VI Congresso
SESC de
Arte/Educação
Utopias Pedagógicas em Artes
como Gesto de (Re)Existência
Organização
Rudimar Constâncio
Homenagem a
Ingrid Koudela e
Rosa Vascocelos
AN AI S 20 1 8
1
VI Congresso
SESC de
Arte/Educação
Utopias Pedagógicas em Artes
como Gesto de (Re)Existência
Organização
Rudimar Constâncio
Homenagem a
Ingrid Koudela e
Rosa Vascocelos
ANAIS 2018
2
AUTORES
Adriana Ferreira Santana Franco W. Lima da Fonseca Marília Martha França Sousa
Adriana Tobias Silva Francy Izanny de Brito Barbosa Martins Marilia Teodoro de Leles
Alan Silva Barbosa Fred Nascimento (Grupo Totem) Mário de Faria Carvalho
Alan Silva Barbosa Gabriela Bom Matheus Gomes da Costa
Alcione Cristina Alves de Aquino Gabriela Cabral (Grupo Totem) Matheus Rosa da Silva Gomes
Alcione Melo Trindade Geanne Soares da Silva Mauricio Igor Neves de Almeida
Alexandre Cardoso Oshiro Giorrdani Gorki Queiroz de Souza Messias Aroldo Araújo Muniz Júnior
Alexandre Geisler de Brito Lira Gislene dos Santos Furtado Meyrla Conceição Lins Santana
Alexandre Geisler de Brito Lira Graciele Maria Coelho de A. Gomes Miclene Batista Souza
Aline Oliveira Soares Guilherme Panho Moisés Monteiro de Melo Neto
Allyne Matos Nogueira Guilherme Panho Mônica (Lua) Alves Barreto
Amanda Caline da Silva Omar Heloise Baurich Vidor Mônica Leite da Silva
Amanda de Sampaio Alves Duarte Igor de Almeida Silva Monica Rodrigues de Farias
Ana Claudia O. Freitas Ihédilla Humberta Sinésio C. da Silva Murillo Freire
Ana Elisabete R. de C. Lopes Inácio Alves Dantas Neto Nata Borges Ferreira
Ana Júlia Inácio Alves Dantas Neto Natan Santos Ferreira
Ana Mae Barbosa Inaê Veríssimo (Grupo Totem) Nathalia Cesar Goulart
Ana Paula Abrahamian de Souza Ingrid Borba de Souza Pinto Domingos Niara Mackert Pascoal
Ana Valéria Vicente Ingrid Dormien Koudela Niedja Ferreira dos Santos Torres
Anderson Alves dos Santos Isaac de Souza Assunção Noeli Moreira
Andréa Luísa Frazão Silva Isabel Alves Corrêa de Abreu Pablo de Souza Barros
Andreia Maria Ferreira Reis Isabel Bezelga Pablo Roberto Vieira Ferreira
Anselmo Martins de Souza Junior Izaias Trajano da Silva Neto Patrícia Couto Barreto
António Ângelo Vasconcelos Jacqueline Rodrigues Peixoto Pedro Haddad Martins
Arlete dos Santos Petry Joana D’arc dos Santos Oliveira B. Pedro Henrique Barbosa da Silva
Artur Duvivier João Denys Araújo Leite Pedro Rodrigues Pereira da Silva
Arthur Leandro Moraes Maroja João Silvério Trevisan Rachel de Sousa Vianna
(in memoriam) Jorge Dubatti Rafael de Lima Freitas
Auvaneide Ferreira de Carvalho José Albio Moreira de Sales Ramon Santana de Aguiar
Benedito José Pereira José Márcio Barros Raylla Brito Vieira
Brenda Gomes Bazante José Renilson Targino Ferreira Filho Rebeka Caroca Seixas
Bruna Caroline Nazário de Souza José Roberto Nascimento Junior Renata Caldas
Bruna Patrícia Ferreira da Silva Judivan José Lopes Rhayssa Figueiredo de Lira Siqueira
Carlos Kater Juliano Casimiro de Camargo Sampaio Ricard Huerta
Carolina de Santi Estácio Karine Ramaldes Ricardo Carvalho de Figueiredo
Catarina Viana da Silva Lara Pinheiro de Oliveira Rita Tatiana Gualberto de Almeida
Claúdia Ângela Vilela de Almeida Buril Larissa Rachel Gomes Silva Robson Camargo
Cláudia Cazal Lira Lariza Zanini César Nakatani Rodrigo Lopes Silva Padrão
Cláudio Marcelo Carneiro Leão Lacerda Layane Pereira Pavão Ronildo Júnior Ferreira Nóbrega
Gal Martins Leandro de Oliva Costa Penha Rosifrance Candeira Machado
Cleber de Sousa Carvalho Leniée Campos Maia Rúbia Lopes
Conceição Myllena F. Rolim Lindinaldo Caitano Rudimar Constâncio
Cristiane Maria Galdino de Almeida Lucas Viera de Oliveira Sandra de Souza Melo
Dado Sodi Luciana Borre Sergio dos Santos Reis
Danilo Santos de Miranda Luís Carlos Ribeiro dos Santos Simone Maria dos Santos
Dayse Euzebio de Oliveira Márcia Chiamulera Stefany Lopes de Lima
Dayze Euzébio de Oliveira Márcia Julieta Figuerêdo Souza Sueudo Fernandes da Silva
Débora de Lima Cabral Marcio Figueiredo de Sá Leitão Taciana Pontual da Rocha Falcão
Diogo José de Moraes Lopes Barbosa Marco Cézar de Oliveira Brito Filho Thaysa Cordeiro Silva
Ediel Barbalho de Andrade Moura Marcos Paulo Gomes Miranda Uiaracy Maria Santana Vieira
Elthon Gomes Fernandes da Silva Marcos Paulo Gomes Miranda Valdelan Leite da Costa
Elze Maria de Oliveira Barroso Maria Aida Falcão Santos Barroso Valnei Souza Santos
Emanuely Arco Iris Silva Maria Betânia e Silva Valnei Souza Santos
Eroldo Leandro Moraes Júnior Maria Consuelo A Lima Vera Lúcia Bertoni dos Santos
Everson Melquiades Araújo Silva Maria Edneia Gonçalves Quinto Vicente Concílio
Fábio José Rodrigues da Costa Maria Helena Milanez Adami Veruschka Greenhalgh
Fernanda Pereira da Cunha Maria Helena Santana Moreira Vicent Carelli
Fernanda Roberta Lemos Silva Maria José Negromonte-Oliveira Virna Vasconcelos Lopes
Flaudemir Sávio Sousa Mendes Maria Valéria Vital de Souza Wandeallyson Dourado Landim Santos
Flávia Roberta Alves Costa Mariah Cysneiros da Silva Wellington Soares Gomes
Florian Vassen Mariana Reis Leal Fernandes Ziel dos Santos Mendes
Francimara Nogueira Teixeira Marilene Aparecida Batista
3
© 2018 by dos autores
4
Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo,
torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente,
ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor.
Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela
tampouco a sociedade muda.
[Paulo Freire]
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SUMÁRIO
6
“A MÚSICA DA GENTE”: A ARTE AMBIENTAL ENQUANTO PROPULSORA
EXPRESSÕES SONORAS PESSOAIS E CRIAÇÕES DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL | 203
MUSICAIS COLETIVAS. CONTRIBUIÇÃO Ihédilla Humberta Sinésio Cândido da Silva UFPB
CONTEMPORÂNEA PARA A EDUCAÇÃO MUSICAL Anderson Alves dos Santos
NAS ESCOLAS BRASILEIRAS | 141
Carlos Kater POÉTICAS DO FAZER ARTÍSTICO DE TRÊS
UNIVERSOS DOCENTES A PARTIR DA
ENSINO DE ARTE NA EDUCAÇÃO DE JOVENS ABORDAGEM TRIANGULAR | 207
E A LUDICIDADE COMO FERRAMENTA Monica Rodrigues de Farias
FACILITADORA NO ENSINO DA DANÇA | 146 Adriana Tobias Silva
Marcio Figueiredo de Sá Leitão Andréa Luísa Frazão Silva
Rafael de Lima Freitas
COMO IR A NOVA YORK, HAVAÍ E ALPES SEM
RE-FLEXÃO- CRIAÇÃO EM DANÇA E SAIR DE BELO HORIZONTE UMA EXPEDIÇÃO
AÇÃO CULTURAL | 153 ETNOGRÁFICA COM ARTISTAS | 216
Ana Valéria Vicente José Márcio Barros
7
A LUDICIDADE COMO FERRAMENTA PROJETO “A MÚSICA DA GENTE NA
FACILITADORA NO ENSINO DA DANÇA | 278 EDUCAÇÃO MUSICAL DO SESC”: EXPERIÊNCIA
Marcio Figueiredo de Sá Leitão COM A EJA NO SESC LER GOIANA | 356
Rafael de Lima Freitas Izaias Trajano da Silva Neto
Joana D’arc dos Santos Oliveira Botelho
A BUSCA DE UM CORPO DILATADO A PARTIR Anselmo Martins de Souza Junior
DA DANÇA FREVO | 284
José Renilson Targino Ferreira Filho EM BUSCA DA PEDAGOGIA
POÉTICA CÊNICA | 362
FÁBULA E POÉTICA DO CONVÍVIO: Matheus Rosa da Silva Gomes
REFLEXÕES SOBRE UMA OFICINA
DE TEATRO INTERGERACIONAL | 292 CRIAÇÃO, EXPLORAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO
Allyne Matos Nogueira DE CÓDIGOS DE LINGUAGEM NO ENSINO
DE TEATRO | 370
A POÉTICA POLÍTICA EM NARRATIVAS DA Juliano Casimiro de Camargo Sampaio (UFT)
AIDS - RELATOS DE CRIAÇÃO CÊNICA | 299
Franco W. Lima da Fonseca O ENSINO DE TEATRO NA PERSPECTIVA
DOS JOGOS TEATRAIS | 378
O TEATRO ENQUANTO POTÊNCIA PARA Maria Valéria Vital de Souza
A ALTERIDADE: COMPARTILHAMENTO
DE EXPERIÊNCIAS ARTÍSTICAS ENTRE SIMILARIDADES DE ABORDAGEM ENTRE
ESTUDANTES DE TEATRO E IDOSOS | 306 O PROCESS DRAMA E O PROCESSO
Ricardo Carvalho de Figueiredo COLABORATIVO | 386
Amanda de Sampaio Alves Duarte
ANÁLISE ACÚSTICA DA VOZ NA PERFORMANCE
TEATRAL: O “FORMANTE DO ATOR” | 311 PERDOA-ME POR ME TRAÍRES:
Maria Helena Milanez Adami A CONSTRUÇÃO DE UM PROCESSO
ARTÍSTICO-PEDAGÓGICO | 394
A IMPORTÂNCIA DO TEATRO NA ESCOLA: Pedro Rodrigues Pereira da Silva
RESULTADOS OBTIDOS EM UM ESTUDO
DE CASO | 317 EU(NÓS) DRAMATURGO(S) | 403
Benedito José Pereira Processo de Criação dramatúrgica com alunos
do Ensino Fundamental
O SILÊNCIO, A VOZ E A LIBERDADE NAS Karine Ramaldes
AULAS DE TEATRO DO ENSINO BÁSICO DA
REDE MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO | 326 TEATRO PÓS-DRAMÁTICO: REFLEXÕES SOBRE
Matheus Gomes da Costa O ENSINO DE TEATRO NA ESCOLA EM UM
CONTEXTO SUL-MATO-GROSSENSE | 411
UMA PROPOSTA DE AVALIAÇÃO EM TEATRO Maria Helena Santana Moreira
NO ENSINO BÁSICO | 334
Pedro Haddad Martins
ENCENAÇÃO TEATRAL NA EDUCAÇÃO
ABORDAGENS DIVERSIFICADAS BÁSICA: RISCOS DO USO DO CELULAR
NA EDUCAÇÃO MUSICAL INFANTIL: EM DISCUSSÃO | 418
UMA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO Aline Oliveira Soares
NA ESCOLA BÁSICA | 342 Maria Consuelo A. Lima
Messias Aroldo Araújo Muniz Júnior (UFPE)
Rodrigo Lopes Silva Padrão (UFPE) ESCOLA DE BELAS ARTES DE PERNAMBUCO:
DA UTOPIA AOS ANOS DE EXISTÊNCIA | 425
CORAL VOZES DO SERTÃO: O CANTO CORAL Niedja Ferreira dos Santos Torres
COMO LUGAR DE RESISTÊNCIA COTIDIANA | 349
Pablo de Souza Barros Visões da peculiar dramaturgia
Alan Silva Barbosa de João Denys Araújo Leite
Arte como Gesto de (Re)Existência | 433
Moisés Monteiro de Melo Neto
8
DE FRIEDRICH SCHILLER A ABELARDO DA CURSO DE LICENCIATURA EM
HORA: POTENCIALIDADES E INTERSECÇÕES MÚSICA - IMPACTOS E DESAFIOS | 509
ENTRE ARTE E EDUCAÇÃO ESTÉTICA | 439 Meyrla Conceição Lins Santana
Graciele Maria Coelho de Andrade Gomes Valdelan Leite da Costa
Mário de Faria Carvalho Alan Silva Barbosa
9
A EXPERIÊNCIA DO TEATRO POPULAR INTERFACES DA FOTOGRAFIA NAS AULAS DE
EM SALA DE AULA | 575 ARTE: UM ESTUDO DE CASO | 657
Nathalia Cesar Goulart Maria José Negromonte-Oliveira (PCR)
Taciana Pontual da Rocha Falcão
RELATO DE EXPERIÊNCIA: O ENSINO DAS
ARTES INDÍGENAS NA EDUCAÇÃO BÁSICA | 581 INTERDISCIPLINARIDADE E EMANCIPAÇÃO
Flávia Roberta Alves Costa NA VIVÊNCIA EM ARTES DO INSTITUTO
FEDERAL DE SANTA CATARINA:
O MITO DA POMBA-GIRA CIGANA SARAH - POSSIBILIDADES DE (RE)PENSAR A ESCOLA
O REENCONTRO COM A MATRIZ ARQUETÍPICA TÉCNICA E PROFISSIONAL | 665
NO CORPO DA INTÉRPRETE | 589 Mariana Reis Leal Fernandes
Elze Maria de Oliveira Barroso
IMPROVISAR-SE DANÇANDO: INVESTIGANDO
VIVÊNCIAS E RELATOS NA OCUPAÇÃO A EXPERIÊNCIA DE MOVER-SE | 671
DE ESPAÇOS: MACHISMO E RACISMO Giorrdani Gorki Queiroz de Souza
TRABALHADOS EM SALA DE AULA | 595
Mauricio Igor Neves de Almeida REFLEXÕES ACERCA DO PROCESSO
Arthur Leandro Moraes Maroja (In Memoriam) DE MEDIAÇÃO TEATRAL: UM CONVITE
AO PENSAMENTO INTERDISCIPLINAR | 679
O ESTUDO DAS PERFORMANCES Layane Pereira Pavão
AFRO-BRASILEIRAS E A CONGADA DA VILA
JOÃO VAZ (GOIÂNIA – GO) | 602 DENUNCIANDO O AMOR NO ESPAÇO
Cleber de Sousa Carvalho COMUM DA GALERIA | 684
Nata Borges Ferreira
ABAYOMI, O RITO DE ORIGEM:
A PERFORMANCE EM SALA DE AULA BASEADA MEDIAÇÃO DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA
NOS PRINCÍPIOS DO AFROLETRAMENTO | 610 ESCOLA: ILUSTRAÇÕES DE ELENA POIRIER
Amanda Caline da Silva Omar VISTAS POR ESTUDANTES DA EDUCAÇÃO
Virna Vasconcelos Lopes INFANTIL E DO ENSINO FUNDAMENTAL | 690
Rachel de Sousa Vianna
MULHERES/ARTISTAS NA HISTÓRIA DA ARTE: Isabel Alves Corrêa de Abreu
A BUSCA PELO RECONHECIMENTO Eraldo Leandro Moraes Junior
E VISIBILIDADE | 616
Larissa Rachel Gomes Silva DESALINHOS: ARTE, PESQUISA E DOCÊNCIA
EM GÊNERO E SEXUALIDADES | 698
TERRITÓRIO DAS CIÊNCIAS: RELAÇÕES DE Ingrid Borba de Souza Pinto Domingos
GÊNERO PRESENTES NA UNIVERSIDADE | 624 Luciana Borre
Emanuely Arco Iris Silva
“AQUI ESTÁ MINHA CARA. FALO POR MINHA
“TODAS AS VOZES, TODAS ELAS” - RELATO DIFERENÇA. DEFENDO O QUE SOU.” | 705
DE EXPERIÊNCIA DO ENCONTRO DO GRUPO Lucas Viera de Oliveira
DE TEATRO DAS OPRIMIDAS MULHERES Fábio José Rodrigues da Costa
NO ESPELHO COM O GRUPO DE TEATRO
MULHERES DE LUTA | 633 UM CORPO NO MUNDO: LUGAR UTÓPICO DE
Marilene Aparecida Batista PRÁTICAS DE (RE)EXISTÊNCIA | 712
Stefany Lopes de Lima
AUDIOVISUAL: CINEMA, TELEVISÃO, Thaysa Cordeiro Silva
VÍDEO – DEFINIÇÕES E POSSIBILIDADES
NA ESCOLA | 641 PROGRAMA MAIS: MANIFESTAÇÕES DE ARTE
Diogo José de Moraes Lopes Barbosa INTEGRADAS À SAÚDE HUMANIZANDO E
EDUCANDO ATRAVÉS DA ARTE | 718
MEMÓRIA OU A PERSISTÊNCIA Leniée Campos Maia , Artur Duvivier
DA LEMBRANÇA | 649 Claúdia Ângela Vilela de Almeida Buril
Dado Sodi e Cláudia Cazal Lira
10
TÁ NA PELE: DIÁLOGOS MUSICAIS ENTRE EXPERIÊNCIAS COM MEDIAÇÃO NA
SURDOS E OUVINTES | 724 GALERIA CAPIBARIBE, RIO CAUDALOSO
Bruna Caroline Nazário de Souza NA UNIVERSIDADE FEDERAL
Débora de Lima Cabral DE PERNAMBUCO | 787
Maria Aida Falcão Santos Barroso Mariah Cysneiros da Silva
Uiaracy Maria Santana Vieira
GALERIA CORBINIANO LINS: ESPAÇO
A OFICINA DE FOTOS&GRAFIAS DE CONSTRUÇÃO DE SABERES | 795
COMO PRÁTICA INCLUSIVA EM Ediel Barbalho de Andrade Moura
ARTE EDUCAÇÃO | 731
Ana Elisabete R. de C. Lopes HOLOCAUSTO, ARTES E LIBERDADE:
EXPERIÊNCIAS DE MEDIAÇÃO NA EXPOSIÇÃO
A MÚSICA COMO EXPRESSÃO ARTÍSTICA “MENINAS DO QUARTO 28”, GALERIA JANETE
SIGNIFICATIVA NA VIDA DO IDOSO | 736 COSTA (RECIFE/PE) | 803
Miclene Batista Souza Marco Cézar de Oliveira Brito Filho
Ana Claudia O. Freitas
LIXO EXTRAORDINÁRIO: ENSINO
A OBRA COMO RESISTÊNCIA: DE ARTE COM LIXO NA ESCOLINHA
UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO DE ARTE DO RECIFE | 811
DO ARTISTA DAVID WOJNAROWICZ Auvaneide Ferreira de Carvalho
E SUAS CONEXÕES COM O ENSINO
DAS ARTES VISUAIS | 743 O ENSINO DE ARTE E O USO DA INTERNET
Wellington Soares Gomes COMO AUXILIO PARA APRENDIZAGEM | 819
Fábio José Rodrigues da Costa Rhayssa Figueiredo de Lira Siqueira
Marcos Paulo Gomes Miranda
ARTE TECNOLOGIA: INTERFACE DE
CRIAÇÃO COLETIVA PARA A O NÚCLEO DE ARTE DO IFRN-CAMPUS
SEGUNDA INTERATIVIDADE | 751 PARNAMIRIM COMO AÇÃO EXTENSIVA
Judivan José Lopes-Ifal/Unesp DE FORMAÇÃO ARTÍSTICA, CULTURAL
Adriana Ferreira Santana-Ifal E CIDADÃ | 827
Ziel dos Santos Mendes-Ufpe Francy Izanny de Brito Barbosa Martins – IFRN
Natan Santos Ferreira-Ifal Rebeka Caroca Seixas
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RELATO DA EXPERIÊNCIA OBTIDA APÓS /// PARTE 3 - COMUNICAÇÕES ARTÍSTICA
A REALIZAÇÃO DE QUATRO EXPOSIÇÕES
DE ESCULTURAS MÓVEIS EM CONJUNTO
COM SETE OFICINAS DE ORIGAMIS RECONTANDO SEBASTIANA E SEVERINA
ANALISANDO O SEU IMPACTO A SERVIÇO Propondo novos olhares sobre o lugar da mulher
DA EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL E AS AULAS na cultura popular nordestina | 904
DE ARTES VISUAIS | 859 Alexandre Geisler de Brito Lira
Brenda Gomes Bazante Márcia Julieta Figuerêdo Souza
Valnei Souza Santos
(RE)SIGNIFICAÇÕES NOS MUSEUS
CONTEMPORÂNEOS | 867 CIA. PERFORMANCE | 908
Dayse Euzebio de Oliveira Conceição Myllena F. Rolim (UFPB)
Guilherme Panho Flaudemir Sávio Sousa Mendes (UFPB)
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/// APRESENTAÇÃO
INTERCRUZANDO SABERES
E IDEIAS PARA A (RE)EXISTÊNCIA
DAS PEDAGOGIAS EM ARTES
por Ana Júlia da Silva1, Rúbia Lopes2
e Rudimar Constâncio3
“Mas, que devemos pensar da formação do arte-educador? Quais as relações da arte com
a educação que poderão melhor delimitar o lugar e a natureza do processo de formação
do arte-educador? O que dá mais a pensar sobre esta questão e que ainda não foi pensado?
Que é necessário desaprender para encontrar o caminho mais sábio que nos leve à elabo-
ração mais rica do processo de formação do arte-educador?”
(Noêmia de Araújo Varela)
O Serviço Social do Comércio - Sesc/PE, por meio da Unidade Executiva em Piedade, realizou,
em 2008, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, no Teatro Ariano Suassuna, a primeira edição do Seminário
Nordeste de Arte-Educação, onde prestou homenagem a Noêmia de Araújo Varela e contou com a presença
de professores, mestres, doutores e educadores, empenhados nas discussões e propostas pedagógicas à prá-
tica do ensino/aprendizagem através da arte/educação.
Nos anos de 2010 e 2012, contando com o importante apoio da Universidade Federal de Pernam-
buco, realizou-se, no Centro de Ciências Sociais Aplicadas, a 2ª e 3ª edições do Seminário Nacional Sesc
de Arte/Educação, homenageando, respectivamente, Marco Camarotti e Jomard Muniz de Britto. Os temas
dessas duas edições, “Arte-Educação: História e Práxis Pedagógica” e “Ação Cultural: Arte, Educação e Po-
lítica” deram prosseguimento às discussões que perpassam o pensamento e a prática educacional de arte/
educadores e artistas que anseiam por uma pedagogia da arte mais criativa e eficiente.
Em 2014, a intensificação e ampliação dos debates, intercâmbios e pesquisas, além da participação
de nomes importantes para a arte/educação nacional e internacional, consolidaram a natureza pedagógica,
científica e formativa desta realização, que doravante configura-se como o IV Congresso Internacional Sesc
PE e UFPE de Arte/Educação. As discussões giraram em torno do tema “Ecos de Resistências na América
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Latina” e foram eleitos dois homenageados, o professor, ator e diretor de teatro Carlos Varella, in memoriam,
e o professor, escultor, pintor, desenhista, gravurista e ceramista Abelardo da Hora, personalidades marcan-
tes da Arte/Educação local, brasileira e mundial. Em 2016, na 5ª edição do congresso, com o tema “Vida
Artista: Diálogos entre Arte/Educação e Filosofia”, prestamos homenagem aos 80 anos de vida de Ana Mae
Barbosa e seus 60 anos de magistério.
No presente ano, o SESC PE e a Universidade Federal de Pernambuco, promovem o VI Congresso
Internacional Sesc de Arte/Educação, no período de 23 a 27 de julho de 2018, no campus da UFPE. Nesta
edição prestaremos uma justa homenagem às arte/educadoras Ingrid Dormien Koudela e Rosa Vascon-
cellos, pela potente e importante atuação de ambas no campo da arte/educação. A primeira pelos anos de
dedicação à pesquisa e sua inestimável contribuição para a história do teatro, no Brasil e no mundo. A se-
gunda pela preciosa e histórica contribuição aos cursos de Artes da Universidade Federal de Pernambuco
e na reestruturação do currículo do curso de Educação Artística, além do seu trabalho sóciocultural com
crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. O tema “Utopias Pedagógicas em Artes como
Gesto de (Re) Existência” norteará os diálogos interdisciplinares e dará prosseguimento às discussões que
visam aprofundar o pensamento e a prática educacional de mestres, doutores, professores, estudantes e ar-
tistas. Realizaremos, também, lançamentos de livros, apresentação de comunicações orais e artísticas, mesas
temáticas com renomados palestrantes e conferencistas, além de 25 cursos voltados para a atualização e
ampliação dos processos de ensino/aprendizagem de arte/educadores, estudantes e pesquisadores da área.
A realização bienal do Congresso Internacional Sesc de Arte/Educação reafirma e ressalta a presen-
ça marcante do Sesc, entre as Instituições que mais contribuem para promoção e disseminação da educação
artística e cultural deste país. Notadamente, no momento atual, em que nos deparamos com a necessidade
urgente de reflexões sobre educação, ética, identidade cultural e liberdade de expressão política e artística,
a arte/educação se apresenta como ferramenta indispensável para trabalhar os questionamentos e respostas
que permeiam tantas vertentes intelectuais e práticas pedagógicas que proliferam, em busca de uma educa-
ção mais lúcida, lúdica e de maior alcance.
Os caminhos para esta educação que se quer mais inteligente e criativa perpassam, inevitavelmente,
pelas trilhas da arte/educação e dos saberes, que se cruzam e proliferam em diálogos interdisciplinares, entre
as ideias e os afazeres dos profissionais que trabalham tendo por guia a prática pedagógica da arte/educação.
O VI Congresso Internacional Sesc de Arte/Educação, além de reafirmar o compromisso do SESC com a
educação e a cultura, investe nas propostas pedagógicas voltadas para uma educação de qualidade e de pes-
soas que desenvolvam seus trabalhos sob a égide da arte/educação, buscando fortalecer, preservar, propor e
instigar novos rumos e olhares sobre a educação contemporânea.
O nosso pensamento de aprendizagem da arte está fundament do na ideia da Abordagem Trian-
gular, conceito-chave na obra de Ana Mae Barbosa4, que compreende a articulação de três campos concei-
tuais: o apreciar crítico, mobilizando a percepção e a análise formal e simbólica no ato de ler; o conhecer
e refletir, por meio da contextualização conceitual, histórica, cultural e estética da produção em arte, e o
fazer artístico, oportunizando crianças, jovens e adultos na experimentação dos processos de criação e
procedimentos técnicos ao produzir arte e ao sistematizar os resultados das aprendizagens, como também
orientá-los nas suas intervenções artísticas.
É preciso, antes de tudo, saber se apropriar das artes, sobretudo no que se refere ao seu manejo, para
provocar no indivíduo a curiosidade e o desejo de decodificá-las, dando-lhes significado e importância para
engendrar um mundo melhor e mais justo, possibilitando, também, a construção de sua identidade cultural
pelo sentimento de pertença. Será este pertencimento em que o indivíduo é formado que lhe dará os links
com a sua realidade: criando pontes, abrindo janelas e portas que possibilitem vislumbrar um novo horizon-
te, pleno de significação, além de despertar o interesse pelo conhecer, construir e compreender.
4. BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira. Abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2010.
14
Uma nova maneira de ensinar e de aprender, pois “a inovação pedagógica implica mudanças qua-
litativas nas práticas pedagógicas e essas mudanças envolvem sempre um posicionamento crítico, explícito
ou implícito, face às práticas pedagógicas tradicionais5”.
A mudança é algo que acontece naturalmente, porém é preciso dar suporte ao indivíduo por meio
da liberdade, para que a aquisição da aprendizagem possa ser enfocada como um processo verdadeiramente
cultural. O ser humano passa a ser visto na sua totalidade, aprende a atuar dentro da sua realidade, usa e
constrói o conhecimento pelo seu potencial criativo, como enfatiza Alvin Toffler6:
A maior parte do que atualmente nos aflige como incompreensível afligiria menos se en-
carássemos com novos olhos o ritmo crescente de mudanças que faz a realidade às ve-
zes parecer um caleidoscópio enlouquecido. Pois a aceleração das mudanças não atinge
apenas indústrias ou nações. É uma força concreta que penetra fundo em nossas vidas
pessoais, nos leva a desempenhar novos papéis e nos confronta com o perigo de um mal
psicológico inédito e tremendamente perturbador. Essa nova doença pode ser chamada
de “choque do futuro”, e um conhecimento de suas fontes e sintomas ajuda a explicar mui-
tas coisas que, de outra forma, desafiam uma análise racional.
5. FINO, Carlos Nogueira. Inovação pedagógica: significado e campo (de investigação). Funchal: Uma, 2007, p.1. Disponível em: <http://www3.
uma.pt/carlosfino/publicacoes/Inovacao_Pedadogica_ Significado_%20e_Campo.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2016.
6. TOFFLER, Alvin. O choque do futuro. Trad. Eduardo Francisco Alves. 2 ed. São Paulo: Record, 1970, p.22, grifo do autor.
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/// MESA DE AFETOS
SOBRE A HOMENAGEADA -
INGRID KOUDELA
Igor de Almeida Silva7
I ngrid Dormien Koudela é pioneira em Teatro/Educação. A Universidade de São Paulo foi a pri-
meira instituição brasileira a oferecer programas de Mestrado e Doutorado específicos neste setor e a abrir
a Licenciatura em Arte Dramática, em 1974.
Introdutora do Sistema de Jogos Teatrais de Viola Spolin no Brasil, é autora de Jogos teatrais (1984);
Brecht: um jogo de aprendizagem (1991) e Texto e jogo: uma didática brechtiana (1996) que vai além de
relato e análise de experiências e suas respectivas influências, apresentando o resultado de suas pesquisas na
forma de uma metodologia que incorpora fragmentos da dramaturgia brechtiana com princípios dos jogos
teatrais.
Nascida na cidade de São Paulo (1948), seus avós paternos e maternos são oriundos de Hamburgo,
na Alemanha. Estuda no Colégio Visconde de Porto Seguro e ingressa na ECA - Escola de Comunicações e
Artes da USP - Universidade de São Paulo (1968), formando-se como Bacharel, em Crítica e Dramaturgia.
Assiste aulas com os professores Alfredo Mesquita, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Flávio Im-
pério, Jacó Guinsburg, Sábato Magaldi, Miroel Silveira, Jorge Andrade, Renata Pallottini e Alberto Guzik,
entre outros.
Exerce o ofício de crítica teatral, colaborando com as revistas Palco + Plateia e Schalom (1975-
1984). Também prestou assessoria para órgãos públicos como o INACEN e Secretaria Municipal de Cultura
da cidade de São Paulo. Em 1972, passa a dar aulas de Arte Dramática na Escola Estadual Engenheiro Fran-
cisco Prestes Maia, em São Bernardo do Campo, no Ensino Médio. A partir dessa experiência profissional,
nasce sua grande paixão pelo Teatro/Educação.
Licenciada em Professorado em Arte Dramática (1974), leciona na Educação Básica ao longo de 15
anos, em escolas públicas e privadas. Ingressa como docente na USP (1975), ministrando a disciplina Teatro
Aplicado à Educação, ofertada dentro da recém-criada Licenciatura em Arte Dramática, por Maria Alice
Vergueiro, docente do então Departamento de Teatro da ECA/USP. Nessa época, assiste aulas da Escolinha
de Arte de São Paulo, onde conhece Ana Mae Barbosa, Madalena Freire e Joana Lopes. Segue também em
São Paulo os cursos oferecidos por Fanny Abramovic.
7. Professor da graduação em Teatro (Licenciatura) do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernam-
buco (UFPE). Doutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (2014), com período sanduíche na Université de la Sorbonne Nouvelle
- Paris 3. Mestre em Letras (2007) e licenciado em Educação Artística (2003), com habilitação em Artes Cênicas, pela UFPE. É co-organizador das
publicação do livro Ação cultural: arte, educação e política, em parceria com Rudimar Constâncio (Recife: SESC Pernambuco, 2014). Colaborou no
Léxico de Pedagogia do Teatro (Orgs. Ingrid Dormien Koudela e José Simões de Almeida Júnior. São Paulo: Perspectiva: SP Escola de Teatro, 2015)
com os verbetes “Cultura Popular”, “Brincadeira” e “Brincante”.
16
Conclui seu Mestrado (1982) sob a orientação de Sábato Magaldi e o Doutorado (1988), sob a orien-
tação de Jacó Guinsburg, na ECA/ USP.
Coordenadora do Curso de Especialização em Artes Cênicas – Teatro e Dança (1989- 2001) na
pós-graduação da ECA/USP, tem participado de Cursos de Especialização em Arte/Educação em várias
universidades públicas.
Docente na pós-graduação da ECA/USP, tem Bolsa de Produtividade de Pesquisa pelo CNPq, em
nível 1A. Entre seus orientandos, podemos contar Robson Corrêa de Camargo – UFG; Arão Paranaguá de
Santana – UFMA; Vicente Concilio – CEART; Igor de Almeida Silva – UFPE e Joaquim Gama – SP/Escola
de Teatro.
Tem participação ativa em congressos, através de associações nacionais e internacionais. É membro
fundador da FAEB - Federação de Arte-Educadores do Brasil e da ABRACE - Associação Brasileira de Pes-
quisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, onde cria o grupo de trabalho Pedagogia do Teatro e Teatro na
Educação, atualmente denominado Pedagogia das Artes Cênicas. Participou também de vários congressos
da IDEA International Drama/Theatre and Education Association, a partir da década de 1990.
Tradutora, teórica do teatro e estudiosa da dramaturgia alemã, publicou a obra de Viola Spolin pela
Editora Perspectiva, fornecendo amplo material para professores e artistas de teatro: Improvisação para o
teatro (1978), em parceria com Eduardo Amos; Jogos teatrais no livro do diretor (1999); Jogos teatrais. O
fichário de Viola Spolin (2001); Jogos teatrais para a sala de aula: um manual para o professor (2007).
Traduziu para a Editora Paz e Terra, nos volumes 3 e 12 do Teatro Completo de Bertolt Brecht as
seguintes peças: A decisão (1988); De nada, nada virá (1995); Decadência do egoísta Johann Fatzer (1995);
Vida de Confúcio (1995); Anibal (1995); Gosta Berling (1995); Dança da morte em Salzburgo (1995); A
padaria (1995).
Lança a coletânea de ensaios, depoimentos, entrevistas e peças teatrais de Heiner Müller, sob o título
Heiner Müller: o espanto no teatro (2003). No ano seguinte, publica o volume Büchner: na pena e na cena,
em parceria com Jacó Guinsburg, com quem divide organização, tradução, introdução e notas. Em 2016,
retoma a colaboração com Jacó Guinsburg na organização de Lessing: obras, crítica e criação.
Organizou o livro Um voo brechtiano: teoria e prática da peça didática (1992) – um projeto de en-
cenação que contou com apoio da FAPESP.
Mais recentemente foi organizadora do Léxico de Pedagogia do Teatro (2015), em parceria com
José Simões de Almeida Júnior. Esta publicação da Editora Perspectiva e SP- Escola de Teatro conta com a
colaboração de pesquisadores brasileiros e portugueses, sendo indicada para o Prêmio Jabuti, na categoria
Educação e Pedagogia (2017).
17
/// MESA DE AFETOS
SOBRE A HOMENAGEADA -
ROSA VASCONCELLOS
Everson Melquiades Araújo Silva8
8. Arte/Educador, Professor de Fundamentos da Arte/Educação e de Fundamentos do Ensino de Teatro, do Centro de Educação, da UFPE; Coor-
denador do Programa de Ensino de Arte Casa da Criatividade, do Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA); Diretor
da Escolinha de Arte do Recife; Vice-Presidente da Associação Nordestina de Arte/Educadores (ANARTE). Doutor (2010) e Mestre em Educação
(2005), pela UFPE; Graduação em Pedagogia (2000), pela UFPE; Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), da Associação Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Educação (ANPED), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), do Centro de Estudo e Pesquisa Paulo Freire,
do Coletivo Momos, do Grupo de Pesquisa em Formação de Professores, Arte e Inclusão (GEFAI/CNPq) e do Grupo de Estudo em Artes e Educação
(GESTARTES/CNPq)
18
/// PARTE 1-
PALESTRAS
19
UTOPIAS PEDAGÓGICAS
EM ARTE COMO GESTO
DE (RE)EXISTÊNCIA
Danilo Santos de Miranda9
A bordar o tema da educação permite entradas múltiplas. Pode-se propor uma leitura direcio-
nada à gestão desse campo, o que implicaria considerações principalmente políticas. Cabe, como estratégia
igualmente legítima, uma aproximação metodológica, fundamental para incorporar à esfera educacional as
mutações contemporâneas. Mais constante e, por vezes, tumultuada, é a abordagem conteudística, que bus-
ca incorporar ou excluir do discurso da educação as narrativas construídas por diferentes agentes sociais.
O cenário ganha conotações específicas quando se pensa nas aproximações entre os campos da edu-
cação e da arte. Nesse caso, além das possibilidades acima elencadas, vale a pena enfatizar uma perspectiva
que mobiliza aquilo que há de mais essencial no empenho educativo: sua capacidade de engendrar novas
possibilidades, novas formas de pensar – novos mundos, enfim. Daí a pertinência da expressão “utopias
pedagógicas”, tema deste encontro.
Evidentemente, tal expectativa deveria estar inscrita em qualquer iniciativa nessa esfera, muito em-
bora saibamos que a magnitude das dificuldades em circunstâncias como a brasileira faz com que, por vezes,
as demandas emergenciais assumam o lugar que deveria ser ocupado por pautas importantes. Diante dessa
realidade, parece residir na interface com a arte um território mais aberto a experimentações educacionais.
As observações que pretendo fazer foram elaboradas a partir do lugar específico onde me situo e de
onde analiso o panorama sociocultural. Sou gestor, há mais de três décadas, de uma instituição de cunho
educativo que atua em áreas diversas, incluindo as artes e o esporte, a saúde e a alimentação, o turismo e a
cultura digital, além de programas para faixas etárias específicas. Não sou, portanto, especializado em arte-
-educação. Trabalhamos com profissionais especialistas – pessoas fundamentais para o aprofundamento de
questões plurais – mas tentamos manter um olhar transversal, enfatizando a conexão entre os saberes e a
transversalidade de valores como cidadania, diversidade e sustentabilidade.
A ênfase no caráter transversal das abordagens, presente em nosso cotidiano de trabalho, caracteriza,
portanto, a leitura que faço das relações entre arte e educação. Afinal, o que a aproximação educação-arte nos
9. Especialista em ação cultural, é diretor regional do Sesc - Serviço Social do Comércio no Estado de São Paulo. Formado em Filosofia e Ciências
Sociais, realizou estudos complementares de especialização na Pontifícia Universidade Católica e na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e no
IMEDE - Management Development Institute, de Lausanne, Suíça. Foi Presidente do Comitê Diretor do Fórum Cultural Mundial em 2004 e presi-
dente do comissariado brasileiro do Ano da França no Brasil em 2009.
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convida a pensar é o compromisso com uma formação integral dos seres humanos, para além de encaixes
pragmáticos que advogam educar “para o mercado de trabalho”. Caberia, assim, num primeiro movimento,
mencionar brevemente episódios em que a ideia de formação integral norteou as práticas educativas, fora e
dentro do país.
A tradição germânica em educação, cujo expoente mais relevante notabilizou-se por meio da ex-
pressão Bildung, experimentara expansão análoga. A responsabilidade cívica era o eixo em torno do qual
girava a formação obtida por meio da reflexão pessoal e da capacidade crítica. Trata-se de um modo de
enxergar a educação que se corrompeu posteriormente em mero aprendizado de técnicas, em obediência a
regras exteriores e em excessiva especialização. Não por acaso, filósofos alemães, como Adorno e Benjamin,
buscaram em seu percurso intelectual recuperar os temas clássicos da Bildung.
Uma terceira referência fundamental, oriunda da tradição judaica, foi a Toledot, marcada pela con-
vergência entre vivência religiosa e formação humana. As relações entre mestres e discípulos, cujas perguntas
deveriam ser valorizadas, dariam as pistas para um desenvolvimento que repercutiria no próprio tecido social.
Peculiaridades brasileiras
País pleno de paradoxos, o Brasil viveu e vive permanentemente em estado de crise educacional.
Ora tratada como privilégio de poucos, ora universalizada de forma precária, a educação impõe à nação de-
safios que mal começamos a equacionar. Entretanto, importantes pensamentos desenvolveram-se por aqui,
repercutindo não apenas internamente, mas inclusive cruzando as fronteiras. Neste momento, vale sugerir
que essas iniciativas foram tanto mais relevantes quanto mais propuseram a construção de novos horizontes.
Uma dessas iniciativas esteve enraizada na circunstância cultural do modernismo, cujo primeiro
movimento teve como cenário a cidade de São Paulo, para em seguida se espalhar para outras localidades
brasileiras. Os artistas modernos reuniram-se em torno de algumas demandas comuns, como a recusa das
arbitrárias regras estéticas do academicismo, a experimentação formal inspirada pelas vanguardas europeias
21
e, principalmente, o interesse pela construção de um imaginário simbólico que se alimentasse de aspectos
ditos “brasileiros”: os modos de se expressar e expressar o mundo, as referências a ambientes naturais e ur-
banos nacionais, o enfrentamento das ambivalências características de um país de modernização periférica
e tardia, entre outros.
Tratava-se de um projeto de construção simbólica da nação, que até então era tributária de modelos
europeus importados de modo acrítico. Para que esse projeto pudesse ser desenvolvido, o campo da arte
deveria se pensar de modo expandido: como cultura. Interfaces negligenciadas até a década de 1920 passa-
ram a ser valorizadas, como aquelas estabelecidas com as tradições culturais que compuseram a população
brasileira e com estratégias educativas que fossem capazes de dar capilaridade a essas reflexões, de modo que
elas não ficassem circunscritas apenas aos artistas e seus interlocutores diretos.
Nesse registro, uma figura desempenhou papel paradigmático: Mario de Andrade, poeta, musicó-
logo, crítico, agitador cultural, folclorista e gestor da cultura. Funcionando ora como elemento aglutinador
de ideias e percepções modernistas, ora como inspirado criador de obras fundamentais – dentre as quais
Macunaíma merece lugar de destaque –, ora como precursor da gestão cultural no país, Mario propôs apro-
ximações entre arte e educação cujos desdobramentos não devem ser subestimados.
Seu interesse pela expansão da ação cultural levou-o a caminhos emblemáticos e complementares:
o aprofundamento da pesquisa em torno das identidades culturais brasileiras, cujo ápice foram as célebres
Missões Folclóricas pelo Norte e Nordeste brasileiros, em 1938; e seu trabalho como gestor cultural: em
1935, ele se torna diretor do recém-criado Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal
de São Paulo, aproximando as áreas de cultura e educação. Além da ênfase nas políticas de patrimônio ima-
terial, nas bibliotecas, no cinema e na radiodifusão educativos, é justo lembrar a experiência de Mario na
proposição dos parques infantis, fazendo convergir educação, recreação e cultura popular.
Freire lidou com um contexto bastante distinto da metrópole paulistana de Mario de Andrade: os
rincões do nordeste brasileiro, cenários marcados por opressão, desigualdade e precariedade social. Sua
ação, que se tornou exemplar dentro e fora do país, partia da convicção sobre a importância da alfabetização
como possibilidade dos indivíduos escreverem suas próprias histórias.
Salientando a necessidade de ler não apenas as frases e textos espalhados pelas cartilhas mas, princi-
palmente, decifrar o mundo, Freire fez a crítica do modelo predominante de educação, que ele denominava
“bancário”. Contra esse tipo de ação educativa, marcada pelo “depósito” das informações nos alunos como
se eles fossem recipientes vazios, o educador elaborou práticas da alfabetização de adultos como intervenção
real no mundo, a partir da vivência dos educandos.
Nesses contextos, aprender a ler adquiria, em sua essência, uma dimensão cultural, pois o ato de ler
e escrever tornava-se indissociável da escolha coletiva das palavras e frases que norteariam o aprendizado,
privilegiando nesse processo de seleção as expressões que tivessem um sentido efetivo naquelas circunstân-
cias. O que estava em jogo era uma ampliação da acepção de educação que sublinhava o estar no mundo e,
portanto, a vocação política do ser humano.
Por caminhos enviesados, Paulo Freire se avizinhava da longínqua pretensão da Paideia, mas em
sinal invertido: se aos gregos era facultado, por meio da educação, a possibilidade de construir a pólis, aos
indivíduos alfabetizados por Freire caberia desconstruir o mundo de desigualdade que o cercava.
22
Brevemente descritas, as referências aqui reunidas tentam estabelecer uma ligação entre dois vetores:
de um lado, os esforços educativos marcados pela extroversão, que se espalharam pela vida cotidiana mais
ampla; por outro, as conexões entre arte e educação, que apontam a mesma tendência ao transbordamento.
Após a descrição desse panorama, o intuito é propor reflexões direcionadas ao fenômeno artístico
como possível catalizador de processos educativos, baseando-se na convicção de que tais elucubrações ga-
nharão maior sentido quando apresentadas após o reconhecimento do terreno no qual elas irão se desenvol-
ver e com o qual acabam por dialogar.
Talvez pudéssemos começar tal exercício justamente por aquilo que as artes, ao serem tomadas
por seu viés educativo, não fazem, ou não deveriam se ocupar de fazer: ensinar. Há nisso um interessante
paradoxo a nos cobrar reflexão, e que parece sugerir que quanto mais uma manifestação artística pretende
ensinar, menos educativa ela será. Isso se explicaria pelo fato de que a força e a efetividade das elaborações
estéticas residem numa espécie de negatividade frente à lógica das finalidades e, também, ao didatismo.
A obra de arte enquanto tal reivindica autonomia, afirmando-se como construto cujo valor deve ser
procurado nele próprio, tanto em seus encadeamentos internos como nas relações que ensaia com aspectos
da realidade – sem que para isso precise forjar mensagens instrutivas, ao contrário. É a polissemia e a ambi-
guidade da obra artística que convidam o fruidor a se engajar em aventuras sensíveis, afetivas e intelectuais
destituídas de metas preestabelecidas. Portanto, abertas ao devir e à imprevisibilidade.
Essa constatação, em contrapartida, nos libera para localizar a vocação educativa da arte menos di-
retamente em suas formas, temas e intenções do que nas experiências que ela pode suscitar. Isso nos levaria
a conceber as interações com a arte como experiências potencialmente educativas, no sentido dos processos
perceptivos, interpretativos e recriadores que ela pode desencadear. Note-se que, ao proceder assim, esta-
mos propondo um deslocamento de foco: do objeto e de suas propriedades constitutivas para as formas de
recepção, apropriação e ressignificação pelos diferentes públicos. É nessa instância que, a nosso ver, a arte
pode levar a termo o seu caráter educativo.
Aqui, a pedra de toque é o estado de atenção solicitado e ensejado pela experiência com arte. Pode-se
aventar que as obras, mais do que peças de tal ou qual matéria expressiva, representam convites à atenção.
Dessa disponibilidade aos estímulos delicadamente arranjados pelos artistas desdobra-se a possibilidade de
afetação dos nossos sentidos e, ligado a isso, a oportunidade de forjarmos leituras significativas e significan-
tes – criativas, portanto –, na medida em que a fruição de uma obra solicita a mobilização de nossas refe-
rências, lembranças, ideias e desejos. Em outras palavras, ela nos cobra certa disposição para um trabalho
igualmente inventivo.
A esse respeito, o semiólogo francês Roland Barthes dirá que, ao se relacionar com uma obra, o
público a ela articula “outras ideias, outras imagens, outras significações”. Logo, o fruidor não se limita a
decodificar os estímulos presentes no objeto cultural de sua atenção. Mais do que isso, ele “sobrecodifica”
esse objeto. Portanto, não decifra a obra, mas produz e agrega sensações, ideias e visões a partir dela e sobre
ela, deixando-se atravessar por essa massa de sentidos. Barthes vai ainda mais longe quanto ao estatuto do
fruidor, sugerindo que “ele é essa travessia”.
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A cada vez que fazemos (e personificamos) essas travessias alargamos o nosso campo perceptivo e
a nossa compreensão das coisas, cultivando nossa subjetividade e adensando a relação que mantemos não
apenas com as manifestações artísticas, mas também com a realidade em que estamos imersos. Tal seria o
caráter educativo da experiência com arte: proporcionar deslocamentos pelas trilhas sensíveis abertas pelos
artistas através de suas criações, ao passo que nesses deslocamentos vamos compondo a nossa própria aven-
tura, sempre com a possibilidade de novas descobertas. Ao fazê-lo, nos educamos.
Destarte, não é possível conceber a dimensão educativa da arte de modo desvinculado da ação cul-
tural e das suas respectivas práticas de animação e mediação. São essas linhas de atuação que, respaldadas
por políticas culturais e institucionais, buscam viabilizar e garantir os direitos culturais dos cidadãos. O que
pressupõe, de um lado, promover a democratização do acesso aos bens artístico-culturais e, de outro, esti-
mular a apropriação e o uso das linguagens e ferramentas artísticas pelos públicos, com o fito de que eles
também se vejam como produtores culturais.
Tão importante quanto as ações de difusão e mediação desenvolvidas pelas instituições culturais é a
presença das linguagens artísticas nos currículos dos diferentes ciclos do ensino formal. Aliás, não se pode
conceber uma coisa sem a outra, na medida em que é a complementaridade entre as instâncias formal, não
formal e informal da educação que pode promover uma formação realmente significativa e consistente.
Falamos, é bom que se diga, não apenas de uma formação voltada para as artes, mas também para uma re-
lação mais complexa com os demais campos do saber. Há pesquisas, inclusive, que demonstram o quanto a
relação assídua com as artes contribui para o desenvolvimento da cognição do indivíduo e, por conseguinte,
de sua capacidade de aprendizagem.
A ação do Sesc
O projeto socioeducativo desenvolvido pelo Sesc São Paulo tem na compreensão do papel central
da arte o norte de boa parte de seus programas. Nesse sentido, seus centros culturais e desportivos – as
Unidades Operacionais (UOs)10 – são idealizados, projetados e geridos como locais propícios ao contato e
à interação com as diversas linguagens e manifestações da arte, com especial atenção à busca por transpor
barreiras (físicas e simbólicas) entre os trabalhos artísticos e os públicos11.
Dessa forma, a mediação praticada pela instituição é compreendida e exercida em termos expandidos,
envolvendo desde a arquitetura das UOs, a ambientação dos seus espaços e a comunicação visual, até a pro-
gramação cultural em si, a conformação das respectivas atividades e as estratégias assumidamente educativas
10. Mais informações sobre as Unidades Operacionais do Sesc São Paulo podem ser encontradas em: <https://bit.ly/2rez0jO>. Acesso em: 02
mai. 2018.
11. As Realizações do Sesc São Paulo em 2017 podem ser conferidas em: <https://bit.ly/2rfif91>. Acesso em: 02 mai. 2018.
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a elas atreladas – que incluem abordagens conduzidas por educadores e materiais com vocação pedagógico-
-mediativa. Entre eles, destaca-se o recente lançamento de Trocas e Olhares – Acervo Sesc de Arte Brasileira,
material educativo que subsidia o Programa de Formação de Professores em Artes Visuais, do Sesc São Paulo.
Nessa mesma linha, entende-se a acessibilidade como aspecto crucial da ação e que, além disso,
exige um entendimento alargado acerca das demandas e iniciativas que ela implica. De um lado, trata-se
de fazer dos centros culturais e desportivos do Sesc São Paulo lugares abertos e de fácil chegada aos mais
diversos públicos. Para isso, procura-se priorizar locais servidos por diferentes modais do transporte pú-
blico coletivo, além de tornar suas entradas convidativas e permeáveis a todos, através de uma política de
portas abertas. De outro lado, confere-se centralidade à noção de acessibilidade atitudinal, que transcende
as medidas de adaptação física dos espaços para o uso das pessoas com deficiência – sendo esta uma frente
imprescindível da ação. Nessa chave ampliada, além de buscar contemplar as variadas formas de acesso aos
espaços e aos conteúdos culturais, há um esforço para que todo o corpo funcional da instituição se imbua
do acolhimento dos diversos perfis de público, com base numa abordagem eminentemente inclusiva, a ser
protagonizada por todos os agentes envolvidos.
Além desses critérios – que representam princípios basilares do trabalho realizado nas UOs –, seria
elucidativo lançar luz, aqui, sobre algumas frentes específicas da ampla ação sociocultural proposta pelo Sesc
São Paulo, a começar por seus Espaços de Tecnologias e Artes (ETAs). Pensados, nos anos recentes, para
subsidiar a curiosidade e a inventividade dos públicos no campo artístico, os ETAs condizem a uma revisão
e redirecionamento do que foi o programa Internet Livre, cujo objetivo inicial era o de promover a inclusão
tecnológica, com foco nos dispositivos digitais. Reestruturado, o programa passou a trabalhar a partir de
uma concepção mais abrangente e complexa de tecnologia, contemplando tanto o universo digital como as
ferramentas analógicas, com vistas a tornar acessível e, ademais, fomentar a experimentação artística por
meio de atividades formativas e de fruição12.
No que tange aos programas dedicados à difusão cultural propriamente dita, a atuação do Sesc São
Paulo assume um caráter notadamente “tentacular”. Tal imagem corresponde à permanente expansão do seu
conjunto de ações em diferentes cidades e regiões do Estado. Isto se dá tanto (1) através da rede instalada
de centros culturais e desportivos no litoral e interior de São Paulo, como também (2) por meio de circu-
lações que adotam as ruas, praças e parques de cidades onde o Sesc ainda não se encontra instalado como
plataforma de atividades culturais. Complementa essas estratégias (3) a presença digital da programação na
internet, para muito além da divulgação.
No primeiro caso, além das programações desenvolvidas pelas UOs do interior e litoral, vale desta-
car o programa de itinerâncias de mostras e festivais, que contribuem para a disseminação de repertórios e
modos de fazer que, muitas vezes, acabam concentrados e circunscritos aos grandes centros. Já no caso das
circulações, cumpre chamar atenção para o Circuito Sesc de Artes, que anualmente ocupa os espaços públi-
cos de cidades atendidas pelo Sesc São Paulo através dos seus polos – as próprias UOs –, proporcionando o
acesso a atividades em diversas linguagens e formatos artísticos13. Quanto à presença digital, que conta com
um extenso leque de ações e serviços afeitos à ampliação do alcance do trabalho realizado pela instituição,
pode-se ressaltar a difusão de atividades presenciais por meio do uso de ferramentas de transmissão ao vivo
(streaming).
Os programas acima citados distinguem-se pela amplitude de seus espectros e alcance, destinando-
-se ao público em geral. Já entre os programas delineados de acordo com marcadores etários, mostra-se útil
12. Mais informações sobre os Espaços de Tecnologias e Artes podem ser encontradas em: <https://bit.ly/2rkpMTw>. Acesso em: 02 mai. 2018.
13. Mais informações sobre o Circuito Sesc de Artes podem ser encontradas em: <https://bit.ly/2rhkXec>. Acesso em: 02 mai. 2018.
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a menção ao Curumim. Com trinta anos de existência, e atendendo crianças com idade entre 7 e 12 anos,
o programa conta com uma gama de atividades socioeducativas, com foco na formação cidadã. Dentre as
abordagens desenvolvidas pelos educadores – os instrutores de atividades infanto-juvenis –, estão as vivên-
cias em música, literatura, dança e artes visuais. Através delas, as crianças não apenas são sensibilizadas por
meio de diferentes estímulos e composições poéticas, como também encontram a oportunidade de travar
contato com vocabulários expressivos suscetíveis de serem apropriados e usados por elas em seus próprios
exercícios de criação14.
A expertise na lida com a difusão e a mediação dos bens e práticas culturais resulta de um trabalho de
longo prazo, que em breve completará 72 anos. Ao longo dessas sete décadas, o Sesc São Paulo implementou
e cultivou diferentes perspectivas de ação sociocultural, sempre procurando interagir de maneira propositiva
com as circunstâncias históricas. Tal acúmulo de experiências no âmbito da gestão e ação socioculturais faz do
Sesc São Paulo, além de uma organização habilitada a proporcionar oportunidades para os trabalhadores do
comércio de bens, serviços e turismo, seus dependentes e a comunidade em geral, um laboratório onde se gesta
todo um instrumental relativo aos modos de fazer no domínio da gestão e mediação culturais.
Dessa percepção surge o Centro de Pesquisa e Formação – CPF, Unidade Operacional especializada
na abordagem dos diversos saberes inerentes à organização do campo cultural15. Tal abordagem se realiza a
partir de três tipos de aproximação: referências conceituais, ferramentas metodológicas e experiências práticas.
Para tanto, o CPF estrutura-se em três núcleos, sendo um dedicado à elaboração e acompanhamento de pes-
quisas, um segundo núcleo de formação, que propõe cursos de curta, média e longa durações, e um núcleo de
difusão, no qual se destacam uma revista eletrônica e um portal de conteúdos sobre o campo cultural.
O CPF é apenas um dos testemunhos do compromisso do Sesc com uma noção expandida de edu-
cação, para a qual colabora em grande medida o exemplo da arte e o trabalho dos artistas. O crítico de arte
Mario Pedrosa afirmou, na década de 1960, que “a arte é o exercício experimental da liberdade”. Daí a sua
possibilidade de criar mundos possíveis, para além daqueles que o cotidiano nos sugere. E, desejando bom
trabalho para a continuidade do congresso, deixo vocês com uma reflexão: “A arte não é um espelho para
refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo” (Vladimir Maiakovski)
14. Mais informações sobre as ações do Sesc São Paulo voltadas a crianças, adolescentes e jovens podem ser encontradas em: <https://bit.ly/2rijPWO>.
Acesso em: 02 mai. 2018.
15.Mais informações sobre o Centro de Pesquisa e Formação podem ser encontradas em: <https://bit.ly/1IhiFLz>. Acesso em: 02 mai. 2018.
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O LUGAR DO ENSINO DO TEATRO
COMO VONTADE DE ATUAÇÃO
João Denys Araújo Leite16
D esejo iniciar declarando meu amor imenso ao teatro e a minha prática de artista ensinador, de
atuador nas casas de espetáculo e na sala de aula/ensaio. É nesse lugar que me sinto feliz e cheio de Alegria-
mor. Como se fosse um longínquo Wilhelm Meister (Goethe, 2016), passo em revista uma parte relevante da
minha formação de professor, sem distinção entre o ensinar e o aprender, vendo em perspectiva meus anos de
aprendizado, reinventando minha existência. Aprendo com tudo, com todos, e creio na formação permanente.
O tempo e o lugar da escola representam uma pequena parcela da construção de saberes. O palco do mundo,
o meio ambiente, os seres viventes, o universo perto e distante, da arte e das estrelas, nos reconstroem a cada
instante, a cada encontro, a cada diálogo. Neste instante quero dizer o mesmo que o imperador Adriano: “O
verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós
mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas” (YOURCENAR, s.d., p. 33).
Para testemunhar minha formação, escolhi três vivências dentro e fora do âmbito da universidade,
sem distinção de quem ensina e aprende, mas momentos de transformação da vida, da existência, por meio
do teatro. São elas, em ordem cronológica, O círculo da vida, a Oficina do Tijolo e o Teatro de Arte da Estrela.
O Círculo da Vida
O projeto O Círculo da Vida surgiu em 1991, a partir de uma proposta de Armia Escobar Duarte,
diretora Cultural da Fundação Centro Educativo de Comunicação Social do Nordeste – Cecosne. Consistiu
na montagem de um espetáculo com jovens de comunidades de baixa renda que participavam dos progra-
mas educativos da Universidade Popular Dom Hélder Câmara, órgão do Cecosne.
16. Dramaturgo, encenador, ator, cenógrafo, figurinista, maquiador e iluminador. É professor e pesquisador do Departamento de Teoria da Arte e
Expressão Artística, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Possui graduação em Comunicação Visual pela UFPE (1981) e mestrado em
Teoria da Literatura pela UFPE (2000). Tem publicada, a Trilogia do Seridó, que consta das peças Deus danado (1993), Flores D América (2005) e A
pedra do navio (1979), em edições separadas. Seu foco de pesquisa no último decênio tem sido a dramaturgia de Joaquim Cardozo e a dramaturgia
de Hermilo Borba Filho. Atualmente desenvolve pesquisa em Processos de criação dramatúrgica e Composição de textos teatrais.
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A resistência das populações latino-americanas, a perda de identidade dos nossos nativos e o
direito negado ao espaço vital foram os temas que justificavam o evento. O debate não se restringiu à pro-
blemática dos povos indígenas da América, mas se estendeu aos afrodescendentes, aos marginalizados do
nosso tempo: os desterritorializados, os toxicômonos, as criaturas com transtorno mental, pessoas com
deficiência física, os portadores de HIV, os ex-presidiários e todos os impossibilitados de existir digna-
mente no espaço social. Nada mais oportuno do que criar um espetáculo que ressignificasse a formação
sociocultural do povo brasileiro, mostrando por meio da arte, um ponto de vista em consonância com o
que esses grupos europeus debatiam.
Em busca de uma educação integral, a minha pesquisa alicerçou-se nos estudos de Richard Courtney
(1980), Viola Spolin (1982), Maria Helena Kühner (1975) e Augusto Boal (1977, 1979, 1988). Como o traba-
lho se desenvolveu com um grupo de classe social oprimida e se encetou um diálogo horizontal, nutrido pelo
amor, pela humildade, pelo espírito crítico e pela confiança recíproca, o caminhar do projeto também se nor-
teou pelo pensamento de Paulo Freire (1982,1987), numa prática que se manifestou em liberdade.
Procurei durante doze meses propiciar o surgimento dessa liberdade nos adolescentes, fazendo-os
responsáveis no domínio de suas realidades, descobrindo junto com eles uma verdade e um conhecimento
que brotou, pouco a pouco, de seus corpos em ação.
Todos os gestos dos jovens estavam prenhe de significados. Cada movimento foi considerado e
supervalorizado, assim como qualquer palavra pronunciada. Os palavrões serviam para um extenso debate
sobre amor e sexo, acentuando a importância destes assuntos para a vida do ser humano.
A capoeira quebrava qualquer bloqueio à exposição corporal do elenco. Reunia, com suas caracte-
rísticas de luta e dança de resistência de um povo, toda uma gama de significados para a equipe. Elegemos,
portanto, a capoeira para ser a linguagem mestra, o fio condutor do espetáculo. Fragmentamos a luta/dança
em partículas de gestos e movimentos. Cada golpe foi desmembrado lentamente: a rasteira, o aú, o macaco,
a meia-lua-de-compasso, rabo-de-arraia, o esporão, a cabeçada. Estes pequenos núcleos de movimento,
corporificaram-se como o alfabeto e a partitura da encenação.
De teatro, quase nada a ensinar e sim possibilitar o seu afloramento consciente através do jogo. Kou-
dela confirma esta atitude quando diz que
o teatro, enquanto proposta de educação, trabalha com o potencial que todas as pessoas possuem,
transformando esse recurso natural em um processo consciente de expressão e comunicação. A
representação ativa e integra processos individuais, possibilitando a ampliação do conhecimento
da realidade (KOUDELA, 1998, p. 78).
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Após um ano, o espetáculo estava pronto. Em setenta minutos, mostrávamos, simbolicamente, o
percurso de um povo sobre o mundo. Da terra se organizando geologicamente ao surgimento dos seres
vivos. Do nascimento do ser humano à sua procriação e formação cultural em liberdade. Da chegada dos
europeus à perda da identidade e a escravidão. Das lutas nos quilombos à possível construção utópica de um
mundo novo, onde se luta capoeira com o planeta azul.
Esses rituais podiam ser fruídos, porém, o mais contundente, no entanto, era impossível de se re-
produzir: o processo de construção do conhecimento. A formação de um outro código, onde o verbo não
tem a importância e o status que goza na escola e nos meios acadêmicos. Nos saltos, a definição de linhas
retas, interrompidas e sinuosas. Na mímesis dos seres vivos, reconheceram a geografia e as ciências naturais.
Os movimentos, construindo ângulos retos, diâmetros e raios. Medindo cada parte do corpo, se iniciaram
no aprendizado das proporções, dos limites e das mensurações. Uma outra geometria dos saberes em for-
mação: deles e da minha formação mais especializada em gente e arte no próprio ato de ensinar experimen-
tando e apreendendo o mundo e o amor à existência em luta. Ao produzir uma cena da criação a partir da
pintura de Michelangelo, com um Adão negro e um criador menino, conheceram um pouco da história da
arte da Europa que reconheceram, in loco, na Capela Sistina, em Roma. Cortando materiais diversos, pin-
tando, colando, moldando, executaram o cenário, o figurino, as máscaras, os objetos de cena e os adereços
do espetáculo. Reproduzindo as pinturas corporais de nossas nações indígenas, tentaram recuperar uma
identidade: a identidade de cidadãos pensantes, numa pobreza rica de criatividade e vigor.
A viagem à Itália por quarenta dias culminou o processo. De Palermo, na Sicilia, a Gressoney-Saint-Jean,
no Valle d’Aosta, foram mais de vinte cidades e espetáculos.
Os albergues e hotéis, as famílias que os abrigavam, o excesso de zelo nunca recebido, o idioma
novo, a nova geografia adensavam a formação do professor-artista e dos meninos-artistas. As entrevistas
e os debates nas escolas, o intercâmbio de experiências com pessoas com necessidades especiais, com ex-
-toxicômanos, com imigrantes africanos e asiáticos; a constatação de outros problemas sociais, o terror da
máfia, o contato com outros adolescentes com dores e marcas tão cruéis quanto as que conheciam no Brasil:
refiro-me ao encontro da equipe com um grupo de meninos e meninas da Croácia que, fugindo das agru-
ras da guerra, mostravam seu canto e sua dança em Castiglione Messer Marino. O feedback realizou-se de
imediato por meio do canto e da dança. O que havia de insólito neste encontro nas montanhas da região do
Abruzzo, entre os tristes croatas e os alegres brasileiros de Vila de Sant’Ana/Olinda, Torre/Santa Luzia, Casa
Amarela e Camaragibe?
Esses corpos refeitos, quando de volta para casa, trabalhando com as mãos, amando e construindo
novas ordenações e projetos de paz e conhecimento são a existência e a resistência de artistas-cidadãos-
-professores-aprendizes em atuação. Essa dinâmica encontra no discurso de Galileu sua perfeita economia:
Eu poderia escrever na língua do povo, para muitos, em vez de escrever em latim, para poucos.
Para as novas ideias nós precisamos de gente que trabalhe com as mãos. Quem, senão eles, quer
saber a causa das coisas? Os que só veem o pão na mesa não querem saber como ele foi assado;
essa canalha gosta mais de agradecer a Deus do que ao padeiro. Já os que fazem o pão compreen-
derão que nada se move que não seja movido (BRECHT, 1977, p. 161).
29
A ideia surgiu de uma reflexão sobre uma obra teatral, constituída de apenas dez falas, escrita em
1981 pelo dramaturgo alemão Heiner Müller, intitulada Herzstück, Peça coração (MÜLLER, 1993, p 141) .
Os primeiros experimentos foram realizados no Circuito Pernambucano de Artes Cênicas, durante o segun-
do semestre de 2001.
Este trabalho foi, na verdade, o passo inicial na busca de uma metodologia do ensino de treina-
mento e atuação e também de um caminho mais integral de abordar uma obra teatral, dando-lhe corpo e
colocando-a em cena.
A metodologia, em sua forma embrionária, foi testada com alguns grupos, como por exemplo, para
uma equipe de médicos e psicodramatistas, no Recife; com pessoas de faixa etária heterogênea, com experi-
ência ou não em teatro, nas cidades pernambucanas de Belo Jardim, Camaragibe e Palmares, com resultados
bastante positivos.
O tijolo maciço é a peça fundante ou o coração desta Oficina. Ele é, por sua banalidade e simplicidade,
um precioso produto da cultura humana, partícula das edificações, célula do espaço construtivo que se desdo-
bra no processo criativo da Oficina. Nela, o tijolo assume funções tanto objetivas quanto subjetivas. Enquanto
partícula objetiva, o tijolo é um equipamento para treinar o corpo do ator no que diz respeito à resistência
física, à respiração, ao equilíbrio, à tensão, à concentração, à energia, à elasticidade, à força, à segurança, à con-
fiança individual e grupal. Como partícula subjetiva, o tijolo é transfigurado em células da voz, do texto e do
pensamento, servindo de metáfora de letras, sílabas, frases e orações; de objetos cenográficos; de delimitadores
da ação e do espaço cênicos; de personagens e partes do corpo. Da relação afetiva e responsável estabelecida
com o tijolo, por meio da ambigüidade inerente ao teatro, do pensamento analógico, da imaginação simbólica,
nasce a possibilidade de compartilhar emoções e gestos; possibilidade de comunicação teatral e de relações
dramáticas concretas. Além do tijolo era necessário um outro elemento totalmente antagônico: um lençol
de solteiro: a pele do ator em metáfora viva. Os dois elementos favoreciam o trabalho do ator-professor, do
professor-artista ou de quem quisesse experimentar um ato criativo em diversos e variados sentidos.
A Oficina do Tijolo, portanto, não procura ensinar interpretação teatral, mas propiciar vivências de
atuação cênica de largo espectro nas quais todo indivíduo com disponibilidade e abertura para o teatro pos-
sa vislumbrar a capacidade de expressar-se artisticamente na relação produtiva entre atores e espectadores.
Com o passar do tempo, a Oficina do Tijolo foi sendo incorporada às minhas aulas de Interpretação
3, no curso de Teatro/Licenciatura da UFPE. O tijolo foi substituído por um bastão de bambu e o lençol
continuou com a função de pele segunda do aprendiz. Os treinamentos psicofísicos propostos neste traba-
lho tangenciam e dialogam com as proposições contemporâneas do trabalho do ator, com um teatro aberto,
épico e antropológico.
De tanto insistirem, cedi aos apelos entusiasmados de dois alunos e nos encontramos, em agosto de
2010, para misturarmos sonhos numa primeira reunião de planejamento. Nossa conversa girou em torno da
criação de um grupo de experimentação teatral permanente.
Como em toda a minha vida de artista a encenação, com raras exceções, foi um enorme processo
de aprendizagem, uma exaustiva prática pedagógica, aulas de vida, treinamentos para o teatro e para as re-
30
lações sociais, não foi difícil entender que não tínhamos respostas elaboradas para todas as questões que o
processo, inevitavelmente, levantaria. A princípio, tínhamos que escolher gente, ajuntar pessoas com sonhos
análogos, semelhantes ou paralelos. Para ser justo com muitos que almejavam trabalhar comigo, tive que
fazer uma bateria de testes e entrevistas, com o intuito de perceber um certo, e muitas vezes confuso, grau
de artisticidade naqueles que almejavam a nova aventura: observá-los em cenas de peças, ouvi-los falar de
autores teatrais, dos trechos que representavam, vê-los dançar uma cor, traduzir em ação uma fotografia,
apreciá-los cantando uma imagem pictórica, contemplar seus discursos imagéticos, linguísticos, musicais,
cênicos. A atuação dos postulantes nessa experiência seletiva permitia-me perscrutar em suas fissuras a ca-
pacidade ou sensibilidade para a arte além do saber fazer, mas do saber sentir, do saber mostrar e conectar
os fenômenos da natureza, da sociedade, do indivíduo com as linguagens da vida, da arte, da ciência. Esta
tarefa dificílima, marcada por um lado pela objetividade (a exclusão) e por outro pela intersubjetividade (a
comunhão) gerou um grupo de oito criaturas, todos aprendizes de Artes Cênicas da UFPE17.
17. O grupo foi formado pelos seguintes alunos: Ana Nogueira, Antônio Marinho, Ariele Mendes, Edwardes Machado, Evandro Lira, Fernando
Melo, Paulo André Mafra, Rafael Almeida. Evandro Lira só participou dos primeiros encontros. Fernanda Melo desistiu do grupo em 2012.
31
A primeira peça que estudamos foi Kean, de Jean-Paul Sartre (1961), adaptação feita em 1953 da
peça homônima de Alexandre Dumas, escrita em 1836. Escolhida quase ao acaso, Kean nos conduziu ao
debate sobre a condição do ator, da estrela no sentido que negamos; à discussão sobre a desrealização do
ator, tema caro ao filósofo existencialista. A peça nos transporta, no plano ficcional, para uma sociedade e
um teatro aí inserido de importância cabal para entendermos os jogos de poder e as relações de classe.
Em dias alternados fazíamos estudos dirigidos, víamos filmes e pomos em prática o treinamento
psicofísico, o conhecimento do corpus dos participantes e suas possibilidades. Esse corpus quer se dizer, em
laboratório, memória de corpos desde a mais remota lembrança. Quer se dizer limite e interdição. Quer se
dizer superação na prática criativa do equilíbrio, da força, da semantização, da tentativa de desafiar a gravi-
dade, do cômico e do doloroso. Quer produzir beleza e feiúra. Um corpo que não é só barriga e sexo, braços
e pernas, cabeça e tronco, língua e olhos, mãos e dedos. Um corpo que não é só odores e humores, sem
órgãos, como poetizou Antonin Artaud, mas um corpo sem órgãos com órgãos maleáveis, permeáveis aos
estímulos mais inusitados que a poesia do mundo e dos artistas nos fornece. Meu papel nos exercícios foi o
de provocador poético, a respeitar os pavores que certas partes do corpo provocam em cada um, bloqueando
a mente, a criatividade, a fluidez discursiva do corpo.
Com o amadurecimento do grupo, retornamos à discussão sobre arte, poesia, teatro e atuação a
partir da visitação, em vários encontros, do filme Les enfants du paradis (1945), de Marcel Carné. Momento
importante para conhecer a constelação de criadores e estéticas ali existentes. Os textos poéticos de Jacques
Prévert, além do roteiro do filme, seus poemas, suas peças curtas, estavam para ser conhecidos e explorados.
Observar e analisar a atuação de Jean-Louis Barrault, apreciar planos fílmicos, os cenários, a iluminação, as
reconstituições teatrais, o lugar do povo na casa de espetáculo à italiana do século XIX, o dentro e o fora, os
detalhes de uma obra monumental, foi experiência grupal única e decisiva para seguir estudando. Uma obra
de qualidade cria desejo de criação, vontade de criar. Excita o professor criador, esse ator-estrela que alme-
jamos e que às vezes nos parece distante como um lustro no firmamento escuro. Entre a fruição e o debate
das duas partes do filme de Carné e novas sessões com Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, experimen-
tamos contar|inventar|fantasiar a história de vida de cada participante. Voltamos a trabalhar a imaginação e
a memória, tentando nos lembrar do corpo em relação aos outros corpos durante a infância. Essa busca pela
criança jogadora, perdida dentro de cada “poetator” e de cada “poetatriz” detefoirminante para o êxito desta
proposição artístico-pedagógica. A despeito dos perigos psicologizantes que o experimento pode provocar
(mesmo no âmbito do psicodrama), todo o excesso de energia daí advindo foi canalizado para a poesia da
cena, em jogo, evitando-se a distorção pseudoterapêutica ou pseudopsicanalítica. É o jogo que está em jogo
e quem joga é o artista e o jogo é a arte se fazendo e desfazendo concomitantemente. Ainda a perseguir uma
utopia artístico-pedagógica, acreditamos na plenitude do ser humano em performance lúdica e dizemos
com Schiller (2010, p. 76): “o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente
é homem pleno quando joga”.
A busca da criança perdida, escondida ou recalcada em cada um de nós, nos permitirá acionar os
sentidos e perceber as interpenetrações de formas, cores, perspectivas, ideias, sentimentos, sons, ritmos,
tempos, planos, superfícies, velocidades. A percepção sinestésica necessária à criação que nossa criança
necessita para jogar.
Jacques Lassalle, em conversa com Jean-Loup Rivière, discorre sobre essa criança que os fazedores
de teatro e muitos intelectuais sisudos preferem deixar adormecida no túmulo de seus corpos:
O pedagogo forma intérpretes; ele deseja criar artistas. É por isso que tenta liberar o vigor nos
artistas, a inocência, o gosto pelas descobertas, pelo risco, pelo “fora da pista”. Gostaria de de-
volvê-los à criança que foram. Meierhold perguntava-se por quê, de seus atores, aquele que era
32
incontestavelmente o mais talentoso aborrecia-o tanto. Acabou compreendendo: não conseguia
imaginar esse ator quando criança. Às vezes, as pessoas lembram-se de ter sido crianças. Porém,
o ator, por toda sua vida, continua sendo uma criança. Continua a habitar sua infância. Ele mor-
reria se essa criança fosse enxotada. “Temos em todos nós uma criança morta”, dizia Kantor. Na
verdade, não morta. Profundamente adormecida, mais precisamente. Uma criança adormecida e
que nos faz sonhar. (LASSALLE, 2010, p. 78)
Essa qualidade de sonho da infância em nós, associada às relações materiais e espirituais do jovem
em processo de sedimentação flexível, de luta e aventura amorosa, existencial, política, vivencial, compõem
a utopia que buscamos e praticamos. Encontramo-nos para buscar essa qualidade.
No segundo semestre de 2011, já estávamos mais seguros para pensar um trabalho denso com um
texto teatral e até mesmo investir em uma futura montagem. Sugeri a leitura e análise de O coronel de Ma-
cambira (1963), de Joaquim Cardozo, poeta|dramaturgo|engenheiro que tem sido meu foco de pesquisa há
mais de dez anos.
A obra extremamente aberta do Bumba-meu-boi de Joaquim Cardozo nos empurrou para o mun-
do. Trabalhamos jornadas da peça em separado e começamos a sentir a necessidade de ar livre. Assim,
passamos a fazer caminhadas noturnas no campus. Rir muito e observar tudo a nossa volta com extrema
atenção. Nosso método peripatético nos fazia ver estrelas, constelações, noites de lua, composições de nu-
vens, água, terra, ar, fogo. Conhecemos os animais e sombras da noite, ouvimos o chão e exercitamos nossa
percepção periférica com experimentos em marcha.
Tentando compreender as confluências de arte e ciência propostas pelo autor de Mundos paralelos
(1971), de Signo estrelado(1960), de Colóquio dos violentos (1967), experienciamos as bordas e fronteiras
do campus da UFPE, pleno de natureza em planície varzeana, de cheiros, de lagos, de riachos, de árvores
exuberantes, de ninhos que são “mocambos de passarinho” como diz o poeta: “Nessa várzea sou planície, /
Vaga dimensão dormente; / Tendida no chão conforme / Sou de mim sombra somente” (CARDOZO, 1971
[1960], p. 57).
Nossa prática pedagógica já se configurava em performance. Como explicar aos transeuntes o que
fazíamos ali no espaço público? Observados com disfarçado espanto, já estávamos atuando? E a atenção
desconfiada dos guardas noturnos, da segurança que nos intimidava com seus cavalos de aço, vigiando
nossa brincadeira de criança, nosso feitiço de faz de conta, nossa alquimia de barbante, construindo geome-
tricamente, em enormes proporções, triângulos, círculos, retângulos, no lusco-fusco dos gramados, à beira
do Riacho Cavouco, sob arvoredos frondosos e misteriosos. Nas sombras da universidade, em movimento,
aprendemos muito sobre a iluminação, sobre a qualidade das luzes, sobre a arquitetura e a engenharia dos
saberes ali setorizados em seus nichos monumentais. Em cada passada, qual Soldado da Coluna, figura de
O coronel de Macambira, aprendemos o caminho e o caminhar.
Após um ano de encontros, nos propusemos a fuçar nossas histórias pessoais mais fundas para es-
crever, sobre o papel e sobre o corpo no espaço, nossos dramas, nossas comédias, nossas farsas, enfim, nos-
sas dramaturgias. Tudo está em jogo em nossos céus criativos, em busca de conhecimento, em busca de um
teatro nosso, em busca de uma arte teatral que virá, porque a chamamos, porque a enlaçamos e a arrastamos
em nossa direção. Mas, pouco sabemos do futuro dessa aventura. Esperamos que a corda que nos liga aos
nossos sonhos não se rompa. E se isso ocorrer, a corda será emendada, retrançada e consertada, enquanto
tivermos forças e habilidades para atar e desatar nós.
33
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Paulo: Ed. 34, 2006.
34
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
EM ARTES: ESPANTO, SONHOS
E IDENTIDADES NA CO-CONSTRUÇÃO
DA PROFISSIONALIDADE DOCENTE
António Ângelo Vasconcelos18
Introdução
A formação de professores e a educação em artes vivem num tempo de grandes complexidades e
incertezas, de múltiplas perplexidades em que, por um lado, se sente a necessidade de mudança e, por outro,
nem sempre se consegue definir um rumo que seja pertinente e que dê corpo aos desafios lançados pelas
sociedades contemporâneas.
Por outro lado, aos docentes que trabalham nos domínios artísticos exigem-se-lhe um conjunto di-
versificado de competências e de conhecimentos que contribuam para a construção de modalidades de ensi-
no e de aprendizagens diferenciadas, que se exercem em contextos multi-facetados e multi-situados. Por seu
lado, as aprendizagens artísticas caracterizam-se por serem também uma actividade complexa que envolve
uma rede alargada de experiências e experienciações, formais e não formais, de natureza técnica, estética,
artística, investigativa, social e cultural numa interacção dialética de processos cognitivos e sensoriomotores
a par de interdependências várias com a emoção, a memória, a imaginação, a criatividade, a co-performance
colaborativa e a compreensão da artes nos contextos da sua criação e produção.
Como salienta Nóvoa (2009), “existe um excesso de discursos, redundantes e repetitivos, que se
traduzem numa pobreza de práticas. Existem momentos em que parece que dizemos o mesmo, como se as
18. Professor-adjunto no Departamento de Artes da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal. Estudou no Conservatório de
Música Calouste Gulbenkian em Aveiro. Possui licenciatura em Ciências Musicais e Doutorado em Educação, pela Universidade de Lisboa. Pre-
sidente da Associação Portuguesa de Educação Musical (2012-2015). Foi diretor de uma escola profissional, desempenhou funções como técnico
especialista no ensino música no âmbito do Ministério da Educação e participou de vários grupos de trabalho relacionados com o ensino de música.
Tem desenvolvido trabalho de investigação sobre: a profissão de músico e a formação de professores, as escolas, criatividade e políticas públicas
no campo musical.
35
palavras ganhassem vida própria e se desconectem-se da realidade das coisas. As organizações internacio-
nais e as redes que hoje nos mantém permanentemente conectados contribuem para esta vulgata, que tende
a complicar ainda mais esta situação em vez de a resolver.” Escreve este autor que “o campo da formação de
professores está particularmente exposto a este efeito discursivo. Os textos, as recomendações, os artigos
e as teses sucedem-se a m ritmo alucinante repetindo os mesmos conceitos, as mesmas ideias, as mesmas
propostas. É difícil que não nos contaminemos como este discurso gasoso que ocupa todo o espaço e que
dificulta a emergência de modos alternativos de pensar e de atuar. […] No entanto, é necessário fazer um
esforço para manter a lucidez e, sobretudo, construir propostas educativas que nos façam sair deste círculo
vicioso e nos ajudem a definir o futuro da formação de professores” (p. 204).
Neste contexto, procuro defender a reconfiguração da formação dos professores em artes ten-
do presente os desafios que lhe são colocados, individual e coletivamente, quer pelas práticas artísticas
contemporâneas quer pelas exigências que se colocam à educação em geral e à educação artística em
particular, em que, num trabalho dialógico, participativo e colaborativo entre diferentes tipos de atores,
se potenciem modalidades de (re)existência e se criem possibilidades de rencantamento com os mundos
reais e imaginários.
É uma reflexão que se constrói em torno de um duplo argumento. O primeiro assenta que a forma-
ção dos professores em artes se encontra na confluência entre diferentes mundos: “os mundos das artes e os
mundos da educação”, “os mundos das escolas e os mundos das comunidades”, “os mundos individuais e os
mundos dos saberes”, “os mundos das técnicas e os mundos das estéticas”. Mundos diferenciados e hetero-
doxos, muitas vezes conflituais, que contribuem para o incremento das características distintivas deste tipo
de profissionais. O segundo, centra-se na pertinência de que a formação de professores nas áreas artísticas
seja construída dentro da profissão englobando as artes e a educação.
Tudo isto tem como ponto de partida a minha visão sobre as artes no espaço contemporânea e as
suas múltiplas facetas e possibilidades. Em particular, “considerar a arte como território de resistência” o que
“implica uma compreensão da atividade artística como sendo da ordem do imprevisível e fora de controle”
uma vez que “somente o que não está previsto no campo dos saberes dominantes pode formar territórios
de resistência, pois o que foi capturado pela força dos territórios materiais e simbólicos dominantes não
tem poder transformador por carecer de força vital e criadora” (Galeffi,2017:22). Deste modo, assume-se a
perspetiva de que a formação de professores em artes (inicial e continuada) representa uma opção teórica,
artística e política que corresponde a uma visão da sociedade, da educação, do conhecimento e da arte que
se revela numa intencionalidade assente num horizonte utópico, de uma utopia realizável.
Assim, partindo do saber experiencial e de uma revisão da literatura de diferentes quadrantes cientí-
ficos e ideológicos, esta reflexão está dividia em três momentos. No primeiro, “Das complexidades de ser-se
professor num tempo difuso” procuro, de um modo sintético, apresentar o meu entendimento sobre algu-
mas das complexidades do exercício da profissão bem. No segundo, “A.R.T.E.S. - Uma ecologia de formação
de professores como modalidade de (re)existência” em que, partindo da palavra Artes, proponho uma eco-
logia de formação assente em cinco facetas desta problemática. Por último umas breves considerações finais.
36
designado por um “bom profissional” significa ser organizado, reflexivo, sustentado pelo conhecimento
artístico e educacional e requerendo uma compreensão de diferentes tipos de possibilidades de desenvolvi-
mento das práticas artísticas e formativas no interior da escola e das comunidades.
Por outro lado, o trabalho que desenvolve não se exerce num quadro isolacionista e, por este fato,
“o eu profissional” desenvolve-se na interligação com uma comunidade alargada de atores envolvidas nas
artes, no ensino e nas aprendizagens (com os colegas, estudantes investigadores, administradores, famílias e
políticos) num ambiente complexo, e muitas vezes conflitual, situado entre a competição e a desconfiança e
entre a partilha, a abertura e a confiança.
Nesta diversidade de atores existem diferentes formas poder, de pressão e de controle situadas en-
tre forças mais conservadoras e neoliberais, que tem como referenciais a produtividade, a competitividade
o empreendedorismo, e outro tipo de forças, social e culturalmente orientadas, que propõem uma maior
autonomia e responsabilidade pessoal. Estas diferentes formas de poder, de pressão e de controle têm a ca-
pacidade de, directa ou indiretamente, influenciar as práticas de ensino do professor através dos currículos,
conteúdos programáticos, incentivos financeiros ou outros, nos modos de organizar e estruturar a escola, na
avaliação dos professores e dos estudantes, nos manuais e na utilização das tecnologias.
(a) contextos políticos e de políticas em que os diferentes referenciais de ação são definidos quer no
discurso político, quer nas medidas que são adotadas pelas diferentes instâncias de governo, locais, nacio-
nais e transnacionais;
(b) contextos académicos em que o conhecimento teórico pode ser relacionado com os saberes
práticos e os saberes práticos podem ser mobilizados para a construção teórica;
(c) contextos artísticos em que as diferentes formas de criação, interpretação e de produção artística
influenciam, diretamente e/ou indiretamente, o exercício profissional docente e podem ser mobilizados
para o trabalho formativo, bem como a identidade de professor-artista;
(d) contextos escolares que correspondem a determinados modos de organização, discursos, deba-
tes e discussões, que emanam quer do poder político quer das culturas da escola, e que envolvem dimensões
relacionadas com a prestação de contas, “sucesso educativo”, inclusão, melhoramento cultural e organiza-
cional da escola;
(e) contextos curriculares que envolvem os conhecimentos acerca do currículo (prescrito e oculto) e
problemáticas relacionadas com os valores e os propósitos acerca do que as crianças e jovens devem apren-
der e quais as matérias e conhecimentos relevantes a serem trabalhados;
(f) contextos da sala de aula que corresponde aos contextos localizados, e também fragmentados,
em que a maior parte da atividade profissional é exercida e que com s suas dinâmicas potenciam determina-
dos processos de trabalho formativo-artístico;
(g) contexto das práticas em que o desenvolvimento do conhecimento profissional, bem como do
conhecimento relacional, em confronto e/ou em complementaridade com os outros, é determinante na
criação e/ou recriação da profissionalidade docente;
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(h) contextos individuais em que os referenciais e as caraterísticas pessoais do docente enformam
os diferentes saberes, conhecimentos e problemáticas existentes (políticas, sociais, científicas, culturais, ar-
tísticas e outras);
(i) contextos comunitários, quer no âmbito das comunidades de aprendizagem quer no âmbito das
comunidades artísticas e pedagógicas, quer ainda no âmbito dos diferentes tipos de comunidades que cons-
tituem os territórios onde as atividades profissionais são desenvolvidas;
Tendo presente todos estes contextos, importa também salientar que não existe neutralidade do ato
educativo dado que “que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, apren-
de, outro que, aprendendo, ensina […]; a existência de objetos, conteúdos, a serem ensinados e aprendidos
envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo,
sonhos, utopias, ideais. Daí sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não
poder ser neutra. (Freire, 2009: 69-70).
E nesta politicidade da prática educativa é preciso atender ainda a que “vivemos numa sociedade
de satisfação permanente”, mas de “uma satisfação enganadora porque, verdadeiramente, um desejo que
se possa satisfazer de um momento para o outro não é um verdadeiro desejo humano. Por isso, cada vez
mais sentimos que não há espaço para que a vida alimente grandes sonhos, grandes paixões, grandes
viagens, grandes utopias, grandes generosidades. E esta sociedade de satisfação imediata deixa-nos muito
insatisfeitos porque vivemos num mecanismo de viciamento e impulso, e não vivemos por ter alimen-
tado, dentro de nós de forma paciente, longa, discernida, demorada, um grande desejo, uma verdadeira
vontade, um sopro de liberdade, de criatividade” tendo em consideração que “o que nos abre horizontes é
a nossa sede, não são as certezas provisórias que vamos encontrando” (Mendonça, 2018).
38
dos e reestruturados nas relações que se estabelecem com os outros colegas e com as diferentes comuni-
dades artísticas e comunidades de aprendizagem (Wenger, 1998), sociais e culturais. E esta rede alargada
requer um quadro referencial aberto para o que não se conhece, para o inesperado e para lidar com as
complexidades e ambiguidades, estando atento a ideias e teorias, tendo capacidade para tomar decisões
arriscadas, sendo capaz de se adaptar a diferentes contextos e geografias artísticas, educativas, culturais,
sociais e organizacionais, alicerçados num suporte mútuo e na confiança inter-relacional (Esgaio, 2011).
Quadro referencial que implica lidar com uma dupla contradição. Por um lado, uma “obediência rebelde”
em relação aos pressupostos das políticas públicas locais, nacionais e transnacionais e por outro, estar
preparado para prever o imprevisível.
Neste contexto, e tendo presente o que considero mais relevante acerca das artes nas sociedades con-
temporâneas como “território de resistência” a ecologia da formação de professores (inicial e continuada)
como modo de (re)existência que proponho assenta um conjunto de conceitos em que procuro encontrar
um outro modo de olhar para este tipo de formação. Conceitos estes que acentuam as conexões entre as
dimensões pessoais e profissionais na construção da identidade dos professores de artes colocando a tónica
“na definição pública de uma posição com forte sentido cultural, numa profissionalidade docente que não
pode deixar se se construir no interior de uma personalidade de professor” (Nóvoa, 2009:206). É uma pro-
posta genérica e aberta que poderá contribuir para o debate acerca da formação de professores em artes e,
por essa via, inspirar uma renovação dos programas e das práticas formativo-artísticas.
A – Ambivalência e Alteridade
Duas das principais características das Artes assentam, por um lado, na assunção de que as artes
celebram múltiplas perspectivas e que existem muitas maneiras de ver e interpretar o mundo (Eisner, 2002)
e, por outro, as artes oferecem possibilidade de leituras diferenciadas, polissémicas, ambivalentes sobre um
mesmo objeto artístico. E se nas artes, tal como na educação, nem tudo pode ser previsto e onde a racio-
nalidade é uma racionalidade limitada e contingente, esta perspetiva ambivalente apresenta-se como um
elemento pertinente ao pensar a formação de professores.
39
que nos faz semelhantes uns aos outros e que eu só posso respeitar a minha própria diferença respeitando a
diferença do outro” (Bauman, 1999: 249).
R – Rizoma e Reflexividade
Edgar Morin (2014) afirma que “os professores precisam sair de suas disciplinas para dialogar com
outros campos de conhecimento” uma vez que “as disciplinas fechadas impedem a compreensão dos pro-
blemas do mundo”. A transdisciplinaridade, de acordo com este autor, “é o que possibilita, através das dis-
ciplinas, a transmissão de uma visão de mundo mais complexa” estabelecendo-se “um jogo dialético entre
razão e emoção”.
Esta predominância do fechamento disciplinar, a par da hierarquização dos saberes, muitas vezes
protagonizada não só pelas políticas públicas mas também por grupos de professores implica reolhar para a
formação de professores que operacionalize outras modalidades de trabalho voltadas para o enfrentamento
do modelo de educação disciplinar dominante. E neste contexto, o conceito de rizoma afigura-se interes-
sante uma vez que não está ligado à hierarquia e “presume múltiplas possibilidades de interconexão, uma
transversalidade que se opõe a verticalidade e a horizontalidade. […] Compreende como fundamental a
descontinuidade, a ramificação e multiplicidade de ações denunciando o lugar do poder, da ordem, da or-
ganização binária do mundo social e seus dualismos” (Santos et al., 2011).
Assim, as aprendizagens rizomáticas “mais que conceito de grande intensidade para pensarmos outras
paisagens educacionais, são fluxos auto-organizados, subjetivados nas potências dos sujeitos nômades e apren-
dentes virtualizando suas próprias fronteiras, sem a preocupação de religar os saberes e suas verdades normati-
vas. Ao contrário, requer viver o rompimento com o Uno, com a unidade e o enclausuramento dos sujeitos em
direção ao desviante, às polifonias de agenciamentos singulares, como espaço de intermédio da aprendizagem
entre os sujeitos aprendentes, nativos de ecologias cognitivas [e emocionais] rizomórficas” (idem).
Com efeito, como referem Deleuze e Guattari (1995) “o rizoma prioriza a organização de uma
educação menor [não essencialista], furos porosos de intensa relação entre sujeitos e subjetividades que
reconhecendo multiplicidades conduz as relações de aprendizagem em meio aos movimentos de devires,
longe das unidades previamente estabelecidas nas escolas, através dos currículos fechados e nas auto-
ridades professorais, mas sim, nas ramificações possíveis no entorno da proliferação de pensamentos
heterogêneos. Não se trata de trocar uma instituição escolar por outro tipo de organização, mais que isso,
os sistemas rizomórficos permitem entender a dimensão social como sendo um todo constituído, mul-
tifacetado por tensões, linhas de fugas e agenciamentos” e “não se limita à falsa dualidade binária ou no
obscurantismo moderno reformulado nas tendências pedagógicas de controle dos sujeitos-objetos e suas
subjetividades” (p. 14).
40
pelo processo educacional e que nos reabilita como sujeitos que constroem o presente e o futuro. A con-
vivência com a diferença e as relações com o outro são os caminhos possíveis para nossa ressignificação.”
(Neto, 2017)
E nesta ressignificação a resistência e afigura-se uma dimensão relevante dado que “a resistência
não é apenas uma questão de negar um poder opressivo, mas também de criar formas de existir, que inclui
formas de sentir, pensar e agir” e que “a afirmação da arte [e da formação de professores] como território de
re-existência envolve necessariamente a descolonização da arte e a conexão com outras formas de descolo-
nização” (Maldonado-Torres, 2017).
T – Tradução e Transitório
António Nóvoa (2009) afirma que “a procura de um conhecimento pertinente” não é “uma mera
aplicação prática de uma teoria qualquer mas exige sempre um esforço de reelaboração” e que “esta é da
essência do trabalho do professor” (p. 210). Também Morin (2014) salienta que “todo conhecimento é uma
tradução, que é seguido de uma reconstrução, e ambos os processos oferecem o risco do erro.”
Ora, tradução “significa deslocar objetivos, interesses, dispositivos, seres humanos. Implica des-
vio de rota, invenção de um elo que antes não existia e que de alguma maneira modifica os elementos
imbricados. As cadeias de tradução referem-se ao trabalho pelo qual os atores modificam, deslocam e
transladam os seus vários e contraditórios interesses” (Freire, 2006: 51). Se traduzir é “fazer conexão, é
se ligar a” as conexões estabelecidas entre os atores de uma rede, as negociações que, dessa forma, têm
lugar e a própria comunicação a tradução implica também a percepção, interpretação e apropriação e
nessa dinâmica tanto está envolvida a “possibilidade de equivalência” quanto sua “transformação” (La-
tour, 1994, 2000).
Por sua vez Santos (2002) salienta que “a tradução é o procedimento que permite criar inteligibili-
dade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis” tratando-se de um
“procedimento que não atribui a nenhum conjunto de experiências nem o estatuto de totalidade exclusiva
nem o estatuto de parte homogénea. As experiências do mundo são vistas em momentos diferentes do
trabalho de tradução como totalidades ou partes e como realidades que se não esgotam nessas totalidades
ou partes” (p. 262). A tradução é, simultaneamente, “um trabalho intelectual e um trabalho político. E é
também um trabalho emocional porque pressupõe o inconformismo perante uma carência decorrente do
carácter incompleto ou deficiente de um dado conhecimento ou de uma dada prática” (p. 267).
Ora, o criar “inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo” implica saber o que traduzir
e isto, de acordo com o mesmo autor, realiza-se através do conceito de “zona de contacto” (campos sociais
onde diferentes mundosdavida normativos, práticas e conhecimentos se encontram, chocam e interagem).
As zonas de contacto “são sempre selectivas, porque os saberes e as práticas excedem o que de uns e outras é
posto em contacto” sendo que “o que é posto em contacto não é necessariamente o que é mais relevante ou
central. Pelo contrário, as zonas de contacto são zonas de fronteira, terrasdeninguém onde as periferias ou
41
margens dos saberes e das práticas são, em geral, as primeiras a emergir. Só o aprofundamento do trabalho
de tradução permite ir trazendo para a zona de contacto os aspectos que cada saber ou cada prática consi-
deram mais centrais ou relevantes” (pp. 268-269).
Neste contexto, como o trabalho docente não se caracteriza pela mera transmissão e transposição
de saberes específicos, mas sim por um trabalho de tradução, de transformação, de transitoriedade e adap-
tabilidade a diferentes contextos onde interage o que implica que a formação de professores assente num
trabalho político, intelectual e emocional que contribua para a inteligibilidade entre diferentes práticas e
experiências dos mundos das artes e dos mundos da educação atendendo à incompletude que caracteriza
os diferentes saberes em presença.
E – Espanto e Encontro
“O que é o espanto que faz nascer o poema?” questiona Ferreira Gullar (2015. “É a súbita consta-
tação de que o mundo não está explicado e, por isso, a cada momento, nos põe diante de seu invencível
mistério” (p. 66). Também Mendonça (2016) – outro poeta, salienta que “uma das grandes virtudes que
precisamos reencontrar é a arte do espanto, pois é verdadeiramente por aí que tudo começa. Espanto deriva
do latino expaventare que descreve a forte impressão originada por uma coisa inesperada e repentina. Se
procurarmos sinónimos, encontramos assombro, admiração, surpresa. É o contacto (consciente, fulgurante,
desarmado, rendido) com a vida maior do que nós, a vida em aberto, não predeterminada. No espanto, a
nova e surpreendente expressão da vida prende a nossa atenção à maneira de um relâmpago, de um rasgão
imprevisível. Não a conseguimos encaixar no nosso quadro habitual, pois o seu carácter inédito torna inú-
teis todas as previsões, saberes, experiências, etiquetas, mapas, preparações. […] O espanto obriga-nos a
uma revisão do que sabemos de nós próprios e do mundo. Obriga-nos a recomeçar, como se fosse um nas-
cer. Certamente que, no seu processo, o espanto desarruma e dói”.
Do ponto de vista educacional Eisner (2004) refere que “educadores atenciosos não estão simples-
mente interessados em alcançar efeitos conhecidos; eles estão interessados tanto em surpresa, em descober-
ta, no lado imaginativo da vida e em seu desenvolvimento quanto em atingir metas pré-definidas alcançadas
por meio de procedimentos de rotina”. Nesse sentido, um dos objetivos “deve ser converter a escola de uma
instituição acadêmica em uma intelectual. Essa mudança na cultura da escolarização representaria uma mu-
dança profunda na ênfase e na direção. Também Mia Couto (2011) salienta que “há um processo de aceitar
e fazer crescer coisas que a Educação nos ensina, mas também ser capaz de sacudir aquilo que a Educação
formata e que não nos ajuda a sermos felizes. […] O mais importante é saber fazer perguntas, manter um
sentimento de inquietação e indisciplina por toda a vida”.
Por outro lado, se se pensar que uma das principais funções das práticas artísticas na educação é o de
ativar os recursos do imaginário e, em particular, estimular modos de resistência em relação ao fechamento e
à reprodução acrítica de modelos e de modos organizacionais e pedagógico-artísticos, isso implica desenvol-
ver a apetência pelo desafio, pelo risco do desconhecido. Contudo, “quando falamos de imaginação estamos
também no campo da contestação […] das fixações de um aqui e de um ali, de um interior e de um exterior”
numa geometria plural e “espantosa (que espanta, que surpreende)” (Tavares,2013:32-33) aberta ao acaso e ao
desconhecido através de “racionalidade distendida” (Jiménez,2005:162) assente em múltiplas opções.
Esta valorização do que não se conhece desenrola-se num quadro complexo que passa por um con-
junto alargado e interdependente de situações e que apresenta dois tipos de implicações. A primeira pressupõe
pensar o docente, e o futuro docente, como um sujeito que constrói o seu próprio discurso e a sua condição
autoral enfrentando diferentes tipos de conflitualidades que possibilitem o desenvolvimento do pensamen-
to pessoal e artístico em convergência e/ou em divergência como modelos estéticos e técnicos existentes. A
42
segunda implicação, relaciona-se com o facto de que as comunidades de aprendizagens, as comunidades de
práticas artísticas se apresentam plurais e diversificadas, campos abertos de possibilidades na criação de pontes
entre diferentes mundos, encorajando-se a “experimentação das ideias através da improvisação, da trabalho
colaborativo e da discussão” abrindo-se a territórios de “abordagens colaborativas que conectam pessoas, dis-
ciplinas e géneros” projetando-se caminhos que possibilitem “novos pontos de comparação e de partida” em
ambientes de aprendizagem que criem “zonas de contacto” entre a tradição e a inovação (Gregory,2005:20-21).
S – Subjetividade e Sociedade
Vários autores (Nóvoa e etc) têm-se referido que o professor é a pessoa e que a pessoa é o professor sendo
impossível separar as dimensões pessoais e subjetivas das dimensões profissionais dado que “que ensinamos
aquilo que somos e que, naquilo que somos, se encontra muito daquilo que ensinamos” e, neste sentido, im-
porta “que os professores se preparem para um trabalho sobre si mesmos, para um trabalho de auto-reflexão
e de auto-análise. […] Não se trata de regressar a uma visão romântica do professorado (a conceitos vocacio-
nais ou missionários)” mas antes “reconhecer que as componentes técnicas, científicas [e artísticas], embora
necessárias, não são todo o ser do professor” (Nóvoa, 2009: 212).
Ora, o que defendo é que a “construção da pessoa do professor” se alicerçe na “produção de uma
subjectividade que enriqueça de modo contínuo a sua relação com o mundo” (Guattari (1992: 33). Subjetivi-
dade entendida, por um lado, como “o conjunto de condições pelas quais instâncias individuais ou coletivas
são capazes de emergir como um território existencial, na adjacência ou em relação a uma alteridade, ao
mesmo tempo subjetiva” (Idem: 19) e, por outro, como “espaço de diferenças individuais, de autonomia e
liberdade que se erguem contra formas opressivas que vão além da produção e tocam o pessoal, o social e o
cultural” (Santos, 1994: 123)
Assim a produção da subjetividade “combina as dimensões micro e macrossocial, significa ter que
reconhecer a dialética que, sendo capaz de ocorrer em um plano de realidade, é um produtor de reali-
dades inclusivas” (Merino) […] reúne imaginários coletivos, representações sociais, memórias, crenças,
ideologias, conhecimentos, sentimentos, vontades e visões do futuro […] fonte de significado e mediação
simbólica, precede e transcende os indivíduos; constitui o nosso eu mais singular, o sentimento de per-
tencer a um nós e ao todo social. A natureza simbólica da subjetividade implica que só se pode acessar
a sua compreensão através de múltiplas linguagens humanas. […] A racionalidade da ciência, com sua
linguagem analítica e abstrata, é insuficiente para captar a riqueza das diferentes lógicas que constituem a
subjetividade, e tem mais potencial para isso, poesia, literatura, cinema, artes visuais. e sabedoria popular
e tradicional.” (Alfonso 2006)
Por outro lado, acresce que “a emergência da singularidade – individual e de grupo – como modo
de afirmação social e factor multiplicador das diferenças requer uma nova conceptualização que assenta em
identidades flexíveis, negociáveis e alternantes” (Melo, 2002: 61), o que significa, de acordo com o mesmo
autor, abandonar a noção de identidade “entendida como património, essência ou raiz, em favor de uma
experiência da identidade entendida como prática, processo, tradução, negociação” (p. 52).
Ora nesta construção da subjetividade o espanto, referido anteriormente, é uma dimensão relevante
uma vez que “o espanto é poder abrir os olhos, poder dar-se conta do que somos, do que está perto de nós,
do que está longe. É ganhar um olhar crítico sobre a nossa própria realidade, perceber que muitos dos gestos,
43
à custa de o repetirmos, se tornam tiques e manias, e se esvaziam da autenticidade fundamental” (Mendon-
ça, 2018. P. 6)
Neste contexto, uma formação pertinente assenta na construção da subjetividade em que a experi-
ência individualizada como estratégia de formação se torna fundamental entendendo que cada individuo
em formação tem um percurso próprio de aprendizagem a ser percorrido, numa rede diferenciada de intera-
ções intersubjetivas possibilitadoras da assunção de identidades flexíveis de modo a resistir aos dispositivos
que contribuem para subjectividades industrializadas, massificadas, acomodadas.
Em síntese, o quadro abaixo, representa graficamente a interpelação entre as várias dimensões enunciadas
anteriormente.
3. Considerações finais
Pensar na formação de professores em artes é, por um lado concetualizar estes profissionais como
intelectuais, como trabalhadores da cultura e, por outro, esta formação de professores-artistas constitui-se
como um desafio que permita “que os professores desenvolvam conhecimentos e habilidades para examinar
criticamente a natureza ideológica do ensino e a natureza do trabalho” e uma compreensão do seu papel “na
transformação da sociedade” resistindo a “a se tornarem meros administradores das atividades cotidianas
impostas de fora da escola e redefinir seu papel dentro da prática contra-hegemônica” assumindo um “papel
emancipatório, crítico e transformador […] no interesse da justiça social e da promoção da igualdade” (Hill,
2007: 215).
44
Deste modo, como salienta Mia Couto (2014), é preciso estarmos abertos a novos conceitos e a (re)
existência a reinterpretação do mundo é possível se rompermos com uma única linha de pensamento, com
uma única forma de agir e reagir às coisas, com a fácil aceitação de um discurso pré-preparado, reavaliando
os nossos conceitos a partir de novos olhares. Importa por isso, imaginar colaborativamente futuros alter-
nativos em que a formação de professores em artes assuma que o conhecimento nasce da interrogação dos
quotidianos e do espanto, que é a estranheza diante de objetos, de ideias, do outro, da diversidade e de situa-
ções já conhecidas uma vez que na arte de educar nada é acabado. À despersonalização contrapõe-se a sub-
jetividade do sujeito que é sempre uma subjetividade histórica e socialmente situada em relação a múltiplas
e heterógenas formas de ver e de estar no mundo. A formação é sempre um processo de transformação indi-
vidual e daí a relevância do professor como pessoa e a valorização da experiência, da reflexão, da pesquisa e
da ética, do investimento na escola e no coletivo de modo a que o professor-artista como criador de espantos
esteja atento a que “as criações artísticas, científicas e filosóficas sempre levam consigo algo de esclarecimen-
to e encantamento. Ao mesmo tempo que realizam alguma forma de compreensão ou explicação, envolvem
possibilidades de fabulação. Lançam luzes e sombras, cores e movimentos, sons e significados, desvendando
modos de ser e fantasias, realidades e virtualidades. Nesse sentido é que as criações artísticas, científicas e
filosóficas podem levar consigo também “utopias” […]. Esclarecem e iludem, acenando com significados
recônditos, guardados no presente, herdados desde o passado ou escondidos no futuro.” (Ianni, 2000, p. 87).
Ora, pensar a formação de professores de artes como criadores do seu próprio presente e do futuro,
que desvenda modos de ser e de fazer, reais e imaginários, afigura-se uma tarefa fundamental da academia
e de outros atores formativos de modo a possibilitar o alargamento (re)existências, de encantamentos e de
encontros com os mundos na construção de uma ação possibilitadora de construção de uma sociedade mais
culta, plural e democrática.
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46
O PEDAGOGO NA CONSTITUIÇÃO
DO CAMPO PROFISSIONAL
DA ARTE/EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Everson Melquiades Araújo Silva19
Na pesquisa sobre a presença histórica do ensino de arte na formação dos professores que atuam
nos anos iniciais da escolarização, Araújo (2015) realizou um significativo levantamento do ponto vista da
legislação nacional.
Neste estudo, a referida autora nos indica que a inserção da obrigatoriedade do ensino de arte nos
cursos de pedagogia nos anos 2000 é resultado de um conjunto de iniciativas e uma série de reivindicações
da sociedade civil organizada, que remontam ao final do ano 1834, com a criação dos cursos normais no
Brasil, conforme nos elucida a autora em discussão:
Pensar a presença da arte nos cursos de Pedagogia brasileiros requer um olhar ampliado
para a própria história da educação no Brasil. Afinal, foi um conjunto de fatores sociais,
políticos e legais que, ao longo dos últimos anos, desenhou aquilo que hoje presenciamos
nas perspectivas de formação dos pedagogos. Não há como desvencilhar o olhar dos nos-
sos cursos de Pedagogia atuais e da inserção da arte em seus currículos sem buscar suas
origens históricas nas políticas para formação de professores e a criação das instituições de
ensino superior, bem como para os cursos normais e as licenciaturas em artes. (ARAÚJO,
2015, p. 37).
Esta posição é ratificada, inclusive, por outros pesquisadores da área, tal como Martins (2015), que
sugere que sejam realizadas pesquisas específicas nos diferentes estados e regiões do Brasil, para melhor
compreender esse fenômeno.
Nesta direção, a história do ensino de arte no curso de pedagogia constitui-se, ainda, de uma grande
mosaico, onde já possuímos uma série de peças que precisam ainda ser montadas.
19. Professor da UFPE; Presidente da Escolinha de Arte do Recife; Vice-Presidente da Associação Nordestina de Arte/Educadores (ANARTE).
Doutor (2010) e Mestre em Educação (2005), pela UFPE; Graduação em Pedagogia (2000), Membro da FAEB, ABRACE, ANPED, SBPC, do Cen-
tro de Estudo e Pesquisa Paulo Freire, do Coletivo Momos e do GEFAI (Grupo de Pesquisa em Formação de Professores, Arte e Inclusão.
47
No caso específico do estado de Pernambuco, o curso de formação de professores para os anos
iniciais da escolarização tem as suas origens históricas com a criação da Escola Normal Oficial de Pernam-
buco, em 1865 (FIGUERÔA, 2012; VINCENTINI, 2009; PEIXOTO, 2006). Como uma das transformações
e sínteses históricas dessa instituição, em 1975, é criado o Centro de Educação da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE).
No entanto, apesar de sua tradição na formação de professores e uma trajetória histórica de quase
meio século, apenas com as pressões sociais e com as reformas nos cursos de formação de professores, ins-
tituídas pelo Ministério da Educação (MEC), nos anos de 2000, foi criado, na matriz curricular do curso de
Pedagogia da UFPE, o componente Fundamentos do Ensino de Arte. É importante destacar que o referido
componente só foi implementado no ano de 2010, no 6º período do curso.
Nesta direção, o ensino de arte nos cursos de pedagogia é um fenômeno muito recente no estado de
Pernambuco. Com o objetivo de melhor compreender esta prática, através de uma ação conjunta, o Grupo
de Pesquisa Formação de Professores, Arte e Inclusão (GEFAI), a Associação Nordestina de Arte/Educado-
res / Núclo Pernambuco (ANARTE/PE) e a Escolinha de Arte do Recife (EAR) convocaram a instalação de
um fórum permanente denominado de “Fórum Pernambucano do Ensino da Arte na Pedagogia”.
Esta iniciativa, considerada inédita no Brasil, foi muito festejada pelos arte/educadores, a exemplo
da mensagem enviada pela Professora Miriam Celeste Martins, no dia 03 de março de 2012:
Este fórum é muito necessário. Maravilha, Everson! Por favor, mande notícias! E seria óti-
mo se pudéssemos criar um grupo de discussão específico para professores que trabalham
nos cursos de Pedagogia. Havia iniciado uma pesquisa no ano passado. Sugeri uma mesa
específica sobre isto no CONFAEB, mas não foi aceita. Quem sabe deste fórum nasça
alguma proposta. Os convidados prometem! Abraço desejando inventividade e potencia-
lidades partilhadas. (MARTINS, 2012, p. 1).
Com a temática “Ensino de Arte na Pedagogia: Experiências em Diálogo”, o primeiro encontro do
fórum foi realizado no dia 08 de março de 2012, no Auditório do Centro de Educação, do Campus Recife,
da UFPE. Com a participação de mais de 120 pessoas, entre professores e alunos de Curso de Pedagogia,
professores da Educação Básica, Arte/Educadores, Educadores Sociais, alunos das licenciaturas em artes, o
encontro teve como objetivos conhecer experiências empreendidas em Pernambuco sobre o ensino de arte
no Curso de Pedagogia e dialogar com a experiência do ensino de arte no Curso de Pedagogia desenvolvida
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Participaram como convidados desse encontro
a professora Analice Dutra Pilar (UFRGS), Fernando Azevedo, na ocasião, das Faculdades Integradas da
Vitória de Santo Antão (FAINTVISA), Vitória Amaral (UFPE) e Adriana Aquino (ANARTE/PE).
O encontro foi desenvolvido como um grande círculo de cultura. Ao final do diálogo, ficou como
síntese o seguinte desafio: Como a prática de ensino de arte vem se desenvolvendo nos cursos de pedagogia
do estado de Pernambuco?
Buscando responder o desafio proposto pelo primeiro encontro, o segundo encontro do fórum
aconteceu no Campus Agreste, da UFPE, localizado na cidade de Caruaru/PE, com a temática “A Práxis
Arte/Educativa nos Curso de Pedagogia em Pernambuco”, nos dias 05 e 06 de agosto de 2014.
Sob a Coordenação do Professor Paulo David e do Grupo de Estudo em Arte e Educação (GES-
TARTES), o referido encontro contou com o apoio de um número significativo de instituições, tais como
o GEFAI, Federação de Arte/Educadores do Brasil (FAEB), ANARTE/PE, Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (CNPq), EAR, Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE),
Prefeitura de Caruaru e Governo do Estado de Pernambuco.
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A realização do encontro na Região Agreste do estado de Pernambuco possibilitou a interiorização
das ações do fórum e das discussões pertinentes ao mesmo. Desta vez, além de professores e alunos do curso
de pedagogia da UFPE e UFRPE, estiveram presentes, no encontro, professores da Universidade de Pernam-
buco (UPE) e de três faculdades particulares, FAINTVISA, Faculdade Joaquim Nabuco (FJN), Faculdade
Santa Catarina (FASC), ademais a presença maciça de professores da Rede Municipal de Ensino de Caruaru
e da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco. Ao total, foram mais de 200 participantes.
Desse encontro, participaram como convidados os professores e professoras Ana Paula Abrahamian
(UFRPE), Bruno Alves (UFRPE), Charlon Cabral (Galpão das Artes), Eliana Ismael (UFPE), Emília Freitas
(FAINTVISA), Everson Melquíades (UFPE), Fabiana Vidal (UFPE), Fernando Azevedo (UFRPE), Francis-
co Alexandrino (FJN), Francisco Gouveia (Prefeitura de Caruaru), Ibrantina Guedes (FASC), Kátia Cunha
(UFPE), Maria Alves (UFPE), Maria José Montenegro (UPE) e Sergio Figueiredo (UDESC).
O encontro contou com uma programação diversificada de atividades, tais como conferência, mesas
temáticas, apresentações artísticas, minicursos, além do lançamento do livro “Quando fala uma operária da
Educação”, de autoria da Fátima Soares (Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco).
Como resultado dos diálogos travados nas diferentes atividades ao longo do encontro, foi produzida a
Carta de Caruaru (FPEAP, 2014), para serem encaminhadas para a ANARTE/PE, a FAEB, o Conselho Estadu-
al de Educação e diferentes universidades e faculdades. Destacamos como o principal desafio proposto para o
próximo fórum “observar a interdisciplinaridade como princípio norteador para formação do(a) pedagogo(a)
em Artes (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), em lugar da noção de prática de ensino polivalente, ou seja,
um(a) professor(a) responsável por abordar igualmente todas as linguagens artísticas” (FPEAP, 2014, p. 01).
Dando continuidade à política de interiorização das discussões e reflexões sobre o ensino da arte
no curso de pedagogia em Pernambuco, o terceiro encontro do fórum foi realizado na cidade Garanhuns,
sob a realização da Universidade Federal Rural de Pernambuco, nos dias 29 e 30 de outubro de 2015, nas
dependências do Serviço Social do Comercio (SESC) Garanhuns.
Sob a coordenação dos professores Fernando Azevedo (UFRPE) e Bruno Alves (UFRPE), o en-
contro teve como temática “O Ensino de Arte na Pedagogia: Polivalência ou Interdisciplinaridade?”, com o
apoio da SESC, da EAR, da ANARTE/PE, GESTARTES e GEFAI.
No final do encontro, foi produzido a Carta de Garanhuns, que indicou como desafio para o 4º en-
contro, que será realizado na Campos Recife da UFPE, a inserção das linguagens artísticas da Dança, Teatro,
Música e Artes Visuais nos cursos de Pedagogia do estado de Pernambuco, conforme expresso abaixo em
fragmento retirado do documento:
Eis, aqui, o grande desafio para o FPEAP: a luta pela inclusão das linguagens da Arte na
formação do pedagogo. Defendemos a democratização da Arte como um saber, que ao
produzir pensamento divergente, possibilita o ser humano ir além das convenções prees-
tabelecidas pelos poderes, rompendo com a repetição, a homogeneidade e o individualis-
mo, pois a Arte cria as condições de pensar e resolver problemas com imaginação, fugindo
da mera racionalidade, dos dogmas, sem deixar de valer-se do trabalho de pesquisa em
seu processo de elaboração e reelaboração. (FPEAP, 2015, p. 01-02).
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No contexto atual da Educação brasileira, a criação e continuidade do Fórum Pernambucano do
Ensino da Arte na Pedagogia representa um espaço para um repensar crítico sobre a práxis arte/educativa
desenvolvida no curso de pedagogia, através da articulação das dimensões política, epistemológica e onto-
lógica (AZEVEDO, 2014).
É importante lembrarmos que, dentro desse processo, a neutralidade é perversiva, pois todo ato pe-
dagógico também se constitui em um ato de escolhas políticas e ideológicas. E neste momento político, em
tempos crescentes de desigualdades sociais, o Fórum Pernambucano do ensino de Arte na Pedagogia está
fazendo a escolha por uma Arte/Educação como um campo profissional inclusivo. Parafraseando Azevedo
(2010), a experiência do Fórum Pernambucano do Ensino da Arte na Pedagogia não representa um porto
seguro, mas uma “bússola para os navegantes destemidos dos mares da arte/educação” brasileira (p. 80).
Diante do exemplo que acabamos de apresentar, é possível afirmarmos que, históricamente, uma série
de iniciativas vêm sendo empreendidas para melhor qualificar esse profissional para o desenvolvimento do
ensino de arte nos anos iniciais da escolarização (Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental).
No entanto, contrário a essa filosofia, desde a década de 1980, vêm se estabelecendo, dentro da Arte/
Educação, conflitos internos entre “arte/educadores habilitados” e os “arte/educadores não habilitados”, o
que provocou, naquele momento, o enfraquecimento da área. Tais conflitos se configuram como um fenô-
meno prejudicial, uma vez que a Arte/Educação se constitui de um campo de conhecimento que historica-
mente busca a sua afirmação, seja nos sistemas da arte, seja nos sistemas educativos.
Para uma melhor compreensão sobre esse fenômeno de exclusão profissional dos Pedagogos no
campo da Arte/Educação, realizamos um estudo que teve como objetivo compreender quais são os discur-
sos dos membros da comunidade virtual da FAEB sobre a presença do Pedagogo na constituição do campo
profissional da Arte/Educação brasileira.
A comunidade virtual da FAEB constituiu-se do campo de pesquisa deste estudo. O referido grupo
foi fundado em 25 de abril de 2003, na plataforma do Yahoo Grupos. Esta plataforma oferece aos seus usu-
ários diferentes ferramentas de comunicação, tais como arquivo de mensagens, compartilhamento de ar-
quivos, álbuns de fotos, entre outros. Em mais de uma década de existência, a comunidade virtual da FAEB
possui cadastrados mais de 900 arte/educadores de diferentes regiões brasileiras.
Esta comunidade virtual foi escolhida como campo da pesquisa deste estudo por constituir-se, ao
longo desses anos, em um espaço privilegiado de troca de mensagens dos arte/educadores brasileiros. De
uma forma geral, estas mensagens são compostas de uma grande variedade de conteúdos, tais como avisos
sobre eventos, indicações de livros, discussões sobre assuntos específicos, dentre os quais destacamos a te-
mática do campo profissional da Arte/Educação.
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Para obtermos uma compreensão do objeto investigado, a coleta de dados foi realizada a partir da
pesquisa documental. Segundo Lüdke e André (1986, p. 38), a pesquisa documental “pode se constituir uma
técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos seja complementando as informações obtidas por outras
técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problemas”. Foi nesta perspectivada que a adotamos
como um dos instrumentos deste processo de investigação.
Na comunidade virtual da FAEB, foram identificadas as mensagens que em seus conteúdos proble-
matizavam sobre a presença do Pedagogo na constituição do campo profissional da Arte/Educação brasilei-
ra. Essas mensagens foram impressas e passaram a constituir um dossiê.
É importante destacarmos, ainda, que as mensagens analisadas neste estudo foram basicamente de
seis sujeitos. A seguir, apresentaremos uma breve descrição dos mesmos. São todas professoras universitá-
rias, que atuam nos cursos de graduação de Pedagogia, Dança, Teatro, Audiovisual, Artes Visuais e Inter-
disciplinar em Teatro e Filosofia, de 04 instituições públicas federais, 01 estadual e 01 particular, localizadas
nas Regiões Sudeste (03), Nordeste (02) e Centro-Oeste (01). Todas possuem o título de pós-graduação (01
especialização, 01 mestrado, 03 doutorado e 01 pós-doutorado). No entanto, apenas 04 estão ligadas a pro-
gramas de pós-graduação. Essas informações foram retiradas do Currículo Lattes dos sujeitos da pesquisa.
No entanto, optamos em não identificá-los pelos seus verdadeiros nomes, substituindo-os por pseudôni-
mos, conforme poderá ser verificado na apresentação dos resultados deste estudo.
Utilizamos, como procedimento para a análise dos dados coletados, a técnica da Análise Temática,
sistematizada a partir dos estudos de Minayo (2000). Segundo a concepção dessa estudiosa:
Nesta direção, nossa análise foi operacionalizada a partir de quatro operações básicas: (1) a pré-
-análise; (2) a exploração do material; (3) o tratamento dos resultados obtidos; e (4) a interpretação dos
resultados, a partir da inferência. Assim, a análise temática foi uma técnica poderosa para verificarmos tanto
os conteúdos expressos superficialmente nos dados coletados, como os conteúdos intrínsecos a esses dados
(conteúdo dinâmico, estrutural e histórico).
A partir da análise temática, foi possível mapear, nos discursos dos membros da comunidade vir-
tual da FAEB, sete ideias-conceitos sobre a presença do Pedagogo na constituição do campo profissional da
Arte/Educação brasileira. A sequência de sua apresentação foi estabelecida a partir do índice de frequência
das ideias-conceitos, organizando-as das de maior frequência para as de menor frequência. Estas idéias-
-conceitos foram organizadas em sete grupos temáticos, conforme passaremos a apresentar a seguir:
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O primeiro grupo temático defende a proposição de que a prática de ensino de arte desenvolvida
na Educação Infantil e do 1º ao 5ª ano do Ensino Fundamental (anos iniciais da escolarização da Educação
Básica) deverá ser ministrada pelos licenciados nas diferentes linguagens artísticas, tais como Dança, Teatro,
Música e Artes Visuais, apresentando-se com uma frequência total de 22%. Abaixo, apresentaremos exem-
plos de fraguimentos desse discurso:
[...] defendo que quem deve ministrar aulas de arte deve ser um professor especialista, até
mesmo na primeira infância. (Sujeito 2)
Paralelamente, os/as têm que se fortalecer além de esteticamente, eticamente, na luta pelos
nosso espaço da educação infantil até o ensino médio, Ongs, IFs, museus, em todo e qual-
quer espaço que se trate do campo da Arte/educação. (Sujeito 6)
Defendo que um professor de arte formada na linguagem específica também deva mi-
nistrar aulas nos anos em que as aulas são ministradas por um/a pedagoga/o. (Sujeito 3)
Com 17% do número total de frequência, o segundo grupo temático defende a importância da
presença dos conhecimentos da arte e seu ensino na formação profissional do pedagogo, seja nos cursos
iniciais ou de formação continuada, para aqueles que já se encontram no exercício da profissão. Veja abaixo
exemplos desse discurso:
Em fim penso sim que o pedagogo como professor polivalente na primeira infância, deve
ter um conhecimento sobre arte, assim como deve ter conhecimento sobre matemática,
letras, biologia etc. (Sujeito 2)
Continuamos na luta pela presença da Arte nos Cursos de Pedagogia. Não para substituir
o professor de Arte, mas para que o pedagogo possa compreender sua potência em suas
aulas, nas aulas de arte e nos projetos interdisciplinares, para ir além dos enfeites e deco-
rações, ou mesmo os desenhos mimeografados que ainda invadem as escolas. (Sujeito 1)
O terceiro grupo temático defende a proposição de que o pedagogo não poderá substituir os licen-
ciados nas diferentes linguagens artísticas (Dança, Teatro, Música e Artes Visuais) no desenvolvimento da
prática de ensino de arte do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Este grupo apresentou
17% do total da frequência. Abaixo seguem exemplos dessa compreensão:
Mesmo porque um pedagogo não tem formação para atuar como um especialista da área.
A matriz curricular de um curso de pedagogia não dá conta de contemplar em sua carga
horária, os conhecimentos necessários à formação em arte, mesmo porque não é o objeto
de um curso de pedagogia formar professores de artes. (Sujeito 2)
O quarto grupo temático, com 17% do total da frequência, não reconhece a legitimidade do pedago-
go em desenvolver a prática de ensino de arte na Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental
(anos iniciais da escolarização da Educação Básica), conforme expressos nos exemplos abaixo:
[...] tenho as mesmas inquietações de vocês quanto à/ao pedagogo/a que se sente ‘‘apto
a ministrar aulas de artes (polívalência nas linguagens artísticas), matemática, português,
etc etc...(polívalência quanto aos conhecimentos)’’. Infelizmente, por esse motivo temos
52
uma educação frágil e com um cíclico? o/a pedagogo/a que não tem formação em Arte
(nem Visuais, nem Dança, nem Música e nem Teatro) omite a formação estética (des-
culpem os pedagogos que trabalham significativamente, conheço um monte, mas estou
generalizando) as crianças do Brasil, e futuramente são essas crianças que se tornam pe-
dagogos/as, completamente alheios/as ao conhecimento das artes Visuais, da Dança, da
Música e do Teatro. (Sujeito 6)
Se o pedaço, que viveu poucas e significativas experiências com arte em sua vida escolar (é
o que temos visto com frequência) e não a amplia no seu curso de formação inicial, como
poderá compreender as propostas de um especialista, como trabalhará com a dimensão
estética em seu trabalho docente, para além da sala de aula? (Sujeito 1)
O quinto grupo temático não reconhece que um pedagogo, a partir de sua história de vida e for-
mação, pode também converter-se como um arte/educador. Essa compreensão representa cerca de 14% da
frequência total, conforme pode ser verificado nos exemplos abaixo:
[...] muitos pedagogos estão achando que são professores de artes ou arte-educadores,
apenas por terem na sua grade curricular uma disciplina chamada Arte-educação e/ou
por fazerem uma pós-graduação em arte dessas qualquer esquina por aí... (Sujeito 2)
Mas, dentro dessa formação (que é uma lacuna na educação básica) também preci-
sa de uma formação artística. DE JEITO NENHUM para ser um/a arte/educador/a ou
professor/a de artes visuais, dança, música e/o teatro. ELES NÃO TEM FORMAÇÃO E
NEM É PARA ISSO A SUA FORMAÇÃO. Isso deve ficar claro nos grupos de pesquisa de
Arte na Pedagogia por que é isso que dá um incômodo em muitos/as. (Sujeito 6)
Contudo tem que ficar claro que este profissional NÃO é professor de Arte. E aí que está
todo o problema, pois não temos visto pedagogos tentando se passar de forma enganosa
por professores de matemática por exemplo, mas de artes, sim. (Sujeito 2)
Já o sexto grupo temático defende a ideia de que os problemas educacionais do campo profissional
da Arte/Educação é de responsabilidade dos pedagogos, compreensão expressa com uma frequência total
de 8%, conforme trechos dos discurso abaixo:
Tenho visto também denúncias de diplomas na área de artes “comprados” por pedagogos.
(Sujeito 2)
Estão surgindo vários cursos de graduação em Artes, que têm à sua frente quase sempre
‘‘pedagogos’’ que estão defendendo o retorno da polívalência no ensino da arte. Estes cur-
sos tentam de forma ‘‘tosca’’ e distorcida descaracterizar a formação docente específica
na área de artes nas quatro linguagens. E estão vendendo a ilusão de que com um curso a
pessoa sairá como licenciado em Dança, Teatro, Artes Visuais e Música ao mesmo tempo.
(Sujeito 2)
Por fim, com 4% do total da frequência, o grupo temático sete, defende a proposição de que a práti-
ca de ensino de arte desenvolvida na Educação Infantil e do 1º ao 5ª ano do Ensino Fundamental (anos ini-
ciais da escolarização da Educação Básica) deverá ser legitimamente ministrada pelos pedagogos, conforme
indicado no exemplo abaixo:
Outro ponto a ser ponderado é a dinâmica das aulas das crianças de (0 a 6), com tempos
curtos de atividades em função da faixa etária e com necessidade de muitos momentos
de arte em diferentes linguagens a cada dia: artes visuais, jogo dramático, musica, dança.
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Esse contexto educativo é diferente do enfrentado pelo especialista que ministra uma ou
duas aulas por semana no Ensino Fundamental 1, com quem o professor/pedagogo ‘‘po-
deria interagir’’ para dar sequência ou manter coerência com as orientações didáticas dos
especialistas em sala de aula, porque sabemos que também não é adequado manter apenas
um horário ou dois de 45 a 50 minutos por semana para a faixa etária dos 1º ao 5º ano.
(Sujeito 4)
Na próxima seção, apresentaremos as considerações finais do nosso trabalho e suas contribuições para um
repensar crítico da Arte/Educação como um campo de formação profissional.
Conforme é possível verificar, os resultados indicam que vem se estabelecendo no campo profissio-
nal da Arte/Educação uma verdadeira cruzada contra os pedagogos. Nesta direção, não é suficiente garantir
que a prática de ensino de arte do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e Ensino Médio seja ministrada pelos
licenciados nas diferentes linguagens artísticas (Dança, Música, Teatro, Artes Visuais). É preciso se defen-
der e se resguardar contra os pedagogos. Bani-los do campo da Arte/Educação. Inclusive, defende-se que a
prática de ensino de arte na Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental deve ser também
ministrada pelos licenciados nas diferentes linguagens da arte. Enfim, a Pedagogia e os pedagogos são os
responsáveis pelos problemas educacionais do campo profissional da Arte/Educação.
Esta compreensão é reafirmada ao somarmos todas as frequências dos grupos temáticos que debe-
lam sobre a pedagogia, de onde teremos um total de 79% em detrimento a 21% dos discursos daqueles que
defendem a importância dos conhecimentos da arte e seu ensino na formação do pedagogo e que acreditam
que a prática de ensino de arte desenvolvida na Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental
deve ser de responsabilidade dos pedagogos.
De certa forma, entende-se esse não reconhecimento do trabalho dos Pedagogos (arte/educadores
não habilitados), pois acredita-se que os profissionais de outras áreas que ensinam arte, mesmo que quali-
ficados, estão se apropriando do mercado de trabalho dos licenciados nas diferentes linguagens artísticas
(arte/educadores habilitados). No entanto, é importante que tenhamos uma compreensão histórica da cons-
tituição da Arte/Educação brasileira, conforme explicitaremos nos argumentos abaixo.
Ao contrário dessa concepção, adotamos neste trabalho outra compreensão sobre a terminologia
arte/educador. Se a “Arte-educação é epistemologia da arte e, portanto, é a investigação dos modos como se
aprende arte na escola de 1° grau, 2° grau, na universidade e na intimidade dos ateliês” (BARBOSA, 2002,
p. 7), para nós, os arte/educadores são todos os sujeitos qualificados que trabalham profissionalmente com
processos de ensino e mediação dos conhecimentos artísticos, nos diferentes contextos da educação formal
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e não formal, tais como Organizações Não Governamentais (ONGs), hospitais, galerias, museus, escolas,
universidades, associações comunitárias. Em geral, esses arte/educadores possuem formações diversas, se-
jam elas acadêmicas ou não. Neste sentido, arte/educador é uma categoria profissional inclusiva, pois, além
de incluir esses profissionais, incluem também os professores de artes, sujeitos que cursaram na universida-
de os diferentes cursos de licenciatura em arte.
Partimos da ideia arte-educador, em sentido amplo, é todo aquele professor que trabalha
com arte em sua prática pedagógica (professores da educação infantil, especial, anima-
dores culturais e historiadores) diferenciado-se do professor de Arte, aquele oficialmente
habilitado, formado nos cursos ainda denominados de Educação Artística.
Terceiro, a Arte/Educação e os arte/educadores são fenômenos que existem antes da criação dos
cursos de licenciatura em artes, que foram estabelecidos apenas nos meados da Década de 1970, através da
Lei de Diretrizes da Educação Nacional de nº 5.692/71, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de arte
nas escolas dos então 1º e 2º graus e, consequentemente, a criação dos Cursos de Licenciatura Curta em
Educação Artística.
Desta forma, a terminologia “arte/educação” e “arte/educadores” foram criadas pelo Movimento Es-
colinha de Arte (MEA), na Década de 1950, conforme explicitado nos diferentes estudos de Barbosa (2010),
Varela (1977) e Rodrigues (1977). Isto significa que o Campo da Arte/Educação e, consequentemente, a
categoria profissional arte/educador foram criadas antes dos licenciados em arte. No MEA, quem eram os
arte/educadores? Eram pedagogos, psicólogos, artistas. Nesta perspectiva, por exemplo, são os pedagogos
que estão tomando o campo do ensino de arte dos licenciados em arte ou são os licenciados em arte que
estão tomando o campo de ensino de arte dos pedagogos desde a Década de 1970?
Não há qualquer dúvida de que o ensino de arte escolar desenvolvido do 6º ao 9º ano do Ensino
Fundamental e no Ensino Médio é de responsabilidade dos licenciados em arte. Pressuposto que tem que
ser defendido e garantido pelas políticas públicas do Campo da Educação e pelos movimentos associativos
brasileiros de arte/educadores, como a FAEB e a ANARTE/PE, através de um processo de luta contínua. Po-
rém, o ensino de arte não é um fenômeno que está restrito apenas à educação escolar. Como um fenômeno
interdisciplinar e multidimensional, ele ocorre também em outros espaços, tais como museus, hospitais,
organizações não governamentais (ONGs). Será que os cursos de licenciatura em arte vêm preparando arte/
educadores para atuar nesses e em outros espaços educativos? Nos anos iniciais do Ensino Fundamental,
não é o pedagogo o responsável pelo ensino de arte e das demais disciplinas escolares?
O que está na pauta das nossas discussões não é se esse ou aquele profissional deve ensinar arte ou
não. A questão propositiva é se esse ou aquele profissional está qualificado para ensinar arte e o que podere-
mos fazer para melhor qualificá-lo para ensinar arte. Acreditamos que não devemos estabelecer um campo
de atuação profissional partindo apenas das diferenças, mas das motivações que temos em comum. Neste
caso, a defesa pela importância do ensino de arte. Isso significa que, em vez de nos dividirmos, deveríamos
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unir forças, através de uma luta política e conceitual, para qualificarmos e reafirmamos a área, pois, para
conservarmos as nossas conquistas históricas é preciso que mantenhamos certa vigilância ideológica e epis-
temológica, que não será possível com divisões internas. Como nos alerta Fanon (1979), é preciso sabermos
identificar os nossos verdadeiros “inimigos”. Desta forma, a Pedagogia e os pedagogos não são os inimigos
da Arte/Educação.
No entanto, é preciso deixar claro que esta luta contra a Pedagogia e os pedagogos não se constitui
de um pensamento hegemônico no campo da Arte/Educação, uma vez que, historicamente, uma série de
iniciativas vêm sendo empreendidas para melhor qualificar esse profissional para o desenvolvimento do en-
sino de arte nos anos iniciais da escolarização (Educação Infantil e do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental).
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56
USAR BRECHT: PERSPECTIVAS
PEDAGÓGICAS TEATRAIS NO TEATRO
ÉPICO DE BERTOLT BRECHT E
NAS PEÇAS DIDÁTICAS
Florian Vassen20
Tradução Samir Signeu Porto Oliveira
B ertolt Brecht é, sem dúvida, o mais importante dramaturgo de língua alemã do século XX.
Devido ao fato de seu trabalho teatral ter muitos aspectos pedagógicos, a teoria do teatro, a prática teatral e
a pedagogia do teatro estão, portanto, intimamente ligadas; no entanto, isto é pouco conhecido. Para o seu
teatro épico, ele desenvolveu uma nova “arte do espectador”, como um professor de teatro trabalhou com
seus atores uma nova “arte de atuar”.21 Ele acompanhou suas encenações com comentários, experimentos
e livros modelo. Com suas peças didáticas ele criou sua própria forma de teatro político orientado para a
pedagogia do teatro e – como um pedagogo de teatro – até mesmo fez contato com os alunos. No geral, ele
criou uma fundação de teatro político-pedagógica inovadora, resistente e envolvente, especialmente radical
na forma das peças didáticas. Ensaio e palco, público e auditório, pensamento e atuação política, processos
de aprendizagem e transformação, “autocompreensão” e representação própria constituem o teatro e a pe-
dagogia teatral de Brecht.
Ainda hoje, algumas encenações podem apresentar Brecht como um “clássico inconsequente”; mas,
contudo, ao lado de Antonin Artaud, ele ainda é um dos mais importantes precursores do teatro de hoje,
especialmente em sua forma pós-dramática. Autores como Heiner Müller, Elfriede Jelinek ou René Pollesch,
grupos de teatro como Rimini Protokoll, She She Pop ou Andcompany & Co, bem como jovens diretores,
referem-se ao trabalho teatral de Brecht e o usam como material, assim como ele mesmo outrora utilizou da
literatura mundial, do teatro asiático e da Europa para o seu trabalho teatral.
20. Possui formação em Letras (alemão e francês), Filosofia e História nas universidades de Frankfurt, Aix-em-Provence e Marburg. Nesta última,
obtém o titulo de Doutor, em 1970. Foi professor assistente na Universidade de Gießen e, desde 1982, é professor de Literatura Alemã na Univer-
sidade de Hannover. Diretor do Centro de Pedagogia do Teatro (Arbeitsstelle Theater/ Theaterpädagogik). É ainda colaborador da Associação de
Pedagogia do Teatro (Gesellschaft für Theaterpädagogik). Seus principais temas de pesquisa são: Teatralidade, Teoria e Prática da Pedagogia do
Teatro, Escrita e Imagem, Bertolt Brecht, Heiner Müller, Teoria do Riso, Sátira e Caricatura.
21. Bertolt Brecht: [Há duas artes para desenvolver]. In: B.B.: Werke. Grosse kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe. Hg. von Werner Hecht
u.a. Bd. 23 Frankfurt a. M. / Berlin / Weimar 1993, S. 191; a seguir, as abreviações GBA com números de volumes e páginas representam as citações
das obras.
57
Brecht procura fundamentalmente mudar o teatro, ao mesmo tempo em que ele experimentava
como autor, diretor, prático e pedagogo de teatro. A pedagogia do teatro não é para ele uma reflexão tardia
ou um aspecto adicional, mas parte integrante de seu teatro, contudo sem usar o termo e sem fornecer mé-
todos didáticos como “receitas”. A pedagogia, a política e a arte entram em um novo tipo de conexão na sua
obra teatral, como Walter Benjamin formulou, já em 1930, sobre os trabalhos de Brecht: “Primeiro, eles têm
seu efeito pedagógico, por fim, sua política e sua poética”.22
As experiências teatrais de Brecht são bastante teimosas, mas ao mesmo tempo orientadas para as
ciências naturais e sociais. Como Francis Bacon, Brecht entende o experimentum como uma experiência pes-
quisada: “É por isso que você tem que experimentar tudo sozinho, com suas mãos, e apenas falando o que viu
com seus próprios olhos e o que poderia ser útil”.23 O teatro de Brecht para intervir nas relações sociais, conecta,
de acordo com a scientia activa, teoria e prática; a “ciência empírica” de Bacon24 corresponde ao teatro de Bre-
cht, como uma “arte da experiência”. Contudo, ele não está satisfeito com “algumas experiências formais”, mas
com “a ideia de que toda a vida social devia ser interpretada pelo teatro como experimental”. 25 Por essa razão,
ele também enfatiza a relação com a realidade e se apega à fábula e constata: As leis sociais do movimento não
podem ser demonstradas em “casos ideais”, uma vez que a “impureza” (contradição) pertence precisamente ao
movimento e ao movente. É necessário apenas – mas isto é absolutamente necessário – que, no todo, algo como
condições experimentais sejam criadas; isto é, que um contraexperimento é possível em cada caso”26.
Brecht, é claro, não escapou à diferença entre os experimentos científicos e seus experimentos tea-
trais, cuja ênfase estava acima de tudo no julgamento e na experimentação, no inacabado, provisório; isto
é, no caráter experimental estético. Nesse sentido, Brecht chamou uma série de folhetos de ensaios, com os
quais ele “criou” a “possibilidade” de “publicar continuamente certas obras importantes, e que tinham um
caráter experimental”.32 As primeiras experiências de 1933 contêm, sobretudo, “obras” que “não devem mais
ser experiências individuais (ter caráter de trabalho); porém mais direcionadas ao uso (transformação) de
certos institutos e instituições (têm caráter experimental) [...]”. Certamente não começa por acaso com O
22. Walter Benjamin: Bert Brecht. Em: W.B.: Gesammelte Schriften. Bd. II.2. Aufsätze, Essays, Vorträge. Hg. von Rolf Tiedemann / Hermann Sche-
ppenhäuser. Frankfurt a. M. 1977, S. 662; nos seguintes abreviados com GS com volume e números de páginas.
23. Bertolt Brecht: Das Experiment. In: GBA, Bd. 18, S. 364.
24. Engels, Friedrich / Marx, Karl (1972) : Die heilige Familie oder Kritik der krtisichen Kritik. In: K.M./F.E.: Werke , Bd.2. Berlin 1972, S. 135.
25. Bertolt Brecht: Überblick. In: GBA, Bd. 22.1. S. 558.
26. Bertolt Brecht: Kleines Organon für das Theater. In: GBA, Bd. 23, S.85;
27. Bertolt Brecht: Kleines Organon, S. 65.
28. Bertolt Brecht: Journal I. In: GBA, Bd. 26, S. 474.
29. Compare Bertolt Brecht: Kleines Organon, S. 66.
30. Bertolt Brecht: Der Dreigroschenprozess. Ein soziologisches Experiment. IN: GBA, Bd. 21, S. 469.
31. Bertolt Brecht: Über experimentelles Theater. In: GBA, Bd. 22.1, S. 546.
32. Elisabeth Hauptmann: [Der Neudruck der “Versuche”]. In: Bertolt Brecht: Versuche 1-12. Berlin / Frankfurt a. M. 1959, S. 2.
58
voo sobre o oceano, uma “peça didática radiofônica para rapazes e moças”.33 As próximas tentativas também
se concentram na ópera épica Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, “o livro de leitura para os morado-
res da cidade, estas são letras de músicas para discos, e A Peça Didática de Baden em formas experimentais.
Na seguinte, a complexa A ópera de três vinténs, a ópera épica se desenvolve em um experimento sociológi-
co. Finalmente, os experimentos 11 e 12 incluem as óperas escolares didáticas Aquele que diz sim e Aquele
que diz não, bem como A decisão, uma peça didática para os corais proletários de massa.
Nessas experiências, o teatro épico e a peça didática, como experiências teatrais, a mídia, o rádio,
discos e filmes, bem como a crítica do capitalismo e a educação reformista da época, estavam intimamente
conectados. A ópera escolar Aquele que diz sim foi apresentada em 1930, na Escola Karl Marx, um ginásio
reformista em Neukölln, em Berlim, com novos métodos de ensino e trabalho coletivo de teatro. Brecht
tinha estado em contato por algum tempo, especialmente através de Peter Suhrkamp, mas também de He-
lene Weigel e Walter Benjamin, com o movimento de jovens e da pedagogia da reforma, mas também com
o teatro infantil proletário34 e, em consequência disto, estava interessado nos processos de aprendizagem de
crianças e jovens, no contexto de seu trabalho teatral.
Após a Segunda Guerra Mundial, o praticante de teatro Brecht concebeu os chamados livros modelo
(Construção de um papel: Galilei de Laughton, Modelo Antigona 1948, Modelo Courage 1948, Notas de “Katz-
graben” 1953)35, bem como a antologia de Trabalho Teatral36, em que extratos, comentários, partituras, esbo-
ços de cena e muitas fotos de palco do gestus básico de cada peça, bem como arranjos cênicos e o decorrer da
apresentação foram registrados. Brecht não está preocupado com ‘receitas’ ou regulamentações, nem mes-
mo com modelos, mas com ‘o uso criativo’. Os modelos servem de orientação no contexto da singularidade
dos experimentos artísticos: “Usar modelos é uma arte separada; muito e muito disso é para aprender. Nem
a intenção de fazer o modelo exatamente, nem a intenção de deixá-lo rapidamente é a correta. [...] Pensado
como um alívio, os modelos não são fáceis de manusear. Eles não são feitos para poupar o pensamento, mas
para estimulá-lo; não são oferecidos para substituir a criação artística, mas para reforçá-la. A imaginação
é necessária não apenas para mudar o modelo, mas também para aceitá-lo”.37 Os modelos visam ajudar a
desenvolver, transmitir e pensar mais sobre o teatro experimental de Brecht, e podem igualmente beneficiar
o contexto pedagógico do teatro.
No teatro, há sempre o perigo de capturar tudo, harmonizar contradições, seguir o caminho mais
simples, adaptar-se e permanecer no familiar e “agradável”,38 como Brecht o chama. Para evitar isso, autores
de teatro como Brecht sempre resistiram com suas “habilidades de escrita” e tentaram reagir contra o teatro
que pode representar “tudo (ênfase no original): tudo é ‘teatro’”.39
Brecht vê uma possibilidade na “literarização do teatro”, como ele descreve nas notas da “Ópera
dos três vinténs”. Especialmente bem formulado por ele: “Também na arte dramática a nota de rodapé e
59
as paginas comparativas são introduzidas”.40 Sob a forma de letramento, devem ser anotados, por escrito,
com a possibilidade de contrastes, interrupção e mudança de perspectiva – como no teatro pós-dramático
e frequentemente na prática pedagógica de hoje – destruindo a atitude de recepção divertida e frustrante
do público; “o espectador”41 deveria ao invés, por exemplo, “[...] ao ler as projeções do painel [...] adotar a
atitude de assistir fumando”.42 “Agora a demanda pode ser aumentada”, disse Brecht, “que o espectador (como
massa) literalizado [ênfase no original], ou seja, ele foi especialmente treinado e informado para que ‘fre-
quente’ o teatro!”43
Citações de texto e gestos citáveis são constitutivos de coros, poemas e canções, figuras narrativas,
títulos de cenas e comentários para a estrutura de montagem do teatro de Brecht. Embora as interrupções,
nomeadamente as interfaces da montagem, permaneçam claramente visíveis, não obstante, a citação e o
comentário são partes integrantes do texto literário ou da encenação teatral. O trabalho teatral de Brecht,
incluindo o aspecto pedagógico-teatral, é constituído pela interação de demonstrar, comentar e refletir.
Caracteriza-se pela estrutura da cesura e recebe uma dimensão multi perspectiva por meio da “separação
dos elementos [ênfase no original]”48 e da heterogeneidade das formas e meios utilizados.
Para o seu teatro épico, Brecht precisa uma maneira especial de interpretar dos atores, então eles
precisam ser treinados de forma diferente. Portanto, ele critica as escolas de teatro de então, ele está espe-
cialmente “desapontado” com as do “sistema de Stanislavski [ênfase no original]”49. As reflexões de Brecht
sobre “a arte de atuar” estão expostas especialmente no extenso fragmento de A compra do latão, uma con-
versa sobre um novo tipo de teatro para interpretar, bem como na sua – poder-se-ia dizer – versão curta
estruturada de o Pequeno órganon para o teatro. A “nova técnica da arte de atuar” inclui, sobretudo, o “gesto
de mostrar” e a “atitude do atônito e contraditório”. Brecht chama de “recurso” “1. A transferência para a
terceira pessoa. 2. A transferência para o passado. 3. Pronunciar em coro as instruções de jogo e comentá-
60
rios [todos os destaques no original]”50, e, entre outros, “exercícios de observação”, “exercícios de imitação”,
“notícia anotada”, “exercícios de imaginação”, “dramatização do épico”, “exercícios de direção” e “exercícios
detemperamento”51. A atitude de “citar”52 também é importante, pois implica um modo de falar diferente,
muito mais distanciado do que a declamação teatral e a recitação tradicional. Brecht até mesmo escreve
“exercícios para atores” independentes como “cenas paralelas”, como as “transmissões [...] da Discussão
das Rainhas, ‘Maria Stuart’ em um prosaico ambiente ‘do’ Fischweiber”53. Esses “procedimentos” diversos e
variados, adequados para atores profissionais e não profissionais, servem, em particular, para distanciar o
“texto nos ensaios”, bem como a peça e o “modo de falar”.54
Brecht desenvolve a nova “arte de atuar” de acordo com uma forma específica de ensaios, que ele
entende como uma “experimentação [destacando no original]” de “várias possibilidades”, como ele escre-
ve no texto Atitude dos condutores de ensaios (na abordagem indutiva). O “condutor de ensaios” – Brecht,
evidentemente consciente, não fala do diretor – inicia com “perguntas” e “dúvidas, a variedade de possíveis
pontos de vista, comparações, memórias, experiências” e evita “todas as soluções esquemáticas, habituais e
convencionais”. Em consequência disto, Brecht não entende o diretor como um artista engenhoso, que quer
por em prática suas ideias, mas como um artesão com “abordagem indutiva”, em um processo coletivo. Sua
“tarefa é despertar e organizar a produtividade dos atores (músicos, pintores etc.)”. Com a ajuda de contra-
dições e “crises”, Brecht argumenta que não deveria haver nenhuma conexão orgânica, mas uma gradual
“lógica [enfatizada no original]”; a “sucessão” e o “entrelaçamento” se desenvolvem, combinados com um
“elemento de surpresa”.55
Sem dúvida, o ensaio de Brecht também significa repetição, segurança e determinação, mas o mais
importante é o seu caráter experimental, o movimento de pesquisa e “experimentação”, encontrar e rejeitar
novamente; isto é, sua abertura e sua forma coletiva de trabalho, uma abordagem que hoje em dia é geral-
mente praticada também no contexto pedagógico do teatro. Brecht refere-se também explicitamente a seus
pensamentos sobre “a arte de atuar” de atores não profissionais e trabalha – não apenas em suas experiên-
cias com as peças didáticas – pedagogicamente o teatro com amadores: “Desde o início, os amadores foram
treinados”.56 Ele insiste enfaticamente que “vale a pena falar de teatro amador”.57
Ler, ouvir, contemplar ou assistir desempenha um papel especial no processo de arte; e o teatro
como uma forma de arte social e comunicação presente e fugaz entre pessoas vivas, geralmente precisa, em
particular, da interação de intérpretes e espectadores no espaço do teatro. Somente juntos percebem, em um
“espaço de energia”, a síntese estética do evento teatral.
50. Bertolt Brecht: Kurze Beschreibung einer neuen Technik der Schauspielkunst, die einen Verfremdungsaffekt hervorbringt. In: GBA, Bd. 22.2,
S.644.
51. Bertolt Brecht: Übungen für Schauspielschulen. In: GBA, Bd. 22.2, S.614f.
52. Bertolt Brecht: Anweisungen na die Schauspieler. In: GBA, Bd. 22.2, S.668.
53. Bertolt Brecht: De Messingkauf, S. 830-852.
54. Bertolt Brecht: Kurze Beschreibung einer neuen Technik der Schauspielkunst, die einen Verfremdungsaffekt hervorbringt, S.644.
55. Bertolt Brecht: Haltung des Probenleiters (bei induktivem Vorgehen). In: GBA, Bd. 22.1, 597f.
56. Bertolt Brecht: Über experimentelles Theater, S. 555.
57. Bertolt Brecht: Lohnt es sich vom Amateurtheater zu reden? In: GBA, Bd. 22.1, S.593.
61
heterogênea. Para ele, assistir é uma atividade que precisa ser aprendida, especialmente se for para orientar a
ação com base na observação atenta, como evidenciado na reação de Galileu à declaração do aluno Andrea
em Vida de Galileu: “Mas eu vejo que o sol de noite não está onde estava de manhã. Quer dizer que ele não
pode ficar parado! Nunca e jamais”. “Você vê! O que é que você vê? Você não vê nada. Você apenas arregala
os olhos. Arregalar os olhos não é ver”.58 Brecht segue o modo de ver e observar de Galileu; isto é, seu “olhar
estranho”, com o qual este “[...] observava um lustre pendular”. “[...] Esse olhar, tão difícil quanto produti-
vo, deve provocar o teatro com suas representações da convivência humana. Ele tem que surpreender seu
público, e isso é feito por meio de uma técnica de distanciamento do familiar”.59 Portanto, ver e observar é
contrastado com “arregalar”, como um olhar não conceitual da contemplação remanescente na superfície.
Brecht descreve o público do teatro aristotélico como “figuras bastante imóveis, em um estado pecu-
liar: [...] elas têm [...] seus olhos abertos, mas não olham, fitam, como também não ouvem, escutam”. Contra
esse comportamento dos espectadores de teatro que “olham para o palco”60 como se estivessem encantados,
Brecht define como a “imagem alienante [...] que reconhece o objeto, mas que ao mesmo tempo faz parecer
estranho”,61 de modo que surja nos espectadores uma estranheza. O “não muito mudado” não deve parecer
“mutável”, mas como algo feito pelo homem e assim mutável, pois: “Em todo lugar encontramos algo que é
óbvio demais para nos esforçarmos para entender”.62
Brecht se recusa a “incitar o espectador a uma dinâmica unilateral, onde ele não pode olhar nem
para a direita e nem para a esquerda, nem para baixo e nem para cima” – uma formulação que já antecipa
o teatro pós-dramático – e enfatiza explicitamente: “a visão complexa deve ser praticada”.63 Os especta-
dores não estão isolados nos processos teatrais, eles não permanecem limitados à sua individualidade, “o
indivíduo [...] não é mais o centro”, pelo contrário, um processo coletivo acontece no ato físico concreto
de assistir e ouvir. Brecht fala, nesse contexto, que o “espectador” é “não apenas um consumidor”, “mas ele
tem que produzir. O evento sem ele, como colaborador, é metade [...], o espectador, envolvido no even-
to teatral, é teatralizado. [...] Um passo adiante, “as reflexões de Brecht sobre o público”, e haveria uma
mudança qualitativa desse coletivo: sua contingência desapareceria”.64 O “Thaeter”,65 como Brecht chama
seu novo teatro”, deve causar também “uma atitude surpreendente, inventiva e crítica do espectador”;66
é – também nos sentido pedagógico do teatro – sobre participação e coprodução, também no sentido da
pedagogia do teatro.
Quando se fala do teatro de Brecht, é geralmente sobre distanciamento, muitas vezes reduzida à técni-
ca teatral do efeito-V. Em sua forma abrangente, isto é, como uma constelação teatral, social, política e peda-
gógica – “O efeito V é uma medida social”67 – o distanciamento, além do épico e do gestus, é a categoria mais
conhecida e mais importante do teatro brechtiano: “em uma nova cadeia de experimentos” foi “desenvolvida”
58. Bertolt Brecht: Leben des Galilei. In: GBA, Bd. 5, S. 11.
59. Bertolt Brecht: Kleines Organon, S. 82.
60. Bertolt Brecht: Kleines Organon, S. 75f.
61. Bertolt Brecht: Kleines Organon, S.81.
62. Bertolt Brecht: Kleines Organon.
63. Bertolt Brecht: Anmerkungen zur Dreigroschenoper, S. 59.
64. Bertolt Brecht: Die dialektische Dramatik, S. 441.
65. Bertolt Brecht: Der Messingkauf, S. 697.
66. Bertolt Brecht: Journal I, S. 407.
67. Bertolt Brecht: Der Messingkauf, S. 700.
62
“a técnica de distanciamento”, o “chamado estilo épico de apresentação” treinado e formado “o assim chamado
princípio gestual [ênfase no original]”.68 Embora já existissem formas épicas e de distanciamento de teatro nos
séculos anteriores, a característica especial de Brecht é que ele desenvolve uma teoria fundamental do distan-
ciamento, que muda simultaneamente a “arte de atuar” e a “arte do espectador”, bem como todas as áreas da
representação e da música. Também nos textos teatrais de Brecht, ela está nos níveis de ação, narrativa, comen-
tário e de reflexão, bem como na estrutura da linguagem; realiza-se, em particular, como uma interrupção e
uma mudança de perspectiva.
Além disso, o conceito de distanciamento também deve ser visto em um contexto mais amplo.
Por um lado, ele está intimamente ligado ao conceito sociológico de estranhamento e, por outro lado, o
distanciamento em Brecht é apenas um aspecto parcial do fenômeno abrangente de ser estranho e estra-
nheza e deve, portanto, ser colocado no contexto da alteridade. Nos mais diversos níveis – teatro-prático,
literário-teórico, epistemológico, sociopolítico e teatro-pedagógico – o estranho e a estranheza e, portanto,
distância, curiosidade, espanto, descoberta e reconhecimento desempenham um papel central para Brecht,
em oposição à proximidade, empatia e identificação. Neste ponto, isto é de particular importância como os
conceitos de alteridade e estranheza, especialmente no que diz respeito à pluralização e interculturalidade,
à inclusão e exclusão social; e também está no centro da atual discussão política e pedagógica. A estranheza
sempre se refere a uma relação, é apenas para ser entendida em relação a algo diferente. Portanto, o próprio
e o estranho estão inextricavelmente ligados, condicionam-se um ao outro. Particularidade sem estranheza
não é possível, e a perda de estranheza levaria à rigidez e à estagnação, ao invés de aprender e mudar. Além
disso, a exclusão e supressão da alteridade também contém um potencial considerável de violência e destrui-
ção tanto no psicológico individual quanto na constituição social.
Neste contexto, Brecht desenvolve uma nova compreensão do indivíduo, que não é visto isolada-
mente e é particularmente exposto, nem é suposto ser “apagado” em sua personalidade no coletivo; mas em
sua diversidade pode receber uma nova força através da integração em um grupo. As pessoas, especialmente
os atores no processo teatral, devem fazer experiências consigo mesmas como um “Dividuum”; isto é, “é
precisamente para o indivíduo enfatizar sua divisibilidade [...]”.69
Nas reflexões de Brecht sobre a estranheza e o indivíduo, há referências óbvias à teoria da alienação
de Hegel e Marx e ao “Dividuum”70 de Nietzsche; enquanto a teoria da estrangeirice de George Simmel, de-
senvolvida na digressão sobre o estranho, era provavelmente desconhecida por ele. No entanto, paralelos parti-
cularmente notáveis e referências às modernas ciências naturais, especialmente à teoria quântica, podem ser
estabelecidos: o átomo e o in-dividuum como o original, indivisível “ambos se tornaram divisíveis” no século
XX e estão em interação com seu ambiente ou com outros homens. Em uma conversa com Brecht, Bernard
Guillemins afirma: “O ego contínuo é um mito. O homem é um átomo em permanente decomposição e recém-
-formado”.71 Para ele, a “fragmentação, explosão, atomização da psique do individuo”, “essa insensibilidade
peculiar dos indivíduos”, não significa “ausência de substância”. Em vez disso, ele fala em um sentido positivo
da “fragmentação da pessoa”, da “divisão do ser humano”,72 do indivíduo “como um complexo contraditório” e
de uma “multiplicidade obcecada pela batalha”73; e conclui a partir disso que se deve “expandir enormemente
o dividual”.74 Como Stuart Hall apontou em sua Teoria da Constituição do Sujeito, as mudanças sociais no
63
início do século XIX começam a decair e fragmentar as pessoas. Hall enfatiza: “[...] que qualquer concepção
assegurada ou essencialista de identidade, que desde o iluminismo define o núcleo ou a essência de nosso ser,
pertence ao passado”.75 O homem não mais tem uma identidade imutável, mas tem várias identidades ou uma
dinâmica com várias áreas diferentes, ele se pluraliza.
Essa identidade pluralizada permite relacionar-se com outras identidades pluralizadas sem defender
o estranho. No entanto, como Welsch enfatiza, requer um “alto grau de capacidade de transição”: “A vida dos
sujeitos torna-se uma ‘vida plural’ em um duplo sentido. Primeiro, na relação externa: vive-se em um campo de
possibilidades sociais e culturais marcado pela pluralidade e tem que se mover e encontrar o seu caminho nessa
pluralidade. Em segundo lugar, na relação interior: o sujeito dispõe de vários esboços, que ele pode passar ao
mesmo tempo ou em sucessão. Tanto a pluralidade externa quanto a interna exigem um alto grau de capaci-
dade de transição”.76 Especialmente nos jogos teatrais, mas também em assistir teatro, essa atitude de transição
pode ser experimentada, mesmo que a expectativa de autoconfiança contradiga repetidamente esse processo.
Nos mais diversos níveis – teatral, literário, epistemológico e sociopolítico, bem como teatro-peda-
gógico – a alteridade de Brecht determina a estrutura do texto, os métodos de atuação, a atitude do especta-
dor e os processos de aprendizagem do trabalho teatral e dos processos do jogo. Portanto, Brecht estabelece
uma nova ênfase: contra a alienação destrutiva do homem no capitalismo; ele entende ser um estranho
como uma experiência de sua própria pluralidade, enfatiza o estranho como uma parte de cada pessoa e
mostra a possibilidade de uma atitude produtiva para a estranheza. Na percepção teatral e nos jogos teatrais,
no contraste teatral Como e Se cênico, na mudança de papéis e na distância dos papéis, na experiência da
diferença de personagem e figura, na percepção do eu e do estranho, no dialógico e performativo. Assim, as
várias formas de mudança de perspectiva, alteridade, diversidade e diferença se desenvolvem e permitem
mudanças sociais e individuais. Tanto a “arte do espectador” quanto a “arte de atuar” baseiam-se, como ele
diz, no “desacordo consigo mesmo”.77 Em 1929, ele formulou enfaticamente: “Todos deveriam se afastar de
si mesmos. Caso contrário, o horror que é necessário para o reconhecimento desaparecerá”.78
Quando Brecht usou pela primeira vez o título de “Peça Didática” em 1929, com A Peça didática
de Baden-Baden sobre o acordo, como ela foi chamada mais tarde, e que foi apresentada em 28 de julho na
Musikfestwochen de Baden-Baden, ele tinha criado um tipo de teatro em que o ponto central ultrapassava
claramente suas experiências com o teatro épico: a comunicação entre palco e plateia, interpretar para um
público tinha sido abolido ou, pelo menos, tornada irrelevante: “a peça didática assim ensina”, como escreve
Brecht, “que é apresentada, não pelo fato de que seja vista. A princípio, nenhum espectador é necessário para
a peça didática, mas é claro que pode ser utilizado”.79
Brecht “conduz”, como ele enfatiza, “outra cadeia de experiências” que, “apesar de se servir dos meios
teatrais, no fundo não precisava do teatro”.80 Em vez disso, ele inicia um processo de jogo pedagógico-político,
75. Stuart Hall: Die Frage der kulturellen Identität. In: S.H.: Rassismus und kulturelle Identität. Ausgewählte Schriften, Bd. 2. Hg. von Ulrich Meh-
lem u.a. Hamburg 2002, S. 181.
76. Welsch, Wolfgang: Die zeitgenössische Vernunftkritik und das Konzept der transversalen Vernunft. Frankfurt a. M. 1996, S. 831.
77. Bertolt Brecht: Kleines Organon für das Theater, S. 82.
78. Bertolt Brecht: Dialog über Schauspielkunst. In: GBA, Bd. 21, S.280.
79. Bertolt Brecht: Zur Theorie des Lehrstücks. In: Brechts Modell der Lehrstücke, Diskussion, Erfahrung. Hg. von Reiner Steinweg. Frankfurt a. M.
1976. S. 164 f.
80. Bertolt Brecht: [Das Deutsche Drama vor Hitler]. In: GBA, Bd. 22.1, S. 167.
64
autorreflexivo. Esta série de experimentos consiste em O voo sobre o oceano, A peça didática de Baden-Baden
sobre o acordo, Aquele que diz sim e aquele que diz não, A decisão, A exceção e a regra e Os Horácios e os Curiá-
ceos; isto é, peças didáticas para o rádio, peças didáticas no contexto da música experimental, bem como peças
didáticas para alunos no cenário da pedagogia da reforma, para coros de trabalhadores e para crianças. Há,
também, dois fragmentos de peças didáticas O maligno Baal, o associal e o Fatzer.
Assim, a concepção de Brecht da peça didática não está preocupada com o fato de que as figuras
teatrais se expõem para o público, não com opiniões e convicções,83 que são representadas e formuladas,
mas com atitudes que são praticamente testadas no jogo teatral em troca e interação mútua. Não é o conte-
údo da “tese e contra tese” que nos interessa, mas o teste lúdico das próprias atitudes controversas, que são
“exercícios de flexibilidade”,84 como Brecht chama. Neste contexto, também está a “teoria das pedagogias” de
Brecht, na qual ele lida com o problema central da teoria e prática, que Karl Marx alia com décima primeira
tese formulada por Feuerbach, que não teve importância crucial apenas para o desenvolvimento do marxis-
mo. Contra a separação entre “política” e “filosofia”, isto é, o “ativo” do “contemplativo”, Brecht afirma que
“os políticos devem ser filósofos e os filósofos políticos”. Seu postulado desemboca em uma posição lacônica:
“entre a verdadeira filosofia e a verdadeira política não há diferença”. Ele quer superar a contradição entre
teoria e prática nos “jogos teatrais”, o que significa “fazer com que os jovens [...] ao mesmo tempo realizem
e contemplem”. “Ao fazer os jovens realizarem atividades que estão sujeitas à sua própria contemplação”,85
eles aprendem de maneira diferente e ao mesmo tempo diferente das instituições pedagógicas tradicionais.
Segundo Brecht, a pesquisa teatral e os jogos autorreflexivos possibilitam, no processo performativo, a mu-
dança de atitudes na forma de uma nova relação teoria-prática.
81. Bertolt Brecht: Missvertändnisse über das Lehrstück. In: Brechts Modell. S. 129 f.
82. Bertolt Brecht: The German Drama: pre-Hitler. In: Brechts Modell, S. 150.
83. Walter Benjamin enfatiza, citando Lichtenberg: “Não é algo convicente, importante. Importante é o que suas convicções fazem dele.” Walter
Benjamin: Bert Brecht. In: GS, Bd. II.2, S.
84. Brecht refere a Pierre Abraham. In: Brecht Modell, S. 198.
85. Bertolt Brecht: Theorie der Pädagogien. In: Brechts Modell, S. 70f.; a continuação das frase diz: “eles são educados para o estado.” Esta formulação
está apenas no contexto da teoria de Marx sobre a morte do estado, isto é, do “novo estado sem classes (uma vez que já não há mais estado)” (Bertolt
Brecht: Pädagogik. In: Brechts Modell, S. 52), para enter uma teoria que não pode aqui ser mostrada em detalhes.
86. Bertolt Brecht: Zur Theorie des Lehrstücks, S. 164.
87. Brecht: Zur Theorie des Lehrstücks.
65
concordar”.88 Ao fazê-lo, os aspectos individuais são apontados, isolados “gestos citáveis”,89 como Walter
Benjamin diz, mas também verificáveis, variáveis e corrigíveis. Percepção e ação estão intimamente ligadas
e, em contraste com o teatro épico, a performatividade, como ação física e linguística, domina e apresenta
a realidade em comparação com a representação. Estas experiências performativas são sobre produção de
experiência baseada na teoria, experiência no jogo e processos de pensamento.
Os níveis de produção, representação e percepção, que muitas vezes são separados nas artes, estão
intimamente ligados na peça didática com o jogo, e há uma constante troca e alternância entre as múltiplas
formas de produção. Na troca de papéis do processo de jogo, os participantes são às vezes condutores de jogos
ou observadores (espectadores), experimentador, às vezes colegas de jogo, também parte da experiência e,
portanto, do jogo; isto é, o objeto de investigação. Eles são completamente estranhos a si mesmos e, ao mesmo
tempo, como observadores distantes, eles estão em si mesmos e fora de si, isto é, eles experimentam uma estra-
nheza integrada ao sujeito. Sujeito e objeto não são separados, eles diferem apenas ocasionalmente no decurso
do tempo, bem como na mudança de perspectivas de estranho e autopercepção. Heiner Müller, sucessor de
Brecht, enfatiza: “Cada jogador pode ser exposto / submetido à emoção que o texto articula / oculta. Não há
monopólio no papel mascara gesto texto, a epicização não é privilégio: dar a todos a chance de se distanciar”.90
88. Bertolt Brecht, “[Einverständnis und Widerspruch]”. In: Brechts Modell, S 62; compare com isso também o poema de Brecht “IDEM ER JA
SAGT”, cuja primeira linha é “INDEM ER JA SAGT, indem er nein sagt”. In: GBA, Bd. 15, S. 172 e Bd. 22.2, S.812; Brecht 1938/39 formula isso:
“Em algumas situações, devemos esperar ser mais do que uma resposta, uma reação, um procedimento, um sim e um não; [...].” (GBA 22.1 S. 396).
No contexto da arte da atuar dizem: “ Mas é melhor considerar o homem como uma coisa incompleta e deixá-lo lentamente surgir, da afirmação à
afirmação e da ação à ação.” (GBA 22.2, S. 812).
89. Walter Benjamin: Bert Brecht, S. 662.
90. Heiner Müller:Einheit des Textes. In: H. M.: Werke. Bd. 5, S.192.
91. Por isso, ao invés de apresentação Brecht fala “exposição”. (GBA 24, 96)
92. Brecht: Zur Theorie des Lehrstücks, S. 164.
93. Compare: Theodor W. Adorno: Engagement. IN: Th. W. A.: Noten zur Literatur. Frankfurt a. M. 1981, S. 418-421.
94. Ralf Schnell / Florian Vassen: Ästhetische Erfahrung als Widerstandsform. Da interpretação gestual do fragmento “Fatzer”. In: Associales Thea-
ter. Spielversuche mit Lehrstücken und Anstiftung zur Praxis. Hg. von Gerd Koch / Reiner Steinweg / Florian Vassen. Köln: 1984, S. 170.
66
Acima de tudo, “em uma comunidade experimental” as percepções e atitudes são “desreguladas”
com base em certas regras. O resultado do processo lúdico permanece incerto e duvidoso, a potencialidade
é o ponto de partida, base e objetivo. Surge algo novo, algo estranho, algo incomum e também perturbador
e, portanto, um “sentido de possibilidade” social-estético. O espaço social da peça didática torna-se – pro-
nunciado por Heiner Müller – “ilhas de desordem”.95
Os experimentos pedagógicos teatrais de Brecht, seu conceito teatral ativo de aprendizagem, possi-
bilitam um tipo de pedagogia fundamentalmente diferente, na qual o teste comum de atitudes e a prática de
experiências estéticas estão em questão. No centro dos processos de aprendizagem teatral estão a autonomia
e a teimosia dos participantes na forma de autoeducação. Tanto a “arte do espectador”, quanto “arte de atu-
ar” de Brecht, seus experimentos e tentativas nos trabalhos práticos de teatro, bem como sua concepção da
peça didática tem um grande significado para o teatro atual e a pedagogia de teatro de hoje na Alemanha,
às vezes apenas implicitamente, sem estar sempre ciente dos atores e participantes. Pode-se aprender muito
com Brecht, pode-se usá-lo em todos os sentidos e até mesmo a crítica de seu teatro é útil para novos experi-
mentos. Portanto, não apenas o dito de Heiner Müller, “Usar Brecht sem criticá-lo, é traição”,97 mas também
a inversão: “Criticar Brecht sem usá-lo é traição”.98
95. Heiner Müller: “Estou interessado no caso Althusser...” In: H. M.: Werke, Bd. 8, S. 245.
96. Walter Benjamin: Gespräche mit Brecht. Svendborger NOtizen. In: W.B.: Versuche über Brecht. Frankfurt a. M., S. 126.
97. Heiner Müller Fatzer + Keuner.: Werke. Bd. 8, S. 231.
98. Kirsch, Sebastian: Brecht kritisieren ohne ihn su gebrauchen ist Verrat!In; Theater der Zeit H. 3 (2012), S. 61.
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UTOPIA BRECHTIANA: PEDAGOGIAS
DO TEATRO EM PERSPECTIVA
Ingrid Dormien Koudela99
Q uando recebi o convite para a conferência no Sexto Congresso Internacional SESC de Arte/
Educação, encontrei o termo UTOPIA. Este termo é adjetivado em seu título como brechtiana. O que me
reporta à minha pesquisa sobre a Peça Didática de Bertolt Brecht.
Não haveria melhor uso para a liberdade que me concedeis do que levar vossa atenção ao palco da
arte? Não será extemporânea a procura de uma legislação para o mundo estético quando o moral tem interesse
tão mais próximo, quando o espirito da filosofia é solicitado urgentemente pelas questões do tempo, pela maior
de todas as obras de arte, a construção de uma verdadeira liberdade política?101
A natureza foi agora substituída por uma engenhosa engrenagem cuja vida mecânica, em sua totali-
dade, é formada pela composição de infinitas partículas sem vida (...) o gozo foi separado do trabalho, o meio
da finalidade, o esforço da recompensa. Eternamente acorrentado a uma partícula do todo, o homem só pode
formar-se enquanto partícula; ouvindo eternamente o mesmo ruído monótono da roda que ele aciona, o ho-
mem não desenvolve a harmonia de seu ser e, em lugar de desdobrar a sua natureza, a humanidade tornou-se
mera cópia de suas ocupações e de sua ciência¨.102
99. Ingrid Dormien Koudela é uma das professoras pioneiras na área de teatro na educação, sendo iniciadora desta área de pesquisa na Universida-
de de São Paulo, a primeira instituição brasileira a oferecer programas de Mestrado e Doutorado específicos neste setor. Suas publicações incluem
JOGOS TEATRAIS, uma abordagem teórica realizada a partir das propostas de Viola Spolin; BRECHT: UM JOGO DE APRENDIZAGEM, uma
análise do teatro didático de Bertolt Brecht, através do qual explora suas relações com Piaget e Spolin e desenvolve a teoria de Brecht sobre a peça
didática; e TEXTO E JOGO que vai além de relato e analise de experiências e suas respectivas influências, apresentando o resultado de suas pesquisas
na forma de uma metodologia que incorpora fragmentos da dramaturgia brechtiana com princípios dos jogos teatrais.
100. GUINSBURG, J. e KOUDELA, I.D. Teatro da Utopia: Utopia do Teatro? In: UM VOO BRECHTIANO, SP: Ed. Perspectiva, 1992, pp. 22.
101. SCHILLER, F. Cartas sobre a Educação Estética da Humanidade, Trad. Roberto Schwarz, introdução e notas: Anatol Rosenfeld SP: Herder,
1963.
102. Idem, pp. 23.
68
Marx e Engels procuram desenterrar também na arte as raízes da antítese, cujas consequências
aparecem na crítica de Schiller e formam os filamentos com que este irá tecer a sua estética da superação. A
teoria marxista também busca uma solução reintegradora para a sociedade e para o impasse da alienação
artística. E vai encontrá-la na sociedade sem classes:
(...) em uma organização comunista da sociedade desaparece a inclusão do artista na limitação local
e nacional, que corresponde unicamente à divisão do trabalho (...) em uma sociedade comunista não haverá
pintores, mas homens que, entre outras coisas, também se dedicam a pintar (Teses de Feuerbach)103
É nesta sequência ou nesta moldura de ideias que se deve inscrever o pensamento de Brecht e a sua
proposta para a educação estética. O poeta retoma o debate de Platão e Rousseau sobre a função da arte e
do teatro na polis, bem como o de Schiller e Marx, realizando uma notável junção e um cruzamento entre
as propostas de ambos, que lhe são por certo congeniais, não obstante o peso preponderante do marxismo
no espirito de Brecht.
Em tempo algum, disse Brecht, ¨a sugestão de Schiller de transformar a educação política em uma
questão estética foi tão obviamente sem perspectiva¨.104
Mas nem por isso abandona este ponto de mira, precisamente naqueles anos. Ao contrário do ritual
comunitário de Rousseau, que busca sua inspiração no passado, pela recuperação do estado natural como
fator de integração entre os homens, no ritual político de Brecht, a utopia estética, presente em Schiller, é
projetada para o porvir, como a visão marxista propõe. Perguntado como seria o teatro do futuro, o drama-
turgo responde:
(...) sagrado, cerimonial, ritual (...) espectadores e atores não devem aproximar-se mas sim estranhar-se
de si mesmos, do contrário não ocorre o espanto, necessário ao reconhecimento.
O que diferencia o ritual político brechtiano é o princípio da linguagem gestual, a qual, ao incorpo-
rar o sensorial e o racional, pressupõe a experiência estética. Em lugar da comunhão coletiva para provocar a
catarse, Brecht pretende a descomunhão para obter mudança de comportamento. O componente metafisico,
ritualizado no teatro de Artaud, é substituído em Brecht pelos poderes sociais que passam a ser concretiza-
dos corporalmente.
Esta encenação estaria então condicionada à participação do espectador no ato artístico coletivo. O
princípio da identificação é substituído por Brecht por uma atuação que nasce das relações de jogo onde não
há mais separação entre palco e plateia.
A peça didática não pretende transmitir uma ideologia, mas promover um talento que não se refere
mais ao indivíduo mas a mudança das relações dos homens entre os homens. A ¨utopia concreta¨ (na expres-
são cunhada por Ernst Bloch) é um ensaio de aprendizagem de gestos e atitudes transformador da sociedade.
Nos últimos enunciados que formulou sobre a tipologia dramatúrgica da peça didática (1956) Bre-
cht escreve:
Esta designação vale apenas para as peças que ensinam aqueles que representam. Elas não necessitam
de público, embora ele possa ser utilizado.105
103. GUINSBURG, J. e KOUDELA, I.D. Um Voo Brechtiano SP: Ed. Perspectiva, 1992, pp. 26.
104. Idem, pp. 30.
105. Idem, pp.42.
69
***
Encontro ainda no subtítulo do tema dado pelo Congresso o termo Pedagogia do Teatro, que
deixa claro o lócus de minha fala:
Uma definição única da Pedagogia do Teatro torna-se cada vez mais impossível. Uma descrição
precisa de seu estatuto profissional é inglória. A Pedagogia do Teatro ou Pedagogia das Artes Cênicas abar-
ca hoje tanto a ação cultural quanto o professor de atores em uma escola de teatro, bem como o professor
de teatro no ensino formal. No desamparo em que nos vemos assim todos colocados, convém examinar
as transformações por que passou no passado.
Na história do teatro moderno já encontramos as teorias da experiência que podem ser indicado-
ras e iluminar a Pedagogia das Artes Cênicas contemporânea.
O conceito expandido de teatro pode ser encontrado nos Estados Unidos, desde a sua origem em
Robert Wilson, por exemplo.
Investigações didáticas nasceram notadamente na Europa Central com Jacob Levy Moreno; Ber-
tolt Brecht; Peter Slade; Rudolf Laban, a Bauhaus e Carl Orff, entre outros. O caráter performativo do jogo
teatral de Viola Spolin, revolucionou o teatro norte-americano, na teoria e na sua prática pedagógica e
artística, abrindo campos expandidos tanto na educação como no teatro improvisacional.
Torna-se visível que a Pedagogia do Teatro já conhecia e praticava procedimentos descritos como
contemporâneos em sua origem moderna. Ouso afirmar que o teatro na educação modificou a estética
do teatro não apenas através de sua ligação com a prática sociocultural mas principalmente em função de
conceitos, métodos e procedimentos legitimados pelos autores modernos.
***
Em um texto denominado Observação da Arte e Arte da Observação, Brecht reflete sobre o pro-
cesso de fruição estético afirmando que assim como é verdade que em todo homem existe um artista, que o
homem é o mais artista dentre todos os animais, também é certo que essa inclinação pode ser desenvolvida
ou perecer. Subjaz à arte um saber conquistado através do trabalho.107
106. ALMEIDA JUNIOR, J.S. Léxico de Pedagogia do Teatro. SP: Ed. Perspectiva e SP- Escola de Teatro, 2015.
107. BRECHT, B. revista A PARTE
70
Ao buscar uma tradução para o inglês do termo alemão Lehrstück (peça didática), Brecht esta-
belece sua diferença com a peça épica de espetáculo (Episches Schaustück), apontando para uma nova
concepção de pedagogia e de teatro:
(...) o equivalente inglês mais próximo que encontro é peça de aprendizagem... que muitas vezes não
necessitava do palco no sentido tradicional. Em outro momento pontua: se não quiserem chamar de teatro,
chamem de taetro!108
A peça didática soluciona o problema da ligação entre a prática do teatro e a prática de seu público,
ao incorporar o espectador no processo teatral, permitindo-lhe penetrar nas ações que se desenrolam sobre
o palco, até o ponto em que ele por fim quase se desvanece como espectador. Ao mesmo tempo, desaparece
também desse contexto de produção e aprendizado o ator profissional.
A encenação transforma-se em um processo entre autor e público – ela se liberta do quadro insti-
tucional do teatro. A peça didática é – quando vista a partir da perspectiva teatral – uma solução extrema.
É a criança.
71
É com eles que nós trabalhamos, seja fazendo teatro, seja no oficio artístico- pedagógico. Busco
delimitar minha tarefa. E começo pelo inicio: a criança.
O Senhor. Keuner observou o desenho da sua sobrinha pequena. Representava uma galinha voando
sobre um pátio. Por que a sua galinha tem três pernas? perguntou ele. As galinhas não voam, respondeu a
pequena artista, por isso precisei de mais uma perna para dar o impulso. Estou contente por ter perguntado¨,
disse o Senhor Keuner.109
Na conferencia pronunciada por Brecht na década de vinte, na Suécia com o titulo Vale a Pena Fa-
lar de Teatro Amador?110 fica clara a consciência que tinha não apenas relativa à origem do jogo teatral na
psicogênese como também de seu significado social como linguagem simbólica do homem comum em seu
cotidiano.
Tudo aquilo que contribui para a formação do caráter realiza-se, de acordo com Brecht, na primeira
fase da infância, sendo que a imitação aí exerce um papel fundamental. O jogo teatral, na visão brechtiana,
é um comportamento natural ao ser humano, sendo que o desenvolvimento artístico do teatro como espe-
táculo é uma marca dentro de um continuum que segue da criança até o artista adulto.
O jogo teatral encontra-se presente também no teatro amador, tão apreciado por Brecht. E o que é
ainda mais importante, no cotidiano, quando homens imitam outros homens ou representam um evento
com caráter de demonstração na vida corrente. A partir dessa premissa, a arte do teatro é a mais humana e a
mais singela de todas as artes sendo realizada não apenas no palco, mas também no dia a dia. De acordo com
Brecht, a arte do teatro de um povo ou de uma época deve ser julgada como um todo, como um organismo
vivo, que não é saudável se não for saudável em todos os seus membros. O alerta chama atenção para o te-
atro realizado com crianças ou jovens e esta também é a razão pela qual vale a pena falar de teatro amador.
Ai!
O homem
109. BRECHT, B. Gesammelte Werke, Tradução: KOUDELA, I.D Frankfurt: Suhrkamp, 1967 vol. 12, pp.400.
110. BRECHT, B. Gesammelte Werke, Tradução: KOUDELA, I.D. Frankfurt: Suhrkamp, 1967 Vol. 15, pp.433.
72
Sendo lobo do homem
Ali,
Um deles se ajoelhou diante do outro
Logo mais os infelizes jogadores terão perdido também o seu direito de cidadania.111
Aqui Brecht observa um desenho oriental, o que cria distancia do evento real. O poeta se posiciona
axiologicamente frente à própria vida, sendo que a valoração ultrapassa o limite do apenas vivido. Ele se
distancia de seu contexto histórico e o olha de fora, torna-se outro em relação ao seu tempo. Ele não apenas
registra passivamente os acontecimentos terríveis.
O poeta que faz recortes provoca um processo de compreensão que é dialógico, pois é sempre um
reflexo do reflexo que nos reporta ao contexto histórico em que viveu Brecht, mas também pode nos repor-
tar ao presente de nosso contexto histórico.
111. BRECHT, B. Gesammelte Werke 9 Tradução: KOUDELA, I.D. Frankfurt: Suhrkamp, 1967, pp. 543.
112. BRUGHEL, P. Children`s Plays, Brincadeiras de Crianças (1563-1567).
73
Na construção do espetáculo teatral NÓS AINDA BRINCAMOS COMO VOCES BRINCAVAM?113
a leitura da pintura de Brughel foi o ponto de partida para a pesquisa da cultura oral de jogos populares brasi-
leiros. O repertório de jogos de rua inventariado pelo artista através da imagem da praça medieval foi encenado,
sendo que as regras de jogo e os versos e músicas dos jogos tradicionais constituíram-se em texto espetacular.
Os atuantes identificaram jogos que resgatavam de sua infância. Ao mesmo tempo em que este
resgate apontava para um passado nem tão distante, a imagem da praça medieval na pintura de Brughel nos
permitia tomar distancia histórica.
113. KOUDELA, I.D. Nós ainda brincamos como vocês brincavam? Encenação UNISO – Universidade de Sorocaba, 2006.
74
Quem eram aqueles brincantes? Como estavam vestidos? Por que tinham aquela expressão
fisionômica? Eram adultos ou crianças? As crianças hoje ainda conhecem estes jogos? O que mudou? Como
era a sua rua? Quem eram seus parceiros? As crianças hoje ainda conhecem estes jogos?
A pintura de Brughel nos permitiu tomar consciência do tempo, historicizando assim a obra. Os
jogos, as brincadeiras, as crianças nem sempre foram as mesmas e nem sempre o serão!
O que mais me mobilizou nesta encenação - descoberta no processo da leitura da imagem - foi a
aplicabilidade do conceito de historicização a esta e outras pinturas de Brughel.
Nas inúmeras tentativas de conceituação do estranhamento por Brecht, identificamos dois passos.
Um primeiro, que se aproxima daquela do formalismo russo, como segue:
Um segundo passo, mais específico em Brecht, se diferencia pelo fato de chamar a atenção para
processos sociais. Em oposição a outras tendências artísticas, ele busca meios que visam mostrar as relações
dos homens entre os homens, sendo que justamente aquilo que é cotidiano, usual, deve ser tratado como
histórico.
... estranhar significa, pois, historicizar, representar processos e pessoas como históri-
cos, portanto transitórios. O mesmo pode acontecer com contemporâneos. Também
as suas atitudes podem ser representadas como temporais, históricas, transitórias115
Peter Brughel (1563 – 1567) foi para Brecht um mestre. Ele anota em seu Diário de Trabalho em
18.12.1948:
Costumo acordar às 5:30 horas. Então preparo café ou chá, leio um pouco de Lukács
ou Goethe (o ¨colecionador¨). Quando levanto, olho para uma grande pintura im-
pressa da dança de camponeses de Brughel na parede... e então sento-me à mesa
para trabalhar.116
114. BRECHT, B. Gesammelte Werke 15, Tradução: KOUDELA, I.D., Frankfurt: Suhrkamp, 1967, pp.302.
115. Idem
116. BRECHT, B. Grosse Brecht Ausgabe 27, Tradução: KOUDELA, I.D. Frankfurt: Suhrkamp, 1994, pp.292.
75
Na casa onde morou em Berlim, durante a visita, chama-se a atenção para o fato de que Brecht
carregou seus dois volumes de reproduções de Brughel por todos os lugares durante o seu exilio da Alema-
nha. No dia 8.12.1939 inventariou em seu jornal de trabalho os seus pertences, entre outros: ¨2 volumes de
quadros de Brughel¨.
Nas observações que escreve sobre O Efeito de Estranhamento nas Pinturas Narrativas de Peter Bru-
ghel, o Velho tal efeito modelar sobre a sua própria obra se evidencia:
Mesmo quando equilibra seus opostos, Brughel não os equipara uns aos outros. Não existe nessas
imagens uma separação entre o trágico e o cômico. O trágico contém o cômico e o cômico, o trágico.117
Interessa a Brecht a contradição, o jogo de oposições, a superação da divisão dos gêneros e, sem
dúvida, a historicização provocada por estas colisões – o tempo em suspenso!
A etapa da descrição é um dos momentos mais sutis e produtivos na leitura de imagens. A verbaliza-
ção daquilo que é visualizado faz com que a percepção de formas e conteúdos seja trazida para a consciência.
Nas pinturas de Brughel o método narrativo é exercitado no próprio ato da percepção da obra, na
medida em que ele combina o princípio da perspectiva com a decifração sequencial das inúmeras informa-
ções que suas pinturas aportam. Este exercício pode ser instaurado de forma programática com grupos de
crianças, jovens e adultos.
76
A pequena dimensão deste acontecimento lendário (é necessário procurar o acidenta-
do). Os personagens se afastam do acontecimento. Bela representação da atenção que
envolve o arar. O homem que está pescando à direita em frente tem uma relação espe-
cial com a água. O sol já no poente, que a muitos causou admiração, deve significar que
a queda demorou muito tempo. De que outra forma representar que Ícaro voou alto de-
mais? Já não se vê Dédalo há muito. Contemporâneos flamengos em uma paisagem su-
lina antiga. Beleza e alegria especial na paisagem durante o acontecimento terrível119
A própria obra executa a interrupção de si mesmo, obrigando o olhar do fruidor a construir a sua
visão e interpretação, transformando a contemplação em atitude participativa. A imagem não se impõe em
seu contexto dramático, provocando identificação. Ao contrário a forma narrativa exige decodificação dos
vários elementos cujo caráter paradoxal leva ao espanto. Brecht pretende que seu teatro execute a interrup-
ção de si mesmo como espetáculo. O teatro pode criar situações nas quais a inocência do espectador seja
perturbada, colocada em questão. Trata-se de um trabalho (político) através do qual a estética do teatro
ilumina as implicações do espectador, sua responsabilidade latente.
Brughel residia em Bruxelas quando, em agosto de 1567, o duque de Alba chegou à frente das suas
tropas. Era enviado pelo rei de Espanha, Felipe II, cujo império compreendia também as províncias dos
Países Baixos. O comandante, encarregado de converter os protestantes pela força, condenou à morte vá-
rios milhares de pessoas durante os anos que se seguiram. Esta excepcional dureza levou à revolta e depois
à guerra que viria a durar oitenta anos e terminar com a divisão das províncias em dois blocos: a (futura)
Bélgica católica ao sul e os Países Baixos protestantes, ao norte.
Outrora não era habitual transferir os acontecimentos bíblicos para a sua própria época, mas por vezes
os motivos religiosos revestiam-se de atualidade política. Segundo a Bíblia, o rei Herodes ordenou a matança de
todos os recém-nascidos do sexo masculino, em Belém. Brughel transpõe a cena para uma paisagem flamenga.
Um grupo de cavaleiros de armadura vigia o massacre. As lanças agarradas na vertical eram uma das caracterís-
ticas das tropas espanholas. O seu chefe, vestido de negro, é provavelmente uma alusão ao duque de Alba.120
Antuérpia tornou-se uma cidade –cogumelo. O homem do século XVI vivia em comunidade, numa
pequena paróquia a que dava a volta em pouco tempo. O número de habitantes permanecia estável e toda
77
a gente se conhecia. De 1500 a 1569 a população de Antuérpia aumentou quase o dobro. A cidade contava
quase um milhar de estrangeiros que falavam outra língua e tinham costumes diferentes. Os comerciantes
estrangeiros, os novos grupos religiosos e o rápido progresso da cidade desorientaram os habitantes. O
episódio bíblico que relata a construção da Torre de Babel era considerado a própria imagem desta situa-
ção: a torre tinha de chegar ao céu o que desagradou a Deus. Ele retirou aos homens a linguagem comum,
impedindo-os assim de terminar a obra. A pintura A Torre de Babel de Brughel introduz no episódio bíblico
várias referências à realidade de seu tempo, entre outras o panorama da cidade.
Heiner Müller (1929 – 1995), nosso contemporâneo, escreveu uma autobiografia cujo título é signi-
ficativo: Guerra sem Batalha. Uma Vida entre Duas Ditaduras121. Cassandra viveu a guerra de Tróia.
Nós vivemos uma crise e/ou uma guerra? A História do Brasil é cruel ao confrontar-nos com nossos
fantasmas. Eles vêm do passado mas também projetam nosso futuro. Talvez o princípio esperança esteja na
consciência histórica, única forma de libertação.
121. MÜLLER, Heiner Guerra sem Batalha. Uma Vida entre Duas Ditaduras. Tradução: Karola Zimber, SP: Estação Liberdade, 1997.
78
Reencontramos a utopia na forma de narrativas míticas. Trago um exemplo que tem sua origem na
antiguidade. Ali, o pássaro de fogo era associado ao deus do sol e venerado como símbolo do sol nascente.
Sua plumagem dourada avermelhada só era vista raramente. Quando voltava de suas excursões pousava no
templo do deus do sol. Ao nascer do sol incendiava-se no fogo da aurora para finalmente renascer rejuve-
nescido e partir voando. Os gregos batizaram esse pássaro de Fênix. Sua aparição demora às vezes, segundo
o mito, 500 anos.
Gostaria de concluir minha fala com a narrativa poética Fênix, de Heiner Müller122 que reporta ao
tempo da história, alargando o horizonte da percepção, libertando-nos do eterno presente:
Fênix chama-se o pássaro que a cada quinhentos anos incendeia a si mesmo e renasce das
próprias cinzas. Às vezes seus quinhentos anos duram apenas uma noite: ele voa à noite
para o sol e inicia pela manhã o seu retorno para a terra INCENDIADO, MAS NÃO CON-
SUMIDO, chamas na plumagem. Às vezes sua noite dura 500 anos. O fogo consome apenas
as escórias com as quais o trabalho humano o entulha: modas mídia indústrias e o veneno
dos cadáveres das guerras molesta o seu manto de plumas. Seu segredo é a chama eterna
que arde em seu coração. Ele não esquece os mortos e aquece os que ainda não nasceram.123
122. MÜLLER, H. Phönix, in Heinermüllermaterial Tradução: KOUDELA, I.D. Leipzig: Reclam, 1990, pp.109
123. NOTA: Publicações recentes atestam a contemporaneidade da Peça Didática entre nós:
CONCILIO, V. Baden Baden. Modelo de Ação e Encenação no Processo com a Peça Didática Jundiaí: Paco Editorial, 2016
GAMA, J. Alegoria em Jogo. A Encenação como Prática Pedagógica SP: Perspectiva,2016.
KOUDELA, I.D. Brecht: um jogo de aprendizagem, S.P: Ed. Perspectiva, 2010, 2ª. Edição.
---------------------------------Texto e Jogo, SP: Ed. Perspectiva, 1999, 2ª edição.
------------------------------- Um Voo Brechtiano, SP: Ed. Perspectiva,1992.
----------------------------------Brecht na Pós-Modernidade, SP: Ed. Perspectiva, 2012, 2ª Edição.
----------------------------------Heiner Müller. O Espanto no Teatro, SP: Ed. Perspectiva, 2003).
TEIXEIRA, F. Prazer e Critica. O conceito de Diversão no Teatro de Bertolt Brecht SP: Annablume, 2003;
79
O MATERIAL FATZER, DE BRECHT:
DRAMATURGIA EM JOGO E UTOPIA
Francimara Nogueira Teixeira
E m 2013 defendi uma pesquisa de Doutorado que se centrava na articulação produtiva e re-
flexiva entre a teoria e a prática. Meu objeto era o Fatzer, material inacabado, escrito por Brecht entre 1926
e 1930. Meu objeto era o Fatzer como modelo de ação. Desta obra inacabada, explorei experimentalmente
a qualidade de texto-modelo a partir da teoria da peça didática, elegendo como instrumentos didáticos e
metodológicos o modelo de ação (Handlungsmuster) e o estranhamento (Verfremdung), na perspectiva de
explorar estratégias narrativas com o grupo cearense Teatro Máquina, do qual faço parte.
Posso sintetizar com essa pergunta o problema que movia a minha investigação: é possível descobrir
novas formas de narrar através da construção ficcional da experiência? O que eu queria defender, e que
acredito ainda ser um desdobramento importante da minha abordagem, é que o Fatzer se afirma como um
modelo para a investigação contemporânea de novas formas de narrar. Esse material me permitiu desen-
volver essa hipótese pelas seguintes razões: 1. pela forma literária do fragmento; 2. por ter sido produzido
no período em que Brecht desenvolveu o projeto da peça didática; 3. por sua qualidade de texto-aberto que
indica a apropriação e a reestruturação como possíveis procedimentos criativos. O caminho que escolhi
para descobrir e criar estratégias narrativas foi o de explorar o texto como texto-modelo, elegendo como
instrumentos didáticos e metodológicos o modelo de ação e o estranhamento. Defendo que a produção de
novas estruturas narrativas está imediatamente relacionada à descoberta e criação de jogos para a cena e,
para tanto, abordei o Fatzer a partir do conceito de modelo de ação, desenvolvendo com os atores do Teatro
Máquina diversos jogos para a cena.
Bertolt Brecht escreveu textos dramáticos e refletiu sobre os aspectos teóricos e práticos do seu te-
atro de forma profícua e intermitente por mais de trinta anos. Sua produção teórica se revela fundamental
para o pensamento teatral, porque se dá concomitantemente ao desenvolvimento de sua prática e à des-
coberta de novas formas. Brecht é um desses artistas que consegue fazer confluir o pensamento sobre seu
momento histórico com uma produção literária consegue fazer confluir o pensamento sobre seu momento
80
histórico com uma produção literária que se configura como ato artístico. Tal confluência projeta sua obra
para o futuro. A análise do seu processo criativo precisa considerar essa relação de confluência, em um tra-
balho que tem uma inscrição histórica específica.
Na minha pesquisa interessava uma abordagem do projeto brechtiano que o considerasse em sua
totalidade, de forma ampliada e reflexiva, em suas contradições internas e em sua autocrítica. Fredric Jame-
son (1999) escreveu um livro chamado O método Brecht. Nele trata de construir a defesa de que o trabalho
brechtiano acontece através do desenvolvimento dinâmico de sua dramaturgia, de seus escritos teóricos e
da sua atitude política. O desafiador diante da obra de Brecht, segundo Jameson (1999), é investigar o que
Brecht quis representar e os meios que escolheu para fazê-lo. Os conceitos e as técnicas que se associam a
esse teatro são conformados dentro deste mesmo teatro, lhe dão corpo e método.
Compreendo a escrita teórica de Brecht (2005), assim como sua dramaturgia, em um fluxo que
não conhece interrupções, mas sim desvios, deslocamentos e superação. Brecht está interessado em pensar
novas formas para os novos temas e experimenta de maneira inquieta o modelo ópera, o modelo parábola,
o modelo tragédia. Escreve “ao modo de”, fazendo da sua escrita um campo para que as formas narrativas e
dramáticas possam ser testadas e refletidas, discutindo, afinal, o próprio teatro.
Um desses modos é a peça didática – o Lehrstück –, como também é encontrado o termo em parte
da literatura revisada. Os textos foram escritos no período do entre-guerras, fortemente marcado por uma
instabilidade econômica e política brutais. Sobre esse período da produção brechtiana, Heiner Müller (1997,
p.166) diz: “A etapa mais importante de sua obra é para mim o período do fim dos anos vinte até 1933”. O
Fatzer, bem inserido aí, expressa esse contexto histórico de forma visceral.
As peças didáticas formam um conjunto específico dentro da escrita de Brecht. É possível, pelo
seu caráter e unidade, distingui-las dos demais textos, chamados de peças épicas de espetáculo (episches
Schaustück). Nas peças épicas de espetáculo se concentra a maior e mais conhecida produção dramatúrgica
brechtiana, pelo volume de textos e pela quantidade de encenações. Como não prevêem necessariamente a
encenação, as peças didáticas indicam outra relação entre texto e representação.
A peça didática, na obra de Brecht, nasce do conflito legal com a versão filmada da Ópera
de Três Vinténs, quando o dramaturgo sentiu a necessidade de produzir arte distante da
indústria cultural. O embate, iniciado nos tribunais de justiça, como um experimento
para revelar a ideologia da industria cinematográfica, gerou o Lehrstück ou learning play
(jogo de aprendizagem), como Brecht traduziu o termo para o inglês.
Brecht (2005), ao final dos seus apontamentos sobre a ópera Ascensão e queda da cidade de Maha-
gonny, afirma que nas obras seguintes a essa ópera procuraria acentuar cada vez mais o aspecto didático.
Procuraria, portanto, “[...] transformar os fatores de prazer em fatores de ensinamento e transformar deter-
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minadas instituições de estâncias de recreio em órgãos de instrução.” (BRECHT, 2005, p.38) É a partir das
óperas que Brecht define a idéia de que o teatro deveria passar por uma troca de função (Funktionswechsel),
deveria ser, portanto, refuncionalizado.
O projeto utópico de Brecht (1967b) com as peças didáticas esperava poder promover o ponto de
vista do produtor, para que o artista fosse esclarecido quanto à apropriação social dos aparatos. O artista pre-
cisava se compreender como produtor. Sem essa compreensão era impossível qualquer transformação social
e estética importante. O projeto teórico da peça didática discute uma distinção entre Pequena Pedagogia e
Grande Pedagogia, como campo de exercício do teatro na transformação da sociedade capitalista. As peças
didáticas, na fase chamada de Pequena Pedagogia, ainda seriam experimentadas na separação palco-platéia,
com a ressalva do trabalho necessário com amadores, que deveriam permanecer amadores. Na Grande
Pedagogia a separação entre atuantes e espectadores seria superada. O teatro estaria a serviço de uma nova
sociedade sem classes. Aqui é possível antever um novo modelo para o teatro épico e uma reformulação
profunda na compreensão do fazer teatral, já que a radicalidade da sua teoria propõe inclusive a supressão
de um dos pólos fundamentais do espetáculo: o espectador.
O ator, o espectador, o texto, o teatro como lugar físico, todos esses elementos que compõem for-
malmente o teatro passariam, diante da experimentação com as peças didáticas, por uma completa troca de
função, aqui ainda mais incisiva do que a realizada com a proposta das óperas como peças épicas de espe-
táculo. Nesse teatro, as acepções tradicionais de ator e espectador desapareceriam, já que o espaço do teatro
seria, fundamentalmente, o espaço do conhecimento. Os textos dos Lehrstücke, em seu caráter formal, com-
preendidos a partir do conceito de modelo de ação, são essencialmente abertos para o jogo e a atualização. O
conceito de modelo de ação (Handlungsmuster) implica em uma atitude diante do texto, em abordá-lo como
um material poético sobre o qual uma ação se dará. As peças didáticas são peças abertas ao jogo.
O Lehrstück surge como crítica de Brecht (1967) às instituições teatrais estabelecidas, com artistas
e público alienados. O projeto de Brecht, que Heiner Müller (2003) chama de iluminista, é um projeto que
acredita que o teatro – uma vez refuncionalizado – pode se afirmar na luta pelo esclarecimento dos meios
de produção e como exercício real pela experiência de controle desses meios.
Entre 1929 e 1930 Brecht escreve a maioria das peças didáticas, as que nomeia assim em seu título
ou subtítulo: O vôo sobre o oceano (peça didática radiofônica para rapazes e moças), A peça didática de
Baden-Baden sobre o acordo, Aquele que diz sim e Aquele que diz não (óperas escolares), Os Horácios e os
Curiácios (peça escolar), A decisão (peça didática), A exceção e a regra (peça didática). Fatzer e o Malvado
Baal, o associal são fragmentos. Nesses textos, encontram-se elementos comuns à escrita dessa tipologia
dramática, além dos tipos associais e dos eixos temáticos recorrentes como a questão da ajuda e do acordo,
o que vem a ser o homem, as tensões indivíduo versus coletivo.
Tal panorama permite perceber que em cerca de dez anos Brecht se dedica a escrever textos em um
formato que, mesmo tendo uma aplicação imediata no contexto do teatro de agit-prop, dos corais de operá-
rios e das escolas, define – no que concerne à dimensão dramatúrgica – uma outra forma de escrever, porque
é um formato extremamente ligado à urgência dos novos temas.
Desde as óperas, portanto, o projeto das peças didáticas foi sendo desenvolvido por Brecht na ten-
são entre forma e conteúdo. Nas Notas sobre Mahagonny, Brecht defendia que os conteúdos deviam ser
atualizados, embora o modelo ópera ainda devesse permanecer sendo oferecido como uma iguaria ao pú-
blico. Brecht acreditava que a atualização do conteúdo operaria uma discussão com os princípios formais
fundamentais da ópera. A função da ópera, portanto, seria posta em discussão. O exercício com o modelo,
a escritura de uma ópera, nesse caso, se dá como etapa necessária a essa tarefa: a de discutir o modelo,
experimentando-o. Brecht (2005, p.28) é enfático: “[...] mesmo que quiséssemos pôr em discussão a ópera
como tal (função da ópera), ser-nos-ia forçoso fazer uma ópera.”
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O teatro épico inventou um instrumento dramático que fomentava a investigação da significação
social do seu texto, oferecendo-a a seu público como uma questão a ser resolvida. Esse teatro, como um a
priori, não estava interessado em oferecer uma vivência artística coletiva, em provocar as mesmas reações
em seu público, mas antes em dividi-lo, em fazê-lo estranhar a ação, o texto e a si mesmo. O principal de-
safio, me parece, é compreender e poder expressar determinada forma em confluência com o conteúdo
exposto para ser examinado.
Distanciar é cortar o circuito entre o ator e seu próprio pathos, mas é também e
essencialmente restabelecer um novo circuito entre o papel e o argumento; é, para
o ator, significar a peça, e não mais a si mesmo na peça. [...] O distanciamento não
é uma forma (e é precisamente o que fazem dele todos os que querem desacreditá-
-lo); é a relação de uma forma com um conteúdo. Para distanciar é necessário um
ponto de apoio: o sentido. (BARTHES, 2007, p. 240-241).
Diante do uso do estranhamento, o ator deve, sem renunciar completamente à identificação, antes
apresentar do que representar um comportamento a seu público; deve oferecer uma forma acabada dos acon-
tecimentos, dando-lhes o caráter de coisa mostrada. Assim o ator pode expor uma opinião sobre os aconteci-
mentos relacionados ao personagem e convidar o espectador a também desenvolver um olhar crítico.
Acredito que através da experimentação com os textos das peças didáticas é possível encontrar
elementos para a discussão intelectual sobre o lugar do teatro na contemporaneidade, permitindo também
refletir, dialeticamente, sobre a pertinência dessa dramaturgia. A característica fundamental de serem textos
abertos para o jogo apresenta a relação forma/conteúdo de maneira bastante instigante, já que o exercício
com as peças didáticas tem revelado que o tratamento dos seus temas recorrentes está previsto na proposta
dramatúrgica: esquemática e aberta, operando uma reorganização das técnicas teatrais.
Hans-Thies Lehmann (2009) vê a peça didática como um modo de escritura política, porque está
comprometida com o teatro como lugar de revisão de si mesmo. A atualidade dessa tipologia dramatúrgica
está inscrita em sua própria forma: árida, simples, popular, irônica e aberta. Perscrutá-la contemporanea-
mente é uma tarefa que os artistas deveriam encarar como política, pelo compromisso com o teatro.
A temática recorrente a essas peças e de tratamento explicitamente aberto sobre questões como o
estar de acordo e a ajuda, indicam que, nessa tipologia dramatúrgica, a cena, como afirma Lehmann (2007),
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é origem e ponto de partida de um pensar teatral que faz da forma seu conteúdo. Os textos como modelo de
ação operam uma decomposição do diálogo, dando ao gesto um lugar de destaque e uma responsabilidade
ainda maior de condensar em si a consciência da representação.
Tomar a peça didática, sua teoria e sua prática, como orientação metodológica para o tratamento do
Material Fatzer com o Teatro Máquina foi uma forma de alinhar diferentes pontos de partida em uma inves-
tigação interessada na descoberta de jogos para a cena. O material de base para a prática nessa pesquisa se
encontra em fragmentos. O Fatzer é um projeto inacabado, mas que reúne em si a força do fragmento como
forma literária. Acredito que o projeto pode ser recuperado e experimentado a partir dessa qualidade. Essa
sobreposição de referências, em procedimentos de fusão e de separação, está na base da produção contem-
porânea em artes. (LEHMANN, 2007; PAVIS, 2010; PICON-VALLIN, 2006; 2008).
O jogo com o texto e com os elementos épico-narrativos, como a repetição; a fragmentação; a repre-
sentação como um ato de mostrar, já experimentados com o Teatro Máquina em outros processos criativos,
apontavam recursos metodológicos para criação de jogos para a cena, a partir dos experimentos com a peça
didática, como a collage, a ambiguidade ator/figura, a construção corporal através da observação e da aná-
lise dos próprios gestos.
A fim de perseguir a questão principal da minha investigação, entendo que interessava abordar o
Fatzer procurando pelo seu problema. O problema-Fatzer é complexo: aparece metaforizado na espera, no
quarto apertado para cinco pessoas, nos passeios pela rua, na quebra dos acordos, na coletivização do corpo
da mulher. O que essas metáforas transformam em imagens e em situações naturalizadas é a questão de
base que dá corpo ao problema-Fatzer: a violência do próprio coletivo contra ele mesmo, que expõe a perda
de sentido das ações revolucionárias. As questões abertas pela oposição de atitudes entre as figuras de um
Fatzer associal e a de um Keuner pragmático discutem, afinal, a crise da representação política. Com Fatzer
é possível pensar nas razões do fracasso das revoluções populares, no seu silenciamento e também nas suas
formas de organização e de resistência.
Fatzer é um texto sobre a experiência da espera, sobre a crise da representação política, sobre o esva-
ziamento dos ideais revolucionários, sobre o perigo dos modelos. Os quatro soldados à espera da revolução
tornam sua formação nuclear isolada um modelo de radicalização e de negação de si mesmos em nome de
um ideal coletivista. A violência se volta contra eles mesmos, o modelo que imaginam superar é praticado
como saída para manutenção do coletivo.
Dos jogos realizados e dos materiais produzidos foi surgindo uma espécie de dramaturgia, que gos-
taria agora de abordar. Os procedimentos de criação e arranjo das partes que compõem o texto seguiram os
procedimentos que já tinham sido experimentados durante as atividades práticas. Encarei a criação do texto
a partir do conceito de modelo de ação e me empenhei em promover espaços para o estranhamento, através
da troca de papéis, e para a inserção de trechos de invenção própria.
A criação de um roteiro dramatúrgico a partir da prática com o Material Fatzer é, em alguma me-
dida, a forma que encontro de responder à questão inicial de Brecht quando me faço a mesma pergunta
diante do que experimentei com o grupo Teatro Máquina. Os textos que o grupo produziu – o relato dos
dias, o relato dos jogos e a reflexão sobre os exercícios – durante os encontros práticos apontavam para um
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material com um grande potencial narrativo, desde os primeiros dias. A reunião desses documentos ganhou
uma dimensão estética pela urgência que percebi, como Brecht indica, de aplicar uma determinada forma de
escrita para aprender a entender os pensamentos dessa forma. Essa forma ganhou o título de Diga que você
está de acordo! Nela, me detive em evitar uma indiferenciação das partes que compõem o texto. Optei por
afirmar suas diferenças. A estratégia para deixar claros os procedimentos de separação foi a de indicar – tex-
tual e previamente – as estruturas narrativas. Organizei-as em: jogo-cena; texto-modelo; cena; cena-gesto; e
fábula. Aqui um excerto da dramaturgia criada:
[...]
SOLDADO 4 coloca o disco no gramofone.
A mulher serve uma sopa. Todos comem. Alguns deitam-se na cama, outros no chão. A
mulher senta-se à mesa. Come sozinha. Adormece sentada na cadeira.
Fábula:
Ator vai ao microfone e diz: O cuspe, a cor e textura da beterraba crua, o efeito da beter-
raba mastigada e cuspida sobre a pele. É possível se preparar para uma cuspida na cara?
Jogo-Cena 2: As beterrabas
O ator que estava ao microfone volta para o ambiente do quarto com um saco de beter-
rabas. Todos se reúnem para saber o que é. As falas e ações vão ser determinadas pelas
próximas falas e ações. Os atores já conhecem o conjunto de ações previstas para essa
cena-jogo e improvisam a partir disso.
Conjunto de ações previstas: alguém chega com o saco de beterrabas, alguém prova,
alguém vê que já ha duas que foram mordidas, alguém manda cuspir, alguém não cospe,
alguém cospe na cara de quem mandou cuspir, alguém lembra que precisa cozinhar, al-
guém diz que se comer a beterraba crua vai começar a peidar, todos comem, menos um.
Cena-gesto:
Os atores improvisam novamente sem texto falado. As beterrabas ficam pela mesa.
Texto-modelo 2 :
SOLDADO 1:
Trouxe beterrabas.
SOLDADO 3:
Cozinhar! Cadê a mulher ?
SOLDADO 4:
Trabalhe. Cozinhe você !
SOLDADO 3:
Passe para cá !
SOLDADO 1:
Estou vendo se estão frescas.
Morde uma.
[...]
Como forma poética, a dramaturgia criada nos jogos com o grupo abriu, através da construção
de um texto para o jogo, a possibilidade de pensar sobre formas novas de contar uma história no teatro,
pensando e propondo novos modelos de mostrar/expor/narrar. A violência imposta pelos desertores em
situação de clandestinidade se metaforiza na minha criação e ganha forma textual através do enfrenta-
mento da forma dramática, da desarticulação do diálogo, da fuga das determinações dos personagens, da
dissolução do diálogo em gesto.
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A aplicação dessa forma de escrita é o próprio trabalho de construção dramatúrgica, que traz entre
suas estruturas de texto a reescritura de alguns jogos das etapas de trabalho com o grupo. Com a criação e
aplicação dos jogos também pude entender o que eles continham como idéias e, especialmente, o que guar-
davam como fonte para outras variações e outras aplicações.
O texto fraturado em formas narrativas pode manter a perspectiva do choque benjaminiano e pro-
mover na sua montagem a experiência da interrupção como procedimento estético. Assim a descontinuida-
de entre as partes que formam o texto e a própria configuração do jogo contribuem para a moldura rigorosa
do acontecimento. A idéia foi aproveitar o que foi conhecido com o texto como modelo de ação e propor
um novo texto que mantivesse a dimensão do jogo. Ingrid Koudela (2001, p.101-102) alerta para a diferença
entre o trabalho com o jogo e o trabalho com o texto para a criação de um espetáculo:
Meu trabalho de seleção e enquadramento se estruturou durante a experiência dos treze encontros
com o grupo de atores. Entendi a necessidade da criação do texto como uma espécie de reverberação da
experiência prática com os fragmentos como modelo de ação, como uma nova experiência. As ativida-
des desenvolvidas com o grupo já apontavam para a descoberta de formas narrativas alternativas, mas a
experiência da escritura do texto materializou o fragmento como forma concreta de destruição da fábula. A
destruição, considerando o que Benjamin (1994) defende, é uma condição para a experiência.
Diante do Fatzer, aprendo que a fábula é o principal material para o exercício da criação como
destruição. O fragmento é a principal forma para esse exercício. Compreendo que o texto, portanto, deveria
perseguir uma forma que mantivesse o caráter destrutivo do fragmento, aliada a uma experiência narrativa
que explorasse o lugar dos jogadores como co-produtores. Meu desafio foi o de chegar a um texto que par-
tisse do que foi acumulado nos jogos e improvisações, mas que não se estruturasse em situações dramáticas.
Como se eu quisesse escrever um texto-utopia, um texto que fosse impossível de encenar, porque precisaria
primeiro ser destruído para ser recriado, como as crianças fazem para descobrir a brincadeira nos brinque-
dos. Um texto, enfim, que fomentasse novamente o jogo, a brincadeira.
O meu interesse, como artista de teatro, sempre esteve em explodir a fábula, estilhaçá-la em
pedaços que indiquem novos caminhos. Espero, com esse exercício, poder apontar para a revelação
de novas formas de narrar, defendendo que é possível contar histórias através da forma de organizá-
las e não apenas pelo que contam. Experimento deixar a escrita se comprometer com os modelos, mas
também criar novos modelos para manter os antigos. Negar os modelos como estratégia para voltar a
afirmá-los e superá-los, em uma perspectiva dialética criativa e de construção coletiva. A encenação da
peça “impossível”, como Brecht (1997) define o Fatzer, precisa prever as etapas de sua decomposição e
reestruturação. O que persegui em Diga que você está de acordo! é a escrita de um espetáculo, como Wirth
(1984) define, não de um texto dramático. Um texto que não contém a cena, mas que aponta para sua
invenção.
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CRIANDO CONTRAESPAÇOS
Cláudio Marcelo Carneiro Leão Lacerda124
P or que criamos arte? E fruímos arte? Por que “ainda” temos necessidade da criação artística?
Talvez porque a realidade não basta, porque “a vida é um pouco insatisfatória”, como diz o personagem
interpretado por Owen Wilson em “Meia Noite em Paris” de Woody Allen, porque precisamos dar um
sentido a essa realidade, ou transformá-la, minha realidade, sua realidade, nossa realidade. Cada um pode
ter suas respostas ou motivos.
Criações artísticas passam por processos para chegar a suas materializações e poderem ser fruídas.
O tema desta mesa é “Processos Criativos naContemporaneidade”. O termo “contemporaneidade” coloca
algo de diferente em “processos criativos”?
A criação artística nasce de uma necessidade, como disse Suely Rolnik (2008), parafraseando Gilles
Deleuze. Um ímpeto, uma fagulha, uma inquietação, um desejo. Fayga Ostrower diz que “a criatividade,
como entendemos, implica uma força crescente; ela se reabastece nos próprios processos através dos quais
se realiza.” (OSTROWER, 1987, p. 27). Trabalho com dança há 28 anos, 20 dos quais investindo em criação.
Nesse tempo já deu para perceber e considerar que o desejo já é o início de um processo artístico. Gosto de
colocar a figura do Anel de Moebius (apresentada para mim por Ciane Fernandes, em 2000 – gosto e acho
importante dar créditos a quem nos deu ideias e a quem nos influenciou) como uma representação imagética
de como meus processos artísticos têm se desenrolado. Uma vez posto no movimento espiralado do Anel
de Moebius, o desejo já começa a produzir seu processo e, seguindo Ostrower, neste se reabastecendo.
Processos podem se desenrolar de tantas maneiras quanto há de criadores.
O meio, ou medium, no qual desenvolvo minhas criações artísticas é a dança e ela me oferece certas
particularidades que são potentes e especiais. Primeiro, temos o corpo como matéria prima de trabalho.
Aqui, é importante esclarecer que prevalece uma visão integralizada corpo-mente. Esse soma é nosso local
de vida e é o próprio local de feitura e de materialização dessa arte, o que implica que o acesso para a
materialização artística é feito com menos mediações que outras formas de arte. Isso não quer dizer que a
dança é espontânea por natureza; muito pelo contrário, é um dos muitos clichês da dança. Há que se tornar
consciente dos códigos que o corpo carrega, seus condicionamentos, suas fraquezas e suas forças; ou seja,
precisa que aconteça um autoconhecimento.
124. Cláudio Marcelo Carneiro Leão Lacerda (Cláudio Lacerda) é coreógrafo, dançarino, professor e pesquisador. Professor Adjunto do Departa-
mento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco (2010-). Doutor em Artes Cênicas (2018) pela Universidade
Federal da Bahia (orientação: Ciane Fernandes). Possui o Professional Diploma in Dance Studies (1998) e o Independent Study Programme Certifi-
cate (1999) pelo Laban Centre, Londres (RU). Diretor do grupo Cláudio Lacerda/Dança Amorfa (1998-). Autor dos livros Representações de Mas-
culinidade na Dança e no Esporte: um olhar sobre Nijinsky e Jeux (2010) e Pesquisa Trilogia da Arquitetura Desconstrutivista (2011).
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O processo de feitura e suas transformações se fazem no corpo. O corpo, nessa visão integralizada,
não é um “instrumento” para a dança porque aqui sujeito é indivisível de objeto. Contudo, podem se
encontrar gêneros e estilos de dança ou modos de fazer dança que consideram o corpo como instrumento,
refletindo essa postura em seus modos de ensino-aprendizagem e em seus processos artisticos,
considerando o corpo “em terceira pessoa” (SHEETS-JOHNSTONE, 2009), uma noção de corpo na qual
seu entendimento se dá sempre por uma mediação de terceiros, seja um modelo a ser copiado, uma
representação, um espelhamento prévio, uma tendência, uma moda. Aqui trago e valorizo a noção do
corpo “em primeira pessoa”, expressão utilizada por Maxine Sheets-Johnstone (2009), que coincide com
a noção de “perspectiva corporal” de Rudolf Laban (2011). Essas noções colocam a vivência cinestésica
do sujeito em primeiro plano em seu contato com o mundo, em seu conhecimento de mundo e em sua
produção de conhecimento.
No corpo vivemos e fazemos arte. Laurence Louppe oferece um belo depoimento de que “Ser
bailarino é escolher o corpo e o movimento do corpo como campo de relação com o mundo” (LOUPPE,
2012, p. 69). Um lado menos “glamouroso” que acrescento é que ser bailarino é trabalhar diariamente com a
dor, o cansaço e a sujeira; mas, não considero esses aspectos necessariamente como negativos; ao contrário,
eles dão uma perspectiva.
Em cada um dos diversos gêneros e estilos de dança, escolhas são feitas com relação ao nexo
formado entre os componentes da dança – bailarino, movimento, espaço de apresentação/elementos visuais,
elementos aurais (som) (ADSHEAD, 1988; PRESTON-DUNLOP, 1998a). As minhas escolhas na dança
estão na seara da dança chamada contemporânea, com um objetivo primeiro de experimentação, com
ênfase na pesquisa e criação de movimento. O que isso implica?
Apoio-me no que Louppe chama de “valores” que fundamentam a dança contemporânea, que se
podem reconhecer mesmo em abordagens por vezes opostas, a saber:
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um outro), o trabalho sobre a matéria do corpo e do indivíduo (de maneira subjectiva ou,
pelo contrário, em acção na alteridade), a não-antecipação sobre a forma (ainda que os
planos coreográficos possam ser traçados de antemão, como em [Dominique] Bagouet ou
Lucinda Childs) e a importância da gravidade como impulso do movimento (quer se trate
de jogar com ela ou de se abandonar a ela). (LOUPPE, 2002, p. 45)
A estes também seguem o que a autora chama de “valores morais”, que são: “a autenticidade pessoal,
o respeito pelo corpo do outro, o princípio da não arrogância, a exigência de uma solução justa, e não
somente espetacular, a transparência e o respeito por diligências e processos empreendidos.” (ibid., p. 45).
Processos criativos raramente são percursos lineares, sem atritos. Diria que o resultado de um
processo artístico é o que sobreviveu a, e ao mesmo tempo foi movido por, um conjunto de impossibilidades
e percalços, que incluem: a esfera individual (físico-mental-psicológica-espiritual-afetiva-financeira),
conciliações entre os indivíduos participantes, logística específica (local(is) e disponibilidades de ensaios,
condições financeiras para o projeto, etc.) e situações macro que afetam diretamente cada um dos indivíduos
(condições sócio-políticas, idiossincrasias locais, financiamento para projetos e sustentação do grupo/
artista, condições dos espaços de apresentação da cidade, estímulo para circulação, condições para investir
no processo da criação, etc.).
Pretendo relatar aqui um percurso (ou série de percursos) possível(eis) de um processo criativo em
dança, com a investigação mais recente que desenvolvi com meu grupo, Cláudio Lacerda/Dança Amorfa,
que esteve entrelaçada com minha pesquisa de Doutorado em Artes Cênicas recentemente finalizada
(UFBA, 2014-18), com o desenvolvimento de uma “coreotese”. Meu ímpeto para a pesquisa foi desenvolver
um processo criativo em dança inspirado pela obra da arquiteta iraquiana-britânica Zaha Hadid e, a partir
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dele, desenrolar e identificar relações possíveis entre dança e arquitetura, relacionando transversalmente as
áreas da dança, arquitetura, filosofia e artes visuais e colocando para conversar autores e criadores dessas
áreas. Nesse processo procurei aproximar instâncias como dança e escrita, prática e teoria, arte e academia
e nele as ações se estenderam pelos âmbitos de pesquisa, ensino e extensão. Em minha prática como artista,
docente, pesquisador, escritor e produtor cultural, não dá mais para separar essas frentes de atuação, uma
alimenta a outra e está contaminada pelas outras.
Minha relação cinestésica com a arquitetura de Hadid se dá da seguinte forma. Quando visualizo
imagens de suas obras, e quando tenho a chance de visitá-las, acontece uma série de encadeamentos que
estão na ordem da sensação. São engatilhadas sensações de descentramento, fluxos de energia, não um caos,
mas um ordenamento que tem sua própria lógica. Essas sensações reverberam diretamente no meu corpo
e tenho o ímpeto de me mover a partir delas. Uma série de “intenções internas”, usando uma expressão
labaniana, começam a fermentar possibilidades de “manifestações externas”. A percepção de uma labilidade
(ou seja, uma desestabilização, um desequilíbrio) que, ao mesmo tempo, move e sustenta determinado
prédio ou objeto de design, em diferentes linhas de força, me impressiona bastante. Quanto às formas,
minha impressão é a de que vetores de força é que as vão moldando. Estive, portanto, interessado nas forças
que regem suas obras arquitetônicas e de design. Mas, também estive interessado nas forças presentes em
textos seus e de outros autores que falam sobre sua obra e nas forças que estão em textos não relacionados
diretamente com Hadid ou com arquitetura, mas que trazem outros assuntos com uma potência instigadora
para relacionar a este trabalho.
A força motriz da relação entre Hadid e minha dança é: suas obras arquitetônicas e de design
me afetam cinestesicamente e me estimulam a pesquisar movimento, estados de corpo e uso do espaço
e criar dança. Foi essa força motriz que encadeou a prática desenvolvida em Contraespaço, título que dei
à investigação coreográfica desenvolvida juntamente com os(as) bailarinos(as) Juliana Siqueira, Jefferson
Figueirêdo, Orunmillá Santana e Stefany Ribeiro, ao longo de 14 meses, instigando-me a trabalhar com a
imaginação espacial, imaginação corporal e imaginação de movimento e que encadeou todas as relações
entre teorias, autores, áreas de conhecimento, passado e presente.
Além do estímulo cinestésico, as correlações que se podem fazer entre o trabalho de Hadid na
arquitetura e a criação em dança contemporânea são diversas e bastante instigadoras. Primeiramente, o que
me chamou a atenção em muitas de suas obras, apesar das muito diferentes facetas de uma obra para outra
e de suas diferentes fases é uma qualidade de organicidade, remetendo a seres da natureza, como moluscos,
larvas e vegetais, e características parciais de seres vivos, por exemplo, canais que se abrem em grandes
espaços vazados, cujas fronteiras entre um e outro são indeterminadas. Encontrei uma grande facilidade em
estabelecer analogias com o corpo, tanto humano quanto não humano, como, por exemplo, nos trânsitos
entre o espaço interno e externo de alguma obra, nas várias camadas que compõem uma determinada parte
de um prédio ou um prédio inteiro, na fluidez suscitada por essas formas e suas intercomunicações. Em
segundo lugar, em muitas vezes, a visão das obras dá a sensação de estarem em movimento. Essa sensação
reverbera diretamente no meu corpo e encadeia impulsos para me mover, a partir de, por exemplo, uma
determinada torção, um achatamento, um alongamento ou projeção no espaço, detectados nas construções.
Em terceiro lugar, as imagens dessas obras suscitam devaneios de habitar esses espaços. Essas imagens me
encorajaram a abordar o corpo como um material a ser explorado, tendo a noção de material vivo.
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Além disso, identifiquei-me com a trajetória de Hadid na arquitetura, valorizando a experimentação
e o processo. Minha fascinação por deformações, desvios e degradação, explorados em várias obras minhas
anteriores, encontraram uma ressonância em suas obras. Cruzei minhas referências formativas em Laban
com as referências formativas de Hadid em Kazemir Malevich e Wassily Kandinsky e teci uma rede de
conexões entre esses três artistas, ancestrais a mim e a Hadid. E identifiquei a primeira de muitas conexões
entre dança e arquitetura: Laban teve formação, em sua juventude, em arquitetura e artes plásticas, o que,
sem dúvida, informou o desenvolvimento de seus estudos do movimento.
Para colocar minha pesquisa em movimento, precisei de uma abordagem metodológica que
acolhesse e valorizasse várias instâncias de saberes – o corporal, o linguístico, o intuitivo, o imaginativo
e o racional e analítico –, tendo a criação em dança como ativadora e articuladora dos mesmos. Por isso,
adotei a Prática como Pesquisa (em inglês,Practice as Research – PaR), que coloca a prática no centro da
pesquisa, neste caso, a prática artística em dança. A PaR encoraja que se utilizem os mecanismos da criação
artística na pesquisa acadêmica e a produção de saberes que advêm desses processos. A prática vem como
produtora da pesquisa, e não apenas um meio de ilustrar teorias. As pesquisas desenvolvidas através da PaR
não necessariamente nascem de um problema ou de uma hipótese. Muitas vezes, nascem de um ímpeto de
explorar algo, uma questão. Segundo Yvon Bonenfent(2012, p. 22), o pesquisador está disposto a “explorar o
que emerge”. E foi a isso que me propus ao longo dos quatro anos do doutorado. O pesquisador modela sua
própria metodologia e seus métodos.
Minha proposta foi trabalhar com a imaginação espacial, a imaginação corporal e a imaginação de
movimento, no nível do devaneio e das transformações. Os autores principais que utilizei foram Laban, com
os conceitos de perspectiva corporal, imaginação espacial e labilidade; Gaston Bachelard, com a valorização
da imagem e da imaginação e os sentidos subjetivo e fenomenológico do habitar; e Sheets-Johnstone, com
suas noções de valorização da experiência, o corpo em primeira pessoa, o pensar em movimento, inteligência
cinética e cinestésica das formas animadas e sensibilidade de superfície.Utilizei também conceitos de
Jacques Derrida, estudados anteriormente na série de pesquisas e criações intituladaTrilogia da Arquitetura
Desconstrutivista(2008-2011), como desconstrução, centro faltante, labilidade, espaçamento e diferência, e
os conceitos de Deleuze de mediadores e forças. Ambos autores ficaram num plano de fundo, fazendo
ligações com aspectos de dança, arquitetura, Laban e Hadid e com os autores principais.
A partir de todo o material que me alimentou – imagético, teórico e artístico –, preparei listas, cujos
elementos foram disparadores iniciais para a experimentação em dança, sobre cujo desenvolvimento não
havia nenhuma previsão nem controle. Uma das listas foi Proposições para o Trabalho como um Todo, que
funcionariam como uma sugestão de rumo ou comportamento, no sentido da estruturação ou de sugestão
de atmosferas ao longo do trabalho. A segunda foi uma lista de 22 Propostas paraExploração e Improvisação,
que vieram de várias fontes e meios: imagens de obras arquitetônicas e da caligrafia árabe; descrições verbais
de Hadid e outros autores de características de obras suas; citações de autores cujos conceitos, ideias e
noções me chamaram a atenção pela imagem que suscitam ou pelo que as próprias palavras apresentam
como potencialidade para dança.
Segui uma metodologia criativa que venho experimentando e desenvolvendo nos últimos 20 anos,
resultado de um mix de meus estudos formais, não formais e informais em dança – em cursos, workshops,
residências e aulas com artistas e teóricos de dança –, da observação e estudo dos processos de coreógrafos(as)
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que considero minhas referências (Airton Tenório, Pina Bausch, Lloyd Newson/DV8 Physical Theatre,
William Forsythe, Siobhan Davies, Rosemary Butcher e Meg Stuart) e da minha prática, fazendodança.
A metodologia engloba três fases. Na primeira, procuro realizar um esgotamento de possibilidades de
exploração e improvisação de aspectos particulares do tema geral escolhido – no caso de Contraespaço, as
22 Propostas para Exploração e Improvisação, registrando tudo em vídeo. Na segunda, seleciono trechos
desse material bruto de movimento para manipulações. Na terceira, começo a testar formas de composição
desse material, sua estruturação, até a sua maturação final (ou provisória). Embora possa parecer, essas fases
não têm uma separação clara e um andamento programado. Nada impede que impulsos exploratórios se
infiltrem quando penso que já estou em um momento mais de manipulação. E, também, nada impede que
ideias de estruturação já apareçam em momentos iniciais exploratórios.
A exploração das 22 Propostas gerou uma grande quantidade de material, que documentei em um
Banco de material de movimento. A maneira que encontramos de estruturar esse material foi em módulos de
dança, que pudessem ser autônomos, podendo ser ordenados diferentemente a cada vez, um pouco à maneira
do coreógrafo Merce Cunningham. Gostamos da ideia de, a cada ordenamento, verificar quais possíveis
sentidos surgiam. Faço uma analogia do uso desses módulos com uma coleção de móveis criada por Hadid,
a Seamless Collection, que o usuário decide como ordená-los pelo espaço e que funções eles podem ter, de
assento, de mesa, de apoio, etc.Ao todo, até o momento, criamos dez módulos, cada um contendo, em média,
cinco minutos e constituído por três a quatro materiais de movimento constantes do Banco.
Nossa primeira exploração dos módulos foi executando-os em diferentes ordenamentos, na sala de
ensaio. Posteriormente, ficamos interessados em como eles habitariam diferentes espaços fora do estúdio.
Exploramos diversos espaços externos e internos do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, onde
realizamos grande parte dos encontros.
A partir dessas explorações, duas vertentes para explorar produtos artísticos surgiram. Uma delas
é explorar ambientes diferentes de um determinado prédio, onde a configuração espacial e o material de
movimento dos módulos seriam postos a teste, propondo um confronto entre estes e sua “habitação” nesses
espaços, constituindo um meio caminho entre coreografia e obra site-specific. A noção de “responsividade”
nos acolheu como esse meio caminho. Essa é a proposta para Transiterrifluxório, espetáculo que estreou
em outubro de 2017 e que já apresentamos duas vezes e que compôs a apresentação da coreotese do
doutorado. A outra é ter o foco na própria estruturação, brincando com o ordenamentodos módulos, em
uma estrutura contínua, corrida, pensando em um espaço de palco convencional. Essa é a proposta para o
que estou intitulando provisoriamente de Inverso Concreto, que pretendo desenvolver futuramente, com um
ordenamento diferente a cada noite.
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Ao longo do processo, procurei dar espaço para a própria inteligência do processo se fazer ouvir. Ou
seja, no início eu e os bailarinos não tínhamos nenhuma ideia de como o trabalho iria se estruturar e de que
teríamos duas possibilidades de concretização em produtos artísticos. Aliás, não tínhamos garantia de nada.
O que tínhamos era o desejo, alimentado no movimento no Anel de Moebius com um planejamento inicial,
leituras e imagens potencializadoras e nossos corpos criativos em ação. Cultivamos uma sensibilidade para
ouvir o outro, como extensão mesmo de cada um e de “ouvir” o espaço. Trabalhar com limitações, como se
mostrou em Transiterrifluxório, constituiu não só um desafio, mas um estímulo, uma condição a ser aceita
para transformá-la em possibilidades de a dança existir. Trabalhar com limitações transformou-se em uma
prática criativa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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practice. Londres: Dance Books, 1988. choreological perspective on choreography. Londres:
Verve, 1998.
AGAMBEN, Giorgio. “O Que É o Contemporâneo?”.
In: AGAMBEN, Giorgio. O Que É o Contemporâneo? e PRESTON-DUNLOP, Valerie; SANCHEZ-COLBERG,
Outros Ensaios. Chapecó: Argos, 2009, pp. 55-76. Anna. Dance and the Performative: a choreological
perspective – Laban and beyond. 2ª ed. Londres: Dance
DELEUZE, Gilles. “Mediators”. Trad. M. Joughin. In:
Books, 2010.
CRARY, J.; KWINTER, S. (ed.). Zone 6: Incorporations.
Nova York: Zone, 1992, pp. 281-294. ROLNIK, Suely.Informação verbal. Ciclo de Conferências
“Quando Foi 1968”. Fundação Joaquim Nabuco, Recife/
______. Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
PE. 07/07/2008.
Ed., 2007.
SHEETS-JOHNSTONE, Maxine. The Corporeal Turn: an
LABAN, Rudolf. Choreutics. Alton: Dance Books, 2011.
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LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. Academic, 2009. _____. The Phenomenology of Dance.
Lisboa: Orfeu Negro, 2012. Filadélfia: Temple University Press, 2015.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação.
Petrópolis: Vozes, 1987.
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PROCESSOS DE CRIAÇÃO
NA CONTEMPORANEIDADE
Gal Martins125
Salve!!!
Gostaria de começar, fazendo algumas perguntas para vocês. O que vocês veem em mim? (Aguardar
as respostas e interagir com elas)
Diante de todas as observações que vocês trouxeram, preciso dizer que estou aqui, porque antes de
mais nada sou uma artista negra, periférica, gorda, umbandista e mãe solo. Carrego diversos estigmas que
são apontados por um projeto bem estruturado. E são exatamente essas marcas que me constitui como ser
pensante e atuante no mundo. É a partir disso, que vou traçando minha trajetória.
Falar de arte, de criação já é complexo, quando nos remetemos a tal contemporaneidade, ai se torna
ainda mais difícil de explicar. Pois bem, essa questão é o que mais me instigou e ainda pulsa em mim nesses
meus 20 anos de trajetória profissional como artista, arte educadora e gestora cultural.
Dia 27 de Julho de 2002 em uma garagem de cimento batido cedida gentilmente por uma família
do bairro do Capão Redondo, nasce o anseio de tentar encontrar caminhos e processos de escuta para dar
voz aos corpos que ali se amontoavam e dançavam, suados, curiosos, empenhados, imaturos, organizados
e cheios de essência. Assim nasce a Cia Sansacroma, a forma que encontrei de me fazer presente e dançante
na contemporaneidade.
Anos se passaram e o processo de pesquisa seguiu firme e constante, a produção artística foi cres-
cendo, agora com outros artistas pensantes, os espaços foram se abrindo, uma história se consolidava ao
mesmo tempo em que Cia Sansacroma foi se consistindo como uma referência de pesquisa e criação em
dança na periferia sul e na cidade como um todo.
A partir disso, começo a observar minha trajetória artística e quais foram as reais e principais
referências que tive, e chego a uma conclusão que não foi muito agradável.
Nada dava conta. Nada dava conta também das questões dos corpos plurais que neste momento
abrigava a Cia, corpos pulsantes de questionamentos, que juntos compartilharam deste momento essencial
de crise instaurada.
125. Artista da Dança, Atriz, Arte Educadora e Gestora Cultural. Pesquisadora de danças negras e diásporicas a 20 anos e futura Cientista Social.
Em 2002 cria a Cia Sansacroma, grupo paulistano de dança negra contemporânea que possui uma atuação artística e política no extremo sul de São
Paulo, tendo como ponto de partida das criações são as poéticas do corpo negro, que circulam na população da cidade de São Paulo a qual a compa-
nhia chama de indigenordestinafricana. Atuou como Produtora Cultural e Coordenadora do Núcleo de Artes do Corpo da Fábrica de Criatividade,
além de coordenar o projeto Educar Dançando do Balé da Cidade de São Paulo. Em 2014 recebe o prêmio “Denilton Gomes” na categoria Difusão
em Dança. Em 2016 foi eleita uma das 10 personalidades negras do país pelo canal Pretinho Mais que Básico. Em 2017 recebe o prêmio APCA pelo
8º Circuito Vozes do Corpo na categoria Projeto / Programa / Difusão / Memória. Atualmente além do trabalho com a Cia Sansacroma, idealizou a
zona AGBARA, projeto destinado a produção em dança de mulheres pretas e gordas. Em janeiro de 2018 assume o cargo de Supervisora Artístico
Pedagógica do Programa Fábricas de Cultura em São Paulo, e é membro do Fórum Danças Contemporâneas: Corporalidades Plurais.
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Meu corpo, meus instintos, meus pensamentos começam a ser tomados pelo ódio. Sim, pode pa-
recer forte tal expressão, mas diante de todo o projeto estruturante racista, sexista, homofóbico e machista
presente em nossa sociedade, o que me resta é sentir muito ódio, sensação essa presente desde meus anos
mirrados e infantes, ódio esse engolido e escondido nas paredes do meu quarto, nas bonecas brancas, nas
toalhas de banho na cabeça que a fazia me sentir “bonita”, no som daquela música dolorosa do tal Luís Cal-
das que não me permitia ir pra escola pra não ouvir o meninos cantarem durante o meu caminho nas ruas
estreitas do bairro Chácara Santana: “Nega do cabelo duro, que não gosta de pentear, quando passa na boca
do tubo, o negão começa a gritar...pega ela aí, pega ela aí, pra passar batom, que cor? Violeta, na boca e na
bochecha”. Ódios presentes nos olhares desconfiados quando eu, preta, mulher e gorda me coloco no cená-
rio da tal dança contemporânea como pesquisadora. Ódio quando me deparo com minha filha chegando
em casa chorando porque a coleguinha do transporte escolar não quer sentar a seu lado porque ela é negra
ou que na festa junina da escola ela não teve um par e terá que se vestir de menino para não ser excluída de
tal tradição escolar. Ódio ao saber que mais um jovem preto foi assinado pela polícia em uma das esquinas
do Capão. Ódios diante das histórias de Claudia, Amarildo e Rafael Braga. Ódios, ódios e mais ódios.
Sim, às vezes o ódio é estático, intenso mas sem movimento, não transforma, não transgride, esta-
ciona e aprisiona. Então do que queremos falar? Qual é o ponto de partida que não seja exclusivamente o
ódio? Eis que evoco a sabedoria de Paulo Freire com seus pensamentos me levando ao encontro do conceito
de INDIGNAÇÃO.
A partir daí, começo a organizar meu ódio, pela via da indignação como potência artística.
Minha mãe sempre diz: preto enquanto descansa carrega pedra. Pois bem, eu não a carrego, eu dan-
ço e proponho meus parceiros a dançarem com ela. Esse é meu estado no mundo, em São Paulo, no Capão
Redondo, na Rua Ilha de Maiorca, no meu quarto. A INDIGNAÇÃO é minha materialidade poética, e dela
eu exprimo, sobrevivo e exorcizo dia a dia toda e qualquer tipo de opressão. Essa é a Cia Sansacroma, potên-
cia do “corpo negro marginal”, pulsantes e palpáveis a prática da resistência e estabelecendo uma “rebeldia”,
como profícua fonte de preservação e mutação.
A Dança da Indignação
A Dança da Indignação trata-se de uma linguagem estética em dança que pretende reverberar in-
dignações criativas, numa abordagem poética e política que traz signos e elementos singulares na intersec-
ção entre arte e vida, vida e arte.
Diante disso, pensar e criar perspectivas próprias de criação foi emergente pelo anseio de se criar
um processo de fruição da dança que dialogue com as questões de interesse do nosso público. Ao mesmo
tempo, pretende uma apropriação dos diversos meios de produção artística dos territórios negros e das bor-
das da cidade e de outras bordas de cidades subjetivas, ampliando as possibilidades de uma comunicação
direta e ativa com os espectadores e também com outros artistas.
A pesquisa teve início em 2012, quando passou a ser sistematizada. Atravessou três laboratórios: a
tríade de tensão, a poética do corpo indignado, o devir-animal. Até o momento a pesquisa se fortalece nos
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três últimos espetáculos do repertório da Cia. (A Máquina de Fazer Falar, Outras Portas, Outras Pontes e
Sociedade dos Improdutivos) e emerge de maneira intrínseca nas concepções individuais a partir da propo-
sição da plataforma de criação Rebanho. Nesta última, cada intérprete criador se entregou a uma imersão
singular por suas memórias de vivências pessoais. Este material humano e expressivo foi o que potencializou
e validou os procedimentos da pesquisa criados até aqui.
Indignação
Indignação, do latim indignatĭo, é uma forte revolta contra uma pessoa ou contra as suas ações. Este
afeto pode se associar à ira, à irritabilidade ou à fúria. A palavra indignação tem sua origem em uma reação
diante de algo indigno. Trata-se de um sentimento de revolta experimentado frente a uma indignidade, in-
justiça, afronta ao bem comum ou desprezo à ética social.
Segundo o escritor e filósofo Antônio Mesquita Galvão, a indignação sempre aponta para uma re-
ação ética contra atitudes, sejam do cotidiano sócio-familiar ou das relações políticas, em que os juízos de
valor revelam a ilicitude e/ou impropriedade de algum tipo de comportamento. A indignação ética desen-
cadeia necessariamente um tipo de reação em que a pessoa toma consciência de algum ilícito e parte para
uma demonstração formal, pacífica ou até violenta de inconformidade.
Aqui, destacamos o fato de que o ato de indignar-se surge do sentimento de responsabilidade so-
cial, para com o outro e para com o coletivo. A indignação gera um impulso de ação, agrega e não afasta ou
ofende, promove senso de mudança da realidade e não se restringe apenas em atos de vingança e violência.
Os fatos e verdades são suas ferramentas. A indignação mobiliza e o ódio paralisa.
Com inspiração na obra póstuma Pedagogia da Indignação, que reúne textos organizados e re-
cuperados por Ana Maria Freire, o autor Paulo Freire aponta a indignação como elemento disparador de
processos autônomos rumo a liberdade e a ética e que assim desencadeia o sentimento de amor, sempre
defendido por Freire. Defende ainda que quando se está legitimamente indignado com a relevância de um
valor que não está ligado a construção de seus valores pessoais, o que se combate não é unicamente uma
parte do problema, mas sim o todo. Diferente do sistema social que se ocupa em combater um único projeto
em detrimento de construir uma sociedade mais livre e autônoma.
O verdadeiro de estado de indignação nos move contra as diversas mazelas sociais, sejam elas no
campo ou nas grandes metrópoles, mergulha e se lança nas narrativas das periferias e principalmente não
se limita apenas aos discursos. Indignação é ação! Por ser ação, é criativa, propositiva e poeticamente e po-
liticamente para nós é DANÇA.
Conceitos
Para tecer esses caminhos, alguns conceitos importantes servem de base para a construção de ideias
e um pensamento em dança que traduza tais indignações criativas:
Resistência
Ao adotar o conceito de resistência, é importante refletir sobre a diferença entre os termos revolu-
ção, revolta e resistência. Para tanto, nos aliamos ao artigo do filósofo Charles Feitosa, publicado no livro
Arte e Resistência organizado por Daniel Lins. É sobre os “muros da política” que Feitosa afirma:
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“Trata-se de três palavras que parecem dizer a mesma coisa, que parecem ser sinônimas,
mas não são! Minha hipótese é de que revolução, revolta e resistência são formas diferen-
tes de o homem lidar com seu destino mortal, maneiras diferentes de “dizer não”, enfim,
formas diferentes de lidar com os muros da política.
A atitude de resistência corresponde à sabedoria do surfista, que não se deixa levar passi-
vamente pela onda nem tenta lutar contra ela, mas aproveita sua energia e explora criati-
vamente suas possibilidades.” (FEITOSA, 2007)
A resistência pressupõe uma recusa à submissão, uma insistência em ser, em afirmar a existência.
Resistir é uma forma especial de lidar com o poder e com a liberdade. Resistir é o próprio ato de criar. Criar
para Si mundos próprios e no coletivo, territórios comuns possíveis.
A escolha e a delimitação do campo prático da pesquisa compreendem o corpo que está à margem,
ou seja, o corpo marginal, o corpo periférico, o corpo negro. Para além da demarcação geográfica, perife-
ria aqui assume o sentido de um território que compreende o conceito social de exclusão e do que está à
margem. Espaço, que é a um só tempo, físico e simbólico e que tanto é ocupado como também define uma
origem social, produção cultural e uma classificação comportamental e de identidade na perspectiva do
olhar colonialista.
Trazer à tona esta temática é necessário diante das atuais discussões em que a Cia. Sansacroma está
inserida. O estigma nem sempre é percebido e é muitas vezes mascarado, por rotinas e práticas assimiladas
pela cultura, sem a devida reflexão. O preconceito racial, sem dúvida, constitui uma violência que, na muitas
vezes, não apresenta a visibilidade necessária para ser identificada. No Brasil, o preconceito assume a natu-
reza de preconceito de marca, contrapondo-se ao preconceito de origem. Este último é caracterizado pela
forma contundente como se apresenta, havendo uma explícita política segregacionista, sem flexibilidades,
enquanto o primeiro se manifesta “em relação à aparência”, isto é, quando toma por pretexto para os seus jul-
gamentos os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, havendo mesmo uma tendência
de dissimulá-lo. Apesar de o mito da democracia racial dar sustentação à concepção de que não há conflitos
nas relações raciais no Brasil, todos “sabem que existe preconceito e discriminação racial” que vivemos em
um sistema que pratica o tal do “racismo cordial”. E é nesse contexto, que a Dança da Indignação resiste
enquanto potência transformadora para os corpos, usando da consciência da complexidade da estrutura
racista, combatendo-a pela poética singular e coletiva.
Para fundamentar esta premissa, replicamos um longo trecho do texto “Da cor ao corpo: a violência
do racismo”, onde Jurandir Freire Costa prefacia o livro Tornar-se negro - As vicissitudes da Identidade do
Negro Brasileiro em Ascensão Social da saudosa Neusa Santos Souza:
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guerras e as destruições, dizimando milhares de vidas. O negro sabe igualmente que, hoje
como ontem, pela fome de lucro e poder, o branco condenou e condena milhões e milhões
de seres humanos à mais abjeta degradada miséria física e moral.
O negro sabe tudo isso e, talvez, muito mais. Porém, a brancura transcende o branco.
Eles – indivíduo, povo, nação ou Estados brancos – podem “enegrer-se”. Ela, a brancura,
permanece, branca. Nada pode macular esta brancura que, a ferro e fogo, cravou-se na
consciência negra como sinônimo de pureza artística, nobreza estética, majestade moral,
sabedoria científica etc. O belo, o bom, o justo e o verdadeiro são brancos. O branco é, foi
e continua sendo a manifestação do Espírito, da idéia, da Razão. O branco, a brancura, são
os únicos artífices e legítimos herdeiros do progresso e desenvolvimento do homem. Eles
são a cultura, a civilização, em uma palavra, a “humanidade”.
O racismo esconde assim seu verdadeiro rosto. Pela repressão ou persuasão, leva o su-
jeito negro a desejar, invejar e projetar um futuro identificatório antagônico em relação
à realidade de seu corpo e de sua história étnica e pessoal. Todo ideal identificatório do
negro converte-se, desta maneira, num ideal de retorno ao passado, onde ele poderia ter
sido branco, ou na projeção de um futuro, onde seu corpo e identidade negros deverão
desaparecer.
A reação do pensamento negro frente à violência do ideal branco não é uma resposta ao
desprazer da frustração, elemento periférico do conflito, mas uma réplica à dor. O sujeito
negro diante da “ferida” que é a representação de sua imagem corporal tenta, sobretudo
cicatrizar o que sangra. É a este trabalho de cerco à dor, de regeneração da lesão que o
pensamento se dedica. A um custo que, como se vê neste trabalho, será cada vez mais alto.
O tributo pago pelo negro à espoliação racista de seu direito à identidade é o de ter de con-
viver com um pensamento incapaz de formular enunciados de prazer sobre a identidade
do sujeito. O racismo tende a banir da vida psíquica do negro todo prazer de pensar e todo
pensamento de prazer.” (COSTA, 1990)
Tomando estas afirmações, propomos que a Dança da Indignação cria um possível caminho de
enfrentamento para a descolonização do corpo negro. Deste modo, a pesquisa reflete e defende o encontro
com o devir ancestral, onde se pretende localizar o corpo em um estado poroso, ao abrir uma relação entre
memória, tempo e contemporaneidade. O procedimento traça um elo de articulação e encantamento que
dá condições para a construção de outras portas e outras pontes existenciais, onde o impulso do agir é ine-
vitável e dá sentido a uma ação autônoma.
“O encantamento é aquilo que dá condição de alguma coisa ser sentido de mudança polí-
tica e ser perspectiva de outras construções epistemológicas, é o sustentáculo – não é obje-
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to de estudo, é quem desperta e impulsiona o agir, é o que dá sentido. (...) É sem começo e
sem fim, é um movimento constante, e movimento é conhecimento, é vida, é uma ação de
ancestralidade, como já fora dito. Assim, o encantamento é da ordem do acontecimento, é
papel da ancestralidade; esta é a forma e aquele é o conteúdo.” (MACHADO, 2014)
Convivência
A referência é proposta pelo educador Ralf Rickli na publicação Pedagogia do Convívio na invenção de um
viver humano:
“O mais importante, porém, não é guardar definições em palavras, e sim entender que o
conceito de “convívio” é absolutamente diferente do de “união”: não implica em nenhum
atrelamento, nem em abrir mão das nossas diferenças. Para que haja convívio não é sequer
necessário que haja concordância – a não ser a concordância quanto a respeitarmos reci-
procamente os espaços pessoais e jeitos-de-ser uns dos outros. (...) não atentar contra o di-
ferente. (...) Em outras palavras: empenhar-me para garantir a pluralidade e a diversidade.
Sendo o convívio uma condição tão fundamental da existência – seja social, física, psico-
lógica, econômica, cultural, espiritual (...) numa educação que corresponda à realidade
da vida, o convívio também terá papel central – seja na forma de ensinar, seja entre os
conteúdos: uma educação para o convívio, no convívio, pelo convívio.
Assim, sobretudo neste momento histórico, não vemos missão mais importante para uma
quilha social do que pensar, desenvolver, testar, aperfeiçoar, realizar e difundir uma Pe-
dagogia do Convívio – ou, como também dizemos há anos, uma Educação Convivial.”
(RICKLI, 2017)
É preciso mencionar o que Rickli propõe como as Três colunas-mestras do Convivialismo: o Minima-
lismo, o Pluralismo Sistemático e a Crítica da linguagem e reforma da comunicação. Respectivamente, manter
toda codificação e intervenção no nível mínimo indispensável; garantir a não-imposição da vontade de um
sobre a de outro; convívio, sociedade e comunidade só acontecem mediante a comunicação, cuja qualidade é
problemática em muitos sentidos. A proposta de Rickli pode ser aprofundada em sua obra acima citada.
É fundamentada nesta noção de convívio que propomos a pesquisa e a produção em torno da Dan-
ça da Indignação como um modo criativo, potente e produtor de transformação de realidades individuais e
coletivas, na medida em que extraí o esforço do artista da mera revolta e o canaliza para ações revolucioná-
rias e resistentes.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
101
MEUS PROCESSOS CRIATIVOS
EMPEDAGOGIA LITERÁRIA:
O QUE ENSINEI, O QUE APRENDI
João Silvério Trevisan126
De fato, a arte desempenha um papel peculiar poriluminar o âmago do processo educativo e levar
a experiência humana até um projeto inventivo que supera limites. Se o processo educacional pressupõe
uma invenção permanente, a criatividade sem limites caracteriza a natureza da produção artística digna
do nome. Posso fazer tal afirmação não apenas pela minha prática pessoal como criador em várias áreas
expressivas das artes– da literatura ao teatro e ao cinema. Mais do que isso, tenho uma experiência paralela
em pedagogia literária, com a qual venho atuando por mais de 30anos como coordenador de oficinas de
escrita criativa. Já exerci tal atividade nas mais diversas instituições públicas ou privadas, em várias partes
do Brasil – do Pará ao Rio Grande do Sul, passando por Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná
e Santa Catarina. Com a experiência adquirida pude comprovar a absoluta pertinência dos valores da
educação artística. Sua vocação, como já mencionei acima, podeintensificar o próprio núcleo da educação e
o aprendizado da cidadania.
Enquanto escritor profissional, busquei tratar a pedagogia literária profissionalmente, ou seja, com
total envolvimento e seriedade.Mesmo porque foi graças a ela que sobrevivi em grande parte da minha tra-
jetória. Comecei a coordenaroficinas literárias em 1987. Entre 1999 e 2005, trabalhei, pioneiramente, com
ensino à distância, ainda nos primórdios da internet, quando coordenei oficinas literáriasvirtuais junto ao
site do SESC-SP. Mantinha encontros duas vezes por semana numa sala de bate papo do UOL, três horas a
126. João Silvério Trevisan (Ribeirão Bonito, São Paulo, 1944). Romancista, contista, ensaísta, roteirista, diretor e dramaturgo. Estudou no Seminá-
rio Bom Jesus, em Aparecida, São Paulo, formando-se em filosofia. Durante sua permanência no seminário cria um núcleo de estudos dedicado ao
cinema e um cineclube. Muda-se com a família para capital paulista e trabalha na Cinemateca Brasileira. Escreveu seus dois primeiros romances: Em
Nome do Desejo (1983) e Vagas Notícias de Melinha Marchiotti (1984).
102
cada vez, com participantes de todas as partes do país e algumas regiões do exterior, como Bélgica, Áustria,
Alemanha e Estados Unidos. As vagas, gratuitamente oferecidas, eram poucas e disputadas: de oito a dez
pessoas eram escolhidas dentre o grande número de gente inscrita – tendo chegado, numa dessas oficinas,
a 150 candidatos/as. Recebi participantes tanto do interior da Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio
Grande do Sul, quanto de capitais como Manaus, Maceió, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Cuiabá
e Brasília. Cadaciclo de oficina durava 4 meses. Em determinado momento,chegamos a publicar uma an-
tologia das melhores produções de participantes. Além das oficinas, no mesmo período eu coordenei pela
internet um programasemanal de debates literários chamado “Balaio de Textos”, que se tornou famoso e útil
para jovens escritores/as que colocavam suas obras para discussão. Eu escolhia uma obra a cada semana e
postava na internet, para conhecimentodas pessoas, por nós chamadas então de “internautas”. Como ainda
se tratava de internet discada, com baixa velocidade e demora de resposta na rede, em ambos os casos cria-
mos uma linguagem tosca de comunicação por sinais,para agilizar o lag entre ida e vinda dos dados digitais.
Assim, ao pedir a palavra, digitava-se um PP. Um aparte se solicitava com um AP. Para evitar mal entendi-
dos, qualquer brincadeira era secundada por um sinal de ou :-)).
Com o passar dos anos, consegui aprimoraruma metodologia que se revelou satisfatória no treina-
mento da criação literária. O objetivo prioritário era descobrir as potencialidades da literatura como apri-
moramento da expressão pessoal. Antes de tudo, dou importância ao processo criativo como uma maneira
demergulhar no interior de si, para recolher do caos (mistério) pessoal a matéria prima que vai compor
sua expressão poética. Tenho convicção de que só existe criação poética em consonância com esse mistério
pessoal, como uma maneira intransferível de desbravar a selva interior. Há que se considerar para tanto os
instrumentos, ou seja, os recursos literários (linguagem aprimorada e adequada) para compreender melhor
esse caos pessoal e expressá-lo em forma de criações poéticas apresentadas ao mundo exterior. Consideran-
do que o modo de expressão de cada pessoa é único, sempre preferi o método socrático de encontrar dentro
de cada participante a sua forma expressiva particular, caótica e reveladora – ou seja, a maiêutica de Sócra-
tes. Jocosamente, eu comparava minha função à de um saca rolhas que ajuda as pessoas a botarem para fora
seu cabedal criativo.
Amealhei e sumarizei alguns tópicos para ajudar na criação do texto literário, que deixavam claros
os componentes da obra, com variantes em prosa ficcional ou em poesia. Os tópicos propunham: definir o
tema (com uma sinopse possível); escolher o tratamento (maneiras de abordar o tema, dandoprimazia ao
enredo ou à linguagem); não perder de vista a estrutura (espinha dorsal da obra, em prosa ou em versos);
elaborar personagens (habitantes do texto ficcional); definir o estilo (maneiras de expressar o texto); traba-
lhar o ritmo (andamento da obra, tanto nanarrativaquanto no poema).
Sempre levei em conta que escreverliterariamente implica, de modo fundamental, saber analisar o
que se lê. Para tanto, no exercício da crítica criei alguns objetivos críticos que captassem o projeto e as várias
vertentes do constructo literário. Cada um dos itens da criação do texto merece especial atenção para uma
103
análise adequada do texto literário. A primazia deve ser dada ao projeto do autor/a e não às idiossincrasias
do leitor/a que faz a crítica. Daí porque enfatizei sempre a importância de conhecer o projeto subjacente
a cada obra, inclusive para saber se projeto e constructoconvergem, criando um resultado funcional, ou se
opõem, fragilizando a obra.
Esse período de 30 anos de prática oficinária me proporcionou uma experiência ímpar eme ofereceu
ganhos pessoais surpreendentes. Para além das amizades inestimáveis, não posso me furtar em reconhecer que
aprendi mais de literatura do que se eu próprio tivesse me especializado através de cursos específicos. Quando
comecei a escrever Ana em Veneza, em 1992, meu trabalho parecia tão insano que eu temia não conseguir ter-
minar a escritura do romance. O que me tranquilizou foi perceber uma diferença incrível com a escritura do
meu romance anterior. Tratava-sejustamente da descoberta de que eu estava muito mais seguro graças à longa
experiência literária que tinha adquirido enquanto coordenador de oficinas criativas de literatura.
Hoje posso responder com mais tranquilidadeà pergunta: é possível aprender a escrever litera-
riamente? Na tentativa de responder, cheguei a algumas conclusões. A mais óbvia: não há talento que se
aprenda, mas certamente pode ser burilado. Descobri também que a pedagogia literária não forma apenas
escritores/as. Trata-se de um grande espaço para aprender a ler literatura. Por fim, a experiência me deu a
convicção de que a literatura não interessa apenas a um grupo restrito de profissionais a ela relacionados.
Para além desse escopo reducionista, o conhecimento e aprendizado dos recursos literários servem para
ampliar a expressão pessoal de qualquer pessoa que se disponha a desbravar seu território criativo. A partir
dessa convicção, tentei insistentemente, durante muitos anos, abrir uma Escola de Criação Literária junto a
órgãos públicos ou em esquema de parceria público privada. Bati à porta de ministérios, secretarias e outras
instâncias culturais, inclusive o SESC e institutos ligados à área. Nunca consegui – talvez pelo parco charme
da profissão ou por minha reduzida capacidade de convencimento.
EXAME DE UM CASO
Uma das minhas experiências mais emblemáticas e desafiantes foi coordenar uma oficina literária de 3
meses, em 2013, para 30 jovens de 13 a 15 anos em situação de risco, no bairro de Campo Limpo, periferia de
São Paulo. Meu objetivo era levar a garotada – que obviamente se revelou bastante indisciplinada – a entender
a possibilidade e a importância de se expressar literariamente a partir de recursos da própria língua falada,para
enriquecer suaexpressão pessoal e comunicação com o mundo. Depois de trabalharcaracterísticas curiosas e
engraçadas da língua portuguesa, eu os apresentei à obra de diferentes poetas, desdeJorge Luis Borges, Pablo
Neruda, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Hilda Hilst e Paulo Leminsky
até versos de canções da MPB e dos rappersGOG e Black Alien. Aliás, aproveitei bastante letras de música po-
pular, incluindo Raul Seixas, Caetano Veloso, Chico Buarque,Cazuza, Cássia Eller,Criolo e cocos nordestinos
de Terezinha e Lindalva. Sempre que possível, utilizei vídeoclipes do YouTube, projetando as letras junto com
a respectiva música, para facilitar a compreensão e o interesse do grupo. Além de contos meus,apresentei tam-
bém obras de ficcionistascomo Dalton Trevisan, Arnaldo Antunes, Gil Veloso e Nelson de Oliveira. Cheguei
a utilizar desenhos animados para estimular o grupo nos exercícios escritos. Frequentemente, fiz sorteio de
livros entre a turminha. E organizei debates a partir dos (poucos) livros que estavam lendo.
104
detidamente o texto. Por várias vezes, ouvi suas expressões de surpresa eencantamento: “Nossa, eu não sabia
que poesia era assim.” Lembro de uma ocasião em que um rapazinho – com quem eu tivera problemas dis-
ciplinares logo no início – me trouxe de presente uma caneca de louça em agradecimento por ter ido bem
numa prova escolar, graças – segundo ele – ao que tinha aprendido em nossos encontros.
O interessecrescente da garotada podia ser constatado pelo brilho nos olhos de muitos.Depois de sen-
tir alguma maturidade na sua percepção do sentido da poesia, dividi a classe em pequenos grupos e solicitei
que criassem um poema em conjunto. Os “poemas” que resultaram desse exercício eram bastante inexpressi-
vos– e eu não esperava nenhuma obra prima. Elegemos coletivamente o melhor poema produzido dentro dos-
pequenos grupos. Isso feito, passamos a discutir e reelaborar em conjunto o texto projetado no telão. De início,
nem todo mundo prestava atenção, mas contei com o fato de que mais cedo ou mais tarde o movimento cole-
tivo sempre desperta o interesse dos mais desatentos/as. Nopoema escolhido, via-se uma intenção subjacente
de agredir e desmerecer não só a autoridade do professor como também os valores que ele estaria “impondo”.
Nada surpreendente: os adolescentes estavam mais interessados em zoar. Se pudessemconstranger o professor,
melhor ainda. Daí as porcarias que foram inseridas nos seus textos, para esculhambar geral e fustigar a autori-
dade do posto de mestre. Isso não me afetou – para além das broncas pontuais e necessárias. Se me preocupei
com a terminologia chula desses jovens, foi apenas no sentido de acolher indistintamente o que tinham criado,
para inserir seu linguajar no contexto da poesia. Aliás, o rap há muito vem fazendo esse percurso para resgatar
a autoestima e, num mesmo movimento, trazer à tona a criatividade das culturas periféricas. Depois de debates
intensos para rever, corrigir e completar coletivamente, o poema foi considerado pronto. Eis o resultado:
O cagão
Ainda que o texto contivesse vários problemas de construção e de gramática, como o uso irregular
da pontuação e regências,o resultado me pareceu mais do que satisfatório. E para os adolescentes também,
conforme seus comentários públicos e espontâneos. Depois de ler o poema em voz alta ao microfone, vi
seus olhos brilharem de satisfação e ouvi várias expressões de surpresa: “Porra, a gente fez isso!...” De fato,
sem forçar a barra, a reescritura coletiva do poema nos tinha permitido compreender e aplicar os elementos
fundamentais da poesia: o projeto (dar sentido expressivo à obra); a estrutura (trabalhar com um mínimo
de articulação); a rítmica (através da marcação por refrões). Mesmo as rimas fáceis em ão funcionaram para
ressaltar o tom irônico e transgressivo – que permanecia no território linguístico deles, e resgatava poetica-
mente uma postura de rebeldia estereotipada que os adolescentes adoravam brandir. Tudo isso fora carreado
para uma articulação criativa que eles não tinham consciência de serem capazes – e se deram conta ali, ao
final. Creio que, através da construção de um poema, o grupo compreendeu um pouco melhor o sentido da
literatura. De quebra, sua autoestima se reforçou através da capacidade de criar.
105
Para encerrar os trabalhos da oficina, ao final dos 3 meses, eu lhes propus um exercício que os insti-
gasse a usar a expressão literária para se aproximar da sua vida interior tão defensiva e assustada – algo que
me interessava sobremaneira, tratando-se de jovens em situação de risco. Apresentei-lhes primeiro vários
videoclipes em que cantores e compositores falavam de suas experiências de vida, desde Roberto Carlos
e Cássia Eller a Paulinho da Viola e a cantora Céu. Então propus escreverem, em classe, um texto sobre o
tema “Quem sou eu?” O exercício visava provocar um mergulho interior e fazê-los tomar consciência de si
mesmos.A grande maioria escreveu o texto silenciosamente, depois de alguma relutância inicial – inclusive
me solicitando para ajudar a começar. Alguns poucos se recusaram terminantemente a fazer o exercício.
Durante a escritura muitos adolescentes choravam, alguns copiosamente, em especial as garotas. Uma delas
fez apenas rabiscos no papel,alegando que assim era ela – como se explicou de modo honesto mas ressenti-
do. Uma outra(que se mostrara agressiva e indisciplinada) escreveu mas recusou-se, em lágrimas, a entregar
o texto para leitura. Mais tarde, a orientadora educacional me informou sobre a grave situação familiar dessa
adolescente, comum histórico de assédio sexual por parte do pai. Era compreensível a dificuldade em se ver
como personagem de si mesma.
CONCLUSÃO:LITERATURA DO DESEQUILÍBRIO
O resultado da longaexperiência de pedagogia literária que venho tendo reitera minha convicção
de que a literatura resulta de um desequilíbrio. Tal como no processo educativo, ocorre a constatação de
que algo nos falta e precisamente essa falta acaba por nos mover à descoberta de novas instâncias de co-
nhecimento. É para encontrar um novo equilíbrio que buscamos a expressão literária. Ou seja, a percepção
de uma necessidade expressiva nos leva à construção mais elaborada da língua que falamos diariamente,
elevando-a a outro patamar de expressão e comunicação. Não há equilíbrio novo se não for precedido pela
percepção, até mesmo dolorosa, de um desequilíbrio que nosempurra adiante. Um poeta chinês do século
VIII chamado HanYucondensoumagnificamente o fenômeno literário: “A palavra é o mais perfeito dos sons
humanos. A literatura, por sua vez, é a mais perfeita forma de palavra. E assim, quando o equilíbrio se rompe,
o céu escolhe entre os homens os que são mais sensíveis e os faz ressoarem.”
Foi assim que “ressoei” literariamente, ao escrever minha mais recente obra: PAI, PAI. Na linhagem
doBildungsroman (romance de formação), narreiaí minha trajetória até o entendimento adulto, num processo
de conversão a mim mesmo através da literatura. No embate com a amargura e o ressentimento, que tanto
nos tentam pela vida afora, tive o privilégio de chegar a um desenlace literário transfigura-dor – se posso me
permitir essa expressão para “dor iluminada”. Não fui curado de nenhuma das minhas feridas– afinal, não
há cura para a experiência humana. Mais do que isso, a prática literária me permitiu maior aproximação ao
meu mistério. Não que eu tenha jamais almejado desvendá-lo. Ser escritor me permitiu corroborar e acolher
o sentido enigmático da minha existência. É dele que decorre minha capacidade de criar.
106
LA ESCUELA DE ESPECTADORES
DE BUENOS AIRES (2001-2018):
UN LABORATORIO DE
(AUTO)PERCEPCIÓN TEATRAL
Jorge Dubatti127
Nadie va al teatro para estar solo. La reunión teatral consiste en vivir con los otros, sentir, mirar, emocio-
narse, interactuar, discutir con los otros. Es una reunión de cuerpo presente, aurática, territorial y efímera,
que no se deja intermediar tecnológicamente por la televisión, la radio, el cine, la red digital o cualquier otro
mecanismo de sustracción del cuerpo presente, porque desaparece en esencia, perece transformada en otro
tipo de acontecimiento. En el teatro no se puede sustraer la presencia de los cuerpos vivos del artista, del
técnico y del espectador. El teatro no se deja enlatar ni capturar con máquinas, de la misma manera que no
se puede detener el tiempo.
127. Jorge Dubatti (Buenos Aires, 1963) es crítico, historiador y docente universitario especializado en teatro. Doctor (Área de Historia y Teoría
de las Artes) por la Universidad de Buenos Aires. Ha publicado más de cien volúmenes (libros de ensayos, antologías, ediciones, compilaciones de
estudios, etc.) sobre teatro argentino y universal. Es responsable de la edición del teatro de Eduardo Pavlovsky, Ricardo Bartís, Rafael Spregelburd,
Daniel Veronese, Alejandro Urdapilleta, Alberto Vacarezza, entre otros. Entre sus libros figuran Filosofía del Teatro I, II y III, Concepciones de
teatro. Poéticas teatrales y bases epistemológicas, Del Centenario al Bicentenario: Dramaturgia. Metáforas de la Argentina en veinte piezas teatrales
1910-2010 (encargo del Fondo Nacional de las Artes), Cien años de teatro argentino, Teatro-matriz, teatro liminal. Estudios de Filosofía del Teatro y
Poética Comparada.. En 2015 el Rectorado de la Universidad de Buenos Aires le otorgó el Premio a la Excelencia Académica y la Honorable Cámara
de Diputados declaró de Interés “la obra del crítico cultural y cientista del arte Dr. Jorge Dubatti”. En 2017 recibió el Premio Konex Periodismo-
-Comunicación (Premio Diploma al Mérito) en la Categoría Crítica de Espectáculos Teatro-Danza-Cine.
107
Por eso sin espectadores no hay teatro. De la mano de la Semiótica y la Teoría de la Recepción, se ha
asistido a una valorización de la presencia y el rol del espectador en el acontecimiento teatral. El espectador
es un co-creador. Lo ha dicho el gran actor argentino Alfredo Alcón, que de esto sabía, en diálogo en la Es-
cuela de Espectadores de Buenos Aires: “El teatro se hace entre los que están abajo y los que están arriba del
escenario. Si el barrilete vuela, si se produce el hecho de comunión, es porque se hizo de a dos, no lo puede
hacer solamente el actor sin el público” (2003:14-15).
Se sabe que la palabra teatro proviene del griego y significa “mirador”. Sin embargo, el espectador no
se limita a “mirar” ni se resigna a la pasividad porque acepta que carece de la fuerza y el talento necesarios
para subir a escena. El teatrólogo italiano Marco De Marinis (En busca del actor y del espectador. Comprender
el teatro II) coincide con Alcón: “El espectador no es un actor fracasado sino uno de los dos protagonistas
de la relación teatral, de la misma manera en que no se puede evidentemente considerar al lector como un
escritor fracasado” (2005: 132). Felizmente el espectador se ha convertido en el lugar por excelencia para
repensar y redefinir el teatro. El espectador es hoy un laboratorio de (auto)percepción teatral.
Convivios excepcionales
Lo que otorga relevancia y singularidad al teatro actual en Buenos Aires no es solamente la calidad
de sus artistas sino sus convivios excepcionales, calientes, fervorosos y activos, que no dejan de llamar la
atención a los visitantes extranjeros acostumbrados a otros comportamientos de los espectadores en otras
capitales teatrales del mundo.
Por más avasalladora que sea la publicidad, por más elogiosas que sean las críticas profesionales, si a
los espectadores no les gusta el espectáculo la sala se vaciará muy pronto. O al revés: muchos espectáculos in-
dependientes que no han recibido comentarios en los medios, trabajan a sala llena. Otros, de cualquier circuito
(oficial, comercial, independiente), castigados con críticas negativas, sostienen sin embargo la convocatoria.
Es el efecto del “boca en boca” o “boca-oreja”. Imperceptiblemente trabaja la tupida red del “No te lo pierdas”,
el “Andá porque está muy bueno”, el “A mí me encantó”, o el “No vayas”, el “Me aburrí como loco”, expresiones
sinceras, desinteresadas y efectivas por confiables, dichas a los amigos, familiares, conocidos y extraños al pasar
de la conversación. El boca en boca se ha convertido en la institución crítica más potente de Buenos Aires.
Misterio
108
está así, adelantarme hasta candilejas y con una gillette cortarme las venas. Estoy seguro de que seguirían
impávidos. Esas noches no hay manera... Así como otros días el público se ríe de cualquier mínima monería.
Es tan difícil esa comunión” (2003: 14-15). En el convivio teatral el espectador es compañero (del latín, cum
panis, el que comparte el pan), de allí la importancia de su amigabilidad, de su disponibilidad.
Pero tal vez el mayor misterio radica en qué pasa en su interior, cómo piensa los espectáculos, qué lo
estimula, si se deja o no conducir por lo que la obra propone, por qué se aburre, por qué ríe, qué recuerda,
y qué hace con los espectáculos cuando terminan. August Strindberg mostró su preocupación por el públi-
co en el prólogo a La señorita Julia en 1888: “En la vida real, un acontecimiento -¡esto es, relativamente un
descubrimiento!- es, generalmente, el resultado de una serie de motivos más o menos profundos; pero el es-
pectador elige, en la mayoría de los casos, aquél que su mente entiende con mayor facilidad o el que enaltece
su propia capacidad de discernimiento. Alguien se suicida. ¡Problemas de negocios!, dice el burgués. ¡Amor
desgraciado!, dicen las mujeres. ¡Enfermedad!, dice el enfermo. ¡Esperanzas frustradas!, dice el fracasado.
¡Pero muy bien puede ocurrir que el motivo esté en todas partes, o en ninguna, y que el muerto haya ocul-
tado el motivo fundamental de su acción destacando otro cualquiera que embellezca considerablemente su
memoria!” (1982: 91-92). Tempranamente Strindberg desestima la posibilidad de guiar al espectador en una
única dirección de estímulo. El espectador hace con los espectáculos lo que quiere (en materia de subjetivi-
dad), y lo que puede (en materia de formación).
Escuela de Espectadores
Fundada en 2001, la Escuela cuenta desde 2007 con 340 alumnos (y actualmente con una lista de
espera de 1200 interesados), así como su irradiación en Córdoba, Rosario, Neuquén, Mar del Plata, Bahía
Blanca, Tandil, Santa Fe y próximamente Tucumán. Siguiendo el modelo de la Escuela de Espectadores de
Buenos Aires se gestaron espacios semejantes en México DF. (2004), Montevideo (2006), La Paz (2012),
Lima (2012), Porto Alegre (2012), Medellín (2013), Universidad Autónoma de México (UNAM, Aula del
109
Espectador, 2015), Caracas (2016), Costa Rica (2016), conectados entre sí. La actitud estudiosa del especta-
dor desplaza un teatro de placer por un teatro de goce, de acuerdo con los términos de Roland Barthes apli-
cados a la literatura: “Texto de placer: el que contenta, colma, da euforia, proviene de la cultura y está ligado
a una práctica confortable de la lectura. Texto de goce: el que pone en estado de pérdida, desacomoda (tal vez
incluso hasta una forma de aburrimiento), hace vacilar los fundamentos históricos, culturales, psicológicos
del lector, la congruencia de sus gustos, de sus valores y de sus recuerdos, pone en crisis su relación con el
lenguaje” (2004: 25).
Un teatro de goce implica esfuerzo, deseo, adquisiciones y búsqueda permanente. Y sobre todo la
necesidad de elaborar parámetros críticos de análisis y evaluación de los espectáculos. El nuevo espectador
lo sabe, es criterioso y argumentativo. Y un espectador que valora de esta manera el teatro es un tesoro cul-
tural en cualquier parte del mundo.
La riqueza de la actividad teatral de Buenos Aires exigía la existencia de un espacio de este tipo. El
nombre Escuela de Espectadores es homenaje a la crítica francesa Anne Ubersfeld y está tomado de uno de
sus grandes libros.
La EEBA se propone brindar a sus asistentes las herramientas necesarias para multiplicar el disfrute
y la comprensión de los espectáculos con profundidad y comunicabilidad. El objetivo es ampliar y enrique-
cer su horizonte cultural, emocional e intelectual como espectadores y producir pensamiento crítico, de
acuerdo con lo observado por García Lorca en el texto del epígrafe que abre estas páginas. No se trata de
“perder” una relación directa, empática o intuitiva con el teatro, sino de enriquecerla con saberes específicos
y otras actividades complementarias del conocimiento teatral. Se trata también de adquirir los elementos
necesarios para argumentar y discutir las poéticas en marcos axiológicos. El espectador debe saber evaluar y
argumentar y para ello hacen falta información y herramientas de juicio. La EEBA está destinada a todos los
amantes del teatro, no se requieren estudios previos, solamente es indispensable tener el deseo de reflexio-
nar, discutir, estudiar, interpretar, evaluar el teatro que se hace actualmente en Buenos Aires o que pasa por
sus escenarios. A la EEBA asisten aquellas personas que gozan del teatro en tanto “simples” espectadores y
las vinculadas laboralmente a la actividad escénica: actores, directores, escenógrafos, críticos, historiadores,
gestores. El coordinador de la Escuela no asume una posición conductista, sino el lugar de un estimulador,
de un agitador. Estimula a los espectadores para que cada cual realice su propia creación receptiva.
Fundamentos
Las razones de necesidad de existencia de la EEBA constituyen un conjunto de principios que guían
nuestra tarea y que apuntan a la configuración y afianzamiento de una comunidad hermenéutica abierta a
la multiplicidad:
110
2. estimular la actividad autónoma del espectador como un creador compañero de los
artistas, los técnicos y los otros espectadores (y cuando decimos estimular –insistimos
en esto, queremos decir: no conducir ni homogeneizar ni unificar, sino ofrecer herra-
mientas de multiplicación para que cada espectador construya su propia relación con
el espectáculo).
4. considerar el teatro como una cantera ilimitada de saberes y pensamiento, cuya intelec-
ción requiere formación específica y en disciplinas complementarias, así como muchas
horas de estudio y análisis y la disposición de corpus y materiales de archivo. Frente a la
des-definición del teatro, la relevancia de lo conceptual y el auge de la desdelimitación
en la formulación de las poéticas del siglo XX y XXI, disponer de información histórica
y categorías intelectuales precisas para la comprensión de los acontecimientos teatrales.
7. hacer del estudio teatrológico no una materia más de educación formal –grillas a com-
pletar, cuestionarios, exámenes, monografías, etc.- sino un puro espacio de goce que
recupera el teatro como placer, alegría, ocio, diálogo, pensamiento, conocimiento, me-
ditación, problematización y transformación de la realidad y lo desburocratiza de otros
marcos pedagógicos, sin obligaciones de “cursada”.
10. distinguir las categorías y prácticas del gusto de las analíticas y argumentativas.
11. trabajar en la revelación del espectador histórico o empírico a través del diálogo, entre-
vistas, encuestas, estadísticas, testimonios conviviales y autobiografías de espectador.
La EEBA cuenta ya con dieciocho años de historia. Comenzó en marzo de 2001 en el Teatro Liberarte
de Buenos Aires y desde 2003 funciona en el Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini. Entre 2001
y 2016 inclusive se analizaron unos setecientos espectáculos y asistieron a la Escuela un millar de teatristas
de diferentes disciplinas –actores, bailarines, dramaturgos, directores, escenógrafos, iluminadores, músicos,
narradores, gestores, etc. Reconocida como espacio de producción de pensamiento crítico y formación, la
EEBA ha sido visitada también por especialistas en teatro de diversos países. La EEBA ha realizado además sus
actividades desde 2003 en diversos Festivales Internacionales, como el Festival Internacional de Buenos Aires,
la Muestra Nacional de Teatro de México en San Luis Potosí y el Festival Cervantino de Azul. También tuvo
intervención en Tintas Frescas (2004), coproducido por Francia y Argentina. La Escuela se ha realizado además
en la cárcel, en Devoto y en Ezeiza, con los presidiarios, llevando los espectáculos a los edificios penitenciarios.
Casi en el cierre del año, en noviembre, los espectadores que integran la EEBA realizan un balance
crítico de todo lo visto y analizado durante el año y eligen los diez acontecimientos de trabajo más importan-
tes de la temporada. En diciembre, en una ceremonia especial, los espectadores entregan a los premiados los
111
diplomas de la distinción: el Premio del Espectador. El premio es celebrado en el campo teatral de Buenos
Aires por su singularidad: es la única distinción al teatro argentino que otorga directamente el público a
partir de sus propios códigos de selección. La EEBA cuenta con un archivo de sus tareas, publicaciones y es-
tudios (de próxima publicación, ver Bibliografía) sobre poética del teatro argentino, estructuras conviviales
y praxis de los espectadores.
REFÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
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argentina hoy. Tendencias!, Buenos Aires, Siglo Veintiuno
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tions Sociales, 1981. Traducción al castellano: La escuela del
----------, “La escena teatral argentina en el siglo XXI.
espectador, Madrid, Ediciones de la ADE, 1998.
Permanencia, transformaciones, intensificaciones, aper-
112
ARTE PARA O POVO É
RECONSTRUÇÃO E RESISTÊNCIA
Ana Mae Barbosa128
R eclamamos muito que no Brasil as Artes são dominadas pelas elites, mas as Artes não são
naturalmente das elites. As elites as dominam porque nós permitimos Primero repetimos a desqualificação
que a linguagem popular faz das artes com expressões cotidianas, todas negativas. Se o aluno foi mal na
prova ele nos diz : Dancei na prova de matemática. Se as mulheres são assediadas dizem : Aquele cara me
cantou .Se alguém está nervoso o outro reclama: Deixa de drama. Mas o pior mesmo é a frase: Entendeu
ou quer que eu desenhe? Estão dizendo que quem entende pelo desenho é burro?
As instituições de Arte Erudita alijaram por tanto tempo o povo do convívio com as Artes que a
população atribui suas ações a comportamentos negativos.
Neste ensaio falarei de dois projetos, o primeiro de Arte/Educação para o povo junto ao MST e o
outro da criação de um Museu para o povo.
No primeiro caso a Arte reconstruindo suas relações com o povo no segundo caso um museu criado
pelos artistas para o povo. Trata-se do Museu Salvador Alende em Santiago no Chile.
O MST ou MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA não é algo novo na
História do Brasil, nem da América Latina. As lutas por uma reforma agrária ou distribuição equânime de
terras começaram ainda nos tempos da colonização européia na América do Sul ,mas no século XX o Méxi-
co foi o único país a ter uma reforma agrária nesta parte do mundo.
No Brasil somente no início da década de 60 os trabalhadores rurais tiveram uma legislação que lhes
garantisse salário mínimo , férias e aposentadoria, graças a um movimento denominado Ligas Campone-
sas. A ditadura militar instalada em 1964 no Brasil não eliminou estes direitos mas perseguiu os campone-
ses, matou seus líderes e extinguiu todo e qualquer movimento organizado.
128. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Pernambuco (1960). Possui Mestrado em Art Education pela Southern Connecticut State
College (1974) e Doutorado em Humanistic Education – Boston University (1978). Ensinou na Yale University e na The Ohio State University. Foi
pesquisadora visitante da University of Central England, da Universidade do Texas e da Columbia University. Recebeu a Comenda Nacional do
Mérito Científico do MCT Brasil, o Prêmio Edwin Ziegfield, USA, o Premio Internacional Herbert Read e o Achievement Award pela contribuição e
liderança na Arte/Educação nos Estados Unidos, entre outros. Atualmente é professora Titular Aposentada da Universidade de São Paulo orientando
Doutorado e Professora da Universidade Anhembi Morumbi.
113
Seus participantes são os nômades dos tempos modernos . Os muitos grupos do MST no Brasil
vivem de terra em terra clamando pelo direito de cultiva-las e de em assim sendo, eles próprios criarem
raízes . O respeito pela educação e a busca pelos meios adequados de educar seus filhos para uma sociedade
melhor e mais inclusiva foi uma característica desde o inicio do MST.
Nas escolas do MST, que em geral são organizadas nas melhores edificações dos assentamentos ou
nas melhores tendas nos acampamentos, a foto de Paulo Freire é pendurada com respeito. A despeito do
esquecimento ao qual Paulo Freire vem sendo gradativamente condenado no Brasil os que têm consciência
política valorizam suas idéias e sua obra em todo o mundo.
Nos Estados Unidos se atribui a Paulo Freire a raiz da Pedagogia Questionadora e da Pedagogia
Cultural que a vanguarda da educação americana vem desenvolvendo. Foram os educadores questionadores
e os adeptos da Pedagogia Cultural que fizeram nos Estados Unidos um dos mais significativos protestos
contra a Guerra do Iraque . Convocaram a população para ir aos museus que têm Arte da Mesopotamia ,
Arte Sumeriana, Arte da Babilônia e da Caldeia, enfim exemplares de Arte Antiga da região hoje denomina-
da Iraque, armada de papel, prancheta e lápis para fazer desenhos de observação nas galerias. Construindo
um site com os resultados.
A desvalorização de Paulo Freire em sua própria terra começou quando ele ainda vivia, através da
instituição educacional mais importante do Brasil, o Ministério de Educação . Para planejar os Parâmetros
Curriculares Nacionais contrataram um educador espanhol, que havia fracassado ao desenhar o próprio
currículo nacional da Espanha, deixando de lado a extraordinária experiência de re-orientação curricular
feita por Paulo Freire quando foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo.(Paulo Freire/Mário Cor-
tela 1989-1992).
É graças ao trabalho de Paulo Freire, apesar do desmantelamento da educação feito por prefeitos
posterior, que os professores da rede pública municipal de São Paulo são considerados até hoje os mais bem
preparados e mais questionadores do país.
Penso que os namoros do MST com a Arte têm não só a influencia de Sebastião Salgado mas tam-
bém de Paulo Freire . O grupo de Artes era o maior dentre a equipe de Reorientação Curricular de Paulo
Freire e seu projeto educacional foi o que no Brasil efetivamente mais espaço deu à Arte.
Ainda em 1995 lideres do assentamento do MST de João Câmara no Rio Grande do Norte procu-
raram a Escolinha de Arte Newton Navarro em Natal pedindo professores para implementarem com eles
um programa de Arte na sua escola. A Escolinha de Arte Newton Navarro era na,época uma das poucas
remanescentes do Movimento Escolinhas de Arte de Augusto Rodrigues que chegou a ter 140 unidades no
Brasil e uma no Paraguai criada pelo artista Lívio Abramo, duas na Argentina e mais uma em Lisboa.
Wandecí de Oliveira Holanda, ex aluna minha, comandou a equipe de professores que dialogando
com os lideres do assentamento levantou as necessidades do grupo de adolescentes e crianças com o qual
iam trabalhar. Perguntei a ela o que os pais esperavam do ensino da Arte . Ela me contou que uma das mães
lhe dissera : _Eu sei que Arte é coisa de rico mas eu quero para meu filho.
A cidade de João Câmara tinha um dos menores índices de desenvolvimento humano do Brasil.
Apesar disto o trabalho foi muito bem sucedido. Fizeram Teatro com Lenilton Teixeira e Edson Moura dois
dos melhores professores de Teatro do Brasil. Todos costuravam, meninos, meninas, mães e professores
para fazerem os figurinos das peças aproveitando roupas velhas. O professor de música trabalhou com um
sanfoneiro do assentamento e usaram o sistema de alto-falantes destinado à informação sobre os problemas
comuns, desta vez para divertir a todos. Os professores de Artes Visuais os ensinaram a reciclar papel atra-
vés de um projeto interligando Arte e Ecologia.
114
Enfim, formaram um grupo de adolescentes multiplicadores das experiências e conseguiram levar
projetos semelhantes para outros assentamentos como Ceará Mirim, Pau d’Óleo, Taipú . etc Da equipe de
professores muitos foram alunos de Vera Rocha que desenvolveu o teatro popular em Natal a partir da Uni-
versidade.
A enorme experiência de Vera Rocha com Teatro em comunidades pobres a preparou muito bem
para coordenar as disciplinas das Artes em outro bem articulado projeto de Educação do MST desta vez
com a própria Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Trata-se do Curso “Pedagogia da Terra” que
teve lugar no Campus Avançado de Santa Cruz a três horas de Natal,(a capital do estado) sob a Coordenação
Geral da competente Prof. Dra Marta Pernambuco.
MST e Universidade sentaram juntos para delinear o programa para “habilitar professores de áreas
de assentamento por meio de curso superior para docência em Educação Infantil e nas séries iniciais do
Ensino Fundamental regular e para jovens e adultos”.129
O currículo interrelaciona atividades presenciais intensivas e ensino à distancia , mas o que impres-
siona muito é o largo espaço dado às Artes .
Havia enorme preocupação em ampliar a cultura dos alunos/professores sem menosprezar a cultura
que traziam. Valia créditos no currículo, por exemplo, vinte horas de atividades culturais que significavam
ir a espetáculos teatrais e de dança , ver exposições, assistir a vídeos, ir a Museus, etc, tudo programado em
conjunto com professores, levando a discussões em grupo posteriormente.
Outras vinte horas eram dedicadas ao fazer artístico através de três oficinas ,entre as quais se divi-
diam os sessenta alunos.
Os alunos eram indicados pelos lideres dos 1620 assentamentos dos Estados do Nordeste naquele
momento. mas tinham de enfrentar o Vestibular, exame de ingresso. Portanto os alunos/professores tinham
de passar por duas peneiras: a do MST e a da Universidade.
Além das disciplinas propriamente pedagógicas o curso não perdia de vista as peculiaridades do
campo, a questão agrária, o cooperativismo, as características do semi-árido, a ecologia, o multiculturalismo.
Em nome deste Multiculturalismo, nas atividades artísticas oferecidas para apreciação, se procurava
interrelacionar o erudito e o popular na articulação interna destes códigos : ver o que há de erudito no po-
pular e vice versa. Para isto o Nordeste tem grandes mestres , entre eles Câmara Cascudo e Ariano Suassuna
e mais recentemente Alembergue Quindins.
A dialogicidade de Paulo Freire articulava disciplinas, ações, teoria e prática além de se instituir
como a metodologia dominante do curso.
Foi lá no Rio Grande do Norte que Paulo Freire no início dos anos 60 sistematizou sua Pedagogia e
lá testemunhamos essa resposta alvissareira.
Houve nos anos 90 mais cinco cursos universitários em outras universidades em parceria com mo-
vimentos sociais, mas nenhum deu tanto espaço para as ARTES como o da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.
As Universidades Públicas começavam a ser mais flexíveis podendo gerar diferentes modelos de
ensino além dos modelos europeus e norte americanos que nos dominam. Estavam criando cursos para
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atender a reais demandas sociais escapando portanto da ditadura das habilidades e competências meramen-
te capitalistas.
A Universidade de São Paulo, a mais importante do país, deu um grande passo no sentido de res-
ponder às necessidades sociais com a criação do Campus Leste, região mais pobre da cidade de São Paulo.
Contudo, seu estatuto foi um entrave porque não permite duplicação de cursos. Como a USP já tem Curso
de Medicina dificilmente vai ser possível criar outro na Zona Leste onde cursos ligados à área de Saúde se
mostram até hoje como os mais necessários Também foram pedidos pela comunidade, naquela época cur-
sos de Artes. Poderiam ter sido criados na USP Leste cursos de Artes com a tônica na diversidade já que os
da ECA valorizam apenas o código europeu e norte americano branco.
Não estou falando de cursos de Artes para pobres mas cursos Multiculturais de Arte como eram
multiculturais as disciplinas de Artes do curso Pedagogia da Terra da UFRGN.
Com frequência recomendo a meus alunos de Doutorado da USP irem a USP Leste em busca de
cursos que considerem a Arte como campo expandido para outras mídias como a indústria Têxtil e o Design
de superfície.
Tudo teve início com J. Maria Galvan e com o brasileiro Mário Pedrosa que exilado no Chile come-
çou a trabalhar febrilmente para criar um museu internacional de arte contemporânea. Como vice presiden-
te da Associação Internacional de Críticos de Arte presidiu o Comitê de Solidariedade Artística, destinado
a criar o Museu, entusiasticamente aprovado pelo Presidente Allende que, em sua “Mensagem aos artistas
do mundo”, os conclamou a colaborarem com o processo de transformação social do Chile mobilizando
meios de “acelerar o desenvolvimento material e espiritual de suas gentes”.
Em 1973 quando Allende foi assassinado muitas das 384 obras que já haviam sido doadas estavam
sendo expostas no Edifício Gabriela Mistral e em um Museu de Arte Contemporânea que já existia mas
com um acervo pobre e principalmente nacional.
Aqueles que estavam envolvidos com o Museu da Solidariedade se exilaram e falou-se na imprensa
que as obras haviam desaparecido . Entretanto estiveram todos estes anos na reserva técnica do Museu de Arte
Contemporânea que foi fechado pela ditadura e reaberto posteriormente, em outro local. Uma tela de Frank
Stella de grandes dimensões passou 27anos enrolada e escondida entre as obras do Museu de Arte Contempo-
rânea .É, sem dúvida a mais importante obra de Stella em acervos abertos ao público da América Latina.
Enquanto esperavam no exílio em Paris que a democracia voltasse ao Chile os criadores do museu
constituíram um secretariado composto por Miguel Rojas Mix, Pedro Miras, José Balmes, Miria Contreras
, Mário Pedrosa e outros e continuaram sua campanha de arrecadação de obras para o Museu da Solida-
riedade. Os chilenos exílados mantiveram em suas próprias casas os quadros e peças que continuavam
chegando, como um sinal de «resistência» à ditadura militar. Assim conseguiram em torno de 700 obras.
Hoje o acervo é de 2.500 obras.
Artistas como : Miro, Antônio Saura, César Baldaccini, Lígia Clark(um dos Bichos ),Sérgio
Camargo, Cuevas, Calder, Chilida, Conagar, Cruz Diez,Figari, Gamarra,Kitaj, Wilfred Lam, Julio Le
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Parc,Felipe Noé, Zoran Music,Oteiza, Claes Oldenburg, Arthur Luis Pizza,Antonio Segui,Jesus Rafael Soto,
Siqueiros, Portocarrero, Soulages, Tapies,Torres Garcia , Vasarely e Vostell além do já citado Frank Stella fo-
ram especialmente generosos(ou suas famílias) doando obras significativas de suas respectivas iconografias.
De artistas brasileiros, além dos já mencionados, há obras também significativas de Sérvulo Esme-
raldo, Franz Krajcberg, Maurício Nogueira Lima, Flávio Shiró, Claudio Tozzi, etc.
Nenhum artista caiu no pecado de alguns artistas brasileiros de doar algo sem importância ao Mu-
seu só para atender a um pedido ou algo não significativo , por exemplo, obra criada para ser efêmera mas
oferecida ao museu para ver se dura mais um tempo ou ainda oferecida por ser de grande formato e o artista
não ter onde guardar.
As obras que os artistas do Museu da Solidariedade Salvador Allende doaram são de alta qualidade
e os representam significativamente no acervo.
A mostra Espanhola ,que ocupa duas salas é quase completa, representando muito bem as três
décadas 50,60 e 70 às quais o museu é dedicado. Os principais grupos de vanguarda da Espanha estão re-
presentados de modo a serem claramente definiveis através das obras que doaram. Os Grupos, Dau al Set
de Barcelona, El Paso de Madrid e Crónica de Valência exaltam abstração magicista, abstracionismo escul-
tórico geométrico e pop político na coleção. Aliás ,são muitas as obras que fazem referência a problemas
político-sociais, principalmente entre os anos 65 e 80.
Já há algum tempo em um ônibus que cruza constantemente o país, chegando às regiões mais pobres,
o Museu vem levando obras e professores para mostrar Arte e preparar o público para seu entendimento.
O Museu da Solidariedade pertence à Fundação Salvador Allende que foi inicialmente dirigida pela
filha do ex. presidente, Isabel Allende ( a novelista é a sua prima).
Sua primeira sede foi um edifício de quase 120 anos pertencente à Prefeitura de Santiago Foi res-
taurado por governos espanhóis municipais e lá funcionou no passado uma Escola Normal . A antiga capela
era um espaço destinado à instalações e foi inaugurado pelo trabalho Ex It de Yoko Ono que constava de
100 ataúdes de adultos e crianças , sem identificação, dos quais emergia uma árvore. Escutava-se cantos de
pássaros numa obvia alegoria ao ciclo da vida que no contexto específico pode ser literalmente interpretada
como alusão a matança dos anos 70 e ao renascimento pós ditadura. Esta instalação estava muito aquém da
qualidade das obras do acervo mas funcionou quase como exorcismo para o público.
Nos anos de exílio trabalhou na Nicarágua ,com o Ministro da Cultura Ernesto Cardenal, formando
um museu para o país.
Mais de 30 anos após a morte do presidente socialista que sonhou em aproximar a arte das camadas
populares, o Museu da Solidariedade Salvador Allende no dia 19/07/2006 em Santiago no Chile, inaugurou
sua sede definitiva.
A casa de dois mil metros quadrados , construída em 1920, foi ocupada durante a ditadura de Pino-
chet pelos agentes secretos da Central Nacional de Informações, que a usaram como centro de espionagem
telefônica.
Esta sede permanente foi inaugurada pela Deputada Isabel Allende que disse. “Este era um sonho
de meu pai: aproximar a arte contemporânea do mundo popular. Esperamos agora realizar este sonho, ao
117
inaugurar esta sede definitiva do museu, após um trajeto errante das obras por diversos locais nas últimas
décadas”.130
Nas vésperas de seu assassinato ao inaugurar a exposição das primeiras obras doadas Allende agra-
decendo o apoio dos artistas, disse “Este museu será o primeiro em um país do Terceiro Mundo que, por
vontade dos próprios artistas, aproxima as manifestações mais altas da plástica contemporânea às grandes
massas populares”,
Mário Pedrosa estaria muito feliz com a casa definitiva do Museu da Solidariedade, o qual continua
sem medo de pensamento político nas Artes e continua engajado na educação do “Homem(/Mulher) Povo
do Chile” como queria Allende.
Para mim o desejo das mães do MST de Arte para seus filhos e o desejo de Salvador Allende de
Arte para o povo se irmanaram e provocaram gestos de resistência que tem levado a reconstrução social na
América Latina.
130. http://vermelho.org.br/noticia/5412-1
118
O PROFESSOR MEDIADOR
DE ARTES VISUAIS
Gabriela Bon131
A cada aula, o professor de Artes Visuais é atravessado por inúmeros conteúdos e temas cotidia-
nos que não podemos simplesmente ignorar por não estarem diretamente inclusos no programa didático de
cada turma. Por mais que haja um cronograma específico para nossas aulas, seja através da mídia aberta ou
das redes sociais da internet, outras pautas acerca da Arte, em especial da Arte Contemporânea, se impõe e
precisam ser levadas em consideração nas discussões com os alunos ou ainda com seus responsáveis.
Para além de dar aulas de forma tradicional, o professor de Artes Visuais precisa atuar como um
mediador de exposições ou ainda como um detonador de reflexões na comunidade escolar em que está in-
serido. Cabe destacar que, postular para si este papel de mediador de forma mais distendida requer muitos
cuidados, pesquisa, sensibilidade e afeto. E, quando falamos em afeto, não estamos falando somente de afei-
ção; estamos somando a este sentimento também a ideia de afetar e deixar-se afetar pela Arte, conviver de
forma mais estreita com as exposições, com as instituições, com os demais profissionais do campo das Artes
Visuais e, se possível, com artistas contemporâneos e críticos de Arte. Claro que nem sempre o convívio
interpessoal e direto é possível, mas os textos e sites da internet, bem como as instituições de acesso público
podem ser facilmente acessados pelo professor que se dispuser a trazer este universo para sua comunidade.
Desta forma, o objetivo principal deste texto é trazer alguns subsídios para que professores de Artes
Visuais transformem visitas a Museus em Aulas de Campo, as quais pressupõem pesquisa, reflexão e ação
durante uma experiência prática e extremamente profícua.
Em diversas áreas, como na Biologia ou na Geografia, por exemplo, o conceito de Aula de Campo é
bastante difundido e aceito, não só como um recurso auxiliar de ensino e aprendizagem, como também um
importante aporte metodológico aos docentes em sua constante busca de novos processos empíricos que
sejam mais significativos, perspicazes e profícuos para os alunos (SOUSA; et al. 2016, online).
Diferentemente de uma aula teórica e expositiva, na qual o professor traz um número bastante limi-
tado de fontes e materiais, uma “visita” ou “excursão” possibilita tanto ao próprio aluno, quanto ao professor,
131. Graduada em Artes Plásticas, com habilitação em História, Teoria e Crítica de Arte (2003). Fez Especialização em Museologia e Patrimônio
Cultural, 2005. Mestra em Educação (2012), na Linha de Pesquisa Educação, Arte, Linguagem e Tecnologia, com bolsa Capes/Prof. Doutora em
Educação (2016), na Linha de Pesquisa Educação, Arte e Currículo, com bolsa Capes DS. Fez Estágio de Doutorado Sanduíche (2015) em Madri,
Espanha, com bolsa PDSE da Capes.
119
uma busca de informações em fontes diversificadas e um contato direto com os profissionais que atuam
naquele meio. As atividades externas ao ambiente escolar são, inclusive, recomendadas pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN):
Porém, ao propormos uma “visita” ou uma “excursão”, podemos dar a entender aos responsáveis
pelos alunos ou à própria coordenação da escola que estamos planejando exclusivamente um momento de
ócio ou de entretenimento. Mesmo que períodos de repouso e lazer ocorram durante o desenvolvimento da
atividade e que saibamos que estes momentos não são danosos ao processo de ensino e aprendizagem, para
muitas pessoas estas situações podem parecer improdutivas e dar a entender que o professor deseja apenas
não preparar ou ministrar sua aula com profundidade.
Assim, para conquistar o apoio da comunidade escolar e demonstrar que se trata justamente do
contrário, de uma aula mais produtiva e até mais difícil de planejar e de executar, o professor deve se funda-
mentar tanto nas teorias da Arte, quanto em documentos oficiais do Ministério da Educação.
Seguindo este raciocínio e partindo das orientações contidas nos próprios PCN, podemos jus-
tificar junto aos responsáveis pelos alunos ou à coordenação da escola, uma saída a campo, seja ela para
um museu, para uma galeria ou mesmo para um atelier particular. Obviamente que, na Educação Infantil,
cuidados extras e adequações sempre devem ser consideradas com atenção antes de planejarmos uma saída
da escola. Também precisamos atentar que cada comunidade escolar e cada atividade pretendida poderá
requerer argumentos e documentação específicas.
Vale frisar ainda que, apesar das dificuldades burocráticas, financeiras ou de qualquer outra or-
dem imposta pela realidade de nosso sistema escolar, em especial nas fases iniciais, alunos que disfrutam
de um contato inesquecivelmente prazeroso e produtivo com obras de Arte, futuramente tendem a não se
intimidar com as mudanças paradigmáticas da Arte Contemporânea. E, a partir deste primeiro contato, as
instituições que abrigam obras de Arte se convertem em uma fonte de conhecimento extremamente seduto-
ras e, ao mesmo tempo, mais arrebatadoras e interessantes do que uma prancha de imagem, um livro, uma
apresentação de slides ou aula de desenho.
Outro fator importante a ser levado em consideração é que uma Aula de Campo tem o poder de
estabelecer relações bastante diretas entre a realidade e a teoria, sendo este um trabalho bastante difícil para
as fases iniciais do ensino formal. Segundo Lima e Assis (2005, p. 112), para a Geografia, por exemplo, “o
trabalho de campo se configura como um recurso para o aluno compreender o lugar e o mundo, articulando
a teoria à prática, através da observação e da análise do espaço vivido e concebido”. O mesmo pode ser dito
do contato com qualquer obra de Arte, ainda mais quando tratamos da Arte Contemporânea que articula
o cotidiano com proposições nem sempre tão fáceis de correlacionar com os cânones tradicionais da Arte.
Para além das questões estéticas ou teóricas que envolvem a obra de Arte em si ou o trabalho previsto no
cronograma de aula, a ocupação dos espaços musealizados por parte da comunidade escolar também é uma
questão de cidadania e de pertencimento junto ao patrimônio cultural de nosso país.
Desta forma, ao planejar uma Aula de Campo em um espaço musealizado, o professor pode articu-
lar diversos conteúdos em seu programa didático que envolvem incialmente os conteúdos mais tradicionais
120
e notórios da Arte, avançando progressivamente para uma construção mais profunda de cidadania que
abrange o direito ao acesso aos bens culturais e a preservação patrimonial de forma mais expandida. Para
tanto, a conduta do professor no planejamento de uma Aula de Campo é fundamental, pois além de projetar
e dinamizar todas as estratégias, processos e ações previstas, ele terá de atuar como um mediador entre a
Arte como um todo e as necessidades de sua turma, levando em consideração a faixa etária, desenvolvimen-
to individual de cada aluno, condição socioeconômica individual e possibilidades da escola para estabelecer
a sua real possibilidade de acesso aos bens culturais.
Além de tudo isso, o professor não pode deixar de correlacionar todas as necessidades da turma
já mencionadas com as possibilidades educativas da exposição especificamente desejada, sem esquecer de
averiguar a conjuntura social, política e/ou divulgação dela na mídia.
Para planejarmos uma Aula de Campo em qualquer Instituição, em primeiro lugar, precisamos
levar em consideração a exposição em si, a proposta de mediação da instituição e quais as atividades e pos-
sibilidades relacionadas ao nosso trabalho em sala de aula. Assim, é imprescindível que, em primeiro lugar,
o professor visite pessoalmente a exposição para que tenha ciência do que realmente está sendo exposto e
perceba as possibilidades oferecidas pelos objetos mostrados, pela maneira como estão sendo expostos mu-
seograficamente e pela instituição na qual a mostra se encontra.
Também é muito importante que o professor se inteire das regras de conduta e de segurança de
cada instituição. Conhecer as regras do espaço com antecedência faz com que não tenhamos problemas e
interrupções desnecessárias durante a Aula de Campo. Um aluno repreendido por um segurança pode ficar
seriamente constrangido no espaço expositivo e até sofrer bullying ao voltar para o ambiente escolar. Além
disso, o aluno também pode desenvolver uma resistência ao ser solicitado a retornar a uma exposição após
uma situação constrangedora.
Como cada espaço expositivo possui regras diferentes, o professor deve se informar das peculiari-
dades do espaço que pretende explorar para alertar seus alunos e, dependendo de suas necessidades, esco-
lher outro espaço que lhe seja mais acolhedor. É importante explicar à turma que estas regras visam tanto à
conservação das obras, quanto ao convívio de muitos grupos simultaneamente no espaço expositivo e que
estas interdições valem para todos os visitantes e não só para os grupos escolares.
Como os alunos não estão acostumados a transitar por estes espaços, é sempre bom repassar algu-
mas condutas básicas que costumam ser adotadas por diversas instituições, tais como:
• com relação à fotografia, como nem sempre é possível fazer imagens das obras, verifi-
car a possibilidade de fotografar a exposição pretendida antes de adentrar na sala, mas
informando sempre aos alunos para desligarem o flash antes de iniciarem o roteiro,
121
pois além da questão de conservação das obras, a luz atrapalha os demais visitantes.
Também é importante evitar a proximidade excessiva das obras ao fazer selfies;
• solicitar o desligamento dos celulares para não interromper o roteiro, incluindo o apa-
relho do professor;
• informar que chicletes e balas não são permitidos porque, ao falarmos, podemos cuspir
na direção de uma obra ou deixá-las cair da boca;
• sobre a interação física com as obras, de modo geral, como não se pode tocar nas peças
a fim de evitar danificá-las, verificar se existe alguma peça com possibilidade de intera-
ção junto ao setor educativo da instituição;
Para além destas questões de ordem prática, uma Aula de Campo em uma exposição tende a ser
um momento de aprendizagem muito prazeroso e descontraído, mas o professor precisa sempre conhecer
a mostra antecipadamente para só depois propor um plano de aula relacionado a ela, transformando assim
esta atividade em algo mais que uma simples visita, excursão ou passeio. Cabe destacar, mais uma vez, que
não há nada de ruim em passear ou ter prazer em uma Aula de Campo, mas é importante enfatizar as pos-
sibilidades didáticas da atividade que propomos.
Também cabe salientar que não se trata de uma palestra em que o mediador da instituição fala e
todos ficam calados apenas o observando. Estimular os alunos a perguntar sobre a exposição, mostrar que se
trata de uma conversa na qual todos podem falar (desde que haja respeito à fala alheia) e que todos podem
se expressar sobre o que estão vendo ou sentindo naquele espaço, costuma ser o início de um trabalho muito
mais fecundo. E isto vale também para o professor! É interessante que ele faça parte da conversa, estimule a
turma ou faça perguntas ao mediador, pois ninguém melhor que ele saberá quais conteúdos e discussões são
mais relevantes para o trabalho que está desenvolvendo com a sua turma. No entanto, também é importante
que o professor não fique falando sem parar, que permita que todos conversem com o mediador e respeite
a fala deste profissional que costuma ter informações muito diversificadas e valiosas sobre o tema exposto.
Sobre a proposta de mediação de cada instituição, é relevante que o professor pesquise as insti-
tuições que sua turma tem condições reais de acessar em sua cidade. Lembrando de verificar as condições
de fornecimento de transporte, de acessibilidade, de disposição de profissionais para receber a turma e de
expediente da instituição. Entrando em contato diretamente com o setor educativo da instituição escolhida,
o professor pode solicitar mais detalhes sobre o trabalho teórico e prático desenvolvido na instituição, seja
através de conversas por telefone, por e-mail ou presencialmente.
Os contatos de cada instituição costumam estar disponíveis no site ou nos folders das mostras.
Esta conversa é muito importante porque, em muitos casos, a coordenação do setor educativo da instituição
poderá providenciar uma adequação do roteiro ao grupo mediante solicitação prévia do professor. Porém,
sem este contato prévio, fica bastante reduzida a possibilidade de adequação do mediador em relação ao
conteúdo exposto e as necessidades reais da turma para além do perfil geralmente fornecido durante a fase
de agendamento.
Para propor atividades relacionadas à exposição, o professor poderá pensar em trabalhos que en-
volvam o conhecimento artístico que será adquirido durante toda a proposta da instituição. Estas atividades
122
podem ser feitas antes, durante ou após a aula. Não há uma regra para isso e a criatividade do professor é
muito importante para evitar “manualidades” ou atividades “bulímicas” (ACASO, 2009, 2012), isto é, ativi-
dades exclusivamente artesanais ou a memorização de informações que são descartadas por não haver um
adequado processo reflexivo.
É importante salientar que uma atividade exclusivamente manual não produz, por si só, uma re-
flexão e pode, inclusive, gerar um afastamento do pensamento crítico acerca da obra. Logo, antes de propor
uma atividade, o professor precisa ter consciência do que ele deseja que os alunos experienciem para só
então delinear sua proposição didática. Atividades de reflexão, dinâmicas de grupo ou produções plásticas
(relacionadas ao tema e produzidas a partir de uma reflexão) auxiliam o aluno a compreender o que foi visto
e, principalmente, a se libertar dos estereótipos acerca das Artes Visuais. Materiais educativos oferecidos ao
professor podem ser explorados criativamente e não somente como um guia da atividade a ser executada.
Estes materiais não devem ser tomados como “bulas de remédio” e o professor pode ler o material educativo
fornecido pela instituição e adequar as propostas ao seu dia a dia; pode utilizá-lo de outras formas não pre-
vistas pela instituição ou simplesmente decidir que este material não é adequado ao trabalho que ele deseja
desenvolver. Ou seja, é o professor quem decide o que fazer com este material que pode ser muito produtivo
para alguns e totalmente descartável para outros. Obter o material de uma instituição não significa que de-
vemos utilizá-lo tal e qual ele se apresenta, Trata-se apenas de uma sugestão que pode nos trazer algumas
informações e ideias diversas sobre a exposição.
Por fim, depois de visitar e experenciar por si mesmo a exposição, o professor é capaz de criar um
excelente projeto de Aula de Campo que seja bem mais contundente e enriquecedor que uma visita, uma
excursão ou um passeio. Uma Aula de Campo para as Artes Visuais, se bem planejada, pode se tornar a
conjugação de tudo isso: um passeio em que a turma conhece e discute sobre os caminhos percorridos no
ônibus; uma visita a um espaço novo com dinâmicas de ensino e aprendizagem completamente diferentes da
escola; e uma excursão na qual todos mergulham no mundo da Arte. A vantagem de um bom planejamento
para uma Aula de Campo nas Artes Visuais é que ele torna palpável para toda comunidade escolar aquilo
que postulamos em diversos discursos acerca dos ideais de Educação: uma excelente experiência didática
onde todos ensinam e aprendem juntos.
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124
PAISAGENS PEDAGÓGICAS DIGITAIS:
RESISTÊNCIA, RESILÊNCIA, (RE)EXISTÊNCIA
Fernanda Pereira da Cunha132
Este processo humano/crítico/inventivo deve atender à força motriz de seus desejos expressivos,
que podem estar alicerçados na generosidade, solidariedade. A Ciberexpressão pode e deve ser uma instân-
cia e-arte/educativa, que promova a descoberta do que há de mais humano no ser humano. A Arte, através
do Movimento de Arte para a Reconstrução Social, tem apresentado sua relevância para a vida das pessoas.
Como adverte Ana Mae Barbosa:
132. Mestre e doutora em Arte pela ECA/UPS. Coordenadora do curso de Especialização Arte/Educação Intermidiática Digital pela EMAC/UFG.
É professora associada da EMA/UFG. Participa do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Música EMAC/UFG. Atua principalmente na
área de Arte/Educação Digital. Autora do livro “Abordagem Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais” com Ana Mae Barbosa pela editora
Annablume (2012) e do livro “Técnica e Tecnologia: a indústria ideológica de massa” pela Annablume (2012).
125
O ensino da Arte não pode ser negligenciado. A expressão humana é uma necessidade inerente à pessoa.
Sem a capacidade plena de expressar-se compreendo um homem e/ou uma mulher deficiente. O escritor e
professor português Ademar Ferreira dos Santos (1952, 2010) que foi presidente da Direção da Escola da Ponte
em Vila das Aves, Portugal, cuja escola se apresenta como um modelo internacional em práticas pedagógicas
inovadoras, no prefácio do livro de Rubem Alves intitulado A escola com que sempre sonhei sem imaginar que
pudesse existir nos promove experiência empírica ao se submergir na narrativa do exercício educativo crítico
pelos passos da curiosidade, da aventura, do encorajamento, da autogovernança, em suas palavras:
Como proteger-te das incursões obrigatórias que sufocam seu prazer da descoberta?
A Bandeira, que não pode ser silenciosa, se insere na prática pelo exercício pedagógico sábio, por
isto libertário, entre palavras e gestos (intimamente sábios) para ajudar-te serenamente a ler e a escrever sua
própria vida, no âmbito da autogestão discente no processo de ensino/aprendizagem em prol da autono-
mia, transgredindo padrões TecnoEducacionais que muitas vezes acabam castrando o processo criativo de
nossos alunos e alunas através de ações Ctrl+Alt+Del que formatam valores pessoais e ignoram o tempo de
cada um... Neste paradigma se cala a percepção que dialoga com o universo interno e externo da pessoa,
roubando-lhe a capacidade de sonhar, de imaginar, de criar. De expressar, pois é “esse mundo interior, só
captável pelo olhar para dentro, que dá a expressão à nossa identidade e singulariza o nosso destino”, quando
“nos apercebemos de que há um imenso mundo para além ou aquém do mundo que espreitamos fora de
126
nós”(SANTOS. In: ALVES, 2012, p. 10).
Fernando Azevedo traz a essência da Vida Artista fundamentado por Foucault ao abordar o questio-
namento da obra de arte estar relacionada exclusivamente aos objetos e nunca à vida das pessoas. Nas palavras
de Foucault: “Mas a vida de todo indivíduo não é uma obra de arte? Por que uma mesa ou uma casa são objetos
de arte, mas não as nossas vidas?” (FOUCAULT, 1994, p.617. Apud AZEVEDO. In: LIMA, 2017, p.129)
Neste parâmetro, Fernando Azevedo, sob os auspícios dos Estudos Culturais na luz de Tomaz Ta-
deu da Silva (2007) insere a diferença para a democratização da Arte como um saber, ao argumentar que
“a Arte (e suas linguagens) é importante na formação do pedagogo por ser o lugar em que a dimensão da
imaginação poética é profundamente valorizada” (AZEVEDO. In: LIMA, 2017, p.122). Como nos adverte
Fernando Azevedo:
Quem poderia contraria-me que ao se haver diferença – pensamento divergente, seja de qual natu-
reza for, estabelecer-se-á potencial para palcos oriundos de conflitos sociais de enunciações à resistência...
À resiliência... E se for Bandeira, à (re)existência... Para se (re)existir há que se (re)encontrar-se na própria
existência, o que vou denominar aqui de honra. Honra advém do princípio que leva alguém a ter uma con-
duta íntegra, virtuosa, corajosa, honesta. A educação plena merece seu lugar de honra. No âmbito da Vida
Artista, as expressões da vida (que se difere das expressões pela vida) – ou ainda – a VidaExpressão se insere
em suas cartografias identitárias, que manifestam na complexa relação estética de resistências, resiliências,
(re)existências. A ação de [re]criar a Vida é Arte.
Neste âmbito, este texto se insere em reflexões sobre a Cibervida Artista advindas de suas manifesta-
ções no/pelo universo digital no âmbito das questões pedagógicas conduzidas pela diferença – pela edifica-
ção do pensamento divergente, em prol do desenvolvimento do pensamento e resolução de problemas com
imaginação poética, no campo entre o que a realidade e a ficção podem criar.
Eis que se instaura o embate e por assim dizer, o conflito. Ambiente de atrito. A Bandeira. (Re)Exis-
tir clama pela resiliência à resistência. A Cibervida Artista nos demonstra esta natureza pela estética da vida.
Chamo pela artista videográfica Chantal DuPont. Chamo pelo artista quadrinista Gidalti Moura Jr. Chamo
pela formanda de direito Michele Maria Batista Alves. As estéticas identitárias do pensamento divergente
127
destas três Vidas Artistas singularizam a poética de suas Bandeiras, que viralizam suas ciber(re)existências
em nossas redes sociais. Em mais detalhes, a resistência de cada um destes Personagens, como abaixo segue.
Chantal DuPont, nascida (1942) em Montreal foi professora em Artes Visuais e de Mídias da Uni-
versidade de Quebec em Montreal por 23 anos (1985 a 2008), possui obras videográficas reconhecidas inter-
nacionalmente com múltiplas narrativas sobre o que se pode gerar entre a realidade e a ficção liderada pelo
digital. As obras videográficas de DuPont desde 1996 possuem temas sobre a identidade familiar e cultural,
sobre a vulnerabilidade do corpo, sobre a memória, em que a auto-representação é constante em sua obra.
Suas obras estão expostas no VMC -virtual museum.ca, em Science in Art: Body - healt. Em sua obra Du front
tout le tour de la tête Chantal DuPont nos apresenta as relações (re)existencialistas, em seu processo de re-
sistência, ao expressar o período em que teve câncer e passou pelo problema da queda de seus cabelos com
o tratamento quimioterápico, por meio de um diário em vídeo com 30 minutos de duração:
Este diário em vídeo, filmado entre 4 de maio de 1999 e 1 de fevereiro de 2000, reúne uma
série de auto-retratos, uma festa em todas as suas formas. A autora submete seu próprio
corpo a disfarces, a várias transformações de sua cabeça por meio de objetos, vegetais e
movimentos corporais, obscurecendo as certezas da identidade. Em face da doença, a
história de pequenas vitórias infantis ajuda a encontrar um espaço para conquistar, que se
projeta para frente. Está nevando estrelas em sua cabeça. (Disponível em: <http://videos.
videoformes.com/video/107134>. Acesso em: 24 abr.2018, tradução nossa)
O artista visual Gidalti Moura Jr, nascido em Minas Gerais, mas que vive desde pequeno em Belém,
é o criador da novela gráfica Castanha do Pará e foi vencedor do primeiro prêmio Jaboti (o mais importante
prêmio literário do Brasil) na categoria de melhor História em quadrinho em 2017, teve a ilustração da capa
do livro Castanha do Pará retirada da exposição de um shopping em Belém no dia 16 de abril de 2018.
Relata o Globo.com que a ilustração censurada de Gidalti retrata um menino de rua de Belém – que
é o protagonista da história, escapando de um policial. Esta imagem exposta sofreu vários ataques de poli-
ciais militares ao desenho de Gidalti, ocasionando a retirada da obra da exposição sem o consentimento de
Gidalti. Em sua rede social, Gidalti classificou a situação como censura:
Em sua página no Facebook, Gidalti, que ganhou com esta obra o Jabuti, mais importante
prêmio literário do Brasil, declarou total repúdio “aos conceitos arbitrários que classificaram
a imagem como uma ofensa à Polícia Militar”. “A retirada da obra do evento é um gesto que
vai contra valores fundamentais que defendo, dentre estes, a liberdade de expressão. A obra
é ficcional, tem caráter lúdico e expõe situações rotineiras nas metrópoles brasileiras. Quem
a compreendeu como apologia ao crime e/ou a desmoralização da polícia militar, o faz de
forma leviana e sem ao menos ler o livro ‘Castanha do Pará’”, disse. (Disponível em: <https://
g1.globo.com/pa/para/noticia/ilustracao-do-artista-gidalti-e-removida-de-exposicao-em-
-belem-e-ele-classifica-como-censura.ghtml>. Acesso em: 22 abr.2018)
A estudante de direito pela PUC-SP Michele Maria Batista Alves de 23 anos, natural de Macaúbas,
cidade de 50 mil habitantes no centro-sul da Bahia, filha de mãe solteira, criada com a ajuda da avó, vem
para São Paulo aos 12 anos de idade para cuidar de uma depressão e tão breve se recuperasse retornaria à
sua cidade natal, mas depois de dois anos se depara com o enfrentamento de um tumor na garganta com
êxito de cura, viralizou nas redes sociais o vídeo e o áudio do seu discurso de formatura, proferido em 15 de
fevereiro de 2018 no auditório que se encontrava lotado no Citibank Hall, que é uma enorme casa de shows
da cidade de São Paulo.
128
Foi um discurso muito aplaudido com a plateia de pé em que Michele deu voz à resistência, contra o
preconceito, nas palavras de estudante: “Gostaria de falar sobre resistência. De uma em específico, a que uma
parcela dos formandos enfrentaram durante sua trajetória acadêmica”. Michele se refere aos alunos bolsistas
do curso de direito da PUC-SP pelo Programa Universidade para Todos (ProUni) que foi criado em 2004:
“Somos moradores de periferia, pretos, descendentes de nordestinos e estudantes de escola pública”. Em
sua oratória a estudante Michele Maria B. Alves conta os preconceitos que resistiu para chegar à formatura:
Resistimos às piadas sobre pobres, às críticas sobre as esmolas que o governo nos dá. À
falta de inglês fluente, de roupa social e linguajar rebuscado. Resistimos aos desabafos dos
colegas sobre suas empregadas domésticas e seus porteiros. Mal sabiam que esses profis-
sionais eram, na verdade, nossos pais.
A história desta estudante retrata a história do percurso de nossos alunos e alunas brasileiros das
classes sociais menos favorecida nas universidades. Na matéria publicada sobre o discurso de Michele pelo
Geledés – Instituto da mulher negra (https://www.geledes.org.br) se assinala a experiência cruel de se perce-
ber que se é pobre pelas mãos da exclusão, do preconceito. Abaixo alguns trechos da entrevista:
Michele aponta as dificuldades de convívio com alunos e professores de outras classes sociais bem
como a solidão que enfrentou:
Passou os seis primeiros meses sem falar com ninguém. “Também por minha conta, por-
que antes eu era mais radical, mais intolerante. Acho que a gente tem de ser radical, mas
não radical cego. Isso eu só aprendi depois, ao perceber como as pessoas me enxergavam e
como eu poderia me aproximar delas. Aos poucos, fui criando métodos para dialogar com
quem era diferente de mim. Ficar sem falar é muito ruim.”
Professores da PUC confirmam a situação narrada por Michele. “Ouvi de alguns bolsistas
que a maior dificuldade não era preencher as lacunas de formação, mas conviver com a
discriminação por parte de colegas”, diz Leonardo Sakamoto, professor do curso de jorna-
lismo. “Se a PUC tivesse mais estudantes como eles, faria mais diferença do que faz hoje.
129
Alguns dos meus melhores alunos foram bolsistas.”
Michele não foi a oradora oficial, o “orador oficial fez um discurso leve, contando ‘causos’ do curso
e arrancando risadas da plateia”. O discurso da formanda foi à consequência de um grupo que a estudante
fundou para debater a situação dos bolsistas na PUC:
As estéticas socioculturais, presentes na sociedade em rede, são de suma importância para este es-
tudo, no tocante as Cibervidas Artistas, porque o objetivo é a educação cultural, por se acreditar no poder
libertador da identidade.
Uma das características, se não a mais importante, da tecnocultura é sua capacidade de captar a
maioria das expressões no âmbito de sua diversidade social/cultural/tecnológica. Seu ponto marcante, como
pudemos observar acima, é o fim da separação e divisão entre as mídias audiovisuais e impressas e a oralida-
de, bem como o fim da separação entre cultura popular e erudita, entretenimento e informação. Assim, via-
biliza a interação entre estes códigos comunicacionais num único universo digital interativo, constituindo
um novo ambiente simbólico, o qual torna a virtualidade uma realidade expressiva que liga as manifestações
em todos os seus tempos e espaços, contidas em nossa mente comunicativa, transformando a virtualidade
em um sistema comunicacional e, portanto real. Como adverte Castells:
Finalmente, talvez a característica mais importante da multimídia seja que ela capta em
seu domínio a maioria das expressões culturais em toda a sua diversidade. Seu advento
é equivalente ao fim da separação e até da distinção entre mídia audiovisual e mídia
130
impressa, cultura popular e cultura erudita, entretenimento e informação, educação e
persuasão. Todas as expressões culturais, da pior à melhor, da mais elitista à mais popu-
lar, vêm juntas nesse universo digital que liga, em um supertexto histórico gigantesco,
as manifestações passadas, presentes e futuras da mente comunicativa. Com isso, elas
constroem um novo ambiente simbólico. Fazem da virtualidade nossa realidade. (CAS-
TELLS, 1999, p. 354)
A interação crescente entre mentes e máquinas, inclusive a máquina de DNA, está anulando o que
Bruce Mazlish (1993) chama de a “quarta descontinuidade” (aquela entre seres humanos e máquinas), “al-
terando fundamentalmente o modo pelo qual nascemos, vivemos, aprendemos, trabalhamos, produzimos,
consumimos, sonhamos, lutamos ou morremos” (CASTELLS, 1999, p. 52). Compõem-se, então, novas for-
mas de relações, bem como um novo estado da mente – a metalinguagem, a qual está proporcionando a
infra-estrutura mental para a comunicação integrada em um tempo escolhido (real ou atrasado), consti-
tuindo, assim, novo conceito de comunicação e, portanto, de cultura da humanidade.
A vida humana, sabemos, não é somente a interação com a matéria, mas também o embate do ho-
mem com sua própria alma. Para a indústria ideológica massiva, é essencial capturar a alma humana para
disseminar o consumismo em larga escala. Isto faz dela um importante veículo/instrumento utilizado no ca-
pitalismo para a ditadura de valores. Deste modo, é imperativo um processo de ensino/aprendizagem pelo
desenvolvimento da consciência autônoma e por isso crítica da capacidade de ler e interpretar os eventos
presentes no universo digital que as cercam.
É imprescindível resgatar o que é técnica por meio de seus valores identitários culturais, tanto nos
aspectos procedimentais como nos instrumentais, expressos no momento histórico em que está inserida. A
técnica, “eu e os outros eus”, em incessantes operações de ressignificar o humano, me remetem a um embate
contíguo epistêmico em minha ação como professora que utiliza estes meios para dar voz a metalinguagem
presente na cultura digital. Analisar a técnica por si mesma pode nos levar a um reducionismo ou desco-
nhecimento de seu uso/ideia, enveredando sua utilização por rumo acrítico, reduzindo-a ao tecnicismo, ou
seja, a técnica como um fim e não como um procedimento – ato técnico-criador: de (re)existência em seu
contexto mais profundo da expressão humana.
Não podemos, portanto, compreender o que é técnica se nos afastarmos do contexto social em
que está inserida, pois este ambiente é o elemento determinante de seu conceito e aplicação. Ademais, a
técnica também se ressignifica em si mesma. Embora relacionada à estabilidade e a seus estágios evolutivos,
também interage com as inovações tecnológicas, preservando procedimentos antiquíssimos e outros decor-
rentes de descobertas tecnológicas recentes. Nasce, envelhece e morre, será que podemos citar Nietzsche e
exclamar: _ “Humano, demasiadamente humano!!!”
Este apoderamento tecnológico no sistema capitalista nos leva a questionar se há fábricas de feli-
cidade onipresentes entre nós que nos induzem ao consumo acrítico, mecânico, padronizado, como uma
tecnologização ubíqua de nossos sonhos capturados [mas que, na verdade, são condicionados, impostos,
introjetados].
131
disso, é de extrema relevância que os governantes de nosso país, bem como os dirigentes educacionais,
postulem uma política responsável e comprometida com a utilização das Tecnologias da Informação
(TIs), com vistas aos seus impactos socioculturais. Isto porque, apesar do destaque internacional do Brasil
no cenário dos usuários de Internet, o perfil do internauta brasileiro ainda é marcado pela classe mais
favorecida.
Faz-se necessário eliminar as diferenças educacionais sectárias, de forma a disponibilizar uma edu-
cação digital que promova pessoas capazes de gerar, de criar, de elaborar digitalmente, com base na ética e
na liberdade, postulando o direito de expressão, sem distinção. Neste sentido, a arte digital, pela sua natureza
epistemológica, deve estar presente – sendo democratizada, como tantas outras disciplinas, nos currículos
escolares, da educação infantil ao ensino superior, para enaltecer o que há de mais humano no ser humano,
além de possibilitar uma educação libertariamente crítico-autônoma.
Sabe-se, de antemão, que as propostas de democratização digital devem ser fundamentalmente edu-
cativas, porque só a educação insere a pessoa plenamente no mundo. A pessoa alfabetizada digitalmente tem
de ser capaz de decodificar e interpretar o mundo que a cerca crítica e autonomamente.
Na nossa labuta como educadores, artistas e professores de arte, pelas nossas Bandeiras, não quere-
mos formar pessoas em série, acríticas e com seus desejos colonizados pelo imperialismo vertical globali-
zante. Tenho como premissa pulsante e indócil uma Ciberarte/Educação que promova a globalização hori-
zontal – democrática - dialogal, multi/intercultural e por isto libertadora. Ciberapreciação, Ciberexpressão,
pelas suas vias, devem ser marcada pela identidade.
A contemporaneidade é demarcada pela era Ciber, cuja era é um universo mediado pelo evento
líquido. Pelo contexto da navegação. Na contramão dos homens lentos de Milton Santos (1996, 1994), pelo
paradigma da modernidade líquida do sociólogo Zygmunt Bauman (2000), o sociólogo inglês John Urry
(2005) nos adverte que o contexto não é, portanto, apenas relevante, mas elemento estruturador de um sis-
tema concomitantemente mutante, como diz Bohm: “A dança é que é fundamental, e não os dançarinos.”
(Apud URRY, 2005, p. 238, tradução nossa.)
Apreciação e expressão têm como essência a capacidade de se atribuir significado. E em seu valor
autônomo, o significado tem caráter identitário. A identidade do pensamento divergente se constrói pela
elaboração e solução de problemas, em que há que se haver a capacidade estética de interpretação poética
em um determinado contexto. A percepção cognitiva se manifesta na interseção da solução de um proble-
ma em um determinado contexto. O contexto procede da interpretação inter-relacional de circunstâncias
de fatos e/ou situações no encadeamento do discurso à elaboração do significado para a manifestação
humana. A estética advém da interpretação poética de um determinado contexto. Assim, a natureza da
estética do pensamento divergente perfaz nossas manifestações sígnicas de caráter identitário, autônomo
e descolonizador.
132
O ciberuniverso, pela sua natureza estrutural sistêmica e, portanto, complexa, que subverte a relação
entre tempo e espaço – por isto é um sistema não-linear –, cuja fluidez líquida transcende e se contrapõe à
concepção da verdade única, inquestionável de sistemas lineares presentes na física clássica, o contexto é ele-
mento fundamental para determinar a rota de significados e valores que construiremos em uma caminhada
virtualmente empírica em nossas vidas.
Vale ressaltar que a era Ciber é mediada pela era Inter, em razão de seus aspectos plurais que se
amálgamam com caráter democrático, horizontal. A internet, pela sua gênese no hipertexto, o caráter ex-
pressivo e/ou apreciativo através da vivência de rotas navegadas, pode promover múltiplos caminhos que
podem cartografar diferentes e autônomas narrativas de acordo com rotas escolhidas. Descobertas signifi-
cativas necessitam de autonomias no/pelo percurso.
A promoção da autonomia pela cultura digital se constitui, em outros termos, em uma rede de
informações que, por meio de rotas escolhidas, poderá levar a pessoa a diferentes formulações. Para
cada caminho traçado, pode haver resultados diferentes. Verdades que eram absolutas (e, de certo modo,
universais) agora são relativizadas, de acordo com o contexto que vai se amalgamando no percurso, ins-
tituindo o contexto como elemento significante e significativo neste meio – o contexto como elemento
epistemológico.
Questionamentos conclusivos
Certa vez, em seu sofá - a quem a tod@s concede sem distinção, de modo generoso, disse-me
nossa Mestra Ana Mae Barbosa: “a educação efetiva é aquela que se aprende pelos poros”. Arrisco-me
a acrescentar: Bandeira que é Bandeira tem poros. E embrenhada pela filosófica arteducação de nosso
Mago Fernando Azevedo, a Ciberarte/Educação deve se alicerçar pela Cibervida Artista: um processo
pedagógico sígnico, edificante de narrativas conscientes, críticas capazes de balizar a vida pela estética da
poética autogovernativa - expressa pela identidade divergente.
Como seria a qualidade estética da (re)existência da vida sem Arte? Aqueles que segregam a arte nas
escolas podem nos responder a esta questão?
133
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134
UMA ESCOLA PARA
O CINEMA INDÍGENA
Vicent Carelli133
“O leque de experiências do Vídeo nas Aldeias abarca filmes-rituais, pequenas ficções cria-
das a partir de narrativas míticas, documentários de proposta militante, pedagógica, em
alguns casos. Da mesma forma, a amplitude da comunidade de espectadores vai da aldeia
aos festivais nacionais e internacionais, alcançando, ainda que pontualmente, a audiência
televisiva. Um mesmo filme pode, ele próprio, se endereçar abertamente a estes diferentes
públicos: volta-se a membros de uma mesma etnia, ou a outros grupos étnicos, e ao mesmo
tempo interpela (didática, irônica ou criticamente) os espectadores não indígenas. Seja o
movimento prioritariamente endógeno ou exógeno, trata- se, desde o princípio, de um pro-
jeto político justamente nesse aspecto: ele foi “concebido para criar um público onde antes
não havia” (AUFDERHEIDE, 2011) (em “Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo”,
por André Brasil na revista DEVIRES, Belo Horizonte, V. 9, N. 1, P. 98-117, JAN/JUN 2012)
Em dezembro de 2011, para comemorar seus 25 anos, o Vídeo nas Aldeias publicou um
livro para socializar a experiência da sua trajetória. Ao tornar-se referência e inspiração para muitas novas
iniciativas, inclusive para políticas públicas, consideramos importante revelar os bastidores deste trabalho,
no qual a relação íntima com o universo sociocultural em que se trabalha, a produção colaborativa e a for-
mação continuada, são a chave do seu sucesso.
Iniciado nos primórdios da revolução tecnológica que representou o VHS como um experimento
de apropriação da própria imagem, o jogo de espelho proposto pelo VNA ao filmar e mostrar, revelou-se um
catalizador de autorreflexão e de revivências culturais nas comunidades indígenas visitadas. Nos seus dez
primeiros anos, a nossa câmera ficou a serviço de extensos registros a pedido de lideranças visionárias com
um projeto de resistência cultural: Nambiquara, Gavião em parceria com a antropóloga Iara Ferraz, e Waiãpi
com a antropóloga Dominique Gallois, e registro etnográfico, como o ritual Yaõkwa, dos índios Enauênê-
-Nauê, com a antropóloga Virginia Valadão. À partir destas experiências realizamos uma série de documen-
tários sobre o “vídeo processo”, isto é, como cada povo se apropriava da imagem, vide “ O Espírito da TV” e
“A Arca dos Zo’é”. Numa outra forma de vídeo ativismo, neste período, foram também produzidas filmagens
133. Cineasta e indigenista, Vincent Carelli fundou, em 1986, o Vídeo nas Aldeias: projeto que apoia as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas
identidades e seus patrimônios territoriais e culturais por meio de recursos audiovisuais. Desde então, coordenou a formação de gerações de cineastas
indígenas e produziu uma série de 17 documentários sobre os métodos e resultados deste trabalho, que têm sido exibidos por emissoras de TV e festivais
de cinema em todo o mundo. Produziu, ainda, em colaboração com Ana Carvalho e Tita, O Brasil dos índios: um arquivo aberto, obra comissionada
pela 32a Bienal de SP. Atualmente, Carelli é líder do Núcleo Criativo: Cinema Indígena, premiado no Prodav 03/2016 (FSA/Ancine), coordenando o
desenvolvimento de roteiros dos cinco projetos abraçados pelo Núcleo, entre séries para TV e longas de ficção e documentário.
135
sobre temas de urgência do mundo indígena, como o massacre dos isolados da gleba Corumbiara no sul do
estado de Rondônia, as grandes rezas contra a opressão dos Guarani-Kaiowa do Mato Grosso do Sul, o povo
Gavião enfrentando os grandes projetos de desenvolvimento do Sudeste da Amazônia. Filmagens estas que
são agora retomadas vinte anos mais tarde, para um balanço reflexivo sobre processos históricos de mudan-
ça e as nossas utopias indigenistas. Nesta linha de produção saíram os longa metragens “Corumbiara” sobre
o massacre dos isolados de Rondônia em 2009, e “Martírio”, com os Guarani Kaiowá, lançado em 2016, e
“Adeus Capitão” com os Gavião do sul do Pará, que está em produção.
Muitos desses projetos de filmes foram abandonados na época quando, seguindo o movimento da
emergente “Mídia Indígena ou Nativa”, partimos para um programa de formação de cineastas indígenas,
para o qual muito contribuíram Mari Corrêa, que vinha dos Ateliêrs Varan de Paris, e muitos jovens cine-
astas entusiasmados com a generosidade da proposta: Leonardo Sette, Ernesto de Carvalho, Tiago Torres,
Amandine Goisbault, Ana Carvallho, Leandro Saraiva, Tatiana Almeida e Fabio Menezes, entre outros, e as-
sim como os antropólogos Carlos Fausto e Geraldo Andrello. A produção que resultou desta escola indígena
de cinema revelou a realidade indígena contemporânea com um novo olhar, uma face amigável e humaniza-
da do índio para a sociedade brasileira. Diante do eterno desafio de remar contra a invisibilidade, a produ-
ção dos cineastas indígenas abriu um diálogo com o público não-indígena. Tornou-se então prioridade do
VNA trabalhar a difusão destas obras, consolidar o conceito de Cineastas Indígenas para o reconhecimento
dos índios como produtores de cinema de qualidade, com direito a subsídios culturais. A difusão de seus
filmes nas escolas brasileiras já é um processo em curso, e a busca por um espaço na TV Pública ainda um
sonho a ser alcançado.
Ao longo desses anos, o projeto teve que estar continuamente se reinventando, diante das novas
demandas dos índios e das novas conjunturas institucionais, das janelas que se abrem (ou fecham) no qua-
dro das políticas publicas e das possibilidades de financiamento. E assim as estratégias de desenvolvimento
da comunicação indígena vão encontrando seus espaços no quadro maior das políticas do estado nacional,
palco das disputas e decisões a respeito dos seus direitos.
Para contar o processo de formação e produção colaborativa, de descoberta do cinema pelos realizado-
res indígenas, de interação de seu trabalho com a comunidade e o amadurecimento de ambos, selecionamos
para o livro “Vídeo nas Aldeias, 25 anos” cinco coletivos de cinema com uma produção consolidada. Em cinco
capítulos, os Xavante, Ashaninka, Kuikuro, Huni Kui e Mbya-Guarani contam, juntamente com membros de
suas aldeias e aqueles que, da equipe do projeto, ministraram as aulas, como se deram essas oficinas, o processo
de gestação dos filmes e suas repercussões ao longo do tempo, nas comunidades e junto a públicos diversifica-
dos. O processo de realização, e o filme em si, representam, antes de mais nada, uma experiência transforma-
dora para os realizadores e suas comunidades. Cito aqui algumas reflexões dos realizadores:
“Eu nunca pensei que esses filmes tivessem tanta força para mostrar quem é o povo Ashaninka, tanto
para o mundo de fora, quanto para nós mesmos. Eu nem imaginava a força que uma imagem podia assumir
depois de um trabalho pronto. Só alguns anos depois, por volta de 2005 que isso ficou mais claro pra mim. A
importância que tem um trabalho, um documentário, que mostra uma pessoa, o dia a dia de uma comuni-
dade que pertence a uma cultura, a um projeto de povo, a um projeto de mundo. Eu sempre tive muito cui-
dado com as coisas que entravam na comunidade: a televisão, um gravador... mas foi ficando cada vez mais
claro para mim que os instrumentos você pode usar a seu favor, para o seu bem, para a sua sobrevivência,
sobretudo.” (Isaac Pinhanta, pg.90 )
136
“A partir (dos filmes) Xinã Bena e Manã Bai, comecei a pensar sobre a nossa cultura e a relação com os
filmes... Comecei, através do vídeo, a pensar um pouco em como reaproximar as pessoas e, a partir daí,
pensar um documentário de “re-vivência”. Para isso, comecei a fazer projeções do material bruto da viagem
para o Jordão, da época das filmagens do Xinã Bena, e também de algumas filmagens sobre o processo de
revitalização no rio Jordão, que nessa época vivia uma retomada muito grande das nossas tradições... Eu me
encantei com esse trabalho e tentei levar isso para a minha aldeia... A partir do momento em que você filma
uma festa e projeta, as pessoas começam a sentir, começam a perceber como estão dançando, como se ves-
tem, como se pintam. Envolvemos mais algumas comunidades neste processo, e isso surtiu um efeito muito
grande. As pessoas começaram a discutir, os velhos e os jovens começaram a se entender. No início foi um
movimento tímido, mas depois as pessoas começaram a participar. Fomos rompendo antigas desavenças
entre as aldeias, entre as pessoas, entre as gerações. A partir desse momento, percebi que a luta não era mais
apenas minha, mas de toda a comunidade.“ (Zezinho Yube, pgs 119/121)
“Tínhamos 130 horas de material bruto. Era um processo novo em que estávamos entrando. Foi quan-
do começamos a entender o sentido de tudo aquilo que a gente tinha filmado. Mais uma vez eu via aquelas
filmagens e ouvia as palavras dos velhos. De novo era um aprendizado para mim. Eu estava chegando muito
próximo do que sempre gostei, da espiritualidade, de aprender coisas, como Guarani e como cineasta. Por um
lado, eu estava aprendendo a montagem, a tradução, o roteiro. Mas o mais importante de tudo isso era a tradu-
ção. É quando aprendemos muitas coisas que os velhos falam e que os jovens já não sabem mais... O trabalho
com o vídeo vai se aprofundando. Eu estou sabendo que isso vai ser muito importante pro meu povo. Hoje eu
me assustei quando eu vi as crianças ali, brincando. “Caramba, quantas crianças!” Tudo é pra eles. Não é pra
mim. Cada vez mais a gente vai descobrindo coisas, e a importância delas.” (Ariel Ortega, pgs 146/154)
O direito à memória
Para alguns dos povos filmados pela nossa equipe no começo do projeto, o material que se encontra
nos nossos arquivos já é histórico e tem sido objeto de devolução para as novas gerações. Os povos Gavião
Parkatêjê, Guarani-Kaiowa, Kayabi, e Enauênê-Nauê .
A coleção de DVDs intitulada “Cineastas Indígenas”, para distribuição comercial das melhores
obras de autoria indígena, nos lançou numa nova aventura: os filmes históricos para situar em que momen-
to a história do Brasil se encontra com a história de cada um desses povos, revelando assim uma outra face
da história do Brasil . Estes filmes, que foram trabalhados numa parceria da equipe do VNA com os reali-
zadores formados pelo projeto, nos levou a pesquisar fragmentos de suas histórias em arquivos dispersos
pelo mundo afora, e uma reflexão sobre seu processo de mudança do tempo do contato até os dias de hoje.
Fazer com que a memória dos povos indígenas também seja a memória do país, tem sido também
uma preocupação do VNA. Neste sentido a nossa equipe e alguns realizadores indígenas formados pelo
projeto, vem colaborando estreitamente com a política de registro do Patrimônio Imaterial Brasileiro, exe-
cutada pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- no que toca o patrimônio
indígena, produzindo pesquisas e documentários para instruírem os processos de registro.
Esta colaboração se inicia em 2005 quando realizamos o filme “Iauaretê, Cachoeira das onças” peça
do processo do registro da Cachoeira de Iauaretê, no Livro do sítios sagrados para os povos indígenas do
Rio Negro. Em 2009, realizamos a filmagem do ritual Yaõkwa dos índios Enauênê-Nauê, para o seu registro
no Livro das Celebrações, e ritual que acabou sendo reconhecido como patrimônio da humanidade pela
UNESCO. Zezinho Yube, do povo Huni Kuin, realizou com o nosso apoio, uma pesquisa e um documentá-
rio – “Kene Yuxi, As voltas do Kene” (2010), para mobilizar o seu povo, disperso em várias bacias do estado
do Acre, na valorização de seus grafismos, trabalhados na tecelagem e nas pinturas corporais. Em 2012,
terminamos o filme “Tava, a casa de pedra”, para o processo de reconhecimento da versão dos Guarani sobre
137
as missões Jesuíticas e a guerra Guaranítica do século XVII.
É no sentido de preservar a memória destes registros tanto para os índios como para o país que ten-
tamos articular a digitalização e o depósito de todo o acervo da VNA na Cinemateca Brasileira, num regime
em que estas instituições teriam a guarda do material, disponibilizado online para pesquisa, mas sobre o
qual os índios teriam preservados seu livre acesso, e o direito de decidir sobre o seu uso por terceiros. Infe-
lizmente, as turbulências políticas acabaram por desmantelar a cinemateca e sua equipe técnica, entrando
em estado de letargia.
Em 2008, o governo brasileiro tomou uma decisão ousada, no sentido de instituir a obrigatoriedade
do ensino de aspectos culturais dos afro descendentes e dos povos indígenas nas escolas públicas do ensino
fundamental e médio. Essa decisão, que levará alguns anos para ser implementada de fato, implica num
enorme investimento na formação dos nossos professores numa matéria que eles nunca estudaram, e na
geração de materiais didáticos atrativos e de qualidade sobre estes temas.
Sabendo que os filmes dos índios permitem um acesso mais direto à realidade indígena contempo-
rânea, o Vídeo nas Aldeias tem voltado grande parte de suas energias na produção de filmes e livros didáticos
para escolas. Em 2010, o Vídeo nas Aldeias fez um projeto piloto, subsidiado pela Petrobras Cultural, distri-
buindo três mil kits pra três mil escolas no Brasil com uma coletânea de 20 filmes da coleção “Cineastas Indí-
genas” e um guia para assessorar o professor no uso e nas discussões dos filmes em sala de aula. Em 2012, com
o apoio da UNESCO, reunimos uma compilação de filmes sobre crianças indígenas e um guia didático para o
público escolar do ensino fundamental. Disponibilizados on-line, esta nova coleção procura agora parceiros
governamentais para sua publicação/distribuição numa escala que o país demanda. A coleção de filmes infan-
tis agora se desdobra numa série de 6 livro-vídeos, ilustrados e dublados, para crianças de 3 a 6 anos.
Imaginem quando nossos filhos e netos puderem, desde cedo, em casa e nas escolas, se familiarizarem
e se interessarem pela diversidade das culturas indígenas deste país, e estabelecerem uma relação lúdica e cria-
tiva com a diversidade. Será um privilégio para nós, um redescobrimento do Brasil. Ao conhecer estes povos,
teremos mais chances de respeitá-los, e aqueles que serão vistos, se sentirem mais reconhecidos. É preciso criar
no país um ambiente mais favorável em relação aos índios, e permitir que eles, nos lugares mais distantes do
Brasil, deixem para trás a vergonha de ser quem são, a vergonha pela qual muitos tiveram de passar em gera-
ções passadas, e passar ao orgulho de ser brasileiro, pertencendo a um povo indígena específico!
Se todo adolescente pudesse ter a experiência de choque cultural que eu tive o privilégio de ter, este
mundo seria mais tolerante com relação às diferenças culturais. Precisamos de muito mais diálogo inter-
cultural para o índio deixar de ser um corpo estranho, um estrangeiro em sua própria terra. A ausência, até
recentemente, da temática indígena no sistema educacional brasileiro e a reprodução dos eternos clichês e
preconceitos na mídia, perpetuam este estranhamento, esta ignorância. Todo este movimento nos parece
cada vez mais necessário num momento em que o fundamentalismo evangélico começa a tomar proporções
assustadoras e começa a ditar agendas políticas do país, insuflando o ódio e a intolerância. Infelizmente
também neste quesito o governo brasileiro retrocede, tirando a obrigatoriedade da aplicação da lei. Isto para
não falar dos retrocessos do ensino público como um todo.
O índio na TV brasileira
Provavelmente, 90% da população brasileira só conhece os índios através da televisão, nos noticiá-
138
rios quando há problemas e disputas de terra, ou nas reportagens e nos documentários feitos por não índios
que, na maioria dos casos, lançam um olhar exótico sobre a realidade indígena. Portanto, a TV seria quase
a única janela para os índios se tornarem mais conhecidos pela população brasileira numa escala nacional.
Mas é justamente na TV em que são reproduzidos os clichês, os estereótipos e os equívocos sobre os ín-
dios. Quando os autores de novela criam personagens indígenas, ou quando a propaganda usa a figura do
índio em seus comerciais, aí então entramos decididamente no terreno da caricatura. Daí a importância da
existência de um espaço na televisão pública brasileira em que os índios possam nos revelar sua realidade
através do seu próprio olhar.
Vinte anos atrás, os filmes que a gente produzia eram recusados pela televisão pública: não eram do
formato adequado, não tinham a duração certa para a grade, não possuíam a linguagem própria da televisão.
Nos últimos três anos, trazido pelos bons ventos da valorização da diversidade cultural da era Lula, surgiu
o programa Auw’ê de documentários sobre a realidade indígena. Apresentado pelo ator “global”, Marcos
Palmeira, o programa da TV Cultura exibiu e reprisou 40 títulos do nosso catálogo.
Difundido em horário nobre, todo domingo, às 18 horas, os nossos alunos, Brasil afora, nos davam
testemunhos sentindo a repercussão dessa difusão. Ser descoberto pelos seus vizinhos com os quais convi-
vem há décadas, sem ter jamais tido a oportunidade de se conhecerem realmente. Muitos telespectadores
escreviam para o site do programa, comentando e parabenizando pela iniciativa. Imaginem então a emoção
dos moradores das aldeias que tiveram seus filmes exibidos em cadeia nacional! Infelizmente, com a mudan-
ça de direção, a TV Cultura encerrou o programa Auw’ê, e assim, os índios se viram excluídos da televisão
brasileira, já que essa era a sua única janela.
De qualquer forma, esta é uma discussão que tem que ser levada adiante e o direito de ter um espaço
de expressão na TV pública brasileira vai ter que encontrar um espaço. Mesmo o público que ideologica-
mente interessado e respeitoso em relação aos índios, carece muito de intimidade com a sua realidade e
suas manifestações artísticas. Mas mais uma vez, mudanças na política do estado de São Paulo, o programa
indígena foi o primeiro a ser cortado da grade de programação no seu terceiro ano, não por falta de público
mas de interesse dos dirigentes da TV.
De qualquer forma, o cinema indígena produzido nas oficinas do VNA foi se propagando também
pelo mundo indígena e praticamente todos os povos hoje estão pelo menos fazendo registros de suas ati-
vidades culturais. A coisa ganhou uma tal amplidão que começamos a nos preocupar em dimensionar este
fenômeno, fazendo um mapeamento e uma avaliação nacional desta produção no sentido de propormos
uma política pública de subsídio para o cinema indígena. Redigimos para a ANCINE - Agencia Nacional de
Cinema – um projeto intitulado “Um Olhar Indígena”, para a realização deste mapeamento, a articulação de
uma rede nacional de realizadores indígenas e um portal para este cinema na internet, e o projeto finalizaria
num edital para processos de formação em cinema dos coletivos indígenas selecionados.
O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) chegou a alocar os recursos para esta empreitada repassa-
dos para o Ministério da Cultura quando ocorreu o impeachment da presidente Dilma, foi aí que o dinheiro
sumiu! Na verdade a própria presidente Dilma já havia desmantelado o revolucionário projeto cultural dos
Pontos de Cultura da era do ministro Gilberto Gil bem como o ministério da Cultura de um modo sistemá-
tico. O impeachment foi o golpe de misericórdia neste projeto que inspirou toda a América Latina mas que
o Brasil abandonou.
139
TEMAS EMERGENTES
(SEXUALIDADE E GÊNE-
RO)
Ricard Huerta134
F ormar a las maestras y los maestros que serán responsables de la educación del alumnado de
Primaria se convierte en la tarea más fecunda que pueda imaginarse, ya que cada profesional a quien for-
mamos será a su vez portador de valores que repercutirán en una enorme cantidad de niños y niñas. Como
profesor de Educación Artística en la Formación de docentes, asumo este importante reto, y constato la
necesidad de inclusión. La educación artística debe tomar un papel primordial en la transmisión de valores,
ya que preparar profesionales de la educación supone implicarse en las problemáticas sociales y en el respeto
a la diversidad. Para formar a docentes en diversidad sexual cabe manejar conceptos como sexo y género en
base a planteamientos procedentes de los feminismos, la teoría queer y el activismo LGTB; hemos de anali-
zar cuestiones de cultura visual desde perspectivas periféricas y porosas; debemos cuestionar las normativas
que impiden a las personas ejercer libremente sus derechos y comprender que el deseo es la clave de muchas
de nuestras decisiones, y que ocultarlo genera miedos y frustraciones. Sabemos que no resulta fácil generar
nuevos esquemas, pero estamos obligados a intentarlo, ya que mantener las estructuras caducas choca de
frente con la realidad de los jóvenes.
134. Ricard Huerta es profesor titular de Educación Artística en la Universitat de València (España). Investigador del Instituto Universitario de
Creatividad e Innovaciones Educativas. Director de EARI Educación Artística Revista de Investigación www.revistaeari.org Director del Diploma de
Especialización Educación Artística y Gestión de Museos. Director de Museari www.museari.com Presidente de AVALEM Asociación Valenciana
de Educadores de Museos y Patrimonios. Doctor en Bellas Artes y licenciado en Música, Bellas Artes y Comunicación Audiovisual. Coordinador
del Grupo CREARI de Investigación en Pedagogías Culturales (GIUV2013-103). Profesor del Departamento de Didáctica de la Expresión Musical,
Plástica y Corporal de la Facultat de Magisteri. Ha participado en proyectos I+D+i: OEPE Observatorio de Educación Patrimonial en España, Habi-
tat sonoro. Miembro del Seminario de Género y Diversidad Sexual de los Museos de Catalunya, y asesor de la Red de Expertos del CEI Patrimonio
cultural y natural de las universidades de Andalucía.
140
“A MÚSICA DA GENTE”:
EXPRESSÕES SONORAS PESSOAS
E CRIAÇÕES MUSICAIS COLETIVAS.
CONTRIBUIÇÃO CONTEMPORÂNEA
PARA A EDUCAÇÃO MUSICAL
NAS ESCOLAS BRASILEIRAS135
Carlos Kater136
Introdução
Temos hoje uma oportunidade e um desafio especiais, quando consideramos a presença sistemática
de conteúdos de Música na Escola.
Essa simples pergunta no entanto recobre uma problemática de grande importância, uma vez que
abordamos aqui uma necessidade de expressão humana, intensa e profunda, que faz parte não de uma épo-
ca, moda ou classe social particular; mas que acompanha toda a humanidade, desde os seus primórdios, em
qualquer ponto do planeta, em todas as culturas, ao longo de todas as fases de seu desenvolvimento.137 Não
há comemoração ou evento significativo na vida individual ou social de qualquer povo onde a música não
tome parte de maneira relevante, instaurando um espaço de integração e transcendência não alcançado nem
traduzido por nenhum gesto ou palavra.
Compreendendo esse seu papel na vida e no desenvolvimento dos seres humanos, indagamos então,
o que deve ser feito para que este meio de expressão e comunicação, ao mesmo tempo bem valioso de nosso
patrimônio cultural, habite o maior número possível de espaços, garantindo acesso democrático e direito
universal de todos os cidadãos, crianças e jovens inclusos.
135. O texto desta palestra se apoia em artigo do autor, publicado sob o titulo “Por que Música na Escola?”: algumas reflexões. In: A Musica na
Escola. ISBN: 978-85-61020-01-9. SP: Allucci & Associados Comunicações / MinC / 3D3, 2012, p.42-45.
136. Educador, musicólogo e compositor, Doutor pela Universidade de Paris IV – Sorbonne e Professor Titular pela Universidade Federal de Minas
Gerais. É autor de mais de 50 textos, entre artigos e livros publicados. Idealizou, coordenou e realizou vários projetos de formação musical, dos quais
destaca-se “Música na Escola”, projeto pioneiro no Brasil que levou musica a mais de 120.000 alunos de escolas publicas do Estado de Minas Gerais
(1997-2000). Criou em 2013 e dirige até o momento o projeto «A Música da Gente”, ja em varias edições, que promove a criação musical coletiva
junto a mais de 4.000 alunos de diversas escolas no Brasil
137. Vale a pena lembrar, em particular aqui, os registros existentes na Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, Piauí, entre vários sítios arqueoló-
gicos nacionais, que atestam em desenhos a presença da música em rituais há cerca de 15.000 anos atrás, senão mesmo em épocas anteriores.
141
Não estamos mais hoje diante da dúvida se a musica é ou não necessária, nem tampouco na época
em que os educadores musicais constrangidos precisavam justificar o sentido de “utilidade” de seu fazer
face aos objetivos escolares consagrados ou encontrar “seu lugar” dentro da escola e da própria equipe
docente.138
A partir deste momento em que a presença da música na escola está amparada pela Lei
n°11.769/2008, tornam-se pertinente outras questões. A qual música nos referimos; que estilos, gêne-
ros, formas de manifestação temos em mente? Como de fato ela ou elas serão oferecidas, abordadas,
tratadas? etc.
Na realidade parece sensato considerar não a presença da “música” na escola - com as funções di-
versas que ela pode adquirir na vida social -, porém, mais precisamente, da “criação musical”. Uma educação
musical que se fundamente na criação, e se mova assim consciente de suas condições de tempo e espaço;
uma educação criativa contemporânea e apta a conjugar as características do passado e do presente, bem
como ainda uma criação formadora, capaz de acolher e respeitar tanto as expectativas quanto as particula-
ridades culturais de todos os envolvidos.139
Com isso é possível atender às necessidades de promoção de conhecimento amplo junto aos alunos,
seu desenvolvimento criativo e participativo, não os situando na condição predominante de “público”, nem
restringindo a “música na escola” a apresentações, à música das aparências, tão reiterada ano a ano nas co-
memorações visíveis e exteriores do calendário escolar, cívico e religioso.
Significa então não à “volta” da música e seu ensino à escola em moldes semelhantes aos que já tive-
mos em épocas anteriores; bem diferente disto, a construção de alternativas contemporâneas.140 Alternativas
que ofereçam condições a crianças, jovens e adultos de tomar contato prazeroso e efetivo com a sua própria
musicalidade, de desenvolvê-la e vivenciar, mediante experiências criativas, a música em seu fazer humana-
mente integrador e transformador.
E isto, por sua vez, significa, a oportunidade de desenvolverem seus próprios potenciais, de conhe-
cerem-se melhor e de qualificarem por consequência sua existência no mundo.
Cantar e tocar, ouvir e escutar, perceber e discernir, analisar e criar, compreender e se emocionar,
transcender na invenção tempo e espaço... há abaixo da superfície de todas estas expressões muito conte-
údo e sentido, que afloram todas às vezes em que experimentamos uma relação direta e por inteiro com
a música.
138. Temos e tivemos programas “Música na Escola” em diferentes cidades e estados do Brasil, desde o pioneiro realizado de 1997 a 2000 pela Secre-
taria de Estado da Educação de Minas Gerais, que implantou com sucesso o estudo e pratica musical junto a mais de 450 escolas de todo o estado.
Importante notar contudo que a música nunca esteve de fato ausente das escolas, mesmo faltando-lhe presença enquanto componente curricular,
sistemática de abordagem, tratamento condizente com seus potenciais e sintonia com preceitos contemporâneos. Atualmente desenvolvem-se pro-
jetos eficazes em diferentes municípios brasileiros, por exemplo Franca, São Carlos, Mogi das Cruzes e Santos (estado de São Paulo), Florianópolis,
Porto Alegre, Santa Bárbara, João Pessoa, entre outros.
139. Alunos sem dúvida, mas educador igualmente. Refiro-me a isto aqui pois em muitos projetos e currículos vimos o foco deslocar-se do resultado
ao conteúdo, do conteúdo ao processo, dele para os alunos, contexto e... este momento é o da inclusão de todos os envolvidos e sua interação na
relação ensino-aprendizagem.
140. Como sabemos, o Canto Orfeônico, surgido inicialmente na França no séc.XIX sob o titulo de “Orphéons”, foi adotado como recurso de mu-
sicalização em todo o Brasil no século XX. Heitor Villa-Lobos o propôs, com adaptações próprias, para ser utilizado nas escolas publicas do Rio de
Janeiro, a convite de Anísio Teixeira, em 1932. Associado a manifestações cívicas e ao exercício disciplinar de várias ordens, culminou 10 anos depois
na criação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. As particularidades do tempo que vivemos hoje sendo muito diferentes, bem como as
concepções que temos de educação, educação musical, filosofia, sociologia, musicologia, etc., a demanda, por conseqüência, é por propostas que
respondam de maneira mais pertinente aos desafios atuais postos por diversas realidades.
142
Cultivo da sensibilidade, criatividade, escuta, percepção, atenção, imaginativo, liberdade de expe-
rimentar, coragem do risco, respeito pelo novo e pelo diferente, pelo que é próprio a cada um e também ao
“outro”, construção do conhecimento com autonomia, responsabilidade individual e integração no coletivo
etc. não são meros termos de discurso. São aspectos envolvidos na formação dos alunos - no mínimo tão
importantes quanto aqueles que a escola entende oferecer nas diversas outras áreas do conhecimento-, que
contrapõem o “aprender”, de natureza fixa, memorística e repetitiva, ao “apreender”, próprio do captar, apro-
priar, atribuir significado e tomar consciência, portanto mais em sintonia com as características de formação
humana reivindicadas contemporaneamente.
Não é suficiente hoje termos a inclusão de conteúdos musicais nos programas de formação es-
colar; nossa atenção precisa ser dirigida às características da educação musical que gostaríamos de ver
utilizada. Uma educação musical capaz de oferecer estímulos ricos e significativos aos alunos, desper-
tando atitudes curiosas e aumentando por consequência a disponibilidade para a aprendizagem. Uma
educação que instaure um espaço de acolhimento pelo “brincar” no sentido original do termo, isto é
“criar vínculos”, uma das necessidades fundamentais da dimensão humana, indo sem dúvida muito
além do relacionamento exclusivamente técnico-executivo entre aluno x professor x classe, ainda tão
frequente na realidade de muitas salas de aula. Uma educação musical onde o lúdico represente o com-
ponente transgressor de expectativas do conhecido, mantendo nos alunos atenção viva ao que se realiza
a cada instante e assim os atraia, menos para os saberes prontos e constituídos, mais para a matéria
sonora em si, para a vivência musical participativa, para a criação de novas e autênticas possibilidades
de expressão.
Uma educação musical enfim que estimule o prazer (vínculo), para instaurar a presença (inteiri-
dade), possibilitar a participação efetiva (relação, implicação) e assim então estimular a produção de co-
nhecimentos gratificantes a nível geral e, especialmente, pessoal (formação ampla do aluno e não simples
transferência de informações por parte do professor). É esta a natureza de Educação Musical que merece
ser trabalhada hoje nas escolas, nos diversos pontos e regiões do país, capaz também de integrar teoria
e prática, análise e síntese, tradição e inovação, conferindo à música seu sentido maior, transcendente e
inclusivo.
Considerar a educação musical como uma instância de construção e exercício da autonomia pes-
soal do aluno e de sua participação ativa em sociedade não representa mais uma visão romântica, idealista,
utópica, como durante muitos anos foi feita a critica.
Com a Lei n°11.769 (que torna obrigatória a introdução de conteúdos musicais nas salas de aula)
estamos hoje sendo convidados a participar não de um “simples momento” de cumprimento de um dis-
positivo legal mas, muito além... temos a perspectiva de um “novo movimento” da educação musical
(forma particular de aceleramento e intensificação de realizações, entendimentos e convicções) capaz de
propiciar processos e resultados valiosos para uma Educação Musical que se pretenda viva, brasileira,
contemporânea.
Agora avançamos mais um pouco... no lugar de uma “Música na Escola”, as “Músicas das Escolas”.
Uma abordagem de campo ampliado, integrando ao processo educativo procedimentos criativos a fim de
trazer à tona e dar voz à expressão pessoal dos alunos, engajando-os em seus próprios aprendizados e for-
mação. Ou seja, fazer emergir no “espaço físico” de cada instituição seu “espaço expressivo” e seu “espaço
relacional”, no âmbito dos quais serão promovidas novas modalidades de diálogo.
143
No conjunto, essas expressões serão “harmonizadas” e “contraponteadas” na interação com o educa-
dor , representando falas de culturas em ação, vozes de indivíduos que passam a ser escutadas, permitindo-
141
-lhes assim revalorizarem-se na pessoa que são (aumento da autoestima e sociabilidade). Música “musical”,
criada e “criativa”, resultado de concepções e práticas musicais lúdicas fundamentadas em processos am-
pliados que - ao invés do exercício da repetição e dos fazeres miméticos, preponderantemente reprodutivos-
compreendem o arranjo, a adaptação, paráfrase, variação, improvisação, reconstrução e a criação musical
propriamente dita, concebida pelos próprios alunos.
Oportunizar novas percepções de si e do “outro” através de um meio potente como a música sig-
nifica intensificar qualitativamente a dimensão formadora e a dinâmica social das escolas, sobretudo nos
grandes centros urbanos do pais, tão carentes de ações educativas criativas e humanizadoras.
A titulo de conclusão
Em outras palavras, não vale repetir as experiências de circunstâncias passadas sem a observação
e a atenção cuidadosa das realidades presentes. Assim, não se trata de recorrer a modelos conceituais
ou didático-pedagógicos de forte tendência técnica e teórica, diretiva e unidirecional, com insuficiente
espaço de flexibilidade e integração, nem tampouco a modelos vivencial-artísticos preponderantemente
práticos, com frágeis referenciais teóricos e de apoio, com exclusividade. Nossa época nos convida ao
exercício, não mais do “ou”, substitutivo e excludente, mas do “e”, colaborativo e integrador, estabelecido
porém com critério e criatividade.
Dai esperarmos que a “música na escola” tão necessária hoje não se confunda com um fazer
musical pedagogicamente descompromissado, de lazer e passatempo, nem que a educação musical seja
aprisionada pela educação artística e confundida com “história da música” ou outras histórias de locais,
nomes e datas. 142
As escolas são espaços de formação nos quais é estimulada a produção de conhecimento. Os alunos,
além de representantes sensíveis e inteligentes de estados musicais, são potenciais muito mais ricos do que
em geral se costuma imaginar, que merecem ser conhecidos e desenvolvidos com consciência e respeito
desde onde se encontram, a fim de tomarem contato com algo essencial em si próprios e na relação com a
vida, cumprindo assim seu papel na sociedade.143
141. Que assume aqui também o papel de orientador, problematizador, instigador, facilitador do conhecimento.
142. Mesmo que hajam aportes de contribuição para o processo de conhecimento, este “deslizamento” é insatisfatório face ao valor profundamente
formador e renovador que a música através da criação oferecem para a educação.
143. Observamos aqui, embora de passagem, a necessidade fundamental de cursos de formação continuada para os educadores responsáveis pela
condução destes processos visto seu papel decisivo para o sucesso desta, e de qualquer outra, proposta de educação musical. E isto é imprescindível
não apenas porque o contingente atual em condições de participar desse despertar das “musicas das escolas” não atenda quantitativamente à ex-
pectativa da demanda. Sociedades complexas, de mudanças rápidas e intensas como as nossas, demandam profissionais em processo constante de
atualização. Espera-se que todos os que utilizam a música como meio de desenvolvimento pessoal e de intervenção social criem conexões viáveis
entre a realidade “presente e objetiva” (a realidade real que no senso comum se manifesta) e suas dimensões “potenciais e latentes” (a realidade ideal,
desejada ou necessária, isto é... seu vir a ser), dimensão própria das criações e músicas compostas.
144
E as músicas que desde agora e nos próximos tempos continuarão a emergir das salas de aula e que
escutaremos nas escolas representarão a expressão criativa pela qual se manifesta a educação nas diferentes
instituições, a valorização das culturas, o reconhecimento dos indivíduos e sua participação saudável – in-
ventiva e responsável! - nos rumos da sociedade do pais.
Esta é a contribuição contemporânea que o projeto A Música da Gente vem buscando oferecer para
a educação musical em escolas de diversas regiões brasileiras desde 2013, perseguindo assim uma das neces-
sidades mais reivindicadas nos grandes centros urbanos, isto é, propiciar experiências estéticas significativas
integradas a vivências sociais saudáveis, humanizando assim a vida nos espaços sociais onde ela se faz mais
necessária, como a escola pública, por exemplo. 144
144. O projeto “A Música da Gente!” foi criado por Carlos Kater e implantado inicialmente em 2013 na escola publica EMEB Arlindo Miguel Tei-
xeira, localizada na periferia de São Bernardo do Campo/SP, junto a 340 alunos. Desde então se realizou no CEU Celso Augusto Daniel, também
em SBC, junto a outras 380 crianças e em 2017 em varias escolas da rede SESC em 4 polos no Brasil (Pernambuco, Distrito Federal, Pantanal e Santa
Catarina), chegando a mais de 4.200 alunos. Seu objetivo nao é o de ensinar musica mas o de promover a criação coletiva de musicas inéditas, junto a
pessoas de varias idades não musicistas. O processo de trabalho criativo-musical recorre a um conjunto diversificado de estímulos de duas naturezas
básicas: Musical – envolvendo a expressão pessoal, a interpretação individual e em conjunto, a exploração sonora, a construção de instrumentos e,
em particular, a composição de músicas; e Conceitual – princípios de organização, noção de forma, matrizes de agenciamento sonoro, bem como
ainda ecologia geral e sonora, qualidade relacional de participação, responsabilidade social etc. A importância de um projeto criativo musical para
crianças (e de crianças de escolas publicas da periferia em particular) deve-se ao seguinte fato: do ponto de vista das relações humanas e sociais, o
fazer criativo em grupo constrói significados e desenvolve a capacidade de discernimento e argumentação, que por sua vez favorece a fundamenta-
ção de posicionamento, face à necessidade de justificativa de escolhas musicais ou opções estéticas. As oportunidades e qualificação das condições
de diálogo possibilitam que sejam avançados os limites da aceitação de diferenças, de pontos de vista aparentemente divergentes, que se pratique a
negociação aberta, em vista da construção e fortalecimento das relacionais sociais. A criação em música é um processo de síntese e este projeto busca
por meio dela possibilitar também a integração entre aspectos habitualmente desassociados na realidade dessas crianças, como o fazer, o saber, o
prazer, o dever, o ser, articulando assim com maior sentido: vida intelectual, sensível, afetiva, pessoal e social. Para maiores informações ver: https://
www.facebook.com/amusicadagente.
145
ENSINO DE ARTE NA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS:
PROPOSIÇÕES PARA ALÉM
DA SALA DE AULA
Rosifrance Candeira Machado145
INTRODUÇÃO
Refletir sobre o tema O Ensino de Artes na Educação Básica: Avanços e retrocessos num momento em
que nosso país tem sido cenário de muitas discussões acerca dos caminhos que o Ensino de Arte trilhará
nos próximos anos é, ao mesmo tempo, oportuno, satisfatório e um desafio, visto que tantas lutas já foram
travadas ao longo de nossa história na educação.
Os avanços que podemos verificar no lugar e no contexto educacional que o ensino de Arte se confi-
gura a duras penas, ampliado pela luta dos Arte/Educadores reunidos na Federação de Arte /Educadores do
Brasil (FAEB) em abril de 2016, através da aprovação no Senado a obrigatoriedade de Música, Teatro, Artes
Visuais e Dança antes não incluída, a inserção na educação formal e a contribuição para uma formação
sensibilizadora e crítica, que a educação em arte assume, inclusive, numa perspectiva inclusiva, corre o sério
risco de ser retirado como obrigatório no Ensino Médio.
Penso, ainda, que Utopias Pedagógicas em Artes como Gesto de (Re)Existência reflete muito bem
o momento atual e cai como luva para este evento. A arte no contexto educacional e sua relação com a
Educação de Jovens e Adultos (EJA), compreendendo o alcance do ensino de arte junto a esse público, em
muito mantém relação direta com a ideia de resistir como modalidade de educação inclusiva, já que sempre
apresentou possibilidades pedagógicas em meio a tantas dificuldades. Considero, portanto, relevante tratar
sobre currículo, formação docente e outras questões pertinentes.
Ao falarmos acerca da Arte e EJA penetramos num espaço em que temos igualmente discutido o
currículo como instrumento de condução dos saberes escolares. A história da EJA no Brasil vem sendo pau-
145. Possui Mestrado em Cultura e sociedade pela Universidade Federal do Maranhão, com ênfase em Currículo de Arte na Educação de Jovens e
Adultos; Especialização em Arte, Educação e Tecnologias contemporâneas pela Universidade de Brasília; Licenciatura Plena em Educação Artística,
com habilitação em Artes Plásticas, pela Universidade Federal do Maranhão. Docente na área de Arte desde 1999, na Educação Básica e Superior.
Atuou na formação de professores à distância no Curso de licenciatura em Artes Visuais da UFMA, pelo Programa Pro-licenciatura (MEC- CAPES)
de 2008 a 2013. Professora EBTT - IFMA - Instituto Federal do Maranhão. Pesquisadora e Vice Coordenadora do GPTAE- Grupo de Pesquisa em
Tecnologias e Arte- Educação do IFMA. Membro da Comissão de Avaliação de Projetos de Extensão da Pró - Reitoria de Extensão/PROEXT- IFMA.
Atualmente responde pela Diretoria de Programas e Projetos Institucionais PROEXT- IFMA.
146
tada em torno a muitas controvérsias, que vão desde sua oferta como modalidade de ensino às questões que
envolvem formação de professores, público alvo, diversidade entre os alunos, entre outros.
A educação básica de adultos começou a estabelecer seu lugar através da história da educação no
Brasil, a partir da década de 1930, quando a sociedade passava por grandes transformações, em que o sis-
tema de ensino de educação começa a se firmar. Somado ao crescimento no processo de industrialização
e reunião da população nos centros urbanos. A oferta de ensino era de graça estendendo-se e acolhendo
setores sociais cada vez mais diversos.
Freire (2005) comenta das ideias em torno da educação de adultos no Brasil acompanhada de
uma história de educação como um todo, onde a educação passou por momentos de grandes reflexões, cada
período trazia um objetivo, que era fazer do ensino um direito de todos. Dessa maneira, em cada década,
houve um governo e professores com visões diferentes, na tentativa de beneficiar todas as camadas sociais.
Tentava-se buscar um método para trabalhar cada realidade de vida, possibilitando meios de ensino mais
significativos, para ajudar na construção de uma educação construtivista.
Iniciativas do Governo Federal vem lidando com a EJA, ainda, sob um olhar diminutivo, frente à
realidade dos sistemas regulares de ensino público, que se mostram incapazes em tornar possível o acesso
ao conhecimento à população por ela contemplada, fato que favoreceu e ainda favorece o abandono dos
estudos por um considerável número de jovens sem concluir os estudos regulares (EUGÊNIO, 2008).
No tocante ao assunto, é possível identificar e analisar os critérios utilizados para a seleção e orga-
nização dos conteúdos escolares referentes ao ensino de Arte, na tentativa de identificar as concepções de
currículo que cercam e dão norte às atividades práticas dos professores, tendo em vista que, de forma geral,
o que se discute acerca de currículo fica restrito à seleção e à organização dos conteúdos.
Da mesma forma, discorrer sobre as escolhas do professor com relação ao currículo faz-se de extre-
ma importância, já que, quando fazemos isso, não estamos falando apenas de opções, mas de concepções
de sociedade, e, portanto construindo numa perspectiva social, buscando dialogar e entender, por meio de
fundamentação teórica, dentre outras possibilidades, a importância do currículo no ensino de Arte, com-
preendendo as relações que passam entre as necessidades de aprendizagens e expectativas de um currículo
prescrito e aquilo que se pratica em sala nas aulas de Arte nas escolas do Brasil, uma vez que não há, sequer,
uma Proposta Curricular, na maioria dos municípios, que ampare as práticas exercidas em sala de aula pelos
profissionais que ministram Arte.
ARTE/EJA
O Ensino de Arte na Educação de Jovens e adultos (EJA) deve oferecer a possibilidade de desenvol-
vimento de competências necessárias para a aprendizagem escolar, além da consciência de si com o mundo
e da capacidade de exercer sua cidadania, enquanto ser social que é. Para isso, o estudo da arte, das lingua-
gens que a compõe e dos elementos que a definem são instrumentos essenciais.
147
A aprendizagem através da Arte permite que os sujeitos transitem por diferentes áreas de conhecimen-
to que integram o currículo da EJA. A Arte é uma área de conhecimento que envolve e se envolve com todas as
demais áreas. É possível através dela o reconhecimento do aluno da EJA em sua individualidade, capaz de criar
e se expressar, posicionando-se de forma crítica em sua realidade de vida. Assim como é possível que esse mes-
mo aluno se reconheça enquanto sujeito coletivo, respeitando as diversidades que existem, em muitos sentidos,
nessa modalidade de ensino, através das diferentes formas de expressão e do conhecimento acerca da arte.
O público da EJA no Brasil inteiro apresenta um retrato de grandes diversidades que, em comum,
têm a exclusão social, embora existam outros pontos que se apresentem como características comuns a esses
jovens e adultos, que permaneceram longe dos espaços de produção de conhecimento por muito tempo. Com
o amparo possível por legislação específica, o quadro de exclusões, embora ainda exista, tem mudado dando
espaço a novas possibilidades e mudança de cenário, abrindo caminho para novas perspectivas de vida, novos
questionamentos sobre suas necessidades, de forma poética e artística, conduzidos pelo ensino da Arte.
A existência de uma Proposta Curricular que leve o aluno da EJA a experiências artísticas que con-
corram para a discussão de seu papel na sociedade tanto nos conteúdos, como na expressão, faz com que
esse aluno entenda a arte como instrumento facilitador e essencial para a aprendizagem e construção de
conhecimento de qualquer disciplina ou conteúdo a ser explorado.
É relevante, contudo, esclarecer que a arte, tanto como área de conhecimento, como componente
curricular pode alcançar possibilidades maiores que meramente se adaptam ao conceito de expressão, co-
municação ou facilitação, de forma individual.
A arte poderá funcionar, em determinadas circunstâncias, como uma ferramenta para a comunica-
ção de forma a dinamizar a interação com o outro, o que caracteriza uma prática social. É importante que o
aluno tenha consciência desse processo de comunicação, entendendo a arte, neste caso, como um elo muito
forte entre ele e o outro.
Estabelecer as conexões necessárias entre os saberes escolares e as relações de poder existentes das
questões não apenas educacionais, mas ideológicas e políticas que envolvem o Currículo. Paulo Freire (2005;
1979) nos fez entender melhor as necessidades de práticas específicas partindo do entendimento da EJA
como modalidade de ensino também específico, que requer, portanto, metodologias específicas e apropria-
das às necessidades desse público.
Nos PCNs percebemos que há a necessidade de situar a disciplina a partir de diferentes princípios
simultaneamente, como, por exemplo, selecionar conteúdos, aproximá-los da realidade imediata dos alunos
etc. Essa busca muito se aproxima do que se pretende com a educação de jovens e adultos.
Tanto o ensino de Arte como a educação voltada para esse público necessitam de um olhar especial
sob a perspectiva de oferecerem aos alunos que nela se inserem a possibilidade de serem preparados para
a vida e o mundo do trabalho, não apenas com o olhar de compensação, mas de igualdade entre as demais
modalidades de ensino.
Sob essa perspectiva, é relevante pensar em um currículo que repense as necessidades de formação
para os alunos da EJA de forma geral e específica, no que concerne à arte. Nesse sentido, concordamos com
Goodson (1995, p. 24) quanto à necessidade de revisão crítica e constante do currículo para que não caiamos
na tentação “de aceitá-lo como um pressuposto”. Já que, como bem nos mostra Forquin (1992, p. 38), “toda
espécie de delimitação, quer seja ela material ou simbólica, supõe e induz, com efeito, relações de poder”.
Além disso, “naturalizar o currículo é camuflar as relações de poder aí embutidas e impedir o debate
destes pressupostos permite fortalecê-las sem maiores questionamentos” (MAROSTEGA, 2006, p. 49).
148
Pensar em Ensino de Arte e a prática pedagógica na EJA, considerando o que os estudantes têm o
direito de aprender em cada área do conhecimento e refletir sobre quais práticas docentes podem efetivar a
aprendizagem é tomar como referência as necessidades próprias da Educação de Jovens e Adultos. É pensar
em espaços e tempos nos quais essas práticas pedagógicas assegurem aos seus estudantes identidade forma-
tiva comum aos demais participantes da escolarização básica.
Há algo de relevante importância como o próprio currículo: o processo como esse currículo será
articulado. A intermediação das ações curriculares ou educativas em Arte possibilitará aos educandos da
EJA um melhor entendimento não somente das manifestações artísticas como sua compreensão enquan-
to inserção cultural, mas, principalmente, entender a articulação dos vários elementos desse processo de
construção de conhecimento e se sentir como parte integrante do processo não apenas como receptor, mas,
principalmente como um sujeito agente.
Outro ponto a considerarmos reside exatamente em o quê e como se ensina Arte na EJA. Isso exige
um posicionamento pedagógico, conforme a amplitude de seu alcance, entendendo que o conhecimento em
Arte deve ser articulado de forma instigante junto à identidade, diversidade, os saberes e as leituras de mun-
do, transformando experiências estéticas em vivências significativas. Isso fará com que o acesso à Cultura e
à Arte seja universal e faça parte do cotidiano desses sujeitos.
Para isso, é importante que os sujeitos envolvidos no processo tenham a compreensão da Educação em
Arte como um fenômeno social histórico e um princípio educativo, na medida em que proporciona o emergir
dos saberes e da consciência crítica, contribuindo para a formação dos atores envolvidos neste processo.
Michael Parsons trata da Arte e Currículo integrados para responder às constantes mudanças atuais
em que vive a sociedade, assim como às necessidades dos estudantes no que concerne aos modos de utili-
zação da Arte. Um currículo integrado diz respeito à Arte em interação às demais disciplinas do currículo.
Dessa forma, pensar um currículo integrado em Arte é pensar sob uma perspectiva de ideias significativas
e compreensivas, não em métodos de ensino e projeto apenas. (PARSONS, 2008.)
Num currículo integrado, as disciplinas são entendidas como ferramentas na difícil meta de orga-
nização de conhecimentos. Com relação à Arte como parte do currículo integrado, é necessário, antes de
tudo, entender os fatores que cercam o cotidiano dos jovens e adultos, como cultura local, realidade social,
dentre outros, para que as estratégias utilizadas possam ter êxito e tornar significativa a aprendizagem e a
democratização da Arte na escola.
Um dos desafios a enfrentar é a interação entre os temas trabalhados nas demais disciplinas e os
conteúdos tradicionais trabalhados nas aulas de Arte, de forma a não conduzir um processo de superficiali-
dade do Ensino da Arte, reduzindo-o a meras habilidades e técnicas, mas promover a elaboração e o pensa-
mento de produções substanciais pelos alunos.
Trata-se de um trabalho complexo e implica num preparo maior por parte do professor. Implica
entender bem de arte e outros assuntos relevantes na construção de determinados conhecimentos relativos
à vida dos discentes e necessários na condução das questões abordadas numa perspectiva integrada.
149
se dá a partir de temas relevantes como: práticas educativas em Arte; as metodologias adequadas ao Ensino
de Arte nas turmas de EJA; as abordagens e as propostas metodológicas existentes no campo da Arte e sua
aplicação de acordo com as especificidades do público alvo; formação docente e outros.
Uma das questões trata da situação dos profissionais de Arte que atuam nesta modalidade de ensino
e a forma como conduzem suas práticas em sala de aula, bem como lidam com sua formação pós- acadêmi-
cas. O quadro de professores da EJA, ofertado pela Superintendência de Educação de Jovens e Adultos, no
caso de São Luís/MA, desde o ano de 2001, ocorria com a contratação de professores, que eram pagos com
os recursos provenientes dos muitos programas e projetos realizados pelo Governo Federal em benefício
desta modalidade de ensino.
Com a criação do FUNDEB, em vigor desde janeiro de 2007, parte dos recursos é direcionada para
gastos específicos com a educação e jovens e adultos e, em virtude disso, o quadro de professores atual é
totalmente formado por servidores efetivos, aprovados em concursos para o Ensino Fundamental.
De acordo com dados obtidos através de pesquisa, os números de professores sem formação especí-
fica em arte excedem e muito ao número de profissionais formados na área e, dentre as muitas explicações
para isso, encontra-se o limitado número de professores concursados em contrapartida ao grande número
de escolas a serem atendidas pelo mesmo profissional, tanto no ensino regular como na EJA. Em muitos
casos, o professor que atua no ensino regular, se recusa a trabalhar com a EJA. E essa recusa se repete em
outras esferas, a exemplo do Instituto Federal do Maranhão, que também apresenta a mesma problemática
nos campi que ofertam a modalidade.
De acordo com as pesquisas documentais sobre os professores que atuam na EJA ministrando a
disciplina ensino de Arte com ou sem formação especifica na área, dos sete núcleos que compõem o mapea-
mento das escolas que oferecem a modalidade para jovens e adultos, obtivemos informações de apenas três;
um deles, Zona Rural I e II, foram encontrados em um total de 21 escolas, apenas oito professores formados
ou em Educação Artística ou possui graduação em uma das linguagens artísticas (Artes Visuais, Música,
Teatro - não há professores com formação em Dança).
Na Zona Urbana, a diferença em relação aos professores com ou sem formação se mostra tão caren-
te quanto na Zona Rural. Em apenas dois núcleos estudados, obtivemos a seguinte relação: para cada seis
professores com formação específica em arte, há o dobro de professores sem formação na área.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreendemos a Arte na EJA requer um exercício de ver o mundo a partir de conceitos amplos
como forma de transformá-la em objeto de conhecimento. A discussão sobre Arte na EJA ainda é rasa.
Trata-se de um tema ainda recente, tendo em vista a pouca produção investigativa nessa área.
Uma das grandes dificuldades sentidas na modalidade EJA diz respeito à falta de formação es-
pecífica e conhecimento da modalidade por parte de um número relevante de professores, pois a formação
acadêmica não instrumentaliza esse profissional para atuar junto a esse público, e isso causa entraves no
desenvolvimento da ação pedagógica, já que a maioria possui experiência apenas com a educação básica
no tocante ao ensino regular. É fundamental que a instituição forneça aos professores, principalmente os
iniciantes, formação continuada e sensibilização temática.
Outro aspecto a ser destacado é a grade curricular dos cursos oferecidos nesta modalidade
(no caso das escolas de ensino técnico), por tratar-se uma organização onde falta uma congruência entre o
150
público idealizado e o que de fato ingressa nos cursos. A falta de base dos educandos que se matriculam é
muito dispare em relação ao planejado pela escola.
Para Berticelli (2005), “as decisões tomadas a respeito do currículo afetam sempre vidas, sujeitos”,
o que corrobora para a importância de seu papel na Educação. São necessárias, nessa discussão, uma série
de considerações, que vão desde as Políticas Públicas para a Educação em que se considere a construção de
currículos integrados e interessados na formação discente e docente. E, como dito inicialmente, muito per-
tinente com o que ora nos propomos a discutir aqui nesse espaço, neste congresso.
Tarefa fácil não é, contudo, é imprescindível pensar em um currículo que coopere para a formação
geral do estudante da EJA, bem como para a preparação para a vida através do Ensino da Arte. Tudo isso
deve ser pensado não somente pelos Governos ou pela Escola, mas por nós, pesquisadores, que temos a
responsabilidade de levar as discussões adiante e fazê-las alcançadas pelos professores e alunos da EJA, tor-
nando-a concreta, capaz de fomentar o sucesso da Educação de Jovens e Adultos, combatendo os retrocessos
impostos pela ausência de políticas públicas eficazes e da garantia de direitos já adquiridos.
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152
RE-FLEXÃO- CRIAÇÃO EM DANÇA
E AÇÃO CULTURAL146
Ana Valéria Vicente147
Busco fortalecer o entendimento das danças populares de forma não hierárquica em relação a ou-
tras danças sistematizadas. Este posicionamento baseia-se nos estudos recentes realizados no Brasil, tanto
na etnocenologia, quanto na antropologia e estudos culturais, que nos permitem compreender os contex-
tos históricos que criaram hierarquias entre diferentes práticas de dança (Kealiinohomoku, 2013; Acselrad,
2013; Vicente, 2005). Assim, nos posicionamos em favor do reconhecimento da importância e qualidades
estéticas e educacionais das diversas tradições artísticas brasileiras. Em favor da horizontalidade das prá-
ticas artísticas, podemos lidar com o frevo não como algo exótico, “folclórico” – no sentido original do
termo como tradição imutável, ahistórica e isolada da sociedade – e sim como uma prática de dança com
características, técnicas e simbologias próprias. Também podemos relacionar a prática social da dança com
a produção artística dos grupos de frevo, de dança popular e de dança contemporânea do Recife, visto que
esses contextos mantêm constante intercâmbio (Vicente, 2009).
146. Este texto contempla e detalha aspectos abordados no Seminário, cuja apresentação performativa é realizada através de improvisação estrutu-
rada e interação com o público.
147. Passista, dançaria, pesquisadora e coreógrafa. Mestra em dança e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, é
professora de danças populares e preparação corporal do Departamento de Artes Cênicas (UFPB) e pesquisadora do Acervo Recordança (PE). Na
prática de dança se especializou sobre o frevo, realizando pesquisas práticas e teóricas que resultaram nos espetáculos de dança: Ebulição (2018),
Re/in-flexão(2017), Re-flexão (2016) Frevo de Casa (2014) Fervo (2006) e Pequena Subversão, criação para o programa Rumos Dança, Itaú Cultural
(2007). Desenvolve pesquisas que discutem elementos das culturas populares na Sociedade contemporânea, tendo publicado o DVD Trançados
Musculares: saúde corporal e ensino do frevo (2011), e os livros Frevo para aprender e ensinar (2015);Entre a Ponta de é e o Calcanhar: Reflexões
sobre como o frevo encena o povo, a nação e a dança no Recife (2009); Brincando Maracatu(2008). Fundadora do Acervo recordança, desenvolve e
coordena pesquisas que articulam investigação histórica e a cena artística de Recife.
153
Frevos
O frevo é uma prática artística originária da cidade do Recife, com surgimento datado entre o final
do século XIX e início do século XX, que se constitui enquanto música, dança e diversas expressões coleti-
vas, tais como blocos, clubes, troças, grupos de dança e orquestras, que encontram seu ponto culminante a
cada ano no período carnavalesco. No decorrer do século XX, essas expressões do frevo tomaram diferentes
feições. No caso específico da dança, denominada Passo pelo teatrólogo Waldemar de Oliveira, na década de
1940, esta passou por um processo de escolarização descrito por Goretti Rocha (Oliveira, 1993) e em minha
dissertação de mestrado (Vicente, 2009). Estudiosos da área (Oliveira, 1985, Araújo, 1996) identificam a
criação do frevo com a nova estrutura social e de ocupação da cidade após a abolição da escravatura e início
da república. Araújo (1996) aponta as disputas por legitimação das classes populares em torno do carnaval
e da construção das simbologias do frevo.
No ano de 2007, o frevo foi oficializado Patrimônio Imaterial do Brasil, pelo IPHAN – Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - e, em 2012, Patrimônio Imaterial da Humanidade, pela UNES-
CO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. O Frevo é exaltado como uma
expressão de alegria e força, e símbolo do carnaval e cultura Pernambucana.
Minha relação com o frevo remonta à infância e à vivência do carnaval como foliã, sem nenhum
aprendizado formal até os 14 anos, quando inicio aulas na escola do Balé Popular do Recife. Esta escola
ensina o frevo e várias danças da região Nordeste do Brasil, organizadas sob o título de Dança Brasílica. Pos-
teriormente, aos 18 anos, iniciei o aprendizado de danças modernas e contemporâneas com grupos semi-
-profissionais no Recife, reduzindo o contato com a prática do frevo até 2005, quando, aos 27 anos, busquei
uma reconexão com essa formação corporal.
Decidi retomar uma dança que fez parte de minha infância e da minha adolescência, tomada pela sen-
sação de que havia ainda muito a aprender e que eu abandonara uma informação corporal de grande quali-
dade. Uma das minhas questões era estudar como esse tipo específico de articulação corporal - que envolve
diversas dinâmicas, deslocamento de peso, flexibilidade, agilidade, forças opostas - se constrói no corpo;
como o corpo se articula para dançar frevo, como o frevo (música e dança) se articula nos corpos (Vicente,
2006). Outra questão seria investigar como o frevo pode ser utilizado como uma linguagem corporal para
provocar dinâmicas e sentidos dissonantes e assim fornecer possibilidade para a construção de espetáculos
de dança abertos a discussões contemporâneas de arte.
Desenvolvi dois processos de criação entre 2005 e 2006, período em que também cursei o mestrado
e produzi a dissertação, posteriormente publicada com o título Entre a Ponta de pé e o calcanhar: reflexões
sobre como o frevo encena o povo, a nação e a dança no Recife (Vicente, 2009). Os trabalhos coreográficos
foram “Fervo”148, que relacionava os movimentos do frevo com a violência urbana do Recife, e “Pequena
Subversão”149, que investigava as relações entre desequilíbrio e alegria.
A proposição do espetáculo “Fervo” era estudar a constituição do frevo a partir da sua origem de
violência, pois o frevo foi criado por valentões e capoeiras que atuavam no contexto urbano como capangas
de coronéis, e relacionar com a violência que o recifense enfrentava diariamente naquele início do século
XXI. Um dos interesses era fazer uma discussão da violência como algo culturalmente construído e com
bases históricas as quais precisávamos, enquanto cidadãos, nos atentar. Naquele momento,, próximo ao
centenário do frevo, também tinha importância, para mim, romper a ideia de que o frevo É ontologicamente
154
alguma coisa. Era uma forma de interromper um discurso homogêneo, que a meu ver, mascarava problemas
sociais, servia para criar uma ilusão de igualdade social e valorização da arte local, e também lidava com a
tradição de forma padronizada e intocável.
O processo de criação durou sete meses de trabalho e visava o reconhecimento das diferentes for-
mas de praticar o frevo de cada artista envolvido, investigar desdobramentos expressivos a partir da ênfase
em diferentes aspectos dessa dança e verificar se e como seria possível evidenciar aspectos da violência
social na prática dessa dança. Neste processo foram desenvolvidas as discussões que apresentamos a seguir.
O livro Recife: culturas e confrontos (1998), do historiador Raimundo Arrais apresenta um cenário
de disputas políticas e emergência de problemas urbanos do início do Sec. XX na cidade do Recife. Este é o
período de surgimento do frevo e sua consolidação como prática cultural que engloba música e dança, na
região central da cidade. A música era tocada pelas bandas militares e da polícia civil. E, no encalço de cada
orquestra, seguiam grupos de pessoas entre os quais, profissionais liberais, desempregados e valentões150.
Estes se enfrentavam ao se encontrar nas ruas, refletindo disputas entre a polícia e o exército, entre a aris-
tocracia e a burguesia e entre bandos marginais rivais. Ao compartilhar essa leitura propusemos a seguinte
questão: seria possível transformar em dança essa história do frevo? Como poderíamos dançar frevo como
se lutássemos? Seria possível identificar o golpe que origina algum Passo?
Apesar do imaginário do frevo estar diretamente ligado à expressão de alegria - e todos nós reco-
nhecêssemos essa característica em nossas práticas - foi muito fácil relacionar alguns movimentos com
golpes. Em alguns, o próprio nome sugere essa conexão, como os passos “abre alas” (em que os braços
golpeiam o espaço como socos), “chutando de frente” (que é composto por chutes); em outros, uma va-
riação de tônus rapidamente transformava o movimento codificado em uma possível agressão ou em uma
esquiva, desvio de um golpe. Esse exercício de dançar como quem briga nos remeteu a duas expressões.
Por um lado, aproximava a dança do frevo dançado no carnaval pelos jovens que costumam aproveitar a
multidão para dançar lançando socos e chutes, distanciando assim, das formas coreográficas apresentadas
nos palcos e clubes de frevo. Por outro, aproximava passos como a tesoura, o faz-que-vai-mas-não-vai,
da capoeira.
Durante o processo, identificamos as diferentes formas que cada integrante do elenco151 agenciava o
frevo, apresentando tônus, organizações posturais e dinâmicas diferentes e isso nos fez investigar também os
processos de cruzamentos culturais que cada um agenciava. Passamos, por isso, a investigar o modo como
trazer organizações corporais e dinâmicas de outras danças, transformavam as leituras do Passo.152 Investi-
gando possíveis influências da capoeira e de danças do candomblé, percebemos uma facilitação da prática
do frevo, no uso da bacia e de alavancas, e refletimos sobre o provável apagamento da matriz afro-brasileira,
nos discursos e estilizações da dança, que chegou a ser identificada com uma improvável origem Russa, no
início do século XX (apud Oliveira, 1985).
Pude compreender de forma mais profunda o que significa o frevo ter uma influência direta da ca-
poeira. Essa influência advém de uma corporalidade que esconde a capoeira, porque esta estava proibida por
lei, mas que persistia como prática de luta urbana através dos valentões e outros indivíduos que buscavam
aprender a capoeira. Passamos então a pensar não na capoeira como uma expressão cultural, mas no capoei-
ra, na figura humana que possui uma corporeidade que atua com várias linguagens corporais, em constante
tensão e diálogo. Passamos então a investigar essa corporeidade. O gingado, as esquivas, as dinâmicas e,
150. Valentões eram pessoas contratadas como capangas e por isso tinham a conivência dos coronéis locais.
151. Os intérpretes foram Calixto Neto, Iane Costa, Jaflis Nascimento, Leda Santos e Marcelo Sena atuou como assistente de coreografia.
152. No frevo, os movimentos codificados são chamados de Passo, e o dançarino de frevo Passista.
155
principalmente, a organização corporal. O frevo ensinado nas escolas de dança e praticado nos palcos do
Recife apresenta uma postura corporal verticalizada desde a coluna lombar, incorporando procedimentos
de outras práticas de dança que trabalham com a imobilidade do quadril, como o balé. Mas, relacionando
o frevo com a corporeidade do capoeirista, encontrávamos o arredondamento da coluna, sinuosidade no
uso dos membros inferiores e superiores, multi-foco na expressão facial e uso da cabeça. Notamos que esta
forma de agenciar o corpo aproximava da corporalidade do passista de rua153 e com as indicações do méto-
do Nascimento do Passo154. Foi consenso que esta forma de organizar o corpo para dançar o frevo tornava
mais confortável executar os movimentos, trabalhando mais as alavancas (organização mecânica dos ossos
e musculaturas) do que a força muscular.
Como extensão desse experimento, passamos a dançar frevo com músicas afro-brasileiras, como
afoxés, maracatus e toques de orixás com o objetivo de construir aproximações, mas principalmente
acostumar o corpo a uma organização mais próxima às matrizes africanas. Nesse exercício, observamos
conexões de movimentos do frevo com movimentos do samba e das danças de orixás. Um elemento
estético importante foi a apropriação de dinâmicas polirítmicas e policêntricas, que estão na base das
danças afro-brasileiras - conforme descrito por Suzana Martins (Martins, 2008), revisando os estudos
sobre a dança na África, de Robert Thompson e Welsh Asante - para a prática do frevo. Desta forma, a
orientação rítmica pôde ficar menos dependente da marcação binária (é comum que o frevo seja dançado
acompanhando apenas a marcação do bombo), e com o corpo todo obedecendo a uma única marcação
rítmica. Ou seja, a organização do corpo-música ficou menos simples e ordeira, ampliando o espaço da
individualidade na organização do movimento.
Em resumo, elenquei até aqui três pontos de reflexão aos quais me detive através da prática de dan-
ça: 1. A veiculação frequente de uma compreensão de frevo construída com o reforço de uma imagem uní-
voca que apagava outros elementos estéticos e discursivos constitutivos desta dança; 2. O apagamento das
heranças africanas e afro-brasileiras na organização do corpo e sua relação com o espaço e com a música, na
forma como o frevo passou a ser veiculado nos palcos e nos clubes de frevo, a partir da segunda metade do
século XX; 3. O importante papel que o indivíduo passista pode ter ao tomar o frevo como uma expressão
complexa e não se limitar aos padrões rítmicos e formais consagrados pelos grupos de dança. Pudemos ver
que foi uma percepção clássica e hegemônica do belo, que deixou o frevo mais ereto, com pernas fechadas,
com menos ginga e malícia, padronizado155.
153. Passista de rua ou folião é aquele dançador que usa o frevo para sua própria diversão, sem estruturação como dançarino profissional ou inte-
grante de grupos artísticos.
154. Nascimento do Passo foi um passista com notável reconhecimento e que sistematizou na década de 1970 a primeira proposta de metodologia
de ensino do Frevo. Para mais informações ver Vicente e Souza, 2015.
155. O detalhamento da construção dessa compreensão integra minha dissertação de mestrado (Vicente, 2009) na qual analiso coreografias de
frevo de 3 grupos de dança.
156
Investigações a partir da experiência
A meu ver, estudar o uso do frevo em espetáculos do Recife da década de 1990 se cons-
tituiu como uma forma de expor e problematizar a complexidade dos cruzamentos de
compreensões e práticas de dança, por um lado; e de refletir sobre as disputas de poder e
discursos ideológicos que compõem o cenário em que a produção artística estudada está
envolvida, por outro. (VICENTE, 2009).
Tal argumento foi fundamental para a continuidade do meu trabalho coreográfico. Por um lado am-
pliou meu repertório de formas coreográficas, soluções cênicas, organizações corporais, por outro, permitiu
um investimento criativo, formal e filosófico junto com o frevo, livre de dogmas. Assim, construí o espetá-
culo solo “Pequena Subversão”, cuja pesquisa parte da materialidade do frevo de forma bastante pessoal. O
projeto, construído para submissão a edital, apresentava o seguinte argumento:
Minha Pequena Subversão é imaginar que a alegria pode ser encarada como uma estra-
tégia de sobrevivência. Não o antídoto contra a tristeza, mas uma capacidade de traduzir
informações adversas em vontade de continuar vivendo. Viver compreendido como um
estado de risco em que nos expomos aos limites entre dor e prazer; cair e suspender; esti-
car e encolher; sem que nenhuma dessas ações seja localizada numa concepção de bem e
mal, bom e ruim. São possibilidades de existência em movimento e cujo valor é definido
pela articulação.
Este processo foi bastante curto e as reverberações dessa pesquisa continuaram agindo em mim
e contagiando algumas pessoas. Pequena Subversão foi tomado como conceito que integra a concepção do
método de produção cultural, denominado Método Canavial (OLIVEIRA, 2010), desenvolvido pelo produ-
157
tor Afonso Oliveira. Já a professora Isa Trigo (2013), vê na ideia de Pequena Subversão relacionada à alegria
e à cultura popular, como um modo de operar próprio de diferentes práticas das tradições populares brasi-
leiras. Esse modo de operar a partir da produção de alegria constrói um estado corporal singular e permite
as passagens de estado psicofísico.
Ambas as formas de se apropriar do argumento desse espetáculo apontam, a meu ver, para um
transbordamento do espaço da Cena. As compreensões no corpo apontaram formas de agir no mundo, re-
tomando a ideia que a performatividade indica - um falar que age, que atua – no sentido de transformar, de
interromper um discurso ou de abrir um espaço para outras possibilidades de agir no mundo. Interessante
ver uma ideia que ultrapassa o produto artístico, e aqui não estamos reivindicando nenhum tipo de origina-
lidade, visto que são ideias que estão sendo agenciadas em diferentes áreas há algumas décadas, mas o fato
de que sua configuração emergiu daquele processo coreográfico de 2006/2007.
Notei que uma ideia ou composição de ideias, que foram muito importantes para o produto ar-
tístico, podem reverberar em diversas potencialidades. A partir dessa percepção, desenvolvo a ideia de que
nem sempre a melhor forma de agir no mundo num determinado contexto, mesmo para um artista, é a
produção artística. Nem sempre o melhor lugar para construir produções artísticas é a sala de ensaio. Às
vezes é preciso de bastante tempo para maturar as compreensões iniciadas em um experimento e é possível
lidar com as ideias jogando elas na realidade, nas suas outras práticas cotidianas para entendê-las. Inclusive
porque as ideias levam bastante tempo para se materializarem no corpo se entendemos a dança não apenas
como um jeito de dançar e sim como uma maneira de entender/lidar/construir o mundo.
A meu ver, as ideias coreográficas precisam estar no mundo, nas ações cotidianas, nas escolhas,
nas reuniões de departamento. Esses outros lugares são lugares de testar a possibilidade de agir, de falar
agindo, do nosso falar ser prática. Na dança, o palco é um lugar de dar visibilidade a algo que se materializa
em você inteiro: corpo – pensamento – sentimento – sensibilidade. E assim, imagino que as experiências a
que nos submetemos ajudam a construir formas mais ou menos elaboradas de estar no mundo e de mover.
No período seguinte a esse espetáculo e sua curta circulação, tive dois filhos e assumi o cargo de
professora da UFPB. Nesse período minha investigação voltou-se ao processo pedagógico e ao ensino de
frevo. Desenvolvi com o fisioterapeuta Giorrdanni de Souza a pesquisa Trançados Musculares – saúde cor-
poral e ensino do frevo (Vicente e Souza, 2013), através da qual pudemos compreender aspectos fisiológicos
e cinesiológicos da prática do frevo e, a partir de revisão bibliográfica em ensino de dança, aprendizagem
motora e treinamento físico, construímos uma proposição para aulas de frevo, atenta a demandas físicas.
Essa proposição envolve elementos pedagógicos e proposições práticas, as quais são bastante influenciadas
pela minha prática criativa com frevo. Ou seja, pude analisar algumas das minhas formas de aquecimento,
preparação corporal e investigação identificando suas qualidades pedagógicas e de treinamento motor, em
acordo com a bibliografia consultada.
Dentre essas práticas, a relação movimento e música é fundamental para compreender o trabalho
seguinte, realizado com Flaira Ferro, e com os músicos Spok e Lucas dos Prazeres, denominado Frevo de
Casa, que estreou em 2013. Minha proposição de ensino do frevo inclui uma sensibilização musical aos
vários elementos da música, identificando como estes podem facilitar a variação dinâmica na realização dos
passos. Ao contrário do que havia analisado nos espetáculos de frevo, onde os passos eram em geral execu-
tados sob a marcação binária, os teóricos do frevo no início do século, apresentavam a interligação entre o
passista e o músico na criação do frevo.
158
que na gestação dessa expressão cultural, a relação música e dança é elemento fundamental, tanto para a
composição musical que atende a demandas dos dançantes, quanto para os dançantes que criam suas ex-
pressões a partir do estímulo sonoro.
Atenta a improvisação dos passistas de rua, a exemplo do Grupo Guerreiros do Passo e Brincantes
das Ladeiras, bem como a apresentações do artista Antônio Nóbrega, percebi que a possibilidade de varia-
ção dinâmica dos passos confere maior singularidade ao passista (pois cada leitura da música gera uma for-
ma de dança), mas também maior interesse a sua performance. Então, em várias etapas da aula proporciono
aos alunos investigações da relação do passo com as variações da música.
Esse investimento foi bastante ampliado a partir da pesquisa O espaço do Passo, desenvolvida em
2013 com a bailarina e passista Flaira Ferro pois durante a pesquisa percebemos a falta de diálogo entre
músicos e passistas nos diversos contextos de apresentação do frevo. Os músicos executam suas partituras
e compõem os frevos sem mais remeter à prática da dança. Já os passistas tendem a enfatizar os aspectos
virtuosos muitas vezes abdicando de uma relação mais profunda com a música. Identificamos essa distância
entre as práticas de dança e música como um elemento importante a ser retomado do ponto de vista da
estética da brincadeira.
No espetáculo Frevo de Casa, que estreou em 2014, a relação do músico com o passista se estreita
e o repertório de movimentos ganha menos importância do que as respostas improvisadas e orgânicas,
criadas no momento de cada encontro. Assim como a multidão no frevo deixa-se saculejar pela música
estridente, pulsante e repleta de quebras e volteios, também o pode fazer o improvisador, quando se permite
libertar-se do repertório tradicionalizado e deixar o passo surgir contagiado ao máximo pelo momento. Este
saculejo e forma de improviso que propomos não é o que normalmente vemos no carnaval do Recife, seja
nos palcos ou nas ruas, é o nosso frevo de casa.
Frevo de Casa aborda o frevo em sua intimidade, investigando a relação entre o corpo que
dança e que toca, e o repertório, os sons, o imaginário, a história e os diversos contextos
do frevo de rua. O frevo de casa, dançado no quarto, treinado na sala, mostra o espaço de
dentro que acumula a poesia da rua em busca do próprio movimento. (...) Frevo de Casa
é um trabalho de dança e música que investiga, através da improvisação, a relação entre o
indivíduo e a tradição, apresentando esta como algo dinâmico, vivo e criativo. O trabalho
é entendido como um exercício de liberdade compartilhada, cujo percurso é guiado pela
escuta, a vibração, o contágio e o desejo. (programa)
O frevo de casa é então um espaço para investigação pessoal de forma coletiva e compartilhada,
tanto para os músicos quanto para as dançarinas e o público, que disposto ao redor do espaço cênico deli-
mitado interage e interfere em diferentes momentos. Cada um de nós leva para o espetáculo seu repertório
de movimentos e sensibilidade, sua experiência com improvisação e com os elementos do frevo e o jogo de
troca e contágio segue um roteiro de combinações espaciais e relações entre os integrantes. A participação
do público sempre tem sido calorosa e na última parte quase todos se disponibilizam a experimentar se sol-
tar no frevo. Testemunho o entusiasmo que toma conta de todos. Um tipo de euforia, de falas sobre o prazer
de dançar, sobre a mobilização que sentiram. Testemunho a mim mesma e percebo um foco na mobilização
de energias mais do que no desenho de movimentos, e me interesso pelo tipo de comunicação que acontece.
O que esta trajetória assim trazida ao Seminário de Arte educação do Sesc intenta materializar, ao
convocá-los para experimentar a prática dessas teorizações, é a necessidade de nós pesquisadores e profes-
sores não abrirmos mão das nossas práticas artísticas e criativas quando deslocados para ambientes acadê-
micos e educacionais.
159
Tomar a arte como ação cultural é insistir que quando mobilizamos os conhecimentos técnicos
artísticos fazemos diferença na experiência humana e na capacidade de ampliar a compreensão das nossas
realidades e dos desafios pelos quais vale a pena implicar-nos.
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VICENTE, Ana Valéria. Entre a Ponta de pé e o cal-
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160
JOGOS RAPSÓDICOS DE
APRENDIZAGEM DAS ARTES CÊNICAS
Brincantoria para Ingrid Dormien Koudela – Jogando com IDK
Luís Carlos Ribeiro dos Santos156
(dito Luiz Carlos Laranjeiras)
156. Ator, diretor teatral, autor/dramaturgo, diretor musical, compositor, cenógrafo, artista plástico, arte-educador, doutor em Artes Cênicas pela
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, mestre em Filosofia, professor do curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Uni-
versidade de Brasília e pesquisador do Grupo Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação da ECA USP. Como autor/dramaturgo,
publicou o livro Teatro de Luiz Carlos Laranjeiras pela Giostri Editora/SP em 2015, escreveu Folia da terra, 1º lugar, Entre o céu e a terra, 2º lugar,
vencedores do Prêmio Ana Maria Machado de Dramaturgia 2008, entre outras peças. Folia da terra, livro publicado em 2009 pela Editora Autores
Associados, Campinas/SP, foi selecionado pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil/Biblioteca Nacional/RJ para a 47ª Bologna Children’s
Book Fair 2010 na Itália. Como diretor teatral, assinando também a direção musical e as composições, destaque para As patacoadas de Cornélio
Pires, com o Andaime Teatro, A casa de dentro da gente, com a Caixa de Histórias/SP, Sabiás do sertão, com a Cia. Cênica/SP, Guaiá de todos nós,
com a Cia. Burucutu/SP.
161
giras e festas de Cosme e Damião na infância e juventude no Rio de Janeiro/RJ. Peço benção e licença a
Oxalá, às crianças, aos Orixás, Caboclos e a Todos os Santos para cantar a abertura dos jogos rapsódicos e
homenagear Ingrid Koudela:
Eu pedi a Oxalá
Pra mandar as criancinhas
Pra vir na banda
Brincar e trabalhar.
Os cantos de Oxalá nos lembram, de coração, da nossa missão, e os cantos das crianças nos convi-
dam a brincar no terreiro: eis um cadinho da essência lúdica e da substância musical, oral e corporal dos
jogos rapsódicos de aprendizagem das artes cênicas. A comunhão entre a poesia, a música, a dança e o teatro,
a brincadeira das crianças, as corporificações, as incorporações e o jogo de transfigurações dos Orixás me
trazem um saber como indivíduo, como ser criador, ser musical e como ser social.
162
Os cantos do terreiro são vocalidades poéticas da minha experiência, escuta e iniciação inscritos e
fixados na memória. Ilo Krugli, o Teatro Ventoforte e Ingrid Koudela, mestra, orientadora, parceira e “guar-
diã do jogo”, colaboraram para a descoberta e a construção do meu repertório artístico-pedagógico e para
a revelação e a fixação do meu memorial. São minhas referências e pontos de partida no teatro, nas artes
integradas e na educação. “Educadores-brincantes” inspiradores que nortearam as minhas andanças como
artista/educador/pesquisador.
A partir das práticas artísticas como ator, autor-dramaturgo, diretor, cenógrafo, diretor musical e
compositor e com as pesquisas na Universidade de São Paulo, orientado por Ingrid Koudela, inicio meus
estudos, práticas e reflexões sobre o “teatro musical popular brasileiro” com o intuito de estabelecer outras
relações de ensino-aprendizagem das artes cênicas no século XXI. Utopias pedagógicas a partir das musi-
calidades, vozes poéticas e corporeidades das danças, brinquedos e cantigas de roda: eis os jogos rapsódicos
de aprendizagem das artes cênicas.
As músicas e danças populares são formas especiais de jogo e apresentam modelos exemplares para
a criação dos jogos rapsódicos de aprendizagem das artes da cena. Os cocos, sambas de Caboclo e rural, as
cirandas e brinquedos de roda são campos de troca de saberes e experiências com temas, formas e conceitos
significativos, como o sentido de jogo e brincadeira, o caráter estético, a intensidade, a fascinação, a impro-
visação, as várias linguagens artísticas e o valor etnográfico. Eis a ideia geradora dos jogos rapsódicos, que
trata das contribuições artísticas e pedagógicas das práticas culturais populares para o ensino das Artes na
educação formal e não formal.
O jogo rapsódico propõe a abertura de conexões colaborativas entre a pedagogia das artes cênicas
e as culturas brasileiras, Teatro, educação e cultura popular. O que os artistas do teatro, educadores e pes-
quisadores aprendem com os cantos, cortejos e personagens? E com as narrativas, dialogações e figurações
coreográficas, os ritmos, síncopes, sapateados, saracoteios e umbigadas? Que contribuições trazem ao cor-
po, à mente, ao aprimoramento técnico e reflexivo? Por que os sambas, cirandas, cocos e cantigas devem
ser experimentados e estudados? Podemos pensar no atuante, no artista do teatro como um ser musical? E
numa consciência do corpo musical a partir das danças e musicalidades brasileiras?
O jogo rapsódico é a conjugação entre a pesquisa dos saberes e experiências das tradições musicais,
corporais e narrativas brasileiras e as práticas artísticas como ator, diretor, dramaturgo, compositor e diretor
musical de espetáculos de teatro musical popular brasileiro de palco e rua com os grupos de São Paulo, ca-
163
pital e interior, Teatro Ventoforte, Andaime, Farândola Trupe, Cia. Burucutu, Teatro do Labirinto, Caixa de
Histórias, Alumiah Teatro, Coletivo dos Anjos e Cia. Cênica.
Tambores, violas e flautas, pé, cintura, voz e palma: eis a síntese instrumental e a síntese corpóreo-
-musical das tradições afro-brasileiras, ameríndias/brasílicas e luso-ibéricas que traduzem as referências e a
significação cultural dos jogos rapsódicos.
Como uma experiência estética do “artefazer”, o jogo rapsódico é agente e meio de educação e cola-
bora para o conhecimento, o fomento e a difusão de elementos artísticos e antropológicos formadores das
culturas brasileiras. Proponho a experimentação dos jogos nas regiões do Brasil, na América Latina e em
outros lugares, com as danças locais, como a dança do peixe, Jacundá, na região amazônica, o bumba-meu-
-boi maranhense, o maracatu pernambucano, o boi-de-mamão catarinense, o jongo carioca e do vale do
Paraíba, os “cantos de ordeña” e o joropo na Colômbia e Venezuela, o camdombe uruguaio, a cueca chilena,
o huayno e a saya andinos, entre outras danças e expressões populares.
Nas andanças das pesquisas e recolhas dos materiais estéticos para os jogos rapsódicos de aprendi-
zagem das artes cênicas, Ingrid Koudela me fez entender que o valor pedagógico do teatro e das práticas
culturais, músicas e danças populares estão neles mesmos, em suas próprias naturezas dialógicas e estéticas.
Portanto, trago uma contribuição da música e da dança popular ao debate acerca das pedagogias do teatro
e os contextos e processos da ação cultural. Concluo propondo para os Currículos das escolas e universida-
des, os programas de teatro, artes cênicas, artes, dança, música e educação, a introdução e aplicação de um
sistema de aprendizagem das artes da cena como os jogos rapsódicos, inspirado nas teatralidades e práticas
culturais brasileiras, com cocos, sambas de Caboclo e rural, cirandas e brinquedos de roda.
164
Salve os jogos teatrais!
Brecht, um jogo de aprendizagem,
Salve, salve o texto e o jogo!
Ela mostrou outras paisagens.
Salve, salve o texto e o jogo!
Koudela mostrou outras paisagens.
165
O TEATRO HÍBRIDO E
PERFORMÁTICO DO TOTEM
E SUA PEDAGOGIA DA PERFORMANCE
Fred Nascimento
Gabriela Cabral
Inaê Veríssimo157
E ste texto propõe uma reflexão sobre a prática do trabalho híbrido do GrupoTotem, sua ence-
nação performática e seu diálogo com a pedagogia, sua aplicabilidade na educação. Há alguns anos publi-
quei um artigo falando sobre a pedagogia da performance na formação do ator-performer, aquele que não
interpreta e sim presentifica o rito, um dos pontos determinantes de nossa linguagem. O Totem é um grupo
contaminado pela performance, com sua linguagem múltipla, um trabalho que transita entre as fronteiras,
de múltiplos códigos, polissêmico, hipertextual, (COHEN, 1998), que procura presentificar o ritual.
Ao tratarmos de uma ideia de corpo híbrido, a presença de Artaud é incontestável, por ele ter ques-
tionado o teatro ocidental e proposto em seus delírios iluminados, um teatro que se conecta ao ritual e à
dança contemporânea, um teatro onde o gesto não está atrelado à palavra, e esta, não está, necessariamente,
atrelada ao texto dramático.
Aprofundando a reflexão sobre o Totem, encontramos a figura singular de Pina Bausch, justamente
por inserir o teatro na dança, no Tanztheater Wuppertal, cia de dança-teatro alemã. Nossa poética inclui
o borrar da fronteira entre o teatro e a dança. As conexões entre o teatro e a dança foram construídas ao
longo dos anos, onde o corpo de matrizes do teatro foi sendo impregnado pelo corpo de matrizes da dança,
e, naturalmente, ocorreu uma relativização do uso da palavra em cena, pois nossa fala passa primeiramente
pelo corpo. Outra característica da dança no nosso trabalho está no desenvolvimento de uma dramaturgia
corporal, como personificação e parte da encenação, e não como ilustração de cenas.
Nossas criações são processuais, integrando colaborações ao longo do percurso, deixando di-
versas variáveis abertas aos fluxos e associações, um sistema aberto, que se renova e se amplia a cada
trabalho, sem perspectiva de fechamento. Essas buscas apontam para a coexistência não linear e não hie-
rárquica das diversas linguagens, assim como dos artistas envolvidos no processo, coordenados por um
157. O Grupo Totem, dirigido por Fred Nascimento e Lau Veríssimo, foi criado em 1988, e desenvolve uma profunda pesquisa de linguagem, de
criação de performances híbridas, atuando em eventos de performance, teatro, dança, artes visuais, etc. Em seu histórico conta com mais de 50 traba-
lhos, e mantém atividades de formação, entre elas a oficina Corpo Ritual, e também vídeos, exposições e publicações. Entre seus principais trabalhos
de encenação performática e/ou espetáculos performáticos estão Retomada, Nem Tente, O Nicho Portal do Imaginarium, Silência, Sob um Céu de
Concreto, entre outros. Entre as performances criadas para espaços alternativos e as performances/intervenções destacamos Renascentia Escarlate,
Totem Relicário, Corpoema, Mantoparangolé, Cinco Performance em um Ato, Em Nome da Beleza. O Totem é formado por: Fred Nascimento, Lau
Veríssimo, Gabriela Cabral, Inaê Veríssimo, Juliana Nardin, Cauê Nascimento (músico) e Taína Veríssimo.
166
encenador. Segundo Renato Cohen, “Ao encenador-orquestrador da polifonia cênica, na operação dos
fluxos intersemióticos, de partituras de texto, imagem, corporeidades e suportes – e não ao dramaturgo
-, cabe a guia da cena contemporânea”. (COHEN, p. 28, 1998). As nossas operações criativas não são rí-
gidas, pois nossos atores-performers e atrizes performers são coautores e coautoras dos nossos trabalhos,
ou seja, por serem uma simbiose entre o ator e o performer, são criadores de suas personas - um outro ele
mesmo -, pois lá estão sua mitologia pessoal, sua memória, sua corporeidade, suas criações individuais,
seu eu ritual.
O nosso processo criativo mexe com o procedimento da performance, no qual o performer é criador
e criatura, ao mesmo tempo, pois, seu corpo, sua subjetividade, sua singularidade mas, acrescido de que
sua performance está integrada à performance dos outros integrantes, e à performance coletiva, à criação
grupal, essa, por sua vez é articulada a partir de uma perspectiva rizomática158. Esse tipo de procedimento
desestabiliza a questão da hierarquia, num movimento que aponta para a horizontalidade de criação, tanto
na relação de integração e colaboração entre as linguagens, quando dentro da estrutura de criação poética
entre os artistas criadores, pois todos são coautores.
Consideramos a performance como ideia fundadora de novas possibilidades cênicas e redes de cria-
ção. Por inaugurar dispositivos de significação, ela é, na contemporaneidade, absolutamente essencial, para
se falar e pensar em arte contemporânea como um todo. A performance arranha, rompe, arrisca, num movi-
mento ao mesmo tempo de quebra e de aglutinação, permite analisar sob outro enfoque, questões comple-
xas como a representação, o uso das convenções, os processos de criação, etc., questões que são extensíveis à
arte em geral. Ela que nasceu do encontro entre diversas artes, traz também, em sua gênese, a aproximação
entre a vida e a arte, como desejou Artaud.
Nesse quadro, nossas encenações performáticas, contaminadas pela performance, tem uma outra
característica, que é determinante na construção da poética totêmica, que se trata da coabitação, da simbiose
entre dois espaços/tempo, o espaço/tempo simbólico, metafórico, estético, e o espaço/tempo performático,
ritual, mítico.
Há anos vem se desenvolvendo muitas produções e pesquisas nas artes cênicas contemporâneas,
fazendo surgir um teatro contaminado, que ocupa um lugar indeterminado, que subverte os territórios
estabelecidos, imprimindo mais corpo à cena, mais presença, que lança mão de um forte impacto visual e
intensa sonoridade, um teatro de difícil categorização, território no qual nos encontramos. Estas inúmeras
manifestações do fazer teatral contemporâneo, diferentes entre si, por não seguirem um modelo, nem per-
tencerem a um movimento, acham abrigo no território conceitual que Lehmann nominou de pós-dramático.
Assumimos nossos espetáculos como encenações performáticas, pelo fato de não trabalharmos a
partir de textos dramáticos. Se assim o fizéssemos, tomando-os como pré-texto e pretexto para nossas mon-
tagens, estaríamos no campo que Tânia Alice chama de performance / encenação, uma nova estética teatral
contemporânea, que se manifesta em muitos grupos e companhias, que se apropriam de textos clássicos e
os transformam em material de criação, resignificando-os, o que guarda semelhanças com o nosso trabalho,
mas que se diferencia pelo ponto de partida e modus operandi.
158. Rizoma – conceito que defende um sistema aberto que possibilita linkagens entre diversos pontos sem hierarquia. Ver Deleuze e Guattari, Mil
Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo, Ed. 34, 1995.
167
Orquestrando sua própria pesquisa, trilhando o próprio caminho, o grupo conseguiu construir uma
poética muito particular, pois teve toda a liberdade sobre suas decisões, sobre que direção dar a suas pesqui-
sas, para construir sua linguagem, a criação de seus roteiros, articulando a criação de materiais levantados
em laboratórios, traçando redes e intercâmbios de conhecimentos, artísticos ou não. Esse procedimento é
ancorado na ideia de Antropofagia Cultural de Oswald de Andrade159, pois a devoração antropofágica, deixa
sempre aberto o horizonte, numa construção constante, sem cristalizações, provocando metamorfoses a
cada novo trabalho.
Para fechar essa introdução aos processos de estruturação e criação do Totem, elencamos alguns
procedimentos que se encontram na estrutura cênica de sua poética: construção em work in process; es-
trutura rizomática; criação de performances individuais que, ao serem superpostas constituem a per-
formance coletiva; encenação performática; hibridização; fusão de textualidades; instauração da per-
formance enquanto tempo-espaço-ação; fusão de um espaço-tempo ritualístico, performático, com
um espaço-tempo simbólico; fusão de elementos do teatro e da dança; afastamento da representação
e busca da performance; espetáculo centrado na ação; dramaturgia construída a partir do corpo; dra-
maturgia processual; improvisação; diálogo entre corpo em cena e música ao vivo; fragmentos de tex-
tos que o Totem chama de textos móveis, que podem ser poemas ou não; uso constante de projeções
visuais e novas mídias; hipertextualidade; polifonia; narrativas superpostas e simultâneas; narrativas
sem significado fechado; ritualidade; metamorfose; conexão entre arte e vida.
Para alguns, nosso fazer artístico pode parecer uma utopia, por adotar procedimentos não conven-
cionais de criação, os quais buscamos continuamente, impulsionados por sonhos e perseverança, por se
tratar de uma necessidade existencial, de um projeto de vida, de uma pulsão artística, intimamente ligada
às nossas existências.
159. A Antropofagia, como movimento cultural, foi tematizada por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago (1928), publicado na Revista
de Antropofagia. Era um protesto contra a mentalidade subserviente. Tinha por objetivo a deglutição da cultura do outro, na visão positiva e ino-
vadora de Andrade, nossa índole canibal permitira, na esfera da cultura, a assimilação crítica às formas importadas, que mixadas a nossa cultura,
resultaria em algo genuinamente nacional.
160. Paisagem Sonora - O conceito de “Paisagem Sonora” tornou-se conhecido a partir do trabalho produzido pelo compositor/professor canaden-
se Murray Schafer. Em seus estudos, ele trabalha com a percepção de sons, dos mais diversos ambientes.
168
Concluindo essa breve reflexão sobre nosso fazer artístico, colocarei em poucas linhas, a afirmação
de que nossas escolhas denotam um posicionamento claro sobre diversos pontos de nosso quadro político
e social, e um engajamento com questões ligadas às lutas de minorias, mas também a questões mais exis-
tencialistas. Nossos espetáculos e performances são nossa maneira de atuação no mundo, contrapondo-se à
lógica do mercado, mesmo pagando um preço alto por nossas escolhas, mas mantendo-nos leais aos nossos
princípios.
Não há como separar nossas atuações enquanto performers, das nossas atividades enquanto
arte-educadores, ao acionarmos rupturas em antigos paradigmas do ensinar, através de ação e intera-
ção, que são elementos da performance, nos colocamos enquanto professores-performers (CIOTTI,
1999). A ideia que alimenta o conceito professor performer, é a que coloca o estudante como produtor
em arte, fazendo com que todo o processo de construção do conhecimento seja um processo de criação
e experimentação.
Precisamos ter consciência da nossa atuação enquanto facilitadores de construção de seres criadores
e pensantes, e não sermos meros reprodutores de conceitos e práticas. O trabalho pedagógico é um corpo
a corpo, se dá a partir do encontro, que proporciona da troca de saberes, o desenvolvimento de potenciali-
dades e a construção de poéticas. A pedagogia da performance aponta para uma troca de saberes, dialogal,
relacional, de pesquisas e descobertas individuais e coletivas.
É comum que grupos de artes cênicas ministrem aulas a fim de repassar seus conhecimentos a artis-
tas iniciantes, com o Totem não é diferente, durante toda a sua trajetória o grupo sempre procurou socializar
suas pesquisas através de oficinas e cursos ministrados por seus integrantes. Dentro da perspectiva de es-
clarecer um pouco nossas experiências pedagógicas, tecerei alguns comentários sobre algumas experiências
mais significativas, o Ita-Projeto Pedagógico, o Curso de Teatro Performático Totêmico, A Arte da Perfor-
mance e o Corpo, a Oficina Corpo Ritual e as experiências das performers Gabriela Cabral e Inaê Veríssimo
como arte-educadoras de escolas da rede privada de ensino de Olinda e Recife.
A primeira experiência mais sólida de intercessão entre o teatro performático do Totem e a pedago-
gia, via arte-educação, aconteceu com Ita-Projeto Pedagógico (1995), segundo informações, a primeira expe-
riência de adaptação para as artes cênicas da Proposta Triangular de Ensino de Arte, lançada no Brasil por
Ana Mae Barbosa, experiência realizada em diversas escolas da rede oficial de ensino, seguindo o roteiro de
fundamentação/contextualização do espetáculo Ita, apreciação do espetáculo no espaço da escola, seguidas
de releituras de Ita realizadas por arte-educadores das escolas visitadas.
169
As atividades pedagógicas do grupo não pararam, mas destacamos o Curso de Teatro Performático
Totêmico, em 2003, ministrado por Fred Nascimento e Lau Veríssimo, a partir do qual o corpo foi tomado
como ponto de partida para a criação, através da aplicação de alguns princípios da performance, desenvolvi-
da internamente, como o personal totem, os textos móveis, a oferenda de si, o teatro ritual, a não-interpreta-
ção, caminhadas e mandalas de energia baseadas no Taan Teatro, body painting, corpo e memória, esforço,
respiração, mitologia pessoal e autopoiesis. Durante o primeiro mês do curso, foram criadas performances
autobiográficas, performadas no próprio espaço. No segundo mês do curso, o fluxo das subjetividades das
atrizes-performers se expandiu e estas se uniram, a partir da lutas contra a discriminação da mulher, as
performers do Totem se juntaram ao processo criativo, que acabou gerando a performance ritual coletiva
Cinco Performances em um Ato, cuja construção envolveu mitologia pessoal, autopoiesis, imagens arquetípi-
cas e textos autobiográficos. Sua performação contou com a instalação e instauração de corpos dilatados de
cinco mulheres em performance mítica, e cinco sacerdotisas cuidadoras desses corpos/imagens, gerando o
imbricamento entre o tempo real e o tempo mítico, performada durante o SPA das Artes do Recife, defronte
a cinco igrejas históricas da cidade. Um ato poético que falava da condição da mulher e do quanto a igreja
tem de culpa nesse processo histórico de opressão.
Nesse período o Totem manteve o Espaço Totem – No Pátio de São Pedro – Recife, no qual mi-
nistrou algumas oficinas e realizou performances. Internamente as pesquisas continuaram e a mistura de
linguagens foi se consolidando. Em 2008 o grupo realiza o curso A Arte da Performance e o Corpo no Centro
de Formação em Artes Visuais (CFAV), em Recife. Além da história da performance, foram trabalhadas
diferentes formas de performance, a relação com o público, espaço e performance, tempo e performance. O
curso gerou uma Mostra de Performances no espaço urbano do Recife.
A partir de 2011 o grupo instalou seu novo Espaço Totem na Av. Cruz Cabugá - Recife, com intensa
atividade de cursos e oficinas de artistas convidados. Neste novo espaço, o Totem ofereceu o mini-curso O
performer – o dispositivo da diferença, pelos professores-performers Fred Nascimento e Lau Veríssimo, que
realizaram laboratórios a partir do corpo, poética corporal – poética pessoal, ritual, tempo mítico, mitologia
pessoal, produção de presença, construção de persona, seres auto ficcionais, performance, ator-performer, me-
mória corporal/sensorial, performance autobiográfica, colagem de Mídias (mistura de linguagens), ideograma
– a lógica do corpo em cena – metamorfose – estado permanente de transformação – o corpo como discurso,
territórios e fronteiras. As performances criadas pelos participantes foram performadas no próprio Espaço.
Mais uma vez vimos artistas criadores em estado de profunda entrega e de autorevelação, investindo na cena
como um espaço em que se desenrola um acontecimento, onde há a ação do corpo em performance.
170
po, a oficina também tinha aportes na Pedagogia da Performance (Valentin Torrens), com o corpo, o sujeito,
no centro da criação, visando a construção de performances rituais consolidando a performance como o
ritual contemporâneo e o ator-performer como xamã da cena.
No ano de 2013 foi realizada a 1ª Oficina Corpo Ritual, na Galeria Casa da Rua, Recife e na
mata atlântica de Aldeia, Camaragibe. Nesta primeira edição, o Grupo aplicou sua pedagogia perfor-
mática, advinda de sua poética e de suas pesquisas, a fim de favorecer atos criativos dos participantes,
e teve como culminância do processo, a criação de foto-performances, desenvolvidas entre fotógrafos e
performers/participantes dirigidas/coordenadas pelos professores-performers membros do Totem. Um
processo que resultou na formação da exposição fotográfica Corpo Ritual, que circulou em eventos de
fotografia, Mostras de Artes Cênicas e de Performance. Em sua segunda edição, em 2014, o processo
da oficina desencadeou a criação de performances autobiográficas que foram performadas na 1ª Mos-
tra Corpo Ritual, no espaço O Poste, em Recife. Por fim, em 2015, a Oficina aconteceu no Centro de
Cultura Luiz Freire, em Olinda, tendo a 2ª Mostra de Performance Corpo Ritual, composta por perfor-
mances rituais que aconteciam paralelamente, ocupando a área externa do Centro, com a presença de
um público expressivo.
Todo o processo pedagógico da Oficina Corpo Ritual se sustentou no corpo, na pesquisa corporal
das potencialidades do corpo dilatado, tomado como motor, enquanto sujeito e objeto da obra, explorando
os campos da memória e do devir, cuja vivência se deu em laboratórios-ritos preliminares, cujo processo
desencadeou a criação de uma simbologia própria, através de sua vinculação com o sagrado. Para atingir a
subjetividade e a criação, foram utilizados estímulos sensoriais, ritualizações de mitologias pessoais, mer-
gulho interior, investigação de autopoiesis, além de práticas xamanicas, fluxos corpóreos, exercícios vocais/
corporais, fazendo emergir o eu-ritual dos performers, amalgamados em partituras corporais e ideogramas,
objetivando a criação das performances rituais. Esta metodologia incita a criação de trabalhos híbridos, que
tem o teatro performático ritualístico como referência.
A Oficina Corpo Ritual foi conduzida pelo professor-performer e encenador Fred Nascimento, e
pelas atrizes-performers e professoras-performers Lau Veríssimo, Gabriela Cabral, Gabriela Holanda, Inaê
Veríssimo, Juliana Nardin, Tatiana Pedrosa Leal e Taína Veríssimo.
Seguindo o pensamento de Jerzy Grotowski, o performer é uma criatura em ação, um estado de ser,
uma conexão com seu “eu” interior. Na performance, o corpo e a alma do artista atuam como suporte para a
obra. Já os processos de criação teatral, passam por situações de concepção e colaboração coletivas, através
de jogos, improvisações e encenações, caracterizados pela ação conjunta, em virtude de uma montagem
específica.
171
Ser performer e professora de teatro me trouxe a necessidade de adentrar no campo da performance
enquanto metodologia, investigando um sistema propulsor de experiências pessoais autobiográficas, em
conexão com o coletivo e encontrando na junção dos corpos e vozes a função colaborativa de um objetivo
em comum; o espetáculo.
A prática que relatarei aconteceu no ano de 2017, com o grupo de adolescentes do curso de teatro da
instituição de ensino Academia Santa Gertrudes, localizada no Alto da Sé, Olinda, Pernambuco, resultando
no espetáculo chamado Vudéjàvu. Composto por estudantes engajados politicamente e com as questões
sociais, chegamos ao desejo de adentrar na atual crise política, que se tornou o ponto de partida para a con-
cepção da encenação.
A proposta inicial, quando nenhum desses pensamentos estava definido, seria a de introduzir a
pedagogia da performance no processo criador, culminando numa montagem teatral. Inicialmente busquei
investigar quem eram aqueles seres ali presentes, o que eles traziam nas suas histórias de vida, nos seus
corpos e nos seus íntimos. O processo criativo deu-se a partir de laboratórios voltados para as necessidades
daquele grupo em específico, através de jogos, memórias/lembranças, pinturas corporais e criação de textos/
poemas. A partir desses laboratórios, as imagens arquetípicas pessoais dos alunos foram fluindo, de forma
que, a criação ali vivenciada era parte daqueles indivíduos, as produções apresentadas eram como pedaços
de si mesmos arrancados do seu âmago. A junção das individualidades desembocou num rio de ideias e
imagens, sempre canalizadas para o todo, em busca de um tema em comum para a produção e realização de
um espetáculo teatral performativo.
A estrutura hierárquica foi construída de forma horizontal e flexível em relação aos papéis desem-
penhados por cada um dos participantes no processo de criação. A dramaturgia nunca estava finalizada,
havia um roteiro sujeito a alterações pelos próprios estudantes, não havia representações de personagens
e sim personas levantadas nos laboratórios em cena, a identidade dos alunos reivindicando suas críticas e
resistências aos padrões normativos que a população brasileira está vivendo na atualidade. A estudante que
personificava a figura principal se expressava apenas com o corpo e tinha nele seu fundamental vetor de
criação e expressão.
A troca de material simbólico durante todo o processo foi algo de libertador para os adolescentes,
com este percurso colaborativo, os textos e criações eclodiam de dentro dos jovens e nisso emergia a potên-
cia de todo o coletivo, ali estava a verdade de um grupo, apresentadas no corpo, na voz e na alma.
VudéjàVu assumiu uma posição de livro-jogo, no qual o público teve total participação nas decisões
sobre as cenas que foram apresentadas pelos atores, nelas, todos os presentes foram votando nas cenas que
gostariam de assistir, decidindo, inclusive, o final da peça.
Atuando através de uma pedagogia crítica, partimos do princípio de que a escola não é uma ins-
tituição desprovida de funções políticas e que funciona como uma experiência consigo mesmo e com o
coletivo. Com ela foi possível resistir enquanto ser dentro da escola, se fazer ouvir, se fazer inteiro, perce-
ber que sua atuação na comunidade escolar é sentida e reconhecida, tudo isso os fez entender que fazem
parte do mundo e que este os impulsiona a criar. (Gabriela Cabral, professora-performer, arte terapeuta
e atriz-performer)
172
A experiência de Inaê Veríssimo (atriz-performer do Totem)
A Pedagogia da performance aplicada às práticas de teatro em sala de aula.
Sou integrante do Grupo Totem desde 2004, lugar onde se deu toda a minha formação em perfor-
mance, performatividade, teatro pós-dramático, teatro performático, ritual, um amplo e rico universo de
pesquisas e descobertas. Sou formada em Artes Cênicas pela UFPE e atualmente atuando em sala de aula
como professora de teatro na rede particular do Recife. Minha relação com a arte educação vem de berço,
ainda em casa, e desde que me tornei professora sempre tive a consciência de que o meu trabalho seria
facilitar os processos de cada um, no sentido do autoconhecimento e afirmação da pessoa como cidadã no
mundo.
Neste breve texto irei relatar o processo de construção de um trabalho performático, realizado com
alunas do Fundamental 2 e Ensino Médio, que tinham entre 13 e 17 anos. Nessa época eu fazia direção de
elenco para o Novelo Literário, projeto que buscava o diálogo entre poesia e teatro, no Colégio de São Bento
em Olinda. Nesse projeto os alunos produziam poemas guiados por um tema, e encenavam alguns poemas
selecionados. Havia o lançamento de um livro de poesias reunidas dos alunos, e algumas dessas poesias
eram encenadas no espetáculo de lançamento do livro. Esse projeto acontecia anualmente e todo ano tínha-
mos um poeta homenageado.
Em 2015 estávamos trabalhando o poema de uma aluna com a temática do feminismo, e por coin-
cidência só tínhamos alunas nesse processo. Foi preciso dar uma aula introdutória sobre feminismo, pois
muitas delas não tinham aprofundamento no tema. A partir daí comecei a elaborar laboratórios que pode-
riam vir a ser cena. E um desses laboratórios amadureceu e virou a encenação do poema em questão.
Pedi para que elas relatassem situações em que foram oprimidas por ser mulher. Os relatos começa-
ram a surgir, e foi se desenhando uma experiência cênica intimamente ligada à vida de cada uma. Durante
o processo elegemos uma aluna para ser crucificada simbolicamente, representando todas as mulheres opri-
midas pelo patriarcado. Todas as outras traziam suas experiências representadas por um tecido vermelho
que era amarrado à aluna crucificada. Ela carregava a dor de todas nós. Durante o desenvolver da perfor-
mance, a aluna crucificada estava toda amarrada com oito pedaços de tecido. À medida que a performance
avançava, ela ia ficando imóvel e cada vez mais ia perdendo os movimentos. Até o momento em que as
outras alunas reagiam a esse comportamento de culpabilizar a mulher, que elas mesmas reproduziam. Elas
se organizaram numa dança dramática para tirar a ‘mulher’ amarrada daquele lugar. E, aos poucos, aquele
corpo de mulher amarrada ia se soltando, se empoderando, e saindo daquele lugar de castigo. Cada aluna
pegava seu tecido de volta e dançando iam amarrando o tecido na cabeça para montar um turbante. Com os
tecidos na cabeça, todas dançavam uma coreografia com a música Vaca Profana de Caetano Veloso.
Toda a criação foi coletiva e processual, além de ter sido extremamente significativa para todas
nós envolvidas. Primeiro porque partiu de experiências verdadeiras, onde cada estudante pôde desenterrar
algo que vivenciou e criar sua persona, a partir de sua própria experiência. E segundo, porque esse trabalho
reverberou para sempre na vida de cada uma, as modificando como pessoas no mundo. Essas estudantes fo-
ram criadoras e criaturas do trabalho que se desenrolou, ao construírem uma performance pessoal e coletiva
onde todas estavam presentificadas em sua ação performática.
O texto que foi dito pelas estudantes tinha um eco visceral dentro de cada uma, pois elas vivencia-
vam o momento sendo elas mesmas, potencializadas. De forma que o uso da palavra passava pelo corpo,
construindo assim uma dramaturgia corporal impregnada de subjetividade. Não estavam aquelas estudan-
tes representando, elas estavam sendo mulheres que se encontravam num campo de luta, e que naquele
momento foi o palco.
173
O uso da voz, do corpo, dos elementos visuais, da música e do movimento estavam todos conecta-
dos com a subjetividade das participantes. A energia emanada por aquelas estudantes nessa performance era
a coisa mais grandiosa de se ver, pois estavam realizando a quebra do que está estabelecido através de seus
corpos e vozes e principalmente, através de suas experiências pessoais.
Esse processo relatado acima nos fez perceber o quanto a arte é importante no seu poder de ativação
de novos mundo e sentidos. É um caminho para as mudanças que queremos e precisamos. (Inaê Veríssimo,
professora-performer, arte educadora, performer e mãe).
Considerações Finais
A partir das experiências acima citadas, que nos mostram as ideias e práticas do Grupo Totem reverberando
para além de suas fronteiras, concluímos que é possível expandir o universo e o ensino não só do teatro, mas
também da dança. Com procedimentos e vivências performáticas, estimulando uma expansão de pesqui-
sas em direção ao corpo consciente, expandido e dilatado. Da organização de ideias criativas, a partir dos
elementos colocados à disposição do performer, sejam imagens, memórias, materiais naturais, ou outros,
à procura de novas signagens. Investir na construção de performances individuais ou coletivas, a partir de
todo e qualquer estímulo. O incentivo à autopoiesis, ao mergulho na ancestralidade, nos mitos e arquétipos.
Estimular o performer à criação de personas e/ou um outro ele mesmo, na busca do ‘eu ritual’. Investir e per-
seguir a qualidade de presença do corpo em performance, por fim, deixar-se contaminar pela performance,
oxigenando assim, as artes cênicas contemporâneas.
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LEHMANN, H. T. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Co-
sac Naify, 2007.
174
HULL HOUSE E A ORIGEM
DOS JOGOS TEATRAIS JUNTO
AOS IMIGRANTES NORTE AMERICANOS
Robson Camargo161
Os primeiros conceitos organizadores dos jogos teatrais estabelecidos por Viola Spolin
(1906-1994) originaram-se da prática realizada por ela junto a sua professora Neva Leona Boyd (1876-
1963). Importante educadora e trabalhadora social norte-americana, Boyd desenvolveu sua abordagem de
trabalho de grupo dentro da Hull House, em Chicago. A Hull House, fundada em 18 de setembro de 1889,
foi um conjunto de casas onde funcionou uma instituição privada de ajuda social, na qual os funcionários
eram em sua maioria voluntários. Teve papel destacado na recepção e no assentamento dos trabalhadores
em Chicago, principalmente imigrantes italianos, gregos, judeus, russos, poloneses, mexicanos e irlandeses
que chegavam a esta grande cidade industrial. A Hull House encerrou suas atividades depois de cem anos,
em 27 de janeiro de 2012, frente às inúmeras dificuldades financeiras.
Hull House foi uma das mais destacadas experiências de auxílio social, parte de um grande movimen-
to originado na Inglaterra por volta de 1884, chamado Settlement House Moviment (missão de casas de assenta-
mento), que se espalhou nos Estados Unidos. Movimento estabelecido principalmente por reformistas sociais
que procuravam melhorar as condições de vida e a cultura das populações carentes e também evitar que estas
fossem presas de oportunistas caçadores de votos, e mesmo de anarquistas e/ou militantes sociais.
Neva Boyd foi professora de sociologia e uma das idealizadoras do movimento moderno de jogos co-
letivos. Nasceu em Sanborn, Iowa, em 25 de fevereiro de 1876. Boyd primeiramente participou de experiências
em jardins da infância em Chicago - Illinois e Buffalo - Nova Iorque, antes de entrar para a Universidade de
Chicago em 1908. A Comissão dos Parques de Chicago então contratou a jovem Boyd para organizar clubes
sociais, desenvolver atividades de dança, atividades dramáticas e de jogos em seus parques. Em 1909, Boyd
fundou a Chicago School for Playground Workers (Escola de Chicago para Trabalhadores em Parques e Jardins),
e de 1914 a 1920 esta escola operou como formadora de trabalhadores para o Departamento Recreativo Cívico
e Filantrópico das Escolas de Chicago (Recreation Department of the Chicago School of Civics and Philanthro-
py), muitas de suas aulas formadoras foram realizadas na Hull House. A Chicago School for Playground Workers
161. Idealizador e um dos fundadores do Programa de Pós Graduação em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás. Encenador
e crítico de teatro. Coordenador do Grupo Maskara de Pesquisa em Dança, Teatro e Performance. Livros Publicados: Os Jogos Teatrais de Viola
Spolin, uma pedagogia da experiência, com Karine Ramaldes (2017); Brazilian Theater, 1970-2010 (2015, com Eva Bueno); O Gestual no Teatro:
Melodrama, Pantomima e Teatro de Feira (2018, UNB no prelo). Conselhos editoriais: Editora Anthem Press (Inglaterra); Revista Moringa (UFPb).
Encenações recentes: A Noite dos Assassinos, de Jose Triana (2018) e Cascando Beckett, uma imagem como outra qualquer, performance sobre
conto de Samuel Beckett (2017), com o grupo Máskara. Coordenador do GT da Associação Brasileira de Pesquisadores em Artes Cênicas Teorias do
Espetáculo e da Recepção (2001-2016).
175
foi posteriormente incorporada à Universidade de Chicago e depois, em 1927, transferiu as suas atividades
para o departamento de sociologia da Universidade de Northwestern, o qual foi por Boyd dirigido até sua apo-
sentadoria em 1941.
A formação dos estudantes que iriam atuar nos parques e jardins era totalmente prática, desen-
volvida com ginásticas, danças, práticas culturais de diferentes povos, jogos populares, arte dramática e,
principalmente através de princípios da teoria do jogo de grupo, uma pedagogia que se desenvolvia pela
ação. Boyd também trabalhou, durante os anos seguintes da grande depressão de 1929, na Works Progress
Administration (WPA), um programa político nacional que operou seus próprios projetos em cooperação
com os governos estadual e municipal, desenvolvido pelo então presidente dos Estados Unidos Franklin
Delano Roosevelt (1882-1945). Tal programa oferecia emprego a milhões de pessoas desempregadas pela
crise de 1929. Com ele, em quase todas as comunidades dos Estados Unidos, se construíram prédios públi-
cos e parques onde se desenvolveram os projetos da WPA, empregando músicos, artistas, escritores, atores,
diretores para desenvolverem atividades artísticas junto à população.
O contato de Spolin com Boyd se estreitou antes da crise de 1929, entre os anos de 1924-1927,
quando Viola Spolin passou a ser aluna de Neva Boyd justamente na Hull House. Posteriormente, Spolin
se tornou responsável pela área teatral do projeto recreativo dos parques da cidade de Chicago, vinculado
ao Works Progress Administration (WPA), coordenado por Neva Boyd, como descreve Camargo: “... todo o
trabalho de Boyd estava orientado pela ênfase na metodologia da experiência do trabalho de grupo, nela
a participação coletiva no jogo desempenha fundamental importância”. Parece óbvio, pois não há como se
aprender jogos e práticas populares se não for a partir da experiência do trabalho de grupo. Este aspecto da
“experiência do trabalho em grupo”, nos jogos, caminha em sentido oposto ao que se fortaleceu durante o
século XX, o século da cultura de massa, do individualismo, dos grandes meios de comunicação, da instru-
ção e caminha também em sentido inverso ao “estrelismo” que domina a produção cultural, o que sublinha
a prática da experiência em processo coletivo, que supera a individual.
A reflexão sobre o trabalho em grupo também é uma das fortes características da proposta de
jogos de Spolin, pois ambas (Boyd e Spolin) acreditavam na construção do conhecimento através da
troca de experiências produzidas entre diferentes indivíduos, a partir da solução de problemas. Experi-
ência reflexiva, não apenas como um dado do passado que se reapresenta, mas também como algo que se
ressignifica no ato da produção da experiência. O trabalho em grupo proporciona troca, estimulando um
aprendizado mais amplo, no qual estão inseridos o respeito mútuo, a troca de saberes e a reflexão sobre
o que foi realizado.
Outra forte característica dos estudos e do pensamento de Boyd, também presente em Spolin, e que
merece ser destacada, é em relação à “competição” que se concretiza na realização dos jogos. Para Boyd, a
competição feita no jogo deve ser realizada tendo em vista cooperação, estímulos, empatia, mantendo-se
livre de prêmios estranhos que não sejam apenas a plena satisfação da representação (performance), o prazer
do jogo em si mesmo. Os objetivos dos jogos e de suas práticas são realizados simplesmente no prazer de
jogar, sem a espera de recompensas, a não ser a realização da vivência coletiva. Visão esta também explí-
cita na metodologia de Viola Spolin: “A competição, originalmente usada como um incentivo para maior
produtividade e como um instrumento de ensino para desenvolver mais habilidades, infelizmente funciona
apenas para poucos e deveria estar superada por ser inoperante.” (SPOLIN, 2012, p. 39).
Ao compararmos as principais questões metodológicas propostas por Neva Boyd com aquelas
propostas por Spolin, podemos encontrar os mesmos princípios, como o aspecto social dos jogos; a forte
presença dos jogos e danças populares nos estudos de ambas; a integração física e psicológica durante a
realização dos jogos (envolvimento orgânico); os jogos organizados na forma de situações-problemas; a
176
valorização de um condutor no momento do jogo, como processo importante de troca e aprendizagem;
a ênfase no processo criativo e coletivo de jogar, dentre outros. A experiência que Spolin obteve com
Boyd certamente foi fundamental para a elaboração da metodologia improvisacional dos jogos teatrais.
Também essencial para o desenvolvimento desta metodologia, foi o relacionamento de ambas com o
pensamento da chamada Escola de Chicago5, fundada em 1896, e que conta com a participação, dentre
outros, do filósofo e educador John Dewey. O filósofo do pragmatismo e educador John Dewey (1859-
1952), professor da Universidade de Chicago, trabalhou como residente na Hull House, onde publicou
seu livro sobre a criança e o currículo (1902). Dewey irá publicar posteriormente dois livros que trazem
estrita relação com o trabalho de Neva Boyd e Viola Spolin, Arte Como Experiência (1934) e Experience
and Education (1938).
Dewey, Boyd e Spolin tiveram uma experiência muito próxima na Hull House, pois tiveram contato
direto, embora em épocas distintas, com as vivências realizadas nesta instituição. Dewey como residente da
Hull House entre os anos de 1894- 1904, após deixar a Universidade de Chicago, Neva Boyd como professo-
ra na mesma instituição a partir de 1909 e Spolin como aluna de Neva Boyd entre 1924-1927. Mesmo Spolin
não tendo contato direto com Dewey, teve acesso às propostas que ele colocou em prática nesta instituição
social. Essas relações estabelecidas direta e indiretamente entre Dewey, Boyd e Spolin influenciaram a cons-
trução e desenvolvimento do pensamento de todos eles.
A Hull House tem muitos outros segredos ainda que precisam ser contados, Jane Addams (1860-
1935), principal organizadora e administradora desta settlement house, é considerada a primeira filosofa
pública dos Estados Unidos. Addams, autora de mais de dez livros, tinha uma relação de profunda amizade
com George Hebert Mead e era membro ativa do Plato Club, clube filosófico desta Casa, onde Dewey fez
várias palestras e onde se discutia também o pensamento de William James. Para Addams, a Casa Hull era
também um grande projeto epistemológico e podemos acrescentar pedagógico.
Cornelis de Waal, professor de filosofia da Indiana University e um dos responsáveis pela edição
da complexa obra de Charles S. Peirce (1839-1914), aponta, em seu livro Sobre Pragmatismo, que Dewey
descrevia a Hull House como “um lugar onde ideias e crenças podem ser trocadas, não somente na arena
da discussão formal.” (DEWEY apud WAAL, 2007, p. 154). Completa Waal: “Dewey se sentia particular-
mente atraído pela noção da escola como um centro social e uma casa esclarecedora de ideias.” (WAAL,
2007, p. 154). Percebemos, com estas citações, que Dewey também reconhecia atenção especial para a
troca de experiências práticas entre os indivíduos como importante elemento de formação do conheci-
mento. Dewey via nas práticas da Hull House uma grande oportunidade para uma educação baseada na
interação social e na troca de experiências e sua vivência na Hull House certamente impulsionou suas
próprias ideias de formar a Escola Laboratório da Universidade de Chicago (1896), onde se experimen-
tavam práticas de ensino.
Spolin, por sua vez, durante as experiências na Hull House, dirigiu seus estudos ao ato teatral, acres-
centando a eles as várias pesquisas que realizou durante sua vida sobre diferentes técnicas teatrais, o que veio
enriquecer cada vez mais a abordagem proposta. Também se apoiou nas brincadeiras tradicionais dentro
de sua abordagem metodológica, de forma que uniu o conhecimento empírico, repassado de geração para
geração sobre as danças e brincadeiras, com as técnicas teatrais elaboradas por diversos artistas. As crianças
e adultos que frequentavam a Hull House traziam ricas experiências de brincadeiras tradicionais de várias
partes do mundo, então muitas destas brincadeiras foram utilizadas tanto por Boyd como por Spolin na
elaboração de seus jogos. Para tanto, algumas brincadeiras populares sofreram pequenas adaptações, pois
Boyd e Spolin entendiam o jogo como um importante elemento de educação social e construção de conhe-
cimento, compreendendo que o jogo não pode ser apenas uma prática em si mesma, uma vivência sem uma
reflexão da e na cultura.
177
Spolin, além de sistematizar o aprendizado que obteve com Neva Boyd, se apropriou das pesquisas
sobre técnicas teatrais e jogos populares para elaborar sua abordagem metodológica. Ingrid Dormien Kou-
dela, a principal introdutora dos ensinamentos da atriz pedagoga norte-americana no Brasil, acrescenta:
Viola Spolin é conhecida internacionalmente por sua contribuição metodológica tanto para
o ensino do teatro nas escolas e universidades como para a prática da arte cênica, princi-
palmente para o teatro improvisacional (...) cunhou o termo theater game, traduzido entre
nós como jogo teatral. (KOUDELA, 2010a, p. 1).
Ingrid Koudella resume este inter-relacionamento em seu prefácio ao livro Os Jogos Teatrais de
Viola Spolin. Uma pedagogia da Experiência (Ramaldes e Camargo. Kelps 2017, p.9).
“O aspecto social do jogo, a forte presença dos jogos populares na metodologia de Spolin
e Boyd buscam o envolvimento orgânico e a solução de problemas pelos participantes no
processo criativo. No momento do jogo, as experiências passadas se combinam, se acumu-
lam com as experiências presentes, transformando-se em uma nova experiência. Seguindo
Stanislavski, que costumava usar amplamente as improvisações durante o treinamento do
ator, Spolin propõe a atenção ao foco durante o desenvolvimento dos jogos teatrais. Os
educandos aprendem através da experiência sendo que o foco estimula os jogadores a de-
senvolverem ação improvisada durante o ato de jogar. Nessa práxis a instrução dada pelo
orientador durante a realização do jogo teatral auxiliará o educando/jogador a permane-
cer no foco durante o jogo. Instrução e avaliação do jogo estão diretamente relacionadas ao
foco. O foco é o condutor do jogo teatral.”
178
TEATRO COMO EXPERIÊNCIA
LÚDICA DE APRENDIZAGEM
Vera Lúcia Bertoni dos Santos162
A reflexão que sintetizo neste texto faz-se a partir de uma ampla e diversificada experiência de
aprendizagem vivida na interação com os ensinamentos de Ingrid Koudela em diferentes momentos da mi-
nha trajetória como professora de teatro em formação: na condição de leitora assídua dos seus muitos textos,
que chegaram até mim já na graduação, no Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul; em algumas breves, mas extremamente proveitosas, oportunidades em que participei ou
assisti oficinas, cursos e palestras ministrados por ela; ao longo do meu processo de qualificação acadêmica,
que me oportunizou contar com a sua contribuição na banca examinadora das minhas defesas de mestrado
e doutorado; e como colega de área, em diversos encontros científicos que frequentamos e em publicações163
com as quais nos envolvemos, que nos possibilitaram estabelecer uma relação de parceria e lutas comuns
por reconhecimento do teatro como área de conhecimento, pautadas por muito afeto.
Refiro-me a essa experiência na intenção de frisar que a admiração e o respeito que nutro por Ingrid
Koudela constituem-se a partir de uma relação aprofundada, o que me permite discorrer sobre a relevância e
contemporaneidade da sua contribuição aos estudos nos campos do teatro e da educação com propriedade,
e de forma circunstanciada, mas não isenta de comprometimentos intelectuais e afetivos, pelo tanto que me
considero influenciada por suas ideias.
Autora da tradução para a língua portuguesa da obra da professora e diretora de teatro norte-ame-
ricana Viola Spolin (1906 – 1994) e empreendedora de diversos estudos acerca do sistema dos jogos teatrais,
162. Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Bacharel e Licenciada em Artes Cênicas pela UFR-
GS. Professora Associada e pesquisadora vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – Linha de Pesquisa “Linguagem, Recepção
e Conhecimento em Artes Cênicas”; e ao Departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS. Coordenadora da pesquisa “Professor
de Teatro e Construção de Conhecimento”. Líder do Grupo de Estudos em Teatro e Educação (GESTE), do CNPq. Bolsista Coordenadora do Sub-
projeto de Teatro do Programa Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID/UFRGS). Autora de publicações referentes a aspectos teóricos e práticos do
ensino e da aprendizagem do teatro.
163. Destaco a obra intitulada “Léxico de Pedagogia do Teatro” (vide as Referências no final do texto), com o qual tive o privilégio de
colaborar.
179
difusores essa modalidade de improvisação teatral entre professores e artistas de teatro brasileiros, Koudela
destaca-se como teórica precursora no sentido da aproximação da metodologia de Spolin à perspectiva in-
teracionista de construção de conhecimento de Jean Piaget, divisando um campo teórico e investigativo ao
qual se identifica boa parte dos meus trabalhos acadêmicos.
No interior do nosso campo de conhecimento essa compreensão atualmente soa óbvia, e a luta por
reconhecimento do teatro como conhecimento pode até parecer superada, mas na realidade da Educação
Básica sabemos bem que ainda há muito caminho a percorrermos para que o teatro seja, de fato, reconhe-
cido entre os demais componentes curriculares. Na minha experiência como professora de teatro e como
investigadora atenta às relações entre teatro e pedagogia constato que essa conotação lúdica que, tanto na
prática dos jogos teatrais, como na criação (trânsito entre a ação cênica e a ação da plateia) das formas cêni-
cas contemporâneas, tende a engendrar o próprio sentido, pouco se observa nas formas teatrais comumente
praticadas na realidade escolar.
De modo geral, observo que os modelos de teatro praticados na realidade escolar parecem esvaziar
o processo de criação teatral da sua condição de jogo, seja pelo caráter meramente reprodutivo que tendem
a assumir, quando inspirados por concepções epistemológicas empiristas, motivadas essencialmente pelo
resultado, ou pelo caráter preponderantemente esponteneísta, de base inatista, das práticas do tipo “jogo
pelo jogo”, movidas pela mera exploração das potencialidades da criança, para as quais qualquer intervenção
do professor soa como repressão à atividade criadora e expressiva do aluno.
No primeiro caso, essas formas costumam caracterizar-se pela encenação de montagens teatrais
concebidas a partir do texto literário e representadas por alunos perante uma plateia, e constituem, por
assim dizer, representantes “clássicas” do ensino tradicional em teatro, relacionando-se, muito frequente-
mente, à postura diretiva do professor, que assume a função de diretor de teatro (também numa matriz
tradicional, que restringe a criação à direção), a quem cabe determinar os objetivos e as ações cênicas em
prol do resultado final: a apresentação do espetáculo teatral.
Num amplo panorama acerca das formas de abordagem do teatro na educação proposto pelo teórico
inglês Richard Courtney (1968, p. 52), a prática do teatro em meio escolar surge nas escolas da Europa, vin-
culada ao pensamento humanista e ao movimento renascentista, de revalorização da cultura greco-romana.
Segundo ele, a reintrodução da literatura dramática clássica na escola, motivaria a prática da arte da retórica e
da declamação, abrindo campo para a realização de montagens teatrais, até então restritas ao meio profissional.
Na realidade da Educação Básica atual é comum observarmos a prática do Teatro Escolar, confor-
me Courtney denomina essa abordagem, voltada à preparação de montagens ilustrativas de momentos
de culminância das unidades do plano de ensino, exibidas em eventos festivos ou comemorativos da
comunidade escolar. Esse tipo de apresentação costuma envolver crianças de diferentes faixas etárias,
independentemente de suas motivações ou condições prévias. De modo geral, essas montagens teatrais
caracterizam-se por algumas características, tais como: propósitos apelativos ao riso fácil, textos exage-
radamente simplificados, gestuais figurativos, falas meramente memorizadas (ou seja, nem sempre com-
preendidas no seu sentido pelos próprios emissores), elementos cênicos decorativos de gosto discutível
e a presença (mais ou menos ostensiva) de um ou mais adultos determinados a assegurar que as cenas se
cumpram da melhor maneira, frente a uma plateia composta por familiares das crianças e membros da
comunidade escolar.
180
Infelizmente pouco se questiona acerca dos efeitos negativos desse tipo de prática à formação es-
tética e à autonomia de pensamento das crianças. A supervalorização do produto final ocorre, fatalmente,
em detrimento dos processos individuais e das relações sociais entre as crianças, cujos desejos e interes-
ses são desconsiderados. Limitada à reprodução de padrões estéticos adultos e à obediência a medidas
autoritárias e disciplinares, esse tipo de prática desfavorece a experiência teatral (inerentemente lúdica,
prazerosa e social), significando entraves à educação estética e à cooperação entre seus participantes. A
adoção irrefletida desses procedimentos, no contexto em que ocorrem, revela falta de conhecimento acer-
ca das relações de continuidade entre os jogos simbólicos infantis e a representação teatral. Dessa forma,
as montagens escolares parecem realizar-se na contramão das brincadeiras e jogos infantis, que, desen-
volvidos na medida da participação ativa e dos interesses das crianças, tenderiam a evoluir no sentido da
construção teatral, ou seja, da criação coletiva de cenas, personagens e elementos de cena corresponden-
tes aos interesses e condições das crianças.
Uma segunda forma de teatro comumente praticada no meio educacional apontada no panorama
de Courtney (1968, p.44) consiste no uso do teatro como um recurso com fins didáticos, ou seja, a prática
teatral relacionada à aprendizagem de outras disciplinas do conhecimento. O autor menciona a abordagem
conhecida como Método Dramático, cuja primeira formulação consta nos trabalhos de Caldwel Cook (In-
glaterra, 1917).
No sistema escolar, o Método Dramático costuma ser adotada na educação de crianças e jovens em
função dos benefícios decorrentes da dramatização no ato da aprendizagem, sendo comumente proposta
por professores de outras disciplinas, como Língua Portuguesa, História e Literatura, como meio para des-
pertar o interesse por temas a serem desenvolvidos.
Os procedimentos gerais dessa prática proposta por docentes leigos em teatro não se afastam, em
geral, daqueles observados no chamado “teatro escolar”, ou seja, consistem no preparo de montagens a se-
rem encenadas pelos alunos. Logo, por não prever, por parte de quem se propõe a orientá-la, um relativo
domínio de aspectos formais do teatro, e tampouco o conhecimento do processo de construção do teatro
pela criança, esse tipo de abordagem nem sempre significa oportunidade de interação dos alunos com a prá-
tica do teatro, arriscando difundir modelos estereotipados e empobrecidos de teatro e expor os estudantes a
experiências inadequadas e mesmo traumáticas.
181
Courtney (1968, p. 47) aponta o inglês Peter Slade (1958) como teórico expoente dessa abordagem,
que a partir de uma ampla experiência na observação de crianças em situação de jogo, concebe a denominação
Jogo Dramático Infantil – ou Teatro Criativo: uma “forma de arte por direito próprio” (SLADE, 1958, p. 17),
através da qual a criança expri- me as suas necessidades emocionais, numa catarse propiciada pelo drama.
No que se refere aos processos de teatro com crianças e jovens em idade escolar, um dos aspectos
responsáveis por este esvaziamento é a premissa dicotômica de cisão entre as condutas lúdicas de caráter
dramático da criança e as formas teatrais “propriamente ditas”, da qual partem os trabalhos dos mentores do
Child Drama, e que parece constituir a base da contradição desse tipo de abordagem.
Na concepção de Slade (1958, p. 18) o fenômeno teatro, conforme a compreensão adulta, significa
“ocasião de entretenimento ordenada”, “experiência emocional compartilhada” que pressupõe a diferencia-
ção “atores e público”; ao passo que o drama, constitui, segundo o autor, oportunidade de experimentação,
por parte da criança, em relação a si mesma e à sua vida, “através de tentativas emocionais e físicas e depois
através da prática repetitiva” que pode se “desenvolver em direção a experiências de grupo”.
A conceituação de Slade (1958), dos termos teatro, no sentido adulto, e drama infantil, indica ativi-
dades correspondentes a dois polos, e que se constituem por inversão, o que implica uma relação de negação,
e não de complementaridade. Ao separar atividades complementares entre si, a concepção de Slade parece
cair numa armadilha quando sujeita à inversão das suas premissas fundamentais, revelando a insuficiência
da sua “teoria” acerca das condutas lúdicas.
As pesquisas de Koudela (1999, p. 16) constituem um aporte decisivo à crítica acerca dessa aborda-
gem, na medida em que apontam suas fragilidades conceituais sem desmerecer o valor histórico da contri-
buição de Slade e seus seguidores:
Não pude encontrar nesses pioneiros do Child Drama (Inglaterra) e Creativ Drama-
tics (EUA) uma definição de teatro como processo específico de conhecimento, nem
a discussão dos princípios educacionais sobre os quais esta linguagem artística esti-
vesse fundamentada. Como consequência, introduzia-se uma dicotomia entre teatro
e manifestação espontânea. Quando havia menção ao teatro, ele era geralmente visto
de forma abstrata, ou através da negação de modelos tradicionais, substituídos pelo
conceito genérico de “criatividade”.
Cabe considerar que o debate em torno as abordagens tradicionais, fomentado a partir dos ideias
escolanovistas, forneceu a base dos discursos em favor da valorização do ensino das artes, em geral, e do
teatro, em particular (que mais adiante culminaria na institucionalização das disciplinas artísticas no ensino
escolar brasileiro – Lei 5.692/71); mas, em contrapartida, deu margem a justificativas de caráter predomi-
nantemente psicológico, significando abordagens reducionistas de arte na escola, desviantes de propósitos
estéticos e especificidades artísticas.
Ou seja, o avanço no movimento de oposição à hegemonia das práticas diretivas e essa nova ma-
neira de compreender o ensino do teatro na escola, vinculada a objetivos genéricos (como criatividade,
182
espontaneidade e socialização), acabou contribuindo para a difusão práticas de arte eminentemente es-
pontaneístas, esvaziando o ensino das disciplinas artísticas de propósitos específicos. A falta de especifici-
dade das abordagens do chamado “drama criativo” seria preponderante para que pesquisadores da área do
teatro, inspirados na corrente essencialista164, fundassem um movimento de transformação conceitual, que
passou a considerar o teatro como experiência pedagógica ligada ao processo de construção da inteligên-
cia, fundamentando discursos práticas inovadores que vieram a significar a perspectiva de ensino da arte
por suas qualidades e propósitos intrínsecos.
Koudela (1999, p. 124) refere-se ao princípio da fisicalização e à ação lúdica, considerando as re-
lações entre esses dois aspectos inerentes às relações humanas que, na sua concepção, a prática dos jogos
teatrais de Spolin estabelece.
A perspectiva de teatro como conhecimento, aliado ao processo de desenvolvimento do sujeito
significa oposição ferrenha às concepções positivistas, mas a inclusão do teatro como disciplina indepen-
dente no meio escolar ainda parece uma realidade distante. A mencionada inclusão do teatro na educação
brasileira (Lei 5692/71) deu-se apenas de direito, mas não de fato: na prática, a força e os modos renovados
através dos quais as concepções tradicionais de ensino do teatro se reeditam, alimentam todo o tipo de dis-
torção. Dentre os aspectos que indicam o árduo caminho a ser percorrido para que o teatro seja reconhecido
como disciplina do conhecimento nos currículos das escolas brasileiras, destacam-se: a falta de qualificação
e de valorização dos profissionais do ensino, reflexo da insuficiência e ineficiência dos cursos de formação
específica, bem como da defasagem salarial que submete o magistério, em relação a outras profissões; a
insistência dos nossos governantes na implementação de propostas polivalentes e pragmáticas, que se faz
sentir desde a Reforma Educacional Brasileira (1971), de cunho liberal tecnicista165 que se renova a cada
164. Concebida no campo das Artes Plásticas (que atualmente se identifica à denominação Artes Visuais), a partir dos estudos de Elliot Eisner
(1972), e difundida no Brasil através dos trabalhos de Ana Mae Barbosa e Ingrid Koudela (ambos de 1984), a corrente essencialista “considera que a
arte tem uma contribuição única a dar para a experiência e a cultura humanas, diferenciando-a dos outros campos de estudo”, não necessitando de
argumentos que justifiquem a sua presença no currículo escolar” (KOUDELA, 1984, p. 18).
3. Destaque-se as relações estabelecidas pela autora a partir do estudo de um capítulo da obra de Hans G. Furth (1970), referente à prática
teatral nos moldes propostos por Spolin, sob a ótica construtivista (vide as Referências no final do texto).
165. Corrente pedagógica concebida a partir de pressupostos de teóricos ligados à psicologia experimental beha- viorista, de grande reper-
cussão no ensino norte-americano.
183
novo programa educacional imposto à sociedade sem a devida participação das categorias compe- tentes,
a quem cabe apenas acatar seus desmandos; o descaso e a displicência na realização de concursos públicos
e na efetivação de contratações que objetivem suprir os quadros docentes das escolas de profissionais com
formação específica (quer nos campos do teatro, da música, da dança ou das artes visuais); e a falta de apoio
institucional ao trabalho docente em artes, evidenciada na carência de recursos materiais sofrida pelos pro-
fissionais, na precariedade do espaço físico destinado ao seu trabalho pedagógico e na exiguidade de proje-
tos institucionais que envolvam a arte como conhecimento.
Sem querer abarcar o complexo conjunto de ensinamentos que constituem o sistema de jogos teatrais,
mas decidida a fornecer alguns elementos para pensar a contemporaneidade dessa metodologia, finalizo este
texto discorrendo sobre alguns princípios fundamentais da “experiência criativa” relacionada à prática da im-
provisação teatral, reunidos por Spolin (1963, p. 4–15) sob o título de “sete aspectos da espontaneidade”, que se
constituem, segundo a sua metodologia, numa relação de complementaridade e interdependência.
O primeiro aspecto levantado pela autora é a estrutura do “jogo”, que, na sua concepção, é condição e
viabilidade técnica dos exercícios de atuação, caldeando a totalidade da sua proposta. O jogo é um fator cons-
tituído na autodisciplina e no envolvimento individual do aprendiz e do grupo, no qual se inclui o professor.
Um segundo aspecto apontado por Spolin é a intenção de superação da díade “aprovação / desa-
provação”, em prol da construção de um sistema conjunto de avaliação que envolve o grupo de trabalho. Ao
professor cabe assumir uma postura de promotor da tomada de consciência dos alunos sobre o seu próprio
fazer em cena e sobre o fazer dos colegas, o que favorece a experiência e a mobilidade do pensamento de
todos os envolvidos no processo de criação teatral. Esse envolvimento tende a romper com a polarização
comumente enfatizada nos sistemas tradicionais positivistas e autoritários de ensino, como fator de julga-
mento dos esforços do indivíduo ou de comparação entre condutas
O terceiro aspecto dos jogos teatrais na perspectiva de Spolin (1963, p.8) desenvolve-se na medida
da transformação das condutas predominantemente competitivas (observadas nas etapas mais precoces da
interação entre as crianças) em condutas predominantemente cooperativas (características das formas mais
evoluídas que os jogos teatrais tendem a assumir com a prática, na medida em que os participantes tornam-se
capazes de transformar a sua relação com as regras).
O quarto aspecto enfatizado por Spolin (1963, p. 13) é a “plateia”: “membro mais reverenciado do
teatro”, fundador do sentido do fenômeno teatral. O espectador é parte inerente ao processo de experimen-
tação das soluções aos problemas de atuação que originam as cenas, pois impulsiona a pesquisa cênica e
motiva as soluções estéticas, avaliando as seus resultados, incidindo no processo de improvisação.
As chamadas “técnicas teatrais” constituem o quinto aspecto levantado pela autora, que designa um
conjunto regras adotado deliberadamente, que se altera de acordo com o nível de dificuldade dos jogos. A
sua adoção não implica rigidez, ou mecanicismos, visto que são técnicas variantes conforme a capacidade
do grupo e as necessidades evidenciadas na prática. Tratam-se de “problemas para solucionar problemas”
(SPOLIN, 1963, p. 20).
184
O sexto aspecto descrito por Spolin (1963, p. 13) é o movimento de “transposição do processo de
aprendizagem para a vida diária”, que, de acordo com a autora caracteriza o processo de criação no teatro
por um constante ir e vir entre a realidade, da qual o sujeito que joga extrai a matéria para a sua ação no
palco, e ficção, que expressa outros estados dessa matéria, criados a partir da manipulação desse sujeito
sobre o real, e que retornam ao sujeito, tornando-se objeto da apreensão de outros sujeitos, os espectadores.
Finalmente, o sétimo aspecto da espontaneidade, tal seja, o que Spolin chama de “fisicalização”,
abrange a expressão física do jogador: forma corporal assumida por ele para mostrar (em oposição a contar)
a realidade teatral.
Essa passagem em que Spolin traduz a relação que o teatro, como processo de significação e de
encontro, é capaz de estabelecer, pode bem ilustrar a relação pedagógica: tão destituída de sentido, quando
movida pela mera demonstração e verificação de conteúdos isolados da experiência viva do sujeito, e tão
significativa, quando movida pela necessidade, que cria novas formas para a estruturação dos conteúdos e
os reinventa, plenos de significado.
Conforme pretendi enfocar neste texto, para que os processos educacionais levem em conta o senti-
do lúdico do teatro, seus proponentes necessitam compreender a arte como objeto estético com característi-
cas próprias e como forma de abordagem relacionada à construção do conhecimento e ao desenvolvimento
da inteligência, tal como nos apontam os estudos de Spolin, Koudela e seus muitos seguidores no campo da
Pedagogia do Teatro.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
COURTNEY, Richard. [1968] Jogo, teatro e pensamento KOUDELA, Ingrid Dormien e ALMEIDA JÚNIOR, José
- As bases intelectuais do teatro na educação. São Paulo: Simões de. (Org.). Léxico de Pedagogia do Teatro. São
Perspectiva, 1980. Paulo: Perspectiva, 2015.
FURTH, Hans. G. [1970] Piaget na sala de aula. Rio de SLADE, Peter. [1958] O jogo dramático infantil. São
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KOUDELA, Ingrid Dormien [1984]. Jogos teatrais. São SPOLIN, Viola. [1975,1989] Jogos teatrais: o fichário de
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1999. Perspectiva,19
185
JOGOS TEATRAIS E A PEDAGOGIA DO
TEATRO: NOTAS SOBRE UMA (LONGA
E PRODUTIVA) PARTIDA BRASILEIRA
Vicente Concílio166
A publicação, em 1979, da tradução feita por Ingrid Koudela e Eduardo Amos do livro “Im-
provisação para o Teatro”, de Viola Spolin, pela editora Perspectiva, pode ser considerado um dos marcos
iniciais do desenvolvimento da área da Pedagogia do Teatro em nosso país.
Se levarmos em conta ainda que a primeira edição do livro “Jogos Teatrais”, obra que resultou do
primeiro mestrado em Teatro-Educação da ECA-USP, foi publicada em 1984, podemos afirmar que a área
que relaciona teatro e ensino no Brasil é tributária do trabalho pioneiro realizado pela diretora, tradutora,
professora e pesquisadora Ingrid Dormien Koudela.
É importante frisar: os jogos teatrais não são os únicos meios de promover aprendizagem da lin-
guagem teatral ao mesmo tempo em que é também processo criador. Junto às brincadeiras tradicionais, às
técnicas do teatro do oprimido, aos jogos dramáticos, as peças didáticas de Brecht, ao Drama como método
de ensino, fora as inúmeras invenções propostas por cada professor que se aventura a ministrar suas aulas
de teatro e sente que o sucesso da empreitada depende de uma certa “alquimia” (na qual todas as suas re-
ferências são mescladas em parceria com seus educandos), temos uma variedade de opções que fazem do
166. Ator, diretor e professor da área de Teatro-Educação do Departamento de Artes Cênicas da Udesc, integrando também o Programa de Pós-
-graduação em Teatro e o Mestrado Profissional em Artes (PROFARTES - Capes) da mesma instituição. É licenciado, mestre (2006) e doutor (2013)
em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo. É autor dos livros “Teatro e Prisão: dilemas da liberdade artística” e “BadenBaden. Modelo de Ação
e Encenação no Processo com a peça didática de Bertolt Brecht”. Desde 2011 é Coordenador da Área de Teatro do Programa de Bolsas de Iniciação à
Docência (Pibid – Capes) da Udesc. Atualmente é Coordenador do GT Pedagogia das Artes Cênicas, da ABRACE - Associação Brasileira de Pesquisa e
Pós-graduação em Artes Cênicas (2017-2018). Como diretor teatral,integra o Coletivo Baal, que pesquisa encenação das peças didáticas de Brecht. “Diz
que Sim”, inspirado no texto “Aquele que diz Sim/Aquele que diz Não”, é a mais recente produção do grupo, que estreou em maio de 2017.
186
ensino do teatro uma função tão exploratória e poética quanto o próprio ato da criação artística. Por isso,
os discursos sobre a formação do licenciado em teatro na atualidade são elaborados de forma a enfatizar a
dimensão artística do ensino de teatro.
Esse aspecto é crucial no sistema dos jogos teatrais spolinianos: o tempo todo o coordenador dos
jogos conduz a exploração improvisacional através da estratégia denominada “instrução”. A instrução, um
dos fundamentos dos jogos teatrais, começa quando o jogo é apresentado aos atuadores, e a partir desse
momento eles passam a improvisar em cena.
Porém, enquanto jogam, está previsto pelo sistema elaborado por Spolin que o condutor do jogo
pode, a qualquer momento, interferir na improvisação, chamando-lhes a atenção caso a partida siga em uma
direção que não condiz com o “foco”, ou seja, não cumpra a tarefa central do desafio do problema cênico
apresentado.
Vejamos o trecho em destaque abaixo, escrito por mim para o Dossiê “Jogos Teatrais no Brasil: 30
anos”, e publicado pela Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, da Universidade Federal de Uberlân-
dia, em 2010:
“O sistema dos jogos teatrais, criado e sistematizado por Vila Spolin ao longo de sua tra-
jetória como artista e educadora, está estruturado em alguns princípios fundamentais que
articulam a lógica de sua execução e funcionamento.
Podemos dizer, de maneira sucinta, que o sistema de jogos teatrais organiza um processo
de ensino-aprendizagem na forma de uma práxis cênica que se estrutura como jogos de
regras que visam a descoberta do prazer de jogar e ampliar a consciência da linguagem
cênica por parte dos jogadores.
Os jogadores, ou atuantes, compõem um grupo que ora está atuando na ação de jogar, ora deve
exercer o papel de plateia crítica, avaliando a atuação de seus parceiros que acabaram de realizar um
jogo.
A avaliação de uma rodada é feita sempre com o objetivo de apreciar o nível de comprometimento
dos jogadores em realizar a proposta central daquela partida. Essa proposta é denominada foco. O foco
age, portanto, como objetivo central da atuação dos jogadores e como eixo da avaliação posterior à partida.
Além disso, o foco também constitui o parâmetro através do qual o coordenador do processo vai intervir,
através de instruções, na partida que está acontecendo diante de seus olhos.
Dessa forma, avaliação, instrução e foco são elementos estruturais básicos do sistema. Vejamos um
exemplo de jogo, extraído do livro Improvisação para o Teatro:
O
bjeto move os jogadores
187
Foco: no objeto que os está movendo.
Instrução: Sinta o objeto! Deixe que o objeto os coloque em movimento! Vocês estão todos
juntos?
Avaliação
Para a platéia: Eles deixaram que o objeto os colocasse em movimento? Ou eles iniciaram
o movimento independente do objeto? Eles se movimentaram olhando os outros atores?
Para os jogadores: Vocês fizeram do exercício um jogo de espelho (reflexo dos outros) ou
trabalharam com o foco?167
O exemplo acima, escolhido de forma aleatória, demonstra como a autora criou seu sistema de
maneira claramente estruturado. Ao conceber a relação de ensino-aprendizagem através da experimentação
e posterior reflexão, Spolin demonstra que atribuir sentido às ações realizadas durante o ato de jogar é tão
relevante quanto agir. E ao valorizar o papel da instrução, ela destaca a relevância da participação sempre
ativa do coordenador da oficina, seja ele um professor, um diretor ou um coordenador de oficina.
Observamos claramente que as instruções sugeridas referem-se ao campo do foco proposto de for-
ma objetiva e pontual. Uma instrução não pode julgar o que está acontecendo a partir de valores como
“bom” ou “ruim” e nem deve apontar sugestões para a execução da partida. Assim como os jogadores não
devem decidir previamente como vão realizar a improvisação, o coordenador não deve construir uma ins-
trução que aponte como a cena pode ser realizada.
Os jogos teatrais propõem, além de atividades sensoriais e de consciência da presença cênica, de-
safios de aprendizagem e construção da realidade cênica a partir de seus elementos constituintes básicos: a
noção de espaço ( jogos com foco no Onde?), a noção de presença cênica e de personagem (jogos com foco
no Quem?) e a noção de ação cênica ( jogos com foco no O quê?). Nos mais diferentes desafios, a instrução
está prevista. Segundo a autora:
Ou seja, de acordo com Spolin, a instrução é parte do jogo; é uma regra que deve ser assimilada
pelos jogadores e deve estar prevista nos acordos prévios de um projeto que lance mão da estrutura do jogo
teatral. Sua utilização é um instrumento que garante a presença atenta do coordenador no momento em que
uma improvisação está sendo executada pelos atuantes, e essa intervenção deve garantir aos jogadores maior
liberdade para experimentação. Isso ocorre por que os jogadores podem esgarçar os limites do foco proposto
167. SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.64.
168. SPOLIN, Viola. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.26.
188
tendo a certeza de que o coordenador vai sempre voltar a chamar atenção para o objetivo principal da partida.
Nesse sentido, a estrutura do jogo teatral não limita o papel do coordenador a um mero executor
de propostas previamente elaboradas e estruturadas em um manual. Os Spolin Games foram concebidos
como uma proposta pedagógica que promove a parceria efetiva entre os sujeitos envolvidos no processo de
criação. Um processo norteado pelos que negam um aprendizado tecnicista e voltado à aquisição de proce-
dimentos pré-elaborados.”
O artigo do qual foi retirado o trecho acima se chama “Instrução e Criação em Jogos Teatrais: pro-
fessor parceiro de jogo”. Faço questão de reproduzi-lo aqui pois eu releio esse texto, que foi escrito para uma
ocasião importante, os 30 anos da primeira publicação de Spolin em nosso país, e ainda considero que ele
apresenta os jogos teatrais de forma objetiva e ressalta o aspecto que me parece crucial aos jogos teatrais: o
desafio da instrução.
Porque ela altera a presença do coordenador do jogo ao longo de toda a partida. O coordenador não
pode simplesmente anunciar a tarefa da rodada e simplesmente se ausentar.
Ele é um jogador “externo” fisicamente à cena, e por isso mesmo capaz de interferir na improvisação
de forma verbal, o que lhe confere um status ao mesmo tempo “onipresente” e “ausente”. Sua participação é
outra: ele assiste a cena e deve elaborar, rapidamente, as instruções que vão amplificar o alcance do jogo no
momento que ele está acontecendo. É uma atuação no “gerúndio”, e isso exige uma habilidade que se cultiva:
chamar atenção dos atuantes para o que está acontecendo, sem desnutrir a improvisação. Deve-se avisar os
atuadores sobre os desvios de foco, mas eles devem se sentir motivados a seguir explorando.
A elaboração das instruções é uma tarefa, portanto, que revela o universo do coordenador, sua ética
em relação ao ensino-aprendizagem do jogo e sua generosidade na elaboração das palavras que vão alimen-
tar a cena em processo.
“A instrução, entendida aqui como um elemento provocador gerado pelo professor/ dire-
tor a partir de reflexão realizada no momento presente em que a criação está acontecendo
por seus pares, contribui para acertar a difusão da autoria das cenas, uma vez que nem só
os atores são agentes de sua criação. A instrução abre caminhos concretos para que o res-
ponsável pela condução do trabalho possa contribuir de maneira para o encaminhamento
da improvisação em processo.
Dessa forma, refletir sobre o tipo de instruções que são formuladas pelo orientador de jogo
é parte fundamental da formação daquele se propõe a utilizar o sistema de jogos teatrais
como sistema de criação teatral, pois a instrução é princípio metodológico provocador de
avanços na conquista criativa do grupo envolvido em processo de pesquisa de linguagem.
189
Esse ponto me instiga a tecer algumas reflexões sobre a permanência dos Jogos Teatrais em nossos
processos formativos e as razões pelas quais ele é um aliado consolidado na Pedagogia do Teatro que se
realiza em nosso país. Mais do que isso, ele segue sendo uma referência nas bibliografias das disciplinas
fundamentais do teatro-educação e da formação de atores, seja na área de improvisação ou na área de inter-
pretação teatral propriamente dita.
Além da concisão da proposta sistematizada por Spolin, o que já explicitamos aqui anteriormente,
destaco também a ênfase dada pelos jogos aos elementos da linguagem teatral – espaço, personagem e ação.
Isso promove partidas de improvisação na qual os atuadores constroem a realidade cênica a partir de sua
atuação na área de jogo, o que lhes fornece uma consciência do poder da ação mesma de criar realidades
outras na área cênica, a partir do ato de jogar.
Ou seja, parece que é “só” jogar. Mas aprender a jogar é crucial para a formação de um artista
consciente de suas capacidades expressivas, apto a estabelecer parcerias – com os outros jogadores e com
a plateia – e, ao fim e ao cabo, temos que acreditar que um artista consciente de suas aptidões constituirá
certamente um professor melhor.
A noção de jogo como habilidade de processo, desenvolvida ao longo de uma criação cênica, é
mais um dos desdobramentos que podemos atribuir às pesquisas de Ingrid Koudela (2007, 2008), sobretudo
naquelas em que ela explora os vínculos entre a teoria brechtiana e o sistema de Jogos Teatrais elaborados
por Viola Spolin.
Tal conceito é assim exposto por Joaquim Gama (2010: 202), ao relatar o processo que resultou no
espetáculo chamado Chamas na Penugem, com direção de Koudela:
Tal relação entre o processo de direção e a prática formativa dos jogadores, essa simbiose que deve
ocorrer entre as instruções do diretor e o empenho do grupo em resolver os problemas cênicos de forma a
construir um espetáculo, pode ser encarado como uma forma ampliada da própria estrutura de uma “par-
tida” de jogos teatrais.
Assim, a atualidade e permanência do sistema dos Jogos Teatrais acontece pela sua real utilidade,
pela comprovação, na prática dos artistas e dos professores, de que os jogos são uma estrutura potente para
adquirir consciência acerca dos elementos da linguagem teatral de forma interessante e prazerosa. Certa-
mente, eles seguirão assim por outros 40 anos.
190
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
191
/// PARTE 2-
COMUNICAÇÕES
ORAIS
192
A ARTE E O LIXO: DIÁLOGOS E REFLEXÕES
NO CURSO DE FÉRIAS DA ESCOLINHA
DE ARTE DO RECIFE, JANEIRO DE 2018
Veruschka Greenhalgh
UFPE; EAR
Em seus 65 anos de existência, a Escolinha de Arte do Recife – EAR, formou várias gerações de
artistas como Gil Vicente e José Patrício, recebeu diversos alunos em seus espaços, promoveu a inclusão
de pessoas com deficiência e vivenciou momentos de luta e resistência para manter suas atividades em
funcionamento.
A EAR surgiu no Movimento Escolinhas de Arte (MEA), iniciado nos anos 1940, recebendo forte
influência do Movimento Escola Nova, das teorias de Herbert Read (1893-1968) e das ideias sobre o en-
sino da arte de Franz Cizek (1865-1946). Uma das propostas do MEA, de acordo com Silva (2004, apud
Varnieri, 1996), era buscar o rompimento com a excessiva valorização europeia trazendo nova proposta
de arte-educação nacional incluindo a criança no processo educativo.
Ao longo se sua história, a EAR foi marcada pela discussão entre duas concepções de ensino da arte.
Uma defendida por Noemia Varela, que prioriza a livre expressão, e a outra proposta por Ana Mae Barbosa,
que considera a arte como uma área de conhecimento específico.
Situada à Rua do Cupim, 124, no bairro das Graças, a EAR conta com um conjunto arquite-
tônico, que é um chalé com duas fachadas, uma da década de 1920, e outra do início do século XX.
Salvaguarda importantes acervos artísticos, culturais, bibliográficos, imagéticos e documentais. Con-
figurando um importante espaço para pesquisa e laboratório para o ensino das Artes Visuais em Per-
nambuco.
193
Escolinha de Arte do Recife - Acervo da autora
Atualmente a Escolinha de Arte do Recife, matem plenamente suas atividades, apesar das grandes
dificuldades financeiras, o que dificulta a manutenção e conservação de seu acervo ede seu patrimônio his-
tórico e cultural.
Hoje a Escolinha conta com os cursos regulares para crianças a partir de 2 anos de idade, cursos
livres de pintura, desenho e gravura para o público em geral, cursos de férias no período das férias escolares
e oficinas de arte na programação da Feira Nacional de Negócios do Artesanato (feneart).
A Escolinha de Arte do Recife é um espaço dedicado ao ensino das Artes Visuais. Tem fundamental
importância para a sociedade em geral e a comunidade artístico/educativa, por promover em suas ativida-
des a experiência estética do indivíduo, por meio da imersão no universo da arte, a fim de desenvolver a
capacidade crítica, reflexiva, estimular a auto expressão e a criatividade. Além de oferecer um importante
lugar de aprendizado para graduandos de cursos de formação de professores de arte, por ser um espaço de
experiências, vivências, compartilhamentos e reflexões. Um espaço onde a arte e seu ensino são explorados
com liberdade de experimentações. Um laboratório vivo!
O Curso de Férias é uma das atividades da Escolinha de Arte do Recife, que acontece no período
das férias escolares de janeiro e de julho, oferecido a crianças a partir de 2 anos de idade. Os projetos peda-
194
gógicos do curso de férias vem sendo construído em parceria, desde julho de 2012, Com o Departamento
de Métodos e Técnicas de Ensino, do Centro de Educação (DMTR/CE) e com o Departamento de Teoria da
Arte e Expressão Artística, do Centro de Arte e Comunicação (DTAEA/CAC), com o apoio da Pró-reitora
de Extensão (PROEXT) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Associação Nordestina de
Arte/educadores de Pernambuco, núcleo Pernambuco (ANARTEPE).
Os cursos de férias têm como objetivo promover maior aproximação da criança com a arte através
da experiência estética, do contato com artistas e suas obras e da produção artística individual e coletiva. A
estrutura do curso é pensada a partir de um tema principal e de um(a) artista eixo, tudo aliado ao diálogo
interdisciplinar da arte com diferentes áreas de conhecimento. O curso é dividido em módulos e cada um
deles contempla uma temática relacionada ao tema principal e um(a) artista homenageado(a).
Para tanto, a equipe que integra o curso de férias, constrói junto todo o planejamento que vai desde
o projeto pedagógico aos planos de aulas, com as atividades artísticas e recreativas. Sim, recreativas também,
porque acreditamos que as brincadeiras contribuem para o aprendizado. A ludicidade faz parte do universo
da criança e os jogos estimulam a sociabilidade e a interação com o outro. Segundo Luckesi, a ludicidade
“[...], é representada por atividades que propiciam experiência de plenitude e envolvimento por inteiro,
dentro dos padrões flexíveis e saudáveis” (LUCKESI, 2000, p. 97). Portanto, o lúdico, como recurso peda-
gógico, pode estimular a aprendizagem, uma vez que possibilita, através da brincadeira, o desenvolvimento
motor, cognitivo, afetivo e social. Nessa perspectiva, Piaget (1975) defende que a criança ao desenvolver a
ludicidade por meio dos jogos, constrói o conhecimento acerca do mundo físico e social, desde o período
sensório-motor (de 0 a 2 anos de idade) até o período operatório formal (a partir de 12 anos de idade). Ten-
do como base essas afirmações, o planejamento do curso de férias contempla também a brincadeira como
recurso metodológico.
A seguir, apresento o Curso de Férias de janeiro de 2018 com o tema: “Lixo Extraordinário”, refe-
rência a obra de Vik Muniz.
Lixo Extraordinário
195
Escolinha, Everson Melquiadese produzida pelos arte/educadores.Era um espaço repleto de possibilidades
criativas e descobertas, o lugar predileto das crianças de todas as idades. A instalação “Lixão” foi a sensação
do curso de férias de janeiro de 2018.
Ao longo do curso, a criança pode conhecer diversos(as) artistas que possuem em seu processo
criativo, a relação com o “lixo”. Seja ele industrializado (plásticos, vidros, latas, papéis etc,), seja ele natural
(paus, troncos, folhas e sementes caídos numa floresta), mas para o(a) artista, matéria prima repleta de pos-
sibilidades.
O curso foi dividido em 4 módulos. Em cada módulo, um artista eixo homenageado, foram eles: Vik
Muniz, 1º módulo (08 a 11 de janeiro); Zé Bezerra, 2º módulo (15 a 18 de janeiro); Jacaré, 3º módulo (22 a
25 de janeiro) e André Soares (29 de janeiro a 01 de fevereiro).
Vik Muniz (Vicente José de Oliveira Muniz), artista brasileiro cuja produção está voltada para a
questão da sustentabilidade. É conhecido pelo uso de materiais inusitados em suas obras.
José Bezerra, natural de Buíque/PE, produz esculturas com toras retorcidas, típicas da vegetação
do lugar, que ele encontra caída no chão. As figuras surgem da tortuosidade da madeira dando vida aos
seus bichos.
Jacaré (Ermiro Augusto de Souza), artista plástico pernambucano, produz a partir do reaproveita-
mento do lixo como matéria prima para sua produção, o material mais utilizado é a lata.
André Soares, artista plástico pernambucano que transforma o lixo em arte. Idealizador do movi-
mento Catamisto, do projeto Muserola – Museu e Galeria de Arte nas escolas, criador do Dicialeto, Homixo,
entre outros projetos.
Esses artistas tinham obras expostas pela EAR, possibilitando as crianças o contato com as obras, in
loco, dos artistas que conheceram no curso. Assim puderam passar pela experiencia estética da apreciação
da obra de arte, ao mesmo tempo em que experimentaram o processo criativo e a contextualização, através
das temáticas que foram abordadas. Vivenciaram de fato os princípios da abordagem triangular para o ensi-
no da arte proposta por Ana Mae Barbosa, apresentada aqui através da reflexão de Christina Rizzi:
196
Por sua vez, a Abordagem Triangular do Ensino da Arte postula que a construção do co-
nhecimento em arte acontece quando há o cruzamento entre experimentação, codificação
e informação. Considera como sendo seu objeto de conhecimento, a pesquisa e a compre-
ensão das questões que envolvem o modo de interrelacionamento entre arte e público. “É
construtivista, internacionalista, dialogal, multiculturalista e é pós-moderna por tudo isso
e por articular arte como expressão e com cultura na sala de aula.” (RIZZI, 2008, p. 337)
Foram três turmas de crianças a partir de 2 anos de idade, orientadas por uma equipe de Arte/Edu-
cadores qualificados. Turma A: 2 e 3 anos de idade, turma B: 4 a 6 anos de idade e turma C: a partir de 7 anos
de idade. Eu fiquei com a turma C, que a cada semana contava com uma média de 12 crianças. Contei ainda
com a contribuição importante de Sergio Birukoff, estagiário de Artes Visuais da Faculdade Anhanguera
EAD, que teve uma participação significativa durante todo o processo.
Neste artigo trago um recorte do curso de férias, especificamente do terceiro módulo, que teve Ja-
caré como artista homenageado.
A escolha pelo artista Jacaré se deu pela aproximação de seu trabalho com o universo infantil, iden-
tificado pela ludicidade de suas obras, o que possibilitou diálogos entre as obras e o processo criativo das
crianças. Além da participação do artista no encerramento do módulo.
Jacaré simplesmente metamorfoseia tudo o que para muitos é lixo! Lata, arame, tampinha, garrafa e
tudo que pode virar arte, torna-se sonhos no olhar inventivo do menino no coração do artista. Brinca com
as formas, se diverte com as cores, e num toque mágico, como Midas que transforma em ouro tudo o que
toca, Jacaré constrói um universo lúdico repleto de bichos e personagens imaginários. Como o SuperPaz, os
cachorrinhos, a joaninha, o caranguejo, a borboleta, o beija-flor e muitos outros. Para ele, todo o lixo que en-
contra no caminho, já traz em si uma essência, uma alma, que ele apenas materializa em suas criações. Seu
atelier é um paraíso de possibilidades, espaço de imersão, onde o artista, matéria-prima e obras dialogam
em harmonia com o desejo de construir um mundo melhor.
A formação
Poderia iniciar meu relato a partir do primeiro dia do curso, mas prefiro iniciar pela formação. A
formação para o curso de férias envolveu diversas ações como: reuniões periódicas na EAR para a elabo-
ração do projeto pedagógico e planejamentos das aulas e atividades;encontros com os artistas Jacaré, em
seu atelier e André Soares, na Escolinha; visitas aos espaços que tratam da questão da reciclagem como a
Cooperativa de Catadores de Lixo da Torre e o CTR - Central de Tratamento de Resíduos de Igarassu;
visita ao Eco Núcleo Jaqueira, no Parque da Jaqueira, que trata sobre a preservação ambiental. A formação
foi de extrema importância para a equipe de arte/educadores, porque nos familiarizou com o tema do lixo,
proporcionando maior entendimento sobre as questões a ele relacionadas. Nessa concepção, aponta Ferraz e
Fusari, para alguns procedimentos necessários à formação do professor de artes como: “participar de cursos,
buscar informações, discutir, aprofundar reflexões [...]”(FERRAZ e FUSARI, 2010, p. 52).
197
O 3º módulo – Jacaré
A semana iniciou num clima de expectativa, as crianças estavam ansiosas para conhecero artista
Jacaré. Primeiro porque suas obras remetiam ao brinquedo, eram coloridas e alegres. Segundo porque iriam
o conhecer pessoalmente.
Começamos o módulo com uma mediação com as obras de Jacaré expostas na EAR. Assim, as
crianças estabeleceram o primeiro contato com a obra do artista,possibilitando a identificaçãodos seus
elementos formais e conceituais. Nesse momento, dialogamos sobre o artista e sua relação com o lixo e
com o meio ambiente. A partir da sua produção, refletimos sobre a necessidade de repensar o destino que
damos ao lixo e como contribuir para diminuir os seus impactos no meio ambiente. Destaco a importân-
cia do(a) arte/educador(a)/mediador(a) na construção dos saberes em arte. Pois, de acordo com Moura
(2007), o que configura o mediador cultural é uma postura consciente, é o ir além dos conhecimentos
técnicos da arte, é se comprometer a catalisar os saberes e, enfim, contribuir com a formação do outro.
Em outro momento exibi o filme, “Sai da lama Jacaré”170, com direção de Jacaré Lima e Alexandre
Juruena. O filme é encantador e alegre, as crianças gostaram e pediram para repetir diversas vezes. E a cada
exibição apontavam as obras que já conheciam.
A semana foi bem movimentada, possibilitando às crianças diversas experiências criativas como:
produção de brinquedos com materiais recicláveis; jogos com garrafas pet;colares com tampinhas de garra-
fa; pintura livre sobre suporte de papelão para a exposição de finalização da semana; produção de um livro
de artista para presentear o artista; elaboração de perguntas para fazer ao artista; performance “O Mundo de
Lixo” com o estagiário Sergio Birukoff, jogos e brincadeiras; gincana do lixo, que consiste em contabilizar o
lixo trazido de casa para o grande “Lixão”, premiando quem mais trouxe lixo e por fim, o dia da homenagem
ao artista. Todos esses acontecimentos serãoapresentados a seguir através fotografias, pois acredito que as
imagens falam muito mais do que as palavras.
198
Produção de brinquedos – Acervo da autora
199
Performance Mundo de Lixo com Sergio BirukoffPerformance Mundo de Lixo com Sergio Birukoff
Premiação da gincana do lixo – Acervo da autora Bate papo com o artista Jacaré – Acervo da autora
200
Selfie com o artista – Acervo da autora Visita a exposição das crianças – Acervo da autora
Considerações finais
A experiência no Curso de Férias para mim foi marcante. Vivi momentos diversos que passaram
por expectativas, surpresas, medos, estresse, aprendizados, alegrias e decepções. Foram momentos de cres-
cimento profissional e pessoal.
Trabalhar as questões ambientais, tendo como fio condutor a produção de artistas que trazem em
sua produção a relação com o lixo, proporciona maior entendimento do nosso papel no mundo e a necessi-
dade de trilhar caminhos em busca de melhor qualidade de vida. Compreendendo assim, a importância do
uso consciente dos recursos naturais, o reaproveitamento dos resíduos sólidos e o descarte adequado do lixo.
Na perspectiva de uma vida melhor, a arte possibilita a reflexão e um novo olhar para a vida. Na con-
cepção de Ana Mae é através da Arte que o homem “desenvolve a percepção e a imaginação para apreender
a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e
desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada” (BARBOSA, 2009, p.1).
201
Referências
BARBOSA, Ana Mae. Processo civilizatório e recons- MOURA, Lídice Romano de. Arte e educação: uma ex-
trução social através da arte.XII Simpósio Internacional periência de formação de educadores mediadores. São
Processo Civilizador. Civilização e Contemporaneidade. Paulo: Instituto de Artes da Universidade Estadual Pau-
10,11,12 e 13 de novembro de 2009, Recife- PE/ Brasil. lista, 2007 (Dissertação de Mestrado).
Disponível em:
PIAGET. A formação do símbolo na criança. Rio de Ja-
<http://www.uel.br/grupoestudo/processoscivilizadores/ neiro: Zahar Editores, 1975.
portugues/sitesanais/anais12/artigos/pdfs/mesas_redon-
RIZZI, Christina, in BARBOSA, A. M. Ensino de Arte:
das/MR_Barbosa.pdf> Acesso em: mai. 2018.
memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2008.
SILVA, M. Betânia e. A inserção da arte no currículo
FERRAZ, Maria Heloísa C. de T.; FUSARI, Maria F. de escolar (Pernambuco, 1950-1980). Recife: UFPE/CE,
Rezende e. Arte na educação escolar. - 4. Ed. – São Pau- 2004.
lo: Cortez, 2010.
VARNIERI, Maria Lucia Campos. Arte-educação na
LUCKESI, Cipriano. Desenvolvimento dos estados de prática das Escolinhas de Arte.Revista Arte e Educação.
consciência e ludicidade. In: LUCKESI, Cipriano (org.). Porto Alegre, n. 2-3, p. 61-64, jul./dez.,1996.
Ensaios de ludopedagogia. N.1, Salvador UFBA/FACED,
2000.
202
A ARTE AMBIENTAL ENQUANTO
PROPULSORA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL
Ihédilla Humberta Sinésio Cândido da Silva UFPB
Anderson Alves dos Santos UFPB
Introdução
A arte pode ser encontrada facilmente, seja pelo contexto, seja pela imagem ou por meio de outra
tipologia criativa, porém, só a experiência para conseguir interpretá-la significativamente. As produções
artísticas emancipam a humanidade ao tempo em que estetizam a realidade socialmente vivida, isso porque,
“o carácter performático da arte se torna susceptível de produzir uma mudança na maneira da sociedade
ver e imaginar o mundo” (SANTOS & GOMES, 2017).
A arte ambiental insere o homem em uma relação de percepção psicológica do espaço amparada
em uma conscientização acerca das problemáticas socioambientais, e para a compreensão da arte enquanto
intermediadora dessas interações ambientais, faz-se imprescindível considerar a complexidade do ambiente
em seus aspectos sociais, ambientais, políticos, culturais, econômicos e funcionais, sendo necessário obser-
var obras e intenções artísticas para compreender como a arte refletiu e reflete as demandas da natureza e
sociedade em seus respectivos momentos ao modo que atua frente as irresponsabilidades e desafia posturas
mais éticas pelas causas ambientais.
Ao se voltar para um passado recente podem ser observadas propostas artísticas compreendidas
como arte ambiental. Por exemplo, em 1963 no Brasil e mais precisamente no, hoje inexistente, João Sebas-
tião Bar, da cidade de São Paulo, aconteceu um happening onde o artista Wesley Duke Lee expôs pinturas
203
da Série Ligas para uma plateia que, em meio à semi-escuridão e o strip-tease de uma bailarina, se esforçava
com lanternas para poder visualizá-las. Mais tarde, num livro organizado por Costa (1980), Wesley Duke
Lee relata em depoimento sua vivência no bar:
Fiz a exposição no João Sebastião Bar, porque não tinha onde expor, e então ‘cometi’ lá
minhas invenções, coloquei lanternas na entrada e as pessoas vinham, de lanterna, ver
os quadros um por um porque o bar era muito escuro. Veio até choque da polícia, pois a
exposição era erótica e não sei mais o quê (COSTA, 1980, p. 20-21).
Percebe-se que a arte atuou como constituinte das interações em um ambiente que foi campo fértil
para que Lee expusesse suas produções artísticas, que foram altamente criticadas por serem consideradas
pornográficas, quando na verdade, o que perpassou por aquele imaginário de erotismo, memória e identi-
dade volta-se às questões essenciais das relações humanas.
A maneira de como a arte se revela no ambiente acaba por refletir e representar a realidade em que o
mesmo vive, como no fim de 1968, quando o Ato Institucional nº 5 foi decretado e teve, como consequência,
conjunturas políticas severas à liberdade de criação. Considerando que a arte passou por esse momento crítico
de repressão, a X Bienal de São Paulo em 1969 foi realizada em forma de protesto, onde entre outras obras, foi
exposta Ondas Paradas de Probabilidade pela artista Mira Shendel, a arte feita de fios de nylon do teto ao chão
representava delicadamente a visibilidade do invisível, o que validou grande potencial político da obra ambien-
tal. É possível acreditar que a arte será sempre política seja em seu engajamento ou em sua abstenção. Nesse
viés, Andrade (2014) afirma que “o mais sutil gesto artístico contem em si uma posição frente ao mundo, frente
à cultura, frente à arte. O humano impera, pois comove. Somos eminentemente públicos. Somos políticos”.
A dimensão da experimentação ambiental pode ser observada também na obra penetrável desen-
volvida por Lygia Clarck, A Casa é o Corpo (1968) concedeu aos participantes estímulo para o autoconhe-
cimento e a conexão com o ambiente, em relatos é possível identificar a obra como um gigantesco balão de
plástico localizado no centro de uma estrutura com repartições laterais e um labirinto de oito metros de
comprimento “para ser penetrada pelo visitante como abrigo poético” (MILLIET, 1992. p.111).
Mais adiante, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Nelson Leirner expôs Playground
(1969), a obra estimulava o contato com o ambiente, uma vez que consistia em um conjunto de objetos ma-
nipuláveis de várias feições geométricas que permitiam a interação do ser com o entorno.
A fim de impulsionar, também, a autognose com o ambiente, o artista Helio Oiticica criou Éden
(1970), essa obra explorou a sensibilidade dos participantes a cerca da relação entre humano e terra, além de
oportunizar momentos de desalienação. Nessa perspectiva, as “totalidades ambientais” para Oiticica (1986)
seriam criadas e exploradas desde o infinitamente pequeno até o espaço arquitetônico, urbano, etc. Nota-se
que a atuação da arte ambiental além de impulsionar a atividade sensorial do participante, o remete a capa-
cidade de enxergar os desafios e condições ambientais por meio do comportamento exploratório.
204
Contemporaneidade da arte ambiental que sensibiliza
Cardoso ressalta que são muitas as indagações sobre a maneira de como o homem consome, pro-
duz e vive. “A cultura de consumo transformou-se em uma das principais referências de legitimidade de
comportamentos e valores, constituindo- se em um dos eixos centrais do mundo globalizado” (CARDOSO,
2010). Com a globalização desenfreada, muitas exigências sociais passaram a ser despercebidas. Conside-
rando que a arte também segue atuando frente tais negligências e injustiças socioambientais, o fotógrafo
Alejandro Duran provoca em suas fotografias o despertar para a redução de consumo e fomenta a educação
ambiental, apropria-se de materiais descartados para reorganizar e os transpõe da vida para imagem, con-
vertendo a matéria-prima antes ignorada em obra de visibilidade por excelência. “A obra funciona como um
gatilho que dispara uma reação em nível psíquico. Quando o disparo acerta o alvo do sentimento, podemos
ter certeza de que o conteúdo expressional da obra foi absorvido pelo espectador” (COSTELLA, 2010).
Esse ativismo ambiental na arte contemporânea é evidenciado também nas produções artísticas de
Frans Krajcberg, as esculturas desse grande artista, e militante ecológico, são caracterizadas pelo uso de ma-
teriais carbonizados recolhidos de queimadas e desmatamentos com o propósito de denunciar ações antró-
picas que devastam a natureza, “suas esculturas marcantes e sempre empregadas em prol do meio ambiente
revelam uma luta solitária pela conservação do que ainda existe” (CARDOSO, 2010).
O concurso de esculturas foi uma das mobilizações que se somou ao movimento que
sugeriu a retomada da cidade pelo cidadão. O manifesto sugeriu que qualquer pessoa
revelasse artisticamente exemplos de esculturas para serem expostas à frente dos prédios
que serão construídos pelo projeto Novo Recife. Assim, a perspectiva de se posicionar
diante da produção do espaço urbano, demarca o potencial mobilizador da arte para fazer
pensar sobre qual o ambiente que se espera desenvolver no âmbito da cidade (SANTOS
& GOMES, 2017).
As propostas artísticas, de cunho crítico, selecionadas pelo edital que questionava o Projeto Novo
Recife estariam equipadas para sensibilizara sociedade e representar a realidade dos problemas contempo-
râneos de forma estética. É validada a capacidade que os artistas têm, “de redefinir as significações da rea-
lidade, romper fronteiras, sair dos quadros institucionais e pensar de maneira lateral” (CARDOSO, 2010).
Cabem aqui compartilhar outros dois modos de intervir por meio da arte. A experiência de Araújo
(2017) enquanto professor que mediou seus alunos de ensino fundamental para a experiência em arte pelo
contato com conteúdos de museus, tanto em plataforma virtual como presencialmente, demonstrou a im-
portância da recepção dos estudantes para com a arte ambiental, uma vez que essa enriquece a formação do
ser enquanto mero indivíduo para a compreensão de sua cultura e socioafetividade com o ambiente, por
isso, “fazer a mediação entre o público e a obra é ensinar arte” (IAVELBERG, 2003, p. 77).
Compreendendo que “o chocante contraste entre a opulência burguesa e a crua indigência do pro-
letariado no espaço da cidade expõe uma vida social marcada pela indiferença e pelo isolamento” (REIS,
205
2015), outra vivência salutar aconteceu em uma pesquisa de iniciação científica que tinha a rua como palco,
na cidade de Santos, onde as oficinas de teatro foram desenvolvidas com pessoas em situação de rua a fim
de produzir visibilidade àquelas pessoas que viviam em um ambiente pouco sensível a elas. Na pretensão de
abarcar a pluralidade da vida em sociedade, “a arte feita pelas pessoas em situação de rua, uma vez levada ao
palco, à universidade, e principalmente às ruas e praças, opera como resistência ao progressivo desinvesti-
mento no espaço público” (DELFIN, ALMEIDA & IMBRIZI, 2017).
Considerações Finais
A conexão entre Arte e Educação Ambiental está ligada com as viabilidades de reconstrução de uma
nova concepção de sociedade e natureza, essa articulação em todos os níveis e modalidades do processo
educativo promove a consciência ambiental e justiça social. As apropriações da arte ambiental citadas no
decurso do texto revelam o engajamento da militância ecológica. Parece evidente que a arte ambiental é a
resistência frente às irresponsabilidades, por isso, ao longo das últimas décadas, as mais diversas tipologias
de manifestações ambientais objetivaram sensibilizar a sociedade com a pretensão de influenciar posturas
mais éticas perante a complexidade dos enfrentamentos ambientais.
O papel ativista da arte contemporânea desencadeia uma gama de possibilidades para a educação
e ativismo ambiental, sendo esse um vínculo fundamental para aproximação de desafios socioambientais
referentes a poluição, degradação ambiental, redução de consumo, políticas de conservação da natureza,
promoção de culturas, entre outros. Destacou-se aqui, propostas e vivências artísticas que potencializaram
o sentido ecológico da arte que educa e regenera enquanto constitui a interação homem e habitat.
Referências Bibliográficas
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arte política no Brasil na década de 1960. UnB: VIS, 2014. ria da arte como história da cidade. São Paulo: Martins
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riência em arte/educação no Museu Universitário de Arte BATISTA JR., J., 2011. Obras de Frans Krajcberg vão para
- MUnA. Educ. Pesqui. [online]. 2018, vol.44, e174612. o Parque do Carmo: decisão sobre local onde ficarão
esculturas, recusadas pelo Ibirapuera, coloca fim ao
impasse. Veja São Paulo, São Paulo. 28. jan. 2011.
206
POÉTICAS DO FAZER ARTÍSTICO
DE TRÊS UNIVERSOS DOCENTES
A PARTIR DA ABORDAGEM TRIANGULAR
Monica Rodrigues de Farias
1. INTRODUÇÃO
A questão da imagem no ensino da Arte é tema constante para os professores e estudiosos interessa-
dos na alfabetização visual. Pioneiramente no Brasil, a pesquisadora Ana Mae Barbosa iniciou as discussões
na década de 80, escrevendo o livro “A Imagem no Ensino da Arte” na década de 90. Sistematizou a Metodo-
logia Triangular, priorizando a História da Arte, a Leitura da Obra de Arte e o Fazer Artístico. É feita uma
revisão pela própria pesquisadora em “Tópicos Utópicos” (1998), passando o termo para Abordagem Trian-
gular, assim como a mudança do uso limitado da produção das artes visuais canonizada pela História da
Arte para um campo imagético de inclusão a toda e qualquer imagem para leitura visual. Sobre a mudança
do termo diz Bredariolli (2010, p. 36): “[...] justifica a impropriedade do termo “metodologia” pela sugestão
de caminho estrito, previamente definido. Para Ana Mae Barbosa, a metodologia deve ser fruto da interação
do professor com seu aluno, conteúdo e meio [...]”. A triangulação também já se apresenta em outras confi-
gurações como diz Lampert (2010, p. 444):
207
Dentro dos relatos que se apresentarão, as abordagens partem de metodologias pessoais de cada au-
tora, pertinente às suas necessidades particulares com seu alunado e contexto. Quanto ao ponto de partida,
o universo a ser analisado com maior acuidade será o fazer artístico desses alunos. Já o motivo, é de ser o
“fazer artístico” sempre um tema polêmico nas práticas de arte educação, visto que muitas confusões a partir
de interpretações por vezes errôneas, conforme afirmativa de Barbosa (2010. p. 10): “Foram muitas as dis-
torções da Abordagem Triangular, algumas mal-intencionadas com o propósito de destruir, apresentando-a
como releitura e a releitura como cópia [...].” Ana Amália Barbosa (2005) também faz referência ao tema
releitura, em artigo ‘Releitura, citação, apropriação ou o quê?’, onde investigou em pesquisas com professores
que afirmavam ter saído da abordagem triangular o termo “releitura”. Ana Amália descobre, após ler e reler
o livro ‘A Imagem no Ensino da Arte’, que o termo aparecia nas legendas dos desenhos das crianças. Con-
tudo, o problema não é a releitura em si (apesar da carga pejorativa às vezes agregada como cópia), como
Ana Amália Barbosa (2005, p. 144) mesma diz: “[...] são professores que trabalham a releitura como cópia”.
E ainda sobre releitura coloca: “O que quer dizer releitura? Reler, ler novamente, dar novo significado, rein-
terpretar, pensar mais uma vez.” (BARBOSA, 2005, p. 145). Nessa perspectiva propositiva e criadora, que
o trabalho do fazer artístico, da criação a partir da apropriação ou citação é “[...] muito próprio de nossa
contemporaneidade pós-moderna”. (BARBOSA, 2005, p. 145). Sobre o mesmo tema diz Rizzi (2008, p. 69):
“[...] na releitura há transformação, interpretação e criação com base em um referencial: o texto visual que
pode estar explícito ou implícito no trabalho final do aluno.”
Os equívocos interpretativos do fazer artístico afetaram, de certa forma, a realização das práticas edu-
cativas de alguns professores de Arte, que, por conta disso, expressaram a desculpa de que ‘releitura é cópia’,
‘releitura é chata’, ‘releitura é uma prática pobre’ e outras afirmativas do nível. Tais fatos só encobrem a falta de
compreensão de professores sobre a importância das inúmeras possibilidades de criação artística que os alunos
são capazes de trazer à tona, oriundos de aprendizagens prévias dos saberes artísticos e de contextualizações
pautadas nas ‘realidades’ do espaço-tempo vigentes e de suas subjetividades, prenhe de significados. O tecni-
cismo ou a livre-expressão são práticas em total desacordo com as práticas contemporâneas de ensino de Arte.
Pensando nesse sentido, as práticas a seguir partem da necessidade de interpretar a realidade, a partir
de estudos sobre arte e o seu fazer artístico, de três universos diferentes: o olhar sobre questões de pertenci-
mento e identidade, tema proposto pela professora Andréa Frazão com alunos do ensino fundamental – séries
iniciais; a cultura popular e o sagrado através da festa do Divino Espírito Santo de São Luís do Maranhão com
alunos do ensino fundamental - séries finais, com a professora Adriana Tobias; e, por fim, estudos de releituras
usando Tecnologias da Informação e Comunicação - TICs a partir de temas usuais do conteúdo programáti-
co de Arte do Ensino Médio contextualizados com questões pertinentes do universo dos adolescentes com a
professora Monica Rodrigues. Em sintonia, todas as três educadoras trazem um resultado comum de imagens
resultantes de suas proposições e abordagens teórico/metodológicas, que resultaram nesse acervo imagético a
ser compartilhado, para realização de novas leituras, no ziguezaguear infinito do ler/fazer e contextualizar arte.
171. A escolha do nome foi em virtude do direcionamento da proposta voltada para as crianças. O termo Erê provém do Yorubá “iré” que significa
criança ou ‘brincadeira e divertimento’.
208
da autoimagem com a produção de desenhos e fotografias. E a artista visual de referência nesse estudo, no
campo da arte contemporânea produzida por afrodescendentes foi Angélica Dass.
Essa experiência visou discutir arte afrodescendente contemporânea a partir do olhar das crianças,
aflorando: o conhecedor, fruidor e produtor. A proposta aplicada se baseia no fomento da criança erêzar-se172
na compreensão das diferenças, da identidade e no autoconhecimento, enfim, a conscientização da impor-
tância de valorização da diversidade étnico-racial. Partiu-se da abordagem triangular para balizar os passos
de execução da proposta: conhecimento-contextualização, produção-releitura e contextualização e fruição-
-apreciação.
172. Erêzar-se se coloca como processo de concretização da criança sobre as diferenças, o ato de conscientizar-se.
173. Pantone Inc. é uma empresa sediada em Carlstadt, Estado de Nova Jérsei, Estados Unidos. É mundialmente conhecida por seu sistema de cores,
largamente utilizado na indústria gráfica.
174. Lápis cor. Canal futura. Larissa Santos. 2014.
209
Figura 3 – Etapas de criação dos autorretratos e intervenção na sala de aula
Na etapa final sugeriu-se a intervenção no espaço da sala de aula com os autorretratos, e optou-se
em propor às crianças o uso dos azulejos das paredes da turma como suporte para a intervenção. Os autor-
retratos foram feitos em papel de 10 cm x10 cm e colados nos azulejos formando um painel. Após o processo
sensibilização da autoimagem com os desenhos, partiu-se para a sessão de autorretratos - selfies175 tiradas
com uso do celular. O próximo passo foi a impressão no formato 10 cm x10cm e a atividade de recolorir
essas fotos. Ao produzir os desenhos e selfs as crianças articulam releituras com conexões entre a visualida-
de e a representatividade da artista. Então, podemos extrair das interpretações dos alunos, as vinculações
imagéticas e a possibilidade de se aprender em arte a diversidade e as diferenças176. Tourinho (2009, p. 278)
nos diz que “A representação por uma forma dada institui um campo de referências visuais que dialogam
com subjetividades realçando, por meio das temáticas mais frequentes, marcas identitárias que dão sentido
à vida cotidiana dos alunos”.
As referências visuais, como versa a autora, no que tange à representatividade do artista afro-
descendente, podem gerar novos diálogos com as subjetividades das crianças criando links e canais para a
(re) construções identitárias. A proposta Erêzando traz ao público do ensino fundamental - séries iniciais o
entendimento das diferenças relacionadas às origens étnicas e a cor da pele com a exploração e experimen-
tação da autoimagem no desenvolvimento de leituras e releituras a partir das artes visuais afrodescendentes
contemporâneas.
175. Selfies são autorretratos fotográficos realizados com smartphones equipados com câmera frontal (SANTOS, 2016, p. 1).
176. Desta forma: “Discutir as diferenças, identidades e representações individuais e de grupo ressalta a importância de práticas interpretativas que
comtemplem a diversidade e riqueza da visualidade contemporânea.” (TOURINHO, 2009, p. 281).
210
3. A CULTURA POPULAR E O SAGRADO
NA “FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO”
Na festa do Divino Espírito Santo, tema de estudo desse projeto desenvolvido com os alunos do
Ensino fundamental – séries finais teve como ponto de contato estético. Tal festa, no campo da visualidade,
com os interiores das casas, que são adornadas com peças de caráter escultórico e outros elementos decora-
tivos, por vezes montados seguindo lógicas de simetrias e utilização de cores como elementos simbólicos.
Em muitos casos, esses elementos são inspirados em adornos internos e externos das igrejas, especialmente
as do estilo barroco. Nesse projeto, em específico, trabalhou-se com a abordagem triangular a partir das
temáticas da cultura popular e objetivou-se, com isso, alcançar o universo do aluno por meio de suas práti-
cas culturais, com ênfase na multiculturalidade. Durante os estudos, a temática voltada para a intolerância
religiosa também foi trabalhada e fonte de vários debates em sala de aula.
Incentivar trabalhos voltados para a valorização cultural e o diálogo com a riqueza/diversidade das
contribuições familiares e das comunidades se faz necessário, pois o ensino da Arte não pode estar exclusi-
vamente direcionado para a cultura das elites, evitando-se assim, nos prendermos a uma visão elitista que
rotula as artes.
No processo para execução do projeto, foram utilizadas fotografias e audiovisuais para apresentar-
mos a Festa do Divino Espírito Santo em São Luís do Maranhão177 aos alunos.
A pretensão de aliar essa temática da Festa do Divino a cultura do outro, buscando também o enfoque
na Arte contemporânea – Street Art – foi inspiração para as construções artísticas realizadas pelos alunos, uma
forma de atrair estes, para algo que assim como essa festa, está tão próximo de seu universo - a arte de rua.
177. Muitos dos alunos têm certa proximidade com tal manifestação, pois uma das festas pesquisadas acontece no bairro da Alemanha, onde a
escola UEB Luís Viana está localizada e onde a maior parte dos nossos alunos mora.
211
Figura 6 - Instalação de Yoko Ono: Árvore os Figura 7 – Apresentação de seminário sobre a
Pedidos para o mundo, 2011. Site Atelier. Festa do Divino.
Estudos sobre Benke (2015) sobre os conceitos da Street Art, além de análises dos trabalhos de
Bansk e ainda em Yoko Ono foram feitos, para que os alunos entendessem que a arte de ruas está presente
pelo mundo afora, assim como na cidade em que eles vivem. Dessa forma, a obra ‘Árvore dos Pedidos para
o mundo’ de Yoko Ono (Figura 6) foi o ponto de contato motivacional. Para levar também uma mensagem
para o mundo (como na obra original), bilhetes foram feitos pelos alunos num trabalho coletivo de recriação
artística em formato de um ícone simbólico da Festa – o pombo – que, no Cristianismo, é a representação
do Espírito Santo, e que possui vários significados em várias culturas, dentre eles, a representação da paz.
Desta forma, foi decidido realizar uma instalação artística no corredor da escola onde se colocaria
vários recortes em formato de pombo, com frases sobre respeito à cultura do outro, paz, esperança (Fi-
gura 7). Dessa forma, foi preenchida parte da grade da quadra com esses móbiles em formato do pombo.
Enceraram-se as atividades do projeto com uma oficina sobre Respeito às diversidades e concluiu-se assim,
os estágios do projeto, com a montagem da instalação artística (Figura 9).
No âmbito das obrigações curriculares do ensino de Artes Visuais no Ensino Médio, a necessidade
de empreender a prática docente coerente com os conteúdos de base vão desde o conhecimento do alfabeto
visual - elementos formais da linguagem visual, a sua história (da pré-história à contemporaneidade local,
212
Brasil e mundo), a cultura visual, os temas transversais (sexualidade, meio ambiente, política, etc.), o conta-
to com a arte in loco em museus e galerias físicas e a céu aberto, o exercício de leitura visual, fruição estética
e a experiência do fazer artístico. De todos esses itens citados, o mais prazeroso e difícil de realizar é o fazer
artístico pelos alunos do Ensino Médio. Difícil, por causa da falta de empatia nessa faixa etária por alguns
para realização de atividades artísticas práticas, em que há resistências. Prazeroso, pelos resultados dos tra-
balhos quando realmente os alunos se envolvem e se propõem a realizá-los.
É necessário que o educador tenha muita “paciência pedagógica”, como dizia Paulo Freire (2011),
pois são inúmeros os fatores impeditivos do fazer artístico nessa etapa da Educação básica: desde se senti-
rem muito “adultos” e considerar o fazer artístico coisa para crianças, a falta de segurança, vergonha, falta
de experiência ou experiências anteriores frustrantes, acreditar que precisa é de conteúdo para passar no
vestibular e, por fim, a falta de estrutura física da escola, que não é pensada para espaços de criação artística
em artes visuais, como uma sala ateliê ambientada. Contudo, quando o educador é firme e consciente em
seus propósitos educacionais, procura sempre o caminho do convencimento pelo diálogo, e mesmo que não
alcance a totalidade de participação de seus alunos (o que é fato), alcança resultados surpreendentes, como
pondera-se ver em alguns exemplos de trabalhos artísticos dos alunos do 2º e 3º ano do E. M. do C. E. Do-
mingos Vieira Filho, escola pública do Estado do Maranhão.
5. AS MADONAS
Trabalhos executados, após estudos sobre a figura humana no Renascimento Italiano em compara-
ção a Arte Bizantina, foram um tema proposto pela atividade de leitura de imagem “Visões sobre o corpo”
(FRENDA, p. 178). A orientação dada aos alunos era de utilizar os recursos oferecidos pelo celular (fotogra-
fia e aplicativos de manipulação da imagem181), e contextualizar essas madonas com o tempo presente, com
questões que desejassem abordar.
179. O livro de Arte é integrado com as quatro linguagens (Artes Visuais, Dança, Teatro e Música) de forma superficial, não abrangendo, obviamente, o
conteúdo programático dos três anos do Ensino Médio. Mas já é um avanço o livro ser disponibilizado para a escola pública, realidade recente.
180. BlogArte: Endereço virtual: https://domingosvieirafilhoprofessoradearte.blogspot.com.br/.
181. Apps Sketch Guru, Prisma, PicsArt, etc.
213
Figura 11 – Releituras dos alunos.
Nas releituras acima, os alunos tocam em temáticas como as drogas, a gravidez na adolescência e a
pobreza.
6. PERSPECTIVAS DO COTIDIANO
Partindo também de estudos sobre o Renascimento, mais especificamente sobre o uso da técnica da
perspectiva por Filippo Brunelleschi (FRENDA, 2013, p. 137), a proposta lançada foi sair em busca de cenas
próximas das residências dos alunos, em que observassem a perspectiva linear e fizessem o registro com uso
do celular, para depois, fazerem a manipulação da imagem por aplicativos, transformando-as em desenho
ou pintura digital.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização do fazer artístico como processo natural das práticas de leitura de imagem é um dos
diferenciais dessa área de conhecimento e a essência de várias práticas metodológicas. Assim, após tendên-
cias que foram de pontos equidistantes do tecnicismo ao laissez-faire182, muitos equívocos foram feitos em
nome da releitura e, infelizmente, apesar de muitos estudos esclarecedores já publicados sobre o tema, ainda
existem educadores que executam a cópia como modelo de fazer artístico pelos alunos.
214
As temáticas que fomentaram os fazeres artísticos dos alunos aqui apresentados, foram oriundas de
objetivos educacionais que buscaram promover: a valorização das identidades, da cultura popular, o respei-
to a diversidade religiosa, a aplicação de conteúdos curriculares contextualizados as realidades juvenis - suas
questões latentes ou manifestas.
REFERÊNCIAS
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FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o Sincretis- 2009.
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VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas
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cessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
215
COMO IR A NOVA YORK, HAVAÍ E ALPES
SEM SAIR DE BELO HORIZONTE UMA
EXPEDIÇÃO ETNOGRÁFICA COM ARTISTAS183
José Marcio Barros
Durante três meses nos reunimos semanalmente para debater, por meio de autores como Garcia
Canclini, Teixeira Coelho, Baumann, Giddens, Mauss, Geertz, a cultura na contemporaneidade. Definimos
uma moldura conceitual que atravessava todas as referências selecionadas: entender a atualidade como in-
conclusão, sobreposições, ressignificações e contaminações entre o projeto de modernidade e a contempo-
raneidade.
Nossa opção foi a de superar o sedentarismo da discussão teórica atada aos espaços da instituição
acadêmica e buscar a experiência sensível tensionada pelo trabalho de campo.
A proposta produziu aquilo que se esperava em um grupo de artistas: a alegria de ir a campo para
alimentar uma reflexão acionada pela subjetividade e o estranhamento relacionado ao “desconforto” do
desconhecido.
183. Texto submetido ao VI Congresso Internacional Sesc de Arte/Educação – Utopias Pedagógicas em Artes como gesto de (re) Existência. Uma
versão deste trabalho foi apresentada no GT Práticas de ‘ethnography-based art’: horizontes futuros do trabalho de campo, realizada no VI Congres-
so da Associação Portuguesa De Antropologia, realizado entre 1 a 4 de Junho de 2016 em Coimbra (Portugal)
184. Para conhecimento da matriz curricular do Mestrado em Artes da UEMG consultar http://ppgartes.uemg.br/
216
Aqui apresento um pequeno texto resultado do mosaico de perspectivas, relatos e resultados, a par-
tir da experiência vivida e comunicada por cada um dos participantes no blog organizado pelos próprios.
O objetivo foi o de vivenciar a potência reflexiva que as perspectivas teóricas, quando acionadas
pela condição de sujeitos sensíveis de seus operadores, pode oferecer.
Tudo começa a partir de uma opção: tratar a relação entre modernidade e contemporaneidade de
forma mais sensível que conceitual: a contemporaneidade não pode ser entendida como oposição à moderni-
dade, mas sim como uma certa “sensibilidade e produção cultural da modernidade”. Ambas como tipologias
ideais, que se referem a processos históricos de rupturas epistemológicas, estéticas, culturais e descontinui-
dades históricas, simultaneamente comuns e singulares.
Experimentar aquilo que chamamos de contemporaneidade como um novo regime sensorial, re-
quisita ao olhar a capacidade de captar o processo de mudança como processo hibrido que gera permanên-
cias e impermanências. Um fluxo contínuo de informações e mudanças, uma invasão tecno-comunicacional
no cotidiano, que também gera outras capacidades criativas capazes de responder à complexidade, poten-
cialmente mais abertas à diversidade e à simultaneidade.
Aqui, o espaço urbano se apresenta ao artista, como um intrincado sistema de comunicação que re-
flete e singulariza diferentes e divergentes sistemas de classificação, representação e comunicação, que se
sobrepõem espaço temporalmente. A cidade como uma série de textos, imagens, sonoridades – paisagens
urbanas - que se sobrepõem e que criam narrativas com lógicas não discursivas e nada lineares. A cidade
como cidades, sobreposição de referencialidades; fronteiras, espaços de circulação, suportes e corredores
semânticos de sociabilidades diversas.
217
A utopia modernista acreditava poder resolver os antagonismos da metrópole através da reordena-
ção do espaço habitado, ancorado no princípio do modelo único com validade permanente e internacional.
A cidade contemporânea explode com essa utopia e se apresenta como uma cidade obscena, uma cidade que
obsta a cena. Não mais ordenada pelos projetos geometrizantes da modernidade, agora como um palimp-
sesto imagético.
Ponto 3: Expedições...
Como vimos, o que singulariza a relação entre modernidade e contemporaneidade são as ten-
sões entre continuidade e ruptura, suas inconclusões e a constituição de um tempo/espaço marcado
pela sobreposição. Daí o porque de explorar a cidade por meio de uma expedição sensível, etnografi-
camente assumida. Tratava-se de uma experiência singular de compreensão. Aqui expedição assumia
um duplo sentido: como ato ou efeito de expedir-se sobre a cidade; e também como excursão, desloca-
mento, viagem.
Mas não se tratava de apenas ver a cidade, mas olha-la (regarder). Ainda que ver consista em re-
ceber imagens, olhar supõe “estar em guarda”, prestar atenção, interessar-se. Expedição ativada pelo olhar
etnográfico que institui uma postura e não somente uma técnica. Postura interacionista - situacionista
que responde ao princípio de que o real não se encontra pré-definido. Acessamos situações de realidade
onde os próprios atores que definem a situação na qual se encontram, ao fazerem-na, estão a construí-la.
(BOUVARD, 1999)
Considerações finais....
Convida-los ao campo, significou uma oportunidade para experimentarem aquilo que CHIARA (2015)
chama de relação pecaminosa entre antropologia e arte:
218
Ou, se quiserem, sob outra matriz conceitual, experenciar aquilo que BOSI (1992) chamou do caminho
ao conhecimento:
Mas só merece de nós um esforço aquilo que amamos. Chegando ao fim deste exercício,
vamos voltar ao princípio. Tudo começa numa afinidade, numa simpatia do sujeito da
percepção e da ação pelo seu objeto. Para alcançar esse alto grau de tomada de consciência
da vida em si, há um momento de recusa do que foi estabelecido sem a nossa aquiescên-
cia e experiência. Isto se dá sempre que nós queremos habitar plenamente as coisas do
mundo. Se há no cientista um momento de astúcia, de desconfiança e luta, ele é motivado
por uma percepção aventurosa em busca do conhecimento. ... Mas essa atitude não é uma
técnica, é uma conversão. (Bosi, 1992,p.118)
E assim foi feito. Cada aluno/artista construiu sua expedição por meio de escolhas simultaneamente
metafóricas e espaciais.
Um lugar desconhecido, distante e com o mesmo referente de algo ali inexistente, produzindo uma
tensão semântica.
O resultado, heterogêneo como a condição dos sujeitos e operadores de suas expedições também o é,
constituiu um micro blog http://expedicoesnacidade.tumblr.com/.
Os artistas/expedicionários e seus respectivos relatos ali podem ser encontrados, como narrativas
próprias de um enfrentamento conceitual, metodológico e sensível. São eles:
A experiência, entendida como aquilo que fazemos com o que vivemos, apontou para possibilidades
outras que se encaminha: agora a autoetnografia como método para uma outra expedição de imersão no
próprio sujeito.
219
Referências
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220
POSSIBILIDADES DA PESQUISA
NARRATIVA NO ESPAÇO ESCOLAR
Noeli Moreira - UDESC
Introdução
Organizar o mundo, investigar e selecionar fatos importantes da nossa realidade foram objetivos
percorridos ao longo da existência humana. Nosso desenvolvimento foi ocorrendo conforme o contato com
a realidade de nosso entorno. Por meio das percepções e interpretações, a realidade foi sendo mapeada e de-
codificada. Dar significado ao que acontecia, atribuindo valor, foi essencial para a formação da linguagem.
Duarte Junior (1988, p. 50) afirma que “A linguagem organiza o mundo percebido numa estrutura significa-
tiva, onde a ação pode ser orientada de maneira eficaz”. Desenvolvemos o nosso corpo físico e psíquico por
meio dos nossos sentidos, nos conectando entre o fora e o dentro, ligando as informações do que era real,
imaginável e criado, desenvolvendo nossa compreensão dos processos entre o ser, o fazer, as necessidades,
a interação, a comunicação e as formas de linguagem, as relações entre as mais diversas realidades da nossa
existência, ao longo de muitos anos. Todas as experiências que foram sentidas, tanto fisicamente como in-
telectualmente, nos levam à constatação de que foram fundamentais para a construção do que somos hoje.
(BUORO, 1998; DUARTE JUNIOR, 1988).
Construímos histórias por meio das mais diversas linguagens, de forma que a relação entre o que
foi vivido, refletido e reproduzido repercute na construção de como compreendemos o mundo e o humano
ao longo da história. Essa construção é cultural; para Duarte Junior (1988, p.50) “homem e cultura estão
indissoluvelmente ligados”, formam-se conjuntamente, refletindo o meio onde vive, a sua adaptação e sua
transformação. A capacidade de criar e desenvolver mecanismos para nossa sobrevivência, foi sendo ima-
ginada, elaborada e produzida continuamente, e hoje olhamos para tudo isso, passado, presente e ainda
vislumbramos o futuro, não como uma hipótese apenas, mas com a certeza de que estamos na trajetória de
construção permanente da nossa humanidade.
As experiências construídas a partir da linguagem oral e visual foram o alicerce para tentarmos
compreender o que fomos e o que somos. As imagens nos acompanham pelo espaço-tempo. Elas foram e
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são produzidas pela nossa vocação natural de perceber e de imaginar. Joly (1996) analisa o uso da imagem
ao longo do tempo, lembrando-nos da origem, desde a pré-história, quando o homem deixou registrados
seus vestígios em vários lugares do mundo através de desenhos. A autora destaca que:
[...] essas figuras representam os primeiros meios de comunicação humana. São consi-
deradas imagens porque imitam, esquematizando visualmente, as pessoas e os objetos
do mundo real. Acredita-se que essas primeiras imagens também se relacionavam com
a magia e a religião (JOLY, 1996, p. 18).
Essas imagens nos mostram que o pensamento sobre o meio vivido e as ações desencadeadas estão
presentes e possibilitam um movimento de construção da vida. As imagens fazem parte integral do pensa-
mento; precisamos de imagens, pensamos sobre elas, imaginamos e as produzimos para identificar quem
somos e qual o mundo a que pertencemos. (DUARTE JUNIOR, 1988).
Quando nascemos, observamos, por meio de todas as nossas percepções, tudo a nossa volta. Mi-
tchell (1995, p. 243) exemplifica a possibilidade dessa primeira imagem, como sendo o rosto da mãe: “o
encontro face a face, a disposição evidentemente, para reconhecer os olhos de outro organismo”. É na ob-
servação que aprendemos a pensar, a agir e a compartilhar todas as sensações do nosso meio, por meio das
outras pessoas, das ideias, da imaginação, do entorno e da criação.
Procuramos entender a natureza e seus fenômenos e como isso afeta a experiência de vida. Em
nossa memória todas as experiências ficam gravadas, assim, podemos usá-las como meio para entender os
acontecimentos, assim como para transformá-los. As imagens constituem-se em um universo de significa-
dos, construídos através de símbolos, ressoando no planejamento, na organização e na ação, dando um sen-
tido para a existência, associando a vida ao restante do mundo. Além disso, torna o homem um ser social,
que se compreende como indivíduo na coletividade, desenvolvendo a capacidade de transformar seus pen-
samentos em imagens, compartilhando-as com todos, criando uma rede de interpretações e reformulações
de suas reflexões, num exercício contínuo de construção da identidade (MARTINS; TOURINHO, 2009).
O uso das imagens pelo ser humano é fruto das reflexões sobre o olhar, sobre o sentido, a percepção,
a transformação e a interpretação da imagem, vista e produzida várias vezes e de distintas maneiras. Joly
(1996) explica que:
É por meio das reflexões que a imagem constrói ao mesmo tempo que transforma o conhecimento
de quem somos, de onde viemos e para onde estamos indo, o que nos auxilia a pensar sobre conceitos de-
finidos e que seguem sendo desenvolvidos, alterados e redefinidos para a compreensão da nossa realidade,
e da nossa experiência na construção humana e da identidade. Para Duarte Junior (1988, p. 85), “todo
conhecimento reporta-se à experiência; não podemos conceber coisa alguma que não tenha relação com a
nossa experiência”. É nesse movimento de construção do conhecimento, a partir das experiências vividas,
que as ações de reflexão, interpretação, ação, imaginação, criação, visualidades e transmissão da oralidade se
complementam e se incorporam numa perspectiva narrativa sobre o conhecimento da humanidade (JOLY,
1996; BARBOSA 2012).
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Imagens e narrativas: possibilidades educativas
A narrativa, como objeto de estudo, investiga a identidade dos narradores, sobretudo as suas ex-
periências e seus desdobramentos. No final do século XX, ampliaram-se os debates, ganhando espaço em
inúmeras discussões:
As diferentes disciplinas e seus respectivos estudos buscam explicar a narrativa do ponto de vista
cultural, social e visual, seus caminhos e os conceitos subjetivos construídos conforme a compreensão e
interpretação dos indivíduos e de sua época.
As narrativas orais e visuais sempre fizeram parte da construção das relações humanas; o que vem se
modificando ao longo do tempo é o seu acesso por meio dos avanços tecnológicos, em que imagens, vídeos
e produções visuais, com os mais diversos fins como: memória, decoração, marketing, propaganda, consu-
mo, entretenimento, tem alcançado um número maior de pessoas. Essa experiência nos traz uma forma de
observação mais rápida. Testemunhamos as outras culturas, mesmo estando muito longe delas. Entretanto,
no que se refere a interpretação e a narração daquilo que se ouve ou se vê, como a contemplação, a fruição,
as análises, os questionamentos, a criticidade e possíveis reformulações, dependem de quem observa, sendo
que acontecem da mesma forma ao longo do tempo, e tanto são individuais como coletivas, reverberando
de forma particular em todas as pessoas.
Para que haja narrativas, existem narradores e momentos por eles vivenciados, onde aparecem
questões tanto ontológicas como epistemológicas sobre a cultura e seus protagonistas.
Investigar a vida, por meio das narrativas próprias e das de outras pessoas, surge como base para as
possibilidades de reconstrução e de transformação do mundo e de suas relações. Por meio dela é possível
explicar a subjetividade dos indivíduos, seu entorno cultural e social, dando sentido às experiências. Nesse
contexto, a pesquisa narrativa, como ampliação de conhecimento, oportuniza a compreensão das múlti-
plas maneiras de interpretação. Assim, é vista como um caminho de investigação, e é associada ao campo
educacional, pois possibilita a professores e alunos, de quaisquer níveis de ensino e áreas do conhecimento,
debater importantes aspectos da dimensão das visualidades. A narrativa é uma forma de caracterizar os fe-
nômenos da natureza humana, como explicam Connely e Clandinin (1995 p. 11), reforçando a ideia do uso
da narrativa como experiência educativa das realidades humanas.
Tanto professores como alunos podem transitar entre os possíveis caminhos da pesquisa narrativa
como contadores de histórias e seus personagens, de tal maneira que existe uma reciprocidade tanto entre
os que contam e compreendem, como entre os que ouvem e transformam. As experiências individuais ou
coletivas estarão em constante movimento, de forma que, pelas investigações e análises, entre os sentidos
e percepções, interpretação e expressão, o processo de pensar a imagem, enquanto narrativa, também se
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torna uma potencialidade nas discussões sobre os caminhos das artes nos espaços educacionais. A pesquisa
narrativa ultrapassa as diferentes disciplinas, produzindo relações entre os saberes, fazendo-se um campo
transdisciplinar propício nos currículos escolares, permitindo a reflexão sobre as múltiplas maneiras de
olhar, entre as distintas realidades culturais, onde as questões sobre o tempo e o espaço estão presentes.
(HERNÁNDEZ, 2011; MARTINS, 2007).
Pensando nas suas potencialidades, apresento alguns exemplos de produções que podem contribuir
para as reflexões sobre o mundo da imagem como possibilidade de narrativa, gerando diferentes considera-
ções sobre o mundo e, principalmente, sobre o sujeito que sente e percebe, desenvolvendo e ampliando seu
conhecimento diante das narrativas.
As narrativas escolhidas diferem em sua linguagem e aparecem em momentos distintos do meu caminho
na docência. Contudo, representam experiências significativas em meu percurso, contribuindo de forma
poética nas relações entre a arte e a educação e a maneira sensível e reflexiva de ver o mundo.
Neste artigo, apresento o cinema, as imagens fotográficas e as palavras, que desencadeiam as mais
diferentes interpretações. O documentário “A Janela da Alma” foi visto pela primeira vez na disciplina Es-
tética: a construção do sensível, no curso de Especialização em Arte e Cultura: linguagens da educação, e
revisto em 2017, ainda como impulsionador de possibilidades reflexivas aos sentidos. As relações foram
intensas, numa percepção íntima e emocional sobre as causas do ver - onde o olhar e o enxergar são diferen-
temente compreendidos pelas pessoas - e, numa relação estreita entre a construção do olhar e o desenvolvi-
mento de sensibilidade no meu cotidiano e dos meus alunos.
Como uma maneira de construir diferentemente o olhar, trago ainda uma pequena história do livro:
“O livro dos abraços”, do escritor Eduardo Galeano. Este, também apresentado num curso, na disciplina de
Estudos Comparados entre Literatura e Artes Visuais.
Eduardo Galeano é um contador de histórias. Esse seu livro foi publicado no ano de 1989, e traz
entre as memórias das histórias descritas, toda a sensibilidade das percepções dos pequenos momentos vi-
vidos por pessoas distintas, mostrando outras maneiras de encarar a vida, olhando-a de forma simples, com
momentos para guardar e refletir.
Nas escolhas metodológicas, entre tantas imagens e artistas, procuro levar aos meus alunos, artistas
que mostram diferentes maneiras de olhar para si e para o mundo. Assim conheci a fotógrafa Francesca
Woodman, através das minhas pesquisas na internet, no ano de 2014. A artista, na década de 70, mostrava
de forma reflexiva, as possibilidades de construção da identidade por meio do autorretrato.
Trabalhar em sala de aula com essas perspectivas oportunizam a construção cultural do olhar, relati-
va à forma de ver e ver-se. Assim como as linguagens são distintas, as narrativas podem ser apresentadas de
maneiras diferentes, e nem por isso serem desiguais em sensibilidade e atributos poéticos. Elas serão descri-
tas partindo de um olhar particular, sem, contudo, relatar significados, pois estes certamente são diferentes
aos olhos de quem participa.
O primeiro exemplo é o documentário “A Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho, de 2001, que
fomenta as problemáticas sobre os modos de ver, tão fortemente colocados entre os limites do olhar, do ver,
do querer ver, do que preciso e do que realmente vejo, bem como a minha imaginação diante do mundo.
Os personagens desse documentário foram entrevistados e abordam questões profundas que ultra-
passam as reflexões sobre a sensibilidade, remetendo à capacidade do pensamento diante dos limites huma-
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nos. São realidades distintas, mas próximas ao olhar de quem assiste. O reconhecimento emocional durante
a narrativa é alimentado pela exploração de todos os sentidos, interrogando-nos acerca de nossos conceitos
e valores, nossa formação que, até mesmo instintivamente, reproduzimos e transmitimos às outras pessoas.
Sugere novos questionamentos sobre assuntos distintos, principalmente no que se refere à multiplicidade
dos olhares e suas perspectivas na vida e nas suas relações.
Uma das interpretações possíveis para o filme é que cada sujeito se forma por meio de suas capa-
cidades, e nem sempre a visão faz parte da sua realidade. Contudo, outras interpretações são possíveis a
partir do olhar de outro expectador. Aqui, todos os sentidos são eleitos como fundamentais tanto quanto a
possibilidade de enxergar, sendo fundamental também, para a formação do sujeito, o desenvolvimento da
sua imaginação e criatividade.
Não é possível assistir ao documentário sem desencadear uma conexão entre as perguntas, as possibilidades
de respostas e as reflexões sobre as relações interpessoais e culturais, tanto na formação do sentido físico e
emocional do ver, das relações na construção do sujeito, como no mundo e sua história. O documentário
concentra-se sobre as questões de sensibilidade, e nos dá uma primeira ideia do assunto partindo do seu
título, que faz referência aos olhos como as janelas por onde a alma vê o mundo e o mundo a vê. Entre essas
possibilidades de olhar, aplicam-se todas as experiências narradas pelos sujeitos que buscam alternativas
para o conhecimento de si e do mundo.
O segundo exemplo é do escritor Eduardo Galeano, com sua obra “O livro dos abraços” (2012),
que trata, nas suas várias histórias, sobre o encantamento nas relações entre pessoas, suas reflexões, relatos
e memórias - um mundo de possibilidades entre o sentir, refletir e o enxergar. O capítulo selecionado foi
“A função da arte/1”, que, de forma notavelmente poética, nos mostra a relação entre o ato de ver, perceber,
conhecer nas relações entre a arte, nas ações humanas e na construção do sujeito no mundo:
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse
o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, espe-
rando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois
de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do
mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente
conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: — Me ajuda a olhar! (GALE-
ANO, 2012, p.12).
A partir desse capítulo, é possível levantar algumas questões: Qual a possibilidade de descobrir algo
sem a capacidade de olhar? Olhamos através do quê? Do olho, da mente ou da alma? Quais são os limites do
ver? As pessoas podem auxiliar as outras na capacidade de olhar? Esses questionamentos apenas sugerem
algumas reflexões, pois as respostas são determinadas pelas experiências pessoais.
Essa poética está centrada na relação entre as pessoas com o objeto, e com suas capacidades de
interação entre si, com os outros e com os objetos. Por ser apenas escrita, ela desencadeia nos leitores uma
gama de imagens e de relações entre a história e suas experiências do sentir humano. Nas possibilidades de
interpretação, estão presentes as reflexões da experiência, podendo suscitar novas ideias, incluindo criações
imagéticas da narrativa, tanto mentais como pictóricas.
O terceiro e último exemplo são as imagens da fotógrafa Francesca Woodman (1978 e 1976), que
escolhe entre as possibilidades da fotografia, o autorretrato. Essa maneira de retratar a si, e que tem como de-
finição, dentro da história da arte, a intenção de reconhecer-se, como estudo da anatomia, mostra também
a busca pela identidade que muda ao longo das experiências de vida (GOMBRICH, 1999).
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Figura 1: ‘Self deceit 1’, Woodman, Roma, 1978.
A artista se apropria da linguagem fotográfica em seus trabalhos com autorretratos que revelam
uma condição de dúvida referente a sua própria imagem, uma maneira distinta de ver-se e de mostrar-se ao
outro. Na figura 1, ela se vê refletida no espelho, este objeto que não devolve apenas aquilo que se vê, como
cópia do real, mas também diz o que se vê, através da subjetividade desta ação.
A fotografia como um meio artístico é uma escolha pictórica e traz como intencionalidade a possibilida-
de de copiar e transmitir seus vários sujeitos em distintas interpretações, em espaços-tempo diferentes. A narra-
tiva imagética pode nos levar a questionar como olhamos para o nosso reflexo e como os outros nos enxergam.
Na figura 2, a artista não é apenas uma pessoa, ela se funde como organismo vivo ao cenário ar-
tificial, o que pode apontar para um questionamento também sobre nosso papel no mundo e nas nossas
relações. Em ambas as figuras, o pensamento sobre a construção do olhar e suas reflexões pode suscitar
hipóteses sobre o papel que tenho e que exerço no mundo, quem sou, onde estou, assim como sobre as rela-
ções, as dúvidas a respeito do que é pré-estabelecido.
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Estes exemplos se fazem narrativas, pois têm a capacidade de contar as histórias das pessoas e de seu
mundo; como afirmam Connely e Clandinin (1995, p. 15), “são fenômenos da cultura material, dos costu-
mes, do folclore, da história oral [...] uma observação que faz conexão com a pesquisa narrativa”. Podemos
questionar: como eu vejo? Como isso me toca? Nelas, a experiência do olhar é causadora das mais diversas
realidades, impulsionadora de verdades únicas e particulares, representadas numa sensibilidade autoral e
autobiográfica, que diz quem são os outros, ao mesmo tempo que reitera nossas perspectivas de autotrans-
formação.
Considerações finais
Este trabalho buscou refletir sobre as implicações e contribuições da pesquisa narrativa, a partir dos
debates de alguns autores e análises de três exemplos narrativos pictóricos e escritos (vídeo, texto, fotografia).
Os aspectos da cultura estão intimamente ligados à formação do homem e de seu entorno. Não
existe cultura sem a ação do homem, ela é reveladora do mundo e das concepções da vida, pois, conforme
Duarte Junior (1988, p. 52): “Na cultura a vida adquire sentido”. Assim, as narrativas que são culturais, visto
refletirem a condição humana, são interpretações dos momentos vividos, refletindo as ações e reflexões,
e podem ser geradas no meio exterior, pelo outro, a partir de um fenômeno da natureza ou criada por ele
próprio. É ver e ver-se na ação, ressignificando-a a qualquer momento.
Pensar nas imagens desencadeadas pelo pensamento e em suas visualidades como possibilidade
pedagógica faz com que as discussões sobre os caminhos educacionais nos currículos escolares, de maneira
geral e, especialmente, nas artes, possam ser modificadas, trazendo momentos da história da arte, bem como
obras em linguagens distintas como fonte de fruição, contextualização com o momento presente, produção
individual ou coletiva, atribuindo novos modos de ver, pensar e fazer, contribuindo para novas práticas in-
vestigativas no âmbito escolar, estabelecendo diálogos entre os sujeitos (HERNÁNDEZ, 2011).
Concluímos que o estudo das narrativas na educação é uma possibilidade, uma oportunidade para
o entendimento das diferentes realidades e para a construção efetiva de uma sociedade mais justa e solidá-
ria. Quando escolhemos algum momento, escolhemos também como representá-lo, produzimos maneiras
diferentes de olhar, dando sentido às questões da vida, do seu cotidiano e das nossas relações.
Finalmente, é importante destacar que para este trabalho foram selecionadas algumas referências
de narrativa que podem servir como objeto de investigação e análise. No entanto, outras referências, tais
como a língua de sinais (Libras), as imagens tradicionais e da iconografia produzida ao longo do tempo,
assim como outros gêneros literários e visuais (tirinha, propaganda, gibis, folders, outdoors, animações
etc.) podem vir a ser temáticas de futuras reflexões e estudos, bem como a própria produção de imagens e
narrativas.
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Referências
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1980 e novos tempos. 8. ed. 2. reimp. São Paulo: Pers- SP: Papirus, 1996.
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CONNELY, M. CLANDIMIN, J. Relatos de Experiencia _____________. A cultura visual e a construção social
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com/watch?v=4F87sHz6y4s>. Acesso em 17 jan. 2018. 2014.
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PROCESSOS CRIATIVOS – TRAJETÓRIA
NO CURSO DE ARTES VISUAIS
Raylla Brito Vieira
UFPE/UFPB
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, apresento meu processo criativo realizado durante o Curso de Licenciatura em Artes
Visuais da universidade Regional do Cariri. Nele apresento uma série de imagens realizadas durante o curso
e busco dialogar com produções de outras artistas contemporâneas.
Ao longo do texto, trago as memórias que me motivaram a criar e que fundamentaram meus pro-
cessos criativos. Apresento quais os procedimentos utilizados na minha produção artística e como foi pen-
sado cada trabalho.
Minha produção artística tece uma relação com as minhas experiências da infância, adolescência
e das questões que me inquietam enquanto mulher. Tento nesse processo criativo dialogar com as minhas
inquietações e angústias sobre o corpo feminino, o meu corpo. Os trabalhos apresentados são experimentos
com fotografia e videoarte. E por fim, apresento a performance realizada durante o processo de escrita do
meu Trabalho de Conclusão de Curso.
Na minha produção artística eu começo a dialogar com as minhas inquietações e angústias sobre os
padrões de beleza e os estereótipos que são determinados pela mídia. Fui me convencendo que para realizar
esta proposta eu deveria usar o meu próprio corpo como espaço de investigação a ser explorado. A decisão
de expor meu corpo nos experimentos foi muito difícil, pois além de me considerar uma pessoa tímida,
reconheço a influência da educação que nós mulheres recebemos desde nossa infância, na qual se impõe a
forma de como devemos nos comportar diante da sociedade, na qual não devemos expor e nem conhecer
o nosso próprio corpo. Para chegar a essa decisão era preciso enfrentar vários medos e incertezas, mas era
preciso me libertar. Ainda tenho certas limitações e acredito que isso é um processo, em que vou me cons-
truindo como artista.
Então resolvi trabalhar com a fotografia e vídeoarte, a partir destas linguagens das Artes Visuais
consegui transformar minhas ideias em imagens. Essas duas linguagens têm sido muito utilizadas pelos
artistas que tratam das questões do corpo na contemporaneidade, segundo a autora Lucia Santaella:
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Quando se fala na relação do vídeo com o corpo, via de regra se pensa exclusivamente no
conteúdo do vídeo, isto é, no assunto que o vídeo visa explorar. Se esse assunto diz respei-
to ao corpo, então se reconhece aí uma relação da arte videográfica com a corporeidade.
Sob esse aspecto, certamente, não só o vídeo, mas também a fotografia e o filme passaram
a explorar, de modo cada vez mais acentuado, desde dos anos 70, temas inspirados por
perspectivas culturais transformativas do corpo, por exemplo, como novas visões sobre
gênero e identidade. (SANTAELLA, 2014, p. 70).
Provocada a continuar com meus processos, começo a pesquisar artistas que me ajudariam a com-
preender melhor esse tema explorado nas Artes Visuais e que poderiam ser usadas como referências nos
meus trabalhos.
Trago como exemplo o vídeoarte “Identidade” (2003) (Imagem 01) de Cris Bierrench, no qual a
artista questiona os comportamentos que a sociedade exige das mulheres: a feminilidade. Através do uso
de maquiagem e com cuidado com o cabelo a artista performatiza sua feminilidade, até que chega em um
ponto no vídeo que a mesma utiliza uma tesoura para cortar seus cabelos, se desfazendo totalmente deles.
Influenciada tanto por esse trabalho, quanto pelo registro da performance de Marina Abramovic,
“Art must be Beautiful; Artist must be Beautiful” (1975), decido criar um vídeo intitulado de “Excessivo”
(2015) (Imagem 02). Neste experimento eu vou me maquiando e aos poucos os movimentos vão se tornan-
do compulsivos.
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Tento demonstrar como muitas vezes os cuidados com o corpo se tornam exagerados. Não
quero com esse experimento fazer uma crítica ao uso de maquiagem ou aos produtos cosméticos, mas
à forma de como esses produtos muitas vezes são usados e sobre como isso tem interferido na vida de
algumas mulheres. Me aproprio desses produtos de embelezamento na busca de compreender porque é
tão importante esconder nossa marcas e imperfeições, e como isso tem se tornado algo muito relevante
no cotidiano de algumas mulheres, que muitas vezes não saem de casa sem um tipo de maquiagem,
como batom ou lápis de olho, e se sentem bem com seu próprio corpo quando não estão usando algum
cosmético.
Acredito que o problema não está no uso da maquiagem e sim quando somos submetidas a ter uma
boa aparência para afirmarmos nossa feminilidade e como isso implica na forma como somos tratadas pela
sociedade, por conta da nossa aparência.
A artista inglesa Jenny Saville, em parceria com o fotógrafo Glen Luchford, produziu uma série fo-
tográfica intitulada “Closed Contact” (1995-1996) (Imagem 03), na qual a artista posou como modelo. Para
a produção dessa série, a artista usa como inspiração o modo de como o corpo feminino está implicado nos
procedimentos cirúrgicos.
Nessa série a artista distorce sua autoimagem para tratar das questões das cirurgias plásti-
cas. Segundo Luana Saturnino Tvardovskas a artista em suas obras “reavalia o universo das cirur-
gias plásticas” (TVARDOVSKAS, 2008, p.102).
Pensando nos efeitos negativos que as cirurgias plásticas podem causar nas pessoas que se
submetem a esses procedimentos, decidi criar uma série intitulada “Distorções 1 e 2” (Imagens
04,05), na qual faço sobreposições de imagens fotográficas.
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Imagens 04, 05: Raylla Brito “Distorções 1 e 2” (2015). Tamanho variados, imagem digital.
Primeiramente criei autorretratos, utilizando na minha face gases e esparadrapos e com uma caneta
hidrográfica rabisco linhas que se assemelham às marcações feitas no corpo de quem passa por esses proce-
dimentos cirúrgicos. Depois usando um software de edição de imagens faço sobreposições dessas imagens,
com a intenção de distorcer minha autoimagem, para levantar questões da obsessão na busca de um ideal.
Nesse autorretrato (06) uso a fita métrica, um instrumento de medida flexível envolta dos meus bra-
ços, pretendendo trazer à tona uma discussão ao culto à magreza e ir contra este padrão de beleza imposto e
aceito pela sociedade. Segundo Lipovetsky “a estética da magreza ocupa obviamente um lugar preponderan-
te no novo planeta beleza” (LIPOVETSKY, 1997 p. 128). Tento contrapor a ideia de que precisamos moldar
o nosso corpo, para nos adequarmos a um padrão de beleza estabelecido.
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Também pensando nos aprisionamentos do corpo feminino, como afirmam xs autorxs Vilhena,
Medeiros e Novaes “Se antes as roupas as aprisionava, agora se aprisionam no corpo - na justeza das pró-
prias medidas”, (VILHENA, MEDEIROS, NOVAES, 2005, p.138) em Autorretrato 1 tento questionar esses
aprisionamentos da ditadura da beleza e do corpo feminino.
A seguir a apresento uma performance realizada por mim durante a escrita do meu trabalho de con-
clusão de curso, esse trabalho surge da necessidade de ampliar minhas produções e meus processos criativo
em arte, assim uso a linguagem a da performance e decubro novas possibilidades de produções.
A ideia de fazer uma performance surge das minhas inquietações e incômodos. Desde criança que
ouvia meus familiares dizerem que eu precisava emagrecer, que eu deveria comer menos, que eu iria ficar
feia e gorda. Isso provocou em mim a vontade de ser magra, mas nas diversas tentativas de emagrecimento
eu nunca conseguia, acredito que isso nunca foi meu foco, eu só queria ser eu.
Nós mulheres vivemos ao longo da vida com uma diversidade de restrições sobre os nossos corpos
e não nos damos conta que isso restringe nossas decisões pessoais. Isso é tão forte em nossa cultura que não
percebemos que temos direito de escolha sobre os nossos corpos.
A ação performática intitulada “O vômito da artista” (2016), (Imagem 07), realizada no Centro de
Artes com orientação da professora Raquel Versieux, vislumbrava chamar a atenção para a questão dos
transtornos alimentares, do culto à magreza e dos efeitos que são causados pela obsessão com um corpo
magro atravessado pela obsessão com comida. Também tento tratar sobre a compulsão alimentar e a gula
que tem gerado o consumo exacerbado de alimentos.
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Durante a preparação para a performance fiquei na sala à espera do público em um momento de
concentração, para melhor realização da performance.
A performance é dividida em três momentos, no primeiro momento começo a sentir o meu corpo
com o toque, na tentativa de moldá-lo, de criar um novo corpo, de esconder aquilo que é meu. Já no segun-
do momento uso a fita métrica para pressionar minha barriga na busca de moldar e mostrar a necessidade
de se adequar à um padrão de beleza, ditado pela magreza. Em seguida, no terceiro momento, começo a
comer uma porção composta de 5 kg de batatas fritas, dispostas sobre uma bandeja, nessa ação de comer,
vomitar e recomer compulsivamente (Imagem 08).
O vômito é uma forma de representar não somente os distúrbios alimentares, mas uma forma de
mostrar meus questionamentos sobre o que é imposto às mulheres na sociedade. O meu vômito é uma for-
ma de protesto contra todas às imposições ditadas às mulheres, desejo de colocar para fora aquilo que não
quero, aquilo que me incomoda, aquilo que não me faz bem.
Essa experiência de pensar uma performance foi um processo de me empoderar, criar e recriar, de
desconstrução do meu pensamento sobre o meu corpo, foi um modo de pensar o corpo feminino diferente-
mente. Por que então usar meu corpo? Por que ele é meu! E é a partir dele que me projeto no mundo, é nele
que sinto os reflexos de uma sociedade, que quer ter poder sobre ele. Isso manifestou em mim a vontade de
falar pelo corpo, pelo gesto, pela ação. Colocar meu corpo em ação performática é compreender que ele está
sujeito a qualquer situação de risco.
A experiência foi muito importante para mim, foi um processo de descobertas e de compreender os li-
mites do meu corpo, de entender-me como artista, mulher, criadora e negra. Acredito que esse é o poder que a
arte tem, de provocar novos olhares, pensamentos, desconstruções sobre o mundo e as questões sociais. Assim
também a arte provoca o público, que ao ter contato com a obra de arte, reage de diversas formas.
Ao término da performance fui surpreendida com um abraço de uma garota que se dizia muito
emocionada, por ter visto no meu trabalho a representação de muitas pessoas que passam por transtornos
alimentares. Assim pude compreender de forma mais clara a importância da participação do público diante
da obra de arte e qual o nosso papel enquanto artista.
234
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao ingressar no Curso de Licenciatura em Arte Visuais, tinha uma relação muito distante com o
mundo das artes, pois não sabia quase nada sobre a arte e sua história. Mesmo assim decidi continuar no
curso e acabei me encantando pelas disciplinas, pelo fazer artístico e pela a história da arte. O curso me
proporcionou muitas experiências, descobertas e aprendizagens.
Essa pesquisa foi relevante para minha transformação como mulher negra e artista. Assim pretendo
continuar com pesquisas que abordem essa temática, pois esse campo de pesquisa é muito amplo e creio que
novas questões irão surgir.
Meus trabalhos aqui apresentados, partem das minhas inquietações e angústias. Tento nos meus
processos criativos dialogar com aquilo que me incomoda. Nos experimentos tento apresentar o meu corpo
feminino contrapondo às representações das mulheres na mídia e aos padrões de beleza feminina que são
enaltecidos na sociedade.
Começar a usar o meu próprio corpo nos meus experimentos para discutir minhas inquietações
foi uma experiência libertadora, apesar de achar que ainda preciso deixar certos limites e medos de lado.
Pois acredito que isso faz parte da minha prática artística, tendo em vista que ainda estou em processo de
formação e amadurecimento.
Produzo trabalhos focando na linguagem fotográfica e espero que elas se tornem uma produção
provocadora de sentidos e discussões acerca do tema e que a partir desse estudo, outros questionamentos
possam surgir nos meus processos de investigações com um meio de produção nas Artes Visuais.
REFERÊNCIAS
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revolução do feminino. São Paulo: Gallimard, 1997. nistas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda
Magalhães e Rosângela Rennó. 2008. 220 f. Dissertação
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cultura. São Paulo: Paulus, 2004. cia Humana, Universidade Estadual de Campina - UNI-
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O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em de Vilhena. A violência da imagem: estética, feminino e
artes plásticas. Porto Alegre: E. Universidade/UFERGS, contemporaneidade. Revista Mal-Estar e Subjetividade,
2002, p.123-140. Fortaleza, n.1, p. 109-144 março, 2005.
235
PROCESSOS ARTÍSTICOS COMPARTILHADOS
COM CRIANÇAS: PROVOCAÇÕES DO
PROCESSO ARTÍSTICO DA PERFORMANCE
PARA O ENSINO DAS ARTES
Rita Tatiana Gualberto de Almeida/ Rita Cavassana (UFRN)
Minha função era arte educadora na linguagem de Dança Contemporânea todavia, sempre a mescla
de procedimentos com outras linguagens. Nos encontros, motivada pela minha formação híbrida, propu-
nha procedimentos, que se relacionavam com as Artes Visuais, Literatura, Video e o Teatro, as linguagens
foram complementares para metodologia dos processos em ateliê.
No planejamento havia a preocupação de que o corpo estivesse como motivador e propulsor, para
aqueles meninos e meninas explorarem e experimentarem suas potências. A compreensão de corpo é vista
de forma abrangente que não apenas fisico, mas o pensamento que aponta para um perspectiva que possibi-
lita mover redes e relações, realizar conexões e traçar novos desenhos de afectos, que desperte a curiosidade
pela investigação e não apenas pela repetição de códigos e padrões.
Nos encontros me percebia muito mais como uma catalisadora de proposições e processos artísticos
emancipatórios, com intuito de que os aprendizes, possam vivenciar experiências estéticas ligadas ao seu
cotidiano, descobrir a potência do seu corpo singular e ser produtor de conhecimento. A questão posta não
é apenas a produção da dança ou incentivar novas dançarinas e coreógrafas mas, empoderar novos corpos
que talvez queiram ser enfermeiras, advogadas, médicas, professoras, psicólogas, bombeiras, etc.
As experiências selecionadas eram de algum modo ligadas a artistas que eram referências para
minhas criações artísticas, por tanto havia uma contaminação entre o eu artista e a educadora. Estas pro-
185. As Fábricas de Cultura são um programa do Governo do Estado de São Paulo que leva arte, cultura e cidadania àqueles que mais necessitam.
Instaladas em regiões socialmente críticas da capital paulista, as Fábricas de Cultura dão oportunidades a jovens e crianças de terem acesso a arte
de qualidade em modernos prédios de aproximadamente seis mil m², abrindo as portas para uma nova realidade em suas vidas. As crianças e
adolescentes, nas Fábricas de Cultura, frequentam aulas de iniciação artística nas áreas de música, teatro, circo, dança, multimeios (filmagem e edi-
ção de vídeos), xadrez e artes plásticas, cada uma com várias modalidades, nos mais diversos estilos. Disponível em : <<http://www.cultura.sp.gov.
br/portal/site/SEC/menuitem.a6fb3609f46434416dd32b43a8638ca0/?vgnextoid=de8f810c04411410VgnVCM1000008936c80aRCRD&vgnextchan
nel=de8f810c04411410VgnVCM1000008936c80aRCRD#.WUV75scwyON >>(Acesso em : 17/062017)
236
postas tinha em sua características o hibridismo entre as linguagens, propunha interferências no espaços
e relação com o cotidiano da comunidade, na qual os alunos estavam inseridos. No processo percebia
que os modos de organizar os planos das aulas e a metodologia, eram constantemente modificados pois,
considerava a opinião e a reflexão realizada em aula com os alunos fundamental para instalar o processo
criativo dos ateliês.
Neste contexto da arte educação aos poucos fui abrindo espaço para minha investigação artísticas
e nos estudo desenvolvido até o momento, no mestrado e artes ciências do departamento de artes ciências
na UFRN, pude levantar teorias e conceitos chaves que pudessem conduzir o estudo; cheguei a três impor-
tantes aspectos: a Criança, a Performance e o Compartilhamento, esta tríade é um tanto desafiadora e para
tratar desse arcabouço, alguns campos teóricos de referências como a antropologia da criança, antropologia
da performance e o conceito da partilha do sensível; são importantes âmbitos teóricos para compreender as
relações e reflexão que proponho. Posto isso a partir desse ponto irei apresentar de forma breve estas bases
teóricas.
A criança não é uma figura a ser estudada ou compreendida contudo, reconhecida como agente
propositor, transformado-a em artista participante da cena performática e das experiências. Dessa forma
a ideia instituída é que “As crianças são organismos e, como tais, são agentes da sua transformação. São os
adultos que promovem o meio onde as crianças crescerão, mas eles não determinam seu crescimento.” (PI-
RES,2010, p.144)
O critério para referência a indicação de faixa etária, quando me refiro a criança nesta escrita, está
relacionada a ideia de que a “Instituição essencial na determinação da infância e dos respectivos limites
etários é a escola.” (PINTO;SARMENTO,1997, p.05). Assim a criança que frequenta a escola, está inserida
nesta pesquisa.
O interesse sobre os estudos da infância tem tomado importância no debate social e espaço cada
vez maior nas academias, contudo há uma significativa preocupação sobre o porque da emergencia deste
debate posto que:
As crianças são tanto mais consideradas, quanto maisdiminui o seu peso no conjunto
da população. Este indicador demográfico,particularmente presentenos países ociden-
tais, por efeito coordenado do aumento da esperança de vida e da regressão da taxade
fecundidade, constitui, na verdade, o principal e decisivo factor da importância cres-
cente dainfância na sociedade contemporânea. Dir-se-ia que o mundo acordou para
a existência das crianças nomomento em que elas existem em menor número relativo.
(PINTO;SARMENTO,1997, p.02)
Os indicadores demográficos da população infantil como destaca a citação a cima, não está rela-
cionado, as campanhas de controle de natalidade mas, a vulnerabilidade que esta população sofre ao longo
de anos com guerras, a negligência do Estado com a saúde e educação, o alto índicede desigualdade social
que leva ao trabalho e exploração infantil. Apesar de recorrentemente discutidos pela sociedade, os índices
de vulnerabilidade infantil e jovem ainda estão elevados conforme aponta as agencias responsáveis pelos
direitos das crianças e adolescente.
Para apurar os debates sociais já citados acima sobre a infância, recorri aos estudos da antropologia
criança que partir do século XX, com as mudanças na compreensão no que refere-se aos conceitos de cul-
tura e sociedade, destacou-se modificações importantes em três aspectos que contribuíram para o entendi-
mento da criança como agente de ação, como aponta a antropóloga Clarice Cohn:
237
Ao contrário de seres incompletos, treinando para a vida adulta, encenando papéis sociais
enquanto são socializados ou adquirindo competências formando sua personalidade so-
cial, passam a ter papel ativo na definição de sua própria condição. Seres sociais plenos,
ganham legitimidade como sujeitos nos estudos que são feitos sobre elas, essas mudanças
afetam os estudos antropológicos em três aspectos: a criança como ator social, a criança
como produtor de cultura e a definição social da criança. (COHN,2005,p.21)
Como artista da performance percebo que a antropologia da criança apresentou-se como um cam-
po de pesquisa no qual, podeauxilia e estabelecer parâmetros que dialogam com o pensamento da lingua-
gem da performance, pois há um ponto de convergência entre a criança e o performer. Eles são duplamente
agente da ação, para tanto recorro ao pensamento de que “(…) a criança é performer de sua vida cotidiana,
suas ações presentifica algo de si, dos pais, da cultura ao redor, e também algo por vir - e, se olhada nesta
chave, poderá desenvolver-se rumo à assunção sua responsabilidade e independência, no decorrer dos pri-
meiros anos de sua presença no mundo(…)”(MACHADO, 2010,p.23).
Portanto a Performance é uma linguagem difícil de nomear, contudo aqui ela é entendida como
uma linguagem artística que é capaz de fomentar diálogos entre diferentes campos das artes, desse modo
busco ir de encontro à autores que dialogam com a antropologia da performance. Essa escolha ocorre pois, o
pensamento dos estudo da performance, possibilita entender a arte da performance como um acontecimen-
to, aproximando o fazer artístico da vida cotidiana. Apoiando-se nos estudos da performance e no teórico
Richard Schechner, que diz:
Performance é um termo inclusivo. Teatro é somente um ponto num continua que vai
desde as ritualizações dos animais (incluindo humanos) às performances na vida coti-
diana- Celebrações, demonstrações de emoções, cenas familiares, papéis profissionais e
outros, por meio do jogo, esportes, teatro dança cerimônias, ritos- e às apresentações es-
petaculares.(SHECHECHNER,2012,p.18)
Os estudos da performance aproximam as relações sociais do fazer artístico, o interesse não esta só
na cena, no palco, ou na arte mercadológica porém, em todos os espaços, assim a performance está na fresta
que encontramos em nossas vidas, no cotidiano como diz Schechner :
O campo acadêmico dos estudos da performance diz: não vamos estudar apenas o teatro-
ou qualquer outra forma de performance formal: dança, musica e outros- mas, estudar
também as ruas, lares, os escritórios - a partir do exame da vida cotidiana. Vamos estudar
também, a diversão popular: os esportes, os jogos, os filmes, a internet todo o tipo de ati-
vidade.(SCHECHNER;ICLE;PEREIRA,2010,p.29)
Partir dos pressupostos da antropologia da performance possibilita traçar relações entre o social e
tradição, isto posto, a performance pode adentra o quintal onde as crianças brincam, no playground da pra-
ça, nopátio da escola e as salas de aulas, somando-se assim a pedagogia da performance, e a figura híbrida
do professor performer como uma agente disparador de propostas.
238
A palavra performance refere-se a uma forma artística existente. A performance, como a
vida e toda a experiência, é complexa. à medida que vamos adquirindo instrumentos para
ler a performance, passamos a nos dar conta de que esse fenômeno é múltiplo, polissêmico
e misturado. Mesmo o pintor mais convencional usa seu corpo. Somos todos performers no
sentido geral, mas existem diferenciações. O artista se apropria da performance num sentido
de ruptura com padrões tradicionais da arte. E eu, enquanto professor, me aproprio da pa-
lavra performance para falar de uma atitude pedagógica diferenciada.(CIOTTI, 2014,p.62)
As experiências observadas e realizadas com as crianças em ações artísticas ou nas aulas, defla-
graram conceitos múltiplos no processo, os quais interessam e evidenciam mudanças de paradigmas para
a construção da cena performativa, retorno a maneira como o diretor e teórico da performance Renato
Cohen analisa processo criativos na cena contemporânea :
Volto a tratar a criança em seu mundo em particular para conversar com este contexto de processo
aberto, para poder “enxergar na criança a autoria de sua própria socialização, vendo-a realizar um work in
process/ trabalho em processo acerca de um tempo feito não de linearidade factual, mas sim de experiências
do agora” (MARCONDES,2010,p.125). Portanto há uma conexão entre o modo de desenvolvimento da
criança e o processo criativo interessados na linguagem artística híbridas e abertas.
Para articular o pensamento e questões relevantes a esta pesquisa, que lida com a construção de pro-
cessos criativos em conjunto com outras pessoas e em contexto diferentes, aproximou a pesquisa da noção
de Partilha do Sensível. Assim Rancière denomina a partilha do sensível:
(…) denomino partilha do sensível o sistema de evidencias sensíveis que revela, ao mesmo
tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respecti-
vas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes
exclusivas. Essas repartição das partes e do lugares se funda numa partilha de espaços, tem-
pos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta
á participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. O cidadão, diz Aristoteles, é
quem toma parte no fato de governar e ser governado. Mas uma outra forma de partilha pre-
cede esse tomar parte: aquela que determina os que tomam parte. ( RANCIÈRE, 2009,p.15)
239
O compartilhamento é um procedimento no qual artistas das artes contemporâneas nas últimas
décadas tem inserido em seus processo criativos e obras, como uma forma de provocar o espectador para
adentrar o universo da arte. Entretanto esta prática é comum desde as vanguardas europeias. Seguindo nes-
te perspectiva o pensamento de arte compartilhada é analisado pela curadora e historiadora Claire Bishop
partir do conceito de Arte participativa ou Arte Participante ela desenvolve:
Este campo ampliado de práticas pós-estúdio atualmente está sob uma variedade de no-
mes: arte socialmente engajada, arte baseada na comunidade, comunidades experimentais,
arte dialógica, arte litoral, arte intervencionista, arte participativa, arte colaborativa, arte
contextual e (mais recentemente) prática social. Eu vou me referir a essa tendência como
“arte participativa”, uma vez que isso reconhece o envolvimento de muitas pessoas (em
oposição à relação de interatividade um-para-um) e evita as ambigüidades do engajamen-
to social, que podem se referir a uma ampla gama de trabalho (...)(BISHOP, 2012,p.1)186
A arte participativa analisada por Bishop não está só nos museus, encontra-se principalmente em
contextos sociais, nos quais os artistas estão engajados em procedimentos artísticos de troca e voltados a
discutir os laços sociais entre a comunidade. “Os projetos participativos no campo social, portanto, pare-
cem operar com um duplo gesto de oposição e melhoria. Eles trabalham contra os imperativos dominantes
do mercado” (BISHOP, 2012,p.12)187. Existe um cuidado para que o entendimento neoliberal sobre arte
construída em coletivo possa instaurar processo para suprir uma uma demanda social apaziguadora, assim
entendida a arte participava pode perder seu sentido que é despertar o coletivo.
Posto isso, o objetivo destes artigo é discutir as relações entre arte, política e educação, por meio da
reflexão de conceitos como a emancipação, autonomia e protagonismo. Busco trazer um ponto de vista de
que este parâmetros de grande relevância para a discussão na educação, merecem ser revisitados e fomen-
tados por meio de pensamentos emergentes surgidos no campo dos estudos das artes contemporâneas e
estudos da performance especialmente vinculados a processos artísticos compartilhados.
Os programas governamentais em que trabalhei como arte educadora, estabeleciam como crité-
rios, autonomia, protagonismo e emancipação; importantes parâmetros a serem articulados em atividades
nos ateliês pelos professores/educadores em suas ações artístico pedagógicas, conceitos que partem do
pressuposto de uma educação como meio de transformação social do indivíduo.Proponho nesta discussão
revisita-los por meio da prática artística que abarca a linguagem da performance, um exercício de reflexão
para potencializados.
186. Tradução da autora para: “This expanded field of post-studio practices currently goes under a variety of names: socially engaged art, commu-
nity-based art, experimental communities, dialogic art, littoral art, interventionist art, participatory art, collaborative art, contextual art and ( most
recently) social practice. I will be referring to this tendency as “participatory art’, since this connotes the involvement of many people( as opposed to
the one-to-one relationship of interactivity) and avoids the ambiguities of social engagement, which might refer to a wide range of work.”(BISHOP,
2012,p.1)
187. Tradução da autora para: “(…) Participatory projects in the social field therefore seem to operate with a twofold gesture of opposition and
amelioration. They work against dominant market imperatives(…) (BISHOP, 2012,p.12)
240
que a integração e colaboração do público é um ponto importante em obras interessadas em aproximar o
público das artes contemporânea.
Como já foi expostos no início do artigo aproximar o meu processo autoral de investigações artís-
ticas transformaram a minha atuação na arte educação, levou a repensar o formato pedagógico, e entender
a aula como um possível espaço para a construção coletiva da cena performativa. Ao perceber como minha
pesquisa artística poderia nutrir o compartilhamento de conhecimento além da técnica, pois criava possi-
bilidades de emergir questões profundas ligadas a subjetividade do participante, em especial a criança que
move questões simbólicas com relação sua identidade, em constante transformação pois, sofre influência do
ambiente em que interage.
Quando me encontrei com as questões de fronteira entre arte e educação percebi que a potencia
dos encontros estavam motivadas também pelo afeto como uma ação politica. Assim a artista que escreve,
contaminada pelas questões politico pedagógicas na qual o campo da arte encontra-se questiona: Quando a
educação se aproxima da arte? ou quando a arte toma parte da educação?
O compartilhamento de ações artísticas relacionam-se não somente com um currículo a ser cum-
prido, aproxima as relações humanas, o professor com a aura da hierarquia, do detentor do conhecimento
do que sabe oque é certo e errado, quando o artista mantem uma relação humanizada com seus parceiros
de aprendizado nos ateliês de arte, sobretudo com as crianças, ele desmistifica os lugares de poder, cria um
território fértil para articular o protagonismo, a autonomia, e a emancipação. Articulo este parâmetros com
conceitos próximos as discussões da Performance como arte participante e o work in process.
Para ilustrar as relações conceitos oriundos das artes e os parâmetros recorrentes nos processos
de educação não formal em artes; compartilho uma experiencia realizada por mim na pesquisa de campo
realizada em janeiro de 2018 na Fundação Casa Grande Homem do Kariri188 que faz parte da pesquisa em
andamento desenvolvida no programa de pós graduação em artes cênicas da universidade do Rio grande
norte e orientada pela professora doutora Naira Ciotti, “Performance compartilhadas com crianças : um
relato do professor performer”.
A visita ocorreu durante cinco dias e não se configurou como uma experiência de arte participativa,
contudo a contribuição das crianças e do espaço para a pesquisa proporcionou entrar em contato com uma
instituição que compreende e fomenta o desenvolvimento da criança, por meio dos parâmetros que propo-
nho revisitar neste artigo, (autonomia, protagonismo, emancipação). As crianças da fundação assumem res-
ponsabilidades em áreas que compõem a organização da instituição, estas funções são rotativas durante um
período, são guias do museu, ou organizam a gibiteca/ Biblioteca, produzem programas de radio, gerenciam
a parte técnica do teatro entre outras funções. O aprendizado acontece na prática e de forma a dar espaço
para criança exercer seu protagonismo nas ações e autonomia para escolher em que áreas deseja atuar, bem
como cria um espaço para a livre expressão do seu ponto de vista sobre questões referentes ao seu cotidiano.
A característica de organização comunitária cria um laço social entre as crianças e a instituição de forma a
possibilitar efetivamente a percepção de pertencimento.
As ações artísticas proposta na pesquisa são obras work in process, configura-se assim como um
dispositivo performático ativado junto as crianças, um encontro para brincarmos e performar, aqui perfor-
mance é a brincadeira, território de fronteiras ligado ao estudos da performance, a performance como uma
investigação de um acontecimento da vida cotidiana da criança.
188. A Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri é uma organização não- governamental, cultural e filantrópica criada em 1992, com
sede em Nova Olinda, Ceará, Brasil, tem como missão a formação educacional de crianças e jovens protagonistas em gestão cultural por meio de
seus programas: Memória, Comunicação, Artes e Turismo. Os programas de formação da Fundação Casa Grande desenvolvem atividades de com-
plementação escolar através dos laboratórios de Conteúdo e Produção. O objetivo é a formação interdisciplinar das crianças e jovens, a sensibilização
do ver, do ouvir, do fazer e conviver através do acesso a qualidade do conteúdo e ampliação do repertório.
241
O compartilhamento da ação artística está em processo de construção e consiste em um caça pa-
lavras com o corpo, no qual as palavras formar-se a partir da relação do corpo, espaço e participantes. A
primeira instrução é dizer o nome em voz alta, depois, escolher uma letra e escreve em alguma parte do cor-
po, após escolhemos silabas dos nomes dos amigos e escrevermos em outra parte do corpo. A partir desta
escrita no corpo começamos um caça palavra entre os participantes. Quais palavras podemos formar com as
letras e silabas, que encontros entre os jogadores, quando encontramos o outro, as palavras são faladas em
voz alta, para que todos os envolvidos no jogo escutem e possam interagir e possam propor novas palavras.
Em um segundo momento e oferecido giz as crianças e a instrução é escrever palavras a partir da relação
individual do seu corpo com o lugar, proponho geralmente escrever no chão e essa intervenção no espaço
com palavra e a escrita criamos um mapa de palavras que possam se ligar.
O material usado para a escrita das palavras é lápis preto de maquiagem, e foi rapidamente associa-
ram as maquiagens das festas de São João, e desenharam bigodes no rosto e outros desenhos no corpo, isso
é uma intervenção que não aconteceu em São Paulo quando realizei essa ação pela primeira vez em meu
ateliê. O mapa de palavras com giz no chão não chegou a ser efetivado em sua plenitude, já que as conexões
criadas pelas crianças adentram o universo do desenho e proporcionavam outras intervenções, como dese-
nhar silhuetas no chão, o prédio da fundação ou objetos que estavam no espaço.
Ao lidar com as relações que a criança estabelece com o mundo, a pesquisa compromete-se com
o seu conhecimento de forma a abarcar a escuta, contudo eu como adulta também tenho que dispor de
um conhecimento que não é superior ao das crianças, mas provocar novas maneiras de interagir com o
corpo espaço, são os desafios que lanço ao encontrar as crianças. A performance proposta no estudo está
no campo das arte participativa, na qual parte do pressuposto que a ação está diretamente relacionada ao
participante, no caso estudado por mim há uma delicada relação ao partir da criança, me percebo sempre
em um lugar de risco, mesmo que planejada as ações elas estão em transformação é este o risco que quero
correr de partilhar uma obra inacabada, para que a criança participante possa transformar, pois ela não
se preocupa em geral em estabelecer conexões com padrões da arte, ela embarca no brincar e se este jogo
não está de acordo, ela o reelabora naquele mesmo instante, ou pode acontecer algo mais desagradável ela
se desinteressa, quando isso acontece o apoio e a manutenção da performance se restabelece na relação
com Professor Performer em ação, por meio do material então modificado reelabora as ações ou declara
o seu fim.
Para concluir retomo as questões levantadas pela antropologia da criança, a qual concebe os saberes
das crianças relacionadas a outras percepções e pontos de vista sobre o mundo, para afirmar o caracter que
há nesta pesquisa de não lidar com o propósito de categorizar um ou criar um método pedagógico de per-
formance para crianças. A proposta é a investigação artística compartilhada, como o foco no participante
elegido por mim, a criança. O estudo não tem como objetivo lidar com a criança como objeto, portanto ela
é aqui considerada como colaboradora, compreendendo assim formas desviantes que provoque novas ma-
neiras de processo criativos e de ensino para artes, para abrir novas maneiras e não circunscrever questões
de um arcabouço tão rico e pouco investigado.
242
Referência Bibliográfica
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243
POR UMA PEDAGOGIA VIDEO_PERFORMATIVA:
BRUCE NAUMAN E O ENQUADRAMENTO
COMO PRODUÇÃO DA REALIDADE
Ronildo Júnior Ferreira Nóbrega
Introdução
Bruce Nauman (1941-) é um dos primeiros artistas nos Estados Unidos a mobilizar o corpo e
os recursos da escrita videográfica num sistema próprio de elaboração de discursos. Tendo como uma
de suas características o uso crítico e um respectivo questionamento da neutralidade das tecnologias,
Nauman explora, em obras como Walking in an Exaggerated Manner around the Perimeter of a Square
(1967-1968), a questão do enquadramento como produção de realidade, enfocando o recorte não tanto
como aquilo que esconde a realidade, mas como uma tecnologia que operacionaliza uma angularização,
que traça por meio do quadro aquilo que deve ser percebido e como deve ser percebido em detrimento
do que é conscientemente deixado de fora.
Inserido num contexto onde a televisão alçava a categoria de meio de comunicação de massa, o
artista americano, ao evocar uma relação entre o seu próprio corpo e a máquina-ferramenta coloca em
cheque, através de um programa performativo seguido à risca, os próprios modos de operação dessa
tecnologia. Os primeiros trabalhos de Nauman são pouco sofisticados se temos em mente os constantes
agrupamentos que se colocam à disposição daqueles que embarcam nessa seara desde então, contudo, al-
gumas décadas depois estas obras são ainda paradigmáticas para se pensar questões como a relação entre
244
arte e tecnologia, assim como os possíveis diálogos entre estas duas esferas nos ambientes institucionali-
zados de ensino/aprendizagem.
Nesse mundo de constante inflação tecnológica, responsável por alterar profundamente nosso re-
gime cognitivo através da imposição de novos regimes de percepção e tendo em vista uma educação que,
abalada por todo esse contexto, tenta se adequar e se apropriar desses meios na composição de seus proces-
sos de ensino/aprendizagem, a experiência de artistas como Bruce Nauman se constitui como interessante
mecanismo para se pensar uma pedagogia performativa, entendida aqui como uma atitude pedagógica
em artes que se dá pela e através da performance. Sua apreciação, contextualização e prática se apresentam
como algo interessante para se re-pensar questões como, por exemplo, o lugar da tecnologia no cotidiano
escolar, assim como na construção de certos conhecimentos.
Desse modo, a discussão que se empreende a seguir aponta, a partir de um olhar para Bruce Nau-
man sobre a perspectiva do enquadramento, pistas que permitam esboçar a pertinência do trabalho com
a videoperformance em sala de aula como uma possibilidade que articula elementos que permitem, para
além de outros fatores, questionar as práticas e os modos de operação das tecnologias em busca de novos
possíveis, isto é, outras formas de estabelecer relações com elas pensando suas práticas não tanto numa pers-
pectiva do determinismo tecnológico mas, sobretudo, como estratégias de sobrevivência perante um mundo
cada vez mais disposto ao cansaço.
O ambiente onde o artista estabelece a relação com a câmera é um ateliê que, entre alguns materiais
espalhados pelo chão, inclui um espelho e um número de três quadrados delicadamente traçados no espa-
ço, cada um deles proporcionalmente menor que o outro. Sobre o quadrado maior, um corpo caminha de
maneira exagerada através de torções do quadril e num respectivo balanço dos ombros. Trata-se da obra
Walking in an Exaggerated Manner around the Perimeter of a Square (1967-1968) do artista americano Bruce
Nauman (1941-), um filme de 16 mm que tem duração de cerca de dez minutos que, para além de outras
características, o enquadramento é colocado como produção da realidade.
Esta obra é parte de uma série de trabalhos onde Nauman aparece explorando a realização e a re-
petição extenuante de gestos e atividades cotidianas como andar, arremessar bolas contra a parede, bater os
pés, fazer rolamentos etc. Num momento em que a arte trazia o autobiográfico e a autorreferencialidade, o
cotidiano e a incorporação de novos suportes para o centro de sua realização num questionamento da pintu-
ra e da escultura como os legítimos suportes da criação artística, Bruce Nauman examinou as possibilidades
estéticas entre o corpo e a câmera lançando um olhar crítico para a tecnologia de sua época e as funções com
as quais estava comprometida.
Se por um lado a indústria do broadcast e o senso comum davam a entender que a produção da
imagem, baseada numa forte tendência técnica, se dava de maneira ingênua e descompromissada, o artista
expõe nessa obra os modos de operação das tecnologias por trás da criação das imagens em movimento;
enquanto caminha sobre o perímetro do quadrado e escapa dos limites de captação da câmera, Nauman
expõe a dimensão política do enquadramento e a relação dos ângulos, planos e mesmo a estabilidade ou mo-
bilidade da câmera de esconder algumas coisas ao mesmo tempo em que faz aparecer outras. Nesse sentido,
uma outra experiência esclarecedora.
245
mentos da ideia que aqui se apresenta. O fato em si é, talvez, menos curioso do que os procedimentos que
o artista dá em relação ao aparelho que detinha naquela ocasião em mãos. Nessa experiência, Paik embarca
num táxi e registra todo o seu percurso explorando os limites de memória da própria tecnologia e exibindo
posteriormente a filmagem ao lado da abordagem televisiva, marcada pelas remediações e clichês da indús-
tria broadcast (ELWES, 2005).
Nessa exibição pode-se identificar algumas características que perpassará muitos dos trabalhos
desenvolvidos nesse campo nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. No caso de Nam June Paik
o registro é confrontado com a narrativa mainstream e seus excessos, traçando uma discursividade dife-
rente daquela operacionalizada pela pintura e pela escultura. Tomado como uma mídia criativa, os modos
como é utilizado nessas primeiras experiências desafia os interesses comerciais, políticos e militares aos
quais se submetia inicialmente a tecnologia videográfica, expondo os modos de operação da cultura do-
minante incluindo aqueles da própria arte, que nos inícios dessa manifestação se recusava a anexá-la ao
seu campo.
Tanto na exibição de Paik quanto na obra Walking in an Exaggerated Manner around the Perimeter
of a Square (1967-1968), o enquadramento diz respeito a abordagem e as forças que compõe imagem, des-
nudando a ideia de neutralidade da tecnologia. Enquadrar é, nesse sentido, estabelecer uma estratégia de
abordagem daquilo que se encontra defronte à câmera. Separar o que deve estar dentro do quadro daquilo
que deve estar fora de suas dimensões, o ângulo e o distanciamento do aparelho de registro em relação ao
que está sendo filmado é um modo de produção da realidade exposto pelos artistas em questão. Essa faça-
nha empreendida por Bruce Nauman é realizada enquanto depura
Nauman é um artista que desdobra sua poética em concomitância com as forças de seu tempo.
Utilizando o corpo e os elementos da escrita videográfica o artista desenvolve uma verdadeira videoperfor-
matividade, colocando o dispositivo tecnológico no âmbito do político. Christine Mello (2008), num estudo
onde investiga o lugar do vídeo na produção artística contemporânea, oferece uma compreensão abordagem
deste como uma linguagem de características específicas. Híbrido por natureza, o vídeo possui como um
de seus traços fundamentais a contaminação. Em outras palavras, o mesmo organiza-se numa tendência
agregativa e irrompe suas especificidades com as de outras linguagens dinamizando assim novas formas de
produção de discursos.
246
Por uma pedagogia video_performativa: pistas de atuação
Num certo sentido a educação, assim como a arte e os artistas, busca ela mesma suas estratégias e
mecanismos de apropriação desse maquinário que brota dia após dia e que, na maior parte do tempo, se ge-
riram dentro e para campos distintos da sociedade como é o caso, por exemplo, dos aparelhos celulares des-
tinados a uma melhoria dos processos de comunicação. Nesse contexto de inflação tecnológica que molda
desde nossa atitude cognitiva perante o mundo até os modos de operação mais rígidos de nossas instituições
escolares a arte e mais especificamente a videoperformance aparece ao mesmo tempo como possiblidade de
expressão e questionamento da técnica e dos automatismos maquínicos.
Edmond Couchot (2003) afirma que expansão tecnológica e a respectiva ampliação do campo tec-
nestésico ao qual inclui em seu espectro as máquinas-ferramentas de imagem eletrônica, a partir de uma
dada ênfase técnica, geram um habitus cognitivo. Se antes o olho e a mão do pintor e do escultor se articu-
lavam na criação da imagem, agora a máquina fotográfica o faz a partir de maneira autonomizada e desper-
sonalizante. Segundo o autor, essas tecnologias representam não só
[...] um depósito de imagens e de signos mais guarnecidos que a indústria oferece ao olhar,
mas igualmente um depósito de percepções, de comportamentos novos, onde o artifício
domina a cada dia, um pouco mais sobre o natural... nenhuma época até agora conheceu
uma tal expansão tecnológica. Um novo habitus perceptivo se impõe, duplicado de uma
nova visão de mundo e de uma nova capacidade operatória se exercendo sobre o real
(COUCHOT, 2003, p. 25).
Contudo, como bem mostra ao longo de seu estudo, se por um lado essas máquinas-ferramentas an-
gularizam e padronizam modos de ação, os artistas, através de intervenções no escopo desse maquinário,
transformam e estabelecem novos modos de se relacionar com todo esse aparato tecnológica na mesma medi-
da em que é tomado como um manipulador. Esgotando os seus possíveis, os artistas abrem horizontes para o
desconhecido, enriquecem o mundo imagético ao qual estão inseridos assim como geram uma diversidade de
signos que se diferenciam sobremaneira daquilo que a pintura e a escultura tradicional ofereceram.
Nesse sentido, já se passaram algumas décadas desde que as primeiras experiências videoperfor-
máticas foram realizadas. Uma série de aprimoramentos foram desenvolvidos desde então sendo acoplados
por artistas em seus procedimentos como cores, efeitos especiais etc. Um trabalho que, talvez, seja exemplo
dessa sofisticação que perpassa o vídeo desde sua criação são as recentes experiências de Bill Viola que
traz, a partir de mecanismos e tecnologias de efeitos especiais, pessoas mergulhadas em oceanos, em meio
a chamas etc. Nessas experiências, o vídeo deixa de exercer a função de mero registo se tornando o eixo de
experiências focadas na imagem.
Dada essa digressão teórica, ainda são poucos os estudos e as discussões entorno das implicações
estéticas e históricas dessas novas tecnologias na arte, contudo, elas se apresentam com um forte potencial
pedagógico. Nesse sentido, as tecnologias, mesmo apesar de impulsionadas a serem utilizadas nos proces-
sos de ensino e aprendizagem oferecem por si só uma resistência que provém de uma necessária iniciação
acerca de seus procedimentos técnicos. Logo, nem todo professor que exerce atualmente a decência sabe
como manipular os elementos da linguagem videográfica apesar das contribuições que este ofereceria na
perspectiva do ensino de artes.
Numa pedagogia performativa, isto é, numa prática que se dá pela e através da performance, a vi-
deoperformance se dá como uma linguagem que oferece múltiplas possibilidades pedagógicas na medida
em que permite novas formas de se relacionar com o mundo. O trabalho com tecnologias cotidianas em
247
sala de aula consegue ser ao mesmo tempo incitado e temido. Esse amedrontamento se dá, talvez, por uma
ausência de entendimento técnico dos professores, mas também por conta de fatores econômicos. Contudo,
ainda assim a videoperformance pode ser um mecanismo para criar práticas pedagógicas em diálogo com
a tecnologia.
[...] propõe uma pedagogia sobre questões da arte contemporânea, na qual a performance
se inscreve. Consequentemente, em nossas escolas tão carentes de material para a sensibi-
lização dos alunos, o professor de arte que tem esta maneira alternativa de ensinar, pode
conseguir resultados valiosos para provocar mudanças na percepção dos alunos (CIOTTI,
2014, p. 63)
Considerações
Quando se trata das tecnologias educacionais, o primeiro esforço proveniente do senso comum é
a implantação de laboratórios de informática e aquisição de aparelhos como se isso, por si, fosse uma sa-
ída para uma escola inserida em tempos de revolução tecnológica. Uma escola aparelhada, como se sabe,
não garante uma apropriação das tecnologias nos processos pedagógicos requerendo esta a elaboração de
estratégias de ação que coloquem a questão da tecnologia em seu seio de operação. O ensino de artes e a
da performance é um lugar privilegiado para se estabelecer diálogos dessa natureza na medida em que a
performance é uma linguagem que tem uma forte relação com a tecnologia.
Desde as intervenções cirúrgicas da artista francesa Orlan até os implantes biotecnológicos do aus-
traliano Stelarc, a tecnologia aparece como um elemento central em sua produção. Dentre os que trabalha-
ram com as aquisições técnicas da imagem, os trabalhos dos chamados pioneiros são pouco sofisticados se
temos em mente os agrupamentos que têm se colocado aos artistas que se embrenham por este campo desde
a década de 60. O processamento de cores, a captura digital, os efeitos, a edição e transmissão em tempo real
e mesmo a interatividade e a imersão são apenas uma mostra das mais conhecidas possibilidades emprega-
das atualmente por artistas das mais diversas áreas.
Desse modo, se por um lado os artistas não cessam de elaborar novas articulações entorno das pos-
sibilidades criativas que esses dispositivos de imagem eletrônica apresentam, por outro, existe ainda uma
série de contratempos que se instalam recorrentemente em relação a experienciação, e compreensão dessas
práticas. Nos contextos institucionais de ensino/aprendizagem o trabalho com as chamadas tecnologias da
informação, para se efetivar, requer o treinamento e desenvolvimento de conhecimentos técnicos por parte
dos próprios professores, o que dificulta de certa forma a implementação de certas práticas que empreen-
dam o diálogo entre arte e tecnologia.
248
Quando se trata de pensar e praticar a videoperformance e mesmo a performance em sala de aula,
ainda são poucas as experiências, contudo, como se propôs demostrar aqui, a sua apreciação, contextuali-
zação e experimentação são alternativas para se pensar uma tão sonhada prática pedagógica que se dá em
diálogo com a tecnologia, que a problematiza numa perspectiva crítica contribuindo igualmente para a for-
mação do cidadão. Os primeiros trabalhos de Bruce Nauman e, mais especificamente, o filme Walking in an
Exaggerated Manner around the Perimeter of a Square (1967-1968) demonstra a capacidade desta linguagem
em problematizar a tecnologia como um todo e seu modos de operação na contemporaneidade.
Com experimentações que se dão em uma única tela ou organizadas em complexas instalações, os
trabalhos videoperformáticos do artista propõem um verdadeiro questionamento do automatismo maquí-
nico ao mesmo tempo em que explora suas possibilidades estéticas. Colocando o corpo e suas questões,
assim como a câmera e os dispositivos de captação e produção da imagem no centro de sua realização,
a videoperformance de Bruce Nauman identifica as pistas para a realização de práticas pedagógicas que
problematizam o uso das tecnologias no seio de seu próprio fazer, isto é, enquanto produz novos modos de
existência e de se relacionar com o mundo
REFERÊNCIAS
BENETTI, Liliane. Ângulos de uma caminhada lenta: ELWES, Catherine. Video art, a guided tour. I. B. Tauris
exercícios de contenção, reiteração e saturação na obra & Co, London, 2005.
de Bruce Nauman. Tese apresentada ao Programa de Pós-
FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-
-Graduação em Artes Visuais da Escola de Comunica-
-em-experiência. Revista do LUME, São Paulo, n. 4 (p.
ções e Artes da Universidade de São Paulo, como requi-
47-55), 2013. Disponível em: https://www.cocen.uni-
sito parcial para obtenção de título de Doutor em Artes
camp.br/revistadigital/index.php/lume/article/view/276
Visuais, São Paulo, 2013.
SALLES, Cecilia. Redes de criação. Editora Horizonte,
CIOTTI, Naira. O professor-performer. Natal: EDU-
2015.
FRN, 2014.
FÉRAl, Josette. Além dos limites: teoria e prática do tea-
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São
tro. São Paulo: Perspectiva, 2015.
Paulo: Perspectiva, 2011.
COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia
à realidade virtual. Editora da UFRGS, Porto Alegre, 2003.
249
PERFORMANCE E ESPAÇO
URBANO: A CRIAÇÃO EM TRÂNSITO
Pablo Roberto Vieira Ferreira
Inscrever um projeto de oficina artística voltada para jovens e adultos a ser desenvolvida em um
bairro que ainda conserva muito de cidade dormitório189 ou zona dormitória. Lançado em 27 de outubro
de 2017 pela Prefeitura Municipal do Natal/RN, através da Secretaria Municipal de Cultura – SECULT, foi
tornado público o edital de “Credenciamento e Seleção Pública de instrutores para atividades artísticas nos
espaços culturais da Zona Norte de Natal 2017”. O presente edital objetiva credenciar e selecionar Cursos e
Oficinas de carga horária diversa, a serem realizados por meio da atuação de instrutores, professores, Griôs,
artesãos e artistas para capacitação de jovens, crianças e adultos, da população das comunidades da Zona
Norte da Cidade do Natal, nas Unidades dos Centros de Artes e Esportes Unificados Moacy Cirne e Mestre
Manoel Marinheiro, Espaço Cultural Jesiel Figueiredo e Espaço Cultural Francisco das Chagas Bezerra de
Araújo, sob a administração da SECULT/FUNCARTE. Na ocasião, submeti a oficina que intitulei de Corpo
e Espaço: criação em trânsito onde iria abordar temas que venho pesquisando, como o programa perfor-
mativo (FABIÃO, 2008) e as ações disruptivas (ARAÚJO, 2011), que tinha o intuito de fazer com que os
alunos experimentassem o lado de fora da sala, os encontros com transeuntes e os desdobramentos a partir
deles, onde a grande maioria dos exercícios se caracterizava como experimentos externos no próprio espaço
e no entorno. Além da minha oficina, propostas que contemplavam Dança, Capoeira, Teatro, Música, Dese-
nho, Xilogravura e Artesanato também foram selecionadas para serem realizadas no mês de abril de 2018190.
Parece-me que a opção pela utilização do espaço fora da sala não tenha sido mera coincidência, vis-
to que a unidade onde iria ministrar minha oficina não oferecia suporte para uma boa execução da proposta
metodológica, caso tivesse optado por vivências mais internas. Em nossa primeira visita, em uma manhã
de terça-feira bastante chuvosa, observamos que as salas não possuíam um piso adequado, eram mal ilu-
minadas e com pouco espaço. Nas instalações do Espaço Cultural Francisco das Chagas Bezerra de Araújo
(mais conhecido como área de Lazer do conjunto Panatis) havia muitas infiltrações e cupins, além de muitas
portas fechadas onde deveriam funcionar salas de estudo. De imediato, recordei da charge A MODERNI-
189. Cidade-dormitório é o nome dado à cidade em que habita uma grande quantidade de moradores que trabalham ou estudam em uma cidade
vizinha próxima. Esse tipo de cidade se encontra geralmente no interior de regiões metropolitanas, ligadas por processos de conurbação que fazem
com que as rodovias sejam utilizadas para transporte diários entre a casa e o trabalho (movimentos pendulares). NUNES, José Horta. Cidade dor-
mitório. Disponível em: < https://www.labeurb.unicamp.br/endici/index.php?r=verbete/view&id=242>. Acesso em: 20 abr 2018.
190. G1. Prefeitura abre 250 vagas para oficinas artísticas gratuitas em espaços culturais de Natal. Disponível em: <https://g1.globo.com/rn/rio-
-grande-do-norte/noticia/prefeitura-abre-250-vagas-para-oficinas-artisticas-nos-espacos-culturais-da-zona-norte-de-natal.ghtml>. Acesso em: 19
abr 2018.
250
ZAÇÃO DO ENSINO PÚBLICO191 onde se denota as más condições físicas da sala de aula em detrimento
da aquisição de um bem tecnológico que necessita de uma estrutura adequada para seu o usufruto, como é
o caso do computador.
A partir de todas essas provocações e atravessamentos, tivemos como dispositivo principal traba-
lhar a memória vinculada ao próprio espaço do Conjunto Panatis, que essa ação deveria ser mais relacio-
nada com a situação vivida, articulada com as memórias que as pessoas tinham de um lugar que sediou um
CEMAI – Centro Municipal de Artes Integradas e hoje se encontra em estado precário. Para isso desenvol-
veríamos a pergunta: Que memória você tem do Conjunto Panatis? Provocando os transeuntes pensarem
como um lugar que a princípio foi construído para democratizar políticas públicas de incentivo ao esporte,
lazer e cultura, hoje encontra-se abandonado e esquecido pelo poder público.
Tendo esse amontado de ideias, resolvemos atrelar a temática da memória a uma ação desenvolvida
por Eleonora Fabião (performer e pesquisadora) chamada “Converso sobre qualquer assunto”, onde tendo
191. ANGELI Filho, Agnaldo. Modernização do ensino público (charge). Folha de São Paulo, caderno 1, 29 de novembro de 2000, a A2. Disponível
em: <http://prontofaleiadistancia.blogspot.com.br/>. Acesso em: 20 abr 2018.
251
um cartaz com esses dizeres, convida pessoas na rua a se sentarem em frente a ela e começarem um diálo-
go. Em nossa ação, segurávamos cartazes com os dizeres “Converso sobre memórias” e, como diferencial,
ofertávamos uma balinha que era entregue ao final de cada conversa, “desembalando” a memória como o
próprio título da ação sugere.
A opção de utilizar o cartaz tal qual a ação de Fabião, nos surgiu como elemento mais convidativo
nesse primeiro momento, pois queríamos evitar uma abordagem que pudesse soar como invasiva. Outro
fator é que estávamos num lugar de passagem, então uma ação mais parada chamaria mais atenção, con-
vidando-os a interação. Giordano (2014, p. 48) expõe que o desenrolar “de ações e situações espontâneas
surpreendem as pessoas que estão circulando no momento e no local, fazendo com que elas sejam condu-
252
zidas para novas possibilidades de percepção e interação com as artistas e o espaço real”. As vivências dos
transeuntes com o espaço, se tinham lembranças ou não daquele lugar, como era antigamente passar por lá,
o que mudou, quais as perdas foram alguns dispositivos que lançamos ao tratar da memória. A performance
no espaço urbano causa estranhamento, curiosidade, altera o fluxo cotidiano do lugar e interfere, mesmo
que por alguns minutos, no fluxo corriqueiro da vida das pessoas.
Convidei para estarem comigo nessa empreitada dois amigos que me ajudaram a desenvolver
essa ação e que foram muito provocadores: Mariana Batista (bailarina e performer) e André Chacon
(fotógrafo e artista visual) que contribuíram para sua realização. Para Nascimento (2012, p. 12) “fazer
performance é estar num enfretamento contra as ideias hegemônicas, consolidadas pela mídia, que
reproduzem signos de cultura, passando pela manutenção de hierarquias e reprodução de modelos”.
Assim fomos sendo confrontados com cada pessoa que se disponibilizava a sentar conosco e conversar
um pouco.
Denotando o quanto o programa pode sofrer influência dependendo do estado físico do per-
former ou do lugar que esteja inserido, por exemplo. O programa é flexível, adaptável, afeta e é afetado
também.
A proposição do cartaz com os dizeres “Converso sobre memórias”, a princípio, deixa a questão
da memória mais aberta enquanto enunciado, mas sempre buscávamos tocar na problemática voltada ao
espaço que estávamos inseridos provocando dirupções. De acordo com a investigação prática de Araújo
(2011, p. 02), as ações disruptivas “poderiam ser agrupadas em quatro diferentes categorias: ações corporais;
ações inter-relacionais, ações contextuais e ações coletivas”. A terceira categoria nos surge aqui para que o
foco estivesse relacionado com as vivências e lembranças dos transeuntes com a Área de Lazer do Conjunto
Panatis, assegurando esse viés de troca através dessas relações. Nesse sentido, as ações contextuais buscam
estabelecer um diálogo com o entorno, com sua cartografia, relevando aspectos diversos, fazendo brotar
informações que não estão dadas de imediato, mas que são relevadas a partir da troca com as pessoas que ali
vivem, passam, construíram histórias, raízes.
Os transeuntes estavam totalmente inseridos em seu contexto habitual e cotidiano e nossa ação
fez com que alguns olhassem de maneira curiosa, se aproximassem para perguntar, parassem e viessem
trocar conosco, mesmo o senhor que opta por não descer da bicicleta, mas que ainda assim se dispõe a
conversar.
253
Figura 4: “Desembaladores de Memórias” com Mariana Batista, Conjunto Panatis.
Crédito: André Chacon, 2018.
Tendo o imaginário das ações disruptivas nos provocando pensar que esse encontro / confronto com o
espaço urbano seria de grande valia ao promover essas interações que, por mais curtas e emergentes fossem, pro-
vocariam experiências diversas que gerariam pontos de discussões interessantes. Segundo Araújo (2011, p. 02),
A performance se caracteriza por três viés: memória, imaginação e atualidade / passado, fu-
turo e presente. O artista por meio de sua experimentação criativa é responsável por criar
novas formas de relacionamentos humanos. As performances atuam sobre a consciência
política dos participantes. Sendo assim, as performances se transformam de obras de arte
para ensaios políticos. São ações estéticas-políticas-artísticas-sociais.
Como bem pontua Fabião (2013, p. 09), “uma performance é um disparador de performances”. Pen-
so assim, que os programas funcionam como válvulas de experiência, uma vez que podem ser elaboradas
outras formas de se fazer uma mesma ação, a exemplo do “Desembaladores de Memórias” que está sendo
pensada em outros formatos. Enfatiza Araújo (2011, p. 02), que “a realização de tais ações constitui-se tanto
como ato artístico quanto como treinamento para os performers, além de ser instrumento pedagógico de
grande valia”. Estar inserido nesse campo de dualidade entre o treinamento e a própria experiência peda-
gógica me pareceu importante, pois diante de toda a situação, estar nesse lugar entre poderia alcançar mais
pontos de provocações. Foi o que fizemos: propusemo-nos ser provocados e, ao mesmo tempo, provocar
com nossa ação.
254
Para a realização de “Desembaladores de Memórias”, temos o seguinte apanhado:
Programa Performativo:
Materiais:
• Duas cadeiras
• Cartazes
• Pequeno recipiente de vidro ou plástico transparente
• Balinhas sem identificação de marca na embalagem
CONCLUSÕES EM PROCESSO
Estar inserido nesse contexto para desenvolver a priori, uma oficina sobre espaço urbano que aca-
bou não se concretizando, mas que potencializou outro tipo de relação com o entorno, nos foi bastante ins-
tigante. Isso denota como o planejamento pode sofrer alterações de acordo com os recursos dispostos, com
as condições estruturais do lugar, com as temáticas urgentes que necessitam serem discutidas e repensadas.
Foi através da performance “Desembaladores de Memórias” que pudemos desvendar alguns aspec-
tos camuflados desse espaço, desconhecidos por não termos essa vivência anterior, nos provocando fazer
uma fricção entre o presente e o passado contextualizando-os no espaço urbano, lugar de investigação esco-
lhido como ato político. Dessas relações que foram construídas, nos chegaram que alguns anos atrás, a área
de Lazer do Conjunto Panatis era lugar de convívio e interação com as pessoas do bairro. Havia uma nostal-
gia e emoção ao relembrar de como era antigamente o espaço e de como se encontra hoje, sofrendo a ação
do tempo, do descaso e do vandalismo. Acreditamos que o fazer artístico propõe esses lugares de encontro
que relevam histórias, aproximam realidades, desembalam memórias.
Atualmente, mesmo com todo o descaso, a área de Lazer do Conjunto Panatis ainda resiste com
algumas atividades culturais, talvez realizadas de maneira bem similar a da charge de Angeli Filho.
Para finalizar, trazemos um trecho da música Zona Norte, Zona Sul (composição: Ricardo Baya),
bastante conhecida na voz da cantora potiguar, Krystal, que denuncia essa separação:
Pajuçara, Igapó
Potengi, o meu Gramoré
Do lado que eu quero morar
255
Se vive na base da fé
Santa Catarina abençoa
Panatis e Santarém
E a Itapetinga nos leva
As Fronteiras da Nova Natal
Não tape o sol com a peneira
Maquiando o cartão postal
Me olhe dentro do meu olho
Me trate de igual pra igual
De que lado mora o seu preconceito
Atravesse a ponte que eu vou lhe mostrar.
Fomos até a Zona Norte da cidade que habitamos para tratar das relações com o espaço urbano e
memória e esse deslocamento só deixa mais nítido que precisamos usar as pontes para facilitar a aproxima-
ção, o diálogo. Que diminuamos as fronteiras.
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas pela UFRN, linha de pesquisa: Inter-
faces da Cena: Políticas, Performances, Cultura e Espaço. Poeta e produtor cultural, mantém contato com a
linguagem da performance desde 2012. Atualmente, integra a Sociedade Cênica Trans (Sociedade T) que se
destina a pesquisar a cena contemporânea. pa_blo_robert@hotmail.com
REFERENCIAIS
ARAÚJO, Antonio. Ações Disruptivas no Espaço Urba- contato com a sensível humanidade dos transeuntes. Re-
no. XVI Reunião Científica da ABRACE. São Paulo: Uni- vista Observatório da Diversidade Cultural. Volume 01,
versidade de São Paulo, 2011. nº 01 (2014)
FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo- NASCIMENTO, Frederico do. Grupo Totem: a infecção
-em-experiência. Ilinx, n. 04, dez. 2013. pela performance e a encenação performática. Disserta-
ção (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do
GIORDANO, Davi. Ações de rua como a busca pelo en-
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Pro-
contro, pela subjetividade e pelos afetos os artistas em
grama de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Natal, 2012.
256
O CIRCO SOCIAL:
TRANS/FORMANDO E TRANS/PORTANDO
Marilia Teodoro de Leles
É certo que a palavra performance192 tem sido bastante utilizada em português em diversas árease
com sentidos variados. Na educação física, por exemplo, este termo tem uso corrente, possuindo um signi-
ficado semelhante àquele registrado pelodicionárioAurélio Básico de Língua Portuguesa (1988, p. 497): “1.
Atuação, desempenho(especialmente em público). 2. Esport. O desempenho de um desportista (ou de um
cavalo de corrida)em cada uma de suas exibições”. Neste caso,a palavra performancevincula-se estritamente
ao desempenhoe está vinculada aos scores, ao resultado, apenas quantitativo, de erros e acertos, pontuações,
alcançados dentro das especificidades e regras das diversas modalidades esportivas.
Robson Camargo (2015) destaca que o termo performance tem sido também entendido, de for-
ma genéricae limitada, sendo confundido apenas como sinônimo de um determinado movimento artístico
(Performance Art) ou de uma determinada manifestação cultural, além de remeter para nomear a ações do
cotidiano, o que acaba gerando, segundo o autor, um significado classificatório que esvazia o seu complexo
sentido de análise.
A utilização deste termo em sentido restrito tem sido alvo de críticas por estudiosos que se esforçam
em demonstrar a complexidade, multiplicidade e diversidade presentes neste campo. Segundo o antropólo-
go John Dawsey (2007, p. 529), “o conceito de performance adquire formas variadas, cambiantes e híbridas.
Há algo de não resolvido neste conceito que resiste às tentativas de definições conclusivas ou delimit