única em que, brevemente e superficialmente, temos alguma noção do que são as
deficiências, mas não temos, necessariamente, um panorama maior de como trabalhar com necessidades
educativas específicas. Além dela, outra disciplina obrigatória é Libras, onde somos introduzidos aos con-
ceitos básicos da língua e em que exercitamos os conceitos novamente de forma superficial, com diálogos
específicos, aprendendo como falar dias da semana, meses e cumprimentos, por exemplo.

Quando vamos para a sala de aula, portanto, temos que saber lidar com tipos diferentes de apren-
dizagem e com algumas barreiras comunicativas com crianças e jovens que possuem alguma necessidade
educativa específica. Usarei como exemplo uma experiência de meu estágio curricular obrigatório, exercido
em uma instituição pública, com alunos do primeiro ano do ensino médio. Em uma das turmas, havia um
estudante surdo. Ele era acompanhado pelo intérprete que “traduzia” todas as falas do professor e dos outros
alunos. Poucos alunos sabiam Libras e o professor também não a dominava, visto que, até para perguntar
algo ou fazer algum comentário específico para esse aluno, precisava do intermédio do intérprete.

Certo dia de nossa406 regência, levamos um trecho do documentário “O Povo Brasileiro”, de Darcy
Ribeiro. Acompanhávamos três turmas e as aulas deveriam, em teoria, ser iguais. Quando preparamos a
aula, não nos atentamos para as necessidades de todos os alunos (primeiro erro nosso) e levamos como
material de apoio o vídeo sem legenda ou tradutor/intérprete integrado. No entanto, até então tínhamos o
intérprete para nos apoiar e ficamos, assim, mais acomodados em relação aos conteúdos e seguimento da
aula (segundo erro nosso).

Contudo, devido a problemas pessoais, o intérprete não pôde comparecer justamente no dia que daríamos
essa regência, e também não fomos avisados antecipadamente de sua ausência. Na hora da aula, ficamos sem
alternativas para resolver o impasse, e o aluno assistiu ao vídeo, mas perdeu as falas, que eram essencialmen-
te importantes para o conteúdo. Não só, mas perdeu todas as aulas daquele dia, visto que sem o intérprete
ele não acompanha a aula.

Ao sair da escola, no fim da aula, saímos com o sentimento de incapacidade, deixando um aluno
praticamente no escuro em relação a tudo que foi passado na aula. No dia seguinte, conversamos com o in-
térprete pedindo orientações para a situação, visto que os alunos fariam uma atividade sobre a aula anterior.
Ele, acertadamente, disse que, como professores, teríamos que pensar alternativas para que os conceitos
chegassem até ele. Só então fomos buscar legendas para o vídeo, o que seria uma alternativa paliativa, sendo
que o ideal era a tradução em Libras.

A presença de um acompanhamento específico para esse aluno é importante. Mas penso que mais
eficiente e mais inclusivo seria se o professor soubesse Libras (de forma avançada) e os alunos fossem instru-
ídos para que pudessem, também, interagir de maneira direta com ele. O intérprete acaba fazendo com que
a atenção do aluno se redirecione para a tradução em Libras, deixando-o, de certa forma, isolado do restante
da sala que, enquanto o professor fala, mantém-se atenta a ele. Temos, então, outra problemática: a inclusão
excluindo o aluno surdo do ambiente interativo, deixando-o numa bolha.

Penso, portanto, que esse tipo de mecanismo inclusivo seja deveras paliativo e maquiador da rea-
lidade discriminatória das pessoas com deficiência. Porque, dentre outras razões, continua excluindo essas
pessoas da verdadeira interação e de grande parte do processo educativo, ainda que permita, ao menos, que

406. O estágio relatado foi realizado em companhia de um colega de curso.

759
esse aluno tenha acesso ao que é dito na aula. O atendimento a esse aluno não deve ser algo extraordinário
ao processo de ensino-aprendizagem. Esse pensamento vai à corrente de que precisamos encaixar a deficiên-
cia no meio social, sendo que o correto seria que o meio social naturalmente fosse de abrangência de todos,
sem que fizéssemos “um favor” ao incluir e ao oferecer mecanismos de inclusão.

Essa “bolha inclusiva” faz com que, dentro do ensino dito “regular”, se enquadrem formas e ações
das anteriores escolas especiais, que segregavam totalmente as crianças com alguma “anormalidade educa-
cional”. A diferença, agora, é que essa segregação se encontra atenuada, visto que, oferecendo atendimento
especializado a esse aluno dentro da escola, ele tem a oportunidade de se relacionar “normalmente” com os
outros alunos e ter as mesmas aulas. Mas, ainda assim, é uma forma de segregação.

Além disso, vale salientar que as barreiras encontradas por alunos com deficiência não se resumem a pro-
blemas estruturais ou materiais. “Em nossas escolas, como nas de toda parte, são fortes as influências das
representações sociais em torno da deficiência. Elas interferem diretamente na dinâmica da sala de aula,
constituindo-se em verdadeiras barreiras atitudinais” (CARVALHO, 2011, p.26).

Talvez seja esse o fator principal do assunto: as convenções sociais que, embora tenham aprendido
com o passar do tempo, insistem em estabelecer e “disseminar” que essas pessoas são alheias a sociedade
e que, por conta disso, sua inscrição e participação devam acontecer de forma diferenciada. “A deficiência
poderá gerar incapacidade ou não, dependendo de como a sociedade está organizada para garantir a sua
inclusão social” (CORREIA, 2015, p. 12).

Analiso então, nossa formação na academia como professores de artes. Somos totalmente despre-
parados para lidar com situações específicas, seja em sala de aula, numa exposição como mediadores, num
curso de férias. Sinto falta da necessidade de ser um veículo de auxílio à produção de conhecimento que
realmente seja eficaz para todas as pessoas que necessitarem ou quiserem. Ser e fazer educação para todos.

Essa lacuna na formação contribui para que parcela dos professores (de artes ou não) sinta-se despreparada
para a atuação com esse tipo de especificidade.

Aqueles que rejeitam alunos com deficiência em suas turmas defendem-se, afirmando que
em seus cursos de formação não foram suficientemente instrumentados e que não dão
conta nem dos alunos ditos normais. Sentem-se desmotivados com as condições em que
trabalham com seus baixos salários e com a desvalorização de sua profissão [...] (CARVA-
LHO, 2011, p.30).

Durante o estágio relatado acima, tivemos dois erros significativos em nossas ações como educadores.
O primeiro, decorrente da nossa total falta de preparação para a situação – e aqui podemos refletir sobre a vi-
sibilidade e a importância que é dada a deficiência atualmente: se num curso de licenciatura, onde se formam
professores (que são fundamentais para a formação dos indivíduos), não temos orientação e formação nesse
aspecto, quem deveria ter? O segundo, decorrente da nossa acomodação diante dessa necessidade e ausência
de busca por soluções, o que também é relacionado à forma de tratamento que é dado culturalmente à defici-
ência, que apesar de ter evoluído com o tempo, ainda é extremamente discriminatória e preconceituosa.

Esquecemos, com muita facilidade, o que pesquisadores renomados em educação e psi-


cologia nos têm mostrado desde o início do século passado: que a inteligência é relativa,
que a estimulação em todas as áreas do desenvolvimento humano (e não apenas a cog-
nitiva) é fundamental para a formação de uma sociedade crítica e criativa, e que nosso
cérebro é dotado de uma plasticidade tal que fica absolutamente impossível prever com

760
exatidão o quanto cada um de nós é capaz de aprender, a despeito de características
individuais marcadamente acima ou abaixo da média que possamos apresentar (SAN-
TOS, 2003, p.11).

Podemos retornar, agora, ao que mencionei no início. Fazemos parte de um grupo que usa a arte
como ferramenta de mudança social e alcance às pessoas. Refletimos sobre cultura de dominação, apro-
priação cultural, sistema manipulador de massas e até o acesso a produção por camadas marginalizadas da
sociedade. Nosso papel como artistas e arte/educadores é justamente o de expandir as fronteiras do pensa-
mento humano, em que a arte funciona como lugar (ou entre-lugar) onde as trocas ocorrem, os indivíduos
têm autonomia para construir suas representações, quebrar os muros que existem nas lacunas sociais e
sentirem-se pertencentes ao mundo e lugar que ocupamos. Então, qual o papel da arte nos processos de in-
tegração de todos os indivíduos na sociedade? Como ela pode alcançar e trabalhar as deficiências e a margi-
nalização de camadas sociais? De que forma os educadores e os arte-educadores lidam com essas questões?

Concordo com Tamiozzo (2012, p.30) quando relaciona o papel do educador ao de “mediador de
saberes” que atua de maneira sensível. É necessário, então, compreender “que a prática da docência requer
afeto, considerando os sentimentos e as emoções dos alunos, já que de tal forma essas relações podem sim
favorecer o bom desenvolvimento cognitivo dos sujeitos” (TAMIOZZO, 2012, p.30). E é a partir da educa-
ção que podemos promover as mudanças sociais a respeito da deficiência. “Se a desvantagem em razão da
deficiência é produzida socialmente, cabe à sociedade pensar formas de não produzi-la ou desconstruí-la a
partir de medidas que assegurem a participação efetiva das pessoas com deficiência para promoção do seu
desenvolvimento” (CORREIA, 2015, p.13). E a educação tem papel muito importante nesse processo.

A prática de ensino de artes na educação para pessoas com deficiência deve ser feita de forma a con-
tribuir para a construção do aluno, visto que educação é um direito de todos. Sendo assim, torna-se papel
do educador incitar esse aluno à busca pelo conhecimento e à procura por superar seus próprios obstáculos,
além de servir de apoio e ser agente participante do processo, assim como todos os funcionários da escola.
A partir dessa integração, a educação e a aprendizagem desse aluno serão significativas e a inclusão não se
dará somente pela inserção dessa criança na educação regular.

Arte/educação inclusiva: explorando conceitos

Um dos conceitos mais importantes de uma obra é materialidade, o visual, a textura, a sensação.
Quando um artista produz algo ele não precisa, necessariamente, pensar no alcance dessa obra ao público.
Somente quando esse “produto” chega a algum meio expansivo físico, como galerias, museus ou exposições
independentes, é que deveria se pensar no acesso que a obra vai permitir aos públicos. Por isso, a respon-
sabilidade de oferecer esse acesso passa para os locais expositivos, as escolas e os eventos no geral. Isso não
ocorre sempre, visto que, o mais rápido, mais fácil, menos trabalhoso e “mais barato”, é expor a obra sem que
qualquer veículo interativo/explicativo seja integrado.

Nas artes visuais, a falta de inclusão e o “não-pensar” no alcance das ações e obras artísticas tornam-se
totalmente incongruentes ao discurso de um mecanismo de representatividade, transformação e resistência.

De que adianta lutar pelas causas feministas ou militar contra o racismo e a marginalização de ca-
madas sociais com um discurso que continua com práticas que segregam? Até que ponto chega a hipocrisia
da arte quando ela acaba por esquecer ou deixar de lado a necessidade de que sua voz e materialidade sejam
acessíveis a todos?

761
Paremos para refletir sobre experiências de fruição artísticas particulares. Quantas vezes nos depa-
ramos com uma exposição de arte totalmente acessível? Tanto do ponto de vista estrutural, como informa-
tivo, com textos em braile, audiodescrição e mediação em Libras? E um questionamento ainda mais impor-
tante: quantas vezes uma pessoa surda, cega ou cadeirante visitou uma exposição de arte? Qual o incentivo
que esse público recebe para estar presente e ocupar esses locais? O que ele encontraria lá?

Suponhamos que você visite uma exposição formada majoritariamente por textos em uma língua
totalmente desconhecida. Que oportunidades teria de acessar esse conteúdo e porque você continuaria vi-
sitando um local que não lhe oferecesse a mínima estrutura para que compreendesse aquelas ideais? Prova-
velmente, ainda que pelo cansaço de procurar entender, esse ambiente não seria mais agradável para você
e, consequentemente, pararia de frequentá-lo. Agora, imagine que você tivesse à disposição, nesse local, da
tradução dos textos para sua língua. O quão interessante e estimulante seria sentir-se “abarcado” por aquele
espaço, atendido?

Obviamente que, depois da boa experiência, as chances de retorno para visitar a próxima exposição
seriam maiores. Essa descoberta pode relacionar-se ao modo como as instituições buscam todos os públi-
cos para eventos e programações artísticas. É preciso pensar no acesso, por todos, às informações sobre a
acessibilidade desses locais e não somente tomar mão da descoberta. O mesmo ocorre na educação, “para
proporcionar ao educando atenção à diversidade é preciso que o educador compreenda que todos os alunos
têm capacidade de aprender, mas se não forem bem instrumentalizados, suas chances são menores” (SAN-
TOS, 2003, p.6).

Espaços de fruição e educação em artes têm como objetivo inerente o estímulo à criatividade, refle-
xão e produção de conhecimento. Por se tratar de um componente escolar onde a expressividade e a liber-
dade criativa devam ser estimuladas, a arte, de maneira geral, contribui muito para o desenvolvimento dos
indivíduos em vários âmbitos, sejam os emocionais, sociais, motores, etc.

Essa contribuição dá-se de maneira mais intensiva às pessoas com deficiência e pessoas em outras
situações de vulnerabilidade (social, financeira etc), visto que estimula o desenvolvimento da expressividade
e conhecimento pessoal, promovendo maior percepção sobre si e o mundo ao seu redor, motivação e cons-
trução de sujeitos mais sensíveis e críticos.

Além disso, muitas práticas e técnicas artísticas ajudam a estimular o desenvolvimento motor (ca-
pacidade constantemente utilizada na educação infantil), que pode oferecer mais autonomia a pessoas com
alguma deficiência física. Ademais, pode trabalhar juntamente com tratamentos psicoterapêuticos, como
é o caso da arte terapia, onde a autoestima, aceitação e afirmações identitárias são os principais âmbitos
estimulados pela prática.

Não podemos, no entanto, reduzir a arte a um mero mecanismo de tratamento ou um meio para
chegar a determinado fim, mas como um direito de todos e que ultrapassa linhas definidas de capacidades
ou incapacidades. E que possui, assim como outras áreas educativas e trabalhando em conjunto com elas,
um potencial formativo enorme, principalmente na educação inclusiva.

A diferença entre a arte/educação e o ensino de outras matérias recai sobre os limites imaginários
e de liberdade criativa do estudante e do professor diante dos conteúdos e temas que são os escolhidos para
serem trabalhados na escola. Assim como a arte não consegue sozinha alcançar o nível formativo que os
indivíduos necessitam para a inserção no mercado de trabalho, as outras áreas deixam a desejar nos ensina-
mentos humanos, expressivos e reflexivos acerca da realidade que rodeia a sociedade.

Por esse motivo, uma educação em que se estabeleçam práticas inclusivas não deve restringir-se
somente a pessoas deficientes, mas a toda parcela social que se encontra marginalizada. “Neste sentido, a

762
inclusão não se resume a uma ou algumas áreas da vida humana, como, por exemplo, saúde, lazer ou educa-
ção. Ela é uma luta, um movimento que tem por essência estar presente em todas as áreas da vida humana,
inclusive a educacional” (SANTOS, 2003, p.4).

A postura do educador também é de extrema importância para que o processo inclusivo seja reali-
zado de forma eficiente, visto que uma das barreiras para a implantação de projetos inclusivos é a barreira
atitudinal, seja por parte dos educadores, seja pelos outros funcionários da escola, estudantes e pais. Todos
devem ser mobilizados e estimulados a adotar uma postura de respeito com os outros. A partir do convívio
vivenciado na escola, os alunos aprendem a importância do respeito ao próximo, o que estimula ações in-
clusivas entre os próprios estudantes.

O conhecimento e o exercício de conceitos sobre deficiência são importantes para que relações so-
ciais sejam estabelecidas e que tabus e preconceitos sejam dissolvidos já na escola. Incluindo esses conheci-
mentos na realidade da sala de aula, da escola e dos alunos, contribuímos para a formação de uma sociedade
mais inclusiva e menos preconceituosa.

Inserir pessoas com deficiência no âmbito escolar regular sem que haja, portanto, a adaptação ne-
cessária (estrutural, atitudinal, comunicativa) não garante o aprendizado desse estudante, nem o sentimento
de pertencimento àquele local específico. Por isso, todos devem estar envolvidos nesse processo, sendo a
educação a forma mais eficaz de derrubar essas barreiras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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763
ARTES VISUAIS, ARTIVISMO GAY
E UTOPIAS PEDAGÓGICAS COMO
GESTO DE (RE)EXISTÊNCIA 
Wandeallyson Dourado Landim Santos
Fábio José Rodrigues da Costa

Introdução

Um debate contemporâneo tem tomado os principais centros de pesquisa de vários contextos cultu-
rais, tanto no Brasil como em diversos países, em torno de uma historiografia da arte que tradicionalmente
excluiu de seus registros (livros, catálogos, artigos, documentários etc.), a produção artística de pessoas as-
sumidamente homossexuais e de mulheres. Para tanto, alega-se a inexistência dessa produção, como Gom-
brich (1909-2001) em entrevista para Ana Mae Barbosa e publicada em Arte-Educação: leitura no subsolo
(1997), ao tratar da produção artística feita por mulheres:

Não penso nada, porque nós simplesmente não sabemos nada. Veja: há muitas tapeçarias, coisas mui-
to belas, feitas na Idade Média. Como se pode dizer se foram feitas por homens ou por mulheres? Não se sabe.
Não tem sentido. E não importa. Se eu ligo o rádio e ouço alguém tocando algo muito bem, não posso dizer
se é homem ou mulher. Não tem o menor sentido. É irrelevante. Na literatura também, como saber em alguns
casos? Jane Austen, por exemplo, sabemos que era mulher. Mas, Georges Sand poderia não ter sido mulher,
ela inclusive tentou não ser. É algo que não posso realmente conceber. Não há uma arte da mulher. (p. 39-40)

Se para um dos mais importantes historiadores da arte não importava se a produção artística era
feita por homens ou mulheres, o que dizer então sobre arte produzida por homossexuais? E o que pensar
sobre essa mesma produção entrar para o elenco de opções que @s artistas/professor@s/pesquisador@s te-
nha disponível para um ensino de artes visuais que ultrapasse a heteronormatividade na sala de aula? Como
apreciar/ler/contextualizar/interpretar a vasta produção artística presente em museus, centros culturais, bie-
nais e mostras de artivistas gays e lésbicas?

Parece necessário e urgente atualizar discussões e registros acerca das produções em artes visuais
a partir do protagonismo de artistas gays e lésbicas, movimento que se impulsiona devido a uma outra
história da arte que vem sendo escrita por historiador@s, crític@s, curador@s e artistas revelando não só
uma vasta e significativa produção, como que esta produção traz em seu eixo questões relativas ao gênero, a
sexualidade e as práticas culturais da comunidade LGBTT.

Ao mesmo tempo em que se descortina, revela e vem a público uma centena de artivistas gays e
lésbicas, também são demonstrados procedimentos, técnicas, materiais e suportes usados por estes para

764
denunciar o status quo que procura mantê-l@s em diversos contextos culturais como sujeitos de menor
prestígio social, político e de representação.

Observa-se, portanto, a construção de outras narrativas e projetos emancipatórios que se propõem


a reorganizar o modelo social, econômico, político, religioso e artístico contrário as estratégias neoconser-
vadoras e neocolonizadoras das elites dominantes em diferentes contextos culturais contemporâneos.

Na arte também assistimos à desconstrução de imaginários em torno de uma produção artística


predominantemente heteronormativa. Produção essa excluída dos livros de história da arte e mesmo da
formação d@ artista/professor@/pesquisador@.

Outras abordagens que contestam a história da arte tradicional e, consequentemente, canônica


surge no interior do movimento LGBTT desde a década de 60 do século passado. Este movimento vem
trazendo à luz uma produção artística que ultrapassa o lugar de uma arte erótica como lugar para artistas
gays e lésbicas, como alguns historiadores situaram por muito tempo a produção artística desde as pinturas
rupestres até as performances dos anos 1970, tanto no Brasil como na América Latina.

Atualmente não só mais artistas ativistas do movimento LGBTT ocupam espaços em Bienais, Cen-
tros Culturais, Museus e Galerias, como o fazem reafirmando que são artistas que em seus trabalhos proble-
matizam essa mesma sociedade heteronormativa e seu projeto opressor.

Nos últimos anos tanto no Brasil como em outros países das Américas e da Europa assistimos ini-
ciativas de judicialização e criminalização de artistas, curadores e instituições por exibirem corpos nus em
performances, pinturas, desenhos, colagens, instalações, esculturas, vídeo art que demonstram práticas da
cultura LGBTT ou mesmo heterossexual.

Nas escolas da educação básica professores e professoras não recebem atualizações sobre essas abor-
dagens e desconhecem as produções artísticas de gays e lésbicas que produziram e produzem arte em dife-
rentes contextos sócioculturais.

A educação tem sido orientada por uma concepção eurocêntrica, heteronormativa e branca, por-
tanto, uma história da arte que reforça uma pseudo superioridade do homem sobre a mulher, do segmento
branco sobre os não brancos, da heteronormativa sobre as demais formas de identidade e sexualidades.

Assim as instituições de escolarização e de formação inicial e continuada de professor@s impedem


que estudantes tenham contato com outras perspectivas e abordagens artísticas, afastamento que ocorre
da educação infantil ao ensino médio e mesmo nos cursos de licenciatura. Tal omissão dificulta ou impede
que estudantes, cidadãos e cidadãs, se reconheçam a partir de pensamentos e concepções não normativos e,
portanto, construam suas próprias identidades como sujeitos de direitos ou mesmo desenvolvam o respeito
por pessoas que diferem de sua condição de existência.

O presente artigo é um esforço nosso de trazer para o debate um pequeno recorte da pesquisa em
andamento “Ensino das Artes Visuais e Escola sem Homofobia”, vinculada ao Grupo de Pesquisa Ensino da
Arte em Contextos Contemporâneos – GPEACC/CNPq, na linha de pesquisa “Didática do Ensino das Artes
Visuais”, ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ensino da Arte - NEPEA do Centro de Artes Maria Violeta
Arraes de Alencar Gervaiseu da Universidade Regional do Cariri – URCA.

O artigo tem por objetivo apresentar um conjunto de artistas, produção, contextos e circuito do ar-
tivismo de artistas gays já catalogados como primeira aproximação para a inserção dessa produção nas aulas
do componente curricular Arte na escola de educação básica e sua contribuição para o combate a homofo-
bia. O artigo situa sua abordagem, recorte e análise a partir dos anos de 1960 como marco do surgimento do
movimento LGBTT nos Estados Unidos e também no Brasil.

765
1. Ativismo político e as primeiras estratégias de resistência

Juan Hidalgo, Flor y hombre, 1969

Nos anos sessenta o artista espanhol Juan Hidalgo (1927-2018) elaborou alguns projetos tendo
como expressão o desejo homossexual em uma época de censura e autocensura que atingiu desde o cinema
até as histórias em quadrinhos, uma consequência da violenta ditadura franquista. A produção artística de
Hidalgo não foi exibida na Espanha, sendo Flor y hombre de 1969, uma série fotográfica, exibida em locais
privados. Nesta série, composta de 12 fotografias, o artista mostra um homem com seu rosto cortado e,
portanto, irreconhecível que enquanto se despe coloca sua flor em um suporte e, ao passo que tira a roupa a
flor aumenta de tamanho e na última imagem a flor parece ter engolido seu pênis que, ereto, passa a ocupar
o lugar do pistilo. (VIVENTE ALIAGA; G. CORTÉS, 2014).

No Brasil, o artista, arquiteto, escritor e performer Flávio de Carvalho (1899-1973), lança New Look
(1956) e sai pelas ruas de São Paulo vestindo uma saia, passando a ser considerado o pioneiro a colocar em
discussão a ortodoxia de gênero em nosso país (Imagem 1)

766
Imagem 1: Flávio de Carvalho, Experiência nº 3 e lançamento do “new look”

As transformações ocorridas nos anos 60/70 nas sociedades ocidentais trouxeram a pauta do dia as
relações afetivas e práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo. É por volta desse período que surge nos
Estados Unidos, os estudos sobre gays e lésbicas, se desenvolvem e se intensificam os movimentos em favor
do combate ao preconceito, a exclusão e opressão aos homossexuais.

Podemos dizer que a noite de 28 de junho de 1969, quando a polícia invadiu o bar Stonewall (Ima-
gem 2) é o marco histórico do surgimento do movimento gay em New York e provocou, desde então, mu-
danças significativas em relação a comunidade LGBTT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
tanto nos Estados Unidos quanto em diversos países.

Imagem 2: Stonewall Inn. http://www.outsmartmagazine.com/2016/06/the-first-national-lgbt-monument-president-


-obama-memorializes-the-stonewall-inn/

Stonewall Inn passou a ser o símbolo da resistência do movimento LGBTT nos Estados Unidos, re-
cebendo em 1979 uma grande homenagem encomendada por Peter Putnam (1927–1987), um rico patrono
das artes da Luisiana e curador do Mildred Andrews Fundation, que encomendou a George Segal o Momu-
mento de Libertação Gay (Imagem 3).

767
Imagem 3: Gay Liberation Monument, George Segal, 1992.
http://n3wy0rkc1ty.blogspot.com.br/2007/04/gay-liberation.html

O Gay Liberation Monument só foi instalado e inaugurado em 1992, depois de uma longa jornada
de processos judiciais e levantes do movimento LGBTT. Em 24 de junho de 2016, o então Presidente Barack
Obama, oficializou o bar Stonewall Inn como monumento nacional.

HIV/AIDS/Ativismo/Artivismo

Artistas como Felix Gonzalez-Torres, José Leonilson, David Wojnarowicz entre tantos outros, en-
xergaram a possibilidade de incorporar a AIDS como tema de seus trabalhos questionando as perdas (de
parentes e amigos) causadas pela doença e alguns por terem sido contaminados pelo HIV (Imagens 4, 5 e 6).

Imagem 4: Installation view of Itinerari. Castello di Rivara, Turino, Italy. 1991. Felix Gonzalez-Torres.
http://felixgonzalez-torresfoundation.org/

768
Neste contexto de transformações advindas de posicionamentos políticos sobre os direitos LGBTT, das de-
núncias sobre violência e assassinato de membros da comunidade, as Artes Visuais (do desenho a perfor-
mance) passaram a traduzir por meio de práticas artísticas questões relativas a comunidade LGBT.

Hoje nos deparamos com uma infinidade de imagens produzidas por artistas ativistas do movimen-
to e estes trabalhos estão adentrando as principais mostras de artes do mundo como é o caso da Bienal de
São Paulo que em sua 31ª Edição (2014) dedicou espaços a artistas como o filósofo/artista Giuseppe Campu-
zano e seu Museo Travesti del Peru (Imagem 8) e Yeguas del Apocalipsis - As Duas Fridas, de Francisco Casas
e Pedro Lemebel/Chile (Imagem 9).

769
A produção artística contemporânea vem somar à luta incansável d@s que estão diretamente
empenhad@s em reconceitualizar a visão pejorativa e depreciativa sobre a comunidade LGBT e, principal-
mente, gay. Sendo assim, as Artes Visuais assumem papel relevante quando seus criadores se propõem a
tratar de temas tão delicados e as lançam aos olhos de uma sociedade conservadora. “(...) as representações
também podem ser consideradas o meio pelos quais os indivíduos, grupos e instituições manifestam suas
ideias e suas percepções de mundo, sua imaginação a fim de estabelecer uma relação de comunicação (...)”.
(SILVA, 2008, p. 03).

No movimento artístico denominado Queer Art encontramos três vertentes que se sobressaem: arte
erótica (com ênfases no homoerotismo), arte conceitual e arte contextual (com ênfases nas pautas do movi-
mento LGBT). Tanto na arte conceitual quanto na arte contextual se destacam artistas como Pierre & Gilles
(Imagem 8), Robert Mapplethorpe (Imagem 9), Fernando Carpaneda (Imagem 10) entre outros.

Considerações Finais

Nosso presente vem sendo marcado pela contradição entre conquistas de direitos LGBTT e extermí-
nio. É urgente repensarmos a escolarização como processo de humanização dos humanos e, neste sentido, as
Artes Visuais, o Artivismo LGBTT se constituem em Utopias Pedagógicas como gesto de (RE)EXISTÊNCIA 

Responsáveis por suas criações @s artistas têm o poder de elaborar imagens e criar objetos que serão
expostos ao público, e estes, carregam em si um conjunto de elementos que constituem um discurso visual. Tal

770
discurso só poderá ser decodificado por alguém que tenha pelo menos um conhecimento mínimo da gramá-
tica visual. O que reforça a importância do componente curricular Arte como obrigatório na escolarização de
crianças, adolescentes e adultos. Mas, também, da presença d@ professor@ licenciad@ em Artes Visuais.

Aprender a ler imagens da arte e da cultura visual é aprender sobre nós mesmos e sobre os outros.
Os outros estão ao nosso lado e como nós vivem enfrentando um mundo que foi se constituindo como lugar
da heteronormatividade em todos os aspectos da vida em sociedade. A sala de aula tem muito que apren-
der com a arte contemporânea, pois esta nos causa dúvidas, nos provoca, nos inquieta e nos desestabiliza
(BENDO, 2010), uma vez que problematiza as estruturas enrijecidas que tentam modelar a tod@s apoiada
em plataformas políticas que beneficiam um projeto neoconservador e neoliberal

Observamos na arte contemporânea uma abertura de criações que agregam interculturalidades,


transitos por territorialidades, incorporação e mescla de elementos do presente e do passado, bem como
o trabalho coletivo ou em duplas de artistas (EFLAND, FREEDMAN, STUHR, 2003). Uma educação con-
temporânea e um ensino de arte contemporânea pautada na humanização é libertadora, é reconstrutora.
Promove a (re)socialização, a (re)cognição e (re)invenção (SOUZA, 2004) de cada um de nós.

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SOUZA, João Francisco de. E a educação: ¿ ¿quê??.; a
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educação na sociedade e/ou a sociedade na educação. Re-
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-er%C3%B3tica-1969.-12-fotos-color.-60x50-cm-cu- -iorque/
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771
BRINCANDO COM A MÚSICA
NA SALA DE AULA
Geanne Soares da Silva- UFPE

Introdução

O presente artigo tem como objetivo trazer uma reflexão crítica sobre a prática docente, buscando
aperfeiçoar a mesma durante o processo de formação acadêmica. É um relato das experiências observadas
e vivenciadas para a disciplina de Estágio Curricular Supervisionado no Ensino de Música da Universidade
Federal de Pernambuco. Neste relato serão apresentadas atividades de observações e regências, onde houve
a oportunidade de vivenciar tudo o que aprendemos durante o curso.

O estágio foi desenvolvido em uma creche que funciona de segunda feira à sexta feira e atende
crianças com alguns meses de vida até 4 anos de idade. A prática docente do estágio foi desenvolvida no G3
(grupo 3) uma turma composta de 20 alunos todos com 3 anos de idade, num período de 9 semanas, nas
terças feiras, de 11 de abril à 27 de junho, das 08:00h às 10:00h.

1. Por que vamos ensinar música na escola básica?

O ensino da música na escola básica não tem como objetivo formar músicos, mas ela tem que ser
vista como um fim e não como um meio ou um recurso para outros conhecimentos, que é o que observamos
nas escolas, mesmo a música estando na grade curricular seu ensino ainda não está sistematizado. Nesse
contexto, o papel da música é proporcionar o desenvolvimento da sensibilidade artística e da criatividade,
oferecendo aos alunos um conhecimento amplo, fazendo com que eles vivenciem e desenvolvam a sua
própria musicalidade mediante experiências criativas, despertando a sensibilidade de perceber, imaginar e
criar, dando voz à expressão do aluno, e fazendo com que tudo isso contribua para a construção do conhe-
cimento e da formação humana de forma ampliada.

Queiroz (2014) considera a música como fenômeno humano e cultural, singular e universal, e diz
que a música retrata aspectos sociais, comportamentos e valores humanos. Por meio da música são evoca-
dos sentimentos, ela está presente em vários momentos da vida, proporcionando um grande impacto no
funcionamento do cérebro e da inteligência, oferecendo estimulos ricos e significativos, facilitando desco-
bertas e motivando a aprendizagem. Na escola básica o ensino da música tem como objetivo atuar como
agente de transformação social, tornando a música acessível a todos e fazendo com que os alunos tenham
uma vivência musical como linguagem e forma de expressão humana se relacionando de forma direta e
por inteiro com a música, seja cantando, tocando, percebendo, discernindo, ouvindo, compreendendo e se
emocionando, sempre considerando o contexto sociocultural de cada um, explorando a criação musical a
partir das experiências musicais trazidas pelos alunos.

772
2. Observar e interagir para compreender:
desenvolvendo a complicada arte de ver

A observação é a primeira etapa para a ação pedagógica, neste contexto em que estagiamos tivemos
2 dias de observação sem atuar ensinando, mas nos dias de regência das aulas continuamos observando,
sempre de forma interativa.

A instituição é composta por alunos e funcionários de diferentes níveis sociais e culturais que con-
vivem e interagem entre si de forma agradável. O cotidiano da instituição envolve: as crianças ao chegarem
tomam o café da manhã e logo após vão para um momento denominado pela instituição de “Bom dia!”,
que acontece no pátio. Nesta situação, as crianças cantam, dançam, assistem vídeos, interagem entre si e
comprimentam um ao outro com bom dia. As 08:30h os professores designam as salas de cada grupo, pois
a instituição é dividida em várias salas: a sala do berçário, onde ficam os bebês; sala de faz de contas, onde
possui vários livros de histórias infantis; sala de letras e números, onde as crianças têm contato com as le-
tras e números; sala de artes, onde as crianças pintam e desenham; e a sala de movimento, onde tem vários
brinquedos e colchonetes para as crianças brincarem à vontade. Enfim, a instituição tem uma boa estrutura
física que atende as necessidades pedagógicas.

A creche funciona em grupos: o grupo de maternal e grupos 1, 2, 3, e 4. Cada um desses grupos


possui um professor e três ajudantes, e para ir para as salas da creche existe dia e horário determinado para
cada grupo, e o tempo de permanência em cada sala é de 1h. As 09:30h a creche oferece um lanche e os pro-
fessores dão banho nas crianças. As 10h elas vão para outra sala, e esse processo se dá durante todo o dia até
as 17h que é o horário que encerra o expediente da instituição. Nesta instituição não possui aulas de música.
O contato dos sujeitos com a música se dá nas ocasiões em que os professores cantam no momento do “Bom
dia!” e nas salas, quando querem chamar a atenção dos alunos para fazerem silêncio, para formarem uma
fila etc., ou seja, a música é utilizada como um meio de conseguir algo da turma. Notamos que as experiên-
cias musicais que as crianças trazem nem sempre são valorizadas e aproveitadas, os professores são quem
escolhem as músicas que irão cantar. Na turma que estagiamos observamos que uma criança queria que
cantasse uma música, mas a professora responsável pelo grupo a interrompeu sugerindo se cantasse outra.

Observamos o G3 (grupo 3, com crianças de 3 anos) no período de 8h às 10h nas Terças feira, e
neste dia após o “Bom dia!” o G3 vai para a sala de movimento onde possui vários brinquedos e até alguns
instrumentos como clavas e chocalhos que foram feitos com garrafas pet. Neste momento a professora deixa
as crianças livres para brincarem e após o lanche vão para a sala de artes. Mas, no primeiro dia de observa-
ção, após o lanche, foram para a sala de faz de conta, e lá a ajudante contou uma história. Nesse momento
observamos que as crianças interagiam de forma bastante criativa imitando os personagens e até acrescen-
tando ideias à história.

3. Regência de aula de música: a experiência prática

Na prática docente procuramos fazer a junção das ferramentas (teoria musical) com os brinquedos
(jogos musicais), termos que Brito (2010) articula com as ideias de Ruben Alves. “Não devemos (nem po-
demos) aprisionar a música em bancos escolares duros e imóveis. Música é movimento, aventura, criação,
sensação, devir, e desse modo, considero, deve estar presente nos planos da educação.” (BRITO, 2010, p. 4).
Nós aplicamos atividades de musicalização utilizando muito o corpo e sempre nos referindo a jogos e brin-
cadeiras, principalmente pelo fato das aulas terem sido ministradas numa sala onde as crianças já sabiam,
pelo cotidiano, que ao chegar lá iriam brincar, e se movimentar. Utilizamos essa metodologia para que as

773
crianças pudessem vivenciar a música de forma ativa. “A criança, por meio da brincadeira, relaciona-se com
o mundo que descobre a cada dia e é dessa forma que faz música: brincando.” (JOLY, 2003, p. 116).

Trabalhamos os seguintes conteúdos: timbre, improviso, pulso, andamento, altura, melodia, ritmo,
pausa, intensidade e ostinato; todos esses conteúdos foram explorados de forma lúdica, sempre com jogos e
brincadeiras. Eles foram organizados de forma a acrescentar algo novo a cada aula, para que as crianças pu-
dessem ter um amplo contato com a música. Nas atividades propostas, como citado anteriormente, utiliza-
mos bastante o corpo e também alguns instrumentos como clavas, xilofone (com teclas de cerâmica), flauta
doce, flauta de êmbolo, chocalhos, e o spring drum (instrumento que imita o som do trovão). De modo geral
conseguimos alcançar os objetivos que propomos, mesmo com o desafio da idade das crianças, pois elas têm
dificuldade para focar em uma atividade por muito tempo, que é uma característica da faixa etária, e o fato
da sala ter muitos brinquedos fazendo com que as crianças se dispersassem mais rápido das atividades. Na
avaliação contínua observamos que apesar das dificuldades as crianças vivenciaram e exploraram bastante
os conteúdos trabalhados.

Nesse sentido, importa, prioritariamente, a criança, o sujeito da experiência, e não a mú-


sica, como muitas situações de ensino musical consideram. A educação musical não deve
visar à formação de possíveis músicos do amanhã, mas sim à formação integral das crianças
de hoje (BRITO, 2003, p.46).

A seguir, apresentamos os planos de aula e as reflexões sobre seu desenvolvimento.

Plano de Aula 1
Data: 25/04/2017 Horário: das 08:00 ás 10:00 Público alvo: Ensino Infantil (3 anos)

OBJETIVOS
Geral: Vivenciar elementos da música, relacionados à exploração vocal, corporal e de objetos sonoros diversos.
Específicos: Aprender as melodias das canções: Qual o som? e Cabeça, ombro, joelho e pé; Explorar os timbres do
corpo; Identificar sons produzidos pelo corpo.

CONTEÚDOS
• Melodia, Timbre e Andamento.
METODOLOGIA
• No primeiro momento será entoada com as crianças a canção: Cabeça, ombro, joelho e pé, sinalizando as partes
do corpo.
• No segundo momento será entoada a canção Qual o som? E cada vez que cantada será executado algo sonoro com
o corpo (palmas, estalos, batidas com os pés no chão, voz, etc.) e com a flauta doce, e ao fim da execução as crianças
irão adivinhar que som estará sendo executado;

RECURSOS
• Flauta doce

AVALIAÇÃO
• Avaliar se as crianças executaram as melodias e ideias rítmicas propostas;
• Se as crianças identificaram os sons produzidos pelo corpo.
BIBLIOGRAFIA
Internet

774
Nesta aula houve um grande envolvimento das crianças. No primeiro momento cantamos a me-
lodia “Cabeça, ombro, joelho e pé” sinalizando as partes do corpo e repetimos mudando o andamento. As
crianças conseguiram realizar e acompanhar a atividade na medida em que a canção ficava mais rápida ou
mais lenta. Quando percebemos que as crianças estavam começando a dispersar passamos para a próxima
atividade. No segundo momento as crianças se sentaram e ensinamos a melodia “Qual o som?”. Uma de
nós ficou num lugar da sala, fora do alcance da visão das crianças e fazia sons com o corpo (palmas, estalos,
batidas com os pés no chão, voz etc.) e a flauta, enquanto a outra ficou junto com as crianças cantando a
melodia e questionando qual o som estava sendo realizado. Depois as crianças foram uma por vez realizar
algum som para as outras descobrirem qual som estava sendo realizado. Nesta segunda atividade a crianças
ficaram mais envolvidas. Neste dia concluímos que a aula de música é mais interessante quando o aluno
participa criando e não apenas realizando o que o professor solicita.

Plano de Aula 2
Data: 02/05/2017 Horário: das 08:00 ás 10:00 Público alvo: Ensino Infantil (3 anos)

OBJETIVOS

Geral: Vivenciar elementos da música, relacionados a exploração vocal, corporal e de objetos sonoros diversos.
Específicos: Aprender as melodias e as ideias rítmicas das canções: Qual o som? e Caranguejo. Explorar os timbres
do corpo. Identificar sons produzidos pelo corpo. Identificar sons de alguns instrumentos.

CONTEÚDOS

• Melodia, Rítmo e Timbre.

METODOLOGIA

• No primeiro momento será entoada a canção Qual o som? E cada vez que cantada será executado: algo sonoro
com o corpo (palmas, estalos, batidas com os pés no chão, etc), e alguns instrumentos musicais. Ao fim da execução
as crianças irão adivinhar que som está sendo executado;
• No segundo momento será entoada com as crianças a canção Caranguejo, depois serão acrescentadas palmas,
logo após iremos cantar a canção andando e na hora de bater palmas iremos parar, em seguida iremos mudar para
outros gestos sonoros.

RECURSOS

• Flauta doce, Chocalho, Xilofone, Pandeiro e Clavas.

AVALIAÇÃO

• Avaliar se as crianças executaram as melodias e ideias rítmicas propostas;


• Se as crianças identificaram os sons produzidos pelo corpo, e pelos instrumentos musicais.

BIBLIOGRAFIA

• Partituras das músicas: “Qual o som?” e “Caranguejo”

No segundo dia repetimos a atividade que foi realizada com a música “Qual o som?”, só que desta
vez acrescentamos mais instrumentos, utilizamos o xilofone, o chocalho, o pandeiro, as clavas, e a flauta
doce. Foi um momento de exploração desses instrumentos, pois eles se esqueceram de usar o corpo e pensa-
ram mais em tocar os instrumentos. Na segunda atividade ensinamos outra melodia intitulada “Carangue-
jo” e depois acrescentamos gestos sonoros nas células rítmicas que não tinham letra, logo após continuamos

775
cantando andando pela sala, e na hora do gesto sonoro parávamos de andar e fazíamos só o gesto sem voz.
Esta segunda atividade não funcionou bem, pois as crianças se dispersaram mais rápido.

Observamos que quando trabalhamos com um contexto longe da realidade do aluno, o que está sendo
ensinado não possui significado para ele, assim sendo, não desperta o interesse para o conteúdo que está
sendo trabalhado.

Plano de Aula 3
Data: 16/05/2017 Horário: das 08:00 ás 10:00 Público alvo: Ensino Infantil (3 anos)

OBJETIVOS

Geral: Vivenciar elementos da música, relacionados a exploração vocal, corporal e de objetos sonoros diversos.
Específicos: Desenvolver a atenção. Explorar os timbres do corpo. Estimular a percepção de som ascendente e
descendente. Explorar a imaginação e a criatividade.

CONTEÚDOS

• Timbre, Improviso e Altura.

METODOLOGIA

• No primeiro momento será contada uma história: Plic plic um barulho da chuva; onde todos iram sonorizar, utili-
zando alguns instrumentos e sons produzidos pelo corpo;
• No segundo momento será realizada a brincadeira morto vivo, que consistirá, em o professor tocar a flauta de êm-
bolo . Para o som descendente (Indo do agudo ao grave) morto, para o som ascendente (Indo do grave ao agudo)
vivo.

RECURSOS

• Livro de histórias, o corpo e instrumentos musicais (chocalhos, spring drum).

AVALIAÇÃO

• Participação nas atividades propostas.

BIBLIOGRAFIA

• Plic plic um barulho da chuva

Neste planejamento optamos primeiramente por trabalhar sonorizando, juntamente com as crian-
ças uma história, pois como observamos em uma aula, as crianças nessa faixa etária gostam de criar e
fantasiar. Sendo assim, levamos essa atividade com o objetivo não somente de desenvolver a atenção, mas
também de explorar alguns instrumentos e a imaginação e criatividade de cada criança ao utilizar o corpo.
Depois trabalhamos a percepção das delas em relação ao som grave e agudo usando uma brincadeira muito
conhecida (morto-vivo).

Ao fim desta aula refletimos sobre fazer música brincando, principalmente no contexto da educação
infantil, e na sala em que ministramos as aulas que era onde as crianças brincavam. É sempre importante
considerarmos o contexto em que estamos inseridos.

776
Plano de Aula 4
Data: 06/06/2017 Horário: das 08:00 ás 10:00 Público alvo: Ensino Infantil (3 anos)

OBJETIVOS

Geral: Vivenciar elementos da música, relacionados a exploração vocal, corporal e de objetos sonoros diversos.
Específicos: Explorar os sons produzidos pelo corpo. Aprender as melodias e as ideias rítmicas das canções
propostas.

CONTEÚDOS

• Melodia e Rítmo.

METODOLOGIA

Atividade 1
• No primeiro momento o professor ensinará a música escravos de jó.
• No segundo momento os alunos irão cantar a música pulando para dentro dos bambolês, enquanto os mesmos
estarão no chão; quando a música disser, tira, põe, deixa ficar, as crianças irão pular para fora e para dentro do bam-
bolê, e continuarão a melodia pulando como no início.

Atividade 2
• No primeiro momento o professor ensinará aos alunos uma melodia do barbatuques utilizando gestos sonoros.
• No segundo momento todos executaram a melodia com os gestos.

RECURSOS

• Corpo e bambolês.

AVALIAÇÃO

• Será avaliado a participação das crianças nas atividades;


• Se as crianças executaram as melodias e ideias rítmicas das canções propostas;

BIBLIOGRAFIA

• You Tube

Neste dia, trabalhamos na aula a música “Escravos de Jó”, utilizando bambolês. Nessa atividade
nossa intenção foi proporcionar às crianças a vivência de cantar uma melodia e trabalhar a questão motora
enquanto isso, essa atividade funcionou, pois elas conseguiram compreender e executar a atividade. A se-
gunda atividade não fizemos, pois era uma melodia grande e as crianças não conseguiriam decorar, logo,
decidimos repetir a atividade “Cabeça, ombro, joelho e pé” trabalhada na primeira aula. Na medida em que
íamos repetindo a melodia acrescentávamos uma pausa na fala e fazíamos somente o gesto; ex: quando co-
meçávamos cabeça só fazíamos o gesto e voltávamos a cantar e gesticular ombro, joelho e pé; depois quando
repetia fazia só o gesto de cabeça e ombro e voltávamos a cantar e gesticular joelho e pé, assim sucessivamen-
te até ficar só o pé com o som e o gesto. Fazendo a atividade dessa forma tínhamos o objetivo de trabalhar a
atenção e introduzir a noção de pausa (silêncio).

Esta aula nos fez refletir sobre a importância de se considerar a faixa etária dos alunos quando for-
mos planejar uma aula e as atividades, e que o plano de aula tem flexibilidade, ele não é algo rígido.

777
Plano de Aula 5
Data: 13/05/2017 Horário: das 08:00 ás 10:00 Público alvo: Ensino Infantil (3 anos)

OBJETIVOS

Geral: Vivenciar elementos da música, relacionados a exploração vocal, corporal e de objetos sonoros diversos.
Específicos: Vivenciar a intensidade, o pulso e a pausa musical. Explorar o corpo utilizando células rítmicas.

CONTEÚDOS

• Pulso, Rítmo, Intensidade e Pausa.

METODOLOGIA

• No primeiro momento o professor executará um pulso em um tambor para as crianças reproduzirem juntamente
com ele utilizando palmas, em seguida o professor irá alterar a pulsação executando-a num andamento mais rápido
e mais lento e as crianças continuarão o imitando;
• No segundo momento o professor pedirá para as crianças reproduzirem o que será feito no tambor com palmas,
e no momento que estiver silêncio elas terão que ficar paradas como estátua, em seguida ele executará, no tambor,
células rítmicas para as crianças repetirem utilizando partes diferentes do corpo (ex: bater palmas, bater os pés no
chão, bater as mãos nas pernas, no peito etc.), os exemplos o professor fará mudando a intensidade (forte e fraco).

RECURSOS

• Tambor e o corpo.

AVALIAÇÃO

• Será avaliada a participação das crianças nas atividades propostas pelo professor.

BIBLIOGRAFIA

• Internet

Na quinta aula incorporamos como conteúdo a pausa, que havíamos começado a trabalhar na aula
anterior, além do pulso. Na atividade do pulso nós não conseguimos um tambor e utilizamos clavas, mas
funcionou. No início fizemos com palmas como diz no plano, mas depois de um tempo percebemos que
somente bater palmas estava ficando monótono para as crianças, aí propomos que as crianças andasse na
medida em que batíamos o pulso com as clavas, dando passadas mais lentas ou mais rápidas, de acordo com
a variação de andamento que era realizada. Na segunda atividade trabalhamos células rítmicas sendo repro-
duzidas com gestos sonoros e a pausa através de outra infantil descrita no de aula.

Nesta aula percebemos que muitas vezes a forma como planejamos uma atividade pode não ser
eficaz para a compreensão de algo. Foi o que aconteceu, modificamos a aplicação de uma atividade passan-
do a incorporar todo o corpo na mesma ao invés de somente palmas, desta forma utilizando todo o corpo
notamos que a compreensão das crianças foi melhor adquirida.

Plano de Aula 6
Data: 20/06/2017 Horário: das 08:00 ás 10:00 Público alvo: Ensino Infantil (3 anos)

OBJETIVOS

Geral: Vivenciar elementos da música, relacionados a exploração vocal, corporal e de objetos sonoros diversos.
Específicos: Vivenciar o pulso musical. Estimular a percepção de grave e agudo.

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CONTEÚDOS

• Pulso, Andamento e Altura.

METODOLOGIA

• No primeiro momento o professor cantará a música “Jeito diferente”;


• No segundo momento será realizada a brincadeira morto vivo, onde o professor ira tocar a flauta doce fazendo
glissandos ascendentes e descendentes. Para o som descendente morto, para o som ascendente vivo.

RECURSOS

• Flauta doce

AVALIAÇÃO

• Será avaliada a participação das crianças nas atividades propostas pelo professor.

BIBLIOGRAFIA

• Internet

No sexto dia iniciamos a aula trabalhando uma atividade motora, buscando estimular a coordena-
ção motora e a atenção dos alunos ao fazer os movimentos que a música solicitava. Na segunda atividade
decidimos mais uma vez trabalhar a brincadeira “morto-vivo”, desta vez fazendo glissandos para que as
crianças identificassem se os sons eram ascendentes ou descendentes.

Neste dia concluímos que é fundamental fazer uso de atividades de musicalização que explorem
o universo sonoro, levando as crianças a ouvirem com atenção comparando os sons e buscando identi-
ficar as diferentes fontes sonoras, e o corpo, para que a criança desenvolva a consciência do seu corpo
no espaço.

Plano de Aula 7
Data: 27/06/2017 Horário: das 08:00 ás 10:00 Público alvo: Ensino Infantil (3 anos)

OBJETIVOS

Geral: Vivenciar elementos da música, relacionados a exploração vocal, corporal e de objetos sonoros diversos.
Específicos: Desenvolver a atenção. Explorar os timbres do corpo, a imaginação e a criatividade. Estimular a
percepção de mudanças de andamento e intensidade. Vivenciar o pulso, a pausa, a melodia, o ostinato, e células
rítmicas de um gênero musical nordestino.

CONTEÚDOS

• Timbre, Improviso, Pulso, Andamento, Intensidade, Pausa, Rítmo, Melodia e Ostinato.

METODOLOGIA

• No primeiro momento será contada uma história: Foom Foom Um barulho da cidade; onde todos iram sonorizar,
utilizando sons produzidos pelo corpo;
• No segundo momento o professor fará um círculo com os alunos e realizará a brincadeira do tambor imaginário,
onde ele mostrará que tem um tambor imaginário na mão e pedirá para os alunos o imitarem com palmas na me-
dida que ele for tocando o tambor. O professor executará uma pulsação rítmica e quando todos estiverem batendo
palmas juntos o professor irá modificar o andamento (tocando o tambor imaginário mais lento e mais rápido) e a

779
intensidade (mais forte e mais fraco), acrescentando também pausas (momento em que o professor fingirá que irá
tocar mas não tocará, e com isso as crianças não baterão palmas).
• No terceiro momento o professor irá ensinar para as crianças um ostinato rítmico do baião e depois o professor
irá dividir a turma em dois grupos onde cada um executará uma parte do ostinato e ele tocará a música Asa Branca
enquanto o ostinato é executado pelas crianças.

RECURSOS

• Livro de histórias; O corpo; Flauta doce.

AVALIAÇÃO

• Será avaliada a participação das crianças nas atividades propostas; e se os alunos perceberam as mudan-
ças de andamento e intensidade.

BIBLIOGRAFIA

• Foom Foom Um barulho da cidade.


• Música na Escola Um Projeto de Educação Musical para professores e alfabetizadores Guia das Oficinas
Série Didática

No último dia da regência de aulas optamos por trabalhar atividades que explorassem o máximo de
conteúdos que havíamos vivenciado com as crianças durante todo o estágio, com o objetivo de observar se
elas conseguiram reter algum conhecimento dos conteúdos. No final da aula fizemos uma apresentação da
música “Asa Branca” com as crianças no pátio da instituição.

Chegamos à conclusão de que as crianças corresponderam às nossas expectativas, e os aspectos


musicais que trabalhamos durante o período das aulas foram explorados, vivenciados e assimilados
por elas.

Conclusão: Breves considerações sobre a relação


entre teoria e prática de ensino de música na escola básica

O estágio supervisionado é a base que nós como futuros professores precisamos para conviver com
a realidade em sala de aula. Nesse trabalho mostramos que no contexto escolar o objetivo é a vivência mu-
sical como relata Benvenuto (2012) concedendo aos alunos a oportunidade de expandir e aprofundar suas
relações com a música. Na educação infantil, onde atuamos, procuramos promover o que Kater aborda um
conhecimento amplo, um desenvolvimento criativo e participativo, além do contato prazeroso, para que as
crianças pudessem desenvolver e vivenciar sua própria musicalidade, tendo uma relação direta e por inteiro
com a música, explorando aspectos musicais e instrumentos, se movimentando e vivenciando a percussão
corporal como aborda Queiroz (2014).

Na prática do estágio aprendemos que, após a observação, o próximo passo, para a prática docente
é o planejamento de aula, pois, segundo Romanelli (2006), ele auxilia nessa experiência docente mostran-
do que não precisamos ficar presos a ele. Ainda de acordo com Romanelli (2006), na sala de aula surgem
situações não previstas que requer uma “improvisação docente”. Com isso temos que ter em mente que o
planejamento não é rígido, ele deve ser flexível. Na sala de aula refletimos sobre a gestão no contexto da aula.
Muitas vezes organizamos a aula prevendo que vai acontecer do jeito que foi planejado, e vemos que na reali-
dade acontece de outra forma. Segundo Andrade (ANDRADE, Klesia Garcia - Planejamento de aula_alg…

780
orientações.pdf), o plano de aula tem como característica a sistematização dos conhecimentos, atividades e
procedimentos, para a realização de uma aula e para se alcançar os objetivos que são propostos.

Esses autores que lemos e refletimos foram quem nos guiaram ao planejarmos as aulas do estágio.
Nós refletimos que, no planejamento das aulas tem que considerar principalmente o contexto onde serão
ministradas as aulas e o público alvo. No processo de ministração das aulas é preciso valorizar a experiên-
cia dos alunos. Na nossa prática docente observamos uma situação que nos fez refletir que cada aluno traz
consigo uma bagagem musical e que devemos dar importância à vivência de cada um deles. Uma criança
nos pediu para cantarmos uma música que ninguém conhecia, pedimos para ela cantar, mas no mesmo
momento a professora da instituição a interrompeu e sugeriu que ela cantasse outra. Esse fato nos levou a
pensar, porque desprezar o que o aluno trouxe? De acordo com Queiroz (2014) o aluno traz para a sala de
aula algo que é significativo da vivência dele. É importante usar casos como esse para potencializar situações
na sala de aula, pois situações assim desencadeiam ideias para serem trabalhadas em aula.

Para avaliar as aulas que ministramos e o que as crianças conseguiram adquirir de conhecimento
musical, nos baseamos no fato de a avaliação ser um processo, um acompanhamento, e que nela tem que ser
considerado o antes, o durante e o depois.

No contexto de educação infantil em que atuamos, chegamos à conclusão que nós, como docentes,
temos que saber fazer a junção do que é teórico com o que é prático e trabalharmos conceitos da música uti-
lizando os métodos ativos, principalmente através de brincadeiras, pois a criança interage brincando. Logo,
concluímos que o professor tem que perceber e aplicar metodologias que facilite a compreensão dos alunos.

Neste trabalho tentamos mostrar aspectos resultantes de reflexões feitas no curso de licenciatura
que guiaram a nossa prática docente para que a música fosse trabalhada nas aulas de Educação Infantil,
de forma eficaz através de brincadeiras. Durante todo esse processo de descobertas e aprendizagens, foi de
suma importância para a nossa formação acadêmica, e construção não só profissional, mas também pessoal,
refletirmos sobre a importância do papel do professor no processo de mediação do conhecimento e ainda
mais, fez-nos reconhecer que o aluno é o sujeito ativo no processo da aprendizagem.

Referências

KATER, Carlos. “Por que Música na Escola”: algumas BRITO, Teca Alencar de. Música na educação infantil.
reflexões. São Paulo: Editora Peirópolis, 2003
BENVENUTO, J. E. A.; ALBUQUERQUE, L. B.; ROGÉ- BRITO, Antonia Edna. Narrativa escrita na interface com
RIO, Pedro. Música para a formação humana: Reflexões a pesquisa e a formação de professores. In: MORAES,
sobre a importância da educação musical no contexto Dislane Zerbinatt; LUGLI, Rosária Silvana Genta.( Org.).
escolar. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
QUEIROZ, Luís R. Música na escola. In. Boletim Arte JOLY, Ilza Zenker Leme. Educação e educação musical:
na Escola. conhecimentos para compreender a criança e suas re-
lações com a música. In: DEL BEN, Luciana; HENTS-
ROMANELLI, Guilherme G. B. Planejamento de aulas de
CHKE, Liane. Ensino de Música: propostas para pensar
estágio. In. Práticas de ensinar música. Org. Teresa Ma-
e agir em sala de aula. São Paulo: Moderna, 2003.
teiro e Jusamara Souza. Porto Alegre: Sulina, 2006.
ANDRADE, Klesia Garcia - Planejamento de aula_alg…
orientações.pdf

781
EDUCAÇÃO MUSICAL E O DIÁLOGO
COM OUTRAS LINGUAGENS:
CAMINHOS PARA CONSTRUÇÃO DO SABER
ATRAVÉS DE PRATICAS INTERDISCIPLINARES.
Valnei Souza Santos- Universidade Federal da Bahia

Introdução

A construção do diálogo interdisciplinar407 perpassa pela necessidade da ampliação da base em


que estrutura-se determinado conhecimento, ao imaginar os diversos caminhos possíveis de serem se-
guidos, compreendemos que o ponto de chegada pode ser alcançado por caminhos bem distintos. Ao
apontar os caminhos para o levantamento do conhecimento, é preciso ficar claro que essas trajetórias
necessitam de conexões que permitam um fluxo continuo de informações que servirão de guia para o
alcance de uma unidade. Pensando sobre conexões que, ao serem feitas, tornarão cada vez mais robusto o
conhecimento adquirido, podemos iniciar uma reflexão sobre como a escola poderá beneficiar-se com a
construção de um diálogo interdisciplinar e como a educação musical pode dialogar com outras lingua-
gens e outros saberes.

Criar fios condutores que proporcionem uma comunicação informativa e formativa, tornam o pro-
cesso de ensino-aprendizagem mais amplo ao passo que esse diálogo abrange temáticas e conteúdos diver-
sos, concebendo os processos históricos e culturais, tornando mais dinâmico e inovador o ato de aprender.
Desta forma, para que possamos compreender determinados fenômenos sob diferentes perspectivas, é im-
portante que haja a utilização de saberes construídos através das conexões entre as disciplinas. Segundo os
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio no Art. 8º, parágrafo I:

A Interdisciplinaridade, nas suas mais variadas formas, partirá do princípio de


que todo conhecimento mantém um diálogo permanente com outros conheci-
mentos, que pode ser de questionamento, de negação, de complementação, de
ampliação, de iluminação de aspectos não distinguidos. (BRASIL, 98).

Praticar a interdisciplinaridade requer uma participação coletiva e uma interação entre professor,
aluno e entre todos os conteúdos e tarefas propostas e abordadas no contexto escolar.

407. A interdisciplinaridade é a reunião ou ligação de várias disciplinas em torno de um único tema ou objeto de pesquisa respeitando as especifici-
dades de cada linguagem envolvida, visando favorecer principalmente o processo de aprendizagem levando em consideração os saberes dos alunos.
Fazenda (2008). Para um maior aprofundamento sobre interdisciplinaridade pesquisar Fazenda (2008).

782
Com isso, cabe ao professor intervir e provocar em seus alunos insights408 que serão ponto de partida
para decodificação de informações que, muito provavelmente, não seriam alcançadas espontaneamente.

Para Gadotti (2003, p. 16) “[...] o professor é um mediador e não um transmissor do conhecimen-
to diante do aluno que é o sujeito da sua própria formação”. Desta forma, o aluno precisa ser o construtor
do seu conhecimento a partir do que faz e do que vive, tornando concreto os saberes, na medida em que é
estimulado(a) a criar conexões entre a vivência e prática.

Para que o professor seja capaz de mediar o processo de aprendizagem dentro da perspectiva in-
terdisciplinar, horizontal e dialógica, (CANDUSSO, 2009), ele precisa desenvolver competências que pos-
sibilitem a conjugação de diferentes saberes disciplinares, analisando e detalhando os porquês que surgirão
durante o processo de intermediação do saber. “A busca incessante do aperfeiçoamento, ou seja, da melhora
da qualidade do que fazemos, tornou-se um imperativo de sobrevivência” (COSTA, 2001, p. 46), em con-
cordância com a afirmação de Costa, salienta-se a necessidade da avaliação e ressignificação da sua prática
docente, a fim de tonar-se mais flexível e “intermulticultural” (Gadotti 2003). Ao atentar-se sobre a hetero-
geneidade presente no contexto escolar, esse educador deve assumir o papel do orientador capaz de tratar
de assuntos que vão muito além dos conteúdos propostos pelo currículo disciplinar.

A interdisciplinaridade na formação profissional requer competências relativas às formas de


intervenção solicitadas e às condições que concorrerem para o seu melhor exercício. Neste
caso, o desenvolvimento das competências necessárias requer a conjugação de diferentes
saberes disciplinares. Entenda-se por saberes disciplinares: saberes da experiência, saberes
técnicos e saberes teóricos interagindo de forma dinâmica sem nenhuma linearidade ou
hierarquização que subjugue os profissionais participantes (FAZENDA, 2008, p. 23).

Temas desenvolvidos nas aulas de música podem ser um ponto de partida


para o desenvolvimento de um diálogo interdisciplinar?

A relação entre as disciplinas, a construção de objetivos pedagógicos articulados entre si, sem que
haja uma relação de hierarquia entre elas é necessária, sendo importante compreender a singularidade e
especificidades de cada disciplina, para que essas relações disciplinares sejam bem conduzidas. Entretanto,
como ação inicial de uma prática interdisciplinar, pode-se eleger uma matéria matriz, ou seja, a matéria/
disciplina que servirá de referência ou ponto de partida para o desenvolvimento de conteúdos relacionados
com o tema proposto.

Como temas explorados nas aulas de música podem iniciar um diálogo que propicie uma prática
interdisciplinar? Quais são as relações interdisciplinares possíveis de serem construídas? Para responder as
questões levantadas usaremos o samba de roda do recôncavo baiano como tema a ser explorado nas aulas de
música e outras disciplinas. A partir da abordagem do tema proposto, pretende-se sinalizar direcionamen-
tos que possibilitem a criação de fios condutores capazes de unificar os conteúdos, valorizando as especifi-
cidades de cada linguagem relacionada.

Debruçando sobre o samba de roda do recôncavo baiano, tendo como perspectiva alguns aspectos
musicais e extras musicais possíveis de serem explorados, podemos apresentar de que forma determinados
conteúdos específicos poderão ser desenvolvidos. Inicialmente, vamos analisar alguns elementos musicais
presentes no samba do recôncavo, como esses elementos poderão ser abordados na sala de aula e de que

408. Um insight é um acontecimento cognitivo que pode ser associado a vários fenômenos podendo ser sinônimo de compreensão, conhecimento,
intuição. http://www.significados.com.br/insight/

783
forma a abordagem desses conteúdos irão contribuir com o desenvolvimento de novas habilidades através
da vivência musical. Em seguida, analisaremos como os aspectos culturais, sociais, econômicos, políticos e
históricos poderão tornar-se conteúdos possíveis de serem estudados.

Para o desenvolvimento da percepção auditiva e da capacidade de identificação dos mais variados


sons e timbres, podemos desenvolver atividades que tenham como proposito a exploração de sons presentes
na manifestação musical do samba de roda. A apreciação musical pode ser o ponto de partida para o desen-
volvimento da escuta consciente, para isso, os indivíduos envolvidos no processo deverão ser estimulados
a desenvolver uma escuta ativa, sensível, percebendo os acontecimentos presentes no evento musical. Essa
escuta não passiva requer uma percepção capaz de perceber as nuances presentes na música, a identificação
de elementos sonoros como timbres, intensidades e alturas, assim como a forma, estilo vocal e conteúdo do
texto, etc. Conforme Brito (2003, p. 188):

Escutar implica perceber diferentes aspectos, sendo que a percepção não se comporta sem-
pre do mesmo modo. Há diferentes maneiras de perceber o mesmo fenômeno, dependendo
de cada sujeito, de seu interesse, de sua experiência e seus conhecimentos prévios; as carac-
terísticas particulares do objeto a ser percebido também serão muito importantes, e, além
do mais, serão determinantes a situação e o contexto em que o ato perceptivo venha ocorrer.

Portanto, como parte do processo da apreciação musical, pode-se direcionar a escuta, trazendo à luz
as propriedades sonoras na medida em que se escuta, identifica e explora os sons de instrumentos musicais
utilizados no samba de roda e posteriormente classificá-los de acordo com suas características sonoras.
Como afirma Penna:

Musicalizar é desenvolver os instrumentos de percepção necessários para que o indivíduo


possa ser sensível à música, aprendê-la, recebendo o material sonoro/musical como signi-
ficativo. Pois nada é significativo no vazio, mas apenas quando relacionado e articulado ao
quadro das experiências acumuladas, quando compatível com os esquemas de percepção
desenvolvidos. (PENNA, 2008, p. 31).

O ato de apreciar pode ir muito além de uma simples escutar, ouvir e identificar elementos sonoros, é
uma ação complexa que exige do ouvinte habilidades que só serão adquiridas mediante uma rotina de práticas
apreciativas, onde a escuta deverá ser direcionada. Assim como os timbres, a percepção e identificação da altu-
ra e a decodificação de sons graves, médios e agudos podem ser desenvolvidos seguido os mesmos processos
para a construção de uma escuta ativa. Mantendo o samba de roda como tema, a identificação da tessitura,
a natureza e registro sonoro dos instrumentos musicais utilizados, certamente serão caminhos que levarão a
aquisição de uma escuta mais consciente. Na percepção das nuances existentes na música em suas múltiplas
dimensões, outros aspectos musicais poderão ser compreendidos na medida em se percebe as dinâmicas, a
intensidade dos sons produzidos por vozes e instrumentos, e toda a massa sonora presente no evento musical.

Interações interdisciplinares, explorando novos


territórios a partir de um tema musical

A música, enquanto elaboração social, é um elemento presente nas mais variadas culturas. É pos-
sível afirmar que ela uma das manifestações da arte com maior representatividade quando nos deparamos
com as manifestações culturais de uma determinada comunidade, cidade, estado ou país. Kater (2012, p.
42) afirma que:

784
Não há comemoração ou evento significativo na vida individual ou social de qualquer
povo do qual a música não tome parte de maneira relevante, instaurando um espaço de
integração e transcendência não alcançado nem traduzido por nenhum gesto ou palavra.

Ao compreender a música como arte presente, sendo ela uma representação da unificação de uma
série de elementos como: saberes, costumes, hábitos, histórias, acontecimentos sociais e culturais, podemos
considerá-la como fonte profunda de produção de conhecimento, sejam eles musical ou extramusical. Com
base nessa ampla gama de possibilidades, pretendo exemplificar de forma sucinta algumas possibilidades
de exploração de um tema inicialmente trabalhado nas aulas de música. A título de ilustração, continuarei
utilizando o tema proposto anteriormente, apontando algumas possibilidades de exploração.

Para apresentar a primeira possibilidade, iniciarei apresentando um questionamento levantado por


Blacking (2007) em seu artigo Música, cultura e experiência, que é o seguinte: Como as pessoas fazem as
conexões entre a música e outras experiências? Refletindo sobre o questionamento levantado, penso que
essas conexões podem ser realizadas de diversas maneiras. Quando Blacking (2007, p 201) afirma que a “[...]
o fazer musical é um tipo de ação social”, entendemos que ela pode gerar como consequência outros tipos de
ações sociais, apresentam-se possibilidades de um estudo que nos permite conceber a ideia de que a música
pode ser muito mais que um simples reflexo da cultura, sendo também um elemento gerador e colaborador
de um sistema cultural. Em concordância com o autor, toda atividade musical pode relacionar-se com fatos
históricos, aspectos geográficos, questões políticas e socioeconômico.

Através do estudo do contexto em que o samba de roda surgiu podemos, inicialmente, estudar fatos
históricos ligados a cultura da diáspora africana e seus ancestrais na região do recôncavo, reconhecendo os
valores civilizatórios que abarcam um conjunto de discursos, atitudes e formas de perceber o mundo aos
moldes dos grupos sociais afro-brasileiros, (CANDUSSO, 2009), bem como os séculos de escravidão sofrida
pelos africanos e seus descendentes, os acontecimentos pós-abolição, políticos e econômicos. Geografica-
mente, é possível estudar a região e sua produção agrícola, suas riquezas naturais, assim como também
as produções das comunidades negras. Possibilitando, desta forma, contemplar o ensino da cultura afro-
-brasileira proposta pela Lei 10.639/03.

Como outra possibilidade de interdisciplinaridade entre a educação musical e outras linguagens,


citarei como exemplo a língua portuguesa e gramática. Pode-se inicialmente escolher uma canção do samba
de roda409 que pode ser escolhida pelos alunos após um momento de apreciação, em seguida, realizar a leitu-
ra do texto analisando alguns aspectos pré-estabelecidos pelo professor, bem como a produção de texto se-
guindo os padrões encontrados nas canções, trazendo a luz tópicos pedagógicos que precisam ser trabalhos,
abrindo espaços para a apreciação e discussão de músicas de diversos contextos históricos e socioculturais
(DORING, 2017). O conteúdo dos textos das músicas do samba de roda e a sua forma variam de acordo
com o estilo de cada região ou comunidade, são essas características que vão definir as variações existentes
nas manifestações culturais do recôncavo, como, por exemplo, o samba corrido, samba chula e samba bar-
ravento (GRAEFF, 2015). Com isso, o campo de exploração é bastante significativo.

O samba de roda é um tema cujas possibilidades de exploração podem ser inúmeras. Com isso,
outros campos interdisciplinares terão a frente muitos assuntos que poderão fazer parte dos conteúdos
curriculares a serem explorados por todas as outras linguagens do conhecimento, tornando muito mais
abrangente as expectativas sobre a produção do conhecimento.

409. Para um maior aprofundamento sobre o Samba de roda do recôncavo baiano, pesquisar: Doring (2016b); Doring (2016b); Doring (2017).

785
Considerações finais

O ensino de música e os projetos artísticos-pedagógicos postos em prática certamente poderão ser


um ponto de partida para que haja uma ampliação dos temas abordados em sala, com isso, será possível con-
templar outras disciplinas do currículo escolar, dando condições para criação de diálogos interdisciplinares,
permitindo uma grande integração entre os saberes. Segundo Amato (2010) ao citar;

O ensino da música pode dar um impulso exemplar à interdisciplinaridade, fazendo vi-


brar o belo em áreas escolares cada vez mais extensas e que [...] para alguns alunos é a par-
tir da beleza da música, da alegria proporcionada pela beleza musical, tão frequentemente
presente em suas vidas de uma outra forma, que chegarão a sentir a beleza na literatura, o
misto de beleza e verdade existente na matemática, o misto de beleza e eficácia que há nas
ciências e nas técnicas. (AMATO 2010 p.43 apud SNYDERS 1992, p.135):

A interdisciplinaridade certamente fará com que a construção do saber seja mais plena e interes-
sante, as conexões realizadas por essa prática farão com que o aprendizado seja cada vez mais consistente,
principalmente quando se cria uma relação direta com o contexto sociocultural dos indivíduos envolvidos.

Referências

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música e educação musical. Opus, Goiânia, v. 16, n. I, p. go da Bahia. Serie sons da Bahia. Salvador: Pinaúna Edi-
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BLACKING, John. Música, cultura e experiência. Cader- _____. A Cartilha do Samba Chula. Salvador: Umbiga-
nos de Campo. São Paulo, n. 16, p. 1-304, 2007. da, 2016b.

BONATO, Andréia; BARROS, Carolina Ramos; GE- _____. Revista da FAEEBA- Educação e Contempora-
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2001.

786
EXPERIÊNCIAS COM MEDIAÇÃO
NA GALERIA CAPIBARIBE,
RIO CAUDALOSO NA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE PERNAMBUCO
Mariah Cysneiros da Silva/UFPE

A Educação no seu sentido mais amplo está inserida no seio da sociedade. Ela acontece em todos
os âmbitos. Pautada no velho ditado “o mundo é quem te ensina”, afirmo que os primeiros conhecimentos do
ser humano são obtidos em sua observação acerca do que o rodeia e a troca de saberes que se dão no dia a dia.

Estes conhecimentos adquiridos ao longo da vida são importantes, todavia, a educação atinge outras
instâncias quando o homem passa a sistematizar o conhecimento adquirido, dando início aos conhecimen-
tos científicos. A Educação pode ser categorizada em três definições: a educação informal, educação formal
e a educação não formal.

A educação informal é justamente a que se dá diretamente entre as pessoas na sociedade, em seu


dia a dia. Corroborando com tal afirmação, segundo a definição de Gohn: “A educação informal é aquela
que se aprende ‘no mundo da vida’, via processos de compartilhamentos de experiências, principalmente em
espaços e ações coletivas do cotidiano” (GHON, 2010, p. 16).

A educação formal é a que ocorre nas instituições de ensino, na escola, na universidade. Neste tipo
de educação prevalece o aprendizado dos conteúdos curriculares. Apenas a educação formal não supre as
demandas da formação integral (macro educacional) do indivíduo. É preciso ir além para que se tenha êxito
na formação integral dos indivíduos na sociedade. Devemos instigá-los a serem críticos, valorizando os seus
saberes, respeitando a individualidade de cada um.

A educação não formal ocorre em espaços e lugares outros como museus, galerias, workshops, ofici-
nas, etc. Através de mostras e exposições em espaços culturais, há uma maleabilidade na escolha dos temas
a serem abordados. A educação não formal em todos os seus vieses, resiste e perpassa os tempos a partir
de mudanças de necessidades sociais. Assim, é importante ressaltar que a educação em sua forma integral
necessita que a educação informal, a educação formal e a educação não formal caminhem de mãos dadas,
de forma que ambas contribuam para a formação integral do cidadão.

A importância na promoção de projetos que propiciem uma maior interação entre educação formal
e educação não formal, se faz necessária. Incluindo aulas de campo, que permitam aos alunos visitarem com
mais frequência os espaços culturais (museus e galerias), promovendo uma maior interação entre teoria e

787
prática. Da mesma forma, a educação não formal pode estabelecer relações dentro das instituições de ensi-
no, através de oficinas e cursos de extensão.

Desta forma têm-se uma maior aproximação entre os conhecimentos científicos e os conhecimen-
tos que são necessários e inerentes ao homem, frutos de sua aprendizagem com relação as suas experiências
ao longo da vida, que por algum motivo de força maior, são excluídos de forma descarada e indiscriminada.

Baseando-se nos conceitos abordados acerca de educação informal, educação formal e educação
não formal, podemos pensar que não há dicotomia entre ser professor e mediador, ou seja, quer dentro
da sala de aula (educação formal), quer dentro de museus e galerias (educação não formal), o professor e
mediador precisa ser agente a incitar, a problematizar, a questionar, levando em consideração os saberes
advindos do público. Portanto, em ambos os espaços, o processo de ensino-aprendizagem é potencializado,
se mediado por profissionais da área de educação.

Sabemos que na prática, o panorama dos mediadores em espaços culturais (museus e galerias de
arte) é constituído por estagiários, que sequer, tem a formação do 3º grau completa e que são provenientes
das mais variadas áreas científicas. Vale destacar o quanto é de fundamental importância uma coordenação
especializada nestes espaços.

O que difere a educação em instituições de ensino, da educação em espaços culturais, é a dinâmica


na qual se constituem. Enquanto numa o processo de ensino-aprendizagem dar-se-á de forma sistemática e
contínua, na outra se configura com públicos variados e num curto espaço de tempo.

Nas visitas guiadas, com grupos segmentados, em espaços culturais e museus, torna-se possível de-
senvolver uma atividade prática/pedagógica condizente com a especificidade apresentada por cada grupo,
estabelecendo assim uma maneira mais sistemática de mediar. As atividades, neste caso, são pensadas de
modo a se adequar, em termos de abordagem, linguagem, entre outros, as necessidades e maturidade do
espectador, com critérios específicos para isto, idade, realidade social, acessibilidade e outros indicadores.

Em todas as três instâncias (informal, formal e não formal) é preciso trabalhar “revolvendo a terra”, “podan-
do as arestas”, causando a exposição e enfrentamento das mazelas sociais, só assim, de fato, poderemos ter
êxito, gerando maior possibilidade de construção de uma educação integral. Comungando com tais argu-
mentos, segundo Ghanem e Trilla:

na base de propostas como as anteriores, que combinam o formal, o não formal e o infor-
mal, é a vontade de configurar um sistema educacional que facilite ao máximo que cada
indivíduo possa traçar seu itinerário educacional de acordo com sua situação, suas neces-
sidades e seus interesses. Para tanto, o sistema tem de ser aberto, flexível, evolutivo, rico
em quantidade e diversidade de ofertas e meios educacionais. E um sistema educacional
só poderá sê-lo se realmente incorporar o setor não formal e valorizar o informal (GHA-
NEM; TRILLA, 2008, p. 53).

Mediação Cultural

Ao abordar a mediação cultural nos vem de imediato à associação com museus e espaços culturais.
Porém, é preciso entender que a mediação pode e deve ser feita também em outros locais de aprendizagem,
como por exemplo, em instituições de ensino (ensino formal e não formal). Todavia, tomarei como foco
os espaços culturais e museus, para fazer uma maior imersão sobre “mediação”, já que o presente artigo se
debruça nas minhas experiências, dentro da Galeria Capibaribe, no Centro de Artes e Comunicação, da
Universidade Federal de Pernambuco.

788
Os espaços culturais e públicos são um celeiro importante, na compreensão do indivíduo como pro-
tagonista e parte integrante do mundo que o rodeia. Em comparação com a sala de aula, nos museus, dar-
-se-á uma mediação com o auxílio dos artefatos, que ali estão presentes, tais como, documentos históricos,
objetos de arte, utensílios próprios de uma determinada época ou etnia, entre outros.

Nesse sentido, os mecanismos tanto de mediação quanto de montagem da exposição, em tempos


atuais, sugerem uma dinâmica completamente diferente da tradicional, na qual o “mediador” muitas vezes
explana um texto decorado, ensaiado ou quando apenas repassa conteúdos sem instigar e respeitar os va-
lores advindos do espectador. Mais degradante ainda é quando o papel do mediador fica restrito aquele do
“tira dúvidas” ou do que está apto a dar informações diversas, de contextos variados, exemplos: onde fica o
banheiro, a saída, entre outros. Reforçando tais afirmações, em uma citação de Pedrosa, na Obra de Vergara,
se enfatiza que:

Diferentemente do antigo museu, do museu tradicional que guarda, em suas salas, as


obras-primas do passado, o de hoje é, sobretudo, uma casa de experiências. É um parala-
boratório. É dentro dele que se pode compreender o que se chama de arte experimental,
invenção (PEDROSA, 1995 apud VERGARA, 2011, p. 180).

No âmbito das Artes Visuais, podemos dizer que é muito importante a participação mediadora do
artista, tanto com o público, como também com os mediadores da exposição. Há casos extraordinários em
que o artista expõe o seu fazer artístico ao público. Enquanto ocorre a visita guiada, o artista está presente
na Galeria produzindo sua arte, respondendo a questionamentos, demonstrando a técnica, o processo de
criação, a sua relação com a materialidade dos objetos.

Exemplo desta metodologia de trabalho, à vista do público, ocorreu numa exposição feita por Renato Valle,
no IAC, Instituto de Arte Contemporânea, em 2005. O artista discute a importância do desenho no processo
artístico. A coordenadora do IAC na época, especificava bem a experiência de Renato Valle, em mostrar o
processo artístico acontecendo e sendo revelado, ao afirmar que:

Desta forma, não se pretende discutir só a obra acabada e, sim, ver o artista trabalhando,
como ele raciocina, quais as maneiras com que soluciona seus problemas, como também
entender seu processo de criação. Ver e contemplar a obra se fazendo, bem diferente de
ouvir a descrição do artista, o que se fala ou se escreveu da obra pronta. O projeto do
artista era um, no percurso foi se modificando. A poiese trabalha com o processo de ins-
tauração da obra de um ser que existe num contexto. Percebe-se as escolhas que o artista
fez no percurso do construir e do destruir (LISBOA, 2005, p. 307).

Alguns defendem que a Obra de Arte fala por si só, há controvérsias com relação a esta afirmativa.
Que a Obra, em si, possui um caráter intrínseco pedagógico, é inegável. Temos que ter ponderação ao refletir
sobre tal afirmação. A Obra de Arte fala por si só, porém, a mesma não dispensa discussão, conversa e refle-
xão, acerca do que ela desvela. O fato da Obra de Arte, carregar consigo cargas estruturais, estéticas, emo-
cionais, históricas, entre outras, sua “fala”, por assim dizer, não é redundante, não encerra a interpretação, ao
contrário, serve de patamar para que inúmeras interpretações e óticas se fundam e venham ou não à tona.

Neste processo entre o espectador e a Obra de Arte ocorrem jogos de relação e interpretação, muito
peculiar a cada indivíduo, cada experiência é única. Quando os sentidos são aguçados: audição, visão, tato,
olfato ou paladar, através do campo da subjetividade, ocorre uma conversa entre obra e espectador. É neste
sentido que devemos ter cuidado com a ética e a estética. Segundo Vergara:

789
O entrelaçamento entre sensível e simbólico, consciência poética e histórica, subjetividade
e compartilhamento, compõem a ética do cuidado com as múltiplas temporalidades que
nasce das mudanças de paradigmas entre utopias modernas e pós-modernas. É no espaço
de mediação que se definem as redobras do compartilhamento do tempo de múltiplas
narrativas em processo de conscientização e pertencimento (VERGARA, 2011, p. 189).

Diante destes aspectos, podemos afirmar que, torna-se de suma importância, em qualquer Galeria
de Arte ou Museu, a presença de um mediador. A condição crucial do mediador, não é impor as suas refe-
rências culturais, mas de potencializar a experiência entre Obra e expectador, através da sugestão ao diálogo,
respeitando os diversos saberes que ali se constituem.

Fazer uma boa mediação requer que se tenha também a prática de escutar o outro, valorizar o que
ele tem a indagar e a dizer, se permitir ser envolvido nestes questionamentos, robustecendo o próprio “ban-
co cultural”. É levar a sério todas as verdades, estabelecendo um diálogo plural, tendo ciência de que não há
uma única conclusão, há inúmeras possibilidades de reflexão, enfim, não há um resultado x, cada indivíduo
vai prover as suas impressões mediante a experiência.

Exposição Presenças de Anita

A Exposição Presenças de Anita foi uma proposta de Maria do Carmo de Siqueira Nino, artista (fo-
tógrafa) e também professora do curso de graduação, na Licenciatura em Artes Visuais, pela Universidade
Federal de Pernambuco. A mesma traz como referência para a exposição a carta “Paranóia ou Mistificação”
que Monteiro Lobato escreveu a Anita Malfatti e que completou cem anos, no dia 20 de dezembro de 2017.

Anita Malfatti, filha de italiano e norte-americana, havia ido a Europa estudar artes plásticas. O mo-
vimento Modernista, que eclodia naquele continente e que viria causar rupturas com os parâmetros de arte
vigentes, trazia novos contextos acerca da representação por meio de diversos âmbitos das artes, ou seja, na
literatura, na música, nas artes plásticas, entre outros.

Estes novos conceitos de arte, dos quais Anita Malfatti era adepta, em nada agradava a Monteiro Lo-
bato, que os repudiava e se dizia contra aos estrangeirismos. Porém, ambas as partes estavam à procura de um
caráter nacional, afinal, a arte pura, clássica, defendida por Lobato, também havia sido internalizada através da
Missão Artística Francesa no Brasil, que introduziu o ensino superior e fortaleceu o Neoclassicismo. A tendên-
cia a se valorizar o que vem de fora é um problema real, causado pela submissão cultural da nação colonizada.

Em um artigo publicado por Monteiro Lobato, datado no dia 20 de dezembro de 1917, que tinha
inicialmente como título: “A propósito da Exposição de Anita Malfatti”, o crítico se debruça de forma inci-
siva ao movimento Modernista e faz críticas tanto ao movimento, como a artista Anita Malfatti. A carta é
contundente para Anita Malfatti e traz consequências desastrosas para a artista.

No artigo, Monteiro Lobato expõe resquícios de uma sociedade patriarcal, da falta de tolerância e
de pudor. Sem rodeios, o escritor dispara uma avalanche de conceitos, que confirma o quanto à sociedade
moderna tem suas bases em sistemas hegemônicos e hierárquicos. O autor, em nome da lei do paternalismo,
se acha no direito e dever de orientar Anita Malfatti, de reconduzi-la ao caminho correto e de emitir juízo
de valor, com relação ao movimento Modernista. A reforçar, na sociedade contemporânea a noção da lei do
pai ainda é muito forte.

Maria do Carmo Nino, curadora da Exposição Presenças de Anita, utilizou as questões de gênero,
nacionalistas, hegemônicas, trazidas por Lobato e tão atuais em nossa sociedade contemporânea, para inci-

790
tar dez artistas mulheres, convidadas a produzirem reações a esta carta, através de suas linguagens artísticas.
As artistas convidadas foram: Ríkia Amaral, Luciana Dantas, Késia Duarte, Ângela Agra, Beatriz Brenner,
Mitsy Queiroz, Madalena Zaccara, professora no curso de Licenciatura em Artes Visuais da UFPE, Roberta
Guimarães, Guilhermina Velicastelo e Ana Lisboa, também professora no curso de Licenciatura em Artes
Visuais da UFPE, inclusive da disciplina de Estágio IV, durante o período de 2017.2. Portanto, a exposição
configurou-se de modo coletivo.

De maneira individual, as artistas foram orientadas a produzirem a partir de suas histórias, de forma
livre, uma produção artística visual. Além da produção da imagem, tiveram que escolher uma frase autoral
ou de algum autor, não de cunho explicativo, mas que funcionasse como outra imagem. A Exposição Pre-
senças de Anita trouxe a relação do verbal e do não verbal.

A exposição também contou com um espaço de interação para o público, “A linha do Horizonte”. A pro-
posta de Maria do Carmo Nino, em promover este espaço onde o público pôde intervir, foi a de aguçar nas pes-
soas a sensação do futuro, o que se quer alcançar, o inalcançável. Neste espaço, qualquer pessoa pôde se colocar.

O encontro com as artistas

Antes que eu iniciasse as minhas experiências com mediação na Galeria Capibaribe, houve através
da disciplina de Estágio IV, a promoção do encontro com a curadora da Exposição Presenças de Anita, Ma-
ria do Carmo de Siqueira Nino com algumas das dez artistas convidadas: Ana Lisboa, Ângela Agra, Beatriz
Brenner, Guilhermina Velicastelo, Madalena Zaccara, Mitsy Queiroz e Roberta Guimarães.

Cada uma dessas artistas, de forma oral, apresentou suas propostas, tanto com relação à técnica
trabalhada, bem como da poética individual e intrínseca que trabalharam.

Inúmeras reações a partir dos lugares delas hoje, no tempo e no espaço, foram suscitadas, a exemplo,
Beatriz Brenner que utilizou uma colagem que já existia e os temas vieram depois. A partir de recortes a
montagem foi estruturada exclusivamente para a exposição. Diante do seu processo, foram elencadas ima-
gens que tivessem relação com o que ela sentiria se recebesse a carta de algum Monteiro da vida. A parte
escrita do seu trabalho surgiu num desentendimento familiar.

Outra artista com trabalho forte foi Mitsy Queiroz. A artista se diz dona de um olhar inquietante,
admite que as mudanças ocorrem de forma difícil. Sua poética se robustece através do pensamento sobre
o ato de caminhar, o desequilíbrio que o caminhar proporciona ao corpo, a guinada e o enfrentamento do
corpo. Em sua técnica, utilizou a fotografia analógica, através da inversão da película. Os contrastes dos tons
rubros do seu trabalho aparecem pela falta do controle com a escala de vermelho que a artista utiliza. Mitsy
Queiroz gosta da possibilidade experimental e a abertura do não controle de tudo. A artista afirma que
procura o desfocado, os subterfúgios e que o acaso também opere. A técnica que utiliza requer um processo
longo, demorado, com o tempo, ocorre no período de latência. A fotografia acontece no pós.

Experiências com mediação cultural na Exposição Presenças de Anita

Através da disciplina de Estágio IV, pude exercer a prática em mediação cultural, dentro de uma
Galeria de Arte. Durante o período de 2017.2, mediei a Exposição Presenças de Anita, na Galeria Capiba-
ribe, Centro de Artes e Comunicação (CAC), na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Para nos
prepararmos para a mediação, dentro do âmbito da educação não formal, ao longo da disciplina, foram lidos
diversos textos, acerca de como fazer uma boa mediação, dentro das galerias e espaços culturais.

791
A Exposição Presenças de Anita teve a sua abertura no dia 11 de setembro de 2017 às 12h e seu
período de visitação inicial, seria do dia 12 de setembro a 03 de outubro de 2017, sendo posteriormente
prorrogada para a data 03 de novembro de 2017.

As minhas experiências com mediação cultural na Galeria Capibaribe se iniciaram logo após o en-
contro com as artistas que fizeram parte desta exposição. O meu primeiro encontro com a Galeria Capibaribe
foi no dia 19 de setembro de 2017 e as minhas vivências com a dinâmica diferenciada que a mediação exige se
findaram no dia 25 de outubro de 2017. Foram cumpridas 40 horas de mediação dentro da galeria. A culmi-
nância do meu processo foi um dia anterior ao término do meu estágio, quando eu consegui levar um grupo
de alunos da Escola Estadual Tomé Gibson, que se situa na periferia do Recife, no bairro da Guabiraba – PE.

A princípio, foi estabelecido dedicar algumas horas iniciais do meu estágio para a observação do
espaço físico, para me relacionar de forma mais estreita com as obras, os textos e as artistas, para pesquisar
alguns aspectos de como a Galeria é gerida e o principal, para a observação do perfil predominante, do
público espontâneo que frequenta a Galeria Capibaribe. Foram necessários uns três dias para entrar em
conexão com esses aspectos e por fim, me aventurar a mediar com mais segurança.

Neste período foram observados alguns aspectos importantes para a construção de estratégias, que
me fizessem fluir para próximo do público. Nos primeiros momentos, observei que a galeria se situa com
sua porta principal de acesso voltada para o hall de passagem dos estudantes, funcionários e visitantes do
Centro de Artes e Comunicação.

Por este fator, a maior parte do público que entra na Galeria Capibaribe está de passagem rápida,
demonstra que na maioria das vezes tem compromissos, como: horário de aula, de expediente, entre outros.
Quando não são estes aspectos, se apresentam casos constantes de pessoas que adentram a Galeria Capiba-
ribe para se refrescar no ar-condicionado, atender o celular de forma mais reservada e tranquila (por conta
do silêncio do ambiente), conversar em grupinhos, apenas tirar fotos e várias outras situações atípicas.

Diante destas situações, tornou-se difícil me aproximar do público e várias inquietações começaram
a pairar. Eu tinha que de alguma maneira chegar até aquelas pessoas, até mesmo aquelas que não estavam
interessadas. Senti a necessidade de agir de alguma forma, tanto para proporcionar conhecimentos próprios,
como aos frequentadores da exposição.

Queria fazer-lhes entender que aquele era um espaço de troca de conhecimento, onde muito mais
que se refrescar no ar-condicionado, poderia se vivenciar experiências riquíssimas. Em consonância com
tais sensações, concordo com Lisboa ao citar que: “o espaço convida a ação e antes da ação a imaginação
trabalha” (BACHELAR, 1998 apud LISBOA, 2005, p. 303).

A partir de tais inquietações pensei numa estratégia para desenvolver algum tipo de diálogo. Em
minhas horas dentro da galeria, quando não estava circulando, comecei a me posicionar próximo ao cader-
no de assinaturas, que era colocado propositalmente junto à porta de entrada e saída, para que o visitante
inevitavelmente passasse junto a ele.

Comecei a fazer mediação, abordando de forma sutil, antes que assinassem no caderno. Um por um,
grupo por grupo, ficava sempre na expectativa de atender o maior número de pessoas possível. Iniciava um
diálogo e algumas questões eram suscitadas.

A maioria correspondia aos meus estímulos e dia a dia meus conhecimentos iam se ampliando.
Todavia, em determinado momento, senti a necessidade de fazer uma mediação com um grupo específico e
de elaborar um planejamento de uma atividade pedagógica. As leituras e pesquisas se intensificaram acerca
do que eu queria me debruçar durante a visita guiada.

792
Correndo contra o tempo, entrei em contato com a gestora da Escola Tomé Gibson e obtive de ime-
diato um posicionamento positivo, porém marcamos para quinze dias depois, por conta da burocracia para
pleitear a condução.

Visita guiada com alunos do 9º ano e 1º ano


da Escola Estadual Tomé Gibson

A visita guiada com os alunos da Escola Tomé Gibson ocorreu no dia 24/10/2017. Durante a media-
ção cultural houve a participação de dois mediadores, também alunos do curso de Artes Visuais da UFPE.
Ambos me apoiaram e participaram de forma efetiva.

Os principais objetivos da mediação cultural na Exposição Presenças de Anita foram: o estudo da


arte e a percepção dos seus significados e sentidos, a análise de como a arte nos toca e quais os significados
que podemos atribuir a ela, principalmente na sociedade contemporânea, o aumento do repertório cultural
por meio da mediação cultural e da nutrição da estética, a compreensão (nem passiva, nem vingativa) do
passado, da tomada de consciência e da autoestima, o reconhecimento da pluralidade e expressões artísticas,
o entendimento das relações entre as produções artísticas, seu contexto e sua identidade cultural e a abor-
dagem das linguagens artísticas contemporâneas, onde foram apresentados e trazidos como referência, os
trabalhos das artistas que participaram da exposição.

Vale ressaltar que a construção do meu projeto para uma mediação cultural mais estruturada teve
como referência a atuação do mediador Emerson Pontes, durante o evento ‘Encontro Gente Arteira com o
professor Educador’ em Tomie Ohtake, na Caixa Cultural do Recife. Emerson Pontes, em sua mediação neste
encontro, utilizou como norte a Proposta Triangular, desenvolvida pela arte educadora Ana Mae Barbosa.

A Proposta Triangular tem como propósito incitar a desenvolver a capacidade de análise crítica da obra
de arte. O processo desta abordagem tem como base, métodos de descrição e análise na interpretação e avalia-
ção da obra, em busca de seus significados, levando em consideração, a questão estética representada na arte.

Através do tripé em que se constitui a Proposta Triangular, “Ler, Fazer e Contextualizar”, tem-se a
possibilidade de ampliar o repertório cultural do visitante e a possibilidade do êxito em seu potencial artístico.

No primeiro momento junto aos estudantes, foi apresentado o espaço (Centro de Artes e Comunicação)
onde se situa a Galeria Capibaribe. Sua arquitetura, os cursos que se situam neste centro e a importância da
Galeria Capibaribe, como um espaço de troca de conhecimento, que contempla o curso de Licenciatura em
Artes Visuais e áreas afins, bem como a todos os transeuntes do centro.

Após breve explanação, os estudantes puderam apreciar as obras por 20 minutos. Durante este per-
curso, foram distribuídas fichas enumeradas de 1 a 10 aos alunos de forma aleatória. Após a apreciação, foi
formado um grande círculo e os dez estudantes do grupo que estavam com as fichas enumeradas, se expla-
naram acerca do que compreenderam da exposição ou de algumas obras de arte. A ordem das apresentações
seguiu a dos números que constavam nas fichas.

Em seguida, houve a leitura de algumas das produções artísticas, onde foram expostos aspectos esté-
ticos, tais como, contrastes de cores, movimento, a poética, a técnica, os materiais utilizados, entre outros. Foi
analisada a produção artística individual das artistas Ana Lisboa, Guilhermina Velicastelo e Roberta Guimarães.

Durante a leitura das referidas obras, acontecimentos inesperados surgiram, pois à medida que se
falava das artistas escolhidas, questionamentos foram se evidenciando. Os estudantes trouxeram os contex-
tos trabalhados, para fatos atuais, como por exemplo, o caso da exposição do MAM, onde houve a perfor-

793
mance do coreógrafo Wagner Schwartz, contendo nudez artística e sugerindo a participação dos visitantes.
A polêmica surgiu e tomou conta das redes sociais pela participação de uma criança. As críticas acusaram o
museu de incentivo a pedofilia. Uma aluna que participou da visita guiada na Exposição Presenças de Anita,
perguntou de forma direta e objetiva, ao mediador o que ele achava do fato.

Para estimular um momento de catarse, a fim de provocar os alunos a despertarem as emoções contidas e
omitidas, foi desenvolvida uma atividade pedagógica, para se expressarem de forma verbal ou não verbal,
ou seja, através do desenho ou da escrita expressar suas sensações, mediante ao que estava sendo evolvido.

Em quatro folhas de papel 40 kg, de cor branca, que foram postas no expositor, os estudantes expressaram
em grupo e de forma livre o que compreendiam sobre crítica, machismo, entre outros temas que se referem
à relações hierárquicas.

Fig.1. Alunos do 9º e 1º ano da Escola Tomé Gibson

No último momento com os estudantes houve a contextualização acerca da interferência social nos
processos criativos, dando ênfase à sociedade patriarcal e ao machismo.

Os alunos puderam, dentro da oralidade, expor as dificuldades encontradas ao realizarem a tarefa


anterior, quais as limitações externas que interferiram ou não no processo de criação, quais as limitações
internalizadas como, por exemplo, a dificuldade de desenhar, e como lidam com isto, quais as condições
favoráveis de liberdade, oferecidas durante o processo de mediação, entre outros questionamentos.

Com o término das minhas atividades como mediadora, um dia após receber os alunos da Escola Estadual
Tomé Gibson, houve a sensação do dever cumprido, a riqueza experiencial deste processo, a sensação de
incompletude e o desejo de saber mais.

Referências

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tima; MONTEIRO, Rosana Horio. Cultura visual e os de-

794
GALERIA CORBINIANO LINS:
ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DE SABERES
Ediel Barbalho de Andrade Moura
Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos os equipamentos culturais, como galerias de arte, museus, teatros, etc. vêm de-
senvolvendo em seu ambiente diversas ações educativas como: atividades artísticas, contação de história,
dramatizações, jogos, etc. com o objetivo de gerar experiências educativas aos frequentadores. Este artigo se
debruça numa prática educativa desenvolvida na Galeria Corbiniano Lins, com o propósito de identifica-la
teoricamente e avalia-la, dissertando sobre a contribuição dela para a produção de conhecimentos por parte
dos estudantes que visitam o equipamento cultural do Sesc/PE.

Considerando essa tendência nos processos educativos, foram observados os processos de media-
ção e criação artística desenvolvidos no decorrer do período de maio a agosto de 2017, período em que a
galeria recebeu a exposição “Cenas de uma história”, do grupo teatral Mão Molenga.

Em especifico para este artigo observou-se, a luz de Paulo Freire e de teóricos da Arte/educação, as
práticas educativas do estagiário de Artes Visuais, que paralelamente à atividade estabelecida pela coordenação
da galeria desenvolveu e aplicou uma atividade complementar fundamentada em pensamentos pós-colonialis-
tas, que por meio de estímulos visuais presentes na exposição visou promover a reflexão e o pensamento crítico
sobre a perspectiva narrativa da história do Brasil, no que diz respeito a condição histórico-sócio-cultural na
qual nos foi imposta desde o período colonial, e que é reproduzida nos livros de histórias.

Para pensar a contribuição da galeria para a formação de conhecimentos, a partir da proposta edu-
cativa desenvolvida, escolheu-se como amostragem o encontro/visita realizado com a turma do quinto
ano, da rede SESC/PE de ensino, composta na ocasião por quinze alunos, pois foi a visita onde foram apli-
cadas entrevistas semi-estruturada, e registros de observações do desempenho dos estudantes na atividade
proposta, conseguindo definir com mais clareza dados que ratificaram a concepção de que a mediação
juntamente com a atividade educativa desenvolvidas na galeria contribuem para construção de saberes dos
estudantes visitantes.

A EDUCAÇÃO PELA EXPERIÊNCIA

Na perspectiva de Paulo Freire, o ser humano é um ser inacabado, cuja a existência é um percurso
em andamento, e assim como a vida, as experiências (conhecimentos) vitais também estão em curso. Para
o autor “onde há vida há inacabamento” (FREIRE, 1996, p.50). A respeito do inacabamento do Ser, ele apre-

795
senta o exemplo do homem primitivo que desenvolveu certos saberes, identificando o mundo que o cercava,
a partir das experiências do dia a dia, construindo e reconstruindo conhecimentos. O conhecimento é cons-
truído ao longo da vida por meio das experiências, o homem desenvolve a capacidade cognitiva a partir de
situações onde ele é obrigado a observar, refletir, criar e agir (produzir).

O autor comenta que a aprendizagem se dá pela prática de ensino e a de aprender, e para isso
o educador democrático deve respeitar o saber primário, desenvolvendo a capacidade crítica e criativa
do educando. O professor deve instigar os alunos a serem autônomos (construtores do próprio saber),
a partir do relacionar saberes populares com os saberes formais, pois para Freire (1996) ensinar não é
transferir conhecimento (informações), mas proporcionar condições para o aluno construir seu próprio
conhecimento por meio de experiências.

A aprendizagem, construção de conhecimentos, não se faz isoladamente, o indivíduo é condicionado


à realidade social, política, e cultural, obrigatoriamente ele se relaciona com o ambiente que vive. A partir dessa
afirmação, o autor explica que para a construção de conhecimento acontecer faz-se necessário tomar ciência
desse condicionamento e compreender a responsabilidade ética de participação no desenvolvimento da histó-
ria (humanidade). O indivíduo tem que se enxergar como agente ativo da História não como um objeto.

Na perspectiva da educação humanizadora de Freire (1996) o Ser Condicionado e consciente do


seu inacabamento é o indivíduo que compreende as fatalidades históricas nas quais está subordinado, mas
motivado pela vontade de conhecer, busca superar o que lhe é determinado. Já o Ser Determinado é aque-
le que não compreende a própria existência, a desenvolvendo dentro do que lhe é condicionado, ou que
mesmo compreendendo a realidade busca viver conforme o que lhe é herdado historicamente (imposto),
socialmente e culturalmente, sem questionar.

Os fundamentos da pedagogia da autonomia defendida por Freire (1996) são os princípios da ética,
do respeito à dignidade, do estimulo à autonomia. Esses princípios implicam numa prática que valoriza uma
diversidade de saberes, de saberes obtidos pelas experiências da vida já existentes nos educandos. Com-
preendendo que o saber é algo inerente ao indivíduo, pois ele o desenvolve por meio das experiências pelo
processo de ensino/aprendizagem, portanto deve-se buscar envolver os conhecimentos dos alunos, para que
ele não venha a ter acesso à um conhecimento pragmático, mas sim um conhecimento critico a partir da
realidade que o envolve.

EDUCAÇÃO EM ESPAÇOS CULTURAIS

Segundo Francoio, os museus e galerias (espaços culturais) passaram a ser reconhecidos como “es-
paços privilegiados dos processos educativos, pois abrigam elementos da cultura que serão suportes didá-
ticos aos conteúdos trabalhados pelo professor em sala de aula” (FRANCOIO, 2000, p. 36). Ainda sobre a
importância do espaço cultural para educação formal/regular a autora comenta que

O papel do museu na educação, com o surgimento de uma nova tendência pedagó-


gica [...] a qual concebe que a escola e a sociedade mantenham relações de recipro-
cidade [...] a consolidação dos conhecimentos contempla-se com suportes teóricos
e culturais, já produzidos e em produção (FRANCOIO, 20001 p. 35)

Conforme observa a autora, em parceria com a escola o equipamento cultural pode proporcionar co-
nhecimentos aprofundados que façam sentido para o educando, pois o espaço da galeria e museu são ambien-
tes de trocas culturais e teóricas que possibilitam a construção de conhecimentos por meio de experiências.

796
Relacionando a fala de Freire (1996), na qual afirma que a educação deve se relacionar com o mundo
externo do aprendiz, não se limitando apenas ao ambiente escolar, acreditamos que aproximar a educação
formal e não informal no processo de desenvolvimento de conhecimento é intuir que as ações educativas
de galerias de arte e museus cumprem com o compromisso de produzir conhecimento sobre uma temática
que se relaciona com o estudante.

Compreendendo a relevância da experiência educativa de galerias e museus para a construção de


conhecimento pelo aprendiz, a partir da ótica dos autores, faz-se necessário em seguida comentar a respeito
das atividades educativas desses espaços.

Como principal atividade educativa desenvolvida em espaços culturais está a mediação. O termo
mediação, ao investigarmos sua origem na raiz grega medhyo, significa “que está no meio”, ou “o que liga”;
no âmbito da arte/educação, conforme Teixeira Coelho (1997), ela é o processo de aproximação entre o
indivíduo e obras de arte/cultural. O mediador tem o papel de promover essa aproximação, facilitando a
compreensão por meio da experiência estética.

Além da mediação as galerias e museus vêm desenvolvendo intervenções lúdicas como proposta
educativa. Essas intervenções nos processos educativos, segundo Hermínia Regina Marinho, não é novidade
“a ludicidade na educação acontecia na antiguidade com Platão, que em sua época já sugeria que os primei-
ros anos da criança deveriam ser ocupados com jogos educativos” (MARINHO, 2007, p.10).

Sobre a atividade lúdica nos processos educativos Maria Cristina Rau, (2011) a considera importan-
te dentro do contexto educacional, chegando a definir duas funções essenciais para a atividade, “a primeira
seria a função de proporcionar momento de lazer e diversão (prazer), e a segunda a função de educar, mo-
mento onde o sujeito é levado a desenvolver [ele constrói autonomamente] os saberes, os conhecimentos e
a apreensão de mundo” (RAU, 2011. p.33).

O pensamento sobre a prática pedagógica das atividades lúdicas de Rau e Marinho se relaciona com
a proposta de Freire sobre o aprendizado autônomo e humanizado, que, como visto, afirmava ser importante
para o desenvolvimento de saberes que os alunos fossem protagonistas na construção destes saberes por
meio de experiências, pois “só existe saber na invenção, na reinvenção e na busca inquieta e permanente que
as pessoas fazem no mundo, com o mundo e com os outros” (FREIRE, 1996, p 22).

Desta maneira podemos considerar que a intervenção lúdica na educação pode ser norteadora do
processo de aprendizagem, ela pode ser observada, segundo os autores, como estratégia de ensino, a par-
tir de estímulos. Desta forma direcionar pedagogicamente as atividades desenvolvidas no espaço cultural
deve ser uma preocupação constante, pois, como visto elas são uma aliada do processo de construção
de conhecimento, devido impacto positivo no processo de aprendizagem e na construção de conceitos
cognitivamente.

MEDIAÇÃO E PRÁTICA EDUCATIVA DA GALERIA CORBINIANO LINS

Após observamos conceitualmente a pedagogia de Freire no âmbito do espaço cultural, analisare-


mos a seguir a prática educativa desenvolvida na Galeria Corbiniano Lins durante os meses de maio e agosto
de 2017, para a partir dela discutirmos o papel da galeria na formação de saberes pelos visitantes.

Durante o período observado, a galeria estava recebendo a Exposição “Cenas de uma história”, do
Grupo Mão Molenga. A exposição contou parte dos 30 anos de existência do grupo trazendo para a galeria
bonecos, figurinos, acessórios, peças cenográficas utilizadas para a produção da série educativa Brasil 500 anos.

797
Dentre vestidos clássicos, modernos e contemporâneos, cenário do bar da Vedet, fotografias e todo material
de pesquisa, encontravam-se alguns bonecos que compunham três núcleos do elenco da série. Havia bo-
necos formando o núcleo dos povos indígenas, alguns formavam o núcleo dos povos africanos e a maioria
compunha o núcleo dos portugueses e europeus, conforme pode ser observado na imagem 01.

Imagem 01

(Fotografia dos núcleos de personagens compostos por bonecos da série Brasil 500 anos. Acervo do autor)

Essa disposição dos bonecos trouxe à tona, para o educador, reflexões a respeito da maneira como
a história do Brasil foi construída. Através dela podemos perceber que temos uma história etnocêntrica
fortemente contada pelo colonizador, onde se tem mais registro de personagens de origem europeia que
personagens indígenas e africanos.

Para elaborar uma mediação que visasse discutir o pensamento eurocêntrico da formação da histó-
ria brasileira, buscou-se em teóricos como Michel De Certau (1982) e Jean Cheasnaux (1995) explicações
que justificassem essa imposição dialética, onde prevalece a supremacia europeia sobre a produção históri-
co-social de uma nação.

O conceito de “Descolonização” surge na contemporaneidade e reflete sobre a construção do dis-


curso histórico e cultural de uma nação. Esses discursos, por vezes, são construídos e reproduzidos ao
longo do tempo pelo colonizador (tratando-se de Estados-nações), e são impregnados subjetivamente de
concepções etnocêntricas que tem por finalidade induzir uma realidade/perspectiva distorcida de mundo.
O pensamento descolonizador questiona principalmente os discursos históricos que cultiva a condição de
subalterno nas nações vítimas do processo de colonização.

A construção de uma história eurocêntrica de uma nação, como comenta Cheasnaux (1995) tem
origem desde o início da prática historiográfica desenvolvida na Europa Ocidental, que se desenvolve du-
rante o século XIX, quando a Europa tendeu a explicar a história mundial provincialista e teológica dos pri-
mórdios até a modernidade a partir de seus registros. Essa ligação da Europa com a prática historiográfica
implica, como observa Certau (1982), que a escrita da história na Europa Ocidental, desde o Renascimento,
é caracterizada como uma escrita que tem o Outro por objeto de estudo, “O Outro é o fantasma da historio-
grafia” (CERTAU, 1982, p.25).

Para o autor o estabelecimento de uma história eurocentricamente narrada a partir das próprias
experiências passadas teria se constituído da diferença econômica e cultural entre Europeus e outros povos,
determinando pelo olhar deles uma separação entre o Sujeito (colonizadores) e o Objeto do saber (coloni-

798
zados). Foi desta forma, segundo Certau (1982) que se consolidou um discurso historiográfico configurado
por um distanciamento do Outro, com fins de se apropriar de conhecimentos da trajetória histórico-social
do colonizado para melhor domina-lo.

Baseado nesses conceitos o foi desenvolvida uma proposta de mediação onde buscava discutir criti-
camente a construção narrativa da história contada e estudada em sala de aula.

O projeto de expografia, elaborado pelo grupo foi montado de forma que o visitante primeiramente
pudesse conhecer o processo de criação e produção de bonecos, depois os bonecos já prontos, cenários,
figurinos e por último as fotografias referentes à série e ao grupo. Para melhor se adaptar à dinâmica das
crianças, que motivadas pela ansiedade de visualizar os bonecos, reformulou-se o trajeto da visita para me-
lhor se adaptar a proposta de mediação planejada por ele.

O novo percurso consistia em começar pelas fotografias do grupo e do projeto Brasil 500 anos. Nes-
sa primeira etapa foi comentado sobre o grupo Mão Molenga e sobre a série, em seguida, para contornar a
dificuldade de controlar a ansiedade das crianças, elas foram direcionadas ao espaço onde os bonecos esta-
vam e em seguida se dirigiram para assistir um episódio da série Brasil 500 anos.

Nessa etapa eram apresentados o cenário, os figurinos e os três núcleos de personagens. Após a
contemplação da forma dos bonecos, das cores, dos trajes, os tipos de cabelo, além de acessórios como cola-
res, mantas, penachos, o educador convidava os visitantes a adivinhar os nomes dos personagens que cada
boneco representava. Como esperado a maioria dos visitantes só conseguiu identificar os personagens euro-
peus e poucos visitantes identificaram personagens do núcleo negro, como Zumbi dos Palmares, Dandara e
ninguém identificou do núcleo indígena.

Após essa proposta foi despertado, por meio de perguntas, a curiosidade a respeito da construção
da narrativa da história, sobre o motivo de conhecermos mais personagens do núcleo europeu do que dos
outros e se não existiu personagens negros e índios em importantes para o Brasil.

Com esses questionamentos os visitantes eram levados a construir uma consciência de superação da
forma como a história é contada e a respeito da representatividade das outras etnias na trajetória da cons-
trução da sociedade brasileira. As crianças após compreenderem o pensamento hegemônico imposto entre
Portugal e Brasil, estabelecendo pela relação entre colonizador e colonizado, formularam um pensamento
crítico a respeito de como a história é contada e, como ato de subverter a realidade, criaram diferentes ver-
sões da história do período de colonização.

A construção de um pensamento crítico sobre a história do Brasil foi desenvolvida por meio de con-
versas mediadas durante as visitas, e por meio de ações pedagógicas de reconstrução da narrativa da história
do país. Os visitantes eram convidados a produzir coletivamente uma nova história do “descobrimento”,
ou sobre o período da monocultura da cana-de-açúcar. A discussão sobre essas temáticas apresentadas se
consolidava pedagogicamente através da proposta: a de reconstrução da história do Brasil pelos olhos dos
negros e dos indígenas.

Após a discussão, a mediação seguia para a última etapa, onde os visitantes descobriam como os
bonecos foram planejados e confeccionados. Nessa etapa eram apresentados: o processo de criação, os ma-
teriais utilizados, as técnicas empregadas, e todo o maquinário necessário. Para finalizar a visita, seguindo
o roteiro da proposta educativa da organização da galeria, foi proposto ao termino da mediação uma mini
oficina de confecção de bonecos de jornal, onde o aluno visitante fazia bonecos de forma divertida.

Durante toda a visita as práticas educativas foram analisadas levando-se em consideração a capaci-
dade de compreensão, e de elaboração de conhecimento por parte dos alunos. Desta maneira, para chegar

799
às interpretações coerentes, buscou seguir concepção de avaliação apresentada por Hernandez em que “a
análise dos trabalhos [produto] dos alunos poderia ser não só da ótica de estarem bem ou mal realizados,
mas sim levando em conta a exigência cognitiva das tarefas propostas” (HERNANDEZ, 2007, p. 149).

Por meio de perguntas sobre a mediação e sobre a produção das histórias foi identificado se houve
aproveitamento, construção de saberes por parte do aluno. A análise da metodologia da prática educativa
desenvolvida foi feita a partir da avaliação das narrativas elaboradas pelos alunos, levando-se em considera-
ção a coerência narrativa com o conceito trabalhado.

No final do processo observou-se que os alunos conseguiram se expressar durante toda a visita,
desde o momento de mediação até o momento da prática lúdica. Foram feitas perguntas sobre a atividade
desenvolvida e também foi solicitado que cada um comentasse o que achou sobre o processo de mediação e
sobre a atividade. Como resultado foi constatado que a maioria dos alunos (os que quiseram participar, total
de 10) desenvolveu a construção de um saber crítico a respeito da narração da história do Brasil, a partir do
pensamento descolonizador que visa romper com a reprodução imposta da visão histórico-sócio-cultural
do colonizador.

DISCUSSÕES SOBRE A PRÁTICA EDUCATIVA

Analisando a ação desenvolvida, podemos considerar que a galeria, em paralelo com a escola, é
fundamental para a formação de indivíduos, pois foi através da mediação e da prática educativa que os visi-
tantes acessaram informações, fizeram questionamentos e elaboraram conhecimentos.

A discussão sobre a temática relacionada ao processo de construção histórica, a partir dos bonecos
da série “Brasil 500 anos” do grupo Mão Molenga, buscou relacionar o conteúdo teórico da sala de aula,
com o pensamento crítico de Certau e Cheasnaux, de forma que instigasse o aluno a elaborar a partir das
imagens, das informações acessadas e da atividade lúdica, uma consciência de si como Sujeito ativo, e não
como um Sujeito determinado, conforme definido por Freire (1996).

Como se pode perceber, a mediação desenvolvida não se limitou a apresentar informações técnicas
sobre os bonecos ou sobre o grupo teatral, ela se relacionou com a realidade dos alunos ao provocar a refle-
xão sobre a história do país, sobre a visibilidade dos povos historicamente marginalizados e esquecidos, por
meio da experiência lúdica de criação e contação de história.

O processo de mediação (educação do olhar) se preocupou em produzir conhecimentos a partir da


leitura de imagem (objeto), pois é através dela que o visitante desenvolve o olhar crítico, compreendendo
imagens (objetos) artísticas dentro do campo da cultura visual, pois, “A cultura visual, quando se refere à
educação, pode se articular como cruzamento de relatos [experiências] [...] que permite indagar sobre as
maneiras culturais de olhar e seus efeitos sobre cada um de nós” (HERNANDEZ, 2011, p.34).

Nesse contexto percebe-se que a figura do educador/mediador de espaços culturais é fundamen-


tal pois desempenha o papel de professor, ficando responsável por estabelecer conexões que promovam o
conhecimento, conforme coloca Amaral (2009) “este profissional está na mesma condição do professor do
ensino formal, e ambos têm uma importância fundamental para mediar o conhecimento da arte referente à
exposição” (AMARAL, 2009, p.1).

Tendo em mente a relação estreita entre o papel do professor e do mediador podemos analisar, a
partir da pedagogia da autonomia de Freire (1996), que o mediador deve elaborar as atividades pedago-
gicamente de forma que vise relacionar o conhecimento teórico com o conhecimento dos alunos, por via

800
de debates que estimule a curiosidade dos educandos de forma que eles busquem o conhecimento sobre o
mundo que o cerca.

Assim como Freire e Amaral, Murcia, acredita que o mediador deve atuar como guia e professor,
“oferecendo a oportunidade para o aluno colocar em prática os novos conhecimentos, sendo necessário
assegurar a relação das atividades de ensino e aprendizagem com a vida real dos alunos. ” (MURCIA. 2005,
p. 102). Em consonância, Amaral (2009) ressalta que como professor, o mediador deve buscar aprimorar
sua didática, comentando sobre a importância da qualificação profissional. Ela alega que “para se obter bons
resultados no processo de aprendizagem todos do espaço cultural deveriam ter uma preparação prévia, uma
formação” (AMARAL, 2009, p.2).

Para que haja formação de conhecimento dentro do espaço cultural, a atividade educativa deve ser
pedagogicamente planejada, pois ela é fator decisivo na realização das aprendizagens. O mediador, como
professor, deve se preocupar em elaborar uma proposta educativa, que estabeleça debates por meio da leitu-
ra, contextualização e criação (conforme procedimentos observados na prática analisada), visando promo-
ver a oportunidade do aluno se olhar, olhar o outro e olhar o mundo ao redor, utilizando-se da reelaboração
de conhecimentos prévios, produzindo significados e reflexões.

CONCLUSÃO

Em espaços culturais o objetivo principal da atividade educativa, como visto, deve ser a promoção
de experiências onde o indivíduo possa descobrir, inventar e exercitar suas habilidades/conhecimento (teó-
ricas e práticas), acessando múltiplos conhecimentos, estimulando também a curiosidade, a memória e sen-
sações emocionais, construindo seus próprios conhecimentos sobre si e sobre o mundo onde está inserido.

Diante do que foi exposto, e das informações apresentadas acreditamos que o ensino formal ou não
formal, na contemporaneidade, deve ir além do objetivo de ampliar o repertorio visual e teórico, ele precisa
promover o acesso à diferentes culturas e conceitos gerando conhecimentos, conforme elaborado por Freire
(1996) que define educação como um processo continuo de ensino aprendizagem, de forma que o aprendiz
se relacione com o mundo em que está inserido, transformando-se em sujeito consciente da realidade, ativo
no processo de construção da própria história.

Para cumprir com o papel de agente formador a galeria deve se preocupar com as práticas educati-
vas desenvolvidas, conforme foi explanado neste artigo. As ações educativas: mediação e fazer artístico do
espaço cultural devem ser planejadas e executadas com todo o cuidado, seguindo eticamente tendências
progressistas da pedagogia, para que as atividades educativas não se tornem praticas sem objetivos peda-
gógicos, ou seja, vazias. Para isso, possuir um profissional atento às teorias da Educação e arte/educação na
equipe educativa, a exemplo da Galeria Corbiniano Lins, ajuda a trabalhar melhor os conteúdos pedagógi-
cos no espaço cultural.

A partir do que foi exposto observamos o quanto a galeria é necessária para o desenvolvimento dos
alunos. É preciso que gestores, direção escolar, e em especial o mediador/educador tenham a consciência do
papel dela no processo de aprendizagem. A direção escolar deve continuar incentivando as visitas de tur-
mas à galeria, e a gestão deve articular ações educativas juntamente com o mediador/educador, a partir de
fundamentos teóricos aprofundados, que estejam em consonância com as questões da contemporaneidade,
e com as atuais práticas de Educação e arte/educação, para que desta forma, a galeria continue a oferecer
as ações educativas frutíferas, que visem formar visitantes (público) críticos que compreendam a produção
imagética do mundo que o cerca.

801
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FRANCOIO, Maria Angela S. Museu de arte e ação edu-
cativa: proposta de uma metodologia lúdica. ECA. São
Paulo, SP. 2000 (dissertação de mestrado)

802
HOLOCAUSTO, ARTES E LIBERDADE:
EXPERIÊNCIAS DE MEDIAÇÃO
NA EXPOSIÇÃO “MENINAS DO QUARTO 28”,
GALERIA JANETE COSTA (RECIFE/PE)
Marco Cézar de Oliveira Brito Filho / Universidade Federal de Pernambuco

Passos introdutórios

A construção do saber mediante práticas artísticas descontrói e/ou reconstrói pensamentos e ideolo-
gias que afetam os indivíduos em múltiplos sentidos. Acreditar que a arte comunica através de rastros, pin-
turas, fotografias, depoimentos e performances, por exemplo, revela que o expectador, bem como o artista,
conflua seu lado subjetivo e interpretativo na recepção das obras de arte criando diversos pensamentos.

Através deste meu ponto de vista, crio uma ponte com o que o teórico Tolstoi afirmou a respeito da
condição da arte como um elemento que afeta e comunica os indivíduos:

A atividade da arte se baseia na capacidade que as pessoas têm de ser contagiadas pelos
sentimentos de outras pessoas. [...] A arte começa quando um homem, com o propósito
de comunicar aos outros um sentimento que ele experimentou certa vez, o invoca nova-
mente dentro de si e o expressa por certos sinais exteriores (TOLSTOI, 2002, p. 74-75).

Ainda na mesma linha de pensamento, Barbosa (2009, p. 21) afirma:

Por meio da arte, é possível desenvolver a percepção e a imaginação para aprender a reali-
dade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade
percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada.

Diante disso, ambos os pensamentos mencionados se assemelham, pois, a questão da arte como
elemento comunicador e de aprendizado permite ao expectador (re)conhecer realidades desconhecidas e
desenvolver criticidade através da leitura de obras. A partir deste preambulo que discute a função da ativi-
dade da arte, adentrarei no campo específico da minha experiência a que diz respeito este artigo.

Como forma de obtenção de grau como licenciado em Artes Visuais pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), tínhamos que cumprir uma carga horária que diz respeito aos estágios e, neste artigo,
contarei a minha experiência com a disciplina de Estágio410 em Artes Visuais IV, ministrada pela professora

410. A carga horária da disciplina possui, no total, 90 horas, sendo divididas em: 40 horas de atuação na mediação da instituição escolhida; 20 horas
de planejamentos de ações para a mediação e reuniões com os a gentes que fazem parte da instituição; e, por fim, 30 horas de aulas presenciais com
a professora que ministra a disciplina na UFPE, Ana Lisboa.

803
Ana Lisboa. Neste componente curricular, devemos fazer observações e regências de ações educativas em
museus, galerias ou espaços culturais, trabalhando com a mediação nesses locais.

O espaço e a exposição, primeiras impressões

O espaço que escolhi para fazer minha experiência foi a Galeria Janete Costa411. O motivo desta
escolha se deu por dois motivos: a vontade de conhecer um pouco mais aquele espaço no qual só havia pre-
senciado, desde então, como público espontâneo e por morar próximo à Galeria. Esta última fica no Parque
Dona Lindu, um equipamento cultural público bastante visitado por turistas e autóctones.

A equipe que faz a gestão do equipamento é formada por profissionais de formação na área cultural.
Na ocasião, tive o prazer de conhecer o diretor do espaço, Carlito Person, a coordenadora de ações educa-
tivas, Mariana Ratts, além da equipe da administração do espaço e dos educadores que faziam as etapas de
mediação da Galeria.

Acredito que antes de adentrar nas especificidades da experiência na galeria deve-se haver uma
contextualização sobre o cenário da mediação como mola propulsora do conhecimento e experiência.
Entender o papel do mediador no processo educativo é crucial pelas pontes que este profissional cria.
Diante disso, Lisboa (2004, p.32) teoriza: “O mediador cultural estabelece uma ponte entre a fonte criati-
va – o artista, e aquele a quem é dirigida a obra de arte – o público-alvo. O mediador interfere e direciona
a forma como a obra de arte chega ao conhecimento do público”. Entendendo este esquema, torna-se
nítido de que forma este profissional passa a atuar nos espaços culturais, o qual serve como uma “ponte”
conforme Lisboa mostra.

Acredito que o mediador deveria fazer parte de toda a construção da exposição de uma determina-
da instituição, conversando com a equipe curatorial e os artistas envolvidos no projeto, além de estudar e
criar possíveis atividades que possam ser realizadas como uma etapa educativa ao mediar. Essa bagagem é
transformadora para o mediador pela quantidade de experiências absorvidas e que deverão ser direciona-
das e passadas para o público, na medida em que este último apareça ou não disponível para o processo da
mediação. Confirmando ainda mais esses pensamentos, Coutinho (2013, p. 154) declara:

Se pensamos no público, é preciso buscar identificar e situar quem é este público. Abrir,
por esta via, um complexo campo de pesquisa, pois o público não é uma entidade abstrata.
Se buscamos ampliar o acesso desse público aos bens culturais, é necessário reposicionar
nossa ação e refletir sobre as nossas próprias concepções de arte e de cultura e sobre as
concepções que norteiam os projetos educativos das instituições.

A partir deste breve referencial, adentrarei, então, nas questões experienciais vivenciadas, porém,
antes, vamos analisar o título deste trabalho. Ao lermos o título deste artigo, pensamos: O que é o Holo-
causto, as Artes e a Liberdade têm a ver com essa experiência? A resposta: tudo! Durante o período412 em
que fiquei na Galeria, a exposição que havia inaugurado413 em meados do mês de agosto foi “As Meninas do
Quarto 28”, muito envolvente, forte e sentimental.

411. Localizada na Rua Setúbal, 1023 – Boa Viagem, Recife – PE.


412. Entre os dias 24/08/2017 e 09/09/2017.
413. Inauguração ocorrida no dia 11/08/2017. A exposição ficou aberta na Galeria Janete Costa até o dia 29/08/2017.

804
O título da exposição faz menção a um grupo de 60 meninas414 que foram separadas de seus pais e
foram levadas para o campo de concentração chamado Theresienstad, na Tchecoslováquia. Só lembrando
que o cenário histórico-político da história das garotas foi no período da Segunda Guerra Mundial. Na épo-
ca, a arte foi um elemento que levou para as meninas um ideal de liberdade em meio ao caos absoluto que
ocorrera durante aquele período. A utilização de desenhos e colagens foi levada até as meninas pela artista
plástica e precursora da arte terapia, Friedl Dicker-Brandeis, prisioneira judia no campo de Theresienstad,
com auxílio de cuidadores. O quarto 28 era um dos aposentos de um dos prédios do campo de concentra-
ção em Theresienstad e, conforme já explanado, essas meninas viveram separadas dos pais, porém, a arte
foi utilizada como plataforma libertária e de esperança, logo o título deste artigo se justifica por esse apelo
encontrado. Vale ressaltar que esta exposição foi baseada no livro da escritora alemã, Hannelore Brenner.

Relato de experiência e iniciação ao processo de mediação na Galeria

Como já havia falado, a escolha do espaço se deu por motivo de proximidade do local em que moro
e por ter curiosidade de conhecer como se dá a prática educativa e mediadora no local. Na verdade, a pri-
meira coisa que fiz foi entrar em contato com a gestão da instituição e, com isso, tive o contato com Mariana,
a coordenadora do educativo da Galeria, que teve muita atenção na minha recepção e por me apresentar ao
grupo de profissionais que trabalham juntamente com ela no espaço. Como forma de apresentação, Mariana
me falou aspectos gerais da Galeria, além de equipe da gestão, da exposição que estava ocorrendo e, por fim,
do funcionamento do equipamento cultural em questão.

Com isso, me apresentei, disse quem eu era e o que pretendia fazer. No caso, como já menciona-
do, eu deveria cumprir uma carga horária na Galeria, fazendo parte da equipe de educadores que fazem
a mediação no espaço, bem como aplicar alguma atividade na etapa educativa da instituição. Ela aceitou
e, no dia posterior, já começaria a atuar no espaço. Lembrando que levei, nesse primeiro momento, uma
carta de aceite feito pela faculdade Universidade para que houvesse a formalização do meu estágio na
Janete Costa.

O primeiro dia foi bem intenso. Como não sabia de muita coisa da exposição, me pus no lugar de
público espontâneo e participei, como ouvinte, das mediações dos educadores da Galeria para que eu sen-
tisse a forma como eles fazem as pontes entre a exposição e o público. Diante disso, trago a afirmação de
Vergara (2011, p. 180):

Entende-se também como espaço de mediação o envolvimento de todo museu,


todos os profissionais da instituição, buscando formar uma política única de cons-
trução de sentidos; do cuidado com o acolhimento de diversos olhares, públicos
e temporalidades.

Com isso, através da leitura deste autor, puder enxergar este excerto na minha vivência na Galeria.
Uma instituição bem articulada para com o atendimento ao público, bem como na própria gestão do espaço
que diariamente é visitado por muitas pessoas. Além do mais, concluí, com as palavras de Vergara, a im-
portância da comunicação e da relação entre os envolvidos do espaço de mediação, quando me coloquei em
dois lugares: como futuro educador daquele recinto, entendendo a prática de gestão ali trabalhada, e como
público, ao entender como se dão as mediações da instituição e práticas educativas.

414. Entre 12 e 14 anos.

805
Em um caderno, anotei tudo o que os educadores falavam e, ao mesmo tempo, observava a recepção
do público perante a mediação. Nesse dia, um grupo em que me infiltrei foi de alunos do Ensino Médio de
uma escola pública da cidade do Recife. Alguns observavam o espaço por nunca ter entrado numa Galeria
como aquela, outros não se interessavam pelo que viam e, diante disso, faziam deboches e risadas sem con-
texto. Porém, grande parte dos grupos que observava prestava atenção da mediação dos educadores.

No dia posterior, recebi a camisa oficial da exposição. Naquela hora, fiquei nervoso pois teria que, a par-
tir disso, mediar. Porém, fiquei um pouco mais tranquilo, pois Mariana havia me falado que os educadores da
Janete Costa quase nunca mediavam sozinhos um grupo grande, sempre havia auxílio de outro(s) educador(es).

Como nos dias de semana415 recebíamos muitos grupos de escolas, sempre havia um revezamento
entre os educadores na maneira que quando um grupo chegava em torno de 50 alunos, por exemplo, eram
divididos em dois grupos e cada grupo ficaria com 2 educadores, um dando suporte ao outro.

A minha experiência da mediação foi feita através de dois tipos: com grupos de escola (acima men-
cionado) e público espontâneo. No primeiro, escolas marcavam mediações416 na própria Galeria durante a
semana e eu pude mostrar, mesmo com as incertezas, uma desenvoltura para atender aquele determinado
tipo de público juntamente com os educadores.

Momentos da exposição “Meninas do Quarto 28”


Foto: Marco Cézar Filho (Acervo Pessoal) - 24/08/2017
Galeria Janete Costa, Recife (PE)

Já no segundo tipo de mediação, com o público espontâneo, era um pouco diferente. Pude observar
que as pessoas que chegavam para participar da mediação, muitas vezes, estavam com o intuito de saber um
pouco sobre a exposição, pois viram em algum determinado local fora da galeria ou através de alguma con-
versa. Acho que um fator que chamou muito a atenção do púbico estava relacionado ao fato de que a expo
traz uma temática muito polêmica e histórica (os campos de concentração e os massacres trazidos na Segunda
Guerra Mundial). Porém, é bom explanar que nem sempre o público espontâneo, que chegava à Galeria para
conhecê-la, tinha o intuito de visitar a exposição. Percebi que a maioria das pessoas que chegavam àquele re-
duto, aos sábados e domingos, por exemplo, eram visitantes do parque e frequentadores da praia ali próxima.
Indagações a respeito de valores para entrada eram muito frequentes, pois muitas pessoas perguntavam se para
entrar naquele espaço tinha que pagar; quando eu falava que sim, o sorriso no rosto aparecia.

É importante ressaltar também que, muitas das vezes, criávamos caminhos para que a compreensão
a respeito da história das meninas se concretizasse e gerasse a reflexão por parte do público através da forma

415. Somente entre quartas e sextas. Sábados e domingos, a Galeria não recebe grupos agendados.
416. O projeto da exposição “Meninas do Quarto 28” tinha como característica a liberação de ônibus para que pudessem levar alunos de várias
escolas públicas, para conhecer a exposição. Cada dia, eram em torno de dois a três ônibus que faziam esse percurso durante a semana para levar
os alunos para conhecer a exposição e a Galeria como consequência. Em sua maioria, eram escolas localizadas na Região Metropolitana do Recife.

806
que ali apresentávamos. Como as obras estavam dispostas de forma circular na Galeria, podíamos começar
tanto por um lado quanto por outro para que a mediação ocorresse, invertendo as ordens, porém o enten-
dimento não iria se esvair.

Acredito que um dos momentos que mais me chamou atenção durante esse percurso foi quando
uma das curadoras da exposição, Roberta Sundfeld, teve uma conversa com o corpo de educadores e gestão
da Galeria. Nesse momento, pudemos dar um feedback das realizações, dúvidas, probabilidades e soluções
para a demanda que a exposição estava trazendo. Pude então explanar, de maneira sucinta, o que achava da
exposição e, muitas das vezes, tanto Roberta como Mariana417 puderam dar toques de como melhor receber
o público. Dessa forma, tentei criar as pontes que citei anteriormente, fazendo com que esse público se sen-
tisse à vontade em participar e compreender as questões trazidas na exposição.

Por fim, nas etapas das mediações, levávamos os grupos com os quais havíamos feito as mediações
para uma segunda etapa. A etapa da proposta educativa que será detalhada a seguir.

A proposta educativa

A realização das propostas educativas foram, para mim, os fechamentos dos ciclos da mediação que
ali construí. A compreensão acerca de como os educadores constroem a sua mediação foi muito agregado-
ra, sem falar nos teóricos que pude estudar e que estão dispostos no corpo deste artigo, para uma melhor
performance na hora de mediar. Com isso, explanarei as propostas educativas pelas quais fiz parte, durante
a minha vivência até então apresentada na Galeria Janete Costa.

A internacional exposição, “Meninas do Quarto 28”, possui de forma itinerante, a proposta de apli-
cação pelo corpo educativo, dois formatos de práticas educativas: a primeira está relacionada a produção de
uma bandeira e uma outra utilizando o cartão postal. Na primeira prática supracitada, foi desenvolvida a
temática da união utilizando a rememoração de uma bandeira construída pelas “Meninas do Quarto 28” a
intitulada Ma’agal, que do hebraico significa “círculo e perfeição”.

Logo, esta proposta trazia a reflexão da relação da união que as meninas tiveram que ter na tentativa
de superação daquele mundo de caos que viviam, fazendo com que o público participante da oficina pudesse
construir com tintas guache e tecido, o que os representam unidos.

Produções artísticas – prática educativa I – atividade da bandeira


Foto: Marco Cézar Filho (Acervo Pessoal) - 26/08/2017
Galeria Janete Costa, Recife (PE)

Conforme a foto acima, pode-se ver que os resultados foram os mais variados e percebe-se caracte-
rísticas imagéticas que refletem os grupos418 participantes dessa intervenção artística-pedagógica.

417. Coordenadora do educativo da Galeria


418. Apresentada na exposição.

807
Já na segunda prática pedagógica, a escrita e o desenho foram as atividades realizadas com base nas
sobreviventes, atualmente vivas, do quarto 28. Os participantes desta oficina deveriam escrever mensagens
de apoio, superação, agradecimentos e menções, sendo assim, fazendo homenagens às sobreviventes pelas
suas trajetórias.

Além disso, nos foi passado que essas cartas depois iriam ser reunidas e enviadas pela produção da
exposição para cada uma das sobreviventes. Na próxima página, as apresentações de algumas dessas produ-
ções tornam-se evidenciadas. Emocionante!

É importante mencionar que os grupos de educadores da Galeria Janete Costa poderiam propor
alguma atividade, porém, essas propostas só poderiam ser aplicadas aos sábados à tarde (das 15h às 19h),
sempre com a temática relacionada com a exposição vigente.

Produções artísticas – prática educativa II – atividade do cartão-postal


Foto: Marco Cézar Filho (Acervo Pessoal) - 26/08/2017
Galeria Janete Costa, Recife (PE)

Em uma das semanas, propus a minha oficina com o auxílio dos educadores da instituição, dando
ênfase a Francis Lemos, que me ajudou na composição da proposta, além da minha professora Ana Lisboa
da UFPE. Além da aprovação de Carlito (diretor da Galeria) e Mariana (Coordenadora do Educativo).

Ou seja, no geral, fiz parte de três oficinas, sendo esta última idealizada por mim, a intitulada, “Co-
lorindo com Papéis”, que remontou aos participantes a técnica artística utilizada com meninas do quarto
28 pela sua professora, Friedl. A estratégia de ação se deu da seguinte forma: após a mediação prévia da
exposição, os participantes deveriam desenhar, em seus papéis, algo que lhes remontassem à exposição ou
a algo que representasse a liberdade. A partir disso, ao invés de eles pintarem totalmente os desenhos feitos,
deveriam colorir com colagens os desenhos produzidos. Os materiais utilizados foram: papéis coloridos,
cola, tesoura, lápis e borracha.

Após isso, houve um compartilhamento dessas produções no próprio grupo para que cada um pudesse
explanar um pouco do seu processo de criação. A seguir, podem ser observados momentos desta experiência.

Momentos de produção – prática educativa III – “Colorindo com Papéis”


Foto: Marco Cézar Filho (Acervo Pessoal) - 09/09/2017
Galeria Janete Costa, Recife (PE)

808
Produções - “Colorindo com Papéis”
Foto: Marco Cézar Filho (Acervo Pessoal) - 09/09/2017
Galeria Janete Costa, Recife (PE)

Como referencial imagético, além das próprias ideologias e pormenores trazidos na exposição,
apresentei ao grupo algumas obras da Tomie Ohtake (*1913 - †2015), uma artista plástica japonesa naturali-
zada brasileira que utiliza muito em seu processo criativo, cores e colagens. Além disso, algumas obras com
colagens de artistas que marcaram a história da arte, são eles: Georges Braque (*1882 - †1963), Pablo Picasso
(*1881 - †1973) e Henri Matisse (*1869 - †1954).

Imagens utilizadas para a construção do referencial


“Violino e Jornal” de Braques, “Violino” de Picasso e “O Palhaço” de Matisse.

Foi extremamente frutífera a recepção do público para com esses referenciais, pois os indivíduos
puderam desenvolver suas poéticas e construções visuais a partir das imagens da exposição, das anterior-
mente apresentadas por mim e pelos gostos pessoais. Acredito que mesmo não levando referencial teórico
externo à exposição, a proposta educativa ocorreria de uma maneira diferente, mas não pormenorizada.
Por estarmos em ambientes acadêmicos que sempre fazem por “pressionar” a prática de se basear em algum
teórico para explicar as nossas pesquisas, é relevante mencionar que seria uma outra possibilidade construir
uma proposta que utilizasse, somente a exposição como recurso de referência. Refletindo esse questiona-
mento trago, novamente, Vergara (2011, p. 181) pois este contempla que

O espaço do acontecimento artístico está carregado de textos e temporalidades de que se


experimenta pelos sentidos no tempo presente e as múltiplas camadas de narrativas e von-
tades utópicas que encarnam os discursos artísticos quando transformados em geografia
de ações e fluxos de perceptos e afetos.

Ou seja, através do jogo entre certeza e incerteza que passamos a compreender melhor e a se per-
guntar a respeito da ocorrência das experiências pelas quais passamos. Logo, reafirmo que reavaliar a prática

809
educativa e de mediação perante o estudo das variantes que ocorrem durante o processo faz com que consi-
gamos compreender as várias maneiras que podemos atuar neste âmbito, desde a própria prática e teoria até
a avaliação dos resultados obtidos no processo.

Considerações finais

Como sempre menciono: em todos os projetos que construo e faço parte, o que vale é a experiên-
cia que pude agregar. Esse estágio muito me engrandeceu como futuro arte-educador pois a compreensão
acerca de temáticas de mediação e, além disso, o trabalho com o público através de oficinas educativas, me
proporcionou a entender de que forma esses indivíduos se relacionam com a prática de visitação a museus
e galerias. Além do mais, o conhecimento da minha parte a respeito da gestão de um equipamento cultural
da cidade do Recife, que é a Galeria Janete Costa, pôde corroborar no entendimento de como devem ser
desenvolvidas as atividades dentro deste ambiente de educação não-formal.

A prática da avaliação durante todo o percurso foi de suma importância. Sem a ajuda de pessoas
que puderam me aconselhar e a ajudar a definir certos métodos e propostas da minha vivência dentro da
Galeria, não conseguiria compreender da melhor maneira possível os ensinamentos absorvidos e a prática
que pude realizar.

Foi ótimo ter conhecido pessoas que trabalham com a arte da mediação e que lutam para que a
visibilidade cultural, artística e educacional do nosso estado possa permitir o acesso da sociedade a esses
bens de uma maneira mais simples e atenciosa. Atitudes como essas irei levar como bagagem para minhas
próximas andanças no mundo da arte.

Referências

COUTINHO, Rejane Coutinho. A formação de educado- Arte em pesquisa: especificidades. Ensino e Aprendiza-
res como mediadores culturais. In: ARANHA, Carmen gem da Arte; Linguagens Visuais. - Brasília: DF.: Editora da
Sylvia Guimarães (Org.); CANTON, Katia (Org.). Espa- Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília, 2004.
ços da mediação: a arte e seus públicos. Simpósio Inter- TOLSTOI, Leon. O que é arte. Tradução Bete Torili. São
nacional Estratégias do Ensino da Arte Contemporânea Paulo: Ediouro, 2002.
em Museus e Instituições Culturais, 2., 2013, São Paulo.
Anais... São Paulo: Museu da Arte Contemporânea da VERGARA, Luiz Guilherme de Barros Falcão. Espaço de
Universidade de São Paulo. 2013. Mediações entre utopias - escrita e inscrições labiríntica
de temporalidades: jogos + rituais = simbólico. Desafios
BARBOSA, Ana Mae. Mediação cultural é social. In: político-pedagógicos das idéias e invenções de Hélio Oi-
BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos; ticica. In: ARANHA, Carmen Sylvia (Org.);
COUTINHO, Rejane Galvão (Org). Arte/educação como CANTON, Katia (Org.). Espaços da Mediação. I Semi-
mediação cultural e social. São Paulo: UNESP, 2009. nário Internacional - Estratégias do Ensino da Arte Con-
LISBOA, Ana. Construção de uma metodologia para me- temporânea em Museus e Instituições Culturais. 1ed. São
diação: uma experiência no Instituto de Arte Contempo- Paulo: PGEHA/MAC USP, 2011. p. 177-199.
rânea da UFPE. In: MEDEIROS, Maria Beatriz de (Org.).

810
LIXO EXTRAORDINÁRIO:
ENSINO DE ARTE COM LIXO
NA ESCOLINHA DE ARTE DO RECIFE
Auvaneide Ferreira de Carvalho (EAR, PE, Brasil).

UMA INTRODUÇÃO À ESCOLINHA DE ARTE DO RECIFE:


A ARTE-EDUCAÇÃO COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO

Este artigo constitui-se como um relato de experiência que tem como objetivo apresentar uma ex-
periência educativa materializada no Curso de Férias da Escolinha de Arte do Recife (EAR) intitulado “Lixo
Extraordinário”. Para uma maior compreensão da experiência que será relatada, a seguir, apresentaremos
uma breve contextualização da Escolinha de Arte do Recife, suas práticas pedagógicas e os seus efeitos sobre
as aprendizagens artísticas das crianças.

A Escolinha de Arte do Recife – EAR é sociedade sem fins lucrativos, fundada, em 1953, por intelec-
tuais, educadores, artistas e arte/educadores - como Noêmia Varela, Augusto Rodrigues, Aloísio Magalhães,
Francisco Brennand - que possibilitaram, por meio deste espaço formativo, ressaltar a importância da arte
no processo educativo nordestino. Como relata Silva (2013, p. 43):

A fundação da Escolinha de Arte do Recife se deu aos 6 de março de 1953, como


resultado do interesse despertado entre educadores locais pelos artistas Augusto
Rodrigues e Aloísio Magalhães que mobilizaram aqueles que vieram a se respon-
sabilizar pela estruturação da nova entidade.

A EAR está situada na Cidade do Recife/PE, na Rua do Cupim, nº 124, no Bairro das Graças. O re-
ferido bairro mantém seu caráter residencial, com forte presença de comércio e serviços, muitos dos quais
funcionam ainda com as estruturas das antigas casas. Não é diferente com a EAR que até hoje funciona em
um chalé com fachadas distintas: uma da década de 1920 e outra do início do século XX, os quais resistem
entre altos edifícios da região. Trata-se de um conjunto antigo de relevante expressão arquitetônica, históri-
ca, cultural e paisagística, cuja manutenção é necessária à preservação do patrimônio histórico-cultural do
Recife – que segundo o Art. 14. da Lei nº 16.176/96 considera-se Zonas Especiais de Preservação do Patri-
mônio Histórico Cultural - ZEPH.

811
Fotografia 1– fachada da Escolinha de Arte do Recife

Fotografia de Maisa Cristina da Silva


Fonte: acervo da EAR.

Pelos relevantes serviços que a EAR vem prestando a sociedade ao longo dos seus 65 anos de exis-
tência, a instituição foi reconhecida com o título de utilidade pública nos níveis Federal, Estadual e Muni-
cipal. Nesta direção, conforme o seu estatuto, a referida organização educativa tem como finalidades: (1)
Promover uma arte/educação visando ao desenvolvimento estético e artístico da criança, do adolescente e
do adulto; (2) Mobilizar a integração dos processos da arte na educação em geral, como princípio unificador
da busca do conhecimento. Ainda em conformidade com essas finalidades, a EAR tem como objetivos: (1)
estimular a auto expressão promovendo meios e oportunidade de aprendizagem das diversas técnicas de
arte; (2) Estudar o desenvolvimento artístico de seus estudantes, analisando e difundindo seus resultados;
(3) Formar recursos humanos para o ensino, orientação, e avaliação de atividades artísticas e lúdicas; (4)
Desenvolver projetos de interesse de Arte/Educação com apoio a pesquisa cientifica; (5) Estimular a criação
de escolas do gênero, estabelecendo intercâmbio.

É importante destacarmos ainda que hoje a EAR possui um conjunto de acervos constituído por
documentos, livros, imagens e objetos artísticos, conforme descreveremos a seguir: Acervo 1 – Objetos Ar-
tísticos: aqui estão catalogadas pinturas, desenhos, gravuras, esculturas produzidas por artistas renomados
no mercado da arte a exemplo das obras do Mestre Vitalino e Gil Vicente; Acervo 2 – Produção artística dos
alunos: reune produções imagéticas dos cursistas catalogadas por ano, desde a década de 50 até a atualidade.
Acervo 3 – Bibliográfico: o qual concentra mais de 3.000 títulos. São livros de Literatura, Arte, Musicotera-
pia, Educação, Educação Especial, Filosofia, Psicologia, Revistas de Arte, Monografias, Dissertações e Teses
sobre arte/educação entre outras disciplinas afins à arte/educação; Acervo 4 – Documentos e Fotografias:
congrega documentos sobre a entidade, relatórios de cursos/oficinas, recibos administrativos, fotos da ins-
tituição desde a década 50.

Tais acervos constituem-se em importante patrimônio histórico para Arte/Educação.

Atualmente a EAR desenvolve dentro de sua prática pedagógica uma programação diversificada
de atividades como: (1) Bloco Carnavalesco; (2) Oficinas; (3) Grupos de Estudo; e (4) Cursos. O Bloco
Carnavalesco Colorindo a Folia é uma ação que valorizara manifestação e a experiência cultural do Re-
cife, colorindo de alegria a semana pré-carnavalesca desde o ano de 2012. As Oficinas de Arte são inte-
gradas à programação da Feira Nacional de Negócios do Artesanato (FENEART). São espaços oferecidos
na Feira sob a coordenação da EAR para que as crianças se divertam e aprendam por meio de diversas
atividades arte/educativas, lúdicas e recreativas (dentre o rol de oficina destacamos as que acontecem
regularmente, a partir de 2008, no pavilhão do Centro de Convenções em Olinda). Já os Grupos de es-
tudos 3 são formados por equipes atentas e comprometidas em ampliar o conhecimento e qualificar a
formação, seja inicial ou continuada, a fim de incentivar os arte/educadores e interessados para a tomada

812
de consciência crítica no contexto da arte/educação contemporânea em relação à prática docente e a for-
mação teórica. Por fim, temos os Cursos que são situados em duas categorias: Cursos Regulares e Curso
de Férias. Os cursos Regulares são aqueles que mantém suas atividades durante os períodos letivos. Seu
projeto pedagógico está estruturado em aspectos da abordagem triangular, desenvolvendo temas relacio-
nados ao universo infantil. Já os cursos de férias são aqueles que, dentre as atividades da EAR, ganham
maior proporção da instituição. Eles acontecem durante os meses de janeiro e julho de cada ano - já com
60 anos de atuação.

Os projetos pedagógicos dos Cursos de Férias da Escolinha de Arte do Recife vêm sendo construído
em parceria, desde julho de 2012, com o Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino, do Centro de Edu-
cação (DMTR/CE/UFPE) e com o Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística, do Centro de Arte
e Comunicação (DTAEA/CAC/UFPE), com o apoio da Pró-reitora de Extensão (PROEXT) da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE) e da Associação Nordestina de Arte/educadores de Pernambuco - núcleo
Pernambuco (ANARTE-PE).

Os cursos de férias vêm sendo estruturados de modo a proporcionar aos seus participantes uma
aprendizagem significativa da arte a partir de uma rede complexa de diálogo. Diálogos de caráter interdis-
ciplinares que aproxima a arte de diferentes áreas de conhecimento como a História, Geografia, Sociologia,
Filosofia, Antropologia e Biologia. Como relata Camargo (1989, p. 103):

As disciplinas, ao caminharem juntas, trouxeram inúmeros benefícios aos alunos, en-


quanto uma puxava para o raciocínio abstrato, por exemplo, transformando o saber em
termos numéricos ou algébricos, traduzindo-o em palavras ou expressando-o em valores,
o Desenho puxando para o concreto.

De modo geral o curso de férias é organizado em quatro módulos. Cada módulo, com duração
de 12h/semana, tem em sua constituição as Artes Visuais como linguagem Artística Eixo, enquanto que
a Dança, Música, Teatro e Performance, Cinema são estabelecidas como linguagens artísticas em diálogo.
Para cada módulo de aprendizagem, existe um artista homenageado. Despontando um caráter Interterri-
torial e intercultural, os artistas homenageados são de expressão local, regional, nacional, assim como são
de diferentes gêneros e etnias. O foco é que a pratica do ensino e aprendizagem dos cursos de férias esteja
articulada com códigos culturais de diferentes grupos e artistas (Richter 2003).

Estas redes de diálogos são capazes de desenvolver o projeto do curso de férias no contexto da Abor-
dagem Triangular do Ensino da Arte que postula a construção do conhecimento em arte acontece quando
há o cruzamento entre experimentação, codificação e informação. Rizzi (2008) esclarece que a abordagem
Triangular “é construtivista, internacionalista, dialogal, multiculturalista e é pós-moderna por tudo isso e
por articular arte como expressão e com cultura na sala de aula.”.

LIXO EXTRAORDINÁRIO: UM CURSO DE FÉRIAS


QUE ULTRAPASSA AS FRONTEIRAS DA ARTE

O Curso de férias a partir daqui relatado aconteceu durante o período de 08 de janeiro a 1º de feve-
reiro de 2018, na referida instituição. E foi inspirado em diferentes artistas que estabelecem o diálogo entre
arte e lixo em seus processos criativos. O curso deste período teve como temática central “Lixo Extraordi-
nário”, uma referencia direta à série de obras produzidas pelo artista visual Vik Muniz, no ano de 2010, que,
inclusive, teve também como resultado a produção de um documentário com o mesmo nome.

813
A partir dessa proposta, as crianças puderam conhecer artistas, de diferentes linguagens, que bus-
caram estabelecer uma conexão com questões relacionadas com a preservação do meio ambiente, susten-
tabilidade dos recursos naturais, reaproveitamento dos resíduos sólidos e as problemáticas sociais do lixo.

O curso foi organizado em quatro módulos didáticos. São eles: (1) Vik Muniz; (2) Zé Bezerra; (3)
Jacaré; (4) André Soares (Movimento Catamisto). Cada módulo tem como título o nome dos artistas visuais
que é homenageado e sua poética é relacionada com de outros artistas e com a temática desenvolvida no
curso como pode ser visualizado na tabela 1:

Módulo Artistas em Diálogo Período Carga Horária

Vik Muniz Ziza Pantoja, Frans Krajcberg, 08 a 11 de janeiro de 2018. 12 horas aulas
Sayaka Ganz, Marina DeBris e
Zé Bezerra Monyke Ohrana 15 a 18 de janeiro de 2018. 12 horas aulas

Jacaré 22 a 25 de janeiro de 2018. 12 horas aulas

André Soares 29 de janeiro a 01 de fevereiro de 2018. 12 horas aulas

Diante da seleção dos artistas, o curso de férias é sistematizado a partir de ações pedagógicas que
incluem: 1- Atividade de rotina (acolhimento, avisos e dúvidas, memória e avaliação da aula, verificação
das frequências, alongamento e aquecimento); 2- Atividades individuais e coletivas; 3- Atividade de leitura,
contextualização e produção artística; 4- Exposição dialogada; 5- Contação de História; 6- Brincadeiras e
jogos; 7- Indicação de visitação a espaços culturais.

A ação pedagógica foi desenvolvida com crianças de faixa etária entre 02 a 03 anos de idades nos horá-
rios das 14h até às 17h. Aonde foi possível desenvolver uma sequência didática com o objetivo de:

• Conhecer a temática central do curso de férias, a partir da obra “Lixo Extraordinário”, de


Vik Muniz e da obra de Jacaré;
• Compreender arte como uma área de conhecimento construída histórica e socialmente, a
partir de processos de leituras, contextualizações e produção  artística;
• Conhecer os artistas visuais homenageados do curso de férias (Vik Muniz, Jacaré, Andre
Soares e Zé Bezerra);
• Conhecer e vivenciar diferentes procedimentos de preservação e sustentabilidade ambiental;
• Conhecer as obras e processos criativos de diferentes artistas que estabelecem o dialogo
entre arte e lixo;
• Experimentar o uso de diferentes materiais, tecnologias, técnicas, instrumentos e procedi-
mentos na produção artística a partir do diálogo das artes visuais com o lixo;
• Vivenciar diferentes processos nas linguagens artísticas tais como Moda, Dança, Teatro,
Música e Literatura;
• Posicionar-se com alteridade diante das diferentes produções culturais e artísticas que
tenha como enfoque as problemáticas do lixo;
• Valorizar as diferentes produções culturais e artísticas que tenha como enfoque as proble-
máticas do lixo;
• Posicionar-se criticamente diante das produções culturais e artísticas que tenha como en-
foque as problemáticas do lixo.

814
Para tal, iniciamos a partir de uma excursão pela EAR para ver e conhece a composteira e apreciar
as instalações artísticas Banixo, Os Bichos de jacaré, Na passarela Zé Bezerra, Fashixo e Lixão.

Também buscamos compreender o conhecimento prévio das crianças através das seguintes ques-
tões: O que vocês acham que é isso? Para que servem aqueles materiais? Por que estão ali? O que é um lixão?
Vocês recolhem o lixo em casa? Vocês fazem a coleta seletiva? O que é uma coleta seletiva? Quem recolhe o
lixo onde vocês moram? Vocês conhecem artista que trabalham com residos sólidos domésticos? Vocês já
produziram arte com residos sólidos domésticos?

Lixão
Fonte: Auvaneide Carvalho

Super Paz
Fonte: Auvaneide Carvalho

Ao entra em contato com as obras artísticas expostas na EAR as crianças sentiam-se à vontade com
a mesma, o que surpreendeu bastante. Elas puderam brincar com a obra Lixão, e acabaram criando uma
intimidade com a mesma. O que foi bem produtivo pois era a partir desta obra que apoaríamos nossa pro-
dução artística e onde também foi possível sistematiza a aprendizagens de conhecer e vivenciar diferentes
procedimentos de preservação e sustentabilidade ambiental bem como de experimentar o uso de residos
sólidos domésticos (plástico, papel, isopor e garrafas pet) na produção artística a partir do diálogo das artes
visuais com o lixo.

Logo após fazerem a execução pela EAR e apreciarem as instalações artísticas “Banixo”, “Os Bichos
de jacaré”, “Na passarela Zé Bezerra”, “Lixão” e conhecer a composteira, aproveitamos as oportunidades e
realizamos a leitura das imagens com as obras a partir das seguintes questões: Vocês já viu esta obra? Você
consegue identificar o quer tem nela? Quem produziu? Você gosta da obra?

Realizada uma breve contextualização inicial, as crianças eram convidadas a produzir a sua arte com
residos sólidos domésticos retirados da instalação artística “Lixão”. Além disso, aproveitamos esses materiais
para realizar brincadeiras como “Onde está o Wally?”, “Seu rei mandou”, “Pipa com revista”.

No processo de ensino-aprendizagem foi possível: conhecer os artistas visuais homenageados do


curso de férias (Viz Muniz, Zé Bezerra, Jacaré e André Soares Monteiro) bem como seus processos criativos;
conhecer artistas que dialogavam com os artista homemageados tais como: Ziza Pantoja, Frans Krajcberg,
Sayaka Kajita, Marina DeBris e Monyke Ohana; Conhecer e Produzir objetos artísticos a partir de técnica
como colagem, modelagem em argila, pintura e instalação; compreender os tipos de resíduos sólidos do-
mésticos (plástico, papel, isopor e garrafas pet); experimentar o uso de resíduos sólidos domésticos (plásti-

815
co, papel, isopor e garrafas pet) na produção artística; e, por fim, compreender a importância da preserva-
ção ambiental. Desta forma, as crianças vivenciaram uma série de ações e desenvolveram as aprendizagens
previstas para o módulo.

Apreciação das instalações artísticas “Lixão”


Fonte: Auvaneide Carvalho

Em suma, os arte/educadores e as crianças leem, discutem e analisam as instalações artísticas e


durante todo o curso de férias as crianças produziram objetos artísticos a partir da exploração da poética,
estética, elementos visuais e/ou técnicas dos artistas e suas produções estudadas no módulo.

Na imagem a seguir, temos um exemplo do primeiro módulo do Curso de Férias “Lixo Extraordi-
nário” através do qual as crianças foram estimuladas a produzir imagens através da pintura com o lixo por
meio da utilização da técnica de colagem.

Producão de objeto artistico


Fonte: Auvaneide Carvalho

Já no segundo módulo que tinha como objetivo produzir escultura em argila para fazer uma insta-
lação artística no jardim da frente da EAR intitulada “Jardim Encantado”, as crianças foram estimuladas a
produzir uma escultura em argila a partir da técnica de modelagem - que substitue a técnica de esculpir nos
espaços escolares por ser considerada uma forma alternativa e segura para as crianças - dialogando com o
artista Frans Krajcberg.

816
Producão de objeto artistico
Fonte: Auvaneide Carvalho

Abaixo temos amostras do que foi produzido no terceiro módulo que teve como objetivo produzir
uma tela usando o papelão com suporte, a partir da obra do artista eixo Jacaré e dos artistas que estiverem
em diáologo.

Producão de objeto artistico


Fonte: Auvaneide Carvalho

Por fim, no quarto módulo do curso “LIXO EXTRAORDINÁRIO” o foco foi produzir objetos artís-
ticos em forma de fantasias e acessórios carnavalesco com resíduos sólidos domésticos para compor a per-
formance artística “Fashilix” trazendo como eixo o artista Andre Soares Monteiro em diálogo com outros
artistas, dentre eles a Monyke Ohana que, inclusive, fez uma residência artística durante o curso.

Producão de objeto artistico


Fonte: Auvaneide Carvalho

817
CONCLUSÃO

A partir da apresentação do relato reflexivo e imersão sensível na experiência de ensino de arte am-
biental nos cursos de férias “LIXO EXTRAORDINÁRIO” promovido pela Escolinha de Arte do Recife foi
possível concluir que foi estabelecido na práxis arte-educativa desta instituição uma rede complexa, viva e
dialógica.

Essa rede foi estabelecida a partir da criação de laços de fraternidade e cooperação mútua entre os
arte/educadores, as crianças, o conhecimento em arte e a escola, que podem ser representadas, simbolica-
mente, a partir da imagem de uma grande práxis pedagógica arte/educativa. Segundo os estudos de Souza
(2007, p. 15-16):

A concepção de PRÁXIS PEDAGÓGICA que queremos construir parte da suposição de


que se trata de uma ação coletiva institucional; portanto, ação de todos os seus sujeitos
(discentes, docentes e gestores), permeada pela afetividade, na busca da construção de
conhecimentos ou conteúdos pedagógicos (educacionais, instrumentais e operativos) que
garantam a construção de condições subjetivas e algumas objetivas do crescimento huma-
no de todos os seus sujeitos.

Em função disso, trabalhar a temática do lixo por meio de ferramentas artísticas possibilitou aos
educadores e crianças o entendimento, em diferentes níveis, sobre os diversos procedimentos de preser-
vação e sustentabilidade ambiental. Possibilitou, assim, perceber não apenas a importância deste tema e as
consequências para nossa própria vida, mas de desenvolver uma consciência crítica e sustentável no tocante
a preservação ambiental.

O curso parece ter possibilitado aos seus participantes não apenas conhecer técnicas artísticas, cria-
tivas e estéticas, mas que por meio delas e seus artistas eles pudessem começar a desenvolver uma sociedade
e um mundo em que direitos humanos e ambientais podem ser respeitados e valorados.

REFERÊNCIAS

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Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais. São do Cotidiano no Ensino das Artes Visuais. Campinas -
Paulo: Cortez, 2010. SP: Mercado de letras, 2003.
______. Tópicos Utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. RIZZI Christina, in BARBOSA, A. M. Ensino de Arte:
memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2008.
_______________(org). Inquietações e Mudanças no
Ensino da Arte. Cortez, São Paulo – SP. 2011 6° edição. SILVA, Maria Betânia; SOUZA, A.P.S.; AZEVERDO,
M.L. Memórias não são só memórias: A Escolinha de
CAMARGO, Luís (org). Arte – Educação: da pré-escola
Arte do Recife (1953-2003). Recife – PE: Ed Universitá-
à universidade. São Paulo – SP: Nobel, 1989.
ria da UFPE, 2013.
GRAÇAS, Algo mais tudo, Bairro do Recife, Recife/PE.
Nº 2, p. 54, 55. Mov. 2011

818
O ENSINO DE ARTE E O USO DA INTERNET419
COMO AUXILIO PARA APRENDIZAGEM
Rhayssa Figueiredo de Lira Siqueira
Marcos Paulo Gomes Miranda

Introdução

Existem várias formas de inovar e melhorar a abordagem dos assuntos de artes na escola, as ferra-
mentas tecnológicas são grandes auxiliadores para a aprendizagem. Mesmo dificuldades como a falta de
material podem ser contornadas pelo professor, para isso é essencial que se exerça a criatividade e se utilize
todos os materiais ao alcance. Dispositivos eletrônicos, como os celulares dos próprios alunos, outros apare-
lhos como o table420t e câmeras, ou até mesmo improvisar uma câmera fotográfica analógica feita com caixa
de sapato em sala de aula.

A internet hoje constitui-se como um item quase indispensável a vida moderna, é veículo de comu-
nicação e entretenimento, de aprendizagem e de pesquisa. Ou seja, de difusão de informações. As possibili-
dades de interação são diversas e o limite é até onde vai a criatividade. Hoje, um professor pode criar fóruns
de debates on-line421 e monitorar o andamento de pesquisas, pode compartilhar vídeos e imagens que exem-
plificam o que foi trabalhado em sala, além de dar autonomia aos estudantes de buscarem o conhecimento,
que antes era única e exclusivamente restrito a imagem do professor e embasada por um único formato de
material didático disponível em sala.

Uma breve história da internet

A internet nasceu em meados da década de 60, dentro de um contexto de guerra política, a disputa
entre os Estados Unidos (USA) e a antiga União Soviética (URSS), período da história chamado de guerra fria.

Tempos depois, a rede logo foi parar nas universidades, onde foi se integrando à vida acadêmica.
Segundo Briggs e Burke (2006, p. 301), “A visão das universidades era que a Net oferecia “acesso livre” aos
usuários professores e pesquisadores, e que eram eles comunicadores.”. Com isso, surgiram as empresas inte-
ressadas no mercado e no lucro que o ciberespaço422 poderia proporcionar e isso proporcionou o acesso de
mais pessoas essa nova ferramenta. “Surge, então, a característica dos últimos anos do Século XX na Internet:
a tríade informação, educação e entretenimento.” (ABREU, p. 5). Com o tempo mais pessoas se interessavam

419. Internet: Rede remota internacional de ampla área geográfica que proporciona transferência de arquivos e dados, juntamente com funções de
correio eletrônico para milhões de usuários ao redor do mundo; Também pode ser chamada de net, rede ou web
420. Tablet: Computador composto basicamente de uma tela touch screen, que é acionada pelo toque dos dedos ou por uma caneta especial.
421. On-line: Diz-se de computador ou de seu usuário conectado a outro computador e usuário, a uma rede local ou à internet, que lhe permite o
acesso a consultas e informações, e o envio e recebimento de mensagens e arquivos.
422. Espaço das comunicações e interação por rede de computação a partir de ambientes virtuais.

819
pela “nova mídia”, que, diferente da televisão e do rádio, o consumidor não era somente consumidor, podendo
transitar entre ser produtor de conteúdo e consumidor de conteúdos produzidos por outrem.

A internet oferece diversas ferramentas de acesso à informação como correio eletrônico


(e-mail), grupo de discussão (chat groups), recursos para transferência de arquivos (FTP
ou file transfer protocol) que, atualmente, são integrados no Word Wide Web (WWW).
A WWW é hoje a mais conhecida e disseminada ferramenta a ponto de as pessoas con-
fundirem a Web com a internet. (VALENTE, 2002 p. 5)

A Web organiza as informações disponíveis na internet em uma interface gráfica, facilitando a


interação com o usuário, isso aumentou consideravelmente o fluxo de pessoas que usavam a internet. Essa
popularização proporcionou um intercâmbio cultural, onde pessoas de várias partes do mundo poderiam
trocar informações e experiências, compartilhar conhecimentos e informar acontecimentos ocorridos ao
redor do mundo.

Hoje com a difusão das redes sociais423, a informação é transmitida em tempo real. Vídeos dis-
poníveis em sites como o Youtube424, ensinam sobre história, ciências, entre outras matérias. Filmes que
fazem parte da história do cinema são disponibilizados gratuitamente, além de sites de pesquisas, como
o Google425 , que oferece uma base de informação quase inesgotável, podendo servir como instrumento de
aprendizagem dentro e fora da sala de aula.

Sobre Arte/Educação

Compreendendo a Arte como uma linguagem com códigos específicos. Que é explorada como
área do conhecimento e sendo trabalhada como ensino da Arte em proposições para além do fazer ar-
tístico (ação de produzir arte). A Arte/educação – ensino da arte - proporciona então, uma construção
crítica e reflexiva a cerca de componentes artísticos das Artes Visuais, da Música, do Teatro e da Dança.
Sobre a inter-relação destes componentes, Barbosa (2008. p. 100), afirma que é por meio da Arte que
amplia-se a “[...] a percepção e a imaginação para apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver
a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e desenvolver a capacidade criadora de
maneira a mudar a realidade [...]``

Sabemos, a partir dos estudos teóricos de Ana Mae Barbosa, que a inserção da Arte na Educação
brasileira, vem desde o século XIX. Momento onde, o ato de ensinar arte era entendido como aula de
desenho geométrico ou apreciar obras vinda dos europeus a fim de sua reprodução técnica. E que, com a
criação da Academia Imperial de Belas Artes, houve um grande afastamento da população em geral, em
prol da formação de uma nobreza elitista ou entendedora (grifo da autora) de Arte. Fazendo com que a
Arte sofresse com um “caminho estreito e pouco reconhecido de se firmar como símbolo de distinção e
refinamento [...]”. (BARBOSA, 2012, p. 26). A partir da criação do Liceu de Artes e Ofícios, passou-se a
pensar o fazer artístico como uma atividade rentável ou comercial. Contudo, com o passar do tempo e a
virada para o século XX, houve grande avanço para o mundo das artes, principalmente quando se deu a
realização da Semana de Arte Moderna de 1922, que trouxe como fundamentos os pilares do movimento
Escola Nova, para o ensino de artes no Brasil.

423. Estrutura ou sistema integrado por pessoas e/ou organizações conectados através de uma rede, que pode ser a internet, para compartilhar valo-
res e objetivos em comuns. São exemplos de redes sociais, páginas on-line como Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, e etc.

424. Youtube: Site que permite ao usuário o acesso, carregamento e compartilhamento de vídeos.
425. Google: Empresa multinacional de serviços online e software dos Estados Unidos.

820
O movimento Escola Nova “no ensino da arte parte da ideia de livre expressão, pre-
ocupação com o processo do trabalho e não com o produto e ainda o início das pes-
quisas sobre a psicologia da aprendizagem tendo o seu foco na criança”. Pensamento
desenvolvido com base nas teorias do filósofo norte-americano John Dewey. (MOURA;
ROCHA, 2010, p. 67)

Porém, a Arte/Educação no Brasil, começou a consolidar-se a partir da criação da Lei de Diretrizes


e Bases da Educação – LDB 5692/71, renovada em 96 para a LDB 9394/96. Sendo reforçada posteriormente,
com a criação em 1998 dos PCN’s – Parâmetros Curriculares da Educação – Artes. Com a consolidação do
ensino da arte nos currículos escolares, um ganho para a arte/educação e todos os frutos que ela promove
na formação do indivíduo, temos a assimilação da tecnologia.

A educação, como prática social, e a escola, como o lugar onde a educação acontece
de maneira sistematizada, sempre buscaram nas tecnologias disponíveis recursos que
pudessem dar à educação certa qualidade e consistência, seja na utilização da lousa ao
computador. (COUTINHO, pg. 29, 2006)

A tecnologia no ensino da arte nos apresenta novos desafios. Estes desafios apresentam-se base-
ados em encontrar respostas para questionamentos acerca desta inserção tecnológica no ensino de arte/
educação.

Arte, tecnologia e ensino

Segundo OLIVEIRA e CANGUSSU (2011) “A arte sempre esteve sintonizada com as revoluções
tecnológicas em todas as épocas, e o artista sempre se serviu delas como elementos constitutivos de sua
linguagem”. A fotografia e posteriormente o cinema, foram uma grande revolução, modificando assim os
modos de consumir arte. A partir disto se tinha uma linguagem que retrata ao máximo à realidade ou a
ficção, e que atingia à pessoas de todas as classes sociais, do rico ao pobre. Diferente dos quadros e pinturas
tradicionais que, em geral, retratavam os que podiam pagar pela obra.

A revolução da tecnologia nas artes se mostrou bastante significativa, pois foi abraçada por
muitos artistas, como comentam OLIVEIRA e CANGUSSU (2011), “Além do Futurismo, o Dadaísmo,
o Suprematismo, o Construtivismo e a Bauhaus apoiaram-se no uso das tecnologias para a produção
artística. Os artistas, (...) experimentavam novas possibilidades e, por conseguinte, contestavam a arte
tradicional.” O papel do “novo” artista, é contestar o antigo, o comum, trazer sempre um novo olhar, uma
solução criativa renovada para um problema que parecia sem solução. E até mesmo trazer a tona pro-
blemas que passavam despercebidos. Mesmo que muitos fossem contra a tecnologia o fato de limitar a
arte apenas a classe burguesa era algo a ser contestado. A partir da década de 1990 houve a estruturação
da Cibercultura.

[...] a cibercultura pode ser caracterizada como a relação entre as TIC e a cultura a
partir da convergência da informática e da telecomunicação ocorrida inicialmente na
década de 1970, e que produziu uma nova relação entre as tecnologias e a socieda-
de, configurando a cultura contemporânea. (OLIVEIRA e CANGUSSU apud LEVY
(1991), p. 33)

821
A Cibercultura pode ser compreendida como toda expressão humana produzida e propagada pela
internet. Redes sociais, fóruns de discussões, jogos online, entre outros, são fenômenos sociais que produ-
zem conteúdo, comportamentos, ideias e pensamentos.

É notável a velocidade com que a tecnologia se aprimora, passamos de um tempo onde se preci-
sava aprender a usar os computadores e a “navegar” pela internet, muitas vezes fazendo curso, para um
tempo onde se tornou comum ouvir frases como “as criança de hoje já nascem sabendo a usar a internet”.
Por mais difícil que seja a situação econômica do país é comum encontrar em salas de aulas, de escolas
públicas e privadas, estudante com aparelho celular, para muitos professores é o “terror da sala de aula”,
mas usado de maneira criativa, celulares, câmeras, filmadoras e computadores, podem vir a ser um exce-
lente auxílio para as aulas. Segundo MOURA e ROCHA (2010) “O professor de Artes deve proporcionar
ao seu aluno a exploração, vivência e experimentação dessa tecnologia com atividades diversas, utilizan-
do os diversos meios para construção dos conhecimentos pertinentes às Artes Visuais.”. Antes da internet
que professor imaginaria ser possível levar uma turma inteira para visitar um museu ou galeria de arte
dentro e fora do país? Hoje as visitas virtuais são uma realidade, o que antes era uma simples foto, muitas
vezes preto e branco, em um livro que nem sempre chegava nas mãos dos alunos, podem ser exploradas
digitalmente.

É possível fazer uma visita á uma réplica em 3D de parte da Capela Sistina, podendo apreciar as
obras de Michelangelo. Diferente de uma imagem em um livro a visita permite a percepção total da obras,
aqui elas tomam parte das paredes, teto e chão, acrescentando ainda todo o esplendor da arquitetura, uma
experiência muito diferente do que ver imagens separadas da obra completa.

FIGURA 1 : Visita virtual da Capela Sistina no Vaticano.


Fonte: http://www.vatican.va/various/cappelle/index_sistina_it.htm, 2016.

A visita virtual a antiga residência de Cândido Portinari permite que o visitante visite ambientes
como se estivesse dentro da casa física, sendo permitido escolher a direção que desejar e a até a aproximação
das obras.

822
FIGURA 2: Visita virtual à casa de Portinari em São Paulo.
Fonte: http://museucasadeportinari.org.br/visite-o-museu/visita-virtual-2, 2016.

A visita virtual do Museum of Iraq, mistura imagens de obras que estão em exposição e vídeos edu-
cativos sobre a história de cada civilização exposta no museu.

FIGURA 3: Visita virtual ao Museus do Iraque em Bagdá.


Fonte: http://www.virtualmuseumiraq.cnr.it/homeITA.htm, 2016.

Além de visitas a museus, encontramos também a reprodução virtual de obras de artes com toda a
grandeza de detalhes que mesmo visto pessoalmente seria difícil aproveitar toda a experiência.

823
FIGURA 4: Book of Kells
Fonte: http://digitalcollections.tcd.ie/home/index.php?DRIS_ID=MS58_003v, 2016.

O site de vídeos da Youtube pertencente a empresa Google, permite que seus usuários assistam e
postem vídeos de forma gratuita. Nessa plataforma é possível encontrar vídeos sobre vários assuntos, além
de filmes que estão em domínio público e oferecem um excelente material, onde os estudantes podem aces-
sar dentro e fora da escola.

FIGURA 5: Imagem do filme “Viagem a Lua” de 1902 do diretor Georges Méliès.


Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=rttJC8B1aMM, 2016.

O Filme “Viagem a Lua” do diretor Gorges Méliès é um exemplo dos filmes possíveis de encontrar
disponíveis na internet, proporcionando uma excelente abordagem dentro de sala de aula ao comparar os
filmes feitos no início do cinema e os filmes de hoje, além de debater sobre os temas e as técnicas utilizadas.

824
Sobre o uso de tecnologia em sala de aula MOURA e ROCHA (2010) falam:

O uso das tecnologias contemporâneas aliadas a educação e a Arte-educação devem


proporcionar a aluno e professor o pensamento artístico. Assim como nos meios tra-
dicionais, o ensino da arte nesta perspectiva deve contribuir para o conhecer, refletir e
produzir arte. (MOURA e ROCHA, 2010, p. 33)

Muito se pode fazer aliando a tecnologia e a educação, não só acesso a imagens em alta qualidade, o
que por si só já é de grande ajuda na demonstrações em sala de aula, mas é interessante descobrir o quanto se
pode aprender, tanto aluno quanto professor possuem uma infinidade de descobertas possíveis na internet.
Aulas práticas sobre fotografia, cinema e ilustrações são soluções possíveis de serem aplicadas em sala de
aula, é possível encontrar tutoriais e sites que ensinam como editar vídeos ou organizar fotos para um vídeo
0
em Stop Motion426 , por exemplo. É indispensável ser trabalhado em sala de aula as imagens, principal-
mente as produzidas e divulgadas pela internet, pois são elas que mais atingem os jovens.

Metodologia

O caráter empírico e experimentalista advindo das investigações e hipóteses abordadas neste artigo,
expõe um método de pesquisa hipotético-dedutivo. O “método hipotético-dedutivo parte de um problema
da realidade empírica, levanta hipótese(s) ou conjecturas que, por sua vez, são testadas pela experimentação,
para chegar a determinadas conclusões.” (OLIVEIRA, 2008, p. 51) O procedimento técnico e metodológico
da pesquisa abordado para a produção deste artigo consistiu em realizar uma análise de pesquisa investiga-
tiva e exploratória, a partir da revisão bibliográfica dos autores aqui citados. Revisão realizada em livros, pe-
riódicos, cadernos temáticos, artigos científicos e em matérias publicadas na internet, que tenham respaldo
científico e o relato de experiências educacionais.

Considerações Finais

Quando falamos sobre educação e ensino, a primeira ideia que vem a mente é a sala de aula padrão,
com as cadeiras enfileiradas em sequência e viradas para o quadro. E ainda, a imagem do professor impo-
nente em frente aos alunos ou escrevendo o conteúdo no quadro, enquanto os alunos copiam. Percebemos
ao longo da história da educação como a busca espontânea por conhecimento, a criatividade e o desen-
volvimento de uma identidade foram oprimidas nos alunos, que eram tratados com uma folha em branco
onde só o conhecimento vindo da escola poderia ter algum valor. Esse modelo funcionava para as crianças
e jovens de épocas passadas, às crianças e jovens atualmente convivem com a informação de maneira muito
mais ativa e autônoma. As redes sociais ajudam na alta difusão destas informações, sabemos que nem todas
pessoas possuem uma fonte confiável de aquisição do conhecimento e é aí que o papel da escola e dos pro-
fessores se faz ainda necessário. Para atuarem como agentes mediadores da informação e do conhecimento.
Estimular o pensamento crítico nas crianças e jovens contribui para formar adultos que buscam a verdade,
que pesquisam e estudam antes de aceitar o que lhes é simplesmente apresentado, além de incentivar a
curiosidade, esse é um dos grandes objetivos da escola. A arte é uma ferramenta para ajudar a formar um ser
humano crítico e criativo, que olha a sua situação sob vários ângulos diferentes.

426. Stop Motion: Técnica que utiliza sequências de fotografias que dispostas em uma produção cinematográfica gera a ilusão de uma imagem em
movimento.

825
O ensino artes passou por várias modificações ao longo do tempo, do ensino técnico e reproduções
estimulados pelas Belas Artes, passando pelas recriações artísticas, a desvalorização e a negligência do en-
sino de Artes no Brasil. Tivemos uma retomada de discussões sobre a importância do ensino de artes com
a proposta triangular de Ana Mae Barbosa, que foi um grande marco para a arte/educação brasileira, e por
fim chegamos a uma época onde é notável que ficou mais fácil das crianças descobrirem e explorarem as-
suntos novos, através das tecnologias da informação, e não mais depender exclusivamente de um professor
ou de enciclopédias. Muitos podem achar a interação dos jovens com jogos uma perda de tempo, mas dei-
xam de perceber que dentro daquele jogo, a criança faz amizades e troca experiências, e a escola não pode
deixar de aprender também com as tecnologias. Um simples jogo ou uso de uma rede social pode ser um
instrumento de propagação do conhecimento, e toda nova experiência irá gerar um novo valor agregado à
formação desses alunos.

Referências

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MOURA, Eduardo Junior Santos; ROCHA, Igor Hemer-
son Coimbra. Arte e Educação.

826
O NÚCLEO DE ARTE DO
IFRN-CAMPUS PARNAMIRIM COMO
AÇÃO EXTENSIVA DE FORMAÇÃO
ARTÍSTICA, CULTURAL E CIDADÃ
Francy Izanny de Brito Barbosa Martins – IFRN
RebekaCaroca Seixas - IFRN

E ste artigo tem como objetivo apresentar um relato reflexivo de experiência sobre o Núcleo de
Arte do IFRN-Campus Parnamirim (NUARTE), que foi criado por meio da Portaria nº 220 - 2017/DGPAR,
de 17 de maio de 2017, e está situado na cidade de Parnamirim/RN. Desse modo, a existência de tal núcleo
parte de uma demanda existenteque buscam por cursos de pinturas e desenhos, grupos musicais, grupos de
dança e grupos cênicos, formados por estudantes, servidores e comunidade externa ao Campus.

Assim, o NUARTE apresenta uma proposta de ação cultural e educativa de acolhimento de expres-
sões artístico-culturais que contribui com ações dessa natureza para a região metropolitana da grande Natal
e se propõe a realizar formação inicial e continuada, promover eventos e projetos de extensão.

Uma vez que o IFRN-Campus Parnamirim possui grupos musicais, grupos teatrais e grupos de
leitura, formados por estudantes e servidores, o Núcleo contribui com o estudo, o acompanhamento e a
promoção da produção artística e dialoga diretamente com a comunidade, valorizando os artistas locais e
sua produção.

Nesse contexto, o Núcleo foi criado a partir do pressuposto de que a experiência estética soma-se
ao conhecimento científico na produção de sentidos para a realidade (BARBOSA, 2008). Dessa forma, as
linguagens artísticas, sem contradizer a ciência ou a lógica formal, mas suplantando-as pela potência dos
sentidos corporais, desvela-nos outras paisagens epistemológicas que se operam por uma imersão no mun-
do que vai além da manipulação das coisas.

Assim, a procura da comunidade pela música, a dança, o teatro, as artes visuais, a literatura dentre
outros, é um modo de abordagem do real que se interessa não em traduzi-lo ou representá-lo em discursos,
sons, movimentos ou imagens, mas em friccioná-lo e colocá-lo ao avesso, com vistas a produzir sentidos
antes não vislumbrados.

Nesse sentido, as linguagens artísticas, nascidas da existência que não pode ser senão existência
incorporada, materializam, desse modo, aquilo que Rancière (2009, p. 15) nomeia de partilha do sensível.
Trata-se de um “sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e
dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas”, uma partilha cujo interesse reside não em um
status salvador da Arte, mas na fundação de um outro regime de inteligibilidade da realidade, caracterizado

827
por ser “um modo de articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras (...) e mo-
dos de pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada ideia da efetividade do pensamento”
(RANCIÈRE, 2009, p. 13).

O que está em questão na Arte é uma outra experiência do pensamento, fundada na potência do
corpo sensível e desencadeadora de um outro comércio com o real.Tal experiência exige, todavia, de uma
educação dos sentidos, que não isola das outras dimensões da vida social, mas apresenta-se como meio do
qual se torna possível a expansão dos modos de pensar a sociedade, a política, a linguagem, enfim, o mundo.

Dentro desse contexto, o IFRN reconhece esta necessidade em seu Projeto Político-Pedagógicoao
afirmar como um dever institucional “possibilitar o acesso a produções culturais do campo científico, ar-
tístico e tecnológico que ampliem a maneira de ver e de estar no mundo” (DANTAS; COSTA, 2012, p. 45).
Ademais, quando se refere à concepção de educação, o documento assevera “a necessidade de implemen-
tar um processo educativo que desvele práticas mediadoras e emancipatórias, capazes de contemplar, em
consonância com o rigor científico e com a omnilateralidade humana, as dimensões culturais, linguísticas,
artísticas, sociais, técnicas e tecnológicas” (IDEM, 2012, p. 54).

Nesse contexto, o Núcleo de Arte do IFRN-Campus Parnamirim visa contribuir com a formação
artística, cultural, cidadã e crítica de estudantes que integram a educação profissional e tecnológica, bem
como da comunidade externa ao Campus, promovendo atividades que proporcionem o diálogo e o fazer
teórico-prático com a produção artística local, regional e nacional.

Assim, o NUARTE possui uma infraestrutura com sala de Música, Ateliê de Artes Visuais, Sala
Teatro e Dança que possibilita o trabalho artístico com as diversas linguagens e também de maneira inter-
disciplinar, planejadas com o objetivo de propor ações de efetiva interação com a cultura local.

Como metodologia para a realização do projeto, as seguintes ações estão sendo desenvolvidas desde
o ano de 2017:

- Realização do evento “Mostra de Curta-Metragem”, com exposição de curtas-metragens elabora-


dos pelos estudantes do 2º e 3º ano do ensino médio integrado e palestras;
- Realização do cadastro de artistas do campus IFRN-Parnamirim e de artistas residentes nos mu-
nicípios situados no entorno da Instituição;
- Realização da Oficina de Pintura a Óleo sobre tela, com uma carga-horária de 30h;
- Realização da Oficina de Pintura em Aquarela, com uma carga-horária de 30h;
- Realização do curso de Fundamentos do Desenho de Observação, com uma carga-horária de 30h;
- Realização do curso de Desenho de Realista, com uma carga-horária de 60h;
- Realização da Oficina de Mangá, com carga-horária de 12h;
- Realização do curso de Representação Teatral, com uma carga-horária de 60h;
- Desenvolvimento do Projeto Cinearte, que se caracteriza como uma atividade multidisciplinar
de formação. Trata-se da exibição de filmes de arte no Campus Parnamirim, em sessões dialogadas
com professores das áreas contempladas no filme; haverá também oficinas de produção de vídeos
para crianças e adolescentes de escolas públicas;
- Realização do evento “Encontro com o artista” que promoverá a apresentação de um artista con-
vidado (local/regional/nacional) com a participação de espectadores da comunidade interna e ex-
terna ao Campus.

828
- Realização do evento “Festival de Talentos”, que ocasionará a apresentação de artistas da comuni-
dade interna e externa por meio de inscrições nas linguagens de dança, teatro e música;
- Participação em eventos científicos com produção de artigos e apresentação de trabalhos relacio-
nados ao NUARTE do Campus Parnamirim.
Dentre as ações realizadas até o momento, destacamos o Curso de Formação Inicial Continuada
(FIC) em Fundamentos do Desenho de Observação e o Curso de Formação Inicial e Continuada (FIC) de
Representação Teatral que tiveram início no mês de março do ano vigente.

Assim, o Curso de Formação Inicial e Continuada (FIC) em Fundamentos do Desenho de Obser-


vação, ofertado para adolescentes de 12 a 17 anos, tem como pressuposto que oato de desenhar nunca saiu
de moda, dado que sempre esteve presente na história humana, das paredes das cavernas às telas de tablets
da era digital. O desenho é uma linguagem prodigiosa no desenvolvimento do humano, especialmente,
da criatividade, da capacidade de percepção e da capacidade de abstração, elementos fundamentais para
exercer uma profissão nessa sociedade que cada vez mais necessita de tais habilidades para tarefas com as
ferramentas computacionais.

Desse modo, ao desenvolvermos o desenho em um curso de “Fundamentos do Desenho de Obser-


vação” possibilitamos a ampliação da criatividade, como capacidade de reorganizar elementos e recombinar
variáveis; a percepção, auxiliando no entender o espaço, captar detalhes e interpretar efeitos; a abstração,
no permitir fragmentar o todo, separar os elementos, selecionar partes para recombiná-las na nova síntese.

O curso apresenta-se como uma possibilidade de ampliar o repertório dos participantes por meio
do exercício da prática do desenho de observação e sensibilização do olhar, através do qual, ao longo das
aulas,os adolescentes e jovens ampliam o repertório de imagens, técnicas artísticas e criatividade (PINO;
SCHLINDWEIN; NEITZEL, 2010).

As aulas são desenvolvidas em duas turmas no período de um semestre letivo e é dividido em dois
módulos: o primeiro referente aos conceitos teóricos por meio de aulas expositivas e dialogadas seguidos de
orientação sobre as observações a serem consideradas nos exercícios e o segundo alusivo às aulas práticas
utilizando materiais e técnicas de desenho e tem como objetivos específicos: usar corretamente as ferra-
mentas básicas do desenho; adquirir os fundamentos da técnica do desenho, a partir dos elementos princi-
pais como: ponto, linha, luz, sombra, perspectiva, entre outros; aplicar os conceitos básicos do desenho na
construção de imagens; alcançar as noções de criatividade, percepção, abstração e representação no espaço;
desenvolver habilidade para o traço a mão livre e ter a capacidade de representar por meio do desenho as
imagens adquiridas de suas percepções.

Quanto ao Curso de Formação Inicial e Continuada (FIC) em Representação Teatral, este é desen-
volvido no intuito de introduzir os alunos a contribuir com a sociedade de uma forma geral oferecendo edu-
cação no campo da preparação e formação do ator que não encontramos com facilidade em nossa região.

Sendo um veículo poderoso no desenvolvimento humano, especialmente no campo da criativida-


de, expressão, saúde física e bem-estar, comunicação interpessoal e do relacionamento social e humano,
elementos fundamentais para exercer uma profissão nessa sociedade que cada vez mais necessita de tais
habilidades para o desenvolvimento pessoal e profissional, não importando a área de interesse dos egressos.

Desse modo, ao desenvolvermos um curso de preparação e formação de atores com foco na “Repre-
sentação Teatral” estamos possibilitando ao estudante uma iniciação e um contato com as principais teorias
e técnicas contemporâneas de atuação e encenação teatral que visam a formação de um indivíduo consciente
de seus recursos expressivos: corpo, voz e criatividade. Esse indivíduo deve descobrir, trabalhar e utilizar

829
todos esses recursos na elaboração e na construção estética, plástica, visual e concreta de seus sentimentos,
ideias, pensamentos e mundos ficcionais.

O curso, ainda, apresenta-se como uma possibilidade de ampliar o repertório dos estudantes por meio
do exercício da prática teatral e sensibilização dos recursos físico-corporais, como também pretende atender a
demanda de adolescentes e jovens que buscam a formação profissional, a arte e a cultura, bem como a convi-
vência comunitária, sendo assim, também, um espaço de exercício plural da cidadania e coletividade.

[...] só apresentará um nível profissional elevado na medida em que houver um público


culturalmente maduro para assisti-lo e sustentá-lo. E este só poderá formar-se numa expe-
riência educacional integradora que inclua a aprendizagem da relação arte/vida. De nada
adianta a instalação de cursos superiores de arte dramática se essa dimensão não se fizer
presente em todos os níveis do processo educativo (CHAVES apud REVERBEL, 1979, p. IX).

Os objetivos do curso são apresentar o universo da representação teatral por meio das suas prin-
cipais teorias, técnicas e códigos através do diálogo com o exercício da prática e formação do ator e/ou
atuante; ensinar os fundamentos e teorias centrais da representação teatral na contemporaneidade a partir
dos seus elementos principais: ator, dramaturgia, encenação, visualidades, entre outros, tomando como base
a construção de produtos e extratos cênicos; experimentar e usar técnicas de atuação para a construção de
personagens nas mais variadas estéticas e gêneros teatrais; aplicar os conceitos básicos na formação e pre-
paração do ator; aplicar os conceitos e noções básicas na construção da personagem; alcançar as noções de
criatividade, percepção, expressão e representação do corpo na ocupação do espaço.

Foram abertas quatro turmas, duas no turno matutino e duas no turno vespertino, cada uma com 25
vagas. A faixa etária dos alunos variava entre 14 e 18 anos o que, em momento algum, se configurou como
um problema em nenhuma das turmas. É importante destacar que estamos, atualmente, no meio do pri-
meiro semestre do curso. Nesse sentido, como análise preliminar, podemos perceber que o desenvolvimento
dos alunos tem sido satisfatório. A metodologia das aulas são especificamente os Jogos Teatrais propostos
por Viola Spolim e Augusto Boal. Tal metodologia tem se apresentado com satisfatória para o aprofunda-
mento dos alunos nos conhecimentos que envolvem a linguagem cênica. Entraremos agora, nas próximas
aulas e até o final do semestre, na montagem de um espetáculo sobre o tema do Tropicalismo. Nesse sentido,
a apresentação publica se tornará o instrumento de encerramento das nossas atividades.

Ademais, a metodologia vivenciada e realizada pela articulação da coordenação, docentes, bolsistas


e voluntários contribuiu para um melhor desenvolvimento das atividades planejadas e para a reflexão de
melhoria das ações em uma nova oportunidade de realização no ano seguinte.Para os bolsistas do NUARTE
a aprendizagem desenvolvida ao longo do projeto foi muito gratificante, especialmente, em trabalhar coleti-
vamente e poderem despertar o interesse pelo desenho, pela fotografia e pela arte em geral.

Por fim, o acompanhamento e a avaliação do NUARTE são realizados por meio do sistema SUAP,
onde são informadas as atividades e as metas alcançadas ao longo do ano, bem como é realizada a aplicação
de questionários ao público interno e externo, além de reuniões periódicas entre os integrantes docentes,
bolsistas, voluntários e a coordenação do Núcleo.

Desse modo, o NUARTE vem contribuindo no desenvolvimento de atividades artísticas no Campus


Parnamirim. Entretanto, por ser ainda o seu primeiro ano de realização, foi necessário mobilizar a comu-
nidade escolarpara este poder se firmar como um núcleo de atendimento à comunidade externa, especial-
mente, à áreas de baixo poder aquisitivo. A criação desse projeto colabora para o desenvolvimento da arte
em suas diferentes linguagens, proporcionando um espaço para a sua manifestação.


830
Referências Bibliográficas
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de Janeiro: Zahar, 2012. CRV, 2010.
BARBOSA, A. M. (org.). Arte/educação contemporâ- RANCIÈRE, J..A partilha do sensível: estética e política.
nea: consonâncias internacionais. 2. ed. Cortez, 2008. São Paulo: Editora 34, 2009.
BOAL, A.. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janei- ______. O mestre ignorante: cinco lições sobre a eman-
ro: Civilização Brasileira, 1998. cipação intelectual. Belo Horizonte:Autêntica, 2010.

DANTAS, A. C. da C.; COSTA, N. M. de L. (orgs.). Proje- ______. O espectador emancipado. São Paulo: Martins
to Político-Pedagógico do IFRN: uma construção coleti- Fontes, 2012.
va: documento-base. Natal: Editora do IFRN, 2012. REVERBEL, O..Teatro na sala de aula. 2ed. Rio de Janei-
GONÇALVES, L. R.. Entre cenografias: o museu e a ex- ro: J. Olympio,1979.
posição de Arte no século. São Paulo: Editora da Univer- SPOLIN, V.. O jogo teatral no livro do diretor. São Pau-
sidade de São Paulo/Fapesp, 2004. lo, 1985.
NÓBREGA, T. P.. Sentir a dança ou quando o corpo se ______. Jogos Teatrais na Sala de Aula: um manual para
põe a dançar. Natal: Editora do IFRN, 2015. o professor. São Paulo: Perspectiva, 2010.
PINO, A.; SCHLINDWEIN, L. M.; NEITZEL, A. de A. ZUMTHOR, P.. Performance, recepção, leitura.São
(organizadores). Cultura, escola e educação criadora: Paulo-SP: Cosac Naify, 2

831
OFICINA VISUALIDADES SONORAS:
A PREPARAÇÃO DE VOZ DURANTE
PROCESSO DE MONTAGEM TEATRAL
Elthon Gomes Fernandes da Silva – UFPB
Ediel Barbalho de Andrade Moura – UFPE

INTRODUÇÃO

Preparação vocal: influências

O trabalho de preparação vocal compõe um dos elementos que ajuda o elenco na criação de suas
personagens durante um processo de montagem teatral. Diferentes estratégias devem ser lançadas para que
voz e movimento do(a) artista possam estar integradas ao texto teatral, contexto da cena e propósito da
personagem. Como preparador de voz, minhas inquietações incluem perguntas sobre quais estratégias devo
trazer ao grupo, para que as atividades de voz tenham uma dinamicidade que estimule o processo criativo.

Além disso, também me questiono sobre quais abordagens podem ser concebidas com intuito de
trazer ao momento de ensaio uma experiência de ensino-aprendizagem vocal e levar os(as) artistas a refletir
sobre a teoria, prática e relações da preparação de voz com as outras ações da equipe de trabalho com atores
e atrizes (preparação corporal e direção do espetáculo).

A elaboração das atividades que pretendo realizar com o elenco surge a partir de intuições; obser-
vações sobre o elenco; informações recebidas pelo diretor, encenador e demais profissionais da equipe de
montagem; percepções iniciais sobre o texto teatral; estudo sobre a época histórica em que o texto foi escrito,
entre outros elementos. Mas também um fator que sempre me auxilia é a observação das pessoas e situações
que tenho contato no dia a dia, assim como experiências em outras linguagens artísticas.

Imagem e som: parcerias e novos espaços

Neste relato de experiência, preciso citar a minha visita à exposição Jazz, do francês Henri Matisse
(1869-1964), como um elemento disparador da idealização da Oficina Visualidades Sonoras. A obra de
Matisse foi batizada de Jazz pelo próprio autor para fazer alusão a um novo gênero musical que ganhava
espaço nos Estados Unidos e no mundo e que trazia novas experimentações sonoras, gerando cores e formas
até então pouco conhecidas para sonoridades de instrumentos musicais.

A exposição ocorrida na Caixa Cultural Recife no período de abril a julho de 2017, trouxe a visua-
lidade de obras originais construídas por recortes de papel previamente coloridos a tinta guache e também

832
obras criadas a partir de matrizes de impressão (técnica au pochoir ou estêncil). As imagens exibidas traziam
um pouco da sua nova proposta para as Artes Visuais nos anos de 1940: a liberdade das cores.

Essa profusão de cores e formas, com associação conceitual ao gênero musical Jazz, fez surgir entre
os autores do presente trabalho, um preparador vocal e um artista visual, a ideia de realizar uma parceria que
pudesse contemplar temáticas do processo de ensino-aprendizagem tanto das Artes Visuais quanto do Teatro.

A proximidade entre esses profissionais, permitiu que em 03 meses houvesse a concepção de uma
oficina que os participantes pudessem ter mais um veículo de expressão da voz além da sonoridade. Assim,
o elemento visual também seria uma nova possibilidade de registro e reflexão sobre a criação vocal feita
pelo(a) participante.

Na concepção da Oficina Visualidades Sonoras, a abordagem teórica pensada para grupo de atores
e atrizes em momento de preparação vocal deveria trazer as influências da experimentação visual feita por
Henri Matisse (2016), da reflexão sobre Imagem e Visualidade de Ortega Y Gasset (2011) e da criação de
partitura vocal como fruto do conceito de Ação Vocal segundo Gayotto (2002).

Entre as ações da oficina no âmbito das Artes Visuais, a proposta inclui que se possa dar visualidade
à imagem que o(a) participante criou de um som. Esta ação foi pensada de acordo com o entendimento de
Imagem como exposição do pensamento (a entidade abstrata) e Visualidade como a representação sígnica,
ou seja, a forma material ou concreta da imagem (ORTEGA Y GASSET, 2011).

No relato de experiência apresentado neste artigo, também consideramos o som vocal na cena como
elemento do espetáculo formado por recursos vocais e de forças vitais, devido a esta pesquisa ter influência
da abordagem de Ação Vocal apresentada por Gayotto (2002).

A autora traz o conceito de Ação Vocal para explicar que emissão da voz teatral precisa ser constru-
ída em harmonia com a cena e conter em si mesma todos os elementos da personagem (psíquicos, culturais,
situacionais, corporais). Neste sentido, o ator/atriz, por meio da experimentação, pode utilizar recursos
corporais e elementos subjetivos para criar a identidade vocal de uma personagem e registrar graficamente
esse “modo de falar”, criando assim uma partitura da voz.

Os recursos vocais podem ser primários, quando estão ligados a capacidades de realização do pró-
prio corpo (respiração, intensidade, frequência, ressonância e articulação) ou secundários, por serem conse-
quência do uso dos recursos primários e que correspondem à dinâmica da voz (exemplo: projeção, volume,
rimo, velocidade, entre outros). A subjetividade da voz cênica, obtida por consciência do uso das forças
vitais, permite que essa voz seja acompanhada de intenções e emoções diversas (GAYOTTO, 2002).

Criar um momento que o(a) ator/atriz experimentasse a voz por meio de direcionamentos baseados
no conceito de Ação Vocal, aguçasse os sentidos para criar uma imagem dessa voz e depois ele(a) trazer co-
res e formas para criação de sua visualidade, tornou-se a curiosidade de nós pesquisadores. Após estarmos
conscientes dos teóricos que nos influenciaram e dos elementos norteadores para a metodologia da oficina,
surgem os questionamentos: de onde realizá-la, qual o público a ser escolhido para este primeiro passo, se
a nova abordagem teria metodologia no âmbito das pedagogias de trabalho em voz e como a oficina traria
contribuições para a preparação vocal de um espetáculo.

Desse modo, houve oportunidade de realizar a oficina dentro do processo de trabalho do espetá-
culo Bailei na Curva, uma montagem teatral, realizada neste primeiro semestre de 2018, que faz parte do
estágio obrigatório do Bacharelado em Teatro da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Criado em 2006, o Curso de Bacharelado em Teatro da UFPB oferece uma formação interdiscipli-
nar, integrando as atividades de ensino às atividades de pesquisa e extensão com os conteúdos das áreas

833
das Humanidades, além de conhecimentos específicos das Artes Cênicas, procurando desenvolver o perfil
acadêmico e intelectual que atenda as possibilidades de ação deste profissional mercado de trabalho (CON-
SEPE, 2015).

Com a disciplina Estágio Supervisionado Bacharelado, o curso tem o objetivo de promover pe-
dagogicamente experiências profissionais dentro do processo de montagem de espetáculo teatral. Os ba-
charelandos em Teatro, ao chegarem ao 6° período do curso, participam dessa experiência na qual um(a)
professor(a) é responsável pela direção e supervisão das atividades, e realizará a montagem com a ajuda dos
estudantes e da equipe de trabalho geralmente composta por professores(as) responsáveis pela preparação
vocal e preparação corporal.

No Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de Bacharelado em Teatro (CONSEPE, 2015), está descri-
to que o objetivo geral é promover a formação do Bacharel em Teatro conforme especificidades da área e
postura criativa frente aos processos artísticos, observação da ética, compreensão de suas funções sociais e
exigências legais da profissão. Inclui também que no perfil do egresso, entre outros elementos, busca-se que
o(a) discente possua a compreensão da importância de buscar uma permanente atualização profissional,
assim como a interferência criativa no mercado de trabalho, ao propor novas formas de atuação artística.

Portanto, para cumprir o planejamento do PPC se faz necessário professores(as) criarem estratégias
pedagógicas para integração de linguagens artísticas, além de espaços propícios aos desenvolvimentos teóri-
co e prático de conceitos abordados em sala de aula, transformando a sala de aula em laboratório de criação
e aprimoramento do futuro profissional.

À luz de Tardif (2008), os saberes que o professor adquire no decorrer de sua prática, dentro e fora
do espaço da sala de aula, podem colaborar na construção de suas estratégias de ensino. Desse modo, as
inquietações sobre o trabalho de preparação vocal, o pensar em metodologia para o trabalho pedagógico em
voz e o conhecimento nas Artes Visuais adquirido em espaço não formal de ensino (a exposição Jazz), trou-
xe a nós pesquisadores o insight para criar o momento de ensino-aprendizagem com interdisciplinaridade
e (re)elaboração de metodologia que estávamos habituados a utilizar.

O objetivo do presente trabalho é descrever a experiência pedagógica da Oficina Visualidades


Sonoras, sob o olhar dos facilitadores, durante o trabalho de preparação vocal de elenco em processo de
montagem de espetáculo teatral, no Estágio Supervisionado Bacharelado da UFPB.

METODOLOGIA

O presente relato de experiência descreve a realização da Oficina Visualidades Sonoras, ocorrida


no mês de abril de 2018, durante o trabalho de preparação vocal da turma de Estágio Supervisionado Bacha-
relado em Teatro da UFPB. Com 07 pessoas matriculadas nesta disciplina, é necessária uma certa dedicação
exclusiva na turma devido a carga horária semanal de 20 horas/aula, totalizando 300 horas/aula no semestre.

O estudo tem caráter transversal e descritivo, e foi realizado a partir de registros dos professores,
contidos em diário de campo, sobre as atividades com a turma.

Bailei na Curva (CONTE, 1994) é o texto escolhido pelo esse grupo de estágio para virar espetáculo.
Trazendo na primeira fase da história os desdobramentos do golpe militar de 1964, inicia com a trajetória
de sete crianças na década de 60, os acontecimentos de suas juventudes na década de 70 e termina com os
momentos da vida adulta, no início dos anos 1980 (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTE E CUL-
TURA BRASILEIRAS, 2018).

834
Os ensaios iniciaram em fevereiro de 2018 e o planejamento de trabalho de preparação vocal do
grupo envolvia principalmente os seguintes temas:

Musicalização do ator a partir de experimentações com os parâmetros básicos do som



(duração, intensidade, altura e timbre);

Criação de timbres vocais;


Experimentação dos recursos vocais ser primários (respiração, intensidade, frequência,



ressonância e articulação) (GAYOTTO, 2002);

Experimentação dos recursos vocais secundários (projeção, volume, ritmo, velocidade,



pausa, ênfase, entonações, entre outros) (GAYOTTO, 2002);

Reflexão sobre desejos e forças subjetivas para as ações vocais da personagem, permitindo

que esta chegue ao espectador acompanhada de emoções diversas (GAYOTTO, 2002);

Exercício das características cênicas que compõem a ação vocal para a personagem (obje-

tivo e superobjetivo, ação física, situação, intenção e subtexto).

Com o objetivo do elenco criar vozes para as personagens, a oficina, com duração de 03 horas e
meia, teve a estrutura básica composta de 04 momentos:

1- Conversa inicial sobre imagem e visualidade (incluindo reflexão sobre formas, cores e
suas sensações);

2- Trabalho de criação sonora para a cena (relações de voz e movimento para trazer novas
sonoridades, formas de falar e descobertas da palavra do texto teatral durante a constru-
ção da personagem);

3- Expressão visual da voz e palavra criada durante as atividades de preparação vocal. Com
uso de papel e tinta guache em cores primárias, e posterior mistura para obtenção de
novas cores, os participantes são convidados a produzir a visualidade que representa o
momento da cena utilizado

4- Conversa sobre as relações entre Voz, Teatro e Artes Visuais.

Alongamentos, movimentos corporais amplos rotação de articulações e exercícios respiratórios,


com base nas indicações de Behlau (2010), fizeram parte do momento de preparação corporal para a criação
de sonoridades vocais. No espaço cênico delimitado na sala de ensaio, o(a)s integrantes deveriam caminhar,
uma pessoa por vez, expandindo de forma exagerada o movimento de todas as partes do corpo e o associan-
do à respiração e sons facilitadores (bocejos, sons fricativos, emissão de vogais bocejadas) (BEHLAU, 2010;
BRANDI, 2002).

Após esta fase de trabalho, a mesma proposta de caminhar na cena foi indicada e deveria ser
agora com uma fala de personagem. A cada momento de percorrer a sala de ensaio, o(a) estudante
deveria realizar variações de parâmetros vocais durante a emissão do texto da personagem. Com in-
tenção de ajudar o elenco na criação de timbres vocais, os parâmetros utilizados no exercício foram:
ressonância vocal, articulação exagerada de fala, silabação da palavra, velocidade, ênfase, entonações
de fala (BRANDI, 2002, GAYOTTO, 2002). A caminhada era relacionada a variação de um parâmetro
por vez.

835
Em seguida, esses mesmos parâmetros foram experimentados em diálogos de duas personagens.
Cada pessoa do elenco decidia o(a) parceiro(a) de cena e a dupla realizava o diálogo.

Ao fim do momento de preparação vocal, a próxima etapa seria o(a) integrante do elenco
produzir a visualidade que representasse a voz e a palavra demonstrada pelo(a) companheiro(a) de
cena. Papel e tinta guache em cores primárias foram entregues e houve a liberdade de mistura para
obtenção de novas cores. Produzidas as visualidades, houve conversa entre o grupo e os facilitadores
da oficina.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A Oficina Visualidades Sonoras se constituiu para nós, os professores, um momento de nova ex-
periência na criação de estratégia interdisciplinar em preparação vocal. Por meio de atividade prática, per-
cebemos que o(a)s estudantes interagiram entre si e receberam indicações para utilizarem de seus conhe-
cimentos prévios de criação da personagem, subjetividade e de seu material expressivo (voz e movimento)
para construir um novo olhar a respeito da voz e palavra na cena.

Pacheco (2006), ao tratar dos processos de treinamento de atores na produção teatral contemporâ-
nea, comenta que numa proposta baseada no ator manter um estilo de atuação e apenas na realização das
demandas estéticas do momento, este treinamento se configura como reprodutivo na qual o ator somente
dará um tipo de resposta (personagem). A autora acrescenta que refletir sobre esse treinamento é de grande
importância para a eficaz formação de atores.

Compartilhamos do pensamento da autora por considerarmos que, enquanto processo de en-


sino-aprendizagem, a preparação vocal precisa gerar estratégias que atores, atrizes e performers po-
tencializem sua expressividade e possam ter autonomia na decisão sobre quais recursos deverão ser
incluídos na cena.

O dia de ensaio com a escolha de atividades de movimento corporal associado à respiração e


sons facilitadores (BEHLAU, 2010; BRANDI, 2002), indicações durante o treino dos recursos vocais
(GAYOTTO, 2002) e em seguida o espaço de decisão do(a) ator/atriz sobre quais elementos devem ser
colocados em ação cênica, configura-se como uma característica pedagógica da preparação vocal do
espetáculo Bailei na Curva. O elenco de 04 atores e 03 atrizes realiza uma média de 3 personagens cada
pessoa. Várias personagens demandam do elenco características corporais e sonoras diferentes, e o tra-
balho precisava ser direcionado a oferecer os elementos que contribuíssem na criação da personagem,
mas que nessa experimentação automaticamente cada integrante do elenco mostrasse sua bagagem de
artista cênico.

Nos exercícios de preparação, atores e atrizes realizam as atividades a partir da compreensão sobre o
que foi indicado pelo facilitador (diretor, preparador corporal, preparador vocal, professor de música, entre
outros). No entanto, para este elenco, consideramos que os conhecimentos adquiridos durante vivências
anteriores como artista, como espetador, como estudantes em disciplinas de voz e sonoridade desde o início
da graduação, práticas de ensino-aprendizagem em Artes Cênicas nos espaços de ensino não-formal e o des-
pertar da curiosidade sobre a proposta pedagógica, foram os elementos que favoreceram a disponibilidade
em participar de todas as etapas da oficina.

A conversa inicial sobre imagem e visualidade (momento 1) contribuiu para a realizarem a expres-
são visual da voz e palavra (momento 3). As imagens produzidas foram as seguintes:

836
Imagem 1: Cena 12 – O Sonho. Visualidade
sonora produzida por: A.F. e A.G.

Imagem 2: Cena 11 - Namoro no Carro. Visuali-


dade sonora produzida por: L.A. e M.S.

Imagem 3: Cena 4 - Casa de Paulo. Visualidade


sonora produzida por: A.F. e A.G.

Imagem 4: Momento de elaboração da visualidade sonora. Imagem 5: Cena 11 - Namoro no Carro. Visuali-
dade sonora produzida por: M.S. e W.O.

837
O som e as cores são, respectivamente, ondas mecânicas e eletromagnéticas formadas de específicas
frequências. A observação das cores na superfície dos objetos surge por meio da difração das ondas lumino-
sas, que vibrarão em cumprimentos diferentes. Já o som podem ser classificados por ondas mecânicas pro-
duzidas pela deformação de partículas de um meio elástico (por exemplo: o ar) e que se propagam mediante
características de frequência e comprimento de onda (RAMALHO JÚNIOR, 2003).

Retomar conceitos teóricos ao final das produções visuais do elenco, ajudou a nós oficineiros a es-
timular o grupo a comentar sobre que percepções, vibrações e reverberações esses sons vocais e essas cores
trouxeram.

Na condição de facilitadores do processo ensino-aprendizagem, era necessário oportunizar o gru-


po a estabelecer as relações som, cor e texto teatral. No momento final da oficina percebemos que o elenco
começou a relacionar intenções da personagem ao traçado e intensidade das cores. Nuances dos recursos
vocais trabalhados na oficina também foram comentados como elementos de construção da visualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para nós professores, a Oficina Visualidades Sonoras, por meio da relação entre as Artes Visuais
com o Teatro, foi excelente recurso pedagógico na preparação de voz do elenco em fase de montagem de es-
petáculo teatral. Ao trazer ferramentas que provocassem novos olhares e sentidos no fazer teatral, tentamos
uma ampliação de nossos saberes docentes associada a um maior espaço de criação, reflexão e autonomia
dos estudantes.

REFERÊNCIAS

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838
PRÁTICAS E PENSAMENTOS
TRANSDISCIPLINARES ENTRE
A DANÇA E O TEATRO
Simone Maria dos Santos- UFRPE

1-Introdução

Minha vida profissional nas linguagens artísticas iniciou-se na Escola Municipal de Arte João Per-
nambuco em 2003. Nessa escola, cursei oficina de teatro, curso básico de teatro, curso avançado de teatro,
oficina de dança contemporânea, oficina de danças brasileiras, curso de música, oficina de artes visuais e
aprofundamento cênico de teatro.

Também obtive experiências na Escola Pernambucana de Circo; Escola Municipal de Frevo Maestro
Fernando Borges; SESC Santo Amaro, com aulas de cavalo-marinho; Casa da Cultura, com aulas de sapa-
teado; e outros cursos e oficinas ofertados por festivais de arte, grupos de dança popular, grupos de teatro e
etc. Daí, então, vocês devem estar se perguntando: Simone Santos vai escrever o artigo ou o currículo artístico
dela?

A razão pela qual estou discorrendo aqui sobre os lugares por onde transitei em minha formação
artística foi e continua sendo um dado importante para abordar neste estudo, que tem foco em reflexões
sobre o conceito transdisciplinar. Através das pesquisas inerentes a este, descobri que é possível atravessar
as fronteiras das linguagens artísticas, sem a preocupação da delimitação de suas especificidades, pois desde
sempre fui muito questionada: “Você faz dança ou teatro?” Outras vezes, quando ia me apresentar alguém
sempre dizia: “Isso é dança ou teatro?” E eu respondia: “Pode ser os dois?” Eu não compreendia a preocupa-
ção das pessoas em quererem definir a linguagem artística que se fazia presente em minhas apresentações.
E os questionamentos continuavam no decorrer da minha graduação, pois, além dos componentes curricu-
lares do curso de Dança, cursei também algumas das disciplinas do curso de Teatro e, em ambos os cursos,
as pessoas perguntavam: “Você é do curso de Dança ou Teatro?”

Por causa de tantos questionamentos durante minha trajetória de vida nas artes, passei, então, a me
perguntar, de que maneira é possível trabalhar com diferentes linguagens artísticas e quais seriam os con-
ceitos e métodos que me ajudariam nesta busca. Então, apoiada nas leituras dos livros A cabeça bem-feita:
repensar a reforma, reformar o pensamento (2003) e Ciência com consciência (2010), do autor Edgar Morin,
obtive uma base de pesquisa teórica sobre o conceito transdisciplinar. Os livros Café com queijo: corpos em
criação (2006), do autor Renato Ferracini, e O corpo em movimento: o sistema Laban/Bartenieff na formação
e pesquisa em artes cênicas (2006), da autora Ciane Fernandes, mostraram pesquisas importantes para o
desenvolvimento do ensino criativo dos trabalhos práticos elaborados na pesquisa de campo, que serviram
para a descrição deste artigo.

839
Neste, discorro um pouco sobre o conceito da transdisciplinaridade, as contribuições de Rudolf La-
ban com as qualidades de movimento do Sistema Laban, e o Treinamento energético do grupo Lume Teatro
em uma pesquisa de ensino transdisciplinar, por fim, a experiência de campo para este estudo que aconteceu
na Escola Municipal de Arte João Pernambuco no período de 13 a 27 de julho de 2016.

2-Sobre a transdisciplinaridade

Jean Piaget, no ano de 1970 foi o primeiro educador a adotar o termo transdisciplinaridade, no
Seminário Internacional realizado na Universidade de Nice na França. Neste Seminário Piaget mencionou:

(...) à etapa das relações interdisciplinares, podemos esperar ver sucedê-la a uma etapa
superior que seria “transdisciplinar”, que não se contentaria em encontrar integrações
ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria essas ligações no interior
de um sistema total, sem fronteira estável entre essas disciplinas. (BOBERG apud SOM-
MERMAN, 1999, p 475)

Com essas palavras, Piaget evidência a importância da trandisciplinaridade, tendo em vista a neces-
sidade de interação entre as disciplinas, para que assim possa haver um conhecimento mais amplo entre elas.
Além dele outros estudiosos muito importantes como Edgar Morin, Basarab Nicolescu, Niels Bohr, Werner
Heisenberg e outros, dedicaram-se a pesquisas sobre o conceito e a prática da transdisciplinaridade.

Segundo o artigo de Akiko Santos sobre a Complexidade e transdisciplinaridade em educação: cin-


co princípios para resgatar o elo perdido:

A transdisciplinaridade significa transgredir a lógica da não-contradição, articulando os


contrários: sujeito e objeto, subjetividade e objetividade, matéria e consciência, simplici-
dade e complexidade, unidade e diversidade. Ao articular esses pares binários, por meio
da lógica do terceiro termo incluído, a compreensão da realidade ascende a outro ní-
vel, tomando um significado mais abrangente e sempre em aberto para novos processos.
(SANTOS, 2008, p.75)

Ou seja, a trandisciplinaridade ao articular esses pares binários, por meio de uma lógica do terceiro
termo possibilitará incluir a realidade do indivíduo e ela estará aberta ao surgimento de experimentações,
onde tudo se renova a cada instante, sem a preocupação de delimitação dos saberes, e sim com as possibili-
dades de transformação.

Como já citado acima que depois de Piaget, importantes estudiosos passaram a contribuir com as
suas pesquisas sobre a transdisciplinaridade, apresentarei aqui o conceito por Edgar Morin:

Precisamos, portanto, para promover uma nova transdisciplinaridade, de um paradg-


ma que, decerto, permiti distinguir, separar, opor, e portanto, dividir relativamente esses
domínios científicos, mas que possa fazê-los se comunicarem sem operar a redução. O
paradigma que denomino simplificação (redução/separação) é insuficiente e mutilante.
É preciso um paradigma de complexidade, que, ao mesmo tempo, separe e associe, que
conceba os níveis de emergência da realidade sem os reduzir às unidades elementares e às
leis gerais. (MORIN, 2010, p. 138)

840
Diante disso é possível afirmar que, para se promover a transdisciplinaridade, um paradigma con-
servador não terá eficácia, pois ele limitaria a forma de aprendizagem do estudante. O modelo do para-
digma na área do sistema educacional, nesse viés precisa conceber os níveis de emergência da realidade
do indivíduo, pois as formas de aprendizagem das gerações anteriores são diferentes das atuais. Segundo
o autor, o paradigma de complexidade contempla a existência global do indivíduo, e não este dividido em
várias partes para ser entendido:

A energia não é um objeto visível; é um conceito produzido para dar conta de transforma-
ções e de invariâncias físicas, desconhecido antes do século 19. Portanto, devemos ir do
físico ao social e também ao antropológico, porque todo conhecimento depende das con-
dições, possibilidades e limites de nosso entendimento, isto é, de nosso espírito-cérebro
de homo sapiens. É, portanto, necessário enraizar o conhecimento físico, e igualmente
biológico, numa cultura, numa sociedade, numa história, numa humanidade. A partir daí,
cria-se a possibilidade de comunicação entre as ciências, e a ciência transdisciplinar é a
que poderá desenvolver-se a partir dessas comunicações, dado que o antropossocial reme-
te ao biólogo, que remete ao físico, que remete ao antropossocial. (MORIN, 2010, p. 139)

Por tanto, podemos afirmar que o ser humano é constituído por aspectos biológicos, sociais e po-
líticos e, neste caso, podemos construir leitura sobre nossos atos e desenvolvimento a partir de diferentes
prismas tais como: fisiológico (físico), psicológico (emocional, afetiva, pensamento) e espiritual (mental-
-espiritual sendo o universo físico, o universo da vida e o universo antropossocial).

3-As relações do treinamento energético e as qualidades


de movimento do Sistema Laban, e as suas contribuições
para uma pesquisa prática transdiciplinar em dança e teatro

A partir das variações dinâmicas que se faz presente no treinamento energético e nas qualidades de
movimento do Sistema Laban, podemos trabalhar o que Eugenio Barba denomina como Pré-expressividade.

O conceito de Pré-Expressividade é utilizado na Antropologia Teatral para definir um


nível expressivo (BARBA 1994, p. 163). Ele é uma abstração, mas resulta útil para agir
no plano prático, é um nível operativo. Ele desenvolve uma lógica do processo, estuda o
comportamento do ator não para analisar seus resultados, mas para compreender como
foram alcançados esses resultados. (FERNANDES, 2006, p. 312)

Todavia, vale ressaltar que:

O conceito de Pré-Expressividade já foi utilizado há muitos anos por discípulos de Rudolf


Laban, cujas teorias foram o embasamento do qual muitos pioneiros de Educação Somática
partiram para elaborar propostas próprias. Dra Judith Kestenberg (1971) definiu sob esse
conceito o processo de desenvolvimento das qualidades expressivas na criança, que se acha
presente subliminarmente na Expressividade adulta. Nesse nível, por meio de explorações
sensoriais, a criança começa a desenvolver qualidades expressivas (categoria Expressividade,
cap. III). O fator fluxo é o primeiro a desenvolver e constitui a base para os restantes (espaço,
peso, tempo). Precisamente na Pré-Expressividade o fator fluxo, que é o grau de controle da
energia expressiva, esta sempre presente como uma base de tensão livre ou contida susten-
tando as outras qualidades ou pré-qualidades. (FERNANDES, 2006, p. 313)

841
Com tudo, é possível dizer que a Pré-Expressividade, é uma técnica extracotidiana que se dá a partir
da estrutura orgânica e do reconhecimento da tonicidade muscular do indivíduo. “Em ambos os casos, a
pré-expressividade é uma fase onde se aprende a moldar a energia, seja em forma inconsciente ou conscien-
te.” (FERNANDES, 2006, p. 315).

É importante saber também que: “A pré- expressividade, como entendida por Dr. Kestenberg, difere porém
relaciona-se com o termo usado por Eugenio Barba e Nicola Savarese, que consideram como uma “lógica do
processo” de preparação expressiva, anterior a presença cênica.” (FERNANDES, 2006, p. 139)

Da variabilidade de entendimento sobre a pré-expressividade, importa-me dizer que neste treina-


mento o ator ou bailarino desenvolve o trabalho de dilatação corporal, fazendo então que estes tenham o
contato com suas energias pessoais.

Mas para, além disso, em ambas as técnicas – treinamento energético e as qualidades de movimento
do Sistema Laban, vejo em comum não somente o uso da expressividade, como também as possíveis varia-
ções de dinâmicas de movimento. E através disso, o corpo é tomado como o agente central dessas experi-
mentações que buscam o reconhecimento de suas singularidades corporais como um todo, sem distinção
de corpo e mente.

Se por um lado o treinamento energético trabalha a desautomatização do corpo e a quebra de vícios


corporais, as qualidades de movimento do Sistema Laban proporcionam a consciência corporal do indiví-
duo, e com isso, esse passa a reconhecer suas possibilidades e expressividades corporais. Ambas as práticas
podem construir memórias corporais e dilatações de energias, fazendo com que a corporeidade se torne
presente no corpo.

Um corpo dilatado é um corpo quente, mas não no sentido sentimental ou emotivo. Senti-
mento e emoção sempre são uma consequência, tanto para o espectador quanto para o ator.
Antes de tudo é um corpo vermelho de tanto calor, no sentido científico do termo: as partí-
culas que compõem o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia,
sofreram um aumento de movimento, elas se afastam, se atraem, se opõem com mais força
e mais velocidade num espaço mais amplo. (BARBA, 2012, p. 5)

Nesse sentido, o corpo dilatado proporciona novas descobertas, que podem servir como material
de pesquisa, e vir a ser útil para o ator ou bailarino, e isso é essencial, pois ambos precisam vivenciar novas
possibilidades em seu corpo para poder ampliar a sua expressividade.

Com o treinamento energético e as qualidades de movimento do Sistema Laban, é possível, a partir


das práticas de condução, pedir para os participantes, seja este dito ator ou bailarino, construir proposições
de movimento corporais ou vocais, depende apenas do objetivo da construção artística do trabalho, ou o
que o orientador deseja buscar mediante aos seus objetivos e conteúdos em sala de aula.

Diante de tudo descrito até o momento, a proposta transdisciplinar discutida retorna a questões
teóricas necessárias para o redimensionamento de novos modos de experenciar o corpo e o movimento.
Penso que desta forma:

Avançamos coerentemente: 1) para contrapor-se às sucessivas rupturas epistemológicas


pelas quais o Ocidente passou desde o séc. XIII, 2) para contrapor-se à redução cada vez
maior do real e do sujeito, 3) para contrapor-se à fragmentação cada vez maior do saber, 4)
para levar em conta os dados da ciência contemporânea (física quântica, biologia, genética,
neurologia...), 5) para reencontrar a unidade do conhecimento.(SOMMERMAN, 1999, p. 2)

842
É por esses motivos que é tão importante, estudar e aprofundar caminhos de ensino transdiscipli-
nares, pois é necessário construir possibilidades que atravesse o indivíduo como um todo, no sentido de dar
importância a seu processo de construção como ele se identifica no mundo.

4-Descrição acerca da experiência: a busca de um processo


de ensino transdisciplinar entre a dança e o teatro na oficina de férias

Ao realizar a oficina na Escola Municipal de Arte João Pernambuco, eu já sabia que iria encontrar
estudantes com diferentes experiências artísticas sendo estas nas áreas da dança, teatro e performance, afi-
nal, antes de tudo, eu havia feito uma pré-seleção curricular.

Para esta oficina, os embasamentos teóricos se deram nas teorias contidas nos livros: Café com quei-
jo: corpos em criação (2006), do autor Renato Ferracini, A arte secreta do ator: um dicionário de antropologia
teatral (2012) de Eugenio Barba e Nicola Savarese, O corpo em movimento: O Sistema Laban/ Bartenieff na
formação e pesquisa em artes cênicas (2006), da autora Ciane Fernande, Práticas e poéticas vocais(2014) do
autor Fernando Aleixo e A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (2003) e Ciência
com Consciência (2010), ambos do autor Edgar Morin.

O objetivo central foi trabalhar o corpo como agente produtor de sentidos, sendo nele e a partir
dele espaço e meio para experiências transdisciplinares em dança e teatro, e propiciar alguns elementos que
acredito auxiliar o ator, bailarino e performer em sua prática cênica.

Enquanto o objetivos específicos propôs: facilitar elementos de trabalho corporal como investigação
transdisciplinar entre a dança e o teatro; promover exercícios de improvisação cênicas individuais e coleti-
vos; colaborar para a construção de partituras corporais e entender como se dá a co-relação dos fatores do
movimento do Sistema Laban com o treinamento energético na construção de corporeidades.

O intuito da oficina foi de potencializar e facilitar, o surgimento de gestos expressivos com as lin-
guagens da dança e teatro, e claro, para os interessados nos estudos que busque um processo de ensino de
transdisciplinar entre essas duas linguagens.

As aulas tiveram duração de três horas diárias, durante onze dias em uma carga horária total de
trinta e três horas. As atividades foram divididas entre prática, contextualização teórica e avaliação. Nos pri-
meiros momentos, era mediado um aquecimento vocal e corporal, para os conteúdos que seriam propostos
na seqüência, a cada dia, sendo estes vivenciados em conjunto e individualmente, pois, como ressalta a atriz
do LUME, Raquel Scoot:

É muito importante que cada ator descubra seu próprio aquecimento. O que é bom para um
não o é necessariamente para o outro. Mas o fundamental é que cada um descubra qual é
a dança que desperta cada corpo, e principalmente, a maneira de estar inteiro no trabalho
desde o momento do aquecimento. (SCOTTI, 2006, p. 55)

Assim sendo, a estrutura das aulas era divida em dois momentos, sendo que após uma hora e meia,
havia um intervalo de dez minutos, e depois, era dada continuidade as atividades práticas. Faltando cerca de
vinte a trinta minutos para o termino da aula, era feito então uma avaliação dos estudantes sobre as ativida-
des do dia, estes procedimento aconteciam com todos ainda reunidos, e cada um falava sobre o que haviam
achado das atividades, e o que haviam ou não sentido durante as experimentações. Em algumas vezes eu
pedia que anotassem sobre o ocorrido e me trouxessem no dia seguinte.

843
A introdução ao treinamento energético se deu gradativamente, no decorrer das aulas, com algumas
variações de movimento, sendo estes: grande, pequeno, rápido, lento e entre outros. Em alguns momentos
na condução do treinamento energético, eu solicitava que eles pausassem o movimento externo e continu-
assem se movendo “internamente” fazendo então a menção da imagem de uma panela de pressão, ou seja,
com as experiências sensoriais que acontecem dentro do corpo. “A imagem da panela de pressão contribuiu
para que este estado seja a manutenção de toda a força provocada anteriormente e que deve ser mantida em
estado de combustão interna.” (SCOTTI, 2006, p.57)

No decorre da atividade, quando eu percebia que parte dos estudantes já estavam cansados e outros
com um pouco mais de energia corporal, então orientava que todos continuassem e não parassem, e que,
sem interromper a dinâmica já existente, fossem formando duplas, trios e quartetos até estarem todos jun-
tos, trocando energia.

Para que pudéssemos “brincar” com as variações dinâmicas de movimento do treinamento ener-
gético e as qualidades de movimento do Sistema Laban, desde o primeiro dia de atividade solicitei que os
participantes escolhessem poemas ou pequenos trechos de textos, para trabalharmos.

Este trabalho com trecho de textos ou poemas iniciou a partir da quarta aula e continuou até o fim da
oficina, e sempre com o mesmo que eles haviam escolhido. Os experimentos destes poemas e trechos de textos,
e a criação de diferentes movimentos, serviam como anteparo de criação para a construção coletiva final.

Durante o período da quarta aula até o fim da oficina, fora proposto com mais ênfase um trabalho
de aquecimento vocal, por exemplo: vibração da onda mucosa, que promove um relaxamento das pregas
vocais, liberando a tensão que pode ser realizado com os lábios (BRRRR) em escala ascendente grave ou
agudo, e em escala descendente do agudo para o grave, podendo ser também com a língua (TRRRR). E tam-
bém bocejos que axiliam na projeção vocal, e a emissão de silabas: si, fu, xi, pá. E entre estes, eu começava
a introduzir investigações de voz e movimentações, com as qualidades de movimento do Sistema Laban,
podendo os sons e as movimentações serem acelerados ou desacelerados, e entre outros. Para tanto a cita-
ção a seguir reforça o que é possível se fazer ao trabalhar as qualidades de movimento do Sistema Laban na
investigação de voz e movimento:

Desde seu surgimento, a dança/teatro alemã propõe a ruptura do binário dança/tea-


tro, corpo/mente, movimento/texto. LMA (Análise Laban de Movimento) promove um
contínuo diálogo, ao invés de oposição, entre o movimento e palavra, corpo e mente. O
Sistema Laban pode ser utilizado tanto para o movimento corporal, quanto para leitura
dramática de textos. Assim sendo um som pode ser horizontal, leve, desacelerado, e
expansivo. As palavras e o texto como um todo podem ganhar diferentes fraseados,
ritmos, acentos, etc.- todos termos usados em LMA. Através desta, o ator explora o
sincronismo, a oposição e a independência entre expressão gestual e verbal, e a relação
destas com seu ambiente, outros atores e objetos em cena, mapeando seus personagens
de forma mais clara e flexível, uma vez que LMA concede uma estrutura bem-definida,
porém aberta para improvisação. A LMA utiliza-se de movimentos cotidianos, tão im-
portantes para o ator, bem como específicas técnicas de treinamento, para esclarecer
certos princípios de movimento, básicos na compreensão corporal e intelectual do ator
e sua práxis. (FERNANDES, 1965, p. 29)

Concordo com essa citação, pois como vemos, é possível dizer que as qualidades de movimento do
Sistema Laban, auxiliam no processo de dizer as palavras, frases ou textos, explorando diferentes modos de
investigação no fazer criativo do corpo e da voz.

844
Ainda sobre estes conteúdos, os estudantes trabalharam com as palavras, frases, investigação de sons
vocais, o sentido e o não sentido do texto; diferentes entonações; desenhavam com o corpo no espaço as
imagens que remetiam ao poema ou texto; as sensações que as palavras poderiam provocar na emissão re-
petitiva; a experimentação de dizer o texto com diferentes sentimentos (medo, amor, raiva, tristeza e alegria),
o experimento de falar as frases do texto em movimento com as subdivisões das articulações: ombros, peito,
cabeça, cintura, quadris, pés, mãos, coluna, pernas, braços (sendo gradativamente até ser com o corpo todo);
o experimento de dizer o texto ocupando o espaço no corpo do outro (atividade em dupla); o laboratório das
palavras dançando no corpo e escorrendo em movimento; escrever o texto com o corpo, enfim, foram várias
experimentações no decorre da oficina. Vale ressaltar que, durante o processo de experimentação dos estudan-
tes, o corpo e a voz ganharam unidade, pois foram trabalhados a partir da premissa que voz é corpo e, portanto,
fazem parte de uma única energia que pode ser expressa pelo ator, bailarino ou performer que, por sua vez
aprende a externar em movimentos, gestos e sons. Essa energia interna que é capturada no corpo e voz, mostra
caminhos de expressividade e presença cênica, advindas das entregas dos estudantes nas atividades, e isso foi
perceptível no encaminhamento das aulas, e nas colocações dos estudantes sobre as vivências propostas.

5- Considerações finais

Início as considerações finas discorrendo as principais perguntas norteadoras deste estudo que fo-
ram: Como trabalhar um ensino que interligue as linguagens artísticas da dança e do teatro de forma transdis-
ciplinar? Porque alguns ainda acreditam na divisão de corpo e mente se tudo faz parte do corpo? Quais seriam
os conceitos e métodos que me ajudariam nesta busca?

As perguntas apontam a necessidade inerente da continuidade dessa pesquisa, pois mediante a esse
estudo compreendi que os caminhos para chegar às respostas de um ensino transdisciplinar com a dança e
o teatro, parece ser uma busca constante, porque não existem métodos prontos para isso, e sim laboratórios
de pesquisas que estarão sempre em processo de construção, pois, como já explica o conceito, a transdisci-
plinaridade é aquilo que atravessa, que vai além e está em constante transformações.

Para tanto, as experimentações de ensino com os estudantes da oficina de férias da Escola Municipal
de Arte João Pernambuco, trouxeram aspectos discursivos, de que o corpo pode criar a sua própria lingua-
gem, independente de quais sejam os paradgmas estabelecidos.

A oficina de férias, mesmo tendo um tempo prolongado para a prática de ensino transdiscipinar
entre a dança e o teatro, no momento dos estudante construírem o exercício cênico final, houveram muitas
dificuldades para chegarmos a uma conclusão.

Isto porque cada um tem uma visão de mundo diferente do que para si é uma composição de cena
transdisciplinar, e “o que? e como colocar em cena?” foram solucionados de forma coletiva, com a construção
daquilo que cada estudante havia construído na memória do corpo ao longo do processo vivenciado nas aulas.

Os caminhos de ensinos experienciados nesta oficina, proporcionaram aos estudantes envol-


vidos a consciência do movimento, a percepção do corpo na integração de todas as partes sem divisão de
corpo e mente, a ativação das distintas tonicidades dos músculos, o estado de presença cênica, o trabalho
de corpo e voz em diferentes formas de experimentação e a criatividade aguçada por suas expressividades.

Mediante a este estudo compreendi que o ser humana nasce transdisciplinar, porém, é corrompido a
partir de padrões estabelecidos pela própria humanidade. É nas Instituições de ensino em formação escolar,
artística, acadêmica e etc, que somos fragmentados por normas que delimitam e separam os saberes para
cada disciplina.

845
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846
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
EM STOP MOTION E A CONSTRUÇÃO
DE NARRATIVAS VISUAIS
Marcos Paulo Gomes Miranda, UFPE
Luciana Borre, UFPE

1. Relato das ocorrências durante a execução da experiência pedagógica

A partir de uma experiência pedagógica no campo das Artes Visuais, problematizamos o uso das
tecnologias digitais como recurso pedagógico que potencializa aprendizagens significativas em âmbito es-
colar. A referida ação ocorreu em 2015, em uma escola de Ensino Médio, na modalidade normal médio:
magistério, da rede pública de ensino em Recife/PE, e corresponde às reflexões iniciais da investigação de
mestrado “Artefatos didáticos digitais e as práticas pedagógicas em Artes Visuais no Ensino Médio”, que está
sendo desenvolvida no Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPE/UFPB.

As ações aconteceram com quatro turmas do quarto ano do ensino médio, na modalidade nor-
mal médio. É importante destacar que a modalidade normal médio é responsável pela formação de seus
estudantes para o exercício da prática docente nos anos iniciais da educação básica. Nesta modalidade, a
disciplina de artes não acontece como componente isolado, mas sim, como parte integrante em um bloco
maior, que representa os estudos das linguagens em um só contexto. Desta forma, notou-se que trabalhar
os conteúdos de Artes Visuais a partir de uma proposta dinâmica e com uso de ferramentas tecnológicas
poderia despertar nos alunos e alunas novas possibilidades de abordagens metodológicas em sua formação.

Sendo assim, o plano de ensino foi desenvolvido como uma oficina teórica e prática e abordou as
Artes Visuais a partir da história do Cinema e a da produção de vídeos com a técnica do stop motion. Os te-
mas foram desenvolvidos a partir dos seguintes objetivos: entender a fotografia e o cinema como linguagens
artísticas; entender o processo de criação das imagens para o cinema; conhecer o stop motion como uma
técnica de animação utilizada no cinema; e, produzir um vídeo utilizando a técnica conhecida a partir do
desenvolvimento de uma história-narrativa.

Ancorados no campo da Cultura Visual nos apropriamos das ideias de Fernando Hernandez
para conduzir a metodologia desta prática pedagógica. Hernandez (2000) acredita que um formato de
educação baseado na compreensão da Cultura Visual possibilita, também, estudar, analisar e interpretar
os produtos culturais midiáticos, como por exemplo, os filmes, os esportes, as músicas, as informações
eletrônicas, os programas de TV e a internet. Desta forma, a Educação da Cultura Visual como universo
de significados busca integrar os artefatos culturais do cotidiano dos estudantes como forma de constru-
ção do pensamento.

847
O significado da vida, da ciência, deve ser encontrado a partir das coisas que nos rodeiam. Os ob-
jetos artísticos e os elementos do dia a dia nos fazem refletir sobre as formas de pensamento das culturas na
qual eles foram produzidos. O significado é interpretado ou construído, a partir da observação dos contex-
tos em relação à articulação das suas relações consigo e com o mundo, pois “nos processos de construção
de sentido é importante compreender contextos, práticas sociais e relações de poder implícitas ou explícitas
nas culturas das imagens” (MARTINS; TOURINHO, 2012, p. 10).

Foi desenvolvida uma proposta para trabalhar as Artes Visuais a partir da linguagem audiovisual,
com o uso da fotografia e da história do cinema, explorando a técnica de animação cinematográfica stop
motion como possibilidade criativa e didática para as aulas de Artes Visuais nas escolas. A proposta foi ime-
diatamente aceita pelos integrantes da turma e equipe gestora pois, os mesmos acreditavam na necessidade
de tornar as aulas do curso Normal Médio mais contextualizadas através das novas mídias e tecnologias,
explorando assim, o uso do computador e dos dispositivos móveis. Cristina Costa (2004), versando sobre
as novas mídias, nos apresenta o quê do caráter da interatividade nas produções artísticas produzidas pelos
computadores. A autora afirma que “diante do computador, caso o usuário não atue, nada acontece [...] As
experiências artísticas que exploram as possibilidades dessas máquinas não limitam o contato do público a
um apertar de botões, esperam uma resposta efetiva” (COSTA, 2004, p.123). Desta maneira, nosso interesse
estava focado no protagonismo destes estudantes como produtores de Cultura Visual.

A primeira aula tratou de uma exibição introdutória, que contemplou os temas: Artes Visuais, Foto-
grafia e Cinema, O stop motion e suas técnicas de produção. Propusemos uma reflexão sobre o que vinha ser
Arte e suas linguagens, e com esta proposta, conseguimos instigá-los a produzirem a partir de seus próprios
conhecimentos de mundo, uma ‘definição’ particular.

No segundo momento da aula abordamos a história da fotografia e seu processo evolutivo, que deu
origem ao cinema. Para abordar o conteúdo teórico, foram utilizados vídeos de documentários e outras
fontes extraídas da internet, além das definições conceituais de teóricos como Donis A. Dondis (2003),
Jacques Aumont (1993), Lucia Santaellaa (2005) e Hildegard Feist (1996), que abordam além de conceitos
relacionados aos signos e à imagem, a contribuição do pintor Louis Daguerre e dos irmãos Lumiére neste
processo. Muitos alunos ficaram surpresos com a história da fotografia e do cinema, pois, como muitos
nunca estudaram essas linguagens, não conseguiam imaginar seu contexto.

No terceiro momento, abordamos e exibimos a técnica cinematográfica do stop motion, que consiste
em criar filmes de animação, capturando uma sequência de imagens quadro a quadro. Nesta etapa da aula,
também houveram muitos momentos de interação e participação, foram exibidos vários vídeos de exemplo,
como também foram citados os longas metragens “A fuga das galinhas” e a “A noiva cadáver”; e ainda o
desenho “Pingu”, animação exibida no Brasil, pela TV Cultura. Os alunos interagiram, sempre citando algu-
ma produção que já conheciam. Muitos alunos se mostraram surpresos, pois nunca antes haviam pensado
que, a partir da fotografia, e com a captura dos movimentos, poderiam resultar num vídeo animado, ou até
mesmo num filme. Nesta parte foram introduzidas noções de produção de um roteiro e de criação de story-
board, que são recursos auxiliares à criação de um filme, ou animação em stop motion.

Foi possível observar que alguns alunos tiveram dificuldade em assimilar a serventia destes recursos
técnicos que compõe a criação de um filme. Por isso, este conteúdo foi abordado de uma forma superficial,
ou mais simples, sem teorias concretas, apenas com caráter explicativo para conhecimento. Logo, começaram
a surgir as dúvidas acerca dos materiais e técnicas necessários para se produzir um vídeo. Foi proposto então
que, os alunos deveriam escrever uma história-narrativa (roteiro), além de desenhar o storyboard (encarado
como planejamento das fotos) e, capturar as imagens contendo uma sequência de movimentos para que pu-
dessem ser animadas posteriormente, com o uso do software computacional de edição de vídeos Movie Maker.

848
Figura 1 - Reprodução de storyboards produzidos pelas alunas e alunos durante a prática da oficina.
Imagens capturadas pelos autores.

Em outro momento abordamos noções de operacionalização do Movie Maker, para que o material
fotográfico produzido pelos alunos pudesse ser editado e transformado em vídeo. Através de uma expli-
cação passo a passo, em formato de tutorial, os alunos foram aprendendo as ferramentas do programa e
trabalhando em suas fotos em seus grupos.

Muitas dúvidas foram surgindo ao longo do processo, desta forma, por muitas vezes, foi necessário
parar as explicações em conjunto e realizar acompanhamentos individuais sanando as dúvidas de cada gru-
po. Em geral, essas dúvidas e dificuldades foram em relação ao manuseio ou operacionalização dos recursos
do programa de edição, tendo em vista, a falta de contato ou habilidade dos alunos com o uso da informática
em suas práticas estudantis ou profissionais. Algumas dificuldades de operacionalização do software ficaram
explícitos na maioria dos vídeos. No entanto, percebemos interesse pelo assunto e tentativa de desenvolvi-
mento das etapas planejadas.

2. A Cultura Visual e algumas articulações metodológicas

Para discorrer sobre a Cultura Visual apresentamos as ideias e conceitos de Fernando Hernandez
(2000) que defende essencialmente que reflexões críticas em relação as imagens devem ser trabalhadas nas
escolas. Considera a relevância de um universo amplo das imagens, do cotidiano, do design, da publicidade,
e todas aquelas que compõem nosso repertório imagético do dia a dia.

Para ele, a construção do conhecimento em arte se dará a partir do processo de significação das
visualidades destas imagens associado ao reconhecimento das suas intenções. Ele acredita por exemplo,
que podem configurar-se como intenções destas imagens do cotidiano, massificação de ideias, distinção
de poderes, imposição de controle, impulsão do consumismo, exposição ou imposição de ideais políticos e
sociais, vivências culturais, bem como o reconhecimento de identidades, pois

prestar atenção à compreensão da cultura visual implica aproximar-se de todas as


imagens (sem os limites demarcados pelos critérios de um gosto mais ou menos
oficializado) e estudar a capacidade de todas as culturas para produzi-las no pas-

849
sado e no presente com a finalidade de conhecer seus significados e como afetam
nossas “visões” sobre nós mesmos e sobre o universo visual em que estamos imer-
sos (HERNÁNDEZ, 2000 p. 51).

É possível então observar que uma metodologia com foco nos estudos da Cultura Visual como
campo deve ser um processo focado na ampla difusão dos estudos das imagens e visualidades durante o
processo de ensino/aprendizagem, com compromisso no entendimento do público para com as funções, e
possíveis intenções dessas imagens na sociedade. Hernandez (2007) acredita que estudar as imagens do co-
tidiano além de melhorar a compreensão de mundo dos alunos, contribui para a compreensão de si mesmo
e dos processos culturais onde estes alunos estão inseridos. Para ele “arte é uma forma de conhecer e repre-
sentar o mundo” e a “educação organiza o pensamento privado em relação às formas públicas de representar
o mundo” (HERNÁNDEZ, 2000 p.129). Com isto, Hernandez reforça seu pensamento resgatando ideias de
Mitchell (2005) sobre a Cultura Visual, dizendo que ela examina e questiona o papel das imagens na cultura,
buscando diluir fronteiras ao considerar todos os objetos como tendo complexidade estética e ideológica.
Na passagem a seguir, Hernandez (2000) apresenta uma importante reflexão sobre a importância de apro-
fundamento do estudo das imagens como um:

conjunto de valores, crenças e significações que nossos alunos utilizam (quase que
sem reconhecê-lo) para dar sentido ao mundo que vivem. (...) possibilidade de
viajar pelo espaço e pelo tempo, o que torna possível o fato de existir um videojogo
(e seu valor simbólico), até as formas de vestir, e comportar-se relacionadas com
a pertinência a um grupo, com as modas e com a identidade pessoal (HERNÁN-
DEZ, 2000, p. 30).


Fica claro então que o que Hernandez pretende é explorar o autoconhecimento das alunas e alunos
a fim de que esse reconhecimento de identidades possa contribuir com seu processo de questionamento e
criticidade das imagens que os cercam.

O autor apresenta o que entende por cultura da imagem, numa perspectiva e necessidade contem-
porânea de transcender o ensino das artes visuais para além do ato de analisar e interpretar imagens, discu-
tindo assim a necessidade de um ensino imersivo que esteja focado no desenvolvimento crítico e analítico
das visualidades cotidianas. Bem como, no protagonismo dos estudantes nos processos de produção de
imagens. Elevando os alunos da condição de “tradutores” da imagem, para produtores, questionadores e crí-
ticos das informações visuais inseridas em seus contextos. Em seu livro Cultura visual, mudança educativa
e projeto de trabalho (2000) Hernández apresenta uma provocação em desconstruir as representações cultu-
rais convencionais a partir de uma atitude crítica e reflexiva, além de analítica. Isto se evidencia no trecho:

Estamos diante de uma bifurcação em que se torna necessário, mais do que em


tempos anteriores, a reflexão baseada no estudo, no debate público e rigoroso que
contribua para caracterizar uma nova cultura provida de uma ética que possibilite
interpretar e agir de maneira não acomodada diante de uma forma de pensamento
que se apresente ao mesmo tempo como homogêneo e fragmentado, e que se dis-
tribui nos meios da cultura visual de uma maneira frenética e sem possibilidade
de trégua (HERNÁNDEZ, 2000, p. 29).

O autor reforça a importância de não desprezar a multiplicidade de vivências, experiências, expec-


tativas e contribuições diversas que os diferentes tipos de visualidades apresentadas pelas alunos ou grupo

850
cultural. Considera primordial inserir nos conteúdos abordados nas disciplinas as referências culturais do
cotidiano visual e imagético dos alunos e alunas. Na passagem a seguir o autor apresenta sua noção de cul-
tura como um:

conjunto de valores, crenças e significações que nossos alunos utilizam (quase que
sem reconhecê-lo) para dar sentido ao mundo que vivem. (...) possibilidade de
viajar pelo espaço e pelo tempo, o que torna possível o fato de existir um videojogo
(e seu valor simbólico), até as formas de vestir, e comportar-se relacionadas com
a pertinência a um grupo, com as modas e com a identidade pessoal (HERNÁN-
DEZ, 2000, p. 30).


Fica claro então que o que Hernández apresenta sobre Cultura Visual refere-se a explorar o autoco-
nhecimento das alunas e alunos a fim de que esse reconhecimento de identidades possa contribuir com seu
processo de questionamento e criticidade das imagens que os cercam.

3. O uso de tecnologias digitais e os desafios educacionais contemporâneos

A falta de um maior contato com as tecnologias ou com a informática (computação), em geral, pre-
judicou um pouco o entendimento de algumas práticas na hora da execução (criação, edição e montagem)
do vídeo, mas não configurou motivo para desinteresse ou desistência de realização do projeto. Todos os
alunos da rede estadual de ensino, em Pernambuco, desde 2011, recebem tablets semelhantes à notbooks
para auxiliarem suas práticas educacionais, em sala de aula ou em casa. Para realizar a oficina, este equipa-
mento foi utilizado como principal ferramenta para produzir, editar e finalizar o vídeo, a partir do uso do
software Movie Maker. Desta forma, foi necessário, instalar este software nos dispositivos de quase 100% dos
alunos. Pois, o mesmo não fazia parte do ‘pacote básico’ de programas de operacionalização disponibiliza-
dos nos equipamentos. É importante ressaltar que o Movie Maker é distribuído gratuitamente para usuários
do sistema operacional de computadores Windows, produzido pela empresa Microsoft.

Sendo assim, fica claro que a realização da oficina contribuiu de forma positiva para somar conheci-
mentos à bagagem formativa dos alunos do normal médio na referida Escola. Através dos avanços tecnológi-
cos, em específico, as tecnologias da informação, encontramos a multimídia e seus recursos associados ao uso
do computador. Estes recursos reúnem basicamente as linguagens textuais, audiovisuais e interações gráficas
que facilitam a comunicação entre os interlocutores. Os Cadernos Temáticos de Informática do curso Multimí-
dia Aplicada à Educação, elaborados pela Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais, nos apresentam
boas definições respeito deste tema. Motta e Fernandes (2006, p. 16) afirmam nesta passagem que,

considerando que a multimídia não é um evento passivo, deve se propiciar meios


para reunir, comunicar e compartilhar informações e ideias. Se um destes com-
ponentes faltar, não poderemos dizer que temos um recurso multimídia. Por
exemplo, se não temos um computador para coordenar as várias mídias e suas
interações, poderemos até ter um conjunto de mídias sendo utilizado, mas não
a “multimídia” como aqui definida. (...) Se não pudermos criar e contribuir com
ideias, teremos uma televisão e não a multimídia.

Desta forma, é possível concluir que o computador enquanto ferramenta pode ser um bom aliado
aos processos metodológicos de ensino/aprendizagem em Artes Visuais, dentro da sala de aula, e claro, com

851
a devida mediação do professor de Artes. A partir da utilização de alguma dessas três ferramentas aborda-
das nesta prática docente, sendo elas, o computador, a fotografia e o audiovisual. E realizando seus usos de
forma integrada e complementar, é possível desenvolver narrativas expressivas e criativas em Artes Visuais,
atribuindo à esta criação um caráter digital ou interativo pelo uso de tais recursos. Conforme Costa (2004,
p.113), esse processo de ampliação e desenvolvimento das tecnologias digitais teve um grande impacto na
sociedade e os artistas não ficaram isentos às formas de criação possibilitadas pela tecnologia. Em sala de
aula, o ato de refletir sobre a produção fotográfica aplicada à algum tema específico, ou até mesmo elaborar
uma história ou narrativa que possa capturar imagens em movimento com a finalidade de se ter como pro-
duto artístico um vídeo, poderá levar aos alunos e alunas infinitas possibilidades de se expressar artistica-
mente utilizando recursos contemporâneos.

A prática artística com o computador compreende três atuações/usos diferentes.


Inicialmente, o computador pode ser utilizado somente como ferramenta para a
geração e o tratamento das imagens. Num segundo momento, o computador é que
cria a obra [...] Num terceiro momento, o computador/monitor é o suporte para
a exposição do trabalho e o espectador deixa de ser um ser passivo para interagir
com a obra; assim, passa de espectador para interator (OLIVEIRA E CANGUSSU,
2011, p. 36-37).

Sendo assim, o viés tecnológico e multimídia do uso destas ferramentas em sala de aula, ocorre
quando há a necessidade do professor de Arte, facilitar a construção de conhecimentos técnicos a respeito
de tais artefatos. Oliveira e Cangussu (2011, p. 2011) citam ainda que “é muito importante que o professor
de arte conheça softwares de manipulação e criação de imagens, e que também incentive as criações artísti-
cas de seus alunos.” Contudo, o papel do educador não é apenas guiar o aluno para a operacionalização dos
equipamentos, mas sim, guiar o aluno para conseguir realizar os processos de composição criativa a partir
da utilização destes recursos. Para isto, as aulas de Arte com temática digital, devem abordar alguns tópicos
como: o uso do computador para produção de imagens a partir de softwares de edição ou desenho; o uso da
câmera fotográfica, suas características, equipamentos e regras de composição e enquadramento; introduzir
noções sobre a linguagem cinematográfica, incluindo o surgimento e as técnicas de captura de imagens em
movimento, a criação de roteiros e narrativas e noções de produção, edição e direção.

Conclusão

A formação no modalidade normal médio, prepara os alunos para o magistério, e foi interessante
descobrir que em sua grade curricular, eles não estudam artes de uma forma segregada, como um com-
ponente isolado. E sim, num contexto mais abrangente, dentro de uma disciplina chamada de Didática da
Linguagem, que trabalhava sobretudo os formatos de expressão e comunicação. Os alunos desta modalidade
de ensino estavam comprometidos com sua formação, e isto tornou as aulas bastante produtivas.

Esta prática docente foi oportunidade para conhecermos nosso campo de atuação profissional, bem
como, para percebermos suas particularidades, lacunas ou acertos que vão surgindo durante a prática do
ensinar e transmitir conhecimentos. É uma ótima bagagem e experiência para os próximos desafios que
possam surgir durante o exercício da profissão docente. A partir destas inquietações foi surgindo a necessi-
dade de aprofundamento da questão que encontra-se em desenvolvimento no momento, no curso de mes-
trado do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFPB/UFPE, na busca da resposta
ao seguinte questionamento: como acontece o ensino de Artes Visuais no ensino médio de uma escola da

852
rede estadual de Ensino do Recife e, quais artefatos pedagógicos digitais podem contribuir para essa prática
pedagógica?

A partir de nossos conhecimentos adquiridos durante este curso, levamos para nossas pesquisas
atuais o uso das tecnologias e dos recursos digitais para não só transmitir, mas, produzir conhecimentos em
conjunto.

Referências

AUMONT, Jacques. A imagem. [tradução Estela dos ______. Catadores da Cultura Visual: proposta para
Santos Abreu e Cláudio C. Santoro]. Coleção ofício de uma nova narrativa educacional. Porto Alegre: Media-
arte e forma. Campinas, São Paulo: Papirus, 1993. ção, 2007.

COSTA, Cristina. Questões de arte: o belo, a percepção MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene. Entrevidas
estética e o fazer artístico. das imagens na arte e na educação. In: MARTINS, Rai-
mundo; TOURINHO, Irene (Orgs.). Cultura das Ima-
São Paulo: Editora Moderna, 2004.
gens: desafios para a arte e para a educação. Santa Maria:
DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. [tradu- Editora UFSM, 2012, p. 9-14.
ção Jefferson Luiz Camargo]. São Paulo: Martins Fontes,
MOTTA, Carlos Eduardo Hermeto de Sá (Orgs.). Cader-
2003.
nos de informática do curso de Multimídia aplicada à
FEIST, Hildegard. Pequena viagem pelo mundo da arte. Educação. Secretaria de Educação do estado de Minas
São Paulo: Moderna, 1996. Gerais. 2006.

HERNANDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança edu- SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica? Coleção pri-
cativa e projeto de trabalho. Porto. Alegre: Artmed, 2000. meiros passos. São Paulo: Brasiliense, 2005.

853
O QUE SÓ EXISTE QUANDO
LEMBRADO EM (H) ESTÓRIAS MÍNIMAS
Alcione Cristina Alves de Aquino

1- INTRODUÇÃO

“É muito sutil, parece loucura, mas é Teatro”


– Diretor e professor Rodrigo Cunha

A experiência com a terceira idade tem o seu processo cênico partindo do Biodrama como referên-
cia para abordar em cena relatos reais e pessoais de cada aluna/atriz e aluno/ator.

O processo começou em 2016, quando ingressei para exercer meu papel de estagiária no SESC Santo
Amaro, e com isso passei a acompanhar o diretor/ professor Rodrigo Cunha, o qual não me era estranho por
eu já ter assistido e conhecer alguns dos seus trabalhos anteriores, reconhecendo principalmente o Coletivo
Bárbara Idade, que é dirigido por ele desde meados de 2005 no SESC Santa Rita, e algum tempo depois foi
transferido para o SESC Santo Amaro, destaco que, alguns dos idosos que faziam parte do grupo iniciado
com ele decidiram acompanhá-lo na nova unidade que ia sediar o grupo.

O trabalho com idosos me trouxe um desafio delicado de transformação na minha visão do ensino
do teatro para essa faixa etária. Como nunca havia trabalho na prática com idosos antes, tudo foi se dando
em um processo crescente de aprendizagem.

1.1 O Biodrama

O Biodrama é uma investigação cênica da biografia, é a busca da teatralidade nas histórias de vida,
conceito de gênero teatral criado em 2002 pela diretora e performer argentina Vivi Tellas. A criadora do
termo e da prática Biodrama, e uma das maiores referências do Teatro Documental, trabalha há muitos anos
colocando o teatro em contato com outros mundos, rastreando elementos teatrais em vidas, situações ou
disciplinas fora do teatro. Ligado ao gênero documental, seu teatro não se limita à representação, mas foca
a apresentação de “casos”.

Por exemplo, o primeiro deles, Mi Mamá y mi Tía (2003-2004), era uma espécie de “retrato vivo”
baseado nas histórias que Tellas escutava – contadas sempre da mesma maneira – desde que era criança. As
intérpretes de sua obra eram sua mãe e sua tia biológica – nenhumas delas atriz –, mostravam ao público a
sua história.

854
2- JUSTIFICATIVA

“Sintam e se afetem”
– Diretor e professor Rodrigo Cunha

Antes de qualquer outra razão, destaco o potencial presente neste coletivo de mulheres bárbaras,
servindo como modelo de perseverança, coragem e arte. Por meio do nosso processo encontramos e des-
cobrimos juntas (e juntos, porque no Coletivo há três homens: Rodrigo Cunha e mais dois alunos) como
trabalhar em cena a vida real e transformar memória viva em arte.

Para a chamada “terceira idade”, esse quase novo estilo atual do teatro, que traz a “Dramaturgia do
Pertencimento” como dispositivo, ganhando força e tornando-se mais rico quando trabalhado com essa
categoria, por ela carregar tantos anos de história e tantas vivências.

3 - DESENVOLVIMENTO (Nosso processo íntimo)

“A gente morre quando se esquecem da gente”


– Aluna/atriz Amara Rita

A criação de “(H)estórias Mínimas” começou com a inquietação do Coletivo em abordar sempre nos
espetáculos anteriores um poeta homem. Foi decidido, então, buscar por poetas brasileiras, que em seus escri-
tos também trouxessem o que estava sendo colocado nos trabalhos anteriores, cheios de sensibilidade e ver-
dade do cotidiano real que as poesias traziam, era o que também queríamos para o novo trabalho do Coletivo.

Março do ano de 2016 Quando comecei oficialmente minha função de assistente de Rodrigo Cunha
e do Coletivo Bárbara Idade, as alunas e os alunos estavam lendo alguns poemas já selecionados por eles e
pelo diretor, alguns nomes como Cecilia Meireles, Cora Coralina, Elisa Lucinda, Marina Colasanti, Miche-
liny Verunschk, entre outras.

O elenco é composto atualmente por 11 pessoas no total, são 9 mulheres e 2 homens; Amara Rita
(Ritinha), Conceição Andrade (Ceça), Marisa Nóbrega, Maria José Sales, Marinete Neves (Bláh-blah), Nor-
ma Moura, Adélia Natividade, Maria do Bom Parto, Clizenilde Gusmão (Sissy), Cláudio Laureano e José
Silva. Cada uma com sua peculiaridade e sensibilidade, atrizes e atores potentes para o jogo da cena.

Um momento crucial que tivemos para a turma nesse processo foi ver o filme Jogo de Cena (2007)
do cineasta Eduardo Coutinho, no qual, atrizes renomadas e mulheres do cotidiano dividem e contam
histórias como se fossem delas: este filme serviu para mostrarmos às bárbaras/os que toda história, mesmo
que mínima, fez efeito em alguém. O pequeno, o sutil e o cotidiano são de valia enorme para o Teatro, se
reconhecer como mulher que tem e teve histórias que podem e vão tocar o público, exatamente por serem
simples e marcantes. Como cartas de amor, escritas e não entregues.

Para alcançar essas histórias mínimas, o diretor pediu que cada uma/um escrevesse uma carta sobre
algum momento de superação marcante em suas vidas. E o resultado surpreendeu com o retorno do exercí-
cio: nós lemos as cartas, e o conteúdo poético, forte e teatral, nos deixou cheios de inspiração.

O próximo passo foi trocar as histórias entre elas/es, mexer com o sentimento de pertencimento e
com a memória afetiva para a cena. E naturalmente as cenas foram surgindo. Fortificados e a cada encontro
com mais sustância, nosso dialogo e debate sobre o espetáculo e sua teatralidade foi ganhando outro nível

855
político, social e pessoal, problematizando a atual situação do Brasil e o lugar da mulher nessa atualidade e
percebendo que muita coisa mudou, mas nem tanta assim. Em suas cartas muitas relataram abusos e assé-
dios sofridos por elas, por parte dos seus chefes em entrevistas de emprego. A ex-aluna/atriz, Luzinete, em
uma dessas aulas disse “a mulher se desmerece perante o homem” como resumo do que havíamos estudado
e debatido aquele dia de processo de construção do espetáculo.

O medo e a insegurança que elas sentiam e ainda sentem, também nessa fase da vida, é retrato de
uma sociedade machista, patriarcal e racista. Com o crescimento da qualidade da discussão, crescia também
a cena no palco. O espaço de voz foi determinado para essas mulheres e homens que geralmente são invisí-
veis para a sociedade, e por meio do processo do espetáculo foram se “empoderando”.

3.1 A costura da dramaturgia

Quando nos vimos mergulhados em literatura, percebemos que precisávamos de alguém compe-
tente da área, foi então que a doutora, professora e dramaturga Renata Pimentel passou a nos acompanhar
para reforçar nessa questão e acabou juntando-se a nós em todas as outras. A dramaturgia deu-se em
harmonia ao que estava reverberando dos nossos encontros de ensaios. Renata Pimentel nos trouxe várias
referências que só acrescentaram ao que estava acontecendo e, quando montamos a sequência num esque-
leto pré-definido, separamos as cenas por blocos, os quais denominamos de: Trabalho, Traumas, Amor,
Sexualidade e Minhas Mães (Memória).

Seguimos o processo com jogos e exercícios que estimulassem o corpo e a voz das atrizes e dos
atores e também trabalhamos a interpretação, para conscientizadas de que não estávamos em uma roda de
conversa, mas em um palco, com platéia e espectadores para vê-las em ação, atuando.

4. CONCLUSÃO

“Eu, com idade avançada, quero me divertir e viver”


– Clizenilde (Sissy)

Como conclusão eu peço;

Com licença poética


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.

856
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

- Adélia Prado

Para afirmar que os versos de Adélia tanto flertam com a metafísica como se atêm aos detalhes do
cotidiano, mas apostam na grandeza das pequenas coisas. Como fazem as Bárbaras e os Bárbaros desse Co-
letivo que faz arte e, acima de tudo, faz vibrar.

Neste processo, O Bárbara Idade pôde vivenciar um novo meio de fazer, se desfazendo enquanto
indivíduos com identidades pré-estabelecidas e descobrindo que podem ser uma/um e ser muitas/os, que
nas suas histórias, não menos importantes, tem tudo que há nas “grandes” histórias de pessoas reconhecidas
pela literatura ou pelas mídias.

Ativando um estado de empatia mútuo para com elas/eles, na convivência em Coletivo e também
para com as outras pessoas que convivem com elas/eles. Abraçadas/os ao tempo e às suas histórias, como
histórias vivas, e não como carga ou peso de algo não dito ou não importante. Por fim ainda temos muito
trabalho a ser feito, como uma vez disse a dramaturga do processo Renata Pimentel, que “mexer no lixo do
outro é conhecer o outro, tem coisa que só incomoda quando fede, ou atrapalha o caminho”. Despertamos
“fedores” e mexemos no “lixo”, assim provocando inquietações sobre temas graves que aconteceram e acon-
tecem, porque o que Teatro propõe, seja lá com qual idade é feito, é mostrar e tocar.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PIMENTEL, Renata. (H)Estórias Mínimas. Coletivo de DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do teatro: provocação
Teatro Bárbara Idade. 2016. (documento impresso, não e dialogismo. 3.ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2011.
publicado).
SILVA, Emanuella de Jesus Ferreira. Processos Criativos
CUNHA, Rodrigo. Artigo: Bárbara Idade: Feminino na com alunos-atores idosos: Caminhos de uma Dramaturgia
cena da mulher senescente. (dados da publicação nos do Pertencimento. 2014. Dissertação (Mestrado em pós-
Anais eletrônicos do Fazendo o Gênero). -graduação em Artes Cênicas) – Universidade Federal do
PRADO, Adélia. Poesia Reunida. Record. 2015. Rio Grande do Norte.

857
ANEXOS

Em destaque: Maria José, aluna/atriz do Coletivo Bárbara Idade. Apresentação de ensaio aberto no Usina Teatral
2017. Foto de Jonas Araújo.

Música de uma das cenas do espetáculo, no bloco do Amor.


“Eu saia de mar afora
Era as ondas do mar que me levava,
Tantos olhos, tantos olhos que eu via
Só os teu, meu amor, que me alegrava
Eu tenho a esperança,
Essa fé, essa fé eu tenho em Deus.
É de gozar, é de gozar, os teus carinhos
E depois tu gozar carinhos meus.”
– Maria José

858
RELATO DA EXPERIÊNCIA OBTIDA
APÓS A REALIZAÇÃO DE QUATRO EXPOSIÇÕES
DE ESCULTURAS MÓVEIS EM CONJUNTO
COM SETE OFICINAS DE ORIGAMIS
ANALISANDO O SEU IMPACTO A SERVIÇO
DA EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL E
AS AULAS DE ARTES VISUAIS
Brenda Gomes Bazante

A verdadeira, elegante e duradoura arte do origami é como


um símbolo para a paz mundial.
Akira Yoshizawa

1. DESCOBRINDO DOBRADURAS E ESCULTURAS QUE SE MOVEM

Meu primeiro contato com os origamis ocorreu em 2016 durante o 2° período da Licenciatura em
Artes Visuais enquanto cursava a Disciplina Arte Brasileira. Nela foi proposto um exercício inspirado nas
obras da artista Beatriz Milhazes (Fig. 1 e Fig.2). A idéia era problematizar as formas geométricas e orgâ-
nicas presentes nas duas obras em uma única composição por meio do uso de dobraduras de papel, tinta
guache, canetas hidrocor, colagens e outros materiais.

Figura 1 – Milhazes - Foi bom te en- Figura 2 – Milhazes - No Campo


contrar (1988) (1997)
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural (2018) Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural (2018)

Antes deste exercício jamais havia dobrado um origami e apesar de sua beleza despertar interesse,
acreditava não ser atividade para mim, pois acreditava que não teria habilidade manual suficiente e me
perderia entre as dobras amassando todo o papel. Carlos Genova (2009), uma das maiores referências sobre
o tema em nosso país, nos diz que origami é dobradura e tem o seguinte significado: ori = dobrar e gami =

859
papel, ou seja, dobraduras de papel. Para o autor “origami é uma forma de expressão. Quem manipula abre
uma porta para a comunicação com o outro. Dobrar papéis valoriza o movimento das mãos, estimula as
articulações e exercita o cérebro.” (GENOVA, 2009, p.14). Zenin Vieira (2017, p. 06) ressalta que “é uma téc-
nica com inúmeras possibilidades de criação, pois um simples pedaço de papel pode transformar-se em algo
novo”. Ainda segundo a autora as dobraduras podem ajudar com a disciplina em sala de aula, pois precisam
da atenção de quem as executa, melhoram a coordenação motora fina, requerem concentração e paciência,
melhoram significativamente a noção espacial e ainda estimulam a criatividade e o desenvolvimento de di-
versas áreas de conhecimento, entre elas a matemática (VIEIRA, 2017). Considerando o campo educacional
os origamis podem, ser utilizados para desenvolver as “linguagens, [...] tanto como recurso imaginário na
linguagem visual através da forma e da matéria, como na linguagem corporal, através da seqüência de mo-
vimentos das mãos.” (VIEIRA, 2017, p. 6).

Na época, apesar de não entender estes benefícios, decidi usar esta técnica na elaboração de uma
composição/exercício, utilizando papeis de revista, canetas hidrocor e uma tela dando origem a obra As 2
Faces do Quadro Móvel (Fig. 3). A questão do movimento das telas vem de uma idéia que a muito tempo
eu pensava em desenvolver: telas que se movessem ou esculturas móveis que lembrassem telas. Desta idéia
nasceu a escultura que marcou o início de todo o meu trabalho com arte cinética.

Figura 3 – As 2 Faces do Quadro Móvel (2016)


Fonte: a autora (2016)

Enquanto a beleza dos origamis causava encanto a cada nova dobra, na Disciplina de História da
Arte II era o momento de estudar as expressões da Arte Moderna e seus movimentos, entre eles a Op Art
e a Arte Cinética. Estas duas vanguardas da arte estão intimamente ligadas pela presença da idéia de mo-
vimento, ou pelos movimentos em si, transmitidos ao espectador. De acordo com Perissinoto (2000), os
irmãos Naum Gabo e Anton Pevsner, construtivistas russos, lançaram o Manifesto Realista em 1920 na
tentativa de apresentar uma arte diferente das obras estáticas existentes até então. Esta foi a primeira vez que
a palavra cinética foi associada às Artes Visuais. A partir deste momento, diversos artistas passaram a usá-la
referindo-se a uma grande diversidade de obras que possuíam algo em comum: o movimento. Mas antes de
falar de Cinetismo precisamos esclarecer alguns pontos sobre a Op Art ou Arte Óptica.

Na década de 60, os estudos de Victor Vassarely dão início ao que foi chamado de Plástica do Movi-
mento (PROENÇA, 2011). Sobre estas investigações Proença (2011) ressalta que:

as obras da Op-art apresentavam diferentes figuras geométricas, em preto e branco ou


coloridas, combinadas de tal modo que provocavam no espectador sensações de movi-
mento. Além disso, se o observador mudar de posição, terá a impressão de que a obra se
modifica: os traços se alteram e as figuras se movimentam, formando um novo conjunto
pictórico [...]. Enfim, trata-se de uma arte que, da mesma forma que a vida contemporâ-
nea, está em constante alteração (p. 167).

860
Para Perissoto (2000, p. 22) “a obra de arte óptica não se move realmente, a sensação de movimento
se impõe por meio da interação perceptiva do espectador em relação à obra”. Apesar disto, “essa concepção
da plástica do movimento propiciou a invenção de móbiles por Alexander Calder (1898-1976), que associou
os retângulos coloridos das telas de Mondrian à idéia de movimento” (PROENÇA, 2011, p. 168) (Fig. 4 e 5.
Os blocos de cor pintados de modo fosco e distribuídos assimetricamente por Mondrian reforçam a idéia de
um movimento presente em sua fase Neoplasticista.

Figura 4 – Calder - White Coun- Figura 5 – Calder - Vertical Foliage (1941)


terbalance (1948) Fonte: Calder Foundation (2018)
Fonte: Calder Foundation (2018)

O nome móbile foi dado por Marcel Duchamp para designar as esculturas móveis de Alexander
(STRANG et al., 2014), enquanto o nome stabile foi utilizado para as esculturas fixas. Gombrich (2013)
relata que a associação de que falamos começou com uma visita feita por Calder a Paris em 1930, quando
esteve no ateliê de Mondrian e ficou muito impressionado com sua arte. Sobre as conseqüências desta visita
Gombrich escreve o seguinte:

como o holandês [Mondrian], desejava uma arte que refletisse as leis matemáticas do uni-
verso; ao seu ver, contudo, tal arte não poderia ser rígida e estática. O universo encontra-
-se em constante movimento, mas sua coesão é mantida por misteriosas forças em equi-
líbrio; foi essa idéia de equilíbrio que primeiro inspirou Calder a construir seus móbiles
[...]. Suspendia objetos das mais variadas formas e cores e fazia-os girar e oscilar no es-
paço. Aqui, a palavra “equilíbrio” deixa de ser mera figura de linguagem. A criação de tão
delicado equilíbrio demandou muito pensamento e experiência. (2013, p. 452).

Muitos artistas desses movimentos de vanguarda, principalmente os escultores, criaram obras com
características muito semelhantes, desenvolvendo pesquisas “[...] de novos materiais, do espaço, da transpa-
rência, da abstração, do movimento, da luz e da cor” (PROENÇA, 2011, p.181). Iniciava-se o momento das
abstrações, da experiência e da procura por outras formas para criar e se expressar.

A leveza dos móbiles de Calder me encantou e seguindo o exemplo deste escultor pensei em come-
çar a experimentar materiais e exercitar a minha própria poética na elaboração de esculturas. De imediato
decide descartar os materiais como metal, plástico e madeiras nobres, pois descobri diversos artistas empre-
gando estes materiais, entre eles: David Roy e suas incríveis engrenagens de madeira e cabos, Antony Howe e
seus fantásticos móbiles de metal prateado ao ar livre e Abraham Palatnik com suas esculturas coloridas mo-
vidas por eletricidade. Necessitava de algo mais simples que pudesse se comunicar com as pessoas, possíveis
alunos e que tivesse um caráter crítico e contemporâneo, conseqüentemente aproximando este estilo de van-
guarda da força, complexidade e questionamentos tão característicos e presentes na Arte Contemporânea.

861
Certa desta poética e na procura por materiais eu me deparo com as inúmeras podas que co-
meçaram a ser feitas nas árvores da Cidade do Recife. Eram os primeiros meses do ano, uma época em
que tradicionalmente temos muita chuva e várias árvores na cidade começaram a cair devido a raízes
podres e má conservação. A Prefeitura da Cidade decidiu adotar a poda como forma de evitar as que-
das e seus prejuízos, conseqüentemente o que vimos foi um festival de árvores sendo cortadas galho
por galho, deixando a sua maioria com apenas o troco principal de pé. A Dr.ª em Ciências Florestais
Lucia de Fátima Carvalho, em entrevista ao Portal G1 PE (2017), trata a questão como um erro técnico,
pois ao realizar as podas para livrar a rede elétrica os funcionários da prefeitura ”[...] cortam um lado
inteiro e deixam o peso do outro. Como a árvore acaba pesando para um lado só, quando chove ela
cai” (PORTAL G1 PE, 2017). A matéria de 2017 retrata um cenário que ocorre até os dias de hoje, pois
a derrubada continua e montanhas de galhos são formadas nas ruas, fato que na época partiu o meu
coração e como num acender de lâmpada eu tive a idéia de utilizar aqueles galhos como suporte para
as minhas esculturas móveis.

Inicialmente a delicadeza e sua fragilidade foram fatores que dificultaram o processo de elaboração,
uma vez que aqueles mais finos quebravam com muita facilidade e os grossos pesavam demais atrapalhan-
do o equilíbrio. Resolvida esta questão, depois de muita experimentação com equilíbrio e testes de peso, a
primeira obra começou a ser construída. Tratava-se de uma árvore (Fig. 6). A escolha não foi mera coinci-
dência, pois naquele momento eu já pensava numa futura mediação quando perguntaria aos visitantes da
exposição: ao podarmos demais nossas árvores levando-as à queda estamos prejudicando outros seres vivos
além de nós mesmos? A resposta estaria na própria obra, pois além dos galhos que simularam uma árvore
foram adicionados origamis de borboletas, beija-flores, mariposas e flores, na tentativa de recriar figurativa-
mente parte o ecossistema que foi desorganizado.

Figura 6 – Banquete de beija-flores e mariposas (2016) Figura 7 – A mata no Cubo (2016)


Fonte: A autora (2016) Fonte: A autora (2016)

A idéia de juntar origamis com móbiles surgiu da necessidade de algo que fizesse com que as es-
truturas se movessem. No primeiro momento apenas os galhos foram utilizados, mas quando as esculturas
eram suspensas não se moviam ao sabor do vento como era esperado. Lembrando das obras de Calder e
dos círculos, quadrados e demais formas nas extremidades dos móbiles, comecei a adicionar dobraduras
penduradas por fios ou coladas nos gravetos, conseguindo o movimento e o equilíbrio necessários á Arte
Cinética. Fazendo uso desta poética e da relação constante entre formas geométricas e orgânicas, numa clara
lembrança ao exercício da Disciplina Arte Brasileira na Licenciatura, paralelamente relacionando a silhueta
das obras com a geometria presente nos diagramas dos origamis (Fig. 7), foram produzidas 10 obras que
mais tarde foram expostas, naquela que foi a minha primeira

862
2. OFICINAS DE ORIGAMI, EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL
E AULAS DE ARTES VISUAIS

De setembro de 2016 até hoje a Exposição Galhos está em sua quarta edição, tendo passado pelos
seguintes locais: Biblioteca Popular de Casa Amarela, Hall do Museu do Homem do Nordeste, Engenho
Massangana e Torre Mallakof. Com exceção da Torre, onde a Expo compõe a Exposição Coletiva Serquerer-
dizer dentro da programação do Festival Transborda/2018, foram realizadas sete oficinas. Três na biblioteca,
uma no jardim do museu, duas no engenho e mais uma durante a Semana de Artes da UFPE, esta última
realizada sem a exposição. A metodologia utilizada foi a Abordagem Triangular de Ana Mae Barbosa que
“[...] enfatiza a necessidade de organizar o ensino das Artes Visuais no inter-relacionamento entre três eixos:
o fazer artístico do aluno, a leitura da obra de arte e a contextualização histórica [...]” (BARBOSA, 1991 apud
KEHRWALD, 2006, p.1). A Tendência Pedagógica escolhida foi a Libertadora devido a sua ligação com a
educação não-formal (LIBÂNEO, 2006), entendendo-a como aquela que ocorre fora dos espaços formais de
ensino institucionalizados, mas é administrada de maneira estruturada, planejada e organizada, um pouco
menos hierarquizada e seriada, conseqüentemente promovendo a aproximação dos alunos e sua integração
com outros setores para além da sala de aula (PERES, 2016). Decidi atuar como uma professora que se adé-
qua as necessidades dos participantes das oficinas (LIBÂNEO, 2006) usando diagramas (Fig. 8) e modelos
de origamis em conformidade com a faixa etária e o nível de conhecimento de cada grupo. A metodologia
dialogada foi utilizada para conduzir as oficinas e intervindo apenas o necessário, mas de uma forma mais
ativa sempre que percebia um ou outro aluno com dificuldade a cada nova dobra, busquei deixá-los livres
para experimentar a sensação de sucesso a cada passo concluído.

Figura 8 – Diagrama de Origami


Fonte: Blog Oficina do Origami

Antes das oficinas foram realizadas a leitura de imagens e a contextualização aproveitando o mo-
mento de mediação em torno da exposição. Foram formulados questionamentos tendo em mente que ler
imagens se trata de um mecanismo em que ocorre “[...] decodificação e compreensão de expressões formais
e simbólicas que envolvem tanto componentes sensoriais, emocionais, intelectuais, neurológicos, quanto
culturais e econômicos” (KEHRWALD, 2006, p. 1). Fischer e Silbert (2009) em um estudo sobre a Aborda-
gem Triangular de Ana Mae Barbosa destacam que:

a contextualização [...] não parte de uma história linear, mas, busca contextualizar a obra
de arte no tempo histórico e contemporâneo, estabelecendo relações com a leitura de ima-
gem pelo observador de acordo com a sua experiência de vida, construída pela subjeti-
vidade ou socialmente, pois, sem essa não há compreensão, faz-se necessário que ambas
estejam articuladas. (BARBOSA, 1991, 1998 apud FISCHR, SILBERT, 2009, p. 4).

Falando sobre Mediação Cultural, Barbosa (2009) aponta que os melhores lugares para ela ocorrer
são os museus, chamando-os de laboratório de conhecimentos originados pela arte, destacando que algu-

863
mas pesquisas, em processo de análise, afirmam que nos museus e exposições a mediação é mais eficaz,
pois estes são locais onde a arte esta presente, além de, na maioria dos casos, existir equipes trabalhando
exclusivamente com ações educativas, oportunando a pratica da educação não-formal nestes espaços que
são fundamentais para o aprendizado da linguagem da arte. Desta forma, “compete aos educadores que
levam seus alunos aos museus estender em oficinas, ateliês e salas de aula o que foi aprendido e apreendido
no museu” (BARBOSA, 2009, p. 14). Refletindo sobre estas questões pode-se dizer que realizar a mediação
e em seguida partir para a prática nas oficinas fez toda a diferença, pois a ligação das dobraduras com a arte
estava ali diante de todos..

Durante a leitura deve-se fazer uma relação com outras referências, contextualizando-a, na tentativa
de descobrir o significado daquilo que se lê, atribuindo sentido as formas, cores, linhas e volumes presentes
em cada obra (KEHRWALD, 2006). Citando Paulo Freire, esta autora alerta para a “necessidade de aprender
a fazer a leitura de mundo, não mecanicamente, mas vinculando linguagem e realidade” (FREIRE, 1993
apud KEHRWALD, 2006, p. 1). Enquanto recebia as respostas da mediação aproveitava o momento para
contextualizar as produções falando sobre sua poética e ligação com a questão das podas, além de citar outro
fator importante, a utilização de papel de revista nas dobraduras.

Muitos origamistas utilizam papéis de gramatura específica que são difíceis de achar e um pouco
caros para o grande público. Como solução para este impasse, visto que usaria muito papel paras oficinas,
decidi adotar papeis de revistas, de livros, folhas de A4 e sulfite descartadas das escolas, cartolina, papel de
presente e papeis mais baratos como A4 colorido e pensando neste material enquanto suporte para uma
linguagem artística, perguntava: Qual a possibilidade de usar os origamis nas aulas de artes visuais? Alguns
alunos falavam que já tinham usado nas aulas de matemática ou que não achavam que era uma arte. Neste
momento lançava outra pergunta: Estas obras que vocês estão vendo foram feitas com origami. Vocês acham
que elas são obras de arte? Elas são esculturas? Diante de algumas expressões de confusão eu aproveitei o
momento para desconstruir a idéia do fazer artístico como algo que não se aprende e vem do berço como
um dom, além de apresentar exemplos de esculturas diferentes das estátuas de mármore, bronze e concreto,
tão presentes em praças, jardins de prédios e em museus de arte clássica, convidando-os a construir junto
comigo uma obra para a exposição com os origamis feitos durante a oficina.

Concluídas estas duas etapas e com mais uma temática, para discutir nós seguimos para a prática
ou como é dito na Abordagem Triangular, o Fazer Artístico. O primeiro momento foi o de reconhecimento
do suporte. O toque no papel, o sentir a sua textura, seu cheiro, sua cor, sua alma. Feito isto pedi que eles o
amassassem a fim de perder o medo e com isso soltar a turma, relaxar a oficina. Segundo em frente foram
dadas novas folhas e passamos a criar marcas, dobras e inversões a fim de testar as possibilidades plásticas
do papel, pedindo para deixar o vinco, a marca, firmes, dobrando-a e desdobrando-a, aproveitando a opor-
tunidade para dizer o que era dobra vale e dobra montanha, passos iniciais das técnicas de dobraduras. En-
quanto os alunos executavam estas tarefas percebia que eles se soltavam, perdendo o medo, se empolgando
e com vontade de ver os origamis surgirem. Após estes dois passos veio a segurança para iniciar a dobradura
em si, mas é preciso dizer que a descoberta deste caminho, desta aproximação com o suporte papel antes
de iniciar os origamis veio com o tempo, com a prática. Lembro bem das primeiras oficinas quando não
escolhia bem o nível do origami para cada grupo, ou entregava o papel no formato original, fazendo-os usar
réguas e tesouras para conseguir os quadrados, passo inicial para a maioria dos origamis.

Falando no uso de tesoura e régua é importante registrar a dificuldade que alguns participan-
tes sentiram quando precisaram criar os quadrados a partir de folhas de revista, de sulfite e A4, entre estes
pode-se citar um grupo de alunos do Ensino Fundamental Anos Finais que participou da primeira oficina.
Vieira (2017, p. 16) pontua que esta situação pode ser resolvida levando “[...] os papéis de casa já cortados no
tamanho ideal para a construção de cada dobradura, o que [facilita] muito o [...] trabalho”. Nas oficinas que

864
se seguiram passei a usar esta estratégia e concordo com a autora quanto a facilidade e agilidade. Contudo,
perdemos a oportunidade de demonstrar a ligação das dobraduras com a elaboração de pinturas de mo-
vimentos como a Arte Concreta e o Abstracionismo Geométrico, que faziam uso da matemática e de suas
ferramentas como réguas, esquadros, compasso, etc no processo de elaboração das obras, demonstrando
que podemos elaborar uma obra se conhecermos as técnicas necessárias. Fischer e Silbert (2009) discor-
rendo sobre Vygotsky e seus estudos a respeito do ensino de artes e alguns cuidados necessários por parte
do professor durante estas atividades, analisam a sua terceira preocupação que trata do ensino da técnica,
orientando que:

sob a orientação do professor, os estudantes aprendam as técnicas para que evoluam em


suas produções e não fiquem presos aos elementos primitivos. Porém, ao mesmo tempo,
esse ensino deve ser cuidadoso e permitir que a criança, a partir de sua cultura e de sua
visão de mundo, possa incluir esses elementos subjetivos ao se expressar. Para Vygotsky
(2003), o ensino técnico da Arte, ou seja, o ensino de técnicas para a produção artística
é uma ferramenta importante para a compreensão das obras-de-arte pelos estudantes,
porque é impossível conhecer a fundo uma obra quando somos alheios à técnica de sua
linguagem (VYGOTSKY, 2003 apud FISCHER, SILBERT, 2009, p. 6)

A partir deste momento os origamis foram surgindo e dobra após dobra, diagrama após diagramas
as figuras surgiam entre as mãos dos alunos. È muito comum a primeira tentativa apresentar erros, papel
amassado e dificuldade entre os passos. Após a segunda eles começaram a sentir mais facilidade e pouca a
pouco deixaram os diagramas de lado memorizando os passos, numa demonstração de que com prática e
usando as técnicas corretamente qualquer um pode dobrar um origami, avançando nível a nível, chegando
as figuras complicadas como os kusudmas, fadas, unicórnios ou polígonos geométricos com diversos lados.

Alcançado este patamar foi problematizada a utilização das dobraduras entendendo o papel enquanto su-
porte e o ato de dobrar como uma técnica. Desta forma passamos a ter uma atividade que se encaixa muito
bem nas aulas de artes visuais, sejam elas realizadas em Oficinas durante exposições ou mesmo nas salas de
aula da educação básica. A adaptação das técnicas de corte e dobra ao papel e toda a matemática envolvi-
da na poética de artistas concretos como Max Bill, Waldemar Cordeiro, Alfredo Volpi, Jesus Soto e tantos
outros tornam interessantes as praticas de origamis e construção de esculturas móveis durante o processo
de ensino aprendizagem em Artes Visuais, além de oportunar a interdisciplinaridade entre Artes Visuais,
Matemática, Biologia, etc tão necessárias para a obtenção de um ambiente pedagógico que se aproxime do
ideal utópico que imaginamos enquanto docentes, educando de uma forma mais ampla, unindo a escola à
realidade social vivenciada pelos alunos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ter a oportunidade de experimentar todo este processo despertou o interesse em pesquisar possibilidades
ainda maiores para a milenar prática das dobraduras bem como o pensamente transgressor dos artistas de
vanguarda com relação à arte cinética, direcionando esta pesquisa para a direção da confecção de obras e
para o ensino de arte, mergulhando mais profundamente na adaptação da técnica de corte e dobra, na uti-
lização dos diagramas de origami, na ressignificação de materiais descartáveis como papel e garrafas pet,
procurando proporcionar mais prática de escultura durante as aulas de artes visuais, sejam elas na educação
formal ou na não-formal, durante oficinas em exposições ou no dia a dia da sala de aula. Sigo com a mente
aberta as novas possibilidades destas técnicas e materiais aprendendo a existir e (re) existir enquanto arte
educadora, pesquisadora e artista visual.

865
REFERÊNCIAS

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Pública: a pedagogia crítica social dos conteúdos. 21° ais. Ler e escrever compromisso de todas as áreas. 7ª ed.
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PERISSINOTO, Paula. O Cinetismo interativo nas Ar- PERES, Tatiana Romagnolli. Arte e educação não formal.
tes Plásticas. Dissertação de Mestrado (Escola de Comu- Londrina: Editora e Distribuidora Educacional, 2016.

866
(RE)SIGNIFICAÇÕES NOS
MUSEUS CONTEMPORÂNEOS
Dayse Euzebio de Oliveira- UFPE
Guilherme Panho- UFPE

AS MÚLTIPLAS CONCEPÇÕES SOBRE MUSEUS

Segundo Chagas (2006) até meados dos anos setenta (70) a concepção de museu era de “um local
para abrigar coisas antigas”, um mausoléu para celebrar a memória do poder. Esse pensamento tem raiz
na origem dos museus públicos, nos séculos XVIII e XIX na ideia de que museus são espaços burgueses
que servem aos interesses dominantes e à formação do estado nação emergente, focando como os museus
ajudaram a perpetuar essa noção de poder das nações dominantes sobre suas colônias. De acordo com o
autor, ainda que esse modelo de museu tenha origem nos séculos anteriores, eles continuaram sobrevivendo
e proliferando até o século XXI. O culto à saudade, aos acervos valiosos e imponentes era a orientação fun-
damental desse tipo de museu celebratório do poder, onde a memória coletiva e o poder eram unificados e
cujos acervos eram personalistas e etnocêntricos.

“A tendência para celebrar a memória do poder é responsável pela constituição de acervos e coleções
personalistas, etnocêntricas e monólogicas, tratadas como se fossem a expressão da totalidade das coisas ou
a reprodução museológica do universal; como se pudessem expressar a realidade em toda sua complexidade
ou abarcar as sociedades através de esquemas simplistas, dos quais o conflito é banido por pensamento má-
gico e procedimentos técnicos de purificação e excludência”. (CHAGAS, 2006, p. 32)

De acordo com Nascimento Júnior e Chagas (2009 p. 159) “Os museus tradicionais têm, ao longo
do tempo utilizado o passado para legitimar grupos sociais restritos, em que a maioria da população não
se vê nesse tipo de museu”. Nesse sentido, o museu contemporâneo desloca-se do foco apenas no passado e
torna-se um espaço de reflexão sobre o presente e de imaginação sobre o futuro. Os autores também acredi-
tam na experiência patrimonial como um instrumento de mudança social, através de uma prática crítica e
inclusiva, e destaca que é importante pensar o museu como “espaços de mediação cultural”, como locais de
integração e de sociabilidade de múltiplos grupos sociais e como instrumento de mudança social.

Nascimento Júnior e Chagas (2009, p.20) enfatizam a centralidade dos museus na cultura contem-
porânea e critica a noção tradicional do museu como “casas onde se guardam relíquias de um certo passado
ou na melhor das hipóteses, como lugares de interesse secundário do ponto de vista sociocultural”. Destaca
ainda que nas propostas das Políticas Nacionais de Museus, estes são entendidos como um veículo de de-
mocratização social:


867
[...] práticas e processos socioculturais colocados a serviço da sociedade e do seu desen-
volvimento, politicamente comprometidos com a gestão democrática e participativa e
museologicamente voltados para as ações de investigação e interpretação, registro e pre-
servação cultural, comunicação e exposição dos testemunhos do homem e da natureza,
com o objetivo de ampliar o campo das possibilidades de construção identitária e a per-
cepção crítica acerca da realidade cultural brasileira. (NASCIMENTO JÙNIOR; CHA-
GAS 2009, p. 24)

Uma forma nas quais os museus contemporâneos estão tentando desafiar a perspectiva dominan-
te que coloca o museu como um lugar de relações de poder, é invocar e encorajar novas relações entre os
museus e as comunidades. Como movimento, esse fenômeno pode ser amplamente definido como a ‘Nova
Museologia’. Com a nova museologia, a partir dos anos 1960, os museus começam a ser pensados como
instrumento de mudança social, que amplia os vínculos com todas as camadas da população, neste sentido,
é indispensável redimensionar os aprendizados museológicos e tomar um protótipo mais inclusivo. Surgida
a partir da mesa redonda de Santiago do Chile e da Declaração de Quebec, a Nova Museologia aparece rei-
vindicando novas funções para os museus e novos papéis para os museólogos. Para Cândido:

Alguns elementos dessa Nova Museologia são a definição globalizante de Museologia e


museus – o conceito de museu cobre o universo inteiro e tudo é musealizável; o museu
como lugar específico onde podem ser estudadas as relações entre o homem e a realidade
do universo em sua totalidade e a Museologia como ciência dessas relações. (CANDIDO,
2002, p.60).

As definições já consagradas de museus históricos, museus artísticos, museus científicos, juntam-se


os novos museus denominados ecomuseus, etnomuseus, museus de bairro, museus comunitários e museus
de território. Esses espaços designados museus do homem e da natureza, são lugares onde há a participação
massiva do público, pois o mesmo se reconhece neste território – o acervo faz parte da comunidade e a co-
munidade do acervo. (RAMOS, 2001)

Por outro lado, Chagas (2009) destaca que não se trata apenas de abrir os museus para todos, mas
de reinventar o museu que também passa a ser um patrimônio cultural e uma das partes constitutivas da
nova configuração museal. Para o autor, a associação dos museus à idéia de templo é página virada, o que
se propõe hoje é que o museu possa ser considerado como um fórum onde o principal foco é o público.
Portanto, a partir da nova museologia mudam os argumentos museais e entra em voga a discussão sobre as
tensões entre o “museu-templo” e o “museu-fórum” (RAMOS, 2004 p. 20). É definido por Cândido (2002),
museu-templo como espaço de linguagem e caráter elitista e museu-fórum como lugar onde é fomentada a
ação, como se fosse um espelho da comunidade. Assim como a concepção de museu, também a noção do
objeto museal foi sendo modificada na nova museologia.

Os objetos quando passam a ser colecionados deixam de ter vida (função utilitária) e passam a ter
a função social de “guardar a memória”. Portanto, uma exposição nunca deve perder o seu caráter de estu-
do sobre os objetos assim como, deve estar aberta as novas interpretações que resultam da comunicação
com o público. Segundo Pereira:

Ao contrário do procedimento usual dos museus, uma exposição é o ponto de partida no


sentido de estabelecer uma interação com o público, (...) a exposição é ao mesmo tempo,
produto de um trabalho interativo, rico, cheio de vitalidade, de afetividade, de criatividade
e de reflexão estabelecida no processo que antecedeu a exposição e durante a montagem,

868
além de ser ponto de partida para outra ação de comunicação. (PEREIRA, 2007 apud
SANTOS, 2002, p. 25).

Neste sentido, ressalta-se a importância de projetos de ações educativas que despertem a apreciação
crítica do público visitante, no qual a aprendizagem aconteça de forma espontânea. As ações educativas
enfatizam o papel participativo dos indivíduos promovendo situações de diálogo e aproximando os bens
patrimoniais das comunidades locais.

Sabemos que os objetos museais têm muito a nos dizer tanto sobre o seu aspecto físico, como sobre
seu processo de produção e os significados culturais que lhe são atribuídos. De acordo com o autor, na lei-
tura do objeto realizamos a leitura do mundo e passamos a refletir sobre o sujeito que o construiu e sobre
a cultura que ele expressa. deixa-se apenas de contemplar o objeto e passa-se a destruir e reconstruir os
objetos, pois os mesmos não são estáticos e provocam reações.

Ainda segundo Ramos (2004, p.21) “se aprendemos a ler palavras, é preciso exercitar o ato de ler ob-
jetos, de observar a história que há na materialidade das coisas”. Nesse sentido, todo objeto museal exibido
em exposições possui características sociais muito presente, pois reporta-nos à memória de quem os criou
e utilizou e criando possibilidades de múltiplas significações. Portanto é nos museus que os bens culturais
podem ser problematizados e questionados. Além de ser explorada a imaginação e a criatividade é através
dos objetos museais que são compreendidos os aspectos sociais, históricos, técnicos, artísticos e científicos.

No entanto, Ramos (2004) destaca que as visitas guiadas de turmas escolares nos museus, sem pro-
blemáticas historicamente fundamentadas tornam-se um ato mecânico, uma sucessão de eventos. Por outro
lado, o monitor deve assumir a postura de fazer perguntas, despertar reflexões, provocando no visitante a
vontade de, a partir dos objetos e das relações entre os objetos exibidos, construir conhecimento. O desafio
é potencializar o campo da percepção diante dos objetos, por meio da “pedagogia da pergunta”, como diria
Paulo Freire (1985), e aprender a refletir a partir da “cultura material”. Assim o museu assume seu papel
educativo e comprometido com o ensino.

Para Nascimento Júnior e Chagas (2009) torna-se necessário pensar os museus como uma ferra-
menta, uma tecnologia social a serviço da emancipação social a fim de proporcionar uma ruptura epistemo-
lógica e política com as práticas e os imaginários até aqui hegemônicos. Nesse sentido é necessário articular
e transformar esses espaços em algo legível para seus habitantes e visitantes. Dessa forma podemos dizer o
que o espaço cultural aqui referido “os museus”, poderão ser um espaço de sociabilidade e de inclusão.

Mas como vamos tornar os acervos museais legíveis para a comunidade de seu entorno? Retorna-
mos as reflexões de Chagas (2003, p.06) sobre a necessidade de ressignificar os museus: “Devorar e ressigni-
ficar os museus, eis o desafio de cada nova geração.” Na verdade, precisamos estar preparados para enfrentar
os desafios de pensar o museu na contemporaneidade, assim como, para envolver o público que visita os
museus com práticas culturais que despertem o interesse em conhecer seu patrimônio cultural e que os
motive a preservá-lo. Reconhecemos que a forma como temos tratado tanto os objetos museais quanto o
público que visita os museus não tem contribuído para que os museus cumpram sua função social. Salienta-
-se que as práticas culturais desenvolvidas nos museus devem estar próximas da vida cotidiana e das formas
de expressão dos indivíduos para que os mesmos se reconheçam nos acervos museais.

Na contemporaneidade a ação participativa é a característica marcante da Nova Museologia que


criou programas que contextualizam os museus, as exposições e o público (neste caso os educandos). Com
uma concepção essencialmente educativa e uma metodologia direcionada ao público escolar, o conceito de
patrimônio é ampliado e passa a abranger a comunidade em que está inserido.

869
Dentro das ações planejadas o educador, o educando e os membros da comunidade local compreen-
dem seu patrimônio cultural como referência de identidade local. Neste sentido, Santos (2000) coloca que:
a ação museológica é uma ação educativa e de interação que produz conhecimento e busca a construção de
uma nova prática social, portanto, a ação museológica é por nós compreendidos, como uma ação educativa
e de comunicação. Dessa forma, a ação educativa nos museus reforça a noção de que a educação não acon-
tece somente em espaços formais e reafirma o museu como espaço de reflexão e interatividade. Apesar das
rupturas da nova museologia reafirma-se a importância da ação educativa nos museus.

ARTE MÍDIA E TECNOLOGIA

A criação e utilização das novas tecnologias da informação possibilitaram transformações, sociais,


culturais e econômicas que se difundem nos mais diversos campos da atividade humana. O surgimento
de um “mundo virtual” proporciona novas práticas de sociabilidade, nas quais os processos dos meios de
comunicação e de informação, em confluência com esses espaços virtuais, operam mudanças no comporta-
mento dos indivíduos, alterando a forma como este se integra na sociedade, procura informações e adquire
conhecimento (LEVY, 1997).

O advento da internet mudou de maneira decisiva a nossa forma de ser e se comunicar. Essa mudan-
ça atinge, principalmente, questões relativas ao nosso modo de ver e refletir sobre nossas relações sociais, as
redes possibilitam uma nova forma de organização social, mais orgânica e adaptável, que foi gradualmente
sendo incorporada no fazer da sociedade contemporânea, “Não apenas os processos são reversíveis, mas or-
ganizações e instituições podem ser modificadas e até mesmo fundamentalmente alteradas pela organização
de seus componentes” (CASTELLS, 2002, p.108).

Com início na década de 70, o processo de informatização da sociedade rapidamente se espalha e


se estabelece nas capitais e cidades mais desenvolvidas. Já na década de 80 a sociedade passa a vivenciar o
surgimento de uma nova fase, a sociedade da informação, que teve seu arranque com a popularização da
internet e culminou com o desenvolvimento da rede de computação sem fio e associado à telefonia móvel.
Essa mudança se refletiu, principalmente nas práticas sociais, nas vivências do espaço urbano e na forma
como produzimos e consumimos informação. A cibercultura (LEMOS, 2002) se espalha e se manifesta de
forma onipresente fazendo com que não seja mais o usuário que se desloque até a rede, mas a rede que passe
a envolver os usuários e os objetos numa conexão generalizada.

O desenvolvimento da internet permitiu a construção de uma comunicação mais participativa, mais


aberta para uma audiência mais diversificada, incluindo novas vozes, narrativas e perspectivas. “Quanto
mais se desenvolve os processos de inteligência coletiva – o que supõem evidentemente o questionamento
de numerosos poderes – melhor os indivíduos e os grupos se apropriam das mudanças técnicas” (LEVY,
1997, p.30). Pelo seu aspecto colaborativo, a internet e as novas tecnologias da informação proporcionam a
possibilidade de uma comunicação interativa e capaz de projetar um horizonte de espaços virtuais e presen-
ciais com caráter mais democrático e agregador.

Dessa forma, uma das principais características do Ciberespaço, sua capacidade de alcançar e co-
nectar grupos fisicamente distantes em torno de interesses e ideais comuns, passam a ser notados pelas ins-
tituições culturais como estratégias de conexão e comunicação, possibilitando novas condições de sociabili-
dade com o público, criando uma dinâmica social que atende a finalidade de interagir com novas audiências
e incorporar novas perspectivas.

Os museus não estão isentos das transformações sociais e culturais acarretadas pela evolução da
internet, e atualmente o Museu como instituição cultural enfrenta um grande desafio: a comunicação com

870
o seu público (MACHADO, 2005). Vários museus já fazem uso das mídias sociais para abraçar usuários
por meio de uma comunicação mais horizontalizada, permitindo assim levar informações e conhecimento
de uma forma descentralizada a uma audiência não presencial, fazendo com que eles possam usufruir de
diversos serviços e produtos culturais, em qualquer lugar do mundo.

MUSEUS 2.0

A tradição dos museus se origina na prática humana do colecionismo, desde o período da antigui-
dade, o homem coleciona objetos e lhes atribui valor, seja afetivo, cultural ou simplesmente material, o que
justifica a necessidade de sua preservação e coleção ao longo do tempo. A idéia de Museus como atualmente
conhecemos, se consolidou durante o século XVII depois da experiência dos Gabinetes de Curiosidades, e
tem estreita relação com o conceito de modernidade e as conquistas da classe burguesa. A ideia de museu
de arte está apoiada na necessidade de conceituar, proteger e exibir um conjunto de obras que se acredita
representativo de determinada época, retirando-o de circulação do contexto cotidiano e incluindo-o no
espaço institucionalizado. (FIGUEIREDO; VIDAL, 2005)

Atualmente, com a necessidade de desenvolvimento de uma presença interativa e tecnologicamente


cada vez mais avançada das instituições culturais na Internet, os museus deparam-se com a possibilidade de se
atualizar enquanto instituição, com a incorporação de uma audiência heterogênea, promovendo a assimilação
de novas falas e a exposição de narrativas mais dinâmicas e participativas. O desenvolvimento da tecnologia
digital permitiu que o acesso à informação se tornasse móvel, imediato e universal, essa mudança causa um im-
pacto particular nas instituições culturais, a internet revelou-se como uma ferramenta fundamental de comu-
nicação, transformando de maneira categórica a forma como as instituições se comunicam com seu público.

Dos álbuns de retrato, às tradições familiares e contações de história, o patrimônio é hoje muito
mais do que artefatos de museu, edifícios históricos e como eles devem ser preservados e expostos. Dessa
forma, observa-se como as mídias sociais reestruturam nossa compreensão e experiência de patrimônio,
abrindo formas mais participativas de interagir com os artefatos e interesses patrimoniais, e como os Mu-
seus estão fazendo uso dessas tecnologias. Nesse contexto, a relação entre os museus e seus visitantes pode
ser entendida como uma questão maior, sobre como as instituições públicas entendem o público que elas
representam, e como a cultura participativa e as redes sociais podem ajudar em um processo de comunica-
ção interativo e horizontalizado. A cultura participativa não é apenas sobre produzir e consumir conteúdos
gerados por usuários da rede de internet, mas é também sobre diversas formas de afiliação, expressão, cola-
boração e distribuição. (JENKINS, 2015).

Jenkins (2015) cunhou o termo “cultura participativa” para descrever a produção cultural e as interações de
comunidades de fãs, buscando inicialmente uma maneira de distinguir as interações de fãs de outras mo-
dalidades de espectador. Conforme o conceito foi evoluindo, passou, também, a se referir a uma variedade
de grupos que funcionam na produção e na distribuição de mídia para atender a seus interesses coletivos.

A expressão cultura participativa contrasta com noções mais antigas sobre a passividade dos
espectadores dos meios de comunicação. Em vez de falar sobre produtores e consumidores
de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como parti-
cipantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras. (JENKINS, 2015, p.20)

Essa interação com os conteúdos permitiu ao Museu ampliar a conexão que tem com o público
criando uma relação mais interativa, personalizável e próxima. Hoje, a ideia de museu enquanto ambiente

871
ortodoxo, desprendido das tendências atuais, destinado apenas à conservação e exposição de patrimônio
e coleções artísticas, está se alterando. Cada vez mais os museus de arte se mostram como verdadeiros
centros culturais, desenvolvendo ações que vão além do contorno das próprias coleções que abrigam,
levando seus acervos a um público cada vez mais vasto e conduzindo a experiência patrimonial a outros
patamares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reitera-se, então, com esse estudo, a importância da discussão sobre o papel dos museus na contem-
poraneidade, assim como a relevância de ações educativas que transformem os museus e seus acervos em
referências para as comunidades e que permitam que estas desenvolvam laços afetivos e de pertencimento
a esses locais.

Esse artigo destacou a educação museal como instrumento fundamental das novas tendências
museológicas. Hoje se espera que os museus, dentro de uma perspectiva participativa, dediquem especial
atenção às ações educativas, para responderem as reivindicações da sociedade contemporânea. O grande
desafio de todo espaço museal é propor atividades em que o museu seja reconhecido, e que o público vi-
sitante se reconheça no museu, no seu espaço e no seu acervo ao vivenciar, a fruir e a refletir sobre o seu
patrimônio.

A função social dos museus fortalece o museu como uma instituição educativa, como agência de
educação, que através do intercâmbio com outras instituições educacionais e com a própria comunidade
desenvolve uma fruição e percepção mais apurada de seu acervo patrimonial. As metodologias voltadas as
ações educativas tem demonstrado que, quando incorporada o Patrimônio Cultural no ensino/aprendiza-
gem, pode auxiliar os visitantes no resgate de suas memórias e na construção de sua identidade, proporcio-
nando novas possibilidades de re-significar, re-construir, re-conhecer e incorporar o Patrimônio Cultural da
sua cidade na sua leitura do mundo.

O desenvolvimento da tecnologia digital permitiu que o acesso à informação se tornasse móvel,


imediato e universal. A instituição e o objeto museológico estão sofrendo alterações na medida em que sur-
gem novas formas de pensar o Museu, percebendo-o como uma instituição que não está apenas limitada ao
seu espaço físico, mas que pode atuar além dos limites da sua fronteira, se tornando acessível a um público
cada vez maior e desenvolvendo uma relação de proximidade com a sociedade ao seu entorno.

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873
SAMBANDO NO TERREIRO –
O JOGO TEATRAL E O GOSTAR
DE FALAR A PALAVRA
Alexandre Geisler de Brito Lira (PPGAC/UFBA)

É experiência aquilo que nos ‘passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e
ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência
está, portanto, aberto à sua própria transformação.
JORGE LAROSSA BONDÍA (2002)

O ato de rememorar é o modo que o homem encontra para fazer uma re-
flexão sobre sua trajetória na vida em um tempo e em um espaço culturais.
ELIAS JOSÉ (2012)

C ontar e ouvir histórias, para mim, tem a ver com o que Larrosa (2002) nos sugere ao falar
sobre a experiência: é deixar-se atravessar pelas histórias ainda desconhecidas; é relacionar-se intimamente
com outro, olho no olho, quando todos relacionam-se virtualmente; é pausar por um instante o tempo,
quando todos têm pressa; é embarcar para outros mundos, quando todos têm medo de tirar o pé no chão.

Ao desejar compartilhar as minhas vivências enquanto contador e escutador de histórias; compar-


tilhar meus modos de contar com outros educadores e educandos em oficinas formativas dou-me conta
de que o meu processo de formação como contador de histórias tinha a ver com as experiências que fui
acumulando ao longo da vida, com as minhas memórias de criança, adolescente e adulto; e que por conta
disso, não saberia como ensinar a se contar histórias, se não fosse propiciando situações semelhantes àquelas
vividas outrora por mim.

O não saber estimulou a pesquisa, o silêncio, a escuta, o encontro e a experimentação. Foi na ex-
periência de sala de oficina, em meio aos jogos, numa experiência comungada educador/educando, num
reencontro com os velhos conhecidos teóricos do teatro-educação que fui percebendo o potencial dos jogos
teatrais para a contação de histórias.

Ao me colocar no meio do jogo, olho no olho com os participantes das oficinas, ao me reencontrar
com os velhos conhecidos teóricos do teatro-educação, permiti ser atravessado por essa nova experiência
que foi ensinar adolescentes, jovens e adultos a contarem histórias.

A experiência é um movimento de ida e volta. Um movimento de ida porque a experiência


supõe um movimento de exteriorização, de saída de mim mesmo, de saída para fora, um
movimento que vai ao encontro com isso que passa, ao encontro do acontecimento. E um
movimento de volta porque a experiência supõe que o acontecimento afeta a mim, que
produz efeitos em mim, no que eu sou, no que eu penso, no que eu sinto, no que eu sei, no
que eu quero, etc. (BONDÍA, 2011, p.6-7)

874
Assim, aqui, neste artigo, reflito um pouco sobre a primeira oficina que ministrei quando comecei a
pesquisar a linguagem da contação de histórias.

A primeira vez que, após ter iniciado os estudos e a prática em contação de histórias, eu ministrei
uma oficina de formação nesta linguagem, foi em Ibiquera, um pequeno município do centro norte baiano,
distante cerca de 372 km de Salvador.

Em parceria com a direção do Colégio Estadual Marechal Artur da Costa e Silva – CEMACS, local
onde aconteceu a oficina, fechamos uma turma formada por alunos do curso de Educação de Jovens e Adul-
tos – EJA, professores, funcionários e ex-alunos.

A oficina tinha como proposta introduzir e acrescentar a cada encontro, elementos da linguagem da
contação de histórias associados aos jogos propostos por Olga Reverbel que possibilitassem aos participan-
tes, ao final de oito encontros, narrarem suas próprias histórias.

Vinha me perguntando de que forma os jogos teatrais poderiam contribuir na produção de situa-
ções de narração e escuta de histórias que despertassem o contador de histórias que cada um traz dentro de
si, e vinha buscando através da leitura das obras do Teatro Educação jogos que dialogassem com a contação
de histórias e trouxessem respostas a minha questão.

Assim, do livro Jogos Teatrais na Escola: Atividades Globais de Expressão (1989) da educadora e
pesquisadora Olga Reverbel, selecionei cinco exercícios com os quais pudesse trabalhar tanto com o grupo
inteiro como com cada um dos participantes, e com estes, pudesse desenvolver o relacionamento em grupo,
a espontaneidade e trabalhar a imaginação, a linguagem verbal, o ritmo; dialogando com as técnicas para a
contação de histórias.

Reverbel, em uma primeira leitura de sua obra, tinha me chamado muita atenção. Trazia, já no su-
mário do seu livro, cinco conceitos: relacionamento, espontaneidade, imaginação, observação e percepção,
que dialogavam diretamente com alguns conceitos da contação de histórias. Estes conceitos, apresentados
pela autora, nomeavam cinco grandes conjuntos de jogos dramáticos, musicais ou plásticos propostos, or-
ganizados e denominados por Reverbel como Atividades Globais de Expressão.

Para além disso, relacionamento, espontaneidade, imaginação, observação e percepção – eram con-
siderados pela autora (1989, p.25) como capacidades de expressão inatas ao ser humano, que para serem ex-
teriorizadas, no entanto, necessitavam ser estimuladas, desenvolvidas (e acrescento eu, despertadas) através
do desenvolvimento e envolvimentos dos educandos nos cincos grandes conjuntos de atividades.

No primeiro encontro, após uma roda de apresentação e uma pequena explicação sobre a oficina,
solicitei aos participantes que caminhassem pelo espaço da sala observando os colegas e o ambiente.

Da caminhada em vários tempos e níveis passamos a um exercício que chamo “uma história puxa
a outra”. Neste exercício, cinco voluntários sentam-se em cadeiras postas no espaço do palco, uma do lado
da outra, enquanto o restante do grupo se coloca na plateia. De olhos fechados, os participantes, que estão
sentados nas cadeiras do palco, são estimulados a contarem histórias do seu cotidiano a partir de palavras
ditas pelos outros participantes enquanto contam suas histórias. Uma história puxa a outra, palavra dita é
palavra-memória que é suscitada pelo que o outro conta. A plateia, neste exercício, é orientada a reagir mi-
nimamente para não atrapalhar o exercício.

Já acostumado a realizar esse exercício, em oficinas de teatro para adolescentes e jovens, nos mo-
mentos de integração de grupo, em que de olhos fechados, os participantes mais desinibidos ajudam aos
mais inibidos a “se soltarem” e contarem suas histórias, deixando o grupo inteiro descontraído e aberto, não
entendia porque meio enganchados, aquele grupo resistia a compartilhar suas histórias.

875
Figura 1 - Participantes durante o exercício “uma história puxa a outra” Ibiquera, 2015.

Fonte: Arquivo Pessoal

Durante o exercício, como podemos observar na foto acima, os braços e as pernas da maioria dos
participantes permaneceram cruzados, fechados à experiência.

Enquanto percebia claramente uma resistência ao exercício me perguntava quais os fatores impe-
diam que os participantes da oficina imergissem naquele momento na experiência?

Lembrei-me de um texto do educador e escritor Rubem Alves (2004), intitulado “Gaiolas e Asas”.
Neste texto, ele nos apresentava dois tipos de escola: Escolas que são gaiolas e escolas que são asas. Escolas
que são gaiolas, nos diz o autor, existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo.

Preocupadas em ensinar os conteúdos dos programas oficiais, convertem os alunos “em sujeitos
competentes para responder como Deus manda as perguntas dos professores que, cada vez mais, se asseme-
lham a comprovações de informações e pesquisas de opinião” (BONDÍA, 2002, p.22) e acreditam que a boa
educação é aquela que ensina aos alunos a passarem nas provas, testes e exames propostos pelo Ministério
da Educação. Esquecendo da experiência.

Engaiolados como pássaros, os alunos são confinados em estruturas repletas de grades, de si-
nais de entrada e saída e de assuntos que passam distante dos seus interesses. Escolas que são gaiolas,
funcionam cada vez mais no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos aconteça, como nos diz
BONDÍA (idem).

Segundo Rubem Alves (2004), o sujeito da educação é o corpo, porque é nele que está a vida. Pelo
corpo passam as experiências vividas no cotidiano escolar. “É o corpo que quer aprender para poder viver. É
ele que dá as ordens. A inteligência é um instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a viver.”

Escolas asas são escolas que estimulam a experiência criativa, que desejam os corpos livres e o de-
senvolvimento espontâneo dos seus educandos.

Richard Courtney, em “Jogo, Teatro e Pensamento”, comenta que

a espontaneidade é a habilidade de um sujeito enfrentar cada nova situação adequada-


mente. O indivíduo espontâneo é criativo na adequação a cada momento, é flexível, sabe
avaliar, está atento às alternativas e representa seu papel de resposta com desembaraço.

876
Em contraste, o indivíduo estereotipado representa seus papéis convencionalmente, pro-
move apenas ajustamentos aceitáveis, momentaneamente. (1980, p.98)

O desenvolvimento da espontaneidade está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento do co-


nhecimento intuitivo. Para Spolin, “é necessário um caminho para adquirir o conhecimento intuitivo. Ele
requer um ambiente no qual a experiência se realize, uma pessoa livre para experienciar e uma atividade
que faça a espontaneidade acontecer.” (2010, p. 4)

E para que as personalidades se revelem naturalmente, acrescentará Reverbel (1989, p.24), é ne-
cessário que o educador ofereça atividades num clima de ampla liberdade e que respeite as ideias e mani-
festações do aluno, pois a primeira e talvez única lei na educação pela arte é a liberdade.

Desta forma, percebi que, apesar de ser um exercício fácil, faltava aos participantes, naquele mo-
mento, vontade. Os corpos estavam nitidamente cansados, vinham de uma extensa jornada de trabalho e
atividades e tinham desaprendido a brincar e a jogar livremente.

Assim, para que, ao final daquele encontro, conseguíssemos compartilhar e improvisar algumas
histórias, era preciso, como nos orientava Reverbel (1989, p.110) propor atividades de forma que o grupo
sentisse prazer e interesse em executá-las; e principalmente, que eu estivesse junto e misturado ao grupo,
acompanhando-os e participando com eles das descobertas.

“Da manga” retirei alguns jogos tradicionais, jogos que já acostumava utilizar como aquecimento
nas minhas aulas de teatro para crianças e adolescentes. Os jogos tradicionais nos remetem às brinca-
deiras que inventávamos quando éramos crianças e experimentávamos livremente na rua, no play e de
pés descalços; nos ligam como nos diz o ator e pesquisador, Isaac Bernat (2013, p.163) com o que temos
de mais primitivo na nossa formação, ou seja, com a nossa infância, período no qual ainda não estamos
revestidos de couraças, vícios e verdades absolutas.

Naquela noite, brincamos de “O coelhinho sai da toca” e “Jana cabana”427. Entre gargalhadas e
correrias, os jogos, ao serem inseridos naquele momento, possibilitaram que os participantes aquecidos,
se envolvessem total e organicamente com o ambiente e produzissem livremente.

Assim, após vivenciarem aqueles jogos e brincadeiras tradicionais, os participantes foram dividi-
dos em três grupos e foram orientados a compartilharem no grupo histórias ouvidas ou vividas na infân-
cia. Das histórias compartilhadas, cada grupo escolheria uma apenas que seria apresentada em forma de
improvisação. Após um tempo, três histórias surgiram e foram apresentadas no grupo maior.

No momento da partilha428 daquele dia, os participantes trouxeram para a roda como tinha sido
interessante aquela noite, que mesmo sendo algo diferente à primeira vista, depois que se envolveram,
tinha se tornado muito divertido e prazeroso contar suas histórias.

427. “Jana Cabana” e “Coelhinho sai da Toca” são brincadeiras de salão de formato parecido. Nas duas, o grupo é dividido em vários trios res-
tando um participante sozinho de fora e que dá o comando. Nas duas brincadeiras, dois participantes ficam de frente um para o outro dando a
mão no alto formando uma cabana ou toca. O terceiro participante fica no meio. Em “Jana Cabana”, as palavras comando são cabana, inquilino
e tempestade, que são ditas pelo participante que vem ao centro do jogo. Quando o participante fala cabana, as cabanas se desfazem enquanto
os inquilinos permanecem em seus lugares a espera que outra cabana se forme ao seu redor; ao falar inquilino, as cabanas permanecem nos
lugares enquanto os inquilinos buscam outras cabanas aonde possam entrar; e ao falar tempestade, todos saem dos lugares ao mesmo tempo,
cabanas e inquilinos, trocando de pares e formando novas cabanas tendo novos inquilinos ao meio. Já em “O Coelhinho sai da Toca”, a palavra
de comando é dita por alguém que está fora do jogo e pode ser qualquer uma. Normalmente, eu utilizo ou a palavra “valeu” ou “foi”. O obje-
tivo nas duas brincadeiras é que os participantes, o que está ao centro e os que estão na toca ou cabana troquem de lugares, sem, no entanto,
ninguém ficar no meio.
428. A “partilha” é como chamo o momento final da oficina em que os participantes comentam sobre a aula, sobre o seu dia e também dão sugestões.

877
Para o segundo encontro, reorganizei o plano de aula pensando na sequência: aquecimento –
sensibilização – produção. Inseri alguns jogos tradicionais no momento do aquecimento e a leitura de
pequenas histórias, contos da cultura popular como exercício de experimentação.

Divididos em três grupos, entreguei a cada grupo um texto impresso diferente. Para este exercí-
cio, escolhi dois contos:

O pacote de água e O focinho branco do burro do livro “Mãe Africa”, coletânea de histórias africanas
organizadas por Celso Sisto e editado pela Editora Paulus e o conto “A mãe d’água” do livro “Virou Bicho”,
narrativas do folclore organizado por Ernani Ssó e editado pela Cia das Letrinhas.

Figura 2 - Participantes em grupo, fazendo a leitura dos textos. Ibiquera-BA, 2015.

Fonte: Arquivo Pessoal

A orientação foi que eles fizessem uma primeira leitura para conhecer o texto, uma segunda leitura
para compreender o texto, reconhecendo personagens e fatos importantes da história e uma terceira leitura
para perceber o ritmo do texto.

A primeira aproximação do contador ao conto a ser estudado é uma pergunta, nos diz Regina Ma-
chado (2004). Segundo a autora, devemos perguntar o que o conto tem para nos oferecer.

Quando pergunto ao conto o que ele tem para mim, em primeiro lugar ele me revela sua
sequência narrativa e eu percorro o trajeto do fio que a conduz, os espaços e lugares em
que os personagens agem. (...) elaborando esse roteiro, o contador de histórias pode com-
preender, de modo significativo, o desenrolar da ideia narrativa. (p. 52-53)

Durante a realização desse exercício, foi imprescindível o entrosamento do grupo; professores e


alunos, numa relação horizontal, estiveram dispostos a aprenderem uns com os outros. Dois participantes
da oficina me chamaram muita atenção nesse sentido: uma professora e um aluno. Lindalva, uma senhora
de meia idade e Moisés, um jovem de 20 e poucos anos. Assim, na hora de ler os contos, em grupo, Lindalva
que dominava mais a leitura, lia os textos, enquanto os outros, entre eles, Moisés, ouviam e davam ideias de
como apresentar as histórias.

A evolução deles durante a oficina foi o maior ganho durante aquele tempo. Dona Lindalva não
faltou a nenhum encontro e desde o início, incentivava os alunos a participarem dos jogos e exercícios.
Moisés, chegou no primeiro encontro desconfiado e se colocou no fundo da sala. Depois dos primeiros
jogos, ele já gargalhava e estava sempre do meu lado, perguntando, incentivando os colegas e querendo
aprender.

878
Figura 3 - Professora Lindalva durante o exercício de encenação da história “A mãe d’agua”, Ibiquera, BA, 2015.

Fonte: Arquivo Pessoal

A oficina em Ibiquera foi uma oficina curta. Assim, a partir do terceiro encontro, comecei a
montar o roteiro da mostra final, tendo como base os contos que já tínhamos começado a trabalhar
desde o último encontro: “Como as histórias vieram parar na Terra”, “O focinho branco do burro” e “A
mãe d-água”.

No dia do primeiro ensaio, trouxe as histórias digitadas e organizadas como um roteiro. Fizemos
uma primeira leitura juntos e depois, divididos em pequenos grupos, orientei que pensassem como poderí-
amos apresentar aquelas histórias em forma de teatro. Juntos chegamos a um formato em que todos seriam,
narradores e também personagens das histórias. Em grupo dividiram os personagens e as partes que cada
um narrariam.

No momento da divisão dos papéis que cada um assumiria em determinados momentos da nar-
ração, o papel de Deus na história do focinho branco do burro ficou para Moisés, que radiante tomou
para si aquele papel e no outro dia já chegou com sua parte decorada, e durante os ensaios, era o mais
concentrado.

Figura 4 - Moisés durante o ensaio da história “O focinho branco do Burro”.

Fonte: Arquivo Pessoal

Durante os quatro encontros reservados aos ensaios, mantive o plano de aula no formato aqueci-
mento-sensibilização-produção, sendo este último momento para o ensaio, em que passava orientações.
Aprendíamos enquanto ensaiávamos.

Ficou nítido para mim, durante os nossos encontros, que não bastava ensinar técnicas para a nar-
ração de histórias, antes, era preciso colaborar para o desenvolvimento das habilidades pessoais de cada um
dos participantes, despertando a “curiosidade, o senso de humor, a capacidade de brincar, de correr o risco,
de perguntar, de ter flexibilidade para ver as coisas de diferentes pontos de vista” (MACHADO, 2004, p.72)
adormecidas pela rotina embrutecedora.

879
As habilidades pessoais são o que a pesquisadora e contadora de histórias Regina Machado chama
de recursos internos para a narração de histórias. Um bom contador de histórias, segundo Machado (op.cit,
p. 68) exercita habilidades pessoais – recursos internos -, combinadas com o amplo repertório de informa-
ções disponíveis – recursos externos -, enquanto vai polindo e conquistando, ao longo da vida, a qualidade
da presença.”

Naqueles poucos dias em que estivemos juntos, busquei colaborar nesse sentido: cada jogo e cada
dinâmica proposta por mim tinha a intenção de proporcionar em cada um seu próprio despertar, respeitan-
do o tempo de cada um.

Assim ao jogarem, os participantes puderam perceber suas potencialidades. Estimulados e aqueci-


dos, experimentaram, ainda que alguns timidamente, narrar suas próprias histórias; e despertaram o con-
tador que habita em cada um de nós, ao se apropriarem das suas palavras e gostarem de falar suas próprias
palavras.

A oficina em Ibiquera foi finalizada numa manhã de sexta-feira com uma grande contação de his-
tórias no pátio do Colégio, para um público de alunos e professores do turno matutino. Chamamos nossa
apresentação de “O Bocapiu das Mil e Umas Histórias” fazendo referência ao Bocapiu: sacola feita de palha
de coqueiro muito utilizada para carregar mantimentos e objetos em dia de feira, e também às mil e uma
histórias contadas por Sherazade429.

Naquela manhã, no último dia da oficina, dei-me conta de algo que foi muito quisto à minha pes-
quisa. Aconteceu logo no início da apresentação quando entrávamos em cortejo fazendo uma espécie de
dança.

A ideia do cortejo surgiu a partir do conto “Como as histórias vieram parar na Terra”. Nele, narra-
-se a história de Ananse430 que depois de desafiado por Deus ganha todas as histórias do mundo. Quando
apresentei essa história aos participantes durante a oficina, questionei a eles qual deveria ter sido a sensação
de Ananse ao ter nas mãos todas as histórias do mundo. Uma das palavras foi felicidade, alegria. O cortejo
veio nesse sentido, mostrar a alegria dos homens e mulheres que agora chegam para contar as histórias que
antes só Deus sabia.

Durante os ensaios, tentei ensaiar a dança, incluindo todos os participantes naquele movimento.
Tímidos não se arriscavam. No dia da apresentação, antes de entrarmos, sugeri novamente aos alunos que
entrássemos dançando. Só Moisés topou. E assim aconteceu.

Eu e Moisés não tínhamos ensaiado nada, não sabíamos o que íamos dançar, e na hora de entrar-
mos, conectados com os olhos nos entregamos. Regina Machado nos diz em Acordai: Fundamentos Teóri-
cos- Poéticos da Arte de Contar Histórias que enquanto estamos dentro do conto,

experimentamos a certeza de que valores humanos fundamentais como a


dignidade, a beleza, o amor e a possibilidade simbólica de nos tornamos
reis permanecem vivos em algum lugar dentro de nós. (2004, p.15)

Assim, movidos por essa certeza, abrimos com muita animação aquele que seria o nosso último
momento junto. Significou muito para mim.

429. Sherazade é uma personagem do livro “As mil e uma noites”, uma das mais famosas obras da literatura árabe escrita entre os séculos XIII e XIV.
430. Conto da mitologia africana

880
Figura 5 - Apresentação “O Bocapiu das Mil e uma Histórias”, Ibiquera, BA, 2015.

Fonte: Arquivo Pessoal

Foi no meio da dança espontânea, dançada com Moisés embaixo das amendoeiras no terreiro da
escola que me dei conta de que é na experiência comungada dentro de uma comunidade e através de expe-
riências do cotidiano que acordamos os recursos de que precisamos para aprender tudo o que desejamos. E
aprendemos muito naqueles dias.

Referências

ALVES, Rubem. Gaiolas ou Asas in A arte do voo ou a MACHADO, Regina. Acordais: fundamentos teóricos-
busca da alegria de aprender. Porto: Edições Asa, 2004. -poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL,
2004.
BERNAT, ISAAC. Encontros com o griot Sotigui Kou-
yaté / Isaac Bernat. - 1. Ed. – Rio de Janeiro: Pallas, 2013. REVERBEL, Olga Garcia. Jogos teatrais na escola: ati-
vidades globais de expressões. Rio de Janeiro: Scipione,
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o
1989.
saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002,
n.19 SISTO, Celso. Mãe África: mitos, lendas, fábulas e con-
tos / reconto e ilustrações Celso Sisto. – São Paulo: Pau-
COURTNEY, RICHARD. Jogo, teatro e pensamento:
lus, 2007.
as bases intelectuais do teatro na educação. São Paulo:
Perspectiva, 1980. SSÓ, Ernani. Virou Bicho! Narrativas do Folclore. Ilus-
trações Renato Moriconi. São Paulo: Companhia das Le-
trinhas, 2009.

881
TEATRO DA ESPONTANEIDADE
E LINGUAGEM TEATRAL: CONSTÂNCIA
E RESSIGNIFICAÇÃO
Patrícia Couto Barreto
Alcione Melo Trindade

INTRODUÇÃO

Pensar o teatro na contemporaneidade nos faz pensar sobre o porquê e o como sobreviveu da sua
origem até a hoje. É a partir dessa reflexão que percebemos a presença de alguns elementos considerados
como constantes (ator, plateia, diretor e autor).

Compreendemos que esses elementos constantes, apesar de transformações, fizeram-se fundamen-


tais na construção da ideia do que veio a ser chamado Teatro e que são condições determinantes para o fazer
teatral. Mas, talvez, a pergunta original seja: por que se faz teatro? Fazemos teatro porque jogamos.

O princípio do teatro tem sido objeto de inumerosas especulações. Mas praticamente to-
dos situam dois pontos irrecusáveis: desde cedo o homem sente a necessidade do jogo, e
no espírito lúdico aparece a incontida ânsia de “ser outro” (PEIXOTO, 1980, p.14).

O jogo que nos interessa é o jogo da atuação, do fazer de conta, do representar. O jogo que se nu-
tre do símbolo e da imaginação. É o fazer drama. Portanto, o jogo de representar é o jogo dramático, “No
Drama, no fazer e lutar, a criança descobre a vida e a si mesma através de tentativas emocionais e físicas e
depois através da prática repetitiva, que é o jogo dramático”, (SLADE, 1978, p.18) que acontece em caráter de
improviso, imaginação e instinto.

Com a presença da plateia, nesse jogo, estabelecem-se as constantes do teatro (Ator/Autor/Plateia/


Diretor), deslocando-se da experimentação para o campo do jogo elaborado e construído a partir de pa-
péis, enredos e ações.

Foi partindo desse entendimento que Jacob Levy Moreno431 (1889-1974), aos 4 anos e meio de
idade, já pensava no jogo, não como uma atividade qualquer, mas no jogo de ser Deus, quando propunha
brincar repetidamente de representá-lo com outras crianças.

431. Jacob Levy Moreno (1889-1974), foi um médico, psiquiatra, filósofo, dramaturgo romeno-judeu nascido na Romênia, crescido na Áustria (Vie-
na) e naturalizado americano .Criador do Teatro da Espontaneidade, do Psicodrama, Sociodrama e pioneiro no estudo da Terapia em grupo. Tem
grandes contribuições no estudo dos grupos, em psicologia social e é o criador da Sociometria.

882
Este papel era para ele, um “aquecimento” para sua futura missão: por meio dele estava se preparan-
do para ser uma importante pessoa cósmica, que associaria seu nome ao de Deus-Criador (MARINEAU,
1992, p.31).

Um papel que o acompanharia ao longo de sua vida que desde então, passando pelos Jardins de
Viena, no parque de Augarten em 1908, o Teatro da Espontaneidade432 em Viena, em 1921, até a construção
do sistema psicodramático e sociodramático, veio criando sustentação à ideia de que o fazer teatral podia ter
um caminho seguro em direção à experimentação de papéis através da espontaneidade.

A fonte e inspiração foi a partir de suas vivências com a linguagem teatral através de suas constantes
(ator/plateia/diretor/autor), mas também segundo ele “meu principal motivo era os espaços abertos nos quais
eu me deslocava e representava com as crianças.” (MORENO, 1984, p.1180)

O objetivo desse artigo é apresentar os elementos constantes, próprios da linguagem teatral, e iden-
tificá-los na construção do Teatro da Espontaneidade por Moreno.

A nossa trajetória será a apresentação: (1º) momentos icônicos (A queda de Deus, Jardins de Au-
garten e o Caso Bárbara), que construíram o Teatro da Espontaneidade de Moreno, (2º) sequenciamos com
a apresentação dos elementos teatrais, que compreendemos como constantes ao aparecerem ao longo de
toda a história do Teatro Ocidental, e que Moreno traz como sustentação para a criação do Teatro da Espon-
taneidade, (3º) Por fim mostramos como essas constantes mantêm-se ao longo da construção do Teatro da
Espontaneidade, transformando-se a novas adequações aos interesses de um Moreno inspirado e compro-
metido com o teatro ritualístico.

1. TRÊS MOMENTOS ICÔNICOS: A PRÓPRIA VIDA QUE SE ENCENA

O primeiro momento icônico para a obra de Moreno foi a queda de Deus, que retrata uma infância
de experimentação ao jogo. Em suas memórias, ele narra que, em torno do final de sua primeira infância,
aos quatro anos, já se sentia chamado a jogar o jogo simbólico da representação. Muito dessa narrativa,
podemos dizer lendária, vem do desdobramento de uma infância adoecida, sob os cuidados de uma mãe
controladora, que projetava no filho a criança especial, assim como um pai ausente que exercia profunda
fascinação na criança.

Sendo assim, seus jogos já tinham a premissa de não apenas ser, mas de ser mais, ser além do que se
era. Ser Deus, o criador, era a sua proposta de representação. Foi em uma dessas representações que acon-
teceu o que mais tarde Moreno chamaria de o primeiro psicodrama privado e no qual ele foi ator e diretor
ao mesmo tempo, “A queda de Deus”:

As crianças disseram: “Vamos brincar”. Uma criança me perguntou: “De quê?”.“Eu sei”,
disse eu, “Vamos brincar de Deus com seus anjos”. As crianças perguntaram: “Mas quem é
Deus?”. Retruquei:“Eu sou Deus e vocês são meus anjos”. As crianças concordaram. Todas
declararam: “Precisamos primeiro construir o céu”. Levamos as cadeiras de todos os cô-
modos da casa para o porão, pusemos em cima da mesa grande e começamos a construir
um céu após o outro, amarrando várias cadeiras juntas num nível e pondo mais cadeiras
em cima delas, até alcançar o teto. Daí todas as crianças me ajudaram a trepar nelas, até

432. O Teatro da Espontaneidade foi uma criação de Jacob Levy Moreno , com o intuito de revolucionar a forma de fazer teatral, tendo como fonte
principal, a espontaneidade em cena, através da ressignificação do papel do ator, do palco, e da participação da plateia em torno do momento cênico,
o aqui e agora.

883
que eu alcançasse a última e nela me sentasse. Eu me sentei lá muito à vontade. As crianças
começaram a circular, cantando. De repente, ouvi uma criança me perguntar:” Por que
você não voa?”. Estiquei meus braços para tentar. Um segundo depois, caí, e me vi no chão,
com meu braço direito quebrado (MARINEAU, 1992, p.30).

No segundo momento, em 1908, já na universidade, o jovem Moreno jogava nos jardins de Viena,
com crianças que frequentavam o parque de Augarten e o escutavam de cima das árvores. Ele criava e con-
tava histórias para as crianças. Seu interesse pelas crianças manifestava-se através da espontaneidade e cria-
tividade que delas emanava. Mais tarde atualizaria essa percepção, reconhecendo também que essa mesma
espontaneidade e criatividade estavam presentes nos artistas.

E o terceiro momento é chamado de o caso Bárbara. Até então, para Moreno, o Teatro da Esponta-
neidade se limitava a trabalhar o processo criativo e espontâneo nas apresentações. Quando aconteceu um
fato que o fez ampliar o raio do que possibilitaria esse teatro:

Tínhamos uma jovem atriz, Bárbara, que trabalhava em teatro(...) Ela era a principal atra-
ção, por causa de sua atuação extraordinária em papéis ingênuos, heroicos e românticos.
Logo ficou patente que estava apaixonada por um poeta(...) Surgiu um romance entre
Bárbara e Georg. (...) Um dia Georg veio a mim, com seu olhos habitualmente alegres,
agora muito perturbados. (...) “Aquele ser suave, angélico, que vocês todos admiram, age
como criatura endemoniada quando está a sós comigo. Fala com uma linguagem extre-
mamente desaforada, e quando fico zangado com ela, como na noite passada, ela me es-
murra. Quando Bárbara voltou ao palco naquela noite, pronta pra desempenhar um de
seus habituais papéis de pura feminilidade, eu a fiz parar. ”Olhe, Bárbara, você tem atuado
maravilhosamente até agora, mas temo que esteja ficando desgastada. As pessoas gosta-
riam de vê-la em papéis nos quais você represente o terra-a-terra, a rudeza da natureza
humana, sua vulgaridade e estupidez, sua cínica realidade, pessoas não apenas como elas
são, mas piores do que são, pessoas que são o que são quando são levadas a excessos por
circunstâncias incomuns. Quer tentar isso?” “Sim”, (...) “Acaba de chegar a notícia de que
uma garota em Ottakring (um bairro pobre de Viena), ao provocar homens na rua foi ata-
cada e morta por um estranho. Ele está solto, procurado pela polícia. Você é a prostituta.
Aqui (apontando para Richard, um dos nossos atores masculinos) está o bandido. Faça a
cena.” (…) Desde então, continuou a atuar nesses papéis “baixos”. Georg veio ver-me no
dia seguinte. Instantaneamente entendeu que aquilo era terapia. (...) “Bem”, disse-me ele
após algumas sessões, “algo está acontecendo com ela. Tem ainda seus acessos de mau
humor, mas sem aquela intensidade. São mais curtos e, no meio deles, ela muitas vezes
sorri e, como ontem, lembra de cenas parecidas que fez no palco e então ri e eu rio com
ela, pois também me lembro. É como se víssemos um ao outro num espelho psicológico
(MORENO apud MARINEAU, 1992, p.84).

A partir desse percurso que vai do jogo, passa pela espontaneidade e chega à terapêutica, Moreno
cria repertórios técnicos cada vez mais sistematizados, mensuráveis e avaliáveis para transformá-los em
método, trazendo a estrutura básica do teatro nas constantes de ator, plateia, diretor e dramaturgia, e
aproximando-se da premissa dele, enquanto rito e catarse.

Essa conexão foi gerada sob a ideia que o Teatro da Espontaneidade seria o locus nascendi ideal para
o teatro, compreendendo que locus nascendi é “a situação primária de uma coisa (que) está no lugar onde esta
coisa veio à luz” (MORENO, 1984, p.30). E que essa condição primordial seria a força motora do desloca-

884
mento do teatro legítimo para o Teatro da Espontaneidade.“O contraste entre o teatro tal como o conhecemos
e o teatro da espontaneidade reside no tratamento diferencial que ambos dispensam ao momento.” (MORENO,
1984, p.51).

Moreno considerava como teatro legítimo, um teatro preso a um formato:

A estrutura interior do teatro é facilmente reconhecível se considerarmos o nascimento de


qualquer produção dramática específica. No teatro rígido, dogmático, o produto criativo é
dado: aparece em sua forma final e irrevogável (MORENO, 1984, p.30).

Esse teatro convencional era considerado por ele, como um teatro de Conserva Cultural433 no sen-
tido de estar preso a um produto. Devido a esse produto, a criatividade e a espontaneidade eram excluídas.

Ainda assim,

A conserva cultural presta ao indivíduo um serviço semelhante ao que, como categoria his-
tórica, presta à comunidade em geral – continuidade de herança - assegurando para ele a
preservação e continuidade de seu ego. Esta provisão é de ajuda sempre que o indivíduo viva
num mundo estável; mas que deverá fazer quando o mundo a sua volta se encontra em mu-
danças revolucionárias e quando a qualidade das transformações se converte cada vez mais,
numa característica permanente do mundo em que participa? (MORENO, 2014, p.157).

O Teatro da Espontaneidade chegou rompendo com essas estruturas cristalizadas e estabeleceu


quatro preceitos que conduziriam sua base teórica: (1) o fim da dramaturgia escrita; (2) o deslocamento da
plateia para a cena; (3) o improviso; (4) o palco como espaço da vida.

É com base nesses preceitos que cada elemento, enquanto constantes do teatro, são rearranjadas de
forma a contemplar um teatro vivo, autônomo e real. As constantes do que atua (Ator), do espectador-ator
(Plateia), do operador mental (Diretor/Encenador) e do narrador de enredos (Autor/Dramaturgo), nunca
mais se resumiriam ao que o teatro ocidental construíra como paradigma.

Apresentaremos as constantes e as relacionamos com o Teatro da Espontaneidade.

2. AS CONSTANTES DO TEATRO OCIDENTAL


NO TEATRO DA ESPONTANEIDADE

a) ATOR: AQUELE QUE ATUA

A trajetória histórica do ator no Teatro Ocidental remonta desde a Grécia, quando tinha grande
prestígio social e artístico onde: “[…] seu nascimento confunde-se com o nascimento do próprio teatro.” (PEI-
XOTO,1980, p.43).

No século XX, após uma jornada oscilante dentro e fora do palco e da lei, o lugar de profissional
ganha significativa importância, com a obra de Konstantin Stanislavisk434.

433. Conserva Cultural: produto acabado de um esforço criativo. (Marineau, 1992, p.166)
434. Konstantin Stanislavski (1863-19380), ator, diretor, pedagogo e escritor russo conhecido pela criação do seu sistema de atuação para atores e
atrizes, onde reflete sobre as melhores técnicas de treinamento, preparação e sobre os procedimentos de ensaios.

885
A trajetória histórica do ator no Teatro Ocidental remonta desde a Grécia, quando tinha grande
prestígio social e artístico onde: “[…] seu nascimento confunde-se com o nascimento do próprio teatro.” (PEI-
XOTO,1980, p.43). No século XX, após uma jornada oscilante dentro e fora do palco e da lei, o lugar de
profissional ganha significativa importância, com a obra de Konstantin Stanislavisk..

Ele vinha investigando novas formas de representação e criou o Método Natural, o primeiro méto-
do de interpretação do ator. Em seu método o ator é quem “dá vida ao que está escondido sob as palavras”
(VASCONCELLOS, 1987, p.127).

Enquanto no teatro legítimo, o ator representa papéis, colocando-se no lugar de simulador da vida,
para Moreno, o ator era colocado em outra posição dentro do universo cênico. Seu lugar era o mesmo lugar
ocupado pelos santos e profetas inspirados pelo próprio Jesus Cristo, no Sermão da Montanha: fluído, “ár-
vore que floresce na primavera”, espontâneo.

A arte da espontaneidade não faz uso do princípio de organizar antecipadamente o proces-


so de assumir o papel. Permite-se ao processo de criatividade possa emergir impoluto em
qualquer fase do desenvolvimento que o artista consiga executar com maestria. O corpo
imaginário (papel) emerge no momento da própria apresentação. (MORENO, 1984, p.48).

Para ele, o ator espontâneo não tinha que ser natural, mas desenvolver uma prática espontânea em
cena e para isso havia o treino apropriado que o conectava e expandiria à espontaneidade. Esse treino deve-
ria focar o ator em si mesmo, no próprio mundo interno ao mesmo tempo em que, buscando com rapidez
uma qualidade de perspicácia no pensamento, a transformasse em ação.

Moreno não via como fácil um processo de treino para vir a ser um ator do Teatro da Esponta-
neidade. Era contínuo e intenso, e percebia que esses atores estavam mais intencionados em serem atores
“legítimos” do que espontâneos.

O clima das dificuldades configurou-se, contudo, quando vi meus melhores alunos fler-
tando com o clichê, mesmo quando ali atuavam extemporaneamente, e por fim afastando-
-se do teatro da espontaneidade em direção ao teatro legítimo ou tornando-se atores de
cinema. (MORENO, 1984, p.19).

Havia, por parte de Moreno, um cuidado com a qualidade cênica. Dessa forma, era conflituoso as-
sociar a qualidade cênica espontânea do Teatro da Espontaneidade à qualidade cênica do teatro formal. Para
ele, as resistências a serem enfrentadas pelos atores no Teatro da Espontaneidade decorriam : a) Das suas
próprias ações corporais na apresentação de papéis; b) Das suas próprias personalidades; c) Das relações
com os outros atores em cena; d) Da relação com a plateia.

O confronto com tais resistências daria sustentação ao ator que, destreinando-se da representação
através da memória ou do improviso, construísse e internalizasse a capacidade de transitar entre a emer-
gência cênica à ação cênica, presentificando-se e fluindo através do treino da espontaneidade. Contudo, os
atores não sustentaram essa ideia até o fim, optaram para voltar ao teatro formal/conservado.

b)PLATEIA: ESPECTADOR-ATOR

No teatro formal/conservado a plateia teatral é o elemento na apresentação que justifica a existên-


cia do próprio teatro. A ocupação desse espaço modificou-se em variadas circunstâncias, rearrumando-se
paralelamente ao mesmo tempo que o próprio conceito de teatro e transformando a relação espectador-ator.

886
A plateia do Teatro da Espontaneidade realizava essa aproximação ao colocar no mesmo nível de
atuação o palco e a plateia, o ator e o espectador. E nessa perspectiva o Teatro da Espontaneidade via esse
espaço como organismo para a celebração da criatividade e espontaneidade. “É o teatro da comunidade (…)
não é um criador que se cerca por uma multidão inativa e auditivamente atenta; não é o teatro de um homem;é
o teatro de todos por todos.” (MORENO, 1984, p.45)

A apresentação não era feita para, mas com a plateia, pois segundo Moreno “A força que é liberada
pelo teatro e pelo drama não está no palco, no ator; não está atrás do cenário, nem no produtor, nem no dra-
maturgo; está na plateia perante o proscênio” (1984, p.35).

A partir de tais premissas, percebe-se então, que:

Do ponto de vista de um Teatro da Espontaneidade, todos são atores, não apenas as pesso-
as que estão no palco, como ainda todos os espectadores da plateia. Portanto, se a espon-
taneidade é importante para o ator que agora está no palco, é de importância igual para
todas as pessoas, embora essas estejam na audiência. (MORENO, 1984, p.101)

Assim, se a plateia se encontra em outro espaço, quem orquestrará esses intercâmbios de espaços e
constantes? É quando entra a figura do diretor.

c) DIRETOR: O OPERADOR MENTAL

Na segunda metade do séc XIX, a presença do Encenador e/ou Diretor surge no teatro, enquanto
figura unificadora da cena. Essa figura, no entanto, já era marcada, mesmo que sem a devida identidade e
função, ainda no teatro grego.

A figura do encenador existiu, sob diferentes nomes, desde a Antiguidade. Ao preparar o


coro e os intérpretes para representarem suas obras, os trágicos gregos já estavam preen-
chendo essa função. A Idade Média conheceu os responsáveis pela montagem dos misté-
rios. Mesmo no teatro profissional herdado do século XIX, em que o astro comandava o
espetáculo, também um ensaiador propunha uma certa ordem. (MAGALDI, 1986, p. 52).

Compreende-se que o teatro entra na modernidade a partir dessa presença, que estruturava a cena,
subjetiva e objetivamente.

Definidas as funções do que seria Diretor/Encenador, é cabível considerar que ele ressignificou o teatro.

Para Moreno, esse lugar veio adequar-se plenamente ao próprio entendimento dessa linguagem.
Apesar de ele acreditar que o centro do Teatro da Espontaneidade residia no ator, o lugar de diretor era con-
cebido com fundamental importância como coalizador dos princípios desse teatro.

Tal função acompanhava a cena desde seu início, partindo da preparação. A apresentação do Teatro
da Espontaneidade precisava de preparação específica para atores, enquanto catalisadores da espontanei-
dade. Essa preparação caberia única e exclusivamente ao diretor. Para isso, o treino se fazia essencial como
momento de desconservação dos clichês da atuação e o Diretor tinha como sua incumbência primeira, não
apenas treinar, como também, medir e avaliar o quociente espontâneo dos atores.

Da mesma forma que se podem construir para indivíduos escalas e quocientes de esponta-
neidade, descobri ser de utilidade organizar todas as formas e combinações do teatro em uma
escala que apresente seus respectivos quocientes de espontaneidade (MORENO, 1984, p. 69).

887
A medição seria feita em laboratórios teatrais, através de notações chamadas de “álgebra do teatro”
e que, segundo Moreno (1984), “são semelhantes às notações para uma música”, formando um mapa ilustra-
tivo do quociente de espontaneidade do ator.

O diretor tinha foco no processo pré, durante e pós apresentação, escolhendo os atores dentro e
fora do palco, distribuindo papéis, sugerindo cenas, mediando o quociente de espontaneidade do momento,
apresentando argumentos e contra argumentos que dessem potência aos enredos vivos e avaliando o tempo
ideal do andamento da peça.

Sua conduta era de conector entre palco e plateia, ator e espectador, narrativa e atuação. Segundo Mo-
reno, “o operador mental por trás da cena” (1984.p.88), que trazia à luz os enredos de uma dramaturgia coletiva.

d) AUTOR: O NARRADOR DE ENREDOS

A narrativa primordial do teatro data possivelmente entre 2000 e 3000 anos antes de Cristo, confir-
mada pela descoberta de um papiro sem autoria sobre um ritual de representação da morte e do esquarteja-
mento de Osíris, deus da terra e da fertilidade no Egito, datado de 1887, a.C.

Consequentemente, podemos supor que o autor teatral, o dramaturgo, é quem escreve com seu bas-
tão o espelho dos tempos, lugares e pessoas, através de histórias que contam seus dramas, humores, medos
e míticas. Segundo Pavis:

A dramaturgia, no seu sentido mais genérico, é a técnica (ou a poética) da arte dramática, que
procura estabelecer os princípios de construção da obra, seja indutivamente a partir de exem-
plos concretos, seja dedutivamente a partir de sistema de princípios abstratos.”. (1996, p.113)

Ao brincar de contar histórias sobre ser Deus desde a infância, Moreno aproximou-se do lugar de
narrador e guia de enredos. Conforme Marineau (1992) “Moreno criou a estória do seu nascimento e permi-
tiu que assim ficasse”.

Além disso, constrói técnicas para as narrativas fantasiosas que melhor alimentam a cena espon-
tânea. É quando cria a técnica do jornal vivo “uma das formas que melhor preenche nosso ideal é a apresen-
tação de notícias diárias” (MORENO, 1984, p.95). Essa é justamente uma das técnicas na qual acontecerá a
estreia do Teatro da Espontaneidade:

A primeira apresentação parece ter ocorrido em 1921. O grupo de atores representava pe-
ças espontâneas, conforme era proposto pelo público, faziam algumas redramatizações de
notícias diárias usando uma técnica chamada de jornal vivo (MARINEAU, 1992, p.81-82).

Para Moreno, o Teatro da Espontaneidade tinha como premissa o lugar de autor como “uma nova
espécie de dramaturgo. Ele nada escreve; propõe ideias. Aquece seus atores para ideias que estão simultanea-
mente amadurecendo em seu interior.” (MORENO, 1984, p.66).

3. CONSIDERAÇÕES

A história do teatro ocidental, surge como rito ao deus Dioniso que, segundo a mitologia greco/
romana, representa o rito do nascimento, sofrimento e morte do herói trágico. Filho de Zeus com a mortal
Sêmele, renasceu das cinzas e foi gerado na coxa do pai. Os mistérios dionisíacos eram rituais que reconta-

888
vam e celebravam sua morte e renascimento. Foram através desses mistérios que surgiram como elementos
teatrais, o uso das máscaras, a dramatização, as danças, músicas, cantos em estados de êxtase.

Por meio desse enredo simbólico, podemos então constatar que o status nascendi do teatro se en-
contra no mito de Dioniso e em sua condição catártica através dos seus mistérios.

Moreno, no seu livro Teatro da Espontaneidade, contrapõe-se a poética de Aristóteles ao sugerir


que esse status nascendi não se encontra apenas na tragédia concluída, pois

[...] a base sobre a qual assenta este livro sua análise do teatro não é um produto acabado,
e sim a realização espontâneo e simultânea de um trabalho poético e dramático, em seu
processo de desenvolvimento desde seu status nascendi em diante, passo a passo. E, de
acordo com esta análise, a catarse pode acontecer: não apenas na audiência – efeito se-
cundário desejado _ e não nos personagens dramáticos de uma produção imaginária mas,
primariamente, nos atores espontâneos do drama, os quais produzem os personagens ao
libertarem-se deste, ao mesmo tempo. (1984, p.113)

Na poética de Aristóteles, a tragédia acontece como processo catártico, no qual se exalta e confessa-se
as culpas com a intenção de purificar-se dos desejos de transformação, aliviando-se.

Apesar da compreensão expandida da catarse, as inspirações de Moreno para a construção de sua


própria ideia “deve muito ao teatro grego” (Marineau, 1986). Embora sendo uma catarse agora deslocada
do espectador para o ator, essa é a identidade do teatro que ele acreditará e defenderá. “A catarse começa
no ator quando este representa o seu próprio drama, cena após cena, e alcança o clímax quando ocorre a sua
peripécia.” (MORENO, 2014, p.65)

Vemos isso no decurso de toda a sua trajetória girando em torno desse status nascendi teatral,
como sua premissa processual e ritualística de alto teor catártico, que se complementa com o locus nascendi,
do teatro: a espontaneidade.

Ao sistematizar os princípios do Teatro da Espontaneidade, Moreno trouxe a criação do que veio a


chamar de Fator E435. Esse fator seria o condutor do ato criativo e do estado de espontaneidade. Sua preparação,
através de aquecimentos, possibilitaria a fluidez “dotada de uma cadência rítmica, subindo e descendo, crescendo
e desaparecendo, como os atos existenciais e, não obstante, diferente da vida.”(MORENO, 1984, p. 58)

Os elementos (ator/plateia/diretor/autor), que se mantiveram enquanto constantes no teatro Oci-


dental, desde sempre até os dias atuais, podemos encontrar em Moreno, ao fazer uma reconstrução daque-
las constantes do teatro formal para o Teatro da Espontaneidade.

Antes que seja possível a recuperação do teatro genuíno e criativo, todos os seus elementos
e partes devem ser destruídos, pedaço por pedaço até suas primeiras e mais antigas bases
(…) então, do caos, poderá haver novamente a inspiração para dar nascimento ao teatro:
em sua forma não poluída: ao teatro de gênio, da imaginação total, ao teatro da esponta-
neidade. (MORENO, 1984, p.39).

As constantes do teatro (ator/plateia/diretor/autor) são mantidas e ressignificadas: o ator more-


niano não utiliza a memória, nem compõe o personagem à luz de um texto já escrito. O lugar dele é o de

435. Fator E: “Espontaneidade (latim – sua sponte = do interior para o exterior) é a resposta adequada a uma nova situação ou a nova resposta a uma
situação antiga”. (Moreno, 1974, p.58)

889
se deixar conduzir pelo processo criador através de sua espontaneidade e assim permitir que o momento
aconteça. Para ele, o teatro é presentificação e realizado no momento.

O dramaturgo no teatro da espontaneidade “experiencia um esforço inspirado e pessoal pela expres-


são – as dores do parto da criatividade_ com força muito maior do que experiencia o seu próprio trabalho
de arte”(MORENO, 1984, p. 66). A ideia é que não se submeta a um texto finalizado e sim acredite que os
enredos amadurecem enquanto são experimentados.

A plateia é reacomodada para que seja protagonista de sua própria história. Para MORENO, (1984)
“são a comunidade inteira”. Seu lugar é o lugar da imprevisibilidade. E, por fim, o diretor que foi, ao longo
da história do teatro enquanto conserva cultural, ganhando maior presença e poder totalitário; no Teatro
da Espontaneidade, seu poder é compartilhado na figura que realiza a conexão entre as unidades das cenas.
É o que alimenta todas as etapas, desde o aquecimento até a apresentação. “Ele prepara a partitura de um
drama espontâneo de tal modo que os atores possam visualizar por si mesmos o motivo principal, os papéis e o
argumento que devem incorporar” (MORENO, 1984, p. 87)

Uma característica importante em todo esse processo é que, diferentemente do teatro “legítimo”,
Moreno não hierarquizava essas constantes. Eram todas amalgamadas como em um só organismo vivo,
traduzido muito simplesmente em “cada indivíduo é o seu próprio dramaturgo”(MORENO, 1984, p.101)

Podemos pensar que, utilizando dos mesmos ingredientes do teatro Ocidental, Moreno, ao colocá-
-los em um caldeirão, faz deles um outro alimento que expande o prato final. O cozimento seria associado
ao próprio momento da espontaneidade, quando estão em transformação todas as constantes e que o prato
final seria a quebra dos paradigmas de um teatro que ainda insiste em servir-se como prato feito. Para tama-
nha tarefa, reuniu-se nessa cozinha o processo ritualístico de transformar o cru em cozido , utilizando um
tempero fundamental dessa culinária: a espontaneidade.

REFERÊNCIAS

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Editora Mestre Jou,1974.
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Brasiliense Editora, 1980.
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pai do psicodrama, da sociometria e da psicoterapia de SLADE, Peter. O Jogo dramático infantil. 1ª ed. São Pau-
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ed. São Paulo: Summus Editorial,1984. ed. Rio Grande do Sul: L&PM Editores, 1987.

MORENO, Jacob Levy. Psicodrama. 1ª ed. São Paulo:


Editora Pensamento-Cultrix, 2014

890
TRANSGREÇÃO E EXPERIÊNCIAS
EM MEDIAÇÃO NO INSTITUTO
DE ARTE CONTEMPORÂNEA – IAC
Pedro Henrique Barbosa da Silva/UFPE

Introducão

No ano letivo de 2017.2, deu-se início a disciplina de estágio 4, com a supervisão da professora Ana
Lisboa, que contempla os espaços museais, galerias e etc. No início da disciplina, foi-nos apresentado o cro-
nograma, como também o questionamento de qual espaço realizaríamos o estágio obrigatório. Deste modo,
todos fizeram suas escolhas, o qual optei pelo local que trabalhei, o Instituto de Arte Contemporânea- IAC.

A exposição que foi montada no Instituto, foi de um artista ainda pouco conhecido, com a proposta
de algumas telas, que se assemelhavam a quadros abstratos. Inicialmente três alunos ficariam responsáveis
para o período de mediação, mas posteriormente o quadro de mediadores foi alterado para quatro.

Walter Alves e Eclesiastes: um desafio para o público

“1 Palavras do Eclesiastes, filho de David, rei de Jerusalém.


2 Vaidade de vaidades, disse o Eclesiastes: Vaidade de vaidades, é tudo vaidade.
3 Que tira pois o homem de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?[…]
10 Não há nada que seja novo debaixo do sol, e ninguém pode dizer: eis aqui está uma coisa nova.
Porque ela já a houve nos séculos que passaram antes de nós.”
Eclesiastes436

O artista Walter José Alves é paulista, nascido na cidade de Santo André/SP, radicado em Recife/
PE. Formado em Psicologia, exerce a profissão, além de dividir o tempo com outras atividades em diversos
campos, inclusive, nas artes, ​como autodidata.​

Ao todo, a exposição possuía treze telas de variadas proporções, com a temática que envolvia diversos
aspectos da vida do artista. Trazendo uma gama de matérias, o artista usou desde papeis 100% algodão, tintas
acrílicas, pastel seco, até detergente líquido, mostrando sua versatilidade no uso de técnicas e materiais.

A exposição Eclesiastes abordou aspectos de sua vida, onde os três elementos água, papel e pigmen-
to, promovem uma experiência estética simples e, e ao mesmo tempo, árdua. Com isso, o artista procurou

436. Disponível em: http://www.bibliaonline.net/biblia/?livro=21&capitulo=1. Acesso: 11/06/2018

891
trazer uma pesquisa mais aprofundada sobre as propriedades dos materiais e a ampla gama de texturas
e técnicas necessárias (​ Figura 1). Nesse sentido, suas obras são representações do sentido de mundo que
carrega. Uma imagem “é uma camada de mundo que se sobrepõe ao “eu” e é absorvida como um elemento
do mundo interiorizado em forma de ego”, como ressalta o artista. Walter não se considera artista, mas se
intitula como artesão. Pela minha perspectiva, considero-o artista, onde sua sensação de incompletude, até
nas obras finalizadas, demonstram o espirito artístico de inquietação.

Junto com mais dois mediadores, acompanhei o processo de montagem, escolha das obras, entre-
vista com o artista e conceito da exposição, onde todos os momentos foram de grande importância para a
mediação. Dentre os assuntos discutidos enquanto fazíamos a montagem da exposição, conversamos sobre
“o que é arte?”. Muitos foram os pontos expostos e, consequentemente, muitos teóricos foram citados. Sobre
a legitimação do que é arte, ou não, Bourdieu apud Coutinho (2010) descreve bem sobre esse assunto, na
qual se familiariza com os pensamentos do artista.

Evidentemente quando se trata de obras em um museu, é fácil reconhece-las. Por quê? O


museu é como uma igreja: é um lugar sagrado, a fronteira entre o sagrado e o profano está
demarcada. Expondo um urinol ou uma roda de bicicleta em um museu, Duchamp se
satisfez em recordar que uma obra de arte é uma obra que está exposta em um museu. Por
que sabem vocês que é uma obra de arte? Porque está exposta em um museu (BOURDIEU
apud COUTINHO, 2012, p. 18)

Desta maneira, a obra trouxe um caráter indagador quanto a sua legitimação. Ela é uma obra tradi-
cional (quadro), que se assemelha a uma pintura abstrata, porém, seu contexto nos conecta a um mundo que
transcende todos os conceitos clássicos, evocando-nos uma atmosfera condensada de sensações e impressões.

Figura 1 - INTENSO 2 (2016)

Fonte: Arquivo do artista (2017)

892
Apesar desta afirmativa trazer milhões de questionamentos, é importante esclarecer que retrata um
ponto de vista muito compartilhado na contemporaneidade, mas que pode servir de impulso para a reflexão
e legitimação “do que é arte”.

Com a premissa de expurgar seus desejos reprimidos e manifestar, através da arte, seus sentimentos
sobre o corpo e valores estéticos, o artista aborda o íntimo, no qual, as palavras não alcançam. Com quadros
expressivos e de grande intensidade pictórica, agregando valores sociais, principalmente, ligados ao corpo,
expressando sua principal inspiração para criação de suas obras.

Em “Eclesiastes” os elementos Pigmento, Água e Papel são utilizados de uma forma diferente, re-
sultando em explosões de cores, que exprimem emoções e sentimentos. No processo, o suporte, papel, é
embebido em água com os pigmentos lançados ao acaso, como consequência de manifestação viva de cores.

O cenário da arte na contemporaneidade contextualiza um fazer artístico, no qual a vida do artista


está presente em sua arte, sendo assim: a importância da obra está expressa não apenas no seu objeto final,
mas, sobretudo, no processo. Pulsante e despretensioso, assim se configura o trabalho de Walter José Alves,
situado na dicotomia que há entre o existir simples em um mundo onde “tudo debaixo do sol é vaidade”.

O Artesão-Artista, como prefere ser chamado, busca em seu fazer artístico não se submeter a pretensão
“vaidosa” de um resultado esperado e programado, mas mergulha na contemplação do processo que cami-
nha ao inesperado. Assim como acontece na vida, onde não há controle sobre condições e resultados.

2. Se o público não vai ao museu, o museu vai ao público

Antes de adentrarmos nos processos de mediação, que ocorreram neste período no IAC, é per-
tinente trazer uma reflexão a respeito do que seria o “mediar” como ressalta a arte educadora Ana Mae
Barbosa, em conjunto com Rejane Galvão Coutinho, em seu livro “​Arte Educação como Mediação Cul-
tural e Social” (2009):

O conceito de educação como mediação vem sendo construído ao longo dos séculos.
Sócrates falava da educação como parturição das ideias. Podemos, por aproximação, di-
zer que o professor assistia, mediava o parto. Rousseau, John Dewey, Vygotsky e muitos
outros atribuíam à natureza, ao sujeito ou ao grupo social o encargo da aprendizagem,
funcionando o professor como organizador, estimulador, questionador, aglutinador. O
professor mediador é tudo isso. (BARBOSA; COUTINHO, 2009, p.13)

A partir desta fala, pode-se entender que o mediador é aquele que “media” um processo entre o
indivíduo/grupo, para algo, seja de que natureza for. Com isso, nós mediadores entendemos a importância
do nosso trabalho, pois somos como um ponto de luz para aqueles que gostariam de aprofundar seus conhe-
cimentos a respeito a tal obra/artista.

Assim, com a exposição borbulhando, saímos em busca de escolas que gostariam de adentrar no
mundo de Walter. Dentre as escolas convidadas, a Escola Municipal Padre Antônio Henrique, foi o início
do nosso desafio. Localizada na Rua Viscondessa do Livramento, Derby, tem como o diferencial atender
crianças e jovens com deficiência auditiva, síndrome de down, deficiente físico e deficiente visual. Também
atendem as crianças da Educação Infantil, e do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental, como também, Educa-
ção de Jovens e Adultos - (EJA). De alguma forma, sentíamos que seria uma experiência inigualável, e que a
troca com esses alunos seria de grande importância.

893
Por incompatibilidade de cronograma letivo das crianças PCD´S437, não foi possível realizar nossas
atividades, mas, contrapondo essa situação, a gestora da instituição sugeriu-nos que a mediação fosse apli-
cada com as crianças da educação infantil.

A escola é dividida entre o ensino infantil e fundamental, ambos em prédios distintos, pois devido a
experiências negativas, a gestão escolar percebeu que seria melhor para a segurança dos menores esse “distan-
ciamento”. Aceitamos a proposta e a partir deste momento, iniciamos um estudo de como seria possível levar
a exposição, ou uma parte dela, para as crianças. A dúvida que pairou por algum momento na elaboração da
mediação, era de: ​como elas conseguiriam compreender o contexto da exposição e o teor das suas obras, já que se
tratava de algo tão pessoal e tão profundo? A
​ pós diversas sugestões, chegamos ao consenso de levar a ludicidade
que é tão presente no meio infantil. Criamos, então, a história chamada “​ O menino que não podia usar rosa”​
, ​retratando a história do artista, que passou por esta situação na infância, culminando em um dos aspectos
envolvidos na elaboração dos trabalhos expostos. Com a construção da história, levando um dos quadros per-
tencentes a série, no dia 15 de setembro de 2017 demos início a mediação na escola. Ao chegar no local, nos
apresentamos e fomos apresentados, trazendo sorrisos e curiosidade no rosto de cada criança presente.

Figura 2 - Realização da atividade na Escola Municipal Padre Antônio Henrique (2017)

Fonte: Elaborado pelo autor (2017)

Depois de contarmos a história, pedimos que os professores responsáveis de cada turma fizessem
grupos entre 3 a 5 alunos (figura 2). Usamos a prespectiva Freireana, pois trouxemos o universo de cada
aluno para o contexto da exposição. Com isso, a pedagogia da libertação foi nosso norteador para conse-
guirmos um efetivo entendimento.

A Pedagogia Libertadora proposta por Paulo Freire objetiva a transformação da prática


social das classes populares. Seu principal intento é conduzir o povo para uma consciên-
cia mais clara dos fatos vividos e, para que isso ocorra, trabalham com a alfabetização de
adultos. Na metodologia de Paulo Freire, alunos e professores dialogam em condições
de igualdade, desafiados por situações-problemas que devem compreender e solucionar.
A Pedagogia Libertária, por sua vez, resume-se na importância dada a experiências de
autogestão, não-diretividade e autonomia vivenciadas por grupos de alunos e seus pro-

437. Pessoa com deficiência.

894
fessores. Acreditam na independência teórica e metodológica, livres de amarras sociais.
(GRINSPUM, 2010, p.33)

Num outro momento, recebemos a Escola Técnica Estadual José Alencar Gomes da Silva, localizada
no Janga – Paulista, onde cerca de 100 alunos lotaram os espaços do instituto. Foi uma experiência expres-
siva, onde os alunos puderam transitar no DEC e tiveram mediação com os mediadores de museologia e de
teatro. Muitos foram os questionamentos dos alunos, principalmente, sobre obras que estavam nos exposi-
tores, já que retratavam as genitálias femininas e masculinas. O artista foi solicito em todos os momentos,
esclarecendo todos que estavam presentes, no que diz respeito a idealização de tais obras. Ao fim da media-
ção, pedi que tirássemos uma foto (figura 4) no jardim do instituto, registrando esse momento importante
de vivência e troca de culturas.

Figura 3 - Parte das turmas de ensino médio da ​Escola Técnica Estadual ​José Alencar
Gomes da Silva, ​ao fim da mediação no IAC (2017)

Fonte: Elaborado pelo autor (2017)

Após a conclusão desse período na escola e no museu, senti o dever cumprido, como arte-educador.
Além de sorrisos no rosto das crianças e jovens, pude observar o olhar de agradecimento por parte dos
gestores e educadores.

A experiência como arte educador/mediador no IAC, foi algo muito importante para minha for-
mação como docente, além disso, o meu olhar em relação aos espaços artísticos, mudou. À medida em que
fui trabalhando com a montagem e as mediações na exposição, interagindo com o público, com os demais
monitores, com o artista e com os alunos das escolas públicas, percebi o quão era importante esse momento
de troca de aprendizagens e experiência.

Ao fim do estágio, foi imprescindível a presença do artista, assim como as dos demais trabalhadores
do IAC, na construção de todo o processo de trabalho. Walter acreditou em nós, na nossa capacidade, nos
confiou suas obras, assim como nos dirigiu a responsabilidade de criar seu texto curatorial.

895
Como estudante de artes e futuro docente, percebi que possibilitar aos alunos um espaço de fala e
de escuta, acreditar no que ele pensa/faz, é algo primordial para um trabalho bem-sucedido. Assim, tentei
seguir tais preceitos, no momento da mediação no IAC e na escola. Diante disso, acredito que o falar é
importante, mas ouvir é necessário. “A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do
processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.”
(FREIRE; 1996, p 16)

Referencias

BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvão FREIRE, Paulo. A pedagogia da libertação.  São Paulo:
(Org.). Arte/Educação como mediação cultural e so- UNESP, 2001.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz
COUTINHO, Rejane Galvão. (2012). Arte/educação e Terra, 1996.
como. Rede São Paulo de Formação Docente: Cursos de
GRINSPUM, Denise. Educação para o patrimônio: mu-
Especialização para o quadro do Magistério da SEESP
seu de arte e escola, responsabilidade compartilhada na
(Modulo III), pp. 9-18.Disponível em: https://acervodi-
formação de públicos. Universidade de São Paulo–Facul-
gital.unesp.br/bitstream/123456789/455/7/art_m3d6_
tm01.pdf. Acessado em: 11 de junho de 2018. dade de Educação. São Paulo, 2000

896
Visita guiada a uma exposição:
integração entre a arte,
a literatura, a língua estrangeira
e a crítica social
Sandra de Souza Melo, UFPE

Introdução

Este trabalho trata da visita guiada a Exposição Olhar a ponte que nos liga – Mirar el puente que nos
une, como forma de desenvolver no estudante do Ensino Fundamental e Médio a apreciação da obra de arte
por meio de um olhar crítico na realização de uma leitura de elementos presentes nas obras relacionados à
cultura brasileira e espanhola, em uma homenagem ao livro Dom Quixote de Miguel de Cervantes.

Nas palavras de João Compasso:

“Con trazos surrealistas, el pintor pernambucano recrea una odisea del famoso personaje
de Cervantes. El encuentro con el escritor español (aunque haya muerto hace 400 años)
fue en la década de los 80, cuando Marcos empieza a desarrollar esa “cabalgata onírica”,
expresión de la maestra Maria V. Gordilho Martins en el mundo de Cervantes. Plasmando
referencias de otros españoles, como Velásquez, Goya, Dalí, Picasso y Miró, él recrea ese
mundo lírico que envuelve a Don Quijote y Sancho Panza como personajes propios del
Nordeste brasileño. Es inevitable ver en sus creaciones el mundo de Ariano Suassuna que
describe tan bien al sertanejo nordestino” (ABRESCCO, 2018, p.126).

Desta forma o artista realiza obras que mesclam os delírios do Quixote mesclados aos delírios de
próprio artista com suas raízes culturais, através de temas do seu inconsciente expostos pelas pinceladas,
pelas cores, pela simbologia, pelos argumentos locais que se universalizam pelo intercâmbio de culturas
(MELO et al, 2016).

Marcos Carvalho, nascido na cidade de Recife, começou sua formação e produção na década de
1980 com o pintor Jaques Wayne na Associação dos Antigos Alunos do Marista. Teve seu primeiro contato
com a litografia na Guaianases em Olinda (1984), e em seguida no Solar do Barão em Curitiba – com o
litógrafo Antônio Grosso (1986). Desde esta época o artista plástico segue buscando aperfeiçoar-se nestas
linguagens, e na escultura (MELO e FILHA, 2015).

Participou em exposições coletivas e individuais na cena local de Recife, em cidades no Brasil e no


exterior (MELO et al, 2016), e criou a pedido do Centro de Integração Empresa Escola – CIEE – a estatueta
do troféu Guerreiro da Luz, entregue a personalidades de destaque em Pernambuco (CIEE, 2000).

897
A convite do Instituto Cervantes de Recife, Marcos Carvalho criou as obras (16 quadros e 02 escul-
turas) para homenagear o escritor espanhol Miguel de Cervantes e sua obra prima Dom Quixote por ocasião
dos 400 anos de sua morte, tendo iniciado a exposição em Recife na Torre Malakoff no ano de 2016 e sendo
exibida também no ano de 2017 em João Pessoa na Estação Cabo Branco, e em Salvador na Galeria do Ins-
tituto Cervantes. Em cada uma destas exposições a visita guiada foi realizada como instrumento de ensino
aos estudantes ou turistas de modo geral.

Segundo Costella (2010), boa parte das obras de arte, ao longo de séculos, não esteve ao alcance da
visita ou apreciação do homem comum ficando restrita a ambientes frequentados pelos nobres ou puden-
tes. Museus como o Capitolino em Roma e o Britânico em Londres, só foram abertos à visitação pública
no século 18. Os espaços mencionados anteriormente, onde foram realizadas as exposições, apresentam as
características de serem locais abertos à visitação pública de modo gratuito, fator importantíssimo para o
estímulo ao conhecimento e apreciação da arte.

O conteúdo da obra de arte é como um ente composto de vários elementos e como entidade física,
é inteira e única. O expectador pode selecionar diferentes ângulos de observação da obra. Essa diversidade
de angulação mental, quando realizada por completo, permitirá ao observador ver a obra de arte em toda a
sua riqueza, absorvendo de modo completo o seu conteúdo (Costella, 2010).

Acrescentamos ao dito anteriormente, que ao apresentado pelo artista como intenção de ex-
pressar suas ideias, o observador adiciona sua própria interpretação da obra, de modo legítimo, pois
mesmo sendo da mesma cultura e tempo do artista, sua história de vida e sua bagagem cultural e
social, far-lhe-á “ver” na obra uma subjetividade de interpretação. O observador interage com a obra
por meio de sua visão e interpretação dos elementos presentes na mesma. Ainda mencionamos, por
exemplo, Kandinsky que pretendia alcançar a alma daquele que apreciava a obra de arte (Biblioteca
el mundo, 2006).

Para apreciar uma obra de arte, o visitante deve ser estimulado a perceber os vários pontos de vista
que podem ser utilizados para a observação da obra e no roteiro didático proposto por Costella (2010) são a
visão factual, expressional, técnica, convencional, estilística, atualizada, institucional, comercial, neofactual
e estética.

Vale salientar que cada observador pode apresentar maior interesse por determinado aspecto da
obra em função da diversidade de comportamentos entre as pessoas, detendo-se com mais atenção a uma
das visões propostas por Costella (2010).

Entre estas visões propostas no roteiro didático de Costella, a visão convencional, requer do aprecia-
dor conhecimentos como a simbologia por trás do elementos apresentado na obra. Tal simbologia implica
em um conhecimento histórico, cultural, etc. e nas visitas guiadas a uma exposição ela pode ser explorada
como forma de ajudar o aluno na aprendizagem da história da arte, partindo inclusive de conhecimentos
prévios já adquiridos por ele.

Nas obras de Marcos Carvalho para esta exposição são apresentados elementos da cultura nordes-
tina e brasileira, que buscam levar o visitante a uma crítica de seu contexto histórico e cultural entrelaçado
com os personagens e elementos da cultura espanhola em traços das obras de Miró, Picasso, Goya, Velás-
quez e Dalí.

A literatura espanhola, representada por Dom Quixote é imediatamente identificada pelos visi-
tantes, pois nas palavras de Rodrigues (2016, apud MELO et al, 2016), esse personagem sobrepujou seu

898
criador sendo mundialmente conhecido em detrimento do escritor. Dom Quixote é relacionado imedia-
tamente com o sonho e a busca de ideais que levam as pessoas a ampliar seus limites, lutando por suas
utopias.

Metodologia da visita guiada

As visitas guiadas acompanhavam as divisões estabelecidas na exposição que eram denominadas


segundo os personagens da obra literária: Dom Quixote, Dulcinea, Sancho Pança, Moinhos e Rocinante.
Cada uma destas seções era composta por obras que estavam relacionadas ao personagem que lhe dava
nome. Num total, a exposição apresenta 16 (dezesseis) quadros e 02 (duas) esculturas.

As visitas eram guiadas por alunos de Licenciatura em Expressão Gráfica – no caso da exposição
realizada em Recife-, monitores da Estação Cabo Branco – no caso da exposição em João Pessoa -, e alunos
da Escola de Belas Artes – no caso da exposição realizada em Salvador. Antes do início das exposições os
guias das visitas receberam uma formação, onde foram apresentadas a finalidade da exposição; os pintores
espanhóis cujos elementos estão aludidos nas obras da exposição; os traços da cultura pernambucana pre-
sentes em seus personagens ilustres ou comuns; os personagens do livro e seu autor.

Figura 1 - Obra Não são ovelhas da seção Dom Quixote

Durante todo o percurso da visita, os visitantes são estimulados a identificar a presença de ele-
mentos por eles conhecidos tanto da cultura brasileira, quanto da cultura espanhola. Ao mesmo tempo são
confrontados com a realidade expressa pelo artista numa linguagem surrealista, onde personagens, formas,
cores, aparecem e se misturam de forma atemporal. Figura 1.

899
Figura 2 - Visita guiada
na Estação Cabo Branco –
João Pessoa

Figura 3 - Vista guiada na


Torre Malakoff - Recife

Figura 4 - Visita guiada na


Galeria do Instituto
Cervantes - Salvador

900
Ao final da visita, os visitantes são estimulados a expressarem sua impressão da leitura realizada por
eles, a partir da intenção oferecida pelo artista, em uma parede ou local reservado para esta interação com a
exposição, conforme se pode observar nas figuras 5, 6 e 7.

Figura 5 - Interação – Salvador

Figura 6 - Interação –
João Pessoa

Figura 7 - Interação - Recife

901
Estes momentos de interação permitem ao visitante a expressão de sua leitura e interpretação das
obras expostas de acordo com seu contexto, sua história e seus conhecimentos.

Considerações finais

As visitas guiadas proporcionam a oportunidade para o visitante conhecer a intenção do artista, po-
rém tendo o direito de realizar sua própria leitura de cada uma das obras apresentadas segundo seu contexto
social, sua história de vida, seu conhecimento inicial dos elementos presentes nas peças desta exposição.

A arte e a história da arte saem do limite da sala de aula e são vistas e reconhecidas na exposição
com a identificação da presença de elementos dos trabalhos de Miró, Picasso, Dalí, Goya e Velásquez, que
são artistas espanhóis de diferentes épocas, com diferentes características, com participação em diferentes
correntes da expressão artística.

A interdisciplinaridade entre a literatura, as artes plásticas, e a língua estrangeira é explorada por


meio da homenagem aos personagens do livro Dom Quixote que são retratados nas pinturas e descritos nos
textos de informação no percurso, escritos em português e espanhol retirados de trechos do referido livro.

A crítica social é apresentada pelo artista nas obras e discutida com os visitantes durante o percurso,
incentivando uma leitura pessoal da sociedade atual e do contexto de cada apreciador dos trabalhos expos-
tos, sejam pinturas ou esculturas.

Os monitores responsáveis pelas vistas guiadas têm a oportunidade de trabalhar com a interdis-
ciplinaridade entre os vários conteúdos de sua formação acadêmica e realizar a mediação entre as obras
e o público, especialmente o estudantil, favorecendo a aquisição de experiência para lidar com o público
estudantil.

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Silva, J J S. Olhar a ponte que nos liga - Mirar el puen- gico para um aprendizaje de la Geometría in Discutir el
te que nos une. Recife: Editora Universitária da UFPE, presente, forjar el futuro - Libro de actas. 1ª ed. Río Cuarto:
2016. Disponível em: http://www3.ufpe.br/editora/ Unirío Editoral, 2015, v.1, p. 339-345.

902
PARTE 3-
COMUNICAÇÕES
ARTÍSTICAS

903
RECONTANDO SEBASTIANA E SEVERINA
Propondo novos olhares sobre o lugar
da mulher na cultura popular nordestina
Alexandre Geisler de Brito Lira
Márcia Julieta Figuerêdo Souza
Valnei Souza Santos

Descrição do processo criativo:

A contação de histórias “Sebastiana e Severina” é a primeira e é a Contação de histórias de estreia


da Trupe Pé de Causos, que apresentamos em maio de 2017. Ela nasceu do desejo de imersão na estética
da cultura popular – cores, sons e narrativas. Sua escolha veio do desejo de compartilhar com as crianças,
jovens e adultos a atmosfera dos sertões que pulsavam dentro de cada de um nós da Trupe e principalmente
a história escrita e ilustrada tão belamente pelo pernambucano André Neves.

Fazer nascer uma história não é uma tarefa fácil ou simples, nos diz o contador de histórias Celso Sisto.

E depende tanto de quem conta quanto de quem ouve. E todo “nasci-


mento” deve vir cercado de cuidados: o local (que deve ser apropriado);
o momento (que deve ser “exato”); os gestos e movimentos (que exigem
uma enorme precisão!); as palavras (que vão “desenhando” um mundo
novo), a voz (que deve convidar à proximidade, ao querer estar e ao
querer ficar!). Afinal, trazer qualquer coisa ao mundo é sim um enorme
ato de responsabilidade. (2004, p.82)

Nós sabíamos disso, trazíamos isso de outras experiências como contadores. E dialogando com o
pensamento de Sisto, começamos a experimentar, a criar um processo nosso e coletivo.

Assim, o processo criativo deu-se inicialmente com foco na palavra. Perguntávamo-nos quais ima-
gens e sonoridades a leitura daquelas palavras nos suscitaria? Quais palavras gostaríamos de falar aos nossos
ouvintes e que apresentariam aquele mundo tão vasto do sertão? Nesse momento, uma leitura atenta do
livro serviu como base para o estudo da história, das nuances, das vozes do texto.

Da palavra seguimos para plástica. Maju, como artista visual, chamava a nossa atenção para a pa-
lheta de cores e texturas do sertão. Desse estudo nasceram os elementos cênicos e cenográficos (a máscara
“Zefinha”, as bonecas de Sebastiana e Severina, a barraca das rendeiras, entre outros).

904
Da plástica partimos para o corpo e os movimentos. Alexandre, como ator nos convidava a brincar
com nossas possibilidades corporais dialogando com a Commedia Dell’Arte e do Teatro de Rua. Nos per-
guntávamos no jogo qual o corpo da máscara Zefinha? Qual o corpo da máscara-bigode de Chico? Como
seria o corpo das rendeiras Sebastiana e Severina? E se Zefinha fosse um objeto, qual seria? E se fosse um
animal? Nos aproximamos do Teatro de Formas Animadas e demos vida à objetos que encontramos numa
ida à feira local. Ainda com o foco nos movimentos Valnei acrescentou algumas sonoridades da viola caipi-
ra, do samba de roda do recôncavo, das cantigas de roda, colaborando para o ritmo da história.

Construída num processo colaborativo, cada um com sua especialidade contribuiu para dar forma
ao sertão que gostaríamos de mostrar e contar aos nossos ouvintes através da história das duas rendeiras,
moradoras de uma cidadezinha do interior da Paraíba.

Compreendendo seu caráter de obra aberta, nosso processo criativo não se finalizou quando do
primeiro encontro com o público. Cada novo encontro, cada nova contação tem possibilitado novos olhares
ao nosso trabalho o que tem resultado numa história em constante criação/evolução.

Hoje, 1 ano após a primeira apresentação, depois de diversos encontros, alguns incômodos em rela-
ção a história começaram a ficar latentes: Por que duas mulheres amigas, independentes e empreendedoras
deveriam brigar pelo amor de um homem forasteiro? Qual a condição da mulher nas histórias da cultura
popular? Por que o final de Sebastiana e Severina deveria ser aquele proposto no livro? Existiriam outros
finais possíveis para essa história?

A busca por essas respostas nos faz hoje desejar recontar a história de Sebastiana e Severina a partir
de outros olhares e de outras perspectivas, ainda apresentando o sertão que pulsa dentro de nós, mas focan-
do especialmente no lugar da mulher na cultura popular nordestina.

É neste sentido que, nessa contação em especial, inserimos o Teatro do Oprimido e suas metodo-
logias. Desejando, junto com os ouvintes, discutir e construir através da instauração do Teatro-Fórum, três
novos finais possíveis para as duas rendeiras.

Assim, hoje, ampliamos este trabalho, em um novo processo de criação colaborativa, dando voz
a quem antes era só ouvinte passivo e possibilitando novos horizontes para as Sebastianas e Severinas que
ainda habitam as histórias da cultura popular brasileira.

Justificativa:

Pé de Causos Trupe de Contadores é um grupo de estudos das narrativas da cultura popular e


afro-indígena que nasce do encontro de três artistas contadores de histórias. Um ator, uma artista visual e
um músico. Todos três educadores que no seu dia-a-dia utilizam as histórias como caminho e instrumen-
to de acesso a novos mundos e sensações.

Acreditamos no encontro como possibilidade metodológica de pesquisa, de criação e recriação; acredi-


tamos no encontro como possibilidade de ressignificação de olhares, tanto de quem ouve como de quem conta.

Foi justamente o encontro, durante uma sessão de histórias, com uma estudante do fundamental 2
de uma escola pública da periferia de Salvador, que suscitou em nós o desejo de contar a história de Sebastia-
na e Severina a partir de outra perspectiva. A jovem negra, militante e empoderada tinha se encantado com
a nossa presença na escola para uma contação de histórias. Ao final da contação, muitos vieram comentar
sobre a história. Mas dela não veio nenhum comentário, apenas o silêncio que em nós reverberou e incomo-
dou. Sentimos que havia algo de errado na história.

905
Numa investigação atenta percebemos que ao propormos apresentar o sertão que pulsava dentro
de nós, deixávamos escapar a condição da mulher naquela história. Naquela história, as mulheres brigavam
pelo amor de um homem forasteiro e ao final ainda morriam afogadas ao tentarem atravessar de bote o
açude da cidade para encontrarem com ele, que estava na outra margem.

Incomodados, nos propomos o desafio de modificar aquele final incluindo o público-ouvinte na


contação para que juntos pudéssemos pensar e criar novos finais possíveis para aquela história. A inserção
do Teatro do Oprimido veio nesse sentido.

O Teatro do Oprimido, criado por Augusto Boal na década de 70, propõe segundo o educador e
pesquisador Ricardo Japiassú (2003, p.46-47) que

o espectador converta-se em espectATOR, por já não delegar poderes aos


personagens para que estes pensem ou atuem em seu lugar. O espectATOR
significa a liberação e a libertação do espectador da ‘opressão’ que lhe foi
imposta pela tradição ocidental. O teatro do oprimido interessa-se pelo te-
atro como ação cultural estético pedagógica que conduz e ensaia uma revo-
lução política, econômica e histórica nas sociedades humanas.

Uma das metodologias utilizadas pelo Teatro do Oprimido é o Teatro-Fórum que segundo o ator e
pesquisador Flávio Sanctum (2007, p.27) é uma pergunta em forma teatral,

feita pelo elenco aos espect-atores: aqueles que estão na expectativa de en-
trar em cena e atuar. No Teatro-Fórum estimula-se a participação e interfe-
rência dos “espect-atores” para resolução de problemas reais do cotidiano.

Desta forma, nesta comunicação, ao final da contação da história de Sebastiana e Severina e a partir de
uma pergunta feita por nós, os ouvintes serão estimulados a entrarem em cena para - convertidos em narrado-
res e detentores de suas vozes - criar, em conjunto conosco, três novos finais para a história das duas rendeiras.
Assim, o objetivo ao propormos recontar esta história em conjunto com os ouvintes-narradores
é sairmos da contemplação estética e extrapolar para a vida real o debate acerca do lugar das mulheres na
cultura popular e em nossa sociedade.
Para nós, qualquer lugar é um bom lugar para se contar e ouvir uma história, basta ter um ouvinte e
um contador disponíveis. Assim, uma praça, o pátio da escola, o quintal de casa, à sombra de uma árvore ou
a sala de um congresso de arte educadores serão espaços propícios a narração de histórias e para construção
de novos pensamentos a respeito do lugar da mulher na cultura popular nordestina.
Desta forma, ao propormos a apresentação de Sebastiana e Severina como comunicação artística
inserida em um espaço acadêmico dedicado a pesquisa e formação, desejamos ocupar com nossas histórias
a universidade e seus pátios, nos encontrar com seus transeuntes e gerar aprendizados mútuos a partir des-
ses encontros; e compartilhar nossos modos e fazeres e nossos pensamentos acerca da arte, da educação e
do universo da contação de histórias.

Objetivo Geral:
Propor novos olhares sobre o lugar da mulher nas histórias da cultura popular nordestina através da con-
tação de história “Sebastiana e Severina” livremente inspirada no livro homônimo do autor e ilustrador
pernambucano André Neves, e da instauração de um Teatro-Fórum ao final da sessão, a ser realizado em
conjunto com os ouvintes.

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Objetivos Específicos:

- Apresentar contação de histórias livremente inspirada no livro homônimo de André Neves;


- Discutir e construir, em conjunto com os ouvintes e através da instauração de teatro-fórum, três novos
finais possíveis para Sebastiana e Severina;
- Compartilhar nossos modos e fazeres e nossos pensamentos acerca da arte, da educação e do universo da
contação de histórias.

Ficha Técnica:
Realização: Pé de Causos Trupe de Contadores
Texto adaptado: Alexandre Geisler e Maju Fiso
Contadores: Alexandre Geisler e Maju Fiso
Direção Musical e Execução da Trilha Sonora: Valnei Santos
Confecção de Elementos Cênicos: Maju Fiso

Histórico do grupo:
Dezembro/2016 – Largo Dois de Julho (Salvador/BA) Café com Histórias – intervenção artística de narração
de histórias realizada em residência particular como metodologia integrante do processo de pesquisa do grupo.
Maio/2017 – Biblioteca Pública Juracy Magalhães Júnior (Itaparica/BA) Contação de Histórias “SEBASTIA-
NA E SEVERINA” dentro da programação de sessões de histórias para alunos da rede municipal de Itaparica.
Dezembro/2017 – Lar de Idosos Santo Expedito (Salvador/BA) Contação de Histórias “SEBASTIANA E
SEVERINA” dentro da programação de final de ano e confraternização dos idosos moradores do lar.
Março/2018 – Escola Municipal Maria Constança (Salvador/BA) Contação de Histórias “SEBASTIANA E
SEVERINA” dentro da programação da abertura do Projeto de Leitura da Escola.
Março/2018 – Faculdade de Educação (FACED/UFBA) Oficina de Teatro e Contação de Histórias realizada
em parceria com o CELULA (Centro Lúdico Laboratorial de Processos Criativos) /PIBIC-UFBA para alu-
nos e comunidade escolar.
Abril/2018 – Biblioteca Pública do Estado da Bahia (Salvador/BA) Contação de Histórias “DE DENTRO
DAS CAIXOLAS” dentro da programação do I Festival de Contação de Histórias das Bibliotecas Públicas
do Estado da Bahia.
Abril/2018 – Faculdade de Educação (FACED/UFBA) Piquenique com Histórias – Intervenção artística de
narração de histórias realizada no pátio da faculdade como finalização da Oficina de Teatro e Contação de
Histórias.
Abril/2018 –Shopping Piedade (Salvador/BA) Contação de Histórias “Sebastiana e Severina” dentro da pro-
gramação da Semana do Livro Infantil.
Abril/2018 – Espaço Xisto Bahia (Salvador/BA) Realização de oficina de confecção de tambores com material
reciclado e contação da Lenda do Tambor Africano dentro da Feira de Troca-Troca do Festival Petiz 2018.
Maio/2018 - Centro Educacional Luz do Saber (Salvador/BA) Contação da história A Lenda do Tambor
Africano e vivência de musicalização para mães e filhos dentro da programação dos Dias das Mães da escola.
Maio/2018 – Parque da Cidade (Salvador/BA) Piquenique com Histórias – Intervenção artística de narra-
ção de histórias aberta a comunidade do entorno do parque público.

907
CIA. PERFORMANCE
Conceição Myllena F. Rolim (UFPB)
Flaudemir Sávio Sousa Mendes (UFPB)

DESCRIÇÃO, PROCESSO E CRIAÇÃO

A performance Cia. acontece quando os dois artistas posicionam-se um ao lado do outro, sentados em
cadeiras que ficam de frente para uma mesa, na qual está uma folha de papel em branco e um lápis-objeto438,
cujo título é “lápys”. Os artistas seguram tal objeto e, silenciosamente, põem-se a escrever simultaneamente.
Uma ação que entrelaça sentidos e produz uma escrita sobre o papel. O fluxo do pensamento em convergência;
o resultado de sobreposições, a coautoria nas conduções, intuem a construção de uma narrativa. A ação gera
uma imagem na folha de papel, que guarda a grafia dos participantes, e se revela uma espécie de “caligramas”.

438. Lápis-objeto, 2016, madeira e grafite, 12x14x0,7cm, lápis com uma ponta e dois cabos, formando um “Y”.

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Descrições técnicas

A performance não exige estruturas especiais, acontece em um espaço interno e iluminado, que
acomode uma mesa de madeira pequena (tipo escolar) e duas cadeiras, tendo uma parede de fundo.

Material: folhas de papel, lápis-objeto (ambos fornecidos pelos artistas); Equipamento: uma mesa
de madeira pequena e duas cadeiras; Participantes: performance criada para ser executada por duas pessoas.

Roteiro/Partitura

1- Os participantes devem sentar em um banco/cadeira um ao lado do outro de frente pra uma mesa, na
qual deverá estar uma folha de papel em branco;
2- Empunham o lápis-objeto, e começam a escrever (importante que um fique ao lado do outro, indepen-
dente da mão que escrevem);
3- Os participantes devem iniciar o ato de escrever ao mesmo tempo (Sugestão: após concentrar, os partici-
pantes podem olhar-se nos olhos, contar mentalmente até três e iniciarem);
4- Cada um deve escrever a palavra (ou frase) que lhe vier a mente, sem pronunciar, a escrita deve surgir
desse processo, escrita simultânea;
5- O desfecho (final) da ação não é premeditado.

Duração

A ação é pensada para acontecer em 2 momentos, o primeiro de 10 minutos, o outro, aberto para os
presentes executarem a performance, 20 minutos.

Vídeo registro da performance

Registro em vídeo da performance, condensado em 8”6”, em que os artistas mostram as etapas da ação.
Link para o vídeo: https://youtu.be/48ncp8h1GkU

JUSTIFICATIVA

Uma performance para dois: Cia. No processo de (des)construção da escrita, dialoga-se o pensa-
mento lexical como ferramenta de uma poética resultante do encontro de “euniversos”, que se retroalimen-
tam na palavra agora imagem. A escrevivência em Companhia traz à tona outras leituras, que se dão a partir
do contato múltiplo, visto que os caligramas formados são fissuras da colisão de individualidades. É o acaso
metaforizando na escrita um relacionamento em processo.

OBJETIVO GERAL

O objetivo dessa comunicação artística é a de escrever simultaneamente com o mesmo lápys, convergindo
sentidos e produzindo uma possível escrita sobre o papel.

909
ESPECÍFICOS

- Fluir o pensamento em convergência, ativando reflexões sobre as relações de qualquer natureza;

- Produzir uma escrita sobre o papel; possibilitando outras leituras/diálogos acerca do processo de escrita
em conjunto.

- Refletir sobre as forças que orbitam a ação, conduções coercitivas, coautoria, intenções.

FICHA TÉCNICA

Autores: Conceição Myllena e Flaw Mendes

Histórico de apresentações do projeto Cia. Performance:

Salão de Artes Visuais do Sesc – PB, Jul, Set.e Out de 2018 – Prêmio Aquisição – João Pessoa - PB

Mostra Transitória - Apresentação performance .out. 2017- Caxias do Sul - RS

Convergência 2017 - Mostra de Performance do Sesc - Vídeoperformance, out. 2017- Palmas - TO

Apresentação da performance Cia. - Agosto da Arte do Centro Cultural Banco do Nordeste - ago. 2017 –
Sousa - PB

Exposição da performance Cia. - Galeria Archidy Picado - FUNESC - Jan - mar de 2017) - João Pessoa – PB

REFERÊNCIAS INSPIRADORAS

BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. Tradução: tura, música e cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Uni-
Mário Laranjeira. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004 versitária, 2006. p. 247-263. (Ditos &escritos ; 3)
DELEUZE, Giles. Crítica e clínica. Tradução de Peter HEATHFIELD, Adrian. Live Artand Performance. Pu-
PálPelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997 blished in USA and CanadabyRoutledge New York, and
Tate, 2004.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem. Trad.
Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013 KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o
retorno do autor e a virada etnográfica. 2ª ed. Rio de
FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da (Org.).
“Isto Não É um Cachimbo”. In: Estética: literatura e pin- Janeiro: 7Letras, 2012.

910
É PERMITIDO CHORAR
Renata Caldas (PPGAV/ UFPE)

Descrição do processo de criação

Em tempos difíceis, sentimos tristeza a cada notícia de violência, de políticas repressoras, de con-
trole da liberdade artística e individual, de ameaça de perda dos direitos humanos, de formas de opressão.
Parece que tentamos nos blindar diante de tantas atrocidades recentes como forma de sobrevivência, de
seguir a rotina. Tem-se a sensação de um choro coletivo sufocado, eminente.

Apesar de ser uma reação fisiológica natural, chorar demanda justificativas, explicações. Descul-
pamo-nos quando nos emocionamos em público e, muitas vezes, contemos nossas lágrimas para evitar
situações constrangedoras.

Em vivências experimentadas durante o primeiro semestre do mestrado em Artes Visuais no PP-


GAV/UFPE observei colegas (estudantes que são também professores de arte) com esse “nó na garganta”
ao passo que também me encontrei em situações de prender o choro em sala de aula, principalmente na
disciplina Tópicos Especiais em Processo de Criação (Tramações: cultura visual, gênero e sexualidades),
ministrada pela Professora Doutora Luciana Borre, numa turma conjunta de estudantes de graduação e
pós-graduação. Tal disciplina resultou na segunda edição da exposição Tramações.

Nessas aulas em que as subjetividades se manifestaram de maneira emocionada e franca, pude con-
firmar que chorar exige coragem. É, portanto, o choro, esse ato fisiológico de catarse, o tema dessa perfor-
mance/instalação, apresentada pela primeira vez como resultado prático da disciplina em questão no hall do
CAC/UFPE na abertura da exposição coletiva Tramações 2.

A proposta também vem ao encontro da investigação de minha pesquisa de Mestrado em Artes Vi-
suais (PPGAV/UFPE), que inclui questões que tratam do diálogo entre obras de arte e suportes de divulga-
ção e sinalização, tais como anúncios publicitários e placas de aviso. A idéia de É permitido chorar enquanto
instalação surgiu a partir da pesquisa da materialidade desses dispositivos de comunicação.

Justificativa

Apesar de ser uma reação fisiológica natural, chorar demanda justificativas e explicações. Muitas
vezes, contemos nossas lágrimas para evitar situações constrangedoras pois, de certa forma, o choro é um
tabu. Em redes sociais e outras plataformas de exposição é fácil notar que o fracasso permanece maquiado
ou oculto.

911
Quantas vezes ouvimos expressões repressoras como: “engole o choro”; “homem não pode chorar”;
“fulano é uma manteiga derretida, chora por qualquer coisinha”; “chega de mimimi”; etc?!

Choramos escondido, tentamos chorar baixinho para ninguém ouvir, enxugamos as lágrimas
rapidamente, com vergonha, ficamos sem jeito, sujeitos a julgamentos... Assim, é comum ocultarmos
nossa fragilidade que é o ato de chorar ou simplesmente a retermos no corpo, decidimos sufocar a saída
dessas lágrimas, mesmo sendo unânime o conhecimento de que chorar faz bem. Por outro lado, são raras
as vezes em que somos estimulados a desabafar, botar para fora essa emoção contida. Chorar é um ato
terapêutico. A ciência comprovou, ainda, que chorar é sinal de evolução.

Para a psicologia junguiana, o que se rejeita, aprisiona, enquanto aquilo que se aceita é libertador.
Assim, o choro pode ser considerado uma limpeza energética, uma maneira de transformar aquele senti-
mento negativo em força, de poder sair daquele estado reprimido e recuperar-se.

Além de conceitualmente estar vinculada ao ato catártico do choro, a concepção artística de É per-
mitido chorar busca o trânsito entre diferentes linguagens. Tomando a placa Centro de Artes e Comunica-
ção como referência, produzi outra semelhante com algumas informações sobre o trabalho, deixando claro
que se trata de uma atuação. Como minha pesquisa trata do diálogo entre as artes visuais e certos elementos
da publicidade urbana, optei pelo trocadilho: “Dentro de Artes e Comunicação”. Assim, a identidade visual
do lugar escolhido também é matéria-prima para essa Performance/Instalação. Essa diluição de fronteiras
entre o que é arte e o que não é interessa bastante à proposta.

De maneira indireta, a pesquisa questiona estruturas hegemônicas de poder, de repressão no


contexto capitalista da cultura visual e comportamental contemporânea. A ideia é estabelecer fricções
entre a arte dita culta/institucionalizada e propostas artísticas e de intervenção urbana de caráter não-
-oficial ou marginal. Ao mesmo tempo em que o trabalho está numa instituição de ensino e integrou
originalmente uma exposição numa galeria de arte, esse se encontra num ambiente informal de circu-
lação ou espera.

Objetivo geral

Sensibilizar a comunidade acadêmica por meio de uma performance.

Objetivos específicos

Despertar curiosidade para uma obra de arte que se confunde com lugares e ações do cotidiano;
Apurar o olhar diante de elementos da cultura visual; Confortar o público no sentido libertário, de que o ato
chorar faz bem.

Ficha técnica

Concepção e atuação: Renata Caldas


Designer gráfico: China Filho
Produção de imagens e Redes Sociais: Élida Nascimento
Suporte Técnico/ Produção: Raphael Rios

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Imagens da Performance/Instalação “É permitido chorar”

Local: Hall do CAC (próximo à entrada da Galeria Capibaribe)/ UFPE


Data: 08/05/2018 – noite de abertura da exposição coletiva Tramações 2
Fotos: Élida Nascimento / Página Facebook “É permitido chorar”

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARCHER, M. Arte contemporânea: uma história conci- GLUSBERG, J. A arte da performance. São Paulo: Pers-
sa. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1994. pectiva, 2007

BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e JUNG, G. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro:
política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994 Nova Fronteira, 2002.

COHEN, R. A performance como linguagem: criação NUNES, L. B. Cultura visual: tramando gênero e sexua-
de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Pers- lidades nas escolas. Recife: Editora UFPE, 2016.
pectiva, 2002
RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo:
DIDI-HUBERMAN, G. Que Emoção! Que Emoção? Martins Fontes, 2012.
São Paulo: Editora 34, 2016

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e


Terra, 2005.

914
R.E. LER MACBETH
(R.EVISÃO DO E.SPETÁCULO
UMA LADY: MACBETH)
Heloise Baurich Vidor
UDESC

Descrição do Processo de Criação

R.E. LER MACBETH(R.evisão do E.spetáculouma lady: MACBETH) 439 propõeuma aproxima-


ção ao texto Macbeth de William Shakespeare - que se dá pela terceira vez - com o objetivo de explorar temas
estudados desde a realização do doutoramento da proponente (2011- 2015)440, até seu projeto de pesquisa
atual, intitulado Teatro, Leitura, Literatura e Educação: encontros com o texto, desenvolvido no Departamen-
to de Artes Cênicas do Centro de Artes da Universidade Do Estado de Santa Catarina/UDESC

Os temas principais são leitura e teatralidade, presença e representação, aula e cena, professor e artista.

Em 2009, a proponente realizou com estudantes de graduação do curso de Licenciatura em Teatro


da UDESC/SC/, um experimento cênico com o texto Macbeth, no qual participava, juntamente com os
estudantes, como atriz.Este experimento se relacionava com a pesquisa que desenvolvia neste momento na
Universidade441, e que estava relacionada com o ensino do teatro na escola e com a metodologia inglesa para
o ensino do teatro conhecida como drama in education ou process dramaou simplesmente drama. Seu foco
de investigação no drama era a estratégia teacher in role, conhecida no Brasil como professor-personagem, na
qual o professor assume um papel social ou um personagem para fazer a mediação com os alunos e poten-
cializar o processo de construção da narrativa cênica. Neste caso, o personagem assumido foi Lady Macbeth.

Esta experiência levou a uma segunda aproximação do texto que culminou na criação do espetáculo
solo uma lady: MACBETH (2010)442, inspirado em um modelo de aula-espetáculo que tinha como objetivo
aproximar o público da trama de Macbeth e da obra de Shakespeare. Tanto a atuação como a relação com o
espaço cênico buscaram neutralidade, atemporalidade e certo tom narrativo, não revelando explicitamente
quando era a atriz que estava falando ou quando era a personagem. Amparada, à época, por uma equipe

439. Link com a gravação do espetáculo https://youtu.be/7wu2FZN1VD4


440. Doutorado realizado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da ECA/USP, com orientação da Profa. Dra. Maria Lúcia de Souza
Barros Pupo. A tese foi publicada em 2016 pela Editora Hucitec. Ver: VIDOR, H. B. Leitura e Teatro: aproximação e apropriação do texto literário.
São Paulo: Hucitec, 2016.
441. Ver: VIDOR, H. B. Drama e teatralidade: o ensino do teatro na escola. Porto Alegre: Ed. Mediação, 2010.
442. Com concepção e atuação de Heloise Baurich Vidor, o espetáculo é dirigido pelo crítico e professor de teatro Edélcio Mostaço. Este espetáculo
dá continuidade à parceria entre Vidor e Mostaço, iniciada na leitura cênica do textoA Filha do Teatro – um ensaio melodramático, de Luís Augusto
Reis, apresentada em 2009 na cidade de Florianópolis, na qual atriz e diretor trabalharam juntos. O projeto de montagem do espetáculouma lady
MACBETHcontou com o patrocínio da UDESC, através do Edital de Cultura (2010) e a produção é da Harmônica Arte e Entretenimento.

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de artistas-parceiros (diretor, preparador corporal, preparadora vocal, figurinista, cenógrafo), a idealizada
‘aula-espetáculo’ acabou se configurandocomo um ‘espetáculo-aula’, ou seja, uma professora de teatro dando
uma aula para seus alunos – e, na medida em que essa se desenvolve, surgem contrapontos aqui e ali oriun-
dos do texto de Shakespeare. Trata-se de um modo de abordar a obra através dos vários olhares simultâneos
e das várias vozes que a compõem, com aprimorado acabamento técnico e estético.

Entre 2011 e 2015, a proponente realiza seu doutorado, e os temas da pesquisa passam a reverberar
em suas propostas artísticas. Com isso, tornou-se evidente que uma lady:MACBETH, como espetáculo-aula,
não abre espaço para que haja, em cena,a investigação e a exploração dos temas anteriormente referidos.
Assim, surge a proposta da desmontagem R.E. LER MACBETH (R.evisão do E.spetáculouma lady: MA-
CBETH) - a terceira aproximação da proponente ao texto de Shakespeare.

Com essa terceira aproximação pretende-sereconsiderar o espetáculo, a partir da retomada do texto


original. A ideia é compartilhar algumas cenas, explicitando aos espectadores quais foram os procedimentos
de criação, as escolhas realizadas no momento de montagem do espetáculo e, ao mesmo tempo, abrindo
espaço para questionar o que foi feito, apontando para outras possibilidades.

Intercalado a isso, pretende-seler trechos do texto coletivamente - partir da e retornar à leitura, de


modo que ações possam surgir do ato de ler em exposição (atriz-leitora para ouvintes; atriz-professora como
leitora junto com outros leitores - propostas coletivas de leitura) com espaço para digressões ditas e escritas.
Essas aberturas para a leitura acontecerão através da proposição de regras acordadas com os espectadores
no inicio da sessão. A opção por limites claros, delimitações precisas e caracterizadas como regras de um
jogo, acontece por ter-se já a clareza de que os limites expandem (ao invés de restringir) as possibilidades de
contato com o que se lê, se faz, se olha, se escuta.

Desta forma, a desmontagem põe em diálogo as áreas da literatura (leitura, escrita), do teatro (expo-
sição, escuta, jogo, teatralidade, encenação) e da educação (discussão de procedimentos, problematização-
das escolhas, re-elaboração da obra).

Os autores que inspiram a propostasão: Shakespeare, Jacques Rancière, Dennis Guénoun, Jorge
Larrosa, Ileana Diéguez, Óscar Cornago, o projeto Ensaios Ignorantes, concebido por Juliana Jardim, SP/
Brasil, os filmesRicardo III, um ensaio, de Al Pacino e (o venta lá fora) de Marcio Debellian, com Clarice Be-
rardinelli, Maria Bethânia e a poesia de Fernando Pessoa. E o vídeo Soy impura, soy danzaora, da bailarina
espanhola Rocío Molina.

Justificativa

A presente proposta, vinculada ao campo da pedagogia do teatro, apresenta-se como uma opor-
tunidade de experimentar a desmontagem cênica como procedimento pedagógico e artístico que vai ao
encontrodaspráticas teatrais contemporâneas.

Mais do que uma simples demonstração técnica do artista, a desmontagem do espetáculo pode ser
um momento de partilhar as escolhas, as dificuldades, os impasses próprios do processo de criação, fato que
coloca em jogo implicações éticas e estéticas, revelando o posicionamento político do artista.

José Raphael Brito dos Santos (2014) completa:

Na desmontagem se apresenta o reflexo das memórias que são tecidas por palavras, como
um conjunto de ideias verbais, visuais, textuais, sonoras, dentre outros. Portanto, ao pen-

916
sar no roteiro de apresentação da desmontagem, o artista reconfigura sua vida a partir de
suas memórias e arquivos, ou seja, não existe método pronto e acabado para organização
da desmontagem (SANTOS, 2014:167).

Se pensarmos nos binômios aula-cena, professor-artista, presença-representação, a desmontagem


cênica apresenta-se como potente estratégia de reflexão, discussão e experimentação, contribuindo com a
formação do professor de teatro, configurando-se como gesto criativo e educativo.

Objetivo Geral

Realizar a desmontagem do espetáculo uma lady MACBETH, aos moldes de uma aula-espetáculo.

Objetivos Específicos

- Promover espaço para a leitura coletiva de trechos do texto Macbeth de William Shakespeare com
os espectadores;
- Revelar ao público procedimentos de atuação, a partir de ações distintas, tais como: ler, narrar e
atuar;
- Problematizar a desmontagem de espetáculos como ação pedagógica no campo da Pedagogia do
Teatro.

Ficha Técnica do Espetáculo (a ser desmontado)

Concepção e atuação: Heloise Baurich Vidor


Direção: Edélcio Mostaço
Direção de ator: Cláudia Sachs
Preparação Vocal: Barbara Biscaro
Figurinos: Zilá Muniz
Cenografia: Fernando Marés
Criação de Luz: Daniel Olivetto
Trilha Sonora: Renata Swoboda
Vídeo e Fotografia: Claudia Mussi
Criação gráfica: Daniel Olivetto
Técnico de luz: Greice Miotello
Produção: Harmônica Arte e Entretenimento

917
918
Referências Bibliográficas
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a emancipação intelectual. Belo Horizonte. Autêntica, - Ricardo III – um ensaio. Al Pacino.
2010. - Soy impura, soy danzaora | Rocío Molina | TEDxMadrid

919
A IMPORTÂNCIA DE GODSPELL
PARA A CONSOLIDAÇÃO DO ROCK
COMO GÊNERO DO TEATRO MUSICAL
Inácio Alves Dantas Neto – UFPE, Caixa Econômica Federal e Academia de Artes Lalu
Sueudo Fernandes da Silva – IFAL e Academia de Artes Lalu

Processo de criação

Inácio Dantas e Sueudo Fernandes atuam em parceria há mais de 15 anos, desde a inauguração do
Restaurante Manhattan, no qual trabalhavam como garçons cantores. Neste local, os artistas interpretavam
um vasto repertório de teatro musical, incluindo também trilhas sonoras de filmes e clássicos do Jazz. Du-
rante este trabalho, os artistas tiveram os primeiros contatos com o musical Godspell, através da apresenta-
ção de alguns números como “Prepare Ye” e “Save the People”.

A paixão dos artistas pelo teatro musical e a formação acadêmica de ambos os uniu em mais uma
atividade profissional: o trabalho como arte/educadores dos cursos regulares de teatro musical da Acade-
mia de Artes Lalu. Inácio Dantas, licenciado em Educação Artística, com habilitação em Artes Cênicas
pela UFPE, é professor da disciplina teatro; Sueudo Fernandes, licenciado em Música também pela UFPE,
é professor de música e das disciplinas de canto coral, ambos docentes dos cursos regulares da instituição.

Neste primeiro semestre de 2018, os dois profissionais estão ministrando um curso de montagem
em teatro musical na Academia de Artes Lalu. O musical escolhido para o curso foi Godspell, o que desper-
tou nos artistas o interesse em construir a presente proposta de comunicação artística: a apresentação, no
formato de aula-espetáculo, dos números do espetáculo musical. O fato de estarem envolvidos na monta-
gem da obra com os alunos da instituição, facilitou o processo de construção deste trabalho, proporcionan-
do para os arte/educadores a possibilidade de atuarem também como intérpretes deste musical.

Nesta proposta, Inácio Dantas, tenor, interpretará as canções do personagem Jesus, enquanto Sueu-
do Fernandes, barítono, atuará como as personagens João Batista e Judas, que normalmente são interpreta-
das pelo mesmo artista nas montagens tradicionais do musical.

Justificativa

A realização deste comunicação oral pretende contribuir para o debate e a difusão do teatro mu-
sical como importante gênero artístico. Além disso, proporcionará o conhecimento sobre a obra Godspell
e sobre o gênero Rock, que possui especificidades e características particulares na narrativa, musicalidade
e atuação artística.

920
Cada vez mais surgem pessoas interessadas em teatro musical no estado de Pernambuco, o que pode
ser constado pela crescente busca por especialização na área, devido ao crescimento de instituições que ofe-
recem cursos de teatro musical como a Academia de Artes Lalu, e a presença cada vez maior de espetáculos
que utilizam as três linguagens envolvidas no teatro musical: o teatro, a música e a dança. Dessa forma, esta
proposta traz em seu escopo a possibilidade de diálogo com o grande número de pessoas interessadas em
teatro musical da nossa região.

A apresentação deste trabalho pretende despertar o interesse dos artistas e pesquisadores a respeito
do teatro musical, através da execução de números de uma das mais importantes obras do teatro musical, o
musical Godspell.

Objetivos

Objetivo Geral:
- Proporcionar a discussão a respeito do musical Godspell e da sua importância para o teatro musi-
cal, principalmente em relação à consolidação do Rock como gênero do teatro musical.

Objetivos específicos:
- Fomentar a formação de plateia para o teatro musical e divulgar esta linguagem artística;

- Apresentar os números do musical Godspell, possibilitando a ampliação do repertório do público


sobre teatro musical;

- Estimular o intercâmbio entre pesquisadores e artistas sobre o teatro musical.

Ficha técnica

Direção Cênica: Inácio Dantas


Arranjos e direção musical: Sueudo Fernandes
Elenco:
Inácio Dantas (Jesus);
Sueudo Fernandes (João Batista/Judas).

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VÍDEO PERFORMANCE:
“A MORTE DO ESTUDANTE”
Ediel Barbalho de A. Moura
Universidade Federal de Pernambuco -UFPE

DESCRIÇÃO DO PROCESSO DE CRIAÇÃO

A performance foi desenvolvida a partir de uma ocorrência no interior da instituição da UFPE. O


acontecimento em questão trata-se da destruição de um banco de jardim produzido por estudantes do curso
de Arquitetura, que ocorreu no dia 10 de novembro de 2015, que segundo relata a Agencia de notícias da
instituição, “A ação, oriunda de ordem da direção do centro, repercutiu nas redes sociais. O equipamento
foi construído para atividades de uma disciplina do bacharelado de arquitetura e urbanismo. Os alunos
consideram arbitrária a demolição pois não houve discussão com o corpo discente. Internautas comentaram
que a demolição teria sido feita para evitar tráfico de drogas. A UFPE negou.” (ASCOM/UFPE). E como
instalação foi pensado deixar como objeto artístico escultural no espaço expandido, o resultado da perfor-
mance, no caso o banco de jardim, entintado com tinta vermelha, isolado e enfaixado com fita zebra e cones
sinalizadores. Para conceituar o trabalho artístico, foi realizada uma pesquisa bibliográfica onde se buscou
levantar conceitos sobre o anarquismo, e a relação do poder do Estado sobre o público (sociedade e seus
espaços/cultura/vivencias/conhecimento), assim como a interferência do Dele nas relações sociais, quanto a
autonomia de decidir sobre a destruição ou construção pontes que facilitam o acesso às experiências com-
partilhadas, e às relações humanas, nos pós modernidade.

A utilização e apropriação de espaços públicos, atualmente acontece como forma de concretizar


relações da sociedade pós-moderna, conforme comenta Michel Maffesoli, em seu livro “Notas sobre a pós-
-modernidade”, estas relações são interdependentes desses espaços (locais), pois “todo objeto ou fenômeno
está ligado a outros e é determinado por eles” (MAFFESOLI, 2004, p. 10).

O autor comenta que a ação do Estado, numa sociedade pós-moderna, tem procurado delimitar,
e enquadrar em linhas de força unilaterais essa relação entre o ser eo espaço, e avalia como negativo esta
atitude que incide sobre determinadas categorias de acontecimentos (vivencias) da sociedade. Maffesoli,
comenta ainda este pensamento, surge como critica à tentativa dos Estados Nacionais e de seus órgãos
representativos “Medievais” (criticando o modelo deles) de se auto-proclamar avalista do bom funciona-
mento da vida social, em nome de valores universais, tendo por objetivo mecanizar as relações sociais,
por meio de uma estrutura técnica, que gera um “fideísmo rigoroso, com seu cortejo de fanatismo e
dogmatismo de toda sorte, sem esquecer, é claro, as intolerâncias, exclusões e outras excomunhões” (MA-
FFESOLI, 2004, p. 16).

922
Na atualidade, pensamentos como o do autor vem ganhando espaço na sociedade, no que cerne a
necessidade de se questionar as decisões do Estado, na busca pela participação da massa nas decisões políti-
cas, muitos protestos vem acontecendo pelo Brasil, e muitos estão trazendo a performance como um cami-
nho de protesto. Os estudos da performance e uso da poética corporal são úteis para restaurar a complexi-
dade dos estudos de ações empregadas por ativistas e manifestantes com o objetivo de conscientizar e trazer
mudanças. Também seria uma forma de protestar contra efeitos políticos e mudar estruturas de poder.

“Este reconhecimento da responsabilidade mútua do artista e do espectador com rela-


ção a qualquer significado político era o pólo oposto da crença de que, a fim de instigar
a mudança social, as mensagens artísticas deveriam ser simples e livres de ambigui-
dades. O modo como uma obra se encaixava na história sucessiva dos objetos era de
menor importância que as conexões por ela forjadas com seu contexto, e este contexto
era tão político quanto visual, espacial ou estético” (ARCHER, 2012, pág. 118).

JUSTIFICATIVA

Os locais públicos sempre foram espaços de convivência, muitas vezes ele é palco para a disse-
minação de informação e é utilizado para propagação de ideologias diversas, e onde as particularidades
se relacionam. Nesbitt, em seu livro “Teorizando uma nova agenda para a Arquitetura” (tradução livre),
perceber a volta, na atualidade, pelo interesse em se pensar sobre o lugar no ideário arquitetônico-urba-
nístico. Diz ela:

“No caso da teoria arquitetônica pós-moderna, é também adotado um posiciona-


mento forte em relação à cidade como um artefato cultural, e a lugar, no sentido
fenomenológico. [...] pode-se argumentar que tanto o lugar como o corpo não eram
reconhecidos no Movimento Moderno, por causa do enfoque que visava acomodar
o coletivo acima do individual, expresso numa linguagem universal(...)” (NESBITT,
1996, p. 40, ênfase no original. Tradução livre).

Tomando por base esse conceito apresentado podemos dizer que os espaços públicos, na pós
modernidade, são observados como ambientes favoráveis ao desenvolvimento de relações de convivência
heterogêneas onde o individuo tem a oportunidade de compartilhar experiências e desenrolar ações sob
cerne do coletivismo. Nesse contexto o Maffesoli fala da tendência da perda do corpo individual no corpo
coletivo, definindo como comunhão sensível ou afetiva, e afirma que esta vem a substituir uma sociedade
puramente utilitária, ou seja o sobrepujamento do racional puro. As experiências do mundo vivido co-
letivamente são causa e efeito de todas as situações sociais, e correspondem ao pensamento sobre a razão
sensível. O autor conclui seu pensamento sobre o homem e o espaço de convivência (local), na atualidade,
dizendo que “por essa perspectiva, o homem como mestre e autor de sua história, ou da história social,
cede lugar ao homem que em agido, ao homem que se perde na massa” (MAFFESOLI, 2004, P. 45), ou
seja, que o homem pós moderno tende a buscar essa integralização de corpos comunitários, e para que
isso aconteça, trazendo para a perspectiva da proposta artística, o homem (estudante) faz uso dos locais
públicos, locais onde a integralização pode acontece, pois são neles as relações de troca acontecem, rela-
ções que afirmam identidades individuais e coletivas.

Com relação às vivencias sociais, ele comenta não há como homogeneizá-las, pois, elas serão sem-
pre particulares a cada indivíduo, por serem construídas conforme o desenvolvimento cultural, regional,

923
social, geográfico etc. Ele comenta que a heterogeneização social pode ser observada no local, ambiente,
onde o grupo social se insere. Para ele “o lugar produz um vínculo, que não é abstrato, teórico, racional.
Um vínculo que não se constitui a partir de um ideal distante, mas que, muito pelo contrário, baseia-se
organicamente na posse comum de valores arraigados” (MAFFESOLI, 2004, p. 23). Os vínculos são desen-
volvidos nos espaços públicos através das relações que os seres desenvolvem coletivamente neles.

Quando essa vivência não acontece ou sofre interferências, seja do Estado ou de alguma outra or-
ganização, esse processo de construção de convivências não ocorre, provocando uma “desidentificação” e
desapropriação do que é coletivo, e de tudo que se caracteriza como coletivo, favorecendo a desvinculação
dele da sociedade, marginalizando-o do ambiente a que pertence.

OBJETIVO GERAL

O vídeo performance intitulado “A morte do estudante”, tem como objetivo promover a reflexão a
respeito das intervenções do Poder Público impostas aos alunos de instituiçõespública de ensino (Sistema
educacional), em particular a UFPE. Tais intervençõessão usadas como forma tolher a relação dos indiví-
duos com os espaços físicos, impossibilitando trocas emocionais, espirituais. A ação tem caráter político de
levantar o questionamento a respeito da autonomia do Estado em interferir nas relações humanas a partir
do educacional.

OBJETIVO ESPECIFICO

Assim a proposta realizada pelo alunovisou dar um grito de “NÃO” a atitude tomada pela diretoria
do centro acadêmico da UFPE emergiu como uma ação em protesto contra a destruição dos bancos e a
inexistência de dialogo da diretoria do centro com os alunos. A ação do estudante interfere diretamente no
ambiente calmo e harmonioso do jardim lateral do centro. Causando estranhamento e reflexões de como o
ambiente está sendo utilizado pelos outros estudantes e se há um padrão de comportamento na utilização
da infraestrutura universitária.

FICHA TÉCNICA

A morte do Estudante. Vídeo em formato MP4. Duração de 3minutoe e 19 segundos.


Criação: Ediel Moura
Equipe de apoio: Luís Antônimo, Luan Diego, Mário Sales e Pedro Henrique.
Orientação: Prfª Dtª Renata Wilner.
Edição de vídeo: Luana Andrade.
Imagens: Amanda Souza e Pedro Henrique.

924
IMAGENS
Acervo do artista. Autoria de Pedro Henrique

REFERENCIAS

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O lugar faz o elo. Rio de Janeiro. Editora Atlântica. 2004 chitecture. An Anthology of Architectural Theory 1965-
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ARCHER, Michael. Arte contemporânea: Uma história id=228. Acessado no dia 10 de dezembro de 2015, às 13h.
concisa. Martins fontes. 2ª Ed. 2012.

925
COR DE GENTE, COR DE ASFALTO
Mônica Leite da Silva – UnB

Processo de Criação:

Minha formação como atriz se deu pelo fazer, pelo experimentar, por estar nos palcos. A relação
entre várias maneiras de iniciar um processo de criação sempre me instigou a procurar formas de apreensão
textual, ou mesmo de partir de outros estímulos para a composição cênica. Busquei estímulos que partissem
muito mais dos meus recursos corporais, vocais e temáticos, do que somente de algo já pré-estabelecido
como um texto dramático, por exemplo. Desta maneira, a proposta pela confecção de um processo criativo
advindo da observação de três sujeitos, pessoas em situação de rua, me serviu como ‘pré-texto’ paracriação.
Adentrar, pela via da criação cênica na vida dessas três pessoas, para mim, é revelar um pouco da beleza e
do sofrimento de morar nas ruas.

Sabendo da complexidade que é constitui um processo criativo de modo bastante autoral, lanço
mão de investigações e de potências vividas no decorrer da minha caminhada pelo teatro, partindo princi-
palmente da importância de se encontrar um treinamento convergente ao processo e que, juntamente a ele,
possa construir o mosaico de peças de uma dramaturgia de atriz.

O treino aparece como um pilar de minha pesquisa, pois desperta diferentes vibrações, diferentes
percepções do meu corpo e de minha voz. Ele colabora para uma criação de forma orgânica, que nasce da
própria ação corpórea. Por esses motivos, o encontro com a capoeira converge com a vontade de ter no tea-
tro um treinamento que parta das minhas raízes culturais.

Não houve, uma metodologia pré-existente para que a pesquisa fosse feita. Porém, assumi o método
da cartografia neste trabalho, de acordo com o pensamento de Suely Rolnik (1989), no qual foi importante
absorver matérias de quaisquer procedências, estar entregue aos estímulos que aparecessem no decorrer do
percurso da pesquisa, para que pudesse servir como elemento de expressão e atribuísse sentido útil a criação
no trabalho como um todo. “O cartografo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, de-
vorar e desovar, transvalorado” (ROLNIK, 1989, p. 67) Nesse sentido, mantive durante o percurso a postura
investigativa do cartógrafo que, segundo VirginíaKastrup (2012), é pautada muito mais no que está aconte-
cendo, no percurso da pesquisa, do que no objeto em si. Meu dever foi ficar atenta e deixar que o material
apresentado fosse construído pelo bombardeamento de informações advindas do trabalho de observação
e da sala de ensaio. Como procedimentos metodológicos para a pesquisa, fiz os registros dos meus passos
criativos e devaneios através do diário de bordo, fotografia, filmagens, gravação, de maneira que pudesse
registrar o máximo de elementos possíveis (tanto dos sujeitos em situação de rua, do ambiente da rua e do
meu trabalho como atriz nos ensaios e ações cênicas), que me servissem para a condução dos exercícios na
sala de ensaio e na escrita doe texto dissertativo.

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Desta maneira, ocurta‘Cor de gente, Cor de asfalto’, é parte da pesquisa de mestrado intitulada
“Corpo Transpassado: dramaturgias de uma atriz com a ginga da rua” que teve como objetivo a cons-
trução de uma dramaturgia de atriz a partir de um processo criativo advindo da observação afetiva e do
estudo poético de três pessoas em situação de rua da cidade de Salvador/ BA, conhecidos pelos nomes
Categoria, Carmen Miranda e Mongo. A tessitura deste processo de criação encontra-se no treinamento
de atriz por meio da utilização do exercício da capoeira, que através da sua prática reanima qualidades
importantes como prontidão, presença, agilidade, desenvoltura e me aproxima das minhas raízes cultu-
rais, do local e das pessoas pesquisadas. Durante a pesquisa tive a oportunidade de observar, conversar
e registrar depoimentos dos próprios sujeitos pesquisados e pessoas que tiveram algum contato com
eles no ambiente de rua. As criações poéticas provenientes do trabalho criativo na sala de ensaio foram
concretizadas na forma de Assemblagem, Ação Poética e Ação Cênica, sendo a última apresentada em
Salvador/BA.

Assim, este curta é uma obra artística proveniente do processo criativo desenvolvido no decorrer
do mestrado, gravado, parte na cidade de Salvador/BA onde realizei uma performance na rua (parte de trás
do Mercado Modelo) e outra filmada em Brasília/DF, momento que me visto das personagens (seres de rua)
que já vinham sendo trabalhados na sala de ensaio no decorrer da pesquisa.

Justificativa

O curta surge como mais uma possibilidade de criação artística dentro da mesma pesquisa de
mestrado. A pesquisa engloba criação de performance cênica, poesia, material visual e tenta demostrar
passos de uma criação e de um treinamento da atriz que se deu dentro da sala de ensaio e nas ruas de
Salvador/BA.

A questão que me mobiliza, refere-se ao processo criativo e aos caminhos necessários à sua tessitu-
ra e é o ponto central desta pesquisa. As reflexões teóricas, as abordagens e o treinamento se configuram a
partir da relação entre as minhas experiências práticas no teatro e entre as histórias de vida no meio urbano
dos três sujeitos pesquisados.Tento mostrar como esses encontros se tornam fluidos e densos num processo
que tenta miscigenar (no sentido de misturar energias advindas da rua no meu corpo) e particularizar estas
ações na prática cênica.

Durante esta pesquisa realizei duas idas à capital baiana para tentar uma aproximação e um conheci-
mento maior das suas histórias e suas formas de viver naquele ambiente de rua. A primeira ida foi em fevereiro
de 2016, no qual passei nove dias, e a segunda foi em fevereiro de 2017, no qual passei onze dias,totalizando 20
dias de convivência não só com os sujeitos poetizados, mas com a cidade e a cultura do lugar.

Para mim, o processo criativo se apresenta como um grande emaranhado de possibilidades do qual
eu precisei elencar fatores relevantes para sua conceituação e concepção. As escolhas, como já mencionei,
partiram muito mais daquilo que observei na rua dos três sujeitos, das minhas experiências no meio urbano
e das singularidades do meu trabalho como atriz.

Contudo, o trabalho se justifica pelas possibilidades reveladoras de adentrar no mundo marginal,


que vive às margens e ao mesmo tempo tão próximo. Falar de um corpo, de histórias que às vezes são
difíceis de encarar, de olhar; difícil, para mim, porque todas as vezes que olho bem fundo no olho de cada
uma dessas pessoas me vejo refletida nos seus olhos e me percebo enquanto ser humano, enquanto carne,
enquanto dejeto do mundo e sim, poderia ser eu sim naquele lugar, na verdade poderia ser qualquer um
de nós.

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Objetivo Geral:

Exibição do curta Cor de gente, Cor do asfalto.

Objetivos Específicos:

- Conversar sobre o processo de criação artística.

- Revelar os caminhos utilizados para a elaboração e criação do áudio visual

- Apresentar a pesquisa de mestrado ‘Corpo Transpassado: dramaturgias de uma atriz com a


ginga da rua’.

Ficha Técnica:

Criação e Atuação: Mônica Leite


Produção e Direção: Mônica Leite
Figurino e Maquiagem: Mônica Leite

- Obra Musical: Aruadê!


Autoria e Interpretação: Mônica Leite
- Obra Musical: É Naná ê
Autoria e Interpretação: Mônica Leite
- Obra Musical: Na Lagoa de Nanã
Autoria e Interpretação: Mônica Leite
- Música: Oh areia, oh areia (domínio público)

Orientadora: ProfªDrª Alice Stefânia Curi

Baleia Filmes: Direção de Fotografia


Edição: Gustavo Letruta
Assistente de Fotografia e Edição: Márcia Regina

Sujeitos Poetizados (Em situação de Rua) Categoria, Carmen Miranda e Mongo


Captação de Imagens em Salvador: Angélica Behrmann
Apoio: Universidade de Brasília Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPG-
-CEN)
Financiamento: FAP/DF - Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal Programa PROAP (Capes)
Texto: Livre adaptação do fragmento da obra: FILHO, Walter Fraga. Mendigos e Vadios na Bahia do século
XIX. Dissertação. UFBA – Pós-Graduação em História. Universidade Federal da Bahia. 1994.

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Você também pode gostar