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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL – RBDPro

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R454 Revista Brasileira de Direito Processual : RBDPro. – ano 15, n. 59, (jul./set. 2007)- . – Belo Horizonte:
Fórum, 2007-

Trimestral
ISSN 0100-2589

Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./jun.1978 pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG.
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./jun. 1988 pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ.
Publicação interrompida em 1988 e retomada pela Editora Fórum em 2007.

1. Direito processual. I. Fórum.


CDD: 347.8
CDU: 347.9

© 2013 Editora Fórum Ltda.


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Luís Cláudio Rodrigues Ferreira


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Luiz Fernando de Andrada Pacheco
Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados Marilane Casorla
são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Bibliotecária: Tatiana Augusta Duarte - CRB 2842 - 6ª Região
Projeto gráfico: Virgínia Loureiro
Diagramação: Reginaldo César de Sousa Pedrosa

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Sumário

Editorial ................................................................................................................................................................................................. 7

DOUTRINA
Artigos

As liminares ambientais e o princípio da precaução


Eduardo José da Fonseca Costa................................................................................................................................................................. 11
1  Introdução........................................................................................................................................................................... 11
2  A dinâmica tipológica das liminares.................................................................................................................... 13
3  As liminares ambientais e o princípio da precaução................................................................................ 17
4  A jurisprudência............................................................................................................................................................... 22
5  Remate................................................................................................................................................................................... 26
Referências.......................................................................................................................................................................... 27

A incidência da prescrição em face da autonomia do Direito Processual


César Fiuza, Regina Ribeiro............................................................................................................................................................................ 29
1  Introdução........................................................................................................................................................................... 29
2  Definição e natureza jurídica da pretensão ................................................................................................... 33
3  Extinção da responsabilidade.................................................................................................................................. 38
4  Conclusão............................................................................................................................................................................ 44
Referências.......................................................................................................................................................................... 45

Prescrição, decadência e imprescritibilidade no direito material coletivo – Análise crítica


da recente jurisprudência do STJ
Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, Marcelo Malheiros Cerqueira..................................................................... 47
1  Introdução........................................................................................................................................................................... 48
2  Critérios para identificação da prescrição, decadência e imprescritibilidade........................... 49
3  Direitos essencialmente coletivos e direitos acidentalmente coletivos – Reflexos
no estudo hermenêutico dos prazos prescricionais e decadenciais.............................................. 54
4  Direito material coletivo e os prazos prescricionais e decadenciais previstos nos
diplomas normativos que integram o microssistema processual coletivo................................ 56
5  As lacunas legais em tema de prescrição e decadência e o problema da
integração pela analogia............................................................................................................................................ 61
6  Conclusão............................................................................................................................................................................ 64
Referências ......................................................................................................................................................................... 65

Embargos à execução – Algumas considerações


Danilo Lee...................................................................................................................................................................................................................... 67
1  Introdução........................................................................................................................................................................... 67
2  Embargos à execução.................................................................................................................................................. 73
2.1  Custas..................................................................................................................................................................................... 73
2.2  Prazo........................................................................................................................................................................................ 77
3  Conclusão............................................................................................................................................................................ 81
Referências.......................................................................................................................................................................... 82

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Princípios da defesa da cidadania
Alice Ribeiro de Sousa........................................................................................................................................................................................ 85
1  Noções introdutórias.................................................................................................................................................... 85
2  A cidadania e os direitos humanos...................................................................................................................... 88
3  Direitos humanos e defesa da cidadania......................................................................................................... 91
4  Direitos transindividuais e cidadania.................................................................................................................. 95
5  Princípios aplicáveis à defesa da cidadania..................................................................................................... 98
6  Conclusão......................................................................................................................................................................... 103
Referências....................................................................................................................................................................... 106

Medidas cautelares pessoais diversas da prisão


Carlos Henrique Borlido Haddad........................................................................................................................................................... 107
1  Introdução........................................................................................................................................................................ 107
2  Medidas cautelares pessoais diversas da prisão....................................................................................... 108
3  Disposições gerais....................................................................................................................................................... 110
4  Escala de coercitividade........................................................................................................................................... 117
5  Cautelares em espécie.............................................................................................................................................. 118
5.1  Comparecimento periódico em juízo............................................................................................................. 119
5.2  Proibição de frequentar determinados lugares........................................................................................ 120
5.3  Proibição de ausentar-se da comarca ou do país.................................................................................... 122
5.4  Proibição de manter contato com pessoa determinada.................................................................... 124
5.5  Fiança................................................................................................................................................................................... 125
5.6  Suspensão de atividade........................................................................................................................................... 127
5.7  Internação provisória................................................................................................................................................. 131
5.8  Recolhimento domiciliar......................................................................................................................................... 131
5.9  Monitoração eletrônica............................................................................................................................................ 133
6  Duração das medidas cautelares........................................................................................................................ 136
7  Conclusões....................................................................................................................................................................... 140
Referências....................................................................................................................................................................... 141

A trajetória doutrinária e judicial da desapropriação judicial – Perspectivas e prognósticos


(§§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil)
Voltaire de Freitas Michel............................................................................................................................................................................. 143
1  Introdução........................................................................................................................................................................ 143
2  Trajetória doutrinária – Da indecisão à acessão........................................................................................ 146
2.1  Desapropriação judicial ou usucapião coletivo?...................................................................................... 146
2.2  Quebrando o DNA do instituto – A sua definição como acessão social invertida............... 151
3  Trajetória judicial – Quando, onde, como aplicar o instituto? ........................................................ 153
3.1  Dedução pelos possuidores em ação própria ou em exceção em ação possessória....... 153
3.2  Dedução pelo reivindicante a título de pedido sucessivo ou em ação própria................... 154
4  Conclusão – Perspectivas e prognósticos.................................................................................................... 155
Referências....................................................................................................................................................................... 156

Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el


activismo judicial
Juan Felipe Vallejo Osorio............................................................................................................................................................................ 159
I  Introducción.................................................................................................................................................................... 160
II  Importancia de la discusión sobre el concepto de verdad en el ámbito del
proceso jurisdiccional................................................................................................................................................ 163

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III  La concepción de verdad en las teorías del activismo judicial y del garantismo
procesal.............................................................................................................................................................................. 169
IV  Garantismo y activismo ¿doctrinas irreconciliables?................................................................................. 175
V  La necesidad de trascender la discusión....................................................................................................... 181
VI  Conclusiones................................................................................................................................................................... 195
Referencias....................................................................................................................................................................... 196
Cibergrafía......................................................................................................................................................................... 198
Jurisprudencia referenciada.................................................................................................................................. 198

Estrutura técnica e sistemática do novo Código de Processo Civil (Projeto aprovado no


Senado) – Aspectos positivos e negativos
Luciano Henrik Silveira Vieira................................................................................................................................................................... 201
1  Introdução........................................................................................................................................................................ 201
2  Esboço da distinção estrutural entre o Código de 1973 e o Projeto aprovado
no Senado Federal....................................................................................................................................................... 202
3  Aspectos positivos e negativos identificados............................................................................................ 204
3.1  Aspectos positivos....................................................................................................................................................... 204
3.2  Aspectos negativos..................................................................................................................................................... 207
4  Considerações finais................................................................................................................................................... 213
Referências....................................................................................................................................................................... 215

Parecer

Processo administrativo tributário – Prova por amostragem e distribuição dinâmica


do ônus da prova
Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim.......................................................................................................................................................... 219
1  Síntese dos fatos........................................................................................................................................................... 219
2  Algumas considerações sobre a distribuição do ônus da prova.................................................... 221
3  A distribuição do ônus da prova no processo administrativo......................................................... 226
4  O caso em análise........................................................................................................................................................ 229
5  Conclusões....................................................................................................................................................................... 237

RESENHA

CUNHA, Leonardo Carneiro da. A atendibilidade dos fatos supervenientes no processo civil:
uma análise comparativa entre o sistema português e o brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012
Fredie Didier Jr....................................................................................................................................................................................................... 241

ÍNDICE ........................................................................................................................................................................................................................ 243

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES...................................................................................................................................................247

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Editorial

A presente edição traz as seguintes contribuições doutrinárias:


1 As liminares ambientais e o princípio da precaução. Eduardo José da Fonseca
Costa faz uma instigante abordagem que radiografa o regime diferenciado das
tutelas sumárias ambientais. Com esse propósito, elucida a influência que o prin-
cípio da precaução exerce sobre a estrutura e a dinâmica dos pressupostos para a
concessão das tutelas de urgência.
2 A incidência da prescrição em face da autonomia do Direito Processual. César
Fiuza e Regina Ribeiro desenvolveram interessante artigo no qual fazem uma
releitura acerca da finalidade da prescrição. Segundo suas conclusões, superada
a teoria processual do direito concreto de agir, melhor é compreender que a pres-
crição extingue a responsabilidade do devedor e não a ação ou pretensão do autor.
3 Prescrição, decadência e imprescritibilidade no direito material coletivo
– Análise crítica da recente jurisprudência do STJ. Tereza Cristina Sorice Baracho
Thibau e Marcelo Malheiros Cerqueira denunciam a utilização abusiva da ana-
logia pelos tribunais na aplicação dos prazos prescricionais e decadenciais no
âmbito do direito material coletivo.
4 Embargos à execução – Algumas considerações. Danilo Lee advoga que os
embargos à execução apresentam natureza de defesa e não de ação autônoma.
Alicerça suas ideias nas alterações realizadas no Código de Processo Civil pelas
Leis nºs 11.232/2005 e 11.382/2006.
5 Princípios da defesa da cidadania. Alice Ribeiro de Sousa trata do arcabouço
de princípios responsáveis por assegurar direitos mínimos ao homem e do modo
como eles o auxiliam no exercício de sua cidadania.
6 Medidas cautelares pessoais diversas da prisão. Carlos Henrique Borlido
Haddad analisa a Lei nº 12.403/11, que introduziu sensíveis modificações na disci-
plina das medidas cautelares penais.
7 A trajetória doutrinária e judicial da desapropriação judicial – Perspectivas e
prognósticos (§§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil). Neste artigo, Voltaire de Freitas
Michel (i) descreve a evolução doutrinária sobre a natureza da desapropriação
judicial (Código Civil, §§4º e 5º do art. 1.228); (ii) analisa precedentes judiciais cuja
abordagem envolve o instituto em estudo; e (iii) propõe alternativas para que seja
compreendido e aplicado mais adequadamente.

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8 Editorial

8 Consideraciones acerca de la justicia y la verdade en el garantismo procesal


y en el activismo judicial. O processualista colombiano Juan Felipe Vallejo Osorio
investe esforços no difícil tema, de ordem jurídico-filosófica, atinente à justiça e à
verdade, e o faz com propriedade ao situá-lo no contexto do debate travado entre ati-
vistas e garantistas, sobretudo com aporte doutrinário coletado da Latino-América.
9 Estrutura técnica e sistemática do novo Código de Processo Civil (Projeto
aprovado no Senado) – Aspectos positivos e negativos. Luciano Henrik Silveira Vieira
aborda temática inerente ao Projeto do novo Código de Processo Civil, em trânsi-
to no Congresso Nacional, para o fim de apontar seus aspectos negativos e posi-
tivos. Apega-se, para tanto, ao projeto teórico-constitucional-democrático nascido
dos estudos desenvolvidos na PUC Minas.
A revista também traz interessante parecer, elaborado pelo Professores
Fredie Didier Jr. e Daniela Bonfim, sobre assuntos envolvendo a prova por amos-
tragem e a distribuição dinâmica do ônus da prova em sede de processo adminis-
trativo tributário.
Por fim, uma resenha, também elaborada por Fredie Didier Jr., referente à
última obra do Professor Leonardo Carneiro da Cunha, publicada em Portugal, é
apresentada como sugestão de leitura.
Boa leitura a todos!

Os Diretores

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Doutrina
Artigos

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As liminares ambientais e o princípio
da precaução

Eduardo José da Fonseca Costa


Juiz Federal Substituto. Presidente do Juizado Especial
Federal de Franca – SP. Bacharel em Direito pela USP.
Especialista, Mestre e Doutorando em Direito Processual Civil
pela PUC-SP. Membro do IBDP e da ABDPC. Membro do
Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual.

Resumo: Tendo em vista a ingente necessidade de uma construção dog-


mática que leve em consideração as especificidades do processo coletivo
ambiental, o presente trabalho tem como objetivo estudar a influência que
o princípio jurídico da precaução exerce sobre a estrutura e a dinâmica dos
pressupostos para a concessão das tutelas de urgência e, com isso, radiogra-
far o regime diferenciado das tutelas sumárias ambientais.

Palavras-chave: Processo coletivo ambiental. Liminares. Tutela de urgência.


Fumus boni iuris. Periculum in mora. Princípio da precaução.

Sumário: 1 Introdução – 2 A dinâmica tipológica das liminares – 3 As limi-


nares ambientais e o princípio da precaução – 4 A jurisprudência – 5 Remate
– Referências

1 Introdução
Já se tornou um lugar-comum na processualística brasileira a afirmação de
que o direito material influencia o formato processual. Noutras palavras: o processo
civil deve adequar-se às vicissitudes específicas da relação de direito material
controvertida. Para a maioria dos doutrinadores, está-se diante da teoria da tutela
jurisdicional diferenciada. Há quem diga, porém, que a aludida teoria nada mais
é do que uma descoberta tardia da teoria da ação de direito material, desenvol-
vida originariamente por Pontes de Miranda e explorada com afinco por Ovídio
Baptista da Silva. De qualquer forma, não é preciso dizer que a redescoberta do
indissociável nexo entre direito material e direito processual tem estimulado a
produção de inúmeras obras sobre direito processual tributário, direito processual

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12 Eduardo José da Fonseca Costa

previdenciário, direito processual empresarial, direito processual ambiental, direito


processual público (péssimo nome atribuído ao conjunto de normas que regulam
a presença da Fazenda Pública em juízo) etc. Apesar das louváveis exceções,1 a
maioria desses trabalhos tem se limitado a entender o fenômeno “de fora para
dentro”. Ou seja, eles reproduzem uma processualística tradicional, regada, porém,
a exemplos do direito material que “influenciaria” o processo. Nisso tem se cir-
cunscrito “ar de especificidade” dessas obras. Como se nota, falta uma intelecção
“de dentro para fora”. Quando muito é exibida meia dúzia de princípios “específi-
cos”, que confeririam “autonomia dogmática” ao ramo processual estudado. Mesmo
assim, a existência desses princípios é dubitável. Uma análise dura demonstra que
eles não passam de regras excepcionais decorrentes da colisão entre princípios
processuais civis e princípios do direito material aplicado.
No chamado “direito processual ambiental”, as coisas não acontecem de
maneira diferente. Aqui, há inúmeras colisões interessantes entre os princípios
processuais civis (correlação, isonomia, intangibilidade da coisa julgada etc.) e os
princípios ambientais (função socioambiental da propriedade, precaução, poluidor-­
pagador etc.), que acabam sendo harmonizadas sob o pálio do postulado da
proporcionalidade. Não por outra razão o processo coletivo ambiental apresenta
várias particularidades dogmáticas, positivas e pragmáticas: o vínculo rebus sic
stantibus entre a coisa julgada material e a evolução do estado da técnica; a mul-
tidisciplinaridade da prova pericial; a relativização do princípio da sucumbência;
a irrestrita aplicabilidade da teoria das cargas probatórias dinâmicas; o enfraque-
cimento do princípio da congruência; a elevada complexidade das execuções de
liminar e sentença; o acentuado grau de iniciativa judicial probatória; o potencial
para o desenvolvimento de relações processuais civis multipolares (em que é difí-
cil identificar quem são os autores e quem são os réus); a indisfarçável “margem
de discricionariedade controlada” atribuída aos juízes na escolha do meio técnico
mais hábil à consecução da finalidade ambiental; a dificuldade de saber se um jul-
gamento é de “procedência total”, “procedência parcial” ou “improcedência”; etc.
No entanto, um dos traços mais marcantes do processo ambiental está na
lógica material subjacente à concessão de provimentos de urgência. É comum os
doutrinadores dizerem que as liminares são as medidas de proteção ambiental
par excellence. Todavia, a maioria deles ainda não logrou identificar a “partitura
invi­sível” que rege a concessão dessas tutelas em matéria ambiental. Como se verá
ao longo deste trabalho, a incidência do princípio da precaução modifica a lógica

1
A excelente obra Processo civil ambiental, de Marcelo Abelha Rodrigues, é uma delas.

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As liminares ambientais e o princípio da precaução 13

dos pressupostos para a outorga das tutelas de urgência, o que dá às liminares


ambientais um matiz especial e um regime processual diferenciado. Trata-se, por-
tanto, de um estudo “de dentro para fora”, em que se buscará o desenvolvimento
de uma ciência processual “esverdeada”. Nele, serão apresentados o arquétipo
dinâmico e unificador que está por trás de toda e qualquer liminar e a maneira
como o princípio da precaução contagia esse arquétipo para uma melhor conse-
cução da finalidade ambiental. Para tanto, será necessário estudar o direito das
liminares sob um enfoque menos estático-legalista e mais dinâmico-pragmático.
Sem esse enfoque, não é possível apreender com precisão as especificidades do
processo coletivo ambiental.

2  A dinâmica tipológica das liminares


A prematura “ciência processual dos professores” [law-in-books] defende
que os pressupostos para a concessão de tutelas de urgência são cumulativos
e autônomos entre si: se estiverem presentes, o juiz tem o dever de conceder a
tutela; se um deles faltar, há o dever de denegá-la. É como uma porta com duas
fechaduras: é preciso ter duas chaves para abri-la; uma apenas não basta. Todavia,
a “ciência processual do cotidiano forense” [law-in-action] revela que as coisas não
se dão de maneira tão simplista e mecânica. No dia a dia do foro, quanto mais
“denso” é o fumus boni iuris, com menor rigor exige-se o periculum in mora; por
outro lado, quanto mais “denso” é o periculum in mora, exige-se com menor rigor o
fumus boni iuris.2 Noutros termos: é possível que a presença “forte” de um pressu-
posto “compense” a presença “fraca” do outro, cabendo ao juiz a valoração desta
“suficiência compensatória”, que a realiza em cada caso concreto e dentro de uma

Segundo a jurisprudência, “à luz do princípio da proporcionalidade é forçoso concluir que: a) quanto


2

mais denso o fumus boni juris, com menos rigor deverá o juiz mensurar os pressupostos concer-
nentes ao periculum in mora; b) quanto maior o risco de perecimento do direito invocado ou a
probabilidade de ocorrer dano de difícil reparação, com maior flexibilidade deverá considerar
os pressupostos relativos ao fumus boni iuris” (TJSC, AI nº 2008.031776-5, 1ª Câmara de Direito
Público, Rel. Des. Newton Trisotto, julg. 24.03.2009. Disponível em: <http://ap.tjsc.jus.br/jurisprudencia/>.
Acesso em: 16 jun. 2009). Agustín Gordillo, ao estudar no direito argentino tutelas cautelares no
controle judicial da Administração, afirma existir uma “balanza entre el periculum y la verosimi-
litud”: “Los dos requisitos para otorgar una cautelar — el fumus y el peligro en la demora o la
gravedad o irreparabilidad del daño — funcionam en vasos comunicantes: a mayor verosimilitud
del derecho cabe exigir menor peligro en la demora; a una mayor gravedad o irreparabilidad del
perjuicio se corresponde una menor exigencia en la verosimilitud prima facie del derecho. Dicho
en otras palabras, tales requisitos se hallan relacionados en que a mayor verosimilitud del dere-
cho cabe ser menos exigente en la gravedad e inminencia del daño y viceversa, cuando existe el
riesgo de un daño extremo e irreparable, el rigor acerca del fumus se debe atenuar” (Tratado de
derecho administrativo, t. II, p. XIII-32).

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14 Eduardo José da Fonseca Costa

“margem controlada de discricionariedade”. Logo, do “direito vivo”, extrai-se que


esses pressupostos são interdependentes, i. e., que entre fumus e periculum existe
um “vínculo de complementaridade”, um “vaso comunicante”, um “liame elástico”.
Trata-se, enfim, de um “padrão normativo”, só verificável por observação metódica
da rotina espontânea dos Tribunais, não por leitura exclusiva dos textos de direito
positivo.
É comum ver tutelas liminares sendo concedidas com a só presença de um
fumus boni iuris extremado. Nelas, o juiz defronta-se com uma pretensão de direito
material de existência quase-certa, cuja procedência salta aos olhos simpliciter et
de plano. Nesses casos, entende-se que há causa suficiente para a concessão da
liminar, sem tomar-se em consideração a eventual presença de periculum in mora.
Não raro decisões liminares em matéria tributária e previdenciária são proferidas
com lastro exclusivo nas súmulas dos Tribunais Superiores, em jurisprudência
uníssona dos Tribunais Inferiores, nas decisões do STF em controle abstrato de
constitucionalidade, ou nos precedentes que se cunham em recursos especiais
ou extraordinários. Daí já se nota que a tutela de evidência não é novidade alguma
na experiência quotidiana forense.
Da mesma forma, vários são os casos em que o juiz praticamente se vale
apenas de um periculum in mora extremado, de uma emergência crítica, para
conceder a tutela liminar. Vejam-se as situações que envolvem: planos de saúde,
em que são concedidas liminares determinando a internação do autor, o trata-
mento de enfermidades descritas na petição inicial ou a realização de consultas
e exames, embora haja cláusulas contratuais de exclusão expressa da cobertura
requerida; concursos públicos, nos quais é permitido que o candidato, eliminado
em exame médico ou psicotécnico, participe das próximas etapas, sob pena de
impossibilitar-se a efetivação de eventual sentença de procedência futura; licita-
ções, em que não raro o concorrente eliminado pede a concessão de liminar para
prosseguir no certame, sob pena de tornar-se difícil a efetivação da eventual sen-
tença favorável de mérito, visto que o autor não terá participado das demais
fases da licitação; títulos protestados, cuja publicidade é liminarmente sustada
para evitar-se o desgaste do crédito da empresa, cuja atividade dependa de uma
boa reputação perante o mercado.3
Em meio a essas duas extremidades, há uma sucessão infinitesimal de limi-
nares possíveis. Dentro dessa infinitude, podem-se destacar oito tipos fundamen-
tais: 1. Tutela pura de fumus extremado; 2. Tutela pura de periculum extremado;

3
Para uma análise mais aprofundada dos acórdãos que confirmam tais constatações, ver nosso O
“direito vivo” das liminares, p. 75 et seq.

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As liminares ambientais e o princípio da precaução 15

3. Tutela de fumus extremado e periculum não extremado; 4. Tutela de periculum


extremado e fumus não extremado; 5. Tutela de fumus e periculum extremados;
6. Tutela de fumus e periculum não extremados; 7. Tutela pura de fumus de extre-
midade presumida (p. ex., liminar de desocupação de imóvel em ação de despejo
— Lei nº 8.245/91, art. 59, §1º — liminar de busca e apreensão em alienação fidu-
ciária — Decreto-Lei nº 911/69, art. 3º); 8. Tutela pura de periculum de extremidade
presumida (p. ex.: liminar de imissão de posse provisória em desapropriação —
Decreto-Lei nº 3.365/41, art. 15).4 Como é possível ver, todas essas medidas limi-
nares nada mais são do que “combinações” não axiomáticas dos diferentes graus
de fumus boni iuris e periculum in mora.
Tudo isso mostra que, na prática, a concessão de tutelas liminares obedece
a uma estrutura tipológica, não a uma estrutura conceitualista.
Lembre-se que um conceito é formado de algumas notas distintivas parti-
culares, que se desligam e se abstraem do objeto no qual se apresentam e, na sua
generalização, são isoladas e separadas umas das outras. Portanto, aqui, não há
“mais ou menos”: ou um objeto é enquadrado no conceito porque possui marcas
características concretas que se subsumem a todas as notas distintivas abstratas
descritas na definição, ou ele não se enquadra. Logo, no conceito, não se apreende
o objeto na plenitude substancial de todas as suas partes e particularidades, como
um todo único. Assim sendo, quando se enxerga a concessão de tutelas liminares
à luz de um pensamento conceitualista, tende-se a dizer que essa concessão é
uma mera subsunção por operação silogística, que ocorre porque, no caso con-
creto, as alegações do autor são enquadradas no conceito de fumus boni iuris e
a situação que o aflige se encaixa no conceito de periculum in mora. Entretanto,
se um desses encaixes não for possível, a medida liminar não será concedida. É
uma aplicação baseada na alternativa “tudo ou nada”. Nesse sentido, a explicação
conceitualista está em consonância com a velha cantilena racional-iluminista de
inspiração cartesiana. De acordo com ela, basta ao juiz averiguar metodicamente
— dentro de um raciocínio linear e de uma neutralidade axiológica — se os pres-
supostos descritos na lei estão presentes: se todos estiverem concretizados, o juiz
terá o dever de conceder a providência liminar; se algum deles faltar, terá o dever
de denegá-la.
Contudo, a vida mostra que a concessão de medidas liminares não se sub-
sume a essa rigidez procedimental. Nessa matéria, a prática cotidiana forense
sói enveredar um raciocínio tipológico, que, por sua vez, pressupõe circularidade

Para uma análise mais aprofundada desses oito tipos: idem, p. 123 et seq.
4

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e avaliações subjetivas. Ora, diferentemente do conceito, o tipo é mais fluido e


adaptável. Nele, são permitidas formas intermediárias e “figuras híbridas”, as quais
geralmente não se podem incluir no esquema previamente dado. Isso porque
a composição do tipo nunca parte dum método isolante e abstrativo de notas
singulares que são pensadas isoladamente, mas sempre de um método de agru-
pamento e concretização de notas distintivas, que somente se podem apreender
em seu todo. Assim, se o conceito é uma forma abstrata e fragmentada à qual
os objetos são subsumidos por encaixes, o tipo é um esquema mais concreto e
íntegro a que os objetos se achegam por comparações (motivo pelo qual os traços
do tipo podem aparecer na imagem particular do objeto com diferentes matrizes
e combinações).
Nesse sentido, o fumus boni iuris e o periculum in mora são vistos como pau-
tas “móveis”, que podem se apresentar em graus ou níveis distintos e que, por
isso, não são suscetíveis de fixação em termos genéricos. Ou seja, o fumus boni
iuris e o periculum in mora são vistos como pressupostos que precisam ser antes
concretizados pelo julgador e relacionados entre si em uma espécie de “coorde-
nação valorativa”, para poderem ser aplicados ao caso. Isso mostra que é inútil
definir fumus boni iuris e periculum in mora: é melhor que sejam “explicitáveis”,
“descritíveis” ou “explicáveis”, e não propriamente “definíveis”.
Por conseguinte, para conceder-se a liminar, não há a necessidade da pre-
sença simultânea dos dois pressupostos. Entre eles há uma espécie de permuta-
bilidade livre. Se o caso concreto desviar-se do “tipo normal” e somente um dos
pressupostos estiver presente em “peso decisivo”, mesmo assim será possível
conceder-se a medida, embora por força de uma “configuração atípica” ou “menos
típica”, que se afasta do modelo descrito na lei. Tudo se passa como se, nos proces-
sos concretos de concessão de tutelas liminares, o fumus boni iuris e o periculum
in mora fossem “elementos” ou “forças” que se articulam de forma variável,
sem absolutismo e fixidez dimensional. O que importa, no final das contas, é a
“imagem global” do caso, ainda que a relação entre o fumus e o periculum seja
assimétrica.5

5
Para uma diferenciação entre conceito e tipo: DERZI. Direito tributário, direito penal e tipo, p. 37 et
seq.; KAUFMANN. Filosofia do direito, p. 188 et seq.; LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito,
p. 621 et seq.; YARSHELL. Tutela jurisdicional, p. 42 et seq.

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a) Modelo conceitualista de subsunção:


[Hipótese de Incidência] N’(1) + N’(2) + N’(3) ... N’(n)

[Suporte Fático] N(1) + N(2) + N(3) ... N(n)

b) Modelo tipológico de comparação:


[Hipótese de Incidência] N’(1) ↔ N’(2) ↔ N’(3) ... N’(n)

[Suporte Fático] N(1) ↔ N(2) ↔ N(3) ... N(n)

3  As liminares ambientais e o princípio da precaução


Nas liminares ambientais também são comuns as dessimetrias entre o fumus
boni iuris e o periculum in mora. A situação de urgência costuma ser exagerada,
autorizando, assim, a concessão da tutela pura de urgência extremada. Daí por
que não se pode tomar ao pé da letra a afirmação, feita por Fiorillo, no sentido
de que “a concessão da liminar antecipatória do direito exige o preenchimento
dos requisitos do periculum in mora e do fumus boni iuris”.6 Como já visto acima,
esses dois requisitos não são necessariamente cumulativos. Afinal de contas, o
bem jurídico ameaçado é de enorme relevância, já que o meio ambiente ecologi-
camente equilibrado é bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade
de vida das presentes e futuras gerações (cf. caput do art. 225 da CF/88). Como se
isso não bastasse, a gravidade do dano aos bens ambientais é altíssima e a rever-
sibilidade desse tipo de dano é assaz problemática. Em alguns casos, a natureza
precisa despender centenas de anos para reconstruir o que o homem destruiu em
poucas horas (ex.: recuperação de área devastada); noutros casos, a recomposição
é impossível (ex.: extinção de uma espécie animal). Isso sem contar os casos de
poluição nos quais a natureza necessita de milhares de anos para a decomposição
do material (p. ex., vidro). Portanto, não é raro que, nesse âmbito, mesmo que

Curso de direito ambiental brasileiro, p. 355.


6

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incipientes os elementos probatórios relativos à violação à legislação ambiental,


sejam concedidas liminares apenas com base em um periculum in mora robusto.
De qualquer maneira, aqui, a presença do periculum in mora é reforçada pela
incidência do princípio da precaução, que objetiva prevenir já uma suspeição de
perigo, ou garantir suficiente margem de segurança da linha de perigo [in dubio
pro securitate].7 Num certo sentido, por força do princípio da precaução, pode-se
dizer que, na dúvida, deve-se conferir primazia ao mau prognóstico sobre o bom.
No ordenamento brasileiro, o mencionado princípio deflue do texto do artigo
225, §1º, IV, da Constituição Federal de 1988, que prescreve o estudo prévio de
impacto ambiental para a “instalação de obra ou atividade potencialmente cau-
sadora de significativa degradação do meio ambiente”. Tal dever de cautela, aliás,
consta do Decreto Legislativo nº 1, de 03.02.1994, por meio do qual o Congresso
Nacional aprovou o texto da Convenção-Quadro sobre Mudanças do Clima, acor-
dada pelo Brasil no âmbito da ONU por ocasião da chamada “ECO 92” (Artigo 3º, 3:
“As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar
as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem
ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não
deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que
as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser
eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor
custo possível. Para esse fim, essas políticas e medidas devem levar em conta os
diferentes contextos socioeconômicos, ser abrangentes, cobrir todas as fontes,
sumidouros e reservatórios significativos de gases de efeito estufa e adaptações,
e abranger todos os setores econômicos. As Partes interessadas podem realizar
esforços, em cooperação, para enfrentar a mudança do clima”).
Implicitamente, o princípio da precaução deflue do art. 54 da Lei nº 9.605/98,
que qualifica como crime a conduta de “causar poluição de qualquer natureza
em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou
que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”,
sendo que o §3º impõe idêntica pena a “quem deixar de adotar, quando assim
o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de
dano ambiental grave ou irreversível” (grifos nossos). Recentemente, a dita Lei

7
Cf. DERANI. Direito ambiental econômico, p. 149-152; MANCUSO. Transposição das águas do Rio
São Francisco: uma abordagem jurídica da controvérsia. Revista de Direito Ambiental, p. 64 et seq.
V. ainda: MACHADO. Direito ambiental brasileiro, p. 53 et seq. Preferindo empregar a expressão
“princípio da prevenção”, p. ex.: FIORILLO. Curso de direito ambiental brasileiro, p. 39-41; MILARÉ.
Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário, p. 165-167.

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As liminares ambientais e o princípio da precaução 19

de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005) consagrou o princípio no caput do art. 1º:


“Esta lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a
construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência,
a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o
consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos genetica-
mente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao
avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à
saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para
a proteção do meio ambiente”.8
Para sanar essa suspeição de perigo, o juiz expedirá: a) ordem liminar exe-
cutiva (p. ex., demolição forçada de obra); b) ordem mandamental de fazer
(p. ex., instalação de filtro em chaminé industrial); c) ordem mandamental de não
fazer (p. ex., paralisação de atividade); d) ordem mandamental de desfazer
(ex.: desmontagem de equipamentos); e/ou e) ordem mandamental de tolerar
(p. ex., tolerância à fiscalização ambiental). Isso significa que, mesmo que a parte
autora não haja conseguido coligir ab initio elementos que apontem para a pro-
babilidade da existência da pretensão por ela alegada, é de bom alvitre conceder-se
a liminar para evitar-se o possível início de uma degradação. Daí por que a conces-
são de liminares é ínsita aos processos ambientais. É como se o princípio jurídico
da precaução interviesse na “aritmética processual” e hipertrofiasse a presença do
periculum in mora, fazendo com que nessas demandas houvesse sempre a pre-
sença de um periculum in mora extremado in re ipsa. Em realidade, essa urgência
inerente às causas ambientais não apenas tornam pródigas as liminares: ela exige
que essas causas tenham desfecho célere (o que é assustadoramente desafia-
dor, visto que a complexidade das questões técnicas é incompatível com uma
instrução probatória rápida). Segundo o Prof. Marcelo Abelha Rodrigues, “não é
demasia ou devaneio afirmar que a questão da urgência na proteção do meio
ambiente é in re ipsa, pois a sua ubiquidade, instabilidade e essencialidade à vida
não permitem que se adote outra premissa senão a de que toda tutela jurisdicio-
nal em favor do meio ambiente deve ser tratada com a máxima urgência, pelos
riscos que o prejuízo ambiental causa à sociedade”.9 Na prática, isso faz com que,
em matéria de tutela jurisdicional do meio ambiente, a concessão de medida de

8
Sobre as bases textuais do princípio da precaução no direito brasileiro, p. ex.: MACHADO. Direito
ambiental brasileiro, p. 53 et seq.; MILARÉ. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário,
p. 166-167; SARLET; FENSTERSEIFER. Direito constitucional ambiental: Constituição, direitos funda-
mentais e proteção do ambiente, p. 240-241, nota 31.
9
Processo civil ambiental, p. 114.

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urgência seja regra, não exceção. Como sagazmente afirmado por Edis Milaré, “[...]
no Direito ambiental, diferentemente do que se dá com outras matérias, vigoram
dois princípios que modificam profundamente as bases e a manifestação do poder
de cautela do juiz: a) o princípio da prevalência do meio ambiente (da vida) e b) o
princípio da precaução, também conhecido como princípio da prudência ou da
cautela”.10
É importante frisar que não apenas o compósito fumus-periculum é um
“sistema móvel”, cujos elementos se mostram em pesos ou dosagens capazes de
“compensarem-se” mutuamente. O próprio periculum in mora também se com-
porta como um “sistema móvel”.11 Ora, o grau de periculum in mora é igual ao
grau de relevância do bem jurídico sob ameaça + o grau de irreversibilidade do
dano + o grau de gravidade do dano + o grau de probabilidade de ocorrência
do dano + o grau de proximidade da ocorrência do dano. Isso não quer dizer,
entretanto, que periculum in mora seja igual a relevância do bem jurídico sob risco
+ irreversibilidade do dano + probabilidade da ocorrência do dano + proximidade
da ocorrência do dano. Como já dito, não se pode definir o que seja periculum
in mora, mas tão somente descrevê-lo e explicá-lo. Isso gera a suspeita de que a
própria noção de periculum in mora seja tipológica, não conceitual. Assim, a “re-
levância do bem jurídico sob ameaça, a “irreversibilidade do dano”, a “gravidade do
dano”, a “probabilidade de ocorrência do dano” e a “proximidade da ocorrência
do dano” seriam traços tipológicos, atados uns aos outros por meio de “liames elás-
ticos”. Nesse sentido, o periculum é um “sistema móvel” inserido em um “sistema
móvel”; é uma parte fluida dentro de um todo fluido.12 Com isso, percebe-se que
o binômio fumus-periculum é um verdadeiro fractal, isto é, um objeto geométrico
não euclidiano, que pode ser dividido em partes, cada uma delas semelhante ao
objeto original [fenômeno da autossimilaridade].
Pois bem, numa demanda ambiental, p. ex., já se viu que os graus de “rele-
vância do bem jurídico sob ameaça”, de “irreversibilidade do dano” e de “gravidade
do dano” são bastante elevados. No entanto, pode ser que, em uma determinada
situação concreta, os graus de “probabilidade de ocorrência do dano” e/ou de

10
Direito do ambiente, p. 961.
11
A respeito da noção de “sistema móvel”, p. ex.: CANARIS. Pensamento sistemático e conceito de
sistema na ciência do direito, p. 127-148; FRADA. Teoria da confiança e responsabilidade civil, p. 289,
nota 268; LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 668-669, 680-682; MENEZES CORDEIRO.
Da boa fé no direito civil, p. 1262; VIEHWEG. Tópica y jurisprudencia, p. 138-143; WILBURG.
Desenvolvimento de um sistema móvel no direito civil. Direito e Justiça – Revista da Faculdade de
Direito da Universidade Católica Portuguesa, p. 55-73.
12
Sobre o tema, ver nosso O “direito vivo” das liminares, p. 178, nota 2.

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“proximidade da ocorrência do dano” não sejam altos (ou seja, é possível que
o perigo de damnum irreparabile não seja atual e/ou iminente, isto é, não seja
concreto e/ou próximo). Nessa hipótese, porém, o princípio jurídico-ambiental
da precaução sempre incidirá para garantir a presença de um periculum in mora
radical e suficiente para a concessão de, pelo menos, uma tutela pura de urgência
extremada. Como se vê, o princípio da precaução interfere na soma das dosagens
dos elementos móveis. Ou seja, ainda que se verifique faticamente que apenas
são máximos os graus da “relevância do bem jurídico ameaçado”, da “irreversibili-
dade do dano” e da “gravidade do dano”, o princípio da precaução garantirá nor-
mativamente, por presunção absoluta, que também serão máximas as densidades
da “probabilidade de ocorrência do dano” e da “proximidade da ocorrência do
dano”. Ou seja, ele preencherá a esqualidez dos outros elementos móveis.
Ora, em boa processualística, quando se está diante de uma tutela jurisdi-
cional direcionada a sanar uma situação de perigo de damnum irreparabile que
naturalmente não seja atual e iminente, diz-se que se está diante da velha tutela
preventiva em sentido estrito (atualmente apelidada, pela influência da doutrina
italiana, de “tutela inibitória”).13 Tutela preventiva lato sensu é gênero de que são
espécies a tutela preventiva stricto sensu, a tutela de urgência cautelar e a tutela
de urgência satisfativa.14 Bons exemplos de tutela preventiva stricto sensu são o
mandado de segurança preventivo, a nunciação de obra nova, a caução de dano
infecto e o interdito proibitório. No caso do interdito possessório, p. ex., garante-se
a manutenção do status quo a fim de que o conflito não descambe para uma grave
situação de violência descontrolada. Como se vê, há risco de dano grave e irrepa-
rável, mas ainda não existem dados indicativos de que esse risco seja concreto
ou de que o respectivo dano esteja próximo. Daí por que a tutela preventiva em
sentido estrito é a mais apropriada forma de tutela jurisdicional do meio ambiente:
em razão da grandiosidade, da indispensabilidade e da sensibilidade dos bens
ambientais, qualquer lesão a eles perpetrada pode redundar em danos graves e
irrecuperáveis à vida e ao bem-estar das presentes e futuras gerações; por con-
seguinte, é melhor preveni-los que remediá-los. Com isso se vê que, na dogmática
processual ambiental, o tema mais importante não deve ser a tutela repressiva

13
É interessante registrar o fetiche dos processualistas brasileiros pela doutrina estrangeira. Gastam
hoje rios de tinta sobre a tutela inibitória dos italianos, como se se tratasse de algo ultramoderno,
mas não se dão ao trabalho de consultar o pioneiro e melhor texto já escrito no Brasil sobre o
tema: o genial verbete “Tutela preventiva”, da autoria de Clóvis do Couto e Silva, encartado às
páginas 293-302 do volume 5 do Digesto de Processo e publicado em 1988 pela parceria entre a
Editora Forense e a Revista Brasileira de Direito Processual.
14
Cf. p. ex., SPADONI. Ação inibitória: a ação preventiva prevista no art. 461 do CPC, p. 27 et seq.

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condenatória (que é uma providência ex post facto), mas a tutela preventiva da


degradação ambiental (que é uma providência ex ante facto).15 Logo, para o direito
ambiental, em face da elevada carga de preventividade, as tutelas liminares
colocam-se no mesmo nível de relevância do EIA/RIMA, do manejo ecológico,
do tombamento, das sanções administrativas etc.16

4  A jurisprudência
A dilatação do periculum in mora pelo princípio da precaução e a possibi-
lidade de concessão de liminar mesmo diante de um fumus boni iuris bastante
esquálido são plenamente confirmados pela prática forense.
Em sessão de 04 de abril de 2007, a Segunda Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Mato Grosso manteve a decisão liminar, proferida em ação civil pública
aforada pelo Ministério Público, que determinara a paralisação de atividades de
beneficiamentos de grãos até que se tomassem providências necessárias à inibi-
ção de emissão de poluentes (AI nº 49.815/2006, Rel. Des. José Zuquim Nogueira,
v. u., negaram provimento). Nesse caso em particular, não se pode dizer que a
Corte tenha propriamente outorgado uma tutela de urgência extremada pura,
tendo em vista que a Câmara julgadora identificou a presença do fumus boni iuris a
partir de “documentos colacionados aos autos, que foram suficientes para demons-
trar a poluição causada pela emissão de partículas poluentes pelo agravante, que
está prejudicando o meio ambiente e também a saúde das pessoas que habitam
o seu entorno”. Porém, de acordo com o eminente relator, “ainda que não tivesse
sido demonstrada efetivamente a atividade poluidora, seria possível a decisão
antecipatória da tutela, mediante a verificação de indícios de poluição, porque,
como é sabido, o Direito Ambiental tem como princípio basilar a prevenção. Sob
o enfoque dessa ótica preventiva, ressalte-se que a ausência de certeza científica
absoluta não pode servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas efe-
tivas visando a evitar o dano ao meio ambiente e à saúde daqueles atingidos. Vale
dizer que a incerteza científica milita em favor do meio ambiente [...]”.17

15
No mesmo sentido, MARINONI. Tutela inibitória: individual e coletiva, p. 100: “[...] se no plano do
direito ambiental deseja-se a prevenção, e não a reparação, não é de grande valia teorizar a res-
peito da responsabilidade do poluidor, sendo muito mais relevante pensar na tutela inibitória do
ato lesivo ao meio ambiente”.
16
Cf. FIORILLO; RODRIGUES; NERY. O princípio da prevenção e a utilização de liminares no direito
ambiental brasileiro. Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios, p. 119.
17
Disponível em: <http://www.tj.mt.gov.br/jurisprudenciapdf/GEACOR_49815-2006_11-04-07_81940.
pdf>. Acesso em: 1º jun. 2009.

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As liminares ambientais e o princípio da precaução 23

Em sessão do dia 17 de janeiro de 2012, a Quarta Câmara Cível do Tribunal


de Justiça do Mato Grosso do Sul deu provimento ao agravo de instrumento inter­
posto pelo Município de Campo Grande, revogando a decisão liminar proferida
pelo juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública e de Registros Públicos da Comarca
de Campo Grande, que havia prorrogado a licença de operação da empresa de
mineração agravada (AI nº 2011.032699-1/0000-00, Rel. Des. Paschoal Carmello
Leandro, v. u., deram provimento). No que diz respeito à presença do fumus boni
iuris, o eminente relator asseverou que as questões controvertidas “exigem maio-
res esclarecimentos por parte da agravada, constituindo-se numa circunstância
prejudicial ao reconhecimento da fumaça do bom direito sem uma cognição
mais exauriente para aferimento da realidade dos eventuais prejuízos ao meio
ambiente”. Ou seja, em face da “grande complexidade” das questões, o julgador
pôs-se francamente em estado de dúvida. Todavia, no que diz respeito à presença
do periculum in mora, não houve vacilações: “[...] o escopo do legislador constitu-
cional ao determinar providências para a proteção concreta e eficiente do meio
ambiente como um direito de toda a população, ou seja, a defesa de um bem
maior, transcendente, de última geração, se comparado aos tradicionais direitos
individuais, impondo aceitar que as exigências do Poder Público e as demais que
correlatamente são utilizadas para remediar a degradação do pouco que resta
operam-se na busca de decisões eficazes que permitam impedir a devastação,
prestigiando-se, destarte, o princípio da prevalência do meio ambiente, bem
como o princípio da precaução”.18
Já a Segunda Câmara de Direito Público do Egrégio Tribunal de Justiça de
Santa Catarina, em sessão do dia 18 de julho de 2008, manteve a decisão liminar
que havia determinado, em ação civil pública, a suspensão das obras realizadas
para a construção de uma clínica médica em uma área próxima ao Ribeirão Gaspar
Grande, no Município de Gaspar (AI nº 2008.003664-5, Rel. Des. Cid Goulart, v. u.,
negaram provimento). Para o eminente relator, o projeto mostrado pelo agra-
vante indicava que o empreendimento obedeceria ao distanciamento mínimo
imposto pela Lei Municipal nº 1.153/88; no entanto, não havia plena certeza de
que a sua execução efetivamente obedeceria a essa distância mínima, motivo pelo
qual seria necessária a realização de uma perícia judicial. Como se pode notar, a
decisão liminar escorou-se em meras afirmações trazidas pela associação autora.
Contudo, essa presença esquálida de fumus boni iuris acabou sendo compensada

Disponível em: <http://www.tjms.jus.br/cjosg/pcjoDecisao.jsp?OrdemCodigo=2&tpClasse=J>. Acesso


18

em: 09 jun. 2012.

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por minuciosa análise a respeito da presença robusta do periculum in mora e por


longas considerações a respeito do princípio da precaução. No que concerne ao
periculum in mora, advertiu-se que “a execução das obras nesse momento geraria
evidente risco de dano ambiental, dada a proximidade com a margem do ribei-
rão onde se pode verificar a presença de mata ciliar em estado de regeneração”.
Já no que diz respeito ao princípio jurídico-ambiental da precaução, consignou-se
— dentre outras coisas — que “não seria prudente, pelo menos até que se com-
prove que as obras invadirão a faixa tida como área de preservação permanente,
determinar que as atividades continuem sem antes ter a certeza de que o meio
ambiente protegido por lei não será afetado pela construção”.19
Em sessão de 17 de maio de 2012, a Câmara Reservada ao Meio Ambiente
do E. Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento ao agravo de instrumento
interposto pelo Gerente da Agência Ambiental da CETESB – Regional Itapetininga,
revogando a liminar que em mandado de segurança suspendeu a aplicação de
multa e de qualquer outra restrição à atividade do Auto Posto BR 64 Ltda., por
falta de licença de operação (AI nº 0236493-12.2011.8.26.0000, Rel. Des. Ruy
Alberto Leme Cavalheiro, v. u., deram provimento). No que diz respeito ao fumus
boni iuris, o Tribunal limitou-se a dizer que, “em cognição sumária, prevalece a
legitimidade dos atos praticados pelos agentes da CETESB”. Isso porque esteve
diante de alegações conflitantes absolutamente insolúveis nos estreitos limites
de uma apreciação liminar: de um lado, a CETESB alegando que o Posto cometeu
diversas irregularidades; de outro, o Posto sustentando que desenvolve as suas
atividades dentro das exigências legais. Já no que concerne ao periculum in mora,
a Corte entendeu que “a atividade desenvolvida pelo agravado é notoriamente
causadora de impacto ambiental, existindo risco de lesão irreparável ou de difícil
reparação em desfavor do meio ambiente”, o que se coaduna com a “a idéia de
prevenção e precaução do direito ambiental, ambos alçados à condição de prin-
cípios jurídicos”.20
Por sua vez, a Quarta Turma do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
em sessão de 31 de outubro de 2007, manteve a liminar, concedida em ação civil
pú­blica, que havia ordenado a paralisação das atividades de detonação das rochas
para a extração de carvão em área que se encontra sob o perímetro urbano, até
que se realizem estudos sobre o impacto da atividade nas residências em solo e

19
Disponível em: <http://ap.tjsc.jus.br/jurisprudencia/acnaintegra!rtf.action?qTodas=&qFrase=&q
Uma=&qNao=&qDataIni=&qDataFim=&qProcesso=2008.0036645&qEmenta=&qClasse=&qRelat
or=&qForo=&qOrgaoJulgador=&qCor=FF0000&qTipoOrdem=relevancia&pageCount=10&qID=
AAAG%2B9AALAAAqo3AAD>. Acesso em: 1º jun. 2009.
20
Disponível em: <http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=5909213&vlCaptcha=xA
QJB>. Acesso em: 09 jun. 2012.

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As liminares ambientais e o princípio da precaução 25

sobre os riscos de subsidência da mina no local (AI nº 2007.04.00.026485-0/SC,


Rel. Des. Fed. Edgard Antônio Lippmann Júnior, v. u., negaram provimento). No
que tange ao fumus boni iuris, o acórdão limitou-se a dizer que as questões deba-
tidas “demandam extensão, dilação probatória, detalhada investigação técnica e
instrução processual, impossível em sede de cognição sumária”. Mas a afirmação
de que ali se estava tratando de “atividade de mineração de carvão, potencial-
mente lesiva ao meio ambiente, se não observadas as normas técnicas vigentes
para a exploração da atividade” foi fortalecida por pequenas considerações acerca
do princípio da precaução — “[...] afigura-se imprescindível a prevenção, como
medida que se antecipe às agressões potenciais à natureza”.21
Convém ainda se mencionar o acórdão da Segunda Turma do Tribunal
Regional Federal da 5ª Região, que, na sessão do dia 15 de janeiro de 2008, man-
teve a decisão liminar proferida pelo Juízo da 4ª Vara Federal da Seção Judiciária
do Rio Grande do Norte, que havia determinado a retirada imediata de viveiros
de camarão e a suspensão das atividades de carnicicultura em área de preserva-
ção ambiental permanente (AI nº 2007.05.00.0357555-RN, Rel. Des. Fed. Manoel
Erhardt, v. u., negaram provimento). De acordo com a Turma Julgadora, “[...] o invo-
cado princípio da preservação aplica-se ao presente caso, pois se deve evitar que
primeiro ocorra o dano para somente depois resolver a causa de sua origem. A
Jurisprudência pátria recomenda a proibição liminar de condutas aparentemente
ilegais e lesivas ao meio ambiente. Dessa forma, quando houver dúvida sobre a
potencial degradação de uma determinada ação sobre o ambiente, toma-se a deci-
são mais conservadora, evitando-se a ação”.22
Por fim, vale menção ao acórdão da Terceira Câmara Cível do E. Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, que, em sessão do dia 11 de outubro de 2007, man-
teve a liminar, concedida em ação civil pública proposta pelo Ministério Público
Estadual, que havia determinado a proibição do corte e do descapoeiramento da
mata nativa existente num imóvel pertencente ao agravante (AI nº 70021128921,
Rel. Des. Mário Crespo Brum, v. u., negaram provimento). Aqui, no que tange ao
fumus boni iuris, a Câmara baseou-se na “notícia de prática, ao menos em tese, de
descapoeiramento ilícito” (grifos nossos). Já no que diz respeito ao periculum in
mora, entendeu-se “razoável suspender qualquer ato que possa alterar fisicamente
o local, em nome do princípio da precaução”, pois, “após realizado o corte da

21
Disponível em: <http://www.trf4.jus.br/trf4/jurisjud/inteiro_teor.php?orgao=1&numeroProcesso
=200704000264850&dataDisponibilizacao=26/11/2007>. Acesso em: 1º jun. 2009.
22
Disponível em: <http://www.trf5.jus.br/archive/2008/02/200705000357555_20080211.pdf>. Acesso
em: 11 jul. 2009.

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vegetação, de nada adiantaria uma eventual sentença de procedência, visto que


o dano ambiental já teria ocorrido”.23

5 Remate
Diante do exposto, pode-se notar que a generosidade com a qual se con-
cedem as liminares ambientais não decorre de um fanatismo ecológico, ou de
um ambientalismo romântico do qual sofre o Poder Judiciário. O filósofo alemão
Hans Jonas — considerado o pai do princípio ambiental da responsabilidade —
costumava dizer que a técnica passou de um poder de primeiro grau (direcionado
a um mundo que parecia inesgotável) a um poder de segundo grau (que foge a
todo o controle e que, ao invés de libertar o homem, escraviza-o), razão por que
chegara a vez de se buscar um poder de terceiro grau, capaz de limitar a domina-
ção que estraçalha os limites da natureza.24 Nesse sentido, há quem divise ideo­
logicamente o Judiciário como um cotitular desse terceiro poder. Porém, uma
análise dogmática cuidadosa do fenômeno jurídico desconstitui qualquer leitura
política e permite-nos verificar que a proveitosa interação sistêmica entre o direito
ambiental e o direito processual faz com que a concessão dessas liminares seja a
regra, não a exceção. Lembre-se: o direito é um expediente de conformação social
e, por isso, tem a tarefa de adaptar os agentes econômicos às exigências hodier-
nas do desenvolvimento sustentável (tanto mais no Brasil, em que a pressão pelo
crescimento econômico pouco sustentável tem sido feroz, e em um mundo mais
preocupado em salvar as suas economias que o Planeta). Nesse sentido, as medi-
das liminares funcionam como importante instrumento.
Os réus hoje não mais se rebelam contra o discurso ambientalista. Ao con-
trário: a adequação à legislação ambiental tem se tornado um fator integrativo
do goodwill das empresas. No entanto, essa adequação ainda tem sido muito
mais aparente que real. A experiência tem desvendado a falsidade e a generali-
dade imatura de inúmeros relatórios empresariais de sustentabilidade (os quais
são chamados pelo universo corporativo de “maquiagem verde”). Ou seja, embora
todos repitam a máxima de que a natureza é um sistema inanimado esgotável
formado por humanos e não humanos entre si interligados [visão ecocêntrica], na
prática as pessoas ainda se comportam como se a natureza não passasse de um
recurso material inexaurível voltado exclusivamente à satisfação das necessidades
humanas [visão antropocêntrica].25 Enfim, os saberes ainda são colocados a serviço

23
Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/jprud2/resultado.php>. Acesso em: 1º jun. 2009.
24
O princípio da responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, p. 237.
25
Para um aprofundamento das duas visões: HEYWOOD. Ideologias políticas, v. 2, p. 45 et seq.

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As liminares ambientais e o princípio da precaução 27

da dominação da natureza para melhorar a sorte da humanidade (embora não se


saiba até quando a natureza suportará sua sobre-exploração). De qualquer maneira,
é importante que se diga que, para as empresas, as práticas ambientalmente res-
ponsáveis ainda custam muito caro.
Por isso, ainda serão infindáveis as concessões de liminares ambientais. E,
para que elas continuem desempenhando a sua relevante funcionalidade social,
necessário é que o Poder Judiciário — a par da teorização insatisfatória que ainda
lhe é oferecida pela doutrina brasileira — continue a concedê-las mediante “com-
binações” não axiomáticas dos diferentes graus de fumus boni iuris e periculum
in mora e uma atuação intelectual manietada axiologicamente pela precaução
e marcada por discricionariedade. Esse tipo de atuação é certamente arredia a
objetivações excessivas e controles racionais rígidos. Entretanto, a dinâmica de
concessão de liminares é tão fluida como o meio ambiente e o direito “verde” que
o espelha normativamente.

Resumen: Dada la enorme necesidad de una construcción dogmática que


tenga en cuenta las características específicas del proceso colectivo ambien-
tal, este trabajo pretende estudiar la influencia que el principio jurídico de
precaución tiene sobre la estructura y la dinámica de los requisitos para la
concesión de las tutelas de urgencia y, por tanto, radiografiar el régimen dife-
renciado de las tutelas sumarias ambientales.

Palabras-clave: Proceso colectivo ambiental. Medidas Cautelares. Tutela de


urgencia. Fumus boni iuris. Periculum in mora. Principio de precaución.

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28 Eduardo José da Fonseca Costa

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

COSTA, Eduardo José da Fonseca. As liminares ambientais e o princípio da precaução. Revista


Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 21, n. 81, p. 11-28, jan./mar. 2013.

Cadastrado em: 16.01.2013


Aprovado em: 12.02.2013

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A incidência da prescrição em face da
autonomia do Direito Processual

César Fiuza
Advogado. Consultor jurídico e parecerista. Doutor em Direito
pela UFMG. Professor titular na Universidade FUMEC, associado na
UFMG e adjunto na PUC Minas. Professor colaborador na UNIPAC.

Regina Ribeiro
Advogada.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo fazer uma releitura da inci-
dência da prescrição em face da autonomia concedida ao Direito Processual
vigente. Até a promulgação do Código Civil de 1916, era adequada a afirma-
ção de que a prescrição incidia sobre a ação ou sobre pretensão, pois vigia
a teoria processual do direito concreto de agir. Contudo, com a aplicação da
teoria do direito abstrato de agir pelo atual Código de Processo Civil, a pre-
tensão do autor passou a ser autônoma e independente em relação ao direito
material pleiteado. Consequentemente, o que passa a se extinguir pela pres-
crição é a responsabilidade do devedor, não mais a ação ou a pretensão do
autor. Para corroborar esta conclusão, avalia-se, também, a origem histórica
do termo pretensão no Direito Comparado, bem como a sua tradução do ale-
mão para o português, oportunidade em que restou demonstrado que é ina-
dequada a afirmação de que a prescrição incide sobre a ação ou pretensão
do credor, devendo recair sobre a responsabilidade do devedor.

Palavras-chave: Prescrição. Pretensão. Responsabilidade. Autonomia do


Direito Processual.

Sumário: 1 Introdução – 2 Definição e natureza jurídica da pretensão –


3 Extinção da responsabilidade – 4 Conclusão – Referências

1 Introdução
O Código Civil de 1916 previa, em seu art. 177, que “as ações pessoais pres-
crevem, ordinariamente, em 20 (vinte) anos, as reais em 10 (dez), entre presentes,
e entre ausentes, em 15 (quinze), contados da data em que poderiam ter sido

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30 César Fiuza, Regina Ribeiro

propostas. (Redação dada pela Lei nº 2.437, de 07.03.1955)”. Observe que, pela
redação do dispositivo legal, a prescrição atingia diretamente a ação.
O Código Civil vigente, por sua vez, dispõe que a prescrição incide sobre
a pretensão. É o teor do art. 189, verbis: “Violado o direito, nasce para o titular a
pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205
e 206”. A mesma referência ocorre nos atuais arts. 190, 205, 206, entre outros, do
mesmo Código. Por outros termos, para o atual ordenamento civil, a prescrição
atinge a pretensão, não a ação.
A razão da alteração do Código Civil de 1916 para o atual se deu numa ten-
tativa de adequar a definição de prescrição à teoria do direito abstrato de agir (ou
teoria abstrata da ação), segundo a qual o direito de ação é abstrato, autônomo e
independente em relação ao direito material afirmado. É dizer, o direito de ação
poderá ser exercido independentemente de existir ou não o direito ao bem da vida
pretendido. Negar esta premissa seria o mesmo que afirmar que alguém somente
poderia acionar o Poder Judiciário caso tivesse um provimento jurisdicional favo-
rável à sua pretensão. De fato, podemos ajuizar ações com base em pretensões
contidas na peça inicial, tendo, ao final, um provimento negativo, e, mesmo neste
caso, o direito de ação terá sido exercido.
O ordenamento jurídico e a doutrina são firmes no sentido da adoção pelo
Direito brasileiro da teoria do direito abstrato de agir. Segundo o art. 3º do Código
de Processo Civil, “para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e
legitimidade”. Fica claro, com essa redação, que a existência do direito material
afirmado pelo autor não é requisito para o exercício do direito de ação. Bastam o
interesse e a legitimidade, elementos estes de natureza notoriamente processual.
No mesmo sentido andou o art. 5º, XXXV, da Constituição da República, segundo
o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito”. Nosso ordenamento acolheu, sem sombra de dúvida, a teoria do direito
abstrato de agir.
Opõe-se a essa tese a teoria do direito concreto de agir, já adotada por sis-
temas processuais de outrora, os quais viam o Direito Processual como um ramo
não autônomo e independente do Direito, negando, portanto, o direito de ação
desvinculado do direito material. Para essa teoria, o direito de ação somente
existiria se o direito material afirmado pelo autor fosse efetivamente procedente,
não apenas aparentemente. Não poderia ter prosperado tal pensamento, pois, se
fosse aplicado, não haveria como explicar as hipóteses de improcedência do pe-
dido. É dizer, se a ação for julgada improcedente, qual terá sido o direito exercido
pelo autor ao acionar o Poder Judiciário? Nesse contexto de amadurecimento das

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A incidência da prescrição em face da autonomia do Direito Processual 31

doutrinas processuais, foi necessária uma alteração legislativa civil, que afastasse
do ordenamento qualquer incompatibilidade entre a teoria de Direito Processual
adotada e o manuseio dos direitos materiais. Exemplo disso foi o art. 189 do Código
Civil, oportunidade em que se desvinculou a prescrição da ação, para vinculá-la
à pretensão. O art. 75 do Código Civil de 1916 dispunha que “a todo o direito
corresponde uma ação, que o assegura”. Nota-se, neste artigo, sem correspon-
dente no Código atual, uma nítida vinculação do direito de ação à existência do
direito material, o que definitivamente não corresponde ao Código de Processo
Civil de 1973.
A origem do modelo abstrato, autônomo e independente da ação se deu
com a presença, de 1940 a 1946, do jovem italiano Enrico Tullio Liebman em São
Paulo, ocasião em que houve o ingresso do método científico na ciência proces-
sual em nosso meio, dando início à “Escola Processual de São Paulo”. Ada Pellegrini
Grinover, sobre esse passado histórico, comenta:

A “Escola Processual de São Paulo” caracterizou-se pela aglutinação dos


seus integrantes em torno de certos pressupostos metodológicos funda-
mentais, como a relação jurídica processual (distinta e independente da
relação substancial, ou res in judicium deducta), autonomia da ação, ins-
trumentalidade do direito processual, inaptidão do processo a criar direi-
tos e, ultimamente em certa medida, a existência de uma teoria geral do
processo. (GRINOVER; DINAMARCO; CINTRA, 2000, p. 125, grifos nossos)

Sobre o tema, leciona Alexandre Freitas Câmara:

[...] Surge, então, a teoria abstrata da ação, ou teoria do direito abstrato


de agir, segundo a qual o direito de ação seria, simplesmente, o direito
de provocar a atuação do Estado-juiz. Em outros termos, para essa teoria
a ação é o direito de se obter um provimento jurisdicional, qualquer que
seja o seu teor. (2008, p. 110)

Para a maioria dos autores, o fato de o novo Código Civil não utilizar-se da
expressão prescrição da ação, como fazia o Código Beviláqua, mas da expressão
prescrição da pretensão (ou extinção da pretensão pela prescrição – art. 189), foi o
suficiente para adequar o instituto da pretensão ao caráter autônomo, indepen-
dente e abstrato do direito de ação (teoria do direito abstrato de agir). Veja-se, por
exemplo, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Faria:

Assim, consoante o art. 189 do Texto Codificado, a prescrição tem como


objeto fulminar a pretensão do titular em reparar um direito (subjetivo)

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32 César Fiuza, Regina Ribeiro

seu que foi violado. Note-se, por importante, que o Código Civil explicitou
não atingir a prescrição o direito de ação em si mesmo (instituto de direito
processual), mas sim a pretensão (esta sim, instituto de direito material),
confirmando o caráter autônomo, abstrato, público e subjetivo do direito
de ação, resguardado em sede constitucional, pelo art. 5º, XXXV. (2007, p. 556)

No mesmo sentido, Ricardo Ribeiro Campos, segundo o qual:

Destaca-se também a tomada de posição do legislador sobre a contro-


vérsia se a prescrição extingue a ação ou o direito. Diz o art. 189 que “vio-
lado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela
prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”. Merece encômios
a utilização do termo pretensão. Na verdade, a prescrição não extingue,
como muitos asseveram, a ação, tanto que, se reconhecida judicialmente,
ainda assim terá havido exercício regular do direito de ação (cf. art. 269,
IV, CPC). O que extinguirá é o poder de exigir a prestação, ou seja, a pre-
tensão. (2004, p. 3)

Há, por outro lado, autores que afirmam que o problema não foi corrigido
de um Código Civil para o outro, pois a prescrição não incidiria nem sobre a ação,
nem sobre a pretensão. Neste sentido, nossa opinião:

[...] Sempre que houver direito a uma prestação, haverá responsabilidade


e prazo prescricional. Esse prazo pode ser específico, como os do art. 206,
ou genérico, de 10 anos (art. 205), caso não haja prazo específico. O
Código Civil, a meu ver, equivocadamente, define a prescrição apenas
pela ótica do credor, quando a ótica do devedor é muito mais impor-
tante. Em outras palavras, definir prescrição como o fim da submissão do
devedor ao credor é muito mais adequado do que defini-la como a extin-
ção da pretensão do credor. É ao devedor que a prescrição beneficia [...].
(FIUZA, 2008, p. 273)

José Carlos Barbosa Moreira segue a mesma linha de raciocínio, expurgando


a possibilidade de a prescrição atingir a pretensão:

Na parte inicial do art. 189, diz-se que, “violado o direito, nasce para o
titular a pretensão”. No rigor da lógica, não é exato supor que a violação
efetiva do direito (a uma prestação) constitua pressuposto necessário do
nascimento da pretensão. Se esta consiste na exigência de que alguém
realize a prestação, duas hipóteses, na verdade, são concebíveis: uma é
a de que aquele que exige realmente faça jus à prestação, mas há outra: a
de que se esteja exigindo sem razão — ou porque o direito inexista, ou
porque não haja sofrido violação, ou ainda porque a prestação, por tal
ou qual motivo, não seja exigível. Afinal de contas, há pretensões funda-
das e pretensões infundadas. (2002, p. 189)

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A incidência da prescrição em face da autonomia do Direito Processual 33

E, mais adiante, na mesma obra, continua o autor:

O outro reparo concerne à declaração, constante da parte final do art. 189,


de que a pretensão “se extingue” pela prescrição. É curioso como a idéia
de extinção reluta em sair de cena. O Novo Código Civil, que acertou em
afastar a tese da extinção da ação, deixa entrar pela janela o que havia
expulsado pela porta. Não é só a ação que a prescrição se revela impotente
para extinguir: a pretensão também. (2002, p. 189, grifos nossos)

Agnelo Amorim Filho, em seu clássico artigo sobre os prazos extintivos, afir-
mou que a prescrição atinge a pretensão, apesar de que, na época em que foi
publicado, ainda se afirmava que o alvo da prescrição era a ação:

[...] Convém acentuar que quando se diz que o termo inicial do prazo pres-
cricional é o nascimento da ação, utiliza-se aí a palavra “ação” no sentido
de “pretensão”, isso é, no mesmo sentido de que ela é usada nas expressões
“ação real” e “ação pessoal”, pois, a rigor, a prescrição não começa com a
ação e sim com a pretensão; está diretamente ligada a essa, e só indireta-
mente àquela. (1961, p. 121)

Contudo, o próprio Amorim Filho, no mesmo artigo, reconhece a possibili-


dade de ser inadequada a incidência da prescrição sobre a ação ou a pretensão,
em face da autonomia do Direito Processual:

[...] Nas considerações feitas, e nas que se seguem, deve ficar ressalvado o
ponto de vista daqueles que, abraçando a doutrina mais moderna — e tal-
vez mais acertada — vêem no direito de ação, rigorosamente, um direito
de tal modo autônomo e abstrato, que preexiste à relação de direito subs-
tancial. Para esses, não há como falar em nascimento da ação, do mesmo
modo que não se pode falar em carência de ação. Para eles, a recusa do
sujeito passivo em satisfazer a pretensão não determina o nascimento da
ação, pois essa já existia. Tal recusa apenas representa uma das condições
para o exercício da ação. (1961, p. 126, grifos nossos)

2  Definição e natureza jurídica da pretensão


Temos a impressão de que a celeuma se resume, na realidade, à definição
dada ao termo pretensão e à natureza jurídica a ela atribuída.
Bernhard Windscheid, figura principal da elaboração do Código Civil Alemão,
foi o primeiro a definir a pretensão (Anspruch). Segundo seu §194 (I), a pretensão
é “o direito de exigir de outrem uma ação ou omissão”. À palavra direito, contida

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no aludido dispositivo legal, atribuía-se o sentido de poder. Esta definição acabou


sendo repetida maciçamente ao redor do mundo, apesar de seus opositores,
ficando consagrada no meio jurídico esta conotação de Direito Material ao termo
direito e, consequentemente, à pretensão. Para se ter uma ideia irrefutável do
caráter material que foi dado ao conceito de pretensão, diversos doutrinadores
referiam-se a ela como sinônimo do próprio direito subjetivo. Então, firmou-se que
pretensão seria direito, e direito seria poder. André Fontes, contudo, afirma que os
dois institutos se diferenciam pela exigibilidade inerente apenas à pretensão:

Direito subjetivo é direito à prestação, enquanto pretensão seria o direito


de exigir a prestação (ou mais propriamente, o poder de exigir a presta-
ção). Seguindo a conceituação alemã, pretensão seria o direito subjetivo
de exigir a prestação. A consideração da pretensão como direito subje-
tivo tem origem no direito legislado alemão (§194, I, do Código Civil), que
por sua vez reproduz o pensamento de Windscheid, e tal fato sujeitou
toda a literatura teutônica. (2002, p. 41)

Por outro lado, e apesar dessa antiga tendência em conferir à pretensão a


natureza jurídica de direito material, a corrente opositora, liderada por Carnelutti,
emprestou um tom mais flexível ao termo, desta vez de natureza processual,
classificando-o como um ato jurídico, uma declaração de vontade, no sentido de
uma aspiração, a qual poderia ser fundada ou infundada. Inevitável concluir que,
adotando-se a definição carneluttiana, se a pretensão pode ser fundada ou infun-
dada, ela não será um poder, no máximo um anseio do autor.
Carnelutti criou seu conceito de pretensão como sendo a exigência da subor-
dinação do interesse alheio ao próprio, conquanto não indicie a ideia de ato, foi
assim por ele caracterizada.
André Fontes manifesta-se sobre este duplo sentido da pretensão, o alemão
e o italiano, nos seguintes termos:

A pretensão pode ser vista em relação a algo que se tem ou algo que
se quer. No primeiro sentido, é associada à palavra direito; no segundo,
à de uma exigência. A definição dada pelo §194, I, do Código Civil ale-
mão, da pretensão como direito (subjetivo) de exigir de um outro fazer
ou uma omissão, constitui o primeiro sentido. Destarte, sua consistência
independe de qualquer exercício, e não precisa ser objeto de afirmação
ou mesmo de conhecimento pelo credor. Marcante na distinção é que
esse primeiro sentido fixa o termo a quo da prescrição. Noutro sentido, a
pretensão significa o desejo direcionado a uma determinada prestação,
e se refere especificamente à prestação que está sendo exigida. Diferen-
temente do primeiro sentido, fica em aberto aqui a prestação desejada
pode realmente ser exigida, e a isso se vincula a idéia de ela estar ou não
fundada. (2002, p. 20)

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Apesar de o art. 189 do nosso Código Civil adotar a definição alemã, diversos
autores pátrios a conceituam pela teoria carneluttiana. Vejamos, por exemplo, a
posição de José Manoel de Arruda Alvim Netto (1971, p. 398). Para ele, a pretensão
seria a opinião de ter direito, seria simplesmente o fato da afirmação de ter direito,
aquilo que se afirma como seu, uma certa opinio iuris. O próprio autor admite que o
termo seja polissêmico, mas insiste em que sua consideração não tenha o signifi-
cado de direito material estabelecido no Código Civil Alemão.
A corrente italiana soa-nos mais adequada, provavelmente em razão do
sentido que tem a palavra pretensão em nosso idioma. De fato, pretensão, no por-
tuguês corrente, não significa poder, apenas aspiração. O Novo dicionário Aurélio
da língua portuguesa assim define o termo:

Pretensão. [Do lat. praetensu, ‘pretendido, pretenso’, + -ão.] S. f. 1. Ato ou


efeito de pretender. 2. Direito suposto e reivindicado. 3. Vaidade exagerada;
presunção. 4. Aspiração; ambição: Expôs com clareza a sua pretensão e foi
atendido. 5. Dir. Pedido ou objeto da ação judicial. V. pretensões. (FERREIRA,
1986, p. 1390, grifos nossos)

André Fontes, embora adepto da definição alemã, sobre esse aspecto assim
se manifestou:

É sabido que não houve identidade evolutiva dos idiomas [referia-se aos
idiomas alemão e português], a justificar as bases da suposta correspon-
dência, pois no português a pretensão pode ter tido seu sentido ampliado
pelo Direito de modo a exprimir o sentido da “Anspruch”, mas, como se
sabe, atribuiu-se-lhe um significado comum não correspondente ao da
língua alemã, a que sentenciamos ser o de aspiração. (2002, p. 13)

No mesmo sentido, Barbosa Moreira (2003, p. 120), ao citar Pontes de Miranda,


comenta que este se referia à tradução do termo alemão Anspruch por pretensão
como sendo uma “infeliz definição”.
Mas não é apenas o sentido corrente da pretensão em nosso idioma que nos
conduz a vê-la como um anseio do autor, não como um direito. É que, ao tempo
em que se definiu o termo, isto é, à época em que veio a lume o Código Civil ale-
mão, ao Direito Processual não se outorgava a autonomia e a independência dos
dias atuais. A teoria da ação, até então empregada no direito, era a concretista.
Com a adesão à teoria abstracionista do direito de agir, tanto pela Constituição da
República, quanto pelo Código de Processo Civil, é razoável que os conceitos do
Direito Civil sejam revistos. Tanto é assim, que foi exatamente nessa tentativa de

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ajuste dos dois ramos do Direito (o Civil e o Processual Civil) que o novo Código
absteve-se de se referir à prescrição da ação, passando a referir-se à prescrição da
pretensão. Daí a afirmação de Barbosa Moreira:

O outro reparo concerne à declaração, constante da parte final do art. 189,


de que a pretensão “se extingue” pela prescrição. É curioso como a idéia
de extinção reluta em sair de cena. O Novo Código Civil, que acertou em
afastar a tese da extinção da ação, deixa entrar pela janela o que havia expul-
sado pela porta. Não é só a ação que a prescrição se revela impotente para
extinguir: a pretensão também. (2002)

Assim como o entendimento de Arruda Alvim Netto, supramencionado,


veja-se também a definição carneluttiana da pretensão, nos comentários de
Cândido Rangel Dinamarco:

Todo processo tem seu objeto, que é a pretensão trazida pelo demandante
ao juiz, em busca de satisfação. Essa pretensão, caracterizada como expres-
são de uma aspiração ou desejo e acompanhada do pedido de um ato juris-
dicional que a satisfaça, constituirá o alvo central das atividades de todos
os sujeitos processuais e, particularmente, do provimento que o juiz emitirá
ao fim. É em relação a ela que a jurisdição se exerce e a tutela jurisdicional
deve ser outorgada àquele que tiver razão. (2003, p. 300, grifos nossos)

E, ainda, Barbosa Moreira:

Na parte inicial do art. 189, diz-se que, “violado o direito, nasce para o
titular a pretensão”. No rigor da lógica, não é exato supor que a violação
efetiva do direito (a uma prestação) constitua pressuposto necessário do
nascimento da pretensão. Se esta consiste na exigência de que alguém
realize a prestação, duas hipóteses, na verdade, são concebíveis: uma é
a de que aquele que exige realmente faça jus à prestação, mas há outra: a
de que se esteja exigindo sem razão — ou porque o direito inexista, ou
porque não haja sofrido violação, ou ainda porque a prestação, por tal
ou qual motivo, não seja exigível. Afinal de contas, há pretensões fundadas
e pretensões infundadas. (2002, p. 189, grifos nossos)

Ora, se há “pretensões infundadas”, as quais terão o provimento negado


pelo Judiciário, não poderão ser tidas como poder. É que, mesmo diante de um
provimento jurisdicional contrário aos interesses do autor (improcedência da
ação), sua pretensão (aspiração, anseio) continuará existindo. Explica-se: tendo
em vista que o pedido contido na ação (pretensão) pode ser julgado procedente
ou improcedente, a pretensão não pode ser definida como um poder, mas será

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tão somente uma aspiração, um anseio do autor. Havendo pretensão infundada,


para a qual o Judiciário negará provimento, a pretensão não pode ser um direito
de exigir, mas será somente uma aspiração do autor, passível de ser acatada pelo
Estado-juiz ou refutada.
Neste contexto, surgem inconformismos com a redação dada ao art. 189 do
Código Civil, segundo o qual: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a
qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os artigos 205 e 206”.
Ora, não é apenas quando o direito é violado que nasce para o credor a pretensão.
A pretensão nascerá (rectius, poderá nascer) independentemente de ter ocorrido
ou não a violação do direito, pois a pretensão do autor é autônoma em relação ao
direito que ele afirma ter. Afinal, sua pretensão poderá ser improcedente. E sendo
a pretensão autônoma em relação ao direito afirmado, a prescrição — instituto
de direito material que é — não terá o condão de fulminá-la, mas, no máximo,
torná-la ineficaz. Diante disso, o único poder que o autor tem é o direito de ação
(e não a pretensão), por ser abstrato, independente e autônomo em relação ao
direito material afirmado.
Daí a afirmação de Barbosa Moreira, verbis:

[...] Caso se configure realmente a prescrição alegada pelo réu, o órgão


judicial julgará improcedente o pedido, mas não porque o autor já nada
pretenda, e sim porque o réu, ao alegar a prescrição, tolheu eficácia à pre-
tensão manifestada. Se a pretensão na verdade se houvesse “extinguido”,
jamais seria razoável, omisso que permanecesse o réu, a desconsideração
desse fato pelo juiz, com a eventual emissão de sentença favorável ao
autor. (2002, grifos nossos)

E, em outra obra, o mesmo autor assim se manifestou: “Na perspectiva do


novo Código Civil, só mereceria o nome de pretensão a pretensão fundada, aquela
que se baseie num genuíno poder de exigir” (MOREIRA, 2003, p. 121-122).
O que se pretende afirmar com isso é que, apesar da inércia do novo Código
Civil em manter a antiga definição alemã da pretensão (poder), essa definição está
defasada em face do Direito Processual contemporâneo, para o qual o direito de ação
é autônomo e independente do direito material afirmado, podendo haver, por
isso, ajuizamento de ações com base em pedidos que serão julgados improceden-
tes, pois há pretensões fundadas e pretensões infundadas. O fato de uma preten-
são ser infundada não retira do autor o exercício do direito de ação (CR/88, art. 5º,
XXXV), mas também não se pode afirmar que sua pretensão seja um poder, afinal,
o provimento jurisdicional poderá ser denegatório do direito material pleiteado.

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Enfim, em que pese o fato de que nos soe mais apropriada a doutrina italiana
sobre o tema, o que se observa é que as diferenças de posicionamento residem no
fato de que há duas concepções do termo pretensão, assim resumidas:
(i) uma de natureza material e de origem germânica, para a qual ou o direito
existe, e daí nascerá a pretensão, ou ele não existe, tampouco a preten-
são. Nesta definição não há que falar em pretensões fundadas e infun-
dadas, mas em existência ou inexistência da pretensão, haja vista ser a
pretensão o próprio direito subjetivo. E, sendo assim, a prescrição estará
apta a fulminar a pretensão. Para estes, a pretensão é a consequência
necessária da violação ao direito material, traduzindo-se, por isso, no
poder de exigir de outrem um fazer ou um não fazer;
(ii) há também a concepção de pretensão de origem italiana, de natureza
processual, mais adequada aos anseios do Direito Processual moderno, o
qual se pretende autônomo e independente do direito material, e, diga-se
de passagem, impensável ao tempo da criação da definição alemã do
termo pretensão. Neste caso, a pretensão será apenas uma aspiração do
autor, independente da existência do direito material, não necessaria-
mente coincidente com o direito subjetivo afirmado, passível, portanto,
de ser julgada procedente ou improcedente pelo Estado-juiz.
Complementando-se, é importante que se diga que tanto o Código de
Processo quanto a Constituição de 88 adotaram a vertente italiana. O Código Civil,
na contramão, ateve-se à antiga corrente alemã.

3  Extinção da responsabilidade
Para nós, deve-se mudar a perspectiva pela qual é vista a prescrição, pas-
sando-se a enfocá-la sob a ótica do réu, não do autor, como costumeiramente se
faz. Afinal, a prescrição é um instrumento a ser utilizado por aquele, não por este.
O raciocínio é bastante simples e parte da ideia de que só se pode falar em pres-
crição diante do inadimplemento de um direito a uma prestação. Esta ideia, aliás,
esposa o Código Civil, que menciona violação de direito, no art. 189. Ora, não nos
esqueçamos de que só os direitos a uma prestação podem ser violados. Como?
Pelo inadimplemento da prestação.
Para entendermos melhor como a prescrição tem a ver com o inadimple-
mento de um direito a uma prestação, é necessário analisarmos a teoria dualista
das obrigações, desenvolvida, na Alemanha, por Brinz. As obrigações são consti-
tuídas por dois elementos: a) o débito (Schuld), dever jurídico que um dos sujeitos
(devedor) de uma relação creditícia ou real tem, de realizar uma prestação em

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A incidência da prescrição em face da autonomia do Direito Processual 39

decorrência de uma obrigação; e b) a responsabilidade (Haftung), imputação ao


sujeito passivo da obrigação, de cumprir efetivamente a prestação ou responder
pelo descumprimento da obrigação, com a garantia constituída por seu patrimô-
nio. Nas palavras de André Fontes:

É a teoria-matriz aplicada a partir da Tese Dualista das Obrigações que


dissociou o débito da responsabilidade perante o crédito, sendo o débito
entendido como o dever de prestar, e a responsabilidade o estado de sujei-
ção dos bens ao poder de outrem, de maneira que a dívida seja um vínculo
de pessoas e a responsabilidade um vínculo de patrimônio, pelo que o
devedor obriga-se e o seu patrimônio responde. (2002, p. 45)

Os dois elementos surgem em momentos distintos: o débito origina-se com


a formação da obrigação, ao passo que a responsabilidade origina-se posterior-
mente, na hipótese de seu descumprimento, razão pela qual se entende que a
responsabilidade é eventual e não necessária na obrigação.
A doutrina fala comumente na possibilidade de haver obrigação com débito,
mas sem responsabilidade, como é o caso das obrigações prescritas (bem como as
demais obrigações naturais), e cita, também, aquelas em que há a responsabilidade
sem o débito, a exemplo da obrigação do fiador.
A par disso, diz-se que a responsabilidade surge com o inadimplemento da
obrigação, fato que concede ao credor o poder de exigir seu crédito, isto é, a pre-
tensão (levando-se em consideração sua definição germânica, tal como adotada
no art. 189 do Código Civil Brasileiro), a qual se extinguirá pela prescrição.
Parte-se do princípio de que as obrigações se cumprem espontaneamente,
por força de um imperativo ético. O credor tem, na relação creditícia, a expectativa
de obter do devedor a prestação. Se o devedor não a realiza, surge para o credor
o poder de agredir-lhe o patrimônio. Quando isso ocorre, desfaz-se a relação de
puro débito e tem lugar a relação de responsabilidade. O patrimônio do devedor
cumpre a função de garantia (COVELLO, 1996, p. 92-93).
É como se houvesse uma relação primária (originária) e uma secundá­ria (deri­
vada). O objetivo da relação primária é a prestação. O da relação secundária é a
sujeição do patrimônio do devedor ao poder de coerção do credor. A rela­ção pri-
mária tem sua essência no débito, do qual surge o dever de prestar. A rela­ção
secundária tem sua essência na responsabilidade ou garantia, da qual surge o
poder do credor sobre o patrimônio do devedor. É lógico que a relação secun-
dária só ocorrerá se frustrada a relação primária, isto é, se o devedor não pagar
espontaneamente.

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A finalidade da obrigação é a realização da prestação (relação originária


– débito). Não sendo esta satisfeita, segue-se a submissão do patrimônio do
devedor ao poder coativo do credor, nascendo uma nova relação (derivada da
primeira), a de responsabilidade (BITTAR, 1990, p. 10).
Pacchioni, em defesa dos dualistas, desdobra débito e responsabilidade, pro-
curando entender cada um desses vínculos sob a ótica do devedor e sob a ótica
do credor. Se analisarmos o débito com as lentes do devedor, veremos um dever
moral; já com as lentes do credor, haverá mera expectativa (1927, p. 15 et seq.).
Na responsabilidade, por seu lado, se analisada com os olhos do devedor,
haverá verdadeira subordinação patrimonial; com os olhos do credor, veremos
o direito ou o poder de exigir o pagamento, mediante ação judicial, em outras
palavras, seguindo a linha do Código Civil, veremos a pretensão, entendida como
poder, em vez de mera aspiração a um provimento jurisdicional favorável. É que
Pacchioni escreveu sua obra no início do século XX, ainda sob a influência da teoria
concretista alemã. Naquela época, como visto, não se entendia a pretensão como
mera aspiração do autor a subordinar ao seu o direito do réu.
Na realidade processual, o credor pode exigir o recebimento de seu crédito,
mesmo que este crédito não exista (lembrando aqui a teoria do direito abstrato
de agir), e que, neste caso, terá um provimento negativo do Estado-juiz. Mesmo
assim terá o autor exercido seu direito autônomo, abstrato e independente de
ação, manifestando sua pretensão. Estaríamos diante de uma pretensão infun-
dada. Por mais que tentemos adotar a definição germânica da pretensão, vendo-a
como um direito ou poder do credor, a Lei processual a desqualifica, pois somente
a permite existir tal como é posta, se o provimento jurisdicional for favorável ao
credor. Vale aqui perguntar: que poder ou direito material o credor exerce, quando
o Estado-juiz julga seu pedido improcedente? Nenhum. Mas, por outro lado, terá
exercido, sem sombra de dúvidas, seu direito de ação, que não é material, mas
processual. Desta maneira, afirma-se mais uma vez: em face da atual teoria pro-
cessual do direito abstrato de agir (adotada pelo CPC e pela CR), que permite ao
credor ajuizar a ação, mesmo quando houver apenas aparência de direito subjetivo,
a definição germânica de pretensão cai por terra, pois pressupõe, erroneamente, a
existência e a procedência do direito material afirmado.
Quando, em tempos remotos da ciência processual, afirmava-se que o di-
reito de ação somente poderia ser exercido quando o autor tivesse a seu favor
a procedência do direito afirmado (teoria concretista da ação), a definição alemã
de pretensão era defensável. Mas, com a evolução da doutrina processual, faz-se
necessário esse ajuste no Direito Civil. E, por esta razão, propomos que a prescrição
recaia sobre a responsabilidade.

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A incidência da prescrição em face da autonomia do Direito Processual 41

Há razões de peso para afirmarmos que a responsabilidade seja o elemento


adequado para ser extinto pela prescrição. O réu, e não o autor, terá, de fato, o
poder de valer-se da prescrição, deixando de cumprir sua obrigação, pois prescri-
ção é matéria de defesa. E, neste caso, pode-se mesmo falar em poder, pois poderá
ele, inclusive, optar por renunciar à prescrição e pagar ao credor. É o teor do art. 191
do Código Civil: “A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá,
sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consuma; tácita
é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a
prescrição”.
Vê-se, portanto, que quem tem algum poder sobre a prescrição é o devedor,
não o credor. Somente ao devedor é dado argui-la e somente o devedor poderá
a ela renunciar, cumprindo a obrigação espontaneamente. Ao credor pertence
apenas um anseio (pretensão) e um direito autônomo, abstrato e independente,
que é o direito de acionar o Judiciário. Em outras palavras, o direito do autor é
exclusivamente processual, até que o Estado-juiz julgue procedente o pedido,
passando a existir um direito material exigível após o provimento positivo do
Poder Judiciário. É por isso que afirmamos que a atual conceituação dada à pre-
tensão é inadequada: ela desconsidera a possibilidade de o Estado-juiz julgá-la
improcedente.
Se a responsabilidade, vista pela ótica do devedor (réu), consiste na submis-
são patrimonial ao credor, vista pela ótica do credor (autor), consiste no poder,
ou no direito de exigir a prestação. Qualquer que seja o enfoque, é a responsa-
bilidade que se extingue pela prescrição, e extingue-se independentemente de
qualquer ato, seja do devedor, seja do credor. Transcorrido o prazo, extingue-se
a responsabilidade. Mas e se o devedor quiser pagar? O pagamento não seria
válido? E se o devedor, enquanto réu, deixar de alegar a prescrição a seu favor,
não poderia ser condenado a pagar? Nestes casos, a responsabilidade não estaria
íntegra? Definitivamente, não. O que está íntegro é o débito. Este não se extingue
jamais. Por isso, o pagamento de dívida prescrita é válido; por isso, o réu pode não
suscitar a prescrição e eventualmente ser forçado a pagar. Não porque a respon-
sabilidade não tenha sido extinta, mas porque o débito não o foi. E a pretensão?
Bem, a pretensão tampouco se extingue pela prescrição. Mesmo que o réu alegue
a prescrição e que o juiz, por isso, rejeite o pedido, mesmo assim a pretensão
continua íntegra. Tanto é assim, que se o credor desejar intentar a mesma ação
novamente poderá e terá direito a um provimento jurisdicional, mesmo que
previsivelmente desfavorável. Entenda-se, de uma vez por todas, que, em nosso
sistema processual, a pretensão é uma aspiração do autor a que o direito do réu

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42 César Fiuza, Regina Ribeiro

se subordine ao seu próprio direito. É apenas uma aspiração, não uma certeza,
não um poder, tampouco um direito. A pretensão, conceito de Direito Processual,
jamais se perde.
Observe-se uma situação emblemática: apesar de já estar extinta sua res-
ponsabilidade pela prescrição, o devedor poderá optar por pagar ao credor, e este
pagamento não será passível de repetição. É o teor do art. 882 do Código Civil
atual: “Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir
obrigação judicialmente exigível”. Ora, se o próprio Código Civil afasta a repetição
do indébito em caso de cumprimento de obrigações prescritas, é porque a pre-
tensão não será afastada (extinta, nos termos da Lei) pela prescrição. A pretensão
do autor persistirá, cabendo ao devedor a escolha de adimplir ou não a obrigação.
É ao devedor que a prescrição beneficia. Nada mais é do que um meio de defesa
do devedor, que poderá, inclusive, a ela renunciar, pagando. O pagamento reali-
zado, espontaneamente, pelo devedor é válido, porque o direito a uma prestação
é eterno. O débito nunca se extingue.
Humberto Theodoro Júnior refuta essa tese, afirmando o seguinte:

Ora, se o credor não perde a pretensão, porque pode obter pagamento


ou condenação, se não invocada a prescrição, o mesmo acontece com
a responsabilidade, ou seja, também a responsabilidade prevalecerá,
levando o devedor a sofrer a expropriação executiva, se a exceção de
prescrição não for tempestivamente argüida. Como então falar, in casu,
em extinção da responsabilidade? De fato, a prescrição não gera imedia-
tamente a perda da pretensão, mas conduz à sua extinção se o devedor,
acionado, fizer uso da respectiva exceção. (2005, p. 62)

Ousamos discordar. A pretensão, sem dúvida, poderá ser acolhida ou não.


No entanto, nunca se perde, pois mesmo que desacolhida, poderá ser renovada
em outro processo, mesmo que previsivelmente se saiba que será rejeitada. A
pretensão não é um poder ou um direito que se possa perder. É uma aspiração,
como dizia Carnelutti. Aspirações não morrem, pelo menos não em nossa proces-
sualística. Mas e a responsabilidade? Esta já foi extinta há muito pela prescrição. O
que o réu faz é meramente opor uma exceção, alegando exatamente a extinção
da responsabilidade. E se não o fizer? E se vier a ser obrigado a pagar? Se não o
fizer e vier a ser obrigado a pagar, é porque o débito ainda existe, não a responsa-
bilidade. E uma vez que a alegação da prescrição é algo a que se possa renunciar,
o pagamento será feito e será válido. Aliás, este é um engano comum: não é à
prescrição que se pode renunciar, mas ao direito de invocá-la.

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A incidência da prescrição em face da autonomia do Direito Processual 43

Em síntese, devemos lembrar que o que não se extingue, mesmo com a


prescrição, é o débito. Talvez a isso tenha desejado referir-se Humberto Theodoro
Júnior, ao afirmar que do mesmo modo que a pretensão prevalece, também a res-
ponsabilidade prevalecerá, levando o devedor a sofrer a expropriação executiva,
se a exceção de prescrição não for tempestivamente arguida. Não é a responsabi-
lidade que prevalece, mas o débito.
Vale a pena, neste momento, ilustrarmos o que aqui se afirma, através da
jurisprudência. Vejamos:

A prescrição tem início na data do nascimento da pretensão (actio nata),


assim considerada a possibilidade do seu exercício em juízo. Conta-se,
pois, o prazo prescricional a partir da ocorrência da lesão, sendo irrele-
vante seu conhecimento pelo titular do direito. (STJ, 1ª seção, REsp
nº 1.003.955, Min. Eliana Calmon, julg. 12.08.09, maioria, DJ, 27 nov. 09)

Se adequarmos esse texto à definição carneluttiana de pretensão, e ado-


tando, ainda, nossa tese, teríamos o seguinte: a prescrição tem início na data do
inadimplemento da obrigação (caso se trate de obrigação contratual), ou na data
da ocorrência da lesão (caso a obrigação tenha origem extracontratual), o que vem
a ser os momentos do nascimento da responsabilidade do devedor. Em ambos
os casos, há direito a uma prestação violado. Assim, tão logo ocorra a violação,
surgirá para o devedor a responsabilidade (elemento da obrigação), entendida,
pela ótica do devedor, como a submissão patrimonial ao credor; pela ótica deste,
como o poder de expropriar o patrimônio do devedor, evidentemente que pela
via judicial. Este, então, será o termo inicial para a ocorrência da prescrição. Uma
vez decorrido o prazo prescricional, sem manifestação do credor, estará extinta
a responsabilidade do devedor. A responsabilidade, como se vê, tem conotação
de direito material. Ocorre que, para concretizar esse direito de submeter o patri-
mônio do devedor, o credor deverá agir, deverá deduzir sua pretensão em juízo.
Por que uma mera pretensão, se a responsabilidade pelo inadimplemento já lhe
confere um direito? Simplesmente, porque o juiz não sabe disso. O juiz quererá
ouvir a versão do réu, enfim, porque, no Direito Processual, nenhum direito será
conferido sem o devido processo legal.
Concluindo, a prescrição atinge a responsabilidade. Com o decurso do prazo,
o devedor passa a não mais responder pela dívida; passa a não mais responder
pelo inadimplemento do direito do credor à prestação. Assim, se o devedor for
acionado, poderá, se quiser, valer-se da extinção de sua responsabilidade pela
prescrição, para se defender, não adimplindo, pois, o direito do credor.

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44 César Fiuza, Regina Ribeiro

Ora, a responsabilidade, na ótica do devedor, consiste em ele responder


pelo inadimplemento, sujeitando-se patrimonialmente ao credor, que poderá
intentar ação condenatória para exigir seu direito violado. Vista pela ótica do cre-
dor, a responsabilidade consiste no direito de sujeitar o devedor ao cumprimento da
prestação inadimplida. São conceitos de direito material. A pretensão, por outro
lado, é processual; jamais se perde. Não é o direito do credor à prestação, mas o
direito de exigir que o devedor seja condenado a realizar a prestação. Uma aspira-
ção. O direito a uma prestação é eterno, não se extingue jamais. O que se extingue
pela prescrição é a responsabilidade (poder/direito — pela ótica do credor, ou
submissão patrimonial — pela ótica do devedor).
A prescrição poderia, grosso modo, ser identificada com a faculdade do réu
(devedor) de se opor à concretização da pretensão do autor (credor).
Sempre que houver direito a uma prestação não adimplida, haverá responsa-
bilidade e prazo prescricional. Esse prazo pode ser específico, como os do art. 206,
ou genérico, de 10 anos (art. 205), caso não haja prazo específico.
Sintetizando, podemos definir prescrição como a extinção, pelo decurso de
prazo, da responsabilidade decorrente do inadimplemento de um direito a uma
prestação, surgindo para o devedor a faculdade de opor uma exceção à pretensão
do credor.

4  Conclusão
De todo modo, qualquer que seja a definição dada à pretensão, seja ela de
natureza material ou processual, de uma afirmação não se pode escapar: é mais
adequado afirmarmos que a prescrição atinja a responsabilidade, não a preten-
são, pois a prescrição é matéria de defesa, a ser manuseada, portanto, unicamente
pelo réu, não pelo autor. Considerando-se que a pretensão é instituto que se rela-
ciona ao autor, e que a responsabilidade recai sobre o réu, afirmar que a prescrição
incida sobre a responsabilidade encerra maiores discussões sobre qual definição
de pretensão deveria ter sido adotada pelo ordenamento brasileiro.
Se, contudo, tivermos que afirmar que a prescrição atinja a pretensão, que
o seja, no máximo, emprestando-lhe a função de, momentaneamente, tirar-lhe a
eficácia, jamais de extingui-la.

Applying Prescription in Light of the Autonomy of Brazilian Procedural


Law

Abstract: This article aims to reinterpret the application of civil law statutes
of limitation (“prescription”), in light of the autonomy granted to current
procedural law. Until the enactment of the 1916 Brazilian Civil Code, one

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A incidência da prescrição em face da autonomia do Direito Processual 45

could affirm that prescription applied to the action or to the claim, as the
governing procedural theory concerned the concrete right to action.
However, the current Brazilian Civil Procedural Code, by applying the theory
of the abstract right to action, has made the plaintiff’s claim independent and
autonomous with regard to the material right being claimed. Subsequently,
it is the defendant’s liability that is extinguished by prescription, no longer
the plaintiff’s action or claim. In order to corroborate this conclusion, we
will also analyze the historic origin of the term “claim” in Comparative Law,
in addition to its translation from German to Portuguese, when it was made
clear that the statement that prescription applies to the creditor’s action or
claim is inaccurate, whereas it should apply to the debtor’s liability.

Key words: Prescription. Claim. Liability. Autonomy of Procedural Law.

Summary: 1 Introduction – 2 Claim’s definition and legal nature – 3 Liability’s


extinction – 4 Conclusion – References

Referências
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46 César Fiuza, Regina Ribeiro

FIUZA, César. Compreendendo a prescrição e a decadência. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte,
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FONTES, André. A pretensão como situação jurídica subjetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Teoria
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

FIUZA, César; RIBEIRO, Regina. A incidência da prescrição em face da autonomia do Direito


Processual. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 21, n. 81,
p. 29-46, jan./mar. 2013.

Cadastrado em: 1º.08.2012


Aprovado em: 13.12.2012

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Prescrição, decadência e imprescritibilidade
no direito material coletivo – Análise crítica
da recente jurisprudência do STJ

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau


Mestre e Doutora em Direito pela UFMG.
Professora adjunta da Faculdade de Direito da UFMG.

Marcelo Malheiros Cerqueira


Mestrando em Direito pela UFMG. Procurador Federal.

Resumo: Os prazos prescricionais e decadenciais estão relacionados à exi-


gência de segurança jurídica nas relações sociais, reclamando, por conse-
guinte, disciplina legal que estabeleça um regime jurídico estruturado e
funcional. Não obstante o tratamento do tema no Código Civil em relação
aos direitos individuais, inexiste regramento adequado no âmbito do direito
material coletivo, o que tem levado à utilização abusiva da analogia pela
jurisprudência. A lógica do microssistema processual coletivo não se aplica
para questões de direito material, como é o caso da prescrição e da decadên-
cia, devendo-se atentar para a natureza jurídica e para as características dos
direitos coletivos (em sentido amplo) envolvidos para justificar a incidência
ou não da analogia no caso concreto.

Palavras-chave: Prescrição. Decadência. Imprescritibilidade. Direito material


coletivo. Analogia.

Sumário: 1 Introdução – 2 Critérios para identificação da prescrição, deca-


dência e imprescritibilidade – 3 Direitos essencialmente coletivos e direitos
acidentalmente coletivos – Reflexos no estudo hermenêutico dos prazos
prescricionais e decadenciais – 4 Direito material coletivo e os prazos pres-
cricionais e decadenciais previstos nos diplomas normativos que integram o
microssistema processual coletivo – 5 As lacunas legais em tema de prescri-
ção e decadência e o problema da integração pela analogia – 6 Conclusão
– Referências

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48 Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, Marcelo Malheiros Cerqueira

1 Introdução
Na última década, a comunidade jurídica brasileira presenciou significativo
incremento na prática e hermenêutica das ações coletivas. O assunto, que até então
era objeto de estudo por parte de um restrito nicho de juristas, difundiu-se não só
no âmbito doutrinário, como também no plano jurisprudencial, com o surgimento
de importantes precedentes na matéria.1
Na seara legislativa, muito se discutiu sobre a codificação do Direito Proces­
sual Coletivo entre os anos de 2002 e 2008, resultando na elaboração de dois
códigos-modelos e duas propostas de anteprojeto de código. No final do ano de
2008, a ideia da codificação cedeu espaço à elaboração de um anteprojeto
de nova Lei da Ação Civil Pública, que posteriormente resultou no Projeto de Lei
nº 5.139/2009. Com a rejeição política deste projeto na Câmara dos Deputados,
atualmente há expectativa de uma possível reforma do Código de Defesa do
Consumidor, abrangendo o microssistema processual coletivo por ele instituído.
Contudo, a despeito da possibilidade de modificação legislativa da matéria,
o fato é que ainda não houve aprovação de qualquer dos projetos de lei citados.2
Nesse contexto, resta aos operadores do direito lidar com o microssistema
processual coletivo, estabelecido formalmente pelo art. 21 da Lei nº 7.347/85 e
pelo art. 90 da Lei nº 8.078/90, e composto, efetivamente, por todos os diplomas
legais que dispõem sobre a tutela coletiva, sem olvidar a sua necessária filtra-
gem constitucional,3 dentro do que se identifica como um diálogo das fontes de
processo coletivo.4
O problema é que, ainda que o aludido microssistema cumpra um papel de
coordenação, a fragmentação normativa do direito processual coletivo inevitavel-
mente redunda em interpretações difusas e conflitantes sobre diversos institutos

1
Uma das decisões mais emblemáticas foi proferida no julgamento do REsp nº 1.110.549/RS pelo
STJ, em que se entendeu pela suspensão obrigatória de processos individuais conexos a demanda
coletiva. A respeito de tal precedente, v. CERQUEIRA, 2010, p. 297-307.
2
Ressalve-se apenas que o projeto de novo Código de Processo Civil (PL nº 8.046/2010) foi aprovado
no Senado em 2010 e encontra-se em trâmite na Câmara dos Deputados. Entre as inovações con-
tidas nesse projeto, embora não haja tratamento específico do processo coletivo, chama atenção a
figura do “incidente de resolução de demandas repetitivas”, que tende a absorver boa parte do que
hoje é objeto das ações coletivas versando sobre direitos individuais homogêneos.
3
Como explica Barroso, “toda interpretação jurídica é também uma interpretação constitucional”
(2011, p. 387), o que implica a conclusão de que os diversos ramos do direito devem ser sempre
interpretados à luz da Constituição.
4
Sobre o tema, v. DONIZETTI; CERQUEIRA, 2010, p. 28-30. A expressão diálogo das fontes, criada
por Erik Jayme, tem o significado de “aplicação simultânea, coerente e coordenada [seja comple-
mentarmente, seja subsidiariamente] das diversas fontes legislativas, com campos de aplicação
convergentes, mas não iguais” (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2007, p. 98).

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Prescrição, decadência e imprescritibilidade no direito material coletivo... 49

de processo coletivo, gerando insegurança jurídica sobre a sua efetividade como


instrumento de solução de lides transindividuais ou acidentalmente coletivas.
As dificuldades advindas da aplicação do microssistema processual coletivo são
tamanhas que chegam a afetar institutos ligados ao direito material coletivo, como é
o caso da prescrição e da decadência.5
A escassa regulamentação do regime jurídico da prescrição das pretensões
coletivas e da decadência dos direitos coletivos potestativos tem levado o Judiciário
a adotar soluções hermenêuticas diversificadas envolvendo os conflitos de massa,
entre as quais se incluem algumas de questionável acerto e comprometimento
com a efetividade da tutela coletiva.
Entre essas discutíveis soluções, o caso mais notório é o entendimento do
STJ no sentido de aplicar, por analogia, o prazo prescricional de cinco anos pre-
visto na Lei nº 4.717/65 (Lei da Ação Popular) às ações civis públicas, indepen-
dentemente da pretensão ou do direito material deduzido na demanda coletiva.
Como se pretende demonstrar, o citado entendimento jurisprudencial parte de
premissas equivocadas para atingir uma conclusão extremamente desfavorável
aos diversos grupos cujos direitos são tutelados em demandas coletivas, privile-
giando a litigância individual (ou melhor dizendo, a repetição de demandas indi-
viduais) em detrimento da molecularização dos litígios em uma só ação coletiva.
Posto o problema, cumpre examinar os conceitos básicos dos institutos jurí-
dicos da prescrição e da decadência para, após, afastar errôneas ilações e traçar os
parâmetros para a adequada utilização da analogia como método de integração
no âmbito do Direito Coletivo.6

2  Critérios para identificação da prescrição, decadência e


imprescritibilidade
Entre aqueles que se debruçaram sobre o tema da prescrição e da deca-
dência, destaca-se o estudo paradigmático de Amorim Filho sob o título “Critério

5
Mais adiante será abordada a natureza jurídica da prescrição e da decadência. Por ora, vale a cons-
tatação de que, “se o reconhecimento da prescrição implica a resolução do mérito, então é evidente
que o tema em questão não alude à ação judicial, mas sim a algum elemento do direito material em
discussão” (ARENHART, 2010).
6
A autonomia metodológica do Direito Coletivo é amplamente justificada por Gregório Assagra de
Almeida, ao defender a superação da summa diviso Direito Público e Direito Privado pela CR/88.
Nas palavras do ilustre jurista, “a nova summa diviso constitucionalizada no País é Direito Individual
e Direito Coletivo. Trata-se de summa diviso constitucionalizada relativizada, pois no topo encon-
tra-se o Direito Constitucional, representado pelo seu objeto formal, a Constituição, composta tanto
de normas de Direito Individual, quanto de normas de Direito Coletivo” (ALMEIDA, 2008, p. 361).

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50 Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, Marcelo Malheiros Cerqueira

científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações


imprescritíveis”.7
O trabalho, realizado sob a vigência do Código Civil de 1916, teve o mérito
de propor uma sistematização até então inexistente quanto aos institutos da pres-
crição e decadência, e que, dada a sua excelência, terminou acolhida formalmente
pelo legislador brasileiro mais de 40 anos após, quando da promulgação do Código
Civil de 2002.
No Código Civil de 1916, os prazos da prescrição e da decadência eram
reunidos indistintamente no Título III do Livro III, denominado “Da Prescrição”. A
propósito, explica Theodoro Júnior que:

[...] o primitivo projeto preparado por Clóvis Bevilaqua para o Código Civil
(LGL\2002\400) brasileiro dispunha genericamente sobre os prazos pres-
cricionais e os de decadência se achavam dispersos, junto à disciplina
dos direitos que a eles se subordinavam. Assim permaneceu durante as
discussões regimentais. Na redação final, foi que a comissão dela encar-
regada, na suposição de aprimorar o projeto, transferiu da Parte Especial
para a Parte Geral todos os prazos de decadência, colocando-os ao lado
dos prazos prescricionais. Sobre essa esdrúxula e confusa unificação não
chegou a haver debate, de sorte que o planejado melhoramento acabou
por redundar, para os aplicadores do Código, num dificílimo problema,
pois o que efetivamente se deu foi um “erro manifesto de classificação”,
como registrou Costa Manso.
Em consequência da inominável impropriedade legal de rotular indiscri-
minadamente de prescricionais tanto os prazos de prescrição como os
de decadência, se viram os doutrinadores envolvidos na inglória tarefa
de desdizer a literalidade do Código, tendo em conta que seria absurdo
admitir que a lei possa ignorar e contrariar a natureza das coisas.
Do penoso labor da doutrina e jurisprudência, aos poucos foram se estabe-
lecendo, de forma empírica, quais seriam os prazos do Código que, mal-
grado o nomen iuris, não seriam de prescrição, mas de decadência.8

Não só era problemática a indefinição quanto à natureza dos prazos extinti-


vos previstos no Código Civil de 1916, como também a referência à circunstância
de que a prescrição incidiria sobre o direito de ação (arts. 177 e 178). Isso porque,
na visão processualista mais recente, o direito de ação é autônomo (em relação ao
direito material) e abstrato (independe da procedência do pedido), de tal forma
que, entendida a ação como direito público subjetivo à prestação jurisdicional, não
haveria submissão desse direito a um prazo extintivo.

7
Revista dos Tribunais, p. 725-750.
8
THEODORO JÚNIOR, 2005.

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Prescrição, decadência e imprescritibilidade no direito material coletivo... 51

Nesse cenário, o grande mérito de Amorim Filho foi o de identificar, de um


lado, a relação da prescrição com os “direitos a uma prestação” (exercitados judi-
cialmente por meio de ações condenatórias), e, de outro lado, a ligação da decadên-
cia com os chamados “direitos potestativos” (exercitados judicialmente por meio de
ações constitutivas).
Os direitos a uma prestação são aqueles nos quais o titular (sujeito ativo) tem
o poder de exigir de outrem (sujeito passivo) determinado comportamento (pres-
tação), positivo ou negativo. Em um contrato de locação, por exemplo, o locador
teria o direito a um prestação do locatário equivalente ao pagamento dos aluguéis.
Os direitos potestativos, por sua vez, identificam-se como aqueles em que o
titular (sujeito ativo), sem o concurso da vontade de outrem (sujeito passivo), interfere
na situação jurídica deste unilateralmente, criando um típico estado de sujeição.
Voltando ao exemplo da locação, basta imaginar uma hipótese em que o contrato
tenha sido celebrado com um vício de consentimento apto a invalidar o negócio,
gerando, assim, o direito potestativo da parte prejudicada de anular o pacto.
Como somente nos direitos a uma prestação há relevância da vontade ou
comportamento do sujeito passivo, percebe-se facilmente que somente essa espé-
cie de direitos é passível de violação.
Caso violado o direito subjetivo a uma prestação, surge para o seu titular a
possibilidade de exigi-lo do sujeito passivo, caracterizando o que se entende por
pretensão. Em outras palavras, a pretensão é a exigibilidade do direito violado, tam-
bém conhecida como ação material, não se confundindo com a ação processual
(voltada à prestação jurisdicional) nem com o próprio direito subjetivo lesado.
A respeito da distinção entre ação material (pretensão) e ação processual,
são esclarecedores os seguintes ensinamentos:

Vale dizer que o direito de ação é hoje visto, na ótica do direito processual,
como autônomo e abstrato, frente ao direito material, mas não é hostil
a este nem é com ele incompatível. Sendo certa a instrumentalidade de
um direito em relação ao outro, pode-se perfeitamente encarar o direito
de ação tanto do ponto de vista processual como material. E será apenas
na perspectiva do direito processual que prevalecerá a sua autonomia e
abstração. Estar-se-á cuidando apenas do direito à prestação jurisdicio-
nal. Pode, porém, a ação ser encarada dentro da perspectiva do direito
material. Nesse ângulo, é com a tutela jurisdicional que o titular do direito
subjetivo material irá contar, ou seja, o acesso à justiça lhe assegurará a
tutela ou proteção que a ordem jurídica assegura a todos os direitos sub-
jetivos materiais. Ter ação, no sentido material ou civilístico, é, portanto,
ter direito à proteção jurisdicional e não apenas direito à resposta judicial
(simples prestação jurisdicional). Daí que não há impropriedade alguma

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52 Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, Marcelo Malheiros Cerqueira

em reconhecer que há uma ação material distinta da ação processual, a


qual desta se vale para implementar-se, quando necessário.9

Nessa linha de raciocínio, a conclusão a que chega Amorim Filho é que a


prescrição atinge exatamente a pretensão, isto é, a ação material voltada a asse-
gurar o direito subjetivo a uma prestação (obrigação de fazer, não fazer ou pagar
quantia). No plano processual, explica o jurista, tal modalidade de pretensão é
veiculada somente por meio de ações condenatórias.10
Acolhendo tais ensinamentos, o art. 189 do Código Civil atual dispõe que,
“violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela pres-
crição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”. Consagra-se, nesses termos, a
teoria da actio nata, pela qual o termo inicial da prescrição coincide com o nasci-
mento da ação (material).11
Há, portanto, uma distinção ontológica entre ação processual, pretensão e
direito violado, sendo imprescindível a compreensão de que o transcurso do prazo
prescricional atinge somente a pretensão. Nesse caso, o titular do direito violado
pode até promover seu direito de ação (processual), mas, não podendo mais exi-
gir a reparação daquele direito, porquanto prescrita a pretensão, a consequência
será a extinção do processo com resolução do mérito, ante a perda da pretensão
(art. 269, IV, do CPC).
Já no tocante aos direitos potestativos, como não há que se falar em presta-
ção de outrem, mas sim em um estado de sujeição, inexiste possibilidade de vio-
lação do direito, do que resulta a ausência de pretensão. Os direitos potestativos,
vale dizer, exercitam-se por vontade unilateral do respectivo titular.
Como os direitos potestativos são desprovidos de pretensão, a eles não se
aplica o instituto da prescrição, mas sim o da decadência, pelo qual ocorre a extin-
ção do próprio direito em razão do seu não exercício em determinado prazo. Na
lição de Amorim Filho:

[...] há certos direitos cujo exercício afeta, em maior ou menor grau, a


esfera jurídica de terceiros, criando para esses um estado de sujeição, sem
qualquer contribuição da sua vontade, ou mesmo contra sua vontade.

9
THEODORO JÚNIOR, 2005.
10
AMORIM FILHO, 1997, p. 732-736.
11
Comentando o dispositivo citado, Farias e Rosenvald explicam que “o Código Civil explicitou não
atingir a prescrição o direito de ação em si mesmo (instituto de direito processual), mas sim a
pretensão (esta sim, instituto de direito material), confirmando o caráter de direito autônomo,
abstrato, público e subjetivo do direito de ação, resguardado em sede constitucional, pelo art. 5º,
XXXV” (2008, p. 556).

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São os direitos potestativos. É natural, pois, que a possibilidade de exercício


desses direitos origine, para os terceiros que vão sofrer a sujeição, uma
situação de intranquilidade, cuja intensidade varia de caso para caso. [...]
surgiu a necessidade de se estabelecer também um prazo para o exercí-
cio de alguns, apenas alguns, dos mencionados direitos potestativos, isto
é, aqueles direitos potestativos cuja falta de exercício concorre de forma
mais acentuada para perturbar a paz social.12

Ao contrário do que ocorre em relação aos direitos a uma prestação, a fonte


da intranquilidade oposta aos direitos potestativos não é a existência da ação mate-
rial (isto é, o poder de exigir uma prestação do sujeito passivo), mas sim a existência
do próprio direito, que pode ou não ser exercido pelo seu titular unilateralmente,
quer por ação constitutiva ou não.13
É válido anotar, porém, que nem todos os direitos potestativos estão sub-
metidos a prazo decadencial, de modo que há direitos que não se extinguem pelo
não uso, “pois não há dispositivo estabelecendo um prazo geral para que os direi-
tos potestativos sejam exercitados sob pena de extinção”.14
Por fim, há ainda a imprescritibilidade das ações meramente declaratórias,
porquanto não impõem prestações nem sujeições, apenas se destinando a procla-
mar a certeza sobre a existência ou inexistência de determinada relação jurídica.
A propósito da imprescritibilidade das ações meramente declaratórias e de
algumas ações constitutivas:

O problema da identificação das denominadas ações imprescritíveis tem


sua solução grandemente facilitada com a fixação daquelas duas regras
[...] destinadas a identificar as ações sujeitas a prescrição ou a decadên-
cia. Sendo a imprescritibilidade um conceito negativo, pode ser definido
por exclusão, estabelecendo-se como regra que: são perpétuas (impres-
critíveis): a) todas as ações meramente declaratórias; e b) algumas ações
constitutivas (aquelas que não têm prazo especial de exercício fixado em
lei). Quanto às ações condenatórias, não há, entre elas, ações perpétuas
(imprescritíveis).15

Feita essa digressão sobre os institutos da prescrição e da decadência, bem


como a respeito dos casos de imprescritibilidade, e ficando bem compreendida a na-
tureza jurídica de cada um dos referidos institutos, é possível explorar o tratamento

12
AMORIM FILHO, 1997, p. 737.
13
Idem, p. 737-738.
14
Idem, p. 737.
15
Idem, p. 747.

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dado ao assunto no direito material coletivo e propor soluções hermenêuticas para


as lacunas legais verificadas.
Ressalve-se, desde logo, que o direito material coletivo não obedece inte-
gralmente ao critério científico proposto, contemplando casos de imprescriti-
bilidade mesmo no que diz respeito a ações condenatórias, como nas ações de
ressarcimento ao erário (art. 37, §5º, in fine da CR/88).16

3  Direitos essencialmente coletivos e direitos acidentalmente


coletivos – Reflexos no estudo hermenêutico dos prazos
prescricionais e decadenciais
Tendo em vista que a prescrição e a decadência constituem institutos de
direito material, para bem entender o respectivo tratamento no âmbito coletivo
— e, como se verá adiante, determinar o cabimento ou não do emprego da analo-
gia — é imprescindível a prévia compreensão da natureza dos direitos tuteláveis
por meio de ações coletivas.
Desde a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor em 1990,
são reconhecidas três espécies de direitos coletivos no direito brasileiro, a saber:
a) os difusos, b) os coletivos em sentido estrito; e c) os individuais homogêneos.
Na classificação de Barbosa Moreira, os direitos difusos e coletivos em sen-
tido estrito são aqueles essencialmente coletivos, dada a sua indivisibilidade entre
os membros da coletividade ou comunidade.17 Em outras palavras, essa categoria
de direitos não admite fracionamento entre os indivíduos integrantes do grupo,
requisitando que a tutela incida sobre a totalidade do bem jurídico protegido (daí
ser possível denominá-los transindividuais).

Compare-se, para bem entender a distinção, o direito à imagem e o direito


ao meio ambiente sadio; conquanto se possa dizer que o direito à ima-
gem é universal, porque todos os sujeitos o possuem, é fácil identificar,
em cada pessoa, seu próprio direito (legitimando-se, por isso mesmo,
cada titular a propor ações para a tutela de seu específico interesse). Já o
direito ao meio ambiente (direito difuso), porque pertencente a toda coletivi-
dade, de forma diluída, não admite que ninguém, isoladamente, seja consi-
derado como seu titular (ou mesmo de parcela dele).18

16
Embora autores como Luiz Manoel Gomes Jr. e Ada Pellegrini Grinover encampem a tese de pres-
critibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário, é francamente majoritário o entendimento
pela imprescritibilidade, tanto na doutrina quanto na jurisprudência (v. RAMOS, 2011). Em função
do disposto no art. 37, §5º, da CR/88, portanto, houve derrogação do art. 21 da LAP quanto ao prazo
prescricional da pretensão de ressarcimento ao erário por danos ao patrimônio público, conti-
nuando válido o prazo (decadencial) de cinco anos para a desconstituição do ato administrativo.
17
MOREIRA, 1984, p. 195-196.
18
MARINONI; ARENHART, 2006, p. 724.

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Já os direitos individuais homogêneos são apenas acidentalmente coletivos,


em razão de sua divisibilidade entre os componentes do grupo. Tais direitos são
em essência individuais, perfeitamente atribuíveis a sujeitos específicos, de maneira
que a tutela coletiva opera por meio de ficção jurídica — em essência, não há um
direito coletivo, ele é assim considerado pela lei para que possa ser protegido na
via processual coletiva. As finalidades do tratamento coletivo de direitos indivi-
duais homogêneos são: evitar decisões discrepantes em lides com origem comum,
gerando segurança jurídica aos jurisdicionados, e propiciar economia processual
com a resolução, em um único processo, de inúmeros litígios individuais.19
Se a tutela coletiva abrange direitos com essência distinta (coletiva propria-
mente dita ou individual homogênea), nada mais natural que o regime de prescrição
e decadência seja também diverso no que tange a cada categoria.
Em relação à prescrição, como visto, sua incidência está vinculada à exigibi-
lidade do direito violado, também conhecida como pretensão ou ação material.
Assim, é o direito em espécie que foi infringido que determinará o prazo prescri-
cional aplicável, bem como a possibilidade do uso da analogia.
Com isso, fixa-se a premissa de que não cabe a aplicação por analogia do regra-
mento da exigibilidade de um direito essencialmente coletivo a direito diverso e
não similar, seja este difuso, coletivo em sentido estrito ou — com maior certeza
— individual homogêneo.
Analogia nada mais é que a aplicação, a um caso não regulado diretamente,
de norma que disciplina hipótese semelhante. Logo, não há como entender que o
prazo para prescrição da pretensão para reparação de um dano ao meio ambiente
deveria equivaler, somente pela semelhança, à normatização do prazo para a pre-
tensão de ressarcimento ao erário (imprescritível, segundo posição majoritária)
ou para reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço em
relações consumeristas (prazo de cinco anos). Com maior razão e nitidez, não há
similitude alguma entre a prescrição da pretensão relativa a um direito essencial-
mente coletivo (como o direito ao meio ambiente saudável) e a prescrição que
atinge pretensões referentes a direitos individuais homogeneamente considera-
dos (como o direito de indenização de agricultores prejudicados financeiramente
pela poluição de um rio).
Na mesma linha de raciocínio, se a decadência significa a extinção do pró-
prio direito subjetivo em razão do seu não exercício em determinado prazo, é
claro que o prazo decadencial variará de acordo com o direito potestativo em

DONIZETTI; CERQUEIRA, 2010, p. 41.


19

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jogo. A norma do art. 26 do Código de Defesa do Consumidor é esclarecedora


nesse ponto, ao prever prazo decadencial distinto para o consumidor (ou grupo
de consumidores) reclamar por vícios aparentes e de fácil constatação no caso de
fornecimento de serviços ou produtos não duráveis (prazo de trinta dias) e durá-
veis (prazo de noventa dias).
O que não se pode admitir de modo algum, seja no caso da decadência
ou da prescrição, é o entendimento de que os prazos previstos no ordenamento
jurídico para alguns direitos coletivos seriam automaticamente aplicáveis a todo o
gênero, incluindo até mesmo os direitos individuais homogêneos, que em essên-
cia sequer são coletivos.

4  Direito material coletivo e os prazos prescricionais e decadenciais


previstos nos diplomas normativos que integram o microssistema
processual coletivo
Como já se observou, o problema dos prazos prescricionais e decadenciais
está ligado ao direito material, o que explica a dificuldade em se estabelecer qual
o regime da prescrição e decadência em relação aos direitos coletivos lato sensu
resguardados pelo ordenamento jurídico.
A disciplina do direito material coletivo encontra-se dispersa em diversos
diplomas legais, inexistindo uma norma geral sobre o tema. Não há, então, um
regramento dos prazos prescricionais e decadenciais dos diferentes direitos cole­
tivos, podendo-se observar apenas algumas disposições específicas. As mais rele-
vantes são as seguintes:
a) art. 21 da Lei nº 4.717/65 (LAP): prescrição da ação popular em cinco anos;20
b) art. 26 da Lei nº 8.078/90 (CDC): decadência para reclamação por vícios
aparentes ou de fácil constatação em trinta dias, no caso de serviços e
produtos não duráveis, ou em noventa dias, na hipótese de serviços e pro-
dutos duráveis;

20
Ressalte-se que a norma do art. 21 da Lei nº 4.717/65 é atécnica ao se referir à prescrição da ação
popular, o que dá ensejo a controvérsias na doutrina. Uma primeira corrente, acolhida pelo STJ,
sustenta que a prescrição em cinco anos não seria da ação popular em si, mas da pretensão nela
deduzida. Já para Arenhart (2010), a norma deve ser interpretada no sentido de que o procedi-
mento da Lei da Ação Popular somente poderia ser utilizado em até cinco anos, à semelhança do
que ocorre na Lei do Mandado de Segurança (que, todavia, trata de prazo decadencial). Por fim,
ainda há quem defenda que, como o objeto principal da ação popular é um pedido de natureza
constitutiva negativa, o caso é de prazo decadencial, e não prescricional (FARIAS; ROSENVALD,
2008, p. 573).

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c) art. 27 da Lei nº 8.078/90 (CDC): prescrição quinquenal da pretensão


à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço,
iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e
de sua autoria;
d) art. 23 da Lei nº 8.429/92 (LIA): prescrição da pretensão sancionatória em
ação de improbidade administrativa, cujo prazo pode variar conforme o
sujeito ativo do ato ímprobo seja titular de mandato, cargo em comissão ou
função de confiança (inc. I) ou titular de cargo efetivo ou emprego (inc. II).
Fora essas e outras eventuais hipóteses em leis específicas, não há como se
remeter a uma norma geral sobre decadência e prescrição voltada para o direito
material coletivo, notadamente para os direitos difusos e coletivos em sentido
estrito. Por conseguinte, surgem as seguintes indagações:
1. Em caso de lacuna quanto à prescrição ou à decadência, é possível aplicar
por analogia os prazos previstos nos diplomas do microssistema proces-
sual coletivo a outros direitos coletivos? Se negativa a resposta, trata-se
de hipótese de imprescritibilidade ou aplica-se o prazo prescricional de
dez anos do art. 205 do CC?
2. É possível aplicar a direitos individuais homogêneos prazos prescricio-
nais ou decadenciais previstos para direitos essencialmente coletivos no
microssistema processual coletivo, por analogia? Sendo possível que tais
direitos sejam processados individualmente (na sistemática processual
vigente), poder-se-ia admitir prazos díspares quanto à tutela individual
ou coletiva de um mesmo direito (individual homogêneo)?
A primeira premissa a observar é que o Código Civil de 2002, embora tenha
avançado ao tratar da tutela de interesses sociais (v. art. 421, que dispõe sobre a
função social do contrato), relegou aos direitos coletivos uma disciplina apenas
indireta, perdendo o legislador grande oportunidade de destinar um capítulo
para a disciplina do direito material coletivo.
Por isso mesmo, não é cabível a aplicação do art. 205 do Código Civil para
a integração de lacunas referentes aos prazos prescricionais e decadenciais de
direitos essencialmente coletivos. A integração do ordenamento pela analogia
requer a proximidade da norma com a situação concreta não regulada expressa-
mente, o que não é o caso das disposições do Código Civil em relação aos direitos
difusos e coletivos em sentido estrito.
Hipótese diversa, porém, é a aplicação do Código Civil no tocante a prazos
prescricionais e decadenciais de direitos individuais pleiteados coletivamente, na
figura dos direitos individuais homogêneos. Aqui, a situação se inverte, devendo

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incidir a regulamentação do Código Civil em detrimento das disposições de direito


material coletivo.
Ocorre que o STJ vem sistematicamente aplicando, por analogia, o prazo
prescricional de cinco anos previsto na Lei nº 4.717/65 (LAP) às ações civis públi­cas,
sem atentar para a distinção ontológica entre os direitos coletivos em essên­cia (difu-
sos e coletivos em sentido estrito) e por ficção (direitos individuais homogêneos).
Se em alguns julgados houve efetivo cotejo do pedido formulado na ação
civil pública com o que poderia ser deduzido em ação popular, o que efetivamente
indica a possibilidade de analogia, em outras situações houve a aplicação do prazo
prescricional qüinqüenal, independentemente de análise da pretensão ou do direito
material deduzido na demanda coletiva.
Na linha da primeira hipótese (similitude entre o pedido formulado na ação
civil pública com o que poderia ser arguido em ação popular), colaciona-se o
seguinte julgado:

RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CONCURSO


INTERNO. PROVIMENTO DERIVADO. CARGO DE DELEGADO DE POLÍCIA.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO. OFENSA À
MORALIDADE. PRESCRIÇÃO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO PRAZO PREVISTO
NA LEI DA AÇÃO POPULAR. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA
BOA-FÉ. RECURSO PROVIDO.
1. O órgão julgador, desde que tenha apresentado fundamentos suficien-
tes para sua decisão, não está obrigado a responder um a um os argumen-
tos formulados pelas partes.
2. Tratando-se de ação civil pública ajuizada com o objetivo de anular
ato administrativo supostamente violador dos princípios da moralidade
e da impessoalidade administrativas, o prazo prescricional, ante a omis-
são da Lei nº 7.347/85, deve ser, por analogia, o previsto no art. 21 da Lei
nº 4.717/65, tendo em vista que a pretensão poderia perfeitamente ser
exercida por meio de ação popular, igualmente adequada à defesa de
interesses de natureza impessoal, pertencentes à coletividade, nos ter-
mos do art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal. Precedentes do Superior
Tribunal de Justiça.
3. Recurso provido para, reconhecida a prescrição, extinguir o processo com
base no art. 269, IV, do Código de Processo Civil. (REsp nº 912.612/DF, Quinta
Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julg. 12.08.2008, DJe, 15 set. 2008)

Já na esteira ampliativa, chama atenção a polêmica decisão da 2ª Seção do


STJ no caso da cobrança dos expurgos inflacionários, em que se aplicou o prazo
prescricional previsto na Lei nº 4.717/65 à ação civil pública versando sobre direitos
individuais homogêneos:

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CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA DECORRENTE DE DIREITOS


INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. POUPANÇA. COBRANÇA DOS EXPURGOS
INFLACIONÁRIOS. PLANOS BRESSER E VERÃO. PRAZO PRESCRICIONAL
QUINQUENAL.
1. A Ação Civil Pública e a Ação Popular compõem um microssistema de
tutela dos direitos difusos, por isso que, não havendo previsão de prazo
prescricional para a propositura da Ação Civil Pública, recomenda-se a
aplicação, por analogia, do prazo quinquenal previsto no art. 21 da Lei
nº 4.717/65.
2. Embora o direito subjetivo objeto da presente ação civil pública se
identifique com aquele contido em inúmeras ações individuais que
discutem a cobrança de expurgos inflacionários referentes aos Planos
Bresser e Verão, são, na verdade, ações independentes, não implicando
a extinção da ação civil pública, que busca a concretização de um direto
subjetivo coletivizado, a extinção das demais pretensões individuais com
origem comum, as quais não possuem os mesmos prazos de prescrição.
3. Em outro ângulo, considerando-se que as pretensões coletivas sequer
existiam à época dos fatos, pois em 1987 e 1989 não havia a possibilidade
de ajuizamento da ação civil pública decorrente de direitos individuais
homogêneos, tutela coletiva consagrada com o advento, em 1990, do
CDC, incabível atribuir às ações civis públicas o prazo prescricional vinte-
nário previsto no art. 177 do CC/16.
4. Ainda que o art. 7º do CDC preveja a abertura do microssistema para
outras normas que dispõem sobre a defesa dos direitos dos consumido-
res, a regra existente fora do sistema, que tem caráter meramente geral
e vai de encontro ao regido especificamente na legislação consumerista,
não afasta o prazo prescricional estabelecido no art. 27 do CDC.
5. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp nº 1070896/SC, Segunda
Seção, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 14.04.2010, DJe, 04 ago. 2010)

Deixando de lado os questionamentos políticos e econômicos envolvendo


a referida decisão, cumpre frisar que sua ratio decidendi é juridicamente insus-
tentável, visto que, como já mencionado, não há semelhança alguma que justifi-
que a analogia entre prescrição de pretensões relativas a direitos essencialmente
coletivos (caso da ação popular) e prescrição que atinge pretensões referentes a
direitos individuais homogeneamente considerados.
Os direitos individuais homogêneos nada mais são do que direitos individuais,
pelo que o tratamento processual coletivo a eles conferido pelo ordenamento jurídico
não pode justificar uma diferenciação quanto ao prazo prescricional ou decadencial.
Entender o contrário implica admitir, incongruentemente, que pretensões
individuais deduzidas em ações individuais podem possuir prazo maior ou menor
do que aquelas formuladas genericamente no bojo de ação coletiva. No caso

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decidido pelo STJ, o prazo prescricional da ação coletiva seria menor do que o
das ações individuais, mas, seguindo a inusitada lógica, será que a jurisprudên-
cia permitiria a prescrição quinquenal de ação civil pública tratando de direitos
individuais homogêneos caso a prescrição das pretensões individuais ocorra em
prazo menor (ex.: prazo de três anos para o exercício da pretensão de reparação
civil, cf. art. 206, §3º, V, do CC)?
A análise do tema da prescrição sob o prisma do direito processual revela a má
compreensão do microssistema processual coletivo pela jurisprudência brasileira.
O microssistema, como a própria denominação indica, é processual, não havendo
que se aplicar por analogia normas de direito material previstas nos diplomas nor-
mativos que integram tal microssistema a situações ontologicamente distintas. O
erro hermenêutico salta aos olhos, tanto que já tem sido severamente criticado pela
doutrina:

O prazo prescricional para a tutela coletiva de direitos individuais homo-


gêneos será o prazo prescricional das respectivas pretensões individuais.
Não há qualquer razão para que haja prazos diversos, um para a ação
coletiva e outro para a ação individual. Assim, se se trata de pretensões
indi­viduais ressarcitórias que prescrevem em três anos, três anos será o
prazo para ajuizamento da respectiva ação coletiva para a tutela dos direi-
tos individuais homogêneos. É relevante notar que este prazo é vincu-
lado ao direito material tutelado, não existe no ordenamento brasileiro,
em princípio, nenhum prazo prescricional puramente processual.
Não foi isso o que entendeu o STJ, no REsp nº 1.070.896/SC, Rel. Min.
Luis Felipe Salomão, julg. 14.04.2010, acórdão publicado em 04.08.2010,
que, buscando socorro no microssistema da tutela coletiva, aplicou por
analogia o prazo qüinqüenal da ação popular para o ajuizamento de
ação coletiva para a tutela dos direitos individuais homogêneos, nada
obstante o prazo prescricional das pretensões individuais ser vintenário.
Assim, produziu o STJ uma decisão absurda e, por isso, lamentável: ao
impedir a tutela coletiva, estimulou o prosseguimento (de demandas
eventualmente suspensas em razão da pendência da ação coletiva) ou a
propositura de processos individuais, pois as pretensões individuais, no
caso, não estão prescritas. A solução, embora envernizada pelo apelo ao
microssistema, além de ruim tecnicamente (o prazo da ação popular não
fora pensado para ações ressarcitórias), é, do ponto de vista da adminis-
tração do judiciário, muito ruim. E pode ser ainda pior: como os expur-
gos inflacionários de que tratam as demandas são referentes a 1987 e
1989, salvo se reconhecida a interrupção das prescrições individuais pelo
ajuizamento das ações coletivas, como se verá abaixo, em 2010 também
estarão prescritas aquelas pretensões individuais.21

21
DIDIER JR.; ZANETI JR., 2012, p 306. A crítica ora exposta não deixa de guardar relação com as
polêmicas envolvendo o equilíbrio entre ativismo judicial (saudável em determinadas áreas como

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No próximo tópico, analisar-se-á o problema da integração das lacunas referentes


a prazos prescricionais e decadenciais em matéria coletiva, tendo em mente a
premissa de que tais prazos, quando previstos expressamente na legislação, estão
ligados a direitos coletivos específicos.

5  As lacunas legais em tema de prescrição e decadência e o problema


da integração pela analogia
Os direitos acidentalmente coletivos são em essência individuais, razão pela
qual a eles se aplica tratamento idêntico ao dos direitos individuais isoladamente
considerados. Aqui, não há que se cogitar de lacunas e do recurso à analogia como
método de integração, ante o prazo prescricional genérico de dez anos previsto no
art. 205 do CC, para os casos em que a lei não haja fixado prazo menor.
Já a disciplina dos direitos essencialmente coletivos é esparsa, inexistindo
um diploma legislativo responsável pela sistematização e ordenação normativa
de tais direitos.
Em virtude dessa peculiaridade do direito material coletivo, apenas alguns
prazos prescricionais ou decadenciais foram tratados especificamente pelo legis-
lador, havendo lacunas quanto ao regime aplicável a grande parte dos direitos
transindividuais.
Surge daí a indagação sobre a imprescritibilidade ou não das pretensões
ou ações referentes a direitos coletivos cujo tratamento legislativo seja omisso a
respeito de prazos para exercício da pretensão ou perecimento do direito.
A resposta a esse questionamento está longe de consenso, mormente pelo
fato de que, em face da omissão legislativa, grande parte da doutrina e da juris-
prudência recorre a soluções casuísticas e assimétricas, dificultando ainda mais
uma solução equilibrada e totalizante, que sirva de norte ao intérprete diante das
diversas espécies de direitos coletivos.
A favor da imprescritibilidade, é possível argumentar, primeiramente, que
os diferentes direitos difusos e coletivos em sentido estrito reclamam prazos pres-
cricionais ou decadenciais distintos, conforme a peculiaridade da situação de
direito material em jogo, sob pena de violação do princípio da igualdade material.

a proteção dos direitos fundamentais e dos direitos de minorias) e a autocontenção judicial (reco-
mendável em matérias que exijam conhecimentos técnicos fora do Direito, como a economia e as
políticas públicas) — v. SARMENTO, 2009, p. 31-68. No tocante à referida decisão do STJ, a solução
hermenêutica simplista e atécnica em matéria de significativa repercussão econômica para milhões
de cidadãos-consumidores implica uma justificável preocupação com a definição do papel do
Judiciário na concretização da Constituição brasileira.

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62 Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, Marcelo Malheiros Cerqueira

Assim, constatada a omissão legislativa, não seria possível o emprego da analogia


com prazos decadenciais ou prescricionais aplicáveis a outros direitos ou preten-
sões coletivas.
Imagine-se, por exemplo, uma ação civil pública visando à proteção de um
determinado direito de prestação das pessoas portadoras de deficiência (art. 3º da
Lei nº 7.853/89 c/c art. 1º, IV, da LACP). Diante da ausência de prazo prescricional
para o exercício da pretensão desse grupo de indivíduos hipervulneráveis,22 seria
plausível a aplicação por analogia do prazo quinquenal previsto na Lei nº 4.717/65
(LAP), cujas normas disciplinam a ação popular para a tutela de bens jurídicos cole-
tivos específicos (art. 5º, LXXIII, da CR/88)?
Um segundo argumento guarda conexão com o fato de que o ordenamento
reconhece expressamente a imprescritibilidade de algumas pretensões ou direi-
tos potestativos, como no que diz respeito ao ressarcimento de danos ao erário
(art. 37, §5º, da CR/88),23 aos bens públicos (arts. 183, §3º, e 191, parágrafo único,
da CR/88, Súmula nº 340 do STF, art. 200 do DL nº 9.760/1946 e art. 102 do CC) e
aos direitos dos grupos indígenas sobre suas terras (art. 231, §4º, in fine, da CR/88).
Para a maioria, também é imprescritível a pretensão de reparação de danos ambien-
tais formulada em ação civil pública.24
Em face dessas previsões, a tese que propugna pela aplicação do prazo pres-
cricional quinquenal da Lei nº 4.717/65 (LAP) às diversas ações civis públicas não
responde o motivo por que não incidiria, também por analogia, as normas de
imprescritibilidade. Em outras palavras, não há a devida justificação do motivo da
analogia em um caso, mas não em outro, o que demonstra uma sensível dose de
omissão no enfrentamento do tema, sobretudo quando se têm em mira situações
que em tudo se assemelham às hipóteses de imprescritibilidade.
Como derradeiro argumento pela imprescritibilidade, observa-se que, segun-
do parcela significativa da doutrina, o caráter coletivo dos direitos serviria de óbice
à oposição de prazo prescricional ou decadencial:

22
Conforme já decidiu o STJ, “a categoria ético-política, e também jurídica, dos sujeitos vulneráveis
inclui um subgrupo de sujeitos hipervulneráveis, entre os quais se destacam, por razões óbvias, as
pessoas com deficiência física, sensorial ou mental” (REsp nº 931.513/RS, Rel. Min. Carlos Fernando
Mathias, Juiz Federal convocado do TRF 1ª Região, Rel. p/ Acórdão Ministro Herman Benjamin,
Primeira Seção, julg. 25.11.2009, DJe, 27 set. 2010).
23
Como já mencionado, trata-se de entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência (v.
RAMOS, 2011).
24
STJ, AgRg no REsp nº 1150479/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, julg. 04.10.2011,
DJe, 14 out. 2011.

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[...] pouco importa se o direito metaindividual em questão seja de caráter


privado ou público. Porque seu titular é uma coletividade que não tem
condições de expressar-se pessoalmente (tal qual um incapaz), não se lhe
pode ser imputado o ônus da prescrição.25

A tese da imprescritibilidade em matéria coletiva é realmente sedutora.


No entanto, por mais afeição que se tenha aos direitos coletivos, não se pode
descurar da importância da segurança jurídica nas relações sociais, sob pena de
eternização dos litígios, em especial prejuízo para o ocupante do polo passivo da
(eventual) ação coletiva.26
A imprescritibilidade é a exceção. Em nome da segurança jurídica e da paci-
ficação social, a regra deve ser a aplicação dos prazos de prescrição e decadência,
mesmo no caso dos direitos coletivos.
Não se nega que há certa deficiência postulatória da coletividade, o que
justificaria, em tese, maior extensão dos prazos para o exercício dos seus direi-
tos e pretensões. Mas não parece que tal extensão deva chegar ao ponto de se
prolongar infinitamente no tempo, deixando a parte adversa à mercê da insegu-
rança pelo resto de sua vida. Aliás, ainda que o direito pretenda resistir ao tempo,
certamente o mesmo não ocorrerá com as provas, que geralmente são efêmeras
e se perdem ou modificam com o passar dos anos, impedindo ou dificultando a
realização da justiça pelo processo judicial.
A concepção pluralista e fraternal da Constituição de 1988 requer uma pon-
deração de direitos e garantias, de nada adiantando lançar os direitos coletivos à
máxima proteção em detrimento de mínimas garantias individuais. Aliás, a socie-
dade brasileira como um todo reclama a pacificação dos conflitos para um rela-
cionamento político, econômico e social saudável.27

25
ARENHART, 2010. É também a opinião de Almeida (2007, p. 95; 2008, p. 460-462), Farias; Rosenvald
(2008, p. 573), entre outros.
26
A segurança jurídica possui uma dimensão objetiva e outra subjetiva: “Em sua relação com o direito
objetivo, o valor da segurança jurídica desponta na certeza e previsibilidade do ordenamento posi-
tivo (segurança jurídica em sentido estrito) [...]. No que se refere ao direito subjetivo, a partir da crença
do cidadão na validade e correção do Direito, a segurança jurídica é prestigiada pelo princípio da
proteção da confiança legítima, que alcança o patamar de verdadeiro direito fundamental e pressu-
posto da liberdade” (RIBEIRO, 2011, p. 341-342).
27
Mesmo em situações como a prática de crimes com graves violações de direitos humanos, nota-se
a existência de controvérsia sobre a imprescritibilidade ou não da pretensão (penal) punitiva. Nesse
sentido, a despeito de relevantes argumentos em favor da imprescritibilidade, corroborados por rei-
teradas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o STF entendeu em sentido contrário
no julgamento da ADPF nº 153. A controvérsia, porém, tende a ser novamente submetida à aprecia-
ção do STF, haja vista a recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes
Lund e a imposição, ao Brasil, do dever de investigar e punir crimes praticados na época da ditadura

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64 Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, Marcelo Malheiros Cerqueira

A fim de equilibrar o déficit postulatório dos diversos grupos sociais, a


legislação ordinária prevê diversas entidades, públicas e privadas, legitimadas
ao ajuizamento de ações coletivas. Em um contexto democrático, em que as
liberdades de imprensa, reunião, manifestação e expressão são amplamente
exercidas e os canais de participação popular são difundidos, viabilizando amplo
acesso à informação e à Justiça, não se justifica a imprescritibilidade de direitos
coletivos somente pela indefinição dos membros do grupo lesado.
Nessa linha de raciocínio, chega-se à ilação de que não há solução unívoca
para o problema dos prazos prescricionais e decadenciais em matéria coletiva.28
Quanto a determinadas lacunas, o emprego racional e justificado da analogia
apontará para a imprescritibilidade, em outras situações, a solução reclamará a
incidência de um dos prazos previstos na legislação ordinária.

6 Conclusão
Os prazos prescricionais e decadenciais estão relacionados com a exigência
de segurança jurídica nas relações sociais. Por decorrência lógica, não se concebe
que o regime jurídico de tais institutos seja poroso e assistemático, sob pena de
se inviabilizar sua própria finalidade.
Ao tratar das relações individuais de direito material, o Código Civil disciplina
pormenorizadamente os institutos da prescrição e da decadência (arts. 189 a 211),
acolhendo o critério científico de identificação proposto por Amorim Filho.
Porém, inexiste semelhante regulamentação no âmbito do direito material
coletivo. A escassa regulamentação do assunto, aliada à sua natural complexidade,
tem levado a soluções hermenêuticas erráticas e questionáveis, notadamente o
entendimento do STJ de aplicar, por analogia, o prazo prescricional de cinco anos
previsto na Lei da Ação Popular a toda e qualquer ação civil pública, sem atentar
para a distinção ontológica entre direitos essencialmente coletivos e direitos aci-
dentalmente coletivos.
Com relação aos direitos individuais homogêneos, que são em essência
individuais e apenas ficticiamente coletivos, não há que se pensar em lacuna

militar no contexto do referido caso — v. Corte IDH. Caso Gomes Lund y otros (Guerrilha do Araguaia)
Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Série C Nº. 219.
28
Na opinião de GIDI: “É a pretensão do direito material que pode ser qualificada como sendo impres-
critível. É irrelevante se esse direito material é classificado como de caráter individual, individual
homogêneo, coletivo ou difuso. O que importa é apenas o tipo do direito material. Há direitos indi-
viduais imprescritíveis e direitos difusos imprescritíveis; há direitos individuais prescritíveis e direitos
difusos prescritíveis. Um direito não passa a ser imprescritível por ser difuso, coletivo ou individual
homogêneo” (2008, p. 140).

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legislativa, porquanto incidem os prazos prescricionais e decadenciais previstos


no Código Civil para as relações de direito material individuais.
Diversamente, existem inúmeras lacunas quanto ao tema no que diz res-
peito aos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, o que implica notável
dificuldade em se construir, pela via jurisprudencial e doutrinária, um regime jurídico
estruturado e funcional, que permita confiança e estabilidade nas relações coletivas.
Por maior que seja o esforço hermenêutico, não se afigura possível alcançar
solução adequada para o problema dos prazos prescricionais e decadenciais em
substituição à disciplina legal que o tema recomenda. Não obstante, até o que o
assunto receba a merecida atenção pelo legislador, deve o intérprete empregar
motivada e racionalmente a analogia, buscando sempre identificar a similitude
do caso concreto com as esparsas previsões de imprescritibilidade, prescrição ou
decadência, de modo tal que, por esse louvável caminho, haja uniformização da
jurisprudência.

Referências
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

THIBAU, Tereza Cristina Sorice Baracho; CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Prescrição, deca-
dência e imprescritibilidade no direito material coletivo: análise crítica da recente jurispru-
dência do STJ. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 21, n. 81,
p. 47-66, jan./mar. 2013.

Cadastrado em: 04.05.2012


Aprovado em: 12.07.2012

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Embargos à execução – Algumas
considerações

Danilo Lee
Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Advogado.

Resumo: O presente artigo defende a caracterização dos embargos à exe-


cução como simples defesa, e não ação autônoma, posição esta majoritária,
mas que, principalmente após as alterações realizadas no Código de Processo
Civil pelas Leis nº 11.232/2005 e nº 11.382/2006, não se sustenta, por incoe-
rência lógica com o sistema e por não atender às finalidades instrumentais
do processo, apenas prejudicando o jurisdicionado.

Palavras-chave: Processo civil. Execução. Embargos à execução. Defesa.


Natureza jurídica.

Sumário: 1 Introdução – 2 Embargos à execução – 3 Conclusão – Referências

1 Introdução
Antes das reformas empreendidas no Código de Processo Civil, principal-
mente por meio das Leis nº 11.232/2005 e nº 11.382/2006, o modelo executivo,
tantos dos títulos judiciais quanto dos extrajudiciais, era basicamente o mesmo.1
Nos moldes originais do CPC, para que houvesse a execução forçada, exigia-se
que o exequente provocasse o Judiciário necessariamente por meio de petição inicial
(com observância dos requisitos do art. 282), de modo a dar causa à instaura-
ção de um processo estruturalmente novo.2 3 Em seguida, se não fosse o caso

1
“[...] o Código de Processo Civil de 1973, em sua estrutura originária, unificou as execuções.
Independentemente de estar fundada em título judicial ou em título extrajudicial, a execução subme-
tia-se ao mesmo procedimento [...]” (DIDIER JÚNIOR et al. Curso de direito processual civil, v. 5, p. 343).
2
“No Código vigente [antes das alterações mencionadas], a execução é processo autônomo em
relação ao processo de conhecimento, e aos títulos judiciais se equiparam os extrajudiciais, exis-
tindo apenas uma ação de execução” (GRECO FILHO. Direito processual civil brasileiro, v. 3, p. 12).
3
“Pela estrutura originária do Código de Processo Civil, brasileiro em vigor, a execução sempre cons-
tituiu um processo autônomo, regulado em Livro próprio (o Livro II do CPC/1973)” [CUNHA. As defe-
sas do executado. In: DIDIER JÚNIOR (Org.). Leituras complementares de processo civil, p. 263 et seq.].

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68 Danilo Lee

de inépcia, expedia-se o mandado executivo, com a dupla finalidade de citar o


executado, bem como intimá-lo para que cumprisse a obrigação ou nomeasse
bens à penhora.
“Dada a índole não contraditória do processo de execução”,4 5 o réu-executado
não era intimado para (diferentemente do processo de conhecimento) apresentar
defesa. Contudo, isto não significava que o executado fosse obrigado a, em uma
postura totalmente submissa, apenas observar a excussão do seu patrimônio. O
executado tinha como se defender, e a via adequada para tanto eram os denomina-
dos embargos do devedor,6 os quais, entretanto, e em regra, tinham como pressu-
posto a prévia segurança do juízo.7 8 9
Os embargos à execução podiam (e ainda podem) ser definidos como um pro-
cesso autônomo, incidente ao de execução, de caráter eventual (o seu ajuizamento

4
THEODORO JÚNIOR. Curso de direito processual civil, v. 2, p. 178.
5
“A ação de execução não tende a uma sentença, que dirima uma lide. / Esta, no processo de exe-
cução, se dirime, não com uma sentença, mas com atos de satisfação do julgado ou do direito
consubstanciado no título, mediante atuação do juiz” (SANCHES. Os embargos do devedor e o
Supremo Tribunal Federal. Revista de Processo, p. 183 et seq.).
6
A denominação embargos do devedor sempre sofreu críticas, porquanto atécnica. “O nosso
Código de Processo Civil, assim como o Código italiano, chama o executado de devedor e o
exeqüente de credor, confundindo, impropriamente, os conceitos de direito material com os de
direito processual. / Observa-se, que nem sempre é o devedor o executado [...]. / Mesmo nos
embargos, na maioria dos casos, quando estes são julgados procedentes, está se reconhecendo
que o executado não é devedor. / Preferimos pois a expressão embargos à execução” (PINTO.
Embargos do devedor. Revista de Processo, p. 165 et seq.).
7
“A exceção do sistema anterior ficava por conta das obrigações de fazer ou não fazer. Para elas,
os embargos dispensavam qualquer forma de garantia do juízo, contando-se o prazo para sua
apresentação da juntada, aos autos, do mandado de citação cumprido (art. 737 c/c o art. 738, IV,
na redação original do CPC)” (BUENO. Curso sistematizado de direito processual civil, v. 3, p. 560).
8
Principalmente por conta do requisito da prévia segurança do juízo, a praxe forense consagrou o
que se costuma chamar de “exceção de pré-executividade”, de modo a possibilitar que o executado
apresente, “no curso da execução, independentemente de momento apropriado ou de cautela
especial, certas defesas evidentes. [...]. Em geral, os tribunais aceitam que sejam alegadas, desta
forma, quaisquer objeções processuais, bem como as defesas materiais que o juiz possa conhecer
de ofício (como prescrição e decadência) e ainda aquelas que puderem ser provadas de plano”
(MARINONI; ARENHART. Curso de processo civil, v. 3, p. 309).
9
“O motivo que, historicamente, levou a admitir a objeção, sem necessidade de passar pela via
estreita e complicada dos embargos, foi que a matéria nela suscitada era sempre prejudicial ao
cabimento da execução e, pois, situava-se no terreno das condições de sua admissibilidade. Não
era razoável que, para demonstrar o descabimento evidente do processo executivo, tivesse a parte
que, primeiro, suportar o início da execução pela penhora, para só depois poder argüir o seu des-
cabimento. [...] / Há de se ponderar, contudo, que a antiga admissão do contraditório interno na
execução teve sua justificativa não apenas na superação do requisito da penhora. Foi, também,
decisiva a superação dos custos da ação incidental de embargos e dos rigores do escasso tempo
para sua propositura” [THEODORO JÚNIOR. Alguns problemas pendentes de solução após a reforma
da execução dos títulos extrajudiciais (Lei 11.382/2006). Revista de Processo, p. 11 et seq.].

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Embargos à execução – Algumas considerações 69

não é obrigatório, depende da vontade do executado), com natureza de processo de


conhecimento.10 11
Por que um processo autônomo? Justamente por demandar a prática de
atos de cognição, os quais são, obviamente, distintos dos que ordinariamente são
praticados dentro de um processo de execução. Neste ponto, é entendimento
corrente de que haveria invencível incompatibilidade entre os referidos atos de
cognição e os de execução,12 13 e a conclusão é no sentido de que o processo de exe-
cução não comporta uma defesa interna.14
Este raciocínio, embora bem estruturado, com todo o respeito, é falso,15 o
que, inclusive, é demonstrado, hoje (após as reformas relativas ao cumprimento
de sentença), pelo próprio CPC.

10
“Por meio de tal ação, forma-se um processo cognitivo que se encerrará com uma sentença de
mérito desde que presentes os pressupostos de admissibilidade ao seu julgamento” (LUCON. O
novo perfil dos embargos à execução. In: CARNEIRO; CALMON. Bases científicas para um renovado
direito processual, p. 824 et seq.).
11
“É corrente, na doutrina, a ideia de que os embargos à execução constituem ação de conhecimento,
incidente e autônoma, em relação à ação de execução” (MEDINA. Execução, p. 121).
12
“Há inequívoca incompatibilidade funcional na convivência de atos executivos com atos de índole
diversa, simultaneamente, na mesma estrutura (processo). Esta é a idéia fundamental posta à base
dos embargos do executado” (ASSIS. Manual da execução, p. 1079).
13
“No direito brasileiro, construiu-se a idéia de que o processo de execução seria, precipuamente,
modalidade de atividade jurisdicional prática e material, desenvolvida sob a premissa de não haver,
ali, matéria a ser discutida e decidida. Daí, não se prever, em sua estrutura procedimental interna,
momento formal para a apresentação de defesa pelo devedor. / Além dessa tentativa de impor-se
certa pureza àquela atividade, invocava-se, ainda, o fenômeno da eficácia incondicional do título
executivo, a qual permitiria percorrer a execução sem depender da demonstração da existência do
direito. A lei se abstrairia de tal causa para dar força e valor somente à sanção incorporada no título,
dando caminho livre à ação (executiva) que dele se originaria” (VIANA. A defesa do executado na reforma
processual brasileira: a impugnação e os embargos à execução. Revista de Processo, p. 148 et seq.).
14
“A defesa do executado não pode ser feita no processo de execução, mas sim em processo de
conhe­cimento, autônomo ao processo de execução, mas incidente sobre o seu curso. Embora
hoje, se autorize — de forma excepcional — a dedução de algumas defesas dentro do próprio
processo de execução, o princípio geral de que o processo executivo se presta para realização do
direito e não para sua discussão e reconhecimento permanece íntegro. A verdadeira via de defesa
do executado, nas execuções de títulos extrajudiciais, é a ação de conhecimento autônoma e
incidente a o processo de execução, a que a lei denomina de embargos à execução” (MARINONI;
ARENHART. Curso de processo civil, v. 3, p. 446).
15
“Até porque a doutrina que, em sua maioria, admite o uso frequente das ‘exceções e objeções de
pré-executividade’, tem enorme dificuldade de explicar, a partir da premissa de que os embargos
são ‘ação do executado em face do exequente’, o que se dá naqueles casos em que o magistrado
atua de ofício para extinguir a execução por verificar questões de ordem processual ou, mais
amplamente, extingue a execução porque reconhece o pagamento da dívida, quando apresen-
tado o recibo de pagamento pelo executado independentemente dos embargos” (BUENO. Curso
sistematizado de direito processual civil, p. 531).

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70 Danilo Lee

A Lei nº 11.232/2005 rompeu com a unidade do processo de execução16 e


estabeleceu, para os títulos executivos judiciais que reconhecem uma obrigação
de pagar (exceções feitas às execuções de prestação alimentícia e às contra a
Fazenda Pública), “um processo ‘sincrético’, abrangente das atividades de conheci-
mento, e, ainda, dos procedimentos executórios, sob uma única e mesma relação
jurídica processual”.17
Também a forma de oposição do executado contra o cumprimento da sen-
tença foi modificada: em vez dos embargos à execução, deve-se manejar a impug-
nação, regulada pelos arts. 475-L e 475-M.
A impugnação é modalidade de defesa do executado, com natureza de mero
incidente dentro do processo18 19 20 21 e, desvestida de maiores formalidades, pode
ser apresentada por simples petição nos autos de cumprimento da sentença.

16
“Atualmente, no direito processual brasileiro, (a) cumprimento de sentença e (b) processo de exe-
cução são realidades distintas e inconfundíveis. Embora o juiz utilize atos e procedimentos do
processo de execução para fazer cumprir a sentença condenatória, isto se passa sem a instaura-
ção de uma nova relação processual, ou seja, sem a relação própria do processo de execução. Em
lugar de receber uma citação para responder por um novo processo, o devedor recebe um man-
dado para realizar a prestação constante da condenação, sujeitando-se imediatamente à invasão
em sua esfera patrimonial, caso não efetive o cumprimento do mandamento sentencial. / Em sendo
o caso de título extrajudicial, é claro que os atos executivos sobre o patrimônio do devedor somente
serão possíveis mediante a instauração de uma relação processual típica, correspondente a uma
ação executiva em sentido estrito. É que não existirá uma prévia ação de acertamento, em cuja
relação processual se poderia prosseguir rumo aos atos de execução” (THEODORO JÚNIOR. As vias
de execução no processo civil brasileiro: o cumprimento das sentenças e a execução dos títulos
extrajudiciais: visão do Código atual e do Projeto 8.046/2010 da Câmara dos Deputados. Revista
de Processo, p. 13 et seq.).
17
CARNEIRO. Cumprimento da sentença civil, p. 43.
18
“[...] não haverá ‘embargos do executado’ na etapa de cumprimento da sentença, devendo qual-
quer objeção do réu ser veiculada mediante mero incidente de ‘impugnação’ [...]” (Exposição de
motivos da Lei nº 11.232/2005).
19
“[...] parece-nos inegável hoje, com o término da formalidade antes imposta para o exercício da
defesa na execução, que a impugnação tem natureza jurídica de defesa. Uma defesa exercida
por intermédio de incidente processual” (JORGE. Impugnação do executado: um enfoque sobre
natureza jurídica, procedimento e honorários advocatícios. Revista de Processo, p. 277 et seq.).
20
“A impugnação, ao contrário do que ocorria com os embargos do devedor, não tem natureza de ação
autônoma, constituindo mero incidente do processo. Pode ser oferecida mediante simples petição,
dispensadas as formalidades das petições iniciais [...]” (ZAVASCKI. Defesas do executado. In: RENAULT;
BOTTINI (Coord.). A nova execução dos títulos judiciais: comentários à Lei n. 11.232/05, p. 140).
21
“[...] a impugnação é agora mero incidente processual [...]. Os antigos embargos à execução fun-
dada em título executivo judicial foram transformados pela Lei 11.232/2005 em mecanismo agora
denominado impugnação, que pode ser manejado pelo devedor no prazo de 15 (quinze) dias a
contar da intimação do auto de penhora e de avaliação. O novo mecanismo — agora um incidente
na fase de cumprimento da sentença — não terá o mesmo efeito suspensivo que era ínsito aos
embargos do devedor” (CARMONA. Cumprimento da sentença conforme a Lei 11.232 de 2005.
Revista de Processo, p. 257 et seq.).

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Embargos à execução – Algumas considerações 71

Isto por si só demonstra o erro contido na mencionada ideia de que a execução,


por conta de sua natureza, não admite discussão quanto à existência da obrigação e
que, para tanto, seria obrigatória a instauração de uma nova relação jurídica, de um
novo processo de conhecimento.
Fosse tal raciocínio verdadeiro, e houvesse, de fato, incompatibilidade insu­
perável para a prática de atos de natureza cognitiva e executiva dentro de um
mesmo processo, o legislador jamais poderia ter realizado as alterações que fez
por meio da Lei nº 11.232/2005. Contudo o fez, e o mundo não acabou por conta
disto.22 23 Muito pelo contrário, as inovações, em grande parte, foram positivas.24
No cumprimento de sentença, a lei, ao “transformar” os embargos à execu-
ção em impugnação, acertadamente adapta o instrumento técnico à verdadeira
natureza do ato praticado pelo executado: defesa.25
A impugnação não é nem processo incidente nem ação incidente; é apenas
incidente e tem natureza de defesa.26 27

22
“Superou-se a incompatibilidade de funções e inseriu-se, consoante o modelo espanhol, um ‘incidente
declarativo dentro del proceso mismo de ejecución’. É flagrante, naturalmente, a posição de defesa assu-
mida pelo executado” (ASSIS. Cumprimento da sentença, p. 314).
23
“Para cá, importa destacar que as Leis nºs 11.232/2005 e 11.382/2006, além de alterarem — de forma
substancial — o procedimento do ‘cumprimento de sentença’ e da ‘execução por quantia certa contra
devedor solvente’, criaram novas e radicalmente diversas regras relativas aos embargos à execução. A
feição que o direito processual civil brasileiro conhecia da iniciativa de o executado voltar-se contra a
execução amplamente considerada e ao próprio título que a embasa foi reformulada em sua totali-
dade” (BUENO. Curso sistematizado de direito processual civil, v. 3, p. 561).
24
“Sabe-se, por exemplo, que, em suas linhas gerais, as últimas reformas inauguraram uma nova moda-
lidade de procedimento executivo, sob a denominação Do cumprimento da sentença, eliminando o
tradicional binômio cognição-execução, fonte, segundo alguns, de inegável retardamento na entrega
da prestação jurisdicional, ou seja, as reformas objetivaram elaborar um ‘processo sem intervalo’, no
qual cognição e execução estariam amalgamadas no mesmo procedimento” (MORAES. Princípios da
execução de sentença e reformas do Código de Processo Civil. Revista de Processo, p. 37 et seq.).
25
“O que parece importante fixar, neste momento, é que apenas sob o aspecto formal se poderia
atribuir aos embargos a natureza de ação, já que o que se pretendia com eles era a defesa no
processo de execução” (JORGE. Impugnação do executado: um enfoque sobre natureza jurídica,
procedimento e honorários advocatícios. Revista de Processo, p. 277 et seq.).
26
“Quando a ação passa à fase de execução, o executado, ao apresentar impugnação, obviamente
não exerce pretensão à tutela jurisdicional do direito, limitando-se a negar a tutela jurisdicional
do direito almejada pelo autor. Portanto, a impugnação tem nítido caráter de defesa, de reação à
tutela jurisdicional do direito, pretendida através da ação” (MARINONI; ARENHART. Curso de pro-
cesso civil, v. 3, p. 289).
27
“Quem impugna ou embarga a execução está a resistir a ela, ou seja, a defender-se, no exercício das
faculdades inerentes ao contraditório e à ampla defesa, constitucionalmente assegurados. Tomar a
iniciativa de instaurar um processo de oposição não significa vir a juízo espontaneamente em busca
de um bem da vida negado por outrem, mas resistir à pretensão de alguém que pretende haver
bem da vida à custa do patrimônio do embargante. Substancialmente, isso é defesa” (DINAMARCO.
Instituições de direito processual civil, v. 4, p. 750).

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Mas independentemente da natureza jurídica da impugnação, um ponto


é inegável: a possibilidade de opor-se à execução nos próprios autos torna mais
fácil a reação do executado, porquanto menos burocrático e menos custoso do
que o ajuizamento da ação autônoma dos embargos à execução.
A imposição no sentido de que a defesa seja exercida por meio dos embar-
gos à execução reflete simplesmente uma escolha legislativa, dentro de um con-
texto em que se buscou privilegiar a eficácia abstrata dos títulos executivos,28 em
detrimento do direito de defesa.29
Então, se é verdade que a possibilidade de o executado opor-se à execu-
ção nos próprios autos melhor se afina com o direito constitucional de defesa,
qual a justificativa de a mesma sistemática não ser aplicável à execução de título
extrajudicial?
Há alguma razão de ordem técnica ou prática que impeça sejam abolidos os
embargos à execução? Que vantagens há na sua manutenção? Qual a coerência
da atual situação?
A propósito do tema, é de se reparar que mesmo no projeto do novo CPC
(PLS nº 166/2010) os embargos à execução são mantidos como via de oposição
do executado contra a satisfação de título extrajudicial.
Por que não suprimi-los? Por que não se estabelecer uma nova unidade
nas execuções dos títulos judiciais e dos extrajudiciais e resgatar a coerência do
sistema?

28
“Com efeito, por razões de opção legislativa, visando privilegiar a eficácia abstrata do título exe-
cutivo, adotou-se como técnica processual a regra de que a cadeia de atos de execução seria
uniforme, constante e retilínea, evitando que durante o seu percurso o demandado pudesse se
defender (contraditório) com o mesmo dinamismo e dialeticidade que marcam e caracterizam a
tutela cognitiva. [...] / Assim, esta mesma técnica legislativa foi que estabeleceu que a defesa do
executado — defesa mesmo, ou seja, as oposições processuais e de mérito que visam impedir ou
obstar, ou, quando menos, retardar a entrega da tutela jurisdicional ao exeqüente — deveriam
ser feitas em procedimento próprio e destacado do procedimento executivo, por se entender
que, caso feitas no bojo e curso da execução, comprometeriam a efetividade da seqüência exe-
cutiva e, sobretudo, colocariam em risco a própria eficácia abstrata do título executivo” (JORGE.
Impugnação do executado: um enfoque sobre natureza jurídica, procedimento e honorários advo-
catícios. Revista de Processo, p. 277 et seq.).
29
“Vale insistir: entender que na execução (‘etapa’ ou ‘processo’, isto não faz diferença para fins da
exposição) não há defesa, é agredir de morte o ‘modelo constitucional do processo civil’. O que
é legítimo, à luz daquele modelo, é diferir o momento do exercício da (ampla) defesa, mas não
eliminá-la. É autorizar a prática de atos em detrimento do patrimônio de alguém, mas não impe-
dir que se reaja à altura da prática daqueles mesmos atos. Se o título executivo é o documento que
autoriza a legítima atuação do Estado-juiz neste sentido, isto é, antes de qualquer manifestação
do executado em seu favor ou em seu desfavor, é impensável que aquele a sofrer os atos execu-
tivos não possa reagir como legítima resposta àquele agir” (BUENO. Curso sistematizado de direito
processual civil, p. 531).

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Embargos à execução – Algumas considerações 73

2  Embargos à execução
2.1 Custas
Independentemente do entendimento que se adote acerca da natureza
jurí­dica dos embargos à execução (discussão data venia de pouca utilidade prá-
tica), não há como se negar que, pelo CPC, eles ainda são o instrumento posto à
disposição do executado para se opor à satisfação do título extrajudicial.30
E apesar de não haver dispositivos legais claros no sentido de que os embar-
gos à execução devam ser apresentados por petição inicial, este é o entendimento
que a doutrina31 32 e a prática consagraram.
Mas, em termos pragmáticos,33 o que esse entendimento traz de vantagens para
a maior efetividade da justiça? Em que medida isto simplifica a vida do ju­ris­dicionado?

30
“[...] importa muito pouco — é esta a grande verdade — saber se os ‘embargos’ são ‘ação’ ou ‘defesa’.
O que é realmente importante é saber, seja qual for a ‘sua natureza jurídica’, mesmo depois da Lei
nº 11.382/2006, que os ‘embargos à execução’ ainda são a forma (o uso da palavra é proposital
para evitar a discussão dos parágrafos anteriores [a respeito exatamente da natureza jurídica dos
embargos à execução]) pela qual o executado se volta à execução que lhe é promovida pelo
exequente. Seja para questionar amplamente o que dá fundamento àquela execução desde o
plano material, o título executivo extrajudicial, seja para questionar a formação e a regularidade
do próprio ‘processo de execução’, seja, mais pormenorizadamente, para questionar a prática dos
atos executivos, são os embargos o mecanismo que a lei reserva para o executado voltar-se contra
a pretensão que lhe é dirigida pelo exequente. É forma pela qual o executado pede para si a tutela
jurisdicional que, de acordo com o título executivo, será prestada ao exequente” (BUENO. Curso
sistematizado de direito processual civil, v. 3, p. 565).
31
“Essa sempre foi a opção conceitual da doutrina, apesar de na disciplina da execução ou dos
próprios embargos jamais haver emitido o Código de Processo Civil qualquer sinal perceptível e
direito de sua intenção de configurar os embargos como processo autônomo e não mero incidente”
(DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 4, p. 746).
32
“Ademais, são diversos os dispositivos da lei em que a disciplina dos embargos como ‘ação’ não
se mostra tão evidente, evidência esta que se prende, não há razão para duvidar, por ser aquele
e não outro o entendimento amplamente vencedor na doutrina” (BUENO. Curso sistematizado de
direito processual civil, v. 3, p. 567).
33
“A conscientização de que o processo vale não tanto pelo que ele é, mas fundamentalmente pelos
resultados que produz, tem levado estudiosos a reexaminar os institutos processuais, a fim de
sintonizá-los com a nova perspectiva metodológica da ciência. / [...] O tratamento dos institutos
fundamentais de nossa ciência deve perder a conotação excessivamente processualista. A abor-
dagem precisa levar em consideração critérios de racionalidade material, não apenas formal. / A
ciência processual tem-se preocupado com a criação de categorias e institutos, cuja elaboração
precisa a transformou no ramo do Direito que mais se desenvolveu nos últimos anos. Por outro
lado, passaram os processualistas a se dedicar tanto a conceitos, muitos de extrema sutileza, que
as discussões sobre temas de direito processual acabaram por representar verdadeiro exercício
de filosofia pura do Direito. Quando voltamos os olhos para a realidade, porém, verificamos que o
processo se encontra muito distante dela. A importante e nobre missão do processualista moderno
é fazer como que o processo seja meio efetivo de resolução de litígios e não fonte de problemas”
(BEDAQUE. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo, p. 21-22).

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74 Danilo Lee

Aliás, é curioso notar que a mesma doutrina que, quanto à forma, sustenta a
natureza de ação para os embargos à execução não nega que, quanto ao conteúdo,
eles são defesa.34
E se os embargos à execução são defesa, como tal deveriam ser tratados.35
Infelizmente, no que diz respeito ao tema ora em debate, o que se observa é que,
em geral, extraem-se conclusões a fórceps a partir de posições doutrinárias pré-­
concebidas, sem buscar, primeiro, apoio nos dispositivos legais que efetivamente
regem os embargos à execução36 37 e, segundo, fazendo pouco caso do caráter
instrumental do processo em nome de uma suposta coerência interna do sistema,
de ordem puramente teórica.38
De toda maneira, a apresentação por petição inicial, de pronto, traz “uma
questão muito polêmica, que pode trazer danos irreparáveis para as partes, em
flagrante violação aos princípios do amplo acesso à justiça e da ampla defesa: o
regime de custas nos embargos do devedor”.39 40

34
“Do aspecto prático, os embargos do executado aparecem com meio de defesa, pois que visam a
livrá-lo do processo ou desfazer os efeitos do título executório. Por essa razão uma parte da doutri-
na entende sobrelevar nos embargos do executado o ‘caráter de defesa comum e normal’, da
mesma natureza da contestação. [...] / Pensa diversamente a doutrina dominante (Liebman, Pontes
de Miranda, Amílcar de Castro, Frederico Marques etc.), que acompanhamos. O executado não ofe-
rece contrariedade à causa do título executório, isto é, não contesta o direito que o gerou; tampouco
contesta o direito do exequente à sanção, que esse decorre e se contém no próprio título execu-
tório, condição necessária e suficiente à execução. / Não se justifica, portanto, que se defenda no
próprio processo de execução, e isso retira aos embargos o caráter de defesa, no sentido técnico, e,
assim, o caráter de contestação” (SANTOS. Primeiras linhas de direito processual civil, v. 3, p. 361).
35
“A técnica processual muitas vezes confere tratamento especial a determinados institutos, sujei-
tando-os a regime jurídico inerente a outro ontologicamente diverso. / Os embargos à execução,
por exemplo, têm função de defesa” (BEDAQUE. Efetividade do processo e técnica processual, p. 112).
36
“Só a análise das normas que regem concretamente os embargos do devedor pode definir sua ver-
dadeira natureza, não sendo admissível adaptar regras existentes a posições teóricas, em operação
que só termina por deformar aquelas” (PABST. Natureza jurídica dos embargos do devedor, p. 3).
37
“O princípio de que a execução deve ser feita pelo meio menos gravoso para o executado se
encontra incrustado em diversos artigos do CPC. / A interpretação de que os embargos são mera
defesa é a que mais se afeiçoa ao espírito lógico e prático do magistrado, a par de ser a que emana
diretamente da norma legal e não de conceito teórico” (PABST. Natureza jurídica dos embargos do
devedor, p. 189).
38
“[...] a técnica processual está a serviço de determinados fins, sempre externos a ela. Os objetivos
visados pelo mecanismo estatal de solução de controvérsias são determinantes. Em função deles
devem ser concebidos os meios, de modo a possibilitar sejam os resultados alcançados de forma
segura, com observância do devido processo legal, no menor tempo possível e com o mínimo dis-
pêndio de energia. A técnica processual deve estar sempre a serviço dos resultados” (BEDAQUE.
Efetividade do processo e técnica processual, p. 116).
39
LUCON. Custas iniciais e preparo nos embargos à execução. Revista dos Tribunais, p. 114 et seq.
40
“Um dos efeitos mais perniciosos da teoria dos embargos-ação é a exigência de custas iniciais do
embargante. Dá-se ao exequente o direito de exigir a prática de atos executivos, dentre os quais a
penhora, mediante a mera apresentação em juízo de um título extrajudicial ao qual a lei confere

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Embargos à execução – Algumas considerações 75

Neste pertinente, a matéria não recebe tratamento uniforme.41 “Algumas


leis de organização judiciária excluem de modo explícito a exigência de adian-
tamento de despesas processuais ao executado, ao opor embargos à execução
(arts. 736 et seq.). Outras exigem-no explicitamente e outras silenciam. Nos dois
últimos casos os tribunais vacilam entre a legitimidade e a ilegitimidade dessa
exigência”.42
Ora, não obstante a forma de ação, é simplesmente inegável que, em subs-
tância, os embargos à execução são defesa, de modo que não se concebe admi-
tir-se como legítima qualquer exigência de recolhimento de custas para o seu
ajuizamento;43 o quadro é sem sombra de dúvida inconstitucional, porquanto,
além de claramente ferir a ampla defesa, não se subsome à definição constitu-
cional da modalidade tributária taxa (art. 145, inc. II, da Constituição da República
Federativa do Brasil).44
É bem verdade que o autor se sujeita ao recolhimento de custas para o ajui-
zamento de sua demanda. Sua situação, entretanto, é bem distinta da do réu, pois
este último não tem escolha, na medida em que obrigatoriamente será trazido
para integrar a relação jurídica processual, ainda que contra a sua vontade. O réu,
portanto, não se utiliza do serviço público da Justiça, o que deslegitima a tribu-
tação por meio de taxa; quem faz uso do serviço público, no caso, é tão somente
o autor.
Defesa, ainda que não efetivamente exercida, deve ser garantida; isto não
ocorre se, para se defender, o réu tiver de pagar. A lógica é a mesma da que consta

executividade, e nega-se ao executado o direito de defesa — defesa em sentido processual. Ao


invés de poder defender-se, o executado se vê na contingência de propor uma ação judicial, com
todos os seus ônus” (PABST. Natureza jurídica dos embargos do devedor, p. 187).
41
Aliás, por conta dos problemas que a completa falta de padronização de custas judiciais gera, o
Conselho Nacional de Justiça resolveu um “grupo de trabalho para elaborar estudos e apresentar
propostas de medidas relativas ao regime de cobrança de custas no Poder Judiciário” (Portaria da
Presidência nº 232, de 20 de dezembro de 2010).
42
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 4, p. 645.
43
“Mas não é legítima a exigência de preparar os embargos à execução, ainda quando exija o regi-
mento de custas, porque ela atenta contra a garantia constitucional da ampla defesa. É absurdo
pagar para defender-se. O intérprete não deve iludir-se com a configuração puramente técnica
desses embargos como exercício de uma ação (ação do executado contra o exeqüente, como se
costuma dizer), porque os embargos do executado são a peça de resistência com que ele se opõe
à pretensão do demandante e em substância isso é defesa, não ação” (DINAMARCO. Instituições de
direito processual civil, v. 4, p. 645-646).
44
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes
tributos: [...] II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou
potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua
disposição [...]”.

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no enunciado da Súmula Vinculante nº 21 do Supremo Tribunal Federal, segundo


a qual “é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de
dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”.
Nem se diga, com o propósito de desdizer as considerações anteriores, que
acodem em favor do réu as possibilidades de pleitear os benefícios da assistência
judiciária (Lei nº 1.060/1950) ou de buscar o patrocínio pela Defensoria Pública,
pois em ambas as hipóteses não há gratuidade, mas, sim, no máximo, diferimento.
Para ser mais exato, o problema não está propriamente em ter de pagar.
Afinal, o réu derrotado de qualquer demanda, que, por sua conduta, deu causa à
propositura pelo autor, será condenado ao pagamento das verbas sucumbenciais
(a título de indenização para o autor, e não como tributo para o Estado). O pro-
blema está sim no fato de ter de adiantar as despesas45 apenas para apresentar
argumentos de defesa.
E especificamente no caso dos embargos à execução, a situação do réu fica
ainda mais agravada, pois se aqueles forem julgados improcedentes, haverá dupla
incidência de verbas sucumbenciais, a saber, as referentes ao processo de execu-
ção em si e as dos embargos.
No Estado de São Paulo, a Lei Estadual nº 11.608/2003 (“dispõe sobre a taxa
judiciária incidente sobre os serviços públicos de natureza forense”), contrariamente à
isenção que estava prevista no diploma anterior (Lei Estadual nº 4.952/1985), impõe
o recolhimento da taxa judiciária para o ajuizamento dos embargos à execução.
A respeito de tal exigência, o art. 5º da referida lei tenta, de certa forma, ame-
nizá-la ao permitir que o recolhimento da taxa judiciária seja “diferido para depois
da satisfação da execução quando comprovada, por meio idôneo, a momentânea
impossibilidade financeira do seu recolhimento, ainda que parcial”.
Esta “facilidade”, embora “menos mal”, não é suficiente. Não se trata de sim-
ples hipótese em que pode ou não haver isenção prevista pelo legislador ordiná-
rio. Trata-se de situação de não incidência tributária,46 não abrangida por normas
constitucionais atributivas de competência tributária.

45
“O Código de Processo Civil emprega mais de uma vez o verbo pagar e o vocábulo pagamento, em
pontos onde seguramente está falando em adiantar e em adiantamento (arts. 19, §1º e 33). Além
disso, a seção em que a matéria é tratada (arts. 19-34) é um cipoal confuso de disposições ema-
ranhadas sobre adiantamentos e pagamentos — alternando-se regras sobre uma e outra dessas
exigências, sem qualquer critério sistemático” (DINAMARCO. Instituições de direito processual civil,
v. 4, p. 637).
46
“Em primeiro lugar: não se cuida, aqui, de isenção, mas, sim, de não-incidência, que é instituto
jurídico inteiramente diverso daquele primeiro no amplo espectro da teoria geral do direito tri-
butário. E a distinção é relevante, porque para larga parte da doutrina especializada a isenção faz
supor o surgimento da hipótese de incidência e da correlata obrigação tributária, ficando dis-
pensado apenas o pagamento do tributo a princípio devido. / Em caso de não-incidência, ao

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Embargos à execução – Algumas considerações 77

Daí que a forma dada aos embargos à execução não pode se sobrepor ao
que tal instrumento representa de verdade: o exercício puro e simples do direito
de defesa, em que o réu nada pede em seu favor, senão a rejeição da demanda
do autor.47 48
Curiosamente, a impugnação oferecida no cumprimento de sentença não
se sujeita ao recolhimento de taxa judiciária.49 Este quadro é um tanto estranho: é
mais barato e menos burocrático resistir à execução de um título judicial do que
à de um título extrajudicial; por esta ótica, equivale a dizer que um cheque vale
menos do que uma sentença judicial.

2.2 Prazo
Dentro da proposta de que, a partir da perspectiva do benefício que possa
gerar para os jurisdicionados, não existem motivos legítimos para que seja atri-
buída aos embargos à execução natureza distinta de uma contestação ou de uma

contrário, o fato gerador (ou hipótese de incidência) sequer chega a surgir, não chegando a existir,
conseqüentemente, obrigação tributária alguma, nem sendo exigível, em decorrência, qualquer
pagamento. A diferença, como se vê, é marcante” (SANSEVERINO. O problema das custas nos
embargos à execução. Revista de Processo, p. 250 et seq.).
47
“Ademais disto, ocorre entre qualquer ação e os embargos do devedor uma distinção indisputá-
vel, e que deve ser objeto de evidência. A ação, na realidade, objetiva provocar efeitos novos na
ordem jurídica, vale dizer, seja uma ação declaratória, constitutiva ou condenatória, o fim visado
pelo autor é obter efeitos novos, a que se julga com direito, o que ocorrerá, no caso de acolhi-
mento (= procedência), através de sentença. Já diversamente ocorre com os embargos do
devedor. Nestes, na realidade, colima-se obstar os efeitos pretendidos pela ação de execução, seja
por título extrajudicial seja, ainda, na hipótese de execução fundada em sentença. Quem pre-
tende inovar na ordem jurídica, mercê da solicitação de efeitos a serem produzidos no processo,
quando propõe uma execução, é, exclusiva e precisamente, o credor ou o exequente; o devedor,
na realidade, se contrapõe àqueles efeitos, colimando obstá-los. Se forem procedentes os seus
embargos, não se produzirão os efeitos. Executivos desejados; inversamente, se improcedentes,
produzir-se-ão tais efeitos. [...] Assim, conquanto dogmaticamente de contestação não se trate,
do ponto de vista do respectivo conteúdo a matéria é aquela que poderia ser alegada em contes-
tação” (JTACivSP 64/15, 13 de março de 1980, trecho do voto vencedor do então magistrado Arruda
Alvim, citação feita por Haroldo Pabst em a Natureza jurídica dos embargos do devedor, p. 63).
48
“Acolher a tese de que os embargos do devedor, em nosso Direito, são simples defesa não repre-
senta retrocesso, mas estar em harmonia com a realidade jurídica vigente” (PABST. Natureza jurídica
dos embargos do devedor, p. 149).
49
“[...] a demanda do réu que contém apenas pedido de rejeição da demanda do autor não se sub-
sume à hipótese de incidência da taxa judiciária de ‘reconvenção’ e ‘declaratória incidental’, que
devem ser interpretadas restritivamente, por força do art. 108, §1º, do CTN). Não por outra razão,
o TJSP considera que não cabe o recolhimento da taxa judiciária pela formulação de pedido con-
traposto no procedimento sumário (apesar de ter natureza reconvencional) e pela apresentação
de impugnação ao cumprimento de sentença (que é figura de todo igual aos embargos à execu-
ção, esses, sim, sujeitos à taxa judiciária em nosso Estado” (SICA. O direito de defesa no processo civil
brasileiro: um estudo sobre a posição do réu, p. 267-268).

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impugnação em cumprimento de sentença, é o caso de se repensar, também, o


entendimento na doutrina no sentido de que a falta de oposição dos embargos
à execução não prejudica a possibilidade de propositura de ação autônoma de
conhecimento.
Para a referida posição doutrinária, pendente o feito executivo, mas não
opostos os embargos à execução, o executado teria ainda a opção de ajuizar
ação autônoma de anulação de débito; se a execução já estiver acabada, sobraria
ao executado a ação de repetição de indébito.50
Basicamente, dois são os fundamentos: ausência de preclusão e inexistência
de coisa julgada.
Em relação ao primeiro fundamento, diz-se que a preclusão decorrente
da não oposição dos embargos à execução não pode gerar efeitos para fora do
processo em que se verifica. Tal fenômeno, que é interno ao processo, impediria
apenas o ajuizamento dos embargos à execução após o prazo legal.
Já no que diz respeito ao segundo fundamento, a sentença proferida na ação
de execução não faria coisa julgada, pois inexistente carga declaratória, na medida
em que não há pronunciamento sobre a existência ou não de um direito.
Com a devida vênia, a sentença da execução faz sim coisa julgada. É verdade
que as presunções de liquidez e de certeza do título executivo, bem como a exi-
gibilidade que a lei lhe atribui, dispensam, em um primeiro momento, que o juiz
tenha de investigar a procedência ou não do direito do exequente.
Contudo, conforme sustentado ao longo deste sucinto trabalho, a cognição
não é incompatível com o processo executivo e ela terá o seu lugar neste se quem
tem interesse (o executado) suscitá-la, por meio da apresentação de defesa.
A inércia do executado em apresentar defesa corresponde à revelia, e o ato
final do processo de execução marca que a obrigação foi paga, bem paga. E não há
que falar em repetição de indébito, sem antes buscar-se a rescisão de tal julgado.
Se não para quê prazo?51

50
“Quanto à primeira hipótese — não-oposição dos embargos —, a nosso ver, nada existe a obstar
a propositura da ação autônoma de anulação de débito (ou ação declaratória de inexistência
de débito ou ação anulatória do título), no caso de pendência do feito executivo, ou a ação de
repetição de indébito, se a execução já estiver finda. / Duas razões básicas impõem tal resposta:
inexistência de preclusão e inexistência de coisa julgada” (SHIMURA. Título executivo, p. 559).
51
“O art. 739, I, determina que o órgão jurisdicional não admita os embargos intempestivos. Embora
se trate formalmente de uma demanda, neste ponto o CPC parece ter dado aso embargos trata-
mento semelhante ao da contestação: após o prazo de embargos, não se deve admitir novas
alegações de defesa pelo executado. A solução é boa, notadamente por seu caráter ético, pois
impede que o executado fragmente a sua defesa, impedido o prosseguimento regular e em dura-
ção razoável do procedimento executivo. [...] Note que se for levada às últimas consequências a

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Embargos à execução – Algumas considerações 79

Defesa é direito, com certeza, mas também é ônus. O seu não exercício pode
ter consequências graves.
Do contrário, a posição do réu que tem contra ele um título executivo é muito
mais confortável do que se este não existisse. Explica-se: em um processo de conhe-
cimento comum, em que o autor busca obter um título em seu favor (portanto em
uma situação em que o seu alegado direito ainda não foi confirmado), o réu tem
apenas o prazo da contestação para se manifestar, sob pena de lhe serem aplicados
os efeitos da revelia; já na execução, em que há certeza quanto ao direito do autor
(ainda que presumidamente), o réu tem não somente o prazo dos embargos à exe-
cução, mas todo o prazo de prescrição. Não há como negar que este quadro é, no
mínimo, contraditório.
E mesmo em um processo de conhecimento comum, nada impede que o
potencial réu se antecipe ao potencial autor e ajuíze ele mesmo antes uma ação
em seu favor. Aí, sim, o potencial réu (agora autor) terá tido o prazo de prescrição
à sua disposição, e o potencial autor (agora réu) terá apenas o prazo da contes-
tação para provar o seu direito; este último, se não apresentar a contestação, não
terá a opção de ajuizar uma ação autônoma. No final das contas, é simplesmente
uma questão de quem age primeiro.
Foge, inclusive, ao escopo da jurisdição de pacificação social permitir que as
situações de conflito permaneçam abertas à discussão. O fato de a sentença do
processo executivo demandar baixo grau de cognição é apenas reflexo do plano
fático (a existência de um título), mas a realidade é que assim será apenas se o
executado quiser, pois, opostos os embargos à execução, o juiz enfrentará toda
matéria de defesa que ele deduzir, que, aliás, possui a mesma amplitude de uma
contestação no processo de conhecimento (art. 745, inc. V, CPC).52

idéia de que os embargos à execução possuem natureza de ação, o prazo para embargar de nada
serviria, pois não poderia impedir o ajuizamento de outra ação, ainda que com nome diverso. [...]
A solução não é boa, como se vê, pois significaria negar aplicação, sem justificativa, aos arts. 738
e 739, I, do CPC. [...] Permitir o ajuizamento desta ação autônoma, conexa à execução e com con-
teúdo idêntico ao dos embargos que poderiam ter sido opostos, é conferir ao executado a possi-
bilidade de driblar as regras processuais examinadas. Além disso, é interpretação que favorece a
deslealdade processual, permitindo comportamentos em dissonância ao dever legal de atuação
em conformidade com a boa-fé objetiva, princípio que se busca efetivar com a criação de regras
que estabelecem prazos para o oferecimento de alegações em um processo” (DIDIER JÚNIOR et al.
Curso de direito processual civil, v. 5, p. 350).
52
“Não obstante a redação do art. 745 especificar em incisos a matéria que pode se deduzida em
sede de embargos à execução, o inciso V autoriza o executado a alegar em sede de embargos
qualquer matéria que lhe seria permitido aduzir como fundamento de defesa no processo de
conhecimento. Por esse dispositivo, que constitui verdadeira norma de encerramento e demons-
tra a mais absoluta desnecessidade da disciplina constantes nos incisos I a IV, não há qualquer

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Ninguém nega que, hoje, a sentença que julga os embargos à execução


faz coisa julgada.53 O problema é que os embargos à execução não deveriam ter
sentença própria; esta deveria ser única,54 referente ao processo de execução,
para declarar satisfeita a obrigação, e a manter, se for o caso, após resolvidas as
matérias de defesa apresentadas por meio dos embargos à execução (simples
contestação).
Esta discussão só surge justamente pelo tratamento de ação que se dá atual-
mente aos embargos à execução. Fossem estes encarados como simples defesa (o
que efetivamente são), incidente ao processo de execução, a inércia do executado
levaria claramente à preclusão da faculdade de embargar e nenhuma dificuldade
haveria em se aplicar o art. 474 do CPC55 também à execução.
Agora, encarados os embargos à execução erroneamente como ação, ainda
que opostos e julgados no mérito, não se pode impedir que o executado propo-
nha futuramente uma outra ação autônoma para discutir o débito, desde que
com fundamento diverso, na medida em que faltaria identidade com os embar-
gos à execução. Isto é um absurdo.56
A sentença na execução tem mérito, sim, que corresponde no mínimo à decla-
ração de que a obrigação foi satisfeita e que nada mais é devido pelo exequente, mas
que pode ser ampliado, caso apresentada matéria de defesa.
Por isso também é legítimo submeter-se a concessão de efeito suspensivo
aos embargos à segurança do juízo. Resolvida na sentença (única) que a defesa
do executado não procede, permite-se o levantamento da caução. Caso haja a

limitação à cognição, seja no plano horizontal (amplitude da matéria passível a ser aduzida), seja
no plano vertical (profundidade das questões debatidas)” (LUCON. O novo perfil dos embargos à
execução. In: CARNEIRO; CALMON. Bases científicas para um renovado direito processual, p. 824 et seq.).
53
“A sentença de mérito dos embargos, acolha-os ou não, fará coisa julgada material — nos limites
dos pedidos e das causas de pedir que o embargante apresentou” (WAMBIER; ALMEIDA; TALAMINI.
Curso avançado de processo civil, v. 2, p. 311).
54
“A sentença é uma porque a cognição despertada pelos embargos tem o efeito de abranger o
teor da petição inicial da execução e dos documentos que a ela estão anexados, principalmente
o título executivo extrajudicial” (PABST. Natureza jurídica dos embargos do devedor, p. 168).
55
“Art. 474. Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as
alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido”.
56
“Essa é a conclusão óbvia da teoria da ação de embargos: como o princípio da eventualidade ou da
concentração não tem aplicação ao direito de ação, não há como evitar essa esdrúxula e infeliz solu­
ção. Se a ação de embargos foi rejeitada pelo mérito, a execução prossegue, e o credor recebe seu
dinheiro e o executado pode doravante propor várias demandas contra o credor, visando a discutir
novamente o mérito, mas sob outro fundamento. Não há um fim previsto para o hipotético rosário
de ações, o que traz insegurança jurídica. / A teoria dos embargos-ação viola dessa forma o mais
comezinho dos princípios ético-jurídicos, segundo o qual o direito é o instrumento da paz social.
Que sistema jurídico é esse em que o credor, tendo discutido o mérito de seu crédito nos embargos,
não sabe se venceu a demanda?” (PABST. Natureza jurídica dos embargos do devedor, p. 172-173).

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Embargos à execução – Algumas considerações 81

necessidade ainda de atos seguintes de excussão do patrimônio (por exemplo,


se o juízo foi garantido por penhora e o bem precisa ser alienado), a matéria de
defesa pode ser decidida por decisão interlocutória de mérito (art. 273, §6º, CPC).

3 Conclusão
Tendo-se em vista o caráter instrumental do processo, as normas processuais
devem ser moldadas e aplicadas dentro de uma perspectiva eminentemente prática.
Isto significar dizer que o processo deve ser eficiente, ser apto à produção
dos resultados a que se destina o mais rápido e da maneira menos custosa possí-
veis, sempre com observância do devido processo legal substancial.
O processo perde legitimidade a partir do momento que a sua aplicação
foge a esta visão prática, de resultados.57
É justamente o que ocorre com os embargos à execução, atualmente. É o
tempo de se repensar o tratamento que tal instituto recebe; a sua caracterização
como ação não se sustenta, principalmente após as últimas reformas dos disposi-
tivos do CPC pertinentes à execução.
Não é admissível que se suprima o direito de o executado se defender den-
tro do processo de execução em nome apenas de lições doutrinárias das quais
não se retira nem uma sequer vantagem para o jurisdicionado.
Os embargos à execução são defesa tal como a impugnação e ambas equi-
valem à contestação no processo de conhecimento.

Resumen: En este artículo se argumenta la caracterización de la moción para


suspender la ejecución como una simple defensa, dentro del proceso judi­cial
mismo, y no, una acción autónoma, como piensa la mayoría de la doctrina, com-
prensión que sin embargo no se sostiene, sobre todo después de las modifica-
ciones introducidas por las Leyes Federales nº 11.232/2005 e nº 11.382/2006,
debido a la incompatibilidad con la lógica del sistema y con los fines instrumen-
tales del proceso, por lo que sólo hace daños a los jurisdiccionados.

Palabras-clave: Proceso civil. Ejecución. Defensa. Oposición a la ejecución.


Naturaleza jurídica.

“Isso significa, sim, que a instrumentalidade do sistema processual é alimentada pela visão dos re­
57

sul­tados que dele espera a nação. A tomada de consciência teleológica tem, portanto, o valor de
possibilitar o correto direcionamento do sistema e adequação do instrumental que o compõe, para
melhor aptidão a produzir resultados. [...] A jurisdição tem inegáveis implicações com a vida social,
tanto é que o reconhecimento de sua utilidade, pelos membros da sociedade, que a legitima no con-
texto das instituições políticas da nação” (DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p. 179, 181).

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82 Danilo Lee

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

LEE, Danilo. Embargos à execução: algumas considerações. Revista Brasileira de Direito Pro-
cessual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 21, n. 81, p. 67-83, jan./mar. 2013.

Cadastrado em: 07.07.2012


Aprovado em: 26.08.2012

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Princípios da defesa da cidadania

Alice Ribeiro de Sousa


Mestre em Direito Público pela Universidade
Federal de Uberlândia. Professora de Direito Processual
Civil da Universidade Federal de Uberlândia.

Resumo: A definição de direito da cidadania tem se ampliado à medida que,


com o desenvolvimento social, surge a conscientização dos povos em rela-
ção à necessidade de fruírem do direito à felicidade, ao mesmo tempo que
as classes opressoras são abaladas por movimentos revolucionários. Com
o surgimento de cada uma das gerações de direitos humanos, os Estados
passaram, em um movimento de autodefesa, a assegurar as garantias de
cidadania. Em razão disso, formou-se, ao longo da história, um arcabouço
de princípios e corolários responsáveis por assegurar direitos mínimos do
cidadão. O presente trabalho dedica-se a tratar desses princípios e do modo
como eles auxiliam no estabelecimento da cidadania.

Palavras-chave: Defesa da cidadania. Direitos humanos. Princípios.

Sumário: 1 Noções introdutórias – 2 A cidadania e os direitos humanos –


3 Direitos humanos e defesa da cidadania – 4 Direitos transindividuais e
ci­da­dania – 5 Princípios aplicáveis à defesa da cidadania – 6 Conclusão
– Referências

1  Noções introdutórias
A cidadania pode ser conceituada como o conjunto de direitos e deveres
que estabelecem uma relação do indivíduo com o seu Estado. É exatamente nesta
linha, que deflui do modo como o Direito trata o assunto, que José Afonso da
Silva discorre sobre a cidadania. O autor relata que, ao regular a cidadania e os
direitos políticos, a Constituição do Império confundia o cidadão com o nacional,
tanto que foi necessário à doutrina cunhar a expressão “cidadão ativo” para indi-
car aqueles que detinham os direitos políticos. A distinção entre nacionalidade e
cidadania só começou a surgir a partir da Constituição de 1937, e consolidou-se

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com as Constituições de 1967 e 1969, que abriram capítulos distintos para tratar
de cada um dos tópicos.1
Neste diapasão, de modo mais específico, José Afonso da Silva entende que
a cidadania “é um status ligado ao regime político”,2 que “qualifica os participan-
tes da vida do Estado, é atributo das pessoas integradas na sociedade estatal, [...]
decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela repre-
sentação política”. Noutras palavras, cidadão “é o indivíduo que seja titular dos
direitos políticos de votar e ser votado e suas consequências”. E, por conseguinte,
adquire-se a cidadania mediante alistamento eleitoral.3
Contudo, há conceituações bem mais amplas. De fato, a exemplo disso,
Couvre, citado por Claudia Guerra Monteiro, afirma que “cidadania significa, em
última instância, o direito à vida no sentido pleno”.4 Hannah Arendt, por sua vez,
qualifica a cidadania como “o direito a ter direitos”.5
Para Márcio Alexandre da Silva Pinto, embora as primeiras reflexões sobre
cidadania tenham sido feitas na Antiguidade, pelo filósofo Sócrates, em 469 a.C.,6
a proteção do respectivo direito iniciou-se de forma acanhada, limitada a seu
aspecto político, com o franqueamento à participação nas questões de interesse
público.7 Os interesses pessoais, de cidadão ou não, deveriam ser defendidos pela
própria pessoa, cabendo ao Estado apenas declarar o direito, numa concepção
autodefensiva. Assim foi invariavelmente por vários séculos, até o advento da
Revolução Francesa, que pregou o individualismo acima do Estado, enfraque-
cendo as noções de direito de cidadania enfocadas de modo coletivo, surgindo a
concepção heterodefensiva.
Com o advento da Revolução Industrial, o aprofundamento das relações de
exploração entre patrão e empregado, e a consequente reação que deu lugar às
associações coletivas de trabalhadores e mesmo ao regime político comunista,
fez surgir uma nova concepção de cidadania, em que o Estado, ao lado da socie-
dade e do próprio indivíduo — reunido em entidades civis e movimentos sociais
—, passa a ser obrigado a defender interesse que pertença a uma coletividade.

1
SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 345.
2
Esta conceituação aproxima-se muito daquela apresentada por Aristóteles, e que pode ser encon-
trada em PINTO. Em defesa do direito da cidadania. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia,
p. 276.
3
SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 346.
4
MONTEIRO. O direito a ter direitos.
5
LAFER. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados.
6
PINTO. Evolução do direito público da cidadania. Revista do Curso de Direito da Universidade Federal
de Uberlândia, p. 212.
7
PINTO. Em defesa do direito da cidadania. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia, p. 283.

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Princípios da defesa da cidadania 87

Trata-se da concepção homodefensiva, que se apresentou como a mais adequada


a defender os direitos de cidadania.8
No Brasil, a definição de cidadania inicialmente ligava-se a noções políticas
e de atividades sociais, modificando-se conforme o estamento analisado. Por esta
razão, Cláudia Guerra Monteiro entende que tal definição era limitada e por vezes
contraditória. Entretanto, a mesma autora reconhece que, a partir da década de
80, juntamente com a perseguida ampliação dos direitos políticos, propiciada pela
crise da ditadura, os direitos da cidadania também ganharam maior amplitude.9
Passou-se, por conseguinte, a partir daquela época, a se reivindicar do Estado
os direitos mínimos da cidadania, de forma coletiva e organizada. Os manifestan-
tes eram compostos essencialmente pelas camadas populares e minorias, ou seja,
os que tinham maior interesse no atendimento a tais demandas.
Atualmente, a definição de cidadania está profundamente arraigada na
sociedade brasileira, como um reflexo dos anseios do povo, do atendimento às
vontades de cada pessoa. É o que percebe Maria Victória Benevides ao afirmar
que a própria palavra cidadania já se incorporou de tal maneira ao vocabulário do
brasileiro que, sobre certos aspectos, ela tende até a virar um substantivo, como
se representasse todo o povo.10
Em sintonia com tal pensamento, Márcio Alexandre da Silva Pinto procura
conferir a maior amplitude possível à definição de cidadania, devendo ela englo-
bar não apenas aquelas pessoas dotadas de direitos políticos. Ao entender do
citado autor, o Direito da Cidadania atualmente é amplíssimo e se aplica a todos
os cidadãos, individualmente ou coletivamente, nas suas relações entre si, com o
Estado, com o Governo e com pessoas físicas ou jurídicas.11
Este entendimento encontra reflexos na Constituição Federal de 1988,
que, apesar de não haver definido expressamente o que é cidadania, incluiu-a
entre seus fundamentos (art. 1º, II) e protege os diversos direitos com ela relacio-
nados, tanto no plano material quanto no processual. Neste ponto, o fato de a
Constituição não haver definido a cidadania pode ser entendido como uma opor-
tunidade para que se dê ainda mais amplitude ao seu objeto. Por esta razão é que
o citado autor vê espaço para se incluir entre os direitos da cidadania aqueles
direitos civis e sociais relacionados à coletividade, defendendo que na visão con-
temporânea de cidadania o seu exercício consistiria não apenas no exercício de
direitos políticos, mas também dos direitos civis e sociais da cidadania.12

8
Ibidem, p. 285.
9
MONTEIRO. O direito a ter direitos.
10
SOARES. Cidadania e direitos humanos.
11
PINTO. Em defesa do direito da cidadania. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia, p. 277.
12
PINTO. Evolução da proteção jurídica da cidadania. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia, p. 285.

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2  A cidadania e os direitos humanos


Observou-se que, quando os direitos de cidadania são vistos de um ponto
de vista garantista, eles podem ser facilmente comparados aos direitos humanos,
pois em muitos casos o Estado assegura aos seus membros garantias fundamen-
tais. Entretanto, quando se adota o ponto de vista oposto — entendendo-se os
direitos de cidadania como meras faculdades conferidas pelo Estado aos seus
súditos —, torna-se possível vislumbrar que existe uma esfera de direitos funda-
mentais mais ampla do que aquela correspondente aos direitos de cidadania.
Maria Victória Benevides expõe este pensamento demonstrando que os
direitos de cidadania — ou seja, aqueles conferidos pelo Estado a cada cidadão
— podem variar de Estado para Estado.13 Assim, por exemplo, o arcabouço de
direitos assegurado pelo Estado brasileiro a seus membros é bastante diferente —
com certeza, mais amplo — do conjunto de prerrogativas atribuído pelo Estado
chinês, ou norte-coreano, aos nacionais de cada um desses países. Nem por isso
é possível afirmar que em qualquer um desses Estados deixa de haver cidadãos,
ou que a cidadania não existe. Assim, os direitos do cidadão são criados, postos,
por um Estado.
Os direitos humanos, por sua vez, são universais; existem independente-
mente da soberania do Estado e seus respectivos ordenamentos jurídicos. Sua
existência, aliás, é anterior a das leis; daí porque constituem o arcabouço de direitos
naturais de uma pessoa. Na verdade, nem mesmo o seu reconhecimento depende
da existência de uma norma jurídica. Isto deriva do caráter universal dos direitos
humanos: devem eles ser respeitados em razão da natureza do ser humano, não
da espécie ou disposições de um ordenamento.
Também em virtude dessa qualidade universal, a aplicação dos direitos
huma­nos não sofre limitações em razão de atos ou fatos praticados pelo seu desti-
natário. Destarte, até o pior dos criminosos, confesso, com provas indubitáveis de
sua culpa em crime bárbaro e repugnante, tem direito a um julgamento imparcial,
acompanhado de todas as garantias respeitantes à sua condição humana. Assim,
por exemplo, viola os direitos humanos do condenado a aplicação de qualquer
pena cruel ou degradante, mesmo que a sociedade onde o crime foi praticado
entenda a aplicação dessa pena como retribuição justa pelo mal promovido.
Daí se obtém mais uma necessária conclusão, derivada do caráter universal
dos direitos humanos: eles se aplicam a quaisquer povos e etnias, mesmo aquelas
que culturalmente aceitem a prática de condutas desumanas e que causem sofri-
mento a seres humanos. A justificativa para tal conclusão é a necessária evolução

13
SOARES. Cidadania e direitos humanos.

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Princípios da defesa da cidadania 89

do reconhecimento dos direitos humanos na cultura ocidental. Até fins do século


XIX, o comércio de seres humanos como escravos era algo absolutamente comum
no Brasil. Uma vez reconhecido o status do negro como ser humano, bem assim o
fato de que a escravidão promove sofrimento e privação de liberdade intoleráveis
a qualquer pessoa, a abolição tornou-se inevitável.
Analisando o assunto sob enfoque, George Marmelstein alerta para o fato de
que não se devem confundir as definições de direitos do homem, direitos huma­
nos e direitos fundamentais. Para o autor, direitos do homem são aqueles que
se relacionam ao direito natural, ou seja, existem mesmo se não há uma norma
posi­tivada que os estabeleça. Direitos humanos, por sua vez, são os direitos defen-
didos expressamente, no plano internacional. E, enfim, os direitos fundamentais
são aqueles referentes à natureza humana e que se encontram previstos no Texto
Constitucional. O autor lembra ainda que esta distinção é perfeitamente compa-
tível com a Constituição de 1988, pois ela mesma se refere aos direitos humanos
quando se volta para o plano internacional, enquanto usa a expressão “direitos fun-
damentais” para tratar daqueles direitos que ela própria reconhece e disciplina.14
É inegável que reiterados estudos sobre os direitos humanos culminaram na
edição da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada
pela Resolução nº 217-A da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezem-
bro de 1948. Tal documento representou um marco histórico, pois pela primeira
vez na história o conjunto de direitos mínimos a assegurar a existência digna de
uma pessoa foi arrolado, o que lhe conferiu concretude e aplicabilidade. Foi com
base neste documento que se tornou possível uma relação mais estreita, e sua con-
sequente paridade, entre os direitos de cidadania veiculados pelas Constituições
e os direitos humanos. Ainda, tal Declaração confere fundamentação essencial
para as diligências organizadas pela ONU com o intuito de verificar a ocorrência
de violações de direitos humanos dentro dos países-membros, tornando possível
a sua denúncia e a cobrança de explicações por parte do ente soberano infrator,
sob pena de aplicação de sanções de ordem econômica e política.
Entretanto, isto não ocorreu automaticamente e em alguns casos a Decla­
ração Universal dos Direitos Humanos teve valor apenas retórico, dada a ocorrência
de arbitrariedades dentro do território inacessível de cada Estado. Claudia Guerra
Monteiro muito bem caracteriza a situação ao afirmar que os horrores das duas gran-
des guerras mundiais, que foram propulsores da Declaração de Direitos Humanos,
foram substituídos por horrores localizados, materializados em verdadeiras guerras

MARMELSTEIN. Curso de direitos fundamentais, p. 25-26.


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urbanas decorrentes das mudanças no equilíbrio de forças das relações de trabalho,


provocadas principalmente pelo processo de industrialização.15
De acordo com Celso Lafer, a aplicação dos direitos humanos foi invariavel-
mente posta em xeque pelos regimes totalitários, na medida em que estes puse-
ram em prática a ideia de que existem seres humanos descartáveis — não apenas
um ou outro indivíduo, porém classes inteiras. Para o autor, a liberdade conferida
aos regimes totalitários em classificar qualquer pessoa, de repente, como inimiga
do Estado “representa uma contestação frontal à ideia do valor da pessoa humana
enquanto valor-fonte da legitimidade da ordem jurídica, como formulada pela
tradição, senão como verdade, pelo menos como conjectura plausível da organi-
zação da vida em sociedade”.16
Diante desta análise, torna-se indisfarçável que a aplicação dos direitos huma-
nos depende diretamente da disposição do Estado em fazê-lo, bem como do modo
como tal aplicação ocorre. A análise de Celso Lafer quanto ao abuso da condição
dos apátridas deixa transparecer esta ideia. Para o autor, a partir do momento em
que as guerras mundiais colocaram em questão o padrão de defesa dos cidadãos
por seus próprios Estados — em razão dos milhões de refugiados e apátridas que
surgiram —, tornou-se possível a esses mesmos Estados abusar dessa condição,
sustentando que pessoas sem cidadania não tinham direito à proteção do princípio
da legalidade. Aliás, menos que isso: não tinham direito à própria dignidade.17 Daí a
subtrair-se dessas pessoas o maior dos direitos humanos, qual seja, o direito à vida,
não foi grande esforço.
Hannah Arendt vislumbrou a necessidade de fazer com que a proteção aos
direitos humanos transpusesse as barreiras dos Estados nacionais, transformando-se
em algo efetivamente universal, assegurada por todas as organizações políticas inde-
pendentemente da origem, etnia ou sexo dos seres humanos em questão. Como
reflexo, o Direito Internacional Público procurou não apenas promover tal respeito
por parte dos Estados soberanos, como também assegurar que a cada pessoa fosse
atribuída uma cidadania própria, um conjunto de direitos conferido por um Estado.
E o modo de se fazer isso foi reconhecendo a própria nacionalidade — assim como
os direitos de cidadania dela derivados — como um dos direitos humanos.18
Ainda segundo Celso Lafer, para Hannah Arendt uma solução plausível con-
tra o totalitarismo e a negativa de direitos humanos por ele promovida seria a

15
MONTEIRO. O direito a ter direitos.
16
LAFER. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados.
17
Ibidem.
18
Ibidem.

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Princípios da defesa da cidadania 91

desobediência civil. A autora ressalta que métodos violentos a serem aplicados


contra a repressão estão longe do verdadeiro objetivo a ser buscado, que é a recu-
peração do poder legítimo.
Neste ponto, e já concluindo o seu trabalho, o autor volta a apontar a neces-
sidade de se assegurar a cidadania como um meio de se coibir todas as situações
de poder totalitárias, inclusive aquela em que o homem se encontra naturalmente,
antes da formulação do contrato social perante o Estado, e que é chamada de
“estado totalitário de natureza”.19

3  Direitos humanos e defesa da cidadania


As garantias de cidadania têm seu rol iniciado pela legalidade, insculpida no
art. 5º, I, da Constituição Federal, que estabelece que “ninguém será obrigado
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Celso Lafer alerta
para a necessidade de se atender à legalidade legítima, ou seja, aquela advinda
da vontade popular e do estabelecimento de verdadeiro regime democrático,
não à mera obediência de comandos legais.20
Outra garantia essencial à cidadania é o acesso à jurisdição, princípio da pro-
teção judiciária ou da inafastabilidade do controle jurisdicional, que impede que
certa lesão ou ameaça a direito sejam excluídas da apreciação do Poder Judiciário.
O autor informa, com base em José Afonso da Silva, que a garantia desdobra-se
em vários princípios: independência e imparcialidade do juiz; juiz natural; direito
de ação e defesa; devido processo legal; entre outros.21
Com escoras nas lições de José Afonso da Silva, Márcio Alexandre da Silva
Pinto arrola entre os direitos da cidadania os direitos políticos, quais sejam, aque-
les envolvendo o acesso ao voto, a participação política, o pluralismo político,
entre outros. São os direitos que tornam possível o livre exercício da cidadania.22
A esse respeito, ao tratar em específico dos direitos da cidadania, o autor con-
fere ao tema um amplo ponto de vista, argumentando que está sendo superada a
concepção de que Direito Público seria apenas os do Estado, posto também serem
direitos públicos os direitos e garantias do cidadão.23

19
LAFER. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados.
20
PINTO. Em defesa do direito da cidadania. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia, p. 287.
21
Ibidem, p. 288.
22
Ibidem.
23
Ibidem.

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Ainda segundo o autor, isto confere ao direito de cidadania a natureza de


direito difuso.24 De modo mais específico, segundo a concepção cidadã a ele apli-
cável, “o ora denominado Direito da Cidadania, possui natureza jurídica de direito
público difuso, classificando-se, tanto os deveres, como os consequentes direitos,
em direitos civis, direitos políticos e direitos sociais de todos e de cada uma ao
mesmo tempo”.25 Por esta razão, este trabalho não pode se furtar à análise de tais
direitos, o que será feito mais adiante.
Claudia Guerra Monteiro tenta ir mais além ao discorrer sobre o problema
do direcionamento dos direitos humanos exclusivamente aos criminosos. A autora
explica que, dadas as condições desumanas a que os presos políticos eram subme-
tidos, um movimento de defesa de seus direitos surgiu e tornou-se forte até mea­
dos da década de 80, com ampla colaboração da Igreja, de centros e comissões
de direitos humanos e partidos políticos com orientação esquerdista. Entretanto,
entre 1983 e 1985, a cidade de São Paulo experimentou os índices históricos de
violência mais altos até então. Como uma reação social, capitaneada pela mídia, a
essa condição de violência, passou-se à condenação das medidas de proteção da
dignidade dos presos.26
Segundo Maria Victória Benevides, a criação da ideia de que os direitos huma­
nos só se aplicam aos bandidos pode ser um dos fundamentos da aceitação das
desigualdades sociais, uma vez que faz acepção de pessoas entre essas classes e cria
um conflito entre elas.
Ao entender da referida autora, é exatamente nos países que mais violam os
direitos humanos, nas sociedades mais marcadas pela discriminação, pela intole-
rância e pelo preconceito que a ideia de direitos humanos permanece ambígua e
deturpada.27
Enfim, consoante entende Claudia Guerra Monteiro, tais paradoxos confir-
mam o fato de que a evolução dos direitos humanos no Brasil ainda não atingiu
sua plenitude; ao contrário, está em franco processo de desenvolvimento. Tais
conflitos, propiciados pela existência de classes sociais distintas, são o fundamento
para o surgimento de uma chamada “guerrilha urbana”, exemplificados com os
massacres da Candelária, do Carandiru e o franco domínio do tráfico de drogas
nas favelas das grandes capitais brasileiras.28

24
PINTO. Evolução do direito público da cidadania. Revista do Curso de Direito da Universidade Federal
de Uberlândia, p. 246.
25
PINTO. Natureza jurídica do direito da cidadania. Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia, v. 37.
26
MONTEIRO. O direito a ter direitos.
27
SOARES. Cidadania e direitos humanos.
28
MONTEIRO. O direito a ter direitos.

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Princípios da defesa da cidadania 93

Viu-se antes que, para Hannah Arendt, a resposta cabível contra atitudes
totalitárias que poderia ser adotada pelos cidadãos seria a resistência. Apro­
fundando-se nesta tese, Maria Garcia elabora cuidadoso estudo acerca da possi-
bilidade de se admitir a desobediência civil como direito fundamental. A autora
parte do pressuposto de que toda ordem jurídica inicia-se com um movimento
revolucionário — sendo, inclusive, o Poder Constituinte Originário nada mais que
sua manifestação —, bem como de que não há revolução sem a desobediência,
ou o rompimento, com a ordem jurídica anterior.29
Fundamentando-se em estudos anteriores, afirma que a recusa à obediên-
cia pode basear-se em três aspectos: “a oposição às leis injustas, a resistência à
opressão e a revolução”. Cita ainda bases da justificação dos movimentos revolu-
cionários ainda no Código de Hamurabi, que os caracterizava como o justo castigo
ao mau governante.30
De fato, a autora arrola diversos doutrinadores segundo os quais a insurgên-
cia contra um regime hostil é não apenas direito, mas “dever sagrado”.31 Não obs-
tante, a tendência das Constituições contemporâneas tem sido a de não admitir o
direito de resistência — ao contrário, procuram aprimorar as formas de repressão
a movimentos revolucionários. Tal fato se torna ainda mais gritante nas democra-
cias populares, em que o adversário do regime é aquele que teme a supressão de
seus interesses individuais, e que por isso é egoísta — afinal, não deseja pensar no
interesse maior, de todo o povo.32 Mesmo assim, para a autora, é possível arrolar
duas hipóteses em que o direito de resistência foi constitucionalmente previsto: o
art. 20 da Constituição da República Federal da Alemanha, de 1949, e o art. 21 da
Constituição Portuguesa de 1982.33
O próximo passo será como explicar a contradição entre a admissão do
direito de resistência e a manutenção de um Estado regido por regras jurídicas
cuja violação importa sanção. A autora principia por esclarecer que, além da tira-
nia e do abuso de poder, a legitimação do movimento revolucionário pode dar-se
pela corrupção dos governantes. Ou, ainda, pelo modo como se organiza a socie-
dade tecnológica atual, cujo comportamento é ditado pela publicidade, pela
mídia (responsáveis por estabelecer o pensamento geral, também conhecido
como “opinião pública”, e por criar “falsas necessidades”34 que, ao serem preenchi-
das, fazem com que as pessoas se sintam incluídas dentro do grupo social) e pelo

29
GARCIA. Desobediência civil, direito fundamental, p. 134-135.
30
Ibidem, p. 138.
31
Ibidem, p. 145.
32
Ibidem, p. 147.
33
Ibidem, p. 150.
34
GARCIA, Maria. Desobediência civil, direito fundamental, p. 157.

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sistema econômico, cujas regras são estabelecidas por interesses supranacionais,


apesar de submeterem a cada um dos cidadãos.
As ideias apresentadas pela autora são bem interessantes na medida em
que enfrentam questões de difícil solução. Tenha-se como exemplo o fato de que
a Constituição Federal assegura a cidadania a quem seja capaz de exercer seus
direitos políticos. Parte-se do pressuposto de que tais pessoas serão capazes de
eleger os representantes que melhor correspondam às vontades por elas mani-
festadas, enquanto corpo político. Entretanto, é possível imaginar um quadro em
que o poder político seja posto como inacessível a qualquer cidadão; desta forma,
passa o mesmo a ser reservado a uma classe exclusiva, a um estamento, ao qual o
acesso depende de um alto poder econômico e da satisfação a interesses de algu-
mas minorias poderosas. Neste caso, por razões várias e que não cabe averiguar
neste trabalho, se a população só vê como candidatos aqueles inseridos nesta
classe, seria mesmo possível dizer que a obediência às normas constitucionais
relativas ao processo político assegura o cumprimento da vontade da maioria, ou,
noutras palavras, a existência de um Estado Democrático?
É com esta preocupação que Paulo Ferreira da Cunha alerta para a necessi-
dade de se não apenas estudar, porém transmitir, por meio de verdadeiro ensina-
mento, a cidadania, em todos os seus aspectos, como necessário instrumento de
consolidação de um governo que efetivamente se preocupe com o atendimento
às necessidades do povo, em vez de atender a algumas minorias. No dizer do
referido estudioso, a democracia deve dotar-se de uma escola para a cidadania
em todos os seus sentidos.35
O art. 21 da Constituição de Portugal diz textualmente: “todos têm o direito
de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias, e
de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autori-
dade pública”. No texto da nossa Lei Magna não há dispositivo idêntico, mas infere-se
a possibilidade de resistência, por exemplo, no art. 9º (que trata de direito de greve)
e no art. 14, que fala de instrumentos de manifestação, especialmente a iniciativa
popular. Além disso, há instrumentos como a Lei de Abuso de Autoridade, a Lei
de Improbidade, a Lei da Ação Popular, que podem ser utilizados no exercício do
direito do cidadão de resistir a atos que atentem contra sua cidadania.
Daí se avista que a resistência pacífica pode ser acrescentada ao rol dos
direi­tos humanos, quando utilizada como um instrumento de combate à tirania,
à corrupção e ao uso do poder político do Estado para fins escusos e individua-
listas. Como se trata de direito humano, é universal, não demandando que venha
expressamente previsto no Texto Constitucional para que seja exercido.

35
CUNHA. A Constituição viva: cidadania e direitos humanos, p. 24.

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Princípios da defesa da cidadania 95

4  Direitos transindividuais e cidadania


Viu-se acima que há movimento doutrinário tendente a reconhecer os direi-
tos de cidadania como difusos. Mas o que se deve entender por direitos difusos?
O conceito de direito individual sempre esteve presente no campo jurídico.
Atrela-se a uma visão privatística. Assim, por exemplo, se uma pessoa contrai uma
dívida com uma entidade creditícia e na data aprazada, não paga, é intentada
demanda executiva em que o Judiciário ingressará no patrimônio do devedor,
retirando quantos bens forem necessários à satisfação do crédito exequendo, e,
se for o caso, levando-os à hasta pública.
Já os denominados interesses transindividuais estão posicionados entre o
público e o privado, na categoria dos interesses sociais, consoante o fenômeno da
descentralização social, em que a sociedade de massa passa a influenciar na ges-
tão estatal — é a denominada gestão participativa. A soberania estatal é limitada
pela soberania social. A sociedade de massa passa a interagir nas decisões para
a definição dos rumos sociais. Um exemplo no âmbito das relações de consumo
pode ser alcançado na seguinte hipótese: determinada pessoa pode se insurgir
quanto a uma propaganda considerada enganosa, sem que necessariamente tenha
sofrido qualquer prejuízo, tampouco tenha que fazer prova de que consome aquele
produto ou utiliza o serviço.
Os interesses transindividuais, como gênero, podem assumir as espécies de
difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Direitos difusos são todos aqueles direitos que não podem ser atribuídos
a um grupo específico de pessoas, pois dizem respeito a toda a sociedade. Nas
palavras de Hugo Nigro Mazzilli, para defini-los podem-se empregar as palavras
trazidas pelo art. 81, I, do Código de Defesa do Consumidor — ou seja, são “direi-
tos ou interesses difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transin-
dividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas
e ligadas por circunstâncias de fato”. Abrangem, assim, grupos “menos determina-
dos de pessoas [...], entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático preciso”; e “são
como um feixe ou conjunto de interesses individuais, de pessoas indetermináveis,
unidas por pontos conexos”.36
Rodolfo de Camargo Mancuso, por sua vez, após detida consideração do
tema, propõe definir os direitos difusos como sendo interesses metaindividuais
que, não tendo atingido o grau de agregação e organização necessário à sua afeta-
ção institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses

MAZZILLI. A defesa dos interesses difusos em juízo, p. 48.


36

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já socialmente definidos, restam em estado fluido, dispersos pela sociedade civil


como um todo.37
Na órbita dos direitos difusos, não há vínculo jurídico entre os sujeitos afetados
e a lesão dos respectivos interesses, que se agregam eventualmente, por força de
certas contingências, como, por exemplo, o fato de habitarem certa região, consumi-
rem certo produto, comungarem pretensões semelhantes, trabalharem no mesmo
ambiente, etc.
O objeto dos interesses difusos é indivisível, tal que a satisfação de um sujeito
implica satisfação de todos, assim como a lesão, isto é, o dano, ao afetar um, afeta
todos, e vice-versa.
A duração dos direitos difusos é efêmera, em função da inexistência, entre
seus titulares, de vínculo jurídico básico, de modo que a ligação entre eles não se
mostra individualizável a priori.
O interesse público envolvido pelos direitos difusos é o primário, tendo em
vista que a sua distribuição ao longo da sociedade torna-o passível de confundir-se
com o próprio interesse público, ainda que seja possível menor abrangência.38
Os direitos coletivos, por sua vez, encontram-se conceituados no art. 82, II,
do Código de Defesa do Consumidor, como “os transindividuais, de natureza indi-
visível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou
com a parte contrária por uma relação jurídica base”.
Os direitos coletivos dizem respeito ao homem socialmente vinculado e não
isoladamente considerado. Isto porque visam a proteger as relações jurídicas que
ligam as pessoas vitimadas. Se é possível definir as relações jurídicas em questão,
também será possível definir quais são os seus sujeitos. Daí ser um traço marcante
dos direitos coletivos a determinabilidade dos seus sujeitos.
O objeto de direitos coletivos é indivisível, e corresponde ao “elo comum entre
os lesados que comungam o mesmo interesse coletivo”.39 A relação disciplinada é
a de um fato concreto, entretanto, a lesão não ocorre diretamente desse fato, mas
da relação jurídica ilegal, que une todo o grupo. Pode-se citar como exemplo a dis-
cussão entre o sindicato de determinada categoria e um empregador, para defesa
de direitos daquela categoria; ou a discussão entre os condôminos e o condomínio.
Por fim, quanto aos direitos individuais homogêneos, cabe lembrar que o
in­ciso III do parágrafo único do artigo 81 da Lei nº 8.078/90 preceitua que corres­
pondem a interesses “de grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas

37
MANCUSO. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, p. 114.
38
MAZZILLI. A defesa dos interesses difusos em juízo, p. 48.
39
MAZZILLI. A defesa dos interesses difusos em juízo, p. 50.

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Princípios da defesa da cidadania 97

ou determináveis, que compartilhem prejuízos divisíveis, de origem comum”. Os


titulares de interesses individuais homogêneos são determináveis, ligados por
origem comum, e o bem jurídico é divisível.
Os direitos individuais homogêneos assemelham-se aos difusos, quanto à
origem fática comum, e aos coletivos, em relação à determinação dos sujeitos.
Contudo, a divisibilidade do objeto os tornará deveras diferentes.
O traço que diferencia direitos individuais homogêneos e coletivos — stricto
sensu — é sua indivisibilidade. Além disso, “enquanto nos interesses coletivos, pro-
priamente ditos, a lesão ao grupo provém diretamente da própria relação jurídica
questionada no objeto da ação coletiva, já nos interesses difusos e individuais homo-
gêneos, a relação jurídica é questionada apenas como causa de pedir”.40
Assim, os interesses individuais homogêneos possuem causa comum que afeta,
embora de modo diverso, um número específico de pessoas, com consequências
distintas para uma delas. Aqui, em que pese serem os direitos individuais homogê-
neos provenientes de causa comum que atinge uniformemente a todos os lesados,
são metaindividuais apenas para fins de tutela judicial coletiva, porque continuam a
possuir, no plano do direito material, característica individual clássica. Trata-se então
de prerrogativa processual concedida em razão da homogeneidade causal.
Uma vez estudados os direitos transindividuais, resta traçar a sua relação com
os direitos de cidadania.
Na lição de Rodolfo de Camargo Mancuso, ao estabelecer distinções entre
o interesse público e o direito difuso, “enquanto o interesse geral ou público con-
cerne primordialmente ao cidadão, ao Estado, ao Direito, os interesses difusos se
reportam ao homem, à nação, ao justo”.41
Desta afirmação é possível obter duas conclusões. A primeira é a de que o
autor emprega o vocábulo cidadão sob o seu conceito tradicional, ou seja, relacio-
nando-o tão somente aos direitos e deveres para com o Estado.
Foi já visto que, para se chegar a uma concepção puramente cidadã, a gama
de direitos a ser vinculada ao cidadão precisa ser ampliada, especialmente para
incluir os direitos fundamentais e sociais. É o que o autor faz ao empregar o vocá-
bulo homem para relacioná-lo aos interesses difusos.
Como se viu, os direitos humanos são, por essência, universais e naturais, por
estarem relacionados à própria natureza do homem. Sendo assim, qualquer direito
que se vincule a esta natureza deve também ser entendido como um direito uni-
versal. Enfim, diante disto, torna-se necessário concluir que os direitos difusos, em

Ibidem, p. 51.
40

MANCUSO. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, p. 69.


41

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sentido lato, são também direitos universais, indispensáveis ao reconhecimento da


cidadania de uma pessoa, na sua acepção mais moderna.
É esta, portanto, a segunda conclusão: os direitos transindividuais são
uma manifestação expressa dos direitos de cidadania, e dentro deles se fazem
en­­­globa­dos.

5  Princípios aplicáveis à defesa da cidadania


A ação traduz um direito (poder) público subjetivo de o indivíduo provo-
car o exercício da atividade jurisdicional do Estado; ou, nas palavras de Cintra,
Dinamarco e Grinover, é “o direito (ou poder) de ativar os órgãos jurisdicionais,
visando à satisfação de uma pretensão”.42
O direito de ação reflete uma das principais características da jurisdição,
qual seja, a inércia. De fato, o exercício desse direito depende da provocação
expressa do Poder Judiciário pelo interessado.
Em breve suma, pode-se dizer que o direito de ação possui as seguintes
características: a publicidade, pois é exercitado contra o Estado; a subjetividade,
porque depende da iniciativa do interessado ou legitimado; a abstração, porque
independe da existência da pretensão no plano do direito material; a autonomia,
porque é exercitado sem qualquer relação com o direito material.
Para Nelson Nery Junior, o direito de ação veio expressamente previsto e
defendido pela Constituição Federal, quando, em seu art. 5º, XXXV, estipula que
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.43
De qualquer maneira, a existência do direito de ação é um dos pilares fun-
damentais ao exercício da cidadania, pois trata-se do instrumento pelo qual a
pessoa manifesta o seu desejo de obter os bens essenciais à sua existência, solici-
tando a remoção da resistência ou empecilho que veda-lhe o acesso a tais bens.
Assim, é por meio do direito de ação que o juiz avaliará se realmente existe tal
empecilho, e se ele é válido; se o bem pleiteado pode ser obtido por outra forma,
ou se realmente existe impedimento ao seu gozo.
Como posto, os direitos de cidadania aplicam-se em larga escala dentro do
corpo social, abrangendo o maior número de pessoas possível. Outrossim, viu-se
que o direito de ação depende de provocação individual para ser exercido. Da
mesma forma, observou-se que existem direitos passíveis de serem defendidos
coletivamente, ou mesmo de maneira difusa, permitindo-se a representação pro-
cessual de várias pessoas por apenas uma.

42
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER. Teoria geral do processo, p. 57.
43
NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 130.

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Princípios da defesa da cidadania 99

Diante dessas considerações, surge uma indagação cuja resposta este trabalho
deve encarregar-se de oferecer: os direitos da cidadania podem gozar da proteção
processual ofertada aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos?
Os direitos de cidadania têm como traço marcante o caráter difuso. Sendo
assim, a proteção processual da mesma espécie não lhes pode ser negada. Não
obstante, é necessário ter em conta que o aspecto difuso do direito de cidadania
não exclui, necessariamente, o seu caráter também individual.
A resposta à questão, então, vai depender do direito cuja defesa se pretende.
Em alguns casos, o direito pode encaixar-se como individual. Em outros, como tran-
sindividual. Dependendo disso, a ação judicial possível também variará. Pode ser ação
popular, ação civil pública, mandado de segurança, mandado de injunção, ação comi-
natória, ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Assim, o Direito da Cidadania, como direito protegido em lei e dos conside-
rados concidadãos, possui a natureza pública difusa. Entretanto, quando do seu
exercício, pode ser difuso, coletivo ou individual, porquanto, respectivamente, de
todos os tidos como concidadãos (difuso), de uma parte (coletivo) e de cada um
(individual).
O que não pode ocorrer, segundo Nelson Nery Junior, é que uma parte fique
ao desamparo jurídico porque não há legitimação para que possa vir a juízo na
defesa de direitos difusos e coletivos. Isto seria violação ao “princípio constitu-
cional que garante o acesso à justiça por meio do exercício do direito de ação
judicial”.44
Após visitado o tema atinente à defesa judicial da cidadania, cabe perquirir
acerca dos princípios que lhe são aplicáveis.
Encontra-se presente, no artigo 1º da Constituição de 1988, a forma republi-
cana de governo indicada como princípio fundamental da ordem constitucional.
Tendo isto em conta, é importante discorrer brevemente sobre o conteúdo do
termo República.
O conceito que hoje se entende por República estabeleceu-se ao longo do
tempo para designar uma forma de governo oposta ao sistema monárquico, ou
seja, em que o povo, e não o soberano, era o verdadeiro titular da coisa pública.
No entanto, seu alcance abrange um conjunto de características e preceitos que
vai além deste mero entendimento formal. Como ensina José Joaquim Gomes
Canotilho, a primeira característica identificadora de um Estado republicano é
a apresentação de uma “comunidade política, uma ‘unidade colectiva’ de indiví-
duos que se autodetermina politicamente através da criação e manutenção de

NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 157.


44

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100 Alice Ribeiro de Sousa

instituições políticas próprias assentes na decisão e participação dos cidadãos


no governo dos mesmos”.45 Assim, é possível afirmar que um regime republicano
é, essencialmente, um regime representativo, por meio do qual os cidadãos se
fazem representar por agentes públicos que, em nome e com consentimento da-
queles, gerenciam e administram a coisa pública.
A necessidade de se assegurar a válida representação de cada pessoa nas decisões
políticas é vital para a verificação da existência do direito de cidadania. Daí a importân-
cia da incidência do princípio republicano, no tocante à aplicação de tais direitos.
Feitas as considerações acima, pode-se afirmar que o primeiro princípio aplicá-
vel à defesa da cidadania é seguramente o princípio republicano.
Também conhecido como princípio da “inarredabilidade do controle juris­
dicional”, o princípio da inafastabilidade vem previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição,
que assegura que o Poder Judiciário não poderá sofrer restrição, por parte da lei,
com respeito à apreciação de lesão ou ameaça a direito.
José Cretella Júnior faz uma análise aprofundada do referido preceito cons-
titucional, para tanto dividindo um a um os seus vocábulos. Para o autor, a lei
em questão é a lei ordinária em sentido lato, ou seja, toda disposição normativa
de caráter infraconstitucional. O estudioso anota ainda que a lesão a interesse
não está incluída na referida proteção, só podendo ser resolvida em âmbito admi-
nistrativo; inclusive, havendo conflito entre interesse público e interesse privado,
deverá prevalecer o primeiro. Assim, lesão viável à aplicação do provimento juris-
dicional é apenas a concreta; e a ameaça, apenas a que possa realmente tornar-se
lesão futura.46
Com base em tais considerações, enumera-se uma plêiade de ações cabíveis
para proteger direitos e repelir ameaças aos mesmos: o mandado de segurança e
o habeas corpus, respectivamente, com vistas a proteger de dano contra direito
líquido e certo, e contra a liberdade de locomoção; o interdito possessório, contra
ameaças ao direito de propriedade; a ação ordinária, para combate a atos adminis-
trativos que violem direitos mesmo depois da concretização do dano, entre outros.47
Tendo em vista que o princípio da inafastabilidade da jurisdição é que
permite a manutenção da garantia de que os pleitos realizados junto ao Poder
Judiciário realmente serão apreciados, é um corolário vital à aplicação dos direitos
da cidadania.

45
CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 224.
46
CRETELLA JÚNIOR. Comentários à Constituição brasileira de 1988, v. 1, p. 434-454.
47
CRETELLA JÚNIOR. Comentários à Constituição brasileira de 1988, v. 1, p. 434-454.

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Princípios da defesa da cidadania 101

Em poucas palavras, o princípio do juiz natural assegura a existência de regras


claras, preexistentes ao evento a ser apreciado pela jurisdição, que determinem a
fixação da competência do órgão encarregado de aplicá-la. Assim, não é dado ao
Estado determinar o órgão encarregado do julgamento depois que o fato já ocor-
reu, ou seja, quando tal determinação possa dar-se em obediência a casuísmos e
circunstâncias políticas.
Nas palavras de Nelson Nery Junior, o princípio do juiz natural assume natu­
reza tridimensional. Em primeiro lugar, a garantia veda a existência de tribunais
de exceção, quais sejam, aqueles criados para o julgamento de fatos específicos.
Em segundo lugar, assegura o direito a ser julgado pelo juiz constituído consoante as
normas legais previamente estabelecidas. Por fim, demanda não apenas a com-
petência, mas a verdadeira imparcialidade do juiz.48
O mesmo autor critica, como sendo razão de violação ao princípio, a consti-
tuição de comissão processante para investigar fatos por meio de processo admi-
nistrativo. Defende o mestre que o certo seria a Administração fazer a nomeação
dos membros da comissão processante antes mesmo de saber se haverá processo
administrativo para averiguar qualquer fato, ou seja, criar um sistema em que tais
membros ocupariam uma espécie de mandato, e seu trabalho, sendo solicitado
apenas quando houvesse a instauração do processo administrativo.49
O princípio do juiz natural é essencial para que se assegure a cidadania.
Afinal, a submissão do julgamento a um julgador que possa ter sua imparcialidade
comprometida, em qualquer nível, dá azo à não realização de justiça. Sem isso,
portanto, a obediência a todos os outros corolários de cidadania fica prejudicada.
Os princípios do contraditório e da ampla defesa asseguram que, a cada
nova alegação de uma parte, seja dada oportunidade de réplica à outra. Eles esta­
belecem uma dinâmica processual que visa a homenagear a perseguição da ver-
dade, evitando que se estabeleça uma realidade processual conveniente a uma
das partes, e distante daquela realmente experienciada no mundo dos fatos.
De fato, nas palavras de Cintra, Dinamarco e Grinover, “Somente pela soma
da parcialidade das partes (uma representando a tese e outra, a antítese) o juiz
pode corporificar a síntese, em um processo dialético”.50
O contraditório e a ampla defesa vêm assegurados pelo art. 5º, LV, da
Constituição: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusa-
dos em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e

48
NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 97-98.
49
Ibidem, p. 101.
50
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER. Teoria geral do processo, p. 55.

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recursos a ela inerentes”. Observa-se, logo de início, que o Texto Constitucional faz
questão de estender a garantia também ao processo administrativo, o que Nelson
Nery Junior faz questão de apontar como uma “inovação profunda”, tendo em vista
que, na Constituição de 1969, tais garantias se aplicavam apenas ao processo
penal, não obstante os protestos da doutrina.51
O referido autor ainda indica a relação íntima existente entre o contraditó-
rio, a ampla defesa e o direito de ação, pois, sem que existam tais garantias, não
há direito de defesa; e sem isso, não se há de falar em direito de ação — o que traz
séria ameaça ao conceito de estado de direito.52
Este apontamento é suficiente para demonstrar a importância dos referidos
princípios na persecução ao direito de cidadania. Afinal, a conceituação cidadã do
direito de cidadania, como visto, desenvolveu-se à luz dos Estados em que ocorre
a efetiva obediência às regras jurídicas, e em que há um mínimo de estabilidade
dessas regras. Desta feita, desconhece-se a aplicação da noção mais recente de
cidadania divorciada da existência do Estado de Direito.
Fundamento para o Estado Democrático de Direito, o princípio da igualdade
ou da isonomia vem previsto no art. 5º, I, da Constituição Federal.
Cintra, Dinamarco e Grinover entendem que o princípio da isonomia, em
sentido processual, é um pressuposto para assegurar a igualdade das partes
perante o juiz. Ou seja, “as partes e os procuradores devem merecer tratamento
igualitário, para que tenham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as
suas razões”.53
Os autores ainda alertam para a necessidade de se contrabalançar juridica-
mente as desigualdades econômicas, de modo a assegurar que isto não afete a
necessária igualdade jurídica. Com base nisso é que surgiu o conceito realista de
isonomia, que demanda o “tratamento igual aos substancialmente iguais” e, por
conseguinte, o tratamento desigual aos desiguais, “justamente para que, supridas
as diferenças, se atinja a igualdade substancial”.54
Ainda, é necessário apontar que, no âmbito do processo civil, o princípio da
igualdade é conduzido pelo conceito da paridade de armas, ou seja, o franquea­
mento, às partes, dos mesmos meios de apresentação da verdade ao juízo. No
processo penal, os princípios do in dubio pro reo e do favor rei demandam que,
em caso de dúvida entre o interesse do acusado e a pretensão punitiva do Estado,
deve o juiz decidir em favor do primeiro.

51
CRETELLA JÚNIOR. Comentários à Constituição brasileira de 1988, v. 1, p. 169.
52
Ibidem, p. 170.
53
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER. Teoria geral do processo, p. 53.
54
Ibidem, p. 54.

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Princípios da defesa da cidadania 103

Neste panorama, o princípio da igualdade tem reflexos importantíssimos


para assegurar a cidadania durante o processo. É sua manifestação direta a regra
jurídica que confere prioridade de trâmite processual aos feitos que tenham como
interessados os maiores de 60 anos de idade, assim como o seu atendimento prio-
ritário em órgãos públicos. É também com base neste princípio que se defende
a prevalência do interesse de gestantes, lactantes e mães com crianças de colo,
tendo em vista a indisfarçável fragilidade de sua situação frente aos demais.
Observa-se, assim, que o contrapeso entre interesses diversos, promovido
pelo princípio da isonomia, é essencial para garantir a existência de cidadania
entre os habitantes de um Estado.
Os princípios anteriormente vistos não podem ser entendidos isoladamente
na dinâmica processual. Ao contrário, somente a partir da sua reunião é que se
pode entender aplicável um verdadeiro processo justo e, por isso, cidadão. A esse
conjunto de procedimentos, que se desenrola estritamente dentro dos limites esti-
pulados pela lei, dá-se o nome de devido processo legal.
Esta conceituação, entretanto, não pode ser vista como específica. Na verdade
o devido processo legal em sentido estrito pode ser dividido em dois aspectos dife-
rentes: o processual, propriamente dito, e o material.
De fato, o substantive due process corresponde à atuação da cláusula do
devido processo legal no que pertine à aplicação do direito material. Isto significa
dizer que a cláusula pode ter seu entendimento ampliado, a ponto de incluir a
defesa de direitos fundamentais do cidadão. Assim, por exemplo, a criação de
uma regra jurídica por meio de um processo legislativo legalmente hígido é nada
mais que um reflexo da aplicação do devido processo legal em seu sentido mate-
rial. Indo além disso, Nelson Nery Junior afirma que o substantive due process of law
fundamenta o próprio princípio da razoabilidade e, em razão disso, “toda lei que
não for razoável, isto é, que não seja a law of the land, é contrária ao direito e deve
ser controlada pelo Poder Judiciário”.55
Pode-se dizer com segurança, diante disso, que o procedural due process é
um resumo de todas as garantias processuais relacionadas à cidadania. Sendo
assim, a sua importância para assegurar tal condição é indisfarçável.

6 Conclusão
A igualdade entre os cidadãos não é simplesmente oferecida pelo Estado.
Deve, ao contrário, ser construída pelos indivíduos. Esta construção, entretanto,

55
NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 68.

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não ocorre automática e espontaneamente. O Estado precisa conferir condições


para que ela se efetive, e às vezes, até mesmo estimulá-la. Se isso não ocorre, pode
haver submissão por um período indeterminado de tempo. A história ensina que
a tendência é a substituição do modelo estatal autoritário por um outro, capaz
de oferecer tais garantias, e isto se dá por meio de movimentos revolucionários.
Desde a sua primeira geração até os eventos pós-Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão e os dias atuais, a visão histórica do desenvolvimento dos
direitos humanos demonstra que a opressão, seja ela promovida pelo Estado, seja
pelos detentores dos meios de produção, tende a promover um movimento con-
tínuo e cada vez mais forte em busca da mudança e do fim do regime opressor.
Deste modo, para assegurar a manutenção do sistema de poder em vigência, as
classes dominantes devem preocupar-se em garantir o alcance ao direito à felici-
dade por parte do povo que o integra, sob pena de, inevitavelmente, caminhar
em direção ao seu próprio extermínio.
Ao longo deste trabalho, foi possível perceber que a resistência ao autorita-
rismo por parte dos detentores do poder é sempre mais eficiente quando se dá de
modo pacífico, pois isto confere legitimidade ao sistema de poder emergente, ao
passo em que evidencia a sua preocupação com os bens humanos mais valiosos
— quais sejam, a vida e a integridade física. A desobediência civil, então, encontra
fundamento nos direitos fundamentais de cidadania, muito embora não conte
com proteção constitucional expressa. É isto, aliás, o que os difere em essência dos
regimes totalitários, que criam classes de pessoas descartáveis dentro do Estado.
Apesar de a proteção aos direitos humanos não depender necessariamente da
existência de um Estado — mas sim, da natureza humana do sujeito protegido —
para se concretizar, dentro de um sistema jurídico em que se confere poder a uma
entidade maior do que todos para defender tais direitos, é altamente recomendável
que exista uma positivação desses mesmos direitos, e ainda, que o Estado seja obri-
gado a obedecer tal positivação. Daí exsurge o princípio da legalidade, a que tanto
os indivíduos quanto o Estado estão submetidos, como uma das garantias essenciais
para assegurar a cidadania.
No campo processual, a legalidade é assegurada pelo princípio do devido
processo legal, que visa não apenas ao desenvolvimento do processo consoante
o estabelecido na legislação aplicável, como também à criação de leis justas, em
sintonia com os desejos e necessidades dos cidadãos. Outrossim, premissa funda-
mental para que o processo alcance um resultado justo é que sejam observados
o contraditório e a ampla defesa, isto é, que cada parte tenha oportunidade de
apresentar os fatos como realmente ocorreram, seja por alegações, seja por meio
da apresentação de evidências.

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Princípios da defesa da cidadania 105

Neste passo, torna-se necessário abordar os interesses difusos e a sua relação


com a cidadania. Embora possam restringir-se aos interesses de poucas pessoas
— neste caso, não correspondendo necessariamente ao interesse público —, os
interesses difusos legítimos sempre se identificarão como direitos da cidadania,
pois o vínculo existente entre tais pessoas e a possibilidade de invocação coletiva
de tais direitos, que conferem os traços de um direito difuso e cidadão, estarão
sempre presentes.
Os direitos de cidadania podem, assim, ser invocados em juízo individual ou
coletivamente, dependendo de sua natureza. Por meio do processo, será possível
dar guarida a cada pretensão manifestada, sempre atentando-se para a principio-
logia regedora da defesa judicial do cidadão.
Apesar da incipiência da defesa dos direitos à cidadania — que atingiram
lugar de destaque apenas com o advento da Constituição de 1988 —, os princi-
pais instrumentos para assegurar o gozo de tais direitos se fazem disponíveis aos
cidadãos brasileiros, seja para o manejo individual, seja para o coletivo. Todavia,
a principal arma de combate à marginalização é o conhecimento de que tais
direitos existem, e de que podem ser efetivamente empregados pelas pessoas,
em benefício de sua felicidade.
O Brasil atual desponta aos olhos do mundo como o país do futuro. Que,
durante o processo de sua ascensão, os cidadãos brasileiros possam experimentar
por igual os benefícios desse desenvolvimento e fazer da cidadania não só um
conceito acadêmico, mas, sim, um instrumento eficaz de democratização.

Principles of Citizenship Defense

Abstract: The definition of citizenship rights has been extended as the social
development allows the emergence of people’s consciousness regarding
the right to enjoy happiness, while the oppressing classes are shaken up
by popular movements. With the appearance of each generation of human
rights, the State began, in a posture of self-defense, to ensure the guarantees
of citizenship. Therefore, in course of history, arose a framework of principles
responsible to ensure minimum rights of the citizen. This work is dedicated to
deal about these principles and how they help in the defense of citizenship.

Key words: Citizenship defense. Human rights. Principles.

Summary: 1 Introductory concepts – 2 Citizenship and human rights – 3 Human


rights and citizenship defense – 4 Civic rights and citizenship – 5 Principles of
citizenship defense – 6 Conclusions – References

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www.iea.usp.br/artigos/benevidescidadaniaedireitoshumanos.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2010.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

SOUSA, Alice Ribeiro de. Princípios da defesa da cidadania. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 21, n. 81, p. 85-106, jan./mar. 2013.

Cadastrado em: 23.07.2012


Aprovado em: 24.08.2012

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Medidas cautelares pessoais diversas da
prisão

Carlos Henrique Borlido Haddad


Doutor e Mestre em Ciências Penais pela UFMG.
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG. Juiz Federal.

Resumo: A Lei nº 12.403/11 é analisada por ter introduzido relevantes modi­


ficações na disciplina das medidas cautelares penais. Examinam-se as dispo-
sições aplicáveis à generalidade das medidas cautelares diversas da prisão.
Aponta-se a influência italiana na elaboração da disciplina pátria e se estabe-
lece escala de coercitividade entre as medidas recém-introduzidas. Estuda-se
cada uma das medidas cautelares penais com constantes referências às legisla-
ções estrangeiras. Procura-se definir prazo de duração para as medidas cau-
telares e se conclui que haverá aumento do alcance do direito penal em face
da maior utilização das cautelares penais.

Palavras-chave: Processo penal. Medidas cautelares pessoais. Lei nº 12.403/11.


Coercitividade. Prazo.

Sumário: 1 Introdução – 2 Medidas cautelares pessoais diversas da prisão –


3 Disposições gerais – 4 Escala de coercitividade – 5 Cautelares em espécie
– 6 Duração das medidas cautelares – 7 Conclusões – Referências

1 Introdução
O estudo do Direito Processual depara-se com antiga e perene discussão
acerca da autonomia ou da unidade entre o processo civil e o processo penal.
Autores há que defendem uma teoria geral do processo, que abrangeria o civil e
o penal. Outra corrente sustenta a autonomia do processo penal e assevera que
não se confunde com o processo civil, sobretudo pela diferença essencial que se
assenta no conceito de lide. No processo civil, é importante o conceito de preten-
são e de lide. Pretensão, de acordo com Carnelutti, é a exigência da satisfação de
interesse próprio perante interesse alheio. A lide é a pretensão resistida, ou seja,
é a oposição à satisfação do interesse próprio. A lide é típica do processo civil,

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108 Carlos Henrique Borlido Haddad

porque se não há resistência, é desnecessário o processo. No entanto, o processo


penal seria sempre necessário, porque não se pode impor a pena por outro modo;
basta que ocorra o crime para que ele surja.
A aceitação de uma das teses não apaga, no entanto, os traços deixados
pelo direito positivo, ou melhor, as perspectivas que se abrem para indicar o dis-
tanciamento do processo civil e penal, mais precisamente no tratamento da tutela
cautelar. O Código de Processo Civil (CPC) vigente possui livro próprio que abarca
o processo cautelar, mas o anteprojeto atualmente em discussão faz opção dia-
metralmente oposta: extingue o específico capítulo. Por seu turno, o Código de
Processo Penal (CPP), que nunca conferiu tratamento sistemático à tutela caute-
lar, está em vias de ser substituído por norma que prevê livro autônomo versando
sobre as medidas cautelares. Conquanto se possa dizer que a extinção do processo
cautelar terá sido mais formal do que substancial, haja vista a regulamentação
da tutela de urgência na parte geral do anteprojeto do CPC e a realocação de
algumas cautelares em espécie como procedimentos especiais, é inquestionável
que se dará passo em direção contrária à regulamentação do CPP, que reuniu
em único capítulo diversas medidas cautelares pessoais. Surpreendentemente,1
em 05 de maio de 2011, o legislador antecipou-se às discussões travadas no ante-
projeto do CPP e foi publicada a Lei nº 12.403, que conferiu tratamento orde-
nado às medidas cautelares, em autêntica inovação no processo penal brasileiro.
Alteraram-se disposições do CPP atinentes à prisão processual, fiança e liberdade
provisória e introduziu-se capítulo que merece estudo à parte, abrangendo as
medidas cautelares pessoais diversas da prisão.

2  Medidas cautelares pessoais diversas da prisão


A legislação processual penal brasileira regulamentava as medidas cautela-
res de forma desordenada, porque não se diferenciavam aquelas de caráter pes-
soal e real, nem havia disposições com aplicação abrangente e uniforme. Busca e
apreensão, prisão preventiva, sequestro, especialização de hipoteca eram medi-
das estabelecidas em lei, mas dispostas topologicamente em partes diversas do
CPP, como se não possuíssem traço comum. Marcellus Polastri Lima defendia que
seria necessária, em futura reforma,

1
Na verdade, em 2011, superou-se a marca dos 500 mil presos, dos quais 200 mil são provisórios, o
que motivou a edição da lei (LOPES JR. A inserção do contraditório no regime jurídico das medidas
cautelares pessoais. Boletim do IBCCrim, p. 5). O número de presos no Brasil só é menor do que o
existente nos Estados Unidos e China (Folha de S.Paulo, São Paulo, 05 jul. 2011. Cotidiano. Disponível
em: <www.folha.uol.com.br>. Acesso em: 18 dez. 2011).

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 109

a melhor sistematização da tutela cautelar no processo penal, em título


próprio e em capítulos específicos, tratando-se em separado sobre nor-
mas gerais, para, em seguida, em capítulos próprios, dispor sobre as caute-
lares pessoais, privativas de liberdade, e restritivas de direito, as cautelares
reais e as relativas às provas.2

A Lei nº 12.403/11, como todo remendo, não corrigiu essa imprecisão téc-
nica, mas, ao menos, agrupou em único capítulo as medidas cautelares pessoais
diversas da prisão. São elas o comparecimento periódico em juízo; a proibição de
acesso ou frequência a determinados lugares; a proibição de manter contato com
pessoa determinada; a proibição de ausentar-se da comarca ou do país; o recolhi-
mento domiciliar; a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de
natureza econômica ou financeira; a internação provisória do acusado; a fiança; e
a monitoração eletrônica.
Boa parte dessas medidas não é inédita no direito brasileiro, pois o legislador já
as previa durante o processo e em matéria de execução de pena, mais precisamente
no livramento condicional e na suspensão condicional do processo e da pena. A
Lei de Execução Penal, no art. 132, §1º, estabelece obrigações a serem impostas
ao indivíduo beneficiado pelo livramento condicional, quais sejam, a obtenção de
ocupação lícita, dentro de prazo razoável, se for apto para o trabalho; a comunica-
ção periódica ao juiz de sua ocupação; e a obrigação de não mudar do território
da comarca do Juízo da Execução sem prévia autorização. Além dessas obrigações,
faculta-se ao juiz impor ao liberado a proibição de mudar de residência sem comu-
nicação, o recolhimento à sua habitação em hora fixada e a proibição de frequentar
determinados lugares. Por seu turno, o art. 78, §2º do Código Penal, repetido pelo
art. 89, §1º da Lei nº 9.099/95, dispõe que o juiz concederá a suspensão condicional
da pena, especificando as condições a que se sujeitará o condenado, entre elas a
proibição de frequentar determinados lugares e de ausentar-se da comarca onde
reside, sem autorização do juiz, como também o comparecimento pessoal e obriga-
tório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades. Vale lembrar a
existência da pena de interdição de direitos consistente na proibição de frequentar
determinados lugares (art. 47, IV do Código Penal).
Se elas não são inovação integral no ordenamento nacional, muito menos
o seriam em confronto com o direito de outros Estados. O legislador brasileiro,
como sói ocorrer em matéria de normatização processual penal, buscou inspira-
ção no direito italiano, cujo CPP contempla livro intitulado Misure Cautelari. O CPP

2
LIMA. A tutela cautelar no processo penal, p. 368.

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110 Carlos Henrique Borlido Haddad

alemão prevê, no art. 116, as medidas de atendimento obrigatório às convocações


do Juiz, Ministério Público ou Polícia; obrigação de não se ausentar de território
determinado sem autorização judicial; proibição de não sair do domicílio senão
acompanhado de pessoa designada pelo juiz; proibição de manter contato com
cúmplices, testemunhas, peritos ou vítimas; e fiança. Em Portugal e França, foram
igualmente positivadas medidas cautelares processuais penais e, da análise das
legislações estrangeiras, não se detecta nenhuma originalidade no quadro norma-
tivo brasileiro. É possível que o modelo italiano seja bom exemplo de tratamento das
medidas cautelares no processo penal, mas a opção pela fonte na qual se inspirou
o legislador pátrio deve-se, provavelmente, à tradicional influência que os juristas
peninsulares, há décadas, exercem sobre os brasileiros. Afora isso, não se explica
a preferência brasileira, uma vez que a Itália é o país europeu em que as medidas
alternativas ao cárcere foram introduzidas com maior atraso. A semiliberdade ou
semidetenção, acompanhada às vezes da obrigação de trabalho externo, foi inse-
rida, entre os anos 1930 e 1960, na França, Holanda e Suíça e, nos anos 1960, na
Bélgica, Áustria e Dinamarca. Na Alemanha, Holanda, Bélgica e Suíça, foi prevista,
antes de 1975, a prisão (limitação) de fim de semana. As prisões domiciliares, a par
da experiência espanhola, que remonta ao século XIX, representaram uma novidade
para os italianos trazida por lei de 10 de outubro de 1986.3 De toda sorte, se é certo
que a importação de soluções de outros Estados, ainda que com provas dadas de
eficiência, deva ser sempre muito ponderada e adaptada ao nosso contexto socio-
jurídico, o conhecimento sobre as principais linhas de discussão e soluções em
outros países pode ser relevante para o debate interno.

3  Disposições gerais
A regulamentação das medidas cautelares, operada pela Lei nº 12.403/11,
foi muito franciscana, porque se limitou a apresentar as linhas gerais, com o rol
respectivo, sem imiscuir-se em detalhes sobre a execução das medidas ou acerca
do procedimento judicial. As disposições legais possibilitam antever, claramente,
os contornos das medidas cautelares, porque a redação foi elaborada sem rodeios
e de maneira direta, no entanto, há lacuna na forma de execução. Incumbirá à
doutrina e à jurisprudência estabelecer o conteúdo a ser observado na aplicação
prática do instituto, tendo em vista a multiplicidade de circunstâncias fáticas pas-
síveis de envolvê-las.

3
FERRAJOLI. Derecho y razón: teoria del garantismo penal, p. 454, nota 175.

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 111

As medidas cautelares têm lugar em razão de serem necessárias à aplicação


da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente
previstos, para evitar a prática de infrações penais. A necessidade da cautela é
apenas o ponto de partida para toda e qualquer imposição de medida cautelar.4
As medidas cautelares aparecem como resposta ao lapso de tempo que, necessa-
riamente, medeia entre o início do processo e o pronunciamento da decisão final
e tende a evitar que circunstâncias supervenientes impossibilitem ou dificultem a
execução forçada e tornem inoperante a resolução definitiva. As medidas cautela-
res servem, então, para garantir a eficácia do processo penal, impedindo os danos
derivados do transcurso do tempo.
Para atender a necessidade de aplicação da lei penal e para a investigação ou
a instrução criminal, qualquer uma das medidas instituídas pela Lei nº 12.403/11
pode ser adotada. Com o intuito de se evitar a prática de infrações penais, há neces-
sidade de determinação legal específica, que se encontra apenas nos incisos II, III,
VI e VII do art. 319 do CPP. Isso se justifica porque o impedimento da reiteração
criminosa não se reveste, efetivamente, de caráter cautelar processual, no sentido
de assegurar o resultado útil do processo criminal. Essas medidas não têm por
finalidade garantir o resultado de outras providências judiciais ou do processo
mesmo, senão que evitar que novos delitos não sejam cometidos, o que, em ver-
dade, é a finalidade própria da pena. Possui finalidade cautelar, mas de conotação
social, a fim de que a sociedade não se veja agredida pelo cometimento de novas
e repetidas infrações. Considerando, portanto, que o embaraço à reiteração delitiva
não é fundamento técnico das medidas cautelares, o emprego delas é feito em
casos restritos, apenas quando a lei expressamente autoriza.
Elas devem ser adequadas à gravidade do crime, circunstâncias do fato e
condições pessoais do indiciado ou acusado. O juiz deverá verificar a específica
idoneidade de cada uma das medidas existentes em relação à sua natureza e ao
grau de exigência cautelar a ser satisfeito no caso concreto. É o que a doutrina
italiana conhece como princípio da adeguatezza. A óbvia consequência é que se
escolha a medida menos gravosa ao acusado entre aquelas idôneas a satisfazer a
exigência cautelar da situação analisada.5
Deve igualmente ser feita a constatação da proporcionalidade da medida, a
fim de que se selecione aquela que melhor se amolde à pena que será fixada, em
caso de condenação. Não haveria sentido infligir medida de recolhimento domi-
ciliar se as circunstâncias do caso tendem à imposição exclusivamente de pena de

4
OLIVEIRA. Atualização do processo penal: Lei nº 12.403, de 05 de maio de 2011. In: OLIVEIRA. Curso
de processo penal, p. 14.
5
CONSO; GREVI et al. Profili del nuovo codice di procedura penale, p. 298-299.

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multa. É certo que o art. 283, §1º dispõe que as medidas cautelares não se aplicam
à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena
privativa de liberdade, como forma de adequar a gravidade do crime à necessi-
dade da cautela. Porém, nas hipóteses em que há possibilidade de imposição da
medida, sem embargo do reduzido desvalor da conduta e do resultado, a seleção
daquela mais branda é imperativa. A adoção da medida cautelar pressupõe sem-
pre um juízo prognóstico de aspecto positivo sobre a responsabilidade, mesmo
que baseado apenas em indícios e não ainda sobre provas, à luz da complexidade
da situação processual. A valoração feita pelo juiz deve ater-se à existência de razoá-
vel e consistente probabilidade de culpabilidade e, por consequência, de condena-
ção do acusado, sem se esquecer de que este juízo de valor deve considerar que
eventual pena a ser imposta seja superior àquela que autoriza a substituição por
sanções restritivas de direito. No foro judicial, juízos prognósticos a respeito da
medida da pena são bastante corriqueiros, conquanto encontrem resistência nos
tribunais superiores, a exemplo da aplicação da prescrição da pena em perspectiva,
vedada pelo enunciado da Súmula nº 438 do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Mas se é possível ao juiz aferir, antecipadamente, a existência do interesse proces-
sual, extraído do lapso de tempo transcorrido desde a data do fato e a provável
pena que infligirá, em caso de condenação, basta que se aplique idêntico raciocí-
nio, a fim de aferir se há necessidade de imposição de medida cautelar específica.
De acordo com a matemática do direito processual, a medida cautelar, por
definição, é antecipação do resultado do processo, haja vista a finalidade que
deve ser perseguida provisoriamente. Por conseguinte,

se non è prevedibile l’esecuzione di uma misura restrittiva della liberta per-


sonale con la sentenza definitiva, a fortiori non può essere adottata uma
misura restrittiva della libertá personale nel corso del processo. In caso
contrario la custodia cautelare perderebbe ogni legittimazione, e diverrebbe
davvero una sanzione anticipata e autonoma rispetto alla condanna.6

Nenhuma medida cautelar pode — ou pelo menos não deveria — provocar


gravame maior do que o resultado final do processo. É conveniente que se estabe-
leça a seguinte relação: a providência cautelar tem lugar sempre que a interdição
imposta possa vir a ser decretada como sanção do crime imputado. Se o art. 47 do
Código Penal prevê as penas de interdição temporária de direitos — tais como
a proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de

6
GREVI et al. Libertà personale e ricerca della prova nell’attuale assetto delle indagini preliminari, p. 155.

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 113

mandato eletivo; a proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que


dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do Poder Público;
a suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo; e a proibição
de frequentar determinados lugares —, seria lógico que a imposição da medida
cautelar guardasse vinculação com eventual restrição de direitos a ser imposta.
Nesse aspecto, sente-se a omissão em se prever específica cautelar de suspensão
de habilitação para dirigir, que somente poderá ser executada como pena restri-
tiva de direitos, após o trânsito em julgado da condenação. Por mais grave que
seja o crime cometido na direção de automóvel, não existe a possibilidade de se
impor a suspensão cautelar da habilitação e resta esperar a adoção de providên-
cias administrativas para se alcançar essa finalidade ou que se pratique infração
prevista na Lei nº 9.503/97. O Código de Trânsito Brasileiro, em seu art. 294, prevê,
exclusivamente para os crimes de trânsito, a possibilidade de o juiz, em qualquer
fase da investigação ou da ação penal, havendo necessidade para a garantia da
ordem pública, decretar, como medida cautelar, a suspensão da permissão ou
da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção.
Se o juiz antevê a possibilidade de, a título de efeito da condenação, decretar
a perda de cargo, poderá, por coerência, determinar, cautelarmente, a suspensão
do exercício da profissão. Lamentavelmente, não se previu a suspensão do poder
familiar, que poderia anteceder a decretação da incapacidade para o exercício do
pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão,
cometidos contra filho, tutelado ou curatelado (art. 92, II, Código Penal). É exem-
plo de defeito de coordenação legislativa, em que não se ajustam as medidas
cautelares aos efeitos da condenação e às penas passíveis de serem impostas ao
final do processo. Deveria o legislador ter em mente a necessidade de se prever
medida cautelar sempre que a providência interditiva ou proibitida imposta puder
ser decretada, ao final, como efeito da condenação ou como sanção penal.
Conquanto omissa a regulamentação das medidas cautelares, não devem
ser aplicadas se o fato ocorreu na presença de uma causa de exclusão da ilicitude
ou de culpabilidade. O argumento assenta-se na prescindibilidade da providência,
na medida em que o resultado final do processo, de acordo com juízo prognóstico,
tende a ser favorável ao réu. Ao caso, emprega-se, por analogia, as disposições
contidas nos artigos 310, parágrafo único e 314, ambos do CPP, que dispensam a
decretação da prisão preventiva se o juiz verificar, pelas provas constantes dos autos,
ter o agente praticado o fato sob o pálio de excludente ou dirimente. Nem se
diga que a vedação à prisão preventiva não importaria em idêntica proibição de
aplicação das medidas cautelares, em razão do maior grau de coerção da primeira

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em confronto com as últimas. A questão é analisada não pelo nível de coerção


admissível nos casos em que se pratica o crime sob o amparo de causa de justifi-
cação, mas sim pela desnecessidade de qualquer restrição em situações com forte
indicativo de que serão concluídas com provimento absolutório.
As medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente.
Tudo dependerá do caso concreto e da melhor forma de se resguardar as exigências
cautelares do processo. De acordo com o grau de coercitividade, o recolhimento
domiciliar posta-se como medida mais aflitiva e o estabelecimento simultâneo de
outras proibições e obrigações pode configurar excesso. Por seu turno, o monito-
ramento eletrônico é capaz de detectar se o acusado cumpre adequadamente a
obrigação de recolher-se ao domicílio e a cumulação das duas medidas cautelares
mantém-se no padrão de aceitação pelos critérios de adequação e proporcionali-
dade. A imposição da fiança traz em si a obrigação de comparecimento a todos os
atos do processo e de comunicação de mudanças de endereço, além da exigência
de indicação do local onde será encontrado, quando do afastamento de sua resi-
dência por período superior a oito dias (artigos 327 e 328 do CPP), a exemplo da
caución juratoria do direito uruguaio.7 As obrigações acessórias da fiança suprem
a efetividade de algumas cautelares, tal como o comparecimento periódico em
juízo e a proibição de ausentar-se da comarca, razão pela qual seria desnecessária
a aplicação cumulativa de medidas.
As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento
das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da
autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. Ao contrário
do direito italiano, persistiu a possibilidade de atuação sem provocação do magis-
trado. A Corte Costituzionale, no julgamento da Cassazione penale, sezione feriale, 6
settembre 1990 – 2 novembre 1990, n. 2668, definiu assim a questão:

L’adozione di qualsivoglia misura cautelare sia da parte del giudice delle


indagini preliminari sia da parte del giudice che procede nelle ulteriori
fasi del giudizio deve essere sempre preceduta dalla richiesta del Pubblico
Ministero, il quale deve altresì presentare al giudice competente gli
elementi sui quali la richiesta si fonda. Ne consegue che il giudice del
dibattimento non può, nel corso o a conclusione di esso, emettere,
a pena di nullità assoluta, un provvedimento restrittivo nei confronti
dell’imputato, senza che vi sia stata richiesta del Pubblico Ministero, pur
in presenza di tutte le condizioni previste dalla legge per l’adozione di un
provvedimento del genere.

7
RESTUCCIA. El proceso penal uruguayo, p. 102.

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A opção legislativa, passível ou não de críticas, teve por propósito reforçar


a posição do juiz como órgão decisório em matéria de liberdade. Se não é reco­
mendável possa o juiz agir de ofício, sob pena de malferir a imparcialidade, a
possibilidade de atuação, em situações limites, a despeito da inércia do órgão
acusatório, reforça o poder de tutela a ele conferido. Não se trata de poder geral
de cautela porque encontra limites nas restritas e insuficientes hipóteses normati-
vamente estatuídas pela legislação processual. Nesse aspecto, optou o legislador,
ao contrário da disciplina do vigente CPC,8 por não admitir a adoção de cautelar
genérica, além daquelas previstas no rol do art. 319, passível de ser amoldada ao
caso concreto sempre que parecer mais adequada do que aquelas expressamente
indicadas. A opção, se por um lado restringe a atuação do juiz em benefício da
liberdade do acusado, que só pode tê-la limitada em restritas hipóteses legais,
falha em razão da parca e pobre previsão do reduzido rol, o qual poderia ser
ampliado significativamente se não fosse a falta de criatividade de quem se cinge
a copiar padrões alheios. Basta ver que, em pleno século XXI e diante da profusão
de crimes cibernéticos, não se estatuiu nenhuma restrição ao uso de internet ou
da tecnologia da informação, a título de medida cautelar.
A decretação de medidas cautelares está sujeita ao contraditório prévio, res-
salvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da providência. Sempre
que possível, o defensor deverá ser ouvido para apresentar razões de fato e de
direito sobre a adequação e necessidade da medida requerida. Poderá solicitar a
aplicação de nenhuma medida ou de outra menos gravosa, exibindo documentos
indicativos da correição de sua posição. Isso instruirá o magistrado na sua decisão,
baseado na lógica do sacrifício mínimo.
É possível que a prática forense encaminhe-se pela via do contraditório
diferido, em que se determina a medida cautelar a ser aplicada e, em seguida,
colhe-se a manifestação do acusado sobre a conveniência da escolha feita. Seria
o contrário do que sucede na seara do processo civil, em que a praxe judiciária
assenta-se no diferimento do exame de liminares e tutelas antecipadas para após
a apresentação de contestação. A possível ocorrência do contraditório posposto à
imposição da medida cautelar, a despeito de contrariar determinação legal, não
deve ser absolutamente proscrita, haja vista a urgência que pode surgir no caso

8
“Art. 798. Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II
deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando hou-
ver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão
grave e de difícil reparação”.

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em análise. Embora se espere que as situações de urgência somente ocorram na


decretação de prisão preventiva, a surpresa que não se coaduna com o contradi-
tório prévio pode verificar-se em outras medidas cautelares, sobretudo naquelas
que visam a proteger pessoas (proibição de manter contato e de frequentar deter-
minados lugares). Outrossim, é provável que Aury Lopes Júnior esteja certo ao
afirmar que “o maior espaço para o contraditório surgirá nos casos em que é pedida
a substituição, a cumulação ou mesmo a revogação da medida e a decretação da
preventiva”.9
O pedido de imposição de medida cautelar deve ser instruído com os docu­
mentos necessários. Podem nem ser todos os documentos e provas coletados
no procedimento em que se apura a infração penal, mas é preciso que estejam
presentes todos os elementos a favor do acusado, para que se permita produ-
zir memorial defensivo. Obviamente, para garantir eventual segredo existente
na fase policial e não comprometer a investigação em andamento, as provas
que sejam indispensáveis à concretização de diligências em curso poderão ser
temporariamente não apresentadas, o que não contrasta com o teor da Súmula
Vinculante nº 14. O contraditório não tem oportunidade quando não é possível
salvaguardar a imprevisão requerida pela medida.
Em caso de descumprimento da determinação judicial, o juiz, de ofício ou
mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante,
poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decre-
tar a prisão preventiva.10 Mas, em regra, a prisão preventiva somente será deter-
minada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar. É
o que se denomina de princípio da graduação. A custódia carcerária deve estar
envolvida em um tipo de presunção de não necessidade sempre que se optar por
medida mais branda, porque se trata do último recurso colocado à disposição
do juiz. Cuida-se de opção baseada no fato de que as exigências cautelares não
podem ser satisfeitas por outras medidas. Além disso, o juiz poderá revogar a
medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que sub-
sista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

9
LOPES JR. A inserção do contraditório no regime jurídico das medidas cautelares pessoais. Boletim
do IBCCrim, p. 5.
10
Em sentido contrário, posicionando-se pela impossibilidade de conversão em prisão preventiva
para as infrações com pena máxima inferior a quatro anos: DEZEM. Medidas cautelares pessoais:
primeiras reflexões. Boletim do IBCCrim, p. 16.

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4  Escala de coercitividade
Considerando a compleição das diversas medidas cautelares, algumas de
caráter detentivo, outras com aspecto proibitivo, através das quais se exterioriza
o princípio da graduação, pode-se estabelecer relação de preponderância entre
elas, tendo como parâmetro a progressão aflitiva que elas provocam. A deter-
minação do nível de coercitividade gerado pelas medidas cautelares é útil para
selecionar, dentre as numerosas hipóteses, aquela que melhor cumpre o papel
assecuratório desejado no caso concreto. Na Itália, exemplificativamente, enten-
deu-se que a medida de suspensão do exercício de cargo ou função é menos pre-
judicial do que o recolhimento domiciliar.11
A adequação da medida cautelar está condicionada à gravidade do crime,
às circunstâncias do fato e às condições pessoais do acusado, de forma que, a
depender desses fatores, será escolhida a restrição com maior ou menor grau
de coercitividade. Em caso de descumprimento da medida cautelar, antes de se
recorrer à prisão preventiva, que ocupa posição preeminente na linha graduada
de coerção, pode-se identificar opções menos gravosas do que o cárcere, porém
mais severas do que a medida até então imposta e descumprida.
Dentro dessa ideia de hierarquia aflitiva e sem se esquecer da influência ita-
liana, ocupa a posição mais baixa o comparecimento periódico em juízo (obbligo
di presentazione), a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, a
proibição de manter contato com pessoa determinada (divieto di avvicinamento
ai luoghi frequentati dalla persona offesa) e a proibição de ausentar-se da comarca
(divieto ou obbligo di dimora) ou do país (divieto di espatrio). A fiança, que se resume
a ato único praticado pelo acusado e pode ser integralmente restituída ao fim do
processo, de modo que, em não havendo condenação, representa temporária pri-
vação de recursos financeiros, de acordo com o nível crescente de coerção, posta-se
em segundo lugar. Não pode ser incluída no primeiro grupo porque, aliada ao
aspecto pecuniário, a imposição da fiança traz em si a obrigação de compareci-
mento a todos os atos do processo e de comunicação de mudanças de endereço,
além da exigência de indicação do local onde o acusado será encontrado quando
do afastamento de sua residência por período superior a oito dias (artigos 327
e 328 do CPP). A suspensão do exercício de função pública ou de atividade de

11
Cassazione penale, sezione II, 17 dicembre 2003, n. 48250: In tema di applicazione di misure cautelari,
è legittimo il provvedimento con cui il G.I.P., a fronte della richiesta di applicazione della misura
degli arresti domiciliari, applichi invece di propria iniziativa la meno grave misura della interdizione
dall’esercizio dei pubblici uffici.

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118 Carlos Henrique Borlido Haddad

natureza econômica ou financeira (Sospensione dall’esercizio di un pubblico ufficio


o servizio e divieto temporaneo di esercitare determinate attività professionali o
imprenditoriali) integra o terceiro grupo, de acordo com o nível crescente de coer-
ção. O trabalho, ao lado da família e da escolha de uma crença, representa o tripé
capaz de fornecer sentido à existência do homem. Toda providência que ataque,
impeça ou fragilize o exercício profissional constitui significativo obstáculo para
se alcançar a felicidade. Ocupando grau superior na escala de coercitividade,
menciona-se o recolhimento domiciliar (arresti domiciliari) e a internação provisó-
ria do acusado (custodia cautelare in luogo di cura), voltada especialmente para o
inimputável ou semi-imputável. As duas medidas implicam cerceamento da liber-
dade, em menor ou maior grau, e mais se aproximam da custódia carcerária, que
desponta no ápice do rol de aflitividade.
A monitoração eletrônica merece ser alijada da escala proposta, pois não
deve ser considerada como medida cautelar, sem embargo de assim enquadrada
pela legislação processual. Presta-se a exercer o papel de cautelar da cautelar, isto
é, o instrumento necessário a assegurar a utilidade das outras medidas recém-­
surgidas. Não há nenhum propósito em se impor a monitoração eletrônica isola-
damente, dissociada de outras medidas cautelares, porquanto não constitui uma
providência por si só produtora de resultados úteis e de finalidade palpável. Não
é temerário dizer que consiste na única cautelar destituída de autonomia e total-
mente dependente de outras determinações.
O estabelecimento de gradação entre as medidas cautelares diversas da pri-
são tem utilidade para moldar a miríade de situações que exigirão a imposição de
providências assecuratórias extracarcerárias. O juiz deverá verificar a específica
idoneidade de cada uma das medidas existentes em relação à sua natureza e ao
grau de exigência cautelar a ser satisfeito no caso concreto, sem se esquecer do
menor sacrifício a que se deve submeter o réu.

5  Cautelares em espécie
As medidas cautelares pessoais introduzidas pela Lei nº 12.403/11, como já afir-
mado, em sua maioria, não representaram inovação em nosso ordenamento jurídico
e não contemplaram situações óbvias em que se exige a adoção de providências
acautelatórias, por exemplo, quanto à utilização de arma de fogo e relativamente
ao uso de automóvel e da internet. Não trouxeram, também, instruções detalha-
das para a sua aplicação, à exceção da fiança, cuja regulamentação minuciosa
remonta ao CPP da década de 1940. Em face da parcimônia legislativa na defini-
ção do conteúdo das novas medidas cautelares, é necessário traçar os principais

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 119

pontos a serem observados na escolha judicial da providência adequada. A análise


seguirá a ordem crescente de coerção que envolve cada medida.

5.1  Comparecimento periódico em juízo


O texto legal não especifica o grau de periodicidade, se o comparecimento
será diário, semanal ou mensal e deixa a critério do magistrado estabelecer o prazo
e as condições da execução da medida. O comparecimento períodico em juízo
carece de significação jurídica e consiste em uma das medidas mais inócuas que
se poderia prever a título de tutela cautelar no processo penal. Não se trata de
inovação, porque essa inocuidade já era prevista como condição para o deferi-
mento da suspensão condicional da pena e do processo, nos termos do art. 78,
§2º do Código Penal e art. 89 da Lei nº 9.099/95. O obrigatório comparecimento
em juízo ou a qualquer outro lugar somente teria sentido se houvesse, associada
à medida, a ministração de cursos, a participação em palestras ou reuniões ou o
desempenho de atividade útil relacionada à reflexão da prática delituosa impu-
tada ao réu. O comparecimento, para assinar um livro, não exerce nenhum papel
motivador de condutas alheias, nem traz conhecimento ou ensinamentos para
quem é acusado de supostamente cometer infração penal.
Se o objetivo da medida é obter informações sobre onde pode o réu ser
encontrado, basta que se estabeleça a obrigação de, caso alterado o domicílio,
seja trazida a informação ao juízo. Se a pretensão da medida é verificar se o acu-
sado exerce atividade laboral, seria suficiente, após a obtenção da informação em
audiência ou por meio de petição, impor o dever de comunicar eventual desem-
prego ou mudança de ofício ou profissão. Se a aspiração é criar vínculo oficial
entre o acusado e a Justiça, útil seria que o liame formado gerasse resultados úteis
sob o aspecto social e pessoal, circunstância que repetidas assinaturas lavradas
no prédio do fórum não têm o condão de produzir.
Não é por outra razão que a limitação de fim de semana — pena restritiva de
direitos — prevê a ministração de cursos e palestras aos condenados, como tam-
bém a atribuição de atividades educativas durante o período em que deva per-
manecer em casa de albergado ou estabelecimento congênere. A simples estada
nesses locais, por curto período, não revela nenhum potencial ressocializador ou
educativo, tal como se percebe no comparecimento mensal em juízo.
Na vivência da magistratura federal, já se impôs o comparecimento em juízo em
lapso de tempo superior a um mês. A mais dilatada periodicidade justificou-se pelo
fato de o acusado não residir no município onde estava sediada a Vara Federal e
para que fosse feito o acompanhamento da medida diretamente no juízo onde o

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processo tramitava. Em outra oportunidade, dada a grande distância entre o local


de residência do acusado e a sede da Justiça Federal, determinou-se o compareci-
mento à Delegacia da Polícia Federal — mais próxima do réu — mediante prévia
combinação com a autoridade policial. A medida, a despeito de não prevista legal-
mente, é menos onerosa ao acusado e em nada se diferencia do comparecimento
em juízo, porque em ambas as instituições — Justiça Federal e Polícia Federal —
nada mais se fornecia do que um livro para ser subscrito pelo acusado. O Código
de Processo Penal italiano prevê, no art. 282, a obbligo di presentazione alla polizia
giudiziaria, ocasião em que o Juiz fixa os dias e o horário de apresentação perante
a autoridade policial, tendo em conta a atividade laboral do acusado e o lugar de
sua habitação.
Conquanto se defenda que a suspensão condicional do processo não com-
porta a imposição de medidas cautelares, por força da ausência de necessidade
de preservação da efetividade do processo,12 as condições estatuídas no art. 89 da
Lei nº 9.099/95 são idênticas a duas das medidas então previstas: comparecimento
em juízo e proibição de ausentar-se da comarca. Realmente, não exibem caráter
cautelar no procedimento em que são impostas, mas se equivalem no grau de
coercitividade, haja vista a similaridade das obrigações a que se vincula o réu.
O valor do comparecimento periódico apenas emerge quando seu des-
cumprimento é necessário antecedente à decretação da prisão preventiva. Em
havendo dúvida se a medida é suficientemente eficaz como sucedâneo da prisão
processual, a desobediência à imposição judicial é facilmente comprovável, em
face da ausência física do réu ao local determinado, e possibilita a substituição
pela custódia provisória.

5.2  Proibição de frequentar determinados lugares


A Lei nº 11.340/06, aplicável aos casos de violência doméstica, instituiu medidas
protetivas de urgência destinadas ao agressor. A regulamentação traz modalidades
de proibição de frequência e é mais detalhada do que as disposições do CPP. O
afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida nada mais
representa do que proibir a frequência a esses lugares. E a lei é clara ao dispor
que a proibição de frequentar determinados lugares tem por objetivo preservar a
integridade física e psicológica da ofendida.

12
OLIVEIRA. Atualização do processo penal: Lei nº 12.403, de 05 de maio de 2011. In: OLIVEIRA. Curso
de processo penal, p. 15.

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A inovação legislativa não esclareceu qual o fim específico da proibição de


frequência, porém admitiu fosse adotada a providência para evitar a reiteração
criminosa, do que se infere que, a depender da modalidade da infração, as restri-
ções geográficas assumirão conotações as mais diversas. Em âmbito federal, será
mais limitado o emprego dessa medida cautelar, em razão de a maioria dos crimes
não envolver o emprego de violência. Recomenda-se a proibição, por exemplo,
para torcedores que fazem uso de violência em estádios de futebol; usuários de
casas de diversão noturna que constantemente ingerem bebidas alcoólicas e, sob
o efeito da embriaguez, praticam lesões corporais; acusados que praticam crime
sob o efeito de substâncias entorpecentes, para os quais se proíbe a frequência a
notórias regiões de venda e consumo de drogas.
A imposição de afastamento da residência, como proibição de frequência
ao local de moradia do acusado, constitui uma medida bastante gravosa, pois
posterga direito fundamental — direito à moradia — e pode afetar profundamente a
socialização do acusado, especialmente se não possui condições financeiras que
lhe permitam refugiar-se em outro local. De qualquer forma, os direitos funda-
mentais da vítima comportam igual valor e colocam-se no mesmo status jurídico,
o que pode tornar indispensável a compressão de direitos do réu. A proibição de
frequentar a residência, portanto, deve limitar-se aos casos em que se mantém
o acusado distante das vítimas, para tutelar a integridade física delas e deve ser
sempre evitada se não há conflito que justifique priorizar determinados interesses.
A fragilidade e a insuficiência do sistema de justiça criminal são bem expostas
na fiscalização dessa medida proibitiva, cujo corriqueiro exemplo no Brasil extrai-se
da Lei nº 9.099/95. Para se deferir a suspensão do processo, condicionava-se à assun-
ção do compromisso de não frequentar determinados lugares, sob pena de se dar
continuidade ao feito. Determinações judiciais impunham a proibição e sempre se
fingiu que eram cumpridas até que expirasse o prazo de duração da suspensão. Se o
acusado não tivesse a infelicidade de ser preso, por motivo outro, ou sofrido algum
acidente no local cuja frequência era proibida, presumia-se que sempre observou
a ordem judicial, a despeito de nenhuma fiscalização sobre ele ter sido exercida.
Comparando-se as fugas dos presídios e das épocas de saídas permitidas pode-se
ter certeza de que fiscalização no país é uma quimera. Em 2008, no primeiro semes-
tre, 910 presos fugiram de dentro dos presídios. Por outro lado, 2.781 presos evadi-
ram durante as saídas temporárias ou atividades externas e 2.560 fugas ocorreram
no período que compreende o Natal e o Réveillon. Dessa forma, “no Brasil, a principal
forma de fugir da prisão é pela porta da frente, durante as saídas permitidas por lei,

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os chamados ‘saidões’”.13 Se não se consegue fiscalizar aqueles que se encontram


presos, que dirá dos acusados soltos submetidos a medidas cautelares?
Atualmente, com a previsão do monitoramento eletrônico, a fiscalização
pode tornar-se efetiva e ser realizada de maneira ordenada. Alternativamente, ha­
verá necessidade, ao menos, de se elaborar banco de dados em que constem os
acusados sobre os quais incide a proibição de frequentar determinados lugares
ou de manter-se recolhido à residência, para fins de fiscalização pela autoridade
policial. Caso contrário, a atual situação permanecerá intocada, em que a imposi-
ção judicial não se faz acompanhar de nenhuma forma de comprovação de que é
minimamente observada.
Ainda sobre a proibição de frequência, em data recente, noticiou-se que
cracker responsável por enviar milhões de spams valendo-se da internet foi preso
nos Estados Unidos. Sanfor Wallace, conhecido como o “rei do spam”, enfrentará,
entre outras acusações, a prática de desobediência à ordem judicial que o proibia
de acessar as redes sociais Facebook e Myspace.14 A proibição muito se assemelha
à vedação de frequentar determinados lugares, se concebermos o mundo virtual
como local de trânsito de pessoas. Diante da omissão legislativa quanto à vedação
de uso da internet para os acusados que praticam crimes cibernéticos, a medida
cautelar que poderia desempenhar esse papel seria a que proíbe a frequência a
certos lugares, nos quais se encaixa os infinitos sites da web.

5.3  Proibição de ausentar-se da comarca ou do país


A proibição de ausência ostenta caráter dúplice, a depender da região geo-
gráfica em que se restringe a liberdade de locomoção do acusado. A permanência
na comarca, afora a conotação indireta voltada para a aplicação da lei penal, tem
preponderância na conveniência da instrução criminal, a fim de garantir a pre-
sença do acusado aos atos processuais. Por sua vez, a proibição de ausentar-se
do país, como principal finalidade, visa a assegurar a aplicação da lei penal, o que
reflexamente garante a presença do acusado aos atos processuais, em benefício
da instrução criminal.
Na França, a medida cautelar analisada recebe o nome de liberté de dépla-
cement, em que o juiz proíbe ao acusado deixar limites territoriais determinados
ou mesmo um perímetro mais restrito, tal como sua residência (art. 138, 2-1 a 2-4, CPP).

13
SILVA. Monitoramento eletrônico de presos, p. 11.
14
“REI do Spam” é preso nos Estados Unidos. Disponível em: <http://origin.exame.abril.com.br/tecnologia/
noticias/rei-do-spam-e-preso-nos-estados-unidos>. Acesso em: 08 out. 2011.

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Percebe-se que ela mistura as cautelares nacionais de proibição de ausentar-se da


comarca e de recolhimento domiciliar. Tal como na regulamentação pátria, atri-
bui-se adicionalmente ao magistrado o poder de obrigar o acusado a entregar
documentos de identidade, notadamente o passaporte e a carteira de habilita-
ção, para tornar a fuga mais difícil.
Pode-se condicioná-la temporalmente, isto é, proibir o afastamento da comarca
somente por longos períodos, o que atenderia a conveniência da instrução crimi-
nal, por se resguardar a presença do réu aos atos instrutórios. Mas, salvo quando a
presença do réu coloca-se como indispensável à instrução, a exemplo da realização
do reconhecimento pessoal, obrigá-lo a comparecer aos atos processuais confi-
gura excesso. Ninguém melhor do que o acusado, sob a orientação do defensor,
para julgar se sua presença durante as audiências é útil à defesa. Se o próprio réu
não está preocupado com o desenrolar da instrução criminal, desde que existam
elementos suficientes que indiquem que não se furtará à aplicação da lei penal,
a determinação para que esteja na sede do juízo constitui injustificada obrigação.
Mais do que zelar pela aplicação da lei penal, a presença do acusado em juízo tem
nítida finalidade probatória, em razão da atração que o conhecimento do réu exerce.
O acusado, certamente, possui conhecimento preciso da reconstrução dos fatos
através do processo. Afinal, se culpado, terá sido o protagonista direto do crime. Por
essa razão, o conhecimento do acusado posta-se como atraente objeto no processo
penal e a história há mostrado ser corrente o emprego de métodos e técnicas, nem
sempre legítimos, para destruir o privilégio da informação e torná-la pública, mes-
mo sabendo que a representação da verdade pode ser desviada pelo interesse do
réu em não prejudicar-se. Obter a confissão a qualquer preço, submeter o acusado
a juramento e inferir do silêncio elementos prejudiciais de prova foram, no decor-
rer da história, medidas adotadas pelas autoridades encarregadas da apuração de
infrações penais. O princípio contra a autoincriminação, paulatinamente, impediu
fosse o réu condenado com base nesses expedientes ao resguardar o saber do acu-
sado contra intromissões desautorizadas e tornou-se o mais importante obstáculo
para evitar a acomodação investigativa.15 Portanto, deve-se ter cautela ao aplicar a
medida cautelar em comento com o fito exclusivo de provocar a presença do réu
às audiências.
Para a implementação da medida, a própria lei determina a necessidade de
se comunicar a proibição às autoridades encarregadas de fiscalizar as saídas do

15
DRIPPS. Against police interrogation: and the privilege against self-incrimination. The Journal of
Criminal Law and Criminology, p. 723.

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país, a fim de tornar eficiente o cumprimento da ordem judicial. A consecução da


comunicação é feita por meio da alimentação do Sistema Nacional de Procurados
e Impedidos (SINPI), gerenciado pela Coordenação Geral de Polícia de Imigração
(CGPI), implantado e executado pelos demais órgãos normativos centrais e utili-
zado, em procedimentos investigatórios, por todos os órgãos do Departamento
de Polícia Federal.
Segundo a Portaria nº 32/79 da Diretoria Geral do Departamento de Polícia
Federal, o SINPI reúne os dados de pessoas procuradas, envolvidas em procedi-
mentos investigatórios e impedidas de entrar ou sair do Brasil, consoante solicita-
ções de autoridade policiais, judiciárias e administrativas, nacionais e estrangeiras.
Incumbirá ao juiz que determinar a proibição de ausentar-se do país comunicar
alguma das Delegacias do Departamento de Polícia Federal para que se inclua
no sistema o respectivo impedimento. É necessário que sejam informados, como
requisitos mínimos para inclusão no sistema, o nome usado pela pessoa, a filiação
usada em cada nome, a data e local do nascimento, nacionalidade, número, data
e local de expedição do documento de identificação, o motivo do registro, no
caso, a proibição de ausentar-se do país, e qual a medida a ser adotada se locali-
zada a pessoa.

5.4  Proibição de manter contato com pessoa determinada


A proibição de manter contato com pessoa determinada faz parte do rol de
medidas previstas em outras legislações. O Bail Reform Act of 1984, nos Estados
Unidos, estabelece como obrigação do acusado avoid all contact with an alleged
victim of the crime and a with a potential witness who may testify concerning the
offense. No Brasil, a medida não é novidade porque a Lei Maria da Penha já vedava
o contato entre o acusado e a vítima de violência doméstica. Dispõe o art. 22, III,
“a” e “b” ser vedado ao agressor aproximar-se da ofendida, de seus familiares e
das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor,
como também manter contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por
qualquer meio de comunicação.
Muitas vezes, encontros fortuitos entre acusado e vítima são passíveis de ocor-
rer. Isso não implica tenha sido desrespeitada a medida cautelar, com risco de conver-
são em prisão preventiva. Será sempre necessário verificar se o réu agiu de maneira
consciente e voluntária, tal como se faz para aferir a existência de dolo tipificador
do crime, para forçar o encontro com a pessoa da qual deveria manter-se distante.
O estabelecimento de limite mínimo de distância, sem embargo da omissão legal,
pode ser validamente imposto como meio de garantir a efetividade da medida.

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A parca previsão legal não obsta seja integrado seu conteúdo com determinações
que lhe preencham a finalidade.

5.5 Fiança
Muito pode ser dito sobre a fiança, cuja minuciosa disciplina geraria comen-
tários proporcionalmente alongados. Releva destacar, no entanto, as disposições
recém-introduzidas e aquilo que normalmente não se encontra nos manuais de
processo penal.
O instituto da fiança foi revigorado, verdadeiramente vitaminado pela Lei
nº 12.403/11. A fiança, que, pelo menos desde a Lei nº 6.416/77 e até o ano de
1990 (Lei nº 8.035), havia perdido toda a sua importância no processo penal bra-
sileiro, em razão da instituição legal da liberdade provisória sem fiança do então
art. 310, parágrafo único do CPP, parece, agora, ressurgir das cinzas.16
A edição da nova regulamentação, descumprindo objetivo que deveria ser a
ela imanente, não corrigiu grave distorção no sistema da liberdade provisória. Por
força de manifesto equívoco constitucional, a fiança é vedada a crimes de racismo,
hediondos, tortura, drogas etc., sem nenhuma contrapartida, ou seja, sem o estabe-
lecimento de medidas cautelares mais rigorosas para essas infrações. Por outro lado,
crimes de menor ofensividade, a exemplo do abandono de incapaz e da supressão
ou alteração de marca em animais, admitem a liberdade provisória mediante fiança,
o que conduz a paradoxo insuperável. Para crimes inafiançáveis, cujo desvalor da
conduta e do resultado costuma ser superlativamente maior, concede-se liberdade
provisória sem fiança, isto é, sem dispêndio de nenhum valor, ao passo que, para
os delitos de menor lesividade, a imposição de fiança é condição quase obrigatória
para aguardar o julgamento do processo em meio livre. Em razão dessa distorção, a
tendência parece ser no sentido de se recorrer à fiança, isoladamente, para a gene­
ralidade dos delitos, e ao conjunto de outras cautelares, cumulativamente, para os
crimes em que seja vedada a fiança.17 Corre-se o risco de, em atenção à escala de
coercitividade, impor-se medida cautelar mais branda do que a fiança para infra-
ções que não a admitem e que provocam lesão mais significativa aos bens jurídicos.
A fiança é a única medida cautelar cuja decretação tem dupla subjetividade
ativa: tanto a autoridade policial quanto o magistrado, em face de a pena cominada

16
OLIVEIRA. Atualização do processo penal: Lei nº 12.403, de 05 de maio de 2011. In: OLIVEIRA. Curso
de processo penal, p. 21.
17
OLIVEIRA. Atualização do processo penal: Lei nº 12.403, de 05 de maio de 2011. In: OLIVEIRA. Curso
de processo penal, p. 26.

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ser ou não superior a quatro anos, detém poderes para fixá-la. As demais medidas
somente podem ser impostas pelo juiz.
Uma circunstância atinente à fiança, capaz de gerar questionamentos, diz
respeito ao estabelecimento de parâmetros com base no salário-mínimo. Dispõe
o art. 7º, IV da Constituição Federal que, sendo direito dos trabalhadores urbanos e
rurais, o salário mínimo, fixado em lei e nacionalmente unificado, não pode ser vin-
culado para qualquer fim. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI nº 1425/PE
(Rel. Min. Marco Aurélio, DJ, p. 1, 26 mar. 99), analisou a razão de ser da parte final
do inciso IV do artigo 7º da Carta Federal. Decidiu que não pode ser adotado o
salário-mínimo como índice de indexação, a fim de evitar que interesses estra-
nhos aos versados na norma constitucional venham a ter influência na fixação do
valor mínimo a ser observado. Em outra ocasião, o mesmo tribunal sedimentou
entendimento, no RE nº 237.695/SP (Rel. Min. Moreira Alves, DJ, p. 61, 31 mar. 00),
acerca da inconstitucionalidade da vinculação para que o salário-mínimo atue
como fator de atualização da multa administrativa, que variará com o aumento
dele, o que se enquadra na proibição do citado dispositivo constitucional.
Não é outra a situação da fiança estabelecida pela Lei nº 12.403/11. No caso
do CPP, utilizou-se o salário-mínimo como índice de atualização da fiança, que
variará anualmente com o aumento dele, o que incide na vedação constitucional
de vinculá-lo a qualquer fim.
De toda forma, o salário-mínimo, cuja existência remonta a 1º de maio de
1940, no governo de Getúlio Vargas, posta-se como o melhor parâmetro para
demar­cação dos valores da fiança, seja porque é corrigido com periodicidade
anual, seja porque tem longa existência e dificilmente desaparecerá do mundo
jurídico-econômico, como ocorreu com o BTN.
A fiança deve ser estabelecida com comedimento, para evitar que o mon-
tante exigido do acusado não seja superior ao prejuízo econômico decorrente
do crime, como também obstar a imposição de valor tão elevado que represente
indireta negativa da liberdade. Nenhuma lei, por melhor redigida que seja ou por
mais necessária que se mostre, resiste a interpretações que lhe neguem o sentido
ou lhe retirem a eficácia.18 Os parâmetros da fiança variam de um a 100 salários
mínimos, quando se tratar de infração cuja pena privativa de liberdade, no grau
máximo, não for superior a quatro anos e de 10 a 200 salários mínimos, quando
o máximo da pena privativa de liberdade cominada for superior a quatro anos.

18
O Juiz de Direito da Comarca de Itabaiana/SE fixou fiança de R$54.500.000,00 para acusado preso
por porte ilegal de arma de fogo, que confessara ter recebido R$2.000,00 para matar uma mulher
grávida de sete meses (Folha de S.Paulo, São Paulo, p. C3, 12 ago. 2011. Cotidiano).

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Como a situação econômica do acusado é fator essencial ao arbitramento da


fiança, ela poderá ser dispensada se apresentar hipossuficiência financeira ou ser
reduzida até o máximo de 2/3. Em caso contrário, pode-se elevá-la em até 1000
vezes, a ponto de alcançar o montante máximo, atual, de R$109.000.000,00.

5.6  Suspensão de atividade


A Constituição Federal assegura o livre exercício da atividade econômica e,
à primeira vista, a medida cautelar prevista no art. 319, IV do CPP poderia parecer
inconstitucional. Entretanto, embora seja assegurado a todos o livre exercício de
qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos
públicos, o art. 170, parágrafo único da Carta Magna ressalva os casos previstos
em lei. Eis aí a autorização para que se restrinja o exercício de atividade profissio-
nal pela lei processual penal.
A redação legal do art. 319, VI do CPP induz a crer que a suspensão do exer-
cício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira
somente será determinada para fins de se evitar reiteração delituosa, mas não
se duvida de que a medida também poderá ser imposta para conveniência da
instrução criminal. A uma, porque as medidas cautelares, em regra, destinam-se a
assegurar a aplicação da lei penal e o êxito da investigação ou da instrução crimi-
nal, consoante dispõe o art. 282, I do CPP. A duas, porque a restrição da suspensão
de atividade para a única finalidade de se evitar a prática de novos crimes redun-
daria, quase que automaticamente, na inflição da prisão preventiva sempre que
houvesse interesse probatório em torno do exercício da atividade profissional. É
inconcebível que se opte por medida mais gravosa — prisão preventiva — para
atender à conveniência da instrução criminal, nos casos em que a suspensão da
atividade profissional seja suficiente para se alcançar igual desiderato. A específica
finalidade instituída no art. 319, VI do CPP teve por objetivo apenas esclarecer que
a medida cautelar poderia ser empregada para impedir a continuidade na prática
das infrações penais. E para atender inequívoca determinação legal, instituída no
já referido art. 282: nos casos expressamente previstos, pode-se aplicar medida
cautelar para evitar a prática de infrações penais. A suspensão do exercício de
função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira é uma das
expressas previsões do art. 319 do CPP.
Na França, sob a denominação de contrôle judiciaire, que significa o complexo
de atos do juiz praticados para garantir o êxito da instrução criminal ou a título de
medidas assecuratórias, há previsão da suspensão de atividades profissionais. O
juiz pode ordenar, por três meses ou mais, o fechamento de estabelecimento ou

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de parte dele, desde que o acusado seja possuidor, gerente ou preposto de casa de
prostituição (art. 706-36, CPP). Também é possível determinar o fechamento
de hotéis, bares, restaurantes, clubes, danceterias e casas de espetáculo nos quais
o acusado foi encontrado tentando destruir provas, exercendo pressão sobre tes-
temunhas ou favorecendo a continuação de sua atividade ilícita.19
Na Itália, a suspensão de atividade não se aplica aos cargos eletivos, preen-
chidos por eleição popular direta, por expressa proibição do art. 289, comma 3 do
CPP. Não poderia a vontade judicial substituir-se à vontade popular para definir
quem poderia ocupar cargos políticos. No Brasil, não houve ressalva similar e a sus-
pensão alcança função pública, genericamente considerada, e atividade de natu-
reza econômica ou financeira. Portugal apresenta situação similar à brasileira, haja
vista que a específica medida cautelar abrange “profissão, função ou actividade,
públicas ou privadas” (art. 199º). No entanto, o Tribunal Constitucional, ao lavrar
o Acórdão nº 41/2000, decidiu interpretar a norma constante da alínea “a” do nº 1
do artigo 199º do Código de Processo Penal como não abrangendo os titulares de
cargos políticos.
Não se pode conceber que a opção pela nomenclatura “função pública” revele
a intenção de alcançar apenas o restrito conceito de Direito Administrativo: ato ou
conjunto de atos inerentes ao exercício de atribuições da Administração, ao qual
não corresponde cargo ou emprego. Duas são as distintas modalidades de função:
a primeira delas refere-se à função exercida por servidores contratados com base no
artigo 37, IX da CF, temporariamente, sem a exigência de concurso público, consi-
derando-se o caráter emergencial da contratação; a segunda trata-se de função de
natureza permanente, de livre provimento e exoneração, desempenhada por titular
de cargo efetivo, da confiança da autoridade que a preenche. Refere-se a encargos
de direção, chefia e assessoramento e distingue-se do cargo em comissão por não
poder ser preenchida por alguém estranho à carreira, alheio ao serviço público. Tal
função é, portanto, reservada aos servidores de carreira.
A função pública prevista na Lei nº 12.403/11 alcança mandato eletivo, car-
gos efetivos e comissionados, emprego público, além da própria função, como
atividades desempenhadas por funcionário público, o qual, para os efeitos penais,
é aquele que, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, em-
prego ou função pública, como prescreve o art. 327 do Código Penal. O dispositivo
também atinge quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal,
e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada

19
BOULOC; LEVASSEUR; STEFANI. Procédure pénale, p. 591.

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 129

para a execução de atividade típica da Administração Pública (art. 327, §1º, CP). A
interpretação autêntica aplicável ao direito penal não deve ser desprezada por se
tratar de processo penal.
Em se tratando de função pública, a suspensão determinada não pode impor­
tar em supressão de remuneração ou do auferimento de renda. Em primeiro lugar,
porque não há determinação legal que imponha a cessação do pagamento de
salário. Em segundo lugar, porque, devido à singeleza da regulamentação do CPP,
deve-se recorrer a outras fontes para extrair a estrutura do instituto, e as normas
integradoras não preveem a falta de remuneração. O recurso à Lei nº 8.112/90,
como manancial mais adequado, faz com que se afaste a supressão de remune-
ração ou renda. Isso porque o art. 147 estabelece que a autoridade instauradora
do processo disciplinar poderá determinar o afastamento do exercício do cargo,
a fim de que o servidor não venha a influir na apuração da irregularidade, sem
prejuízo da remuneração.
Cuidando-se de atividade econômica, o juiz precisa ser cauteloso em deter-
minar a suspensão da atividade do empresário ou a relação de emprego regida
pela CLT. Corre-se o risco de impedir o acusado de obter o sustento próprio e
da família mediante o exercício de atividade remunerada e de substituir-se ao
empregador na definição se o acusado deve ou não continuar a prestar-lhe servi-
ços. Por isso, é recomendável que a suspensão de atividade somente ocorra nas
situações em que a atuação empresarial seja, em si, ilícita ou, comparativamente
à atividade negocial desenvolvida de forma regular, represente maior percentual.
Cite-se o exemplo daquele que mantém casa de prostituição, do acusado que
se vale de clínica ou consultório médicos para a realização de abortos ou do réu
que constituiu estabelecimento comercial de fachada para realizar lavagem de
dinheiro. Por outro lado, a sonegação de tributos pelo empresário não pode, em
regra, implicar a paralisação das atividades comerciais, nem a prática de peculato
de pequena monta justifica o afastamento do servidor público. Em situações tais,
a manutenção da atividade profissional pode gerar o benéfico efeito de possibili-
tar ao acusado parcelar ou quitar o débito, como também reparar o dano oriundo
do crime. Não se pode olvidar que a opção pela continuidade do exercício da
profissão depende da prognose de que não haverá a perpetuação das infrações,
nem existirão entraves à coleta probatória, postos pelo acusado que se mantém
em atividade. Autoriza-se a continuidade do exercício de função pública ou de
atividade de natureza econômica ou financeira desde que não sirva como favore-
cimento à continuação de atividades ilícitas.
Não obstante a ausência de expressa referência do texto legal, a determina-
ção judicial de suspensão de atividade pode ser imposta com limitação parcial de

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poderes ou de atuação no ofício ou na profissão interditada. O objetivo é selecionar


medida cautelar que represente menor ônus ao acusado, mas que seja bastante
para os fins de cautela para o qual foi imposta. Isso significa que a suspensão de
atividade não é, necessariamente, em caráter integral. Se o servidor público que
desempenha papel de ordenador de despesas é acusado de infrações praticadas no
exercício dessa atribuição, poderá dela ser cautelarmente afastado, sem prejuízo de
permanecer em atividade que não envolva pagamentos de contas públicas. Tudo
dependerá das exigências de cautela do caso concreto e em atenção ao sacrifício
mínimo a que se deve submeter o acusado. Deve-se ter em mente, ainda, que o
afastamento do servidor público de suas atribuições, sem prejuízo da remuneração,
importa em ônus para o Estado, que despende recursos financeiros para quitar os
vencimentos, mas não recebe a contraprestação laboral. Recomenda-se, portanto,
que somente nas hipóteses em que não for possível manter o servidor público no
exercício de outras atribuições funcionais deverá ser determinado o afastamento
integral das atividades.
Como naturalmente tem ocorrido, a inovação legislativa não faz referên-
cia às pessoas jurídicas, o que não significa que estejam alijadas da sujeição às
medidas cautelares. No direito francês, as medidas cautelares especialmente
refe­renciadas às pessoas jurídicas consistem no depósito de caução ou na cons-
tituição de garantias pessoais ou reais destinadas a garantir indenização à vítima.
Excepcionalmente, permite-se a aplicação da proibição de emitir ordens de paga-
mento ou de exercer certas atividades profissionais, medidas impostas com maior
comedimento porque normalmente são concebidas como penas.20
A providência cautelar estatuída no art. 319, VI do CPP é perfeitamente
aplicável à pessoa jurídica, no que tange ao exercício de atividade econômica ou
financeira. Ao lado da fiança, trata-se das únicas medidas cautelares aptas a serem
impostas, não apenas ao representante legal da pessoa jurídica, mas ao próprio
ente abstrato.
A decisão que determina a suspensão deve ser comunicada ao órgão público
competente ou entidade de classe, para que fiscalizem a interdição temporária do
exercício da atividade.
A suspensão não pode funcionar como antecipação de pena, travestida sob a
forma de lucros cessantes, mas sim como medida cautelar que assegure o resul-
tado do processo criminal em caso de condenação. Se o estabelecimento comercial
desenvolve atividade ilícita que, por meio de juízo prognóstico, será penal­mente
imputada ao acusado, justifica-se a precoce interdição, fazendo cessar conduta à

20
BOULOC; LEVASSEUR; STEFANI. Procédure pénale, p. 548.

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 131

margem da lei, de maneira antecipada, anteriormente ao trânsito em julgado e


ao definitivo reconhecimento da condição de culpado. Se, em decorrência desse
mesmo juízo prognóstico, o magistrado antevê a possibilidade de decretação da
perda do cargo, como autoriza o art. 92 do Código Penal, a suspensão da função
pública é quase um antecedente lógico. Nesse aspecto, deverá verificar não ape-
nas o tipo de infração praticada, mas o montante da pena que poderá ser imposto.
Em princípio, aparenta-se descabida a suspensão de função pública se a pena a ser
aplicada limitar-se a menos de um ano, hipótese em que não seria cabível a perda
do cargo, função pública ou mandato eletivo. Por que afastar o acusado da fun-
ção pública que exerce se, ao final, após o trânsito em julgado da condenação, ele
regressará à atividade profissional? Se não houver imperiosas razões probatórias,
a imposição da medida cautelar violará o grau de proporcionalidade que habitual-
mente se requer nesses casos.

5.7  Internação provisória


A internação provisória mais se assemelha à aplicação transitória de medida
de segurança do que propriamente providência cautelar. Foi colocada junto às
medidas cautelares por opção sistemática do tipo analógica, mas apresenta natu-
reza, pressupostos e conteúdo diverso.
É aplicação de medida de segurança antecipadamente.
Ela é bastante similar à internação prevista no art. 149 do CPP, mas se diferen-
ciam porque esta pressupõe a superveniência da inimputabilidade, ao passo que
aquela se deu antes do processo judicial. A legislação anterior admitia a inter­nação
provisória apenas se a doença mental fosse superveniente à prática da infração
penal, o que deixou de ser limitado pela ampla previsão da nova medida cautelar.
O pressuposto dessa medida não é o cometimento de infração penal, mas,
seguindo o esquema do tipo de autor, o fato de pertencer a uma das categorias
do catálogo do art. 26 do Código Penal: o agente portador de doença mental ou
desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que era, ao tempo da ação
ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento.

5.8  Recolhimento domiciliar


A nova disciplina colocou o recolhimento domiciliar como medida autônoma
de coerção, alternativamente à prisão preventiva, tal qual modalidade execu-
tiva extracarcerária da custódia cautelar. A prisão domiciliar durante o curso do

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processo, que, até então, não havia sido incorporada pela legislação pátria, teve
expressa contemplação na Lei nº 12.403/11, simultaneamente com o recolhi-
mento domiciliar. Ao passo que a prisão domiciliar prevista no CPP é sucedânea
da prisão preventiva, porém executada de maneira atenuada, porque expiada em
residência e fundada em razões humanitárias, o recolhimento domiciliar é, por
si, medida autônoma que faz pressupor a dispensa do rigor do acautelamento
em cárcere. Por isso, o recolhimento domiciliar surge como melhor alternativa ao
cárcere, medida de acautelamento prévio e anterior à decretação da preventiva,
podendo “até ser imposta independentemente de anterior prisão em flagrante,
mas, segundo nos parece, mais adequada se revelaria como substitutiva da prisão
em flagrante”.21
No direito espanhol, existe a figura da prisión atenuada, um misto de prisão e
recolhimento domiciliares. Consiste numa atenuação das condições da prisão
preventiva, obriga a permanência do acusado no próprio domicílio, com vigilân-
cia que se considere necessária e a possibilidade de saídas durante as horas indis-
pensáveis para o exercício da profissão.22 Nos Estados Unidos, a medida cautelar é
conhecida como home confinement e pode obrigar a permanência na residência
por algumas horas ou durante todo dia. Normalmente, a medida é acompanhada
do monitoramento eletrônico.23
A nova regulamentação previu o recolhimento domiciliar no período noturno
e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho
fixos. O Código de Processo Penal uruguaio, por exemplo, prevê duas modalidades
de recolhimento domiciliar: de tiempo completo e de tiempo limitado. O recolhimento
domiciliar integral veda a saída do acusado de sua residência pelo prazo máximo
de três meses. Por seu turno, o recolhimento limitado abrange determinados dias
e horas e não pode estender-se por mais de seis meses. Normalmente, a medida
substitutiva ao cárcere é executada nas horas em que o acusado não desempenha o
regime laboral ordinário.24 O legislador brasileiro optou pelo reco­lhimento limitado,
isto é, somente durante o período em que o acusado não desem­penha atividade
laboral, o que se dá, comumente, durante o período noturno e nos finais de semana.

21
OLIVEIRA. Atualização do processo penal: Lei nº 12.403, de 05 de maio de 2011. In: OLIVEIRA. Curso
de processo penal, p. 20.
22
NAVARRETE. Derecho procesal penal, p. 274.
23
BRANHAM; KRANTZ. Sentencing, corrections and prisioners’ rights, p. 69.
24
RESTUCCIA. El proceso penal uruguayo, p. 123.

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 133

No entanto, caso o réu possua jornada de trabalho incomum, tal como o vigilante
que desempenha suas atribuições no período noturno ou o engenheiro de platafor-
mas marítimas que labuta durante sucessivos dias, o recolhimento domiciliar deverá
adaptar-se à rotina profissional do acusado, para alcançar o período extralaboral.
O recolhimento domiciliar impõe restrição à liberdade de locomoção, em
caráter mais severo do que as demais cautelares que estabelecem proibições,
tanto é verdade que, na Itália, permite-se o desconto dos dias em que vigorou
a medida cautelar no cômputo da pena, a título de detração. Considera-se que o
acusado que permanece em residência encontra-se em estado de custódia caute-
lar. A Lei nº 12.403/11 foi omissa na previsão da detração, porém, diante do grau
ocupado pelo recolhimento domiciliar na escala de coercitividade, o desconto
do tempo expiado durante a execução da medida cautelar deve ser abatido no
montante da pena imposta. O número de horas em que o acusado permaneceu
em recolhimento domiciliar deve ser descontado na mesma proporção, ou seja,
pelo equivalente de horas de cumprimento de pena.
E se o recolhimento domiciliar assemelha-se à prisão preventiva, a ponto
de se abater os dias recolhidos de eventual pena imposta, a cumulação dessa
medida cautelar com a fiança afigura-se excessiva, a despeito da ausência de
expressa proibição legal. O mesmo raciocínio aplica-se à internação provisória,
pois o caráter coercitivo das medidas, somente menor do que a prisão preventiva,
dispensa a dupla apenação. Se a fiança tem por objetivo assegurar o compareci-
mento do acusado aos atos do processo e evitar a obstrução do seu andamento,
a permanência dele em local certo mostra-se suficiente para atingir a finalidade
do instituto. A imposição da fiança somente se justificaria, nos casos de recolhi-
mento domiciliar e internação provisória, se houver, de algum modo, resistência
injustificada a alguma ordem judicial, como forma de compelir o acusado ao cum-
primento da determinação. A situação, no entanto, seria de rara ocorrência, pois,
em regra, a omissão do réu em atender determinações judiciais ou está amparada
pelo princípio contra a autoincriminação ou se resolve em ônus processual que
será por ele suportado.

5.9  Monitoração eletrônica


De todas as medidas cautelares, o monitoramento eletrônico é o único que
não apresenta aplicação imediata, pois depende da utilização de tecnologia e
equipamentos que necessitam ser adquiridos.
A medida cautelar é a versão moderna do Panóptico, teoria formulada pelo
jurista britânico Jeremy Bentham, no final do século XVIII, a partir da idealização

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de modelo arquitetural aplicável às prisões inglesas, com o intuito de aumentar


o controle estatal sobre seus detentos. Trata-se de construção em forma de anel,
que contém, na parte central, uma torre vazada de largas janelas que se abrem
sobre a face interna do anel. A parte periférica é dividida em celas que atraves-
sam toda a espessura da construção e contêm duas janelas, uma para o interior,
correspondendo à janela da torre, e outra para o exterior, permitindo que a luz
atravesse a cela. Um único vigia na torre central seria suficiente para fiscalizar todos
os detentos, pois, pelo efeito da contraluz, percebe-se da torre, recortando-se
sobre a claridade, as silhuetas nas celas da periferia.25 O panoptismo atende per-
feitamente ao princípio da vigilância total, como pretende fazer a monitoração
eletrônica.
A ideia do monitoramento eletrônico surgiu na década de 60, com o Professor
da Universidade de Harvard Ralph K. Schwitzgebel, que criou o dispositivo como
alternativa à custódia de criminosos.26 O projeto de monitoração eletrônica per-
maneceu sem aplicação por quase vinte anos e, somente em 1977, a área jurídica
foi seduzida pela proposta, quando o juiz de Albuquerque, Novo México/EUA,
Jack Love, inspirado por uma edição da série Spiderman, pediu ao perito em ele-
trônica Michael Gross para projetar e manufaturar dispositivo de monitoramento
que fosse afixado ao pulso, tal com visto na história em quadrinhos. Em 1983,
após realizar testes em si mesmo com o bracelete, este juiz sentenciou o primeiro
criminoso ao uso do dispositivo, dando o passo inicial para a implementação
do monitoramento eletrônico em larga escala nos Estados Unidos, de tal forma
que, em 1988, havia 2.300 presos monitorados e, dez anos mais tarde, cerca de
95.000.27 Progressivamente, países europeus interessaram-se pela monitoração
eletrônica e a Inglaterra, por meio do Criminal Act de 1991, aderiu à medida,
embora, somente em 1995, o sistema tenha sido posto em prática. Na França, a
Lei nº 97-11.59, de 19 de dezembro de 1997, instituiu a monitoração como moda-
lidade de execução das penas privativas de liberdade.28
No monitoramento eletrônico ativo, é afixado ao condenado um aparelho
transmissor, ligado a computador central,29 que registra os dados de localização

25
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 166.
26
PAPATHEODOROU. Le placement sous surveillance électronique des délinquants en droit penal
compare. Revue Pénitentiaire et de Droit Penal, p. 112.
27
MARIATH. Monitoramento eletrônico: liberdade vigiada.
28
PAPATHEODOROU. Le placement sous surveillance électronique des délinquants en droit penal
compare. Revue Pénitentiaire et de Droit Penal, p. 114-115.
29
OLIVEIRA. Atualização do processo penal: Lei nº 12.403, de 05 de maio de 2011. In: OLIVEIRA. Curso
de processo penal, p. 22.

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 135

do indivíduo. Através desse tipo de vigilância, confirma-se a presença do condenado


em sua casa, ou mesmo em outro local determinado pela Justiça, bem como as
horas previstas para a prática de determinados comportamentos, ou, pelo contrá-
rio, sua ausência do local previamente determinado, o que, consequentemente,
acarretará consequências a seu desfavor.30 Na vigilância eletrônica passiva, há
computador programado para efetuar chamadas telefônicas para os locais onde
os indivíduos comprometeram-se a permanecer. Tais ligações devem ser atendi-
das pelo próprio apenado, quando se procederá à conferência eletrônica do reco­
nhecimento de voz e à emissão de relatório.31 No sistema de segunda geração, o
vigiado porta um transmissor similar ao utilizado na vigilância eletrônica ativa,
denominado Galileo, que foi concebido em oposição ao GPS (Global Positioning
System) e confere maior precisão e controle. Para tanto, o dispositivo envia os
dados do movimento do indivíduo à central, o que dispara o alarme toda vez que
o vigiado se distancie do local determinado. Há, portanto, capacidade para con-
trole milimétrico da localização ocupada pelo indivíduo, bem como a delimitação
precisa do lugar e horário em que esteve.32 Na Suécia, o dispositivo está equipado
com um etilômetro para medir a taxa de alcoolemia e com um sistema de reco-
nhecimento vocal que permite a verificação da identidade da pessoa que utiliza
o etilômetro.33 O sistema de monitoramento eletrônico de condutas é atualmente
realizado através de sinalizador GPS, acoplado a bracelete, pulseira ou tornozeleira
de aproximadamente 75g, equipados com sensores antifraudes e rupturas, que
transmitem informações do posicionamento do apenado à central de controle
e vigilância. Este rastreamento é feito via satélite, monitorando os indivíduos em
tempo real ou através de relatórios periódicos que indicam os locais por onde
passaram, de forma a controlar sua permanência em determinado lugar ou a proi-
bição de transitarem em certas localidades.34 A pulseira, bracelete ou tornozeleira
identifica a presença do indivíduo por meio de radiofrequência ao dispositivo de
rastreamento que, por sua vez, comunica-se com o dispositivo GPS e transmite as
informações à central de controle.35

30
GRECO. Atualização: monitoramento eletrônico. In: GRECO. Curso de direito penal, p. 7.
31
Idem, p. 23.
32
Idem, p. 9.
33
PAPATHEODOROU. Le placement sous surveillance électronique des délinquants en droit penal
compare. Revue Pénitentiaire et de Droit Penal, p. 115.
34
VIANA. Transparência pública, opacidade privada: o direito como instrumento de limitação do poder
na sociedade de controle, f. 36.
35
Idem.

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136 Carlos Henrique Borlido Haddad

Tal como as demais medidas cautelares, a monitoração eletrônica não é


novidade no país. Foi inicialmente prevista na execução penal, para controle do
cumprimento da pena, mais precisamente na fiscalização das saídas temporárias
no regime semiaberto e ao determinar a prisão domiciliar. A Lei nº 12.258/10, que
alterou a Lei de Execução Penal, estabelece como obrigações do sentenciado
receber visitas do servidor responsável pela monitoração eletrônica, responder
aos seus contatos, cumprir suas orientações e abster-se de remover, de violar, de
modificar e de danificar, de qualquer forma, o dispositivo de monitoração ele-
trônica ou de permitir que outrem o faça. Em caso de violação desses deveres,
poderá ser determinada a regressão do regime, a revogação da autorização de
saída temporária, a revogação da prisão domiciliar ou a advertência por escrito.
Não há nenhum propósito em se impor a monitoração eletrônica isolada-
mente, dissociada de outras medidas cautelares, porquanto ela não constitui
uma providência por si só produtora de resultados úteis e de finalidade palpável.
Não é temerário dizer que consiste na única cautelar destituída de autonomia e
totalmente dependente de outras determinações. A razão de ser da monitoração
eletrônica ajusta-se a medidas que estabeleçam proibições de movimentação
geográfica, porque sua função precípua é identificar o local em que se encontra
a pessoa monitorada. Infligir o monitoramento sem discriminação de quais restri-
ções de locomoção estão impostas afigura-se absolutamente inútil e, até mesmo,
contraproducente. As restrições precisam ser previamente estabelecidas, com
supedâneo nas proibições de frequência a determinados lugares, de ausentar-se
da comarca ou do país, como também na vedação de se afastar do domicílio.
Em verdade, a monitoração eletrônica é a cautelar da cautelar, isto é, cuida-se
de medida que assegurará o resultado útil das demais cautelares que envolvam
restrições à liberdade de locomoção.

6  Duração das medidas cautelares


Sem embargo da constitucionalização da razoável duração do processo, a
celeridade processual não faz parte das principais preocupações dos que atuam na
seara criminal. Legislador, juristas, magistrados, promotores e advogados perce-
bem a duração do processo como fator de peso pouco expressivo nas correspon-
dentes atividades, em confronto com as exigências de ampla defesa, sucessivos
graus de jurisdição, juiz natural, contraditório e presunção de inocência. A abso-
luta ausência de previsão de prazos de duração das medidas cautelares penais é
o quadro que melhor identifica essa exposição.

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 137

A pouca inventividade do legislador ao assenhorar-se dos padrões italianos


de medidas cautelares desapareceu por completo quando o assunto era estabe-
lecer termos máximos de duração das providências cautelares. Ao menos foi coe­
rente o legislador nacional em omitir-se nesse ponto, porque manteve a lacuna
existente quanto à prisão preventiva, para a qual também não há estipulação de
prazo máximo.
O Código de Processo Penal português prescreve, no art. 215º, os prazos
máximos de duração da prisão preventiva: “quatro meses sem que tenha sido de­
duzida acusação; oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido
pro­fe­rida decisão instrutória; um ano e dois meses sem que tenha havido conde-
nação em 1ª instância; um ano e seis meses sem que tenha havido condenação
com trânsito em julgado”. Existem variáveis que podem elevar os prazos, em caso
da complexidade da instrução e da espécie do delito praticado. Para as demais
medidas cautelares, ou se aplica o mesmo prazo de duração da prisão preventiva,
ou contam-se em dobro os prazos acima referidos. Assim, para a obrigação de
permanência de habitação, incidem os mesmos prazos da prisão preventiva, ao
passo que, para a medida cautelar de suspensão de profissão, função, atividade e
de direitos, o lapso de tempo máximo é duplicado (art. 218º).
Na Itália, a situação não é diferente. O art. 308 do Código de Processo Penal
italiano estabelece que a duração máxima das medidas cautelares equivale ao
dobro do prazo estatuído para a prisão provisória. Em se tratando de medidas
interditivas, tal como a suspensão do exercício do poder parental, do exercício de
função ou serviço público e a proibição temporária de exercer atividade profis-
sional ou empresarial, essas perdem a eficácia se decorridos dois meses do início
de sua execução. Em todo caso, há possibilidade de renovação das medidas, por
exigências probatórias, pelo prazo máximo correspondente ao dobro da duração
da prisão provisória. Quanto a ela, o art. 303 do CPP italiano traz complexa disci-
plina, ao prescrever a duração da prisão provisória por período que varia de três
meses a seis anos.
O dever de revisar periodicamente a medida cautelar, que estava previsto
no art. 282, §7º, foi retirado durante a votação final do anteprojeto na Câmara dos
Deputados. Por conseguinte, além de não se saber por quanto tempo o acusado deve
suportar a imposição cautelar de medidas, excluiu-se a possibilidade de que sejam
revistas sazonalmente. Uma medida que nasce proporcional, com o tempo, perde seu
caráter de proporcionalidade e, por isso, deveria ser revista à luz do art. 282 do CPP.36

36
DEZEM. Medidas cautelares pessoais: primeiras reflexões. Boletim do IBCCrim, p. 15.

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138 Carlos Henrique Borlido Haddad

Nem se diga devemos recorrer ao direito comparado para extrair os prazos


que aperfeiçoam a aplicação das medidas cautelares. Todos eles, seja na Itália,
seja em Portugal, guardam relação de proporcionalidade com o prazo da prisão
preventiva e costumam representar o dobro da duração da medida carcerária.
Como no Brasil há igual imprecisão para a duração da prisão preventiva, o estado
de indefinição não se socorre de subsídios além-mar.
Diante da lacuna legislativa, resta optar pela perenidade das medidas caute-
lares — o que em determinadas circunstâncias será extremamente gravoso — ou
pela indicação de lapsos de tempo máximos, com o instrumental já existente em
nosso ordenamento. São poucas as situações em que a lei previu o tempo máximo
de duração da instrução criminal, em situação absolutamente distinta daquelas
prescritas no anteprojeto do Código de Processo Penal (PLS nº 156/09). De acordo
com a legislação em vigor, afora o procedimento do júri conduzido pelo juiz
sumariante, existe a previsão contida no art. 8º da Lei nº 9.034/95, aplicável ao
crime organizado, relativamente ao cumprimento de prazos processuais globais.
Referido dispositivo estipula o prazo de 81 dias para o encerramento da instrução
criminal quando o réu estiver preso e se entende que, se ultrapassado, estaria
configurada a coação ilegal. É bom lembrar que o prazo de 81 dias não foi esco-
lhido aleatoriamente. O legislador adotou antigo e sedimentado entendimento
doutrinário e jurisprudencial, resultado da soma dos prazos estatuídos para o
procedimento do juiz singular. É certo que a jurisprudência que inicialmente se
firmou, referente à rigidez temporal, foi abrandada com o decorrer dos anos, uma
vez que a transposição dos 81 dias passou a justificar-se por critérios de comple-
xidade do processo, multiplicidade de réus e necessidade de expedição de cartas
precatórias, entre outros. Hoje, a duração do processo, conquanto matematica-
mente determinável, não mais segue a lógica exata que dos números pode-se
inferir. A despeito disso, ainda se encontram no Superior Tribunal de Justiça jul-
gados que se apegam aos 81 dias como norte para medir a ocorrência de excesso
de prazo na formação da culpa: “[...] tudo isso justifica, em face da razoabilidade,
eventual atraso na instrução criminal, notadamente tendo em conta que o prazo
de 81 dias não é de peremptória observação, erigindo-se apenas como parâme-
tro, utilizado pelos Tribunais, para aferir a duração do processo” (HC nº 169.859,
Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sessão de 18.08.10); “O período de 81 dias,
fruto de construção doutrinária e jurisprudencial, não deve ser entendido como
prazo peremptório, eis que subsiste apenas como referencial para verificação do
excesso, de sorte que sua superação não implica necessariamente um constran-
gimento ilegal, podendo ser excedido com base em um juízo de razoabilidade"
(RHC nº 24.451, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Sessão de 17.09.09).

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 139

Apegar-se aos 81 dias para definir o prazo máximo da expiação das medidas
cautelares seria demasiadamente inapropriado. Na esfera disciplinar, por exem-
plo, a Lei nº 8.112/90 admite o afastamento provisório do servidor público proces-
sado administrativamente pelo prazo de 60 dias, prorrogável por igual período.
Dada a similitude das situações, não se percebe por qual razão a suspensão da
função pública em âmbito penal deveria ser por quadra mais reduzida.
Por outro lado, a posição preeminente da prisão preventiva na escala de
coer­citividade faz presumir que o gravame que o réu preso suporta é imensa-
mente superior ao ônus experimentado pelo acusado sujeito às medidas caute-
lares diversas da prisão. E o ônus será tanto menor quanto menor for o grau de
aflitividade que a providência cautelar exala. Dessa forma, pode-se concluir que a
duração das medidas cautelares variará em conformidade com o nível de coerciti-
vidade, admitindo-a tanto mais longa quanto menos aflitiva revelar-se.
Com o a advento da Lei nº 11.719/08, alteraram-se as fases do procedimen-
to ordinário, o que ocasionou a modificação substancial dos prazos processuais.
Primeiramente, o art. 395 sofreu modificação e não versa mais sobre o prazo para
a defesa prévia, substituído que foi pelo art. 396, que estipulou o prazo de 10 dias
para a resposta à acusação. Assim, persiste o prazo de 15 dias para o inquérito
e oferecimento da acusação, sucedido por mais 10 dias para a resposta do réu.
Após a defesa escrita, designa-se audiência de instrução e julgamento em 60 dias,
com prolação de sentença. De acordo com Eugênio Pacelli de Oliveira, dever-se-ia
adicionar o prazo de vinte e quatro horas para a decisão de recebimento da peça
acusatória, o que redundaria em 86 dias.37 No entanto, como anteriormente isso
não era computado na aferição do lapso total, por simetria, deixa-se de acrescer
mais um dia à somatória. Se é certo que o novo rito ordinário procurou tornar
a instrução mais célere, com a concentração de atos na audiência, não se pode
desprezar todos os prazos possíveis — tal como antes se fazia — para estabelecer
teto que não deve ser ultrapassado. Se a busca é por se alcançar o lapso de tempo
máximo que o réu preso poderia suportar, isso somente será feito com a soma de
todas as variáveis. A previsão de memoriais (cinco dias sucessivos) e de sentença
(20 dias), após a audiência, em causas mais intrincadas, já abrangeria a complexi-
dade usualmente mencionada para se justificar a dilação da instrução e a supera-
ção do limite temporal objetivamente previsto. Seriam mais 30 dias acumulados
que se prestariam para compensar o retardamento por “complexidade do caso ou
[pel]o número de acusados” (art. 403, §3º) e que se depreendem, v. g., do concurso

37
OLIVEIRA. Curso de processo penal, p. 496.

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140 Carlos Henrique Borlido Haddad

de agentes e/ou de crimes ou de questões fáticas e jurídicas de elevada indagação.


Fica claro que a soma que sustentava o prazo de 81 dias não mais existe. A dura-
ção passou para 115 dias, ou 135 dias para os processos que tramitam na Justiça
Federal, cujo inquérito pode ser concluído em 15 dias, prorrogável por igual período
(art. 66 da Lei nº 5.010/66).
Se, em tese, seria esse o prazo máximo suportado pelo réu preso, até que sua
prisão não resultasse em excesso, os lapsos temporais deveriam ser multiplicados
em se tratando de imposição de medidas cautelares. Assim, para as medidas cau-
telares situadas logo abaixo da prisão preventiva, na escala de coercitividade, o
prazo máximo de sua duração deveria ser dobrado. As que viessem em seguida
teriam o prazo triplicado e assim por diante. Trata-se de solução possível, embora
não desejável, mas que se impõe diante da lacuna legislativa em disciplinar o óbvio:
limites temporais para a imposição e manutenção de gravames.

7 Conclusões
Tudo indica que as medidas cautelares, que fucionariam como alternativas
ao cárcere e sucedâneo da prisão preventiva, tendem a ser francamente utiliza-
das, fora do propósito cautelar para o qual foram criadas, o que importará no
aumento do alcance do direito penal. E é provável que o recurso à fiança, por-
que não depende de fiscalização para que seja cumprido e possui a finalidade
adicional de apresentar feição reparatória, seja a opção preferida pelos juízes.38
O sistema anterior baseava-se no caráter bipolar da liberdade provisória/prisão
preventiva, mas, atualmente, aqueles casos em que normalmente não se aplica-
vam a custódia carcerária serão agora preenchidos pelas medidas cautelares. O
tempo demonstrará que a permanência em liberdade, sem nenhuma imposição
de restrições, praticamente, não ocorrerá.

Abstract: The Law 12.403/11 is analyzed for having introduced relevant


changes in the discipline of criminal precautionary measures. The provisions
applicable to the general aspects of the diverse criminal precautionary
measures are examined. It is to note the Italian influence in the preparation
of the country’s discipline and a coercivity scale among the newly introduced

38
Uma semana após a vigência da Lei nº 12.403/11, juízes da capital paulista demonstraram prefe-
rência por estipular fianças em vez de conceder uma das outras oito medidas cautelares definidas
pela nova legislação. De 59 casos analisados, estabeleceu-se fiança em 29 e nos demais casos foi
imposta a prisão provisória (Folha de S.Paulo, São Paulo, 11 jul. 2011. Cotidiano. Disponível em:
<www.folha.uol.com.br>. Acesso em: 18 dez. 2011).

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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão 141

measures is established. Each of the criminal precautionary measures is studied


with constant reference to the foreign legislation. The duration period of the
precautionary law is sought after and it is concluded that there will be an increased
reach of the criminal law due to a greater utilization of the precautionary cri­mi­
nal law.

Key words: Criminal procedure. Personal precautionary measures. Law 12.403/11.


Compelling. Duration.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Medidas cautelares pessoais diversas da prisão. Revista
Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 21, n. 81, p. 107-142, jan./mar. 2013.

Cadastrado em: 06.06.2012


Aprovado em: 29.08.2012

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A trajetória doutrinária e judicial da
desapropriação judicial – Perspectivas
e prognósticos (§§4º e 5º do art. 1.228
do Código Civil)

Voltaire de Freitas Michel


Doutor em Direito pela UFRGS.
Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.

Resumo: O artigo descreve a evolução doutrinária a respeito da natureza


jurídica da desapropriação judicial prevista nos §§4º e 5º do art. 1.228 do
Código Civil, assim como analisa precedentes judiciais em que se o instituto
foi abordado. Ao final, convergindo a análise teórica com as decisões judi-
ciais, o autor propõe alternativas para uma maior aplicabilidade do novo
instituto.

Palavras-chave: Desapropriação judicial. Código Civil brasileiro de 2002.


Doutrina. Usucapião. Posse. Precedentes judiciais.

Sumário: 1 Introdução – 2 Trajetória doutrinária – Da indecisão à acessão –


3 Trajetória judicial – Quando, onde, como aplicar o instituto? – 4 Conclusão
– Perspectivas e prognósticos – Referências

1 Introdução
As esperanças nutridas por Miguel Reale com relação à chamada desapro-
priação judicial, introduzida em nosso direito pelos §§4º e 5º do art. 1.228 do
Código Civil de 2002, não se refletiram na sua aplicação pelos tribunais, nem tam-
pouco em extenso debate doutrinário. Promulgado o novo Código Civil de 2002,
sob a inspiração do culturalismo jurídico e com sua tessitura aberta, o instituto
inovador não repercutiu nas esferas judiciais, ao contrário de outras inovações
específicas do Direito das Coisas, tais como as noções de posse-trabalho e de
função social da propriedade. Uma breve pesquisa nos sites de pesquisa jurispru-
dencial disponíveis dá conta de que o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo

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144 Voltaire de Freitas Michel

Tribunal Federal ainda não foram provocados a jurisdicionar em casos concretos


de desapropriação judicial; os Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e de São
Paulo, também consultados durante a elaboração deste estudo, noticiam parcos
precedentes, que serão analisados na segunda parte deste artigo. Curiosamente,
em todos os precedentes analisados, o instituto teve negada a sua aplicação. É
de se indagar as razões pelas quais a desapropriação judicial não decolou e se
encaminha para o escaninho dos institutos muito bem concebidos, porém caídos
em desuso. Algumas razões podem justificar as resistências a sua aplicação: em
primeiro lugar, a própria indecisão sobre a sua natureza jurídica, que antecedeu
em 30 anos a própria promulgação do Código.1 Muito antes de ser consagrada no
direito positivo, a desapropriação judicial já causava calafrios em doutrinadores
mais conservadores, especialmente quando o debate derivava para a definição
de sua natureza jurídica. Cuida-se de desapropriação propriamente dita, com a
diferença específica que o ato declaratório de utilidade pública e interesse social
cabe ao Poder Judiciário, ou de usucapião onerosa, ausente do nosso direito, que
reconhece a gratuidade como característica essencial deste modo de aquisição
de propriedade? Em segundo lugar, colaborando com a inaplicabilidade do ins-
tituto, verifica-se a conjugação, em dois parágrafos, de vários conceitos jurídicos
indeterminados. O texto legal alude, em poucas linhas, a meia dúzia de conceitos
jurídicos indeterminados que praticamente inviabilizam a aplicação do instituto:
“extensa área”, “considerável número de pessoas”, “interesse social e econômico rele-
vantes”, “justa indenização”. Naturalmente, as objeções dos adversários da linha
metodológica adotada pelo Código, que temiam uma ditadura judicial através da
atribuição de significado aos conceitos jurídicos indeterminados, revelaram-se injus-
tificadas ou exageradas.2 Nada a temer, quando o novo instituto não é aplicado. Na

1
PEREIRA. Crítica ao anteprojeto de Código Civil. Revista Forense; ASCENSÃO. O direito das coisas
no projeto de Código Civil brasileiro e no Código Civil português. Revista Forense.
2
VENOSA. Direito reais. “Estamos, de fato, perante mais uma denominada ‘cláusula aberta’, nomen-
clatura tão a gosto dos comentadores do novel Código. Cuida-se, na verdade, de mais um ponto
aberto à argumentação jurídica pelos operadores do Direito”. E mais adiante: “Questão maior é
saber qual a parcela indenizatória de cada ocupante e, mais ainda, como será pago esse preço se
forem centenas de interessados. A lei também não especifica prazo para essa liquidação, a qual,
segundo parece, deve ser feita na fase de execução do processo. E na hipótese de inadimplência?
Caberia a penhora das próprias glebas por iniciativa daquele que perdeu a área? Essas questões,
por ora, admitem apenas respostas polêmicas. O legislador não foi detalhista nessas questões
processuais, o que exige que esse dispositivo seja regulamentado. Há dúvidas, inclusive, sobre
sua utilidade, tendo em vista principalmente as dificuldades deste pagamento indenizatório, em
face dos amplos horizontes do usucapião no Código Civil e no Estatuto da Cidade. Lembre, ade-
mais, que essa modalidade esdrúxula de desapropriação, como está na dicção legal, somente
após pago o prazo a sentença atribuirá a propriedade aos possuidores mediante o registro de
imóveis” (p. 155-156).

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A trajetória doutrinária e judicial da desapropriação judicial... 145

vida real, o excesso de abertura resultou, em verdade, na simples inviabilização do


instituto. A par dessas razões, o surgimento de um instituto assemelhado, porém
não idêntico, de aplicação mais ampla, o usucapião coletivo, parece ter colaborado
para a permanência do instituto da desapropriação judicial nos livros. Como será
explorado em seguida, o usucapião coletivo, introduzido em nosso direito pelo
Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/2001), compartilha algumas características da
desapropriação judicial, mas não se identifica integralmente.
A propósito, a própria denominação “desapropriação judicial”, já consagrada
na maioria dos manuais3 e artigos escritos sobre o tema, não colabora para desven-
dar a natureza jurídica do instituto, pois tende a enquadrá-lo no vetusto instituto da
desapropriação, com o qual tem muito pouco em comum. Desde já, adianta-se que,
neste artigo, será empregada a expressão “desapropriação judicial”, sem que isso
signifique uma adesão à corrente que a vê como uma desapropriação tout court,
com a ressalva de que o ato declaratório seria procedente do Poder Judiciário.
Não obstante a vacilação judicial na aplicação do instituto após a promul-
gação do Código de 2002, Miguel Reale tinha bem presente os cenários em que
a desapropriação judicial seria útil. Na obra O projeto de Código Civil, descreveu o
seguinte imbróglio:

Ainda há poucos anos houve aqui na Ilha de Santo Amaro, na Ilha de


Guarujá-Piaçaguera, um fato muito conhecido: houve uma decisão de uma
demanda de uma ação reivindicatória que chegou ao seu fim dezenas
e dezenas de anos após a sua propositura, de maneira que nesse
intermédio aquela área foi toda ela sendo parcelada e dividida, trans-
formando-se ou em domínio aparente ou posse de uma multiplicidade
de indivíduos e de famílias. Ora, nada mais absurdo do que, diante de
uma situação como essa, fazer com que a propriedade seja devolvida ao
autor da demanda. Então nós avançamos um pouco nessa matéria, com
grande escândalo para certos conservadores à outrance, reconhecendo
que, em tais casos, em se tratando de grandes áreas ocupadas por um
grande número de possuidores, o juiz poderá determinar que ao invés
da devolução da coisa quem venceu a demanda receba o justo preço do
imóvel, sem levar em conta as benfeitorias, que são produto do trabalho
alheio. Feito o pagamento do justo preço pelos possuidores, o juiz dará
sentença que valerá para a transcrição do imóvel em nome de cada um
deles. É um exemplo típico no qual está expressa mais uma vez a neces-
sidade de um sentido social à propriedade.4

3
É a terminologia empregada por WALD. Direito das coisas; DINIZ. Curso de direito civil brasileiro;
RODRIGUES. Direito civil.
4
REALE. O projeto de Código Civil: situação atual e seus problemas fundamentais, p. 54.

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146 Voltaire de Freitas Michel

Não obstante as objeções durante a própria elaboração do Código Civil, o


instituto introduzido veio à luz através dos §§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil:

§4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivin-


dicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por
mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela hou-
verem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e servidos consi-
derados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará indenização devida ao
proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro
do imóvel em nomes dos possuidores.

A trajetória doutrinária e jurisprudencial dos aludidos parágrafos não refle-


tem a importância imaginada pelos legisladores para este novo instituto. Como já
destacado anteriormente, há poucos precedentes, em sua totalidade, negando a
aplicação do instituto em casos concretos. No plano doutrinário, a década a contar
da promulgação do código se consumiu no debate sobre a natureza jurídica do
instituto. Neste artigo, se sustentará que a convergência entre a evolução doutri-
nária e alguns poucos julgados encontrados poderá resultar numa maior aplica-
bilidade do instituto, que consagra a incensada posse-trabalho tão bem definida
por Miguel Reale como “uma posse que vem acompanhada de um ato criador do
trabalho humano”.5 Se é possível destacar apenas uma característica do Direito
das Coisas como concebido no novo Código, mereceria destaque a inovação no
tratamento da posse: valorizou a nova legislação a posse resultante de trabalho,
cultivo ou moradia, em detrimento da posse que apenas reflete a inflexão física
do possuidor com o bem possuído.

2  Trajetória doutrinária – Da indecisão à acessão


2.1  Desapropriação judicial ou usucapião coletivo?
Não há como começar a discussão sobre novel instituto sem definir, previa-
mente, a sua natureza jurídica, e aí reside justamente uma das dificuldades da desa-
propriação judicial. Uma série de artigos doutrinários e comentários publicados após
a promulgação do Código Civil demarcaram os limites da discussão sobre a natureza
jurídica do novo instituto, qualificando-o ora como desapropriação determinada
pelo Poder Judiciário, ora como usucapião oneroso.

5
REALE, op. cit.

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A trajetória doutrinária e judicial da desapropriação judicial... 147

A qualificação do instituto como desapropriação determinada pelo Poder


Judiciário, vale dizer, como modo de aquisição originário de um bem pelo Poder Pú­
blico em razão de sua utilidade pública ou interesse social, parecia ser confortada
pelas lições de Miguel Reale. A respeito do instituto, antecipou o jurista:

Vale notar que, nessa hipótese, abre-se, nos domínios do Direito, uma via
nova de desapropriação que se não deve considerar prerrogativa exclu-
siva dos Poderes Executivo ou Legislativo. Não há razão plausível para
recusar ao Poder Judiciário o exercício do poder expropriatório em casos
concretos, como o que se contém na espécie analisada.6

Ao ler o trecho transcrito, quase se pode ouvir os apupos dos que temem
uma ditadura dos juízes e impugnam a tessitura aberta do novo Código Civil.
Atribuição de poder expropriatório aos juízes, que poderiam declarar, no caso
concreto, que um imóvel tem interesse social e econômico relevante, para o fim
de atribuí-los aos seus possuidores, em detrimento do direito de propriedade do
reivindicante? Seria demais. O curioso é que Reale não levou seu argumento até
as últimas consequências, que seria a atribuição ao Estado da responsabilidade
pela indenização a que se refere o §5º do art. 1.228. No trecho citado anterior-
mente, Reale expressamente atribui aos possuidores a obrigação de indenizar o
proprietário.
A própria constitucionalidade dos dispositivos ficaria ameaçada se o institu-
to fosse interpretado como instrumento de execução de política urbana sob a res-
ponsabilidade do Poder Judiciário. Trinta anos antes da promulgação do Código,
Caio Mário da Silva Pereira já se angustiava com a compatibilidade do instituto com
a Constituição Federal então vigente. No artigo mencionado, sustentava Caio
Mário:

Somente a Constituição pode definir os casos de “privação” da proprie-


dade, uma vez que é ela que assegura o “direito de propriedade”. A lei que
“priva” o proprietário do seu direito, fora dos termos constitucionais, está
ofendendo o cânon que assegura aquele direito. Ninguém pode ser “pri-
vado da coisa”, em abolição do domínio, afrontando o preceito que “asse-
gura” aquele direito. E esta “privação” da coisa é tanto mais grave, que se
trará de uma desapropriação por interesse particular e não público, em
benefício de um grupo considerável de pessoas que invadam o imóvel
alheio, e sem direito à “prévia” indenização.7

6
REALE, op. cit.
7
PEREIRA. Crítica ao anteprojeto de Código Civil. Revista Forense. Aliando-se aos argumentos de
Caio Mário, e enfatizando o caráter de desapropriação do novo instituto (GUIMARÃES. O novo
Código Civil e o direito das coisas. Revista dos Tribunais).

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148 Voltaire de Freitas Michel

O argumento do eminente doutrinador seria mais convincente se, de fato,


na legislação infraconstitucional, não houvesse outros casos de perda ou privação
da propriedade não previstos na Constituição Federal, a exemplo da usucapião,
nas suas modalidades básicas. O que se percebe, da crítica, é a adesão de Caio
Mário à corrente que interpreta o novo instituto como uma verdadeira modalidade
de desapropriação, determinada pelo Poder Judiciário, e não autorizada pela
Constituição Federal. Partindo do pressuposto (controvertido) de que o instituto
é uma verdadeira desapropriação, não há como sustentar a sua constituciona-
lidade, quer se tenha como parâmetro a ordem constitucional anterior, quer se
tenha em mente a Constituição de 1988.
Com efeito, a Constituição de 1988 não parece confortar a possibilidade de
execução da política urbana por meio de desapropriação judicial ou, enfrentando
a questão de frente, através de decisões judiciais (admitindo-se, para argumentar,
sua natureza de desapropriação). O art. 182 da Constituição Federal dá conta de
que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público muni-
cipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes”; o §3º do mesmo artigo estatui que “as desapropriações de imóveis
urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro”. O §4º do mesmo
artigo, por seu turno, determina que “é facultado ao Poder Público municipal,
mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da
lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não
utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente,
de [...] III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública
de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de
até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da
indenização e os juros legais”. Com relação à política agrícola, da mesma forma,
a Constituição parece limitar a possibilidade de desapropriação a ato do Poder
Executivo, como se depreende do art. 184, cujo teor “compete à União desapro-
priar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não
esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títu-
los da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no
prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização
será definida em lei”.
O aprofundamento do argumento no sentido da inviabilidade da desapro-
priação por determinação judicial nos conduziria para a mil vezes debatida ques-
tão da possibilidade de determinação de políticas públicas por parte do Poder

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Judiciário. Nitidamente, isso não colaboraria para a aplicabilidade do instituto e,


no caso concreto, a Constituição atribui, precisamente, o ordenamento urbano às
ações do Poder Executivo.
Incômodo, portanto, qualificar o instituto como uma verdadeira desapro-
priação, com a diferença específica de que a declaração de utilidade pública ou
interesse social seria proferida pelo juiz.8
Do outro lado, na doutrina, estão o que pretendem qualificar a desapropria-
ção judicial como uma subespécie de usucapião especial arguida em defesa.9
O perfil de usucapião que surge em nosso direito após o Código de 2002,
incorporando alterações legislativas anteriores, seria irreconhecível para o legis-
lador de 1916. De simples modo de aquisição originária pelo exercício da posse e
transcurso do tempo, em que prevalecia o interesse da estabilidade das relações
jurídicas e a questão patrimonial individual, as modalidades especiais de usuca-
pião incorporaram nas suas entranhas o conceito de posse-trabalho. O usucapião
pro labore, o usucapião pro habitatio, os usucapiões abreviados (extraordinário e
ordinário) albergaram a ideia de uma posse qualificada, predicada pela ação do
possuidor, deixando a mera posse, exercício de atos possessórios sem interesse
social ou relevante interesse econômico, para as modalidades simples e cada vez
mais desusadas de usucapião extraordinário e ordinário. Tal mudança de pers-
pectiva havia sido antecipada pela Lei nº 6.969/81 (usucapião pro labore), pelos
dispositivos da Constituição Federal que receberam a usucapião pro habitatio e
a pro labore, e pelo próprio Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257, de 10 de julho de
2001, que ratificara o usucapião pro habitatio e introduziu o usucapião coletivo.
É o com o usucapião coletivo que a desapropriação judicial parece dialogar,
compartilhando algumas de suas características.
A teor do art. 10 do Estatuto das Cidades, “as áreas urbanas com mais de
duzen­tos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda
para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não

8
ZAVASCKI; MARTINS-COSTA. A tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil. In:
MARTINS-COSTA (Org.). A reconstrução do direito privado. “Ora, não se pode negar a fragilidade de tal
afirmativa. A desapropriação é ato de natureza administrativa e, no caso, o ato do juiz é tipicamente
jurisdicional: ele simplesmente resolve um conflito de interesses entre particulares, decidindo num
sentido ou em outro, segundo estejam atendidos ou não os pressupostos legais. O juiz não poderá
desapropriar sem que os interessados o peçam expressamente, até porque eles é que sofrerão os
ônus Correspondentes, de pagar o preço e serão eles, e não o Poder Público, que adquirirão a pro-
priedade. O Estado sequer é parte no processo, atuando nele como órgão jurisdicional”.
9
CAMBI. Aspectos inovadores da propriedade no novo Código Civil. Revista Trimestral de Direito Civil
– RTDC. No aludido artigo, Cambi sustenta, ainda, a subsidiariedade da responsabilidade do Estado
no pagamento da indenização, sem apontar, no entanto, os fundamentos de tal entendimento.

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for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis
de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam pro-
prietários de outro imóvel urbano ou rural”. O Estatuto permitiu a adição das pos-
ses (“§1º O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo,
acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas”)
e estabeleceu que “a usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada
pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de
registro de imóveis”. A par disso, reproduzindo uma faculdade que já existia no
art. 9 da Lei nº 6.969/81, permitiu o Estatuto que, tendo sido invocado o usuca-
pião especial de imóvel urbano como matéria de defesa, valerá a sentença que a
reconhecer como título para registro no cartório de registro de imóveis (art. 13).
Entendendo-se o usucapião coletivo como espécie de usucapião especial urbano
(está previsto na Seção V do Estatuto das Cidades, “Da usucapião especial de imó-
vel urbano”), nada impedirá sua invocação em matéria de defesa e a atribuição de
título aos réus na ação patrocinada pelo proprietário.
Há paralelos e divergências entre os dois institutos, que podem ser exempli-
ficados da seguinte forma:

Desapropriação judicial Usucapião coletivo

Modalidade de Invocado como exceção material Ação de usucapião ou invocado


dedução judicial em ação reivindicatória como exceção material

Área reivindicada Extensa área Mais de 250 metros quadrados

Posse ininterrupta e de boa-fé, por Posse ininterrupta e sem oposição


Natureza da posse
mais de cinco anos por cinco anos

População de baixa renda, que não


Qualificação dos
Considerável número de pessoas seja proprietária de outro imóvel
possuidores
urbano ou rural.

Realização conjunta ou separa-


Qualificação da damente, de obras e serviços de
Moradia
posse interesse social e econômico rele­
vante

É devida justa indenização ao pro-


Indenizabilidade Sem indenização
prietário

Os diferentes requisitos para o usucapião coletivo e a desapropriação judi-


cial não permitem a assimilação de um ao outro. Destaque-se, no esquema apre-
sentado, que o usucapião coletivo, no seu regramento legal, pode ser deduzido
através de ação própria (o que, por ora, dá-se por incabível na desapropriação

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judicial); a área está delimitada, diminuindo a discricionariedade judicial (mínimo


de 250 metros quadrados); não exige a boa-fé, que se presume; demanda a utiliza-
ção como moradia e não enseja, em favor do usucapido, qualquer indenização.10
Por todas essas razões, não há como identificar a desapropriação judicial
como modalidade de usucapião especial, embora, nos casos concretos, seja possí-
vel uma sobreposição parcial de requisitos, induzindo a crer na sua semelhança.11

2.2  Quebrando o DNA do instituto – A sua definição como acessão


social invertida
Um trabalho recente, publicado na Revista Trimestral de Direito Civil, da lavra
de Pablo Rentería,12 que se recomenda vivamente, aparentemente quebrou o DNA
do instituto previsto nos §§4º e 5º do art. 1.228, sepultando a discussão sobre a
natu­reza da desapropriação judicial, e qualificando-o como modalidade de aces-
são invertida social.
Com acerto, o doutrinador identificou que a componente de sociabilidade,
de funcionalização do direito das coisas,13 influenciou não apenas a delimitação
da propriedade, mas as modalidades de sua aquisição. Lembrou, como de resto
a doutrina vem acentuando, que a função social da posse foi amplamente aco-
lhida nas novas modalidades de usucapião, que homenageiam a posse-trabalho,
qualificada por uma especial relação do possuidor com a coisa. Porém, o foco do
Professor Rentería é a qualificação da modalidade de aquisição presente nos §§4º
e 5º do art. 1.228 do Código Civil. Após descartar a equiparação do instituto a
outras modalidades de aquisição dos bens imóveis (usucapião, a transcrição no
registro e o direito sucessório), o autor voltou-se para a acessão, brindando-nos
com um erudito estudo sobre a funcionalização desse instituto no novo Código
Civil de 2002. De fato, a regra geral no Código de 1916 era a atração do acessório
ao principal, de modo que, construído ou plantado algo sobre o imóvel, o acessó-
rio, a acessão, incorporava-se inarredavelmente ao patrimônio do proprietário do

10
Descartando a possibilidade de assimilá-lo a uma usucapião especial (ASCENSÃO, op. cit., p. 114).
No mesmo artigo, Ascensão sugere que o instituto mais afim à desapropriação judicial seria a
desa­propriação por interesse particular, prevista no art. 1.310 do Código Civil português (art. 1310.
Havendo expropriação por utilidade pública ou particular ou requisição de bens, é sempre devida a
indemnização adequada ao proprietário e aos titulares dos outros direitos reais afectados).
11
Sugerindo a natureza de desapropriação híbrida, GUIMARÃES. Desapropriação judicial no Código
Civil. Revista dos Tribunais.
12
RENTERÍA. A aquisição da propriedade imobiliária pela acessão invertida social: análise sistemática
dos parágrafos 4º e 5º do art. 1228 do Código Civil. Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC.
13
Sobre a funcionalização do direito privado, TEPEDINO. Temas de direito civil.

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principal. Naturalmente, a regra inflexível patrocinava injustiças, como a lembrada


por Miguel Reale: um prédio de 50 andares que invadiu parcela ínfima de um
terreno vizinho; julgada procedente a ação demolitória, não haveria alternativa
senão desfazer a obra, ou sujeitar o construtor distraído à chantagem do proprie-
tário parcialmente esbulhado.14
Previu, portanto, o novo Código que, nas acessões de móvel a imóvel (plan-
tações e construções), em determinadas circunstâncias, prevalece o interesse
do construtor ou do edificador sobre o interesse patrimonial do proprietário do
imóvel invadido, atribuindo, dessa forma, relevância social à ação produtiva. A
título de exemplo, é de se mencionar o art. 1.258, que “se a construção, feita par-
cialmente em solo próprio, invade solo alheio em proporção não superior à vigé-
sima parte deste, adquire o construtor de boa-fé a propriedade da parte do solo
invadido, se o valor da construção exceder o dessa parte, e responde por indeni-
zação que represente, também o valor da área perdida e a desvalorização da área
remanescente”. Em resumo: a lei inverteu a ordem da atração; se antes o principal
sempre atraía o acessório, na situação descrita o acessório atrairá o principal, com
pagamento de indenização ao proprietário prejudicado. Atribui-se, então, um
valor social à construção, à edificação, que se sobrepõe ao interesse meramente
patrimonial do proprietário parcialmente esbulhado (que não poderá chantagear
o esbulhador). No mesmo sentido, o parágrafo único do art. 1.255 do Código Civil,
cujo teor “se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor
do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do
solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver
acordo”. Quer dizer, inverte-se a (presumida) natureza das coisas: os acessórios
atraem o principal.
Revisite-se o texto dos §§4º e 5º do art. 1.228: ali está dito que, realizadas
obras e serviços de interesse social e econômico relevante, tais investimentos
atrairão a propriedade do solo sobre o qual se instalaram, ressalvando-se, em favor
do proprietário, o direito à indenização.
Com tal contribuição, o Professor Rentería sepultou a discussão sobre a
constitucionalidade do instituto, porque a ordem jurídica conhece outras moda­
lidades de acessão de mesma natureza (direitos potestativos de aquisição), cuja
constitucionalidade jamais foi questionada, e também quebrou o DNA da natu-
reza jurídica da desapropriação judicial, que batizou de acessão invertida social.
É “invertida”, porque determina a adesão do imóvel às construções. É “social”,

14
REALE, op. cit.

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porque o determinante para inverter o principal e o acessório não é o valor da


construção em comparação com o solo, como na acessão de construção prevista
nos arts. 1.258 e 1.255, mas a presença dos requisitos do §4º do art. 1.228, de níti-
do corte social. Com tal contribuição, certamente facilitará a aplicação judicial do
instituto, cujo cenário, como se verificará no item seguinte, ainda é desanimador.

3  Trajetória judicial – Quando, onde, como aplicar o instituto?


A carreira judicial da desapropriação judicial ainda é bastante tímida (ainda
emprego a denominação desapropriação judicial por estar consagrada na dou-
trina, embora repute a qualificação como acessão social invertida, de Rentería,
como a mais adequada). A menção a uma jurisprudência sedimentada sobre
o assunto seria exagerada. A consulta aos sites do Supremo Tribunal Federal e
Superior Tribunal de Justiça, em maio de 2012, não apontava nenhum precedente
em que tenha sido enfrentada, sob qualquer aspecto. Alguns precedentes podem
ser localizados nos sites de pesquisa de jurisprudência do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul e do Tribunal de Justiça de São Paulo, como os que serão empre-
gados em seguida para propor novas aplicações para o instituto. Embora parcos,
permitem antever novas possibilidades para a desapropriação judicial.

3.1  Dedução pelos possuidores em ação própria ou em exceção em


ação possessória
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul enfrentou a desapropriação
judi­cial em dois precedentes, relativos ao mesmo caso, em agravo de instru-
mento e apelação cível julgados pela 17ª Câmara Cível (feitos distribuídos sob os
nºs 70044827681 e 70012723722).
Em resumo, cuidava-se de ação declaratória de condomínio indivisível c/c
direito de preferência e pedido de desapropriação judicial, ajuizada por um time
de futebol contra os herdeiros do imóvel sobre o qual se construiu o estádio. O
clube havia construído um estádio sobre o imóvel pertencente a terceiros, que
posteriormente reivindicaram o imóvel.
Na apelação cível, os apelantes (os possuidores) reiteraram o pedido suces-
sivo de desapropriação judicial, dispondo-se a pagar a indenização aos proprietá-
rios pelo bem. A 17ª Câmara negou a aplicação do instituto por entender ausentes
dois requisitos, quais sejam, o interesse de um considerável número de pessoas e
o prazo de cinco anos de posse ininterrupta e de boa-fé. No caso concreto, o autor
era apenas uma pessoa jurídica e não houve comprovação do prazo legal.

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De qualquer forma, o que realmente interessa no precedente é que, em


nenhum momento, debateu-se o cabimento da dedução do pedido de desapro-
priação judicial pelos próprios possuidores em ação própria, dispondo-se a adqui-
rir compulsoriamente o bem esbulhado. Certamente, esta questão poderia ter
sido enfrentada no juízo ad quem, de modo que, rejeitada a possibilidade, nem
sequer se passaria ao exame dos requisitos de direito material para a configura-
ção da desapropriação judicial. Do precedente, pode-se extrair, pelo menos, um
silêncio eloquente: quer dizer, se o tribunal passou diretamente à apreciação dos
requisitos de direito material (tempo de posse e qualificação dos possuidores),
admitiu a sua dedução por ação própria.
Não é difícil imaginar casos em que os possuidores poderiam ter interesse
jurídico na dedução da desapropriação judicial através de ação própria. Como
visto anteriormente, há uma sobreposição apenas parcial entre o novo instituto
e o usucapião coletivo, de modo que, nos casos em que for descartado o usuca-
pião coletivo, poderiam os possuidores formular pedido independente de desa-
propriação judicial, impondo ao proprietário a alienação da área, exercendo um
direito potestativo de aquisição. Esta interpretação extensiva do modo de dedução
judicial do instituto permitiria ampliar a potencialidade de sua aplicação. Tal cená-
rio convergiria com a qualificação do instituto como uma acessão invertida social.
Ainda no mesmo diapasão de ampliar as possibilidades de dedução da desa-
propriação judicial pelos próprios possuidores, o Tribunal de Justiça de São Paulo,
por sua 37ª Câmara de Direito Privado, na Apelação Cível nº 990.10.4207703,
negou a aplicação do instituto por entender não comprovados as obras e os ser-
viços de interesse social e econômico relevante. No caso, os apelantes, réus em
ação de reintegração de posse, postulavam o reconhecimento da desapropriação
judicial. Assim como no precedente anterior, não houve debate sobre o cabimento
da exceção de desapropriação judicial em ação possessória, mas apenas o juízo
sobre a ausência dos requisitos legais. Embora o Código Civil tenha rejeitado a
exceção de domínio (art. 1.210, §2º, do Código Civil), esse precedente, que pas-
sou a cavaleiro sobre a discussão de cabimento da exceção, pode sinalizar essa
possibilidade, atribuindo os mesmos efeitos que se esperaria de uma exceção de
usucapião.

3.2  Dedução pelo reivindicante a título de pedido sucessivo ou em


ação própria
Outra modalidade de dedução da desapropriação judicial em juízo foi enfren-
tada pela 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar
a Apelação Cível nº 990100022016.

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A trajetória doutrinária e judicial da desapropriação judicial... 155

No caso, o apelante/reivindicante, cuja ação fora extinta sem julgamento de


mérito, simplesmente porque a reintegração de posse já havia sido determinada
nos autos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público, formulou um
pedido sucessivo de desapropriação judicial. Vale dizer, não obtida a reivindica-
ção postulada, requeria o reivindicante uma indenização com fulcro nos §§4º e 5º
do art. 1.228 do Código Civil.
Para melhor visualização da pretensão, merece transcrição o seguinte tre-
cho do voto vencedor, proferido pelo Relator:

[...] descabe se falar na admissão da conversão do pedido originalmente


reivindicatório em pleito indenizatório por desapropriação judicial. Não
apenas em razão do devido respeito ao princípio da estabilização da lide
— insculpido, como regra objetiva, no art. 264 do Código de Processo
Civil —, mas, principalmente, pelo simples fato de não ter a sentença decla-
rado a chamada desapropriação judicial, pressuposto necessário ao reco-
nhecimento da existência do dever de indenizar.
Lembre-se que o §5º do art. 1228 do Código Civil — que prevê a inde-
nização do proprietário pela privação no uso da coisa em razão de sua
utilização socialmente relevante por parte de terceiros — depende, neces-
sariamente, da improcedência do pleito reivindicatório, o que resta evidente
pela referência expressa à disciplina do parágrafo anterior. No caso, ao
contrário, o que houve foi a extinção da ação sem apreciação de mérito,
em razão, justamente, da concessão indireta da tutela reivindicatória em
outros feito.

Embora o acórdão tenha vinculado a indenização à improcedência da


reivindicação, permite vislumbrar outra alternativa, em que o proprietário não
veicule pedido reivindicatório, mas apenas indenizatório, antecipando-se a uma
provável ação de usucapião coletivo. Vale dizer, vislumbrando a possibilidade de
perda da propriedade de modo gratuito pelo usucapião coletivo, poderia o pro-
prietário aforar pedido de reconhecimento do esbulho possessório e de que as
obras e serviços erguidos pelos esbulhadores teriam interesse social e econômico
relevante. Assim, ao menos protegeria o seu interesse econômico e a estabilidade
da situação jurídica dos possuidores.

4  Conclusão – Perspectivas e prognósticos


A convergência entre a doutrina vacilante e a tímida jurisprudência poderá
desdobrar um cenário de maior aplicabilidade para o instituto da desapropriação
judicial. Qualificando-a como modalidade de acessão, modo de aquisição original
da propriedade que não causa nenhum sobressalto nas mentes mais conservadoras,

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e admitindo a sua arguição através de outros meios processuais, e não apenas como
exceção na reivindicatória, o instituto estará pronto para sair dos livros e ganhar os
tribunais. A título de conclusão, a convergência entre a doutrina e a jurisprudência
autorizaria a desapropriação judicial nos seguintes contextos processuais:
a) possibilidade de dedução pelos possuidores que não se enquadrem na
usucapião coletiva através de ação em face do proprietário, no exercício
de um direito potestativo de aquisição;
b) possibilidade de uma ação indenizatória do proprietário, e não reivin-
dicatória, em que postularia, em face dos possuidores, a atribuição do
domínio em favor destes e o pedido de indenização;
c) possibilidade de dedução em ações possessórias ajuizadas pelo proprie-
tário, e não apenas em ações reivindicatórias.
Tal é a contribuição para o estudo e aplicabilidade do novo instituto.

Abstract: The article describes the doctrinal evolution on the legal status of
the judicial expropriation created by §§4º and 5º, article 1.228, of the Brazilian
Civil Code, as well as analyses previous legal cases in which the institute was
mentioned. As a conclusion, merging doctrinal lessons and legal cases, the
author suggests some options to foster its application.

Key words: Judicial expropriation. 2002 Brazilian Civil Code. Doctrine. Adverse
possession. Tenure. Judicial cases.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

MICHEL, Voltaire de Freitas. A trajetória doutrinária e judicial da desapropriação judicial:


perspectivas e prognósticos (§§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil). Revista Brasileira de
Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 21, n. 81, p. 143-157, jan./mar. 2013.

Cadastrado em: 02.07.2012


Aprovado em: 14.08.2012

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Consideraciones acerca de la justicia y la
verdad en el garantismo procesal y en el
activismo judicial

Juan Felipe Vallejo Osorio


El autor es abogado litigante, egresado de la Facultad de Derecho
y Ciencias Políticas de la Universidad de Antioquia en Medellín, con
estudios técnicos de Investigación Judicial en la Escuela Nacional
de Criminalística y Ciencias Forenses de Medellín. Actualmente
maestrando en Derecho Procesal Garantista de la Facultad de
Derecho de la Universidad Nacional de Rosario (Argentina).

Resumen: Algunas definiciones que han proporcionado la filosofía y la cien-


cia acerca de la verdad y la justicia han ocasionado que la sociedad soporte
imposiciones absolutistas de doctrinas o pensamientos que defienden una
concepción de la verdad como única y exclusiva. En el derecho procesal,
el problema radica en cuál o cuáles de las teorías imperantes son las más
apropiadas para garantizar a la sociedad un mejor proceso jurisdiccional que
obedezca a las necesidades humanas y por consiguiente brinde una mayor
protección de las garantías procesales de los individuos. Esta es la discusión
en las teorías del activismo judicial y del garantismo procesal, por lo que se
analiza si el uso de las concepciones de verdad por ellas utilizadas constitu-
yen per se una mayor garantía a los derechos de quienes se ven inmersos en
un proceso judicial, o si por el contrario, con el uso impositivo o autónomo
de alguna de las concepciones acerca de la verdad en los sistemas de pen-
samiento jurídico precitados se favorece aún más el desarrollo del proceso
jurisdiccional y de contera la materialización de los derechos fundamentales.

Palabras-clave: Verdad. Garantismo. Activismo. Motivación. Prueba de oficio.


Proceso. Justicia.

Sumario: I Introducción – II Importancia de la discusión sobre el concepto de


verdad en el ámbito del proceso jurisdiccional – III La concepción de verdad
en las teorías del activismo judicial y del garantismo procesal – IV Garantismo
y activismo ¿doctrinas irreconciliables? – V La necesidad de trascender la dis-
cusión – VI Conclusiones – Referencias

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160 Juan Felipe Vallejo Osorio

I Introducción
Tú y yo con un pedazo de razón y compartiendo el mismo corazón.
Que hemos partido en dos. Día a día.
(Rubén Blades)

La búsqueda de la verdad ha sido un objetivo permanente y hasta ahora


insatisfecho de los humanos en todas las áreas de la vida. Esta palabra que se
grabó en la conciencia universal como un fin primordial del pensamiento y la
racionalidad humana, ha producido desde los más grandes triunfos y avances,
hasta las más grandes derrotas y retrocesos; pues no se puede olvidar que fue por
la búsqueda de la verdad que grandes pensadores de la humanidad alcanzaron
las más altas cúspides del entendimiento y de legado nos proveyeron de la filo-
sofía, el racionalismo y la ciencia. Pero también, que fue por el uso desmedido y
unidimensional de algunas doctrinas que predicaban concepciones absolutistas
de la verdad, que luego de miles de años y después de la humanidad conocer
a grandes pensadores como Aristóteles cuando afirmaba que "no es posible ni
que alguien la alcance plenamente ni que yerren todos",1 no obstante se llegó a
sacrificar a miles de iguales en campos de concentración en la Alemania nazi, en
América Latina a secuestrar y a mutilar cabezas y en la España franquista a sobre-
vivir comiendo las nanas de la cebolla2 como magistralmente lo relata en cantos
Joan Manuel Serrat. Atrasos y derrotas (que aunque hoy se consideran útiles para
el desarrollo de la humanidad) fueron sin lugar a dudas en nombre de una verdad,
presentándose lo que manifestó Bertolt Brecht al decir que "Cuando la verdad sea
demasiado débil para defenderse tendrá que pasar al ataque".3
En el mundo del derecho (preponderantemente en la tradición jurídica del
civil law) dicha discusión no ha sido ajena a la misma problemática, es decir, la
constante búsqueda de la justicia ha desembocado en la creación de herramien-
tas jurídicas, políticas y por ende procesales que propenden por descubrir la ver-
dad de los hechos, esto ha determinado las normas, la jurisprudencia y la doctrina
en diferentes tiempos y lugares, produciendo efectos benéficos y nocivos para la
sociedad normada. Por eso, hoy en día sigue siendo una constante en los círculos
académicos y científicos, pues la adopción de una concepción de verdad en el

1
Cfr. ARISTÓTELES. Metafísica, libro II, 993 b 1, Ed. Planeta Deagostini, España, 1999, p. 63.
2
HERNÁNDEZ, M. (1910-1942) Poema. Las nanas de la cebolla. Consultado el 9 de abril de 2012. En:
<http://www.bauleros.org/nana.html>.
3
BRECHT, B. (1898-1956) Consultado el 4 de enero de 2012. <http://www.allthelikes.com/quotes.
php?quoteId=2551759&app=210190920142>.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 161

pensamiento jurídico dominante puede generar el cambio no sólo de paradigmas


jurídicos sino también del sistema procesal en que se fundan dichas teorías.
Criticar la búsqueda de la verdad como fin del proceso jurisdiccional, con
una intención no academicista sino como reformulación práctica de los paradig-
mas procesales que han imperado en la comunidad jurídica, genera una ruptura
en lo que ha sido la constante en la mayoría de los sistemas constitucionales
latinoamericanos que aceptan la verdad como fundamento intrínseco y sine qua
non de la decisión justa. No obstante, en palabras de Tulián, "Solo el desarrollo del
conocimiento puede poner en cuestión al paradigma [...] la crisis demanda una
reconstrucción de la teoría marco, nos informa Imre Lakatos. Es el momento de las
revoluciones científicas, nos dice Kuhn".4
La discusión en el ámbito académico no solo ha servido para fundar dogmá-
ticamente teorías en relación al fin de la prueba, sino que además ha permitido
evoluciones doctrinales que han repercutido en la mentalidad de los estudiosos
del derecho, en los operadores jurídicos en especial en las personas que se encuen-
tran en el ejercicio del derecho y, por consiguiente, en la práctica judicial y en la
administración de justicia, ya que pese a las constantes vaguedades que implica
definir un sistema político, por sus diferentes aristas y matices, esto es, sin caer
necesariamente en abstracciones simplistas y autoritarias que desvíen la discu-
sión y tiendan a desechar los argumentos de parte, es necesaria la utilización de
todos los aportes que al respecto han hecho las áreas del conocimiento humano
(y no solamente las jurídicas). En esto radica la reformulación del paradigma y en
sí, la creación de un nuevo modelo de pensamiento, es decir, una línea diferente,
una posibilidad teórica, un nuevo punto de partida, un recomponer, un reorientar,
un volver a empezar, para llegar al origen de una nueva pasión teórica que tiene
la necesidad, intención y vocación de convalidación en la práctica. Pues en parte,
de eso se compone la vida misma en su cotidianidad, caminamos por el mundo
tratando de convalidar nuestros pensamientos, deseos y sueños en la práctica de
nuestras relaciones.
Un ejemplo de lo anterior, a mi modo de ver, es la descomposición (que no
descomplejización) que realiza el modelo de pensamiento llamado Garantismo
Procesal cuyo precursor en Suramérica es el profesor y destacado jurista Adolfo
Alvarado Velloso quien defiende una forma diferente de pensar el proceso juris-
diccional, instituyéndose en quienes optamos por escuchar y percibir la bondad

4
TULIÁN DOMINGO, C. Fundamentación racional del garantismo procesal. En: Revista Breviarios
Procesales Garantistas, Ed. Unaula, Medellín, 2011. p. 9.

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de sus ideas, en el origen de una nueva pasión,5 es decir, en un simple deseo de


cambiar lo hasta ahora existente, palpito de otras ideas y teorías, que en el concierto
de nuestras dudas, agrandan la posibilidad de entrar a luchar dialécticamente con
los modelos preexistentes que hoy en día se encuentran tan profundamente
anquilosados, que no permiten su descomposición.
En desarrollo de lo anterior, trataré de concretar algunas ideas generales del
por qué y para qué puede servir el abandono de la verdad en el mundo jurídico,
especialmente, en las áreas procesales. Para ello he utilizado algunos métodos de
investigación, en especial el de la argumentación jurídica el cual según Cruz Parcero
permite saber construir con corrección los argumentos.6 Partiré únicamente de
dos tendencias, la escuela del activismo judicial y la escuela del garantismo pro-
cesal. Ambas aplican y diseñan, cada uno por su lado, teorías contradictorias, a fin
de justificar dogmáticamente un sistema procesal y un modelo de pensamiento
determinado como el más apropiado para tramitar los procesos judiciales en la
sociedad.
La pregunta que ha de realizarse a lo largo del escrito es ¿Cuál de las con-
cepciones de verdad y por ende de justicia utilizadas por los pensamientos
jurídico-procesales garantista y activista proporciona una mayor protección y
materialización de los derechos fundamentales de las partes y de contera garan-
tizan un mejor modelo procesal? el objetivo principal será proporcionar a las tesis
existentes argumentos suficientes para reformular la discusión que se presenta
actualmente en el mundo jurídico-procesal entre publicismo y privatismo, es
decir, contribuir a reorientar la discusión hacia el estudio y análisis de la natura-
leza en que se fundan los modelos procesales planteados por ambas doctrinas y,
determinar cuál de ellos obedece aún más a la nueva lógica constitucional con
que han nacido las repúblicas democráticas modernas. Es decir, responder a la
pregunta elemental de ¿Cómo deben ser juzgados los ciudadanos en los Estados
democráticos y constitucionales de derecho?

5
El simple deseo de reformular lo que no se comparte es el inicio de la pasión, que en palabras del
profesor Salcedo "ha sido el motor que ha puesto a andar el mundo, para bien o para mal. Para
poder vivir, en el sentido humano de VIVIR. Se necesita estar apasionado. Lo demás es puro orga-
nismo" (SALCEDO GUTIERREZ, H. El acto de amar. Ideas irracionales más frecuentes. En: Revista del
Círculo de Humanidades de Unaula. Paradojas del Estado Colombiano, Nº 23/24, Junio de 2003,
p. 12).
6
Cfr. CRUZ PARCERO, J. El método para los juristas. En: Observar la ley. Compilador Cristian Courtis.
Ed. Trotta, Madrid, 2006. p. 34.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 163

II  Importancia de la discusión sobre el concepto de verdad en el


ámbito del proceso jurisdiccional
En primer lugar, hay que decir que no existen teorías acerca de la verdad
procesal que sean propias de la dogmática jurídica, es decir, que hayan sido cons-
truidas con conceptos proporcionados por las ciencias jurídicas, en su mayoría, las
teorías que tratan el tema en el derecho lo hacen basadas en las concepciones y
los aportes que al respecto han hecho principalmente la filosofía, la epistemolo-
gía, la ciencia y diversas disciplinas que han tratado el tema. Es decir, ha sido una
incorporación teórica de conceptos generalmente epistemológicos y filosóficos
amoldados a las teorías de la dogmática jurídico-procesal.
Por lo tanto, la naturaleza de la discusión acerca de la verdad en el derecho
procesal se ha construido interdisciplinariamente, no obstante, la trascendencia
de los avances epistemológicos, el concepto de verdad en el derecho procesal
ha sido estudiado genéricamente hablando, entre los que afirman que en el pro-
ceso es posible llegar a la verdad a partir de los hechos, y quienes dicen que es
imposible llegar a la misma, aceptando a lo sumo una aproximación a la certeza
en el proceso jurisdiccional. Por lo anterior, vale la pena señalar lo dicho por el
profesor Álvarez Gardiol cuando afirma que "No hay ninguna ciencia que pueda
crecer sin inducciones generalizadoras y éstas, son siempre el resultado de un
adiestramiento filosófico, que nos indica hasta qué punto es posible generalizar
el contenido de una observación concreta".7
Así y a pesar de que algunos quieran negarlo, la búsqueda de la verdad en
el proceso jurisdiccional es una decisión influenciada por la ideología con que
fue diseñado y justificado políticamente dicho ordenamiento procesal en un país
determinado.8 Así, la naturaleza del proceso y los fines que éste persiga están
determinados por la intencionalidad del legislador cuando redacta las normas
procesales.

7
ÁLVAREZ GARDIOL, A. Epistemología jurídica. Ed. Fundación para el Desarrollo de las Ciencias
Jurídicas, Rosario-Argentina, 2010. p. 54.
8
Colombia está en la lista de los diez primeros países que comparten el deshonroso título de tener
uno de los aparatos judiciales mas morosos y congestionados del mundo, sin embargo y a pesar
de ser un problema de carácter nacional, se encargó al Instituto Colombiano de Derecho Procesal,
para que realizara el Código General del Proceso que regirá los destinos jurídicos del país y que
con un corte eminentemente inquisitorio fue aprobado sin mayor discusión en el parlamento.
Esta es una muestra más de las políticas antidemocráticas que hegemónicamente se han insti-
tuido en Colombia, en donde pequeños grupos de poder con ideologías definidas se encargan
de imponer al pueblo sus tesis mediante leyes que en la práctica no han tenido los resultados
sociales esperados y por el contrario han consolidado aún más las desigualdades y la violencia.

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Siguiendo la línea planteada, un antecedente clave para empezar a explicar


la tendencia del llamado activismo judicial, es el Concilio IV de Letrán. Taruffo afir-
ma que en el año 1215, en Roma, se cambia el fin del proceso cuando el papa
Inocencio III "impuso en el Concilio IV de Letrán la prohibición de la práctica de las
ordalías como medio para determinar si una parte debía ganar o perder en una
controversia judicial".9
Dicha prohibición produjo un cambio en la mentalidad jurídica respecto
al fin del proceso y por consiguiente respecto al sistema probatorio reinante en
el momento, ya que las ordalías eran consideradas el único medio idóneo para
resolver las controversias judiciales.10 Estas, según Taruffo, "... eran comúnmente
llamados 'juicios de Dios' pues se fundaban, como premisa, en la convicción de
que Dios, debidamente invocado para asistir a las partes, determinaría directa-
mente el resultado de la prueba, haciendo evidente la inocencia o culpabilidad
del sujeto que se sometía a ellas".11 En el mismo sentido, afirma, "las ordalías se
consideraban como instrumentos para alcanzar una decisión definitiva en los casos
de incertidumbre, más que como técnicas dirigidas a descubrir la verdad".12
Si seguimos al precitado autor, se podría llegar a pensar que en el siglo XIII el
concepto de verdad en el proceso no era lo más relevante, pues la ordalía buscaba
una relación entre el autor y la divinidad "y el aspecto más importante del proce-
so lo representaba la obligación del demandado de, 'purgarse' o 'purificarse' de
la acusación dirigida contra él por el actor".13 Es decir y, según Taruffo, la prueba
no buscaba la demostración de los hechos sino la purificación de la persona. Sin
embargo, dar un vistazo general a dicho Concilio permite afirmar que este, antes
de acabar las ordalías, las profundiza, ya que se institucionalizó una visión de la fe
católica como la única y verdadera, teniendo el sacerdote de turno las herramien-
tas necesarias para espiar a quienes probablemente dudaran de la presencia de
Dios. Llama la atención el siguiente apartado del Concilio de Letrán:

9
TARUFFO, M. Simplemente la verdad. El juez y la construcción de los hechos. Traducción de Daniela
Accantino Scagliotti, Ed. Marcial Pons, Madrid, 2010. p. 14.
10
Para Taruffo, no se pueden catalogar de irracionales dichos medios de prueba, pues corremos el
riesgo de estar afectados por el Ruckschluss, esto es, el error usual de interpretar eventos pasados
con criterios modernos. Afirma el autor que en la efervescencia del momento histórico, es decir
en una época extremadamente confesionalista la intervención divina era lo único que se conside-
raba y se concebía racional (Cfr. TARUFFO, op. cit., p. 16).
11
Ibídem, pp. 15-16.
12
Ibídem, p. 18.
13
Ibídem, p. 20.

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[...] El sacerdote, por su parte, sea discreto y cauto y, como entendido,


sobrederrame vino y aceite en las heridas [cf. Lc. 10, 34], inquiriendo dili­
gentemente las circunstancias del pecador y del pecado, por las que
pueda prudentemente entender qué consejo haya de darle y qué reme-
dio, usando de diversas experiencias para salvar al enfermo.14

Otro aspecto importante que incidió en el cambio del paradigma acerca de


los fines del proceso, además del Concilio de Letrán y que permitió que se empe-
zara a concebir la verdad en el proceso jurisdiccional hasta llegar a lo que hoy se
conoce como la búsqueda de la verdad a partir de los hechos, fue la incursión en
el proceso de la prueba testimonial, cuyo fin era dar claridad frente a los hechos y
no únicamente, purgar el alma del presunto responsable. Asimismo, se institucio-
nalizó el interrogatorio de parte y la prueba documental, instalándose una nueva
concepción respecto al fin del proceso en la administración de justicia, que
empezó a abandonar la búsqueda de la verdad mística a una verdad objetiva o
certa veritas, pero sin abandonar, el misticismo reinante que predominó en la época
y que generó la concepción de indagación judicial que perduró en los sistemas
procesales del civil law.
Sin embargo, Taruffo, indica que dicha concepción del proceso, partió el
abandono total de dichas instituciones. Así:

Esta concepción de la verdad objetiva como finalidad del procedimiento


judicial fue precisamente una de las novedades fundamentales de sus
reformas. La búsqueda de la verdad se impuso en la práctica a los jueces
y partes y llevó a dejar al lado los viejos medios de prueba a través de las
ordalías [...] De este modo, la búsqueda de la verdad sobre la base de las
pruebas había llegado a ser una de las funciones fundamentales del juez,
que disponía de los poderes necesarios para desarrollarla.15

Por su parte, Gascón Abellán afirma que en el transcurso del tiempo se cam-
bió la búsqueda a partir del conocimiento racional de la certeza absoluta, pues
"para las nuevas epistemologías empiristas, el objetivo del conocimiento inducti-
vo no es ya la búsqueda de certezas absolutas, sino tan solo de supuestos o hipó-
tesis válidas, es decir, apoyadas por hechos que las hacen probables",16 agregando
que en esto radica su miseria, pero también su grandeza pues "se ha restaurado la

14
Aparte del Concilio de Letrán de 1215. Capitulo 21. Consultado el 07 de noviembre de 2012. En:
<http://es.catholic.net/sacerdotes/222/2454/articulo.php?id=23235>.
15
Ibídem, p. 22.
16
GASCÓN ABELLÁN, M. Los hechos en el derecho. Bases argumentales de la prueba. Ed. Marcial Pons,
Madrid, 1999, p. 8.

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confianza en una racionalidad empírica que, renunciando al objetivo inalcanzable


de la certeza absoluta, recupera, a través del concepto de probabilidad, un ele-
mento de objetividad".17
Es por esto que el concepto de probabilidad o la declaración de hechos
probados, ya no pueden considerarse como un momento místico o insuscepti-
ble de control racional, como fue concebido en diferentes ideologías jurídicas,
introduciéndose garantías epistemológicas que logran una mayor fiabilidad en la
declaración de los hechos y a su vez permiten el control y análisis de los mismos
mediante su revisión. Por eso se abre paso la exigencia de la motivación.18
Esta reivindicación epistemológica, se constituye para los defensores del
acti­vismo judicial y de los sistemas mixtos o inquisitivos de juzgamiento, en uno
de los más grandes avances en la cultura jurídica, pues la motivación permite
saber las razones, esto es, la justificación racional y no mística de las decisiones
judiciales. En otras palabras, la férrea confianza depositada en el ser humano
quien apoyado únicamente en su criterio sería capaz de tomar la mejor decisión,
ajustada a la ley y sobre todo razonada, pues será la falta de esa razón la que des-
legitimará al fallador y permitirá al individuo acudir a los recursos para exigir una
mejor argumentación.
Lo anterior me permite delimitar el campo teórico en que se mueven las
dos tendencias enunciadas, pues tal y como se argumentará, los procesos basa-
dos en el activismo judicial, que además, se fincan en sistemas de enjuiciamiento
mixtos o inquisitivos, les importa y tienden hacia un ejercicio epistemológico en
las decisiones judiciales, esto es, la búsqueda de la verdad a partir de la aproxima-
ción a los hechos, argumentando que con tal ejercicio epistemológico y racional
del Juez, es posible la consecución (pese a su naturaleza valorativa, abstracta y
relativa) de la justicia que se plasmará en la decisiones que se toman en los pro-
cesos que contengan actuaciones investigativas en una especie laboratorio de la
verdad judicial llamado proceso jurisdiccional.
De esta manera, se empezó a concebir la importancia de la verdad en el
dere­cho continental o civil law, en donde el camino se fue despejando y pasó de
la ordalía a la prueba legal o tasada y de ésta al modelo de la libre convicción que
se asienta en una visión probabilística del conocimiento. No obstante, la intención
de inquirir acerca de la verdad se mantiene hasta ahora, pues las actuales legis-
laciones procesales siguen otorgando poderes exorbitantes al Juez para que se
aproxime a la verdad que corresponde a los hechos, señalando reglas que tienden

17
Ibídem, p. 8.
18
Cfr. Ibídem, p. 8.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 167

a reafirmar el proceso publicista en donde confluyen en el juez los poderes para


llegar a la verdad y por ende tomar las decisiones justas cumpliendo las partes una
función subsidiaria respecto a este quien le asiste el poder-deber de desarrollar la
justicia. Sin embargo, afirma Gascón que "una vez asentado que la constatación
de ciertos hechos constituye el fundamento de aplicación de la norma, el problema
surge a la hora de determinar las posibilidades o límites de su conocimiento, o
sea, lo que pudiéramos llamar epistemología judicial de los hechos".19
En síntesis, se puede afirmar que la importancia de las discusiones acerca
del fin del proceso y la verdad procesal es de tal entidad, que durante la historia
ha permitido el cambio de paradigmas y modelos mentales respecto al fin del
proceso, logrando influenciar la conciencia judicial y aportando a uno de los logros
jurídicos más significativos en la historia del derecho como lo es la incorpora-
ción de la epistemología al campo jurídico y la exigencia de la motivación, hoy
considerada en los modelos mixtos o inquisitivos como la garantía fundamental
para la materialización de los derechos sustanciales y procesales. Sumado a lo
que consecuencialmente produce dicha exigencia epistemológica y que explica
Igartúa Salaverría, cuando señala que: "A ello se añade, como corolario, la indis-
ponibilidad del deber de motivar. Queda vetado al legislador ordinario dejar la
motivación de las sentencias a merced de la voluntad de las partes".20
En contraste con lo anterior, las bases para la consolidación del sistema
acusatorio de enjuiciamiento tuvo su punto de partida en la Carta Magna de
Inglaterra que fue expedida también en 1215, (en una fecha cercana al Concilio
de Letrán) y que fuera la inspiración del llamado sistema adversarial o acusatorio
propio de la tradición jurídica del common law, dicha Carta consistió en un pacto de
convivencia que contenía la promesa del Rey Juan Plantagenet (conocido como
Juan sin Tierra) a sus súbditos (quienes opusieron la ley al poder despótico de la
monarquía) de garantizarles un juzgamiento de pares no sujeto al capricho real,
esto es, un proceso concebido como método de debate de dos iguales ante un
tercero imparcial que asegura por este solo hecho la igualdad entre ellas.21
Por lo tanto, si el método para resolver las controversias, encuentra sustento
en la igualdad jurídica de las partes (pues la desigualdad natural no le corresponde
igualarla al juez) que acuden a un tercero imparcial quien deberá garantizar esa

19
Ibídem, p. 13.
20
IGARTUA SALVERRÍA. J, El razonamiento en las resoluciones judiciales. Ed. Palestra-Temis, Lima-
Bogotá, 2009, p. 14.
21
Cfr. ALVARADO VELLOSO, A. Lecciones de derecho procesal civil. Compendio del libro Sistema
Procesal: Garantía de la libertad. Adaptación a la legislación de Colombia por William E. Grisales
Cardona. Ed. Librería Jurídica DIKAIA, Medellín, 2011, pp. 73-79.

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168 Juan Felipe Vallejo Osorio

igualdad, no es menester ni función del juez averiguar o inquirir por la verdad real
de los hechos, sino más bien, fijar los hechos que exponen las partes para adecuar
a ellos una norma jurídica, esto es, para que se dé la aplicación efectiva de la ley,
confirmando mas no probando, la acción o excepción de una de las partes y fallar
a partir de los elementos confirmatorios aportados por cada uno de los resisten-
tes contribuyendo así al mantenimiento de la paz social.
Al ser el juez un tercero imparcial en el sistema acusatorio, se entiende que
no puede favorecer de ninguna manera a las partes en contienda, quienes por estar
enfrentadas, su lógica adversarial no obedece a la regla general de la buena fe
que se desprende de las constituciones que permiten legislaciones procesales
inquisitivas y situaciones como la prueba de oficio, la iniciativa probatoria del
juez, las labores para mejor proveer, la carga dinámica de la prueba, los aligera-
mientos probatorios y exenciones de prueba, son rechazados ya que dan ventajas
a una de las partes, situación que antes de ser justa, consolida aún más los con-
flictos, ya que precisamente es la igualdad ante la ley y la constitución es decir, la
igualdad que otorga a las partes el proceso jurisdiccional, la que desarrollará la
recte iudicari.
La importancia de la discusión contiene la idea de repensar cual es el modelo de
enjuiciamiento imperante en la sociedad y cual es el más adecuado para estruc-
turar un sistema procesal coherente, en este sentido el profesor italiano Taruffo
afirma que la hipótesis según la cual "... habría una conexión directa entre la pre-
sencia de poderes de instrucción del juez y la naturaleza autoritaria del sistema
político en el que tales poderes estuvieran previstos, parece tener un contenido
más serio y exigente...".22 De ahí que no se puede desechar prima facie la discusión,
pues de ella nace la necesidad que existe hoy en día de analizar la complejidad
de los problemas estructurales de la mayoría de sistemas procesales actuales y
así proponer salidas a la crisis, esto es, un análisis que permita la proposición de
una verdadera coherencia legislativa que desarrolle el modelo político y democrá-
tico más acorde a las realidades y necesidades sociales, y que sin caer en la poli-
tización de la discusión, construya a crear las bases de un verdadero sistema de
enjuiciamiento que desarrolle los postulados democráticos del debido proceso,
que hoy está mejor representado por el modelo acusatorio, que se instituye en
las sociedades modernas como el limite al ejercicio arbitrario del poder. Discusión
que parte del entendimiento que se tiene acerca del proceso jurisdiccional, el cual

22
TARUFFO, M. La prueba. Ed. Marcial Pons. Traducción de Laura Manríquez y Jordi Ferrer Beltrán,
Madrid, 2008, p. 162.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 169

tratan de definir y, sobre el cual se han las teorías acerca del fin de la prueba, la
verdad, la justicia y del proceso y que en la práctica determinan la adopción de
modelos mixtos, inquisitivos o acusatorios, esto es que acepten o no la búsqueda
de la verdad en el proceso jurisdiccional.

III  La concepción de verdad en las teorías del activismo judicial y del


garantismo procesal
Si bien existen otras teorías en donde se estudia la verdad en el derecho,23
por fines académicos el escrito está concentrado en las dos grandes corrientes
de derecho procesal que tienen más influencia en América Latina. La primera de
ellas es la escuela del activismo judicial,24 que a pesar de sus matices doctrinales
ha defendido como ya se adelantó, que el juez, de una manera inquisitiva, tenga
y ejercite los poderes oficiosos necesarios para desarrollar la verdad o encontrarla
al interior del proceso jurisdiccional. Así, Parra Quijano quien propugna la tesis de
la verdad como ideología afirma:

En el proceso, cualquiera que él sea, teniendo en cuenta sus características,


es necesario averiguar la verdad. Cada vez que se plantea estrechar el con-
cepto de verdad, para construir una especie para el proceso, donde exista
ligereza probatoria para construir el caso, se abre la puerta, sobre todo en
materia penal, para que penetre la arbitrariedad. No hay peor injusticia que
construir la sentencia sobre una no verdad. Debemos cuidarnos de hacer
estos planteamientos, porque justificamos la arbitrariedad.25

Esta posición ha sido adoptada históricamente por la Corte Suprema de


Justicia de Colombia, Sala Civil, que en relación al tema afirma "La atribución que

23
Cfr. PARRA QUIJANO, J. Manual de derecho probatorio. Decimaoctava edición, Ed. Librería Ediciones
del Profesional, Bogotá, 2011, p. 151. Explica las tesis de los que consideran que es irrelevante
conseguir la verdad, la tesis de la imposibilidad para acceder a la verdad, la tesis de la obtención
formalizada de la verdad.
24
Cfr. CUELLO IRIARTE, G. Derecho probatorio y pruebas penales. Ed. Legis, Bogotá, 2008, p. 378.
En este texto afirma el autor que sus más destacados exponentes son Bentham, Ricci, Bonnier,
Framarino, Dellepiane, Claría Olmedo, Laurent, Martínez Silva, Concha, Parra Quijano, Alsina,
Becerra, Morillo, Igartúa Salaverría, Pabón Gómez, Cafferata Nores, Moras Mom, Concha, entre
otros, y especialmente por la gran mayoría de las legislaciones y la misma jurisprudencia para el
caso y a título ilustrativo se citan las sentencias de la Sala de Casación Penal de la Corte Suprema
de Justicia: julio 5 de 1972, Magistrado Ponente: Luis Henrique Romero Soto, G, J, T. CXLIII. Otras
más actuales son; la de Enero 21 de 2004, Magistrado Ponente: Jorge Portilla. En Extractos de
jurisprudencia, 4º trimestre, pp. 159 y 160. Otro exponente de dicha corriente y que el autor no
incluye en el listado es el maestro italiano Michele Taruffo.
25
Ibídem, PARRA QUIJANO, p. 149.

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170 Juan Felipe Vallejo Osorio

la ley otorga al funcionario para decretar pruebas de oficio [...] si bien por el interés
público del proceso no constituye una facultad sino un deber [...] establecido para
garantizar la búsqueda de la verdad real que no aparece en el expediente...".26
Asimismo, la honorable corporación en pronunciamientos más recientes
establece que "El funcionario judicial tiene el poder deber de realizar justicia; pro-
teger, más que solo reconocer, las garantías judiciales; buscar la reconstrucción de
la verdad histórica y la correcta aplicación del derecho sustancial".27
Hoy en día con la aprobación del nuevo Código General del Proceso, la con-
fusión entre si la iniciativa probatoria del Juez es un poder o un deber, se aclaró
por dictado del Instituto Colombiano de Derecho Procesal al redactar dicho código,
quien determinó en consonancia a sus tesis marcadamente activistas, que es un
deber del Juez, quien ya no estará regido por el podrá decretar las pruebas de
oficio, sino que deberá decretar las que considere necesarias para esclarecer los
hechos objeto de la controversia.28
Así se puede afirmar que el activismo judicial ha sido la teoría imperante
y hegemónica a lo largo de la historia del derecho procesal en Colombia y en la
mayoría de países suramericanos de habla hispana.29 Ellos han otorgado al juez
poderes oficiosos para que llegue a la verdad de los hechos, tal y como se pensó
en la época precitada, en donde posiblemente se morigeró la ordalía y se empezó
a concebir la verdad en el proceso jurisdiccional para llegar al descubrimiento de
los hechos, esa atribución de poderes al Juez denota una tendencia activa del
mismo ya que dicha escuela de pensamiento jurídico-procesal parte de la idea
generalizada de que el ser humano tiene la capacidad y la posibilidad para acceder
a la verdad. Y es el juez quien ha sido facultado por el pueblo y el Estado para
administrar justicia siendo su deber descubrir la verdad de los hechos y así tomar
la decisión justa.
El precitado procesalista colombiano Parra Quijano afirma que la primera vez
que se le otorgaron facultades probatorias al juez, fue en la Ordenanza Procesal
Civil Austriaca de Franz Klein y explica que la necesidad lógica de decretar pruebas
de oficio se justifica porque:

26
Sentencia de la Corte Suprema de Justicia de Colombia. Sala Civil. 4 de marzo de 1998. Expediente
4921. M.P. Dr. Carlos Esteban Jaramillo Schloss.
27
Sentencia de la Corte Suprema de Justicia de Colombia. 19 de octubre de 2006. Expediente 26240.
M.P. Dr. Sigifredo Espinoza Pérez.
28
Artículo 170 del Código General del Proceso colombiano: “El juez deberá decretar las pruebas de
oficio, en las oportunidades probatorias del proceso y de los incidentes y antes de fallar, cuando
sean necesarias para esclarecer los hechos objeto de la controversia.”
29
En el mismo sentido TARUFFO. La prueba, p. 164.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 171

No es posible pedirle a un juez que renuncie a su necesidad de información


para orientar el proceso cognoscitivo, salvo que se maneje la ideología de
que lo importante es dirimir el conflicto, sin que importe si ello se logre
sobre la verdad o sin ella. Podríamos afirmar que la interiorización ideoló-
gica evita la necesidad cognoscitiva, pero mientras esa no sea la ideología,
aquella debe ser saciada, y ello, en el proceso, solo se logra con las pruebas
de oficio.30

Esta concepción de la búsqueda de la verdad en el proceso judicial, ha sido


duramente criticada por el Garantismo Procesal quienes afirman dicha ideología
ha sido el germen de la crisis en el aparato judicial que afrontan la mayoría de
países latinoamericanos. No es raro descubrir en el pensamiento activista de los
procesalistas hegemónicos afirmaciones excesivas, por ejemplo, en Argentina el
juez Pelayo afirma en relación a las máquinas detectoras de mentiras, que a pesar
de la colisión con el principio constitucional de nadie estar obligado a declarar en
contra de sí mismo, que; "cabe la esperanza, revitalizando la fantasía de aquellos
inventores, que — aprovechando el avance tecnológico — aparezcan máquinas
más perfeccionadas que bien podrían ser utilizadas con los testigos, ya que ellos
tienen ineludible obligación legal de decir la verdad".31
La corriente del activismo judicial, también llamada de publicización o socia-
lización del proceso por los garantistas, ha tenido como pilar fundamental el papel
activo del juez, "quien frente al modelo clásico del juez pasivo o inerte, pasa a ocu-
par una posición activa en el proceso. En la medida que tiene una función pública
de resolver los conflictos, se considera que deben atribuírsele las iniciativas necesa-
rias para lograr la máxima eficacia en su función".32
En este sentido, si bien las partes pueden disponer del derecho, no ocurre lo
mismo con el proceso, pues el juez tiene plenos poderes para actuar de oficio en el
mismo, dejándole al principio de disponibilidad de las partes un carácter secunda-
rio, ya que el juez como se dijo, está facultado por la administración pública y tiene
en sus manos el poder-deber de alcanzar la justicia, esto es, la tutela efectiva de los
derechos, aún por encima de la resolución misma del conflicto.33

30
Cfr. PARRA QUIJANO, J. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Ed. Temis, Bogotá, 2004,
pp. 19 y 39.
31
PELAYO LABRADA, A. El arte y la ciencia de desentrañar la verdad en la prueba testimonial. Revista
del Colegio de Abogados de la Plata, Nº 57, Argentina, 1996. p. 158. Consultado el 9 de abril de
2012. En: <http://www.academiadederecho.org/biblio_display_obras.cgi?wid_obra=917>.
32
PICO I JUNOY, J. Derecho civil e ideología, “El derecho procesal entre el garantismo y la eficacia. Un debate
mal planteado”. Coordinador Juan Montero Aroca. Ed. Tirant lo Blanch, Valencia, 2006, p. 110.
33
Cfr. Ibídem, PICO I JUNOY, p. 110.

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172 Juan Felipe Vallejo Osorio

Por su parte, la escuela del Garantismo Procesal, cuyo precursor principal en


Europa es el profesor Montero Aroca empieza a tomar fuerza en el pensamiento
jurídico-procesal, especialmente por las ideas planteadas en el texto Proceso Civil
e Ideología compilación de varios autores dirigida por él y que produjo gran-
des repercusiones en Latinoamérica, especialmente en Argentina con el jurista
Alvarado Velloso quien fundó allí la escuela del Garantismo Procesal, quien a partir
de un serio análisis de la naturaleza y origen del proceso jurisdiccional defiende,
genéricamente hablando, que la prueba y el proceso no pueden llegar a la verdad
de los hechos, sino más bien y a lo sumo a la certeza,34 no siendo prioritario para
el juez la realización de justicia por su carácter relativo, tampoco la verdad por la
imposibilidad práctica de su consecución, sino más bien el mantenimiento de la paz
social con la garantía fundamental de la imparcialidad y la aplicación material de
las garantías propias del debido proceso. Así:

Dado que la verdad es inalcanzable (por su carácter objetivo), optamos


por la certeza, el convencimiento, como el fin de la prueba, que (por su
calidad de subjetivo) se tiene, se logra. No quiere decir que se desconozca
la necesidad de buscar la verdad, que ha de brillar en el proceso, en la
decisión judicial, ya que ninguna decisión es justa si está fundada en un
acertamento errado de los hechos.35

Afirma el mencionado jurista argentino, quien apoya sus teorías princi-


palmente en Briseño Sierra y Ferrajoli, que en el Garantismo Procesal "se trata,
en cambio y simplemente, de mantener un irrestricto acatamiento a las normas
constitucionales cuando las contenidas en la ley — de clara jerarquía menor —
toman caminos divergentes de ellas, que parten de un valor implícito reconocido
hoy como el más importante en diversas constituciones del continente: el de la
libertad",36 coligiendo que la obsesiva persecución de la llamada verdad objetiva
es simplemente una degeneración conceptual que ha estado presidida por una
base ideológica totalitaria, y se ha manifestado primero en la función de la juris-
dicción y luego en los principios del proceso. De ahí la búsqueda de una explicación
del sentido de la prueba acomodada a una concepción garantista del proceso.

34
Cfr. Ibídem, CUELLO IRIARTE, p. 383. Afirma y se adscribe a esta teoría que no ve en la prueba la
verdad, sino un acercamiento a la certeza. Y que sus principales defensores son Lessona, Micheli,
Chiovenda, Calamandrei, Guasp, Cossio, Planiol y Ripert; Devis, Rocha, De Santo, Montero Aroca.
No incluido por el autor y que también apoya esta tesis es Alvarado Velloso.
35
FRANK, J., citado por Cuello Iriarte, G. Derecho probatorio y pruebas penales. Ed. Legis, Bogotá,
2008, p. 384.
36
ALVARADO VELLOSO, A. Lecciones de derecho procesal civil, p. 32.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 173

Dicha concepción, en palabras de Pico i Junoy, teórico de postura intermedia


en la discusión, hace parte de la Constitucionalización de las garantías procesales,37
basándose, según Andrea Meroi, en las tesis que han "... destacado la ingenuidad
de las posiciones objetivistas a ultranza en el campo del conocimiento científico y,
particularmente, procesal...",38 que además descartan la "... subjetividad específica
del conocimiento judicial como un factor insuperable de incertidumbre".39 Pues
en palabras de Ferrajoli este "investigador particular legalmente cualificado que
es el juez [...], por más que se esfuerce en ser objetivo, siempre está condicionado
por las circunstancias ambientales en las que actúa, por sus sentimientos, sus in-
clinaciones, sus emociones, sus valores ético-políticos".40 Por lo tanto la garantía
de la imparcialidad deberá complementarse con la impartialidad, que exige que
el Juez no pueda convertirse en parte, ya que dicha actitud desquicia la naturaleza
del proceso jurisdiccional y agudiza los conflictos sociales.
Estas tesis han llegado a una aportación original que responde a la distinción
entre prueba, en sentido científico, que no admite oponibilidad alguna a sus resul-
tados, y confirmación, que se basa en la existencia de una afirmación de hecho,
de una negación y de la confirmación de aquella afirmación por los medios que
pueden generar certeza al juzgador.41
De esta manera, dicho movimiento de pensamiento procesal, en una expli-
cación somera y bajo una visión rápida, estudia cómo la doctrina reconoce a quie-
nes le asignan a la palabra prueba un exacto significado científico (aseveración
incontestable y, como tal, no opinable) en tanto que muchos otros que ingresan
ya al campo del subjetivismo puro y por ende de la opinabilidad, hablan de acre-
ditación, verificación, comprobación, búsqueda de la verdad real y certeza, o de
convicción.42
En conclusión, tal como se afirmó anteriormente son dos las posiciones que
se han estructurado en torno a la cuestión de los poderes del juez en un sistema
político y jurídico determinado, ambas obedecen a diferentes lógicas del proceso
y justifican en sí mismo dos posiciones acerca del fin del proceso que van íntima-
mente ligadas a las concepciones acerca de la búsqueda de la verdad. Aunque

37
Cfr. PICÓ I JUNOY, op. cit., p. 112.
38
MEROI A, A. La imparcialidad judicial. En: Revista Breviarios Procesales Garantistas. Ed. UNAULA,
Medellín, 2011, p. 109.
39
Ibídem, p. 10.
40
FERRAJOLI, L. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. Tercera edición, Ed. Trotta, Madrid,
1998, p. 56.
41
MONTERO AROCA, J. Prologo. La prueba judicial. Adolfo Alvarado Velloso. Ed. Tirant monografías,
2008, p. 11.
42
Cfr. ALVARADO VELLOSO, A. La prueba judicial. Reflexiones críticas sobre la confirmación procesal.
Ed. Tirant monografías, 2008, p. 14.

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ninguna de estas teorías (en principio) niega la necesidad de encontrar la verdad


en el proceso judicial, se notan divergencias teóricas de carácter sustancial, pues
el activismo acepta la posibilidad de la verdad (total o parcial) en el proceso juris-
diccional sobre la cual se funda el fallo justo, y el garantismo la imposibilidad de
satisfacción (total o parcial) de la misma por lo que el convencimiento que se le
genere al juez y no la prueba que genere éste, será la base del fallo justo, de allí
que la discusión se torna eminentemente filosófica pero con repercusiones en la
práctica que trascienden lo filosófico, pues en el plano político de la aceptación
de una u otra corriente depende por ejemplo que en un sistema jurídico se acepte
o no la prueba de oficio.
Sin embargo, como también se dijo, el pensamiento jurídico no ha renunciado
a la idea de la verdad en el proceso, por lo que se hace necesario retomar la discu-
sión y analizarla desde los efectos prácticos que se desprenden de la adopción de
una u otra posición teórica. Sin embargo, y a manera de ejemplo, el proceso judi-
cial de Colombia está creado con base en ideologías marcadamente populistas,
es decir, por la sed de justicia en nuestro problemático país, el discurso acerca de
la verdad y por ende de la justicia genera más adeptos que enemigos. Cualquier
consideración en contra de la necesidad o existencia de la verdad y por ende del
valor de la justicia puede generar reacciones en contra, no solamente en la acade-
mia sino también en los círculos parlamentarios que al final son los que aprueban
la vigencia o no de un sistema determinado. Es decir, Colombia mantiene una
férrea esperanza en la jurisdicción como instrumento para desarrollar la justicia,
así las decisiones que en ella se adopten no contribuyan ostensiblemente a la paz
de la sociedad. Nos negamos rotundamente a abandonar la voluntad de verdad
mucho más en el plano jurisdiccional, en relación al tema se puede traer a colación
a Calvo González quien afirma respecto a la crisis de la verdad en el proceso:

Ello no implica sin embargo un desfallecimiento en la voluntad de verdad,


porque no se complace ni en su pesimismo epistemológico ni en su rela-
tivismo radical y del todo escéptico; es decir, ya sea considerado que no
existe verdad que pueda ser descubierta y contada, o porque tanto valga
descubrir y contar una verdad u otra, se trata más bien de una reiteración
e insistencia en la "voluntad de verdad", si bien adoptando un enfoque
diferente y doble.43

43
CALVO GONZÁLEZ, J. La verdad de la verdad judicial. En: Verdad (Narración) Justicia. Coordinador
José Calvo González, Ed. Universidad de Málaga, Málaga, 1998, pp. 7-38.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 175

Agregando el mencionado autor que en los tiempos antiguos hubo una


única verdad, pero en la cultura moderna se parte de la ausencia de un criterio
cognitivo y unívoco de la verdad o falsedad, por lo que es posible abrazar más de
una concepción a la vez, aconsejando que cuando se trate de esta discusión en
la filosofía del derecho y sobre la justicia habrá que "Tener conciencia, de que, en
efecto, ‘siempre habrá para contar dos historias de la verdad’".44 Afirmación que se
puede complementar con la que célebremente dijera el nobel de física Niels Bohr
"lo contrario de una verdad no es una mentira, sino otra verdad".45
Por lo anterior, centraré el análisis en la discusión originada en dichas escuelas,
y sus implicaciones en el actual reformismo procesal, pues como sabiamente lo dijera
Piero Calamandrei "... una nueva ley procesal, aun cuando represente el non plus ultra
de la perfección científica no tiene como necesaria consecuencia el mejoramiento de
la justicia sino se apoya sobre las posibilidades prácticas de la sociedad en la que debe
operar".46

IV  Garantismo y activismo ¿doctrinas irreconciliables?


En un análisis genérico sobre los fines del activismo judicial y del garantismo
procesal, se puede constatar que dichas dogmáticas en la práctica judicial aceptada
no se excluyen entre sí, por el contrario, las legislaciones civiles han tenido en su
estructura tanto de principios dispositivos como de principios publicistas; ya que
ninguna de ellas ha negado la importancia de realizar la justicia al interior del pro-
ceso ni la posibilidad de que las partes gestiones sus intereses al interior del mismo,
sin embargo, el resultado de dichas mixturas parece no haber tenido los resultados
esperados por quienes han diseñado los procesos que rigen la tradición jurídica
del civil law y sus legislaciones procesales de mixtura inquisitiva-­adversarial, ya
que para el pleno funcionamiento de uno u otro, habrá que renunciar necesaria-
mente a ciertos principios constitutivos de la naturaleza de cada uno de dichos
sistemas.
Las discusiones procesales tendientes a armonizar dichos paradigmas, con
el fin de constituir un ordenamiento jurídico que contenga las bondades de uno
u otro sistema, si bien colaboran a la conciliación académica o judicial de la dis-
cusión, se agotan en el análisis y desarrollo de uno u otro instituto procesal en

44
Cfr. Ibídem, p. 38.
45
Ver: VILA-MATA, E. Como Vivir. Diario El País, Cultura y opinión, España. Versión Web. Consultado el 24
de enero de 2012. En: <http://elpais.com/diario/2012/01/24/cultura/1327359606_850215.html>.
46
CALAMANDREI, P. Proceso y justicia. Discurso pronunciado en la sesión inaugural del Congreso
Internacional de Derecho Procesal Civil. Florencia, 30 de Septiembre de 1950. En: Revista Athina 1,
Ed. Grijley, Lima, 2006, p. 372.

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176 Juan Felipe Vallejo Osorio

el caso en concreto, pero tienden a desconocer las causas generales de la crisis


jurisdiccional, pues si bien teórica y legislativamente se han construido sistemas
procesales mixtos, esto es, que compartan postulados dispositivos y publicistas,
la mora, la cantidad de conflictos, la congestión judicial, la arbitrariedad judicial
antes de mermar, se incrementa día tras día en niveles insólitos.
Como se anunció, el activismo judicial y el garantismo procesal como doc-
trinas marco para dos tipos de procedimientos judiciales, si bien obedecen a
distintas lógicas jurídicas y a dos modelos de pensamiento político y económico
antagónicos,47 en el campo teórico y en la práctica legislativa dichos modelos no
son contrarios entre sí, situación que nos lleva a pensar que la actual polémica
pareciera estar injustificada, ya que obedece más a discusiones político-ideológicas
que jurídicas. Así afirma Madariaga Condori "... se ha ido mitificado a ultranza,
sacrificando al proceso entre sus pugnas ideológicas, sin advertir los problemas
que originan si se pretende excluir de manera absoluta uno al otro..."48 de esta
manera, continuamente en los círculos académicos se indica que las críticas y el
mal llamado debate lo han propiciado principalmente los garantistas, quienes
bajo de una supuesta victimización critican al activismo y no aceptan que este
modelo nace del rechazo social del juez pasivo, que tiene en cuenta las desigual-
dades sociales, materiales y jurídicas de las partes por lo que es su misión igualar-
las, esto es, acercando al juez a la misma sociedad. Concluyendo (y a pesar de que
el garantismo parte de la aceptación de las desigualdades naturales de los seres
humanos), que en el campo jurídico no se pueden legitimar las desigualdades,
por el contrario, una de las garantías para consolidar la paz social es que la apli-
cación del juez iguale jurídicamente a los desiguales. Por lo tanto afirman como
lo ha dicho el precitado autor que: "El publicismo no significa ni ‘autoritarismo’ ni
‘fascismo’, esencialmente constituye la respuesta a una necesidad histórica, ante el fra-
caso del privatismo, de orientar al proceso a lograr sus fines concretos y abstractos,

47
Cfr. Ibídem, MONTERO AROCA, p. 309. Como ejemplo de lo anterior el compilador en su artículo
Sobre el mito de la “buena fe procesal” afirma que “En la doctrina comunista ha sido un lugar común
partir de que la división entre derecho privado y derecho público, que era algo propio de los esta-
dos capitalistas, se basaban en la propiedad privada y más allá en la existencia de intereses indi-
viduales tutelados por el Derecho. Ahora bien, unificado todo el derecho en lo público, y habida
cuenta del nexo profundo que existe entre el derecho sustantivo y la forma procesal de su realiza-
ción, no existía ya razón de ser de un proceso civil distinto de los otros procesos. Naturalmente por
este camino la consideración fundamental es que el proceso civil es un ‘fenómeno social de masas’.”
48
MADARIAGA CONDORI, L. El derecho procesal entre dos ideologías (Garantismo vs. Publicismo):
problemas y perspectivas de desarrollo. Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Garantista.
2007. Consultado el 11 de marzo de 2012. En: <http://egacal.e-ducativa.com/upload/2007_
MadariagaLuis.pdf>. p. 2.

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donde el Juez era poco menos que un convidado de piedra, que hacía lo que las
partes querían"49 (itálico del texto).
Por eso en el sistema activista se atribuyen dichas facultades a un juez inter-
ventor, ordenador e instructor del proceso,50 quien ha sido facultado por la ley y
en consecuencia por el pueblo para administrar justicia y resolver los problemas
litigiosos. Ese intervencionismo y esa presencia del Estado en el proceso judicial,
tiene íntimas implicaciones en modelos políticos, económicos y sociales inter-
vencionistas o sociales, que exigen un juez activo que dirija el proceso, que sea
imparcial (es decir, que no tenga intereses personales en el fondo del asunto) y
sobre todo creativo, a quien le asiste la obligación de realizar la justicia, ya que
es desde esta forma de pensamiento, el fin primordial del derecho sustancial y
procesal, justicia que es desarrollada por un Juez interventor, no un juez simple-
mente director del proceso como el que propone el garantismo. En este sentido
lo importante para el modelo activista es alcanzar primeramente la justicia y así,
después de haberse tomado una decisión justa con base a los hechos, se dará la
resolución de los conflictos sociales.
Contrario sensu el garantismo procesal es la doctrina jurídica que avala la
eliminación de los poderes oficiosos y de instrucción del juez, por ser poderes
desarrollados en un momento histórico donde predominaba una ideología de
corte inquisitorial que desnaturaliza la figura del juez y que lastimablemente se
ha mantenido en la mayoría de procesos, llevando a que las sociedades soporten
jueces autoritarios y expiatorios que han agudizado la crisis judicial, postura teó-
rica no aceptada por los activistas.51 Por lo tanto, en el garantismo la importancia
del papel del juez en el proceso, se reemplaza por la importancia de los poderes
de las partes, quienes tienen la facultad de disponer a su amaño de sus derechos,
por consiguiente, son quienes autogestionan al interior del proceso o ex proceso
la solución de sus problemas, de esta manera lo más importante es la resolución
de los conflictos con independencia de si dicha adjudicación del derecho obede-
ció a la verdad desde la base de la justicia, ya que si el juez interviene en el proceso

49
Ibídem, p. 3.
50
Para Clemente Díaz, la doctrina publicista del proceso ha desarrollado los poderes de la jurisdicción
que son (decisión, coerción e instrumentación) como aquellos inherentes al juez para el cum-
plimiento de sus funciones (Cfr. DÍAZ, C. Los poderes de la jurisdicción. En: Problemática actual del
Derecho Procesal, Libro Homenaje a Amílcar A. Mercader, Editora Platense, La Plata, 1971, p. 346).
51
Para mayor claridad ver la crítica realizada por Taruffo (La prueba, p. 172). Afirma el autor: “Una vez
más, no obstante, es imprescindible evitar confusiones conceptuales e ideológicas: es posible que
un sistema no se inspire en la ideología liberal del siglo XIX sin que por ello deje de ser democrático,
y sobre todo sin resultar autoritario o totalitario solamente porque le atribuye al juez un papel
activo en la adquisición de las pruebas.”

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en búsqueda de la verdad para tomar una decisión justa, lo único que hace es
favorecer a una de las partes en contienda, situación que desquicia el sistema
adversarial de iguales y consolida los conflictos sociales, de aquí que la imparciali-
dad es el elemento constitutivo del proceso que a su vez está conformado por tres
sujetos, uno de ellos el juez, diferenciándolo del procedimiento que lo integran
únicamente dos sujetos.
Para refutar lo anterior los activistas llevan al límite el papel del juez en un
modelo acusatorio, evocando aquellas épocas en donde el juez asumía la actitud
de un convidado de piedra o juez de mármol.52 Afirmando además que dicha
posición tiene la lógica de un modelo procesal adversarial (a la antigua), también
llamado privatista, revisionista53 o neoprivatista, propio (si asumimos la discusión
desde las ideologías políticas) de un estado liberal o capitalista de tipo gendarme
que legitima las desigualdades, porque el juez no asume la función de hacer justicia
sino de fallar. Esto es un sistema macabro que agudiza las desigualdades sociales
porque se adjudica el derecho a quien venza sin consideración del juez.
Las discusiones que generan dichas contraposiciones reciben adeptos y
enemigos en las aulas de clase y en los concurridos congresos, por ejemplo, la cul-
tura hegemónica del activismo judicial en Colombia hace que miles de personas
se reúnan anualmente en el Congreso Colombiano de Derecho Procesal organi-
zado por el Instituto Colombiano de Derecho Procesal a discutir temas procesales
que a la postre, no son más que disquisiciones que propenden por generar mas
herramientas, normas, figuras, decretos. etc. que le permitan al Juez hacer justi-
cia y llegar a la verdad mediante discursos eminentemente políticos orientados
a la aceptación general. Sin embargo y a pesar de que el auditorio apasionada-
mente aplaude complacientes con la carencia de autocritica, olvidan quienes allí
actúan y que además hacen las normas procesales del país, que los problemas de
Colombia no se agotan en el juez, estos deben solucionarse integral y estructural-
mente en la misma sociedad, esto no se logra otorgándole más poderes a un Juez
omnipotente. Más bien, sería un avance limitar los mismos a quien puede abusar
de ellos, tal como lo ha demostrado la historia republicana.

52
Como corolario de la afirmación propongo el tango interpretado por Alfredo de Angelis y su
orquesta típica Volvamos a empezar. En donde el artista habla del juez de mármol como aquel
juez que no acepta ningún otro tipo de consideración más allá de la que lo enviste su grado de
fallador (En: <http://www.youtube.com/watch?v=bky1-eEoIh0>).
53
En sentido contrario: MONTELEONE. G. El actual debate sobre las “orientaciones publicísticas” del
proceso civil. En: Proceso Civil e Ideología. Coordinador Juan Montero Aroca. Ed. Tirant lo Blanch,
Valencia, 2006, p. 189. Afirmando el precitado autor que los revisionistas italianos, como él, no han
recibido prebendas por sus posiciones jurídicas ni encargos políticos. Radicando el problema en
que los contrarios niegan la realidad, incluso acosta de deformar lo real.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 179

Teniendo en cuenta que las legislaciones civiles en Colombia han compartido


contenidos dispositivos y publicistas, las imputaciones de pertenecer a una u otra
escuela dependen de la aceptación o no de las facultades oficiosas del juez, sin
embargo, muy pocos se han atrevido a desafiar la hegemonía activista y denunciar la
crisis del modelo procesal imperante. Esa bondad se engendra al interior de quienes
comienzan a ver en el garantismo una posibilidad teórica y práctica de refutar y cam-
biar el modelo de enjuiciamiento hasta ahora convalidado como único y definitivo,
pues dicha escuela analiza la naturaleza del proceso y el rol del Juez en la sociedad,
esto permite a la postre realizar un análisis estructural de las complejas problemá-
ticas sociales y no solamente judiciales, ya que si nos permitimos descomponer la
figura del Juez y colocarla en el lugar para el cual fue creado, podremos avizorar una
necesaria desjudicialización de la vida privada y las relaciones sociales, que permitirá
observar franca y directamente las causas reales de los problemas sociales y no des-
cargar la solución de todo conflicto en los hombros del Juez.
Si bien el garantismo defiende un sistema verdaderamente adversarial
como el más propicio para la solución de los conflictos, no desconoce con esto, la
complejidad de las causas sociales que generan dichos conflictos. Sin embargo,
algunos han reducido la complejidad de la discusión logrando que la misma gire,
tal como lo afirma la profesora Rueda Fonseca, en que:

Las fallas del modelo se han resuelto por cultores de la adhesión en el


pensamiento adversarial o publicista, que se refleja en el procedimiento
y que desvían la labor judicial. La construcción de las normas procesales
han sido literalmente la sustancia de una ideología, que en muchos casos
ha quedado más como un impacto que en efectos reales contentivos en
tiempo, esfuerzo, productividad y descongestión.54

Por lo anterior la misma profesora de la Universidad de los Andes, citando a


Bordenave afirma:

De la lectura del actual Código de Procedimiento Civil colombiano y el


mentado proyecto de Código General del Proceso, no hay mayores dife-
rencias.55 Un teórico basado en fuentes del decisionismo encontraría que
entre uno y otro sobresale la excesiva ritualización del proceso judicial.
Sigue siendo vetusto e ineficaz. Por otra parte quienes visualizan el dere-
cho procesal como garantista, rematan señalando que la crisis del proceso

54
RUEDA FONSECA, M. La crisis de la justicia civil Un efecto de la tradición procesal. En: Revista Correo
Judicial, Edición Nº 17, Universidad de los Andes, Bogotá, 20 de febrero de 2012, p. 4.
55
RUEDA FONSECA, M. Por qué hay que reestructurar la propuesta de Código General del Proceso. En:
Revista Correo Judicial, Edición Nº 11, Universidad de los Andes, Bogotá, 26 de agosto de 2011.

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civil está en el aumento de poderes y facultades que se han encargado a


los jueces.56 57

No obstante lo anterior, Damaska afirma que la confusión que existe entre


los sistemas reactivos y activos, (que en su orden son los mismos modelos garan-
tistas y activistas) se debe precisamente a las reformas nativas que introducen los
abogados quienes varían cada uno de los sistemas a su amaño. Así, transcribo en
extenso lo que afirma el precitado autor:

En el continente los abogados siguen atribuyendo a la oposición un sig-


nificado más técnico y descriptivo, y enmarcan el otorgar control sobre
el proceso — tanto a los funcionarios como a las partes — en paráme-
tros que les parecen normales a la luz de su experiencia histórica. Temas
como el interrogatorio de testigos parecen “naturalmente” ser responsa-
bilidad de los funcionarios a cargo del proceso, de modo que las formas
alternativas de obtener pruebas no están incluidas en la dicotomía entre
el procedimiento adversarial o inquisitivo. Por otra parte, para los an-
gloamericanos ambos conceptos están envueltos en juicios de valor: el
sistema adversarial tiene una abundante retórica que exalta las virtudes
de la administración de la justicia liberal, en contraste — en las antípodas
— con un proceso autoritario: como el sistema de proceso criminal en el
continente, antes de su transformación al inicio de la Revolución Francesa.
Además se imaginan los temas que pueden ser asignados o bien a las par-
tes o quien toma la decisión, bajo la luz de la experiencia angloamericana,
para que el estilo adversarial también incluya, entre otras características,
la presentación de pruebas ofrecidas por las partes.58

Lo cual le permite al autor concluir con la defensa del purismo que tanto se
ha criticado al garantismo, pues afirma:

Parafraseando a un poeta, a menudo, en nuestro propio medio, dos cami-


nos de la justicia son divergentes: queremos avanzar por ambos, siendo
un solo viajero. En tanto que nos gusta lamentar la burocratización de la
justicia, también guardamos valores queridos e inseparables de ella; que-
remos que nuestros jueces sean imparciales, y también queremos que
muestren una implicación “activista”.59

56
BORDENAVE, L. La regla de la congruencia y su flexibilización: la necesidad del debate ideológico
procesal. p. 315. Consultado el 11 de marzo de 2012. En: <http://egacal.e-ducativa.com/upload/
AAV_LeonardoBordenave.pdf>. Citado por RUEDA FONSECA.
57
Ibídem, RUEDA FONSECA, M. La crisis de la justicia civil. Un efecto de la tradición procesal, op. cit., p. 12.
58
DAMASKA, M. Las Caras de la Justicia y el Poder del Estado. Traducción de Andrea Morales Vidal,
Editorial Jurídica de Chile, Santiago, 2000, p. 14.
59
Ibídem, p. 414.

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Por lo que, la pregunta de si es posible reconciliar dichas teorías, habrá que


responderla desde dos ópticas, por un lado desde la política: afirmando que el
proceso de un país es una determinación política del legislador, que para el caso
colombiano se ha apoyado en pequeños grupos de poder, en donde juega la
ideología de quienes diseñan el sistema, la consolidación de un modelo u otro
depende del convencimiento que se logre en un momento y lugar determinado.
Por otro lado en cuanto a lo jurídico: la práctica legislativa y judicial ha demostrado
sin mayores dificultades que los sistemas procesales han compartido postulados
dispositivos y publicistas, aunque si bien dicha legislación puede no obedecer
necesariamente a la realidad política de países autoritarios, la realidad procesal
está basada en una lógica inquisitiva contraria a la naturaleza democrática y repu-
blicana con que se creó el constitucionalismo moderno que tiene como una de
sus causas fundacionales el rechazo a la verdad divina del rey o la iglesia, quienes
por muchos años fueron los únicos facultados por Dios para condenar a las per-
sonas, por ejemplo por creer como lo hizo Galileo Galilei que la tierra es redonda.

V  La necesidad de trascender la discusión


No se puede negar que el discurso jurídico (legislativo) nace en la política
y muere en ella, pues la ley se crea en debates políticos y termina en los mismos
debates al interior del congreso de la república.60 Esta situación no implica que la
opción legislativa de adoptar uno u otro de los sistemas de enjuiciamiento pro-
cesal estudiados en un código de cualquier índole, lleve a la negación per se de la
importancia de unos u otros principios constitucionales. Sin embargo, aceptán-
dose por ejemplo el activismo judicial como modelo predominante en un sistema
procesal, se está sacrificando de entrada y por este solo hecho la imparcialidad, la
oralidad, la igualdad, que son incompatibles con el modelo de enjuiciamiento mixto
o inquisitivo. Tampoco aceptándose plenamente el garantismo, habrá por este
solo hecho la satisfacción a cabalidad de la imparcialidad, la igualdad, celeridad.

60
Para el caso colombiano se criticó por la profesora María del Socorro Rueda Fonseca en el IV
Congreso Internacional de Derecho Procesal “La reparación de las víctimas en el contexto de las
reformas judiciales y Código General del Proceso para Colombia” celebrado el 23 y 24 de febrero
de 2011 en Bogotá, la ausencia de otros saberes científicos y sobre todo de la representación del
legislador primario en la redacción del proyecto de Código General del Proceso, pues este fue
encargado a una camarilla de estudiosos quienes redactan la propuesta, que por ausencia de dis-
cusión político-jurídica en el órgano legislativo secundario, se terminará aprobando sin mayores
modificaciones, siendo un Código de unos cuantos para todos, pese a las complejas realidades
sociales, políticas, económicas y administrativas, con que cuenta el panorama nacional.

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Sin embargo, la justicia basada en la verdad de los hechos no puede ser


una bandera defendida a toda costa, pues si bien el constitucionalismo moderno
también opta, a pesar de su relatividad, por el desarrollo de la justicia en las deci-
siones judiciales, hoy en día resulta más sano aceptar que no se puede conseguir
la verdad y por ende la justicia como sea, porque inevitablemente sacrificaremos
el método, que es el proceso, por el fin, que sería la justicia. Y si el fin justifica los
medios, porque no violar la intimidad a una persona con el fin de saber la verdad.
De las reflexiones hechas por Picó i Junoy se podría desprender una postura
intermedia ya que este afirma:

El objetivo de este trabajo es someter a crítica estos nuevos planteamien-


tos, excesivamente ideologizados, para llegar a una solución o postura
intermedia entre ambas posiciones doctrinales, logrando así su equi-
librio, pues la eficacia del proceso sin garantismo es inadmisible desde
un punto de vista constitucional, y el garantismo sin eficacia tampoco es
aceptable si lo que se pretende es lograr la tutela judicial más justa posi-
ble, y no puede olvidarse que la “Justicia” también es un valor supremo en
la mayoría de los textos constitucionales... por ello, debemos esforzarnos
en buscar una postura intermedia, que sin conculcar ninguna garantía
constitucional de las partes logre la máxima eficacia del proceso.61

Sin embargo, habrá que tener en cuenta que si esa postura intermedia pre-
tende conciliar dos modelos antagónicos y por su naturaleza incompatibles entre
sí, como lo son el modelo inquisitivo y el modelo acusatorio, se correrá inevita-
blemente el riesgo de que en la práctica se terminen sacrificando las garantías
constitucionales en aras de la eficacia que suponen las decisiones justas basa-
das en la búsqueda de la verdad de los hechos. No obstante, haber existido en la
mayoría de ordenamientos la alternativa jurídica del non liquet tan legítima como
razonable, que le permitiría al juez no fallar mientras persistan las condiciones de
insuficiente claridad para emitir un fallo ajustado a la ley.
Por lo anterior, la discusión de si es productiva la aceptación de la verdad o
la aceptación de la certeza en la dos escuelas planteadas no tiene sentido si no
se precisa antes desde que sistema de enjuiciamiento se está hablando, pues evi-
dentemente al Inquisitivo le interesa inquirir para condenar, al Acusatorio acusar
para fallar. Por lo tanto, de esa precisión inicial dependerán las conclusiones a las
que se lleguen y determinarán si se está hablando de sentencias con calidad de
veredictos, o sentencias con calidad de fallos.

61
Ibídem, PICÓ I JUNOY, p. 112.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 183

Lo que de alguna manera se erige como el gran logro de la filosofía y la


epistemología al incursionar en el derecho, es haber logrado un cambio de pa-
radigma que se manifiesta en las sentencias que a partir de la motivación han
limitado aún más el capricho judicial contribuyendo así a la anhelada paz social.
Pero hoy en día la filosofía y epistemología del derecho no pueden negar el ori-
gen ideológico en que se basan los sistemas de enjuiciamiento y los riesgos que
implica tener al proceso como un laboratorio epistemológico de la verdad,62 tam-
poco se puede desconocer que la verdad se encuentra atada a la subjetividad,
por lo que el pensamiento académico y jurídico debe auspiciar una concepción
de verdad que sin abandonar la intención de querer encontrar la realidad pasada
de los hechos y por consiguiente decidir con mayor justicia (como lo propone el
activismo judicial) respete, por encima de ese deseo, las garantías constitucio-
nales de las partes, situación que ayudará a la resolución de los conflictos y el
mantenimiento de la paz social independientemente del encuentro de la verdad
de los hechos, prefiriendo así, el principio de disponibilidad en el proceso (como
lo propone el garantismo procesal) que las actuaciones oficiosas del juez.
Esta es una concepción acerca de la verdad en el derecho que logra una
materialización aún mayor de los derechos y garantías fundamentales en los pro-
cesos jurisdiccionales y que puede contribuir a la reconciliación conceptual de
dichas teorías, pues deberá ser claro, que ninguna razón de eficacia puede primar
sobre las garantías constitucionales de los sujetos sometidos o víctimas de un
proceso judicial. Y que el encuentro de la verdad no es hoy en día aceptado desde
las mismas epistemologías y filosofías modernas, mucho menos, que justifique
el sacrificio del bienestar humano. Esto permite trascender y llegar a un fin más
justo, mediante un método sustancialmente y procesalmente más legitimo como
lo es el proceso que respeta las garantías constitucionales de las partes.
La aplicación de los poderes oficiosos del juez, que resulta apenas normal
y común en los sistemas de enjuiciamiento inquisitivo o mixto y que son defen-
didos por el activismo judicial, han traído más negaciones de los derechos que el
mismo encuentro de la verdad y por consiguiente una mayor justicia. Ya que la
utilización reiterativa y constante de dichos poderes la se han encargado de con-
solidar los modelos procesales existentes, que por siglos han imperado en nuestro

62
En sentido contrario, cfr. TARUFFO. La prueba, p. 172. El Jurista italiano agrega que: “Cuanto se ha dicho
hasta el momento demuestra, más allá de toda duda razonable, que no existe ninguna conexión
entre la atribución al juez de poderes más o menos amplios de iniciativa instructora y la vigencia
de regímenes políticos autoritarios y antidemocráticos.” Por ejemplo los principales ordenamientos
europeos “respecto a cuyo carácter democrático no es posible tener dudas sensatamente”.

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país y que hoy como antes continúan en crisis. Obnubilando la posibilidad real de
cuestionarnos acerca de cómo sería un proceso verdaderamente adversarial don-
de el Juez y las partes cumplan su cometido y el proceso sea un método pacifico de
diálogo y no como ocurre hoy en día que la tendencia es ver al proceso como la
solución de todos los problemas sociales.
Siempre habrá argumentos en pro y en contra de una u otra concepción, sin
embargo, como evidentemente se muestra, la labor judicial no puede renunciar
a la aspiración de justicia, pero mucho menos puede sacrificar la imparcialidad e
impartialidad en las decisiones, pues son condiciones de existencia del proceso
jurisdiccional, ya que sin éstas dicho fallo tampoco puede considerarse justo.
De esta manera, no se puede negar prima facie la necesidad que tiene el juez
de saber la verdad de los hechos, sin embargo, esta necesidad no puede ir en con-
tra de la misma naturaleza del proceso, pues se correría el riesgo de transformar
la necesidad del proceso jurisdiccional, pudiéndose equiparar con cualquier otro
método legítimo o no de resolución de conflictos. El proceso como debate dialec-
tico entre antagónicos, permite aceptar lo que el mismo Taruffo acepta y es que:

En todos los procesos hay al menos una parte — aquella que sabe que
está equivocada — que no tiene interés en que se descubra la verdad; por
su parte, los abogados no son científicos que persiguen una búsqueda impar-
cial y desinteresada de la verdad, sino que tienen interés en que venza la
versión de los hechos que más le convenga a su cliente, con independen-
cia de la verdad.63

Es decir, la imparcialidad judicial como garantía de satisfacción de los dere­


chos en un Estado Social puede que no se vea menoscabada cuando el juez
indaga por lo ocurrido sin saber a qué parte puede favorecer, pero una decisión
de este tipo contribuye a agudizar el modelo reinante que como se dijo anterior-
mente, hay que reformular por su rotundo fracaso, bien aceptado es por el mismo
Ferrajoli que existe una subjetividad intrínseca en cada ser humano, la cual no es
ajena a los jueces quienes tanto en un proceso preponderantemente garantista
como en uno preponderantemente activista están permeados por diversos fac-
tores para proferir sus fallos y actuar en el proceso. Por eso el juez deberá ser la
garantía de esa imparcialidad, porque empeñarse en la búsqueda de la verdad
bajo el manto de la justicia no garantiza la consecución de esta, ya que en térmi-
nos positivistas y desde el discurso clásico del derecho, estaremos siempre frente

63
TARUFFO. La prueba, p. 179.

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de la verdad relativa, la que por su carácter provisional no implica siempre una


decisión justa, porque la justicia como valor también dependerá del observador,64
lo que no implica que no se pueda hablar de un consenso básico entre lo que es
correcto y lo que es incorrecto, lo que está bien o lo que está mal.
Así, según Agudelo "Se debe construir es una verdad que se califique por lo
correcto y aspire a la realización de valores concretos; la verdad se identifica con
los conceptos de lo justo o de lo correcto".65 Siendo razonable, como se explicó,
optar por una concepción de verdad que no elija por querer a toda costa descu-
brir los hechos que son materia de la litis y que por el contrario tienda a la certeza
del fallador, es decir, a un grado de convencimiento tal que su propia subjetividad
no lo atormente al momento de adjudicar el derecho. Y que dicha adjudicación no
sea con base a no verdades, sino que se preocupe por materializar el mayor nú-
mero de derechos al mayor número de partes, situación que estaría más acorde
a la verdad que debería importarle al derecho esto es la realización de la justicia
pero solo a partir de la garantía de la libertad.
Taruffo indica que para Ferrajoli la garantía jurisdiccional implica la afirma-
ción de los hechos como prueba, las pruebas, y la determinación imparcial de la
verdad. Aceptando también que cada día son más los veriphobics y los deniers
de la verdad, por lo que concuerda con Ferrajoli y centra la discusión acerca de
las garantías jurisdiccionales en la determinación de la verdad sobre los hechos.
Señalando dos razones: la primera; consiste en que una decisión justa no puede
dejar de indagar por la verdad de los hechos en la litis, pues esta no puede con-
siderarse como tal, si está basada en una falsedad o reconstrucción errada de los
hechos. La segunda; porque con una visión como la sostenida por el jurista de la
Universidad de Pavía, se puede orientar la discusión en un sentido epistémico,
esto es el abandono de la idea retórica de la prueba que solo tiene la función de
persuadir al juez.66

64
“José Arcadio Segundo, mientras tanto, había satisfecho la ilusión de ver un fusilamiento. Por el
resto de su vida recordaría el fogonazo lívido de los seis disparos simultáneos y el eco del estam-
pido que se despedazó por los montes, y la sonrisa triste y los ojos perplejos del fusilado, que
permaneció erguido mientras la camisa se le empapaba de sangre, y que seguía sonriendo aun
cuando lo desataron del poste y lo metieron en un cajón lleno de cal. “Está vivo”, pensó él. “Lo
van a enterrar vivo”. Se impresionó tanto, que desde entonces detestó las prácticas militares y la
guerra, no por las ejecuciones sino por la espantosa costumbre de enterrar vivos a los fusilados.”
Extracto de la obra Cien Años de Soledad que puede ilustrar acerca de verdad y la relatividad de la
justicia. En: GARCIA MARQUEZ, G. Cien Años de Soledad. Ed. Norma, Colombia, 2007, p. 215.
65
AGUDELO RAMIREZ, M. Filosofía del derecho procesal. Ed. Leyer, Bogotá, 2000, p. 98.
66
Cfr. TARUFFO, M. Leggendo Ferrajoli: considerazioni sulla giurisdizione. En: Rivista Trimestale di Diritto
e Procedura Civile. Giurre Editore, Anno LXII Nº 2. Giveno, 2008, p. 634-635.

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Sin embargo, la incursión de la epistemología en el proceso jurisdiccional no


puede confundirse y retroceder hacia lo inquisitorial en nombre de la búsqueda
de la verdad, ya que el juez no debe valerse eufemísticamente de su condición de
descubridor de la verdad o hacedor de la misma para desde la confinación de su
despacho y la univocidad de sus saberes indagar de qué manera es la verdad o
quien tiene la razón, pues esta labor la debe realizar, afirma Cavallone, sobre la
base de la evidencia adecuada y las afirmaciones hechas por las partes, en donde
se garantice que la decisión del juez no consiste en un juego de dados o un augurio
de lo que él considera verdadero por el simple hecho de realizar el ejercicio epis-
temológico en su decisión, es decir y como lo dijera Francesco Carrara "razonable-
mente y de acuerdo con el proceso".67
Cavallone quien defiende la veriphobia y crítica a Taruffo, afirma:

Ma il fatto é que la valenza simbolica dell’amministrazione della giustizia,


la correttezza del procedimento e la qualitá della decisione non possono
essere viste come valori indipendenti, o addirittura confliggenti, oggetto
di scelte ideologiche opposte da parte degli amici e dei nemici della veritá,
perché sono condizioni parimenti indispensabili della “buona giustizia”.
La decisione distillata nella solitudine en nel segreto del suo “laboratorio”
da un giudice che ha disapplicato le forme del procedimento (rispettate
invece scrupolosamente da Bridoye, convinto che forma mutata mutatur
substancia) potrá anche essere “veritiera” secondo rigorosi parametri epis-
temologici, ma sará inevitabilmente ingiusta.68

Sin embargo, la contraposición entre verifobicos y amantes de la verdad obe-


dece según Dittrich a que cada uno tiene puntos de partida diferentes, ya que el
primero habla del ser del proceso, mientras sus contradictores se ocupan del deber
ser del mismo. Por lo tanto, los que quieren tratar con el sistema positivo deben aban-
donar la visión maximalista del deber ser, para hacer frente a las normas positivas

67
Cfr. CAVALLONE, B. In difesa della Veriphobia. (Considerazioni amichevolmente polemiche su un libro
recente di Michele Taruffo). En: Rivista di Diritto Processuale, Anno LXV, Nº 1. Milano, Febrero, 2010,
p. 12.
68
Ibídem, p. 12. “Pero el hecho es que el valor simbólico de la administración de justicia, la rectitud del
procedimiento y la calidad de la decisión no pueden ser vistas como valores independientes, incluso
compitiendo, objeto de escogencias ideológicas opuestas de parte de los amigos y de los enemigos
de la verdad, porque son condiciones igualmente indispensables de la 'buena justicia'. La decisión
producida en la soledad, en el secreto de su 'laboratorio' por un juez que ha desaplicado las for-
mas del procedimiento (respetadas escrupulosamente por Bridoye, convencido que forma mutata
mutatur sustancia) aunque podrá ser 'verdadera' según rigorosos parámetros epistemológicos, sin
embargo será inevitablemente injusta”. Traducción libre para este ensayo del profesor Oscar García
Arcila de la Facultad de Derecho y Ciencias Políticas de la Universidad de Antioquia.

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que hacen parte del ser, aquí el jurista positivo cavalloniano por la fuerza diría el
autor, y a menos que las normas probatorias no hayan sido declaradas inconstitu-
cionales o derogadas por el legislador, no puede permitirse el lujo de ser taruffiano,
es decir, atender al deber ser. Por su parte, la visión minimalista implica entonces la
aceptación de que las normas probatorias, o por lo menos algunas de ellas, han
sufrido cambios que las han vuelto obsoletas, si no es abiertamente irracionales,
por el cambio de los tiempos y sus implicaciones en la doctrina y en las instituciones
jurídicas que han propiciado nuevas leyes, piénsese v. gr. El documento informático.
Esto conlleva y hace una invitación a una apuesta abierta a pensar respecto al deber
ser en el proceso.69
Por su parte, el garantismo procesal (que tiene una marcada fundamen-
tación ontológica) se relaciona íntimamente con la constitucionalización de las
garantías procesales (que exige además una mirada deontológica del proceso) ya
que este fenómeno obedece a un margen valorativo del proceso de cara a la jus-
ticia, pero cuya consecución no se puede alcanzar a todo precio, de esta manera,
en palabras de quienes nutren la discusión, la Constitucionalización de las garantías
procesales proceso se constituyen como un conjunto de principios y garantías que
deben estar presentes en todos los ordenamientos procesales,70 pues estas son
principios mínimos que hacen parte fundante de los postulados democráticos de
un país y estas garantías procesales de tipo constitucional (imparcialidad, celeri-
dad, oralidad, verdad, justicia) hoy en día deben fundar las bases para constituir
ordenamientos jurídicos integrales y armónicos, respetuosos del debido proceso
y las garantías constitucionales y no como se dijo hacer de cada una el fin en sí
mismo del proceso jurisdiccional.
Arduo reto le asiste a los defensores del activismo o publicismo para maxi-
mizar sus tesis en la vigencia de un sistema oral, público y contradictorio, donde
se llegue a decisiones justas sin sacrificar la imparcialidad como garantía funda-
mental, en donde exista un proceso célere y de cara a la justicia social, esto es,
uno que no esté dilatado por la incompetencia de algunos jueces que se escudan
en sus poderes (ahora sí plenamente) autoritarios para dilatar, favorecer a una
parte, y fallar por fuera de la ley y la Constitución. Las personas afectadas por estas
actuaciones además de ser víctimas del modelo procesal reinante, son víctimas
de la ilegitimidad de un funcionario que se hace llamar juez y que se nutre de la

69
Cfr. DITTRICH, L. La ricerca della veritá nel proceso civile. Profili evolutivi in tema di prova testimoniale,
consulenza técnica e fatto notorio. En: Rivista di Diritto Processuale, Ed. Cedam, Volume Nº 66, Milano,
2011, pp. 109-110.
70
Cfr. ibídem, PICÓ I JUNOY, p. 111.

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lógica del sistema que no le ha permitido asumir limpiamente su rol de Juez, siendo
uno más en las causas que consolidan la crisis judicial que atraviesan países como
Colombia, que su congestión y mora en el proceso jurisdiccional existente por
diversas razones; entre ellas la apatía de la población civil, de la administración
pública, de algunos académicos, funcionarios, legisladores y gobernantes, en
especial la corruptela de algunos de ellos, la consolidan como una de las más
demoradas en el mundo.
El reto para el garantismo, quienes desde el purismo que han propuesto
pretenden construir un nuevo modelo de pensamiento respecto al proceso juris-
diccional basado en la igualdad de partes ante el Juez, debe avanzar al estudio
del papel del juez en las sociedades en donde existen profundas desigualdades
sociales, profundizar, explicar y justificar v. gr. como podría aplicarse el sistema
garantista propuesto en los procesos internacionales que se adelantan en contra
de los Estados por violaciones a los derechos humanos, en donde la víctima de
las actuaciones oficiosas, carga dinámica, aligeramientos, presunciones, trans-
mutación de la naturaleza jurídica de la prueba, es precisamente el Estado quien
ostenta una notoria desigualdad (por no decir más) frente a la presunta víctima que
es un ciudadano que por obvias razones no está en las mismas condiciones que el
Estado demandado.
De esta manera, el gran avance que introducen los garantistas en criticar el
sistema dominante es querer traer al campo procesal moderno la exigencia de la
constitucionalización del debido proceso, abogando por un sistema oral, público,
contradictorio y sobre todo imparcial e impartial, como garantías fundamenta-
les. Situación que si bien no constituye un nuevo paradigma en materia procesal,
permite una crítica estructural del sistema hegemónico que no ha tenido los resul-
tados esperados por los activistas; entre ellos la consecución de la verdad y por
consiguiente mayor justicia. Manifestándose hasta ahora una mayor congestión
judicial y demora en los fallos de los procesos judiciales en que se le da un alto
protagonismo al juez. Sin embargo, en dicha empresa será menester defender
no solamente un mejor sistema procesal desde lo jurídico y lo académico, sino
también políticamente en escenarios legislativos.
La escuela del garantismo procesal ha sido señalada por diferentes autori-
dades académicas de no contener el rigor científico necesario para defender la
posiciones expuestas, por lo tanto, y partiendo de una generalización, en la acade-
mia colombiana dichas teorías no han tenido asidero y han sido objeto de repulsa
y rechazo por algunos que argumentan como lo hace el magistrado colombiano

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Vargas Silva que los autodenominados garantistas incurren en continuas falacias,


vaguedades, radicalidades y se victimizan constantemente, lo que genera la poli-
tización de la cuestión, situación que no permite una discusión objetiva y racional,
generando así la conducta de que quien tenga una réplica hacia ellos v. gr. una
defensa a la buena fe de las partes como regla general, será tachado de fascista o
autoritario,71 no pudiendo concentrar sus esfuerzos en exponer sus ideas y tenga
que desviar el discurso para defenderse de tan insidiosas imputaciones.72
Así afirma el magistrado:

No es fácil confrontar argumentaciones en las que encuentro enorme


carga emocional pues las ideas se presentan de modo que no se puedan
cuestionar: primero, por la rispidez del lenguaje utilizado por los “libera-
les”; segundo, por el papel de perseguidos y víctimas que asumen; ter-
cero por la estigmatización que utilizan, aunque paradójicamente, se la
imputan al contradictor.73

Sin embargo y a pesar de la hegemonía inveterada que ostentan quienes


han diseñado las normas procesales en Colombia, entre ellos los miembros del
Instituto Colombiano de Derecho Procesal de quien hace parte el magistrado pre-
citado, no se puede negar que ha sido el garantismo procesal, uno de los pocos
movimientos visibles que se ha atrevido en los escenarios académicos y políticos
a denunciar el fracaso de los códigos y sistemas procesales que se han creado con
la ideología activista y que son defendidos con orgullo por la mayoría de juristas
colombianos, alzando las banderas de nuevas propuestas investigativas y meto-
dológicas en aras a consolidar un sistema de enjuiciamiento coherente y legitimo,
a partir de una forma diferente de concebir el proceso jurisdiccional.
Los argumentos utilizados por la Corte Constitucional colombiana, com-
partidos por muchos respetados académicos entre ellos el magistrado Vargas
Silva y Taruffo, de que el Juez debe estar únicamente a favor de la verdad en su
pretensión de alcanzar un estado de cosas más justo y que la prueba de oficio
tiene como finalidad esclarecer los hechos materia de conflicto sin favorecer a

71
Cfr. VARGAS SILVA, L. Las ideologías en el proceso civil contemporáneo. Entre politización y falacias?.
En: 30 Congreso colombiano de Derecho Procesal, Ed. Universidad Libre de Colombia, 2009, p. 834 ss.
72
Error que indirectamente acoge el Instituto Colombiano de Derecho Procesal, que según se puede
constatar en sus últimas memorias, opto por no invitar a los llamados garantistas a participar en
sus congresos (con excepción de Omar Abel Benabentos), logrando una victoria desde la exclusión
y la censura, no desde el dialogo racional y civilizado en donde sean los argumentos de las partes
los que den la última palabra.
73
Ibídem, p. 820.

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190 Juan Felipe Vallejo Osorio

ninguno de los litigantes, parecen razonables si se acepta el argumento de que


dichos poderes fueran ejercidos únicamente cuando las partes han practicado
libremente su principio de disponibilidad, es decir con un carácter subsidiario y
complementario.74 Sin embargo, dicha lógica procesal no justifica los riesgos que
conllevan alcanzar el fin en sí mismo de llegar a una decisión justa bajo el eufe-
mismo de estar a parcializado solo a favor de la verdad. Pues como ya se afirmó,
aquella no es posible en su consecución y el juez no puede estar parcializado en
ninguna esfera del proceso, porque sacrificaría la esencia constitutiva del mismo.
Se podría decir que la mayor fortaleza de la doctrina publicista es aceptar
la ostensible desigualdad en que se encuentran generalmente las partes en con-
tienda, no solo a nivel procesal, sino también a nivel social, sin embargo contrario
sensu las tesis garantistas pregonan la igualdad procesal de las partes, no la natu-
ral (que no existe y es imposible) por eso el juez no tiene en sus hombros la carga
social de equilibrar, ni mediante el uso arbitrario y desmedido de sus poderes, ni
mediante el uso racional y controlado de los mismos las desigualdades sociales,
las brechas económicas y materiales que ha producido el desgobierno y la des-
composición social. Pues esto es un problema social que se debe combatir desde
las diferentes esferas del Estado que tiene implicaciones que escapan de la órbita
del Juez.
El proceso judicial se crea en la ley que produce el órgano legislativo de los
países, éste a pesar de sus constantes falencias, es el lugar donde se discuten las fór-
mulas con las cuales se puede mermar la brecha existente entre ricos y pobres. En el
ámbito de configuración sustancial de los derechos dicha representación debe op-
tar por garantizar mayores oportunidades y garantías sociales a favor de los débiles
y desamparados, pues ese deberá ser el fin de la labor legislativa. Pero en el campo
del legislador procesal, no se puede pretender traslapar ese discurso político, pues el
proceso deberá ser un método para garantizar los derechos de las partes y no un
mecanismo para igualar las desigualdades. Ya que de esta manera se consolidará
aún más el despotismo y la arbitrariedad. En el proceso, al juez le asiste la encomia-
ble labor de dar soluciones justas, esta justicia solo puede estar en las decisiones
que contengan jurídicamente la igualdad que otorga la Constitución y la Ley a las
partes en contienda, así las condiciones ontológicas de ellas no lo permitan.75 De no

74
En el mismo sentido. Ibídem, TARUFFO, p. 173.
75
En sentido contrario VARGAS SILVA, ibídem, p. 843. Afirma el autor que “Lo que no advierten con
claridad, los de la propuesta divergente, es que, quienes en ella compiten no son iguales, pues el
mundo real es el de la desigualdad material; la igualación de todos, como dijera Anatole France
impondría algo así como que está permitido a los pobres y a los ricos vivir por igual bajo los puen-
tes” (negritas del texto). Agregando que “... no renunciemos de una vez y para siempre a un juez

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ser así ¿a qué mantenimiento de la paz social contribuye el activismo judicial? ¿A la


del dominio del Juez? o a la ¿Que descarga en la figura del Juez todas las desigual-
dades sociales y naturales?
Por ser una discusión estrechamente relacionada con la aceptación o no de
la función creadora del juez, y la legitimación con la cual este actúa en el proceso,
Taruffo trae a colación la afirmación hecha por Ferrajoli: "el poder judicial es un
poder-saber, más legítimo cuanto mayor es el saber"76 y concluye afirmando:

Non sembra infondata I’impressione che si tratti di una tendenza probabil-


mente inarrestabile, e che non di rado si tratti di una tendenza meritevole
di apprenzzamento, anche se essa implica una certa misura di stretching
dei princípi tradizionali con il fine di dare tutela effettiva ai diritti. Quanto
al problema della legittimazione dei giudici a svolgere questo ruolo, esso
dovrá essere posto su un piano diverso: non quello della legittimazione
política di tipo elettorale, ma aquello dell’attuazione effettiva delle garan-
zie di indipendenza e di imparzialitá della magistratura.77

Afirmación corroborada por Peyrano, quien afirma que el juez, en el marco


de un proceso contencioso, con pruebas ofrecidas y producidas no debe ser
un investigador de la verdad en todo momento, debe ser un facilitador de pro-
ducción, conservación y aprovechamiento pleno de la prueba propuesta. Solo
en circunstancias excepcionales productor de aquellas con el decreto oficioso
de pruebas. Así dice el autor, que el juez si bien no puede afirmar que llegó a la
verdad, habrá cumplido su misión acotada pero excelsa: aproximarse a la verdad
limitada y selectivamente.78
Sin embargo, si tomamos la discusión desde la legitimidad que a grandes
rasgos plantean los anteriores teóricos, tenemos que en un modelo procesal

preocupado por el equilibrio, necesitamos un juez, no un notario del resultado de la competencia


entre seres desiguales... Con mayor razón si se trata de la búsqueda de la verdad, no la verdad
tout court, sino una verdad controlada por la presencia activa de todas las partes incluido el propio
juez”.
76
Cfr. Ibídem, FERRAJOLI. Principia iuris, p. 214.
77
Ibídem, TARUFFO. Leggendo Ferrajoli. Considerazioni sulla giurisdizione, p. 639. “No parece infundada
la impresión de que se trata de una tendencia probablemente imparable y que, en ocasiones, es
también una tendencia elogiable, si ésta implica una cierta medida de stretching de los principios
tradicionales con el fin de tutelar de forma efectiva los derechos. El problema de la legitimación de los
jueces para llevar a cabo este papel deberá plantearse en un plano distinto: no el de la legitimación
política de tipo electoral, sino el de la implementación efectiva de las garantías de independencia
y de imparcialidad de la magistratura” (Traducción de Jordí Ferrer Beltrán. En: DOXA, Cuadernos de
Filosofía del Derecho, Congreso Ítalo-Español de Teoría del Derecho, Ed. Marcial Pons, 2008. p. 391).
78
Cfr. PEYRANO, J. El juez y la búsqueda de la verdad en el proceso civil. Consultado el 17 de abril de
2012. En: <http://www.elateneo.org/documents/trabajosBajar/Eljuezylaverdad.pdf>.

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inquisitivo o mixto que descarga la decisión en un Juez poderoso quien además


puede inquirir por la verdad, su veredicto siempre estará atado a la duda y por lo
tanto cuestionado en su legitimidad. En contraste, los sistemas acusatorios han
descargado la legitimidad de la decisión en la representación del pueblo mediante
los jurados y los sistemas de este corte que han abandonado esta figura de legiti-
mación social de la decisión, han cambiado la confianza en el jurado por la con-
fianza en el Juez, quien actuará limitado a ser fallador y no como juzgador, quien
será juez y no investigador. El modelo acusatorio tristemente degenerado por el
tendencialismo, exige el abandono del modelo de pensamiento activista por ende
reduccionista y absolutista en la práctica jurídica y la decisión judicial, para la
adopción de un modelo de pensamiento procesal abierto al cambio, complejo y
crítico, pues tal como lo propone Morin, "El pensamiento — como la vida — sólo
puede vivir a la temperatura de su propia destrucción. Muere desde el momento
en que se encierra en el sistema que él construye, en la idea no biodegradable...".79
En conclusión, debemos tomarnos en serio el argumento de que existe
un "antagonismo incompatible, lógica, jurídica y moralmente, según lo afirma
el profesor Alvarado Velloso y el caso de crítica 'salvaje', esto es, no regulada, no
acordada, entre los dos sistemas",80 ya que tal como lo afirma en el mismo texto
Tulian, dichos sistemas "carecen de un marco teórico común, con lo que se torna
imposible una resolución racional del debate, esto es, que admita una sentencia
compartida, como le gusta decir a Hans-Georg Gadamer respecto de las condicio-
nes del dialogo racional".81
Cuando el profesor Álvarez Gardiol en su texto base para la clase de episte-
mología en la Maestría de Derecho Procesal Garantista en la Universidad Nacional
de Rosario en Argentina afirma que "El verdadero teórico, no es un empírico ni
tampoco un metafísico, sino una combinación de ambos. Todo verdadero teórico
es una especie de metafísico sometido",82 entiendo que realiza un exhorto para
que sus estudiantes trasciendan las fronteras dogmáticas y realicen sus estudios a
partir de las realidades sociales, es decir, que sus frutos no se queden en simples
disquisiciones retóricas y por el contrario mejoren los modelos existentes, acep-
tando las realidades y diferencias practicas de los mismos. Así tomarnos en serio
el cambio de paradigma que demanda la crisis judicial, es también considerar el
valor de las palabras de Goldschmidt quien afirmó:

79
MORIN, E. Ciencia con conciencia. Ed. Anthropos, Barcelona, 1984.
80
TULIÁN DOMINGO, C. Fundamentación racional del garantismo procesal. En: Revista Breviarios
Procesales Garantistas, Ed. Unaula, Medellín, 2011. 10 p.
81
Ibídem, 10 p.
82
Op. cit., ibídem, p. 504.

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La justicia se basa en la imparcialidad de las personas que intervienen


legalmente en la resolución de la causa... la imparcialidad consiste en
poner entre paréntesis todas las consideraciones subjetivas del juzgador.
La imparcialidad es en la esfera emocional lo que la objetividad es en la
esfera intelectual. También se distinguen la imparcialidad y la justicia. La
primera enfoca la motivación, la segunda el contenido de los actos.83

Tal como lo resume Pérez Luño "Se trata, en suma, de que en una sociedad
democrática y pluralista, los valores, bienes o derechos fundamentales no pueden
ser el producto de la imposición arbitraria de un grupo ideológico, sino el resul-
tado del consenso intersubjetivo edificado sobre supuestos procedimentalmente
imparciales y a partir del sistema de necesidades radicales humanas".84
La armonización de los procesos, propuesta que en términos de Taruffo implica
la aceptación de la jurisdicción como la garantía fundamental de todos los derechos,85
pero especialmente de los fundamentales, que son particularmente importantes
para los sujetos más débiles, por lo tanto estos derechos deben ser reconocidos glo-
balmente y su aceptación no puede ser propia de un solo Estado en su interior es un
objetivo importante. Por su parte, la unificación de los procesos implica la aceptación
del proceso jurisdiccional como un método pacifico de debate dialógico entre dos
antagónicos, que como mecanismo es utilizado in extrema ratio por las partes para
evitar con él, la imposición ilegitima del poder de alguno de ellos y no como meca-
nismo para sacrificar sus derechos en pro de la verdad.
Hoy en día en la política procesal colombiana hay un avance significativo
que desafortunadamente no tendrá los resultados esperados, por la incoherencia
con que se han fundado los nuevos códigos procesales de tendencia acusatoria
y oral que mantienen los poderes ilimitados del Juez. Una intención notable para
limitarlos ocurre hoy en día en el proceso Contencioso Administrativo colom-
biano, que dio un paso hacia la oralidad con la ley 1437 de 2011, pues el artículo 213,
permite que ante el decreto de prueba de oficio por parte del juez, las partes pue-
dan solicitar prueba adicional o diferente tendiente a contrarrestar o profundizar
los efectos de dicho decreto oficioso. Situación novedosa pero que será apenas
un paliativo, pues el proceso contencioso administrativo se verá encadenado a las
mismas fallas que contiene el proceso que fue derogado.

83
GOLDSCHMIDT, W. Justicia y verdad. Ed. La Ley, Buenos Aires, 1978, p. 281 ss.
84
PÉREZ LUÑO, A. La seguridad jurídica. Ed. Ariel, Barcelona, 1994, p. 78. Citado por AGUDELO
RAMIREZ, M. Filosofía del derecho procesal. Ed. Leyer. Bogotá, 2000, p. 108.
85
Ver: FERRAJOLI, L. Principia Juris. Teoria del diritto e della democracia. 1. Teoria del diritto, Laterza,
Bari, 2007, p. 675 ss. Citado por TARUFFO, M. Una propuesta para la armonización del procedimiento
civil, ibídem, p. 33.

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De esta manera reza el precitado artículo:

Artículo 213. Pruebas de oficio. En cualquiera de las instancias el Juez o


Magistrado Ponente podrá decretar de oficio las pruebas que considere
necesarias para el esclarecimiento de la verdad. Se deberán decretar y
practicar conjuntamente con las pedidas por las partes.
Además, oídas las alegaciones el Juez o la Sala, sección o subsección antes
de dictar sentencia también podrá disponer que se practiquen las prue-
bas necesarias para esclarecer puntos oscuros o difusos de la contienda.
Para practicarlas deberá señalar un término de hasta diez (10) días.
En todo caso, dentro del término de ejecutoria del auto que decrete
pruebas de oficio, las partes podrán aportar o solicitar, por una sola vez,
nuevas pruebas, siempre que fueren indispensables para contraprobar
aquellas decretadas de oficio. Tales pruebas, según el caso, serán practica-
das dentro de los diez (10) días siguientes al auto que las decrete.

En un análisis somero tenemos en primer lugar que el mencionado artículo


en su primer inciso inscribe al Juez de la jurisdicción contenciosa administrativa
colombiana, en la corriente del activismo judicial, pues lo faculta para que busque
la verdad de los hechos. En su segundo inciso paradójicamente permite lo que en
materia civil permitía el artículo 240 de la Ley de Enjuiciamiento Civil española
de 1881 que establecía las diligencias para mejor proveer, esto es, un poder de
iniciativa instructora para solicitar pruebas con el fin de clarificar antes de la sen-
tencia los puntos confusos. Pero en su último inciso, combina las dos corrientes
de pensamiento procesal estudiadas, pues permite que ante el decreto de prueba
de oficio por parte del juez (inquisitivo), las partes ejerzan su poder (dispositivo)
para contraprobar las decretadas de oficio.
Una situación especial se presenta actualmente en la Ley de Enjuiciamiento
Civil española de 2000 que derogó el anterior artículo y redujo significativamente
el poder oficioso del juez, pues el actual artículo 429 le permite al juez indicar a las
partes cuáles pruebas considera él convenientes cuando presienta insuficiencia
probatoria, y solo permite el decreto oficioso de las pruebas en la etapa final y
exclusivamente sobre la prueba que debe volverse a practicar por haber tenido
resultado insuficiente. Norma atinada y duramente criticada por autores como
Lluch, Pico i Junoy, Vazquez Sotelo, Diaz Fuentes, según Taruffo, por la indebida
exageración del principio dispositivo que entiende al juez como una esfinge inerte
o en términos coloquiales un convidado de piedra.86

86
Cfr. TARUFFO, p. 171.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 195

De esta manera, las mixturas que hacen ver razonables la utilización integral
de las dos corrientes o modelos, inclinan la balanza a favor o en contra de un
doctrinante u otro y permitir que alguien manifieste que la norma es conveniente
o inconveniente. Asimismo, como se puede decir que el vaso esta medio vacío o
también esta medio lleno.87 Sin embargo, en la práctica jurídica colombiana otor-
garle un gran protagonismo al juez administrativo quien hace parte de la misma
estructura pública, de cara a un proceso más equitativo y justo, además de resul-
tar contrario a la lógica de los modelos orales y acusatorios al pretenden llegar
con este código, podría ocasionar la agudización de los pleitos que en materia
administrativa parecen inacabables, situación que el nuevo código ingenuamente
pretende acabar ya que con la incoherencia del modelo en que se basa, hará que
como coloquialmente se dice entre los abogados, un solo litigio de estos, confi-
gure la vida útil de un abogado.

VI Conclusiones
1. Las dos posturas expuestas, esto es, quienes defienden la búsqueda de la
verdad en el proceso y quienes rechazan dicha actuación en el mismo, obe-
dece a una discusión eminentemente político-ideológica que no se puede
desconocer, por el contrario ésta permite analizar cual es el sentido y fin
por el cual se creó el proceso jurisdiccional y cuál de estos modelos obe-
dece y contribuye en mayor medida a la resolución de los conflictos y por
ende a la paz social.
2. Si bien la experiencia legislativa ha demostrado que las codificaciones
procesales han compartido postulados privatistas y publicistas, el actual
debate planteado por los garantistas encuentra asidero en la crisis que
afrontan los sistemas judiciales de raigambre activista y que bajo la justi-
ficación de la justicia han otorgado amplios poderes y responsabilidades
al juez, descargando en él, el deber que tiene la sociedad y el Estado en
su conjunto de desarrollar mejores condiciones de vida que permitan la
reducción de los conflictos sociales.
3. El garantismo permite un análisis estructural de la crisis judicial y de las
instituciones inquisitivas ya que estas tuvieron orígenes en momentos
históricos donde reinaba la concentración del poder en una sola persona.
Defienden además un proceso jurisdiccional democrático, planteando
una mirada diferente del fallo justo a partir de la imparcialidad y no a par-
tir de la verdad que tantas garantías puede sacrificar en el proceso.

87
Frase de las canciones Según el color y Día a día del artista y abogado Rubén Blades.

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196 Juan Felipe Vallejo Osorio

4. Los estudiosos del derecho procesal deben reorientar sus discusiones


hacia fines comunes de bienestar general para los habitantes del planeta,
aunque bien es cierto que las tesis y en general la dogmática genera
constantes tensiones, estas no se pueden absolutizar al punto de no per-
mitir la confrontación, es hora de mirar interdisciplinariamente, esto es,
complejamente las relaciones humanas, se deben generar nuevas crisis
que permitan repensar los modelos imperantes y que hasta ahora no han
sido suficientes. Interesante entonces el análisis del llamado garantismo
procesal y su defensa del modelo adversarial como posible en cualquier
área del derecho en donde se plantee un conflicto y del papel del juez
como “juez” no como parte ni investigador, tarea que ojalá la comunidad
jurídica se permita profundizar solamente al calor del debate racional y cons-
ciente propio del derecho y no desde el rechazo las posibles alternativas.

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Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garantismo procesal y en el activismo judicial 199

Corte Suprema de Justicia de Colombia, Sala Penal, 19 de octubre de 2006. Expediente 26240. M.P.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

VALLEJO OSORIO, Juan Felipe. Consideraciones acerca de la justicia y la verdad en el garan-


tismo procesal y en el activismo judicial. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 21, n. 81, p. 159-199, jan./mar. 2013.

Cadastrado em: 28.11.2012


Aprovado em: 12.12.2012

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Estrutura técnica e sistemática do novo
Código de Processo Civil (Projeto aprovado
no Senado) – Aspectos positivos e negativos

Luciano Henrik Silveira Vieira


Mestrando em Direito Processual pela PUC Minas. Professor de
Direito Processual Civil da Fundação Educacional de Oliveira.
Professor convidado do IEC/Barreiro (PUC Minas) no curso de
pós-graduação lato sensu em Direito Processual. Advogado.
E-mail: <luciano.henrik@gmail.com>.

Resumo: Diante do atual paradigma processual-constitucional, o direito de


ação foi elevado à categoria de direito fundamental e assegurado pela garantia
constitucional do devido processo. Mas, para evitar subjetivismos ou discricio-
nariedades dos agentes públicos, principalmente, são elaborados procedimen-
tos que têm de ser seguidos até a conclusão da atividade. Desse arcabouço não
escapando o Código de Processo Civil, que estatui procedimentos para o alcance
do coparticipado provimento (pronunciamento jurisdicional), garantindo aos
que serão atingidos pela decisão judicial a possibilidade de expor todas as
matérias que entenderem defensáveis. Por ser um documento tão importante
para a democracia constitucionalizada, a preparação do Projeto de um novo
Código de Processo Civil merecia mais acuidade e esmero da respectiva comis-
são elaboradora e até mesmo das Casas Legislativas, o que não se vê, pela falta
de técnica e pelos inúmeros defeitos que podem ser identificados, muitos até
afrontando a Constituição Federal.

Palavras-chave: Processo civil. Novo Código. Aspectos positivos e negativos.

Sumário: 1 Introdução – 2 Esboço da distinção estrutural entre o Código de


1973 e o Projeto aprovado no Senado Federal – 3 Aspectos positivos e nega-
tivos identificados – 4 Considerações finais – Referências

1 Introdução
Aparentemente premidos pelos ilusórios ideais de efetividade (eliminação
de dilações indevidas e de formalismos excessivos) e de segurança jurídica (exi-
gência geral de não surpresa, inteligibilidade da lei e previsibilidade do direito),

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pela leitura que se faz da respectiva Exposição de Motivos, os membros da comissão


responsável por elaborar o Anteprojeto de novo Código de Processo Civil aca-
baram atropelando questões e institutos básicos da ciência processual moderna.
Quando de sua tramitação no Senado Federal, o Projeto de Lei decorrente do citado
Anteprojeto sofreu diversas modificações, mas, mesmo assim, ainda é possível apon-
tar inúmeras imperfeições.
Não se pode mais enxergar o processo como relação jurídica (em que a parte
requerente poderia exigir da parte requerida o cumprimento de um dever jurí-
dico) e colocar o juiz numa posição de destaque em relação aos demais sujeitos
processuais, pois todos são copartícipes na construção do provimento (pronuncia-
mento judicial). E, para que o pronunciamento jurisdicional seja verdadeiramente
democrático, necessário se faz que sua fundamentação seja racional. Para isso, o
magistrado tem que se utilizar do ordenamento jurídico em vigor (regras e prin-
cípios jurídicos), e não de propósitos metajurídicos, como fins sociais e exigências
do bem comum, conforme preconiza o artigo 6º do Projeto aprovado no Senado.
Nesse contexto, abordamos, neste ensaio, alguns temas polêmicos que
pode­riam ter sido suplantados com as alterações empreendidas no “novo” Código
de Processo Civil e até outras polêmicas surgidas com a tramitação do Projeto no
Senado, reafirmando sempre que o texto constitucional garante amplo acesso ao
judiciário e ao direito de ação (entendido como o direito de acesso ao exercício
do devido processo).
Fizemos, primeiramente, uma distinção entre as estruturas morfológicas do
CPC/73 e do Projeto aprovado; posteriormente, tratamos, sucintamente, dos aspec-
tos positivos e negativos identificados no Projeto e, por fim, apresentamos nossas
considerações acerca do texto desse precipitado novo Código de Processo Civil.

2  Esboço da distinção estrutural entre o Código de 1973 e o Projeto


aprovado no Senado Federal
Resumidamente, a estrutura geral do Código de Processo Civil em vigor é
a seguinte: a) o Primeiro Livro é intitulado do processo de conhecimento,1 mas, na

1
Logo no início do Código em vigor já se percebe um equívoco técnico e científico, pois o título
tecnicamente mais correto seria “Do procedimento cognitivo”, uma vez que as regras ali dispostas
cuidam de questões procedimentais (os procedimentos, como estruturas normativas, são atos
sequenciais e concatenados em que o subsequente depende do antecedente, com a finalidade
de se alcançar o provimento final), evitando-se decisões discricionárias que não sejam funda-
mentadas racionalmente e de acordo com o próprio ordenamento. Processo e procedimento,
apesar de possuírem íntima relação, não se confundem, tendo em vista que “o processo começará
a se caracterizar como uma espécie do gênero procedimento pela participação na atividade de

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verdade, assume caráter paradigmático em relação aos demais Livros do Código,


uma vez que suas regras e institutos são de aplicação extensível também aos
outros compartimentos procedimentais, até mesmo por força do que está pre-
visto nos artigos 272, parágrafo único, 598 e 475-R; sendo que, neste primeiro
livro, depois de disciplinar matérias importantes para todo o processo civil (tais
como jurisdição, competência, ação, partes, intervenção de terceiros, atos pro-
cessuais e outros), trata dos chamados procedimentos sumário e ordinário e do
procedimento no segundo grau de jurisdição; b) o Segundo Livro é dedicado ao
processo de execução, com disposições gerais da execução como procedimento
destinado à expropriação de bens, passando pelas diversas espécies de execução,
pelos embargos do devedor e outros; c) o Livro Terceiro, denominado do processo
cautelar, prevê um procedimento genérico para as chamadas medidas cautela-
res em geral, e diversos procedimentos cautelares específicos (arresto, seques-
tro, caução, busca e apreensão, exibição de documentos, produção antecipada
de provas, alimentos provisionais, entre outras medidas), que cuidam de técnicas
para situações jurídicas distintas; d) o Livro Quarto, que trata dos chamados proce-
dimentos especiais, subdivide-se em procedimentos de jurisdição contenciosa e de
jurisdição voluntária; e) finalmente, o Livro Quinto contempla as disposições finais
e transitórias, em que o Código trata do direito intertemporal, da prioridade de
tra­mitação procedimental em favor dos idosos, da destruição dos autos, além
de outros temas.
Já o Projeto aprovado no Senado prevê que o novo Código contará com
uma Parte Geral (o que já é inovador em relação ao CPC/73), na qual estão men-
cionados princípios e garantias constitucionais de especial importância para todo
o processo civil, bem como regras gerais que dizem respeito aos demais Livros.
Essa Parte Geral desempenha o papel de chamar para si a solução de questões
relativas às demais partes do Código, possuindo regras e princípios gerais a res-
peito do funcionamento do sistema processual, como se fosse um livro de Teoria
Geral do Processo Civil, traçando as diretrizes do direito processual como um sis-
tema de institutos, princípios e regras estruturadas para o exercício da jurisdição,
que se fará com a participação dos interessados no pronunciamento jurisdicional.
Além disso, deixa de existir no chamado “processo de conhecimento” o procedi-
mento sumário (artigos 275 a 281 do CPC em vigor), passando a haver um único
procedimento (comum), além de um procedimento diferenciado para os intitula-
dos “procedimentos não contenciosos”.

preparação do provimento, dos interessados, juntamente com o autor do próprio provimento”


(GONÇALVES. Técnica processual e teoria do processo, p. 96).

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O Livro referente às execuções sofreu poucas alterações em relação ao CPC


em vigor. O Livro referente ao processo cautelar saiu do Código, uma vez que não
mais se reconhecem as cautelares inominadas, e o procedimento genérico cau-
telar foi alocado no Livro I, na Parte Geral. O livro específico dos procedimentos
especiais deixou de existir e aqueles procedimentos foram incorporados no Livro
do Processo de Conhecimento, remanescendo alguns dos até então chamados
procedimentos especiais contenciosos (arts. 524 a 684 do Projeto). Cumpre des-
tacar também que o procedimento de segundo grau, que estava inserido no Livro
do Processo de Conhecimento, no CPC/73, receberá regramento em livro próprio:
Livro IV – “Dos processos nos tribunais e dos meios de impugnação das decisões
judiciais”.
Portanto, a estrutura do novel Código será a seguinte: Livro I – Parte Geral;
Livro II – Do Processo de Conhecimento; Livro III – Do Processo de Execução;
Livro IV – Dos Processos nos Tribunais e dos Meios de Impugnação das Decisões
Judiciais; Livro V – Das Disposições Finais e Transitórias.
Assim, por mais que se possa criticar a necessidade de um novo Código de
Processo Civil e outros defeitos encontrados no Projeto (que serão abaixo identi-
ficados), percebe-se que, estruturalmente, a proposta parece melhor integrar e
sistematizar as normas processuais previstas na codificação, além de apresentar
uma melhor organização topográfica procedimental.

3  Aspectos positivos e negativos identificados


Como o objetivo deste curto ensaio é apontar críticas diretas, positivas e
negativas, encontradas no Projeto do novo Código de Processo Civil, não cuidare-
mos de explanar amiúde acerca dos institutos do Direito Processual, uma vez que
optamos por nos limitar ao texto legislativo aprovado no Senado Federal e por
demonstrar nossa convicção a respeito do que entendemos como acertos e como
erros. Por assim ser, optamos por separar os aspectos que assim consideramos
positivos e negativos por letras, isto é, cada letra posta no início dos parágrafos
nos itens 3.1 e 3.2 corresponde a um aspecto distinto.

3.1  Aspectos positivos


Há, sem dúvidas, algumas alterações empreendidas pela comissão de juris-
tas que elaborou o novo CPC que são elogiáveis. E vamos aqui enumerar algumas
que identificamos.
a) Primeiramente, cumpre-nos destacar a manifesta intenção da comis-
são elaboradora do Anteprojeto de aproximar o texto procedimental do texto

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constitucional, procurando manter coerência entre o texto do Anteprojeto e a


Constituição Federal, afirmando ser “na lei ordinária e em outras normas de escalão
inferior que se explicita a promessa de realização dos valores encampados pelos
princípios constitucionais”.2
Com tal desiderato, trouxe de forma explícita o Projeto a referência à obser­
vância imprescindível do contraditório, como se vê nos artigos 7º, 20 e 114.
Pode-se destacar também, como decorrência da observância necessária do con-
traditório, a disposição expressa no novo Código acerca da impossibilidade da
decisão surpresa, o que pode acontecer atualmente, por exemplo, com a aplica-
ção do artigo 285-A do CPC/73. Para tanto, inseriu-se, na novel legislação, o artigo 10,
que prevê que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em
fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes a oportunidade de
se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício”.
b) A já referida eliminação dos chamados procedimentos especiais foi igual-
mente uma das alterações proveitosas, pois é indiscutível que tais procedimentos
possuem natureza cognitiva, pelo que nada mais certo que fazê-los constar no
compartimento do processo de conhecimento (procedimento cognitivo).
c) Vemos também como positiva a mudança no sentido de que todas as
demandas tomem cunho de natureza dúplice, o que atualmente ocorre apenas
com as chamadas “ações dúplices”, que são aquelas em que o réu pode contra-­
atacar na própria contestação, sem precisar fazer uso de peça reconvencional.
Dessa forma, de acordo com o novo Código, todas as matérias de defesa (prelimi-
nares e meritórias) serão concentradas numa única peça processual, uma vez que
também serão concentrados na mesma peça de defesa os atuais incidentes pro-
cessuais (as exceções de impedimento, suspeição, impugnação ao valor da causa
e à concessão indevida de assistência judiciária gratuita), conforme previsão dos
artigos 326 e 327.
d) Igualmente bem vista é a unificação dos prazos processuais para a inter-
posição de recursos, demonstrando padronização e sistematização dos fenôme-
nos processuais, conforme previsão do artigo 948 do Projeto aprovado no Senado.
e) Soma-se a esse quadro aquilo que, ao que nos parece, foi intenção da
comissão elaboradora do Projeto substituir os procedimentos cautelares típicos
pela tutela de urgência e a tutela antecipada pela tutela de evidência. Com a
eliminação do livro das cautelares, foi extinto o tormentoso procedimento ante­
cedente e autônomo das medidas cautelares preparatórias, que acabava por

2
Trecho extraído da Exposição de Motivos do Anteprojeto de Código de Processo Civil (In: BRASIL.
Código de Processo Civil: anteprojeto).

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duplicar a atividade dos advogados e do Estado-juiz, sem falar no aumento de


gastos processuais para partes; mas, registre-se, o poder geral de cautela perma-
nece mantido no novo CPC (art. 270). Do mesmo modo, a simplificação da atual
tutela antecipada pela tutela de evidência,3 quando uma parte ostenta direito evi-
dente (líquido e certo), calcado em prova inequívoca, favorece a não postergação
da satisfação desse direito.
f ) Também positiva foi a disposição que amainou a inconstitucionalidade do
parágrafo primeiro do artigo 475-L do CPC/73 (replicado no parágrafo único
do artigo 741 do mesmo diploma) por ofensa à coisa julgada. No projeto aprovado,
a possibilidade de o vencido opor-se à sentença toda vez que o fundamento juris-
dicional estiver escorado em lei e/ou ato normativo declarados inconstitucionais,
ou em aplicação ou interpretação de lei e/ou ato normativo tidos pelo STF como
incompatíveis com a Constituição, fica limitada aos casos de controle concentrado
de constitucionalidade, sem prejuízo do fato de que “a decisão poderá conter modu-
lação dos efeitos temporais da decisão em atenção à segurança jurídica”,4 ou seja,
há, no Projeto, uma menor ofensa à higidez de uma sentença que já transitou em
julgado.
g) Por penúltimo, vislumbramos acerto da comissão quanto a ter simplificado
o procedimento de usucapião de terras particulares, apenas tratando da publica-
ção necessária de editais (art. 228 do Projeto), fazendo com que tal importante
demanda seja tratada como procedimento comum, uma vez que sempre necessita
de prolongada atividade cognitiva, o que desnatura o ideal dos procedimentos
especiais previstos no CPC/73.
h) E, por último, vemos também profícua a obrigatoriedade de o juiz, quando
decidir com base em conceitos indeterminados e nas chamadas cláusulas abertas
(“cláusulas gerais”, conforme prescreve o artigo 477 do Projeto), ter de fundamen-
tar a sentença analiticamente, expondo o sentido em que foram compreendidos,
uma vez que, assim decidindo, o magistrado possibilitará às partes a verificação
de suas contribuições, em contraditório, para o pronunciamento jurisdicional,
até mesmo evitando uma potencial decisão surpresa, e da coadunação da sen-
tença com o ordenamento jurídico em vigor (evitação de subjetivismos e/ou
discricionariedades).

3
“A tutela de evidência, tal como lançada no texto do Projeto, tem três pressupostos: (1) a existência
de requerimento expresso do autor, (2) a presença de elementos que evidenciem a plausibilidade
do direito e (3) a concretização de qualquer uma das hipóteses descritas nos incs. do art. 278”
[COSTA. Tutela de evidência no projeto do novo CPC: uma análise dos seus pressupostos. In: ROSSI
et al. (Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica do Projeto do Novo CPC, p. 172].
4
Redação do art. 511, §6º, do relatório geral apresentado pelo Senador Valter Pereira.

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3.2  Aspectos negativos


Ultrapassada a apresentação de alguns pontos positivos identificados no
Projeto do novo Código de Processo Civil, trataremos, neste título, dos aspectos
negativos encontrados (muitos deles por serem meras reproduções do que já não
é elogiável no CPC em vigor), mas sem qualquer intenção de esgotar as críticas a
um projeto tão importante e que, em razão da injustificável pressa de seus elabo-
radores, apresenta-se repleto de imperfeições.
a) O primeiro ponto negativo a ser destacado refere-se ao excesso de pode­
res conferidos ao magistrado, dotando-o ainda mais de discricionariedade e/ou
subjetividade, em afronta ao que se espera de um Estado Democrático de Direito,
que é aquele no qual se percebe o inter-relacionamento harmonioso entre o
Estado de Direito — que possui as seguintes premissas básicas: a) a lei, como pro-
nunciamento externado da vontade dos cidadãos por intermédio de seus repre-
sentantes eleitos, tem de ser um ato formal proveniente da função legislativa; b)
a divisão das funções do Estado: legislativa, executiva e judiciária; c) um vasto e
indelével elenco de direitos e liberdades individuais; e d) a atuação do Estado, em
todas as suas esferas, em estrito acatamento à legalidade, ou seja, a limitação do
“poder” estatal — e o Estado Democrático — cujas premissas básicas são: a) a demo-
cracia como forma de governo e de Estado e também como fonte originária de
legitimação do exercício do poder pelos agentes políticos; b) o poder do Estado
assentado na vontade do povo (“todo poder emana do povo”, que o exerce quando
da escolha de seus representantes, em eleições livres e periódicas), de modo que
gozamos da garantia de que apenas a lei pode delimitar ou demarcar nossa
liberdade; e c) empenho estatal para assegurar aos coautores e destinatários das
normas o efetivo exercício dos seus direitos e garantias já positivados no texto
constitucional.5 Implicando afirmar que todos os atos provenientes dos órgãos
jurisdicionais têm de ser fundamentados em observância ao ordenamento jurí-
dico em vigor (princípios constitucionais da fundamentação das decisões e da
reserva legal).
Sobre tal excesso de poderes do magistrado, principalmente por estar sendo-lhe
autorizado fundamentar suas decisões com base em motivações metajurídicas
(“fins sociais” e “exigências do bem comum” — art. 6º do Projeto), como se fosse
dotado de um sentimento superior capaz de absorver os anseios da sociedade (a
personificação do juiz Hércules de Dworkin),6 sobressai a afirmação do Ministro
Luiz Fux, para quem

5
BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 48-65.
6
DWORKIN. Levando os direitos a sério, p. 165-203.

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O anteprojeto, abandonando a velha postura burocrático-judicial do juiz, o


investe dos poderes do magistrado do sistema anglo-saxônico, dotando-o
do imperium judicii da vetusta figura do pretor romano, habilitando-o a
expedir ordens, medidas mandamentais capazes de assegurar a efetiva-
ção da justiça prestada no caso concreto.7

Como se denota, o próprio presidente da comissão elaboradora do novo


Código de Processo Civil admite, de forma expressa, que o “novo” CPC pode estar
retornando à época romana, em que os pretores (magistrados) decidiam anco-
rados em qualquer argumento, mesmo que distante do sistema jurídico. Ora, tal
afirmação de Luiz Fux é uma afronta à Constituição Federal (art. 5º, inciso XXXV),
bastando fazer o raciocínio de que está inserido no elenco dos direitos funda-
mentais o direito de postular ao Estado a tutela jurisdicional8 pelo processo, que
só se legitima pela conformação às normas constitucionais. Mas não é qualquer
tutela jurisdicional o que se almeja, pois a resposta do Estado-juiz tem de ser legí-
tima e democrática. Com efeito, sempre é conveniente reafirmar que as decisões
emanadas dos órgãos jurisdicionais só serão legitimadas e soberanas se se cons-
tituírem em externada manifestação dos reclamos de liberdade e racionalidade
dos coautores e destinatários da norma/decisão, o que implica no impedimento
de motivação jurisdicional fundada em subjetivismos ou discricionariedades. Isso
porque,

A Constituição formal, por conquista teórica da lei democrática, é fonte


objetiva de conteúdos jurídicos de vinculação originária do intérprete
(interpretação conforme a Constituição), como cláusula de vedação de
busca de verdade absoluta pelo subjetivismo realista (poder social) do
aplicador da norma (logus judicatorum).9

Não sendo exagero afirmar que o processo, presente no artigo 5º da Consti­


tuição, é um direito-garantia impostergável, representando uma conquista do
cidadão contra eventuais arbitrariedades dos entes públicos e políticos. Res­
saltando-se que a principiologia constitucional do devido processo compreende
os princípios da reserva legal, da ampla defesa, da isonomia e do contraditório,

7
FUX. O novo processo civil. In: FUX (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa:
(reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil), p. 21.
8
A jurisdição é a função estatal de fazer atuar a regra jurídica concreta que disciplina determinada
situação jurídica, com a finalidade de realizar o ordenamento jurídico, mediante procedimentos
previamente estabelecidos.
9
LEAL. Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 53.

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Estrutura técnica e sistemática do novo Código de Processo Civil... 209

regendo, axialmente, as estruturas procedimentais de todos os segmentos da


Administração (lato sensu).10
b) Outro exemplo de continuidade de regra que afronta a reserva legal
prevista constitucionalmente é a permanência da concessão ao magistrado para
decidir por equidade (art. 120 do Projeto e 127 do atual CPC). Sem falar que é
um preceito ambíguo e muitas vezes polissemântico, próprio dos sistemas jurídi-
cos anglo-saxônicos, “a equidade é permissão dada ao juiz para fazer justiça sem
sujeitar-se de forma absoluta à vontade contida na regra legal; é liberdade para
dar a cada um o que é seu sem subordinar-se rigorosamente ao direito escrito”,11
ou seja, autorização para que o magistrado decida conforme suas convicções
morais e subjetivas, o que torna o ato de julgar não democrático, principalmente
se fundamentado em questão sobre a qual não houve prévio debate pelos sujei-
tos processuais. Atentando-se para que

A expressão lei, no texto constitucional, deve ser entendida como ordena-


mento jurídico, ou seja, conjunto de princípios e regras constitucionais e
infraconstitucionais que o compõem, vinculando os órgãos jurisdicionais,
quando proferem suas decisões. Daí a inarredável sujeição do Estado
Democrático de Direito ao princípio constitucional da legalidade, que o
estrutura constitucionalmente (ver art. 37 da Constituição Federal, men-
cionando dito princípio estruturante do Estado Democrático de Direito
em primeiro lugar, na enumeração que empreende).12

c) Como se não bastasse, o artigo 353 do Projeto ainda prestigia a expres-


são “livre convicção do juiz” para apreciação de provas (replicando o conteúdo
normativo do art. 131 do CPC/73), que tem de ser substituída por convicção moti-
vada do juiz, mais consentânea à teoria constitucionalista do processo. Não pode
haver mais, diante da principiologia processual-constitucional, livre convicção do
magistrado no ato de julgar, pois não pode desprezar os argumentos levados pelas
partes para o procedimento.13
d) Outro aspecto negativo a se apontar é a indisfarçável intenção de engessar
as decisões dos tribunais, uma vez que “a jurisprudência pacificada de qualquer

10
LEAL. Teoria geral do processo: primeiros estudos, p. 85.
11
MACHADO. Código de processo civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo, p. 155.
12
BRÊTAS. Exame preliminar do Projeto de Novo Código de Processo Civil. In: BARROS; BOLZAN DE
MORAIS (Coord.). Reforma do processo civil: perspectivas constitucionais, p. 109.
13
BRÊTAS. Projeto do Novo Código de Processo Civil aprovado pelo Senado: exame técnico e consti-
tucional. In: ROSSI et al. (Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica do Projeto
do Novo CPC, p. 562-563.

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210 Luciano Henrik Silveira Vieira

tribunal deve orientar as decisões de todos os órgãos a ele vinculados” (art. 882, III,
do Projeto). Ora, se o jurisdicionado não puder mais discutir seu direito simples-
mente porque o tribunal de seu Estado Federativo já decidiu outros casos iguais
em sentido contrário aos seus argumentos (que se encontram amparados pelo
ordenamento jurídico), não estaremos mais diante de um Estado Democrático de
Direito que preconiza o duplo grau de jurisdição (revisibilidade das decisões por
órgãos colegiados).
e) Além disso, e também potencialmente “impedindo” o jurisdicionado de
debater sua pretensão e ver seu direito pronunciado por um órgão jurisdicional, o
artigo 307 do Projeto autoriza o juiz a julgar liminarmente improcedente o pedido,
sem necessidade de citação do réu, que se fundamente em matéria exclusiva-
mente de direito que contrariar súmula do STJ ou do STF, que contrariar acórdão
prolatado por esses dois tribunais em julgamento de recursos repetitivos e que
contrariar entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repeti-
tivas. Tal previsão no novo Código igualmente afronta a Constituição (art. 5º, LV),
fazendo com que o contraditório seja negligenciado, pelo que a excepcionalidade
contida no parágrafo único do artigo 10 não tem razão de ser e não ameniza a
inconstitucionalidade aqui apontada.
Sob essa perspectiva democrático-constitucional, convém relembrar que os
brocardos iura novit curia e da mihi factum dabo tibi ius (“o juiz conhece o direito”
e “dá-me os fatos que te darei o direito”) não mais devem ser aplicados, pois con-
trariam princípios indeléveis conquistados pela humanidade (isonomia, reserva
legal, fundamentação racional das decisões e, principalmente, o contraditório). É
indiscutível, hodiernamente, que a construção das decisões jurisdicionais há de
ser fruto de uma cooperação entre partes e juiz, reciprocamente considerando
todas as matérias fáticas e jurídicas expostas nos autos,14 e não uma decisão soli-
tária, subjetiva e autoritária, não democratizando o procedimento, inclusive por
afrontar as disposições dos artigos 121 e 479 do próprio Projeto (arts. 128 e 460
do CPC/73).
f ) Outra ofensa à Constituição é a limitação expressa ao direito de ação,
uma vez que, no art. 17 do Projeto, está previsto que “para propor a ação é ne-
cessário ter legitimidade e interesse”. Entretanto, é preciso repisar que não pode
haver impedimento para que as pessoas busquem ver seus direitos confirmados
ou negados pelo órgão jurisdicional, uma vez que a Constituição não impõe

14
DELFINO. O processo democrático e a ilegitimidade de algumas decisões judiciais. In: ROSSI et al.
(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do Novo CPC, p. 391-392.

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Estrutura técnica e sistemática do novo Código de Processo Civil... 211

limites técnico-procedimentais ao direito de ação (art. 5º, XXXV, CR/88) —


entendendo-se, neste ensaio, como direito de ação o direito do jurisdicionado de
estar (participar) do devido processo — e somente participará o jurisdicionado
do procedimento se tiver acesso a ele.
g) Prosseguindo, o Projeto, no artigo 872, §1º, repetiu um problema já iden-
tificado no CPC/73 (art. 745-A), tendo em vista que, pelo que se encontra, desde
que preenchidos os requisitos formais ditados em lei, terá o juiz de acatar o par-
celamento requerido pelo executado, mesmo sem manifestação positiva do exe-
quente. Mas com tal previsão não comungamos, por tudo o que já foi expendido
neste estudo e também em obediência aos princípios processuais-constitucionais
do contraditório, da ampla defesa e da isonomia, por ser óbvio que o juiz não pode
deferir o parcelamento sem a prévia consulta ao exequente, apesar de omisso o
dispositivo legal em comento. Isso sem mencionar que dita regra processual está
atritando com outra regra de direito material (art. 314 do Código Civil), resultando
numa inegável antinomia. Logo, não pode o credor ser obrigado a receber presta-
ção diversa (inferior, superior ou divisível) da que lhe é devida e foi regularmente
convencionada no título executivo extrajudicial.15
Dessa feita, o parcelamento do débito, entendido como direito “subjetivo”
do executado, desvirtua o direito adquirido do exequente, violando os artigos 5º,
inciso XXXVI, da CR/88, e 314 do Código Civil, que disciplina a indivisibilidade
da obrigação e o seu cumprimento da forma avençada. Com efeito, não pode
o credor ser compelido a receber parceladamente se assim não foi pactuado,
fazendo-nos concluir que o parcelamento da dívida somente poderá ser deferido
mediante prévia consulta e aquiescência do exequente.
h) Até quanto à elaboração do texto podem ser percebidos descuidos técni-
cos e etimológicos. Veja-se, por exemplo, a repetição da palavra oitiva nos artigos
296, 325, 439, §1º, e 441, §3º, que não possui significação técnico-jurídica adequada
ou aceitável. Oitiva quer dizer “informação que se transmite por ouvir dizer”,16 o
que nada tem a ver com a prova que se produz no processo. Pelo que o melhor
seria a utilização do termo jurídico inquirição, que possui o sentido de ato realizado
por autoridade competente de inquirir testemunha acerca das circunstâncias de
que tenha conhecimento a respeito de determinado fato.

15
BRÊTAS. Exame preliminar do Projeto de Novo Código de Processo Civil. In: BARROS; BOLZAN DE
MORAIS (Coord.). Reforma do processo civil: perspectivas constitucionais, p. 116-117.
16
In: HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa: versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.

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212 Luciano Henrik Silveira Vieira

i) Por penúltimo, o Projeto repete disposição do CPC/73 de que a execução


é realizada no interesse do credor (arts. 754 do Projeto e 612 do CPC em vigor),
mas assim não pensamos. Tal regra está assim expressa porque a visão de grande
parte dos processualistas brasileiros ainda está arraigada à ideia de que o magis-
trado encontra-se no centro da chamada relação jurídica processual, no que se
denomina a atividade executiva como tutela jurisdicional executiva, que possui
como finalidade primordial a satisfação do direito do credor/exequente, numa
noção bastante individualista e antidemocrática do procedimento executivo, pois
a atividade jurisdicional existe em razão do devido processo, e não o inverso. Por
isso, empenhamo-nos em reforçar o entendimento de que

A cognição jurisdicional, enquanto atividade compartilhada de valoração


das provas e argumentos esboçados nos autos (cartulares ou eletrôni-
cos), encontra, no devido processo (base principiológica e vinculante da
função jurisdicional que abriga modelos procedimentais esculpidos em
lei) seu fator hermenêutico e delimitador. Nada pode escapar ou agredir
a principiologia constitucional.17

É óbvio que o executado também tem interesse no desfecho da execução,


pois poderá se ver livre da obrigação e da potencialidade de ver bens seus penho-
rados em razão da atividade executiva. Isso sem falar que a afirmação de que o
procedimento executivo é instaurado em atenção ao credor é uma ofensa à iso-
nomia constitucionalmente prevista, e isso pelo fato de que é a vontade da lei que
obriga as partes, e não estas que se obrigam a si mesmas, ou seja, o que se pode
afirmar, na execução, é que o credor possui uma posição de vantagem em rela-
ção ao devedor frente à norma, mas nada além disso, pois todos os argumentos
e direitos serão verificáveis no procedimento. Portanto, deve-se entender que a
condenação ou a emissão de um título extrajudicial cria uma obrigação no tocante
a uma prestação, mas que a técnica executiva faz superar a relação obrigacional
e cria uma obrigação processual, que é definida e encerrada de acordo com as
manifestações de ambas as partes, isonomicamente e de forma coparticipada.
j) Para encerrar, dissemos na letra “h” do item “3.1” que o Projeto acertou ao
obrigar o juiz a fundamentar analiticamente a sentença quando decidir com base
em cláusulas gerais ou conceitos indeterminados. Entretanto, apesar do acerto
num primeiro momento, é possível também criticar negativamente a redação do

17
MADEIRA. Processo de conhecimento e cognição: uma inserção no Estado Democrático de Direito,
p. 123.

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Estrutura técnica e sistemática do novo Código de Processo Civil... 213

artigo 477 do Projeto, uma vez que não ficou explícito ao destinatário da norma
(povo) de que forma dar-se-á essa análise. Seria a decomposição do todo com-
plexo em suas partes constitutivas divisíveis até se chegar ao simples indecom-
ponível? Se for, de onde se extrai o todo? De onde se extrai o simples? O sentido
do conceito apresentado por esse simples indecomponível (significado que ante-
cede o próprio conceito) é identificado/cognoscível por quem, pela autoridade?
Assim, os elaboradores do novel Código fizeram uso de uma jurisprudência
dos conceitos18 (pré-ditados por uma jurisprudência de interesses19), para masca-
rar um verificacionismo de convergência de interesses na subjacência da criação
da lei meramente justificadora das vontades dos intérpretes escolhidos pelo dis-
curso não esclarecido da autoridade (não explicitação do que seja o analítico).20
A lei escrita como resultado de uma pré-decisão da jurisprudência de interesses.
Em resumo: monopólio do sentido legal pela autoridade (legislador, na criação, e
juiz, na aplicação)!
Por isso, o melhor seria que o conteúdo normativo impusesse ao magistrado
explicitar claramente quais as fontes que fundamentaram seu convencimento, ou
seja, como ele chegou àquela conclusão, a fim de proporcionar às partes confron-
tarem, esclarecidamente, o pronunciamento judicial e com ele concordarem ou
discordarem, sem que o sentido normativo fosse monopolizado pela autoridade
cognoscente.

4  Considerações finais
Com algumas mudanças pontuais, sob o pretexto de criar instrumentos
procedimentais mais ágeis e eficazes para uma rápida tutela jurisdicional, esta-
mos percebendo uma açodada e pouco técnica intenção de alterar um diploma
normativo de grande importância para o Estado brasileiro, porém, o que se vê é
a manutenção de grande parte das regras e institutos presentes no Código de
Processo Civil atualmente em vigor. Sendo importante também lembrar que a
inobservância de técnica gera equivocidades e que a celeridade sem racionalidade
constitucional gera mitigação do contraditório e/ou da ampla defesa.

18
Para o presente artigo, a jurisprudência dos conceitos deve ser entendida como a busca do direito
a partir da lei escrita; justificação da norma escrita com base em um sentido social. O direito pro-
vindo de fonte dogmática.
19
Para uma jurisprudência dos interesses, a norma deve ser interpretada tendo em vista as finalida-
des às quais se destina. O direito é visto como instrumento voltado à realização da finalidade de
realizar os interesses sociais.
20
Como acontece nos auditórios pré-definidos ou escolhidos de nossas Casas Legislativas (exem-
plos: “bancada governista”, “bancada ruralista”, “bancada ambientalista”, dentre outras).

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214 Luciano Henrik Silveira Vieira

No Estado em que o Direito é Democrático, o processo orienta-se pelos princípios


inafastáveis do contraditório, da ampla defesa, da isonomia, do direito ao advogado
e da fundamentação racional das decisões, num espaço procedimental formalizado,
o que garante a estabilização dos argumentos expostos nos autos, sem prejuízo da
necessária fiscalização pelos interessados.
Nessa perspectiva, após a institucionalização da democracia constituciona-
lizada, foi adotado o modelo teórico do Estado Democrático como base interpreta-
tiva, inferindo-se que a legislação infraconstitucional necessita de uma releitura
constitucional, com mais ênfase ainda um novo Código de Processo Civil, que
está sendo elaborado já ultrapassados mais de vinte anos da promulgação da
Constituição Federal. Mas o que vemos é um texto normativo ainda muito influen-
ciado pelo contexto do Estado Social de Direito, possuindo um discurso anacrônico
perante a ordem constitucional.
Por tudo isso é que esperamos que a tramitação do novo Código de Processo
Civil na Câmara dos Deputados seja demorada (no sentido de haver amplas discus-
sões) e seu texto joeirado e apurado tecnicamente, em contrapartida ao açodamento
com que a comissão elaboradora o produziu e à apressada tramitação ocorrida no
Senado Federal, até mesmo pela importância de seu conteúdo normativo.

Oliveira, 02 de dezembro de 2012.

Structure and Systematic Technique of New Code of Civil Procedure


(Project Approved in Senate) – Positive and Negative Aspects

Abstract: In today’s paradigm-procedural constitutional right of action was


elevated to fundamental and guaranteed by the constitutional guarantee
of due process. But to avoid subjectivism or discretionary public officials,
especially, are developed procedures that must be followed to completion
of the activity. In this framework no escaping the Code of Civil Procedure,
which stipulates procedures for the achievement of co-participated provi­
sion (judicial pronouncement), assuring that will be affected by the court
decision with the opportunity to understand all matters defensible. For
being such an important document for democracy constitutionalized, the
preparation of a new draft Code of Civil Procedure deserved more accuracy
and thoroughness of their commission and even setting-up of the Legislative
Houses, which can not be seen by the lack of technical and numerous defects
that can be identified, many even confronting the Federal Constitution.

Key words: Civil procedure. New Code. Positive and negative aspects.

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Estrutura técnica e sistemática do novo Código de Processo Civil... 215

Referências
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Anteprojeto de Código de Processo Civil. Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado
Federal, 1988.
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BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Exame preliminar do Projeto de Novo Código de Processo Civil.
In: BARROS, Flaviane de Magalhães; BOLZAN DE MORAIS, José Luis (Coord.). Reforma do processo civil:
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BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo
Horizonte: Del Rey, 2010.
BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Projeto do Novo Código de Processo Civil aprovado pelo Senado:
exame técnico e constitucional. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.). O futuro do processo civil no Brasil:
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COSTA, Eduardo José da Fonseca. Tutela de evidência no projeto do novo CPC: uma análise dos seus
pressupostos. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica
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DELFINO, Lúcio. O processo democrático e a ilegitimidade de algumas decisões judiciais. In: ROSSI,
Fernando et al. (Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do Novo
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DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas de Nelson Boeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
FUX, Luiz. O novo processo civil. In: FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro: direito em
expectativa: (reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil). Rio de Janeiro: Forense, 2011.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de processo civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo
por parágrafo. 9. ed. Barueri, SP: Manole, 2010.
MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento e cognição: uma inserção no Estado Democrático
de Direito. Curitiba: Juruá, 2008.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

VIEIRA, Luciano Henrik Silveira. Estrutura técnica e sistemática do novo Código de Processo
Civil (Projeto aprovado no Senado): aspectos positivos e negativos. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 21, n. 81, p. 201-215, jan./mar. 2013.

Cadastrado em: 05.12.2012


Aprovado em: 14.01.2013

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Doutrina
Parecer

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Processo administrativo tributário – Prova
por amostragem e distribuição dinâmica do
ônus da prova

Fredie Didier Jr.


Livre-docente pela USP. Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa.
Doutor pela PUC-SP. Mestre pela UFBA. Coordenador do Curso
de Graduação da Faculdade Baiana de Direito. Professor adjunto
da Faculdade de Direito da UFBA. Membro da IAPL, do Instituto
Iberoamericano de Direito Processual e do Instituto Brasileiro de
Direito Processual. Presidente da Associação Norte e Nordeste
de Professores de Processo. Advogado. Consultor jurídico.
Site: <www.frediedidier.com.br>.

Daniela Bomfim
Mestre pela UFBA. Professora da Faculdade Baiana de Direito.
Advogada. Consultora jurídica.

Sumário: 1 Síntese dos fatos – 2 Algumas considerações sobre a distribuição


do ônus da prova – 3 A distribuição do ônus da prova no processo adminis-
trativo – 4 O caso em análise – 5 Conclusões

1  Síntese dos fatos


A Indústria XXXX., ora consulente, recebeu dois autos de infração referentes
ao exercício financeiro do ano de 2005, sendo um atinente ao período compreen-
dido entre os meses de janeiro e março e o outro, aos meses de abril e dezembro.
Em ambos, foi-lhe imputada, como infração tributária, a omissão de saídas de
mercadorias tributáveis (vendas sem emissão de notas fiscais correspondentes).
Tal omissão teria sido apurada mediante o cotejo das informações ofereci-
das ao Fisco, pela empresa autuada, acerca de suas operações de vendas realizadas
com cartões de crédito/débito, com aquelas prestadas pelas administradoras dos
mesmos cartões. A comparação teria apontado um descompasso entre o montante
afirmado como pago à empresa consulente pelas administradoras de cartões e
aquele sobre o qual a empresa contribuiu a título de Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços (ICMS).

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220 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

Ciente dos termos dos referidos autos de infração, a Indústria XXXX. apresentou
razões de defesa nos dois procedimentos administrativos, com o intuito de afastar a
presunção encartada no §4º do art. 4º da Lei Estadual nº 7.014/96,1 bem como no
art. 2º, §3º, inciso VI do RICMS/BA.2
Inicialmente, sustentou o vício dos autos de infração por ausência de fun-
damentação e violação ao devido processo legal. Quanto ao mérito da acusação
— repetida em ambas as autuações —, alegou, em síntese, sua improcedência,
na medida em que a autuante se teria equivocado ao supor que haviam sido rea-
lizadas vendas sem a emissão das notas fiscais correlatas, quando, em verdade, se
tratava de meras transações financeiras entre a empresa autuada (franqueadora)
e estabelecimentos franqueados, autorizadas pelo próprio Poder Público.
Para fundamentar suas alegações, a Indústria XXXX. detalhou o modo como
operacionaliza suas vendas junto às suas franqueadas, que consiste em método
particular: a consulente firma com suas franqueadas contrato de cessão e transfe-
rência de créditos. Daí, as franqueadas concordam em ceder a renda auferida com
as operações de vendas realizadas com cartões de crédito/débito à franqueadora,
de modo que o montante recebido a este título é depositado, pela adminis-
tradora dos cartões, na conta bancária da empresa franqueadora. Em seguida,
são emitidas faturas contra os franqueados, correspondentes a royalties e outros
encargos, sendo-lhes repassadas suas margens de lucro sobre as vendas, mediante
depósitos em suas contas bancárias.
Ao que consta, durante o trâmite do processo administrativo, a Indústria
XXXX. apresentou, como meio de prova de suas alegações, documentação fiscal
emitida por um grupo de empresas franqueadas (recolhida por amostragem), a
qual demonstraria o método de operacionalização utilizado pela indústria con-
sulente, bem assim a emissão das competentes notas fiscais pelas franqueadas.
Em sede de primeira instância, os dois autos de infração foram julgados impro­
cedentes, por unanimidade, tendo sido consignado em ambos os acórdãos que:

1
Lei Estadual nº 7.014/96, art. 4º: Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
[...] §4º O fato de a escrituração indicar saldo credor de caixa, suprimentos a caixa não comprova-
dos ou a manutenção, no passivo, de obrigações já pagas ou inexistentes, bem como a ocorrência
de entrada de mercadorias não contabilizadas, autorizam a presunção de omissão de saídas de
mercadorias tributáveis sem pagamento do imposto, ressalvada ao contribuinte a prova da impro-
cedência da presunção.
2
Art. 2º Nas operações internas, interestaduais e de importação, considera-se ocorrido o fato gerador
do ICMS no momento [...] §3º Presume-se a ocorrência de operações ou de prestações tributáveis
sem pagamento do imposto, a menos que o contribuinte comprove a improcedência da presunção,
sempre que a escrituração indicar: VI - valores de vendas inferiores aos informados por instituições
financeiras e administradoras de cartões de crédito.

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Processo administrativo tributário – Prova por amostragem e distribuição dinâmica do ônus da prova 221

Na situação presente, os elementos contidos no processo indicam uma


operacionalização atípica, ou seja, o autuado vende ou remete mercado-
rias em consignação aos franqueados [...] e quando os franqueados efeti-
vam vendas, mediante contrato, efetiva recebimento por meio de cartão
de crédito/débito no POS do franqueador. Logo, como o franqueador
recebe os valores das vendas por meio de cartão de crédito e quem emite
a nota fiscal da venda correspondente é o franqueado, é lógico que o con-
fronto do montante dos valores informados como pagos pelas empresas
administradoras de cartão ao autuado, com os documentos fiscais por ele
emitidos irão indicar falta de conformidade. [...] Portanto, nessa situação espe-
cífica, os documentos fiscais juntados ao processo emitidos pelos franquea-
dos constituem provas suficientes para elidir a presunção legal em relação
aos recebimentos por meio de cartão de crédito/débito do estabelecimento
autuado na condição de franqueador.

Como se vê, em primeira instância administrativa, acolheram-se as alega-


ções de defesa da autuada, considerando-se existente o fato por ela alegado,
qual seja, a operacionalização atípica autorizada pelo Poder Público, suficiente
para descaracterizar as infrações contra ela afirmadas. Considerou-se provado o
fato alegado na defesa com relação a todas as infrações imputadas nos autos,
aceitando-se a prova documental por amostragem neles produzida.
Sucede que, já em segunda instância administrativa, foi juntado aos autos
parecer elaborado pela Procuradoria Fiscal do Estado da Bahia, que, contrariando
os termos dos acórdãos proferidos pela 4ª e 5ª Turmas, entendeu que a docu-
mentação apresentada pela Indústria XXXX. teria aptidão para afastar a presun-
ção legal tão somente em relação às empresas franqueadas que forneceram os
documentos fiscais apresentados. Isso é, ao que consta no parecer, os referidos
documentos não poderiam ser considerados como prova em relação a outras
franqueadas não contempladas na amostragem.
Consulta-me a Indústria XXXX., assim, acerca da referida alegação da
Procuradoria Fiscal, no sentido de que as provas apresentadas em amostragem
não alcançariam as demais empresas franqueadas, razão pela qual, em relação
a elas, a autuada não teria conseguido afastar a presunção legal de que teriam
ocorrido os fatos geradores tributários.
É o que se passa a analisar.

2  Algumas considerações sobre a distribuição do ônus da prova


O ônus da prova possui duas facetas: (i) faceta subjetiva e (ii) faceta objetiva.
Em sua faceta subjetiva, o ônus da prova é regra de conduta dirigida às partes,
que indica quais os fatos cada uma deve provar. Em sua faceta objetiva, o ônus da

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222 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

prova é regra de julgamento que indica qual das partes deverá suportar a decisão
desfavorável em caso de determinado fato não restar provado. É regra dirigida ao
juiz que decorre da proibição de não julgamento (do non liquet).3
No presente caso, é como regra de julgamento que o ônus da prova será
exa­minado.
Do art. 333 do CPC decorre norma que distribui estaticamente o ônus da pro­
va no processo civil. Compete, em regra, a cada uma das partes o ônus de provar
os fatos por ela alegados. Isso porque, em princípio, o ônus da prova é decor-
rente do ônus da alegação (na perspectiva do autor) e do ônus da impugnação
(na perspectiva do réu). Trata-se de distribuição estática do ônus da prova, feita
pelo legislador, em uma primeira valoração acerca do interesse e da possibilidade
na produção da prova.
Há três maneiras de se distribuir o encargo probatório: (i) a distribuição é
feita de forma prévia e abstrata pelo legislador; (ii) a distribuição é feita à luz do
caso concreto, na qual o julgador verifica a parte que tem maiores condições de
produzir a prova — distribuição dinâmica do ônus da prova; (iii) a distribuição pode
ser feita convencionalmente, pelas partes, como autoriza, por exemplo, o pará-
grafo único do art. 333 do CPC. As três formas de distribuição podem — e devem
— existir em um mesmo regime jurídico processual.
A distribuição dinâmica do ônus da prova, segundo a qual o ônus da prova
deve caber a quem tenha melhores condições de produzi-la, à luz das circunstân-
cias do caso concreto, vem sendo aceita no direito brasileiro.4 Esse posicionamento

3
José Carlos Barbosa Moreira explica a faceta subjetiva do ônus da prova: “O desejo de obter a
vitória cria para a litigante a necessidade, antes de mais nada, de pesar os meios de que se poderá
valer no trabalho de persuasão, e de esforçar-se, depois, para que tais meios sejam efetivamente
utilizados na instrução da causa. Fala-se, ao propósito, de ônus da prova, num primeiro sentido”.
Explica também a sua faceta objetiva: “A circunstância de que, ainda assim, o litígio deva ser deci-
dido torna imperioso torna imperioso que alguma das partes suporte o risco inerente ao mau êxito.
Cuida então a lei, em geral, de proceder a uma distribuição de riscos: traça critérios destinados a
indicar, conforme o caso, qual dos litigantes terá de suportá-los, arcando com as consequências
desfavoráveis de não se haver provado o fato que lhe aproveitava. Aqui também se alude ao ônus
da prova, mas num segundo sentido (ônus objetivo ou material)” [MOREIRA, José Carlos Barbosa.
Julgamento e ônus da prova. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual civil: (segunda
série). São Paulo: Saraiva, 1988. p. 74-75].
4
Assim, DALL’AGNOL JUNIOR, Antonio Janyr. Distribuição dinâmica do ônus probatório. Revista
dos Tribunais, São Paulo, n. 788, p. 98, 2001; CARPES, Artur Thompsen. Apontamentos sobre a
inversão do ônus da prova e a garantia do contraditório. In: KNIJNIK, Danilo (Coord.). Prova judi-
ciária: estudos sobre o novo direito probatório. Porto Alegre: Livr. do Advogado, 2007. p. 36, 37.
Admitindo essa possibilidade, tem-se, ainda, MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da convicção
e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades do caso concreto. Disponível em: <http://
www.marinoni.adv.br/principal/pub/anexos/2007061901315330.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2007,

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Processo administrativo tributário – Prova por amostragem e distribuição dinâmica do ônus da prova 223

justifica-se nos princípios da adaptabilidade do procedimento às peculiaridades


do caso concreto, da cooperação e da igualdade.

A solução alvitrada tem em vista o processo em sua concreta realidade,


ignorando por completo a posição nele da parte (se autora ou se ré) ou
a espécie do fato (se constitutivo, extintivo, modificativo, impeditivo). Há
de demonstrar o fato, pouco releva se alegado pela parte contrária, aquele
que se encontra em melhores condições de fazê-lo.5

De acordo com essa teoria: (i) o encargo não deve ser repartido prévia e abs-
tratamente, mas, sim, casuisticamente; (ii) sua distribuição não pode ser estática e
inflexível, mas, sim, dinâmica; (iii) pouco importa, na sua subdivisão, a posição as-
sumida pela parte na causa (se autor ou réu); (iv) não é relevante a natureza do fato
probando — se constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo do direito — ou
o interesse em prová-lo, mas, sim, quem tem mais possibilidades de fazer a prova.6
Nesse contexto, o órgão julgador — inclusive no âmbito administrativo —
permanece no posto de gestor das provas e com poderes ainda maiores, pois lhe
incumbe avaliar qual das partes está em melhores condições de produzir a prova,
à luz das circunstâncias concretas — sem estar preso a critérios prévios, gerais e
abstratos. Pauta-se o magistrado em critérios abertos e dinâmicos, decorrentes
das regras de experiência e do senso comum, para verificar quem tem mais facili-
dade de prova, impondo-lhe, assim, o ônus probatório. Explora a dinâmica fática e
axiológica presente no caso concreto, para atribuir a carga probatória àquele que
pode melhor suportá-la.7
Um sistema no qual só exista a distribuição estática do ônus da prova é
inflexível e não razoável e poderá conduzir a julgamentos injustos. Isso porque
é possível que, no caso concreto, a parte não tenha condições de produzir uma
prova cujo encargo lhe foi previamente atribuído.

p. 7; LOPES, João Baptista de. A prova no direito processual civil, cit., p. 51, 52; ALVES, Maristela da
Silva. Esboço sobre o significado do ônus da prova no Processo Civil, cit., p. 214, 215; KNIJNIK,
Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 175-179; CAMBI,
Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância, cit., p. 344-346. Manuel Dominguez cita farta
doutrina italiana e espanhola nesse sentido, admitindo a distribuição judicial e casuística do ônus
de prova, tendo em conta a normalidade (o que parece se aproximar da ordinariedade e verossi-
milhança aferidas com máximas de experiência) e a facilidade probatória (DOMÍNGUEZ, Manuel
Serra. Estudios de derecho probatorio. Lima: Libreria Communitas EIRL, 2009. p. 118-119).
5
DALL’AGNOL JUNIOR. Distribuição dinâmica do ônus probatório. Revista dos Tribunais, p. 98.
6
DALL’AGNOL JUNIOR. Distribuição dinâmica do ônus probatório. Revista dos Tribunais, p. 98.
7
CAMBI. A prova civil: admissibilidade e relevância, cit., p. 341, 342.

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224 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

É o que ocorre com a chamada prova diabólica, aquela que é impossível ou


muito difícil de ser produzida. Prova diabólica “[...] é expressão que se encontra
na doutrina para fazer referência àqueles casos em que a prova da veracidade da
alegação a respeito de um fato é extremamente difícil, nenhum meio de prova
sendo capaz de permitir tal demonstração”.8
Não há relação necessária entre prova diabólica e prova de fato negativo.
Nem toda prova diabólica se refere a fato negativo — basta pensar, por exemplo,
que nem sempre o autor terá acesso à documentação que corrobora a existência
de um vínculo contratual (fato positivo), em sede de uma ação revisional. E nem
todo fato negativo é impossível de ser provado, demandando prova diabólica
(ex.: certidões negativas emitidas por autoridade fiscal).
Quando se está diante de uma prova diabólica insusceptível de ser produ-
zida por aquele a quem caberia fazê-lo, de acordo com a lei, mas a prova pode
ser realizada pelo outro, o ônus probatório deverá ser distribuído dinamicamente,
caso a caso, na fase de saneamento ou instrutória — a tempo de o onerado dele
desincumbir-se. É uma prova unilateralmente diabólica, isto é, impossível (ou extre-
mamente difícil) para uma das partes, mas viável para a outra.
Pois bem. Questiona-se se a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova
teria sido adotada por nosso direito processual.
O CPC não contém enunciado expresso adotando a teoria. Mas a doutrina
acolhe essa concepção, a partir de uma interpretação sistemática de nossa legis-
lação processual.9 A distribuição dinâmica do ônus da prova seria uma decorrência
dos seguintes princípios:

a) princípio da igualdade (art. 5º, caput, CF, e art. 125, I, CPC), uma vez que
deve haver uma paridade real de armas das partes no processo, promo-
vendo-se um equilíbrio substancial entre elas, o que só será possível se
atribuído o ônus da prova àquela que tem meios para satisfazê-lo;

8
CÂMARA, Alexandre Freitas. Doenças preexistentes e ônus da prova: o problema da prova diabólica
e uma possível solução. Revista Dialética de Direito Processual – RDDT, São Paulo, n. 31, p. 12, 2005.
9
Para Robson Renault Godinho a distribuição do ônus da prova é uma questão vinculada ao exer-
cício dos direitos fundamentais, não necessitando de integração legislativa para sua flexibilização:
“se o cumprimento do ônus probatório pode significar a tutela do direito reclamado em juízo,
parece-nos intuitivo que as regras que disciplinam sua distribuição afetam diretamente a garantia
do acesso à justiça. Se a distribuição do ônus da prova se der de uma forma que seja impossível que
o interessado dele se desincumba, em última análise estará sendo-lhe negado o acesso à tutela jurisdi-
cional. [...] como a necessidade de inversão do ônus da prova decorre diretamente da Constituição,
não há necessidade de integração legislativa, que, contudo, poderá existir e possuirá um caráter
pedagógico e simbólico que facilitará o acesso à justiça” [CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). A
distribuição do ônus da prova na perspectiva dos direitos fundamentais. In: LEITURAS complemen-
tares de constitucional: direitos fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2006. p. 182-194].

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Processo administrativo tributário – Prova por amostragem e distribuição dinâmica do ônus da prova 225

b) princípio da lealdade, boa-fé e veracidade (art. 14, 16, 17, 18 e 125, III,
CPC), pois nosso sistema não admite que a parte aja ou se omita, de
forma ardilosa, no intuito deliberado de prejudicar a contraparte, não
se valendo de alegações de fato e provas esclarecedoras;10
c) princípio da solidariedade com órgão judicial (arts. 339, 340, 342, 345,
355, CPC), pois todos têm o dever de ajudar o magistrado a descortinar a
verdade dos fatos;11 exige-se que a parte colabore em matéria de prova
para que o juiz alcance a verdade;12
d) princípio do devido processo legal (art. 5º, XIV, CF), pois um processo
devido é aquele que produz resultados justos e equânimes;13
e) princípio do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF), que garante a obtenção
de tutela jurisdicional justa e efetiva.

A esses princípios, acrescento o princípio da adequação do processo.


A ausência de um dispositivo referindo-se expressamente à distribuição
dinâ­mica do ônus da prova não significa a impossibilidade de sua adoção. As três
formas de distribuição do encargo probatório devem compatibilizar-se em um
mesmo sistema. Um sistema em que apenas existisse a distribuição estática seria
inflexível; um sistema no qual o ônus probatório fosse distribuído apenas de forma
dinâmica e concreta seria inseguro. A flexibilidade e a segurança são valores que
devem estar conjugados e subjacentes aos preceitos normativos.
Verificada a impossibilidade ou extrema dificuldade da produção de deter-
minada prova, no caso concreto, pela parte a quem caberia o ônus probatório (em
razão da distribuição prévia e estática), ou a maior facilidade da parte contrária
de produzi-la, deverá o juiz atribuir o ônus da prova de forma dinâmica, à luz das
peculiaridades concretas. A atribuição dinâmica do ônus da prova deve ser feita
em decisão fundamentada e ser anunciada às partes antes de ser aplicada a regra

10
SOUZA, Wilson Alves. Ônus da prova: considerações sobre a doutrina das cargas probatórias
dinâmicas, cit., p. 256; WHITE, Inês Lépari. Cargas probatórias dinámicas. In: PEYRANO, Jorge W.
(Dir.). Cargas probatórias dinámicas. Santa Fé: Rubinzalculzoni, 2004. p. 67; AIRASCA, Ivana Maria.
Reflexiones sobre la doctrina de lãs cargas probatórias dinâmicas. In: PEYRANO, Jorge W. (Dir.).
Cargas probatórias dinámicas. Santa Fé: Rubinzalculzoni, 2004. p. 141.
11
Sobre estes três primeiros princípios, vale a pena conferir a exposição de Antonio Janyr Dall’agnol
Jr. (Distribuição dinâmica do ônus probatório, p. 103-105 et seq.). Vide, ainda, KNIJNIK, Danilo. As
(perigosíssimas) doutrinas do “ônus dinâmico da prova” e da “situação de senso comum” como
instrumentos para assegurar o acesso à justiça e superar a probatio diabólica, cit., p. 945. Maristela
Alves embasa a teoria nos princípios da solidariedade e igualdade material (ALVES, Maristela da
Silva. Esboço sobre o significado do ônus da prova no processo civil. Porto Alegre: Livr. do Advogado,
2007. p. 214).
12
WHITE. Cargas probatórias dinámicas, cit., p. 67-68.
13
Acerca destes quatro primeiros princípios, interessam as palavras de Wilson Alves Souza (Ônus da
prova: considerações sobre a doutrina das cargas probatórias dinâmicas, cit., p. 256).

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226 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

de julgamento, de forma a possibilitar à parte desincumbir-se do ônus que, até


então, não lhe cabia.
A distribuição dinâmica das cargas probatórias decorre do princípio do devido
processo e do princípio do acesso à justiça em seus sentidos materiais: um processo
devido é aquele que produz resultados justos. As normas processuais devem ser
analisadas e (re)construídas à luz das peculiaridades do caso concreto. Se uma prova
é unilateralmente diabólica, haveria aí o direito a não precisar provar, que é, por mais
estranho que possa parecer, manifestação do direito à prova.
O art. 333 do CPC e eventuais outras regras de distribuição estática do encargo
probatório não podem ser vistos de maneira isolada, mas à luz dos princípios que
informam o processo devido, cooperativo e igualitário. Tais princípios incidem
quer se trate de processo jurisdicional, quer se trate de processo administrativo.
A distribuição das cargas probatórias deve ser vista sob a perspectiva do devido
processo legal.

3  A distribuição do ônus da prova no processo administrativo


É atributo dos atos administrativos a presunção de sua legitimidade. Trata-se
de lição basilar do direito administrativo. Presumem-se conforme ao direito os
atos decorrentes da atividade administrativa, do que decorre, além da sua auto-
executoriedade, a necessidade de produção de prova em contrário para afastá-la
(presunção juris tantum). Questiona-se, então, a repercussão de tal presunção no
processo administrativo, vale dizer, se, por conta dela, não caberia à Administração
Pública provar os fatos por ela alegados.
Segundo Durval Carneiro Neto, a presunção de legitimidade não conduziria
à desnecessidade da Administração de provar os fatos alegados em processos
administrativos ou judiciais. Isso porque, consagrado o princípio do contraditó-
rio nas vias judicial e administrativa, seria inconstitucional a atribuição de prer-
rogativa desigualitária ao Poder Público. Conclui: “O atributo da presunção de
legitimidade, apesar de presente em muitos processos de formação dos atos
administrativos executórios, não pode encontrar terreno fértil para predominar
nos processos litigiosos administrativos e judiciais, mormente os sancionadores”.14
A presunção de legitimidade atuaria na formação do ato administrativo, mas, por
si, não levaria à atribuição apenas ao administrado de provar a inocorrência da
infração. O ônus da prova pode, por outros motivos, ser do administrado, mas não
por conta da presunção de legitimidade.

14
CARNEIRO NETO, Durval. Processo, jurisdição e ônus da prova no direito administrativo. Salvador:
JusPodivm, 2008. p. 343.

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Processo administrativo tributário – Prova por amostragem e distribuição dinâmica do ônus da prova 227

Trata-se, aqui, da prova dos elementos fáticos de cuja juridicização seriam


decorrentes as sanções aplicadas pela Administração. Imagine-se, por exemplo,
uma sanção administrativa disciplinar, como a demissão do servidor público. Não
precisaria restar comprovada a conduta ilícita do servidor por conta da presunção
de legitimidade? Dever-se-ia restar provada a ausência de conduta ilícita? Seria
o servidor quem deveria suportar a decisão desfavorável por ausência de prova?
Parece-me que não. Os elementos fáticos da sanção devem restar provados, sob
pena de a Administração Pública não poder aplicar a pena. O mesmo raciocínio
pode ser aplicado aos processos administrativos fiscais. A Administração precisa
provar a ocorrência dos elementos do fato gerador para que seja devido o tributo.
Segundo Paulo de Barros Carvalho,

Com a evolução da doutrina, nos dias de hoje, não se acredita mais na


inversão do ônus da prova por força da presunção de legitimidade dos
atos administrativos e tampouco se pensa que esse atributo exonera a
administração de provar as ocorrências que se afirma terem existido. Na
própria configuração oficial do lançamento, a lei institui a necessidade de
que o ato jurídico administrativo seja devidamente fundamentado, o que
significa dizer que o fisco tem que oferecer prova concludente de que o
evento ocorreu na estrita conformidade da previsão genérica da hipótese
normativa.15

A presunção de legitimidade do ato administrativo, inclusive o ato fiscal,


não significa necessariamente ausência de ônus probatório ao Poder Público.16
Ainda que assim não fosse, não se pode negar a aplicabilidade da distribuição
dinâmica do ônus da prova nos processos administrativos.17 Em se tratando de prova

15
CARVALHO, Paulo de Barros. A prova no processo administrativo tributário. Revista Dialética de
Direito Tributário – RDDT, n. 34, p. 107-108, 1999.
16
“Se é verdade que a conformação peculiar do processo administrativo tributário exige do contri-
buinte impugnante, no início, a prova dos fatos que afirma, isto não significa, como vimos, que, no
decurso do processo, seja de sua incumbência toda a carga probatória. Tampouco a presunção de
legitimidade do ato de lançamento dispensa a Administração do ônus de provar os fatos de seu
interesse e que fundamentam a pretensão do crédito tributário, sob pena de anulamento do ato”
(BONILHA, Paulo Celso B. Da prova no processo administrativo tributário. 2. ed. São Paulo: Dialética.
1997. p. 77). Helenilson Cunha Pontes diz que se trataria de um dever de provar, decorrente da
necessidade de motivação na atividade administrativa. Refere-se, assim, em dever constitucional
de investigação e prova da realização do suporte fático tributário (PONTES, Helenilson Cunha.
Omissão de receitas e depósitos bancários: o sentido normativo do art. 42 da Lei 9.430/96. Revista
Dialética de Direito Tributário – RDDT, São Paulo, n. 146, p. 87, nov. 2007).
17
A jurisprudência do STJ admite a distribuição dinâmica do ônus da prova em desfavor do
Poder Público, quando a sua produção for unilateralmente diabólica ao administrado. É o
que se depreende do seguinte excerto de ementa de julgado: PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO
FISCAL. ÔNUS DA PROVA. FATO NEGATIVO. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO DO DEVEDOR NO

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228 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

cuja produção seria unilateralmente impossível ou muito difícil ao administrado, tal


peculiaridade do caso concreto deve ser tida em consideração para que seja da
Administração o encargo probatório, seja porque apenas ela pode produzir prova
do fato contrário, seja porque para ele o acesso a tal prova é facilitado. O ônus da
prova deve, então, ser distribuído à luz do caso concreto, para que a decisão admi-
nistrativa decorra de um processo justo, igualitário, cooperativo e devido.
Nos casos em que somente a Administração detém ou deveria deter determi-
nados documentos, por exemplo, “a presunção de legitimidade não lhe poupa do
encargo probatório”.18 Nesse sentido, inclusive, há previsão na Lei Federal nº 9.784/99.

Art. 37. Quando o interessado declarar que fatos e dados estão registra-
dos em documentos existentes na própria Administração responsável
pelo processo ou em outro órgão administrativo, o órgão competente
para a instrução proverá, de ofício, à obtenção dos documentos ou das
respectivas cópias.

O próprio legislador já realizou uma prévia valoração acerca da possibilidade


de produção probatória. Não se trata de inversão do ônus da prova, nem de sua
distribuição dinâmica. É distribuição prévia e abstrata feita pelo legislador; estática,
pois.
A regra anteriormente referida é uma concretização do princípio da coope-
ração, decorrente do princípio da boa-fé processual. Todos os sujeitos processuais
(seja qual for a modalidade de processo) devem comportar-se de forma leal e
cooperativa para que seja produzida uma decisão justa.19

PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO EMBASADOR DA EXTRAÇÃO DOS TÍTULOS EXECUTIVOS.


NULIDADE. PRESUNÇÃO DE LIQUIDEZ E CERTEZA DA CDA AFASTADA. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO
PESSOAL DA FAZENDA. [...] 3. A tese do exeqüente de que competiria ao contribuinte o ônus de
comprovar as suas alegações não merece êxito por tratar-se de prova de fato negativo, não de-
vendo ser exigido do contribuinte que demonstre em juízo que não foi devidamente notificado
para se defender no processo administrativo, que se encontra em poder do exeqüente. No caso,
caberia à Fazenda diligenciar e provar a efetiva notificação do contribuinte para se defender. [...]
(AgRg no Ag 1022208 GO 2008/0045121-5, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, data de julga-
mento 21.10.2008; STJ, T2, data de publicação DJe, 21 nov. 2008, RDDT, v. 161, p. 146). No mesmo
sentido, RS 2010/0096786-1, T2, Rel. Min. Eliana Calmon, data de julgamento 17.08.2010, data de
publicação DJe, 26 ago. 2010).
18
CARNEIRO NETO. Processo, jurisdição e ônus da prova no direito administrativo, cit., p. 344.
19
“Está implícito que não pode a Administração bloquear o acesso do particular a fatos e documen-
tos de seu interesse. Mais que isso, deve a Administração colaborar com o particular na busca
de elementos probatórios, porque o interesse público assim o exige” (FERRAZ, Sérgio; DALLARI,
Adilson Abreu. Processo administrativo. 2. triagem. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 134).

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Processo administrativo tributário – Prova por amostragem e distribuição dinâmica do ônus da prova 229

4  O caso em análise
a) Generalidades
Cuida-se, no caso em análise, de autos de infração nos quais a Administração
Pública estadual afirmou a ocorrência do fato gerador da obrigação de pagar
ICMS e de ato jurídico ilícito, qual seja, omissão quanto à venda de mercadorias
tributáveis e a falta de pagamento do tributo. Afirmou ser devido o pagamento de
quantia, correspondente ao ICMS supostamente não recolhido e à multa incidente.
Afirmou que se teria verificado a incidência do art. 4º, §4º, da Lei Estadual
nº 7.014/94 e do art. 2º, §3º, inciso VI, do RICMS/BA, existindo presunções relativas
quanto à ocorrência do fato gerador e da omissão da saída das mercadorias não
tributáveis sem o pagamento de imposto, fatos principais por ela afirmados no
auto de infração. Por conta da afirmação e da comprovação do suporte fático do
art. 4º, §4º, da Lei Estadual nº 7.014/94, o ônus da prova com relação aos fatos
principais (ocorrência do fato gerador do tributo e da omissão quanto à saída
de mercadorias tributáveis sem o pagamento do tributo) seria, em princípio, da
autuada. Veja-se: o ônus da prova seria, em princípio, da autuada por conta das
presunções contidas nos mencionados diplomas legais, e não por conta da pre-
sunção de legitimidade dos atos administrativos.
Pois bem.
A autuada, em sua defesa, alegou que não se verificou o fato gerador do
tributo e que não se verificou o ato ilícito afirmado pelo Fisco. Isso porque o des-
compasso entre suas informações de vendas realizadas com cartões de crédito/
débito e aquelas prestadas pelas administradoras dos mesmos cartões se justifi-
caria por conta da operacionalização atípica do recebimento de quantia, a título
de royalties, na relação com suas franqueadas, autorizada pelo Poder Público.
Trata-se de fato idôneo para afastar as presunções legais, vale dizer, para
comprovar que o fato gerador e a conduta ilícita não existiram. Assim conside-
raram os julgadores da Quarta Junta de Procedimento Fiscal. Assim também
considerou a Procuradoria do Estado da Bahia em seu parecer, já que considerou
afastadas as presunções legais por conta das operações comprovadas pelos docu-
mentos ficais juntados aos autos.
Não se questiona a idoneidade do fato afirmado na defesa para comprovar
a inexistência dos fatos principais afirmados. A questão está na prova do fato de
defesa. São duas as perguntas que precisam ser respondidas: (i) o fato das opera-
ções atípicas restou comprovado? e (ii) se não houve comprovação do fato, quem
deve suportar a decisão desfavorável? Esta é a ordem das perguntas que, já que o
ônus da prova é regra de julgamento de aplicação subsidiária.

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230 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

b) A prova por amostragem no caso concreto


Não se questiona que restou provada a ocorrência das operações atípicas
realizadas com as franqueadas relativas aos documentos fiscais juntados aos autos.
A questão é se restou comprovada a ocorrência das operações com relação às
demais franqueadas. A autuada juntou aos autos do processo administrativo docu-
mentos fiscais concernentes à parte das franqueadas, com o objetivo de provar as
operações atípicas realizadas com todas elas. Pretendeu, assim, provar um con-
junto de fatos, demonstrando parte deles.
A prova por amostragem, que pode ser considerada uma variante da cha-
mada de prova por estatística, é aquela por meio da qual se prova uma universa-
lidade de eventos a partir da prova de parte deles. Isso porque, como consta no
Manual for Complex Litigation, uma publicação oficial do Poder Judiciário norte-­
americano, métodos estatísticos podem normalmente estimar, com determinado
nível de segurança, as características da “população” ou “universo” de eventos,
transações, atitudes ou opiniões, por meio da observação das características em
um segmento pequeno ou simples da população.20
A prova por amostragem pressupõe a existência de um conjunto de eventos/
fatos que possam ser agrupados porque semelhantes, de forma que a prova de
parte deles possa conduzir o magistrado ao juízo acerca da existência de todos
eles. A prova de parte conduz à conclusão da existência acerca de todos os fatos
que compõem o conjunto.
A prova por amostragem relaciona-se com a prova indiciária.
Na prova indiciária, o indício não é o fato probando principal — embora se
tenha de prova o indício, o objeto principal da prova é o fato que o indício aponta;
o fato ao qual se liga o indício. O indício é o fato conhecido que, por via de racio-
cínio, sugere a existência/inexistência do fato probando principal. Entre o indício
e o fato probando principal há uma relação lógica de causalidade, que autoriza a
atividade do juiz (presunção judicial) de concluir existente o fato probando prin-
cipal. Pode-se afirmar que o indício é um meio de prova, já que a partir dele se
elabora a presunção judicial.
Na prova indiciária, há uma relação lógica entre o fato conhecido (indício) e
o fato que se quer provar. Essa relação permite que se faça um silogismo.
Premissa maior: verdade mais geral; conceito geral a que se chega pela expe-
riência. Trata-se de um produto de conhecimentos gerais, aceitos sob a forma de
experiência.

20
Manual for Complex Litigation, Fourth, §11.493, p. 102 (Disponível em: <https://public.resource.
org/scribd/8763868.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2012).

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Processo administrativo tributário – Prova por amostragem e distribuição dinâmica do ônus da prova 231

Premissa menor: fato conhecido; fato base; fato auxiliar. O indício. É preciso
que haja certa relação entre o fato geral e o fato base. Essa relação pode dar-se
de duas formas: a) constante: o que se apresenta como verdadeiro em todos os
casos particulares. Ex.: todos os homens são mortais; João é homem, logo, mortal.
A relação entre os fatos é regida por uma lei natural, sendo impossível que as
coisas ocorram de maneira diferente, sendo uma certeza absoluta — aqui não há
presunção, mas certeza. De tal conclusão resulta a evidência; b) ordinária: o que
se apresenta como verdadeiro em quase todos os casos particulares. Aqui, não
há evidência, mas mera verossimilhança. Dado que um fato exista, em face do
que comumente acontece, também existirá o fato que se deseja provar. A base
do silogismo é uma regra estabelecida segundo o que ordinariamente acontece.
Surge a presunção.
Na prova por amostragem, os fatos provados são também fatos probandos
— servem como indícios —, mas, por meio da sua prova, pretende seja realizado
juízo acerca da existência de todos os fatos pertencentes ao conjunto. A prova dos
fatos da “amostragem” autoriza a presunção acerca dos fatos que não compõem
a “amostragem”. Nesse sentido, caso se realize a atividade da presunção, nenhum
dos fatos que compõem o conjunto pode ser considerado não provado, pois seria
ilógico. Todos os fatos pertencem ao conjunto justamente porque existe relação
de forma constante ou ordinária entre eles. Por meio da prova de determinados
elementos, surge a presunção acerca de todos eles, considerados em sua univer-
salidade. A relação, aqui, não é de causalidade, mas de continência.
A relação de conteúdo/continência também permite que se faça um silo-
gismo, no qual também ganha relevância as máximas de experiência para que se
constate a existência da relação entre os fatos componentes do conjunto.
Premissa maior: máxima da experiência, noção que reflete o reiterado per-
passar de uma série de acontecimentos semelhantes, autorizando, mediante racio­
cínio indutivo, a convicção de que, se assim costumam apresentar-se as coisas,
também assim devem elas, em igualdade de circunstâncias, apresentar-se outras
— possuem as características da generalidade e abstração.21
Premissa menor: a relação entre fatos para que sejam tidos como compo-
nentes de um conjunto. A relação entre eles será também de constância ou ordi-
nariedade, justificando a formação, na lógica do pensamento, do conjunto. Com o
auxílio da experiência, pode-se concluir que todos aqueles fatos são componen-
tes do conjunto. Após esta conclusão, dado que uma série de fatos do conjunto

21
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Regras da experiência e conceitos juridicamente indetermina-
dos. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: (segunda série). 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1988. p. 62.

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exista — e aqui a experiência atua mais uma vez —, conclui-se que todos eles
existem. É a presunção.
O raciocínio só será legítimo se os métodos de amostragem forem utilizados
de acordo com os padrões gerais de estatística, como se depreende do Manual
for Complex Litigation. São fatores relevantes que devem ser levados em conside-
ração: (i) se a ‘‘população” foi propriamente escolhida e definida; (ii) se a amostra-
gem escolhida foi representativa da população; (iii) se os dados reunidos foram
cautelosamente relatados; e (iv) se os dados foram analisados de acordo com as
os princípios de estatística aceitáveis.22
As normas da estatística são, aqui, meios ao alcance da “confiabilidade”
da conclusão da atividade da presunção. Michelle Taruffo trata das funções dos
“conhe­cimentos científicos” quando se refere ao juízo prognóstico de fatos futu-
ros. Suas lições aplicam-se, mutadis mutandis, ao que ora se chama de “prova por
amostragem”, para considerar que os esquemas “probabilísticos” são adaptados
para munir o juiz de estruturas lógicas validamente utilizáveis, atribuindo um
grau considerável de confiabilidade e probabilidade de suas previsões,23 aqui com
relação aos fatos não diretamente provados.
Na prova por amostragem, exige-se, pois, que o conjunto seja definido para
que os seus elementos guardem relação de constância ou ordinariedade. Demais
disso, os fatos constantes da amostragem devem ser significativos para que, no
segundo momento de atuação da experiência, se possa realizar a presunção com
relação ao todo.
A prova por amostragem/estatística pode ser muito útil no processo. Téc­
ni­cas aceitáveis de amostragem podem economizar tempo e reduzir custos e,
em alguns casos, promover a única forma viável de coletar e apresentar um dado
relevante — diminui-se o objeto da prova: em vez da apresentação de volumosos
dados de toda a população, apresentam-se dados de apenas parte desta popula-
ção.24 A prova por amostragem atende, pois, ao princípio da economia processual
e, em alguns casos, é uma saída para que se evite a existência de prova diabólica.
A ausência de previsão expressa em nosso direito processual não significa
que não se admita a prova por amostragem no processo. Os fatos podem ser evi-
denciados por qualquer meio de prova, ainda que não previsto na lei, desde que
se trate de um meio lícito e moralmente legítimo (art. 332, CPC). Assim, ao lado

22
Manual for Complex Litigation, Fourth, §11.493, p. 102-103.
23
TARUFFO, Michele. Sobre as fronteras: escritos sobre la justicia civil. Bogotá: Editorial Themis, 2006.
p. 314-315.
24
Manual for Complex Litigation, Fourth, §11.493, p. 102-103.

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Processo administrativo tributário – Prova por amostragem e distribuição dinâmica do ônus da prova 233

dos meios de prova típicos, que contam com expressa previsão em lei, admitem-se
os meios de prova atípicos, que não encontram sede legal.
São meios de prova atípicos, por exemplo, a prova cibernética, a reconstitui-
ção de fatos e a prova emprestada. A prova por amostragem é também exemplo
de prova atípica.25 São provas atípicas (inominadas), pois, com elas, se busca “a
obtenção de conhecimentos sobre fatos por formas diversas daquela prevista na
lei para as provas chamadas típicas”.26 E a ausência de disciplina legislativa exige
que o juiz atente, no momento da sua produção, para os princípios que norteiam a
teoria geral da prova, sobretudo os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Então.
No caso em análise, a autuada juntou aos autos quantidade expressiva de
documentos fiscais com o intuito de demonstrar as operações atípicas realizadas
com todas suas franqueadas, fatos, como visto, idôneos a elidir as presunções
legais incidentes. Tais fatos — operações atípicas realizadas com todas as fran-
queadas — guardam relação de constância, já que, se tal modelo de operação
foi autorizado pelo Poder Público como uma forma de proteção dos interesses
da autuada junto às franqueadas, seria ilógico que tal modelo fosse válido para
algumas franqueadas, mas não para outras. Acrescente-se o argumento de que os
contratos de franquia são contratos nos quais há pouca ou quase nenhuma pos-
sibilidade de interferência da vontade das franqueadas na sua formação. Sabe-se
que, em regra, as condições são estipuladas pela franqueadora, cabendo à fran-
queada aceitar ou não. Aproximam-se, pois, dos contratos de adesão. Por isso,
as relações da franqueadora com suas franqueadas, no que concerne ao modo
de recebimento dos royalties, podem ser agrupadas em uma universalidade, para
que se verifique o raciocínio indutivo da prova por amostragem.
A relação da franqueadora com suas franqueadas segue uma “relação-padrão”.
Exceções podem existir, mas não descaracteriza a existência da “relação-­
padrão”. A prova de que tal operação ocorria apenas com uma franqueada não
seria suficiente para conduzir ao juízo sobre a existência de todas as operações.
Poderia esta, justamente, se tratar da exceção. Todavia, a prova de uma quantida-
de significativa de operações, tal como ocorreu no caso em comento, evidencia
que tal operação era componente da “relação-padrão” existente entre a franqueadora

25
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus nº 103.556, reconheceu o cabimento
da prova pericial por amostragem em máquinas caça-níqueis, considerando, inclusive, que seria
impossível a perícia em todas elas, já que algumas já se encontram deterioradas (HC nº 103556/RJ, Rel.
Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, julgado em 24.06.2008, DJe, 18 ago. 2008).
26
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Provas atípicas. Revista de Processo, São Paulo, n. 76, p. 117, 1996.

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234 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

e suas franqueadas. A amostragem era idônea a conduzir à presunção acerca da


existência de todos os eventos pertencentes à universalidade.
Da prova documental produzida nos autos, é lícito que se conclua pela
existência das operações atípicas com as franqueadas que forneceram os docu-
mentos fiscais, mas não apenas. É possível, por presunção com relação ao todo,
seja concluída a existência das operações com relação a todas as franqueadas.
A prova por amostragem é, no caso, cabível, eis que (i) se encontra definida a
universalidade com base na relação de constância e (ii) os fatos componentes da
amostragem são, quantitativamente, expressivos para permitir que se conclua ser
a operação atípica elemento da “relação padrão” existente entre a franqueadora e
suas franqueadas.
A prova por amostragem não apenas atende à economia processual, mas
também à efetividade do direito à prova. É uma forma de não se caracterizar a
prova diabólica no caso concreto, pois, como se verá, é impossível à autuada
trazer aos autos os documentos fiscais de todas as franqueadas, não apenas por
questão de volume, mas principalmente por depender da conduta das próprias
franqueadas.
Note-se que, no parecer da Procuradoria do Estado, inexiste qualquer argu­
mento que possa retirar a idoneidade da prova por amostragem no caso. Não
se disse ser inexistente a relação de constância entre os fatos componentes da
universalidade, nem tampouco que a amostragem era quantitativamente inex-
pressiva. Limitou-se a dizer que as dificuldades de produzir a produção de todos
os fatos (as operações atípicas com relação a todas as franqueadas) deveriam ser
suportadas exclusivamente pela autuada.
Lembre-se, inclusive, que a amostragem é meio normalmente utilizado pelo
próprio Fisco para considerar existente a ocorrência de fatos geradores. O Estado
vale-se, com frequência, da prova por amostragem. Não pode, agora, não aceitá-la,
sem qualquer justificativa idônea para tanto.

c) A atribuição dinâmica do ônus da prova à luz das peculiaridades do caso em análise


Ainda que não fosse cabível a prova por amostragem, a prova de todas as
operações atípicas é uma prova unilateralmente diabólica, vale dizer, impossível ou
muito difícil de ser produzida pela consulente. Isso porque ela dependeria que as
franqueadas fornecessem os seus documentos fiscais. A conduta das franquea­das,
entretanto, não seria obrigatória junto à autuada. Vale dizer: do contrato de franquia,
não decorre nenhuma obrigação das franqueadas de entregar os seus documentos
fiscais à franqueadora. A franqueadora não pode exigir, assim, a sua entrega.

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Processo administrativo tributário – Prova por amostragem e distribuição dinâmica do ônus da prova 235

O próprio parecer da Procuradoria do Estado refere-se à dificuldade da


produção da prova pela autuada. Afirma:

[...] possíveis dificuldades na produção de prova capaz de elidir a presunção


legal em análise — como, por exemplo, a invocação de sigilo fiscal ou a
recusa ao fornecimento de seus documentos fiscais pelas empresas fran-
queadas — devem ser suportadas exclusivamente pela empresa autuada,
como resultado de sua livre opção de modelo de gestão [...]. (fls. 2999)

E continua: “em linha oposta àquela seguida pelo órgão julgador de pri-
meira instância, entendemos que devem militar contra a autuada, e não contra o
Fisco, quaisquer dificuldades que decorram do atípico modelo operacional eleito
no caso concreto” (p. 2999).
Equivoca-se ao afirmar que tais dificuldades devem ser “suportadas exclusi-
vamente pela autuada, como resultado de sua livre opção de modelo de gestão”.
A um, porque a prova não é difícil de ser produzida pela Administração
Pública, que tem acesso a todos os documentos fiscais referidos, em razão dos
poderes inerentes à Administração Tributária. Veja-se que as franqueadas não podem
alegar sigilo fiscal em face do próprio Fisco, que pode exigir a apresentação dos
documentos fiscais pela franqueada.
Esta é a ratio, inclusive, do art. 37 da Lei nº 9.784/1999: quando a Administração
Pública tiver maiores condições de produzir determinada prova documental,
deverá por ela ser produzida, sob pena de suportar a decisão desfavorável. No
mesmo sentido, o art. 23 da Lei de Processo Administrativo do Estado da Bahia
(Lei nº 12.209/2011) dispõe que: “cabe ao interessado a prova dos fatos que tenha
alegado, sem prejuízo do dever atribuído ao órgão competente para a instrução,
mediante a juntada dos documentos que se encontram em seu poder”. Nos dois
dispositivos, encontra-se subjacente a valoração do legislador na distribuição pré-
via do ônus da prova. Trata-se, pois, de distribuição estática do ônus da prova.
Os mencionados preceitos normativos são concretizações do princípio da
cooperação e da igualdade. O processo administrativo deve ser produto da ativi-
dade cooperativa: cada parte com suas funções, mas com o objetivo comum de
produção do ato final, decisão administrativa decorrente de um processo devido,
em suas facetas formal e material. O princípio da cooperação exige participação
cooperativa da Administração Pública no processo administrativo fiscal, o que
abrange a produção da prova documental em comento.
Ainda que assim não fosse, o encargo probatório deve ser distribuído à luz
das circunstâncias do caso concreto. O próprio Estado reconhece que a prova é

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diabólica para a autuada. De outro lado, é evidente que o Estado tem melhores
condições de produzir a prova documental, já que deve ter tais documentos ou
pode exigir das franqueadas que os entreguem.
Dessa forma, no caso concreto, cabe ao Estado, e não à autuada, suportar
a decisão desfavorável, acaso o fato não se encontre provado. Em outras pala-
vras: se o Estado exige que todas as operações sejam provadas, não aceitando a
amostragem de documentos fiscais existentes nos autos, e esta prova pode ser
por ele mesmo produzida, o ônus da prova deve ser do Estado, por força da sua
distribuição dinâmica no caso concreto, a quem caberá provar os fatos contrários
à pretensão do contribuinte.
A dois, a “livre opção do modelo de gestão” da administrada não é circuns-
tância idônea a lhe atribuir o ônus de prova diabólica, inclusive porque se tratou
de “modelo de gestão” autorizado pelo próprio Poder Público. Não pode, agora,
este mesmo Poder Público pretender que a administrada suporte consequência
que lhe é desfavorável em razão de conduta cuja legalidade foi anteriormente por
ele verificada. Trata-se de comportamento contraditório da Administração Pública,
vedado por força do princípio da boa-fé.
A boa-fé objetiva é norma (princípio) de conduta, em consonância com os
padrões éticos consagrados em dado tempo e espaço. O princípio da confiança é
parte do conteúdo substancial da boa-fé e legitima o reconhecimento e a tutela
da situação “em que uma pessoa adere, em termos de actividade ou de crença, a
certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efectivas”.27
Dela decorre o princípio de cooperação e lealdade recíproca entre as partes, em
decorrência na nova perspectiva da dignidade humana — informada pela solida-
riedade — na qual cada indivíduo é responsável pela conservação da dignidade
do outro, impondo-se “sobre todos o dever de não se comportar de forma lesiva
aos interesses e expectativas legítimas despertadas no outro”.28
A boa-fé objetiva, informada pelo princípio da confiança, extrapolou o âmbito
do direito civil para orientar os demais ramos do direito, entre os quais o direito
administrativo. Nesse contexto, a legitimidade da confiança depositada numa deter-
minada conduta administrativa independe da legitimidade/legalidade do ato/
omissão pelo qual se revela essa conduta. É possível, assim, que o ato/omissão
tenha sido viciado e, nada obstante, tenha gerado uma expectativa legítima, obs-
tando assim seja decretada a sua invalidade, tal como se verifica no caso em análise.

27
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Lisboa: Almedina, 2003.
p. 1234.
28
SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança e venire
contra factum proprium. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 47-56, 89.

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Processo administrativo tributário – Prova por amostragem e distribuição dinâmica do ônus da prova 237

Com ainda mais razão, haverá expectativas legítimas decorrentes da conduta da


administração não viciada. Ensina Rafael Maffini:

Se assim ocorre, a fortiori, com maior razão ainda, há de se aplicar a pro-


teção da confiança em relação a condutas administrativas válidas. Isso
porque, sendo a própria ação válida, a confiança nela depositada, inva-
riavelmente, deverá ser considerada legítima, sem a necessidade de uma
espécie de mediatização oriunda da presunção de legitimidade. Em outras
palavras, nas condutas inválidas, a conduta é ilegítima, mas a confiança
nela depositada é legítima em razão da presunção de legitimidade, ao
passo que, nas condutas administrativas válidas, sendo esta legítima,
quaisquer manifestações de confiança depositadas em tais condutas deve-
rão ser necessariamente consideradas legítimas.29

É efeito da incidência da boa-fé objetiva a obrigação da Administração Pública


não se comportar de forma contraditória ao seu próprio comportamento, violando,
assim, expectativas legítimas do administrado. Assim é manifestada a proibição de
venire contra factum proprium no âmbito administrativo, que não exige apenas a
contradição do comportamento, mas principalmente a situação de confiança do
administrado.
No caso em comento, o comportamento anterior do Poder Público ao apro-
var o sistema de operações que seria realizado entre a franqueadora e as franquea­
das fez nascer expectativas legítimas de que nenhuma consequência poderia lhe
ser imputada em razão de tal “modelo de gestão”. Pretender que, agora, a admi-
nistrada tenha de suportar o ônus de prova diabólica por força desse “modelo de
gestão” é comportamento da Administração contrário ao comportamento anterior
que viola a situação de confiança da administrada.

5  Conclusões
Por tudo quanto foi exposto, conclui-se que:
(i) é cabível a prova por amostragem no caso concreto, já que a) se encon­
tra definida a universalidade das operações atípicas realizadas com
todas as franqueadas e b) os fatos componentes da amostragem são,
quantitativamente, expressivos para permitir que se conclua ser a ope-
ração atípica elemento da “relação padrão” existente entre a franquea-
dora e suas franqueadas.

29
MAFFINI, Rafael. Princípio da proteção substancial da confiança no direito administrativo brasileiro.
Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. p. 188.

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238 Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim

(ii) No caso, incide a norma decorrente do art. 23 da Lei de Processo


Administrativo do Estado da Bahia (Lei nº 12.209/2011), para que seja
ônus do Estado a produção de prova documental, quando os docu-
mentos puderem ser obtidos pela Administração com maior facilidade,
dever decorrente, inclusive, do princípio da cooperação no processo
administrativo.
(iii) Ainda que assim não fosse, caracteriza-se prova unilateralmente diabó-
lica em desfavor do administrado, razão por que deve ser o ônus da
prova distribuído à luz das peculiaridades do caso concreto, para que o
Estado suporte a decisão desfavorável caso não provados os fatos das
operações realizadas com todas as franqueadas.
(iv) A “livre opção do modelo de gestão” da administrada não é circunstân-
cia idônea a lhe atribuir o ônus de prova diabólica, inclusive porque se
tratou de “modelo de gestão” autorizado pelo próprio Poder Público.
É o parecer.

Cidade de Salvador, 14 de março de 2012.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DIDIER JR., Fredie; BOMFIM, Daniela. Processo administrativo tributário: prova por amostra-
gem e distribuição dinâmica do ônus da prova. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 21, n. 81, p. 219-238, jan./mar. 2013.

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RESENHA

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CUNHA, Leonardo Carneiro da. A atendibilidade dos fatos
supervenientes no processo civil: uma análise comparativa
entre o sistema português e o brasileiro. Coimbra:
Almedina, 2012.

Acaba de ser publicado, em Portugal, pela prestigiada Editora Almedina, o


resultado do pós-doutoramento de Leonardo Carneiro da Cunha, na Universidade
de Lisboa, entre 2008 e 2010.
Fui uma testemunha privilegiada de todo o processo de elaboração do
livro, pois estive, nesse período, com Cunha, também fazendo o meu estágio
pós-doutoral. Nessa condição, posso asseverar: esta obra é resultado de muita
reflexão deste grande processualista brasileiro, professor da Universidade Federal
de Pernambuco.
Cunha cuida do problema da relevância dos fatos supervenientes ao ajui-
zamento da demanda e da possibilidade de eles serem levados em consideração
pelo órgão julgador, na hora da decisão.
Traça um paralelo entre os sistemas português e brasileiro, este claramente
inspirado naquele — e talvez essa circunstância histórica tenha sido a principal
causa desta pesquisa.
Vale-se de metodologia irrepreensível.
Em um primeiro momento, relaciona o tema com dois outros temas funda-
mentais da ciência do processo: a estabilidade da demanda e a causa de pedir.
Destaco, nesta parte, a preocupação do autor com o estudo da litiscontestatio,
verdadeiro negócio jurídico processual — este último um tema que volta à
tona, tendo sido objeto de estudos recentes na doutrina nacional e estrangeira.
Sobressaem, igualmente, as considerações sobre a causa de pedir, certamente o
mais difícil tema da ciência do processo.
Em um segundo momento, Leonardo examina o tema a partir de normas
fundamentais do processo civil: os princípios da boa-fé, cooperação, adequação
formal, contraditório, dispositivo e duração razoável do processo, além da regra
da eventualidade. O repertório de princípios examinados já bem demonstra a
qualidade do autor: não é comum vermos trabalhos que procuram examinar temas
tradicionais a partir de um novo rol de princípios do processo, como o da boa-fé, o
da cooperação e o da adequação formal. Sobre todos esses temas, o autor se vale

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242 Fredie Didier Jr.

de bibliografia atualizada. É um sopro de contemporaneidade sobre o estudo do


velho tema da relevância dos fatos supervenientes.
E, finalmente, na parte final do seu livro, Carneiro da Cunha faz o exame
dogmático dos arts. 663º, CPC português, e 462, CPC brasileiro. O autor, cujos tra-
balhos dogmáticos são bem conhecidos e prestigiados, revela a sua maturidade
científica, enfrentando todos os problemas que esses dispositivos geram, na prá-
tica e na ciência jurídica. A obra, neste ponto, demonstra toda a sua importância
para os aplicadores do direito processual, aqui e em terras lusitanas.
Há, ainda, um aspecto formal, que gostaria de realçar: o livro é conciso, obje-
tivo e bem escrito. Três qualidades raras, atualmente. Merecem registro e aplauso.
Este livro entra para o rol das grandes monografias da ciência jurídica pro-
cessual brasileira.

Fredie Didier Jr.


Livre-docente pela USP. Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa.
Doutor pela PUC-SP. Mestre pela UFBA. Coordenador do Curso
de Graduação da Faculdade Baiana de Direito. Professor adjunto
da Faculdade de Direito da UFBA. Membro da IAPL, do Instituto
Iberoamericano de Direito Processual e do Instituto Brasileiro de
Direito Processual. Presidente da Associação Norte e Nordeste
de Professores de Processo. Advogado. Consultor jurídico.
Site: <www.frediedidier.com.br>.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

CUNHA, Leonardo Carneiro da. A atendibilidade dos fatos supervenientes no processo civil:
uma análise comparativa entre o sistema português e o brasileiro. Coimbra: Almedina,
2012. Resenha de: DIDIER JR., Fredie. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 21, n. 81, p. 241-242, jan./mar. 2013.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 21, n. 81, p. 241-242, jan./mar. 2013

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Índice
página página

Autor RIBEIRO, Regina


- Artigo: A incidência da prescrição em face
BOMFIM, Daniela da autonomia do Direito Processual.....................29
- Parecer: Processo administrativo tributário –
Prova por amostragem e distribuição dinâmica SOUSA, Alice Ribeiro de
do ônus da prova........................................................219 - Artigo: Princípios da defesa da cidadania............85

CERQUEIRA, Marcelo Malheiros THIBAU, Tereza Cristina Sorice Baracho


- Artigo: Prescrição, decadência e imprescritibili- - Artigo: Prescrição, decadência e imprescritibili-
dade no direito material coletivo – Análise dade no direito material coletivo – Análise
crítica da recente jurisprudência do STJ...............47 crítica da recente jurisprudência do STJ..............47

COSTA, Eduardo José da Fonseca VIEIRA, Luciano Henrik Silveira


- Artigo: As liminares ambientais e o princípio - Artigo: Estrutura técnica e sistemática do novo
da precaução.................................................................11 Código de Processo Civil (Projeto aprovado no
Senado) – Aspectos positivos e negativos....... 201
DIDIER JR., Fredie
- Parecer: Processo administrativo tributário – Título
Prova por amostragem e distribuição dinâmica
do ônus da prova...................................................... 219 CONSIDERACIONES acerca de la justicia y la
- Resenha: CUNHA, Leonardo Carneiro da. verdad en el garantismo procesal y en el
A atendibilidade dos fatos supervenientes no activismo judicial
processo civil: uma análise comparativa entre - Artigo de: Juan Felipe Vallejo Osorio................... 159
o sistema português e o brasileiro. Coimbra:
Almedina, 2012.......................................................... 241 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A atendibilidade
dos fatos supervenientes no processo civil: uma
FIUZA, César análise comparativa entre o sistema português
- Artigo: A incidência da prescrição em face da e o brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012.
autonomia do Direito Processual...........................29 - Resenha de: Fredie Didier Jr.................................... 241

HADDAD, Carlos Henrique Borlido EMBARGOS à execução – Algumas considerações


- Artigo: Medidas cautelares pessoais diversas - Artigo de: Danilo Lee....................................................67
da prisão....................................................................... 107
ESTRUTURA técnica e sistemática do novo Código
LEE, Danilo de Processo Civil (Projeto aprovado no Senado) –
- Artigo: Embargos à execução – Algumas Aspectos positivos e negativos
considerações................................................................67 - Artigo de: Luciano Henrik Silveira Vieira............. 201

MICHEL, Voltaire de Freitas INCIDÊNCIA da prescrição em face da autonomia


- Artigo: A trajetória doutrinária e judicial da do Direito Processual, A
desapropriação judicial – Perspectivas e - Artigo de: César Fiuza, Regina Ribeiro....................29
prognósticos (§§4º e 5º do art. 1.228 do
Código Civil)................................................................ 143 LIMINARES ambientais e o princípio da
precaução, As
OSORIO, Juan Felipe Vallejo - Artigo de: Eduardo José da Fonseca Costa...........11
- Artigo: Consideraciones acerca de la justicia y
la verdad en el garantismo procesal y en el MEDIDAS cautelares pessoais diversas da prisão
activismo judicial...................................................... 159 - Artigo de: Carlos Henrique Borlido Haddad.......107

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244 Índice

página página

PRESCRIÇÃO, decadência e imprescritibilidade D


no direito material coletivo – Análise crítica da DECADÊNCIA
recente jurisprudência do STJ - Ver: Prescrição, decadência e imprescritibilidade
- Artigo de: Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, no direito material coletivo – Análise crítica da
Marcelo Malheiros Cerqueira....................................47 recente jurisprudência do STJ. Artigo de:
Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau,
PRINCÍPIOS da defesa da cidadania Marcelo Malheiros Cerqueira....................................47
- Artigo de: Alice Ribeiro de Sousa...............................85

PROCESSO administrativo tributário – Prova DEFESA DA CIDADANIA


por amostragem e distribuição dinâmica do - Ver: Princípios da defesa da cidadania.
ônus da prova Artigo de: Alice Ribeiro de Sousa..............................85
- Parecer de: Fredie Didier Jr., Daniela Bomfim....219
DEFESA
TRAJETÓRIA doutrinária e judicial da desapropria- - Ver: Embargos à execução – Algumas
ção judicial – Perspectivas e prognósticos (§§4º e considerações. Artigo de: Danilo Lee......................67
5º do art. 1.228 do Código Civil), A
- Artigo de: Voltaire de Freitas Michel......................143 DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL
- Ver: A trajetória doutrinária e judicial da desapro-
Assunto priação judicial – Perspectivas e prognósticos
(§§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil).
A Artigo de: Voltaire de Freitas Michel.....................143
ACTIVISMO
- Ver: Consideraciones acerca de la justicia y la
verdad en el garantismo procesal y en el DIREITO MATERIAL COLETIVO
activismo judicial. Artigo de: Juan Felipe - Ver: Prescrição, decadência e imprescritibilidade
Vallejo Osorio...............................................................159 no direito material coletivo – Análise crítica da
recente jurisprudência do STJ. Artigo de:
ANALOGIA Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau,
- Ver: Prescrição, decadência e imprescritibilidade Marcelo Malheiros Cerqueira....................................47
no direito material coletivo – Análise crítica da
recente jurisprudência do STJ. Artigo de: DIREITOS HUMANOS
Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau, - Ver: Princípios da defesa da cidadania. Artigo de:
Marcelo Malheiros Cerqueira....................................47 Alice Ribeiro de Sousa..................................................85
ASPECTOS POSITIVOS E NEGATIVOS DISTRIBUIÇÃO DO ONUS
- Ver: Estrutura técnica e sistemática do novo
- Ver: Processo administrativo tributário – Prova
Código de Processo Civil (Projeto aprovado
no Senado) – Aspectos positivos e negativos. por amostragem e distribuição dinâmica do
Artigo de: Luciano Henrik Silveira Vieira.............201 ônus da prova. Parecer de: Fredie Didier Jr.,
Daniela Bomfim...........................................................219
AUTONOMIA DO DIREITO PROCESSUAL
- Ver: A incidência da prescrição em face da DOUTRINA
autonomia do Direito Processual. Artigo de: - Ver: A trajetória doutrinária e judicial da desapro-
César Fiuza, Regina Ribeiro.......................................29 priação judicial – Perspectivas e prognósticos
(§§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil).
C Artigo de: Voltaire de Freitas Michel.....................143
CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
- Ver: A trajetória doutrinária e judicial da desapro­ E
priação judicial – Perspectivas e prognósticos EMBARGOS À EXECUÇÃO
(§§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil). - Ver: Embargos à execução – Algumas
Artigo de: Voltaire de Freitas Michel.....................143
considerações. Artigo de: Danilo Lee......................67
COERCITIVIDADE
- Ver: Medidas cautelares pessoais diversas da EXECUÇÃO
prisão. Artigo de: Carlos Henrique Borlido - Ver: Embargos à execução – Algumas
Haddad...........................................................................107 considerações. Artigo de: Danilo Lee......................67

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Índice 245
página página

F NOVO CÓDIGO
FUMUS BONI IURIS - Ver: Estrutura técnica e sistemática do novo
- Ver: As liminares ambientais e o princípio Código de Processo Civil (Projeto aprovado
da precaução. Artigo de: Eduardo José da no Senado) – Aspectos positivos e negativos.
Fonseca Costa................................................................11 Artigo de: Luciano Henrik Silveira Vieira.............201

G O
GARANTISMO ÔNUS DA PROVA
- Ver: Consideraciones acerca de la justicia y la - Ver: Processo administrativo tributário –
verdad en el garantismo procesal y en el Prova por amostragem e distribuição dinâmica
activismo judicial. Artigo de: Juan Felipe do ônus da prova. Parecer de: Fredie Didier Jr.,
Vallejo Osorio...............................................................159 Daniela Bomfim...........................................................219

I P
IMPRESCRITIBILIDADE PERICULUM IN MORA
- Ver: Prescrição, decadência e imprescritibilidade - Ver: As liminares ambientais e o princípio
no direito material coletivo – Análise crítica da da precaução. Artigo de: Eduardo José da
recente jurisprudência do STJ. Artigo de: Fonseca Costa................................................................11
Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau,
Marcelo Malheiros Cerqueira....................................47 POSSE
- Ver: A trajetória doutrinária e judicial da desapro-
J priação judicial – Perspectivas e prognósticos
JUSTICIA (§§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil).
- Ver: Consideraciones acerca de la justicia y la Artigo de: Voltaire de Freitas Michel.................... 143
verdad en el garantismo procesal y en el
activismo judicial. Artigo de: Juan Felipe PRAZO
Vallejo Osorio.............................................................. 159 - Ver: Medidas cautelares pessoais diversas da
prisão. Artigo de: Carlos Henrique Borlido
L Haddad......................................................................... 107
LEI Nº 12.403/11
- Ver: Medidas cautelares pessoais diversas da PRECEDENTES JUDICIAIS
prisão. Artigo de: Carlos Henrique Borlido - Ver: A trajetória doutrinária e judicial da desapro-
Haddad...........................................................................107 priação judicial – Perspectivas e prognósticos
(§§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil).
LIMINARES Artigo de: Voltaire de Freitas Michel.................... 143
- Ver: As liminares ambientais e o princípio
da precaução. Artigo de: Eduardo José da PRESCRIÇÃO
Fonseca Costa................................................................11 - Ver: A incidência da prescrição em face da
autonomia do Direito Processual. Artigo de:
M César Fiuza, Regina Ribeiro.......................................29
MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS - Ver: Prescrição, decadência e imprescritibilidade
- Ver: Medidas cautelares pessoais diversas da no direito material coletivo – Análise crítica da
prisão. Artigo de: Carlos Henrique Borlido recente jurisprudência do STJ. Artigo de:
Haddad...........................................................................107 Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau,
Marcelo Malheiros Cerqueira...................................47
MOTIVACIÓN
- Ver: Consideraciones acerca de la justicia y la PRETENSÃO
verdad en el garantismo procesal y en el - Ver: A incidência da prescrição em face da
activismo judicial. Artigo de: Juan Felipe autonomia do Direito Processual. Artigo de:
Vallejo Osorio...............................................................159 César Fiuza, Regina Ribeiro.......................................29

N PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO
NATUREZA JURÍDICA - Ver: As liminares ambientais e o princípio
- Ver: Embargos à execução – Algumas da precaução. Artigo de: Eduardo José da
considerações. Artigo de: Danilo Lee.....................67 Fonseca Costa................................................................11

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246 Índice

página página

PRINCÍPIOS PRUEBA DE OFICIO


- Ver: Princípios da defesa da cidadania. - Ver: Consideraciones acerca de la justicia y la
Artigo de: Alice Ribeiro de Sousa............................85 verdad en el garantismo procesal y en el
activismo judicial. Artigo de: Juan Felipe
PROCESO Vallejo Osorio...............................................................159
- Ver: Consideraciones acerca de la justicia y la
verdad en el garantismo procesal y en el R
activismo judicial. Artigo de: Juan Felipe RESPONSABILIDADE
Vallejo Osorio.............................................................. 159
- Ver: A incidência da prescrição em face da
autonomia do Direito Processual. Artigo de:
PROCESSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO
- Ver: Processo administrativo tributário – Prova César Fiuza, Regina Ribeiro........................................29
por amostragem e distribuição dinâmica do
ônus da prova. Parecer de: Fredie Didier Jr., T
Daniela Bomfim......................................................... 219 TUTELA DE URGÊNCIA
- Ver: As liminares ambientais e o princípio
PROCESSO CIVIL da precaução. Artigo de: Eduardo José da
- Ver: Embargos à execução – Algumas Fonseca Costa................................................................11
considerações. Artigo de: Danilo Lee.....................67
- Ver: Estrutura técnica e sistemática do novo U
Código de Processo Civil (Projeto aprovado no USUCAPIÃO
Senado) – Aspectos positivos e negativos. - Ver: A trajetória doutrinária e judicial da desapro-
Artigo de: Luciano Henrik Silveira Vieira............ 201 priação judicial – Perspectivas e prognósticos
(§§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil).
PROCESSO COLETIVO AMBIENTAL Artigo de: Voltaire de Freitas Michel.....................143
- Ver: As liminares ambientais e o princípio
da precaução. Artigo de: Eduardo José da V
Fonseca Costa................................................................11
VERDAD
- Ver: Consideraciones acerca de la justicia y la
PROCESSO PENAL
verdad en el garantismo procesal y en el
- Ver: Medidas cautelares pessoais diversas da
prisão. Artigo de: Carlos Henrique Borlido activismo judicial. Artigo de: Juan Felipe
Haddad...........................................................................107 Vallejo Osorio...............................................................159

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de 2013.

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