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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL – RBDPRO

Diretores
Lúcio Delfino
Fernando F. Rossi

Conselho Editorial José Miguel Garcia Medina Luciana Cristina Minaré Pereira
José Roberto dos Santos Bedaque Luciana Fragoso Maia
Alexandre Freitas Câmara José Rogerio Cruz e Tucci Luciano Lamano
Alexandre Reis Siqueira Freire Jurandir Sebastião Luciano Roberto Del Duque
Ana Paula Chiovitti Lídia Prata Ciabotti Luiz Arthur de Paiva Corrêa
Antonio Carlos Marcato Luciano Borges Camargos Luiz Gustavo de Freitas Pinto
Antonio Gidi Luiz Eduardo R. Mourão Marcus Vinícios Correa Maia
A. João D’Amico Luiz Fernando Valladão Nogueira Paulo Leonardo Vilela Cardoso
Araken de Assis Luiz Fux Richard Crisóstomo Borges Maciel
Aristoteles Atheniense Luiz Guilherme Marinoni Rodrigo Corrêa Vaz de Carvalho
Arruda Alvim Luiz Rodrigues Wambier Wanderson de Freitas Peixoto
Bruno Garcia Redondo Marcelo Abelha Rodrigues Yves Cássius Silva
Carlos Alberto Carmona Marcelo Lima Guerra
Carlos Henrique Bezerra Leite Maria Elizabeth de Castro Lopes Conselho Internacional
Cassio Scarpinella Bueno Mariângela Guerreiro Milhoranza
Chedid Georges Abdulmassih Paulo Magalhães Nasser Adolfo Alvarado Velloso (Argentina)
Claudiovir Delfino Petrônio Calmon Filho Alvaro Pérez Ragone (Chile)
Daniel Mitidiero Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias Gustavo Calvinho (Argentina)
Darci Guimarães Ribeiro Sérgio Cruz Arenhart Hugo Jaime Botto Oakley (Chile)
Dierle Nunes Sérgio Gilberto Porto Juan Montero Aroca (Espanha)
Djanira Maria Radamés de Sá Teresa Arruda Alvim Wambier Miguel Teixeira de Sousa (Portugal)
Donaldo Armelin Teori A. Zavascki Paula Costa e Silva (Portugal)
Eduardo Arruda Alvim Virginia Pardo (Espanha)
Eduardo José da Fonseca Costa Conselho de Redação
Eduardo Talamini Pareceristas ad hoc
Ernane Fidélis dos Santos André Menezes Delfino
Evaldo Marco Antônio Bruno Campos Silva André Del Negri
Fredie Didier Jr. Bruno Garcia Redondo Andrea Queiroz Fabri
Glauco Gumerato Ramos Carlos Eduardo do Nascimento Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá
Gil Ferreira de Mesquita Eduardo Carvalho Azank Abdu Dnieper Chagas de Assis
Humberto Theodoro Júnior Frederico Paropat de Souza Marcelo Nogueira
Jefferson Carús Guedes Helmo Marques Borges Mônica Cecilio Rodrigues
J.E. Carreira Alvim Hugo Leonardo Teixeira Murillo Sapia Gutier
João Batista Lopes Jarbas de Freitas Peixoto Roberta Toledo Campos
João Delfino José Carlos de Araujo Almeida Filho Rubens Correia Junior
Jorge Henrique Mattar José Henrique Mouta Sérgio Henrique Tiveron Juliano
José Carlos Barbosa Moreira Leonardo Vitório Salge Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro
José Maria Rosa Tesheiner Leone Trida Sene

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R454 Revista Brasileira de Direito Processual : RBDPro. Território Nacional
– ano 15, n. 59, (jul./set. 2007)- . – Belo
Horizonte: Fórum, 2007- Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados são de
responsabilidade exclusiva de seus autores.
Trimestral
ISSN 0100-2589
Esta revista está catalogada em:
Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./ • RVBI (Rede Virtual de Bibliotecas – Congresso Nacional)
jun.1978 pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG. • Ulrich’s Periodicals Directory
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./ • Library of Congress (Biblioteca do Congresso dos EUA)
jun. 1988 pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ.
Publicação interrompida em 1988 e retomada Supervisão editorial: Marcelo Belico
pela Editora Fórum em 2007. Revisão: Cristhiane Maurício
Leonardo Eustáquio Siqueira Araújo
1. Direito processual. I. Fórum. Marilane Casorla
Bibliotecária: Tatiana Augusta Duarte de Oliveira – CRB 2842 – 6ª Região
CDD: 347.8
CDU: 347.9 Capa: Igor Jamur
Projeto gráfico: Walter Santos
Diagramação: Reginaldo César de Sousa Pedrosa

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Sumário

Editorial..............................................................................................................7

DOUTRINA
Artigos

A coisa julgada na ação coletiva dos sojicultores – Comentário sobre o


REsp nº 1.243.386/RS
Celso Barberato, Márcio Bulgarelli Guedes, Zaiden Geraige Neto............................................. 11
Introdução ............................................................................................................... 11
Dos direitos coletivos................................................................................................ 12
Da legitimação extraordinária ou autônoma................................................................. 14
Da extensão dos efeitos da coisa julgada nas ações coletivas..................................... 16
Da conclusão............................................................................................................ 20
Referências ............................................................................................................. 21

Audiência de conciliação versus audiência preliminar – A opção pela primeira e as


consequências da eliminação da segunda no projeto do Novo Código de Processo
Civil brasileiro (NCPC)
Lúcio Grassi de Gouveia......................................................................................................... 25
1  Introdução................................................................................................................ 25
2  Audiência preliminar no atual CPC.............................................................................. 29
3  Troca da audiência preliminar pela audiência de conciliação no NCPC........................... 33
4  Conclusão................................................................................................................ 36
Referências.............................................................................................................. 36

A ratio decidendi dos precedentes judiciais


Marcos José Porto Soares...................................................................................................... 39
1  Introdução................................................................................................................ 39
2  Evolução da teoria dos precedentes no sistema do common law.................................. 40
3  Noções sobre a regra do stare decisis........................................................................ 43
4  A ratio decidendi....................................................................................................... 48
4.1 Conceito e delimitação da ratio decidendi................................................................... 48
4.2  Métodos de identificação da ratio decidendi................................................................ 51
4.2.1  Teoria de Wambaugh................................................................................................. 51
4.2.2  Teoria de Oliphant .................................................................................................... 52
4.2.3  Teoria de Goodhart................................................................................................... 52
4.3  Aplicações da ratio decidendi..................................................................................... 55
4.3.1  Distinguishing........................................................................................................... 56
4.3.2  Overrulling................................................................................................................ 56
5  Precedentes no Brasil............................................................................................... 59
5.1  Considerações iniciais .............................................................................................. 59
5.2  Percurso histórico..................................................................................................... 61
5.3  Casos de aplicação dos precedentes.......................................................................... 66
5.3.1  Artigo 285-A do Código de Processo Civil.................................................................... 66

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5.3.2  Artigo 543-C do Código de Processo Civil.................................................................... 68
5.3.3  Projeto do Novo Código de Processo Civil. Incidente de resolução de causas
repetitivas. Típica situação de aplicação da regra do stare decisis................................ 69
6  Conclusão................................................................................................................ 71
Referências ............................................................................................................. 72

Cooperação no processo civil – A paridade do juiz e o reforço das posições jurídicas


das partes a partir de uma nova concepção de democracia e contraditório
Alexandre Pereira Bonna........................................................................................................ 75
Introdução e apresentação da temática...................................................................... 75
1  O modelo cooperativo de organização estatal.............................................................. 78
2  A lógica argumentativa na solução de litígios............................................................... 79
3  Cooperação e o contraditório como direito de influência............................................... 80
4  Cooperação e a democracia deliberativa..................................................................... 82
5  Cooperação no projeto do novo Código de Processo Civil............................................. 84
Conclusão................................................................................................................ 86
Referências.............................................................................................................. 87

Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova
Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves.......................................... 89
1  Introdução................................................................................................................ 89
2  A responsabilidade civil do médico............................................................................. 91
3  Obrigações de meios e de resultados......................................................................... 93
4  A questão probatória no Direito Processual Civil.......................................................... 95
5  As teorias da prova................................................................................................... 98
5.1  A teoria estática da distribuição do ônus da prova....................................................... 98
5.2  A inversão do ônus da prova...................................................................................... 99
5.3  A teoria das cargas probatórias dinâmicas ............................................................... 101
5.4  Presunção, indícios e caracterização da culpa .......................................................... 102
5.5  O princípio res ipsa loquitur como forma de presunção de culpa................................. 103
6  As peculiaridades da prova da culpa médica e a potencial aplicação do Código de
Defesa do Consumidor............................................................................................ 104
7  A teoria da perda de uma chance e sua aplicação do Direito Médico........................... 110
8  Conclusão.............................................................................................................. 113
Referências ........................................................................................................... 116

Da inexigibilidade do título judicial fundamentado em norma declarada


inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (arts. 475-L, §1º, e 741,
parágrafo único, do CPC)
Luiz Magno Pinto Bastos Junior, Paula Paz........................................................................... 119
1  Introdução.............................................................................................................. 119
2  Estabilidade e rescindibilidade da coisa julgada inconstitucional................................. 120
2.1  A coisa julgada como instrumento de preservação da estabilidade e
segurança jurídica................................................................................................... 120
2.2  Coisa julgada inconstitucional e rescindibilidade........................................................ 122
3  Da inexigibilidade de título judicial fundado em norma declarada inconstitucional
pelo Supremo Tribunal Federal................................................................................. 124
3.1  Natureza jurídica deste mecanismo de defesa do executado – Rescindibilidade ou
inexigibilidade do título?.......................................................................................... 126
3.2  Requisitos para interposição de embargos à execução ou impugnação de
sentença fundamentada em inexigibilidade do título judicial....................................... 129

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3.3  Da constitucionalidade e conveniência dos artigos 475-L, §1º, e 741,
parágrafo único, do Código de Processo Civil............................................................ 131
4  Considerações finais............................................................................................... 133
Referências............................................................................................................ 135

La norma jurídica como mediadora dinámica – Su gravitación sobre la postura


garantista del proceso
Adriana Del Balzo................................................................................................................ 137
1  Platón y el papel fundamental de la ley..................................................................... 137
2  La norma jurídica en la teoría tridimensional del derecho de Miguel Reale................... 140
3  El garantismo según Alvarado Velloso y el papel de la ley........................................... 144
4  Conclusiones.......................................................................................................... 146
Referencias............................................................................................................ 146

O amicus curiae no direito processual civil brasileiro


Francieli Pisetta................................................................................................................... 149
Introdução.............................................................................................................. 149
1  Amicus curiae – Considerações iniciais..................................................................... 152
1.1  Conceituação.......................................................................................................... 152
1.2  Paralelo com outras figuras processuais................................................................... 154
2  Natureza jurídica e reflexões.................................................................................... 156
2.1  Natureza jurídica..................................................................................................... 157
2.2  Reflexões contextuais............................................................................................. 159
3  O amicus curiae no direito processual civil brasileiro.................................................. 165
3.1  A disciplina legal existente no Brasil......................................................................... 165
3.2  Hipóteses de participação....................................................................................... 171
Conclusão.............................................................................................................. 175
Referências............................................................................................................ 178

Processo civil e processo do trabalho – Possibilidades e limites da


aplicação subsidiária
Aroldo Plínio Gonçalves........................................................................................................ 181
1  Delimitação do tema............................................................................................... 181
2  A jurisdição comum, civil e penal, e as jurisdições especiais...................................... 182
3  A delimitação dos campos do Direito Processual Civil e do Direito Processual
do Trabalho............................................................................................................ 185
4  A disciplina do Direito Processual do Trabalho na CLT................................................ 187
5  A fonte subsidiária na teoria das fontes.................................................................... 188
6  As fontes do Direito Processual do Trabalho............................................................. 189
7  O Direito Processual Civil como fonte subsidiária do Direito Processual do Trabalho..... 191
8  O problema das lacunas.......................................................................................... 192
9  A aplicação do Direito no Direito Processual Civil e no Direito Processual
do Trabalho............................................................................................................ 193
10  O suprimento das lacunas no Direito Processual Civil e no Direito Processual
do Trabalho............................................................................................................ 194
11  Conclusão.............................................................................................................. 196
Referências............................................................................................................ 197

Regime das medidas de urgência no futuro CPC


Ivo César Barreto de Carvalho.............................................................................................. 199
Noções introdutórias............................................................................................... 199
1  Garantia constitucional da ação e tutela jurisdicional................................................. 200

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1.1  Perspectiva constitucional do direito de ação............................................................ 200
1.2  Tutela jurisdicional e a ineficiência do sistema.......................................................... 201
1.3  A via jurisdicional e a plena realização dos direitos através de tutelas diferenciadas.... 203
2  O futuro Código de Processo Civil (Projeto de Lei no Senado nº 166/2010)................. 204
2.1  A filosofia do Projeto............................................................................................... 204
2.2  As tutelas de urgência e de evidência – Parâmetros gerais......................................... 205
3  Tutela de urgência.................................................................................................. 206
3.1  Conceito................................................................................................................. 206
3.2  Efetividade do processo.......................................................................................... 206
3.3  Modalidades........................................................................................................... 208
3.4  Momentos em que pode ser deferida....................................................................... 209
3.5  Procedimento......................................................................................................... 211
3.6  Execução................................................................................................................ 213
3.7  Fungibilidade das tutelas de urgência....................................................................... 214
4  Tutela de evidência................................................................................................. 215
4.1  Conceito................................................................................................................. 215
4.2  Hipóteses de cabimento.......................................................................................... 215
4.3  Semelhanças e diferenças entre as tutelas de urgência e de evidência....................... 216
Conclusões preliminares......................................................................................... 217
Referências............................................................................................................ 218

O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador –


Aspectos processuais
Renata Silva Amaral............................................................................................................ 221
1  Introdução.............................................................................................................. 221
2  A intimidade e a privacidade do empregado como um direito da personalidade............ 222
2.1  O princípio da dignidade humana como fundamento geral do direito da
personalidade......................................................................................................... 225
2.2  O direito a intimidade como direito da personalidade................................................. 226
2.3  Os direitos da personalidade do empregado.............................................................. 226
3  O poder diretivo do empregador e os direitos de intimidade e personalidade do
trabalhador – A colisão que provoca dano moral........................................................ 227
3.1  O poder diretivo e a subordinação............................................................................ 227
3.2  Colisão entre poder diretivo e os direitos da personalidade do empregado.................. 234
3.3  Casos de colisão dos direitos da personalidade do empregado e o exercício abusivo
do poder diretivo do empregador.............................................................................. 235
3.4  Aspectos processuais da colisão empregado versus empregador no cenário do
poder diretivo......................................................................................................... 239
4  Considerações finais............................................................................................... 242
Referências............................................................................................................ 244

ÍNDICE................................................................................................................................ 247

INSTRUÇÃO PARA OS AUTORES............................................................................................. 251

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Editorial

Acontece nos dias 23, 24 e 25 de abril de 2014 o Congresso Brasileiro de Direito


e Processo Contemporâneo, na cidade de Aracajú/SE, destinado a homenagear o
destacado processualista, Professor Humberto Theodoro Júnior. Já estão confirmados
vários juristas, entre os quais o próprio homenageado (MG), Sérgio Cavalieri Filho (RJ),
Alexandre Freitas Câmara (RJ), Maria Sylvia Zanella Di Pietro (SP), Luiz Flávio Gomes
(SP), Daniel Amorim Assumpção Neves (SP), Carlos Roberto Gonçalves (SP), Nelson
Rosenvald (MG), Rodolfo Pamplona (BA), Fábio Zambitte (RJ), Cristiano Chaves (BA),
Hugo de Brito Machado Segundo (CE), Dirley Cunha (BA), Ivan Kertzman (BA), Gamil
Foppel (BA), Paulo Pimenta (BA), Matheus Carvalho (BA), Pedro Henrique Nogueira
(AL), Ricardo Carneiro (SE), Patrícia Verônica Nunes Carvalho Sobral de Souza (SE),
Lúcio Delfino (MG) e Gustavo Borges (SE). O evento é uma iniciativa do Portal Ciclo
(<www.portalciclo.com.br>).
Mencione-se ainda o III Fórum Permanente de Processualistas Civis, que desta
vez ocorrerá no Rio de Janeiro, com a participação de processualistas de todo o Brasil
e cujo objetivo é examinar o Código de Processo Civil projetado em todas as suas
nuances. Mais que isso, quer-se efetivamente, mediante o trabalho de grupos organi-
zados, debater e aprovar enunciados que servirão, no futuro, de norte hermenêutico
para aqueles que operam o direito no dia a dia forense.
Vamos à apresentação dos artigos jurídicos que compõem a presente edição:
A coisa julgada na ação coletiva dos sojicultores – Comentário sobre o REsp
nº 1.243.386/RS: Celso Barberato, Márcio Bulgarelli Guedes e Zaiden Geraige Neto
desenvolvem interessante estudo a fim de identificar pontos de relevância processual
na área dos direitos coletivos, com enfoque na representação adequada, na perti-
nência temática e na coisa julgada coletiva. Utilizam como base de seu raciocínio o
acórdão resultante do julgamento do REsp nº 1.243.386/RS.
Audiência de conciliação versus audiência preliminar – A opção pela primeira e
as consequências da eliminação da segunda no projeto do novo Código de Processo
Civil Brasileiro (NCPC): Lúcio Grassi de Gouveia analisa a opção do CPC projetado
pela audiência de conciliação em detrimento da audiência preliminar, e aponta as
vantagens, as desvantagens e as consequências daí decorrentes.
A ratio decidendi dos precedentes judiciais: Marcos José Porto Soares enfrenta
tema da atualidade cujo mote é a descrição da importância da ratio decidendi para
uma adequada operacionalização da técnica da vinculação dos precedentes, que vem
sendo introduzida no direito processual brasileiro.
Cooperação no processo civil – A paridade do juiz e o reforço das posições jurídicas
das partes a partir de uma nova concepção de democracia e contraditório: Alexandre

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EDITORIAL

Pereira Bonna, amparado no marco teórico do formalismo valorativo, elabora estudo


pautado na cooperação e busca fundamentos para a implementação de um processo
civil cooperativo, especialmente no que tange ao reforço das posições jurídicas das
partes e à paridade do juiz na condução do processo.
Culpa médica e sua apuração processual – uma análise das teorias da prova:
Luciana de Paula Lima Gazzola e Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves tratam da com-
plexa temática da prova da culpa médica em demandas judiciais que versam sobre a
responsabilidade civil do médico, perpassando pela análise das teorias pertinentes,
pelos modos de distribuição do ônus da prova e de sua inversão, pela teoria das cargas
probatórias dinâmicas, pela teoria da perda de uma chance, entre outros assuntos.
Da inexigibilidade do título judicial fundamentado em norma declarada inconstitu-
cional pelo Supremo Tribunal Federal (arts. 475-L, §1º, e 741, parágrafo único, do CPC):
Luiz Magno Pinto Bastos Junior e Paula Paz analisam a impugnação ao cumprimento
de sentença e os embargos à execução opostos contra sentença transitada em julga-
do, proferida com base em aplicação de norma declarada inconstitucional por decisão
posterior, emanada do Supremo Tribunal Federal. Partem de uma perspectiva constitu-
cional que leva em conta o sopesamento entre coisa julgada e efetividade jurisdicional.
La norma jurídica como mediadora dinâmica – Su gravitación sobre la postura
garantista del proceso: Adriana Del Balzo desenvolve interessante estudo, pautada
nos estudos de Platão, Kelsen, Miguel Reale e Alvarado Velloso, a fim de demonstrar
o papel fundamental da lei na comunidade e sobretudo no âmbito processual.
O amicus curiae no direito processual civil brasileiro: Francieli Pisetta apresenta
estudo sobre o amicus curiae, examina o tratamento legal que lhe é conferido no sistema
normativo brasileiro e constata as hipóteses nas quais a sua participação se mostra pos-
sível. Também analisa sua natureza jurídica, sempre escorada na melhor doutrina pátria.
Processo civil e processo do trabalho – Possibilidades e limites da aplicação
subsidiária: Aroldo Plínio Gonçalves demonstra que não cabe ao juiz recriar o sistema
jurídico segundo seus próprios valores. Seu papel é outro: observar atentamente os
deveres de independência e imparcialidade, garantias de que a participação das par-
tes na preparação do provimento não será mero jogo ou simulacro de justiça.
Regime das medidas de urgência no futuro CPC: Ivo César Barreto de Carvalho
analisa o regime das medidas de urgência no futuro Código de Processo Civil à luz
das garantias constitucionais.
O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador – Aspectos
processuais: Renata Silva Amaral coloca frente a frente o direito de privacidade do em-
pregado e o poder diretivo do empregador. Depois de traçar vários aspectos sobre a
temática, aborda interessantes aspectos processuais.
Esperamos que a revista agrade a todos!

Os Diretores

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Artigos
DOUTRINA

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A coisa julgada na ação coletiva dos
sojicultores – Comentário sobre o REsp
nº 1.243.386/RS

Celso Barberato
Mestrando em Direitos Coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP).
Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade de Franca (UNIFRAN).
Advogado. E-mail: <celsobarberato@hotmail.com>.

Márcio Bulgarelli Guedes


Mestrando em Direitos Coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP).
Advogado. E-mail: <m.bulgarelli@bol.com.br>.

Zaiden Geraige Neto


Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP. Professor de Direito do Mestrado da UNAERP. MBA
Executivo pela FGV (Fundação Getulio Vargas). Membro efetivo e Diretor de Relações Institu-
cionais do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo). Membro efetivo do IAB (Instituto dos
Advogados Brasileiros). Parecerista e consultor da revista do Conselho da Justiça Federal.
Advogado. E-mail: <zgneto@uol.com.br>.

Resumo: A partir da realização de pesquisa de gabinete, com o auxílio de doutrina, legislação e jurisprudên-
cia, foi possível identificar pontos de relevância processual na área dos direitos coletivos, com destaque à
representação adequada, à pertinência temática e à coisa julgada coletiva.
Palavras-chave: Direitos coletivos. Legitimação. Coisa julgada.

Sumário: Introdução – Dos direitos coletivos – Da legitimação extraordinária ou autônoma – Da extensão


dos efeitos da coisa julgada nas ações coletivas – Da conclusão – Referências

Introdução
O trabalho tem origem acadêmica e consiste numa apresentação útil de ques-
tões indispensáveis ao operador do direito que pretende se enveredar no manejo do
processo coletivo.
O artigo se insere na linha de pesquisa processual das ações coletivas e traz
um conjunto de informações precisas acerca dos textos legais do ordenamento jurídico
pátrio vigente. Também exemplifica a diversidade teórica e disponibiliza julgado a
estabelecer os parâmetros.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 11-23, jan./mar. 2014 11

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Celso Barberato, Márcio Bulgarelli Guedes, Zaiden Geraige Neto

Não se quer influenciar que certo pensamento jurídico é melhor do que outro.
Dentro do universo das ações coletivas, é preciso compreender os conceitos dos
direitos coletivos, suscitar a questão da representação adequada, esclarecer o cri-
tério da pertinência temática e expor os efeitos da coisa julgada coletiva a partir de
elementos coletados ao longo do semestre.
Se se sacasse uma fotografia da sociedade brasileira neste momento, revelar-­
se-ia um conjunto hierarquizado de regras e leis escritas ou positivadas em microssis-
temas capazes de conjugar as consciências imanentista e autonomista para preservar
os direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos dos que
participaram ou não do processo. A certeza que se tem é que a necessidade por
soluções rápidas e mais baratas dos conflitos iguais gerou a ideia do resultado útil,
consagrando a universalização do acesso de todos à justiça.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 está no ápice do orde-
namento e disciplina os direitos coletivos, reservando ao Poder Judiciário o controle
de constitucionalidade. Para melhor compreensão do que se expõe, traz-se anexo acór-
dão prolatado pela Relatora Ministra Nancy Andrigh da 3ª Turma do Egrégio Superior
Tribunal de Justiça em Recurso Especial nº 1.243.386/RS (2011/0037199-1), para
exemplificar como os direitos coletivos se deram aos produtores de soja, definir a
legitimidade extraordinária e explicar a extensão da coisa julgada coletiva. Em votação
unânime, também participaram do julgamento os Ministros Massami Uyeda, Sidnei
Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva.

Dos direitos coletivos


A primeira noção que se deve ter em mente é a de que os interesses do caso
concreto devem ser coletivos, pois o que caracteriza a ação coletiva é exatamente o
direito a ser tutelado.
O modelo brasileiro de ações coletivas inspirou-se no modelo norte-americano
das class action, procedimento semelhante à substituição processual que melhor
atende as necessidades da sociedade.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 abriu portas ao plural,
grafando mandado de segurança coletivo, classes de sindicatos e associações, ação
popular, ampliação do rol de legitimados ao controle de constitucionalidade e função
institucional do Ministério Público.
O avanço é aferível em legislação infraconstitucional — Lei nº 7.347/1985
(Ação Civil Pública), Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), Lei
nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), Lei nº 10.741/2003 (Estatuto
do Idoso), Lei nº 10.641/2003 (Estatuto do Torcedor), Lei nº 7.853/1989 (Estatuto
dos Portadores de Necessidades Especiais).

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A coisa julgada na ação coletiva dos sojicultores – Comentário sobre o REsp nº 1.243.386/RS

Em que pese o louvor especial de cada texto legal, a Lei nº 8.078/1990 (Código
de Defesa do Consumidor – CDC) é considerada de grande relevância tanto para a
doutrina quanto para a jurisprudência e todos concordam que deve ser aplicada exten-
sivamente a todas as áreas — e não só àquelas pertinentes à figura do consumidor
—, não só por corrigir o nomen juris como também por disciplinar as espécies dos
interesses transindividuais a serem protegidos.
Consoante se infere da leitura dos três incisos do parágrafo único do artigo 81
da Lei nº 8.078/1990, as espécies são: I - direitos difusos (interesses transindivi-
duais, indivisíveis, atribuídos a indeterminados titulares ligados por circunstância de
fato); II - direitos coletivos em sentido estrito (interesses transindividuais, indivisíveis,
atribuídos a grupo, classe ou categoria de pessoas ligadas por relação jurídica); III - di-
reitos individuais homogêneos (considerados coletivos por serem de origem comum,
mas são divisíveis e as pessoas determinadas).
O jurista Barbosa Moreira pondera que os direitos metaindividuais se dividem
em apenas dois grupos: direitos metaindividuais naturalmente coletivos e os direitos
metaindividuais acidentalmente coletivos. Naqueles se encontram os direitos coleti-
vos em sentido estrito, em que os indivíduos são determinados ou determináveis por
um grupo, categoria ou classe e estão ligados por uma relação jurídica, e, de outra
banda, os direitos acidentalmente coletivos têm objeto divisível e origem comum, ou
seja, direitos individuais homogêneos.
Em referência ao acórdão do Recurso Especial nº 1.243.386/RS (2011/0037199-
1), a Ministra Nancy Andrigh se convenceu de que a ação foi ajuizada por sindicato
para a defesa dos direitos coletivos da categoria e dos individuais homogêneos de
cada pequeno produtor de soja, com pedidos de nulidade de cláusulas despropor-
cionais e de isenção do pagamento de taxas, indenizações tecnológicas e royalties
em relação às sementes de soja geneticamente modificadas para plantio, replantio,
venda, multiplicação, doação e troca do produto, por necessariamente afetar o preço
final e revestir-se de relevância social, econômica e jurídica.
A insistência da defesa em alegar falta de interesse de agir e ilegitimidade de
parte exigiu da relatora a preocupação de apontar os direitos coletivos em sentido
estrito do artigo 81, parágrafo único, II, do CDC, por entender que a sentença que
declara a nulidade de cláusulas não torna o objeto divisível, ao revés, enquadra-se
como direitos indivisíveis de um determinado grupo de produtores de soja ligados por
relação jurídica base. Ensina o doutrinador Hugo Nigro Mazzilli: “O interesse em ver
reconhecida a ilegalidade da cláusula é compartilhado pelos integrantes do grupo de
forma não quantificável e, portanto, indivisível”.1

1
MAZZILLI. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio
público e outros interesses, p. 55.

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Celso Barberato, Márcio Bulgarelli Guedes, Zaiden Geraige Neto

O que se quer destacar aqui é que um mesmo fato pode causar lesões múltiplas.
Citando o mesmo acórdão, o pedido de ressarcimento dos valores pagos pelos pro-
dutores de soja funda-se em direitos individuais homogêneos e, por causa de origem
comum, são considerados coletivos. Os exemplos2 são variáveis em relações de con-
sumo, trabalhistas, comerciais, socioambientais etc. e autorizam a tutela jurisdicional
dos direitos coletivos (difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos),
competindo ao interessado conhecer, ainda que de forma breve num primeiro momento,
como funciona o procedimento adotado no país.
Com efeito, a compreensão das espécies dos direitos coletivos é de suma
importância e o venerando acórdão concluiu, no momento, que os excessos por con-
trole de mercado e de regras de patentes ofereciam riscos desproporcionais a grupo
determinável de produtores de soja, e se reveste de relevância social-econômica a
ensejar a tutela jurisdicional dos direitos nesta condição.

Da legitimação extraordinária ou autônoma


Outro aspecto processual fundamental é a legitimidade.
Numa segunda etapa, o venerando acórdão define a questão da legitimidade
ativa dos sindicatos dos produtores rurais para a tutela jurisdicional dos direitos
coletivos em ação coletiva.
A defesa apresentou questão processual, sustentando a ilegitimidade dos sin-
dicatos para ajuizar ação em nome próprio para a defesa de direito alheio e invocou
precedente3 da criteriosa pertinência temática apresentada como condição do binô-
mio legitimidade/interesse de agir.4
Sabe-se que o ordenamento jurídico traz a legitimidade ordinária, cuja caracte-
rística é o individualismo, ao exigir a identidade das figuras do legitimado e do interes-
sado, consoante se infere da leitura do artigo 6º do CPC: “ninguém poderá pleitear,
em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”.
A exceção à regra se dá em substituição processual por força da legitimação
autônoma ou extraordinária,5 quando o sujeito atua processualmente em nome pró-
prio para a defesa de direito alheio. A ação é ajuizada por pessoa distinta do titular

2
NERY JR. O processo civil no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Processo.
3
Precedente apresentado: Processual Civil. Administrativo. Ação Civil Pública. Legitimatio ad Causam do
Sindicato. Pertinência Temática. Ausência de Intimação do Ministério Público Federal nas Instâncias Ordinárias.
Prejuízo Demonstrado. Nulidade Inexistente. Princípio da Instrumentabilidade das Formas. 1. Os sindicatos
possuem legitimidade ativa para demandar em juízo a tutela de direitos subjetivos individuais dos integran-
tes da categoria, desde que se versem direitos individuais homogêneos e mantenham relação com os fins
institucionais do sindicato demandante, atuando como substituto processual (Adequacy Representation). 2. A
pertinência temática é imprescindível para configurar a legitimatio ad causam do sindicato, consoante cediço
na jurisprudência do E. S.T.F. na ADI nº 3.472/DF, Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ de 29.11.2002 e
do STJ: REsp nº 782.961/RJ, desta relatoria, DJ de 23.11.2006, REsp nº 487.202/RJ, Relator Ministro Teori
Zavascki, DJ 24.05.2004 (AgRg no REsp nº 901.936/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ, 16 mar. 2009).
4
CAPPELLETI, Mauro. Tutela dos interesses difusos. Revista da Ajuris, Porto Alegre, n. 33, p. 169-182, mar. 1985.
5
ALVIM. Notas atuais sobre a figura da substituição processual. Revista de Processo.

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A coisa julgada na ação coletiva dos sojicultores – Comentário sobre o REsp nº 1.243.386/RS

do direito pleiteado. A previsão legal está nos artigos 5º da LACP, 82 do CDC, e, aos
sindicatos, em especial, 5º, LXX, “b”, e 8º, III, da CRFB/1988.
A defesa dos interesses individuais homogêneos é complexa, segundo Barbosa
Moreira.6 A maior dificuldade para a legitimação extraordinária fica por conta da ade-
quada representação e, sem querer atropelar a ordem do texto, a extensão dos efei-
tos da coisa julgada aos indivíduos do grupo.
Em voto, definindo a controvérsia em reexame, a Ministra esclareceu que a
pertinência temática é critério que deve ser analisado conforme fins institucionais dos
que integram o polo ativo da relação processual e pontificou que os sindicatos dos
produtores rurais, com natureza jurídica de associações civis,7 por causa de interesse
de agir dos sojicultores, têm legitimidade para a tutela jurisdicional dos direitos cole-
tivos e individuais homogêneos dos associados.
Pacífico na doutrina que a regra da legitimação ordinária é inadequada para
a solução dos conflitos individuais da atualidade de uma sociedade considerada
de massas, globalizada. A tutela jurisdicional dos direitos coletivos surge, então,
como uma solução racional, pois evita a proliferação de ações individuais por todo
o território nacional e, com isso, além de reduzir os gastos com a estruturação e o
aparelhamento dos órgãos jurisdicionais, diminui a possibilidade de decisões con-
traditórias sobre mesma matéria e, ainda, como forma de aprimoramento do Estado
Democrático de Direito e do exercício de direitos fundamentais, garante o acesso de
todos interessados à apreciação do Poder Judiciário.
A legitimidade é conferida às pessoas para atuarem de forma adequada em
processos coletivos para a defesa dos direitos dos interessados. Exige-se, contudo,
o cumprimento dos requisitos objetivos da data de constituição — relativizada no
caso dos interesses individuais homogêneos — e da finalidade dos direitos pleitea­
dos a evidenciar relação e competência. No Recurso Especial nº 1.243.386/RS
(2011/0037199-1), restou claro que a exigência de pertinência temática para que se
admita a legitimidade de sindicatos na propositura de ações coletivas é mitigada pela
CRFB/1988, pois não guarda vínculo com os fins da entidade, exigindo-se, apenas,
que o direito esteja compreendido nas atividades exercidas pelos associados, mas
não se exigindo que o direito seja peculiar, próprio, da classe. Com precedente.
Muito embora o modelo brasileiro das ações coletivas tenha se inspirado no
modelo das class action, não se adotou por aqui a adequada representação nem a
notificação obrigatória.
Os que defendem a desnecessidade são aqueles que invocam a impossibili-
dade de irradiação dos efeitos da coisa julgada em caso de improcedência da ação

6
MOREIRA. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. Revista de Processo.
7
REsp nº 549.794/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ, 05 nov. 2007.

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Celso Barberato, Márcio Bulgarelli Guedes, Zaiden Geraige Neto

coletiva, ou seja, o processo coletivo não pode prejudicar o direito subjetivo individual
de ação. Em adaptação ao direito positivado ou escrito, diferente do consuetudinário,
a lei fixou regra geral de entes legitimados para a defesa do direito coletivo, condicio-
nando elementos objetivos de constituição e finalidade.
A legitimação decorre da lei, não autorizando o juiz apreciar a representação
adequada em cada caso concreto, tal como acontece no modelo da class action. De
todo modo, salvo algumas poucas regras de limitação ao direito de ajuizar ações cole-
tivas, como é o caso, por exemplo, do impedimento de se discutir matéria tributária
em ação civil pública (art. 1º, parágrafo único da LACP), compete à Justiça exercer
controle judicial,8 quando, por exemplo, exige do Ministério Público demonstração
de relevância social como pressuposto de admissibilidade das ações coletivas que
discutam direitos individuais homogêneos.
Assim, a pertinência temática é critério para a legitimidade, mas não se con-
funde com a adequada representação dos Estados Unidos. O legislador não tem
condições de esgotar as hipóteses do caso concreto, daí a existência de brechas à
inadequada representação dos interessados, o que significa ofensa direta aos prin-
cípios do devido processo legal e do acesso à justiça Os que defendem a adequada
representação não se prendem àquela legitimação concedida por lei, o que realmente
interessa é verificar se os interesses estão bem representados. Mas no Brasil não
existe a prerrogativa desse tipo de avaliação nas ações coletivas. Aliás, nas palavras
de Antonio Gidi: “o representante inadequado, portanto, é um não representante”.9

Da extensão dos efeitos da coisa julgada nas ações coletivas


A extensão subjetiva da coisa julgada nas ações coletivas está ligada à adequada
representação e somente pode atingir outrem caso tenha sido respeitado o devido pro-
cesso legal.
Antonio Gidi10 compara os sistemas da Common Law e da Civil Law e aponta
a causa de pedir como a principal diferença entre eles, sendo mais ampla naquele
sistema. Entre as peculiaridades, pôde-se identificar a preclusão de passos, que não
existe no direito pátrio, e a preclusão das pretensões, com maior liberdade ao juiz na
produção de provas (discovery), contrariando a adstrição do juiz à causa de pedir e ao
pedido da ação (libelo).
A coisa julgada individual traz a ideia de segurança jurídica pela imutabilidade.

8
GRINOVER; WATANABE; MULLENIX. Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise
de direito comparado, p. 37.
9
GIDI. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. Revista de Processo, p. 70.
10
GIDI. Las acciones colectivas y la tutela de los derechos difusos, colectivos e individuales em Brasil.

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A coisa julgada na ação coletiva dos sojicultores – Comentário sobre o REsp nº 1.243.386/RS

A tríade da coisa julgada individual11 (legitimidade individual, efeitos limitados a


obrigar as partes e limitação subjetiva a não prejudicar nem favorecer terceiros) não
se aplica à coletiva.
As reais necessidades da sociedade moderna exigem revisão do instituto coisa
julgada para a esfera coletiva. E as opções apontam que o efeito erga omnes é essen-
cial e pode ser obrigatório ao resultado favorável ou contra (pro et contra) e condicio-
nado ao resultado útil.
A solução brasileira vem disciplinada no artigo 16 da Lei nº 7.347/1985 (Lei de
Ação Civil Pública), com limitação dos efeitos da coisa julgada coletiva à competência
territorial. Contudo, segundo a melhor doutrina, esse é o pior artigo da legislação
brasileira. Confunde território de exercício da jurisdição com território onde a decisão
produzirá os seus efeitos.
A restrição dos efeitos da sentença aos “limites da competência territorial do
órgão prolator” foi criada por Medida Provisória nº 1.570/1970, depois convertida em
Lei nº 9.494/97. Falta boa técnica ao artigo 16, pois multiplica o número das ações,
ignora que o âmbito de abrangência da coisa julgada é delimitado pelo pedido, e não
pela competência, e desconsidera os preceitos dos artigos 93 e 103 do CDC.
Pela solução do artigo 103 do CDC, os efeitos da sentença se estendem aos
membros somente para beneficiar. É a ideia dos resultados in utilibus, secundum
eventum litis e secundum eventum probationis. Se a ação for procedente, os efeitos
da coisa julgada se operam erga omnes e podem ser invocados aos direitos difusos
e aos individuais homogêneos (I e III). Se improcedente, não prejudica. O mesmo se
opera em relação aos direitos considerados coletivos estrito senso (II), com a diferença
dos efeitos ultra partes.
A Ministra Relatora Nancy Andrigh, em fixação dos pontos controvertidos em
REsp nº 1.243.386/RS, questiona se é razoável a limitação da eficácia da decisão
ao território do juiz prolator.
Note-se que o caso dos sojicultores contém direitos individuais homogêneos
e coletivos em sentido estrito e revela que a coisa julgada nas ações coletivas é
controvertida, exigindo dos sindicatos dos produtores rurais a interposição de recurso
especial à revisão do acórdão do tribunal de justiça que fixou limites à eficácia da
decisão ao território do órgão julgador.
Os direitos materiais difusos têm incontroversa natureza coletiva. Os direitos
individuais homogêneos têm incontroversa natureza individual. Os direitos coletivos
em sentido estrito, contudo, a depender do caso concreto, podem assumir natureza
de direitos nitidamente coletivos ou, em outras circunstâncias, resumir em direitos
meramente individuais, ainda que tratados como coletivos para fins de racionalização
da tutela jurisdicional.

11
DINAMARCO. A reforma do código de processo civil, p. 28.

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Celso Barberato, Márcio Bulgarelli Guedes, Zaiden Geraige Neto

Houve uma nítida preocupação dos sindicatos dos produtores rurais em sustentar
que os direitos coletivos em sentido estrito ali se revestiam de natureza nitidamente
coletiva, na medida em que os sojicultores de todo o território nacional, e não apenas
da circunscrição do órgão julgador, estavam vinculados às obrigações desproporcionais
a ensejar riscos à economia, colacionando julgados de autoria da relatora para demons-
trar a existência de precedentes,12 embora, algum tempo depois, a divergência tenha
gerado alteração do resultado mais uma vez.13
Ainda no corpo do acórdão é possível identificar outros julgados sobre a mesma
matéria.14 Tudo é muito recente e aberto a surpresa política. Mas a Ministra não titu-
beia em reabrir os debates acerca da matéria, reafirmando a irrelevância do artigo 16
da LACP, para limitar a eficácia da sentença, dada a independência de seus efeitos
em relação à coisa julgada. Ao estabelecer que a sentença “fará coisa julgada nos
limites territoriais do órgão prolator”, a referida norma acabou por regular apenas e
tão somente o fenômeno da coisa julgada, que, segundo conclui a relatora em voto,
é absolutamente distinto da eficácia da sentença.

12
Consta no julgado: Processo civil e direito do consumidor. Ação civil pública. Correção monetária dos expurgos
inflacionários nas cadernetas de poupança. Ação proposta por entidade com abrangência nacional, discutindo
direitos individuais homogêneos. Eficácia da sentença. Ausência de limitação. Distinção entre os conceitos de
eficácia da sentença e de coisa julgada. Recurso especial provido.
- A Lei da Ação Civil Pública, originariamente, foi criada para regular a defesa em juízo de direitos difusos e co­
le­tivos. A figura dos direitos individuais homogêneos surgiu a partir do Código de Defesa do Consumidor, como
uma terceira categoria equiparada aos primeiros, porém ontologicamente diversa.
- A distinção, defendida inicialmente por Liebman, entre os conceitos de eficácia e de autoridade da sentença,
torna inócua a limitação territorial dos efeitos da coisa julgada estabelecida pelo art. 16 da LACP. A coisa
julgada é meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. Mesmo limitada aquela, os efeitos da sentença
produzem-se erga omnes, para além dos limites da competência territorial do órgão julgador.
- O procedimento regulado pela Ação Civil Pública pode ser utilizado para a defesa dos direitos do consumidor
em juízo, porém somente no que não contrariar as regras do CDC, que contem, em seu art. 103, uma disciplina
exaustiva para regular a produção de efeitos pela sentença que decide uma relação de consumo. Assim, não
é possível a aplicação do art. 16 da LACP para essas hipóteses. Recurso especial conhecido e provido (REsp
nº 411.529/SP, STJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrigh, DJ, 05 ago. 2008).
13
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EFICÁCIA. LIMITES. JURISDIÇÃO DO ÓRGÃO PROLATOR.
1. Consoante entendimento consignado nesta Corte, a sentença proferida em ação civil pública fará coisa
julgada erga omnes nos limites da competência do órgão prolator da decisão, nos termos do art. 16 da Lei
nº 7.347/85, alterado pela Lei nº 9.494/97. Precedentes. 2. Embargos de divergência acolhidos (Embargos
de Divergência em REsp nº 411.529/SP, STJ, 3ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ, 24 mar. 2010).
14
DIREITO PROCESSUAL. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (ART. 543-C, CPC). DIREITOS META­
INDIVIDUAIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. APADECO X BANESTADO. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. ALCANCE SUBJETIVO
DA SENTENÇA COLETIVA. LIMITAÇÃO AOS ASSOCIADOS. INVIABILIDADE. OFENSA À COISA JULGADA. MULTA
PREVISTA NO ART. 475-J, CPC. NÃO INCIDÊNCIA. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: 1.1. A sentença gené­
rica proferida na ação civil coletiva ajuizada pela Apadeco, que condenou o Banestado ao pagamento dos
chamados expurgos inflacionários sobre cadernetas de poupança, dispôs que seus efeitos alcançariam todos
os poupadores da instituição financeira do Estado do Paraná. Por isso descabe a alteração do seu alcance
em sede de liquidação/execução individual, sob pena de vulneração da coisa julgada. Assim, não se aplica ao
caso a limitação contida no art. 2º-A, caput, da Lei nº 9.494/97. 1.2. A sentença genérica prolatada no âmbito
da ação civil coletiva, por si, não confere ao vencido o atributo de devedor de “quantia certa ou já fixada em
liquidação” (art. 475-J do CPC), porquanto, “em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica”,
apenas “fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados” (art. 95 do CDC). A condenação, pois, não
se reveste de liquidez necessária ao cumprimento espontâneo do comando sentencial, não sendo aplicável
a reprimenda prevista no art. 475-J do CPC. 2. Recurso especial parcialmente provido. Recurso Especial em
Controvérsia Repetitiva nº 1.247.150/PR (Corte Especial, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJ, 12 dez. 2011).

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A coisa julgada na ação coletiva dos sojicultores – Comentário sobre o REsp nº 1.243.386/RS

É preciso uma pausa para esclarecer as três correntes que tentam conceituar a
coisa julgada. A primeira corrente, de origem alemã, defendida por Pontes de Miranda,
Ovídio Baptista, Celso Neves etc., diz que a coisa julgada é o efeito do elemento
declaratório da sentença que a torna indiscutível e imutável. A segunda corrente,
defendida por Liebman,15 tecnicamente adotada pelo CPC e seguida pela doutrina
majoritária, diz que a coisa julgada não seria um efeito da sentença, mas qualidade a
tornar indiscutíveis e imutáveis os efeitos da sentença. E, por fim, a terceira corrente,
representada por José Carlos Barbosa Moreira e Fredie Didier, diz que a coisa julgada
é uma qualidade do conteúdo da sentença e não dos seus efeitos.
A Ministra Relatora Nancy Andrigh se filia à 2ª corrente. Orienta que a inde-
pendência entre eficácia da sentença e eficácia da coisa julgada foi a adotada pelo
sistema processual brasileiro. Reportando-se à Liebman, defende que a eficácia da
sentença justifica os efeitos modificativos do mundo jurídico por causa desse ato
judicial, ao passo que eficácia da coisa julgada seria a imutabilidade conferida a tais
efeitos em razão do trânsito em julgado da decisão.
Ao interpretar o artigo 16 da LACP, “a sentença civil fará coisa julgada ‘erga
omnes’, nos limites da competência territorial do órgão prolator”, a relatora enten-
de que o legislador pretendeu estender os efeitos do êxito da sentença a todo o
território nacional e que a coisa julgada coletiva não poderá ser questionada em
nenhuma demanda futura dentro da base. Entende que os efeitos da sentença —
tanto principais (elemento declaratório característico de toda decisão judicial) quanto
secun­dários (constituição de título executivo nas ações condenatórias) — devem ser
estendidos a todos terceiros que se enquadrem no contexto.
Também não é lícito ignorar que a Ministra dedicou preciosas linhas para guer-
rear as disposições do art. 2º-A da Lei nº 9.494/1997.16 Detona que referida norma
de substituição processual se aplica à tutela jurisdicional dos interesses individuais
homogêneos, e que não se confunde com a ação de natureza coletiva, proposta por
entidade associativa, cuja relevância é nacional. A ação foi proposta por sindicatos dos

15
Ensina o professor italiano: “I - A declaração oriunda da sentença, assim como seus outros efeitos possíveis,
pode conceber-se e produzir-se independentemente da coisa julgada; na aptidão da sentença em produzir
os seus efeitos e na efetiva produção deles (quaisquer que sejam, segundo o seu conteúdo) consiste a sua
eficácia, e esta se acha subordinada à validade da sentença, isto é, à sua conformidade com a lei.
II - A eficácia da sentença, nos limites de seu objeto, não sofre nenhuma limitação subjetiva; vale em face de
todos.
III - A autoridade da coisa julgada não é efeito ulterior e diverso da sentença, mas uma qualidade dos seus
efeitos e a todos os seus efeitos referente, isto é, precisamente a sua imutabilidade. Ela está limitada subje-
tivamente só às partes do processo”.
(LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da Sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. 3. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1984. p. 170).
16
Dispõe o texto legal: “Art. 2º-A A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade
associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que
tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator”.

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Celso Barberato, Márcio Bulgarelli Guedes, Zaiden Geraige Neto

produtores rurais, contudo, afinal, não defende direitos trabalhistas de seus associados,
mas os interesses de todos (ou de cada um dos) sojicultores do país que se valham de
sementes transgênicas, independentemente da condição de associado, posição tam-
bém adotada em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.17
Ainda pondera que a eficácia das decisões coletivas deve ser ampla. Não concebe
a ideia de tutela jurídica que isente apenas alguns produtores de soja do pagamento
de royalties, sob pena de provocar um desequilíbrio substancial entre os iguais no
mercado de soja do país. Com base em razões de forte relevância, o recurso especial
dos sindicatos dos produtores rurais foi conhecido e, afinal, provido, para estender
os efeitos da sentença a todo território nacional, e não apenas às circunscrições da
base territorial do órgão judicial prolator da decisão.
De todo modo, a única questão pacífica sobre a coisa julgada nas ações coleti-
vas é que ela torna indiscutível e imutável as decisões judiciais, consolidando a ideia
de pacificação social.

Da conclusão
A tutela jurisdicional dos direitos coletivos é a consagração do acesso à justiça.
Nasce por necessidade de economia processual e por clamar a sociedade o cumpri­
mento das prestações materiais, tais como saúde, educação, desenvolvimento,
comu­nicação, meio ambiente, patrimônio comum etc., previstas na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
Ao comentar os aspectos do caso concreto, através do venerando acórdão proferido
pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.243.386/RS,
pôde-se apresentar que existem diversas circunstâncias fáticas e múltiplas relações jurí-
dicas revestidas de relevância social por envolver exatamente direitos difusos, coletivos
em sentido estrito e individuais homogêneos, no caso, especialmente as duas últimas
espécies.
No campo prático, todos os sojicultores que se sentirem prejudicados e que
não ajuizaram ação individual, do jeito que está, podem aguardar o desfecho da ação
coletiva proposta pelos sindicatos dos produtores rurais e, se se mantiver o resul-
tado, aproveitar o resultado útil (in utilibus). Também podem ajuizar ação individual e
requerer a suspensão do feito para continuar a se beneficiarem do resultado útil da
coletiva. E podem ainda prosseguir com a ação individual, cônscios, porém, de que
não poderão invocar os resultados da ação coletiva.
Note-se que as discussões teóricas acerca da classificação dos direitos coleti-
vos (difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos), da eleição dos

17
São precedentes: AgRg no RE nº 555.720 (Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJE, 21 nov. 2008) e o AgRg
no RE nº 217.566 (Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, DJE, 03 mar. 2011).

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A coisa julgada na ação coletiva dos sojicultores – Comentário sobre o REsp nº 1.243.386/RS

legitimados para a propositura da ação coletiva sem compromisso com a representação


adequada e com a notificação obrigatória e dos limites da eficácia da sentença ao ter-
ritório do órgão prolator, enfim, denunciam que a sociedade reclama um modelo de
tutela mais adequado às necessidades e que o instituto da coisa julgada teve que
passar por um processo de relativização para poder servir à causa coletiva, pois, nesta
matéria, os tradicionais limites subjetivos da coisa julgada, com todo o respeito, não
prestam à pluralidade da tutela jurisdicional.

Abstract: From conducting research office with the help of doctrine, legislation and case law, it was
possible to identify procedural points of relevance in the area of collective rights, in particular adequate
representation, thematic pertinence and res judicata collective.
Key words: Direct. Collective legitimization. Res judicata.

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A coisa julgada na ação coletiva dos sojicultores – Comentário sobre o REsp nº 1.243.386/RS

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BARBERATO, Celso; GUEDES, Márcio Bulgarelli; GERAIGE NETO, Zaiden.A coisa julgada
na ação coletiva dos sojicultores: comentário sobre o REsp nº 1.243.386/RS. Revista
Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 11-23,
jan./mar. 2014.

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Audiência de conciliação versus
audiência preliminar – A opção
pela primeira e as consequências
da eliminação da segunda no projeto
do Novo Código de Processo Civil
brasileiro (NCPC)

Lúcio Grassi de Gouveia


Professor do Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Doutor em
Direito pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito pela UFPE. Juiz de Direito. Membro
da ANNEP.

Resumo: O presente artigo analisa a opção do NCPC de troca da audiência preliminar pela audiência de
conciliação, suas vantagens, desvantagens e consequências.
Palavras-chave: Projeto do NCPC. Troca. Audiência preliminar. Audiência de conciliação. Consequências.

Sumário: 1 Introdução – 2 Audiência preliminar no atual CPC – 3 Troca da audiência preliminar pela audiência
de conciliação no NCPC – 4 Conclusão – Referências

1 Introdução
Analisando a Exposição de Motivos do Projeto do Novo Código de Processo Civil
brasileiro, que chamaremos a partir de agora de NCPC, constatamos a pretensão do
legislador de criar uma nova audiência de conciliação, anterior à apresentação de
defesa pelo réu. Nesse sentido:

Pretendeu-se converter o processo em instrumento incluído no contexto


social em que produzirá efeito o seu resultado. Deu-se ênfase à pos­
sibilidade de as partes porem fim ao conflito pela via da mediação ou da
conciliação. Entendeu-se que a satisfação efetiva das partes pode dar-se de
modo mais intenso se a solução é por elas criada e não imposta pelo juiz.
Como regra, deve realizar-se audiência em que, ainda antes de ser apre-
sentada contestação, se tentará fazer com que autor e réu cheguem a
acordo. Dessa audiência, poderão participar conciliador e mediador e o
réu deve comparecer, sob pena de se qualificar sua ausência injustifi-
cada como ato atentatório à dignidade da justiça. Não se chegando a
acordo, terá início o prazo para a contestação.

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Lúcio Grassi de Gouveia

Observo que a referida Exposição de Motivos, ao mencionar a conciliação, faz


referência ao seguinte texto, citando o Professor Barbosa Moreira:

A criação de condições para realização da transação é uma das tendên-


cias observadas no movimento de reforma que inspirou o processo civil
alemão. Com efeito, explica BARBOSA MOREIRA que “já anteriormente,
por força de uma lei de 1999, os órgãos legislativos dos ‘Lander’ tinham
sido autorizados, sob determinadas circunstâncias, a exigirem, como
requi­sito de admissibilidade da ação, que se realizasse prévia tentativa
de conciliação extrajudicial. Doravante, nos termos do art. 278, deve o
tribunal, em princípio, levar a efeito a tentativa, ordenando o compareci-
mento pessoal de ambas as partes. O órgão judicial discutirá com elas
a situação, poderá formular-lhes perguntas e fazer-lhes observações. Os
litigantes serão ouvidos pessoalmente e terá cada qual a oportunidade
de expor sua versão do litígio...” (Breve notícia sobre a reforma do Pro-
cesso Civil Alemão, p. 106).

Como não poderia deixar de ser, e em óbvia sintonia com a Exposição de Moti­
vos, dispõe o Projeto, nos dispositivos que transcrevo:
1. Na redação original do Projeto de Lei do Senado nº 166, de 2010:

Capítulo VI
Da Audiência de Conciliação
Art. 333. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não
for o caso de rejeição liminar da demanda, o juiz designará audiência de
conciliação com antecedência mínima de quinze dias.
§1º O juiz determinará a forma de atuação do mediador ou do conciliador,
onde houver, observando o que dispõe a lei de organização judiciária.
§2º As pautas de audiências de conciliação serão organizadas separa-
damente das de instrução e julgamento e com prioridade em relação a
estas.
§3º A intimação do autor para a audiência será feita na pessoa de seu
advogado.
§4º A eventual ausência do advogado não impede a realização da con-
ciliação.
§5º O não comparecimento injustificado do réu é considerado ato atenta-
tório à dignidade da justiça, passível de sanção processual.
§6º Obtida a transação, será reduzida a termo e homologada por sen-
tença.
§7º O juiz dispensará a audiência de conciliação quando as partes mani-
festarem expressamente sua disposição contrária ou quando, por outros
motivos, constatar que a conciliação é inviável.

2. Redação levando-se em consideração as alterações apresentadas no relatório-­


geral do Senador Valter Pereira:

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Audiência de conciliação versus audiência preliminar – A opção pela primeira...

Capítulo V
Da Audiência de Conciliação
Art. 323. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for
o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de
conciliação com antecedência mínima de trinta dias.
§1º O conciliador ou mediador, onde houver, atuará necessariamente na
audiência de conciliação, observando o previsto nos artigos 144 e 145,
bem como as disposições da lei de organização judiciária.
§2º Poderá haver mais de uma sessão destinada à mediação e à conci-
liação, não excedentes a sessenta dias da primeira, desde que necessá-
rias à composição das partes.
§3º As pautas de audiências de conciliação, que respeitarão o intervalo
mínimo de vinte minutos entre um e outro ato, serão organizadas sepa-
radamente das de instrução e julgamento e com prioridade em relação
a estas.
§4º A intimação do autor para a audiência será feita na pessoa de seu
advogado.
§5º A audiência não será realizada se uma das partes manifestar, com
dez dias de antecedência, desinteresse na composição amigável. A parte
contrária será imediatamente intimada do cancelamento do ato.
§6º O não comparecimento injustificado do autor ou do réu é considerado
ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de
até dois por cento do valor da causa ou da vantagem econômica objetivada,
revertida em favor da União ou do Estado.
§7º As partes deverão se fazer acompanhar de seus advogados ou defen-
sores públicos.
§8º A parte poderá fazer-se representar por preposto, devidamente cre-
denciado, com poderes para transigir.
§9º Obtida a transação, será reduzida a termo e homologada por sen-
tença.

Tendo o NCPC optado pela realização da audiência de conciliação antes da apre-


sentação de defesa pelo réu, como restou claro, decidiu ainda eliminar a já conhecida
audiência preliminar, conforme podemos observar da análise comparativa dos textos
que se seguem.
1. Redação do Código de Processo Civil em vigor:

Seção III
Do saneamento do processo
Art. 331. Se não ocorrer qualquer das hipóteses previstas nas seções
precedentes, e versar a causa sobre direitos que admitam transação, o juiz
designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de 30 (trinta) dias,
para a qual serão as partes intimadas a comparecer, podendo fazer-se
representar por procurador ou preposto, com poderes para transigir. [...]

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Lúcio Grassi de Gouveia

§2º Se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará
os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes
e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de
instrução e julgamento, se necessário.
§3º Se o direito em litígio não admitir transação, ou se as circunstân-
cias da causa evidenciarem ser improvável sua obtenção, o juiz poderá,
desde logo, sanear o processo e ordenar a produção da prova, nos
termos do §2º.

2. Redação original do Projeto de Lei do Senado nº 166, de 2010:

Seção III
Do saneamento do processo
Art. 354. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses das seções deste Capí­
tulo, o juiz, declarando saneado o processo, delimitará os pontos con-
trovertidos sobre os quais deverá incidir a prova, especificará os meios
admitidos de sua produção e, se necessário, designará audiência de
instrução e julgamento.

3. Redação levando-se em consideração as alterações apresentadas no relatório-­


geral do Senador Valter Pereira:

Seção III
Do saneamento do processo
Art. 342. Não ocorrendo qualquer das hipóteses deste Capítulo, o juiz, em
saneamento, decidirá as questões processuais pendentes e delimitará
os pontos controvertidos sobre os quais incidirá a prova, especificando os
meios admitidos de sua produção e, se necessário, designará audiência
de instrução e julgamento.
Parágrafo único. As pautas deverão ser preparadas com intervalo mínimo
de quarenta e cinco minutos entre uma e outra audiência de instrução e
julgamento.

Como vimos, são claras e profundas as modificações feitas pela Comissão,


se comparados o CPC em sua redação atual e o NCPC. Alterações que, em alguns
pontos, se chocam até mesmo com princípios que se apresentam como norteadores
do NCPC. Procuraremos então, neste modesto ensaio, analisar algumas consequên-
cias, caso aprovados os textos propostos para o NCPC, considerados os dispositivos
legais acima mencionados.
Nossa ideia não é de apresentar, pura e simplesmente, críticas às opções da
Comissão, mas permitir à comunidade jurídica que melhor reflita sobre o que está por
vir, caso aprovado o Projeto como se encontra, considerando vantagens e desvanta-
gens da nova orientação.

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Audiência de conciliação versus audiência preliminar – A opção pela primeira...

2  Audiência preliminar no atual CPC


O instituto da audiência preliminar, com sua roupagem atual, consideradas as
variações nos diversos ordenamentos jurídicos que a adotam, é fruto de longa evolu-
ção, que tem como essência a ênfase ao princípio da cooperação entre os agentes
processuais e o caráter dialógico do processo.
Em sua análise em diversos sistemas jurídicos, resulta clara a influência do
direito austríaco. A audiência preliminar austríaca, uma das interessantes criações de
Klein, inspirada no processo penal moderno do século XIX, copiada em todo o mundo
com maior ou menor êxito, é também um meio de concentrar uma audiência principal
sobre o fundo do litígio, no que se verifica uma estreita ligação com o também prin-
cípio da concentração.
Não tão distante da nossa realidade, encontra-se presente, com especial evi-
dência, no Código Tipo para a América Latina, em que se harmonizam os princípios
do dispositivo e do inquisitório, dando-se especial relevância ao princípio de colabo-
ração entre as partes e o juiz, no que diz respeito à fixação do objeto do processo,
consistindo a audiência preliminar no eixo central e aglutinador dos principais atos
processuais.
Nessa linha, o art. 301 do Código de Processo Civil Tipo para a América Latina
fornece os contornos da audiência que se alvitra para os países filiados. Eis os obje-
tivos declarados da audiência preliminar:

1. A ratificação dos escritos constitutivos com os esclarecimentos pertinen-


tes e eventual aditamento de fatos novos; 2. A contestação das exceções
prévias a que alude o art. 123; 3. A tentativa de conciliação; 4. A recepção
da prova das exceções, se estas não forem de puro direito; 5. O saneamento
do processo, mediante resolução das exceções processuais e nulidades,
bem como de todas as questões remanescentes que obstem à decisão
de mérito, incluindo a inadmissibilidade da demanda e a ilegitimidade ad
causam, desde que seja esta suscetível de definição no começo do litígio;
6. A fixação definitiva do objeto do processo e da prova.1

Constate-se que o Código Modelo vem produzindo efeitos favoráveis nos proje-
tos de reformas que em nossa área ibero-americana tendem a modificar os antigos
procedimentos e aparece refletido, em muitas de suas soluções, em vários novos
ordenamentos jurídicos positivos.
O Código General del Proceso de 1988 do Uruguai, vigente a partir de 20.11.89,
segue também o lineamento do Código Modelo em matéria de faculdades probatórias
do juiz civil, mas vai mais além, em especial quando regula a matéria dos processos

1
DINAMARCO. A reforma do Código de Processo Civil, p. 117.

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Lúcio Grassi de Gouveia

sociais. Dito Código regula todos os processos não penais (nem aduaneiros), pelo
qual foram derrogadas expressamente todas as leis processuais, inclusive o Código
de Procedimiento Civil de 1877. No que diz respeito à audiência preliminar, o tribunal
tentará conciliar as partes, sanear o processo, fixar o objeto da prova, em colabora-
ção das partes, com o qual deverá rechaçar as provas desnecessárias e inconducen-
tes, deixando as impertinentes para sentença. Se não houver conciliação total, ao
menos se chega a um acordo sobre certos fatos que fazem desnecessárias provas
solicitadas nos escritos introdutórios.2
Enfocados conjuntamente, os princípios da cooperação, oralidade-imediação,
com expressão escrita no processo e livre convicção do juiz orientam essa audiência.
E com esse contato entre os atores processuais, poderá o juiz observar não só o que
alegam as partes, mas também como o fazem. É a grande vantagem da oralidade.

A forma escrita, bem como salientou Sócrates, segundo Platão, é morta,


e só nos fala por um lado, ou seja, por meio daquelas ideias que com os
sinais despertam o nosso espírito; não satisfaz plenamente a nossa curio-
sidade, não responde às nossas dúvidas, não nos apresenta os infinitos
possíveis aspectos das coisas em si mesmas; - na viva voz falam também
conjuntamente a fisionomia, os olhos, a cor, o movimento, e tantas ou-
tras diversas pequenas circunstâncias, que modificam e desenvolvem o
sentido geral das palavras, e subministram outros tantos indícios a favor
ou contra o afirmado pelas próprias palavras; - a linguagem muda, a elo-
qüência do corpo, segundo Tullio, é mais verídica que as palavras e pode
menos esconder a verdade; - todos os indicados elementos se perdem na
mudez da forma escrita, faltando ao juiz os mais claros e certos argumen-
tos (para chegar a uma boa decisão).3

Quanto à oralidade, discute-se sua origem. Segundo Chiovenda, devemos pres-


cindir da ideia preconcebida de que o processo escrito responde melhor ao espírito e
à tradição latina e que o processo oral é um produto de índole germânica. O processo
romano foi estritamente oral, imediato e concentrado e se deformou, transformando-se
em escrito. O movimento de retorno à oralidade significa um retorno à ideia romana.4
Miguel Teixeira de Sousa enfatiza que a audiência preliminar de inspiração aus-
tríaca e germânica introduzida, finalmente, no processo civil português, tem como
antecedente direto o regime estabelecido no art. 301 do Anteprojeto do Código de
Processo Civil Modelo para a América Latina.
No direito português, as finalidades essenciais da audiência preliminar encon-
tram justificação no princípio da cooperação recíproca entre tribunal e partes: a) ten-
tativa de conciliação (art. 508-A, nº 1, al. a); b) discussão e produção de alegações

2
VESCOVI. Los poderes probatorios del juez civil en los nuevos sistemas procesales. In: DENTI. Studi in onore
di Vittorio Denti, p. 557-558.
3
VAZ. Direito Processual Civil: do antigo ao novo Código, p. 157.
4
CHIOVENDA. Instituciones de derecho procesal civil, v. III, p. 165.

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Audiência de conciliação versus audiência preliminar – A opção pela primeira...

pelas partes, se o juiz tiver de apreciar exceções dilatórias que as partes não hajam
suscitado e discutido nos articulados ou tencionar conhecer, no todo ou em parte,
do mérito da causa no despacho saneador (art. 508º-A, nº 1, al. b); c) discussão
das posi­ções das partes, com vista à delimitação do litígio e suprimento das insufi-
ciências ou imprecisões na exposição da matéria de fato que ainda subsistam ou se
tornem patentes na sequência do debate (art. 508º-A, nº 1, al. c); d) proferimento do
despacho saneador (art. 508º-A nº 1, al. d); e) finalmente, se a ação tiver sido contes-
tada, seleção, após debate, da matéria de fato relevante para a apreciação da causa
e decisão sobre as reclamações deduzidas pelas partes contra ela (art. 508º-A, nº 1,
al. e). Em síntese, persegue múltiplas funções: de conciliação das partes (art. 508º-A,
nº 1, al. a), de audição prévia das partes (art. 508º-A, nº 1, al. b), de saneamento do
processo (art. 508º-A, nº 1, al. d), de concretização do objeto do litígio (art. 508º-A,
nº 1, al. c) e de seleção da matéria de fato (art. 508º-A, nº 1, al. e).5
A audiência preliminar propicia um contato decisivo entre as partes e o juízo,
para que seja expurgado o processo de tudo quanto não interessa, tornando-se mais
clara a matéria discutida. Consiste, assim, no ápice da aplicação do princípio da coo­
pe­ração intersubjetiva.
Quanto a sua finalidade essencial, reside em eliminar da lide, concentradamente
— em oposição ao sistema tradicional difuso, em cuja atividade se dispersa — em
uma etapa inicial, todos os obstáculos que impeçam, suspendam ou interrompam o
debate sobre a fundamentação do que se pretende. Esta genuína função de “purgar”
precocemente o processo, livrando-o dos impedimentos processuais, para propiciar a
rápida e ordenada passagem para etapa do exame do mérito, constitui uma finalidade
patente suscetível de ser alcançada por diversos caminhos. Precisamente a dificul-
dade aflora na sua articulação prática, pela persecução do imprescindível equilíbrio
e dosimetria entre o conteúdo da atividade que tem lugar na audiência preliminar

5
Mas não são as únicas funções. Poderão ainda ser preenchidas nesta audiência preliminar algumas funções
complementares, tais como: a) suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de fato,
que se tornam manifestas na sequência do debate; b) indicação dos meios de prova e decisão sobre a res-
pectiva admissibilidade e preparação; c) nela deve ser designada a data para a realização da audiência final;
d) nela deverá ser requerida a gravação da audiência final; e) asseguramento do direito do contraditório,
quando a parte não pôde responder às exceções deduzidas pela parte contrária no último articulado admi-
tido, concedendo-se direito de resposta; f) dedução de articulado superveniente, nos termos do art. 506/3a;
g) colheita de depoimento de parte (art. 556/3); h) e obtenção de acordo das partes quanto à remessa do
processo para o tribunal competente, verificando-se uma incompetência absoluta do tribunal (art. 105/2).
Geraldes inclui ainda a apresentação de requerimento para intervenção do tribunal coletivo nos casos em que
tal intervenção não seja obrigatória. A audiência preliminar apresenta efeitos preclusivos quanto à prática de
determinados atos, tais como a apresentação de reclamação quanto à seleção da matéria de fato, indicação
dos meios de prova, apresentação do requerimento para a gravação da audiência ou para a intervenção do
coletivo, nos casos em que este não deva, em princípio, intervir no julgamento. É que a concentração de atos
prevista na lei visou, sem dúvida alguma, acelerar a marcha processual, objetivo que sairia gorado se, a partir
de interpretações diversas, se abrisse mão de tal princípio e se concluísse pela transposição, para fora da
audiência preliminar, de determinados atos que naquela se inserem e que justificaram a criação de tal “pólo
aglutinador de todas as medidas organizativas do processo”, como se refere no Preâmbulo do Dec.-Lei nº 329-A/95,
de 12 de dezembro (GERALDES. Temas da reforma do Processo Civil).

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versus a necessidade de não criar um desmedido instrumento que, por fim, bloqueie
e dificulte um mais rápido alcance da etapa decisória. Este é o árduo desafio que
deve afrontar o legislador.6
Não podemos deixar de dizer que o Código de Processo Civil brasileiro seguiu
tal orientação, ao dispor:

Seção III
Do saneamento do processo
Art. 331. Se não ocorrer qualquer das hipóteses previstas nas seções
precedentes, e versar a causa sobre direitos que admitam transação, o juiz
designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de 30 (trinta) dias,
para a qual serão as partes intimadas a comparecer, podendo fazer-se
representar por procurador ou preposto, com poderes para transigir.
§1º Obtida a conciliação, será reduzida a termo e homologada por sen-
tença.
§2º Se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará
os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes
e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de
instrução e julgamento, se necessário.
§3º Se o direito em litígio não admitir transação, ou se as circunstâncias
da causa evidenciarem ser improvável sua obtenção, o juiz poderá, desde
logo, sanear o processo e ordenar a produção da prova, nos termos do §2º.

Foi assim implantado no direito brasileiro o modelo da audiência preliminar


do Código Tipo, preordenada ao trinômio conciliação-saneamento-organização (das
futuras atividades instrutórias).
Na atualidade, a tentativa de conciliação tem sido apontada pela doutrina, den-
tro de diversos sistemas processuais, como uma valiosa forma de oportunização de
resolução de conflitos existentes entre as partes.
Precisamos, porém, fazer uma triste constatação: para os processualistas ante­
nados com as conquistas de seu tempo, se foi grande a expectativa causada pela
criação, no direito brasileiro, de uma audiência preliminar (inadequadamente denomi-
nada inicialmente de audiência de conciliação), foi também enorme a frustração cau-
sada pelo fato de o legislador ter condicionado sua realização e consequentemente a
aplicação dos princípios da imediatidade, oralidade e concentração à disponibilidade
dos direitos questionados e probabilidade da obtenção de acordo entre as partes.
Tudo se passa como se a necessidade de contato direto do juiz com as partes
no momento da fixação de pontos controvertidos e da especificação de provas a serem
produzidas só existisse em questões referentes a direitos patrimoniais.

6
BERIZONCE. L’udienza preliminare nel Codice Processuale Civile modello per l’Ibero-America. In: DENTI. Studi in
onore di Vittorio Denti, v. II, p. 31.

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Audiência de conciliação versus audiência preliminar – A opção pela primeira...

Observe-se que, nos chamados direitos indisponíveis, esse contato direto do


juiz e do Ministério Público com as partes na audiência preliminar poderia trazer para
o processo benefícios, em virtude da aplicação dos princípios supramencionados.
No sistema jurídico brasileiro, partamos, porém, do princípio de que o legislador
somente admitiu que se inserisse outra audiência no decorrer do procedimento ordiná-
rio no caso de possibilidade de conciliação, ou seja, no seu entendimento só valeria à
pena a designação de outra audiência para o contato direto com as partes se possível
a celebração de um acordo entre elas. Trata-se de opção de política legislativa.
Nesse sentido Barbosa Moreira, para quem

pode-se discordar, não há dúvida, da orientação seguida pela reforma


no particular, mas de lege lata não há como aderir — sem embargo da
autoridade que a ampara — à proposta hermenêutica segundo a qual o
juiz deve sempre convocar a audiência, ainda quando não concorrentes
os pressupostos indicados na lei (v.g. disponibilidade do direito), o que
implicaria na adoção, em qualquer caso, da forma oral de saneamento.7

Dessa forma, o CPC atual condiciona sua realização à possibilidade e probabi-


lidade de transação. Utilizou-se o legislador, na elaboração do dispositivo legal, de
conceito indeterminado que se revela dotado de grande carga de subjetividade, dando
ampla margem ao juiz para decidir se irá realizá-la ou não.

3  Troca da audiência preliminar pela audiência de conciliação


no NCPC
Optou a Comissão que elaborou o NCPC por excluir a audiência preliminar e
criar a audiência de conciliação, anterior à apresentação de defesa pelo réu, com
participação obrigatória das partes, sob pena de multa por ato atentatório à dignidade
da justiça.
Essa postura não é novidade no processo brasileiro. Essa fase obrigató-
ria pré-contenciosa de conciliação encontra referência histórica no Regulamento
nº 737/1850, disciplinador do processo comercial no Império.8 Segundo Andrian
Galindo, o diploma previa uma tentativa ordinária de conciliação no limiar do procedi-
mento, consoante texto do art. 23: “Nenhuma causa commercial será proposta em
Juízo contencioso, sem que préviamente se tenhan tentado o meio da conciliação, ou
por acto judicial, ou por comparecimento yoluntario das partes”.9

7
MOREIRA. O processo civil brasileiro e o procedimento por audiências. In: MOREIRA. Temas de Direito Proces-
sual: sexta série, p. 105.
8
GUEDES. O princípio da oralidade.
9
GALINDO. Avanços e retrocessos na disciplina das audiências no projeto do NCPC. In: ADONIAS; DIDIER JR.
(Org.). O projeto do novo Código de Processo Civil, p. 88.

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Alguns processualistas enxergam, diante de a tentativa da conciliação ocorrer


antes da apresentação da resposta pelo réu, uma possibilidade maior de consenso
em virtude de os ânimos ainda não se encontrarem tão exaltados. Vislumbra-se ainda
a possibilidade de, tendo surgido o acordo, o pronunciamento do juízo ocorrer de
forma mais rápida, homologando a possível transação por sentença e com um custo
menor, já que o advogado do réu ainda não terá elaborado a peça defensiva.
Dessa maneira, de forma semelhante aos Juizados Especiais Cíveis, tentará o
conciliador ou mediador obter o acordo entre as partes e submetê-lo à homologação
judicial, por sentença.
Difere, porém, do modelo dos Juizados, em que, após a realização da audiência
de conciliação, realiza-se outra, a de instrução e julgamento, na qual é apresentada
defesa pelo réu. Aqui, no modelo do NCPC, entre as duas audiências, a de conciliação
e a de instrução e julgamento, deverão ser praticados inúmeros atos processuais,
tais como: recebimento da defesa, apresentação da réplica e tréplica se necessário,
saneamento do feito pelo juiz isoladamente em seu gabinete, momento no qual, inclu-
sive, diante do que foi alegado pelas partes, deverá fixar os pontos controvertidos e
deferir a produção de provas, inclusive aquelas a serem produzidas em audiência de
instrução e julgamento.
Nesse ponto vislumbramos um retrocesso: toda aquela atividade de saneamento
e concretização do litígio, em que o juiz, dialogando com as partes, fixa os pontos
controvertidos e decide a respeito das provas que serão produzidas, perde seu cará-
ter dialógico, e o princípio da cooperação, eleito como um dos princípios retores do
NCPC, é colocado de lado.
Fazendo um paralelo da proposta de audiência de conciliação no NCPC com o
sistema dos Juizados Especiais Cíveis, vale ressaltar a existência de dissertação de
mestrado denominada “Audiência de conciliação nos juizados especiais cíveis cario-
cas: obstáculo ou solução?”, fruto de pesquisas da autora, Mag Carvalho Palleta,
orientada pelo Professor Roberto da Silva Fragale Filho, que, com base em rigorosos
dados estatísticos, constata:

A Prática conciliatória nos Juizados Especiais, que se supunha ser uma


medida rápida e eficaz para dirimir os conflitos de interesse, reduzindo
de forma rápida o estoque de processos e ainda os gastos da máquina
estatal, revela-se, na prática, no mais das vezes, uma grande decepção.
Como em 80% dos casos julgados nos Juizados Especiais Cíveis Cario-
cas a conciliação não é alcançada nesta audiência, esta etapa obrigató-
ria acaba por se transformar apenas em um obstáculo a ser ultrapassado
para a resolução dos processos. Desta forma esta pesquisa se propõe a
fazer uma reflexão acerca da possibilidade de unificação das audiências
de conciliação (AC) e das audiências de instrução e Julgamento (AIJ) em
um só ato: uma audiência única de conciliação, instrução e julgamento

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Audiência de conciliação versus audiência preliminar – A opção pela primeira...

(ACIJ), com a finalidade de diminuir o tempo do processo, com vistas a


alcançar o princípio constitucional da duração razoável do processo.10

A análise de tal pesquisa deixa claro que o sistema implantado nos Juizados
Especiais Cíveis, de realização de uma audiência no início do processo com exclusiva
finalidade conciliatória, tem apresentado resultados questionáveis, pela baixa quan-
tidade de acordos obtidos.
Nossa experiência prática demonstra ainda que vários advogados questionam
sua utilidade prática, especialmente quando se encontram no polo passivo pessoas
jurídicas, demandados habituais que muitas vezes tem a clara orientação para que
seus advogados não firmem acordos. Criticam também a falta de preparo dos conci-
liadores para a missão e o atraso que a realização de duas audiências pode causar
ao julgamento da causa, fato que tem feito com que alguns Juizados em alguns
Estados realizem as duas audiências sucessivamente no mesmo dia.
Constatamos ser duvidosa a opção do NCPC de troca da atual audiência prelimi-
nar pela audiência de conciliação. Vimos que o NCPC prevê que a audiência não será
realizada se uma das partes manifestar, com dez dias de antecedência, desinteresse
na composição amigável, devendo a parte contrária ser imediatamente intimada do
cancelamento do ato. Mesmo neste caso, terá havido retardamento para o ofereci-
mento da resposta do réu. E em momento posterior, numa fase mais adiantada do
processo, as partes perderão a excelente oportunidade de, por meio de seus advoga-
dos, interferirem de forma direta na formação do convencimento do juiz a respeito da
fixação dos pontos controvertidos e do deferimento das provas a serem produzidas
na audiência de instrução e julgamento.
Mais sensata teria sido a aprovação do Projeto de Lei do Senado de nº 135/2004,
de autoria do Senador Pedro Simon, que permitia ao juiz dispensar a produção de
provas requeridas e não ratificadas na audiência preliminar pela parte cujo advogado
injustificadamente deixou de comparecer ao ato, proposta que restou rejeitada quando
da aprovação do substitutivo do Senador Valter Pereira.11
Dessa maneira a Comissão do NCPC, ao invés de prestigiar a audiência preli-
minar, que enfatiza a cooperação intersubjetiva no processo, princípio retor do NCPC,
cria uma audiência de conciliação, de resultado duvidoso, que retira das partes a
possibilidade de terem uma participação mais ativa no processo.
E não se diga que a audiência preliminar não serve ao processo civil brasileiro.
Trata-se de um instituto extremamente avançado e que, muitas vezes, vem sendo
subutilizado por alguns juízes que comparecem à referida audiência sem conhecerem

10
PALETTA. Audiência de conciliação nos juizados especiais cíveis cariocas: obstáculo ou solução?.
11
GALINDO. Avanços e retrocessos na disciplina das audiências no projeto do NCPC. In: ADONIAS; DIDIER JR.
(Org.). O projeto do novo Código de Processo Civil, p. 96.

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com a devida profundidade os elementos do processo. O caminho mais adequado


seria o da preparação desses juízes para melhor atuarem nessas audiências, não se
limitando ao solene “há possibilidade de acordo?”, tão ouvido por partes e advogados
no dia a dia das varas do Poder Judiciário.
Não sendo possível neste ensaio adentrarmos em aspectos não jurídicos a
serem levados em conta pelo juiz, conciliador ou mediador na busca da conciliação
entre as partes, recomendamos livro de Susana Bruno, em que a autora trabalha com
uma “proposta de método de conciliação utilizando-se da interdisciplinaridade do direito
com ciências não jurídicas, a fim de aumentar a satisfação do jurisdicionado”.12

4 Conclusão
O NCPC, seguindo caminho contrário ao Código Tipo para a América Latina, eli-
minou a audiência preliminar, indo de encontro à cooperação intersubjetiva, princípio
que rege o novel projeto de diploma legislativo. Criou em seu lugar uma audiência de
conciliação, de resultado duvidoso, que retira das partes a possibilidade de terem
uma participação mais ativa no processo, influenciando diretamente na decisão do
juiz no que diz respeito à fixação dos pontos controvertidos e deferimento das provas
a serem produzidas em audiência, transformando o que era diálogo em monólogo.

Conciliation Conference Versus Pre-Trial Conference – The Option by the First and the Consequences by
Elimination of the Second at the Project of New Brazilian Civil Procedure Code (NCPC)
Abstract: This article analyzes the NCPC exchange option of preliminary hearing by conciliation hearing, its
benefits, losses and consequences.

Key words: NCPC Project. Exchange. Pre-trial conference. Conciliation conference. Consequences.

Referências
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In: DENTI, Vittorio. Studi in onore di Vittorio Denti. Padova: Cedam, 1994. v. II.
BRUNO, Susana. Conciliação: prática interdisciplinar e ferramentas para a satisfação do jurisdicionado.
Belo Horizonte: Fórum, 2012.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituciones de derecho procesal civil. Tradução de E. Gomes Orbaneja.
Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1940. v. III.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 1996.

12
BRUNO. Conciliação: prática interdisciplinar e ferramentas para a satisfação do jurisdicionado.

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Audiência de conciliação versus audiência preliminar – A opção pela primeira...

GALINDO, Andrian de Lucena. Avanços e retrocessos na disciplina das audiências no projeto do


NCPC. In: ADONIAS, Antônio; DIDIER JR., Fredie (Org.). O projeto do novo Código de Processo Civil.
Salvador: JusPodivm, 2012.
GERALDES, Antônio Santos Abrantes. Temas da reforma do Processo Civil. Coimbra: Almedina, 1997.
GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Interpretação criativa e realização do direito. Recife: Bagaço, 2000.
GUEDES, Jefferson Carus. O princípio da oralidade. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
GUILLÉN, Victor Fairen. Textos propuestos para la regulación de la audiencia preliminar en el proyectado
Código Procesal Civil-Tipo para Iberoamérica. In: JORNADAS IBEROAMERICANAS DE DERECHO
PROCESAL, 12., Madrid. Trabajo presentado… Madrid: Ministerio de Justicia, 1990. v. 2.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O processo civil brasileiro e o procedimento por audiências. In:
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual: sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997.
NETO, Abílio. Código de Processo Civil anotado. 14. ed. actual. Lisboa: Ediforum, 1997.
PALETTA, Mag Carvalho. Audiência de conciliação nos juizados especiais cíveis cariocas: obstáculo
ou solução?. Orientador: Roberto da Silva Fragale Filho. 2011. 153 f. Dissertação (Mestrado)–
Fundação Getulio Vargas, 2011. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/
handle/10438/8586/DMPPJ%20%20MAG%20CARVALHO%20PALETTA.pdf?sequence=1>. Acesso
em: 30 jun. 2012.
SOUSA, Miguel Teixeira de. Apreciação de alguns aspectos da revisão do Processo Civil: projecto.
ROA, 1995. II.
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo Processo Civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997.
VAZ, Alexandre Mário Pessoa. Direito processual civil: do antigo ao novo Código. Coimbra: Almedina,
1998.
VAZ, Alexandre Mário Pessoa. Poderes e deveres do juiz na conciliação judicial. Coimbra: Coimbra
Ed., 1976. v. 1, t. I.
VESCOVI, Enrique. Los poderes probatorios del juez civil en los nuevos sistemas procesales. In: DENTI,
Vittorio. Studi in onore di Vittorio Denti. Padova: Cedam, 1994. v. II.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Audiência de conciliação versus audiência preliminar:


a opção pela primeira e as consequências da eliminação da segunda no projeto
do Novo Código de Processo Civil brasileiro (NCPC). Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 25-37, jan./mar. 2014.

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A ratio decidendi dos precedentes
judiciais

Marcos José Porto Soares


Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Promotor de
Justiça do Estado do Paraná. Professor de Processo Civil na Faculdade Integrado-Campo
Mourão-PR. Especialista em Processo Civil pela Uniderp-Anhanguera. Artigos publicados: “A
concretude das condições para o legítimo exercício do direito de ação e as consequências
decorrentes” (Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 195, maio 2011); “O Collateral Estoppel
no Brasil” (Revista de Processo, São Paulo, v. 211, 2012); “O Mérito da Demanda e sua
repercussão na formação das decisões” (Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 9,
2012); “A proporcionalidade como critério para estabelecer a ordem da causa a ser julgada
e os meios garantidores de um julgamento célere” (Centro de Estudos e Aperfeiçoamento
Funcional, Ministério Público do Paraná. Disponível em: <http://www.ceaf.mp.pr.gov.br/
modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=117>. Acesso em: 19 jul. 2011; Associação
do Ministério Público do Estado do Paraná. Disponível em: <http://www.apmppr.org.br>.
Acesso em: 19 jul. 2011). E-mail: <marcosjps@uol.com.br>.

Resumo: A ratio decidendi dos precedentes judiciais. O presente trabalho tem como foco descrever a
importância da ratio decidendi para uma adequada operacionalização da técnica de vinculação dos pre­
cedentes, que vem sendo introduzida no direito processual brasileiro diante de uma aproximação, cada
vez maior, entre os sistemas jurídicos do common law e civil law. A pesquisa feita demonstra que, para se
identificar a ratio decidendi de um precedente, há a necessidade de se adentrar ao caso concreto levado a
julgamento, e que esta exigência afasta da condição de precedentes certos institutos, tais como a súmula
vinculante e as orientações jurisprudenciais, por vezes assim considerados pela doutrina pátria.
Palavras-chave: Ratio decidendi. Stare decisis. Precedentes vinculantes. Common law.

Sumário: 1 Introdução – 2 Evolução da teoria dos precedentes no sistema do common law – 3 Noções
sobre a regra do stare decisis – 4 A ratio decidendi – 5 Precedentes no Brasil – 6 Conclusão – Referências

1 Introdução
O tema versado no presente trabalho mostra-se interessante vez que tangencia
espaço relegado a um segundo plano nos países que, como o Brasil, tradicionalmente
adotaram o sistema do civil law.
É inquestionável que no sistema processual pátrio cada vez mais são inseridas
técnicas originárias do common law, sendo a dos precedentes judiciais, também
conhecida como stare decisis, a mais importante.
Com essa convergência que hoje se verifica entre os sistemas common law e
civil law, tornou-se imprescindível o estudo da técnica de utilização dos precedentes
no Brasil.

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O ponto vetor da aplicação dos precedentes judiciais é a garantia aos jurisdi-


cionados que casos similares tenham o mesmo julgamento, em sintonia ao exaltado
princípio da igualdade estampado no artigo 5º da Constituição da República. Procura-se,
com isso, evitar que sobre os jurisdicionados recaiam sentimentos de insegurança e
incerteza quanto à aplicação do Direito.
Sobre este ponto preleciona Nogueira:1
“Porém o que não pode ocorrer é essa insegurança, essa incerteza, essa depen-
dência de resultado de julgamento a partir do sorteio do órgão que vai julgá-lo, pois
isso não é direito, não é justiça, é loteria, é jogo de azar. O que não pode continuar
ocorrendo é aquele hipotético encontro na rua entre dois jurisdicionados, Caio e Tício,
que levaram ao Judiciário um problema semelhante, seja previdenciário, tributário ou
de qualquer outra natureza, mas que o stare decisis tem elementos para identificá-­
los como semelhantes, e nesse encontro eles descobrem que um ganhou e outro
perdeu, não porque o direito de ambos era diferente, mas porque na distribuição um
deu mais sorte que o outro.”
Neste trabalho buscar-se-á traçar uma moldura científica sobre as nuanças, deli-
mitações, características e importância da ratio decidendi. A ratio decidendi constitui
pressuposto técnico e conceitual para uma adequada utilização dos precedentes na
formação de julgamentos. É ela a parte do precedente judicial na qual residem os
elementos que servirão de parâmetro para a identificação da similitude de um caso
já julgado com outro porvir.
No Brasil, em que pese a sua relevância, a matéria é ainda incipiente de modo
que até o momento não existe uma teoria definitiva sobre os precedentes; esta se
encontra em fase de composição. Crê-se, assim, que este estudo poderá trazer ele-
mentos interessantes para a formação e solidificação da teoria dos precedentes no
Brasil.

2  Evolução da teoria dos precedentes no sistema do common law


O sistema common law tem suas raízes deitadas na Inglaterra, tendo surgido
a partir da conquista normanda por volta do ano de 1060, em que Guilherme “O
Conquistador”, então rei da Inglaterra, centralizou o poder e a ordem jurídica.2
Esse monarca, objetivando legitimar o seu poder, intencionou governar atendendo
os interesses do povo, o que acabou por repercutir na forma em que os litígios eram
julgados em seu reino: houve o rompimento com o sistema dos juízos das ordálias3

1
Jurisprudência vinculante no direito norte-americano e no direito brasileiro. Revista de Processo, p. 101.
2
Antes deste período a Inglaterra vivenciava o esfacelamento do ordenamento jurídico, fruto do pluralismo nor-
mativo advindo do sistema feudal em que em cada área havia a prevalência dos ditames de um barão.
3
Mediante esse sistema, também conhecido como Juízo de Deus, as pessoas, sob o argumento de intervenção
divina, tinham que operar milagres para provar sua inocência.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

até então vigente; e os costumes da corte, denominados common law, passaram a


basear as regras a serem empregadas nos julgamentos pelos tribunais reais.
No entanto, o common law só abrangia os casos mais relevantes para a realeza,
de modo que aqueles que não se amoldavam nessa esfera de importância ficavam
sem a devida tutela.
Devido a isso, a fim de evitar que muitos direitos ficassem sem proteção diante
de lesões, os súditos, paralelamente ao common law, começaram a serem tutelados
pelo chamado equity, sistema em que os julgamentos eram feitos de acordo com os
costumes do povo.4
Sobre o tema explana Carpena:5
“Com efeito, nos primórdios, o sistema do common law se destinava a apreciar
alguns casos do povo que se mostravam relevantes, vale dizer, era um sistema voltado
não para todas as disposições litigiosas da sociedade, mas, sim, para algumas. De
outro lado, tratava-se de um sistema caro e altamente formal, excluindo, por várias
razões, inúmeras lesões ou ameaças de lesões a direitos.
Diante de tal realidade e tendo em vista que, naturalmente, o Estado precisava
tutelar todas as relações litigiosas, até para manter a paz e a organização social,
criou-se, como um efeito natural, o equility law, cujo propósito inicial era justamente
o de evitar negativa de tutela estatal para aquelas questões que não tinham previsão
de tutela ou não tinham cabimento dentro do common law.”
Nessa época, destarte, coexistiam dois modelos de tutela: common law e equity,
os quais, consoante ensina Nobre Júnior, assemelhavam-se por se manifestarem de
acordo com a doutrina do precedente, sendo, para tanto, fundamental a contribuição
do registro das decisões reais e do chanceler que permitiam, ao surgir um conflito
idêntico ou similar a um já resolvido, forte probabilidade de se emitir a mesma deci-
são ou adaptá-la às novas circunstâncias exigidas pela espécie.6
O sistema equity, com o decorrer do tempo, foi ganhando importância dentro
do próprio common law, servindo muitas vezes como argumento e consulta para a
aplicação do Direito neste. E, enfim, no século XIX, entre 1873 e 1875, foram ins-
tituídos os Judicatory Acts, os quais redundaram na unificação do Judiciário inglês,
fundindo-se, doravante, os sistemas common law e equity sob a denominação única
de common law.

4
Esse sistema tem como principal característica a simplicidade procedimental em que era feita uma súplica
ao rei, representado por seu chanceler; atendia, sobretudo, as demandas relativas a direito de propriedade,
contratos e também lides envolvendo garantias.
5
Os poderes do juiz no common law. Revista de Processo, p. 195.
6
Segundo o mesmo autor, os mais antigos Year-Books foram feitos por compiladores anônimos entre os reina-
dos de Eduardo I e Henrique VIII; o precedente primeiramente tinha natureza persuasiva (persuasive precedent)
de modo que o juiz podia pô-lo de lado se encontrasse razões convincentes para tanto, tendo tão somente no
século XVII se tornado obrigatório ou vinculativo (binding precedent) (O direito processual brasileiro e o efeito
vinculante das decisões dos Tribunais Superiores. Revista de Processo, p. 64).

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Marcos José Porto Soares

Enquanto na Inglaterra, num protótipo de democracia, a monarquia voltava sua


atenção para os anseios do povo, na França e em vários outros países, a burguesia
se rebelava contra os monarcas que, revestidos de poder absoluto, invariavelmente,
em seu próprio benefício, praticavam atos contrários aos interesses dos governados.
Sob a égide da Revolução Francesa — movimento, encabeçado pela burguesia,
com a ajuda de vários grupos sociais, como a população miserável das cidades,
os pequenos produtores e comerciantes, os camponeses explorados pela servidão,
com o slogan lançado pelos revolucionários “liberdade, igualdade e fraternidade” —
alastraram-se ideias liberais que culminaram no rompimento do sistema de poder
até então existente: uma vez reconhecida a legitimidade da Assembleia Nacional
Constituinte pelo rei Luís XVI, em 1791, foi concluída a primeira Constituição francesa.
Esse documento teve como principal façanha coibir os abusos por parte do
monarca: “o rei perdia os ‘poderes absolutos’ do Antigo Regime, não estando mais
acima das Leis”; garantiam-se por escrito os direitos dos cidadãos;7 nascia, enfim, o
sistema do civil law em que as leis foram elevadas ao trono como principal fonte do
Direito — modelo posteriormente copiado por outros países.
Na Inglaterra, por sua vez, o positivismo foi considerado pelos juristas ingleses
incompatível com a feição do common law em que a segurança jurídica encontrava
alicerce nos precedentes judiciais como precípua fonte do Direito. Conquanto, as leis
não foram totalmente descartadas, mas sim posicionadas em patamar inferior aos
costumes, como fonte suplementar do Direito.
Refletindo sobre esse fenômeno, Goron8 afirma:
“Um aspecto interessante, visível a partir da consolidação dos caracteres da
common law, reside no fato de que a supremacia formal da lei sobre as decisões
do Judiciário, que jamais foi colocada em dúvida de qualquer jurista ou estudioso
deste sistema, veio acompanhada de uma tradição — melhor poder-se-ia-dizer, uma
arraigada e profunda cultura popular — de que a lei, mesmo com tal autoridade,
retém um papel secundário e complementar. Nessa concepção ainda vigente cabe

7
Cotrim arrola os principais pontos da Constituição Francesa: “Sociedade – igualdade jurídica entre todos
os indivíduos. Extinguiam-se os privilégios hereditários da nobreza e do clero. Abolia-se totalmente a tor-
tura. Mantinha-se, contudo, a escravidão nas colônias francesas (COTRIM. História global: Brasil e geral,
p. 260-261).
Economia – completa liberdade de produção e de comércio. Garantia-se a não interferência do Estado na vida
econômica. Proibiam-se as greves dos trabalhadores.
Religião – garantia-se a liberdade de crença religiosa. Instituía-se a separação do Estado e da Igreja. Tornava-
se obrigatória a nacionalização dos bens do clero.
Política – os poderes do Estado foram divididos em: Legislativo, Executivo e Judiciário. Assegurava-se a repre­
sentatividade popular por meio de eleições para a escolha dos parlamentos. Dividiam-se os cidadãos em
ativos (que tinham um limite mínimo de renda para votar) e passivos (que eram pobres e ficavam fora do
processo eleitoral).”
8
A jurisprudência como fonte do direito: a experiência anglo-americana. Revista de Direito Constitucional e Inter­
nacional, p. 284.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

à common law o papel de centro do sistema e de ordem jurídica comum a todos os


súditos ingleses.”
Nos Estados Unidos da América, por seu turno, a experiência do common law foi
deixada pelos colonizadores ingleses. Contudo, nesse país, ao lado dos precedentes
originários do common law, verificam-se alguns vestígios característicos do civil law,
como a existência de Constituição escrita9 e leis como fontes do Direito.
Sobre esse aspecto ímpar discorre Nobre Júnior:10
“O mais curioso dessa recepção está em que, ao contrário da Inglaterra, onde
ausente Constituição escrita, o Estado norte-americano, organizado sob a forma fede­
rativa desde 1789, perfilhou o princípio da separação de poderes em sua feição
clássica, declarando concernir ao Congresso, formado pelo Senado e a Câmara de
Representantes, todos os poderes de legislar constitucionalmente (art. I, Seção I). A res-
ponsabilidade dos juízes, portanto, seria interpretar a lei, produzida pelo Legislativo,
em vez de elaborá-la. Isso, todavia, não impediu que às decisões proferidas pelas
recursais federais ou estaduais, envolvendo a compreensão da norma legal, federal
ou estadual, fosse outorgado o caráter vinculativo, tal como se de lei se tratasse,
devendo ser adotadas pelas Cortes inferiores.”
Em que pese à normatização escrita, nos Estados Unidos há um respeito aos
precedentes. Distinguem-se dos países do civil law, pois nesses a força de um prece-
dente é aquilata pela lei, o que não ocorre no sistema norte-americano, sendo esta
a sua verve inglesa.
O respeito ao precedente é base do sistema jurídico de países que integram
a família do common law, como Inglaterra, Canadá, África do Sul, Austrália e os
Estados Unidos da América.

3  Noções sobre a regra do stare decisis


O stare decisis,11 como técnica de utilização dos precedentes, foi moldado na
Inglaterra e posteriormente levado aos Estados Unidos da América. A sua caracterís-
tica principal é dar força ao precedente, para que este tenha poder de vincular futura

9
Leciona Nogueira: “Assim, os Estados Unidos tinham, ao contrário da Inglaterra, uma Constituição escrita
(necessária para unir as treze colônias), um sistema de separação dos poderes — checks and balances — ins-
pirado nas lições de Montesquieu (evitava a concentração de poderes), representatividade popular (impedia a
taxação sem representação), um sistema federativo (cada Estado conservava uma parcela da autonomia), um
Presidente com mandato temporário (renovação de poder) e um Poder Judiciário com possibilidade de controlar
a constitucionalidade das leis (não adotam os EUA o princípio inglês da soberania parlamentar)” (Stare decisis
et non quieta movere: a vinculação aos precedentes no direito comparado e brasileiro, p. 143).
10
O direito processual brasileiro e o efeito vinculante das decisões dos Tribunais Superiores. Revista de Pro­
cesso, p. 62.
11
A expressão stare decisis (em latim: stare decisis et non quieta movere), significa algo como: “mantenha-se
a decisão e não altera o que está quieto” (NOGUEIRA. Gustavo Santana. Jurisprudência vinculante no direito
norte-americano e no direito brasileiro. Revista de Processo, p. 101).

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Marcos José Porto Soares

decisão. É por razões históricas que o sistema do common law se caracteriza pela
eleição do precedente como fonte primária, sendo a força vinculativa das decisões o
centro de formação do Direito.
Na Inglaterra, até meados do século XIX não havia propriamente uma regra
jurídica que obrigasse a vinculação ao precedente. Existia apenas uma tradição de
seguir as decisões da mesma Corte ou de Cortes hierarquicamente superiores. Foi
em um precedente judicial datado de 1861 que a Câmara dos Lordes arraigou-se do
poder de manter imutáveis suas próprias decisões.
Após a 2ª Guerra Mundial, estabeleceu-se na Inglaterra um debate sobre a
conveniência de manter a regra do stare decisis com toda a sua rigidez e em todas
as Cortes e instâncias. Em 1966, a Câmara dos Lordes anunciou em um documento
chamado Practice Statement que poderia superar os seus próprios precedentes, sub-
jacente a uma técnica apropriada, que se verá mais adiante.
No common law a atuação do juiz se limita a decisões anteriormente proferidas.
Só que não é toda e qualquer decisão que se consubstanciará em precedente. Cada
ordenamento jurídico delineia certos requisitos para tal configuração, mas em todos há
um ponto em comum: a semelhança entre a matéria já julgada e aquela que ainda será.
Tradicionalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra a técnica dos precedentes,
bem como as nuanças e princípios extraídos dos casos com força vinculante, são
estu­dados aprofundadamente nas faculdades, sendo imprescindível este conheci-
mento para a prática da advocacia e atuação judicial.
Interessante ressaltar que a autoridade dos precedentes só foi possível a partir
da criação dos Reports: espécie de catálogo das decisões judiciais. Antes disso,
diante da impossibilidade das decisões chegarem ao conhecimento dos magistrados
não se podia falar em respeito aos precedentes.12
Os precedentes consistem em julgados que servirão de referência a futuras
decisões judiciais.
Sobre o conceito de precedente elevando-se a importante característica de ser-
viência paradigmática a composição de futuras decisões, destacam-se as palavras
de Marinoni:13
“Seria possível pensar que toda decisão judicial é um precedente. Contudo,
ambos não confundem, só havendo sentido falar de precedente quando se tem uma
decisão dotada de determinadas características, basicamente a potencialidade de
se firmar como paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados.”
Cabe dizer que os precedentes podem ser classificados em vinculantes ou
persuasivos.

12
NOGUEIRA. Stare decisis et non quieta movere: a vinculação aos precedentes no direito comparado e brasileiro,
p. 113. Atualmente, os precedentes são registrados em livros denominados de Years Book.
13
Precedentes obrigatórios, p. 215.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

Os primeiros são aqueles que detêm maior importância para a formação do


Direito no sistema do common law; são aqueles que têm aptidão persuasiva e força
para vincular decisões futuras. Os persuasivos não têm a força daqueles, servem
apenas como linha de argumentação e não de vinculação.
A vinculação do precedente é a característica que o eleva a categoria de fonte
do Direito. Para que um precedente seja vinculante, na common law, em regra, deverá
ter uma força vertical, ou seja, deverá ser emanado por uma corte hierarquicamente
superior e da mesma jurisdição daquele órgão julgador que o utilizará.
Por exemplo, explana Carpena que o juiz norte-americano “está vinculado aos
precedentes da Corte onde se situar a sua jurisdição, bem como da Suprema Corte,
não tendo, todavia, de obedecer a precedentes de tribunais outros, ainda que se
situem dentro dos Estados Unidos.”14
Sobre a importância da força vertical do precedente, Soares (2000), citado por
Carpena,15 leciona que:
“A autoridade (authority), ou melhor dito, a força de impor-se a futuros casos
dos cases laws, segundo a doutrina, pode ser dividida em duas classes: a) persua­
sive, em geral de decisões de cortes de jurisdição paralela (mesmas jurídicas de
outros Estados) ou de votos vencidos ou minoritários da mesma corte ou de cortes
superiores, e a de determinados assuntos [...]; b) binding authority, as decisões das
cortes superiores da mesma jurisdição ou as decisões da mesma corte.”
Observa-se que, além da prevalência do entendimento de uma corte superior, há
de se ter em mente que outros elementos se fazem necessários para a caracterização
da vinculação dos precedentes: a) a não superação do precedente,16 e b) identidade
entre as matérias.17
A não superação do precedente se contrapõe exatamente a sua derrogação; em
outras palavras, exige-se para que um precedente tenha força vinculante que ele não
tenha sido superado (que não tenha sido objeto de overruling — fenômeno que mais
adiante será analisado).
Por sua vez, o enfoque sobre a identidade entre as matérias para a aplicação de
um precedente tem como prisma o caso concreto anteriormente julgado, donde deverá
extrair-se um núcleo irradiador da razão que levou o julgador decidir daquele modo
específico. Para a extração desse núcleo, deste centro fundamental, é imprescindível
que se adentre no caso concreto.

14
CARPENA. Os poderes do juiz no common law. Revista de Processo, p. 195.
15
CARPENA. Os poderes do juiz no common law. Revista de Processo, p. 195.
16
Mattei (1988, p. 3 apud CAPERNA. Os poderes do juiz no common law. Revista de Processo, p. 195) elenca
quatro requisitos para que haja um precedente vinculante: a) identidade de fato; b) que já tenha sido adotado
em Corte da mesma jurisdição; c) não tenha sido modificado ou revisto; d) mesma matéria jurídica.
17
Escrevendo sobre o tema, Lima (2012) registrou que: “O precedente só terá força vinculante se houver
identidade com base nos fatos ou nas questões de direito suscitadas (binding ou leading precedents), caso
contrário servirá apenas de elemento persuasivo (persuasive precedents).”

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Marcos José Porto Soares

Por ora, importa enfatizar que do precedente não se emana uma regra abstrata:
este será sempre dotado de concretude por estar ligado a um caso específico levado
a julgamento. Em face da importância do caso concreto, é mister, na técnica de ope-
ração de um precedente, percorrer os fatos e os pontos discutidos em juízo, o que
não é tarefa simples.
Assim, vislumbrados os requisitos que elevam ao precedente a força vinculante,
partirá o magistrado para sua aplicação.
Deve-se ter em mente que o precedente será o ponto de partida da aplicação do
direito ao caso concreto, ficando a critério do julgador, elevado a certo subjetivismo,
decidir de que forma ele será enquadrado a questão a ser julgada.
O jurista Re (1990 apud Caperna18) com clareza aponta este sentido:
“É preciso compreender que o caso decidido, isto é, o precedente, é quase
universalmente tratado como apenas um ponto de partida. Diz-se que o caso decidido
estabelece um princípio, e ele é na verdade um principium, um começo, na verdadeira
acepção etimológica da palavra. Um princípio é uma suposição que não põe obstáculo
a maiores indagações. Como ponto de partida, o juiz, no sistema do common law,
afirma a pertinência de um princípio extraído do precedente considerado pertinente.
Ele, depois, trata de aplicá-la moldando e adaptando aquele princípio de forma a
alcançar a realidade da decisão ao caso concreto que tem diante de si. O processo
de aplicação, quer resulte numa expansão ou numa restrição do princípio, é mais do
que apenas um verniz; representa a contribuição do juiz para o desenvolvimento e
evolução do direito.”
Importante observar que foi baseado na cultura em que se sustenta o respeito
aos costumes e ao tradicionalismo, e, num prisma jurídico, a busca pela igualdade e a
segurança jurídica, que os países do common law adotaram o precedente como norte.
Não há razão maior para a adoção da regra do stare decisis pelos países do common
law que a necessidade de oferecer mesma resposta judicial a iguais situações.
Assinala Porto:19
“a) Na mesma jurisdição, o direito deve dar a mesma resposta para as mesmas
questões legais. Para desenvolver o direito uniformemente e através do sistema judicial,
as Cortes devem respeitar as resoluções hierarquicamente superiores. Trata-se, pois, do
prestígio ao valor ‘segurança jurídica’; b) Em segundo lugar, justiça imparcial e previsível
significa que casos semelhantes serão decididos da mesma forma, independentemente
das partes envolvidas, numa homenagem ao princípio da isonomia; c) Em terceiro lugar,
se na prática fosse de outra forma, isto é, não fossem as decisões judiciais previsíveis, o
planejamento nas demandas iniciais seria de difícil concepção; d) Em quarto lugar, stare

18
CARPENA. Os poderes do juiz no common law. Revista de Processo, p. 195.
19
PORTO. Civil Law e Common Law: precedente vinculante: estudo em homenagem ao Professor Egas Dirceu
Moniz de Aragão.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

decisis representa opiniões razoáveis, consistentes e impessoais, a qual incrementa a


credibilidade do poder judicante junto à sociedade; e) Em quinto lugar, além de servir para
unificar o direito, serve para estreitar a imparcialidade e previsibilidade da justiça, facili-
tando o planejamento dos particulares, em face do padrão prefixado de comportamento
judicial. Em resumo, a existência da doutrina da stare decisis acredita implementar — de
modo claro — qualidade e segurança na prestação do serviço justiça e, por decorrência,
melhorar o convívio social.”
Porquanto fica claro que a aplicação da regra do stare decisis apresenta van-
tagem ao jurisdicionado, pois conflitos iguais serão julgados da mesma forma. Este
aspecto traz a certeza de que o Direito será aplicado uniformemente, e não aleatoria-
mente, primando-se pela igualdade.
Esses pontos são bem colocados por Nobre Júnior,20 que observa:
“O sistema do stare decisis, não se pode deixar de notar, produz valiosos resul­
tados em rol dos jurisdicionados. Em primeiro lugar, a utilização dos precedentes
implica assegurar a concretização do ideal de certeza do direito, de maneira que se
pode antever, dadas as particularidades dos litígios, qual a solução a ser adotada
pelo Judiciário. Isso homenageia um dos princípios mais caros ao Constituinte, quando
da estruturação do sistema jurídico nacional, qual seja o da segurança jurídica.
Noutra vertente, o efeito vinculante responde, perante a sociedade de massa,
onde um só comportamento poderá afetar a esfera subjetiva de inúmeras pessoas, à
exigência de se assegurar a igualdade de tratamento em hipóteses iguais.
A isonomia, é bom que se diga, constitui meta primordial de qualquer Estado
que se organize sob as vestes democráticas, sem contar que se cuida de modelo de
justiça aspirado desde as origens mais remotas da civilização.”
Cabe notar que em uma sociedade de massa que hoje se vive, e neste mundo
multiforme, complexo21 em forma de rizomas,22 no qual os ramos da ciência se entre-
cruzam, torna-se cada vez mais difícil a lei por si só de forma abstrata garantir uma
adequada tutela aos jurisdicionados.
Cada caso levado ao Judiciário apresenta uma teia de complexidade, cujos deta-
lhes podem despontar centros fomentadores de atenção, não previstos pelo legisla-
dor, mas que poderão muito bem ser pinçados pelo magistrado para que deles se
extraiam elementos moldadores de uma decisão mais justa. E, o mais importante,
estes pontos poderão ser observados em outros casos semelhantes, e da mesma
forma que levados outrora em consideração pelo julgador, mostrar-se-ão aptos a ser-
vir como precedente ao julgador de outro caso, desde que apresente os mesmos

20
O direito processual brasileiro e o efeito vinculante das decisões dos Tribunais Superiores. Revista de Pro­
cesso, p. 64.
21
MORIN, 2004.
22
HARDT; NEGRI. Multidão: guerra e democracia na era do Império.

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Marcos José Porto Soares

aspectos relevantes. A vantagem é que muitas vezes estes aspectos relevantes são
vistos pelo magistrado e não pelo legislador.
Sobre a complexidade das relações e a importância da aplicação dos prece-
dentes na sociedade atual para a efetivação da justiça, mostram-se importantes as
palavras de Taruffo:23
“Os precedentes poderiam operar como as estruturas dissipadoras das quais se
fala nas teorias da complexidade, ou seja, como momentos de formação de áreas de
ordem dentro da desordem do fluir do caos da jurisprudência. Eles, de fato, poderiam
constituir importantes fatores de racionalização, de uniformidade, pois, flexível, de
previsibilidade e de igualdade de tratamento na incontrolável quantidade e variedade
de casos que são decididos pelas cortes. Para que isso aconteça, todavia, é necessá-
rio que eles não sejam, na vez deles, um elemento de desordem e de variação causal
legada à especificidade dos casos singulares concretos: é necessário, portanto, que
se tratem de precedentes em sentido próprio e, por isso, que eles apresentem os
caracteres distintivos de ‘raridade’, autoridade e universalidade em função dos quais
eles possam emergir do caos indistinto da praxe judiciária.”
Por outro lado, a complexidade advinda das relações humanas traz a certeza
de que jamais, um caso, um problema, um conflito entre pessoas será o mesmo
que outro. Cada caso traz nuanças próprias não repetíveis. Diante disso, no campo
dos precedentes, não será todo o teor de uma decisão antes tomada que servirá de
parâmetro vinculativo a futura decisão de caso semelhante. Vai importar, e muito, a
identificação do centro irradiador da norma concreta utilizada num julgamento.
Dessa argumentação, sobressai conclusão importantíssima, dentro da opera-
cionalização da regra do stare decisis: não é todo o conteúdo do julgado que tem
força vinculativa. Somente parte da decisão terá esta força. Esta parte é denominada
de ratio decidendi. O reconhecimento e identificação da ratio decidendi é a principal
tarefa para a adequada aplicação da técnica dos precedentes.
Diante disso, passa-se ao estudo da ratio decidendi.

4 A ratio decidendi


4.1  Conceito e delimitação da ratio decidendi
A existência de um precedente por si só não é fato que infirme sua força vin-
culativa sobre decisão posterior. Como visto, não são vinculantes todas as decisões
proferidas nos países da família common law. E mesmo quando uma decisão assim o
é, somente parte dela possui esta aptidão vinculativa.24 Esta parte cuja identificação
é de suma importância é a ratio decidendi.

23
Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, p. 139.
24
Goron (A jurisprudência como fonte do direito: a experiência anglo-americana. Revista de Direito Constitucional
e Internacional, p. 284) afirma que: “Característica da ratio decidendi como regra de direito da common law

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

“A existência da regra stare decisis e o fato de que a mesma vincula juízes


anglo-saxônicos aos precedentes com força obrigatória, em contraste com autoridade
moral da jurisprudência romano-germânica, não significa que todas as decisões da
common law sejam vinculantes nem que todas as partes da decisão obriguem”.25
Segundo Deflorian apud Goron,26 a ratio decidendi consiste no princípio de direito
com base no qual o caso é decidido. Nas palavras de Tucci,27 a ratio decidendi “cons-
tituiu a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto”.
Nas palavras de Anjos:28 “A ratio decidendi é o princípio legal estabelecido sobre
os fatos da causa que o juiz considera necessário para o seu julgamento, ou ainda, a
essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto”.
A ratio decidendi envolve as questões levantadas no processo que foram funda-
mentais para a formação da decisão judicial. Em outras letras, a ratio decidendi con-
substancia os pontos que levaram o julgador a decidir o caso fático daquele modo.
Assinala Tucci:29
“Para a correta inferência da ratio decidendi, propõe-se uma operação mental,
mediante a qual, invertendo-se o teor do núcleo decisório, indaga-se se a conclusão
permaneceria a mesma, se o juiz tivesse acolhido a regra invertida. Se a decisão
ficar mantida, então a tese originária não pode ser considerada ratio decidendi; caso
contrário, a resposta será positiva.”
Importante frisar que os assuntos discutidos que não forem fundamentais para
a decisão, ou seja, aqueles não tão importantes para a formulação da regra da sen-
tença, são denominados de obter dictum ou obter dicta.
O obter dictum engloba as matérias argumentadas e decididas no curso do
processo de maneira periférica. Nele não se instala o que foi decisivo para a solução
da questão posta em juízo. O obter dictum é considerado quando muito elemento
persuasivo e confirmador da decisão proferida, mas não o ponto que a fez existir.
Explica Garapon e Papapoulos:30
“Somente o suporte central da decisão — designado pelo nome de ratio deci-
dendi — tem realmente autoridade. As observações incidentes do juiz, as motivações

é sua natureza necessariamente mais concreta do que a regra do Direito romano-germânico. Aos olhos da
common law as regras abstratas do Direito continental não se parecem com verdadeiras regras jurídicas, mas
com exortações morais à consciência do julgador. Na ótica de um jurista inglês ou mesmo norte-americano, as
regras jurídicas típicas do Direito Continental, significativamente mais abertas à discricionariedade do julgador,
deixam muito espaço à arbitrariedade e ameaçam perigosamente a sua segurança jurídica.”
25
A jurisprudência como fonte do direito: a experiência anglo-americana. Revista de Direito Constitucional e Inter­
nacional, p. 284.
26
A jurisprudência como fonte do direito: a experiência anglo-americana. Revista de Direito Constitucional e Inter­
nacional, p. 284.
27
Precedente judicial como fonte do direito, p. 175.
28
A vigência aplicativa dos regimes jurisprudenciais e a regra da coisa julgada. Revista de Processo, p. 160.
29
Precedente judicial como fonte do direito, p. 177.
30
Julgar nos Estados Unidos e na França: cultura jurídica francesa e common law e uma perspectiva comparada,
p. 34.

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Marcos José Porto Soares

pedagógicas da decisão — o obter dictum —, assim como os argumentos dos juízes


cuja opinião não prevaleceu — opinião dissidente — não engajam as jurisdições
subordinadas mas têm um valor de persuasão importante.”
Saber a distinção entre a ratio decidendi e o obter dictum, por ser a ratio decidendi
a única parte vinculante do precedente, é deveras importante para a aplicação da regra
do stare decisis.31
Nogueira32 assinala:
“Dizer que um precedente vincula, na verdade é dizer pouco. Um precedente
pode ter páginas e mais páginas e muito pouco do seu conteúdo pode vincular os
julgadores em casos futuros. Só se pode falar em adesão aos precedentes a partir
do momento em que se separam duas partes fundamentais de uma decisão judicial:
a ratio decidendi (literalmente, razões de decidir) e a obter dictum (literalmente, dito
para morrer).”
A identificação da ratio decidendi de uma decisão judicial não é tarefa muito
simples. Para encontrar a parte fundamental, o núcleo, o motivo determinante da
decisão, exige-se sensibilidade aliada a uma técnica.
Primeiro passo a sua identificação é que a ratio decidendi, ao contrário da coisa
julgada, não se encontra no dispositivo da sentença ou acórdão, mas sim na sua
motivação.
Esta linha de observação é bem colocada por Santos:33
“Bem se pode notar que o efeito vinculante, diferentemente da coisa julgada,
leva em consideração os fundamentos ou os motivos determinantes da decisão (ratio
decidendi), e não a sua parte dispositiva. A grande diferença, na prática, é que, uma
vez vinculantes os fundamentos da decisão, os outros Tribunais terão de assumir como
verdadeira a tese jurídica esposada, o que implica dizer que, em havendo repetição da
matéria, os Tribunais deverão decidi-las nos moldes da decisão da Corte Maior, con-
siderando apenas o seu núcleo duro, composto pelos fundamentos determinantes.”
Para que uma parte do julgado seja considerada a ratio decidendi, além de estar
situada na motivação, haverá de consubstanciar-se no ponto determinante para a
decisão. A ratio decidendi, portanto, localiza-se na parte da motivação que determina
a decisão.
Em que pese avanço teórico-científico quanto à localização da ratio decidendi
de um precedente, a sua identificação carece de grande atenção do operador jurídico
em razão das nuanças e complexidade do caso julgado: não existindo um método
absoluto de identificação.

31
CROSS; HARRIS, 2004 apud NOGUEIRA. Stare decisis et non quieta movere: a vinculação aos precedentes no
direito comparado e brasileiro, p. 168.
32
Stare decisis et non quieta movere: a vinculação aos precedentes no direito comparado e brasileiro, p. 168.
33
Teoria dos capítulos de sentença, à luz das técnicas de jurisdição constitucional. Revista de Processo, p. 43.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

Nesse aspecto, afirmam Souza34 e Anjos35 que as diversas teorias criadas pela
doutrina a fim de certificar um método preciso de identificação da ratio decidendi são
conflitantes entre si, e nenhuma delas por si só é capaz de precisar absolutamente
o instituto da ratio decidendi.36

4.2  Métodos de identificação da ratio decidendi


A identificação da ratio decidendi é atividade a ser empregada pelo julgador que
utilizará um precedente para determinar a sua decisão. Um segundo julgador é quem
deverá extrair a ratio que levou a formação de uma decisão anterior para aplicá-la
ao caso que por ele será julgado. É neste sentido que disserta Souza:37 “De fato,
é o juiz do caso em julgamento que tem a incumbência de interpretar o precedente
em cotejo com o caso que julga, para extrair, se for o caso, a proposição que deve
obrigatoriamente seguir”.
Em que pese não existir uma teoria por si só eficiente para a determinação da
ratio decidendi em um caso — sendo esta uma das questões mais controvertidas
da doutrina do stare decisis —, deveras importante apontar os métodos comumente
aplicados no sistema da common law. São eles: a) Teoria de Wambaugh; b) Teoria de
Oliphant; c) Teoria de Goodhart.

4.2.1  Teoria de Wambaugh


Esta teoria tem como base a assertiva de que a ratio decidendi é a proposição
ou a regra sem a qual o caso seria decidido de forma diversa. Sem ela, portanto,
aquele julgamento não teria ocorrido daquela forma, e a decisão teria sido outra.
Sobre ela ensina Souza:38
“Tomando por base o raciocínio aristotélico, a ratio decidendi de um caso é a
premissa maior de um silogismo necessária, cuja premissa menor são os fatos do
caso, e a conclusão, a decisão em si.

34
Do precedente judicial à súmula vinculante, p. 125.
35
“Deve-se salientar que não há método único de determinar a regra relativamente à qual um dado precedente
dotado de autoridade funcional como autoridade; segundo, não há uma formulação unicamente correta de
qualquer regra que deva ser extraída dos casos” (A vigência aplicativa dos regimes jurisprudenciais e a regra
da coisa julgada. Revista de Processo, p. 160).
36
Curiosamente, como preleciona Crownie, Bradney e Burton (2007, p. 95) apud Nogueira (Stare decisis et non
quieta movere: a vinculação aos precedentes no direito comparado e brasileiro, p. 169): “A proliferação de
explicações conflitantes é, por si só, uma estranha característica da tradicional história do raciocínio jurídico
inglês. Se precedente tem a ver com busca por certeza e consistência, e se o uso das rationes é o caminho
para o qual o sistema de precedentes fornece o real rigor da vinculação, através da comparação, parece pro-
blemático que nem os acadêmicos e nem os juízes consigam fornecer uma explicação clara sobre como as
rationes devem ser encontradas”.
37
Do precedente judicial à súmula vinculante, p. 134.
38
Do precedente judicial à súmula vinculante, p. 126, 127.

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Marcos José Porto Soares

Para se saber se a premissa maior constante de um caso anteriormente julgado


era necessária, cumpre verificar, através de um teste, se para o tribunal chegar ao
veredicto teve de aplicar essa regra jurídica. Se uma hipotética mudança no conteúdo
dessa premissa ou regra implicar uma mudança de decisão, ela era necessária e
tem-se, realmente, a ratio decidendi do caso. Se, ao invés, a mudança na premissa
não implicar alteração da decisão, constata-se a desnecessidade e tem-se uma mera
dictum ou obter dictum.”
Ramires39 aponta com precisão que o teste de Wambaugh indica constituir a
ratio decidendi a regra geral sem a qual o caso teria sido decidido de outra maneira.

4.2.2  Teoria de Oliphant


Embasado na escola do realismo jurídico americano ou funcionalismo jurídico,
Oliphant40 partiu do princípio de que a ratio decidendi não possui correlação com o
trabalho intelectual do magistrado. Segundo ele, a decisão judicial provém de um único
estímulo: que são os fatos; e a ratio decidendi seria a combinação desta atividade de
estímulo e resposta (fatos e decisão).
Esta teoria é bastante criticada, sobretudo por Goodhart41 (1953), o qual rebate
dizendo que um mesmo grupo de fatos pode ser interpretado de maneira bem diferente
por duas pessoas distintas, sendo indubitável que o juiz chega a uma conclusão a
partir da sua visão, leitura, e ótica sobre os fatos.

4.2.3  Teoria de Goodhart


Para Goodhart, inevitavelmente a identificação da ratio decidendi deve levar em
conta os fatos tidos como fundamentais pelo juiz formador do precedente, bem como
a decisão baseada nestes fatos.
Explica ainda Souza42 que segundo a visão de Goodhart o primeiro passo para
localizar a ratio é enfocar os fatos tidos como fundamentais para a decisão, pelo
prisma subjetivo do julgador do precedente. Assinala que o precursor desta teoria
criou algumas regras para se identificar os fatos fundamentais, dentre elas desta-
cam-se: a) só serão considerados fatos fundamentais aqueles assim tratados pelo
juiz de forma explícita ou implícita; b) fatos hipotéticos não são fundamentais; c) fatos
sobre pessoa, tempo, lugar, espécie e quantia não são fundamentais, a não ser que
tenham sido assim expressamente considerados.

39
Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro, p. 69.
40
Return to stare decisis. 14 American Bar Association Journal – ABAJ, p. 71-77.
41
Apud SOUZA. Do precedente judicial à súmula vinculante, p. 129.
42
Do precedente judicial à súmula vinculante, p. 130.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

Estabelecidos os fatos fundamentais, para se chegar a ratio decidendi faltará


apenas identificar a decisão do magistrado neles baseada. A ratio decidendi pela
teoria de Goodhart (1953) é encontrada “ao se levarem em conta a) os fatos tratados
pelo juiz como fundamentais, e b) sua decisão como baseada neles”.43
Tudo leva a crer possuir a teoria de Goodhart a virtude de condensar elementos
mais viáveis à aplicabilidade prática do que as demais teorias, além de estar mais
concatenada com o sistema do stare decisis.
Esta linha é adotada no Brasil por Marinoni,44 que preleciona:
“É preciso esclarecer em que termos se deve ter a decisão para a qual a ratio
decidendi constitui passo necessário. Importa perceber que o passo necessário, ou
a premissa ou as razões no curso do raciocínio decisório não diz respeito à ‘decisão
do caso’ vista em abstrato, como sua mera resolução ou algo que, em tese, deve
ocorrer para que o processo chegue ao fim. O passo necessário não se refere a
uma decisão qualquer, mas à específica decisão tomada pelo juiz ou pela Corte em
determinado caso.”
Não se pode afastar a importância dos fatos levados em consideração pelo
magis­trado na tarefa de identificação da ratio decidendi. Como visto, a identidade dos
fatos é o primeiro pressuposto para a aplicação da regra do stare decisis. E impos­
sível imaginar a movimentação e aplicação do direito sem que existam fatos.
Ramires,45 trazendo a visão de Streck (2006), bem como de Gadamer (1997,
p. 439), segundo a qual a exigência hermenêutica é “compreender o que diz o texto
a partir da situação concreta na qual foi produzido”, assinala como curial a imersão
nos fatos concretos, tanto do precedente, como do caso a ser julgado, para em se-
guida fazer a incidência do texto, que deixará de ser texto para vigorar como norma.46
Afirma Ramires:
“Assim, ainda que tenha sido permeável à subjetividade dos métodos, a tradi-
ção da common law nunca cedeu à tentação de esquecer os fatos ou de escondê-los
sob as conceituações jurídicas contidas nas decisões judiciais ou nas opinions of the
court.47 Ao contrário, para o juiz daquele sistema decidir invocando um precedente, é

43
Do precedente judicial à súmula vinculante, p. 133.
44
Precedentes obrigatórios, p. 281.
45
Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro, p. 70-71.
46
“(O texto) somente estará completo quando o sentido que ele expressa é produzido pelo intérprete, como nova
forma de expressão. Assim, o sentido expressado pelo texto já é algo novo, diferente do texto. É a norma. A
interpretação do Direito faz conexão entre o aspecto geral do texto e a sua aplicação particular: ou seja, opera
sua inserção no mundo da vida. As normas resultam sempre da interpretação. E a ordem jurídica, em seu
valor histórico concreto, é um conjunto de interpretações, ou seja, um conjunto de normas. O conjunto das
disposições (textos, enunciados) é uma ordem jurídica apenas potencialmente, é um conjunto de possibilidades,
um conjunto de normas potenciais. O significado (ou seja, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa”
(STRECK, 2006 apud RAMIRES. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro).
47
Ou seja: texto da decisão que decidiu um precedente (RAMIRES. Crítica à aplicação de precedentes no direito
brasileiro, p. 71).

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imprescindível que antes tome conhecimento dos fatos do caso presente e do caso
que deu origem ao julgado pretérito, e só após compará-los e distingui-los poderá
aplicar a regra.”
E, deste modo, cabe aqui seguir com a seguinte indagação. Através de qual
meio poder-se-á verificar a identidade entre os fatos, premissa principal para a apli-
cação de um precedente?
Em resposta, deve ser colocado primeiramente que esta identidade não pode e
nem deve ser absoluta, senão estar-se-ia julgando o mesmo caso duas vezes, o que
encontraria óbice através do instituto da coisa julgada. Segundo, caberá ao operador
a tarefa de encontrar elementos que ensejam a colocação dos fatos sob a égide de
uma mesma categoria.
Este é o entendimento de Souza,48 embasado na teoria de Llewllyn (1930) segundo
o qual:
“Na verdade, há que atribuir um nível correto ou apropriado de generalidade ao
fato constante do precedente. Ele há de ser considerado, baseado em critérios de genera-
lidade apropriados, como representativo de uma categoria abstrata de fatos. Ao fato
é atribuída significância não por si só, mas como membro de uma categoria. [...]
O critério para o correto grau de extensão dado à generalização — é importante
que se repita — deve ter por parâmetro e limite a constatação de não haver razão jurí-
dica que leve a distinção entre o fato concreto do precedente e fato concreto do caso
em julgamento, pertencendo ambos, na situação dada, à mesma categoria de fatos.”
Nesta fase, portanto, caberá ao jurista o aguçamento da sua sensibilidade e
reflexão, a fim de verificar quais elementos de cada fato saltam como pontos funda-
dores da decisão, e a possibilidade de serem enquadrados numa mesma categoria,
sobre a qual deverá recair as mesmas normas, sendo, destarte, passíveis de uma
mesma resposta jurídica.
Vale apontar que Dworkin (1991) citado por Ramires49 criou a expressão “força
gravitacional” (gravitational force) para descrever a extensão da influência de um pre-
cedente. Sublinha Ramires que a “tarefa que se põe à frente dos intérpretes, então,
é a de verificar em cada caso presente a sua adequabilidade a uma decisão pretérita,
e a sua inserção no ‘campo gravitacional’ de um precedente”.
Este enquadramento dos fatos numa mesma categoria (verificação da extensão
do campo gravitacional), na lição de Ramires,50 deve ser primado pelo princípio de
justiça e não por argumento político. E faz interessante distinção entre princípio de jus­
tiça e argumento político, afirmando que neste há possibilidade de tratamento não
isonômico, dada a discricionariedade. Ao passo que o princípio de justiça, que baliza

48
Do precedente judicial à súmula vinculante, p. 136.
49
Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro, p. 74.
50
Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro, p. 74-76.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

a aplicação dos precedentes, exige o tratamento de casos semelhantes de maneira


semelhante.51

4.3  Aplicações da ratio decidendi


O common law oferece basicamente três formas de aplicação da ratio decidendi
dos precedentes: a extensiva, a restritiva e a analógica.
“Pelo método extensivo o juiz está habilitado a ampliar o campo de abrangência
da regra jurisprudencial. O método restritivo é usado em regra para evitar a aplicação
de precedentes injustos ou incômodos. A aplicação analógica, por fim, tem lugar nos
chamados cases of first impression, quando não existe um precedente que possa ser
diretamente aplicado e o juiz necessita criar a solução adequada ao caso concreto”.52
A forma extensiva se verifica diante de uma situação em que o julgador amplia
os efeitos de um precedente, dá-lhe uma nova zona limítrofe diante das peculiaridades
relevantes do novo caso concreto em julgamento.
Por sua vez, a forma restritiva de aplicação da ratio decidendi se evidencia de
duas formas. A primeira: o julgador deixará de aplicar o precedente por entender que
a ratio decidendi não atende mais o direito, estando em descompasso com o valor
da justiça — técnica chamada de overrulling. A segunda: chamada de distinguishing,
ocorre diante da evidência que as peculiaridades fundamentais do caso concreto a
ser julgado são de tal maneira relevantes que a ratio decidendi do precedente ao seu
julgamento é inservível, cabendo ao aplicador do direito delinear esta diferença.53
E por fim, aplicar-se-á analogicamente a ratio decidendi de um precedente dian-
te de uma situação nova levada ao Judiciário, a qual não se encaixa em qualquer

51
“Assim, a força do precedente deriva do princípio de justiça de tratar casos semelhantes de maneira seme­
lhante (‘the fairness of treating like cases alike’), preocupação que não há no campo da política. Se a
Administração Pública pretender estimular o crescimento econômico investido em construção de estradas, os
construtores de casas não poderão invocar um direito de receberem os mesmos subsídios, porque a decisão
é baseada em argumentos de política. Porém, o mesmo Estado que condena um fabricante de automóveis
a indenizar uma cliente que sofreu lesões em razão de um defeito no carro deve, ao menos, dizer por que
razão deixa de condenar um empreiteiro que provocou dano econômico através do trabalho defeituoso de seus
empre­gados” (RAMIRES. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro, p. 75).
52
GORON. A jurisprudência como fonte do direito: a experiência anglo-americana. Revista de Direito Constitucional
e Internacional, p. 284.
53
Goron diz que: “O juiz inglês tem grande dificuldade em negar a autoridade de um precedente com força
vin­culante. Em muitos casos quando a solução contida no precedente lhe parece injusta ou inadequada, o
juiz da common law prefere se utilizar da técnica conhecida como distinção, às vezes sob o preço de criar
delimitações bastante artificiais. Esse método — a distinguishing — apresenta a vantagem essencial de não
demonstrar incompatibilidade técnica com a regra do stare decisis, ainda que, muitas vezes, como visto, seja
tênue a linha que separa a distinção da superação pura e simples do precedente.
Embora a doutrina do precedente nunca tenha tido nos Estados Unidos o mesmo prestígio de que desfruta na
Inglaterra (em parte isso decorre do excessivo número de juízes e jurisdição existentes nos Estados Unidos, di-
ficultando uma melhor sistematização dos precedentes, em confronto com a estrutura relativamente simples do
Judiciário inglês), a regra stare decisis ainda é largamente aceita pela comunidade jurídica e amplamente praticada
pelo Judiciário norte-americano. Assim, não surpreende que a superação dos precedentes, ou overruling, embora
acessível às Cortes dos Estados Unidos, permaneça a ser pouco praticada naquele país” (A jurisprudência
como fonte do direito: a experiência anglo-americana. Revista de Direito Constitucional e Internacional, p. 284).

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categoria de fatos. São os chamados cases of first impression (casos de primeira


impressão). Nesta última hipótese, diante da primariedade da situação, caberá ao
julgador prestigiar pontos de precedentes parecidos a fim de formar a sua decisão.
As situações práticas mais relevantes estão inclusas na aplicação restritiva,
que envolvem as técnicas do overrulling e do distinguishing.

4.3.1  Distinguishing
O distinguishing é o meio mais comum de se afastar um precedente. Para a sua
utilização será necessário adentrar na ratio decidendi do precedente e vislumbrar que
os fatos fundamentais do primeiro julgamento não coincidem com os fatos fundamen-
tais daquele que será julgado. E assim, por não fazerem parte da mesma categoria,
não se torna obrigatória a mesma resposta judicial.
Nogueira54 leciona que o distinguishing “permite a desvinculação de um caso
concreto de um precedente aparentemente aplicável a ele”.
Na teoria do stare decisis é a técnica do distinguishing que faz o papel de apon-
tar as diferenças entre o caso em julgamento e aquele já julgado. Através dela são
analisadas as similitudes e diferenças entre os fatos do precedente e do caso que
está em julgamento.
No distinguishing o julgador faz a distinção de dois casos aparentemente seme­
lhantes, constatando que a substância dos fatos são fundamentalmente distintas
— não se coadunando a ratio decidendi de um com a do outro.55

4.3.2  Overrulling
O overrulling é o fenômeno de superação de um precedente. Através deste fenô-
meno o precedente deixa de ser vinculante. Cabe destacar que esta superação, não
significa que ele perderá a sua força persuasiva, podendo ser utilizado como dictum.56
Não se deve, todavia, perder de vista que a força dos precedentes serve exa-
tamente para manter a previsibilidade e a segurança jurídica, motes indispensáveis
para a paz social. Desse modo, é excepcional a superação de um precedente; para
que ocorra deverá haver uma exaustiva motivação.
“Na concepção de um investigador do civil law, pode-se dizer que os precedentes
do common law atuam como normas reguladoras das condutas sociais, e a negação

54
Jurisprudência vinculante no direito norte-americano e no direito brasileiro. Revista de Processo, p. 161.
55
Mcleod (1996) citado por Souza fornece exemplo apropriado de distinguishing. “Em Brigdes v. Hawkesworth
(1985) LJ 21 QB 75, a um consumidor foi reconhecido o Direito de guardar o dinheiro que ele encontrou no
chão de uma loja. Diferentemente, em South Staffordshire Company v. Sharwood (1896) 2 QB 44, a uma
pessoa que encontrou dois anéis de outro na lama do fundo de um reservatório de água não foi reconhecido
o direito de retê-los, porque o lugar em que os achou não estava aberto ao público” (SOUZA. Do precedente
judicial à súmula vinculante, p. 143).
56
As suas ideias poderão ser analisadas de forma complementar para a elaboração de um novo precedente.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

de aplicação desses precedentes a um determinado caso em que, a priori, seria uma


verdadeira negativa à previsibilidade e segurança jurídica, as quais se mostram impres-
cindíveis para garantir a desejada paz social”.57
Explana Carpena58 que na Inglaterra, ao contrário do que ocorre nos Estados
Unidos, em eventual revogação de precedente, por possuir em regra efeito ex tunc,
há uma resistência maior para a aplicação do overrulling. Soma-se ainda o fato de ser
o precedente fonte de direito e, logo, um instrumento de regulação social, e assim
a sua não incidência em determinado caso fático específico a que, em tese, seria
aplicável representa uma violação à base do próprio sistema.
Evidentemente que, por essas razões, no overruling, o esforço argumentativo
do juiz deve ser muito maior do que na situação em que meramente aplicaria o
precedente.
Mas, como afirma Anjos, nenhum regime jurisprudencial é estático.59
Isso ocorre vez que a ratio decidendi não é uma estrutura imóvel e definitiva, e
sim dinâmica e maleável.
Importa aqui a lição de Gadamer60 segundo a qual a interpretação torna-se dife-
rente assim quando se altera a tradição, porque “toda interpretação está obrigada a
entrar nos eixos da situação hermenêutica a que pertence”.
Esta abertura para uma visão dinâmica sobre a ratio decidendi, ou seja, para a
possibilidade de alteração de orientação interpretativa, não viola o dogma da igualdade.
Pois ainda na lição de Gadamer não é toda situação concreta que gera uma nova
espécie de decisão.
Nesta linha de raciocínio, Anjos61 explica que a interpretação deve se alinhar
com a “cadeia da tradição recebida”. A imposição de mudança de orientação juris-
prudencial só será legítima se houver uma alteração substancial da interpretação.

57
CARPENA. Os poderes do juiz no common law. Revista de Processo, p. 195.
58
Os poderes do juiz no common law. Revista de Processo, p. 195.
59
“De outro lado, os regimes jurisprudenciais existem na prática do direito, constituindo a legítima hermenêutica
do tribunal sobre o texto legal, da qual o destinatário da norma deve agir conforme o entendimento exposto (a
ratio decidendi também se dirige ao cidadão geral).
Porém, a instituição de um regime jurisprudencial é dotada de vigência aplicativa, a qual regula, até o tempo
em que for revisitada, o espectro da vida, o qual não pode ser desconstituído por decisão posterior. Nisso está
o fundamento de que a mudança de orientação jurisprudencial quanto ao regime a ser imposto aos destinatá-
rios apenas tem efeito ex nunc.
A coisa julgada, assim, não pode ser alterada ou desconstituída em razão de mudança do regime jurispruden-
cial, mesmo no ínterim do prazo da ação rescisória. Corrobora isso a Súmula 342 do STF, em que a tomada
de posição do magistrado frente a um dissídio jurisprudencial é protegida (vigência aplicativa, pois). O caso,
porém, comporta uma exceção.
Vez que a regra da coisa julgada se refere à segurança (decisão de mérito), ao Estado de Direito (competência)
e a proteção da legítima expectativa (confiança), a decisão que permanecer intocada pelo prazo de dois anos
é a mais legítima, dotada de vigência aplicativa não mais questionável” (ANJOS. A vigência aplicativa dos regi-
mes jurisprudenciais e a regra da coisa julgada. Revista de Processo, p. 160).
60
Verdade e método: traços, fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 578.
61
A vigência aplicativa dos regimes jurisprudenciais e a regra da coisa julgada. Revista de Processo, p. 160.

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Acrescenta ainda que a igualdade não é violada, pois “é um mito a identidade entre
causas”. Prescreve o nominado jurista que: “não se fere a igualdade quando o juiz
retira um caso do espectro da jurisprudência dominante (hipótese normativa dela),
por possuir uma nota diversa do tipo”. E arremata dizendo ainda que “o princípio da
igualdade não pode ser óbice para a possibilidade de nova interpretação dos tribu-
nais, sendo hermeneuticamente possível que se dê tratamento diverso conforme a
tradição e os fatos em causa sejam diversos”.
A lógica é que a imposição de uma prática imutável da teoria do stare decisis
poderia criar situações de injustiça e também impedir a natural evolução do direito.
Exatamente com base neste raciocínio, o mais tradicional país aplicador do
stare decisis se rendeu a possibilidade de superação de precedente, como a promul-
gação do Practice Statement, em 1966.
Sobre este importante marco histórico, destaca-se o trecho abaixo:
“Na Inglaterra, em 1966, foi editado o Practice Statemente, que concedeu auto­
rização para a House of Lords (Cada dos Lordes, a Suprema Corte inglesa) de não
aplicar o próprio precedente. O texto do Practice Statemente ressalta que ele não
prejudica a utilização dos precedentes, mas reconhece que ‘a adesão muito rígida
ao precedente pode conduzir à injustiça em um caso particular e também restringir a
evolução da lei’”.62
Nos Estados Unidos também há aplicação do overruling. Ensina Nogueira63 que
na Suprema Corte deste país a não adesão a um precedente ocorre quando “se trata
de interpretação de texto constitucional, que aliás é conhecido pela impressionante
concisão, o que dá uma maior margem de liberdade na sua interpretação, face a
existência de diversos conceitos jurídicos indeterminados”.
No prisma das Constituições escritas, que ao lado dos Estados Unidos se posi-
ciona o Brasil, com uma carta magna mais absolutamente detalhada que aquela, há
evidente espaço para mudança interpretativa ou mutação constitucional.
O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau (2003), citado por
Nogueira,64 aponta brilhantemente que:
“A Constituição é a ordem jurídica fundamental de uma sociedade em um deter-
minado momento histórico e, como ela é um dinamismo, é contemporânea à realidade.
Quem escreveu o texto da Constituição não é o mesmo que o interpreta/aplica, que
o concretiza. Por isso podemos dizer que em verdade não existe a Constituição do
Brasil de 1988. Pois o que realmente hoje existe, aqui e agora, é a Constituição do Brasil,
tal como hoje, aqui e agora, está sendo interpretada/aplicada.”
Forçoso concluir que overruling está inteiramente atrelado a uma mudança de
prisma pelo qual o homem enxerga os fatos — em busca de um valor maior: a justiça.

62
NOGUEIRA. Jurisprudência vinculante no direito norte-americano e no direito brasileiro. Revista de Processo, p. 161.
63
Jurisprudência vinculante no direito norte-americano e no direito brasileiro. Revista de Processo, p. 101.
64
Jurisprudência vinculante no direito norte-americano e no direito brasileiro. Revista de Processo, p. 101.

58 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 39-73, jan./mar. 2014

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

Quando um tribunal superior conclui que certo precedente, embora antes vinculante,
não pode mais ser utilizado, exsurge a possibilidade, através do overruling, de os
juízes deixarem de aplicar o precedente, agora ultrapassado, e criarem um novo.

5  Precedentes no Brasil
5.1  Considerações iniciais
Existem apontadas pela doutrina duas famílias de direito no mundo ocidental: a
do common law e a do civil law. Só que estas famílias estão cada vez mais próximas,
verificando-se cada vez mais uma intromissão de uma em outra. Não é totalmente
ousado dizer que um dia não muito distante serão uma só.
“A aproximação das duas famílias é fato concreto hoje. A Inglaterra, por exem-
plo, famosa pelo direito não escrito, tem um Código de Processo Civil (LGL 1973/5)
desde 2000, e o Brasil também está sentindo os efeitos dessa aproximação, princi-
palmente através da importação de institutos jurídicos norte-americanos. Afirma José
Carlos Barbosa Moreira que ‘é quase impensável que algum país, voluntariamente
ou não, permaneça alheio à imponente presença econômica, política, e cultural dos
Estados Unidos, seja qual for o juízo de valor que cada um de nós venha a formular
ao propósito”.65
Historicamente ainda existem pontos de distinção entre elas que devem ser
realçados a fim de lograr êxito em alcançar uma perspectiva técnica importante
na aplicação dos precedentes, sobretudo na família do civil law, da escola romana
germânica.
“Mostra-se absolutamente claro que, sob a ótica de divisão de sistemas jurídi-
cos mundiais, tem-se verificado uma separação realizada pela doutrina e pela acade-
mia, entre aquele de origem romano-germânica, que se denomina, em língua inglesa,
civil law, e outro, de origem anglo-saxã, chamado common law.
De fato, há uma tranquila convergência científica no sentido de se definirem
esses dois sistemas principais do mundo, contrapondo-os com base na forma como
elegem suas fontes primárias.
Em geral e em análise apertada, tem-se compreendido o civil law como um siste-
ma jurídico que tem por fonte primária, ostentando posição de relevância como fonte
de solução de conflitos sociais, a lei, vale dizer, a norma jurídica escrita, positivada;
já por common law tem-se entendido o sistema cujo elemento norteador, a base da
estrutura jurídica, são os casos julgados, isto é, as decisões proferidas, cujas solu-
ções empregadas se apresentam vinculantes, ou seja, têm de ser obrigatoriamente
observadas em julgamentos posteriores. [...]

65
Jurisprudência vinculante no direito norte-americano e no direito brasileiro. Revista de Processo, p. 101.

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Marcos José Porto Soares

O sistema do civil law, hoje, é empregado nos países de tradição romano-­


germânica, entre os quais aqui se destacam, a título meramente de exemplo, a
Alemanha, o Brasil, a Espanha, a França, a Itália e Portugal. Já o sistema do common
law não se limita a Inglaterra, sendo também empregado nos Estados Unidos (com
exceção do Estado da Louisiana, que é partidário da civil law), na Austrália, no
Canadá (com exceção de Quebec) e na Índia, além de outros países colonizados pela
Coroa Britânica”.66
Como já apontado neste trabalho, foi em razão da revolução francesa que mui-
tos países da Europa adotaram a lei como principal fonte de direito. Essa tendência
foi se espraiando, no decorrer da história, por vários países do mundo, sobretudo
em direção àqueles colonizados por Portugal, França e Espanha, entre eles o Brasil.
O sistema romano germânico pode ser identificado, como aquele que tem a lei
como o centro formador do direito. Foi disseminado pelo mundo através de um direito
positivado, e centrados em monumentos legislativos calcados em codificações.
Nobre Júnior67 destaca que, neste sistema pelo qual as normas escritas ocu-
pam posto de destaque, a Constituição está inserida “no ápice piramidal (posição
garantida pela rigidez de suas normas e pela existência de um controle de constitu-
cionalidade), os tratados, os códigos e os regulamentos constituem a base retora das
condutas individuais e da Administração”.
Cumpre observar que a inserção da lei no palco primaz da aplicação do direito
não inseriu o magistrado apenas ao ignóbil patamar de bouche de la loi. Não se pode
deixar de enxergar a criatividade dos julgadores deliberadamente permitida, sobretudo
no atual estágio do direito, em que cada vez mais se vê a importância dos princípios
e as denominadas cláusulas abertas, até mesmo pelo confeccionar das leis.
Essa abertura desferida aos juízes, possibilitando moldarem com criatividade
a aplicação do direito, muito se deu com a emanação constitucional de poder as
cortes superiores de vários países. Sendo que historicamente, mesmo em países
do sistema romano-germânico, como a Itália, já no século XVI, viu-se a aplicação da
teoria do stare decisis.
Há de se ter em vista que diante das ainda inevitáveis diferenças dos sistemas,
tanto em Portugal como no Brasil, foram utilizados, e ainda são, institutos seme-
lhantes e com os mesmos fins que os precedentes, mas que não são precedentes
no sentido estrito, uma vez que não levam em conta o caso concreto anteriormente
julgado, mas sim uma norma geral criada pelo Estado-Juiz para dirimir dúvidas de
julgamento baseadas em distintas interpretações da lei. Estes institutos no nosso
país, que são os antigos assentos, as atuais súmulas das cortes e as súmulas vincu-
lantes, como se verá a seguir, acabaram se misturando a outros, tais como aqueles

66
CARPENA. Os poderes do juiz no common law. Revista de Processo, p. 195.
67
NOBRE JÚNIOR. O direito processual brasileiro e o efeito vinculante das decisões dos Tribunais Superiores.
Revista de Processo, p. 64.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

previstos no artigo 285-A e 543-C do Código de Processo Civil, os quais tecnicamente


referem-se à aplicação de precedentes.

5.2  Percurso histórico


Insta observar que lá atrás, em 1512, em Portugal, foram instituídos os denomi-
nados assentos:68 atos normativos, firmados pelas Casas de Suplicação, com o pro-
pósito de clarear dúvidas de cunho jurídico surgidas nos casos a esta corte levados.
E como o Brasil era colônia de Portugal, estava sob a égide do direito português,
aqui também os assentos tiveram aplicação. Para tanto, no Rio de Janeiro como em
São Paulo, existiam os órgãos denominados Relações, os quais possuíam poder para
expedir os assentos.
As ordenações Filipinas, no limiar do século XVII, mantiveram a estrutura dos
assentos; todavia, suprimiu a competência, para a edição dessas orientações, das
Relações do Porto, do Rio de Janeiro e da Bahia, cabendo a sua expedição unicamente
pela Casa de Suplicação.
Posteriormente, com a fuga da família real para o Brasil, em 1808, voltou-se a
outorgar competência à Relação do Rio de Janeiro para proferir assentos. Depois de
proferidos, eram remetidas cópias deles aos chanceleres das demais Relações, a fim
de serem respeitados como leis. Com a proclamação da independência, os assentos
foram inseridos no artigo 163 da Constituição Imperial, cabendo a sua emissão pelo
Superior Tribunal de Justiça.
O fim dos assentos ocorreu no Brasil com a Constituição da República de 1891,
o que, no entanto, não impediu que os Estados, competentes para legislar proces-
sualmente, criassem a figura do prejulgado, tal como instituído no artigo 1.126 do
Código de Processo Civil e Comercial de São Paulo.
Transferida a competência para a União legislar em matéria processual, em
1939, o Código de Processo Civil dispunha método de unificar entendimento jurispru-
dencial, nos seguintes termos:
“A requerimento de qualquer dos seus juízes, a câmara, ou a turma julgadora,
poderá promover o pronunciamento prévio das câmaras reunidas sobre a interpre-
tação de qualquer norma jurídica, se reconhecer que sobre ela ocorre, ou poderá
ocorrer, divergência de interpretação entre câmaras ou turmas.”
Vigente a Constituição de 1946, o Supremo Tribunal Federal, sob a liderança
do Ministro Vitor Nunes Leal, com a emenda regimental de 28.08.1963, instituiu a

68
Nobre Júnior, sobre os assentos em Portugal, esclarece: “Consoante Antonio Menezes Cordeiro, os assentos,
a bem da verdade, consistiam em proposições gerais e abstratas, cuja natureza era representativa de verda-
deiras normas jurídicas em sentido material, tanto que foram suscetíveis, durante a sua existência, encerrada
com o Dec.-Lei nº 329-A, de 12.12.1995, de revogação por leis posteriores e de declaração de inconstitucio-
nalidade mediante deliberação do Tribunal Constitucional” (O direito processual brasileiro e o efeito vinculante
das decisões dos Tribunais Superiores. Revista de Processo, p. 64).

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Marcos José Porto Soares

súmula oficial de jurisprudência daquela corte. As conhecidas súmulas do Supremo


Tribunal Federal.
Em 1965, o atual Código Eleitoral instituiu o chamado “prejulgado eleitoral”,
o qual possuía natureza distinta daquele previsto na legislação civil então em vigor.
Dispõe seu artigo 263 que: “No julgamento de um mesmo pleito eleitoral, as deci-
sões anteriores sobre questões de direito constituem prejulgados para os demais
casos, salvo se contra a tese votarem dois terços dos membros do Tribunal”. Mas,
na vigência da Constituição de 1988, o Tribunal Superior Eleitoral perfilhou a tese de
que este dispositivo seria inconstitucional.69
Por sua vez, o Código de Processo Civil de 1973 trouxe o instituto da uniformiza-
ção de jurisprudência, o qual tinha como finalidade impedir julgamentos discrepantes
sobre causas similares dentro de um mesmo tribunal.70
O advento da Constituição de 1988 trouxe ao direito brasileiro uma nova essên-
cia, consubstanciando-se na possibilidade da abertura das normas a fim de englobá-las
princípios. Tal fenômeno fez com que no Brasil aos poucos fossem embutidos tantos
pelo julgador como pelo legislador técnicas de julgamento originárias do sistema do
common law.
Não se pode, portanto, atualmente, afastar esta aproximação ao sistema do
common law do contexto principiológico esculpido no ordenamento jurídico pela
Constituição da República de 1988.
O Estado brasileiro estruturado pela atual Carta Magna tem como norte basilar,
através de um regime democrático, garantir a todos indistintamente os direitos funda-
mentais. Esta garantia não se dá apenas num prisma defensivo, mas também numa
atuação proativa do Estado, através de todos os seus poderes, incluindo o Judiciário.
Nesse sistema, observa-se que o legislador vem utilizando com mais intensidade a
técnica legislativa das cláusulas abertas, a qual destina ao poder jurisdicional uma
nova e ampliada margem de atuação interpretativa das normas e também política.
Elucida Didier71 que a aproximação do common law ao civil law é motivada jus-
tamente pela inserção das cláusulas gerais nos diplomas legais.
São suas palavras:
“A relação entre cláusula geral e o precedente judicial é bastante íntima. Já se
advertiu, a propósito, que a utilização da técnica das cláusulas gerais aproximou o
sistema da civil law do sistema da common law. Esta relação revela-se, sobretudo,

69
Acórdão nº 12.501, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
70
O procedimento é simples. Verificada, a instâncias do relator ou de alguma das partes interessadas, divergên-
cia de decisões tomadas por órgãos fracionários de uma mesma Corte, os autos serão remetidos ao Plenário,
ao qual caberá emitir a exegese a ser observada. Sendo o julgamento tomado pelo voto da maioria absoluta
dos membros da corte, passará a constituir objeto de súmula, criando precedente para que seja uniformizada
a jurisprudência de determinado tribunal (NOBRE JÚNIOR. O direito processual brasileiro e o efeito vinculante
das decisões dos Tribunais Superiores. Revista de Processo, p. 64).
71
Cláusulas gerais processuais. Revista de Processo, p. 69.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

em dois aspectos. Primeiramente, a cláusula geral reforça o papel da jurisprudência


na criação de normas gerais: a reiteração da aplicação de uma mesma ratio deci-
dendi dá especificidade ao conteúdo normativo de uma cláusula geral, sem contudo,
esvaziá-la; assim ocorre, por exemplo, quando se entende que tal conduta típica é
ou não exigida pelo princípio da boa-fé. Além disso, a cláusula geral funciona como
elemento de conexão, permitindo ao juiz fundamentar a sua decisão em casos prece-
dentemente julgados.”
No entanto, o sistema brasileiro, por sua origem e formação, sincronizado com
a família romano-germânica, foi estruturado precipuamente sob o manto de poder
emanado da ordem legal e não jurisprudencial. Por esta razão extraem-se molduras
e características peculiares, e até inovadoras, não presentes no tradicional esquema
do stare decisis.
Assim, com base nos antigos assentos — normas gerais abstratas —, através
da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, institui-se no Brasil as súmulas vinculantes.
Aqui, cabe explanar que tecnicamente, tanto os antigos assentos, como as
súmulas vinculantes, não são precedentes. E o grande marco para tanto é que, por
serem normas gerais, não “lincadas” diretamente a um caso concreto, delas não se
pode extrair a ratio decidendi, no contexto já explicado acima.
Sob a ótica técnica e tradicional se depreende que a súmula vinculante72 não é
precedente, consubstanciando aquela de natureza normativa, tal como outrora vingou
nos assentos portugueses, e estes, os precedentes, moldados à luz da ratio decidendi
de um julgado, estando estreitamente relacionado a um caso concreto.
Abboud73 e Carreira74 entoam a correta tese de que as súmulas vinculantes
não são precedentes judiciais, vez que envolvidas por um grau de generalidade que
as distanciam prima facie dos casos concretos que justificaram a sua implantação.

72
“Recentemente, relevantes modificações foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro, com destaque
todo especial para as modificações ocorridas em torno do Código de Processo Civil (LGL 1973/5). Grande
parte destas alterações deu-se após a edição da EC nº 45, de 08.12.2004, que ficou conhecida como Reforma
do Poder Judiciário. Dentre suas inovações podemos destacar a súmula vinculante, prevista no art. 103-A da
CF/1988 (LGL 1988/3), regulamentada pela Lei nº 11.417/2006.
Além da súmula vinculante, hoje a doutrina processual vem se debruçando sobre os chamados precedentes
judiciais e a sua atual importância para o aperfeiçoamento do sistema processual, principalmente em razão de
suas finalidades: segurança jurídica e previsibilidade. Tanto é que o Projeto do Novo Código de Processo Civil
(LGL 1973/5) (PLC nº 8.046/2010), em diversos dispositivos, demonstra sua preocupação com os preceden-
tes judiciais, principalmente dos Tribunais Superiores.
Assim, o objetivo do presente estudo é tratar tanto da súmula vinculante como do precedente judicial, apon-
tando suas características e suas diferenças, já que comumente encontramos afirmações de que a súmula
vinculante é produto da common law, ou seja, resultado da influência dos precedentes, o que, conforme ire-
mos apontar, não é verdadeiro” (CARREIRA. Algumas questões a respeito da súmula vinculante e precedentes
judicial. Revista de Processo, p. 213).
73
Vinculante versus precedentes: notas para evitar alguns enganos. Revista de Processo, p. 289.
74
Algumas questões a respeito da súmula vinculante e precedentes judicial. Revista de Processo, p. 213.

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Streck75 diz que um precedente não cabe num enunciado. E critica a forma com
que foi introduzida a súmula vinculante no Brasil, dizendo que esta técnica vinculativa
através das referidas súmulas não se equipara à dos precedentes. Diz Streck76 que
existe uma diferença entre o “que é precedente no common law e o que pensa que
é um precedente no direito brasileiro. Nos Estados Unidos, precedente tem ‘nome
e sobrenome’; aqui, uma súmula (para falar apenas em um ‘tipo’ de ‘precedente’)
possui apenas um número”. Diz ainda que o precedente lá serve para resolver casos
passados: aqui, tem a pretensão de abarcar todos os casos futuros — “aliás, uma
súmula é feita exatamente para esse fim”.
A argumentação de Streck parte do princípio que a aplicação da súmula mantém
a operacionalização do direito sob uma ultrapassada ótica dedutiva, que busca o
encaixe da situação fática, via subsunção, numa plataforma pré-estabelecida, o que,
via de regra, sacrifica o caso concreto, pois serão confinadas a um espaço de sentido
previamente delimitado pelo enunciado genérico das súmulas.
Reflete Streck:77
“Esclarecendo melhor esse ponto: venho insistindo há muito tempo que texto e
norma não são colados, nem cindidos. A questão de direito, que surge do julgamento
anterior (ou da cadeia de julgamentos), será sempre uma questão de fato e vice-­
versa. Por isso — e nisso reside o equívoco de setores da doutrina — é impossível
transformar uma súmula em um ‘texto universalizante’. Insisto: isso seria voltar à
filosofia clássica-essencialista. É preciso entender que a ‘aplicação’ de uma súmula
não pode ser feita a partir de um procedimento dedutivo. Que as súmulas são textos,
não há dúvida. Só que ‘esse texto’ não é uma proposição assertórica. Portanto, não
pode ser aplicada de forma irrestrita e por mera subsunção ou por dedução. No para-
digma filosófico em que nos encontramos, é equivocado falar ainda em subsunção,
indução ou dedução. [...]
Insisto: o precedente não cabe na sumula. Como resolveríamos o caso de apli-
cação de uma súmula que estabelecesse, hipoteticamente, a exemplo de um julgado
recente do TRF 4ª Reg. (Processo 2003.72.05.000103-2), que ‘o colarinho faz parte
do conteúdo do chope’? Qual é o tamanho do colarinho? Quantos centímetros de es-
puma são possíveis? E mesmo que se fizesse um adendo à (essa hipotética) súmula,
especificando que o colarinho somente poderá ser de um centímetro (ou dois...),
ainda assim teríamos problemas com o tamanho e a largura do copo... E quanto
tempo o chope deverá ficar em repouso? De que modo a dogmática jurídica resolveria
tais impasses interpretativos? Mas, haveria impasses? Quais? Afinal, enunciados

75
Súmulas vinculantes em Terrae Brasilis: necessitamos de uma “Teoria para elaboração de precedentes”?.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 284.
76
No prefácio da obra de Maurício Ramires, Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro.
77
Súmulas vinculantes em Terrae Brasilis: necessitamos de uma “Teoria para elaboração de precedentes”?.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 284.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

como ‘o colarinho faz parte do chope’ ou, a contrario sensu, ‘o chope sem colarinho
não é chope’, não são claros, precisos? Não é isso que a doutrina — que acredita
em isomorfia entre texto e realidade — deseja para o direito? Não querem clareza e
precisão?
Ora, aqui voltamos, inexoravelmente, à questão fulcral: o ‘precedente’ não cabe
no enunciado! As palavras de uma proposição jurídica (ou qualquer outra) não são
claras e nem obscuras, precisas ou ambíguas, etc. Dito de outro modo — e levando
em conta as ‘especificidades’ da hipotética súmula acerca do colarinho do chope
— somente a construção de significados (atribuição de sentidos) a esses signifi-
cantes é que permitirá que se evite abusos por parte dos comerciantes vendedores
de chope. Não haverá (assim como não há) um significado de colarinho em si. Não
há qualquer relação ontológica (no sentido clássico) entre a quantidade permitida
de espuma e a essência da coisa designada. No enunciado ‘o colarinho faz parte do
chope’, não estão contidas as essências de todos os chopes com colarinho do mundo
(sic). Hermeneuticamente, a integridade e a coerência do direito exigirão ao que as
decisões acerca da matéria contenham uma espécie de ‘sentido comum’ (tradição
autêntica no sentido gadameriano da palavra) acerca do significado do ‘colarinho’,
independentemente do tamanho do copo e do tempo de repouso do copo. Na ver-
dade, para que uma súmula possa ser editada, haverá uma sucessão de casos, que,
reconstruídos, darão azo a uma ‘coagulação de sentido’ (é isso que é uma súmula
vinculante, em síntese)”.
Já foi visto aqui que para a utilização da técnica dos precedentes, e que este
possa exercer a sua força vinculativa, mister se faz identificar a ratio decidendi do
julgado. Numa súmula vinculante, que possui um nível de abstração bem maior que
uma decisão judicial, sem se remeter a um caso concreto,78 pode-se dizer que locali-
zar a ratio decidendi seria uma missão quase impossível (para não dizer impossível).
Por tal razão, perfilha-se aqui que as súmulas vinculantes não podem ser equiparadas
a um precedente.
Da mesma forma que as súmulas vinculantes, a jurisprudência também não é
tecnicamente um precedente. Esta constatação se evidencia, ainda, da força interativa
entre o precedente e o caso concreto a ele correlativo.
Aponta Taruffo79 existirem diversas diferenças entre os citados institutos. Destaca
o grande processualista que quando se fala em jurisprudência se faz normalmente

78
Há mais um aspecto, talvez menos evidente, mas não menos relevante, sobre o qual a referência ao precedente
influi na estrutura da argumentação jurídica. Ele relaciona-se à circunstância de que, como o precedente é
sempre uma decisão relativa a um caso particular, é necessário que o significado da regra jurídica, usada como
critério de decisão, venha “concretizada” para relacioná-lo à solução do caso particular: não se compreende o
precedente se a interpretação da norma que nele foi aplicada não vem conexa diretamente como a fattispecie
concreta que foi decidida (Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, p. 139).
79
Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, p. 139.

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Marcos José Porto Soares

referência a pluralidade de decisões, ao passo que, no precedente, a decisão que


vinculará julgamentos futuros é uma só. Diz ainda que, para a aplicação do precedente,
necessário se extrair a ratio decidendi do primeiro julgamento, ao passo que na jurispru-
dência tal tarefa é incabível, vez que ao se aplicá-la, em regra, não se faz uma análise
comparativa dos fatos, mas sim a aplicação de enunciados, ementas, que são escritos
sem o trabalho de delineação da ratio decidendi.
Em que pese súmulas vinculantes e orientações jurisprudenciais não serem
precedentes, foram criadas no ordenamento jurídico, no campo processual civil, típi-
cas situações nas quais será imprescindível a aplicação da técnica do stare decisis,
fazendo-se necessário o conhecimento da ratio decidendi, por envolverem situações
de precedentes vinculantes. Entre essas situações, cabe mencionar as previstas nos
artigos 285-A e 543-C, todos do Código de Processo Civil.

5.3  Casos de aplicação dos precedentes


Apontar-se-á a seguir hipóteses em que é necessário o conhecimento da técnica
do stare decisis, e portanto, delimitar o que seja a ratio decidendi no direito proces-
sual brasileiro.

5.3.1  Artigo 285-A do Código de Processo Civil


O legislador processual brasileiro, no afã de efetivar a igualdade nos julgamen-
tos de casos idênticos — para que diante de casos idênticos e suas semelhanças
fundamentais sejam proporcionadas aos jurisdicionados as mesmas respostas —, e
também na busca de uma razoável duração do processo, trouxe a lume a norma do
artigo 285-A do Código de Processo Civil, a qual prescreve que: “Quando a matéria
controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver proferida sentença de
total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e
proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.”
Essa norma permite ao magistrado que se utilize de um precedente, para que
possa desde logo, antes mesmo da citação do réu, indeferir uma inicial que trate de
idêntico caso já julgado.
Da leitura deste dispositivo extrai-se que, para a sua aplicação, deverá o juiz bus-
car um caso concreto já julgado idêntico ao que está em julgamento, ou seja, um pre­
cedente que agora, com base nesta norma, poderá ter força vinculante. E, como um
preceden­te vinculante, caberá ao seu operador respeitar a técnica já explicitada do
stare decisis.
Sobre este dispositivo leciona Silva,80 que:

80
Análise da Aplicação do art. 285-A, do Código de Processo Civil. Revista de Processo, p. 341.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

“O regramento instituído pelo art. 285-A do CPC (LGL 1973/5) está em consonân-
cia como outros dispositivos reformadores que, da mesma forma, pretendem atribuir
uma maior celeridade e efetividade aos feitos, instituindo procedimentos para decisões
uniformes a processos repetitivos. São exemplos desta tendência os arts. 475, §3º,
518, §1º, 515, §3º, 543-A, 557, §1º-A, entre outros. [...]
A esse respeito, ressalte-se que, ao tomar conhecimento de precedentes con-
sonantes de Juízos de determinada Comarca, e vislumbrando a possibilidade de sen-
tenciamento liminar de sua demanda, pode o autor, já na petição inicial, demonstrar
as dessemelhanças entre seu caso e tais precedentes. Caso não o faça, terá oportu-
nidade para tecer tais argumentos em sede de recurso de apelação. [...]
A expressão ‘casos idênticos’, s.m.j, deve ser entendida como coincidência de
teses jurídicas (questões de direito) e circunstâncias fáticas entre a nova demanda
ora sub judice e as demandas julgadas anteriormente no Juízo e que receberam sen-
tença de improcedência. A prevalência da coincidência deve se dar, cem por cento,
em relação às questões predominantemente de direito de uma e outra causa.”
Wambier, Alvim e Medina81 (2006) deixam claro que para a aplicação da norma
do art. 285-A do CPC (LGL 1973/5) em compasso à aplicação do mecanismo do stare
decisis com o fito de conceder força vinculante ao precedente (com ênfase na neces-
sidade de o julgado se coadunar com o entendimento de tribunal superior), caberá ao
julgador o mister de identificar no julgado a sua ratio decidendi. Afirmam:
“De fato, a correta exegese do art. 285-A deve levar em conta a orientação da
jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF e STJ), no sentido de que não deverá ser
utilizado o art. 285-A se o entendimento do magistrado colidir com o entendimento
desses Tribunais. Em realidade, se a hipótese de que já há decisões no juízo não
colidir com o entendimento de Tribunal Superior, em tal situação configura-se o qua-
dro para o juiz aplicar a norma. Se se configurar esse quadro, a aplicação revelar-se-á
funcional; do contrário, a aplicação, ao invés de facilitar, complicará o processo, e o
objetivo da norma é facilitar as hipóteses que se coloquem ao juízo como pacíficas,
mas sem colisão com jurisprudência existente. A identificação de que ‘casos idênti-
cos’ poderão servir-se, senão deverão servir-se, das noções de ratio decidendi e obter
dicta. Ratio decidendi diz respeito à essência de um litígio, que, no caso, será igual
ao outro. E, obter dicta é o que possa constar de uma decisão, mas que não se terá
colocado como necessário para decidi-la. Essas duas noções podem ser úteis porque,
certamente — conquanto se reputem casos idênticos — não haverá uma essência
dessa argumentação que se projetará nas decisões (ratio decidendi), e haverá parte
dessa argumentação que se evidenciará como desnecessária. Curialmente, não se
trata de hipótese de causas idênticas (inaplicável o art. 301, §2º), mas de causas em

81
Apud SILVA. Análise da aplicação do art. 285-A, do Código de Processo Civil. Revista de Processo, p. 341.

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Marcos José Porto Soares

que os fundamentos se repetem, e, igualmente, os pedidos (na terminologia da lei,


casos idênticos). E uns e outros já se encontram no juízo decididos contrariamente.
Não pensamos que esse texto — do art. 285-A — possa ser havido como inconstitu-
cional, porquanto, se o réu não é ouvido, a decisão será a seu favor inteiramente.”
Porquanto, resta claro que o legislador trouxe, através da regra do art. 285-A,
para o ordenamento jurídico processual civil, a possibilidade da aplicação da teoria
dos precedentes, e diante disso, sobrelevou a imperiosa função de saber o operador
do direito delimitar e conhecer a ratio decidendi de uma decisão.

5.3.2  Artigo 543-C do Código de Processo Civil


Outra hipótese de aplicação da teoria do stare decisis no direito processual
brasileiro encontra-se normatizada no artigo 543-C, o qual dispõe que:
“Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em
idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste
artigo.
Parágrafo 1º Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais
recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior
Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronun-
ciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça.”
Observa-se que, para a aplicação desta norma, caberá aos ministros julgadores,
ou ministro do Superior Tribunal de Justiça, verificar se a ratio decidendi do caso — a
ser considerado paradigma — se adequará aos demais casos a serem julgados.
Disserta Teixeira82 que a Lei nº 11.672/2008 — a qual introduziu este artigo
— “se quedou silente sobre os critérios a serem observados para se considerar que
uma questão de direito é idêntica a outra”.
Ressalta-se, no entanto, que o fato de o legislador mencionar como requisito
que os casos tenham a mesma questão de direito de forma alguma subtraiu a tarefa
de se imiscuir nos fatos a fim de averiguar a possibilidade da aplicação da ratio deci-
dendi do caso paradigma aos demais.
Até porque como leciona Streck (2006):83
“É mais do que evidente que o direito é concretude e que é feito para resolver
casos particulares. O que não é evidente é que o processo interpretativo é applicatio,
e que o direito é parte integrante do próprio caso, e uma questão de direito é sempre
uma questão de fato e vice-versa.”

82
Recursos especiais repetitivos: recursos fundados em idêntica questão de direito no âmbito do Superior
Tribunal de Justiça. Revista de Processo, p. 164.
83
Apud RAMIRES. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro, p. 71.

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

De bom alvitre o legislador, ao confeccionar ao artigo 543-C, do Código de


Processo Civil não apontou um critério para a identificação da similaridade entre as
questões de direito; vez que, assim, deferiu ao julgador a aplicação da teoria dos
precedentes na amplitude originária da common law.
Wambier e Medeiros,84 sobre este dispositivo, explicam:
“Há muito tempo temos sustentado ser indesejável que haja excessiva dis-
cordância entre os tribunais sobre como decidir uma mesma questão de direito”. A
existência de decisões diferentes sobre situações iguais, além de gerar insegurança
jurídica, conduz ao descrédito com relação à atuação jurisdicional.
De fato, conforme já tivemos oportunidade de afirmar, “para que seja preser-
vado o princípio da igualdade, é necessário que haja uma mesma pauta de conduta
para todos os jurisdicionados” (ver: WAMBIER, Teresa Arruda. Estabilidade e adapta-
bilidade como objetivos do direito: civil law e common law. Revista de Processo, São
Paulo, v. 172, p. 144, jun. 2009).
O legislador percebeu isso. O sistema processual hoje está repleto de mecanis-
mos que viabilizam atribuir-se maior importância aos precedentes do STJ e do STF,
de molde a prestigiar a isonomia, a uniformidade, a previsibilidade e a segurança
jurídica.
O próprio recurso especial apresenta, como uma das suas principais finalidades,
a de consolidar, no plano do direito infraconstitucional, essa pauta de conduta, dando
a última palavra sobre a correta interpretação da lei e uniformizando a jurisprudência.
Como regra geral, deve entender-se que, para a uniformização da jurisprudên-
cia, é absolutamente imperioso o respeito, pelos tribunais de segundo grau e juízos
mono­cráticos, dos precedentes do STJ. Firmado, num leading case, o posicionamento
do STJ sobre determinada questão, impõe-se, para se assegurar a coerência, segu-
rança e previsibilidade do sistema, que esse mesmo entendimento seja observado
pelos juízes e tribunais locais.
Cumpre observar que para a aplicação deste dispositivo — o qual exige aplica-
ção da regra do stare decisis — o julgador deverá constatar ser a ratio decidendi do
precedente (caso levado à condição de leading case) a mesma dos demais casos.

5.3.3  Projeto do Novo Código de Processo Civil. Incidente


de resolução de causas repetitivas. Típica situação de
aplicação da regra do stare decisis
Tramita no Senado Federal, o Projeto de Lei nº 166, de 2010, o qual vem
sendo sinalizado como o Novo Código de Processo Civil brasileiro. Na sua explanação

84
Recursos repetitivos: realização integral da finalidade do novo sistema impõe mais do que a paralisação dos
recursos especiais que estão no 2º grau. Revista de Processo, p. 188.

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Marcos José Porto Soares

de motivos consta desde o princípio que o direito brasileiro está a se imiscuir em


mecanismos tradicionais do common law.
“No afã de atingir esse escopo, deparamo-nos com o excesso de formalismos
processuais, e com um volume imoderado de ações e de recursos.
Mergulhamos com profundidade em todos os problemas, ora erigindo soluções
genuínas, ora criando outras oriundas de sistemas judiciais de alhures, optando por
instrumentos eficazes, consagrados nas famílias da civil law e da common law, sem-
pre prudentes com os males das inovações abruptas, mas cientes em não incorrer no
mimetismo que se compraz em repetir, ousando sem medo (Abertura da Exposição
de Motivos do Projeto de Lei).”85
Destaca-se, neste tom, que existe no Projeto do Novo Código de Processo Civil,
além das hipóteses já introduzidas no ordenamento processual civil, a previsão da
inserção do denominado incidente processual de causas repetitivas.
Esta novidade no Brasil é destacada na Exposição de Motivos do Projeto do
Novo Código de Processo Civil:
“Criou-se o incidente de julgamento conjunto de demandas repetitivas, a que
adiante se fará referência.
Por enquanto, é oportuno ressaltar que levam a um processo mais célere as
medi­das cujo objetivo seja o julgamento conjunto de demandas que gravitam em torno
da mesma questão de direito, por dois ângulos: a) o relativo àqueles processos, em
si mesmos considerados, que serão decididos conjuntamente; b) no que concerne à
atenuação do excesso de carga de trabalho do Poder Judiciário — já que o tempo
usado para decidir aqueles processos poderá ser mais eficazmente aproveitado em
todos os outros, em cujo trâmite serão evidentemente menores os ditos ‘tempos
mortos’ (períodos em que nada acontece no processo).
Por outro lado, haver, indefinidamente, posicionamentos diferentes e incompa-
tíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma norma jurídica, leva a que jurisdicionados
que estejam em situações idênticas, tenham de submeter-se a regras de conduta
diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos.
Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera intranqüilidade e, por vezes, verda-
deira perplexidade na sociedade.”86
O incidente de resolução de demandas repetitivas está previsto no Capítulo VII,
regulado pelos artigos 895 a 906 do Projeto de Lei.87

85
Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2012.
86
Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2012.
87
Adiante consta na Exposição de Motivos que: “Proporcionar legislativamente melhores condições para ope-
racionalizar formas de uniformização do entendimento dos Tribunais brasileiros acerca de teses jurídicas é
concretizar, na vida da sociedade brasileira, o princípio constitucional da isonomia.
Criaram-se figuras, no novo CPC, para evitar a dispersão.
Dentre esses instrumentos, está a complementação e o reforço da eficiência do regime de julgamento de re-
cursos repetitivos, que agora abrange a possibilidade de suspensão do procedimento das demais ações, tanto

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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

Prescreve o artigo 895 que: “É admissível o incidente de demandas repetitivas


sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação
de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança
jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes”.
Nesse incidente será escolhido um processo, que será o caso paradigma, cuja
fundamentação servirá para a decisão dos outros casos tidos como semelhantes
pelo tribunal. Ou seja, mais uma típica situação de aplicação da teoria do stare
decisis, devendo o julgador, com base na correta demarcação da ratio decidendi do
julgado paradigma, constatar se será cabível ou não a aplicação do precedente em
outros casos.

6 Conclusão
Através deste trabalho pretendeu-se buscar a conformação da teoria dos prece-
dentes, partindo de um enfoque nas suas origens na Inglaterra, até como hoje é tratada
pelo direito brasileiro. Através das pesquisas, foi compreendido ser imprescindível
o domínio do conceito do que seja a ratio decidendi, pois um dos requisitos para a
vinculação de um precedente a outro caso, é que encontre o operador do direito em
ambos a mesma razão de decidir.
Viu-se que, no Brasil, há certa confusão e incerteza sobre a utilização dos pre-
cedentes, diante da implantação das súmulas vinculantes, bem como da força das
orientações jurisprudenciais, uma vez que o método e a técnica de operacionalização
destes institutos não envolvem um aprofundamento nas nuanças do caso concreto,
em que muitas vezes está situada a ratio decidendi.
No entanto, percebeu-se que existe no ordenamento processual figuras típicas
que permitem a utilização da regra do stare decisis (vinculação dos precedentes), tais
como as do artigo 285-A e 543-C do Código de Processo Civil.

no juízo de primeiro grau, quanto dos demais recursos extraordinários ou especiais, que estejam tramitando
nos tribunais superiores, aguardando julgamento, desatreladamente dos afetados.
Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução
de Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de
direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta.
O incidente de resolução de demandas repetitivas é admissível quando identificada, em primeiro grau, con-
trovérsia com potencial de gerar multiplicação expressiva de demandas e o correlato risco da coexistência de
decisões conflitantes.
É instaurado perante o Tribunal local, por iniciativa do juiz, do MP, das partes, da Defensoria Pública ou pelo
próprio Relator. O juízo de admissibilidade e de mérito caberá ao tribunal pleno ou ao órgão especial, onde
houver, e a extensão da eficácia da decisão acerca da tese jurídica limita-se à área de competência territorial
do tribunal, salvo decisão em contrário do STF ou dos Tribunais superiores, pleiteada pelas partes, interessa-
dos, MP ou Defensoria Pública. Há a possibilidade de intervenção de amicus curiae.
O incidente deve ser julgado no prazo de seis meses, tendo preferência sobre os demais feitos, salvo os que
envolvam réu preso ou pedido de habeas corpus.
O recurso especial e o recurso extraordinário, eventualmente interpostos da decisão do incidente, têm efeito
suspensivo e se considera presumida a repercussão geral, de questão constitucional eventualmente discutida.
Enfim, não observada a tese firmada, caberá reclamação ao tribunal competente.”

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Marcos José Porto Soares

É importante nesta fase de evolução do direito processual brasileiro, em que se


verifica nítida aproximação ao sistema do common law, o conhecimento do que seja
a ratio decidendi, a fim de aplicar com precisão — dentro das limitações naturais de
uma ciência não exata como o Direito — a teoria dos precedentes, que, como visto,
sinaliza dar maior força ao princípio da igualdade.

Campo Mourão, 22 de janeiro de 2013.

Abstract: The ratio decidendi of judicial precedents. This work focuses on primary purpose to describe
the importance of the ratio decidendi for proper operation of the technique of binding precedent, which
has been introduced in the Brazilian procedural law in face of an ever greater between the legal system of
common law and civil law. The survey shows that in order to identify the ratio decidendi of a precedent for
the need to enter the case on trial, and that this requirement away from the condition precedent certain
institutions, such as bindind docket and jurisprudential guideless, so considered by doctrine homeland.
Key works: Ratio decidendi. Stare decisis. Binding precedent. Common law.

Referências
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A ratio decidendi dos precedentes judiciais

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

SOARES, Marcos José Porto. A ratio decidendi dos precedentes judiciais. Revista
Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 39-73,
jan./mar. 2014.

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Cooperação no processo civil – A
paridade do juiz e o reforço das
posições jurídicas das partes a
partir de uma nova concepção de
democracia e contraditório

Alexandre Pereira Bonna


Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Advogado.
E-mail: <alexandrebonna@yahoo.com.br>.

Resumo: Trata da cooperação no processo civil, abordada em inúmeros dispositivos do projeto do novo
Código de Processo Civil. Estabelece a influência do formalismo-valorativo — nova fase metodológica do
processo civil — na lapidação da colaboração. Busca fundamentos para a implementação do processo civil
cooperativo, notadamente no tocante ao reforço das posições jurídicas das partes e à paridade do juiz na
condução do processo. Reflete sobre a importância de uma nova roupagem ao princípio do contraditório e
ao da democracia, com vistas a realizar de forma plena a colaboração. Averigua um modelo de contraditório
como direito de influência e de democracia deliberativa aplicada ao processo civil, com vistas a possibilitar
uma maior participação das partes no deslinde processual e na formação da decisão judicial. Analisa o
impacto da cooperação no projeto do novo Código de Processo Civil e reflete sobre os desafios dessa nova
empreitada na seara processual.
Palavras-chave: Colaboração no processo civil. Democracia deliberativa. Contraditório.

Sumário: Introdução e apresentação da temática – 1 O modelo cooperativo de organização estatal – 2 A


lógica argumentativa na solução de litígios – 3 Cooperação e o contraditório como direito de influência –
4 Cooperação e a democracia deliberativa – 5 Cooperação no projeto do novo Código de Processo Civil –
Conclusão – Referências

Introdução e apresentação da temática


O acoplamento do adjetivo cooperativo representa uma nova forma de pensar,
interpretar, refletir e manusear o formalismo do processo, expressão entendida como
“a totalidade formal do processo, compreendendo não só a forma, ou as formali-
dades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos
sujeitos processuais” (OLIVEIRA, 2010, p. 6).
O dever/direito de cooperação entre as partes (reciprocamente consideradas)
e entre estas e o juiz ganha relevo em uma nova fase metodológica do processo
civil chamada de neoprocessualismo ou formalismo-valorativo, que “encerra um

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Alexandre Pereira Bonna

formalismo cuja estruturação responde a valores, notadamente aos encartados na


Constituição” (MITIDIERO, 2009, p. 51).
O viés da colaboração entre as partes e o juiz no processo civil é viabilizado pela
concretização de princípios constitucionais, notadamente o da democracia e o do con-
traditório, que fomentam a construção da decisão judicial por meio de intenso diálogo
e colaboração, consolidando o processo como palco para o exercício da democracia
deliberativa/participativa (e não mais apenas representativa) e criando uma verdadeira
“comunidade trabalho” entre os sujeitos do processo, onde o contraditório é exercido
em caráter de direito de influência. A conjugação dos princípios da democracia e o
do contraditório possibilita o surgimento do processo civil cooperativo, pois “é justa-
mente no contraditório, ampliado pela Carta do Estado Democrático brasileiro, que
se irá apoiar a noção de processo democrático, o processo como procedimento em
contraditório” (ZANETI JÚNIOR, 2007, p. 191).
Para deixar claro o lugar da fala e sobre o que estamos falando, antes de
mer­gulhar em qualquer conteúdo substancial dos princípios acima mencionados, é
importante fixar o sentido de princípios estendido ao contraditório e à democracia.
Ultrapassada a fase em que os princípios jurídicos eram tratados como normas
programáticas, com caráter demasiadamente abstrato e como fonte subsidiária do
direito, o pós-positivismo, que compreende a efervescência do constitucionalismo nas
últimas décadas do século XX, impõe uma nova forma de pensar os princípios jurídi-
cos, haja vista que as novas Constituições passaram a fincar um alto grau de impor-
tância aos mesmos, transformados em sustentáculo de todo o ordenamento jurídico.
Neste novo cenário, os princípios jurídicos são normas jurídicas, tem aplicação
direta e são fontes primárias de normatividade; são, portanto, normas-valores dota-
das de positividade. Nesse sentido:

Tanto las reglas como los principios son normas porque ambos dicen lo
que debe ser. Ambos pueden ser formulados con la ayuda de las expre­
siones deónticas básicas del mandato, la permisión y la prohibición. Los
principios, al igual que las reglas, son razones para juicios concretos de
deber ser, aun cuando sean razones de un tipo muy diferente. La dis­
tinción entre reglas y principios es pues una distinción entre dos tipos de
normas. (ALEXY, 1997, p. 83)

Para esse jurista alemão, os princípios jurídicos são mandados de otimização:


“[...] los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida
posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los prin-
cipios son mandatos de optimización” (1997, p. 86).
O fato de os princípios jurídicos fazerem parte da categoria de normas jurídicas,
mesmo que de alto grau valorativo, implica um esforço contínuo para garantir a má-
xima eficácia aos mesmos, pois os princípios são responsáveis por albergar unidade

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Cooperação no processo civil – A paridade do juiz e o reforço das posições jurídicas...

de sentido à ordem jurídica. Assim, a democracia e o contraditório são princípios


constitucionais que devem ser otimizados ao máximo diante das possibilidades fáti-
cas e jurídicas, inclusive na seara do direito processual.
Esta nova fase metodológica do direito processual civil — calcada em uma nova
concepção de democracia e contraditório — fortalece o papel das partes na formação
da decisão judicial, alterando substancialmente a posição jurídica do juiz e das par-
tes, em dois caminhos: o domínio dos fatos pertence também ao juiz — que não deve
se contentar com os fatos expostos e comprovados pelas partes — e a valoração
jurídica do direito também pertence às partes (e não apenas ao juiz), as quais, por
meio do direito ao contraditório, influem na valoração jurídica da causa. Essas facetas
eivam de inaplicabilidade o brocardo “da mihi factum, dado tibi ius”.
Nesse sentido, o objeto do presente estudo será alcançado após a superação
de algumas barreiras impostas ao processo civil cooperativo, dentre elas o modelo de
organização do Estado calcado na superioridade do juiz sobre as partes na condução
do processo, a lógica dedutiva e assimétrica na solução de conflitos, o contraditório
apenas como direito de informação e reação, e a democracia restrita à representati-
vidade pelos membros do Poder Legislativo.
O modelo hierárquico de organização social dá lugar a um modelo cooperativo,
a lógica dedutiva de resolução de conflitos é substituída pela lógica argumentativa,
o contraditório como direito de informação/reação cede espaço a um direito de
influência e a democracia representativa é complementada pela democracia delibe-
rativa na seara do processo, reforçando o papel das partes na formação da decisão
judicial.
O Projeto de Lei nº 8.046/2010, que cria o novo Código de Processo Civil,
incorpora essa nova fase metodológica do direito processual civil, marcada por inú-
meros artigos que conferem poderes e deveres aos juízes e às partes no sentido
de aproximar ambos no diálogo judicial, na investigação de fatos, na valoração do
direito e cooperação para o deslinde do processo. Esse é o espírito do novo Código
de Processo Civil, que, ao invés de taxar direitos e deveres na esteira da colaboração,
preferiu traçar as linhas mestras que representarão, certamente, uma reviravolta em
todo o direito processual civil nos próximos anos.
O objetivo do presente ensaio é abordar a relação entre a cooperação no pro-
cesso civil e a concepção de democracia deliberativa e o contraditório como direito de
influência, mergulhando nestas novas concepções e abordando a alteração legislativa
do diploma processual no tocante ao processo civil cooperativo, que promove um
incremento na posição jurídica das partes na condução do processo e uma maior pro-
ximidade e empenho do juiz no diálogo processual. Nesse desiderato, busca também
averiguar os fundamentos jurídicos desta nova fase metodológica.

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Alexandre Pereira Bonna

1  O modelo cooperativo de organização estatal


Os poderes e deveres dos juízes e as posições jurídicas das partes no tocante
aos direitos, deveres, ônus e faculdades no processo sofrem influência direta do
modelo de organização política da sociedade.
No modelo paritário — que marcou fortemente a sociedade grega — não há uma
divisão clara entre política, indivíduo e sociedade, e o juiz está no mesmo nível das par-
tes, ou seja, há igualdade entre o cidadão e aquele que o julga, contudo, o magistrado
não busca intervir e influenciar a esfera jurídica das partes no processo, não lhe ca-
bendo nenhum ato direcionado a formação da prova e investigação de fatos concretos.
O modelo hierárquico — próprio do Estado Moderno e do Império Romano — é
marcado pela superioridade do juiz em relação às partes, como forma de implantar
diretamente a “vontade do imperador e do legislador” sobre as partes, estando o
magistrado com o controle total do processo quanto à investigação de fatos e anda-
mento do feito.
Dessa maneira, o modelo hierárquico fortalece a condição de súdito das partes
e representa a nítida superioridade do Estado em relação ao indivíduo.
Verifica-se a harmonia desse modelo hierárquico com o Estado Liberal, haja
vista que “a ligação estrita da justiça e da administração à lei resulta no clássico
esquema de divisão de poderes, que deveria disciplinar, através do Estado de direito,
o arbítrio do poder estatal absolutista” (HABERMAS, 1997, p. 305).
O modelo cooperativo, por sua vez, é fundado em outras bases de cunho
constitucional. São elas: o Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput), o princí-
pio do contraditório (art. 5º, LV) e o princípio da solidariedade (art. 3º, I). Aliás, “o
respeito pela dignidade humana implica o reconhecimento de cada indivíduo huma-
no como edificador de mundos ou coedificador de um mundo comum” (ARENDT,
2007, p. 510). A partir dessas bases, pode-se afirmar que a cooperação entre
os membros da sociedade pretende alcançar proveito mútuo, o que repercute di-
retamente nos poderes e deveres dos juízes e das partes. Esse é o espírito do
processo civil cooperativo.
No modelo de organização estatal cooperativo, existe paridade entre o juiz e as
partes na condução do processo, na medida em que o andamento do feito é promovido
por ambos, como explica com maestria Mitidiero (op. cit., p. 73):

A isonomia está em que, embora dirija processual e materialmente o pro-


cesso, agindo ativamente, fá-lo de maneira dialogal, colhendo a impressão
das partes a respeito dos eventuais rumos a serem tomados no processo,
possibilitando que essas dele participem, influenciando-o a respeito de
suas possíveis decisões.

O juiz, nesse modelo de organização social, deve ser isonômico na condução


do processo e assimétrico no momento de decidir questões processuais, sendo o

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Cooperação no processo civil – A paridade do juiz e o reforço das posições jurídicas...

formalismo processual fomentador de uma “comunidade de trabalho” (expressão


creditada por Mitidiero a Leo Rosenberg), em que a cooperação é uma prioridade.
Por força do contraditório, o juiz passa a ser um dos participantes do processo e
se obriga ao diálogo judiciário, tendo como principais deveres, a título exemplificativo,
o de esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio com os litigantes.

2  A lógica argumentativa na solução de litígios


As diversas experiências histórico-jurídicas correspondem a diferentes formas
de conceber a posição jurídica das partes e do juiz — direitos, deveres, ônus, facul-
dades, direitos — para resolver um conflito judicial.
Na lógica dos juristas medievais, imperava a ordem do juízo (ato de três pessoas),
por meio da qual o direito era visto como um problema a ser resolvido com base no diálo-
go entre as pessoas participantes, fruto da metodologia da lógica aristotélica, que exige
discussão tópico-argumentativa — debate em contraditório — sobre questões do pro-
cesso. A dialética era o meio para alcançar a verdade provável, ou seja, só era possível
obtê-la por meio de um esforço de todos (divisão do trabalho) ante a falibilidade humana.
Dessa maneira, a lógica argumentativa valorizava todos os participantes do pro-
cesso e concebia a ideia de que para alcançar uma decisão justa era necessário que
juiz e partes se propusessem a um profícuo debate e diálogo, pois “é uma lógica que,
ao negar o caráter científico do processo, procura dar elementos para, dentro de uma
visão problemática do direito, solucionar casos concretos” (ZANETI JÚNIOR, op. cit.,
cap. 2, p. 9).
Na Idade Moderna, surge o modelo assimétrico do processo em decorrência de
mudanças políticas e culturais. Nesse momento histórico, solidifica-se a estruturação
e geometrização da ciência jurídica, com o surgimento da lógica apodítica-dedutiva
(mecanicista), em que o jurista buscava a certeza e a verdade absoluta, com metodo-
logia semelhante às utilizadas pelas ciências naturais.
Vale lembrar que o Estado Moderno é marcado pela concentração do poder na
pessoa do Rei. Assim, o direito era reflexo da vontade soberana, cabendo ao juiz tão
somente verbalizar a lei, não havendo espaço para a participação das partes nesse
processo assimétrico.
O processo civil cooperativo, nesse sentido, prescinde da adoção da lógica ba-
seada no diálogo e na divisão de tarefas, pois só com esta lógica de resolução de
conflitos é possível incrementar os poderes das partes no processo. Por esse motivo,
Júnior prega um retorno ao “juízo”, numa alusão positiva à maneira de resolver con-
flitos com intensos argumentos e debates própria da sociedade medieval: “o retorno
ao juízo que se propõe é na verdade um resgate da complexidade do fenômeno pro-
cessual e da legitimidade da discussão entre os participantes da decisão, para sua
formação e racionalidade” (op. cit., cap. 2, p. 5-6).

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Destarte, o alcance de um processo civil cooperativo é viabilizado por uma lógica


argumentativa na resolução de conflitos, sendo inconcebível uma decisão ser formada
e amadurecida apenas pelo Estado-juiz, próprio do modelo assimétrico. Assim, a lógica
do modelo assimétrico deve ser substituída pela lógica argumentativa, como ensina
Mitidiero:

Essa proposição acaba por implicar nova organização do formalismo


processual, forçando a uma melhor distribuição das posições jurídicas
das partes e do juízo no processo, de modo a torná-lo mais cooperativo
e menos rígido para uma ótima consecução da justiça no caso concre-
to, finalidade última do processo civil no marco teórico do formalismo-­
valorativo. (op. cit., p. 92)

As partes, nesse sentido, têm suas posições jurídicas fortalecidas no processo


na medida em que o juiz tem o dever de esclarecer e consultar as partes antes de
fixar qualquer decisão e determinar os rumos da lide, fazendo do andamento proces-
sual um intenso diálogo entre os sujeitos processuais, abrindo margem para que a
decisão judicial seja fruto desse debate e tenha como componente também a valora-
ção da causa feita pelas partes.

3  Cooperação e o contraditório como direito de influência


Como dito na introdução do presente artigo, a cooperação no processo civil
exige o princípio do contraditório com uma roupagem diversa do seu conceito tradicio-
nal. Em sua acepção clássica, o contraditório está umbilicalmente ligado ao direito
de informação e de reação. O primeiro está vinculado à inarredável necessidade de a
parte ter ciência da decisão ou ato que possa lhe causar prejuízo; o segundo promove
a manifestação da parte no processo em suas mais diversas facetas, a exemplo
da sustentação oral, contrarrazões, petições diversas, recursos, contestação, etc.
Percebe-se que estes contornos brecavam a manifestação e o exercício do contraditó-
rio em sua máxima potência, pois vinculava o seu exercício à proteção de um prejuízo.
Sendo assim, o contraditório é um princípio constitucional que deve ser otimizado ao
máximo dentro das possibilidades fáticas e jurídica, mas essa concepção não faz
isso, ao contrário, limita-o.
O contraditório como direito de informação e reação para resguardar algum
prejuízo é importantíssimo para combater graves injustiças, contudo, não eleva à
máxima potência o princípio constitucional do contraditório, pois “o princípio tem
outras aplicações que o afastam daquela noção tradicional, devendo ser encarado
hoje numa perspectiva mais elástica, notadamente na sua configuração como direito
de influência e dever colaborativo” (CABRAL, 2009, p. 105-106).
Surge a concepção moderna de contraditório como o direito de as partes influen-
ciarem a decisão judicial, independentemente de estarem na iminência de sofrerem

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Cooperação no processo civil – A paridade do juiz e o reforço das posições jurídicas...

prejuízos, eis que este direito passa a ser exercido no afã de buscar integrar a parte
em um procedimento que assegure efetiva participação.
O sentido da palavra influência nesse novo matiz conceitual do contraditório é
bem definido por Cabral (op. cit., p. 114):

Denomina-se influência qualquer condicionamento significativo à conduta


dos demais sujeitos do processo, realizado a partir de posições críticas ou
omissões conclusivas, transmitidas comunicativamente e que, caso não
existissem, poderiam, mantidas as demais condições, motivar o sujeito
condicionado a agir de modo diverso.

O juiz adota uma postura que se coaduna com o modelo cooperativo de orga-
nização social e com a lógica argumentativa de resolução de conflitos, pois não é
apenas a sua conduta que sempre determinará o comportamento dos demais sujei-
tos, estando também aberto aos atos estimulantes das partes. Portanto, as partes
passam a exercer atos de poder e influência dentro do processo.
Além do mais, até mesmo no momento da decisão o magistrado é diretamente
influenciado pelo que foi dito, produzido, argumentado e praticado pelas partes, fru-
tos do diálogo judicial em contraditório como direito de influência.
Importante ressaltar que estes atos estimulantes dotados de poder e influên-
cia devem ser praticados também pelo juiz na condução do processo, ou seja, os
atos praticados pelo juiz também devem influenciar diretamente a postura das partes
posteriormente, pois todos os sujeitos do processo passam a ser condicionados
pelos atos dos demais, indistintamente. É uma via de mão dupla, onde impera a
cooperação.
Salienta-se que o contraditório como direito de influência deve ser acompa-
nhado de inúmeros deveres de natureza ética, pois a influência não pode caminhar
desenfreada. “Preza-se, ao contrário, a solidariedade, sem que a vitória tenha que
prevalecer a qualquer preço” (CABRAL, op. cit., p. 211).
Habermas ensina com maestria que o procedimento democrático não pode ali-
mentar atitudes violentas. Em outras palavras, para o melhor andamento do processo
em colaboração, não basta que sejam assegurados e observados meios e instrumen-
tos de influenciar a decisão judicial, sendo imperioso que ao lado do procedimento
caminhem deveres de lealdade, transparência e retidão:

[...] o procedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do


direito. Entretanto, o caráter discursivo da formação da opinião e da von-
tade na esfera pública política e nas corporações parlamentares implica,
outrossim, o sentido prático de produzir relações de entendimento, as
quais são isentas de violência. [...] O poder comunicativo de convicções
comuns só pode surgir de estruturas da intersubjetividade intacta. (op.
cit., p. 191)

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Nesse viés, o contraditório deve representar uma cooperação saudável entre os


sujeitos do processo de maneira a possibilitar a democracia participativa, “fundando
o seu direito processual civil no valor participação, traduzido, normativamente no
contraditório” (MITIDIERO, op. cit., p. 76).
Alerta-se que o magistrado que concretiza o contraditório como direito de influên-
cia, deixando-se influenciar pelos atos estimulantes das partes, não está esquecendo
a sua imparcialidade, pois no processo cooperativo o “juiz é imparcial, mas sem deixar
de ser um sujeito processual ativo, gerando-se como resultado uma decisão dialogada
e mais consentânea com o Estado Democrático de Direito” (GOÉS, 2012, p. 112).

4  Cooperação e a democracia deliberativa


Foram analisadas importantes bases sobre as quais se assenta o processo civil
cooperativo: o modelo de organização estatal cooperativo, a lógica argumentativa de
resolução de conflitos e o contraditório como direito de influência. Contudo, o esteio
dessa nova forma de pensar o processo civil se assenta principalmente na demo-
cracia, notadamente a democracia deliberativa lapidada por Habermas (op. cit.), por
meio da qual qualquer decisão estatal deve ser objeto de uma “discussão argumen-
tativa pluralista, retirando o indivíduo da condição de súdito (que se submete) para o
status de ativo coautor da elaboração da norma, verdadeiramente cidadão e partícipe
desse processo” (CABRAL, op. cit., 109).
Pois bem, com o processo civil não deve ser diferente para fins de aplicação do
espírito da democracia deliberativa, porque possui cidadãos (jurisdicionados/partes);
decisão estatal (despachos, decisões interlocutórias, sentenças e acórdãos) é uma
das formas por meio das quais o cidadão se relaciona com o Estado, no caso, o
Estado-juiz. Assim, “o processo representa outro cenário de discurso público, mais
um canal de desenvolvimento da democracia deliberativa” (CABRAL, op. cit., p. 111).
Estando o processo alocado na relação cidadão-Estado, a visão política deste
influencia diretamente o status dos cidadãos e o procedimento que descamba com
decisões judiciais. Na visão liberal, historicamente o cidadão é protegido no tocante
aos direitos negativos que tem perante o Estado. Por outro lado, na visão republicana
não apenas são protegidos os direitos negativos, como também o status de cidadão
é incrementado por direitos positivos de participação e comunicação, assegurando
liberdades positivas direcionadas a promover uma relação de poder estatal exercida
comunicativamente. Habermas (op. cit., p. 333-334) explica com corriqueira didática
essas duas visões políticas:

Em primeiro lugar, diferenciam-se os conceitos do cidadão. Na interpre-


tação liberal, o status dos cidadãos determina-se primariamente a partir
dos direitos negativos que eles possuem em relação ao Estado e ou-
tros cidadãos. [...] Na interpretação republicana, o status dos civis não

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Cooperação no processo civil – A paridade do juiz e o reforço das posições jurídicas...

se determina pelo modelo das liberdades negativas que essas pessoas


privadas, enquanto tais podem reclamar. Os direitos dos cidadãos, em
primeira linha os direitos políticos de participação e de comunicação,
são, ao invés, liberdades positivas. [...] Ele resulta muito mais do poder
produzido comunicativamente na prática de autodeterminação de cida-
dãos e se legitima pelo fato de proteger essa prática através da institu-
cionalização da liberdade pública.

Nesse desiderato, o status de cidadão é modificado na visão republicana, que


promove o cidadão a um sujeito ativo fortalecido por direitos de participação nas
decisões estatais:

[...] Surge um peculiar espectro da cidadania, o status ativus processualis,


que consubstancia o direito fundamental de participação ativa nos proce-
dimentos estatais decisórios, ou seja, direito de influir na formação de
normas jurídicas vinculativas. (CABRAL, op. cit., p. 109)

Destarte, a democracia não se limita à representatividade dos cidadãos pelo


Poder Legislativo e Executivo, com o correlato direito de votar e ser votado, implicando
no reconhecimento do direito fundamental à participação do cidadão.
Dessa maneira, as partes devem influenciar na formação da decisão judicial
assim como devem participar do processo legislativo nos moldes da democracia deli­
berativa. Somente com a participação do cidadão o Estado legitima suas decisões:

[...] o processo legislativo democrático precisa confrontar seus parti-


cipantes com as expectativas normativas das orientações do bem da
comunidade, porque ele próprio tem que extrair sua força legitimadora
do processo de um entendimento dos cidadãos sobre regras de sua con­
vivência. (HABERMAS, op. cit., p. 115)

Vê-se que a democracia deliberativa se presta aos fins do processo cooperativo,


tendo em vista que prestigia o consenso acerca da decisão e a comunicação entre os
sujeitos. No que tange o consenso acerca da decisão, esclarece-se que não precisa
ser claramente explicitada, pois a teoria do discurso que circunscreve a democracia
deliberativa exige apenas que haja um processo de justificação com concordância
potencial de todos os participantes:

A teoria do discurso de Habermas está fundamentada na concordância


potencial de todos como condição de verdade. A verdade jurídica dife-
rencia-se da religiosa e da científica, uma vez que não é revelada. [...] A
verdade jurídica, destarte, é construída, em um processo do qual parti-
cipa o intérprete, não sendo demonstrada, mas legitimada mediante um
processo de justificação. (CAMBI, 2011, p. 284)

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Habermas é catedrático ao primar pela comunicação na seara da democracia


deliberativa, o que inspira a formulação de um modelo de processo colaborativo no
qual os atos das partes e dos juízes se complementem e influenciem uns aos outros
de forma recíproca, em um intenso diálogo. Esta lógica será praticada de forma sau-
dável apenas se os sujeitos processuais estiverem conscientes de suas dependên-
cias recíprocas e com vontade de se entenderem mutuamente:

Liberdade comunicativa só existe entre atores que desejam entender-se


entre si sobre algo num enfoque performativo e que contam com tomadas
de posição perante pretensões de validade reciprocamente levantadas.
(HABERMAS, op. cit., p. 156) [...] tornam-se conscientes de sua depen-
dência recíproca e, na qualidade de cidadãos, continuam e configuram,
com consciência e vontade, as relações de reconhecimento recíproco já
existentes. (HABERMAS, op. cit., p. 332)

Percebe-se então que a democracia representativa não foi e não está sendo
suficiente para manter o cidadão efetivamente partícipe na sociedade, haja vista
que os indivíduos permaneceram súditos, “antes subordinados ao príncipe, depois
à assem­bleia, mas de toda sorte distantes do efetivo processo de produção das
normas jurídicas” (CABRAL, op. cit., p. 107).
Destarte, só é possível a inserção da parte na decisão judicial, se o Estado-juiz
não simplesmente escancarar a decisão aos cidadãos, porque detém algum poder
para isso, mas, ao contrário, deve promover a participação dos sujeitos processuais
no procedimento que antecede a formação da decisão. Para tanto, a democracia deve
ser encarada com uma nova roupagem, qual seja a de uma democracia deliberativa,
viabilizado por meio do contraditório como direito de influência, que “permite a inte-
ração constante e recíproca entre os sujeitos participantes, franqueando a garantia
cidadã de participar da decisão estatal” (CABRAL, op. cit., p. 111).

5  Cooperação no projeto do novo Código de Processo Civil


O Projeto de Lei nº 8.046/2010 cria o novo Código de Processo Civil e adota
as linhas mestras da cooperação anteriormente explicitadas, quais sejam, o contra-
ditório como direito de influência e a democracia deliberativa asseguradora de efetiva
participação das partes na condução do processo e na formação da decisão judicial.
Nesse sentido, o projeto fortalece a posição jurídica das partes e promove a paridade
do juiz, assim como já foi feito no Código de Processo Civil Português.1

1
Artigo 266º
Princípio da cooperação
1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias
partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.

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Cooperação no processo civil – A paridade do juiz e o reforço das posições jurídicas...

O artigo 1º do projeto supramencionado fortalece a cooperação no processo civil


ao estabelecer que a interpretação das normas do código deverá ser feita “conforme
os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República
Federativa do Brasil.” Assim, os princípios do contraditório e da democracia alhures
explanados deverão ser otimizados ao máximo dentro das possibilidades jurídicas do
código, o que viabiliza sobremaneira a colaboração, principalmente tendo em vista as
concepções explanadas neste ensaio.
Nos artigos 5º e 8º, percebe-se a explícita menção ao direito de as partes par-
ticiparem “ativamente do processo, cooperando com o juiz” e o correlato dever de
colaborar para a rápida solução do litígio, “colaborando com o juiz para a identificação
das questões de fato e de direito e abstendo-se de provocar incidentes desnecessá-
rios e procrastinatórios”. Nesse viés, a colaboração é trazida como direito e também
como dever, o que fortalece ainda mais a relação cooperativa que deve existir entre
as partes — reciprocamente consideradas — e o juiz.
Nos artigos 9º e 10, valoriza-se ainda mais o status das partes como cidadão
ativo, na esteira da democracia deliberativa habermasiana, ao estabelecer que “não
se proferirá sentença ou decisão contra uma das partes sem que esta seja previa-
mente ouvida” e “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base
em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se
manifestar”.
No que toca o dever de esclarecimento, prevenção e auxílio do juiz para com as
partes, inerentes ao processo civil colaborativo, o projeto também caminhou bem, ao
prever, no artigo 295, a possibilidade de o juiz, ao verificar que a petição inicial não
foi preenchida por todos os seus requisitos e/ou apresenta vícios ou irregularidades,
determinar a emenda da inicial “indicando com precisão o que deve ser corrigido”.
Ainda quanto à postura ativa — porém imparcial — do juiz na condução do
processo, o novo Código de Processo Civil permite que o mesmo, a qualquer fase
do processo, determine o comparecimento das partes e ordene informações de pes-
soas jurídicas a respeito de informações que estão sobre o seu poder, conforme
se percebe do artigo 731. Esse dispositivo altera substancialmente o papel do juiz

2 - O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais,
convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinen-
tes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.
3 - As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notifica-
das e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no nº 3 do artigo 519º
4 - Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informa-
ção que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processuais, deve o
juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.
Artigo 266º-A
Dever de boa fé processual
As partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior.

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na condução do processo, ao prestigiar o diálogo entre os sujeitos do processo e a


busca por informações baseadas na lógica argumentativa.
Vale ressaltar que o artigo 284 do diploma atual já contém possibilidade de
emenda da inicial na hipótese de ausência de requisitos, vícios e/ou irregularidades.
De outra via, o artigo 342 também faculta ao juiz a postura de chamar as partes a
qualquer tempo para esclarecer fatos da causa. Contudo, estes dois dispositivos não
representam o verdadeiro espírito da colaboração no processo civil, que o conjunto da
obra consubstanciada no projeto do novo código contém.

Conclusão
Por processo cooperativo, deve-se ter a ideia de uma organização social baseada
na democracia, solidariedade e contraditório, sendo este o meio pelo qual se realiza a
cooperação e o diálogo no processo, o que implica deveres de conduta para as partes
e para o juiz. Nesse sentido, o juiz assume posição paritária na condução do processo
e assimétrico na decisão, além do que a verdade deve ser alcançada mediante tarefa
do juiz e das partes.
A democracia deliberativa proposta por Habermas, aplicada ao processo, con-
cretiza em grau elevado o princípio da democracia e do contraditório, levando-se em
conta as possibilidades jurídicas e fáticas, pois, por meio do contraditório como di-
reito de influência, as partes participam de forma mais ativa no deslinde do feito,
colaborando com o magistrado na condução do processo e no conteúdo da sentença.
O contraditório como direito de influência é instrumento de concretização da
democracia deliberativa no processo civil, dando ensejo à efetiva colaboração, uma
vez que permite a produção de atos estimulantes pelas partes e pelo juiz, atos estes
que influenciem reciprocamente as atitudes dos sujeitos processuais.
Por tudo o que foi exposto, com a nova fase metodológica do processo civil (for-
malismo-valorativo ou neoprocessualismo) e a cooperação no processo civil, calcada
na democracia deliberativa e no contraditório como direito de influência, percebe-se
uma aproximação substancial do juiz em relação às partes. Em contrapartida, é patente
o incremento da posição jurídica das partes no deslinde do feito.
O projeto do novo Código de Processo Civil caminhou bem ao prever inúmeros
dispositivos na linha da colaboração, contudo, a efetividade do processo civil coope-
rativo perpassa muito mais por uma mudança cultural do que propriamente pela codi-
ficação de deveres, direitos e poderes direcionados nesse sentido, motivo pelo qual
a implementação desse modelo não será feita de forma automática, com importação
de diplomas processuais de outros países.2

2
Teresa Arruda Alvim Wambier, no XXII encontro nacional do CONPEDI, ao responder uma pergunta minha sobre a
possibilidade de implantação da mediação feita na Inglaterra no Brasil, disse: “para importar as civil procedure
rules é necessário importar os ingleses também”.

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Cooperação no processo civil – A paridade do juiz e o reforço das posições jurídicas...

Aliás, a cooperação no processo civil poderia ser concretizada no sistema


processual brasileiro apenas com a conjugação dos princípios do contraditório, da
sol­i­dariedade e da democracia, alçados ao patamar constitucional, sem a neces­si­
dade de previsão expressa de inúmeros deveres e direitos. Nesse desiderato, se
o processo legislativo é feito por representantes eleitos, não há motivo para uma
decisão judicial ser autoritária. Ou seja, não se deve apenas possibilitar a participa-
ção das partes na formação da decisão judicial, mas estimular e fomentar o intenso
diálogo e participação.
A principal mudança deve se operar no âmbito cultural, pois, como foi visto, é
impor­tantíssimo que os sujeitos processuais se conscientizem sobre o papel das
partes no andamento do feito, bem como sobre os deveres de prevenção, auxílio
e esclarecimento do magistrado para com as partes. E mais, é inarredável que os
sujeitos do processo sejam uníssonos a respeito da interdependência entre todos no
diálogo, na esteira da colaboração. Só assim será possível implementar o modelo do
processo civil cooperativo.
Esta lógica será praticada de forma saudável apenas se os sujeitos processuais
estiverem conscientes de suas dependências recíprocas e com vontade de se enten-
derem mutuamente:

Cooperation in Civil Procedure – Equality Judge and the Parties Power within a New Conception of
Democracy and Contradictory
Abstract: This cooperation in civil proceedings, addressed numerous devices in the design of the new
Code of Civil Procedure. Establishes the influence of formalism-evaluative — new phase of civil procedure
methodological — the stoning of collaboration. Search foundations for the implementation of civil
cooperation, especially in playing the strengthening of the legal positions of the parties and the parity of
the judge in conducting the process. Reflects on the importance of a new look to the adversarial principle
and democracy, in order to perform in a full collaboration. Figuring out a model of how contradictory right
to influence and deliberative democracy applied to civil proceedings in order to enable greater participation
of the parties in disentangling procedural and training of the judicial decision. Analyzes the impact of
cooperation on the design of the new Civil Procedure Code and reflects on the challenges of this new
venture in the field of procedural law.

Key words: Collaboration in civil proceedings. Deliberative democracy. Contradictory.

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Alexandre Pereira Bonna

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o reforço das posições jurídicas das partes a partir de uma nova concepção de
demo­cracia e contraditório. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 22, n. 85, p. 75-88, jan./mar. 2014.

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Culpa médica e sua apuração processual
– Uma análise das teorias da prova

Luciana de Paula Lima Gazzola


Mestranda e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Médica Pato-
logista. Especialista em Direito Médico pela Escola Paulista de Direito. Assessora Judiciária
no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Professora do Centro Universitário UNA
e da UniBH.

Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves


Doutor, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Juiz Federal
em Belo Horizonte. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais.

Resumo: A responsabilidade civil do médico é tema relevante na sociedade moderna, tendo-se notado con-
siderável incremento nas demandas judiciais que versam sobre a questão. Com a crescente complexidade
nas relações de saúde, a prova da culpa médica em demandas judiciais é tarefa de fundamental impor-
tância, porém sempre difícil. Nesse ínterim, de interesse acadêmico é a análise das teorias que regem
a produção processual da prova da culpa médica, como os modos de distribuição do ônus da prova, sua
inversão e a teoria das cargas probatórias dinâmicas. Entre as formas jurídicas de abrandamento dos pres-
supostos da responsabilidade civil, enquadra-se, ainda, a teoria da perda de uma chance. Procurar-se-á
demonstrar que a teoria dinâmica amolda-se às tendências do processo atual, no intuito de se compartilhar
o encargo probatório entre os litigantes, a fim de que se adote uma postura ativa e participante na colheita
de provas, de forma bilateral e consentânea com os ditames da justiça material.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Culpa médica. Teorias da prova. Ônus da prova.

Sumário: 1 Introdução – 2 A responsabilidade civil do médico – 3 Obrigações de meios e de resultados –


4 A questão probatória no Direito Processual Civil – 5 As teorias da prova – 6 As peculiaridades da prova
da culpa médica e a potencial aplicação do Código de Defesa do Consumidor – 7 A teoria da perda de uma
chance e sua aplicação do Direito Médico – 8 Conclusão – Referências

1 Introdução
Numerosas são as razões que motivaram a intensificação do interesse pelo estudo
da responsabilidade civil do médico. O desenvolvimento tecnológico, a publi­cidade e
a divulgação de resultados (especialmente na medicina estética) e a socie­dade de
consumo são alguns dos fatores que contribuíram para o progressivo distanciamento
do médico de seu paciente; pode-se dizer, sem exagero, que até mesmo a denomina-
ção dos sujeitos da relação não é mais a mesma, tendo passado para prestador de
serviços e usuário, numa nítida tendência à transformação consumerista da outrora
personalíssima relação entre médico e paciente.

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Houve tempo em que o médico ocupava lugar destacado na sociedade. O paciente


depositava toda sua confiança em seu médico e o estado da ciência em épocas passa-
das, cheia de dúvidas e raras verdades, contribuía para essa confiança quase “cega”.
As desgraças que porventura ocorressem em um procedimento cirúrgico, à guisa de
exemplo, eram atribuídas ao destino, à fatalidade. Não se cogitava da possibilidade de
um erro atribuível à conduta pessoal do profissional da saúde.
A sociedade contemporânea trouxe profundas alterações na prestação de servi-
ços de saúde, em todos os níveis assistenciais. O paciente de hoje mostra-se cada
vez mais consciente de seus direitos (reais ou fictícios) e mais esperançoso e exigente
de bons resultados. Ainda, com a impessoalização da relação médico-paciente e a
consequente quebra da confiança e do afeto que existiam com o médico de família
de outrora, ajuizar uma ação contra o “médico do plano de saúde”, que muitas vezes
manteve uma relação apenas momentânea e superficial com o paciente, tornou-se
fácil e pouco traumático.
É fato notório que a medicina tornou-se ciência ainda mais complexa, mas
com os mesmos resultados aleatórios de outrora. O avanço tecnológico na área da
saúde não é capaz de suprimir por completo essa álea. A medicina não é ciência
exata, afirmam os médicos, não sem razão. Não há doenças, há doentes: pessoas
acometidas da mesma moléstia reagem de forma diversa ao mesmo tratamento.
A maioria dos atos médicos inevitavelmente implica riscos para o paciente e nem
sempre a ocorrência de um dano em um tratamento ou intervenção médica indica a
presença de culpa.
Por essa gama de fatores, a doutrina especializada indica nota característica
das ações judiciais que fulcram na responsabilidade civil médica: a grande dificuldade
na produção da prova. No debate jurídico sobre o processo por responsabilidade
médica, o ponto nodal é o onus probandi: quem deve provar o quê? Considerando
ainda a hipossuficiência técnica do paciente, que nada sabe em matéria de medicina,
a questão se torna ainda mais delicada.
Sendo, portanto, consideráveis as dificuldades para a produção da prova da
culpa médica, pretende-se analisar as principais teorias que regem a matéria, como
as formas de distribuição do ônus da prova, sua inversão e a teoria das cargas pro-
batórias dinâmicas. Importa, ainda, avaliar as repercussões da aplicação processual,
na seara médica, da teoria da perda de uma chance de cura ou sobrevivência, que
contribuiu para a perigosa tendência atual de ampliação do âmbito de incidência da
responsabilidade civil por ato médico.
Dada a espécie do trabalho e a profundidade da matéria, não se pretende es-
gotar o assunto, tampouco apresentar conclusões definitivas; apenas contribuir para
o debate.

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

2  A responsabilidade civil do médico


A tentativa de se definir o instituto da responsabilidade civil em um conceito
único é infrutífera; sua ideia é proveniente de séculos de debates, é fruto de uma cons-
trução social imposta ao Direito que um conceito estático não seria capaz de abarcar.
A necessidade de se responsabilizar quem causa um dano a outrem já permeava as
primitivas relações humanas. Com a progressiva complexidade das relações sociais,
a noção de responsabilidade civil se solidifica juntamente com a evolução do conceito
primitivo de vingança e justiça privada para a efetiva e privativa aplicação da justiça
pelo Estado.
A responsabilidade civil designa a obrigação de reparar ou ressarcir um dano,
quando causado a outrem, injustamente. Decorrente de ato humano, tem como pres-
supostos a existência de uma conduta voluntária (comissiva ou omissiva), o dano
injusto sofrido pela vítima (patrimonial ou extrapatrimonial, podendo ser exclusiva-
mente moral) e a relação de causalidade entre o dano e a ação do agente.
Todavia, a ideia de reparação é muito mais ampla do que a de ato ilícito: se este
cria o dever de ressarcir, há, entretanto, casos de indenização em que não se cogita
da ilicitude da conduta do agente (PEREIRA, 2008b, p. 555); em outras palavras, não
há a exigência absoluta de um ilícito para que surja o dever de indenizar. E, com a
evolução do entendimento do instituto da responsabilidade civil subjetiva, a punição
do agente do ato ilícito deu lugar à proteção da vítima de um dano injusto.
O instituto foi tradicionalmente construído sobre o conceito de culpa, que é a
base da responsabilidade subjetiva. Mas o jurista moderno compreendeu que a mera
culpa não satisfaz, sendo insuficiente para perpassar toda a gama dos danos ressar-
cíveis e, com o tempo, a responsabilidade civil foi-se afastando da culpa. Situações
diversas vieram suscitar a necessidade de transferir a responsabilidade civil para
um outro vetor: o do risco. As consequências danosas de atividades naturalmente
perigosas deviam ser suportadas por quem cria ou mantém o risco, ou por quem dele
se beneficia. Caio Mário Pereira (2008b, p. 563) diz que “foi preciso recorrer a outros
meios técnicos e aceitar, vencendo para isto resistências quotidianas, que em muitos
casos o dano é reparável sem o fundamento da culpa”.
A corrente objetivista insurgiu-se contra a culpa e procurou desvincular o dever
de ressarcir dessa ideia. Foram criadas diversas teorias do risco, que perpassaram
pelo risco-proveito, risco social, risco profissional e risco criado, todas elas contribuindo
para o nascedouro e consagração da teoria da responsabilidade objetiva. Porém, a
regra geral que deve presidir a responsabilidade civil é sua fundamentação na culpa;
sendo esta insuficiente para atender às imposições do progresso, cumpre ao legis-
lador fixar os casos em que deverá ocorrer a obrigação de reparar de forma objetiva.
Sílvio Rodrigues, citado por Miguel Kfouri Neto (2003, p. 61), sobre os con-
ceitos de responsabilidade civil subjetiva e objetiva, afirma que, a rigor, não seriam

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espécies diferentes de responsabilidade, mas sim distintas formas de se avaliar a


obrigação de reparar o dano.
Apesar da diferença histórica na inclusão da responsabilidade civil médica no
âmbito do ato ilícito ou da relação contratual, não existiria, em tese, diferença onto-
lógica e o problema continua o mesmo, após a entrada em vigor do novo Código Civil
em 2002: a análise e a prova da culpa. A culpa profissional do médico constitui um
dos problemas jurídicos e deontológicos mais antigos, sempre objeto de debates,
dada a natureza particular da atividade médica. Será sempre necessária ampla reflexão
no caso concreto para uma adequada avaliação do erro médico.
A doutrina e a jurisprudência são uníssonas em afirmar que a responsabilidade
civil dos profissionais liberais é eminentemente subjetiva: a responsabilidade espe-
cífica do profissional médico tem como pressuposto o ato médico e assenta-se na
culpa, traduzida em suas formas de imperícia, imprudência e negligência. Dessarte,
pressupõe ato praticado com violação a um dever médico imposto pela lei, pelo
costume ou pelo contrato, imputável a título de culpa, causador de um dano injusto,
patrimonial ou extrapatrimonial.
Pela negligência, a culpa equivale a uma conduta omissiva, ocorrendo quando
o médico deixa de observar medidas e precauções necessárias. Podem configurar
exemplos de negligência: o abandono do plantão, a letra indecifrável em receitas
médicas, a prescrição de tratamento sem exame físico do paciente (salvo casos
justificáveis de emergência).
Ocorre a imprudência por meio de conduta comissiva, praticada quando o mé-
dico toma atitudes intempestivas e descuidadas, deixando de prever o resultado que
poderia e deveria ter previsto. É imprudente o médico que transporta pacientes graves
em ambulâncias inadequadas e o anestesista que realiza procedimentos simultâneos
em vários pacientes — a propósito, milita em desfavor do anestesista certa presun-
ção de culpa nas situações em que ocorre afastamento da sala de cirurgia, antes
que o paciente recobre a consciência, ou quando o mesmo profissional realiza várias
anestesias simultâneas (KFOURI NETO, 2003, p. 221).
Por fim, dá-se a imperícia quando o agente causador do dano revela, em sua
atitude profissional, deficiência injustificável ou falta de conhecimentos técnicos de
seu ofício. É o despreparo prático, a inaptidão técnica para realizar o ato. Ressalta-
se que a avaliação da imperícia médica se dá ad hoc, no referido ato. É imperito o
médico que emprega meio de tratamento já abandonado por ineficaz. O médico tem
liberdade para definir o melhor tratamento para seu paciente, mas essa liberdade não
é irrestrita: tem limites, sobretudo, nas regras unanimemente aceitas e seguras da
ciência médica, da lex artis.
A culpa, em suas três modalidades relatadas, não poderá ser presumida; deve-
rão ser provados, em juízo, os fatos que a configuraram. A prova da culpa nas ações

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

de responsabilidade civil por erro médico é questão que, por suas peculiaridades
no caso concreto, merece detalhado debate. Porém, antes disso, importam breves
distinções entre as obrigações de meios e de resultados, cuja caracterização pode
influenciar a prova da culpa.

3  Obrigações de meios e de resultados


A obrigação contraída pelo médico é uma obrigação de fazer, a princípio infungí-
vel. A divisão do gênero obrigação de fazer em espécies obrigações “de meios” e “de
resultados” vem da civilística francesa da década de 30. Desde então, compreende-se
que o médico presta uma obrigação de meios, não de resultado. Nas obrigações de
resultado, a execução considera-se atingida no momento em que o devedor cumpre
o objetivo final; a essência da prestação é o próprio bem ou resultado contratados
pelas partes. Nas de meio, o devedor não se compromete a obter o resultado, mas
a se esforçar ao máximo para atingi-lo. Dessa forma, não se cogita do resultado final
para se definir as hipóteses de inexecução, mas sim se o devedor desviou da conduta
devida ou se omitiu de certas precauções (PEREIRA, 2008a, p. 56).
Nos dizeres de Ruy Rosado de Aguiar Júnior (1995, p. 41):

A obrigação é de meios quando o profissional assume prestar um serviço


ao qual dedicará atenção, cuidado e diligência exigidos pelas circunstân-
cias, de acordo com o seu título, com os recursos de que dispõe e com o
desenvolvimento atual da ciência, sem se comprometer com a obtenção
de um certo resultado. O médico, normalmente, assume uma obrigação
de meios. A obrigação será de resultado quando o devedor se compro-
meter a realizar um certo fim, como, por exemplo, transportar uma carga
de um lugar a outro, ou consertar e pôr em funcionamento uma certa
máquina (será de garantia se, além disso, ainda afirmar que o maqui-
nário atingirá uma determinada produtividade). O médico a assume, por
exemplo, quando se compromete a efetuar uma transfusão de sangue
ou realizar certa visita.

É pacífico o entendimento de que, em regra, o profissional médico deve prestar


sua atividade de forma cuidadosa e diligente, valendo-se dos conhecimentos técnicos
consagrados em sua ciência; ele não se compromete a garantir o resultado cura. Isso
ocorre porque, conforme já explicitado, a atividade médica, por definição, está sujeita ao
acaso, ao imprevisível comportamento da fisiopatologia humana, que, por vezes, desafia
o senso comum e as expectativas prováveis. Nesse contexto, a prova de que o cumpri-
mento da obrigação não constituiu atividade diligente e na forma devida estaria a cargo
do paciente. Essa distinção, assim, pode interferir sobremaneira no onus probandi.
Nota-se grande celeuma doutrinária e jurisprudencial no que tange à subclassifi-
cação de algumas especialidades médicas em obrigações de meios e de resultados,

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Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves

especialmente a cirurgia plástica puramente embelezadora, majoritariamente enten-


dida pelos tribunais brasileiros como obrigação de resultados, sentido adotado pelo
Superior Tribunal de Justiça.1
Contudo, releva ressaltar que a doutrina especializada entende que a respon-
sabilidade do cirurgião plástico se enquadra em presunção de culpa pelo não atin-
gimento do melhoramento estético almejado (KFOURI NETO, 2002, p. 237). Mas, a
rigor, não se pode deixar de admitir a existência de álea em qualquer procedimento
cirúrgico, que vem das reações orgânicas extremamente variáveis de cada indivíduo.
Restaria, assim, para o enquadramento em obrigações de resultado, apenas procedi-
mentos médicos puramente mecânicos e baseados exclusivamente em equipamen-
tos, como certos exames laboratoriais. Entretanto, os tribunais são quase uníssonos
em afirmar que, mesmo não provada a culpa do cirurgião plástico esteta, basta o
resultado insatisfatório para que se caracterize a obrigação de indenizar.
Com o esforço de especialistas desse novo ramo do Direito, o Direito Médico,
esse posicionamento vem mudando, mas ainda de forma embrionária. A respeito do
tema, o Desembargador Miguel Kfouri Neto já se pronunciava há alguns anos (2002,
p. 176):

Hodiernamente, não há dúvida de que a cirurgia plástica integra-se nor-


malmente ao universo do tratamento médico e não deve ser considerada
uma “cirurgia de luxo” ou mero capricho de quem a ela se submete. Difi-
cilmente um paciente busca a cirurgia estética com absoluta leviandade e
sem real necessidade, ao menos de ordem psíquica. Para ele, a solução
dessa imperfeição física assume um significado relevante no âmbito de
sua psique — daí se poder falar, ainda que em termos brandos, como afirma
Avecone — de “Estado Patológico”. Em qualquer situação, também ao
cirurgião plástico é possível demonstrar a interferência — no desencadea-
mento do resultado danoso — de fatores imprevisíveis e imponderáveis,
devidos a aspectos subjacentes à saúde do paciente, que o médico não
conhecia, nem podia conhecer, mesmo agindo com diligência e acuidade.

1
“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. [...] CIRURGIA PLÁSTICA ESTÉ­
TICA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. DANO COMPROVADO. PRESUNÇÃO DE CULPA DO MÉDICO NÃO AFASTADA.
PRECEDENTES. [...] 2. A obrigação assumida pelo médico, normalmente, é obrigação de meios, posto que
objeto do contrato estabelecido com o paciente não é a cura assegurada, mas sim o compromisso do profis-
sional no sentido de um prestação de cuidados precisos e em consonância com a ciência médica na busca
pela cura. 3. Apesar de abalizada doutrina em sentido contrário, este Superior Tribunal de Justiça tem enten-
dido que a situação é distinta, todavia, quando o médico se compromete com o paciente a alcançar um deter-
minado resultado, o que ocorre no caso da cirurgia plástica meramente estética. Nesta hipótese, segundo o
entendimento nesta Corte Superior, o que se tem é uma obrigação de resultados e não de meios. 4. No caso
das obrigações de meio, à vítima incumbe, mais do que demonstrar o dano, provar que este decorreu de culpa
por parte do médico. Já nas obrigações de resultado, como a que serviu de origem à controvérsia, basta que
a vítima demonstre, como fez, o dano (que o médico não alcançou o resultado prometido e contratado) para
que a culpa se presuma, havendo, destarte, a inversão do ônus da prova. 5. Não se priva, assim, o médico
da possibilidade de demonstrar, pelos meios de prova admissíveis, que o evento danoso tenha decorrido, por
exemplo, de motivo de força maior, caso fortuito ou mesmo de culpa exclusiva da ‘vítima’ (paciente)” (STJ.
REsp nº 236.708/MG. 4ª Turma. Rel. Carlos Fernando Mathias. Publ. 18.05.2009).

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

Não se deve, no entanto, confundir institutos e aproximar a ideia de obrigação de


resultados à responsabilidade objetiva. São conceitos distintos. A teoria da obrigação
de resultados não rompe com a teoria da culpa. Tanto na obrigação de meios como
na de resultados, impõe-se a existência de culpa em sentido amplo. Na obrigação de
meios, o credor deverá provar a conduta ilícita do devedor, isto é, que o devedor (no
caso, o médico) não agiu com atenção, diligência e cuidados adequados na execução
do contrato. Na de resultados, haveria uma forma de “presunção” de culpa: presume-se
que a não obtenção do resultado almejado decorreu de atuação inadequada ou cul-
posa do contratado, transferindo-se ao médico o ônus de provar que agiu de forma
diligente e esperada no âmbito do caso concreto.2
Em ambas, a responsabilidade do profissional estará ancorada na culpa: na
atividade de meios, culpa-se o agente pelo erro de percurso, mas não pelo resultado,
pelo qual não se responsabilizou; na atividade de resultado, culpa-se pelo erro de
percurso e também pela não obtenção ou insucesso do resultado, porque este era o
fim colimado e avençado.
Dessa forma, a responsabilidade de um cirurgião plástico esteta, mesmo para
os que entendem que sua obrigação é de resultados, continua no âmbito da respon-
sabilidade subjetiva, embora a ele possam se aplicar certas consequências proces-
suais da responsabilidade objetiva, como a inversão do ônus da prova.
A evolução do entendimento jurisprudencial em relação à prova da culpa e ao
ônus da prova em demandas médicas torna essa rígida divisão entre obrigação de
meios e de resultados, de certa forma, mitigada, uma vez que o caso concreto e a
dinamização do onus probandi serão preponderantes na avaliação da responsabili-
dade civil por ato médico.

4  A questão probatória no Direito Processual Civil


Ao analisar o instituto da prova no Direito Processual Civil, preleciona o professor
Humberto Theodoro Júnior (2009, p. 411) que:

2
CIRURGIA ESTÉTICA. INDENIZAÇÃO. QUELOIDES. Trata-se, na origem, de ação de indenização por danos morais
e estéticos, ajuizada pela ora recorrente contra o recorrido, na qual alega que foi submetida a uma cirurgia
estética (mamoplastia de aumento e lipoaspiração), que resultou em grandes lesões proliferativas — formadas
por tecidos de cicatrização — nos locais em que ocorreram os cortes da operação. Ora, o fato de a obrigação
ser de resultado, como o caso de cirurgia plástica de cunho exclusivamente embelezador, não torna objetiva a
responsabilidade do médico, ao contrário do que alega a recorrente. Permanece subjetiva a responsabilidade
do profissional de Medicina, mas se transfere para o médico o ônus de demonstrar que os eventos danosos
decorreram de fatores alheios à sua atuação durante a cirurgia. Assim, conforme o acórdão recorrido, o laudo
pericial é suficientemente seguro para afirmar a ausência de qualquer negligência do cirurgião. Ele não poderia
prever ou evitar as intercorrências registradas no processo de cicatrização da recorrente. Assim, não é possível
pretender imputar ao recorrido a responsabilidade pelo surgimento de um evento absolutamente casual, para o
qual não contribuiu. A formação do chamado queloide decorreu de característica pessoal da recorrente, e não
da má atuação do recorrido (STJ. REsp 1.180.815/MG. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julg. 19.08.2010).

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Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves

Todos os pretensos direitos subjetivos que podem figurar nos litígios a


serem solucionados pelo processo se originam de fatos. [...] Do exame
dos fatos e de sua adequação ao direito subjetivo, o juiz extrairá a solu-
ção do litígio que será revelada na sentença.

O instituto da prova é, portanto, de fundamental importância na sistemática


processual e na formação do convencimento do magistrado.
Reconhecido o direito à prova como uma garantia constitucional autônoma, em
razão do disposto no inciso LVI do art. 5º, e também decorrente das garantias da
ação, do contraditório e da ampla defesa, deve ser assegurado às partes o direito de
empregar todos os meios de prova possíveis, destinados à demonstração da veraci-
dade dos fatos alegados, de modo a influir no conhecimento do juiz. Nesse contexto,
eventuais restrições infraconstitucionais ao direito à prova devem ser determinadas
por motivos relevantes, racionais, razoáveis e que não sejam de caráter meramente
formalista.
O processo de conhecimento tem como objeto as provas dos fatos alegados
pelas partes em juízo, a partir das quais o julgador definirá e declarará o direito
aplicável ao caso sub judice. Às partes, não basta apenas alegar os fatos ocorridos,
sendo necessário prová-los.
No sistema processual brasileiro, o julgamento é fruto de uma operação lógica
baseada nos elementos de convicção existentes no processo: é o sistema da persua-
são racional, sendo o julgamento final sempre motivado e devidamente fundamentado,
o que impede a arbitrariedade do julgador.
Nesse contexto processual, assume particular importância a questão pertinente
ao ônus da prova, que consiste “na conduta processual exigida da parte para que
a verdade dos fatos por ela arrolados seja admitida pelo juiz” (THEODORO JÚNIOR,
2009, p. 420).
Não há uma obrigação de provar: há um simples ônus. Ônus são aquelas ativi-
dades, convém salientar, que a parte realiza no processo em seu próprio benefício.
Um ônus processual é, assim, uma atribuição de certa conduta a uma parte. “Se ela
observa essa conduta, pratica o ato imposto por lei, nada lhe acontece. Mas se não
se desincumbe dele, sofrerá um prejuízo” (BARBI, 1998, p. 252). Caso o litigante não
confirme a verdade dos fatos alegados por meio da prova, assume o risco de perder
a causa.
Trata-se, em verdade, de um ônus imperfeito, pois a não observância do encar-
go de produzir provas não levará, de forma imediata e automática, ao insucesso da
pretensão desejada pela parte omissa. Ainda haverá possibilidade de que a parte,
mesmo que não tenha se desincumbido do encargo probatório, possa ter êxito na
demanda proposta.

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

Em uma visão simplista: inexistindo, assim, obrigação ou dever de provar para


a parte, em última análise o ônus da prova se torna um critério de julgamento para o
juiz:3 quando ao tempo da sentença, o juiz se encontrar em um “estado de perplexi-
dade” por não haver prova que o convença da verdade, decidirá a causa contra quem
o sistema legal atribuiu o ônus da prova, de acordo com o artigo 333 do Código de
Processo Civil (CPC).
Explica-se: o encargo de se produzir a prova deve ser observado sob dois enfo-
ques principais, um subjetivo e um objetivo. O primeiro destina-se a avaliar o sujeito
que levará a prova a juízo, a quem cabe a produção de provas no processo. Já de
acordo com a concepção objetiva, o destinatário final da regra que distribui o ônus
probatório seria o juiz, pois a prova nada mais seria que um fator de convencimento e
orientação para sua decisão, diante da impossibilidade, em todos os casos levados
ao Poder Judiciário, de se proferir um non liquet.4
Há um fundamento de justiça em se repartir entre as partes o ônus de produzir
a prova, que vai ao encontro do princípio constitucional da igualdade. Nos dizeres
dos doutrinadores Ada Grinover, Cândido Dinamarco e Antônio Cintra (2009, p. 375):

O fundamento da repartição do ônus da prova entre as partes é, além de


uma razão de oportunidade e de experiência, a idéia de equidade resultante
da consideração de que, litigando as partes e devendo conceder-se-lhes a
palavra igualmente para o ataque e a defesa, é justo não impor só a uma
o ônus da prova (do autor não se pode exigir senão a prova dos fatos que
criam especificamente o direito invocado; do réu, as provas dos pressu-
postos da exceção).

As regras sobre o ônus da prova e sua distribuição constituem, assim, uma


inerência do princípio dispositivo, por meio do qual cabe às partes a cooperação no
encargo probatório. Nas hipóteses em que se tivesse um processo puramente inqui-
sitivo, não se cogitaria do onus probandi, nem das consequências do seu descum-
primento, pelo simples fato de que caberia somente ao juiz a busca da verdade dos

3
“[...] Não se desconhece que as normas relativas ao ônus da prova constituem, também, regra de julga-
mento para se evitar o non liquet do Direito Romano, pois as consequências da não-comprovação de fato
ou circunstância relevante para o julgamento da causa devem, quando da decisão, ser atribuídas à parte a
quem incumbia o ônus da sua prova. É este um dos aspectos relevantes da distribuição do ônus da prova.
Trata-se do aspecto objetivo, dirigido ao juiz. [...]” (STJ. REsp nº 802.832/MG. Voto do Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino. Julg. 09.02.2011).
“O juiz somente utilizará as normas de distribuição do ônus da prova quando o produto da atividade de instru-
ção se revela insuficiente para formar no espírito do julgador uma convicção razoavelmente sólida a respeito
dos fatos” (TJRS, 13ª CC., Ap. Civ. nº 70003044039, Rel. Des. Sérgio Luiz Grassi Beck, ac. 20.12.2005, DJ,
04 jan. 2006).
4
A expressão latina non liquet é uma abreviatura da frase iuravi mihi non liquere, atque ita iudicatu illo solutus
sum, cujo significado é: jurei que o caso não estava claro o suficiente e, em consequência, fiquei livre daquele
julgamento. Ao declarar o non liquet, o juiz romano se eximia da obrigação de julgar os casos nos quais a
resposta jurídica não era tão nítida. Na atual fase de evolução do direito, vigora a regra da proibição do non
liquet, ou seja, os juízes devem julgar todos os conflitos que lhes são submetidos.

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fatos, sendo a cooperação das partes dispensável, sequer havendo como sancioná-las
pela omissão de provar.
Embora nosso sistema processual seja predominantemente influenciado pelo
princípio dispositivo, há momentos processuais “pincelados” pelo domínio do prin-
cípio inquisitivo, como é o caso da chamada regra do diálogo, inerente à garantia
constitucional do contraditório em sua feição moderna; tal regra integra o modelo
cooperativo de processo e preconiza que o juiz deve esclarecer as partes sobre os
rumos da instrução probatória, conclamando-as a complementar ou a produzir provas.

5  As teorias da prova
5.1  A teoria estática da distribuição do ônus da prova
O precitado artigo 333 do Código de Processo Civil trata da distribuição do ônus
da prova e traz ao texto legal a teoria estática: o sistema de partilha desse ônus
no âmbito do Código é, predominantemente, rígido, estático. É o sistema do direito
positivo, a chamada divisão do ônus estático da prova.
Cada parte tem o ônus de provar os pressupostos fáticos do direito que pretende
seja aplicado em seu favor: ao ônus de afirmar fatos, segue-se o de comprová-los.
Quando, na contestação, o réu nega o fato no qual se baseia a pretensão do autor,
todo o ônus da prova recai sobre este. E se o autor não produzir prova, o réu ganhará
a causa, mesmo sem também a ter produzido. Assim eram os adágios romanos:
actore non probante, reus absolvir 5 e allegatio et non probatio, quasi non allegatio.6
Mas se o réu utiliza defesa indireta, invocando outro fato capaz de modificar, extinguir
ou impedir o direito do autor, a regra se inverte: implicitamente o réu admitiu como
verídico o fato básico da petição inicial, que se torna incontroverso e não precisa mais
ser provado. A controvérsia desloca-se para o novo fato alegado, que deverá então
ser provado pelo réu.
A teoria estática não é suficiente para orientar o juiz na busca da certeza pos-
sível. A vida é muito mais rica que a imaginação do legislador e, por isso, não se
submete sempre às suas pretensões normativas. É possível, desde já, perceber que
a multiplicidade de experiências da vida cotidiana torna, em grande número de ca-
sos, impraticável a rígida separação de fatos constitutivos e extintivos de direito em
compartimentos estanques. O acesso à verdade real pode ser sacrificado por um
rigorismo formal e, em algumas situações concretas, a teoria estática será capaz
de propiciar julgamentos injustos, por estar albergada em critérios imutáveis e infle-
xíveis. Daí ter-se, modernamente, formado um entendimento segundo o qual, nas

5
Se o autor não prova o que alega, é o réu absolvido.
6
Quem alega e não prova, é tido como não tendo alegado.

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

ações de responsabilidade civil, especialmente nas que versam sobre questões de


prestação de serviços técnicos (como o dos médicos) e de grande complexidade, é
de se admitir um abrandamento no rigor da distribuição do ônus probatório traçado
pelo artigo 333 do CPC e uma flexibilização do sistema. Afinal, a oposição de grandes
dificuldades (probatio diabolica) seria um modo de desviar o processo de suas justas
destinações.
São os dizeres de Dinamarco (2008, p. 301):

[...] sempre com a preocupação de fazer justiça e evitar que a rigidez de


métodos preestabelecidos conduza o magistrado a soluções que contra-
riem a grande premissa... de que o processo é um instrumento sensivel-
mente ético e não friamente técnico.

Importa, entretanto, ressaltar que o legislador do Código processual de 1973,


ao inserir um parágrafo único no art. 333, de certa forma, autorizou uma distribuição
do encargo probatório diversa da prevista no caput: por meio de convenção previa-
mente firmada entre as partes e desde que a alteração legal não recaia sobre direitos
indisponíveis e não torne excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
Como ressalta Suzana Santi Cremasco (2009, p. 63):

Trata-se, sem dúvida, do primeiro indicativo de que a sistemática de


repar­tição do encargo probatório no direito brasileiro não é imutável e
infle­xível, compatibilizando-se perfeitamente com a adoção da distribui-
ção dinâmica do ônus da prova [...].

Sendo, portanto, indispensável ao juiz moderno ousar e romper com imobilismos,


falar-se-á, então, nas teorias da inversão do ônus da prova e da distribuição dinâmica
do ônus probatório ou teoria das cargas probatórias dinâmicas ou compartilhadas.

5.2  A inversão do ônus da prova


A disciplina predominantemente estática do código processual civil brasileiro ganhou
temperamento com a edição do Código de Defesa do Consumidor em 1990, que
promoveu a facilitação da defesa do consumidor em juízo prevendo a possibilidade de
se determinar “a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando a
critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando ele for hipossuficiente, segundo
as regras ordinárias da experiência” (inteligência do art. 6º, VIII, da Lei nº 8.078/90).
Essa inversão do ônus da prova depende de requisitos a serem avaliados no caso
concreto, que se resumem na presença de hipossuficiência de um litigante e verossimi-
lhança de sua alegação, segundo a experiência do que comumente acontece e o fumus
boni iuris. Diante da observação de tais requisitos, o juiz estaria autorizado a exigir o

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esclarecimento do fato controverso ao outro litigante (que originalmente não tinha o


ônus de fazê-lo), aquele que detém, de fato, melhores condições de produzir a prova.
Tal inversão não pode ser automática, não ocorre pelo simples fato de se ter
em questão um processo de natureza consumerista; deve se seguir à presença dos
referidos requisitos e não pode representar surpresa para a parte, sob pena de cercea-
mento do direito de defesa e desrespeito ao princípio aclamado constitucionalmente
do devido processo legal.
A doutrina não é pacífica sobre o momento processual em que cabe tal inversão,
tendo sido propostas três teorias/regras que procuram aclarar essa nebulosidade,
sendo duas delas as principais: a regra do procedimento e a regra de julgamento. De
acordo com a primeira, a inversão deve se dar até o despacho saneador, antes que
se inicie a fase probatória, sob pena de se ferir o contraditório e a ampla defesa. O
juiz intima o novo encarregado do ônus da prova, a tempo de proporcionar-lhe possi-
bilidades de se desincumbir do encargo. Nesse ínterim, importa ressaltar os dizeres
de Humberto Theodoro Júnior (2009, p. 423):

[...] não se tolera que o juiz, de surpresa, decida aplicar a dinamização no


momento de sentenciar; o processo justo é aquele que se desenvolve às
claras, segundo os ditames do contraditório e ampla defesa, em constante
cooperação entre as partes e o juiz e, também, entre o juiz e as partes,
numa complexa reciprocidade entre todos os sujeitos do processo.

Já a segunda teoria assenta que o juiz inverte o onus probandi para julgar e
fundamentar a decisão: somente após a instrução do feito, no momento da valoração
das provas, estará o juiz apto a afirmar se existe ou não situação de inversão do
ônus da prova. Havendo deficiência de provas, as regras sobre o ônus da prova serão
utilizadas para decidir a causa. Os adeptos dessa teoria preconizam que promover
a inversão em momento anterior seria o mesmo que proceder ao prejulgamento da
causa, o que é também inadmissível.
Há ainda autores que sugeriram uma terceira regra, de que a inversão se desse
ainda no despacho da petição inicial, quando requerida pelo consumidor. A doutrina
majoritária entende que, no despacho inicial, não há elementos suficientes para a
verificação dos requisitos da inversão, rejeitando tal teoria, pois ela traz uma precipi-
tação desnecessária e que poderia prejudicar o andamento ordenado do processo e
a efetivação de justiça.
Em recente julgado, emblemático no que tange à matéria ora em análise, deci­
diu o STJ ser vedada ao juiz a inversão do ônus da prova na sentença, devendo a dina-
mização ser seguida de oportunidade para que a parte onerada possa se desincumbir
adequadamente de seu encargo.7

7
“INVERSÃO. ÔNUS. PROVA. CDC. Trata-se de REsp em que a controvérsia consiste em definir qual o momento
processual adequado para que o juiz, na responsabilidade por vício do produto (art. 18 do CDC), determine a

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

5.3  A teoria das cargas probatórias dinâmicas


A teoria dinâmica do ônus da prova ou teoria das cargas probatórias dinâmicas,
delineada na Alemanha e na Argentina a partir da antiga compreensão do processo
como uma situação jurídica, traz à baila a possibilidade de se alterar o ônus probató-
rio, equilibrando a questão em determinados casos em que tal conduta for necessária.
Tem como fundamento a presença da probatio diabolica, ou seja, a prova impossível
ou de difícil realização para uma das partes, na realidade concreta de cada processo. É
possível que apenas uma das partes tenha aptidão ou condições de produzir determi-
nada prova, quando então a ela deverá ser direcionado o ônus probatório, como forma
de garantir a isonomia substancial no processo.
Não se trata de negar ou revogar o sistema do direito positivo tradicional ou de
aplicar uma regra contra legem. Trata-se apenas de complementar tal sistema à luz
de um direito processual baseado no processo justo, com o princípio da boa-fé obje-
tiva (que traz consigo a lealdade e confiança nas relações) e seus deveres anexos de
proteção, informação e, sobretudo, cooperação e cuidado entre as partes que litigam.
Por meio da supracitada teoria, no caso concreto e conforme a evolução do
processo, o juiz poderia atribuir o ônus de produzir a prova à parte que detivesse
melho­res condições para fazê-lo, traduzidas em conhecimento técnico ou informações
específicas sobre os fatos.
Essa teoria, que preconiza a atribuição do ônus probatório de caráter dinâmico
e, portanto, flexível, não se confunde com a inversão de tal ônus. Nesse sentido,
esclarecedora é a doutrina de Suzana Santi Cremasco (2009, p. 75):

E isso ocorre porque, na verdade, a distribuição dinâmica do ônus da


prova não parte de um critério apriorístico para determinar sua alteração,
mas, na essência, estabelece a cooperação das partes na colheita da

inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do mesmo codex. No julgamento do especial, entre outras
considerações, observou o Min. Relator que a distribuição do ônus da prova apresenta extrema relevância de
ordem prática, norteando, como uma bússola, o comportamento processual das partes. Naturalmente, parti-
cipará da instrução probatória com maior vigor, intensidade e interesse a parte sobre a qual recai o encargo
probatório de determinado fato controvertido no processo. Dessarte, consignou que, influindo a distribuição
do encargo probatório decisivamente na conduta processual das partes, devem elas possuir a exata ciência
do ônus atribuído a cada uma delas para que possam produzir oportunamente as provas que entenderem
necessárias. Ao contrário, permitida a distribuição ou a inversão do ônus probatório na sentença e inexistindo,
com isso, a necessária certeza processual, haverá o risco de o julgamento ser proferido sob uma deficiente e
desinteressada instrução probatória, na qual ambas as partes tenham atuado com base na confiança de que
sobre elas não recairia o encargo da prova de determinado fato. Assim, entendeu que a inversão ope judicis
do ônus da prova deve ocorrer preferencialmente no despacho saneador, ocasião em que o juiz decidirá as
questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de ins-
trução e julgamento (art. 331, §§2º e 3º, do CPC). Desse modo, confere-se maior certeza às partes referente
aos seus encargos processuais, evitando a insegurança. Com esse entendimento, a Seção, ao prosseguir o
julgamento, por maioria, negou provimento ao recurso, mantendo o acórdão que desconstituiu a sentença,
a qual determinara, nela própria, a inversão do ônus da prova. Precedentes citados: REsp 720.930/RS, DJe
09.11.2009, e REsp 881.651/BA, DJ 21.05.2007” (STJ, REsp nº 802.832/MG, Rel. Min. Paulo de Tarso
Sanseverino. Julg. 13.04.2011. Informativo, n. 0469, 11-15 abr. 2011).

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prova, distribuindo os encargos de um modo tal que pode ou não ser


condizente com a disciplina legal eventualmente existente.

Compartilha-se, portanto, o ônus de produzir a prova. Logo, a incidência dessa


teoria dar-se-á em casos nos quais a regra estática é inadequada e insuficiente,
devendo ser afastada. Sua incidência pressupõe a ausência de uma distribuição pre-
fixada do encargo entre as partes. O magistrado, avaliando as peculiaridades do
caso concreto remetido à sua apreciação e com base em máximas da experiência,
irá determinar quais fatos devem ser provados pelo demandante e pelo demandado.
É dizer: se, quando da incidência da carga dinâmica, nenhuma das partes tinha pre-
viamente distribuído o seu encargo probatório, não há que se falar em inversão de
um ônus que até então não existia. A inversão pressupõe uma responsabilidade que
é atribuída a priori a uma das partes e, uma vez observados os requisitos legalmente
previstos, será atribuída de forma cogente à parte contrária (CREMASCO, 2009, p. 76).
Ademais, a inversão decorre, no ordenamento brasileiro, de expressa previsão
legal no código consumerista. A carga dinâmica ou da prova compartilhada mostra
aplicação geral, não sofrendo limitações decorrentes de previsão legislativa: estará,
assim, voltada para todo e qualquer tipo de processo e procedimento, não apenas os
que envolvam relação de consumo, desde que o regramento estático se mostre ina-
dequado e que um dos litigantes esteja em melhores condições de produzir a prova
pretendida (CREMASCO, 2009, p. 77).

5.4  Presunção, indícios e caracterização da culpa


Do latim praesumptio (conjectura, ideia antecipada), presunção é o termo empre-
gado para exprimir a dedução, a conclusão, e promover a certeza do que não estava
mostrado nem se via como certo, pela ilação tirada de outro fato que se sabe certo
por estar provado.
No Direito Processual Civil, especialmente na doutrina alienígena, é ainda atual
a questão que trata de definir a natureza dos indícios e presunções — se eles consti-
tuem ou não meio de prova (modalidade de prova indireta). Admite-se que, em alguns
casos, podem ser aceitos no processo, não sendo possível, entretanto, por meio de
presunção, suprir a ausência de uma prova direta exigida por lei ou passível de ser
obtida por meios idôneos.
De fatos provados na lide, pode ser presumível que o demandado é culpado,
correspondendo-lhe provar que o dano é decorrente de causa alheia, não imputável
a ele. Quando o resultado do procedimento médico é danoso e incompatível com os
resul­tantes de uma terapêutica normal e diligente, está-se diante desse modo de prova,
que pode ser considerado elíptico, conducente a um sistema de presunção de culpa.
São presunções desfavoráveis ao médico: conduta omissiva, negativa de apresen-
tar documentos sobre a história clínica do doente, contradições. Sendo admitidas no

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

processo como meio de prova indireta, deverão ser tidas como juris tantum, relativas,
prevalecendo até que se demonstre o contrário. A chamada “presunção de culpa” alia-se
frequentemente à verossimilhança dos fatos alegados e hipossuficiência probatória tão
comum do autor/paciente e, assim, está ligada à inversão do ônus da prova; tem sido,
contudo, bastante combatida pelos juristas brasileiros no que tange à questão da neces-
sária prova da culpa médica.
Em países que admitem amplamente o sistema de presunção de culpa, como a
Espanha e Alemanha, nota-se a tendência no sentido de se mitigar o rigor do princípio
de que a vítima/paciente deve provar a culpa do médico.
Nesses países, adota-se ainda a chamada prova prima facie, teoria desen-
volvida na Alemanha sob o nome de Anscheinbeweis: o convencimento do juiz é
formado a partir das máximas da experiência, o que comumente ocorre (KFOURI
NETO, 2002, p. 131). Trata-se de uma prova de presunções: a prova prima facie se
materializa quando se expõe o fato do qual normalmente advém uma consequência
certa e determinada. Afasta-se tal prova desde que se aleguem fatos que demons-
trem a probabilidade contrária. Revela-se como uma questão de avaliação judicial
da prova.
A interpretação mais consentânea com os rumos do direito médico brasileiro
atual é a de que a prova da culpa médica deve ser certa, devendo-se observar extrema
prudência na avaliação de indícios e presunções que podem, até mesmo, atuar em
favor do médico.

5.5  O princípio res ipsa loquitur como forma de presunção


de culpa
Traduz-se o princípio res ipsa loquitur ou in re ipsa pela expressão “a coisa fala
por si mesma”. De restrita utilização no sistema processual brasileiro, é teoria obje-
tivista de origem norte-americana e reiteradamente aplicada nos países da common
law, no intuito de se superar as regras relativas à prova da culpa em matéria de res-
ponsabilidade civil. As circunstâncias falam por si mesmas: não há outra explicação
para o dano, a não ser a atuação culposa do agente; a simples ocorrência de um fato
danoso origina o direito à reparação.
Sua aplicação interfere na distribuição do ônus da prova. É considerada uma for-
ma de presunção de culpa, pois se cria, na maior parte dos casos em que é aplicada,
a presunção de negligência, dispensando-se até mesmo a prova pericial. Ocorre, por
exemplo, em casos de morte do doente ou amputação de um membro.
Sua formulação teórica faz parte do direito de evidência circunstancial e, nesse
contexto, são propostos requisitos para que a regra seja aplicada: o dano deve ter
resultado de um fato que não ocorre comumente se não houver negligência; deverá

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ter sido causado diretamente pelo médico ou por alguém sob seu comando; deverá
ter ocorrido em circunstâncias que indiquem que o paciente não o produziu voluntaria-
mente ou por negligência sua. A culpa exsurge da própria realidade dos fatos.8

6  As peculiaridades da prova da culpa médica e a potencial


aplicação do Código de Defesa do Consumidor
O médico quase sempre atua sobre um contexto biológico frágil e instável. A res-
posta biológica dos diversos organismos ao desequilíbrio da doença é muito variável
e o exercício da medicina confronta o médico com decisões a serem tomadas em am-
bientes instáveis e de incerteza. A complexidade do organismo humano e a inevitável
influência do meio externo tornam essa incerteza fator indissociável da prática médica.
Existem outros fatores, inerentes ao paciente ou ao próprio tratamento, que
intervêm (e condicionam o sucesso da terapia), impedem ou retardam a cura e pro-
vocam efeitos colaterais indesejáveis: debilidade orgânica, predisposição genética,
variações anatômicas, infecções, efeitos colaterais dos medicamentos. Em porção
considerável dos casos, o médico buscará apenas amenizar uma situação desfavo-
rável preexistente. E até mesmo em procedimentos singelos, tais fatores estarão
presentes, condicionando a álea médica.
O espetacular desenvolvimento da ciência determinou o aumento dos recursos
tecnológicos postos a serviço do médico: com eles, cresceram as oportunidades
de diagnóstico e tratamento, mas também e, consequentemente, os riscos. E esse
avanço da medicina não elimina absolutamente o fator aleatório.
Forçoso concluir que todos os tratamentos e procedimentos realizados trarão
em si uma margem de erro que poderá ser diminuída, mas decerto nunca eliminada
por completo. E o que muitas vezes se considera erro é, na verdade, acidente ou com-
plicação. Não se espera, não se deseja, mas é previsível que possa ocorrer. Nesse
contexto, não se justifica transferir integralmente para o profissional médico todos
esses riscos, áleas e possibilidades.
Há outros fatores inerentes à prática médica que tornam ainda maiores as
dificuldades para a produção da prova e avaliação judicial da culpa: o desenrolar dos

8
Ilustrativo de um caso de aplicação da teoria no direito pátrio é o acórdão do TJRS, que, por sua peculiaridade,
merece ser transcrito: “APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE MÉDICA. OFTALMOLOGISTA. CIRURGIA ELETIVA
DE CORREÇÃO DE MIOPIA. SUBSEQUENTE PERDA DA VISÃO. APLICAÇÃO DA DOUTRINA DA CULPA IN RE IPSA.
DANOS MATERIAIS E MORAIS. Merece ser acolhida pretensão de indenização (por gastos médicos e de terapia
psicológica) e de reparação (por dano moral) de quem, submetendo-se a cirurgia de eleição para correção de
deficiência em um dos olhos, vem a obter, como resultado, a perda de visão. Ainda que se não flagre aí uma
obrigação de resultado, inegavelmente dessa se aproxima a denominada cirurgia funcional, merecendo ser
responsabilizado o médico que, por razões insuficientemente comprovadas, não só não logra êxito — que não
lhe era exigido — mas termina por deixar o paciente em situação extremamente pior do que se encontrava
antecedentemente, pois sem visão justamente no olho operado. Merece prestígio, em casos tais, a doutrina
da culpa in re ipsa, na medida em que o sistema de responsabilidade civil do médico é o da responsabilidade
subjetiva” (TJRS. Processo nº 598068245. 6ª Câmara Cível. Rel. Antônio Jandyr Dall’Agnol Júnior. 11.11.98).

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

fatos em ambientes reservados (consultórios, salas de cirurgia) e o fato de que o


paciente é um leigo em assuntos da técnica médica, quase nada compreendendo dos
procedimentos a que é submetido ou dos termos técnicos que o médico utiliza para
explicar-lhe sua condição mórbida. “No campo do erro médico, a verdade tem três
aspectos: o do paciente, o do médico e como realmente é. O juiz tem que encontrar
o ponto justo da questão” (MORAES, 1998, p. 315). Tarefa árdua, pode-se constatar.
A culpa médica é, no entanto e apesar de todas essas particularidades, apre-
ciada como qualquer outra; sua apuração obedece aos mesmos procedimentos ado-
tados para se definir a culpa comum. Desde que o juiz entenda que um médico
prudente, nas mesmas circunstâncias, teria tido conduta diversa da do acusado,
estará configurada a obrigação de reparação. Essa culpa deve, assim, ser certa, ainda
que não seja necessariamente grave.
Atualmente, majoritário é o entendimento de que há plena sujeição da atividade
médica aos princípios e regras estabelecidos pelo Código Consumerista, sendo a
juris­prudência farta em exemplos,9 apesar do dissabor que tal entendimento causa
aos médicos e da recente modificação do Código de Ética Médica em sentido negativo
a esta afirmação.10 As relações médicas com pacientes leigos normalmente traduzem
uma hipossuficiência técnica por si só: o paciente não detém conhecimentos técnicos
sobre sua doença, sobre os procedimentos realizados, sobre as peculiaridades de
sua evolução.
Nos dizeres do jurista Eduardo Dantas (2009, p. 42):

[...] é inegável a completa e perfeita aplicabilidade do diploma consume-


rista à atividade médica, aperfeiçoando as regras já existentes, especial-
mente aquelas insertas no Código de Ética Médica. A tendência a essa
sujeição se mostra irreversível, e a obrigação de médicos, juristas e
demais operadores do Direito é buscar meios de — através da experiên-
cia cotidiana — aperfeiçoar regras, trazendo segurança (jurídica e proce-
dimental) aos profissionais da medicina e seus pacientes.

Importa ressaltar que a legislação consumerista não teve o propósito de libe-


rar o consumidor do encargo probatório previsto na lei processual, mas apenas de
superar dificuldades técnicas na produção das provas necessárias à sua defesa em

9
“RECURSO ESPECIAL. ERRO MÉDICO. CIRURGIÃO PLÁSTICO. PROFISSIONAL LIBERAL. APLICAÇÃO DO CDC.
PRESCRIÇÃO CONSUMERISTA. I - Conforme precedentes firmados pelas turmas que compõem a Segunda
Sessão, é de se aplicar o Código de Defesa do Consumidor aos serviços médicos prestados pelos profissio-
nais liberais, com as ressalvas do §4º do artigo 14. II - O fato de se exigir comprovação da culpa para poder
responsabilizar o profissional liberal médico pelos serviços prestados de forma inadequada não é motivo sufi-
ciente para afastar a regra de prescrição estabelecida no artigo 27 da legislação consumerista, que é especial
em relação às normas contidas no Código Civil. Recurso especial não conhecido” (STJ. REsp nº 731078/SP.
3ª Turma. Rel. Min. Castro Filho. DJ, 13 fev. 2006).
10
O Código de Ética Médica (Resolução nº 1.931 de 17.09.2009 do Conselho Federal de Medicina) traz a se-
guinte afirmativa no seu Capítulo I que trata dos Princípios Fundamentais: XX - a natureza personalíssima da
atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo.

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Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves

juízo. Nem todo consumidor será hipossuficiente no sentido processual (embora seja
necessariamente vulnerável, pois este é um conceito do âmbito do direito material).
A hipossuficiência refere-se a questões probatórias e haverá casos concretos em
que o consumidor possuirá os meios necessários para promover a prova do fato
constitutivo do seu direito. Logo, se na observância do caso concreto não ocorrer a
dificuldade de se produzir a prova, não poderá o juiz inverter o ônus apenas diante da
vulnerabilidade genérica reconhecida a todos os consumidores.11
A responsabilidade civil médica, no ordenamento brasileiro, é indubitavelmente
e em regra subjetiva, o que pode também ser inferido a partir da leitura do próprio
CDC, em seu artigo 14, §4º — a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais
será apurada mediante verificação da culpa. Nos dizeres do Desembargador Miguel
Kfouri Neto,12

[...] na atuação pessoal do médico, o código de consumo não se aplica


em sua totalidade: a responsabilidade pessoal do médico continua sub-
jetiva, calcada na culpa. Quando o médico se vincula a um hospital, se
o fato danoso decorrer de atos essencialmente médicos, o hospital só é
responsabilizado se houver culpa do médico, mas se o dano advém de
atos paramédicos, a responsabilidade do hospital é objetiva.13

Percebe-se a grande importância de se apurar subjetivamente a culpa do médico,


também em matéria de responsabilização do hospital, uma vez que este apenas res-
ponderá se houver culpa do médico, quando o evento danoso decorreu de ato pessoal
do profissional médico. Ou seja, se estiver em análise um caso de suposto erro cau-
sado por uma atuação pessoal de um médico, há que se determinar se o profissional
médico agiu com culpa ou não (art. 14, §4º do Código de Defesa do Consumidor).
Mas se estiver se discutindo um erro no atendimento ao paciente causado, suposta-
mente, por um defeito em um dos serviços prestados pelo hospital exclusivamente,

11
Ilustrativa é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido: “Mesmo quando caracterizada a
relação de consumo, continuam os ônus da prova submetidos, em regra, ao art. 333 do CPC. A inversão só
pode ocorrer, durante a marcha do processo, quando o juiz verificar a dificuldade em que se encontra o consu-
midor para provar o fato constitutivo de seu direito. Esse fato, todavia, tem de revestir-se de verossimilhança
diante dos elementos disponíveis no processo e ao consumidor deve faltar condições técnicas para prová-lo
adequadamente. Se o juiz não se basear na verossimilhança nem na hipossuficiência para fundamentar o de-
certo de inversão, esta não subsistirá, e o que haverá de prevalecer será a regra geral do art. 333 do Código
de Processo Civil” (STJ. REsp nº 437.425/RS. 4ª Turma. Rel. Min. Barros Monteiro. Ac. 15.08.2002, DJU,
p. 232, 24 mar. 2003).
12
Em palestra proferida no I Congresso de Direito Civil, realizado em 07.10.2009, em Belo Horizonte.
13
“INDENIZAÇÃO – Responsabilidade civil – Hospital – Ajuizamento com base no Código de Defesa do Consumidor
– Responsabilidade objetiva – Inadmissibilidade – Hipótese de exercício de profissão liberal, na medida em que
o que se põe em exame é o próprio trabalho do médico – Necessidade de prova de que o réu agiu com culpa ou
dolo – Art. 14, §4º, do referido Código – Recurso não provido. Em ação de indenização contra hospital, ajuizada
com base no Código de Defesa do Consumidor, embora se trate de pessoa jurídica, a ela não se aplica a
responsabilidade objetiva na medida em que o que se põe aqui em exame é o próprio trabalho do médico, que
responde se provada a culpa” (TJSP. Rel. Des. Marco Cesar. RJTJSP-Lex 141/248).

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

o que norteará a responsabilização do hospital será a teoria da responsabilidade


objetiva (art. 14, caput do Código de Defesa do Consumidor). Nesse caso, o hospital
só se eximirá se conseguir provar que ocorreu um caso fortuito ou força maior, ou que
o infortúnio ocorreu por culpa exclusiva do paciente ou de terceiro.14
Em sentido contrário ao previamente exposto, há argumentos que buscam as-
sentar que o Código de Defesa do Consumidor não se aplicaria às relações médicas,
que deverão, em regra, ser regidas pelo Código Civil Brasileiro. Tais opiniões restam
minoritárias na jurisprudência e doutrina, mas merecem ser ressaltadas.
Nesse sentido, argumenta-se que o paciente não é consumidor; sua relação
com o médico é puramente civil e era abarcada pelo artigo 1.545 do antigo Código
Civil de 1916,15 que não havia sido revogado pelo CDC e cuja ideia encontra-se
expressa no artigo 951 do atual Código Civil de 2002. Além disso, alega-se que o
CDC evitou fazer qualquer referência expressa aos serviços médicos e hospitalares
e que a obrigação médica é personalíssima, intuitu personae, baseada na confiança
pessoal. O parágrafo 4º do artigo 14 do CDC estaria, então, a afastar a responsabili-
dade do profissional liberal da legislação consumerista como um todo e não apenas
do âmbito da responsabilidade objetiva do código. Com efeito, a atividade diligente
do profissional, dirigida sempre a conseguir o melhor resultado para seu cliente,
não é outra coisa que o próprio conteúdo da obrigação por ele assumida. A falta do
resultado almejado pelo cliente, se a conduta do profissional é diligente e impecável,
não produz descumprimento do contrato, não é nenhum ato ilícito, não cria nenhum
direito ao ressarcimento das perdas e danos (GÓMEZ, 2004).
Ademais, os doutrinadores que compartilham esta opinião alegam que a grande
maioria dos dispositivos do CDC não se aplicaria às relações médicas, tendo em
vista que

[...] a oferta e o conteúdo da prestação de serviços pessoais de saúde


não vêm fixados, em nenhum caso, pela exclusiva vontade do médico, o
fornecedor do serviço, mas, senão, pelas normas profissionais da organi-
zação médica que zela pela adequada prática da medicina e pela lex artis
profissional. (GÓMEZ, 2004)

14
O entendimento do STJ é no mesmo sentido: “RESPONSABILIDADE. HOSPITAL. MÉDICO. DIAGNÓSTICO. A Turma
negou provimento ao recurso, reiterando o entendimento de que se aplica o CDC no que se refere à responsabili-
dade médica e hospitalar, cabendo ao hospital, por vício do serviço, a responsabilidade objetiva (art. 14 daquele
código), no caso de dano material e moral causado a paciente que escolhe o hospital (emergência) e é atendido
por profissional médico integrante, a qualquer título, de seu corpo clínico, prestando atendimento inadequado,
causador de morte (erro de diagnóstico). Outrossim, responde por culpa subjetiva o médico, aplicando-se, porém,
a inversão do ônus da prova (art. 5º, VII, do mencionado código)” (REsp nº 696.284/RJ. Rel. Min. Sidnei Beneti.
Julg. 03.12.2009).
15
“Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre
que da imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir,
ou ferimento”.

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Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves

Ainda no que tange à aplicação do Código Consumerista na responsabilidade


civil médica, outro aspecto importante a ser ressaltado e que tem sido o entendimento
dos tribunais nacionais é a utilização da teoria do diálogo das fontes, idealizada pelo
alemão Erik Jayme e aplicada, no Brasil, pela primeira vez, por Cláudia Lima Marques
(2004), a fim de preservar a coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e
o novo Código Civil.16
Havendo duas leis, em tese, conflituosas, como o podem ser o Código Civil de
2002 e o Código de Defesa do Consumidor de 1990 nas relações de prestação de
serviços de saúde, o juiz deve compatibilizar as fontes e não simplesmente revogar
a mais antiga. A partir dessa ideia, analisa-se se há culpa por parte do médico (res-
ponsabilização de acordo com a teoria subjetivista), porém pode-se inverter o ônus
da prova a favor do paciente que, no caso concreto, demonstrar-se hipossuficiente
em matéria probatória.
Lembramos, no entanto, que admitir a possibilidade irrestrita de inversão do
ônus da prova em demandas médicas depende também de se considerar a obrigação
médica como sendo de resultado ou de adotar a presunção de culpa, o que não nos
parece solução aceitável.
Não se pode olvidar, ainda, que a prova de ausência de culpa por parte do médico
pode ser “diabólica”, de muito difícil realização. Atualmente, corre-se o risco de se
passar de uma situação de vítimas indefesas a outra situação, não menos perigosa e
injusta, de profissionais indefesos.
A notória dificuldade na obtenção da prova, habitual em ações que versam sobre
o Direito Médico, tem levado muitos doutrinadores e tribunais ao estabelecimento
de precedentes cada vez mais próximos da responsabilidade objetiva, dissociada da
noção de culpa, o que é conduta extremamente perigosa e deve ser proscrita da afe-
rição da responsabilidade pessoal do médico. É a posição de Luis Gonzáles Morán,
citado por Miguel Kfouri Neto (2002, p. 168):

“[...] na sociedade complexa atual, com a descodificação, a tópica e a microrecodificação (como a do CDC),
16

trazendo uma forte pluralidade de leis ou fontes, a doutrina atualizada está à procura de uma harmonia ou
coordenação entre estas diversas normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema).
Erik Jayme alerta-nos que, nos atuais tempos pós-modernos, a pluralidade, a complexidade, a distinção impo-
sitiva dos direitos humanos e do ‘droit à la differènce’ (direito a ser diferente e ser tratado diferentemente, sem
necessidade mais de ser ‘igual’ aos outros) não mais permitem este tipo de clareza ou de ‘mono-solução’. A
solução atual ou pós-moderna é sistemática e tópica ao mesmo tempo, pois deve ser mais fluida, mais flexí-
vel, a permitir maior mobilidade e fineza de distinções. Hoje, a superação de paradigmas foi substituída pela
convivência ou coexistência dos paradigmas. [...]
Seguirei aqui novamente a teoria de Erik Jayme, que propõe, em resumo, no lugar do conflito de leis, a visua-
lização da possibilidade de coordenação sistemática destas fontes: o diálogo das fontes. Uma coordenação
flexível e útil (‘effet utile’) das normas em conflito no sistema a fim de restabelecer a sua coerência. Muda-se
assim o paradigma: da retirada simples (revogação) de uma das normas em conflito do sistema jurídico ou do
‘monólogo’ de uma só norma (a ‘comunicar’ a solução justa), à convivência destas normas, ao ‘diálogo’ das
normas para alcançar a sua ‘ratio’, a finalidade visada ou ‘narrada’ em ambas. Este atual e necessário ‘diálo-
go das fontes’ permite e leva à aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas
convergentes com finalidade de proteção efetiva.”

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

É deveras perigoso adotar-se a responsabilidade sem culpa no âmbito


médico, posto que estar-se-ia fomentando a despersonalização num cam-
po tão estritamente pessoal como o das relações médico-paciente. [...] O
próprio doente traz consigo um risco, derivado da sua patologia — e não é o
médico quem o provoca. Adotar uma responsabilidade objetiva, neste caso,
equivale a lutar contra a própria natureza humana. Dar cobertura a todo
risco de doença ou morte, em atividade médica, corresponderia a obrigar o
médico a dar a saúde ao doente, a prolongar a vida, ultrapassando as po-
tencialidades do médico enquanto homem, para transformá-lo num Deus.

Em matéria de culpa médica, o Superior Tribunal de Justiça entende no sentido


de que a teoria de melhor aplicação é a das cargas probatórias dinâmicas. Neste
sentido é o ilustrativo acórdão da lavra do Ministro Ruy Rosado de Aguiar:

A orientação que hoje predomina na matéria sobre culpa médica é a da


teoria dinâmica da prova, segundo a qual cabe ao profissional esclarecer o
juízo sobre os fatos da causa, pois nenhum outro tem como ele os meios
para comprovar o que aconteceu na privacidade da sala cirúrgica. A prova
da regularidade do comportamento está em mãos do hospital, que deve
sempre cuidar de ser preciso nos relatórios, em fichas de observações, em
tratamento dos remédios ministrados e tudo o mais que possa ilustrar cada
aspecto. Seria absurdo que o paciente houvesse de ter o ônus da prova de
existência de falhas e não de presunção da inexistência de culpa.17

Não é justo que o ônus da prova recaia sempre sobre o autor, pois isso pode
equivaler-se a negar-lhe a tutela jurídica. As tendências atuais procuram se afastar de
critérios rígidos e arbitrários, tornando-se importante situar o caso concreto em pri-
meiro plano. Ciente das dificuldades na produção de prova — traço característico em
demandas dessa natureza —, o julgador deverá concitar ambos, médico e paciente,
a adotar postura ativa e participante na colheita de provas. O ônus da prova deverá
ser bilateral.
Se é por meio da prova que o juiz conhecerá da verdade, modelará a realidade
e formará seu convencimento de modo a proferir uma decisão justa, nada como se
utilizar de meios que facilitem sua obtenção. A distribuição dinâmica do ônus da pro-
va é um desses meios e aumenta substancialmente a possibilidade de que a prova
necessária à solução da lide venha aos autos e se mostre ao julgador.
A carga dinâmica tem, pois, o condão de auxiliar no encontro da verdade real,
para que o magistrado possa proferir uma solução justa. Em demandas tão pecu-
liares como as que versam sobre o direito médico, isso é fundamental para que a
jurisdição desempenhe a mais importante função para a qual ela foi criada, a de
pacificação social.

17
STJ. REsp nº 69.309/SC. 4ª Turma. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. Julg. 18.06.1996. DJU, 26 ago. 1996.

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Ademais, a visão instrumentalista do processo, preocupação dos modernos


estudiosos do direito processual (DINAMARCO, 2008, p. 177), reestuda os institutos
básicos do direito processual (jurisdição, ação, defesa, a relação jurídico-processual
e o procedimento), para demonstrar que a ciência processual, em que pese sua
autonomia em relação ao direito material, deve ser encarada como um instrumento
daquele mesmo direito material e, assim, o procedimento deve atender a essa visão
teleológica na busca de um processo justo.
A teoria das cargas probatórias dinâmicas ou compartilhadas, longe de apenas
garantir a forma, atende também a essa função instrumentalista do processo e da
prova, uma vez que propicia a busca da verdade real e a melhor efetivação da justiça
no caso concreto, comprometendo-se com resultados efetivos de um processo justo.
Por mais adequada aos anseios de racionalização do processo, sendo corolário
da isonomia e do equilíbrio de forças em juízo, tal teoria foi encampada pelo Projeto
de Novo Código de Processo Civil, em tramitação no Congresso Nacional.

7  A teoria da perda de uma chance e sua aplicação do


Direito Médico
A teoria da perda de uma chance não é necessariamente uma das teorias clássi-
cas da prova, no entanto, devido ao abrandamento da necessidade de demonstração
do nexo causal que ela acarreta, merece considerações no contexto deste trabalho.
No âmbito jurídico, a expressão “chance” significa a probabilidade de obter um
ganho ou de evitar uma perda; implica necessariamente uma incógnita — um determi-
nado evento poderia se produzir, mas sua ocorrência não é passível de demonstração.
Trata-se de uma teoria objetivista que surgiu na França sob o nome de “perte d’une
chance” e é aplicada neste país, com ampla aceitação jurisprudencial, desde a década
de 60. A doutrina civilista italiana também a aplica e os tribunais brasileiros têm
adotado a tese, mesmo que de forma incipiente (porém crescente), em seus mais
recentes julgados.
Inicialmente, a doutrina rechaçava sua configuração como um dano ressarcível,
aceitando sua caracterização como uma espécie de lucro cessante. Outro setor entende
que a possibilidade perdida já se encontrava aderida ao patrimônio da vítima desde
o momento em que ela sofreu o ilícito. Essas teorias que buscam fundamentar a
“perda da chance” permeiam toda a doutrina estrangeira e, atualmente, a doutrina
civilista brasileira majoritária que trata da matéria entende que o dano da perda de
uma chance deve ser qualificado como uma subespécie de dano emergente e não
como lucro cessante, pois a chance já era um bem jurídico que se encontrava no pa-
trimônio do indivíduo. Seria, assim, um tertium genus, uma terceira espécie de dano

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

patrimonial. Supera-se o problema da certeza do dano, tornando cabível a indenização


da chance perdida por si só considerada.18
Diversas são as situações na vida cotidiana em que, tendo em vista o ato ofen-
sivo de uma pessoa, alguém se vê privado da oportunidade de obter certa vantagem
ou evitar um prejuízo, o que pode deflagrar a aplicação dessa teoria. Um exemplo
clássico é o caso do advogado que perde o prazo para a interposição de recurso de
apelação contra sentença prejudicial aos interesses de seu cliente. Não é possível
provar que o recurso, caso interposto, teria logrado provimento. No entanto, é indubi-
tável que o cliente perdeu a chance de ver sua questão reexaminada pelo Tribunal e
é este o dano sofrido.
De forma geral, a perda de uma chance repousa sobre uma possibilidade e uma
certeza: é verossímil que a chance poderia se concretizar; é certo que a vantagem
esperada foi perdida, e disso resulta um dano indenizável. Miguel Kfouri Neto (2003,
p. 66) assevera, com propriedade, que “há incerteza no prejuízo — e certeza na
probabilidade”.
Para que a chance perdida seja indenizável, mais do que uma possibilidade,
deve haver uma “probabilidade suficiente”; a possibilidade perdida deve ser real e
séria e não uma simples eventualidade (SAVI, 2006, p. 41). A tese foi aceita pelos
tribunais brasileiros, sendo emblemático o voto do então Desembargador Ruy Rosado
de Aguiar ainda em 1991:

[...] a álea integra a responsabilidade pela perda de uma chance. Se fosse


certo o resultado, não haveria a aposta e não caberia invocar este princí-
pio específico da perda de chance, dentro do instituto da responsabilidade
civil. [...] a fixação da indenização deverá atentar para o fato de que o
dano corresponde apenas à perda da chance.19

Embora a liquidação do quantum indenizatório se faça por arbitramento, os


tribunais entendem no mesmo sentido da doutrina especializada, de que “a quanti-
ficação do dano deverá ser feita de forma equitativa pelo juiz, que deverá partir do
dano final e fazer incidir sobre este o percentual de probabilidade de obtenção da
vantagem esperada” (SAVI, 2006, p. 63). Nem sempre essa quantificação poderá
ser feita facilmente.

18
“Há forte corrente doutrinária que coloca a perda da chance como um terceiro gênero de indenização, ao lado dos
lucros cessantes e dos danos emergentes, pois o fenômeno não se amolda nem a um nem a outro segmento.
[...] Também, como anota a doutrina com insistência, o dano deve ser real, atual e certo. Não se indeniza, como
regra, por dano potencial ou incerto. A afirmação deve ser vista hoje com ‘granum salis’, pois, ao se deferir uma
indenização por perda de chance, o que se analisa, basicamente, é a potencialidade de uma perda [...]” (STJ.
REsp nº 788459/BA. Voto do Ministro Fernando Gonçalves. DJ, 13 mar. 2006).
19
“RESPONSABILIDADE CIVIL. ADVOGADO. PERDA DE UMA CHANCE. Age com negligência o mandatário que
sabe do extravio dos autos do processo judicial e não comunica o fato à sua cliente nem trata de restaurá-los,
devendo indenizar à mandante pela perda da chance” (TJRS, Apelação Cível nº 591064837. 5ª Câmara Cível.
Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar. Julg. 29.08.1991).

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Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves

A supracitada teoria foi transposta para o Direito Médico sob a rubrica de perda
da chance de cura ou sobrevivência (tradução da expressão francesa “perte d’une
chance de survie ou guérison”). Trata-se, com isso, de um agravamento da responsa-
bilidade civil do médico, um alargamento do nexo de causalidade, pois se condena o
médico mesmo quando o nexo causal é incerto, dando especial ênfase ao resultado
lesivo. Pela teoria, ao médico é imposta uma “obrigação parcial de indenizar” se, por
culpa sua, faz perder ao doente uma chance palpável de cura ou sobrevivência.
O médico não tem a obrigação de curar; se ele cuidou bem do doente, se domi-
nou as chances de cura ou sobrevivência, não pode ser censurado. De outra forma,
se o cuidado que ele dispensou ao doente foi deficiente, tendo isso acarretado a dimi-
nuição ou a supressão da chance de cura, como negar a avaliação do dano advindo
das chances perdidas pela vítima?
Vale exemplificar: um médico comete um erro culposo e sobrevém a morte ao
doente. Todavia, não é certo que ele teria sobrevivido, não obstante o erro do médico.
Pode-se considerar o profissional como responsável, senão da morte, ao menos da
perda da chance de sobrevivência da vítima? A jurisprudência francesa é bem sedi-
mentada no sentido que sim.
Ao tratar sobre o assunto no direito comparado, Juan Espinoza traz exemplo
de caso acontecido na Espanha (ESPINOZA apud CARLUCCI, 2007, p. 425): trata-se de
paciente que, em duas internações hospitalares, não teve realizado o diagnóstico de
seu câncer de pulmão, pelo fato de que os sintomas que apresentava eram comuns
a outras enfermidades. O Tribunal Superior de Justiça do País Basco condenou o ser-
viço de saúde a pagar uma indenização aos familiares da vítima, pela não realização
de exames complementares que poderiam ter evidenciado o diagnóstico e não pela
morte do doente.20
A jurisprudência pátria traz caso semelhante: o médico que não realiza certos
exames, que podia e devia realizar para a correta elaboração do diagnóstico, priva
o paciente da possibilidade de vir a seguir um tratamento adequado e conseguir a
cura;21 esse fato é susceptível de dar lugar a um pedido de indenização procedente,
à luz dos princípios da responsabilidade civil (CARVALHO, 2009, p. 158).
De acordo com essa teoria, a culpa do médico decorre, precisamente, de não
terem sido dadas todas as oportunidades ao doente.22 Trata-se, dessarte, de uma

20
Ilustrativo é o trecho do acórdão: “No se indemniza por la muerte del enfermo, debido a que, aunque se
hubiese detectado el cáncer, la actuación sanitaria nada podría hacer para su curación. No obstante ello,
se responsabiliza a la Administración porque de haberse diagnosticado el cáncer se habría podido instaurar el
tratamiento tendente a alargar su vida”.
21
“Responsabilidade civil. Erro médico. Perda de uma chance. Culpa do médico ao escolher terapêutica contrária
ao consenso da comunidade científica. Dever de dispensar ao paciente a melhor técnica e tratamento
possível. Chances objetivas e sérias perdidas. Erro também no acompanhamento pós-operatório. Dano moral.
Indenização. Valor da indenização adequado. Apelação não provida” (TJPR. AC nº 0415873-4. 10ª C.Cível. Rel.
Juiz Subst. 2º G. Albino Jacomel Guerios. Unânime. Julg. 04.06.2009).
22
“AÇÃO ORDINÁRIA – DANOS MORAIS E MATERIAIS – DIAGNÓSTICO TARDIO – MORTE DE PACIENTE – CABIMENTO.
I - Genitores que pretendem ser ressarcidos por danos morais e materiais decorrentes de falha estatal no

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

mitigação do ônus do autor (paciente) de provar a culpa pela perda da chance, que
será, de certa forma, presumida. Mas deve-se levar em conta o grau da álea e, quanto
à prova, o caráter atual ou iminente da chance que o paciente alega ter sido privado.
Há várias críticas no que tange à aplicação indiscriminada da perda de uma
chance no direito médico. Nesta teoria, não resta evidente um nexo causal entre a
ação culposa do médico e o dano sofrido pelo doente. Obriga-se, assim, a se penetrar
na seara das possibilidades, a se fazer avaliações subjetivas, sendo necessário até
mesmo o exercício mental de se reproduzir condições passadas de tempo e lugar
para que se avalie a decisão tomada pelo médico, o que é, no mínimo, perigoso.
Dessa forma, embora o debate surgido por meio da aplicação da teoria da perda
de uma chance no direito médico seja um progresso inegável no ramo da responsa-
bilidade civil profissional, seu campo de aplicação deve ser restrito aos casos em
que ela é realmente apropriada, pois, em última análise, quase todas as decisões
médicas importam o descarte de várias outras possibilidades, o que não quer dizer
que teriam sido efetivas chances de cura.
Sua aplicação irrestrita seria o mesmo que engendrar responsabilidade sem
culpa, mitigando-se demasiadamente a atividade probatória, dispensando o paciente
de provar o nexo causal entre a culpa e o dano e transformando as atividades médi­
cas em obrigações de resultado, o que não pode ser aceito na busca da justiça
processual em demandas médicas.

8 Conclusão
A louvável preocupação em não causar danos ao paciente durante a realização
de cuidados à saúde remete à Antiguidade, quando Hipócrates declarava “primum
non noscere”. Contudo, é inegável que a falibilidade é uma característica intrínseca
e imutável do processo de cognição dos seres humanos; com base nessa premissa,
é de se aceitar que erros inevitavelmente acontecerão durante a prestação de assis-
tência à saúde.
Ademais, apesar da enorme evolução da responsabilidade civil e da medicina,
dois fatos permanecem substancialmente inalterados: o de que a vida humana não é
eterna e o de que é o médico quem se aproxima do paciente para tentar reverter seu

diagnóstico de enfermidade gravíssima, que acabou acarretando a morte da paciente. II - Não é possível
afirmar com absoluto juízo de certeza que o breve atendimento seria capaz de impedir o avanço da doença. A
demora no atendimento, contudo, ensejou a impossibilidade da intervenção, subtraindo, ilicitamente, a chance
de obtenção de uma vantagem ou minoração do prejuízo. Caracterização da ‘perte d’une chance’, verificada
nos casos em que o ato ilícito tira da vítima a oportunidade de obter uma situação futura melhor, ou de, pelo
menos verificar situação menos gravosa. III - Verba indenizatória que deve ser mantida (150 salários mínimos)
já que não se refere à indenização pelo evento morte, sendo devida em razão da demora no correto trata-
mento. Recurso dos autores parcialmente provido” (TJSP. Ap c. rev. 7144985000. 7ª Câm. de Dir. Público.
Rel. Nogueira Diefenthaler. Julg. 09.02.2009).

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Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves

processo de doença, colocando-se diante da incerteza e variabilidade das repercussões


do organismo ao estado mórbido; estando sujeito às influências desta variabilidade em
sua conduta.
Na ciência médica, nem tudo é o que parece ser. Em matéria probatória no que
tange à responsabilidade civil por ato médico, importará sempre distinguir o erro
médico punível — aquele decorrente de imperícia, negligência ou imprudência — do
erro humano, aquele decorrente da própria condição falível do ser humano que, a
despeito de todo o esforço e diligência, está sujeito a fatores externos, e à própria
natureza mutável e não matemática da medicina. Este último é imprevisível, e pode-se
dizer, até mesmo, inevitável.
Em matéria processual e na análise do caso concreto, a prova a cargo do paciente
lesado pode ser (e com frequência o é) muito difícil; isso é inconteste. No entanto, não
se pode olvidar que a prova de ausência de culpa por parte do médico pode também ser
“diabólica”, de muito difícil realização. Atualmente, com o intuito de maior proteção do
paciente, corre-se o risco de se passar de uma situação de vítimas indefesas a outra
situação, não menos perigosa e injusta, de profissionais indefesos.
Não é justo que o ônus da prova recaia sempre sobre o autor, pois isso pode
equivaler-se a negar-lhe a guarida jurídica. As tendências do processo e do procedi-
mento atuais procuram se afastar de critérios rígidos e arbitrários, tornando-se impor-
tante situar o caso concreto em primeiro plano. Ciente das dificuldades na produção
das provas em demandas médicas, o juiz deverá concitar ambos, médico e paciente,
a adotar postura ativa e participante na colheita de provas. O ônus da prova é, de
forma mais justa, bilateral, em um modelo cooperativo de processo.
Preconiza-se, dessa forma, que a teoria das cargas probatórias dinâmicas
adquira um maior relevo e aplicação em demandas médicas, pois tal teoria apre-
senta o condão de auxiliar no encontro da verdade real, alcançando a efetividade e
a composição justa da lide. Em demandas tão peculiares como as de saúde, isso
é fundamental para que a jurisdição desempenhe a mais importante função para a
qual ela foi criada, a de pacificação social.
Consentâneo e favorável à tese aqui esposada é o argumento de que a solução
dessa vexata quaestio da repartição do ônus da prova há de se radicar no conceito de
colaboração das partes na produção das provas, o que vai de encontro à teoria das
cargas probatórias dinâmicas. Ela estaria, de forma justa e equilibrada, a meio termo
entre a res ipsa loquitur do direito anglo-saxônico e o brocardo actore non probante,
reus absolvitur.
Contudo, centrando as preocupações cada vez mais no paciente, o direito vem
admitindo, sob certos requisitos, a inversão do ônus da prova e a aplicação de novas
teorias que abrandam a comprovação dos requisitos da responsabilidade civil, che-
gando até a aceitar presunções, a estabelecer precedentes cada vez mais próximos

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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

da responsabilidade objetiva e a acolher a indenização não do dano efetivo, mas da


perda da chance de cura, cura esta que não pode, logicamente, ser garantida pela
ciência médica.
Percebe-se, assim, que a noção histórica de culpa médica evoluiu da ausência
total de responsabilização, passando pelas demandas fundadas apenas no chamado
erro grosseiro (notória negligência, imprudência imperdoável, absoluto desconheci-
mento técnico-científico), para o estado atual, em que qualquer tipo de resultado
adverso já pode ser suficiente para fundamentar um pedido de responsabilização civil
do médico.
Neste momento, cabe indagar: até que ponto é justo e viável o alargamento do
âmbito da responsabilização do médico? Até que ponto esse alargamento demonstra
a insatisfação social com os institutos jurídicos existentes? Estaria a sociedade retro-
cedendo, por meio de novas teorias, à satisfação de um anseio de vingança (e não
de justiça) quando se é vítima de suposto “erro médico”? É possível que a resposta
a esta indagação seja afirmativa.
Já se percebe que muitos médicos, presente o risco de posterior censura ou
reprovação, deixam de realizar intervenções arriscadas (porém absolutamente neces-
sárias), para adotar uma postura de extrema cautela e indecisão, em prejuízo do
próprio paciente.
Na prática, observa-se que erros acontecem e o profissional médico não foi
adequadamente preparado para lidar com eles. Assim, com frequência os associa
à incapacidade e à falta de conhecimento, além de ter medo das punições que po-
derá sofrer. Essa falta de análise crítica não permite que a prática profissional seja
melhorada e transformada, havendo necessidade de se mudar da cultura punitiva e
individual de análise do erro à de segurança de visão sistêmica para que se possa
modificar esse panorama.
Impõe-se que o médico enfrente essa nova realidade, a da judicialização de sua
ciência, de forma serena. Além disso, a formação deontológica do médico precisa
ser muito consistente para enfrentar os desafios postos à sua profissão. Entender
os limites da medicina e partilhá-los com o paciente via informação é talvez uma das
formas de fazer com que a atividade médica reencontre o seu hoje perdido caráter
intuitu personae.
Ao Poder Judiciário também incumbe desestimular as aventuras judiciais e a
“indústria do dano moral por erro médico”; a pura e simples adoção de responsabi-
lidade objetiva e o abrandamento exacerbado do encargo probatório do paciente não
contribuirão para a necessária estabilização positiva das relações entre médicos e
pacientes.

Belo Horizonte, 12 de janeiro de 2013.

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Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves

Medical Malpractice and its Processual Determination – An Analysis of the Theories of Proof
Abstract: A doctor’s civil liability is a relevant topic in modern society, since one can notice a considerable
increase in the number of judicial claims on this issue. With the growing complexity of health relations,
finding proof of medical liability in lawsuits is a task of fundamental importance; however it is always
arduous. Meanwhile, the analysis of the theories that regulate the processual production of proof of medical
malpractice is academically interesting, and so are the modalities of distribution of the burden of proof, its
inversion, and the so-called “dynamic theory of the burden of proof”. Among the judicial forms of lessening
of civil liability requirements, one can list the theory of a missed opportunity. We will try to demonstrate that
the “dynamic theory” is better suited to the current trends of processes, with the intention of sharing the
burden of proof among the litigious parts, so that a more active and participative posture is adopted while
gathering proof, in a bilateral manner that is consistent with the mandates of material justice.

Key words: Civil liability. Medical malpractice. Theories of proof. Burden of proof.

Referências
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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
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Culpa médica e sua apuração processual – Uma análise das teorias da prova

SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance. São Paulo: Atlas, 2006.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2009. v. 1.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GAZZOLA, Luciana de Paula Lima; GONÇALVES, Gláucio Ferreira Maciel. Culpa


médica e sua apuração processual: uma análise das teorias da prova. Revista Bra-
sileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 89-117,
jan./mar. 2014.

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Da inexigibilidade do título judicial
fundamentado em norma declarada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal (arts. 475-L, §1º, e 741,
parágrafo único, do CPC)

Luiz Magno Pinto Bastos Junior


Professor do programa de mestrado e doutorado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale
do Itajaí (UNIVALI). Doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Sócio do Escritório Menezes Niebuhr Advogados Associados. E-mail: <lmagno@
mnadvocaica.com.br>.

Paula Paz
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí. Advogada Associada do
Escritório Menezes Niebuhr Advogados Associados. E-mail: <paula@mnadvocacia.com.br>.

Resumo: O presente estudo pretende analisar a previsão de impugnação ao cumprimento de sentença e


embargos à execução opostos contra sentença transitada em julgado, decisão esta que tenha sido proferida
com base em aplicação de norma declarada inconstitucional por decisão posterior emanada do Supremo
Tribunal Federal, nos termos dos artigos 475-L, §1º, e 741, parágrafo único, do CPC. Este artigo pretende
fixar alguns parâmetros para delimitação do uso deste mecanismo, a partir da adoção de uma perspectiva
constitucional que tome em conta o sopesamento entre a coisa julgada e a efetividade da jurisdicional. A fim
de fixar os pontos de partida desta análise, inicialmente, o artigo se ocupa em fazer uma breve delimitação em
torno do vínculo entre o instituto da coisa julgada e a proteção da segurança das relações jurídicas e, ainda,
em tratar sobre a rescindibilidade das decisões inconstitucionais. Defende-se neste artigo os seguintes
aspectos: que este mecanismo de defesa do executado se constitui em uma nova causa de inexigibilidade
do título judicial (em oposição àqueles que conferem natureza de rescindibilidade a este instituto); que sua
aplicação exige um adequado manejo das técnicas de declaração de inconstitucionalidade utilizadas pelo
Supremo Tribunal Federal (o recurso a este mecanismo só é possível quando se tratar de decisão da Corte
Suprema revestida de caráter vinculante); e, por fim, que sua introdução no ordenamento jurídico resulta da
preocupação do Estado em garantir aos cidadãos seus direitos fundamentais por intermédio de mecanis-
mos que confiram maior grau de efetividade às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Coisa julgada inconstitucional. Inexigibilidade de título judicial. Mecanismo de defesa do
executado. Supremo Tribunal Federal. Efeito vinculante.

Sumário: 1 Introdução – 2 Estabilidade e rescindibilidade da coisa julgada inconstitucional – 3 Da


inexigibilidade de título judicial fundado em norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal – 4 Considerações finais – Referências

1 Introdução
A crescente constitucionalização do processo civil se percebe na preocupação
do legislador em criar mecanismos que valorizem a ordem constitucional no processo,

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Luiz Magno Pinto Bastos Junior, Paula Paz

sobretudo, através da introdução de mecanismos que visem a assegurar ao jurisdicionado


a efetiva fruição de seus direitos.
É justamente neste norte que podem ser compreendidas as diferentes inova-
ções legislativas que alteraram substancialmente a feição do processo civil nos dois
últimos decênios, notadamente, mediante a introdução de diferentes mecanismos
concebidos com a finalidade de maximizarem a instrumentalidade, a efetividade e a
celeridade processuais.
A edição da Lei nº 11.232/2005 operou uma virada copernicana em relação
ao processo de execução, não somente no que diz respeito à sua autonomia, mas,
sobretudo, em relação à sua efetividade. Foi justamente neste contexto de busca por
ampliação do grau de efetividade do processo que foi introduzida uma nova causa
de oposição de defesa do executado. Através deste mecanismo o devedor passou a
contar com a possibilidade de impugnar o título judicial exequendo quando o mesmo
tiver sido erigido com fundamento em dispositivo legal declarado inconstitucional pelo
Supremo Tribunal Federal, ou ainda, em interpretação tida por incompatível pela Corte
Suprema (artigos 475-L, §1º, e 741, parágrafo único, do CPC).
Em que pese esta inovação não ser tão recente assim, ainda são incipientes
os estudos que, a partir de uma perspectiva constitucional, se ocupam em delimitar
com clareza a abrangência deste instituto. Carência esta que se revela na vacilação
(e muitas vezes equívocos) com que a questão é tratada pela jurisprudência nacional.
Se, por um lado, as análises constitucionais limitam-se a discutir a (in)constitucionali-
dade deste instituto à luz da garantia da coisa julgada; de outro lado, as análises dos
processualistas parecem não dar conta de que as decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal gozam de diferentes graus de vinculatividade e que, portanto, a uti-
lização desse mecanismo de defesa do executado depende da demonstração que
a decisão-paradigma pronunciada pelo Supremo Tribunal Federal esteja revista de
caráter vinculante.
Isto posto, este artigo tem por objetivo analisar a natureza jurídica deste
meca­nismo de defesa do executado para, em seguida, delimitar suas hipóteses de
cabimento tendo em vista o dever de adequado sopesamento entre os bens constitu-
cionalmente protegidos da segurança jurídica e da efetividade da jurisdição.

2  Estabilidade e rescindibilidade da coisa julgada inconstitucional


2.1  A coisa julgada como instrumento de preservação da
estabilidade e segurança jurídica
Existem alguns institutos no direito, de natureza material ou processual, cria-
dos para garantir a segurança nas relações jurídicas e sociais. A coisa julgada é um
destes institutos que goza de status constitucional (art. 5º, inc. XXXVI), o que lhe

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Da inexigibilidade do título judicial fundamentado em norma declarada inconstitucional...

confere uma posição ainda mais privilegiada na ordem jurídica pátria e, inclusive,
permite ser identificado como um dos elementos constitutivos do princípio do Estado
Democrático de Direito.1
Desta feita, o instituto da coisa julgada destina-se à proteção da estabilidade
das relações jurídicas e sociais, erigido à condição de valor constitucional. A esta-
bilidade reclamada pela coisa julgada deriva do encerramento da disputa realizada
através de pronúncia judicial definitiva. Definitiva posto que imodificável em relação
às partes. A par da consagração do dever de cognição exauriente (como instrumento
apto a potencializar a adequada prestação jurisdicional), a coisa julgada confere às
sentenças a estabilidade imprescindível à segurança jurídica e à preservação das
expectativas legítimas de realização do direito.
Portanto, ao instituto da coisa julgada se atribui a especial função de conferir
estabilidade à tutela jurisdicional, garantindo que a decisão que pôs termo a deter-
minada controvérsia não será rescindida, conferindo status de certeza ao provimento
jurisdicional, tanto à parte vencedora quanto à vencida.2
No entanto, a proteção outorgada à coisa julgada não é absoluta, como não
é absoluto nenhum dos bens constitucionalmente protegidos.3 Em oposição ao ins-
tituto da coisa julgada, tradicionalmente, se reconheceu a possibilidade de que os
julgados fossem rescindidos ante a demonstração de que houve algum vício ao longo
da prestação jurisdicional. Na legislação brasileira, a previsão de uma ação autônoma
de natureza desconstitutiva excepcional, a ação rescisória, é expressamente discipli-
nada pelo artigo 485 do Código de Processo Civil.
Não há que se falar em antinomia entre a ordem jurídica infraconstitucional
(quando prevê a ação rescisória) e a garantia insculpida no inciso XXXVI do artigo 5º
da Constituição Federal. Trata-se, a evidência, de mera antinomia aparente, já que a
redação do texto constitucional permite inferir que o legislador protege a coisa julgada
em face do legislador, já que impede que a edição de nova lei seja capaz de descons-
tituir os efeitos já alcançados pela coisa julgada.4
De certo, o princípio constitucional se limita a estabelecer que a lei nova não
pode desfazer a decisão acobertada pela coisa julgada, porém, não impede que a
legislação preordene regras para sua rescisão mediante atividade jurisdicional, como
é o caso da ação rescisória.5 Não é à toa que a ação rescisória exige uma estrita
análise de admissibilidade e se revela como instituto de aplicabilidade excepcional
e residual.

1
NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 49.
2
ZAVASCKI. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional, p. 123-124.
3
AGACCI; RODRIGUES. Sobre a relativização da coisa julgada, seus limites e suas possibilidades. Revista de
Processo, p. 25.
4
ASSIS. Manual da execução, p. 1110.
5
SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 436-437.

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Mesmo diante da inexistência de qualquer questionamento quanto à consti-


tucionalidade (e mesmo legitimidade) da ação rescisória, há quem defenda que a
legislação não poderia criar outras hipóteses de desconstituição da coisa julgada que
não as ações próprias dotadas deste efeito, como é o caso da ação rescisória e da
revisão criminal.
Se se adotasse esta perspectiva mais restritiva, chegar-se-ia à conclusão de
que o sistema jurídico brasileiro não admite a relativização da coisa julgada fora dos
casos expressamente previstos em lei e sem que houvesse um procedimento de cog-
nição exauriente, sob pena de se negar vigência a um dos fundamentos republicanos
do Estado Democrático de Direito.6
Em contrapartida, em direção diametralmente oposta, a doutrina vem apontando
a existência de uma causa autônoma de desconstituição da sentença definitiva, qual
seja, a desconstituição fundada no reconhecimento da coisa julgada inconstitucional.
Esta aparente tensão entre a segurança jurídica (coisa julgada) e salvaguarda de
outros bens constitucionalmente assegurados exige uma tomada de posição com-
prometida com uma hermenêutica voltada à máxima concretização da constituição.
Antes de analisar o instituto objeto deste artigo, convém explicitar o que se entende
por coisa julgada inconstitucional.

2.2  Coisa julgada inconstitucional e rescindibilidade


Qualifica-se como “coisa julgada inconstitucional” a decisão que foi proferida em
contrariedade às disposições constitucionais, ou quando os efeitos por si produzidos
acabam por negar eficácia às garantias de índole constitucional. Desta forma, quando
não existir autorização do texto constitucional que habilite sentença judicial transitada
em julgado, ou ainda, quando sua efetivação importar em lesão a outro bem consti-
tucional de relevo, nem mesmo a segurança e a certeza das relações jurídicas são
suficientes, per si, para sustentar a validade do caso julgado inconstitucional.7
Diferentes são as formas em que as decisões definitivas podem contrariar (ou
negar vigência) à constituição: (i) quando se fundam em lei que teve sua constitu-
cionalidade declarada pela instância judicial de posição hierárquica privilegiada (em
especial, do Supremo Tribunal Federal); (ii) quando afastaram a aplicação direta de
dispositivo (ou garantia) constitucional caracterizando negativa de vigência à norma
de índole constitucional; e, ainda, (iii) quando o comando normativo por si veiculado
afronta princípio ou regra de índole constitucional.8

6
NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 59.
7
SILVA JUNIOR. Novas linhas da coisa julgada civil, p. 58.
8
SILVA JUNIOR. Novas linhas da coisa julgada civil, p. 58.

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Da inexigibilidade do título judicial fundamentado em norma declarada inconstitucional...

Nesta senda, multiplicam-se os julgados que quebrantam a coisa julgada em


prol da preservação de outros princípios constitucionais, o que conferiria, segundo se
argumenta, a busca pela justiça nas decisões.9
Inúmeros são os esforços em qualificar a excepcional relativização da coisa
julgada como sendo um mandato derivado diretamente do texto constitucional, como
o fazem Humberto Theodoro Junior e Juliana Cordeiro:

Quando sustentamos a relativização do princípio da intangibilidade na


hipótese de inconstitucionalidade, não amparamos nossa tese apenas
e singelamente na injustiça da sentença, mas em um vício muito mais
grave, qual seja, a vulneração pela sentença de algum preceito ou man-
damento constitucional. Nesta hipótese, a insustentabilidade da força
da res iudicata não seria conseqüência da injustiça da sentença apenas,
mas sempre e necessariamente de sua incompatibilidade com a Cons-
tituição Federal. Aí reside a injustiça, ou seja, o desrespeito ao direito
justo como sendo aquela decorrente das normas, garantias e princípios
insculpidos na Constituição Federal, considerados objetivamente.10

O certo é que esta atividade encontra-se fortemente impregnada de um apelo à


ideia de justiça como um critério de legitimação para o quebrantamento da coisa julgada.
E isto se realiza através de diferentes procedimentos, no âmbito civil, sobretudo, atra-
vés da ação rescisória, oportunidade em que se pugna pela desconstituição dos efeitos
de uma decisão que padeça de um dos prenunciados vícios de inconstitucionalidade.11
Entre os dispositivos elencados como hipóteses para o ajuizamento da ação
rescisória, a previsão constante do inciso V (violação litoral à disposição de lei) é o
que tem amparado a pretensão de desconstituição de julgados proferidos com base
em leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.12
Ressalte-se, por oportuno, que a ação rescisória possui prazo para sua pro-
positura, que conforme o art. 495 do CPC é de dois anos. A natureza deste prazo é
decadencial, ao passo que não se extingue o direito de ação e sim o direito a rescindir
a decisão.
O prazo decadencial e a natureza autônoma do processo de conhecimento
instaurado pela ação rescisória são limites objetivos ao exercício da pretensão
de desconstituição do julgado impugnado. Isto é assim, segundo entendem alguns
autores, justamente porque esta exceção à garantia constitucional da coisa julgada

9
THEODORO JUNIOR; FARIA. Reflexões sobre o princípio da intangibilidade da coisa julgada e sua relativização.
In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitucional, p. 190-193.
10
THEODORO JUNIOR; FARIA. Reflexões sobre o princípio da intangibilidade da coisa julgada e sua relativização.
In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitucional, p. 171.
11
CARVALHO. Ação rescisória como meio de controle de decisão fundada em lei declarada inconstitucional pelo
STF. Revista de Processo, p. 20.
12
MARINONI. Coisa julgada inconstitucional, p. 93-94.

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Luiz Magno Pinto Bastos Junior, Paula Paz

não pode ser interpretada de forma extensiva. Afinal de contas, esta situação poderia
eternizar no tempo, para além do limite dos dois anos, o caráter controvertido da
decisão judicial já proferida.
É justamente a partir desta perspectiva que são dirigidas muitas das críticas
endereçadas ao novel instituto que será analisado neste artigo. No entanto, situar ou
reduzir o debate a estes termos revela-se contraproducente. Primeiro, porque o argu-
mento de inconstitucionalidade é construído a partir de um falso silogismo (a cons-
tituição proíbe que lei restrinja a coisa julgada, a lei previu mecanismo que restringe
a coisa julgada, a lei é inconstitucional), até mesmo porque esta inovação legislativa
vem ao encontro de outro bem de índole igualmente constitucional: a efetividade da
jurisdição. Segundo, porque se constrói a partir de imprecisões teóricas quanto à
natureza deste novo mecanismo de defesa e sobre a natureza das decisões proferi-
das pelo Supremo Tribunal Federal, o que acaba por causar ainda mais imprecisão e
incerteza ao debate.

3  Da inexigibilidade de título judicial fundado em norma


declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal
Os instrumentos em análise estão dispostos no Código de Processo Civil nos
artigos 475-L, §1º, e 741, parágrafo único, tendo as seguintes redações:

Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre: [...]


II - inexigibilidade do título; [...]
§1º Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-
se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo
declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado
em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo
Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão


versar sobre: [...]
II - inexigibilidade do título; [...]
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste arti-
go, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato
normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou
fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo
Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

Como se vê, trata-se de dispositivo que prevê hipótese idêntica de defesa do


executado em dois procedimentos análogos (impugnação ao cumprimento de senten-
ça e embargos nas execuções contra a Fazenda Pública).
Nota-se que a redação atribuída aos dispositivos é idêntica, pois ambos têm o
mesmo objetivo, uniformizar os resultados úteis de processos distintos. No caso dos

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Da inexigibilidade do título judicial fundamentado em norma declarada inconstitucional...

embargos à execução, refere-se à obtenção de uniformidade das sentenças oriundas


de demandas entre Fazenda Pública e servidores ou contribuintes, já na situação de
impugnação ao cumprimento de sentença, pretende-se atingir tais resultados nos
litígios entre particulares. Neste sentido, Araken de Assis comenta:

Além de fenômeno heterogêneo, em razão do direito posto em causa, já


se assinalou que a coisa julgada se encontrava em crise no âmbito das
relações individuais homogêneas. Admissível e conveniente que seja a
relativização da eficácia de coisa julgada neste tipo de litígios, em que
se sobreleva o princípio da isonomia — de fato, não se compreende, e
dificilmente se tolerará, que um servidor receba determinada vantagem
pecuniária, enquanto os demais não, porque, apesar de inconstitucional
a lei que concedeu, a ação daquele transitou em julgado, por qualquer
motivo afeto à álea natural dos tramites judiciários —, o defeito do art. 741,
parágrafo único, assim como o art. 475-L, §1º, reponta na excessiva gene­
ralidade. Parecia contraprudente sua incidência nas relações privadas,
tout court, nas quais nenhuma necessidade há de uniformidade. A des-
truição retroativa da coisa julgada promoverá, ao contrário, a insegurança
jurídica. Todavia, a repetição da norma no art. 475-L, §1º, inclinou-se pela
solução contrária.13

A fim de pretender apreender o sentido desta nova figura processual, os pri-


meiros estudos sobre o instituto apontam que sua origem remonta ao dispositivo
análogo encontrado no §79-2 da Lei do Bundesverfassungsgericht,14 que estabe-
lece a manutenção da integridade dos provimentos judiciais proferidos com base em
lei pronunciada inconstitucional, mas torna inadmissível sua execução, aplicando o
§767 do Código de Processo Civil Alemão (ZPO). A utilização deste parágrafo permite
a oposição do executado a título judicial, com relação à exceção superveniente ao
trânsito em julgado.15
Por seu turno, a associação expressa como hipótese de inexigibilidade do título
judicial guarda semelhança estrita com o art. 813, “a”, do CPC português, que esta-
beleceu ser inexistente ou inexigível o título em decorrência de vícios taxativamente
arrolados na norma. Dentre as hipóteses, está positivado que o juízo de inconstitu-
cionalidade da norma que fundamentou o título atuará no plano da eficácia, devendo
desfazer os efeitos da coisa julgada retroativamente.16
Em que pese a similitude entre a regra nacional e o direito alienígena, isto não
exime a controvérsia em torno da adequação da solução legislativa, já que, de acordo

13
ASSIS. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitu-
cional, p. 371-372.
14
Tribunal Constitucional da Alemanha.
15
ASSIS. Manual da execução, p. 1108-1109.
16
ASSIS. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitu-
cional, p. 369.

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com abalizada doutrina, a inexigibilidade não seria o melhor indicador dos efeitos
retirados do título com a declaração de inconstitucionalidade da norma que o funda-
mentou, visto que seu significado como requisito do título executivo é outro. Porém,
os outros requisitos necessários à execução do título judicial, certeza e liquidez, tam-
bém não se encaixam nesta situação, ocasionando dúvidas e contradições àqueles
que pretendem utilizar o mecanismo em casos concretos.17
Paralelamente a esta discussão, exsurge ainda outra sorte de questionamento,
que coloca em xeque a própria inclusão deste mecanismo de impugnação de decisão.
Afinal de contas, por que criar novo mecanismo de impugnação à coisa julgada frente
ao dever constitucional de preservação da segurança nas relações jurídicas? Por que
não continuar restrito às hipóteses previstas no art. 485 do CPC, notadamente frente
à interpretação consolidada atribuída ao inciso V que permite a rescisão de julgados
nestas situações?
O enfrentamento a estas questões depende de que seja explicitada a natureza
jurídica deste instituto para que se possa, então, conferir-lhes os contornos jurídicos.

3.1  Natureza jurídica deste mecanismo de defesa do


executado – Rescindibilidade ou inexigibilidade do título?
As opiniões acerca da natureza jurídica do instituto se dividem entre aqueles
que defendem que a decisão que conhece esta objeção opera uma rescisão oblíqua
à decisão judicial transitada em julgado (rescindibilidade) e aqueles que defendem
que a decisão não desconstitui o título judicial em si (não lhe afeta a validade), mas
atua no plano da eficácia do pronunciamento judicial, subtraindo-lhe os efeitos no
momento de sua execução forçada.
Aqueles que defendem tratar-se de rescindibilidade do título judicial julgam ser
inapropriado referir-se ao título como inexigível, posto que, tradicionalmente, este
termo é utilizado para se referir à impossibilidade de execução do título por falta de
cumprimento de termo ou condição. De acordo com seus defensores, esta situação
em nada se assemelha à hipótese legal em comento, já que não se está diante de
um descumprimento de termo ou condição em face do que foi subtraída sua exigibi-
lidade judicial.

O título executivo é o ato ou fato documental que torna adequada a tutela


jurisdicional executiva. É documento, mas não prova a real existência do
direito material; prova os predicados essenciais de um direito passível de
ser executado: certeza (an debeatur, consistente na precisa indicação do

17
Sobre a tema ver discussão apresentada em: LIMA. “Relativização” da coisa julgada e embargos à execução
fundados na inconstitucionalidade do título executivo: art. 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil.
Revista do CEJ – Centro de Estudos Judiciários, p. 72, 73.

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Da inexigibilidade do título judicial fundamentado em norma declarada inconstitucional...

direito), liquidez (quantum debeatur, valor do direito) e exigibilidade (esse


elemento é, na realidade, externo à obrigação e refere-se à implementação
de condição ou termo essencial à exigibilidade da obrigação). Assim, se a
sentença apresenta todos os elementos descritivos da obrigação, não há
como se negar a sua possibilidade de dar ensejo à execução de imediato.18

Nas palavras de Zavascki, a função rescisória dos embargos fica clara, ao afirmar
que o referido preceito normativo “[...] veio apenas agregar ao sistema um mecanismo
processual com eficácia rescisória de certas sentenças inconstitucionais”,19 neste
sentido, o mesmo jurista atribui ao instrumento o nome de “embargos rescisórios”.20
No mesmo sentido pronunciou-se Eduardo Talamini, para quem a utilização desta
nomenclatura, foi “[...] uma tentativa (inútil e atécnica) do ‘legislador’ de enquadrar
a nova hipótese de embargos em alguma das categorias já existentes, para assim,
diminuir as censuras e resistência a inovação”.21
Para postular a defesa deste propalado efeito rescisório, argui-se que a execu-
ção (ou cumprimento de sentença) é o momento em que o credor requer o cumpri-
mento da tutela satisfativa em decorrência de um direito reconhecido. Desta feita,
quando se confere ao devedor a possibilidade de inadimplir a obrigação oriunda do
titulo judicial, acaba por tornar ineficaz o próprio provimento jurisdicional da ação
cognitiva anterior.
Em contrapartida, aqueles que defendem revestir-se o mecanismo de natureza
de causa de inexigibilidade do título judicial defendem seu ponto de vista a partir da
conjugação da literalidade do dispositivo legal e de sua origem próxima (exemplo do
direito português e alemão). Esta corrente é capitaneada por Araken de Assis, para
quem a ideia substancial do disposto nos artigos 475-L, §1º, e 741, parágrafo único,
do CPC, foi extraída de norma alemã, sendo que lá, o juízo de inconstitucionalidade
da norma, na qual se fundou o pronunciamento a ser executado, atua na esfera da
eficácia normativa. Deste modo, primeiro se desfaz a eficácia da coisa julgada retroa­
tivamente, e após, apaga-se o efeito executivo da condenação, o que, em outras
palavras, importa em reconhecer a inadmissibilidade da execução.22
Em nosso ordenamento, apesar de não ter havido expressa reprodução do texto
alemão no tocante ao efeito desconstitutivo da decisão de pronúncia de inconstitucio-
nalidade proferida pela Corte Suprema, manteve-se o tratamento usualmente atribuído

18
LUCON. Coisa julgada, conteúdo e efeitos da sentença, sentença inconstitucional e embargos à execução
contra a Fazenda Pública (ex vi art. 741, parágrafo único, do CPC). Revista de Processo, p. 32.
19
ZAVASCKI. Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único do CPC.
In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitucional, p. 340.
20
ZAVASCKI. Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único do CPC.
In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitucional, p. 339.
21
LIMA. “Relativização” da coisa julgada e embargos à execução fundados na inconstitucionalidade do título exe-
cutivo: art. 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil. Revista do CEJ – Centro de Estudos Judiciários,
p. 72-73.
22
ASSIS. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitu-
cional, p. 369.

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de que a declaração de inconstitucionalidade da norma proferida pelo Supremo Tribunal


Federal, no caso concreto, atua tão somente no plano da eficácia do título judicial. Em
outras palavras, a procedência dos embargos (ou da impugnação) não desconstituirá
propriamente o título, tão pouco reabrirá o processo já encerrado, mas impedirá sua
execução porque o seu fundamento de validade foi atingido por manifestação proferida
pelo Supremo Tribunal Federal.23
A inclusão deste novo mecanismo de defesa do executado contra a execução
dirige-se contra a satisfação fática de decisão manifestadamente inconstitucional
(coisa julgada inconstitucional). Trata-se tão somente de inibição de sua eficácia exe-
cutória. Como bem expõe Donaldo Armelim “nesse caso de coisa julgada concernente
à decisão reconhecida como inconstitucional, o decidido subsiste, mas não será
exequível”.24
Este último é o entendimento que parece melhor se encaixar com uma interpreta-
ção constitucionalmente adequada do instituto. Apesar de válida a análise da corrente
que considera rescisória a natureza jurídica do instituto, seus argumentos não justificam
uma consequente desconstituição do julgado embargado, apenas negam que tal hipó-
tese se enquadre no entendimento, tradicionalmente conhecido como inexigibilidade do
título. Ademais, para verificar a eficácia rescisória dos mecanismos, seria necessário
que a decisão pronunciada nos embargos à execução ou cumprimento de sentença
seja substitutiva da sentença anterior, podendo constituir novo título judicial para que
o até então executado cobre ressarcimento de eventuais obrigações já adimplidas.25
Contudo, atribuir tal interpretação ao dispositivo legal abrange muito mais do
que o disposto no seu próprio texto. Os limites textuais nele estabelecidos não preveem
que o julgamento da impugnação ao cumprimento de sentença ou dos embargos à
execução reabrirá discussão da matéria já apreciada, nem proferirá novo julgamento de
mérito. O provimento se restringe a declarar a inexigibilidade do título, implicando no não
prosseguimento da execução.26
Sendo assim, considera-se que o resultado prático da utilização do mecanismo
não se enquadra nas hipóteses já conhecidas de inexigibilidade, mas passa a demons-
trar novo posicionamento legislativo acerca da matéria, pois é legítimo pugnar que,
para ser exigível, o título que fundamentou a execução deva estar em conformidade
com a Constituição. Do contrário, estar-se-ia exigindo do devedor uma prestação que
se revela inconstitucional (incompatível com a ordem constitucional posta). Ou seja,
defende-se aqui que a inclusão deste mecanismo importou em criação de uma nova
hipótese de inexigibilidade do título judicial, sobretudo, porque não permitem a redis-
cussão da matéria anteriormente julgada, donde o julgado limita-se a declarar que o

23
ASSIS. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitu-
cional, p. 369.
24
ARMELIN. Flexibilização da coisa julgada. In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitucional, p. 210.
25
ANTUNES; BELLINETTI. Impugnação ao cumprimento de sentença por inconstitucionalidade. Scientia Iuris, p. 70.
26
ANTUNES; BELLINETTI. Impugnação ao cumprimento de sentença por inconstitucionalidade. Scientia Iuris, p. 70.

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Da inexigibilidade do título judicial fundamentado em norma declarada inconstitucional...

título judicial impugnado contraria decisão vinculante proferida pelo Supremo Tribunal
Federal, razão porque não está apto a produzir efeitos.

3.2  Requisitos para interposição de embargos à execução ou


impugnação de sentença fundamentada em inexigibilidade
do título judicial
Antes mesmo de estabelecer o conteúdo e o alcance deste instrumento, é
essen­cial destacar que ele não tem força, nem intenção, de resolver todos os con-
flitos entre os princípios da supremacia da Constituição e coisa julgada. Como já
visto, a sentença transitada em julgado pode operar ofensa à Constituição em várias
situações, mas nem todas são emanadas no exercício do controle judicial de consti-
tucionalidade das normas.27
O disposto nos artigos 475-L, §1º, e 741, parágrafo único, do CPC, prevê a
inexigibilidade do “[...] título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados
inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação
tidas por incompatíveis com a Constituição”. Portanto, os vícios atacados pelo meca-
nismo se restringem às seguintes hipóteses de declaração de inconstitucionalidade:
a) aplicação de lei inconstitucional; b) aplicação da lei a situação considerada incons-
titucional; e c) a aplicação da lei em sentido (interpretação) tido por inconstitucional.28
Na prática, a diferenciação entre as hipóteses acima elencadas resulta da téc-
nica utilizada pelo Supremo Tribunal Federal para declarar a norma inconstitucional:
(i) a aplicação de norma inconstitucional supõe a declaração de inconstitucio-
nalidade com redução de texto, já que nesta hipótese o STF deve pronun-
ciar expressamente a invalidade da norma em comento, o que retirará sua
validade e, por conseguinte, importará no reconhecimento de sua inaptidão
para produzir efeitos jurídicos válidos (hipótese a);
(ii) a aplicação de norma a situações consideradas inconstitucionais ocorre
quando a decisão judicial aplicou a norma em uma situação que o STF
havia declarado ser incompatível com a Constituição, nesta hipótese, o STF
reduziu o âmbito de incidência da norma, sem que tenha se pronunciado
pela invalidação do texto da lei (é a chamada técnica de declaração de
inconstitucionalidade sem redução de texto) (hipótese b);
(iii) a aplicação da norma em sentido tido por inconstitucional ocorre quando o
STF, aplicando a técnica de interpretação conforme a Constituição, declara

27
ZAVASCKI. Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único do CPC.
In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitucional, p. 340.
28
ZAVASCKI. Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único do CPC.
In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitucional, p. 341.

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que determinado sentido atribuído ao texto legal é o único que se com-


patibiliza com o texto constitucional e, desta forma, outras interpretações
possíveis da norma são tidas por inadmissíveis (hipótese c).
Apresentadas as caracterizações da inconstitucionalidade da decisão impug-
nada (ou embargada), importante identificar as peculiaridades do precedente do STF
que será utilizado como paradigma. Quando estes precedentes são oriundos do con-
trole concentrado (portanto, quando são proferidas decisões revestidas de eficácia
erga omnes e vinculante) a questão não comporta maior digressão, pois estes são os
efeitos legais expressamente atribuídos a estas decisões.29
Situação bastante diferente consiste naquelas situações em que o precedente
invocado como paradigma foi proferido pelo STF no exercício do controle concreto de
constitucionalidade (ou seja, decisões desprovidas de força vinculante e que gozam
de autoridade tão somente persuasiva).30
Daí advém a primeira conclusão importante defendida neste artigo: em face
do caráter de inexigibilidade deste mecanismo (e não de rescindibilidade), somente
estão autorizadas a utilização de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal que
tenham sido produzidas com efeito vinculante (portanto, proferidas no âmbito das
ações diretas de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade, na argui-
ção de descumprimento de preceito fundamental, enunciadas através de súmulas
editadas com força vinculante, e, ainda, quando o Senado Federal tiver suspendido
a eficácia de norma declarada inconstitucional no controle concreto, ex vi do art. 52,
inc. X, da Constituição).
Outra consideração importante é com relação à data do precedente do STF a
ser utilizado. Se anterior ao trânsito em julgado da ação que fundou a execução, por
certo que é devida sua aplicação, vez que o provimento jurisdicional emanado devia
submissão à norma declarada inconstitucional, se não o fez, justo que o título judicial
formado seja impugnado. Nas declarações de inconstitucionalidade proferidas poste-
riormente ao trânsito em julgado, os mecanismos são de igual aplicação, pois foi jus-
tamente para atender a estas situações (que não eram contempladas na legislação)
que os instrumentos foram incorporados ao Código de Processo Civil.31
Por fim, informa que existem algumas situações em que a propositura dos
embar­gos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença, conforme dis-
posto nos artigos 475-L, §1º, e 741, parágrafo único, do CPC, não implicam na
inexigibilidade do título. Dentre elas, quando a sentença que fundamentou o título

29
MENDES. Coisa julgada inconstitucional: consideração sobre a declaração de nulidade da lei e as mudanças
introduzidas pela Lei nº 11.232/2005. In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitucional,
p. 102-103.
30
ASSIS. Manual da execução, p. 1112.
31
ZAVASCKI. Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único do CPC.
In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitucional, p. 346.

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Da inexigibilidade do título judicial fundamentado em norma declarada inconstitucional...

judicial transitou em julgado antes do advento da inovação na legislação processual


(determinado pela Lei nº 11.232/05), visto que se trata de norma processual e mes-
mo tendo aplicação imediata, alcançando todos os processos em curso, não pode
ser aplicada retroativamente, em respeito ao inciso XXXVI, art. 5º, da Constituição.32
Ainda, caso o título judicial esteja fundamentado em outros dispositivos além
daquele declarado inconstitucional pelo STF, a exigibilidade da sentença deve ser man-
tida caso os outros fundamentos possam sustentar a mesma conclusão, razão porque
ter-se-ia removido o óbice que poderia suspender a exigibilidade do título judicial.33
Por fim, a sentença ainda poderá ser mantida quando a pronúncia de inconsti-
tucionalidade proferida pelo STF expressamente mitigar os efeitos da pronúncia de
inconstitucionalidade, proferindo decisão de diferimento no tempo dos efeitos des-
constitutivos da declaração de inconstitucionalidade (a exemplo da faculdade prevista
no art. 27 da Lei nº 9.868/99). Neste caso, reconhecer a inexigibilidade da sentença
seria contrariar a própria decisão do Supremo Tribunal Federal que limitou os efeitos
da declaração de inconstitucionalidade pela excepcionalidade do caso.34
Reconhecidas as condições para utilização dos mecanismos de relativização da
coisa julgada inconstitucional, passa-se a analisar sua constitucionalidade e conveniên-
cia no ordenamento jurídico.

3.3  Da constitucionalidade e conveniência dos artigos 475-L,


§1º, e 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil
Como visto, os que sustentam a inconstitucionalidade deste novo mecanismo
indicam a ofensa a coisa julgada, visto que “a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito,
o direito adquirido e a coisa julgada”, e se tratando o cumprimento de sentença e o
processo de execução de resultado de decisão judicial transitada em julgado, não
podem ser inexigíveis por posterior declaração de inconstitucionalidade do STF.35
Afinal de contas, prossegue o argumento, a coisa julgada é pilar de garantia do Estado
Democrático de Direito, pois prima pela segurança nas relações sociais e jurídicas,
sendo que as hipóteses de sua desconstituição devem ser limitadas.36
Contudo, aqueles que defendem a constitucionalidade dos dispositivos bem
expõem que a lei infraconstitucional estabelece quando e quais hipóteses há coisa
julgada, sendo assim, também poderá instituir seu desaparecimento. Nas palavras de
Zavascki, os mecanismos em questão surgiram apenas para agregar ao ordenamento

32
ANTUNES; BELLINETTI. Impugnação ao cumprimento de sentença por inconstitucionalidade. Scientia Iuris, p. 75.
33
ANTUNES; BELLINETTI. Impugnação ao cumprimento de sentença por inconstitucionalidade. Scientia Iuris, p. 74.
34
ANTUNES; BELLINETTI. Impugnação ao cumprimento de sentença por inconstitucionalidade. Scientia Iuris, p. 74.
35
SILVA JUNIOR. Novas linhas da coisa julgada civil, p. 132-133.
36
NERY JUNIOR. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 43.

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jurídico instrumento processual com eficácia de mitigar a coisa julgada, visto que até
o seu advento, o meio adequado para isso era a ação rescisória.37
Como visto, este mecanismo exsurge como mecanismo que confere densidade
à celeridade e à efetividade do processo igualmente concebidos como direitos fun-
damentais àquele cidadão. Trata-se de uma forma de conferir força aos provimen-
tos oriundos de decisões do Supremo Tribunal Federal. Junte-se a este mecanismo
diversos outros imbuídos deste mesmo propósito, a exemplo da repercussão
geral (art. 543-B, do CPC), a súmula vinculante (art. 103-A, da CFRB), do julgamento
imediato do pedido na apreciação da petição inicial (art. 285-A), da possibilidade de o
relator negar seguimento a recurso em confronto com a jurisprudência do STF, ou do
próprio Tribunal, de maneira monocrática (art. 557, do CPC).38
Neste contexto, podemos verificar que os instrumentos trabalhados até o
momento não pretendem ampliar ilimitadamente as hipóteses de flexibilização da
coisa julgada, não está se negando sua garantia como direito fundamental, apenas
demonstra que a sociedade anseia por observância de outros princípios igualmente
fundamentais. Por óbvio, não é apenas a coisa julgada que propicia aos cidadãos a
confiança no Estado para tutelar seus conflitos, é preciso que o ordenamento jurídico
crie instrumentos, como vem fazendo, que garantam a efetividade do provimento
jurisdicional.
Visto que o ordenamento jurídico já reconhece a possibilidade de manusear
ação rescisória, no prazo decadencial de dois anos, para as mesmas hipóteses abar-
cadas pelos artigos em questão, porque não evitar o procedimento custoso de uma
nova ação, com todas as propriedades e requisitos de uma ação rescisória, quando
se pode atacar a consequência proveniente de título judicial fundando em norma
inconstitucional através de procedimento mais simples? Suscitar a inexigibilidade
do título é mais célere, eficiente e menos custoso, tanto para a parte, quanto para o
Poder Judiciário.
Sendo assim, a manifestação de que a aplicação do mecanismo se limita ao
prazo estabelecido para ação rescisória não deve prosperar, pois como já visto, a
natureza jurídica deste instrumento não tem caráter de rescindibilidade, mas sim de
inexigibilidade do título judicial em apreço. Sabe-se que a fiscalização da inconstitu-
cionalidade da norma é matéria de ordem pública quando são tratadas nos processos
de conhecimento, mas neste caso não se pretende rever a coisa julgada já formada
no processo de execução, e sim declarar de inexigibilidade do título judicial, de modo
que a interpretação dos dispositivos deve ser restrita ao texto.

37
ZAVASCKI. Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único do CPC.
In: NASCIMENTO; DELGADO (Org.). Coisa julgada inconstitucional, p. 339-340.
38
LIMA. “Relativização” da coisa julgada e embargos à execução fundados na inconstitucionalidade do título exe-
cutivo: art. 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil. Revista do CEJ – Centro de Estudos Judiciários,
p. 75.

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Da inexigibilidade do título judicial fundamentado em norma declarada inconstitucional...

Portanto, não se pretende burlar o prazo estabelecido para ação rescisória,


muito menos conferir aos mecanismos aplicação a qualquer tempo, visto que seu
emprego está restrito ao prazo estabelecido na legislação processual civil, que, para
os embargos à execução, é de 10 dias contados da citação (art. 730 do CPC) e 15
dias contados da intimação do auto de penhora e avaliação (art. 475-J, §1º, do CPC),
no caso de impugnação ao cumprimento de sentença.39
Portanto, para que a aplicação do disposto nos artigos 475-L, §1º, e 741, pará-
grafo único, atendam o objetivo de propiciar aos litigantes a efetividade do provimento
jurisdicional através de seu emprego, sem, contudo, gerar insegurança nas relações
jurídicas, é preciso observar as limitações impostas pelo legislador no próprio texto
dos dispositivos. O emprego dos mecanismos deve respeitar as hipóteses restritas
de sentenças inconstitucionais impugnadas, o contexto em que foi proferida a decisão
de inconstitucionalidade, a natureza do precedente invocado, dentre outras questões
já expostas.
Neste sentido, afirma-se que não se está pretendendo tirar da coisa julgada
todo o valor que tem, reconhecidamente, a existência do Estado Democrático de
Direito, mas sim ponderar sua prevalência sobre outros princípios fundamentais de
igual hierarquia em prol da supremacia da Constituição, que é o reflexo das necessi-
dades, direitos, deveres e garantias da nossa sociedade.

4  Considerações finais
O presente estudo pretendeu analisar a previsão de impugnação ao cumpri-
mento de sentença e embargos à execução opostos contra sentença transitada em
julgado, proferida com base em aplicação de norma declarada inconstitucional pelo
Supremo Tribunal Federal, nos termos dos artigos 475-L, §1º, e 741, parágrafo único,
do CPC.
Este trabalho pretendeu avaliar a introdução destes mecanismos de flexibiliza-
ção da coisa julgada sob a perspectiva de sua compatibilidade com a ordem consti-
tucional, visto que sua aplicação no caso concreto envolve o conflito entre princípios
constitucionais de igual hierarquia. A introdução de mecanismos como este em nosso
ordenamento jurídico evidencia um processo necessário de mudança dos procedi-
mentos utilizados para tutelar as relações sociais e jurídicas entre os indivíduos,
na busca pela garantia da efetividade de seus direitos fundamentais. Com estes
instrumentos, o legislador optou por assegurar estes direitos através da observância
da isonomia na aplicação das decisões proferidas pelo STF.

39
ANTUNES; BELLINETTI. Impugnação ao cumprimento de sentença por inconstitucionalidade. Scientia Iuris,
p. 70-71.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 119-136, jan./mar. 2014 133

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O dispositivo legal em foco revela uma opção legislativa de valorar as decisões


proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, pois sendo ele o intérprete máximo da
Constituição, revela-se legítimo que os provimentos jurisdicionais emanados pelos
demais órgãos do Poder Judiciário devam se coadunar com o entendimento firmado
pela Corte Suprema. Neste sentido, aplicar de forma isonômica as decisões proferi-
das pelo STF traduz um compromisso, a partir de outra perspectiva, em conferir igual
segurança aos jurisdicionados.
Restou evidente, portanto, que os embargos à execução e a impugnação ao
cumprimento de sentença não têm a ambição de rescindir o caso julgado inconstitu-
cional, mas sim de tornar inexigível o título judicial baseado na declaração de incons-
titucionalidade proferida pelo STF. A fim de chegar a esta conclusão, levou-se em
consideração a origem do dispositivo e as consequências de seu provimento, visto
que ele não desconstitui o título judicial formado, muito menos propõe a rediscussão
da matéria anteriormente julgada, tão somente torna inexigível seu cumprimento.
Trata-se, como se vê, de viabilizar um tratamento mais célere de oposição à decisão
judicial a partir da criação de uma nova hipótese especificamente instituída pelo
legislador infraconstitucional.
Sendo assim, pode-se afirmar que os artigos 475-L, §1º, e 741, parágrafo único,
do Código de Processo Civil confirmam a valorização do pronunciamento do STF como
intérprete da Constituição.
No entanto, é importante que se estabeleçam duas importantes ressalvas, só
é possível a utilização deste meio de defesa quando, cumulativamente, a decisão de
inconstitucionalidade invocada como paradigma gozar de eficácia vinculante (portanto,
não se aplica a todo e qualquer precedente emanado da Corte Suprema) e, ainda,
quando a decisão proferida tiver sustentação em outro fundamento que não aquele
cuja eficácia foi subtraída pela decisão do Supremo Tribunal Federal.
Isto é assim porque as decisões proferidas pela Corte Suprema em casos con-
cretos, em que pese figurarem como importantes guias a serem implementados pelos
órgãos judiciários (dotados de sobrelevada força persuasiva), não possuem o condão
de subtrair diretamente a eficácia dos dispositivos tidos como inconstitucionais. Sem
este efeito irradiante, não há que se falar em inexigibilidade do título judicial e, por
conseguinte, faz-se imprescindível desconstituir o título judicial através de processo
autônomo de cognição exauriente (ação rescisória). Entender o contrário é emprestar
interpretação extensiva à previsão legal de caráter restritivo de direitos fundamentais
(no caso, o direito do credor à satisfação do direito reconhecido através de sentença
transitada em julgado).
Consoante o entendimento aqui defendido, quando o precedente-paradigma tiver
sido proferido em sede de controle concreto pelo Supremo Tribunal Federal, para
poder afastar a pretensão de satisfação do título judicial, exige-se do Poder Judiciário

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Da inexigibilidade do título judicial fundamentado em norma declarada inconstitucional...

uma pronúncia desconstitutiva em relação ao julgado em tela, pretensão esta que só


pode ser deduzida mediante o ajuizamento de ação rescisória.
Fixadas estas balizas intransponíveis, a introdução destes mecanismos ao
orde­namento jurídico indica a preocupação do Estado em garantir aos cidadãos seus
direitos fundamentais dispostos na Constituição. Até mesmo porque, é da eficácia
irradiante das decisões revestidas do atributo de eficácia vinculante que decorre a
inexigibilidade do título judicial exequendo. Entendido desta forma, este mecanismo
de defesa do executado nada mais representa do que uma forma de assegurar a
autoridade das decisões vinculantes do Supremo Tribunal Federal e, a par da reclama-
ção constitucional, pode representar um importante fator para o incremento do grau
de efetividade da prestação jurisdicional, sem que se olvide a proteção constitucional
da segurança jurídica.

Florianópolis, 16 de dezembro de 2012.

The Unenforceability of the Judicial Decree Founded in Provision Ruled Unconstitutional by Brazilian
Supreme Court (Articles 475-L, §1º, and 741, Sole Paragraph, of the Civil Procedure Code)
Abstract: This article aims to analyze legal provisions in Civil Procedure Code by which is possible to object
the enforcement of a judicial decree founded in provision ruled unconstitutional by Brazilian Supreme Court:
the “impugnação ao cumprimento de sentença” (art. 475-L, §1º), and the “embargos à execução”(art.
741, sole paragraph). The focus of this study is to delimitate some parameters to apply this mechanism,
by adopting a constitutional perspective that balance the res judicata and the judicial effectiveness duty.
In order to set the starting points of this study, initially, the article focuses on clarify the link between the
res judicata and the protection of the juridical relations security, and also on discuss about the revocability
of the unconstitutional judgments. Then, the article defends that this new mechanism of debtor defense
consists of a new issue of unenforceability of judicial decree (in opposition of whom that defends the
revocability nature of this institute); that it requires an adequate comprehension of the effects of the
pronunciation of unconstitutionality by Supreme Court (necessity to the distinguish between the decisions
endowed with binding effect and those that have only inter parts effect); and, finally, that this mechanism
consists in a response of the State to guarantee its citizens’ fundamental rights by introducing mechanisms
that provide a higher level of effectiveness to the decisions of the Supreme Court.

Key words: Res judicata unconstitutional. Unenforceability of judicial decree. Defense debtor mechanism.
Supremo Tribunal Federal. Binding effect.

Referências
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto; PAZ, Paula. Da inexigibilidade do título judicial
fundamentado em norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal
(arts. 475-L, §1º, e 741, parágrafo único, do CPC). Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 119-136, jan./mar. 2014.

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La norma jurídica como mediadora
dinámica – Su gravitación sobre la
postura garantista del proceso

Adriana Del Balzo


Oficial en Defensoria Federal de la Nación. Abogada.

Construyamos la ciudad con la palabra.


(Platón, Leyes III)

Resumen: Al concentrar la atención sobre cuestiones técnicas puntuales del proceso muchas veces se
olvida que el fundamento de todo sistema jurídico es la ley, contemplada tanto en su carácter individual y
específico como en la totalidad del cuerpo normativo del cual es parte orgánica. Ya en los escritos de Platón
se plantean las múltiples facetas que atraviesan el legislar como una tensión dinámica constante entre la
comunidad y sus propios códigos escritos. Más allá del monismo de Kelsen, Miguel Reale recupera en su
concepción del Derecho la multiplicidad fenoménica del hecho jurídico, y la visión garantista de Alvarado
Velloso complementa esta inquietud en el reclamo al magistrado y los actores de un ineludible compromiso
que les asegure a las personas un adecuado acceso a la justicia y un debido proceso en todas sus etapas.
Sumario: 1 Platón y el papel fundamental de la ley – 2 La norma jurídica en la teoría tridimensional del
derecho de Miguel Reale – 3 El garantismo según Alvarado Velloso y el papel de la ley – 4 Conclusiones
– Referencias

1  Platón y el papel fundamental de la ley


En la obra de Platón la preocupación por el papel de la ley y el lenguaje como
moldeadores de la realidad es permanente. Al reconocer la naturaleza inacabada y
pasajera de toda construcción o actividad humana frente a la inmutable perfección
de las Ideas, el gran pensador griego concentró sus esfuerzos en desentrañar la
complejidad que implica el quehacer social y cuáles serían las siempre limitadas
herramientas para abordarla desde la perspectiva conceptual del pensamiento. Ética,
derecho, epistemología, filología y otras tantas ramas del saber parecen confundirse
en este momento originario, no por torpeza sino, precisamente, por ser la fundación
de la filosofía occidental y establecer su campo, sus tareas y su horizonte.
La inevitable mediación de las palabras, la condición esquiva y arbitraria de
su significado, es una dificultad adicional y no menor con la que debe lidiar quien
pretenda razonar. No es de extrañar, entonces, que la cuestión de determinar la ver-
dadera entidad de lo justo sea central para Platón. En lo que atañe específicamente

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Adriana Del Balzo

al Derecho,1 las Leyes son los diálogos en los que este problema busca su solución.
Allí se destaca que dos son los conflictos iniciales que debe tener en cuenta quien
legisle: tener presente qué es lo que alimenta la necesidad de la norma, y cómo este
interés genera un roce ineludible entre las esferas de lo público y lo privado: “Los
hombres deben promulgarse leyes y vivir de acuerdo con ellas o no se diferenciarán en
nada de las fieras más salvajes. La causa de ello es que no nace ninguna naturaleza
humana capaz de conocer lo conveniente para los hombres en lo que atañe al orden
político y, conociéndolo, no sólo poder sino también querer hacer lo óptimo. En primer
lugar, es difícil reconocer que el verdadero arte político se ocupa necesariamente no
de lo particular sino de lo común —pues lo común une, mientras que lo particular
desmembra las ciudades— y que conviene tanto a lo público como a lo privado, a
ambos, si se coloca eventualmente a lo público por encima de lo privado”2 (Platón,
Leyes IX, p. 237). Ambos ámbitos se entrelazan obligadamente, y esta relación de
ningún modo puede ser ignorada al legislar.
Otro punto destacado es el rasgo de cierta provisionalidad perfectible que Platón
parece ver en la norma: “Si alguna vez un hombre engendrado con esa capacidad
natural por un destino divino pudiera asumir el poder, no necesitaría en absoluto de
leyes que lo gobernaran. En efecto, ni la ley ni ningún orden es mejor que la ciencia,
ni es justo que la inteligencia obedezca a nada que ni sea esclava de nada, sino que
debe gobernar todas las cosas, si realmente es verdaderamente libre por naturaleza.
Pero ahora no existe en absoluto en ningún lado, sino en pequeña medida. Por eso,
sin duda, hay que elegir lo segundo, orden y ley, que miran y observan por un lado a
lo general pero son impotentes en el caso particular” (Platón, Leyes IX, pp. 237-238).
Este origen en la emergencia es lo que se debe subrayar. La ley surge como paliativo
frente a la imposibilidad radical de que exista un perfecto juez que resuelva, sobre
la base de un criterio ecuánime e infalible, cada caso peculiar que se le presente.
Arriesgando aún más nuestra interpretación, quizás se pueda afirmar que ya desde
este momento se considera a la norma como producto de la idiosincrasia de una
comunidad específica en un período determinado de su historia. Es fácil entender,

1
“— Examina también esto y dame tu opinión: ¿no les encomendarás a los gobernantes la conducción de los
procesos judiciales del estado?
— Sí, claro.
— Y cuando juzguen, ¿tendrán en vista otra cosa antes que ésta, a saber, que cada uno no se apodere de lo
ajeno ni sea privado de lo propio?
— Ninguna otra cosa.
— Porque eso es lo justo.
— Sí.
— Y en ese sentido habría que convenir que la justicia consiste tanto en tener cada uno lo propio como en
hacer lo suyo.
— Así es”
(Platón, República IV, p. 226).
2
Cf. Aristóteles, Política III, 1279a, pp. 28-31.

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La norma jurídica como mediadora dinámica – Su gravitación sobre la postura garantista del proceso

de esta manera, la evolución del conjunto de disposiciones que regulan la vida de


una sociedad, más todavía si se agrega el constante intercambio entre los usos y
costumbres no reglados ni escritos, pero aceptados, y el corpus de las leyes vigentes
en una época y en un lugar.3
“Las leyes, así parece, surgen, las unas, para los hombres de provecho, por
enseñarles de qué manera debieran relacionarse unos con otros para habitar juntos
de manera amigable,4 pero las otras para los que rechazan la educación, porque
poseen una índole resistente y en absoluto amollecen como para no caer en la maldad
integral”5 (Platón, Leyes IX, pp. 246-247).
El legislador, quien da las leyes, debe dejarlas por sentado valiéndose de la
escritura; las fija en el territorio común de la lengua, rasgo identitario y constitutivo
básico de una comunidad.6 Pero esta codificación implica el riesgo de anquilosar el
espíritu que inspiró la norma y convertirla en letra fría, sólo accesible a través de
una oscura hermenéutica reservada a los iniciados. De este modo la ley se distancia
de la comunidad, porque esta rigidez erosiona el contacto con los justiciables, la
hace extraña a sus ojos, extemporánea y a veces caprichosa y sin razón, dado
que el contexto en que fue dictada ha cambiado, y a veces hasta desaparecido
por completo. Platón afirma entonces que el objetivo de las leyes no es imponer
su ciego cumplimiento, sino responder a la demanda por alcanzar lo justo que se
plantee en cada caso particular:7 “(Ateniense): Quisiera que nuestros ciudadanos

3
“Ateniense: Que todas estas cosas que ahora exponíamos son lo que la mayoría de la gente denomina usos
no escritos. También se las llaman leyes paternas, no son sino eso. Además, es correcto lo que acabamos
de decir, que ni hay que llamarlas leyes ni debemos dejar de mencionarlas. En efecto, son vínculos que unen
todo el orden político, situados en el medio de todas las leyes que se dieron, se dan y se darán por escrito,
realmente como usos ancestrales y muy arcaicos, que, si están bien establecidos como costumbres, protegen
y conservan plenamente las leyes que se han promulgado por escrito hasta ese momento, pero en caso de
que con desorden se aparten de lo bello, como los apeos en los edificios que levantan los constructores,
se derrumban desde el centro y hacen que todo se precipite hacia el mismo punto, unas sobre otras, ellas
mismas y, tras caerse las antiguas, las que después se construyeron correctamente encima. Con eso en
mente, Clinias, debemos atar por todos lados tu ciudad nueva, tratando de no dejar en lo posible nada de lado
ni grande ni pequeño de cuanto se denomina leyes, costumbres o hábitos. En efecto, la ciudad se mantiene
unida gracias a todas estas normas, y ni las leyes escritas ni las costumbres son estables si una de ellas no
lo es, de modo que no hay que admirarse si, confluyendo, muchas costumbres y hábitos que aparentemente
son de poca importancia hacen que aumente el tamaño de nuestro código” (Platón, Leyes VII, pp. 83-84).
4
Lo que sería la base de nuestros actuales Códigos Civiles.
5
La inspiración de los Códigos Penales contemporáneos.
6
“El hecho de ser una nación que habla la misma lengua y tiene el mismo nombre produce una cierta amistad,
puesto que tienen en común los ritos y todo ese tipo de cosas, mas no soportan fácilmente leyes diversas y
otros sistemas políticos diferentes de los que traen de casa, sino que, a veces, al tender a la disensión civil
por la maldad de sus leyes y al intentar seguir usando, por hábito, las mismas costumbres por las que se
habían destruido antes, se hacen difíciles de manejar y convencer para el que funda la ciudad y le da leyes. Por
su parte, un pueblo de variado origen que confluye en un lugar quizá estaría más dispuesto a obedecer unas
leyes nuevas, pero el respirar al unísono y el unirse y, como la yunta de caballos, como se dice, tirar juntos en
el mismo sentido, necesita mucho tiempo y es difícil” (Platón, Leyes III, p. 359).
7
Resulta extraño quizás para quien tiene una imagen superficial del pensamiento platónico —imagen identificada
someramente con la inmutabilidad de lo Ideal y la imposibilidad de alcanzarlo— descubrir esta dinámica
condicionada por un tiempo y un espacio, pero lo cierto es que en toda su obra se percibe —hasta diríamos
con claridad— esta característica.

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fueran los más obedientes en lo que a la virtud atañe, y es evidente que en toda
la legislación el legislador intentará llevar a cabo eso” (Platón Leyes III, p. 375). La
ley es propiedad de la comunidad, no de los jueces ni de los legisladores, y nunca
ha de limitarse, para no modificar su esencia concertada y plural, a ser un dogma
unívoco y unidireccional. La misma polisemia de la palabra ‘ley’ en griego refleja
las implicaciones señaladas: “El término nómos, que en su forma plural da el título
al tratado, tiene en griego un campo semántico que supera en mucho a nuestra
palabra ‘ley’. Originariamente significa ‘división’, ‘distribución’, y su uso se encuentra
atestiguado a partir de Hesíodo (Los trabajos y los días, v. 276). Abarca significados
tan diversos como ‘hábito’, ‘costumbre’, ‘ley’ y ‘aire musical’, ‘norma de conducta’,
‘regla para la acción’, etc. Todas estas significaciones están presentes en el uso de
esta palabra en la obra de Platón y todas están entrelazadas entre sí para formar un
conjunto coherente que estructura la obra de un extremo al otro. La noción de nómos
adquiere una dimensión trascendente, religiosa, que hay que tener en cuenta en el
momento de analizar su proyecto político” (Francisco Lisi, en la Introducción a las
Leyes, Platón, p. 69).
En síntesis, este carácter que Platón atribuye a la norma —de múltiples facetas,
perfectible, y de producto de tensiones dinámicas que permanentemente entran en
juego y modifican la realidad con la que el legislador debe enfrentarse— es el que que
pretendemos destacar, para señalar, a continuación, las relaciones que creemos tiene
con concepciones contemporáneas como las de Reale y Alvarado Velloso, preocupadas
también en que no se le cercene al Derecho su condición compleja y fascinante para
transformarlo en un catálogo de arbitrariedades incapaz de comprender y dar solución
las necesidades reales de la gente. “Toda ciudad en la que los juzgados no estuvieran
instituidos correctamente se destruiría como tal” (Platón, Leyes VI, p. 37).

2  La norma jurídica en la teoría tridimensional del derecho de


Miguel Reale
Miguel Reale (1910-2006) construyó su teoría del Derecho integrando el punto
de vista fáctico (hecho), el axiológico (valor) y el jurídico (norma en sí). En el prólogo de
su libro Filosofía del Derecho hace clara su posición: “Nunca he entendido el derecho
como pura abstracción —lógica o ética— separada de la experiencia social, sino que,
por el contrario, he visto siempre la necesidad de hincar sus raíces en esa experiencia
y así poder evolucionar con firmeza y recibir el hálito tonificador de los ideales de
justicia”. Esta visión integradora responde a la complejidad que el devenir del siglo XX
trajo aparejada en todos los ámbitos de la actividad humana: juzgar una conducta ya
no es posible solo ateniéndose a la fría letra de la ley, sino que cada caso particular
exige una lectura propia y única, sin dejar de lado claro está el cuerpo normativo y la
jurisprudencia como sustento técnico y legal.

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La norma jurídica como mediadora dinámica – Su gravitación sobre la postura garantista del proceso

Bajo el influjo de la filosofía de Kant, la fenomenología de Husserl y el pensa-


miento de Heidegger, Reale aporta a la Filosofía del Derecho una visión prismática
y novedosa que, partiendo de una sesuda conceptualización, busca incidir efectiva-
mente y concretarse sobre el espíritu que alienta el avance de la legislación y los
mecanismos del debido proceso.
En el inicio de su búsqueda, pronto descubre que una valiosa y enriquecedora
encrucijada entre las inquietudes del Derecho y las de la Filosofía se da en el plano
de lo axiológico. Si juzgar es reconstruir la justa proporción de una acción determinada
en una circunstancia puntual —y, en consecuencia, asignarle la absolución o la pena
proporcional según la normativa vigente-, la cuestión de la entidad que adquieren los
valores en este complejo juego es fundamental. “Los valores, en efecto, no son seres
existentes en sí, como realidades ideales que están fuera del hombre, sino que están
en relación necesaria con el hombre que descubre las cosas que son valiosas en su
existencia. Ahora bien, esta necesaria referencia al ser humano no es una reducción
subjetivista al individuo, sino en relación con la subjetividad universal, esto es, con
las preferencias, criterios e interpretaciones de la realidad que dominan un momento
determinado de la historia y que corresponden más bien a un grupo determinado de
personas: ‘El valor, por lo tanto, no es proyección de la conciencia individual, empíri-
ca y aislada, sino del espíritu mismo, en su universalidad, en cuanto se realiza y se
proyecta hacia fuera, como consciencia histórica, en la cual se traduce la interacción
de conciencias individuales, en un todo de superaciones sucesivas’ (Reale, Filosofia
do Direito, 187). La selección de los valores que conforman una época se realiza en
función de la relevancia de significación, esto es, por la importancia que adquieren en
un momento de la historia: ‘El elemento de fuerza, de dominio o de preponderancia
de los elementos axiológicos o de los valores resultaría, por lo tanto, de esa toma
de conciencia del espíritu delante de sí mismo, a través de sus obras: los valores,
en último análisis obligan porque representan al hombre mismo como autoconciencia
espiritual; y se constituye en la Historia y por la Historia porque esta es, en el fondo,
el reencuentro del espíritu consigo mismo, del espíritu que se realiza en la expe-
riencia de las generaciones, en las vicisitudes de lo que llamamos ciclos culturales,
o civilizaciones... No basta, por lo tanto, dar una explicación genética del mundo
estimativo, puesto que es necesario procurar la razón de ser de aquellos que se
establece como valor, y el valor no se comprende sin referencia a la historia’ (Reale,
Filosofia do Direito, 187)” (Ramos, La filosofía de Miguel Reale, pp. 105-106).8 Frente

8
“En la escala de valores, hay que reconocer, sostiene, valores subordinantes (fundantes) y valores subordinados
(secundarios); los primeros se presentan como un fin, mientras que los otros son medios. De esta manera,
Reale sitúa en el primer lugar el valor de lo verdadero, que tiene una doble dimensión. La lógica y la ontológica.
El segundo valor es el de lo bello, que funda la estética. En tercer lugar, se halla el valor de lo útil, que se
realiza particularmente en el ámbito de la economía política. El peligro con este valor es cuando se convierte
en el valor dominante sin referencia a otros como el ético o el religioso, reduciendo la realización humana a la

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Adriana Del Balzo

al monismo de Kelsen, esta idea de valor ofrece una contextualización en tiempo y en


espacio, en lo individual y lo particular, en lo social y lo histórico.
Consciente de la necesidad de evitar caer en la facilidad del relativismo,
Reale desarrolla, sobre sólidas bases filosóficas, un marco teórico que contiene un
conjunto de proposiciones que potencian su individualidad como partes de un todo.
Es un culturalismo abarcador que enriquece en la suma las visiones epistemológicas
particulares. “El culturalismo de Reale [...] reconoce la existencia de bienes culturales
que tienen un fundamento ideal, más allá de esta relación que tienen con las cosas
del orden físico o cuestiones de orden psíquico, puesto que se refieren a objetivos
y fines que suponen la existencia de bienes ideales. Esto sucede, por ejemplo, en
el ámbito de la ética o bien de las normas jurídicas. Las leyes son, en este último
caso, un enlace lógico con respecto a esos bienes que son considerados buenos
para el desarrollo de la vida en sociedad. Reale insiste en que la persona aparezca
siempre como valor fuente de todos los valores en cuanto es la que origina los valores
y éstos se dirigen a ella como fin. Así, la referencia realeana a la cultura es mucho
más que una apertura a la necesidad de tener en cuenta las características salientes
de una época que influyen en las acciones humanas y deben ser tenidas en cuenta
por la teoría política y jurídica, esa referencia tiene una connotación filosófica. Para
Reale, el culturalismo es la consecuencia directa de su ontognoseología, de esa
visión nueva y superadora del antagonismo entre idealismo y realismo, mediante la
cual se propone recuperar la dimensión histórica y material concreta de las cosas”
(Ramos, La filosofía de Miguel Reale, p. 110).9
A medida que madura su obra, la teoría tridimensional del Derecho adquiere
caracteres marcados y firmes. Néstor Ramos los señala con precisión: “El
tridimensionalismo jurídico integra tres aspectos en la determinación del Derecho:
el hecho, el valor y la norma. Esta perspectiva es consecuencia de la incorporación
del método fenomenológico al estudio de la realidad jurídica. La comprensión integral
del Derecho exige, para él, estos aspectos que componen su naturaleza tridimensional.
El propone, de esta manera, tener en cuenta dos aspectos que destaca con su

producción y consumo de bienes. En cuarto lugar se halla el valor de lo santo o religioso, que es el fundamento
de las religiones y de la relación que en ellas se expresa con el sentido trascendente de la existencia humana.
En quinto lugar está el valor de la vida, entendido éste como la realización existencial de la vida humana, que
comprende la concreción de los demás valores. Finalmente, se halla el valor del bien, al cual se refieren la
filosofía del derecho y la ética” (Ramos, La filosofía de Miguel Reale, p. 107).
9
Y supera, creemos, a las concepciones materialistas de la sociología en las fechas en que Reale daba a la luz
sus teorías: “La idea de sociedad, lejos de constituir un valor originario y supremo, se halla condicionada por
la sociabilidad del hombre, esto es, por algo que es inherente a todo ser humano y que es la ‘condición de
posibilidad’ de la vida de relación. El hecho de que el hombre sólo adquiera conciencia de su personalidad en
un momento determinado de la vida social no elude la verdad de que ‘lo social’ ya estaba originariamente en el
ser mismo del hombre, en el carácter bilateral de toda actividad espiritual: la toma de conciencia del valor de la
personalidad es una expresión histórica de la actualización del ser del hombre como ser social, una proyección
temporal, en suma, de algo que no se había convertido en experiencia social si no fuese intrínseco al hombre,
a la condición trascendental de ser persona’” (Reale, Introducción a la filosofía, p. 181).

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La norma jurídica como mediadora dinámica – Su gravitación sobre la postura garantista del proceso

ontognoseología: la dimensión histórica, concreta, el a priori material con el cual


completa la perspectiva kantiana, y el reconocimiento de la existencia de un ideal
de realización última del hombre, que si bien no puede ser explicado por la filosofía,
puede ser captado desde la conjetura. [...] Son diferentes niveles de análisis de la
cuestión jurídica, pero que se implican mutuamente, por lo tanto, es imposible com­
prender todo el fenómeno si falta alguno de ellos: ‘La palabra Derecho puede ser
apreciada por abstracción en un triple sentido, según tres perspectivas dominantes:
1- el Derecho como el valor de lo justo, estudiado por la Filosofía del Derecho en la
parte denominada Deontología Jurídica, o en el plano empírico y pragmático, por la
Política del Derecho; 2- el Derecho como norma ordenadora de la conducta, objeto
de la ciencia del Derecho o Jurisprudencia, y de la Filosofía del Derecho en el plano
epistemológico; 3- el Derecho como hecho social e histórico, objeto de la historia de
la Sociología y de la Etnología del Derecho, y de la Filosofía del Derecho en la parte
de la Culturología Jurídica’ (Reale, Filosofia do Direito, 448)” (Ramos, La filosofía de
Miguel Reale, pp. 123-125).10
El lugar del Derecho puede entenderse, así, con claridad: “El Derecho es, para
Reale, ante todo, un fenómeno social, porque no existe sino en la sociedad fuera
de la cual no se lo puede entender. En ella, el Derecho cumple la misión de regular
la conducta de los hombres y ordenarla al bien común. Allí se manifiestan los tres
aspectos básicos distintos pero interrelacionados: el aspecto normativo del Derecho
como ordenamiento jurídico; el aspecto fáctico del Derecho como conjunto de acciones
realizadas en la vida social; y el aspecto axiológico, del Derecho como valor de
realización de la justicia. Sólo partiendo de estos tres aspectos y de la consideración
de la cultura donde se realizan es posible comprender el Derecho en su integralidad.
Los valores que el Derecho debe custodiar no son los del individuo particular, sino
los de la sociedad, los que hacen posible el bien común en una sociedad. Por esa
razón, la justicia no puede ser considerada como una teoría abstracta sin referencia al
contexto social. La justicia no es una idea universal ni un conjunto de leyes formales
sin referencia a los hombres, a su cultura y a la experiencia. El Derecho precisa de
esta relación, pues es lo que hace posible la subsistencia de una sociedad regulando

10
“Esta teoría es el resultado de su insatisfacción con la teoría de Kelsen por ser insuficiente, en su opinión,
la explicación del derecho por la sola referencia a la norma. De las limitaciones del normativismo jurídico
surgen sus investigaciones en el culturalismo, la fenomenología, la teoría de los valores, las explicaciones
hermenéuticas, el existencialismo, etc. En 1953 publica Filosofia do Direito, obra en la cual analiza el
fenómeno jurídico compuesto de estos tres elementos que él considera ya indiscutibles. Allí sostiene que
estos elementos no sólo se correlacionan, sino que se dialectalizan, porque hay entre ellos un dinamismo
integrante y convergente, de manera tal que se puede analizar el derecho en tres órdenes diferentes. Así, si
la perspectiva de análisis es el Derecho Positivo de la Jurisprudencia, la norma resulta de la tensión dialéctica
entre hechos y valores. Si el enfoque se realiza, en cambio, desde la Sociología Jurídica, el Derecho aparece
como el hecho entendido como la norma valorada. Y si se analiza lo mismo pero desde la perspectiva de
la Filosofía Jurídica, lo que se busca es el valor que explica el hecho que ha sido regulado por una norma”
(Ramos, La filosofía de Miguel Reale, p. 124).

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Adriana Del Balzo

la convivencia. De allí que también la ley requiera de una fuerza que haga posible
la instauración de este orden social: la función coactiva del poder. El Derecho, por
último, no puede no tener una relación directa con la persona, puesto que lo que
busca con el orden social es el bien de las personas, y más aún, los valores que las
personas descubren como verdaderos bienes, y la persona misma como fuente de los
valores. Esto nos permite llegar a la conclusión de que su pensamiento filosófico ha
inspirado una visión realista del Derecho, entendiendo este realismo como búsqueda
de fundamento en el hombre y en su contexto histórico y cultural” (Ramos, La filosofía
de Miguel Reale, pp. 126-127).
Estos párrafos de Ramos son elocuentes respecto de la similitud entre lo
propuesto por Platón sobre la ley, en el nacimiento mismo de la filosofía occidental,
y las teorías de Reale, hijas de un esfuerzo por integrar elementos conceptuales
aparentemente dispersos y acotados por sus respectivos campos y objetos de
estudio. De allí que nos interese señalar las relaciones entre estas dos visiones
tan separadas en el tiempo, pero tan unidas en su manera de intentar responder
globalmente a la complejidad que enfrentan.
En este punto podemos entender el papel que en la concepción de Reale tiene
la ley para el Derecho: “Las normas jurídicas, en efecto, son una formulación racional
de una preferencia, esto es, de un valor por el cual el hombre actúa. La norma
traduce, en cierta forma, ese valor. Por eso, no se puede considerar a la ley como
una mera proposición lógica sin referencia alguna a estos valores, al hombre y a la
cultura en la cual vive. La norma es el producto final de la tensión dialéctica entre
hechos y valores, aunque no todas las relaciones de tensión entre hechos y valores se
conviertan en una norma jurídica, sino sólo aquellas que se consideran socialmente
fundamentales. En síntesis, en la conformación de la norma jurídica intervienen tres
elementos: 1- un conjunto de valores y fines que se trata de preservar y establecer
como guías de la conducta en la construcción de una sociedad en paz; 2- un conjunto
de hechos vinculados entre sí que influyen en la acción de cada individuo; 3- un
cuerpo de normas establecidas por el legislador para regir una sociedad determinada”
(Ramos, La filosofía de Miguel Reale, p. 128). La norma como mediadora dinámica.
Bosquejaremos en el apartado siguiente algunas hipótesis sobre cuál puede ser su
incidencia basal sobre las condiciones que garanticen un justo proceso.

3  El garantismo según Alvarado Velloso y el papel de la ley


“El garantismo postula y pretende la irrestricta y plena vigencia del sistema
acusatorio o dispositivo de enjuiciamiento, tanto en lo penal como en lo civil”.11

11
<http://cporesolucionesjudiciales.blogspot.com.ar/2012/08/el-garantismo-procesal-alvarado-velloso.html>.
Publicado en la ley, 15.12.2010 1.

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La norma jurídica como mediadora dinámica – Su gravitación sobre la postura garantista del proceso

“[...] como movimiento filosófico que en definitiva es, lo que el garantismo pretende
es el irrestricto respeto de la Constitución y de los Pactos internacionales que se
encuentran en su mismo rango jurídico. Los autores así enrolados no buscan a un juez
comprometido con persona o cosa distinta de la Constitución, sino a un juez que se
empeñe en respetar y hacer respetar a todo trance las garantías constitucionales [...]
Y es que el proceso judicial es la gran y máxima garantía que otorga la Constitución
para la defensa de los derechos individuales desconocidos por cualquiera persona
—comenzando por el de libertad— y, muy particularmente, por la propia autoridad,
con la cual el individuo puede igualarse jurídicamente sólo en el proceso, ya que
allí hay un tercero que le otorga un trato absolutamente igualitario desde su pro­
pia imparcialidad. De ahí el nombre de garantista o libertaria (por oposición a la
anta­ gónica, claramente totalitaria) [...] Reitero: el garantismo procesal no tolera
alza­miento alguno contra la norma fundamental [...]; por lo contrario, se contenta
modestamente con que los jueces —insisto que comprometidos sólo con la ley—
declaren la certeza de las relaciones jurídicas conflictivas otorgando un adecuado
derecho de defensa a todos los interesados y resguardando la igualdad procesal con
una clara imparcialidad funcional para, así, hacer plenamente efectiva la tutela legal
de todos los derechos”.12 Estos párrafos del doctor Adolfo Alvarado Velloso definen
magistralmente lo que es el llamado garantismo procesal. Dos ejes sobresalen con
claridad: el absoluto e inclaudicable respeto por las garantías constitucionales como
base de cualquier sistema judicial y la preocupación permanente por asegurar un
justo juicio a todas las personas.
¿Cuál es la relación entre esta visión del proceso y la ley? Cuando el estudioso
argentino cuestiona reiteradamente en sus obras vicios de arrastre —herederos del
sistema inquisitivo de juzgamiento, de concepciones solo enfocadas a cumplir la letra
fría de la normativa, etcétera— y otros propios de nuestra época —la mediatización
de las causas y la tentación de dar respuestas exprés propias del activismo judicial—
pone el dedo en la llaga sobre cuestiones de vital importancia. Ciertos comporta-
mientos se naturalizan y bastardean instituciones fundamentales de la república y
de la vida democrática. El proceso ve diluir su entidad original para convertirse o en
un mero formalismo burocrático con soluciones prefabricadas por la comodidad y la
desidia de sus actores, o en un show que los medios ofrecen al ritmo alocado que el
hambre de novedades de los mass media demande. Ante esta situación, urge zanjar
la brecha que existe entre los poderes Legislativo y Judicial, a fin de que trabajen con
visiones de largo plazo que tengan como horizonte definitivo la estabilidad republica-
na. El Legislativo no debe embarcarse en la sanción de leyes efectistas pergeñadas

12
Ídem supra.

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con el único y mezquino objeto de para buscar un nimio y circunstancial rédito político
entre la ciudadanía, y que luego no se pueden aplicar, ya sea por su evidente incons-
titucionalidad o por su total desconocimiento de la realidad de la Justicia. Legislar es
atenerse a los dictados de la Constitución. Jamás debe encararse esta actividad, al
igual que el proceso, obviándola o yendo en su contra. Por eso la norma sigue siendo
la piedra fundamental del sistema jurídico de un país y no puede ser producto de un
capricho o el resultado de una flagrante violación a contramano de la carta magna de
una nación.

4 Conclusiones
La norma es el punto de encuentro entre el legislar y el juzgar. Es la materiali-
zación consistente de los grandes lineamientos que traza la Constitución que se ha
dado un país. Desde Platón se le reconoce la variedad de aspectos que abarca, su
carácter perfectible y dinámico en función de las evoluciones de la comunidad que la
ha engendrado y aceptado. El monismo de Kelsen, imperante desde fines del siglo
XIX y que no ha perdido su importante influjo hasta la actualidad, implica el riesgo de
convertirse en un mero resorte taxonómico que sólo tipifica una acción y le impone el
castigo correspondiente que manda la letra fría del código. La teoría tridimensional
del Derecho de Miguel Reale es un aporte valioso a fin de recuperar la perspectiva
multifacética de la ley, de considerar al hecho jurídico como un fenómeno en su
apasionante individualidad. Las concepciones del llamado garantismo, en la visión de
Alvarado Velloso, buscan que no se pierda el rumbo respecto de la naturaleza y los
alcances del debido proceso, esto es, la plena vigencia de las garantías constitucio-
nales. Con estas grandes líneas como marco, se entiende que la norma jurídica ha de
ser la mediadora dinámica entre los poderes Legislativo y Judicial, entre el dar leyes
y el debido proceso, entre la comunidad y sus mandatarios. Debe tener siempre una
clara identidad con el ordenamiento jurídico y el sistema procesal de los cuales es
parte, a fin de no bastardear la esencia íntima del sistema republicano de gobierno.

Referencias
Alvarado Velloso, A. (1982) El juez, sus deberes y facultades. Buenos Aires, Depalma.
(1997) Introducción al estudio del Derecho Procesal. Primera parte. Santa Fe, Rubinzal-Culzoni.
(1998) Introducción al estudio del Derecho Procesal. Segunda parte. Santa Fe, Rubinzal-Culzoni.
(2003) El debido proceso de la garantía constitucional. Rosario, Zeus,
(2004) Debido proceso versus pruebas de oficio. Bogotá, Temis.
(2005) Garantismo procesal contra actuación judicial de oficio. Valencia, Tirant lo Blanch.
Platón (2007a) Leyes (Libros I-V). Barcelona, Gredos.

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La norma jurídica como mediadora dinámica – Su gravitación sobre la postura garantista del proceso

(2007b) Leyes (Libros VI-XII). Barcelona, Gredos.


(2007c) República. Barcelona, Gredos.
Ramos, N. A. (2011) La filosofía de Miguel Reale. Mar del Plata, Universidad Fasta.
Reale, M. (1979) Filosofía del Derecho. (Trad. al castellano A. Herrero Sánchez). Madrid, Ediciones
Pirámide. (Original en Portugués, 1994).
(1997) Teoría Tridimensional del Derecho. (Trad. A. Mateos). Madrid, Editorial Tecnos. (Original en
Portugués, 1994).
(2001) Verdade e Conjetura. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
Saltor, C. E. (2011). Teoría tridimensional del Derecho de Miguel Reale, Tucumán, Facultad de Derecho
y Ciencias Sociales UNT. <http://paideiapoliteia.com.ar/docs/releed/004_ces.pdf>.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

DEL BALZO, Adriana. La norma jurídica como mediadora dinámica: su gravitación


sobre la postura garantista del proceso. Revista Brasileira de Direito Processual –
RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 137-147, jan./mar. 2014.

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O amicus curiae no direito processual
civil brasileiro

Francieli Pisetta
Professora na Fundação Universidade do Contestado (FUnC). Especialista em Direito Civil pela
Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) e Centro Universitário de Jaraguá do
Sul (UNERJ), atual Centro Universitário – Católica de Santa Catarina. Especialista em Direito
Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em parceria com a
Rede de Ensino LFG. Especialista em Direito Público pela Fundação Universidade Regional de
Blumenau (FURB) em parceria com a Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC), Escola
Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina (ESMESC) e Fundação Fritz Müller.

Resumo: Este trabalho apresenta um estudo sobre o amicus curiae (do latim, “amigo da corte”), cujo
objetivo geral é analisar o tratamento legal que lhe é dado no Brasil a fim de constatar as hipóteses
possíveis de sua participação, além de verificar a sua natureza jurídica e a abordagem dada pela doutrina
pátria a respeito. Assim, este estudo aponta conceitos do “amigo da corte” formulados por diversos
expoentes, além de traçar paralelos com outras figuras processuais (partes, juiz, auxiliares da justiça,
perito, intérprete, testemunhas, custos legis e curador especial) para diferenciação. Quanto à natureza
jurídica da figura, a doutrina revela três correntes principais: terceiro interventor, assistente qualificado e
auxiliar do juízo. São questionados aspectos como legitimidade, conveniência, quantidade de colaboradores,
momento da intervenção, prazo e modo de manifestação, extensão dos poderes e limitações. O trabalho
também elenca os dispositivos legais do ordenamento jurídico brasileiro que indicam hipóteses de
participação do “amigo da corte”, porém com outra terminologia ou, ainda, apenas caracterizando-o no
sentido de permitir a participação no feito. Acentua a insuficiência da disciplina legal do amicus curiae e
a necessidade de uma sistematização específica, entendendo-se que tal medida pode resolver eventuais
problemas e permitir a ampla participação da figura em procedimentos diversos. Outrossim, durante o
trabalho, infere-se a importância prática e a repercussão social e jurídica da ampla intervenção do “amigo
da corte”, observando-se os aspectos favoráveis e desfavoráveis dessa forma de colaboração.
Palavras-chave: Amicus curiae. Natureza jurídica. Hipóteses de participação. Insuficiência legal.

Sumário: Introdução – 1 Amicus curiae – Considerações iniciais – 2 Natureza jurídica e reflexões – 3 O


amicus curiae no direito processual civil brasileiro – Conclusão – Referências

Introdução
O amicus curiae no direito processual civil brasileiro é, pois, o tema desta pes-
quisa científica.
Existem causas cujo desfecho interessa, quando não a um grupo determinado,
a toda uma sociedade, eis que acabam por atingi-la diretamente e/ou gerar reflexos
em determinados setores que, por sua vez, refletem em outros, e assim sucessiva-
mente. Infere-se, pois, a importância do julgamento destas causas, que deve ser mais

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firme, seguro e completo quanto possível for. Para tanto, imprescindível esquadrinhar
exaustivamente e esmiuçar ao máximo o objeto da causa, o que pode ser alcançado
com a ampliação e a viabilização da pluralização do debate. Neste ponto, entra em
cena o amicus curiae, pessoa física ou jurídica, que contribui para a melhor resolução
do conflito, emprestando seus conhecimentos técnicos sobre o tema vergastado.
Mas quais as hipóteses de participação do amicus curiae no direito brasileiro?
Exatamente neste ponto reside a problemática central deste trabalho.
A discussão concernente ao amicus curiae é de eminente relevância ao saber
jurídico, eis que importa a todo aplicador do Direito, confundindo-se com a importân-
cia social, pois também interessa à sociedade como um todo e ao Estado que deve
zelar por sua harmonia na busca do bem comum.
Como objetivo geral desta pesquisa, tem-se a análise do tratamento legal dado
pelo ordenamento jurídico brasileiro à figura do amicus curiae a fim de constatar as
hipóteses possíveis de sua participação, além da verificação da sua natureza jurídica
e da abordagem dada pela doutrina pátria a respeito.
Outrossim, de maneira específica, convém ressaltar que o presente trabalho
pretende esclarecer o que vem a ser amicus curiae, traçar paralelos com outras figuras
processuais (partes, juiz, auxiliares da justiça, perito/intérprete, testemunhas, custos
legis e curador especial) e identificar a divergência concernente à sua natureza jurí-
dica. Tenciona também averiguar a disciplina legal existente no Brasil e, caso insu-
ficiente ou deficitária, observar a possibilidade de intervenção do amicus curiae nas
hipóteses não expressas na lei, bem como analisar se o ordenamento jurídico pátrio
possui outros dispositivos legais ou princípios que poderiam ser aplicados ou se
é imprescindível a criação de uma lei especial para tratar da questão. Além disso,
almeja enumerar as hipóteses de participação do amicus curiae nos procedimentos,
expressar a importância prática e a repercussão social e jurídica da ampla interven-
ção e observar os aspectos favoráveis e desfavoráveis desta forma de colaboração.
O vertente estudo encontra-se dividido em três partes que acompanham, dentro
do possível, os aspectos mais marcantes referentes ao tema proposto.
Constatar-se-á que a primeira parte é destinada a considerações basilares do
amicus curiae. Assim, em um primeiro momento, ter-se-á a sua conceituação e, em
um segundo momento, o estabelecimento de um paralelo com outras figuras proces-
suais (partes, juiz, auxiliares da justiça, perito, intérprete, testemunhas, custos legis
e curador especial) para diferenciação e consolidação de sua definição.
A segunda parte é dedicada a um aprofundamento da figura em estudo, na qual se
enfoca a natureza jurídica e reflexões contextuais. Destarte, notar-se-á, primeiramente,
as discussões doutrinárias concernentes à natureza jurídica. Em seguida, apresentar-se-á
a origem do instituto e a primeira aparição no direito pátrio, bem como se questionarão
aspectos de legitimidade, conveniência, quantidade de colaboradores, momento da inter-
venção, prazo e modo de manifestação, extensão dos poderes e limitações.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

A última parte, qual seja, a terceira, contempla o tratamento do amicus curiae


no direito processual civil brasileiro. Assim, avaliar-se-á a disciplina legal existente no
Brasil e as hipóteses de sua intervenção, com os pontos favoráveis e desfavoráveis.
Na conclusão encontrar-se-á uma breve resenha do tema investigado, para des-
tacar os resultados decorrentes da pesquisa em tela.
O presente trabalho foi dinamizado a partir de métodos e técnicas específicas
a fim de que se pudesse obter um resultado positivo, como fruto da produção desta.
Explicitando os métodos e as técnicas que foram utilizadas, tem-se que, no
tocante ao método, a pesquisa foi desenvolvida a partir de uma estrutura indutiva.
O método indutivo tem como característica “pesquisar e identificar as partes de um
fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”.1
Constatar-se-á tal método na medida em que se observa a proposta da pesquisa, ou
seja, partir-se-á de noções gerais relativas ao amicus curiae e outras figuras proces-
suais (partes, juiz, auxiliares da justiça, peritos, intérpretes, testemunhas, custos
legis e curador especial) para, ao final, representando a segunda e a terceira seções,
analisar a sua natureza jurídica e a regulamentação dada pelo ordenamento jurídico
pátrio quanto à participação do referido “colaborador da corte”, constatando a sua
suficiência ou não e, no caso de se observar a segunda situação, apontar as deficiên-
cias e averiguar se o ordenamento possui outros dispositivos legais ou princípios que
podem ser aplicados ou se se faz necessária a criação de uma lei especial para disci-
plinar a matéria. Outrossim, o método histórico-evolutivo foi utilizado na medida em que
se indicará a origem do instituto e a primeira aparição no Brasil, no segundo capítulo.
Esclarecendo que a “técnica é um conjunto diferenciado de informações reu-
nidas e acionadas em forma instrumental para realizar operações intelectuais ou
físicas, sob o comando de uma ou mais bases lógicas investigatórias”,2 admite-se
que, em aspectos gerais, a pesquisa é bibliográfica, porém conjugadas com outras
técnicas, sejam estas: conceitos operacionais, leituras com referencial expressamente
definido e fichamentos. Serão consultados, portanto, livros, revistas e sites da inter-
net, entre outros, além de serem analisados dispositivos legais referentes ao tema.
Trata-se, pois, de uma pesquisa qualitativa.
Como observações finais, vale destacar que o tema objeto da presente pesquisa
é extremamente amplo, razão pela qual se deteve a um exame mais profícuo e espe-
cífico dos pontos que se reputaram mais relevantes, desagregando-se de aspectos
tangenciais que a temática desperta.

1
PASOLD. Prática da pesquisa jurídica: idéias e fundamentos úteis para o pesquisador do direito, p. 83.
2
PASOLD. Prática da pesquisa jurídica: idéias e fundamentos úteis para o pesquisador do direito, p. 84.

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Francieli Pisetta

1  Amicus curiae – Considerações iniciais


Para um melhor aproveitamento quanto à reflexão acerca da natureza jurídica e
das hipóteses de participação do amicus curiae, revela-se basilar a conceituação do
que vem a ser tal instituto, bem como a distinção com outras figuras processuais.

1.1 Conceituação
Amicus curiae é uma expressão de origem latina que significa “amigo da corte”.3
Evidente, entretanto, que a tradução literal do termo não encerra em si a definição
do instituto em apreço. Tal tarefa é incumbência da doutrina, uma vez que não o fez
a legislação pátria.
Paulo Ronai classifica o amicus curiae como uma espécie de perito, ao exprimir
o seguinte significado: “amigo da cúria, isto é, da justiça. Diz-se de perito designado
por um juiz para aconselhá-lo”.4 Para Cassio Scarpinella Bueno, essa primeira aproxi-
mação do significado esclarece a função processual da figura e é bastante rente às
funções desempenhadas pelos seus ancestrais no direito medieval inglês.5
Ultrapassando a conceituação etimológica, Rodrigo Murad do Prado amplia a
definição, explicitando tratar-se de um instituto democrático, já que permite que ter-
ceiros integrem a demanda para discutir teses jurídicas que vão afetar toda a socie-
dade, nos limites subjetivos da coisa julgada.6
Maria Chaves de Mello, por sua vez, define a figura como um “terceiro que,
com o consentimento por escrito das partes, ou autorização do juiz, pode, em uma
questão que afeta o interesse público, juntar o seu parecer aos autos do processo,
declarando como ele acha que deve ser decidida a matéria”.7
De Plácido e Silva também trata o amicus curiae como um terceiro, porém, que
não dá sua opinião sobre como o feito deve ser decidido, mas sim que presta infor-
mações ou esclarecimentos que interessem à causa:

Expressão latina adotada no sistema jurídico inglês significando o “amigo


do Tribunal”, significando o terceiro no processo que é convocado pelo
juiz para prestar informações ou esclarecer questões técnicas, inclusive
jurídicas, que interessam à causa. O juiz tem este poder em decorrência
do disposto nos arts. 130 e 339 do Código de Processo Civil de 1973.8

3
SANTOS. Amicus curiae: um instrumento de aperfeiçoamento nos processos de controle de constitucionalidade.
Jus Navigandi.
4
RONAI. Não perca o seu latim, p. 25.
5
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 6.
6
PRADO. O amicus curiae no direito processual brasileiro. Jus Navigandi.
7
MELLO. Dicionário jurídico português-inglês, inglês-português = Law Dictionary Portuguese-English, english-
portuguese, p. 245-246.
8
SILVA. Vocabulário jurídico, p. 104.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

No mesmo horizonte, acentua Esther Maria Brighenti dos Santos:

Diz respeito a uma pessoa, entidade ou órgão com profundo interesse em


uma questão jurídica levada à discussão junto ao Poder Judiciário. Original-
mente, o amicus é amigo da corte e não das partes, uma vez que se insere
no processo como um terceiro, que não os litigantes iniciais, movido por
um interesse maior que o das partes envolvidas inicialmente no processo.9

Colaciona-se também o escólio de Luiz Fernando Martins da Silva:

Amicus Curiae é o “amigo da Corte”, aquele que lhe presta informações


sobre matéria de direito, objeto da controvérsia. Sua função é chamar a
atenção dos julgadores para alguma matéria que poderia, de outra forma,
escapar-lhe ao conhecimento. Um memorial de amicus curiae é produzido,
assim, por quem não é parte no processo, com vistas a auxiliar a Corte para
que esta possa proferir uma decisão acertada, ou com vistas a sustentar
determinada tese jurídica em defesa de interesses públicos e privados de
terceiros, que serão indiretamente afetados pelo desfecho da questão.10

Atentando-se para o tipo de matéria discutida na causa, Carlos Gustavo


Rodrigues Del Prá salienta que o amicus curiae é um instrumento de participação
em processos, cujo cerne possua caráter, transcendência ou interesse público. E
complementa ser válido ainda que se trate de lide individual, desde que a matéria
vá além dos litigantes.11 Também enfocando para o caráter participativo, Milton Luiz
Pereira enquadra o “amigo da corte” como um

[...] voluntário partícipe na construção de assentamentos judiciais para


o ideal de pretendida “sociedade justa”, sem confundir-se com as hipó­
teses comuns de intervenção. [...] conclui-se que o amicus curiae, como
terceiro especial ou de natureza excepcional, pode ser admitido no pro-
cesso civil brasileiro para partilhar na construção de decisão judicial,
contribuindo para ajustá-la aos relevantes interesses sociais em conflito.
A exposição de idéias é necessário tributo para as definições de uma
ordem jurídica justa.12

Como se observa, não há uma unanimidade doutrinária da definição exata de


amicus curiae; os conceitos variam. Isso se dá porque, no direito brasileiro, o “amigo
da corte” é “[...] instituto ainda não sistematizado, cujos contornos não estão com-
pletamente definidos e cuja significação ainda está em construção”.13

9
SANTOS. Amicus curiae: um instrumento de aperfeiçoamento nos processos de controle de constitucionalidade.
Jus Navigandi.
10
SILVA. Anotações sobre o “amicus curiae” e a democratização da jurisdição constitucional. Jus Navigandi.
11
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 30.
12
PEREIRA. ‘Amicus curiae’: intervenção de terceiros. Revista de Informação Legislativa.
13
AGUIAR. Amicus curiae, p. 3.

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Observa-se que algumas linhas coincidem, o que permite formular, com base
no que foi discorrido, o seguinte conceito de amicus curiae: trata-se de um terceiro,
pessoa física ou jurídica, que intervém no processo para prestar informações e/ou
esclarecimentos sobre matéria determinada que seja objeto de discussão no feito,
cuja relevância ultrapassa o interesse das partes litigantes, ampliando o debate e a
análise da questão e, assim, contribuindo para que a decisão do(s) julgador(es) seja
mais fundamentada, firme e segura.
Outrossim, pela própria conceituação, deflui-se a relevância jurídica e, por con-
seguinte, social, do amicus curiae.

1.2  Paralelo com outras figuras processuais


Como se infere pela conceituação, o amicus curiae é uma figura especial. Logo,
não se confunde com os sujeitos principais do processo, auxiliares da justiça, perito,
intérprete, testemunhas, custos legis e curador especial. Nesta senda, oportuno que
se defina tais figuras processuais, eis que tal paralelo contribui para sedimentar a
diferenciação entre estas e o “amigo da cúria”.
É cediço que a relação jurídica depende de uma triangularização para se estabe-
lecer, uma vez que devem existir três sujeitos: autor, réu e juiz, este representando
o Estado.
Considerando um conceito clássico, por se entender mais apropriado para a
diferenciação com o amicus curiae, tem-se que, segundo Chiovenda, citado por Athos
Gusmão Carneiro, parte é “aquele que demanda em seu próprio nome a atuação de
uma vontade da lei, e aquele em face de quem essa atuação é demandada”.14 Com
base nesta lição, Cassio Scarpinella Bueno enfatiza:

[...] o conceito de parte é formulado em contraposição ao de terceiro:


é-se parte e, pois, não se é terceiro. E vice-versa. E parte é quem pede
e em face de quem se pede a prestação da tutela jurisdicional. Terceiro
é todo aquele que não pede ou em face de quem não se pede a tutela
jurisdicional.15

O juiz também é sujeito no processo, porém, ao contrário das partes, é:

[...] sujeito imparcial do processo, investido de autoridade para dirimir a


lide, o juiz se coloca super et inter partes. Sua superior virtude, exigida le-
galmente e cercada de cuidados constitucionais destinados a resguardá-la,
é a imparcialidade. A qualidade de terceiro estranho ao conflito em causa é
essencial à condição de juiz.16

14
CHIOVENDA apud CARNEIRO. Intervenção de terceiros, p. 4.
15
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 359.
16
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER. Teoria geral do processo, p. 293.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

Neste entendimento, o juiz é classificado como um terceiro por não ser parte.
O amicus curiae também é um terceiro, como mencionado anteriormente, porém não
decide o litígio. A resolução do conflito cabe ao magistrado, na qualidade de repre-
sentante do Estado. O “amigo da corte”, por sua vez, colabora com o juiz na tarefa
de solucionar a questão na medida em que compartilha seus conhecimentos sobre
a matéria discutida.
Além dos sujeitos principais (partes e juiz, representando o Estado), existem os
sujeitos secundários, quais sejam, os auxiliares da justiça. Estes são

[...] todas aquelas pessoas que de alguma forma participam da movimen-


tação do processo, sob a autoridade do juiz, colaborando com este para
tornar possível a prestação jurisdicional; considerando que os sujeitos
principais do processo são necessariamente três (Estado, autor e réu),
os auxiliares são pessoas que, ao lado do juiz, agem em nome do Estado
no processo para a prestação do serviço devido às partes litigantes.17

Nesta vereda, o artigo 139 do Código de Processo Civil apresenta um rol exem-
plificativo destes cooperadores.18
Em um primeiro momento, é inevitável classificar o amicus curiae como auxiliar
da justiça. No entanto, Cassio Scarpinella Bueno acentua que não se estaria distin-
guindo o “amigo da corte” como tal e também não haveria condições de diferenciá-lo
dos demais auxiliares, sendo importante confrontá-lo com outras figuras para traçar,
com a maior exatidão possível, a sua natureza jurídica.19
Dentre os auxiliares da justiça, destaca-se, a título de comparação com o amicus
curiae, o perito e o intérprete.
O perito, nas palavras de Humberto Theodoro Júnior, é um auxiliar eventual do
juízo, eis que assiste o juiz quando a prova do fato depender de conhecimento téc-
nico ou científico.20 21 E complementa o processualista que o expert “É, geralmente,
pessoa estranha aos quadros de funcionários permanentes da Justiça. Sua escolha
é feita pelo juiz para funcionar apenas num determinado processo, tendo em vista o
fato a provar e os conceitos técnicos do perito”.22
Diferencia-se do “amigo da cúria”, segundo Fredie Didier Júnior, porque: a) este
auxilia o juiz na tarefa hermenêutica enquanto o perito tem a função de servir como

17
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER. Teoria geral do processo, p. 201.
18
“Art. 139. São auxiliares do juízo, além de outros, cujas atribuições são determinadas pelas normas de organi-
zação judiciária, o escrivão, o oficial de justiça, o perito, o depositário, o administrador e o intérprete” (BRASIL.
Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973).
19
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 361.
20
THEODORO JÚNIOR. Curso de direito processual civil, v. 1, p. 196.
21
Neste sentido, prevê o caput do artigo 145 do Código de Processo Civil: “Quando a prova do fato depender de
conhecimento técnico ou científico, o juiz será assistido por perito, segundo o disposto no artigo 421” (BRASIL.
Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973).
22
THEODORO JÚNIOR. Curso de direito processual civil, v. 1, p. 196.

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instrumento de prova e de averiguação dos fatos; b) ao contrário do expert, a partici-


pação do amicus curiae não enseja honorários e não há maiores incidentes em sua
atuação, já que normalmente ocorre por provocação do juiz.23
O intérprete, por sua vez, identifica elementos que não são do conhecimento/
domínio do juiz, ainda que sejam reduzidos a dados linguísticos ou de comunicação,
viabilizando a aproximação com o dado.24
As testemunhas são terceiros que possuem um caráter instrutório. Vêm a juízo
depor sobre o fato litigioso do qual tem ciência,25 razão pela qual devem ser imparciais.
O custos legis é o fiscal da lei, função desempenhada pelo Ministério Público
em prol da ordem/interesse público, imparcialmente. É terceiro cuja missão é “[...]
fiscalizar e participar com o objetivo de que o resultado final do processo seja com-
patível com os preceitos do direito objetivo e, por esse modo, fiel aos valores éticos,
políticos, sociais e econômicos tutelados nas normas que o compõem”.26
A figura do curador especial está prevista no artigo 9º do Código de Processo
Civil e, pela sua função, diferencia-se do “amigo da cúria”:
27

Seja como mero ente integrador de capacidade, seja como substituto


processual ou como representante processual, a qualidade de sua atua­
ção diverge muito daquilo que, mesmo “por hipótese”, caracteriza a atuação
do amicus curiae. É como se dissesse que o curador age pela parte,
integrando seu agir processual, independentemente da específica forma
como isso se dá. Ele atua, assim, como alguém interessado, em busca
de um resultado que seja favorável à parte.28

Denota-se, portanto, que o amicus curiae pode guardar alguns traços de seme-
lhança com as figuras descritas, porém, com elas não se confunde diante de suas
peculiaridades.

2  Natureza jurídica e reflexões


Tecidas as considerações preliminares, passa-se a aprofundar o tema, esqua-
drinhando-se as discussões doutrinárias concernentes à natureza jurídica do amicus
curiae, bem como se anotando reflexões diversas sobre a figura em apreço.

23
DIDIER JÚNIOR. Possibilidade de sustentação oral do amicus curiae. Revista Dialética de Direito Processual –
RDDP, p. 36-37.
24
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 369.
25
THEODORO JÚNIOR. Curso de direito processual civil, v. 1, p. 434.
26
DINARMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 2, p. 428.
27
“Art. 9º O juiz dará curador especial: I - ao incapaz, se não tiver representante legal, ou se os interesses deste
colidirem com os daquele; II - ao réu preso, bem como ao revel citado por edital ou com hora certa. Parágrafo
único. Nas comarcas onde houver representante judicial de incapazes ou ausentes, a este competirá a função
de curador especial” (BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973).
28
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 389.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

2.1  Natureza jurídica


A doutrina pátria é bastante divergente quando se trata da natureza jurídica do
amicus curiae. Um aspecto, por óbvio, é pacífico: o “amigo da corte” não é parte.
Desta feita, possível verificar os seguintes posicionamentos, em caráter não ta-
xativo: a) terceiro interventor – espécie de intervenção de terceiros, anômala ou não;
b) assistente qualificado – forma qualificada de assistência; c) auxiliar do juízo. Além
disso, há defensores de que o “amigo da cúria” possui natureza dúplice: a) terceiro
interventor e auxiliar do juízo; b) terceiro interventor e assistente qualificado.
À primeira vista, se se partir do pressuposto estático de que o amicus curiae
não é parte, infere-se ser terceiro. No entanto, não seria um terceiro comum.
Neste passo, perfilhando a primeira corrente, Milton Luiz Pereira sustenta que o
“amigo da cúria” afasta-se da substituição das partes, do litisconsórcio, da assistên-
cia, do chamamento ao processo e das clássicas intervenção de terceiro e denunciação
da lide, sendo um “terceiro especial ou de natureza excepcional”.29 Este, inclusive,
é o posicionamento da maioria dos juristas nacionais: espécie de intervenção de
terceiros, distinta das conhecidas.30
São defensores deste posicionamento: Cassio Scarpinella Bueno (sujeito pro-
cessual distinto das partes, um terceiro enigmático),31 Athos Gusmão Carneiro (inter­
venção atípica),32 Rodrigo Murad do Prado (não é típica intervenção de terceiro),33
Antônio do Passo Cabral (terceiro sui generis ou terceiro especial, de natureza
excepcional),34 Gustavo Binenbojm (terceiro especial),35 Luiz Fernando Martins da
Silva (terceiro especial ou de natureza excepcional),36 Adhemar Ferreira Maciel (veros-
similhança com a intervenção de terceiros),37 Lenio Luís Streck (nova modalidade de
intervenção de terceiro)38 e Gustavo Santana Nogueira (nova modalidade de interven-
ção de terceiros, não se confundindo com a assistência e a função de custos legis
exercida pelo Ministério Público).39
A motivação de tal entendimento doutrinário, ou seja, a razão da intervenção do
“amigo da corte” ser considerada uma forma anômala de intervenção de terceiro, pode
assim ser sintetizada: “Esta nova espécie de intervenção ‘atípica’ fundamentar-se-ia

29
PEREIRA. ‘Amicus curiae’: intervenção de terceiros. Revista de Informação Legislativa.
30
AGUIAR. Amicus curiae, p. 54.
31
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 424.
32
CARNEIRO. Mandado de segurança: assistência e amicus curiae. Revista Forense, p. 78.
33
PRADO. O amicus curiae no direito processual brasileiro. Jus Navigandi.
34
AGUIAR. Amicus curiae, p. 52.
35
BINENBOJM. A dimensão do amicus curiae no processo constitucional brasileiro: requisitos, poderes proces-
suais e aplicabilidade no âmbito estadual. Revista Eletrônica de Direito do Estado – REDE.
36
SILVA. Anotações sobre o “amicus curiae” e a democratização da jurisdição constitucional. Jus Navigandi.
37
MACIEL. “Amicus curiae”: um instituto democrático. Revista da Ajuris, p. 7.
38
PRADO. O amicus curiae no direito processual brasileiro. Jus Navigandi.
39
NOGUEIRA. Do amicus curiae. Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, p. 20, 27.

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em legitimação excepcional do terceiro, que, para alguns autores, teria de ser juridi-
camente interessado, e, para outros, bastaria que possuísse interesse econômico”.40
É cediço que a assistência é uma modalidade de intervenção de terceiros.
Nessa senda, os expoentes da segunda corrente salientam que a intervenção do
amicus curiae se trata de uma forma qualificada de assistência. Isso porque se exige
do interventor “[...] outros requisitos além da comprovação de interesse jurídico”.41
Como ícone desse posicionamento doutrinário, destaca-se Edgard Silveira
Bueno Filho que assim se manifestou ao analisar a presença do “amigo da cúria” nas
ações diretas de constitucionalidade e de inconstitucionalidade:

Com efeito, para intervir no processo judicial comum basta ao terceiro


demonstrar o interesse legítimo. Nas ações diretas de constitucionali-
dade e de inconstitucionalidade [...] a intervenção só se admite quando
o terceiro seja uma entidade ou órgão representativo. Portanto, além da
demonstração de interesse no julgamento da lide a favor ou contra o
proponente, a assistência do amicus curiae só será admitida pelo tribu-
nal depois de verificada a representatividade do interveniente. Por isso,
trata-se de assistência qualificada.42

Em prol da terceira corrente, pontua Fredie Didier Júnior que o “amigo da corte”
é um auxiliar do juízo, não sendo parte, terceiro ou custos legis, bem como não sendo
equiparada sua intervenção à intervenção de terceiro:

É o amicus curiae verdadeiro auxiliar do juízo. [...].


O próprio étimo da expressão [...] já revela que estamos diante muito
mais de um auxiliar do juízo do que de um postulante [...]. Não se pode
equiparar, portanto, a intervenção do amicus curiae com a intervenção de
terceiro — seria o mesmo que se comparar a intervenção de um perito
com a de um assistente.
O amicus curiae compõe, ao lado do juiz, das partes, do Ministério Público
e dos auxiliares de justiça, o quadro dos sujeitos processuais. Trata-se de
outra espécie, distinta das demais, porquanto sua função seja de auxílio
em questões técnico-jurídicas. [...]
Distingue-se da função de custos legis [...].
[...] também não é terceiro, pela simples circunstância de estar atuando
no processo. [...]43

Leonardo José Carneiro da Cunha44 também é expoente da corrente de que o


“amigo da corte” é auxiliar do juízo, bem como Mirella de Carvalho Aguiar:

40
AGUIAR. Amicus curiae, p. 62.
41
AGUIAR. Amicus curiae, p. 62.
42
BUENO FILHO. Amicus curiae: a democratização do debate nos processos de controle da constitucionalidade.
43
DIDIER JÚNIOR. Possibilidade de sustentação oral do amicus curiae. Revista Dialética de Direito Processual –
RDDP, p. 34, 36-37.
44
AGUIAR. Amicus curiae, p. 59.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

[...] verdadeiro auxiliar do juízo, cuja participação se justifica em função


do interesse da Corte em ampliar o debate da questão e ser municiada
como [sic] o máximo de informações relativas à causa sub examine.
Ser-lhe-ia, portanto, completamente desnecessária a demonstração de
interesse jurídico.45

Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá, por sua vez, pondera a natureza dúplice do
amicus curiae (auxiliar do juízo e terceiro interveniente), por força das hipóteses de
manifestação (manifestação por iniciativa do juiz e manifestação voluntária). Nesse
passo, explica que, em caso de manifestação por iniciativa do juiz, o “amigo da corte”
desempenharia função semelhante ao do auxiliar do juízo; no caso de intervenção
voluntária, ou seja, exercendo a faculdade de se manifestar, o “amigo da cúria” seria
o terceiro interventor.46
Por sua vez, Luciano Marinho de Barros e Souza Filho reflete que “[...] a depen-
der do limite de abrangência do instituto [...] pode-se flutuar a natureza jurídica do
amicus curiae ora para uma intervenção ou assistência padrão ou inovadora, ora mais
restritamente, para um tipo de auxiliar específico”.47
Segundo Guilherme Giacomelli Chanan, “[...] certo é que a intervenção do amicus
curiae é uma forma de intervenção de terceiro especial ou, como preferem alguns
autores, um tipo de assistência qualificada”.48 O entendimento deste doutrinador per-
mite inferir uma outra classificação da natureza jurídica dúplice do “amigo da corte”
(terceiro especial ou assistente qualificado) ou, simplesmente, uma qualificação de
uma modalidade específica de intervenção de terceiro.
Como visto, não há entendimento pacífico acerca da natureza jurídica do “amigo
da cúria”. A maioria doutrinária, entretanto, defende que o amicus curiae é um terceiro
interventor atípico. Inegável que as discussões permanecerão acirradas, mormente
enquanto não houver uma regulamentação do instituto em debate. Grifa-se, outros-
sim, que a identificação da natureza jurídica tem relevância diante dos reflexos na
limitação da atuação, poderes, deveres, dentre outros.

2.2  Reflexões contextuais


Quanto à origem da figura do “amigo da corte”, Mirella de Carvalho Aguiar pon-
dera que, apesar de muitos autores atribuírem-na ao direito romano, foi no direito

45
AGUIAR. Amicus curiae, p. 62.
46
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 123-128.
47
SOUZA FILHO. Amicus curiae: instituto controvertido e disseminado no ordenamento jurídico brasileiro. Justilex,
p. 37.
48
CHANAN. Amicus Curiae no direito brasileiro e a possibilidade de seu cabimento nas Cortes estaduais.

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estadunidense que se desenvolveu.49 Esther Maria Brighenti dos Santos, outrossim,


assevera que o amicus curiae, “Instituído pelas leis romanas, foi plenamente desen-
volvido na Inglaterra pela English Common Law e, atualmente, é aplicado com grande
ênfase nos Estados Unidos”,50 sendo também utilizada neste país a denominação em
latim.51 Nessa vereda, de acordo com o regulamento da corte suprema dos Estados
Unidos, são requisitos de admissibilidade do instituto em tela:

a) o pretendente a ser admitido na lide demonstre interesse no resultado


da demanda;
b) a matéria ventilada seja relevante e inédita (não tenha sido levantada
pelas próprias partes);
c) haja consentimento expresso dos litigantes ou autorização da Corte;
d) seus argumentos e pedidos sejam sucintos e apenas excepcionalmente
participem de debates orais.52

No Brasil, como o instituto ainda está em desenvolvimento e os debates podem


ser considerados recentes, não há uma regulamentação geral. Aliás, “[...] as primei-
ras discussões a respeito do amicus curiae surgiram no Supremo Tribunal Federal [...]
quando do julgamento do Agravo Regimental na ADIn nº 748”.53
Uma das indagações iniciais acerca da figura em estudo concerne à sua legi-
timidade: quem pode atuar como “amigo da corte”? Diante da inexistência de um
rol genérico, podem atuar “uma pessoa física, um grupo de pessoas, uma pessoa
jurídica ou até um ente despersonalizado”.54 Enfim, podem apresentar suas razões
e saberes aos magistrados, para os influenciar ou alertar, uma pessoa, um grupo,
expertos, pesquisadores, órgãos governamentais e organizações não governamen-
tais.55 Cassio Scarpinella Bueno, por sua vez, analisa:

Não vemos como recusar que quaisquer outras pessoas jurídicas ou físi-
cas, mesmo que não admitidas, pela lei brasileira, como legitimadas
para a propositura de ações coletivas, possam pretender desempenhar
a função de amicus curiae. Contudo, à falta de norma genérica para o
assunto [...], parece-nos que o referencial necessário é o do art. 7º, §2º,
da Lei nº 9.868/99.56 57

49
AGUIAR. Amicus curiae, p. 11.
50
SANTOS. Amicus curiae: um instrumento de aperfeiçoamento nos processos de controle de constitucionalidade.
Jus Navigandi.
51
REIS. Amicus curiae. Fórum Administrativo – FA, p. 1988.
52
SOUZA FILHO. Amicus curiae: instituto controvertido e disseminado no ordenamento jurídico brasileiro. Justilex, p. 35.
53
MARTEL; PEDROLLO. Amicus curiae: elemento de participação política nas decisões judiciais-constitucionais.
Revista da Ajuris, p. 166.
54
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 116.
55
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 172.
56
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 647.
57
“Art. 7º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade. §1º
VETADO. §2º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá,

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

Neste diapasão, explica o citado doutrinador que tal dispositivo traz um “filtro”
para contrastar, ao mesmo tempo, a utilidade da manifestação do amicus curiae
(“relevância da matéria”) e a sua específica “representatividade adequada” (“repre-
sentatividade dos postulantes”).58
Edgard Silveira Bueno Filho enfatiza que, “Por relevância da matéria, o legislador
quis que o postulante demonstrasse a relação de relevância entre a matéria discutida
e a atividade perseguida pela instituição”.59 E, quanto à representatividade, aduz
o autor que entidades de notória representatividade serão facilmente admitidas ao
debate, conforme o tema discutido e sua relação com a atividade por estas desenvol-
vida, a exemplo das associações de magistrados, de advogados, de outros profissio-
nais liberais, de empresários, de defensores de direitos humanos, de consumidores,
do meio ambiente etc.60
Percebe-se que outras pessoas, inclusive físicas, poderiam intervir como amicus
além das entidades, a exemplo de expertos, pesquisadores etc., retrocitados. Trazendo-
se, pois, o caráter de representatividade para tais pessoas, sugere-se que seja con-
siderado o seu notório saber concernente à matéria discutida.
O trilhar da reflexão adentra em outra questão, qual seja a conveniência da
intervenção do “amigo da corte”. Compartilha-se do entendimento explanado para con-
siderar como adequada a participação nos casos em que a matéria é de tal relevância
que ultrapassa os interesses estritos dos litigantes, gerando reflexos em determinado
grupo ou na sociedade como um todo. Pensa-se que, nos casos em que não há essa
amplitude, a intervenção do amicus curiae corre o risco de não ser apropriada, gerando
debate desnecessário e, quiçá, tumulto processual.
Traçadas as linhas dos casos adequados para a intervenção, questiona-se
quantos colaboradores podem atuar no feito. A legislação pátria nada disciplinou a
respeito, razão pela qual se entende admissível a intervenção de mais de um “amigo
da corte”. Também se posiciona pela pluralidade de intervenções Cassio Scarpinella
Bueno.61 E em estudo dos processos de controle de constitucionalidade, Edgard
Silveira Bueno Filho apresenta lição que pode ser aplicada:

Uma mesma demanda poderá contar com a intervenção de mais de um


amicus. [...]
A lei nada diz a respeito da possibilidade de serem admitidos mais de
um amicus para cada parte. Conclui-se daí que, não havendo proibição,
a presença é permitida.

por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros
órgãos ou entidades” (BRASIL. Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999).
58
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 647.
59
BUENO FILHO. Amicus curiae: a democratização do debate nos processos de controle da constitucionalidade.
60
BUENO FILHO. Amicus curiae: a democratização do debate nos processos de controle da constitucionalidade.
61
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 165-168.

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Além de não existir proibição, deve ser lembrado que a participação desse
terceiro qualificado tem por objetivo ampliar o debate do tema constitucio-
nal, democratizando-o. Só pessoas representativas são habilitadas para
participar do processo de controle, daí porque a presença de vários amici
nos parece admissível.62

Se tomado o escólio para todo e qualquer tipo de processo, apenas se discorda


da expressão “mais de um amicus para cada parte”, uma vez que pode permitir uma
conotação de parcialidade à figura e sabe-se que esta não possui vínculo com nenhuma
das partes litigantes.
Evidente que o magistrado pode e deve valer-se dos princípios da razoabilidade
e da duração razoável do processo ao admitir a intervenção de vários amici curiae,
sob pena de prejuízo ao regular andamento do feito.
Qual o momento processual para a intervenção? Considerando o fim sociopo-
lítico do “amigo da cúria”, entende-se possível a sua intervenção a qualquer tempo,
desde que antes do julgamento, tanto no primeiro grau quanto em grau recursal.
Edgard Silveira Bueno Filho anota que “[...] pode se dar a qualquer tempo, antes do
julgamento da ação. É que, tal como na assistência, o amicus pegará o processo no
estado em que se encontra”.63 Por sua vez, Antônio do Passo Cabral destaca: “[...]
têm entendido o STJ e o STF, em nosso sentir com razão, que a intervenção do amicus
curiae poderá ocorrer durante a instrução processual, não sendo admissível depois
de iniciado o julgamento”.64
Acerca do prazo de manifestação do interventor, Cassio Scarpinella Bueno, em-
bora discorrendo em exame à ação direta de inconstitucionalidade, sublinhou o silêncio
da legislação, posicionando-se pela fixação do prazo de trinta dias para manifestação
(mesmo prazo que o artigo 6º da Lei nº 9.868/9965 concede aos réus da demanda
indicada para prestarem informações), contados a partir da admissão expressa da
intervenção do amicus.66 No mesmo sentido: Gustavo Binenbojm.67 Pensa-se ser este
um raciocínio aplicável a qualquer dos casos de participação do “amigo da cúria”, já
que o lapso temporal é razoável para apresentação de seus conhecimentos.
A extensão dos poderes processuais do “amigo da corte” está intimamente
ligada aos limites de sua atuação. Observa Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá:

62
BUENO FILHO. Amicus curiae: a democratização do debate nos processos de controle da constitucionalidade.
63
BUENO FILHO. Amicus curiae: a democratização do debate nos processos de controle da constitucionalidade.
64
CABRAL, Antônio do Passo apud BINENBOJM. A dimensão do amicus curiae no processo constitucional bra-
sileiro: requisitos, poderes processuais e aplicabilidade no âmbito estadual. Revista Eletrônica de Direito do
Estado – REDE.
65
“Art. 6º O relator pedirá informações aos órgãos ou às autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo
impugnado. Parágrafo único. As informações serão prestadas no prazo de trinta dias contados do recebimento
do pedido” (BRASIL. Lei nº 9.869, de 10 de novembro de 1999).
66
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 164-165.
67
BINENBOJM. A dimensão do amicus curiae no processo constitucional brasileiro: requisitos, poderes pro­cessuais
e aplicabilidade no âmbito estadual. Revista Eletrônica de Direito do Estado – REDE.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

Em agindo voluntariamente, o amicus curiae assumirá a qualidade de


terceiro interveniente, mas em posição diversa de qualquer outra prevista
no CPC. Assim, ser-lhe-á vedado exercer os poderes restritos às partes
e também aqueles mesmos atos vedados ao assistente simples, pois
que sua atuação é um minus em relação à atuação daquele. Assim, não
poderá: (i) recorrer quanto às questões diretamente relacionadas ao ob-
jeto da ação; (ii) formular ou alterar pedidos; (iii) praticar qualquer ato de
disposição de direito; (iv) apresentar exceções etc.
Poderá, para cumprir seu mister, (i) apresentar parecer, memoriais ou
qualquer outra forma de esclarecimento por escrito; (ii) juntar documen-
tos; (iii) fazer sustentação oral; (iv) recorrer da decisão que indeferiu sua
intervenção, bem como das decisões referentes a forma, conteúdo e
extensão de sua participação; (v) requerer ao relator sejam determinadas
medidas para esclarecer a matéria insuficientemente informada nos au-
tos; (vi) solicitando designação de perícia ou até (vii) audiência pública.68

O mencionado doutrinador também enfoca os poderes e limitações quando a


intervenção se dá mediante iniciativa do magistrado:

Com relação ao amicus curiae que age por requisição do relator, não
assumirá a qualidade de terceiro interveniente, mas de uma espécie de
auxiliar do juízo. Por isso, os poderes concedidos àquele que intervém
voluntariamente não podem ser estendidos a este.
De qualquer forma, e agindo com o fim de informar a corte, poderá esse
amicus curiae (i) informar matéria de fato; (ii) apresentar manifestação
sobre questão jurídica ou, ainda, (iii) juntar documentos.69

Destaca-se que não se observou divergência doutrinária quanto à manifestação


do amicus curiae de forma escrita. Deflui-se, então, que a participação pode se dar
através de arrazoado escrito, memoriais, parecer ou outra forma escrita de prestação
de informações. Maior discussão reside quanto à possibilidade de sustentação oral
pelo “amigo da corte”. Entretanto, a matéria já foi objeto de exame pelo Supremo
Tribunal Federal, como se nota no escólio de Gustavo Binenbojm:

No que toca à possibilidade de realização de sustentação oral, pelo pa-


trono do amicus curiae, o Supremo Tribunal Federal recentemente reviu
seu posicionamento anterior, passando a admiti-la. De fato, no ano de
2000, o então Presidente do STF, Ministro Carlos Velloso, proferiu deci-
são monocrática nos autos da ADIN nº 2.321-DF, na qual entendia não
ser possível a realização de sustentação oral pelo advogado do amicus
curiae. Em 2001, a Corte, por sua formação plenária, ratificou o entendi-
mento do eminente Ministro Carlos Velloso, indeferindo o pleito de sus-
tentação oral formulado pelo patrono do amicus curiae admitido no feito.

68
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 141-142.
69
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 142.

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Francieli Pisetta

Ficaram vencidos, quanto à questão, os Ministros Nelson Jobim, Celso


de Mello e Marco Aurélio.
Recentemente, todavia, em novembro de 2003, o Supremo Tribunal reviu
seu entendimento anterior e, por maioria, vencidos apenas os Ministros
Carlos Velloso e Ellen Gracie, passando a admitir a realização de susten-
tação oral pelos advogados de amici curiae regularmente habilitados nos
autos do processo de ação direta.70 (grifos do autor)

Além de Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá e Gustavo Binenbojm, defendem o


poder processual de sustentação oral para o “amigo da corte” Cassio Scarpinella
Bueno,71 Gustavo Santa Nogueira72 e Fredie Didier Junior.73
A prerrogativa recursal também é destaque na doutrina, inclusive quanto às
decisões passíveis de recurso pelo amicus curiae. Fredie Didier Junior, por exemplo,
é contra a legitimidade recursal.74 Já Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá prefere delimi-
tar, entendendo que deve ser reconhecida a legitimidade recursal do “amigo da corte”
“[...] especificamente para fins de impugnar a decisão que indefere sua intervenção
e as decisões sobre a forma, conteúdo e extensão de seu agir”.75 Assevera, porém,
também ser possível que o “amigo da cúria” recorra da decisão que o condenar nas
penalidades do artigo 18 do Código de Processo Civil.76 77
Doutra banda, Cassio Scarpinella Bueno perfilha a legitimidade para a decisão
que indefere a intervenção78 e enfatiza “[...] ser lícito ao amicus curiae apresentar
recurso da decisão final, que julga a ação direta de inconstitucionalidade ou de qual-
quer outra que possa interferir concretamente nos interesses que motivam o seu
ingresso em juízo [...]”.79
Enfim, constata-se a necessidade de que haja uma norma legal específica para
regular aspectos diversos da intervenção do amicus curiae nos feitos.

70
BINENBOJM. A dimensão do amicus curiae no processo constitucional brasileiro: requisitos, poderes processuais
e aplicabilidade no âmbito estadual. Revista Eletrônica de Direito do Estado – REDE.
71
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 170.
72
NOGUEIRA. Do amicus curiae. Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, p. 18.
73
DIDIER JÚNIOR. Possibilidade de sustentação oral do amicus curiae. Revista Dialética de Direito Processual –
RDDP, p. 38.
74
DIDIER JÚNIOR. Possibilidade de sustentação oral do amicus curiae. Revista Dialética de Direito Processual –
RDDP, p. 38.
75
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 162.
76
“Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não
excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu,
mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou” (BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro
de 1973).
77
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 162.
78
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 171.
79
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 172.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

3 O amicus curiae no direito processual civil brasileiro


Face ao caráter recente da figura do “amigo da corte” em nosso país, tem-se
conveniente a averiguação da disciplina legal existente no Brasil. Assim, será possível
constatar as hipóteses de participação do amicus curiae, inclusive e eventualmente,
nos casos não previstos na lei.

3.1  A disciplina legal existente no Brasil


Na legislação pátria não há referência da expressão “amicus curiae”, salvo
na Resolução nº 390/2004, do Conselho da Justiça Federal,80 que dispõe sobre
o Regimento Interno da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos
Juizados Especiais Federais. No capítulo referente ao julgamento do incidente de
uniformização, mais precisamente no §1º de seu artigo 23, consta a expressão:

Art. 23. As partes poderão apresentar memoriais e fazer sustentação oral


por dez minutos, prorrogáveis por até mais dez, a critério do presidente.
§1º O mesmo se permite a eventuais interessados, a entidades de classe,
associações, organizações não-governamentais, etc., na função de “amicus
curiae”, cabendo ao presidente decidir sobre o tempo de sustentação oral.81

Não obstante, outros diplomas legais possuem comandos que podem referir-se
ao “amigo da cúria”, porém, com outra terminologia ou, ainda, caracterizando-o no
sentido de permitir a sua participação no feito. É o caso da Lei nº 9.868/1999, que
dispõe sobre o processo e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) e
da ação declaratória de constitucionalidade (ADC) perante o Supremo Tribunal Federal.
O §2º do artigo 7º menciona “outros órgãos ou entidades” que funcionam como “ami-
gos da corte” ao se manifestarem na ADI:

Art. 7º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação


direta de inconstitucionalidade.
§1º VETADO
§2º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade
dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o
prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou
entidades.82

Informa Mirella de Carvalho Aguiar que, para parte da doutrina, as faculdades


previstas no §1º do artigo 9º também representam forma de manifestação do amicus,

80
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 126.
81
BRASIL. Resolução nº 390, de 17 de setembro de 2004.
82
BRASIL. Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999.

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Francieli Pisetta

na modalidade de participação provocada pelo magistrado, distinguindo-se daquela


do §2º do artigo 7º que seria de intervenção voluntária:83

Art. 9º Vencidos os prazos do artigo anterior, o relator lançará o relatório,


com cópia a todos os Ministros, e pedirá dia para julgamento.
§1º Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circuns-
tância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos
autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito
ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar
data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com
experiência e autoridade na matéria.
§2º O relator poderá, ainda, solicitar informações aos Tribunais Superio-
res, aos Tribunais federais e aos Tribunais estaduais acerca da aplicação
da norma impugnada no âmbito de sua jurisdição.
§3º As informações, perícias e audiências a que se referem os pará-
grafos anteriores serão realizadas no prazo de trinta dias, contado da
solicitação do relator.84

Ainda quanto ao tema “inconstitucionalidade”, registra-se que o Código de


Processo Civil, no capítulo destinado à declaração de inconstitucionalidade nos tribu-
nais, prevê participação que pode ser considerada como de “amigo da cúria”:

Art. 482. Remetida a cópia do acórdão a todos os juízes, o presidente do


tribunal designará a sessão de julgamento.
§1º O Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público respon-
sáveis pela edição do ato questionado, se assim o requererem, poderão
manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade, observados os pra-
zos e condições fixados no Regimento Interno do Tribunal.
§2º Os titulares do direito de propositura referidos no art. 103 da Consti-
tuição poderão manifestar-se, por escrito, sobre a questão constitucional
objeto de apreciação pelo órgão especial ou pelo Pleno do Tribunal, no
prazo fixado em Regimento, sendo-lhes assegurado o direito de apresen-
tar memoriais ou de pedir a juntada de documentos.
§3º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade
dos postulantes, poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifesta-
ção de outros órgãos ou entidades.85

Outrossim, na Lei nº 9.882/1999, que dispõe sobre o processo e julgamento


da arguição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do §1º do arti-
go 102 da Constituição Federal, destaca-se seu artigo 6º:

83
AGUIAR. Amicus curiae, p. 29.
84
BRASIL. Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999.
85
BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

Art. 6º Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações


às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo
de dez dias.
§1º Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos pro-
cessos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais,
designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a
questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de
pessoas com experiência e autoridade na matéria.
§2º Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e jun-
tada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo.86

Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá diferencia as situações previstas no §1º e


no §2º: no primeiro caso, entende que se admite a manifestação por requisição do
relator; no segundo, defende que a intervenção é voluntária.87 Esmiuçando, o doutri-
nador salienta, em relação ao §1º, que o relator pode requisitar a manifestação de
outras pessoas para fornecer elementos técnicos, fáticos ou jurídicos para a melhor
construção da decisão e que esses terceiros agem de forma semelhante ao amicus
curiae, já que desempenham papel de verdadeiros “amigos da corte” ao beneficiar
diretamente o tribunal.88 No tocante ao §2º, sublinha que se admite a participação
de quaisquer “interessados no processo” — e não apenas de “órgãos ou entidades”
como ocorre na Lei nº 9.868/99 —, mediante apresentação voluntária de memoriais
ou sustentação oral, cumprindo a função de legítimos amici curiae.89
A Lei nº 10.259/2001, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais
Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, também possui dispositivo que merece
ser invocado, que trata da disciplina do procedimento do pedido de uniformização de
interpretação de lei federal:

Art. 14. Caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal


quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito ma-
terial proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei. [...]
§7º Se necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Tur-
ma Recursal ou Coordenador da Turma de Uniformização e ouvirá o Mi-
nistério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados, ainda
que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de
trinta dias. [...]90

86
BRASIL. Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999.
87
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 91-92.
88
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 91.
89
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 92-94.
90
BRASIL. Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001.

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Francieli Pisetta

Trata-se de previsão expressa de intervenção do “amigo da corte” ainda que,


segundo Cassio Scarpinella Bueno, sem rótulo. E acrescenta o autor que não se con-
sidera somente a manifestação do Presidente da Turma Recursal ou do Coordenador
da Turma de Uniformização e do Ministério Público a respeito da controvérsia que
origina o incidente, mas também a participação de quaisquer interessados, mesmo
que não sejam partes no feito, para o mesmo fim.91
Na Lei nº 6.385/1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e
cria a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), grifa-se seu artigo 31, incluído pela Lei
nº 6.616/1978, que evidencia a intervenção da CVM como “amiga da corte”:

Art. 31. Nos processos judiciários que tenham por objetivo matéria incluí-
da na competência da Comissão de Valores Mobiliários, será esta sempre
intimada para, querendo, oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, no
prazo de quinze dias a contar da intimação.
§1º A intimação far-se-á, logo após a contestação, por mandado ou por
carta com aviso de recebimento, conforme a Comissão tenha, ou não,
sede ou representação na comarca em que tenha sido proposta a ação.
§2º Se a Comissão oferecer parecer ou prestar esclarecimentos, será
intimada de todos os atos processuais subseqüentes, pelo jornal oficial
que publica expedientes forense ou por carta com aviso de recebimento,
nos termos do parágrafo anterior.
§3º A comissão é atribuída legitimidade para interpor recursos, quando
as partes não o fizeram.
§4º O prazo para os efeitos do parágrafo anterior começará a correr,
independentemente de nova intimação, no dia imediato aquele em que
findar o das partes.92

Já na Lei nº 8.884/1994, que transformou o Conselho Administrativo de Defesa


Econômica (CADE) em autarquia, dentre outras providências, vale enfocar o disposto
em seu artigo 89: “Nos processos judiciais em que se discuta a aplicação desta
lei, o Cade deverá ser intimado para, querendo, intervir no feito na qualidade de
assistente”.93 Apesar de a norma empregar a terminologia “assistente”, o caso é
de amicus curiae porque se busca a sua colaboração técnica para o caso em discus-
são. É o que perfilha Cassio Scarpinella Bueno:

Não se trata, a toda evidência, de ingresso do CADE na qualidade de as-


sistente de nenhuma das partes, porque não está ele, CADE, defendendo
direito próprio em juízo ou, de qualquer forma, direito seu que dependa da
relação jurídica posta em juízo.

91
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 204.
92
BRASIL. Lei nº 6.385, de 07 de dezembro de 1976.
93
BRASIL. Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

Trata-se, assim, inegavelmente, de mais uma hipótese em que a intervenção


do ente estatal justifica-se em função de sua atividade fiscalizatória, no
sentido de verificar, ainda que em juízo e diante de um litígio concreto, de
que forma os bens jurídicos que cabem a ele, CADE, tutelar estão sendo
interpretados e aplicados. [...] O caso é, inegavelmente, de amicus curiae.94

Oportunamente, evoca-se o artigo 49 da Lei nº 8.906/1994, que dispõe sobre


o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB):

Art. 49. Os Presidentes dos Conselhos e das Subseções da OAB têm


legitimidade para agir, judicial e extrajudicialmente, contra qualquer pes-
soa que infringir as disposições ou os fins desta lei.
Parágrafo único. As autoridades mencionadas no caput deste artigo têm,
ainda, legitimidade para intervir, inclusive como assistentes, nos inqué-
ritos e processos em que sejam indiciados, acusados ou ofendidos os
inscritos na OAB.95

Cuida-se de mais um caso de “amigo da cúria”, na medida em que se conside-


rada o caráter institucional do interesse em discussão no feito. Cassio Scarpinella
Bueno, que outrora defendia ser hipótese de assistência simples, abandona tal figura
em prol do amicus curiae, sob o argumento de que não se encontra um “interesse
jurídico subjetivado” na relação jurídica que justificaria a intervenção da OAB.96
Por sua vez, a Lei nº 9.279/1996, que regula direitos e obrigações relativos
à propriedade industrial, abre espaço para a intervenção do Instituto Nacional da
Propriedade Industrial (INPI), colaborando como amicus curiae, nas ações de nulidade
de patente (artigo 57), de nulidade de registro de desenho industrial (artigo 118) e de
nulidade de registro (artigo 175):

Art. 57. A ação de nulidade de patente será ajuizada no foro da Justiça


Federal e o INPI, quando não for autor, intervirá no feito.
§1º O prazo para resposta do réu titular da patente será de 60 (sessenta)
dias.
§2º Transitada em julgado a decisão da ação de nulidade, o INPI publicará
anotação, para ciência de terceiros.97

“Art. 118. Aplicam-se à ação de nulidade de registro de desenho industrial, no


que couber, as disposições dos arts. 56 e 57.”98

94
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 326.
95
BRASIL. Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994.
96
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 398-399.
97
BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996.
98
BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996.

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Francieli Pisetta

Art. 175. A ação de nulidade do registro será ajuizada no foro da justiça


federal e o INPI, quando não for autor, intervirá no feito.
§1º O prazo para resposta do réu titular do registro será de 60 (sessenta)
dias.
§2º Transitada em julgado a decisão da ação de nulidade, o INPI publicará
anotação, para ciência de terceiros.99

Na Lei nº 9.469/1997, que dispõe sobre a intervenção da União nas causas


em que figurarem, como autores ou réus, entes da Administração indireta e dá outras
providências, também se encontra comando que pode ser vislumbrado como autori-
zação da intervenção de amicus curiae:

Art. 5º A União poderá intervir nas causas em que figurarem, como au-
toras ou rés, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia
mista e empresas públicas federais.
Parágrafo único. As pessoas jurídicas de direito público poderão, nas
causas cuja decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza
econômica, intervir, independentemente da demonstração de interesse
jurídico, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar
documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria e, se for
o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de deslocamento de compe-
tência, serão consideradas partes.100

A grande inovação, no entanto, pode estar por vir no próximo Código de Processo
Civil, em cujo anteprojeto consta menção expressa ao amicus curiae.
O Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil apresenta o amicus curiae
em uma seção especialmente a ele destinada (“Seção I – Do amicus curiae”), por
sua vez inserida no “Capítulo IV – Da Intervenção de Terceiros”, dentro do “Título I –
Do Procedimento Comum” constante do “Livro III – Do Processo de Conhecimento”.
Todavia, a disciplina ainda é insuficiente, pois se limitou a um único dispositivo de lei:

Art. 320. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a


espe­cificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da
lide, poderá, por despacho irrecorrível, de ofício ou a requerimento das
partes, solicitar ou admitir a manifestação de pessoa natural, órgão ou
entidade especializada, no prazo de dez dias da sua intimação.
Parágrafo único. A intervenção de que trata o caput não importa alteração
de competência, nem autoriza a interposição de recursos.101

99
BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996.
100
BRASIL. Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997.
101
BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

Face todos os dispositivos legais colacionados, vislumbra-se que a legislação


brasileira faz diversas referências ao amicus curiae, embora não utilize propriamente
tal expressão. De qualquer forma, constata-se que ainda há muito que se discipli-
nar sobre a figura estudada e o procedimento de sua atuação, sendo que sequer o
Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil Brasileiro não atende tais expectativas.

3.2  Hipóteses de participação


Acerca das efetivas hipóteses de participação do amicus curiae, repisa-se o
pensamento de Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá, o qual distingue a sua atuação:

[...] quanto à atuação voluntária, não há vinculação do terceiro com qual-


quer tese ou parte da ação. Sua manifestação é livre e desvinculada das
partes. Assim, agirá ele em defesa de um interesse eleito pelo legislador
como relevante, uma vez que as decisões tomadas nessas ações são de
interesse da coletividade.
Ademais, com relação às hipóteses em que o terceiro age por requisição
do juiz, também estaremos diante de hipóteses de manifestação do amicus
curiae, porquanto a figura prevista legalmente não se identifica com nenhu-
ma outra, constituindo, pois, nova espécie de auxiliar do juízo.102

Pelo Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, a atuação do amicus curiae


não se dá de fora voluntária, mas sim, de ofício, por ordem do juiz ou do relator, ou
a requerimento das partes.
De qualquer forma, retomando-se o aspecto indicado por Carlos Gustavo
Rodrigues Del Prá, independentemente de a manifestação ser voluntária ou requisi-
tada judicialmente, em ambas as hipóteses de participação exsurge a importância
prática da figura: colaborar com o(s) julgador(es), emprestando-lhe(s) seus conhe-
cimentos sobre a matéria objeto da demanda, já que os efeitos da decisão judicial
transcendem os interesses individuais das partes envolvidas diretamente no feito.
Nessa esteira, a relevância pode ser observada na área social pelos seguintes
motivos: a) o tema envolve os conflitos existentes na sociedade e sua respectiva
resolução; b) a questão discutida no feito pode não se limitar ao triângulo “autor-juiz-­
réu”, eis que um número muito maior de pessoas poderá sofrer os consectários dos
efeitos decorrentes da resolução daquele litígio específico.
Ademais, evidente a relevância jurídica do “amigo da corte”, uma vez que o
Direito deve acompanhar do modo mais pleno possível as transformações sociais
e, consequentemente, processuais, viabilizando a democratização dos debates nas

102
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 120-121.

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demandas. Seguindo este raciocínio, grifa-se que a ampliação do debate com a apre-
sentação de ideias e pensamentos proporciona a representatividade da sociedade,
contribuindo para uma ordem jurídica mais justa e democrática. O enfoque democrático,
por sua vez, também mostra a importância social do amicus curiae.
Segundo o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, a intervenção do amicus
curiae se dá “considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto
da demanda ou a repercussão social da lide”.103 Não há maiores especificações,
ao contrário do que se verifica na questão repercussão geral exigida nos Recursos
Extraordinários.
Mirella de Carvalho Aguiar desenvolveu um quadro sinóptico das hipóteses de
inter­venção do amicus curiae — o qual também é citado por Luciano Marinho de Barros
e Souza e Filho104 — que convém ser trazido à baila, já que consolida os aspectos
vistos no item anterior deste capítulo:105

Dispositivo Comprovação
Interventor Requisitos Observações
legal de interesse

Matéria que Doutrina e STF indicam


Lei nº 6.385/76,
CVM componha as Dispensada tratar-se de amicus
art. 31
atribuições da CVM. curiae.

A lei e o STJ aduzem


Matéria que
Lei nº 8.884/94, tratar-se de assistência.
Cade seja direito da Dispensada
art. 89 A doutrina sustenta
concorrência.
configurar amicus curiae.
Conforme o STJ, é
Lei nº 9.469/97,
Pessoa jurídica de Interesse assistência. A doutrina
art. 5º, parágrafo –
direito público econômico vacila entre amicus
único
curiae e assistência.
Para a doutrina e
jurisprudência, trata-se
Lei nº 9.868/99, Ente com Relevância da
Dispensada de amicus curiae, cuja
art. 7º, §2º representatividade matéria.
natureza jurídica não é
consensual.
CPC, art. 482, Ente com Relevância da Para a doutrina, configura
Dispensada
§§2º e 3º representatividade matéria. o amicus curiae.
Lei nº Pedido de A doutrina aponta ser
10.259/01, Qualquer pessoa uniformização no Dispensada participação de amicus
art. 14, §7º JEF. curiae.105

103
BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil.
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicio-
nal, p. 120-121.
104
SOUZA FILHO. Amicus curiae: instituto controvertido e disseminado no ordenamento jurídico brasileiro. Justilex,
p. 35.
105
AGUIAR. Amicus curiae, p. 35.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

Toma-se a liberdade de acrescentar ao quadro, utilizando-se os mesmos critérios


de esquematização de Mirella de Carvalho Aguiar, os outros casos mencionados neste
trabalho que se entendeu tratar-se de amicus curiae: 106107108109110

Dispositivo Comprovação de
Interventor Requisitos Observações
legal interesse
Res. A resolução fala
Qualquer
nº 390/01 – Dispensada expressamente em
interessado
art. 23, §1º amicus curiae.
A doutrina de Carlos
Lei
Qualquer Gustavo Rodrigues
nº 9.882/99, – Dispensada
pessoa Del Prá defende ser
art. 6º
amicus curiae.106
Cassio Scarpinella
Lei Matéria institucional Bueno,107 além de Carlos
nº 8.906/94, OAB e/ou relativa ao seu Dispensada Gustavo Rodrigues
art. 49 múnus. Del Prá,108 sustenta ser
“amigo da corte”.
Carlos Gustavo Rodrigues
Lei Ações de nulidade de
Del Prá109 e Cassio
nº 9.279/96, patente, de registro
INPI. Dispensada Scarpinella Bueno110
arts. 57, 118 de desenho industrial e
perfilham ser caso de
e 175 de registro.
“amigo da cúria”.

Obviamente, as hipóteses são limitadas e as disposições destacadas são in-


suficientes para disciplinar a figura do “amigo da cúria”, uma vez que se entende
necessário permitir a sua participação em todas as ações que fazem jus à sua colabo-
ração — ainda que não haja previsão legal —, considerando a finalidade do instituto.
Para amparar a ampla discussão de uma matéria num determinado feito, atra-
vés do amicus curiae, acentuam-se os princípios do Estado Democrático de Direito,
da livre manifestação do pensamento e da atividade intelectual mutatis mutandis,
bem como do contraditório e da ampla defesa.
Compartilha-se do raciocínio de Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá ao concluir
que “[...] a inadmissão do amicus curiae em determinada causa, quando não justifi-
cável, não só atenta contra a própria administração da justiça, mas também contra a
própria fórmula política do Estado Democrático de Direito, consagrada pelas normas

106
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicio-
nal, p. 91-94.
107
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 398-399.
108
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicio-
nal, p. 108-109.
109
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicio-
nal, p. 66.
110
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 304.

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federais que admitem sua participação”.111 Logo, entende-se admissível a colaboração


do “amigo da cúria” também nos casos não previstos em lei.
Com efeito, o “amigo da corte” traz uma série de vantagens que revelam a sua
relevância social e jurídica, o que reforça o posicionamento de que deve ser ampla-
mente admitido. Como vantagens, pode-se mencionar: a) participação da sociedade;
b) democratização dos debates; c) ampliação da discussão; d) formação de um juízo
de valor mais consistente do magistrado; e) decisão mais segura e completa etc.
Em relação ao Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, louva-se o disposto
no parágrafo único do artigo 320, uma vez que a intervenção não altera a competên-
cia e não autoriza a interposição de recursos. Tais medidas evitam a procrastinação
do feito.
Por outro lado, considerando-se os argumentos expostos neste trabalho, algu-
mas desvantagens podem ser enumeradas: a) maior duração do trâmite do feito,
violando o princípio da razoável duração do processo — o que ocorreria, por exemplo,
com um número excessivo de colaboradores, ensejando várias manifestações; b) falta
de critérios na intervenção — quem pode intervir, quantos podem participar, prazo
para manifestação, de que forma se dá a manifestação etc.; c) participação inadequa-
da — manifestações a qualquer tempo, desvio do debate central, falta de interesse do
colaborador, parcialidade na manifestação etc.
O próprio Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil não prevê a resolu-
ção dessas problemáticas, criando ainda outras, tais como: a) podem intervir como
amicus curiae pessoa natural, órgão ou entidade especializada — qual o grau de
conhecimento que uma pessoa natural deve ter sobre o assunto, que tipo de órgão ou
entidade pode participar, se há tempo mínimo de constituição do órgão ou entidade,
se pode ou deve ser de nível municipal, estadual ou federal, se podem intervir mais
de uma pessoa natural ou mais de um órgão ou entidade ou, ainda, se podem intervir
todos ao mesmo tempo; b) manifestação em 10 (dez) dias, contados da intimação
— se a manifestação é oral ou escrita, se o prazo é comum ou sucessivo na hipó-
tese de mais de um amicus curiae, o momento do deferimento da participação e da
manifestação (se cabível antes do julgamento antecipado da lide, se antes ou depois
da instrução, se cabível após alegações finais).
De qualquer modo, entende-se que os problemas elencados — aparecendo no
caso concreto — certamente podem ser mitigados através de princípios pelo julgador,
dentre os quais o da razoabilidade e o da proporcionalidade. Doutra banda, pensa-se
que haveria menos polêmica e decisões mais uniformes se os problemas fossem so-
lucionados através de diretrizes a serem estabelecidas por um regramento específico
e completo para o “amigo da cúria”.

111
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 159.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

Conclusão
Neste trabalho, verificou-se que a tradução literal do termo latino amicus curiae,
qual seja, “amigo da corte”, não o define plenamente. Assim, e não se olvidando que
o instituto ainda está em construção no direito brasileiro, foi possível conceituar o
amicus curiae como um terceiro, pessoa física ou jurídica, que intervém no processo
para prestar informações e/ou esclarecimentos sobre matéria determinada que seja
objeto de discussão no feito, cuja relevância ultrapassa o interesse das partes liti-
gantes, ampliando o debate e a análise da questão e, assim, contribuindo para que a
decisão do(s) julgador(es) seja mais fundamentada, firme e segura.
Neste passo, constatou-se que o “amigo da corte” é uma figura especial que
não se confunde com partes, juiz, auxiliares da justiça, perito, intérprete, testemu-
nhas, custos legis e curador especial. O amicus curiae pode guardar alguns traços de
semelhança — uns maiores, outros menores — com tais figuras, porém, repisa-se,
é diverso.
No tocante à natureza jurídica, a doutrina pátria é divergente. Neste diapasão,
observaram-se os seguintes posicionamentos: a) terceiro interventor (espécie de
intervenção de terceiros, anômala ou não), sendo esta a corrente majoritária que
possui como defensores Milton Luiz Pereira,112 Cassio Scarpinella Bueno,113 Athos
Gusmão Carneiro,114 Rodrigo Murad do Prado,115 Antônio do Passo Cabral,116 Gustavo
Binenbojm,117 Luiz Fernando Martins da Silva,118 Adhemar Ferreira Maciel,119 Lenio
Luís Streck120 e Gustavo Santana Nogueira;121 b) assistente qualificado (forma qua-
lificada de assistência), destacando-se Edgard Silveira Bueno Filho122 como ícone;
c) auxiliar do juízo, sendo expoentes Fredie Didier Júnior,123 Leonardo José Carneiro
da Cunha124 e Mirella de Carvalho Aguiar.125 Além disso, assinalou-se a existência de
doutrinadores que perfilham que o amicus curiae possui natureza dúplice: a) terceiro
interventor e auxiliar do juízo, apontando-se como defensor Carlos Gustavo Rodrigues

112
PEREIRA. ‘Amicus curiae’: intervenção de terceiros. Revista de Informação Legislativa.
113
BUENO. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, p. 424.
114
CARNEIRO. Intervenção de terceiros, p. 78.
115
PRADO. O amicus curiae no direito processual brasileiro. Jus Navigandi.
116
AGUIAR. Amicus curiae, p. 52.
117
BINENBOJM. A dimensão do amicus curiae no processo constitucional brasileiro: requisitos, poderes proces-
suais e aplicabilidade no âmbito estadual. Revista Eletrônica de Direito do Estado – REDE.
118
SILVA. Anotações sobre o “amicus curiae” e a democratização da jurisdição constitucional. Jus Navigandi.
119
MACIEL. “Amicus curiae”: um instituto democrático. Revista da Ajuris, p. 7.
120
PRADO. O amicus curiae no direito processual brasileiro. Jus Navigandi.
121
NOGUEIRA. Do amicus curiae. Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, p. 20, 27.
122
BUENO FILHO. Amicus curiae: a democratização do debate nos processos de controle da constitucionalidade.
123
DIDIER JÚNIOR. Possibilidade de sustentação oral do amicus curiae. Revista Dialética de Direito Processual –
RDDP, p. 34, 36-37.
124
AGUIAR. Amicus curiae, p. 59.
125
AGUIAR. Amicus curiae, p. 62.

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Del Prá126 e Luciano Marinho de Barros e Souza Filho;127 b) terceiro interventor e


assistente qualificado, sendo representante Guilherme Giacomelli Chanan.128
Como se viu, o instituto do “amigo da corte” tem origem romana, tendo sido
desenvolvido na Inglaterra pela English Common Law e aplicado, hodiernamente, com
grande ênfase nos Estados Unidos. No Brasil, averiguou-se que as primeiras discus-
sões sobre a figura surgiram no julgamento do Agravo Regimental na ADI nº 748,
junto ao Supremo Tribunal Federal.
Acerca da legitimidade, notou-se que, dependendo do caso, pode ser amicus
curiae uma pessoa física, um grupo de pessoas, uma pessoa jurídica ou até um ente
despersonalizado e/ou com representatividade adequada e cuja matéria seja rele-
vante. Também se pontuou que, diante do silêncio da lei, é admissível a pluralidade
de colaboradores. Quanto ao momento processual da intervenção, concluiu-se que é
possível a intervenção a qualquer tempo, antes do julgamento. No tocante ao prazo
de manifestação, ponderou-se pela analogia ao artigo 6º da Lei nº 9.868/99 que
concede trinta dias aos réus da ADI para prestarem informações, contados a partir
da admissão expressa da intervenção do amicus. No que concerne aos poderes e
limitações do “amigo da cúria”, sublinhou-se que variam no caso da intervenção
se dar voluntariamente ou por requisição judicial. Sublinhou-se, neste aspecto, que
além da manifestação escrita, é cabível a sustentação oral. Além disso, verificou-se
divergência doutrinária quanto à legitimidade recursal. E, diante de tais aduções,
vislumbrou-se a necessidade de uma norma legal específica para regular aspectos
diversos da intervenção do “amigo da corte” nos feitos.
Anotou-se que, no direito brasileiro, contudo, não há referência da expressão
“amicus curiae” na legislação, salvo a Resolução nº 390/2004 (artigo 23, §1º), do
Conselho da Justiça Federal. Apesar disso, constatou-se que existem vários dispo-
sitivos de leis diversas que podem se referir ao amicus curiae, porém, com outra
terminologia ou, ainda, apenas caracterizando-o no sentido de permitir a participação
no feito: §2º do artigo 7º e §1º do artigo 9º, ambos da Lei nº 9.868/1999 (dispõe
sobre o processo e julgamento da ADI e da ADC perante o Supremo Tribunal Federal);
artigo 6º da Lei nº 9.882/1999 (dispõe sobre o processo e julgamento da arguição
de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do §1º do artigo 102 da
Constituição Federal); §7º do artigo 14 da Lei nº 10.259/2001 (dispõe sobre a
instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal);
artigo 31 da Lei nº 6.385/1976 (dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e
cria a CVM); artigo 89 da Lei nº 8.884/1994 (transforma o CADE em autarquia, entre

126
DEL PRÁ. Amicus curiae: instrumento de participação democrática e aperfeiçoamento da prestação jurisdicional,
p. 123-128.
127
SOUZA FILHO. Amicus curiae: instituto controvertido e disseminado no ordenamento jurídico brasileiro. Justilex,
p. 37.
128
CHANAN. Amicus Curiae no direito brasileiro e a possibilidade de seu cabimento nas Cortes estaduais.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

outras providências); artigo 49 da Lei nº 8.906/1994 (dispõe sobre o Estatuto da


Advocacia e a OAB); artigos 57, 118 e 175, todos da Lei nº 9.279/1996 (regula di-
reitos e obrigações relativos à propriedade industrial, abre espaço para a intervenção
do INPI); artigo 5º da Lei nº 9.469/1997 (dispõe sobre a intervenção da União nas
causas em que figurarem, como autores ou réus, entes da Administração indireta e
dá outras providências). Entendeu-se que estas seriam as hipóteses de intervenção
do “amigo da corte” no direito pátrio. Face à limitação das hipóteses, concluiu-se
ainda que as disposições indicadas são insuficientes para disciplinar a figura em
apreço, reputando-­se necessária a permissão da sua participação em todas as ações
que fazem jus à sua colaboração, face à finalidade do instituto.
Ainda quanto à disciplina do ordenamento jurídico pátrio, salientou-se o trata-
mento limitado dado à figura no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, o qual
deixou várias questões importantes em aberto e que, por conseguinte, caso concreti-
zado na forma em que se encontra, gerará vários debates.
Evidenciou-se a relevância jurídica do amicus curiae, visto que a ampliação da
discussão sobre a matéria objeto da demanda, com a apresentação de ideias e pen-
samentos, contribui para uma ordem jurídica mais justa e democrática, revelando o
enfoque democrático, por sua vez, também a importância social da figura.
Destarte, demonstrando a relevância social e jurídica, constataram-se as seguin-
tes vantagens da ampla intervenção do “amigo da cúria”: a) participação da sociedade;
b) democratização dos debates; c) ampliação da discussão; d) formação de um juízo de
valor mais consistente do magistrado; e) decisão mais segura, dentre outras. Doutra
banda, elencaram-se as seguintes desvantagens, em síntese: a) maior duração do trâ-
mite do feito, violando o princípio da razoável duração do processo; b) falta de critérios
na intervenção; c) participação inadequada.
Enfim, observou-se que ainda há muito que se disciplinar sobre o amicus curiae
e o procedimento de sua atuação, e que, apesar de existirem princípios que podem
mitigar/solucionar eventuais problemas, o ideal é que isto ocorra através de diretrizes
a serem estabelecidas por um regramento específico, o que, por ora, não é atendido
no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil.

Pomerode – SC, 28 de agosto de 2012.

The Amicus Curiae in Brazilian Law Civil Procedure


Abstract: This word shows a study about the amicus curiae (from latim, “friend of the court”), whose objective
is to analyze the legal treatment given in Brazil to see the possible hypothesis of its participation, and verify
its juridical nature and the approach given by national doctrine about it. Then, this study points concepts
of “friend of the court” formulated by several exponents, besides trace parallels with other procedural
figures (parts, judge, clerk of justice, expert, interpreter, witnesses, custos legis and special curator) to
differentiation. As to the juridical nature of the figure, the doctrine unveils three principal understandings:
intervening third party, privy qualified and clerk of judgment. Are questioned aspects such as legitimacy,

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convenience, quantity of collaborators, moment of intervention, time and mode of manifestation, extension
of powers and limitations. The work also lists the legal dispositives of Brazilian legal system that indicates
hypothesis of participation of “friend of the court”, but, with another terminology or, further, just only
characterizing it in the direction of allowing the participation in the process. Accentuates the insufficiency
of the legal discipline of amicus curiae and the need for a specific systematization, understanding that
this measure can resolve eventual problems and allow the broad participation of the figure in various
proceedings. Also, during the work, infers the practical importance and the social and legal repercussions
of the broad intervention of “friend of the court”, observing the favorable and unfavorable aspects of this
form of collaboration.

Key words: Amicus curiae. Juridical nature. Hypothesis of participation. Lawful insufficiency.

Referências
AGUIAR, Mirella de Carvalho. Amicus curiae. Salvador: JusPodivm, 2005.
BINENBOJM, Gustavo. A dimensão do amicus curiae no processo constitucional brasileiro: requisitos,
poderes processuais e aplicabilidade no âmbito estadual. Revista Eletrônica de Direito do Estado –
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5869.htm>. Acesso em: 26 set. 2007.
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Econômica (Cade) em Autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem
econômica e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
L8884.htm>. Acesso em: 09 nov. 2007.
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Advogados do Brasil (OAB). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8906.htm>.
Acesso em: 10 nov. 2007.
BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade
industrial. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9279.htm>. Acesso em: 10
nov. 2007.
BRASIL. Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997. Regulamenta o disposto no inciso VI do art. 4º da Lei
Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993; dispõe sobre a intervenção da União nas causas
em que figurarem, como autores ou réus, entes da administração indireta; regula os pagamentos
devidos pela Fazenda Pública em virtude de sentença judiciária; revoga a Lei nº 8.197, de 27 de
junho de 1991, e a Lei nº 9.081, de 19 de julho de 1995, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9469.htm>. Acesso em: 10 nov. 2007.
BRASIL. Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da ação
direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo
Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9868.htm>. Acesso
em: 18 out. 2007.

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O amicus curiae no direito processual civil brasileiro

BRASIL. Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da arguição
de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do §1º do artigo 102 da Constituição Federal.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9882.htm>. Acesso em: 04 nov. 2007.
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PISETTA, Francieli. O amicus curiae no direito processual civil brasileiro. Revista


Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 149-180,
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Processo civil e processo do trabalho
– Possibilidades e limites da aplicação
subsidiária

Aroldo Plínio Gonçalves


Professor Titular de Direito Processual Civil aposentado da Faculdade de Direito da UFMG.
Juiz aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região – MG.

Palavras-chave: Direito Processual Civil. Direito Processual do Trabalho. Jurisdição comum. Jurisdição
especial. Impessoalidade jurisdicional.
Sumário: 1 Delimitação do tema – 2 A jurisdição comum, civil e penal, e as jurisdições especiais – 3 A
delimitação dos campos do Direito Processual Civil e do Direito Processual do Trabalho – 4 A disciplina
do Direito Processual do Trabalho na CLT – 5 A fonte subsidiária na teoria das fontes – 6 As fontes do
Direito Processual do Trabalho – 7 O Direito Processual Civil como fonte subsidiária do Direito Processual
do Trabalho – 8 O problema das lacunas – 9 A aplicação do Direito no Direito Processual Civil e no Direito
Processual do Trabalho – 10 O suprimento das lacunas no Direito Processual Civil e no Direito Processual
do Trabalho – 11 Conclusão – Referências

1  Delimitação do tema
O Direito Processual Civil e o Direito Processual do Trabalho são ramos autôno-
mos do Direito Público.
A comparação entre eles demonstra que há institutos jurídicos que são comuns
a ambos os ramos, há institutos jurídicos semelhantes, em ambos, há institutos jurí-
dicos em um dos ramos sem correspondência no outro, e há institutos jurídicos que
disciplinam de modo diferente questões processuais semelhantes.
Essas questões têm provocado diversas indagações quanto às possibilidades e
os limites da atuação do magistrado, na aplicação do Direito Processual do Trabalho
com recurso às normas e aos institutos do Direito Processual Civil.
Uma das indagações que tem se tornado recorrente, nos dias atuais, forma-se em
torno das inovações introduzidas por meio de amplas reformas do Direito Processual
Civil, que ensejaram maior agilidade no processo e na satisfação do crédito judicial-
mente reconhecido.
O Direito Processual do Trabalho não experimentou reformas semelhantes, ofe-
recendo, ainda, à aplicação do Direito material, antigos institutos contemporâneos do
advento da CLT.

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Aroldo Plínio Gonçalves

Essa realidade tem sido propícia às interrogações dessa ordem:


Pode o Juiz abandonar normas e institutos do Direito Processual do Trabalho
para aplicar à lide normas e institutos do Direito Processual Civil, mais condizente
com o princípio da celeridade e de outros que presidem o Processo do Trabalho?
Tem o Juiz o poder de escolha da norma processual, para, entre a do Direito
Processual Civil e a do Direito Processual do Trabalho, aplicar a que entende mais
próxima à realidade contemporânea e mais eficaz à concretização da Justiça?
A aplicação da norma processual de um ramo do Direito Processual a outro é
uma questão de preferência do julgador?
Por outro lado, interroga-se se as questões suscitadas escapam ao foro subje-
tivo das escolhas, por encerrar um problema de cumprimento de dever funcional do
Juiz, que não é um mero intérprete do Direito, mas o agente estatal no exercício da
função jurisdicional.
Este trabalho se propõe a oferecer uma contribuição às reflexões desenvolvidas
sobre esses temas e a buscar uma resposta fundamentada às questões expostas,
com o auxílio das conquistas já sedimentadas em estudos concernentes à jurisdição,
à teoria das fontes, às lacunas e aos métodos de integração.

2  A jurisdição comum, civil e penal, e as jurisdições especiais


O Direito Processual pode ser definido como o conjunto de princípios e normas
que regem o exercício da jurisdição e seu instrumento de manifestação: o processo.1
No estudo da jurisdição está, portanto, uma importante chave para a compreensão da
divisão dos ramos do Direito Processual e para a delimitação dos campos do Direito
Processual comum e dos Direitos Processuais especiais.
Em suas admiráveis lições, Liebman recorda a remota origem do termo empre-
gado para designar a atividade dos Órgãos do Poder Judiciário na atuação do Direito,
expressão que significa a aplicação do Direito ao caso concreto.
Essa atividade, conforme diz: “chama-se, desde tempos imemoriais, jurisdição
(iurisdictio)”.2
Em torno das definições de jurisdição teceram-se grandes debates, com as céle­
bres contribuições de Chiovenda, que colocava no centro do conceito a “atuação da
vontade da lei”, e de Carnelutti, que concebia a jurisdição como “a justa composição
das lides”, dando à palavra lide a conotação de litígio e entendendo que nela “está
sempre implícita uma injustiça”.3

1
GONÇALVES. Técnica processual e teoria do processo, p. 41-48.
2
LIEBMAN. Manual de direito processual civil, v. 1, p. 3.
3
CARNELUTTI. Como se faz um processo, p. 33-35.

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Processo civil e processo do trabalho – Possibilidades e limites da aplicação subsidiária

Quer se acrescente ou se exclua a necessidade da realização da justiça na


composição da lide, a jurisdição é atividade do Estado, cuja finalidade é a de solu-
cionar os conflitos pela aplicação do Direito ao caso concreto, o que se faz por meio
do processo.
Na doutrina jurídica, encontram-se, frequentemente, as expressões jurisdição
ordinária, jurisdição extraordinária, jurisdição comum, jurisdição especial, Justiça co­
mum, Justiça especial, Direito Processual comum, Direito Processual especial.
A jurisdição extraordinária, que se contrapõe à jurisdição ordinária, diferente-
mente das outras mencionadas, é exercida por órgão que não pertence ao Poder
Judiciário.
É extraordinária, por exemplo, a jurisdição que as disposições do art. 52, inci-
sos I e II, da Constituição da República, atribuem ao Senado Federal, para processar
e julgar as pessoas mencionadas naqueles preceitos.
A jurisdição ordinária, comum ou especial, é a jurisdição do Poder Judiciário.
A jurisdição ordinária é exercida em matéria civil e penal, pelos órgãos que com-
põem a Justiça comum, que, no Brasil, em razão do regime federativo, compreende a
Justiça Federal, a Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
A distinção entre matéria civil e matéria penal possibilita a aplicação, no âmbito
da Justiça comum, do Direito Processual Civil e do Direito Processo Penal.
Ao lado da jurisdição comum, ou ordinária, na organização do Poder Judiciário
brasileiro, foram instituídas as chamadas jurisdições especiais, exercidas pelas
Justiças especiais: a do Trabalho, a Eleitoral e a Militar.
As atividades jurisdicionais, em cada uma delas, se regem pelo Direito Processual
do Trabalho, pelo Direito Processual Eleitoral, pelo Direito Processual Militar.
É nesse quadro que se pode falar em Direito comum e em Direito Processual
comum, em Direito especial e em Direito Processual especial.
Como assinala Dinamarco:

Tanto no âmbito da jurisdição civil quanto da penal, costuma-se fazer a


distinção entre jurisdição comum e jurisdição especial. Essas subclassifi-
cações têm por critério aproximativo a natureza das normas jurídico-subs-
tanciais com base nas quais os conflitos serão julgados. Assim como o
direito penal militar é direito especial em relação ao direito penal comum,
também o direito do trabalho é direito especial em relação ao direito civil.4

Fazendo a correlação entre as Justiças especiais e o Direito Processual, Dinamarco


assevera:

Cada Justiça é um sistema fechado e finito, composto de elementos


indicados em números clausus pela Constituição Federal e que são os

4
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 330.

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Aroldo Plínio Gonçalves

órgãos judiciários predispostos ao exercício da jurisdição nas causas e


nos graus ali estabelecidos. [...]
Os processos conduzidos pelas justiças especiais são regidos por ramos
do direito processual especial — direito processual do trabalho, direito
processual penal militar, direito processual eleitoral.5

A jurisdição ordinária civil é ampla, e a ela pertencem todas as matérias não


expressamente excluídas pelo ordenamento jurídico, que são a matéria penal, sujeita
à jurisdição ordinária penal e as matérias sujeitas às jurisdições especiais.
O Direito Processual Civil é o Direito Processual comum em matéria não penal.
Em matéria penal, o Direito Processual comum é o Direito Processual Penal.
A jurisdição ordinária civil é a geral, assim considerada porque abrange todas as
matérias não expressamente excluídas pelas normas do sistema jurídico.
Nas palavras de Liebman:

Os seus limites podem ser indicados apenas negativamente, por exclu-


são da matéria penal de um lado e das matérias sujeitas às jurisdições
especiais, de outro.6

A matéria das causas alcançada pelo Direito Processual Civil dá-se por exclusão.
Uma lide civil não é sempre a que apresenta controvérsia referente ao âmbito
do Direito Civil e que deve ser resolvida com normas do Direito Civil.
As normas do Direito Processual Civil aplicam-se aos litígios sobre relações jurí-
dicas atinentes à matéria de Direito Civil e de Direito Empresarial, de Direito Agrário,
de Direito Administrativo, de Direito Tributário, de Direito Constitucional, e outros
ramos, abrangendo conteúdos de Direito Público e de Direito Privado.
Para se encontrar a lide que se coloca sob as normas do Direito Processual Civil,
procede-se por eliminação.
Excluem-se as que constituem objeto de jurisdições especiais: do trabalho, militar
e eleitoral.
Esse procedimento leva à lide de direito comum, que pode ser civil ou penal.
Se se puder excluir a matéria penal, surge a lide que tem natureza civil.
Discorrendo sobre as matérias compreendidas no âmbito da jurisdição civil,
reguladas por normas do Código de Processo Civil e pelas leis extravagantes de natu­
reza processual civil, Barbosa Moreira ressalta o seu caráter residual e a razão que
faz do Direito Processual Civil um Direito Processual comum.

5
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 383.
6
LIEBMAN. Manual de direito processual civil, v. 1, p.14.

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Processo civil e processo do trabalho – Possibilidades e limites da aplicação subsidiária

Conforme diz:

Fora do campo do processo civil ficam o processo penal, o processo


trabalhista e o processo eleitoral, regidos por leis próprias. O conceito de
processo civil é, por assim dizer, residual, e não exclui certa heterogenei-
dade das matérias a cujo respeito, no seu âmbito, se exerce a atividade
judicial. Convém assinalar que mesmo os ramos do direito processual
estranhos ao civil, como acima citados, admitem como fontes subsidiá-
rias as normas processuais civis, desde que compatíveis com a índole
especial de cada um daqueles tipos de processos. Pode-se afirmar, por-
tanto, que o direito processual civil assume no sistema brasileiro o papel
de direito processual comum.7

As afirmações do eminente Professor são esclarecedoras, mas deve-se ter em


mente que elas se referem à matéria não penal, porque também o Direito Processual
Penal assume o papel de Direito Processual comum em relação ao Direito Proces­­
sual Militar.
As breves considerações sobre a jurisdição mostram que, à medida que foram
se separando da jurisdição comum, as jurisdições especiais foram organizando a
sua Justiça e as normas processuais especiais que regem a sua atuação, que se
dá pelo processo.

3  A delimitação dos campos do Direito Processual Civil e do


Direito Processual do Trabalho
O Direito Processual Civil é o conjunto de princípios e normas que regem o exer-
cício da jurisdição e o processo, nas lides de natureza civil, ressalvadas as que estão
sujeitas às jurisdições especiais.
O art. 1º do Código de Processo Civil dispõe:

Art. 1º A jurisdição civil, contenciosa e voluntária, é exercida pelos juízes,


em todo o território nacional, conforme as disposições que este Código
estabelece.

A jurisdição civil, como visto, não é a que se destina exclusivamente à aplicação


do Direito Civil.
Ela se chama civil por oposição à penal e abrange as causas de direito empre-
sarial, administrativo, agrário, fiscal, e de outras matérias para as quais o sistema
jurídico não tenha instituído um processo diverso.

7
MOREIRA, José Carlos Barbosa. As bases do direito processual civil. In: MOREIRA. Temas de direito processual:
primeira série, p. 3, 4.

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Aroldo Plínio Gonçalves

A referência feita pelo citado artigo à jurisdição civil, como abrangente da con-
tenciosa e voluntária, é imprecisa e defeituosa.
O que o Código chama de jurisdição voluntária não constitui atividade jurisdicional
e não se expressa por meio do processo.8
Constitui atividade administrativa, que se exerce por meio de mero procedimento,
do qual está ausente a lide e o contraditório.
O Direito Processual Civil não se esgota no Código de Processo Civil, que siste-
matiza as suas normas, mas compreende, também, a legislação extravagante, como
a do Mandado de Segurança, da Ação Civil Pública, da Ação Popular, do Juizados
Especiais Cíveis, disciplinados na Lei nº 9.099, de 26.09.1995, entre outras.
Abrange toda legislação de índole processual que não se refira à matéria sujeita
à jurisdição penal e às jurisdições especiais, que, no sistema jurídico brasileiro são a
do trabalho, a eleitoral e a militar.
De igual modo, o Direito Processual do Trabalho contém princípios e normas
que regem o exercício da jurisdição especial do trabalho e o processo do trabalho.
Suas normas estão sistematizadas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
e se estendem, também, pela legislação extravagante, de índole processual e maté-
ria sujeita à jurisdição especial do trabalho, como, por exemplo, a Lei nº 5.584, de
26.06.1970.
O Direito Processual Civil e o Direito Processual do Trabalho submetem-se aos
princípios constitucionais da prestação da jurisdição, do contraditório, da ampla defesa,
do devido processo legal, da fundamentação das decisões.9 Ambos possuem alguns
princípios e normas de conteúdos praticamente idênticos, como, por exemplo, o prin-
cípio dispositivo, que exige a iniciativa da parte na busca da tutela jurisdicional (com
exceção da previsão do art. 856 da CLT, que trata do Dissídio Coletivo suscitado pelo
Presidente do Tribunal Regional do Trabalho em caso de greve), o princípio inquisi-
tório, que confere ao Juiz a liberdade de impulsionar o processo, da oralidade, da
celeridade processual, da instrumentalidade das formas, que impede a pronúncia da
nulidade quando o ato alcança a sua finalidade e não há prejuízo, da não reformatio
in peius, do convencimento racional do Juiz.
Possuem princípios e normas que, embora compareçam nos dois campos, são
mais abrangentes ou mais acentuados no Direito Processual do Trabalho, como, por
exemplo, o da oralidade, o do jus postulandi exercido pela própria parte, restrito no
Direito Processual Civil às causas submetidas ao Juizado Especial Civil (art. 9º, da Lei
nº 9.099/95), o da conciliação.

8
BARBI. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 1, p. 10-13; ALVIM. Manual de direito processual civil,
p. 1-15.
9
Quanto aos princípios do Direito Processual do Trabalho, ver: ALMEIDA. Manual de direito processual do tra­
balho, p. 36-86 e NASCIMENTO. Curso de direito processual do trabalho, p. 58-66.

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Processo civil e processo do trabalho – Possibilidades e limites da aplicação subsidiária

Possuem princípios próprios e específicos, como o da concentração, no Direito


Processual do Trabalho que preconiza a irrecorribilidade das decisões interlocutórias,
enquanto prevalece a recorribilidade, no Direito Processual Civil.
A menção que se faz aos princípios é apenas exemplificativa.
É necessário ressaltar que, no âmbito do Direito Processual Civil, há modelos
diferenciados de processos e nem todos os processos sujeitos à jurisdição ordinária
civil compartilham dos mesmos princípios.
Nos processos dos Juizados Especiais Cíveis, por exemplo, em que os princípios
da simplicidade, da oralidade, da economia processual, da informalidade e da celeridade
se tornaram critérios de julgamento, conforme previsto no art. 2º, da Lei nº 9.099/95, há
normas específicas para o cumprimento da sentença e para os recursos cabíveis, que
seguem a disciplina da lei especial e não a do Código de Processo Civil.

4  A disciplina do Direito Processual do Trabalho na CLT


A CLT ainda utiliza a denominação antiga pela qual se designava o ramo do
Direito que põe em movimento a jurisdição e cuida da disciplina do processo.
A antiga denominação Direito Judiciário Civil foi, há muito, substituída por Direito
Processual Civil, e, nessa trilha, no campo doutrinário, emprega-se a expressão
Direito Processual do Trabalho.
Com a terminologia original, de 1943, a CLT trata do “Direito Judiciário do
Trabalho” no Título X, que compreende 8 Capítulos, e cuja matéria é assim distribuída:

I - Disposições Preliminares
II - Processo em geral
III - Dissídios individuais
IV - Dissídios Coletivos
V - Execução
VI - Recursos
VII - Aplicação de penalidades
VIII - Disposições finais

Essa matéria está contida nas disposições dos artigos 763 a 910, da CLT.
A disciplina processual da CLT não é extensa. Ao contrário, é bem restrita,
limitando-se a cento e quarenta e sete artigos.
A que se encontra na legislação extravagante também é bem sucinta.
Naturalmente, não se pretende deter na análise de cada um dos artigos, o que
escaparia ao propósito inicialmente delineado.
Para o objetivo exposto, interessa mais imediatamente uma análise, ainda que
breve, do sentido e do alcance das normas do art. 763, que define a fonte principal

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Aroldo Plínio Gonçalves

do Processo do Trabalho, e o art. 769, que trata das lacunas do Processo do Trabalho
e da fonte supletiva, a ser aplicada no procedimento de integração.
O art. 763, da CLT, assim dispõe:

Art. 763. O processo da Justiça do Trabalho, no que concerne aos dissí-


dios individuais e coletivos e à aplicação de penalidades, reger-se-á em
todo o território nacional, pelas normas estabelecidas neste Título.

Nesse preceito, a CLT estabeleceu como fonte principal do Direito Processual


do Trabalho as normas específicas e especiais de seu Título X, quer se trate da regên-
cia dos dissídios individuais ou da disciplina dos dissídios coletivos.
O art. 769, da CLT, preceitua:

Art. 769. Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte
subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for
incompatível com as normas deste Título.

O dispositivo legal indica o meio pelo qual devem ser preenchidas as lacunas do
Direito Processual do Trabalho.
A CLT elegeu, no art. 763, suas normas processuais como fonte principal na
regência do Processo do Trabalho e, no art. 769, indicou o Direito Processual comum,
que, por exclusão da matéria penal é o Direito Processual Civil, como fonte subsidiá-
ria, naquilo que não seja incompatível com suas normas processuais, para a solução
dos casos omissos.
O sentido e o alcance das duas disposições do Direito Processual do Trabalho,
citadas, assim como a extensão de sua obrigatoriedade, bem como as balizas de
seus limites, surgem, claramente, quando se busca compreendê-los com o auxílio
das aquisições da teoria das fontes do Direito.

5  A fonte subsidiária na teoria das fontes


Em uma definição simplificada, pode-se dizer que fontes são modos e formas
de produção e de manifestação do Direito.
A doutrina jurídica usa a metáfora “fonte” para significar procedimentos e fenô-
menos distintos e reúne vários critérios para definir e classificar as fontes do Direito.
A palavra fonte é, geralmente, utilizada para designar as formas pelas quais o
direito positivo se manifesta ou o processo de criação do Direito, quer se trate das
normas gerais ou das normas individualizadas, inclusive as produzidas pelo processo
de aplicação das normas genéricas ao caso concreto.
Na Teoria do Direito, fala-se em fontes formais, como os fatos idôneos a levar
à criação da norma do Direito positivo; em fontes materiais ou reais, que são os

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Processo civil e processo do trabalho – Possibilidades e limites da aplicação subsidiária

elementos da realidade social que determinam o conteúdo das normas; e em fontes


históricas, que designam os antigos repositórios do Direito.
Do ponto de vista clássico, as fontes formais compreendem a legislação (ou,
simplesmente, a lei), o costume jurídico, a jurisprudência e a doutrina, embora haja
autor que sustente que a doutrina é, na verdade, fonte material do Direito.
Citam-se, ainda, entre as fontes do Direito, a analogia, embora ela seja somente
um procedimento que consiste na aplicação da lei feita para um caso a um caso
semelhante e não previsto, tratando-se, portanto, da aplicação da própria lei, os
princípios gerais do direito e a equidade.
Por aplicação de outros critérios, as classificações e as terminologias se mul-
tiplicam, como as que consideram as fontes em relação ao Estado e as classificam
em estatais (como a legislação), infraestatais (como os acordos coletivos de traba-
lho), supraestatais (como os costumes e os Tratados Internacionais) e extraestatais
(como, por exemplo, os estatutos e regulamentos de grupos e instituições sociais e
o Direito eclesiástico).
A Teoria do Direito trabalha, também, com uma hierarquia das fontes em geral
e das fontes legisladas, em que se ordenam, no ápice, a fonte primária e principal,
a fonte preponderante, e, após, em posição subordinada, as fontes secundárias,
também denominadas acessórias, subsidiárias, supletivas, cuja função é justamente
de suprir, de preencher, de colmatar as lacunas verificadas na fonte principal.10
A escala hierárquica das fontes varia, nos ordenamentos jurídicos, conforme se
trate de Direito pertencente ao sistema de Direito escrito, ou ao sistema da Common
Law.
O ordenamento jurídico brasileiro pertence ao sistema de direito escrito, no
qual prevalece o primado da lei, e a ele se aplica a hierarquia das fontes, na qual
se preserva o papel preponderante da lei, a escala das fontes legisladas e fontes
subsidiárias são invocadas para suprir lacunas na lei.

6  As fontes do Direito Processual do Trabalho


O Direito Processual do Trabalho tem como fonte principal as Leis, em cuja hie-
rarquia despontam, no grau mais alto, as leis constitucionais, situando-se nos graus
inferiores as leis infraconstitucionais — a Lei ordinária e os Decretos-Leis recepcio-
nados pela ordem constitucional, os Decretos, os Regimentos Internos dos Tribunais.
A essa relação, acrescenta-se a fonte subsidiária legislada: o Direito Processual
Civil, e as Súmulas da Jurisprudência Predominante, as Orientações Jurisprudenciais,
os Precedentes do Tribunal Superior do Trabalho.

10
PEREIRA. Instituições de direito civil, v. 1, p. 55-59.

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Aroldo Plínio Gonçalves

Quando integrados ao Direito positivo, são também fontes secundárias as


Convenções da Organização Internacional do Trabalho e os Tratados Internacionais.
Alguns autores ainda invocam os costumes, embora sejam raras e remotas as
possibilidades de que eles interfiram como fonte no Direito Processual.
Em sede doutrinária, não é raro encontrar-se, por referência ao art. 8º, da CLT,
a menção à analogia, à equidade e os princípios gerais do Direito, como fontes do
Direito Processual do Trabalho.
Não se deve, entretanto, confundir as fontes do Direito do Trabalho, que são
as mencionadas no art. 8º da CLT, com as fontes do Direito Processual do Trabalho.
Assim estabelece o art. 8º:

Art. 8º As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta


de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela
jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas
gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo
com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira
que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse
público.
Parágrafo único – O direito comum será fonte subsidiária do direito do
trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios funda-
mentais deste.

A leitura atenta do citado artigo mostra que ele não contém norma de natureza
processual.
Suas disposições se referem ao conteúdo das decisões, portanto, ao direito
material, ou substancial, aplicado.
Anote-se, também, que o art. 8º, da CLT, refere-se às atividades das Autoridades
administrativas e da Justiça do Trabalho, que têm atribuições e funções distintas, não
possuindo, as primeiras, competência jurisdicional.
Mesmo que as Autoridades administrativas, no exercício do poder de fiscalizar
a observância da legislação trabalhista, sejam competentes para aplicar multas, a
última palavra sobre a legalidade e a licitude do resultado dessa atribuição, em caso
de conflito, caberá sempre ao Poder Judiciário, no exercício da função jurisdicional.
A jurisprudência, a analogia, a equidade, os princípios gerais do Direito, princi-
palmente do Direito do Trabalho, os usos e costumes, o direito comparado, na dicção
do citado artigo, são fontes secundárias, que podem ser invocadas para cobrir as
lacunas da lei ou das normas contratuais, na esfera do direito material do trabalho.
Ressalve-se que as fontes do Direito do Trabalho vão além da enumeração da
CLT e a sua hierarquia é menos rígida do que a do Direito comum.11

11
DELGADO. Curso de direito do trabalho, p. 177.

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Processo civil e processo do trabalho – Possibilidades e limites da aplicação subsidiária

De todo modo, o parágrafo único do art. 8º, ao preconizar que o Direito comum
será fonte subsidiária do Direito do Trabalho, completando o caput do artigo, fortalece
ainda mais o convencimento de que os meios previstos naquele dispositivo, para
suprir a falta de disposições legais e contratuais, são fontes secundárias do Direito
material do Trabalho, e não do Direito Processual do Trabalho.

7  O Direito Processual Civil como fonte subsidiária do Direito


Processual do Trabalho
No art. 769, da CLT, o Direito Processual comum é expressamente nomeado
como fonte subsidiária do Direito Processual do Trabalho.
Como visto acima, a expressão Direito Processual comum, deslocada de seu
contexto, poderia significar o Direito Processual Civil ou o Direito Processual Penal.
No contexto do art. 769, da CLT, a expressão é usada na acepção de Direito
Processual Civil, de vez que trata de aplicação, pelo órgão jurisdicional, de direito mate-
rial que não se insere na órbita do Direito Penal.
No rol das fontes supletivas do Direito Processual do Trabalho, o Direito Pro­
cessual Civil é a mais importante, tanto porque participa da natureza das fontes
le­gisladas, como pelo grau de elaboração que já alcançou e da proximidade de seus
institutos com os do Direito Processual do Trabalho.
Não se pode deixar de assinalar que ambos tratam da mesma realidade que
diz respeito ao exercício da jurisdição e ao processo, embora as normas de direito
material civis e trabalhistas, aplicadas pela atuação da função jurisdicional, por meio
do processo, se destinem à regência de realidades distintas.
Os doutrinadores, às vezes, buscam o fundamento da aplicação supleti-
va do Direito Processual Civil ao Direito Processual do Trabalho no princípio da
sub­sidiariedade.
Todavia, o Direito Processual comum é referido na própria lei como fonte sub-
sidiária, o que significa que sua aplicação para suprir as lacunas se legitima pela
própria disposição legal da CLT, na qual tem o seu fundamento.
Em outras palavras, a sua força, como fonte subsidiária ou supletiva, deriva
diretamente da lei, e não da força dos princípios gerais ou especiais do Direito.
A aplicação do Direito Processual Civil ao Processo do Trabalho, nos termos
previstos no art. 769, da CLT, pressupõe a lacuna (“nos casos omissos” diz a lei)
e a compatibilidade com as normas processuais sistematizadas no Título X da CLT.
Obviamente, se as normas do Direito Processual Civil contrariarem as disposi-
ções do Direito Processual do Trabalho, a aplicação subsidiária se tornará um verda-
deiro contrassenso, com a criação de verdadeiras antinomias no Direito.

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8  O problema das lacunas


A existência de casos omissos no Direito Processual do Trabalho é a primeira
condição para que o Juiz se socorra do Direito Processual Civil, para assegurar o
desenvolvimento do processo.
Está-se, portanto, diante do problema das lacunas.
A admissão da existência de lacunas, na Teoria Jurídica, importa na aceitação
da incompletude do ordenamento jurídico.
Como o legislador não pode tudo prever, ou como pode ele, por diversos motivos,
deixar de legislar sobre certos aspectos da realidade, é possível que o ordenamento
jurídico não contenha resposta para todos os casos que se apresentem à decisão do
julgador; é possível que para determinada pretensão não haja procedimento previsto,
ou que a prática de determinado ato pela parte ou pelo juiz não componha a cadeia
do procedimento em conformidade com o modelo legal do processo.
Entre as várias definições de lacunas e várias propostas para resolver o problema
da incompletude do ordenamento jurídico, a doutrina já divulgou e sedimentou, por di-
versas formas, o brocardo que diz que “se há lacunas na lei, não há lacunas no Direito”,
ou, em outras palavras, a lei pode conter lacunas, mas o Direito não as contém.
Tal assertiva assinala, em última análise, que não há verdadeiras lacunas no
ordenamento jurídico quando este oferece ao intérprete e ao Juiz os meios de preen-
cher os seus vazios.
Merece, ainda, referência a teoria que caracteriza a lacuna não pela falta de norma
para resolver o caso concreto, mas pela falta de critérios válidos para se decidir qual
das normas existentes deve ser aplicada.
Dentre as várias classificações de lacunas, tem adquirido importância crescente
a que as divide em lacunas reais e lacunas ideológicas.
A classificação, devida sobretudo aos trabalhos de Brunetti, encontrou ampla
divulgação na doutrina de Norberto Bobbio, que assim a expõe:

Entende-se também por “lacuna” a falta não já de uma solução, qualquer


que seja ela, mas de uma solução satisfatória, ou, em outras palavras,
não já a falta de uma norma, mas a falta de uma norma justa, isto é, de
uma norma que se desejaria que existisse, mas que não existe. Uma vez
que essas lacunas derivam não da consideração do ordenamento jurídica
como ele é, mas da comparação entre o ordenamento jurídico como ele é
e como deveria ser, foram chamadas de “ideológicas”, para distingui-las
daquelas que eventualmente se encontrassem no ordenamento jurídi-
co como ele é, e que se podem chamar de “reais”. Podemos também
enunciar a diferença desse modo: as lacunas ideológicas são lacunas de
iure condendo (de direito a ser estabelecido), as lacunas reais são de iure
condito (do direito já estabelecido).12

12
BOBBIO. Teoria do ordenamento jurídico, p. 140.

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Processo civil e processo do trabalho – Possibilidades e limites da aplicação subsidiária

As lacunas ideológicas surgem, como visto, da comparação entre um ordena-


mento existente e o seu tipo ideal, ou, um ramo, um instituto, uma categoria jurídica,
ou mesmo um conceito existente comparado com o que se entende que deveria ser.
Elas aparecem quando a solução para o caso existe, mas é tida por inexistente
porque considerada injusta.
As reais são as lacunas verdadeiramente presentes, quando falta, na norma
jurídica, a solução para o caso concreto.
As lacunas são, ainda, classificadas em próprias e impróprias.
As lacunas próprias são as existentes dentro do sistema.
As impróprias são assim concebidas pela existência de casos não regulamenta-
dos, como, por exemplo, a conduta que se acredita que devesse ser sancionada, mas
não encontra tipificação na lei, ou a pretendida aplicação de sanção que não encontra
previsão na cadeia dos atos processuais.
Como elucida Bobbio, o que distingue as duas espécies de lacunas é que as
próprias podem ser eliminadas pelo intérprete, enquanto as impróprias só podem
ser eliminadas por meio da formulação de novas normas, tarefa que compete ao
legislador.13
O preenchimento das lacunas se dá por métodos que a doutrina, utilizando a
terminologia cunhada por Carnelutti, denomina de autointegração, no qual se empre-
gam as fontes do mesmo sistema, e de heterointegração, no qual se buscam fontes
exteriores ao sistema jurídico, ou fontes diversas da dominante no sistema.

9  A aplicação do Direito no Direito Processual Civil e no Direito


Processual do Trabalho
No ordenamento jurídico brasileiro ao Juiz não é lícito proferir o non liquet.
O Julgador pode se equivocar na aplicação do Direito, mas não pode deixar de
prestar a jurisdição.
O Juiz não pode deixar de julgar, e deve julgar os casos que lhe são apresenta-
dos com base em norma do sistema jurídico.
Nesse sentido, o art. 126 do Código de Processo Civil estabelece:

Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna


ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas
legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princí-
pios gerais de direito.

Essa disposição, que proíbe o Juiz de se eximir de julgar e que exige que o julga-
mento se baseie em norma e em recursos consagrados no sistema jurídico, encontra

13
BOBBIO. Teoria do ordenamento jurídico, p. 144.

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paralelo no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que trata das lacunas e dos
meios adotados para seu preenchimento.
Encontra, também, correlação no art. 8º da CLT, que se remete às fontes que
deverão fundar a decisão, em caso de lacunas, indicando a jurisprudência, a analo-
gia, a equidade, os princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito
do trabalho, os usos e costumes, o direito comparado, e, como fonte subsidiária, o
Direito Civil, quando não for incompatível com os princípios fundamentais do Direito
do Trabalho.
Entretanto, é necessário ressaltar que as normas de direito material que indi-
cam e delimitam as fontes que devem ser aplicadas nas decisões não se confundem
com as normas de natureza processual.
Há relações, e não identidade, entre o Direito Processual, enquanto disciplina o
exercício da jurisdição e do processo, considerado como o procedimento que se realiza
em contraditório na preparação do provimento, e o Direito Material ou substancial,
que é exatamente o concretizado pelo provimento, enquanto ato imperativo estatal.
O fato de o Juiz ser obrigado a decidir as controvérsias que lhe são apresenta-
das com base em normas do sistema jurídico não significa que ele possa escolher
as normas processuais que irá aplicar no curso do procedimento preparatório do
provimento.
O Magistrado, como órgão da jurisdição, não pode exercer uma faculdade de
escolha que não possui.
Não se pode ignorar que, no Direito do Trabalho, tem ampla aceitação a tese da
prevalência da norma mais favorável, aferida com base na teoria da acumulação ou
na teoria do conglomerado.14
Não cabe, todavia, o transplante dessas teorias para o campo do Processo.
As normas processuais são imperativas e esse caráter deve ser sublinhado,
porquanto o exercício jurisdicional é o exercício de uma função e de um poder estatal,
que se exerce com a participação das partes.
Para que a competência para julgar, que importa no exercício de um poder auto-
rizado por normas jurídicas, se cumpra no quadro legal, é preciso que a função juris-
dicional se exerça nos limites das normas jurídicas instituídas para sua disciplina, a
fim de que a aplicação do Direito não se confunda com um ato meramente arbitrário.

10  O suprimento das lacunas no Direito Processual Civil e no


Direito Processual do Trabalho
Com o auxílio das construções jurídicas apresentadas acima, embora sucinta-
mente, podem-se encontrar as respostas para as indagações postas no início deste
estudo.

14
BARROS. Curso de direito do trabalho, p. 129-132.

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Processo civil e processo do trabalho – Possibilidades e limites da aplicação subsidiária

Não é lícito ao Juiz transplantar uma norma processual feita para disciplinar o
exercício de uma jurisdição para outra jurisdição diversa, sem autorização de norma
do sistema.
Não pode o Juiz abandonar um instituto do Direito Processual do Trabalho ou as
normas que regem as etapas do Processo do Trabalho, para aplicar instituto ou normas
do Direito Processual Civil.
Se o fizer, o Magistrado não estará aplicando o Direito Processual Civil como
fonte subsidiária, mas, sim, como fonte principal.
Estará, desse modo, invertendo a teoria das fontes, para mudar a sua hierarquia.
No sistema jurídico brasileiro, as fontes legisladas são hierarquizadas.
Para a aplicação subsidiária do Direito Processual Civil, o primeiro requisito é a
existência da lacuna.
Não basta, portanto, que o instituto do Direito Processual Civil seja harmônico
e compatível com os princípios do Direito Processual do Trabalho, para que tenha
aplicação no processo do trabalho.
Se o Julgador abandonar o instituto do Direito do Trabalho existente para aplicar
o instituto do Direito Processual Civil, por considerá-lo mais adequado, por ensejar
maior celeridade, por ser mais condizente com os princípios do Direito do Trabalho,
estará, por certo, criando uma lacuna que não existe no Direito positivo, estará decla-
rando, ainda que tacitamente, uma lacuna ideológica, que, como se viu, baseia-se na
comparação do direito existente com o direito ideal.
É preciso não perder de vista a necessária separação entre normas de direito
processual e normas de direito material.
Assim, se é possível dizer que o direito material do trabalho protege o hipossu-
ficiente, a mesma afirmação, apesar de abalizadas opiniões em contrário,15 não pode
ser feita no campo do exercício da jurisdição e do processo.
O Direito Processual do Trabalho pode conter normas que sejam mais compa-
tíveis com a posição das partes, como, por exemplo, a das consequências do não
comparecimento do Reclamante ou do Reclamado à audiência inaugural, ou a da
distribuição do ônus da prova.
É uma opção lógica da legislação, no equilíbrio da atuação das partes, no pro-
cesso, quando ela puder ser afetada por circunstâncias extraprocessuais.
Sempre que houver a intenção de se promover, no processo, o equilíbrio que
falta nas relações sociais, a providência deve vir consagrada em lei, para compor um
modelo de processo destinado a todos os jurisdicionados.
Contudo, se o exercício da jurisdição devesse se fazer para beneficiar uma
das partes, sem apoio em norma jurídica preexistente na cadeia do procedimento,

15
ALMEIDA. Manual de direito processual do trabalho, p. 27.

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aplicável ao caso por designação do próprio ordenamento jurídico, ter-se-á quebrado


um princípio de natureza constitucional, que é a observância do contraditório, com a
participação das partes em simétrica paridade, na busca de uma decisão favorável,
dentro do modelo legal do processo.
Ter-se-á quebrado, simultaneamente, as exigências da impessoalidade e da
imparcialidade do Juiz, no exercício da jurisdição.
A transposição das normas do Direito Processual Civil ao Processo do Trabalho,
sem a observância da existência de lacunas, da natureza subsidiária e da compatibi-
lidade, torna o processo do trabalho deformado e esgarçado.
Onde se admite a existência de duas normas antinômicas da mesma hierarquia,
o intérprete, ou o Juiz, está, sem dúvida, diante da possibilidade de uma escolha.
Mas, quando se trata de normas de diferentes hierarquias, porque situadas
em diferentes escalões das fontes do Direito, a mencionada transposição rompe a
unidade e o equilíbrio do sistema.
Essa ruptura, agravada pela inobservância do princípio da impessoalidade e
da imparcialidade, traz incontáveis prejuízos para o ordenamento jurídico e para os
jurisdicionados.

11 Conclusão
Ao Juiz não cabe recriar o sistema jurídico, segundo seus valores pessoais.
No exercício da jurisdição, ele deve observar o dever de imparcialidade, atuando
de acordo com o modelo legal de processo e com as normas processuais.
A esse propósito, é oportuno recordar a sempre preciosa lição de Dinamarco:

Os mais destacados desdobramentos da impessoalidade da atividade


jurisdicional são o dever de imparcialidade do juiz e a indelegabilidade
da jurisdição.
O Estado de Direito atua, inclusive sub specie jurisdictionis, com obediência
às regras e princípios de justiça que ele mesmo consagrou em fórmulas
residentes na Constituição e na lei, sendo inadmissível que um agente seu,
mero ocupante passageiro de um cargo, pudesse sobrepor seus sentimen-
tos ou seus próprios interesses a esses critérios objetivamente estabeleci-
dos de forma legítima e impessoal (supra, n. 81). Tal é a conexão entre o
dever de imparcialidade e o caráter impessoal do exercício da jurisdição.16

A participação equitativa das partes no processo e a independência e imparcia-


lidade do Órgão da jurisdição estão no cerne dos Direitos com pretensão à universali-
dade, como se lê no art. 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948:

16
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 337.

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Processo civil e processo do trabalho – Possibilidades e limites da aplicação subsidiária

Artigo 10 – Todos, em plena igualdade, têm direito a que sua causa seja
ouvida, equitativamente e em público, por um tribunal independente e
imparcial, que decidirá sobre os seus direitos e as suas obrigações, ou
sobre qualquer acusação penal, que lhes seja feita.

A independência e imparcialidade dos julgadores são garantias de que a partici-


pação da parte na preparação do provimento não será um mero jogo ou um simulacro
de justiça, mas a verdadeira participação dos jurisdicionados na concretização do
Direito construído pela sociedade, do qual são eles os verdadeiros destinatários.

Belo Horizonte, 18 de novembro de 2013.

Referências
ALMEIDA, Isis. Manual de direito processual do trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 1993.
ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985-1986.
BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1992. v. 1.
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 4. ed. São Paulo: Ltr, 2008.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São
Paulo: Polis, 1989.
CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. Rio de Janeiro: Editora Minelli, 2002.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2008.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros,
2009. v. 1.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1984. v. 1.
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1985-1986.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: primeira série. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1988.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito processual do trabalho. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1992.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 1.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Processo civil e processo do trabalho: possibilidades e


limites da aplicação subsidiária. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 181-197, jan./mar. 2014.

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Regime das medidas de urgência no
futuro CPC

Ivo César Barreto de Carvalho


Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Procurador Autár­
quico da Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado do Ceará (ARCE).
Professor de Direito Tributário da Unichristus. Advogado. E-mail: <prof_ivo@hotmail.com>.

Resumo: O presente trabalho tem por escopo estudar o regime das medidas de urgência no futuro Código
de Processo Civil Brasileiro (Projeto de Lei do Senado nº 166/2010), à luz das garantias constitucionais
da ação, calcado na efetividade da tutela jurisdicional e na duração razoável do processo. Destarte, faz-se
uma análise dos institutos da tutela de urgência e de evidência previstas no atual Projeto, cotejando-os
com os institutos da medida cautelar e de antecipação de tutela do atual CPC.
Palavras-chave: Tutela de urgência. Tutela de evidência. Medida cautelar. Antecipação de tutela. Efetividade.
Futuro CPC.

Sumário: Noções introdutórias – 1 Garantia constitucional da ação e tutela jurisdicional – 2 O futuro Código
de Processo Civil (Projeto de Lei no Senado nº 166/2010) – 3 Tutela de urgência – 4 Tutela de evidência
– Conclusões preliminares – Referências

Noções introdutórias
Com as mudanças sociais advindas de uma sociedade moderna, dinâmica e
ágil, o homem contemporâneo precisa se adaptar e, constantemente, atualizar seus
métodos de controle social. O direito, como instrumento regulador de condutas inter-
subjetivas, igualmente deve acompanhar essas mudanças, de modo a se manter
eficaz e continuar a refletir as relações sociais.
Pela atividade jurisdicional, a sociedade aguarda sempre do magistrado — ao
qual está incumbida, preponderantemente, a função de julgar — a entrega de resul-
tados úteis àqueles que procuram no Estado a solução de seus conflitos. Em última
análise, todos esperam, ao buscar uma tutela jurisdicional, a garantia de que seus
direitos serão preservados, não violados por outrem. A cada dia, requer-se uma pres-
tação jurisdicional mais ágil, mais eficaz e efetiva, do contrário esta se torna inútil
para garantir aqueles direitos.
A partir de uma análise da evolução histórica das cautelares no sistema jurí-
dico, Ovídio Batista afirmou que as técnicas de sumarização que importem execução
provisória:

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Ivo César Barreto de Carvalho

[...] respondem a uma exigência comum de conciliação entre a busca


constante da maior perfeição e justiça na prestação da tutela jurisdicio-
nal e a necessidade de tornar efetivo esse objetivo, o que, muitas vezes,
pressupõe uma maior celeridade na obtenção de tal resultado, pois a
realização tardia do Direito pode significar a mais imperfeita e inútil rea-
lização do próprio Direito.1

No direito processual, várias técnicas e estratégias foram desenvolvidas ao


longo das últimas décadas, criadas e utilizadas com esse objetivo. Dentre elas, des-
tacam-se as medidas liminares, medidas cautelares e de antecipações de tutela. Em
diversas relações sociais, é imprescindível que a solução a determinado conflito de
interesse seja buscada no mais breve tempo possível, e, muitas vezes, a espera do
desenrolar de todo o procedimento legalmente previsto a fim de que se possa obter,
enfim, uma efetiva alteração do mundo fenomênico é demasiadamente demorada. É
mister, portanto, permitir a atuação do Estado-juiz, desde logo, conferindo uma tutela
jurisdicional a quem a solicita.
Verifica-se, por estes motivos, uma ampliação de institutos processuais pujantes
nos tempos modernos, já presentes na atual legislação processual brasileira (fruto
de reformas pontuais desde a década de 1990, principalmente), cujo fito é flexibilizar
o processo civil, de modo a resguardar a efetividade processual, permitindo a prote-
ção dos direitos subjetivos que buscam uma tutela jurisdicional urgente. Avizinham-se
novas mudanças com o Projeto de Lei do Senado nº 166/2010, mas este trabalho
restringe-se à análise das tutelas de urgência e de evidência previstas no texto pro-
posto, cotejando-as com os direitos e as garantias processuais constitucionais e os
princípios que envolvem a tutela jurisdicional.

1  Garantia constitucional da ação e tutela jurisdicional


1.1  Perspectiva constitucional do direito de ação
A tutela jurisdicional é direito de todos, garantido constitucionalmente (art. 5º,
XXXV, CF/88). A mera garantia formal desse direito na Constituição Federal, contudo,
não deve ser suficiente para o estudioso do direito processual. Além de garantir a
todos o direito à mera formulação de pedido ao Poder Judiciário, a Constituição da
República garante a todos o efetivo acesso à ordem jurídica justa,2 ou seja, proporciona
a satisfação do direito não cumprido espontaneamente.

1
SILVA. Do processo cautelar, p. 15.
2
Para Willis Santiago Guerra Filho, a garantia do acesso à justiça exige também uma efetividade social da
prestação de tutela judicial (Teoria processual da Constituição, p. 40).

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Regime das medidas de urgência no futuro CPC

Cândido Rangel Dinamarco afirma, de modo muito claro, que o acesso à


justiça é acesso à ordem jurídica justa, ou seja, obtenção de justiça substancial.3
Um eficiente trabalho de aprimoramento jurisdicional deve se pautar no trinômio
qualidade-tempestividade-efetividade.
Seguindo este raciocínio, complementa José Roberto dos Santos Bedaque sobre
a garantia constitucional da tutela jurisdicional:

Assim, a garantia constitucional de ação representa para as pessoas,


em última análise, garantia ao devido processo constitucional, ao ins-
trumento estatal de solução de conflitos. Garantia implica proteção, ou
seja, predisposição de meios para assegurá-la em concreto. Não basta,
pois, assegurar abstratamente o direito de ação a todos aqueles que
pretendam valer-se do processo. É necessário garantir o acesso efetivo à
tutela jurisdicional, por parte de quem dela necessita.4

As questões que envolviam as teorias sobre a natureza da ação constituem,


hoje, preocupação superada na doutrina.5 Isso porque a moderna ciência processual
busca estudar a efetividade do processo, preocupação fundamental na visão atual.
O grande desafio é garantir um resultado prático no processo, pois este deve ser
um meio útil e eficaz à solução dos conflitos. O desenvolvimento de mecanismos
processuais que garantam essa efetividade e utilidade é a ideia primordial e vetora
das reformas na legislação processual, sobretudo no PLS nº 166/2010.
Por ser um componente inafastável das garantias constitucionais do processo,
a efetividade foi inserida como princípio constitucional que constitui um dos funda-
mentos do sistema processual brasileiro: “a todos, no âmbito judicial e administra-
tivo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitação” (art. 5º, LXXVIII, CF). Caso não se modernize, o pro-
cesso pode se tornar inútil à realização do direito material e dos valores sociais mais
importantes, sem proporcionar um resultado com rapidez e eficácia.

1.2  Tutela jurisdicional e a ineficiência do sistema


A prestação da tutela jurisdicional está relacionada à eficiência do sistema.
É possível afirmar que o mecanismo estatal de solução de controvérsias é efetivo,

3
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 1, p. 114-115.
4
BEDAQUE. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização),
p. 64-65.
5
Napoleão Nunes Maia Filho recorda que a garantia constitucional de acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV) não é
mais entendida (e não pode mais ser entendida) como se identificando apenas com o tradicional direito de ação
na sua concepção clássica, mas sim com a objetiva obtenção de provimento judicial útil e tempestivo, daí se
imporem a necessária revisão e o redimensionamento de todos os institutos processuais e dos procedimentos
que de qualquer modo repercutem ou interessam à efetivação daquela mesma garantia (Estudo sistemático da
tutela antecipada, p. 200).

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Ivo César Barreto de Carvalho

quando ao titular do direito é garantido não apenas o instrumento estruturado para


assegurar a tutela formal de seu direito, mas também proteção real, ou seja, capaz
de proporcionar-lhe praticamente a mesma situação que o cumprimento espontâneo
da norma lhe conferiria.
Noutros termos, a efetividade do processo depende fundamentalmente da exis-
tência de meios adequados a resolver os inúmeros problemas surgidos no plano mate-
rial. A construção do sistema processual de tutelas, em um dado ordenamento jurídico,
não pode, portanto, ignorar a realidade jurídico-material. O reconhecimento dessa
necessária influência contribui substancialmente para a efetividade do processo.
Mas quais são as premissas para a construção de um sistema processual
efetivo? Como esse sistema pode ser adequado à solução das questões postas à
análise jurisdicional? Uma coisa é certa: o sistema processual mostra-se ineficiente
na medida em que os instrumentos apresentados são absolutamente neutros, pura-
mente técnicos, ou seja, desgarrados das peculiaridades e diferenças de cada caso.
O tratamento isonômico, puramente formal, para todos os casos apresentados é
inadequado e ineficiente para a solução das lides.
Mister, portanto, desenvolver uma sistematização do direito processual mais
eficiente, que leve em conta as eventuais diferenças nas tutelas pretendidas, de
modo a criar técnicas e meios aptos à obtenção dos resultados desejados. Roberto
Apolinário de Castro Júnior, em estudo aprofundado sobre a eficiência jurisdicional,
destaca duas espécies de técnicas de aceleração procedimental, “na tentativa de
superação do problema da morosidade jurisdicional, e visando a atender aos coman-
dos constitucionais, legais, e até mesmo aos clamores sociais”, a saber: as de
sumarização da cognição; e as de sumarização das fases do procedimento. As deno-
minadas tutelas de urgência e de evidência são da primeira espécie.6
A grande preocupação da ciência processual contemporânea está relacionada,
portanto, à eficiência da Justiça, que se traduz na busca de mecanismos para alcan­
çar a efetividade da tutela jurisdicional. Para Juvêncio Vasconcelos, a reforma da
organização responsável pela função jurisdicional não trará, sozinha, ao menos de
forma imediata, essa tão esperada “aceleração”. Os problemas da boa prestação
jurisdicional são bem mais profundos: vão desde aqueles de ordem material e econô-
mica até os de caráter cultural e intelectivo. Estes últimos, aliás, detentores de forte
eficácia impeditiva de efeitos benéficos que uma nova maneira de fazer o processo
possa acarretar.7
Contudo, além do aprimoramento da técnica processual, adequando-a à reali-
dade substancial, outras providências são igualmente imprescindíveis: a) aumento

6
CASTRO JÚNIOR. Eficiência jurisdicional: a razoável duração dos procedimentos frente às garantias funda­
mentais, p. 93.
7
VIANA. Da duração razoável do processo. Revista Dialética de Direito Processual, p. 53-68.

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Regime das medidas de urgência no futuro CPC

de recurso orçamentário destinado ao Poder Judiciário, a fim de que ele possa fazer
frente às suas necessidades; b) alterações estruturais no Poder Judiciário, principal-
mente no tocante à distribuição de competência; c) a conscientização por parte do
Estado-Administração de que o processo não constitui mecanismo para protelar o
cumprimento de suas obrigações.8
Apesar de serem providências absolutamente necessárias, elas estão fora do
alcance da doutrina processual. O máximo que se pode fazer nesta sede é chamar
a atenção dos responsáveis para as verdadeiras causas do mau funcionamento da
Justiça e da ineficiência do sistema.
Dentro dos limites e das possibilidades dos juristas, o estudo, a criação e o
desen­volvimento de técnicas e meios adequados a uma tutela jurisdicional mais efi-
caz e útil são as providências passíveis de execução. Ocorre que, por mais que sejam
desenvolvidas técnicas processuais modernas e eficientes, é necessário aprimora-
mento na própria estrutura (humana e física) do aparelho estatal que presta a tutela
jurisdicional. A simples reforma do Código de Processo Civil não se mostra suficiente
para tornar o sistema mais eficiente, caso os instrumentos processuais modernos
não encontrem condições favoráveis para sua aplicação.

1.3  A via jurisdicional e a plena realização dos direitos através


de tutelas diferenciadas
O titular de um interesse juridicamente protegido, quando este, por alguma
razão, não foi possível efetivar-se naturalmente, procurará a via jurisdicional para a
realização de seu direito substancial. A plena realização desse direito passa, neces-
sariamente, por um sistema eficaz, útil e rápido, cujas demandas sejam solucionadas
em razoável período de tempo.
Entretanto, a duração do processo cognitivo ou executivo é, muitas vezes,
demorada e exageradamente formalista, o que representa real empecilho à plena
satisfação do direito. Uma série de fatores ocasiona esses entraves burocráticos
processuais, mas uma coisa é certa: é preciso buscar meios para afastá-los, transfor-
mando o processo não um fim em si mesmo, mas um instrumento para a efetivação
dos direitos tutelados.9

8
De acordo com Gérson Marques, o problema do Judiciário vai além de sua estrutura, pois este Poder vive uma
crise ética. Segundo ele, “a eficácia de suas decisões, a tutela efetiva da prestação jurisdicional e a celeridade
do processo não dependem apenas do número de juízes. O agigantamento humano nos órgãos judiciários
constitui apenas um fator voltado a superar os problemas emergenciais e superficiais da instituição, mas
não é suficiente. [...] Enfim, parece-nos inconteste a necessidade de aprimorar a formação dos magistrados,
conscientizando-os do importante papel ao qual está institucionalmente fadado o Judiciário e, ao mesmo
tempo, estimulando a aplicação ética da norma dentro de uma perspectiva de justiça” (O Supremo Tribunal
Federal na crise institucional brasileira, p. 123).
9
A importância do fator tempo no desenvolvimento do processo foi muito bem delineada por Napoleão Maia
Filho, que destacou ser o problema do tempo a mola propulsora do principal motivo da crise da justiça
brasileira (Estudo sistemático da tutela antecipada, p. 95-102).

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Desta feita, a preocupação com a efetividade do sistema processual tem levado


os processualistas a dedicarem maior atenção a formas diferenciadas de tutela jurisdi-
cional. A expressão tutela jurisdicional diferenciada pode ser entendida de duas manei-
ras: a) a existência de procedimentos específicos, de cognição plena e exauriente, cada
qual elaborado em função de especificidades da relação material (CPC, Livro IV – Dos
procedimentos especiais); b) a regulamentação de tutelas sumárias típicas, precedidas
de cognição não exauriente, visando evitar que o tempo possa comprometer o resultado
do processo (v.g., as tutelas de urgência).10
Para João Batista Lopes, o nomen juris “tutela jurisdicional diferenciada” possui
uma conotação ideológica forte, no entanto necessária, pois indica uma postura nova
da doutrina processual. Corroborando a crítica de Ovídio Batista à chamada ordinari-
zação do processo civil, como uma das causas da morosidade judiciária, as tutelas
diferenciadas se mostram perfeitamente idôneas à proteção efetiva dos direitos.11
Com esteio nessas tutelas diferenciadas, é preciso cotejar os institutos e os
regimes das tutelas de urgência atualmente existentes com os parâmetros definidos
no Projeto de Lei no Senado nº 166/210 — o futuro CPC.

2  O futuro Código de Processo Civil (Projeto de Lei no Senado


nº 166/2010)
2.1  A filosofia do Projeto
Depreende-se da leitura do PLS nº 166/2010 que a filosofia adotada pelos
autores do anteprojeto não foi realizar mudanças radicais na estrutura da legislação
processual brasileira. Em verdade, procurou-se manter todos os institutos jurídicos do
Código vigente, mas incorporando técnicas novas e meios eficazes para a resolução
de problemas atuais, bem como expungindo do sistema vícios e entraves burocráti-
cos e desnecessários para a efetiva prestação jurisdicional.12
O Projeto enaltece os valores e princípios processuais constitucionais, valendo-se
da ideia de que os Códigos devem ser iluminados pelas Constituições, e não o contrá-
rio. Isso reflete o novo paradigma do neoconstitucionalismo, pautado na supremacia
da Constituição, na interpretação conforme a Constituição e em princípios como o da
unidade, razoabilidade e efetividade.13

10
BEDAQUE. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização),
p. 25-26.
11
LOPES. Tutela antecipada no processo civil brasileiro, p. 58-59.
12
Segundo Alexandre Mota Brandão, o novo CPC pretende romper o modelo de tutela de urgência atualmente vigente
— semelhante ao que vigora na Itália, abandonando a ideia de autonomia da função cautelar e aproximando-se
do modelo alemão (A tutela de urgência e o novo Código de Processo Civil. Revista Jurídica, p. 5).
13
BARROSO. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no
Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE).

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Regime das medidas de urgência no futuro CPC

O PLS nº 166/2010 define uma estrutura normativa mais orgânica e simples,14


procurando afastar a “processualidade excessiva”, a fim de buscar a melhor solução
para o conflito de direito material. Nesta ótica da simplificação, resta consagrada a
chamada “instrumentalidade processual”.
Sob a perspectiva da segurança jurídica, o Projeto de Lei busca efetivar a unifor-
midade da jurisprudência e a estabilidade das decisões, ao mesmo tempo que garante,
com as cautelas do contraditório e ampla defesa, a efetividade em cada processo,
individualmente considerado. Aliás, essa dicotomia entre segurança e efetividade é
antiga e já foi asseverada por Marcelo Abelha Rodrigues, como derivação de tutelas
cognitivas exaurientes e tutelas cognitivas sumárias.15
Em suma, os instrumentos para a concretização dos princípios e valores obje-
tivados pelo Projeto são: segurança (na estabilidade jurisprudencial), contraditório (à
luz de uma visão eminentemente constitucional) e simplificação processual (consa-
gração da máxima da instrumentalidade processual).

2.2  As tutelas de urgência e de evidência – Parâmetros gerais


Neste tocante, o aspecto interessante do Projeto é a eliminação das cautelares
nominadas. É preciso esclarecer, no entanto, que tais cautelares não deixarão de
existir, mas somente a forma específica de denominá-las.16 A supressão de proce-
dimentos cautelares típicos é uma tendência do direito brasileiro, tendo em vista o
aumento na utilização das medidas cautelares e de urgência. O PLS nº 166/2010
consagra a ampliação dos poderes concedidos aos magistrados na concessão de
medidas destinadas à tutela de urgência e de evidência, que passam a ser tratadas
em conjunto. Pode-se afirmar, destarte, que o Projeto institucionalizará um “poder
geral de urgência”17 ao invés do existente e atual “poder geral de cautela”.18

14
Corroborando a mesma ideia do PLS nº 166/2010, Alexandre Henrique Tavares Saldanha afirma que a tutela
jurisdicional das situações emergenciais tende a ficar, ao menos sistematicamente, mais organizadas (Da
recorribilidade das decisões denegatórias de liminares inaudita altera pars no novo Código de Processo Civil.
In: DIDIER JR. (Org.). Projeto do novo Código de Processo Civil: 2ª série: estudos em homenagem a José
Joaquim Calmon de Passos, p. 38).
15
RODRIGUES. Elementos de direito processual civil, v. 2, p. 179.
16
Demetrius Lopes Ramscheid alerta que, apesar da aparente extinção do livro do processo cautelar, alguns
dos procedimentos específicos foram deslocados para outras seções do código, a exemplo da exibição de
documento (arts. 382 a 390, PLS nº 166/2010) (Anteprojeto do novo Código de Processo Civil: tutela de
urgência e tutela à evidência).
17
A preocupação pela degeneração dos denominados provvedimenti d’urgenza (medidas de urgência), com a
inclusão de uma função antecipatória, já foi manifestada por Liebman na década de 1980, que alertava para o
desvirtuamento do processo cautelar pelo seu emprego indiscriminado. Disse o jurista italiano: “Già si vedano
gravi fenomini degenerativi affiorari nel corpo del processo e addiritura fuori di esso; cito ad esempio l’uso di
servirsi dei procedimenti d’urgenza dell’art. 700 C.P.C. fuori del loro ambiente naturale, i qualidone strumenti
eccezionale di tutela preventiva e provvisoria tendono a trasformarsi in provvedimenti antecipatori e sostitutivi
delle decisione finale” (LIEBMAN, Enrico Tullio. Per un nuovo Codice di Procedura Civile. Rivista di Diritto
Processuale, 1982 apud SILVA. Do processo cautelar, p. 2-3).
18
PINHO. Direito processual civil contemporâneo, v. 1, p. 500.

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Sem dúvida alguma, as tutelas de urgência e da evidência estão entre as medidas


contemporâneas atinentes à simplificação do processo e à efetividade da prestação
jurisdicional. Ambas as tutelas são necessárias para conferir soluções mais céleres
e adequadas ao direito material objeto do litígio, cujas medidas vêm sendo adotadas
desde a década de 1990, tendo em vista os mesmos objetivos.
Como última característica geral, tem-se a previsão da fungibilidade entre medi-
das cautelares e antecipatórias e da tutela antecipada da parte incontroversa. Essa
característica não decorre de nenhum artigo específico, mas do espírito que está inse-
rido nas disposições gerais comuns a ambas (arts. 269 a 275 do PLS nº 166/2010),
ao contrário do dispositivo legal específico atualmente existente (art. 273, §7º, CPC).

3  Tutela de urgência
3.1 Conceito
Pode-se entender as tutelas de urgência, nesse contexto, como “o conjunto de
técnicas processuais voltadas à resolução das situações intersubjetivas que deman-
dam rápida solução sob pena de se tornar inútil ou impossível a proteção pleiteada
jurisdicionalmente”.19
O exercício da função jurisdicional é pautado num conjunto de normas instituído,
inicialmente, pelo legislador constituinte — através dos princípios processuais cons-
titucionais — e pelo legislador ordinário — a partir de um sistema processual comum
aplicável à maioria dos casos. Ocorre que a técnica processual comum e ordinária
nem sempre é meio adequado à solução de todas as questões postas à apreciação
jurisdicional.
Nalguns casos, há situações peculiares que merecem pronta resposta do Poder
Judiciário, sob pena de esta prestação estatal se tornar inútil. Assim, foram realiza-
das modificações, com a introdução de institutos processuais e técnicas a serviço da
efetividade do processo, v.g., as tutelas de urgência. Percebe-se que tais mudanças
foram e continuam sendo essenciais para que a função jurisdicional atinja seu objetivo
de fornecer tutela jurídica eficaz e em tempo razoável, consoante estabelece o art. 5º,
inciso LXXVIII, da Constituição Federal.

3.2  Efetividade do processo


Modernamente, além do tempo fisiológico do processo, observa-se uma demora
patológica, excessiva, gerada por diversos fatores, que vão da falta de aparelha-
mento do Estado e se estendem à desmedida recorribilidade. Enquanto o processo

19
FRIEDE; KLIPPEL; ALBANI. A tutela de urgência no processo civil brasileiro, p. 6.

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Regime das medidas de urgência no futuro CPC

se desenvolve, seja em tempo normal, seja de forma patológica, tem-se como regra
a impossibilidade de que as partes usufruam quaisquer efeitos sociais positivos que
dali podem emanar.20
Com base nessa constatação, a espera do jurisdicionado pela prestação juris-
dicional, pela via ordinária, seria suficiente para a tutela requerida? Ou necessita ele
de uma efetiva e rápida tutela, sob pena de se tornar inútil o processo? Pelo que se
demonstra, o próprio direito material alegado poderá perecer sem uma apreciação
urgente do pedido, tornando sem qualquer efeito social a decisão judicial.
Em verdade, as tutelas de urgência são técnicas processuais aplicadas a fim de
mitigar o problema do tempo no processo, propiciando soluções eficazes às partes
que demandem (todos ou alguns) dos efeitos antes do momento processual adequado.
A instituição dessas medidas, vale salientar, não representam qualquer violação ao
contraditório ou à ampla defesa, mas, pelo contrário, são verdadeiros meios garanti-
dores do princípio constitucional de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF/88).
Denomina-se de técnicas de urgência o conjunto desse aparato processual,
criado para o fim de prover ao jurisdicionado a tutela de urgência, ou seja, a proteção
jurisdicional efetiva nos casos em que a demora do processo extinga sua utilidade e
a do próprio direito material. De acordo com Reis Friede, há duas formas ou técnicas,
que permitem a implementação da tutela de urgência:
1. A primeira forma se dá pela inversão da ordem lógica dos atos processuais,
antecipando-se à “declaração da norma concreta aplicável ao caso” a “frui-
ção de um ou de algum de seus efeitos práticos”. Inverte-se, pois, a sequên-
cia cognição-efetivação, antecipando-se o segundo componente do binômio.
Noutros termos, antecipa-se um dos efeitos práticos da tutela jurisdicional
requerida ao Estado-juiz. Chama-se essa técnica de “antecipação dos efeitos
práticos da tutela jurisdicional” ou, simplesmente, tutela antecipada, tutela
antecipatória ou antecipação de tutela;
2. Por outro modo, ao invés de se antecipar o exercício do direito ou de efeito
deste, defere-se ao jurisdicionado uma proteção que, embora não permita a
ele exercer seu direito material, o resguarda, para que, no momento oportu-
no, possa ser exercido. Esse segundo conjunto de técnicas de urgência se
caracteriza pelo deferimento à parte interessada de uma garantia, diversa
da tutela jurisdicional de direito material que veio ao processo buscar, mas
que permitirá que, no momento procedimental adequado, ainda seja útil a
providência jurisdicional pleiteada. Essa espécie de proteção jurisdicional de
urgência é conhecida pelo nome de tutela cautelar e sua finalidade não é
permitir, desde logo, que o autor usufrua da tutela de direito material que

20
FRIEDE; KLIPPEL; ALBANI. A tutela de urgência no processo civil brasileiro, p. 8.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 199-219, jan./mar. 2014 207

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veio ao processo obter; é, por outro lado, uma forma de garantir a utilidade
do processo, seja em sua fase cognitiva, seja na executiva, e, portanto, de
modo mediato, do próprio direito material em debate.21

3.3 Modalidades
Segundo a doutrina majoritária, a tutela de urgência pode ser descrita como o
gênero que engloba duas espécies de instrumentos criados pelo legislador proces-
sual para prover tutela jurisdicional nas situações em que o tempo que o processo
demora a se desenvolver puder ocasionar perigo de inutilidade da atividade jurisdicio-
nal e até mesmo de perda do direito material deduzido em juízo. Tais espécies são a
tutela antecipada e a tutela cautelar.22
Conforme José Miguel Garcia Medina, pode-se dizer que, no direito brasileiro,
existem três modalidades de tutela de urgência, que possuem características simila-
res, mas têm estruturas sensivelmente distintas, e que podem ser assim visualiza-
das: a) tutela cautelar, antecedente ou incidental; b) antecipação dos efeitos (diretos
ou indiretos) da tutela; c) tutela de urgência satisfativa, com ou sem realização de
cognição exauriente sucessivamente, no mesmo processo.23
Seguindo a mesma linha tripartite das tutelas de urgência, Humberto Dalla
Bernardina de Pinho assevera que essas tutelas se manifestam nas formas ante-
cipatória (natureza satisfativa), cautelar (natureza instrumental, não satisfativa)24 e
inibitória (natureza preventiva — pleiteada antes da ocorrência de um dano).25
No Projeto de Lei do Senado nº 166/2010 (futuro CPC), o art. 269 deixa trans-
parecer de modo cristalino apenas duas modalidades das tutelas de urgência: medi-
das satisfativas e medidas cautelares:

21
FRIEDE; KLIPPEL; ALBANI. A tutela de urgência no processo civil brasileiro, p. 9-10.
22
A jurisprudência dominante do STJ aplica a distinção entre as medidas cautelares e antecipatórias de tutela,
demonstrando a sua adesão ao entendimento adotado pela doutrina majoritária. Nesse sentido: AgRg no
REsp 503.211/PR, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, DJ, 26 nov. 2007; REsp nº 202.740/PB, Rel. Min.
Castro Filho, 3ª Turma, DJ, 07 jun. 2004. Por outro lado, para J. E. Carreira Alvim, a “antecipação de tutela,
tanto quanto a liminar cautelar, são espécies do gênero provimento antecipado, apresentando a característica
comum de serem concedidas fora daquele momento normalmente adequado ao reconhecimento do direito,
que é a sentença” (Tutela antecipada, p. 29).
23
MEDINA. Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas comparativas ao projeto do novo CPC,
p. 260. Nesse mesmo sentido é a doutrina de Ovídio Araújo Baptista (Do processo cautelar, p. 86-87); José
Roberto dos Santos Bedaque [Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa
de sistematização), p. 218 et seq.]; Rogério Aguiar Munhoz Soares (Tutela jurisdicional diferenciada: tutelas
de urgência e medidas liminares em geral, p. 172 et seq.); Andrea Proto Pisani (Lezioni di diritto processuale
civile, p. 637 et seq.); Federico Carpi, Vittorio Colesanti e Michele Taruffo (Commentario breve al Codice di
Procedura Civile, p. 2111 et seq.).
24
Para Barbosa Moreira, a provisoriedade é uma das notas dominantes da medida cautelar (O novo processo
civil brasileiro, p. 311).
25
PINHO. Direito processual civil contemporâneo.

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Regime das medidas de urgência no futuro CPC

Art. 269. A tutela de urgência e a tutela de evidência podem ser requeridas


antes ou no curso do processo, sejam essas medidas de natureza satis-
fativa ou cautelar.
§1º São medidas satisfativas as que visam a antecipar ao autor, no todo
ou em parte, os efeitos da tutela pretendida.
§2º São medidas cautelares as que visam a afastar os riscos e assegu-
rar o resultado útil do processo.

Acredita-se que a classificação proposta no Projeto seja mais coerente com a


realidade processual existente, além de ser uma tentativa bastante razoável de sim-
plificar os inúmeros institutos processuais atualmente aplicáveis. Ressalte-se, por
exemplo, que a nomenclatura das cautelares típicas poderá deixar de existir, mas não
o seu conteúdo e seus efeitos, razão pela qual se entende perfeitamente justificável,
pelo menos, a tentativa do Projeto de sistematização das tutelas de urgência e de
evidência sob outro aspecto — satisfatividade ou cautelaridade.
O esboço dessa reformulação legislativa é muito bem explicado por Athos
Gusmão Carneiro, na exposição de motivos do anteprojeto do CPC, pois:

não mais subsistem os motivos, principalmente de ordem doutrinária,


que levaram o legislador de 1973 a enquadrar o procedimento das me-
didas cautelares (entre as quais estão incluídas providências ditas “cau-
telares inominadas”, e algumas sem nenhum caráter de cautelaridade)
às culminâncias de um “processo autônomo”, ao lado do processo de
conhecimento e do processo de execução.26

Tal entendimento é irretocável, pois a tutela cautelar é parte integrante da juris-


dição, mormente na atual fase de modernização do direito processual, focado na efi-
ciência e na instrumentalidade das atividades processuais, devendo ser abandonada
a ideia de mera acessoriedade ou subsidiariedade da ação cautelar, como se fora um
tertium genus, separada do processo de conhecimento e do processo de execução.

3.4  Momentos em que pode ser deferida


No atual e vigente CPC, a medida antecipatória de tutela poderá ser deferida
em uma medida liminar,27 caso o magistrado decida logo no limiar inicial do processo
(in limine litis), antes de citar o réu para apresentar as modalidades de resposta que
entenda cabíveis.

26
LOPES. Tutela antecipada no processo civil brasileiro, p. 235.
27
Segundo Reis Friede, a medida liminar é “somente um dos veículos processuais por meio dos quais se pode
determinar uma tutela ou proteção a situação urgente”. Por esta razão, não se deve confundir as tutelas de
urgência com as medidas liminares, nem que estas são espécie daquelas (FRIEDE; KLIPPEL; ALBANI. A tutela
de urgência no processo civil brasileiro, p. 43).

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Ivo César Barreto de Carvalho

A regra para o deferimento das tutelas de urgência é após a instauração da


relação processual, ou seja, uma vez garantido o contraditório à parte contrária. É ex-
ceção, portanto, a concessão de medidas cautelares sem a audiência das partes, por
expressa disposição legal (art. 797, CPC). Assim, em razão do princípio constitucional
do contraditório, o deferimento liminar das tutelas de urgência é medida reservada
ao magistrado, quando entender necessária a adoção de providência que lhe pareça
idônea para conservação do estado de fato e de direito envolvido na lide.
O julgador também poderá deferir pedido de tutela de urgência após o contradi-
tório e antes da sentença, se julgar presentes os requisitos para a sua concessão. É
óbvio que, nesse momento processual, não se está a falar mais de medida liminar,
mas de concessão de uma tutela de urgência previamente ao julgamento final de
mérito.
A tutela de urgência pode ser concedida, igualmente, no mesmo momento pro-
cessual da sentença. Então, duas situações se divisam: (i) a confirmação, na sen-
tença, ou revogação da tutela de urgência concedida anteriormente pelo magistrado;
(ii) o deferimento da tutela de urgência somente no corpo da sentença, como um ato
inédito no procedimento.
No primeiro caso, a sentença que confirma ou revoga a tutela de urgência deferida
anteriormente a substitui, característica esta fundamental para fins recursais. Não se
trata de uma decisão interlocutória no bojo da sentença, mas o próprio decisum final
de mérito, sendo cabível, indubitavelmente, o recurso de apelação.
No segundo caso, há entendimentos diversos na doutrina brasileira. Para Reis
Friede, apesar de ser tutela de urgência, como a mesma foi deferida no corpo da
sentença, esta é parte integrante da mesma, não havendo como entendê-la como
uma decisão interlocutória à parte, devido ao seu conteúdo, mesmo porque se trata
de ato único, impugnável por um único recurso específico, ou seja, a apelação.28 Luiz
Guilherme Marinoni e Marcus Vinícius Rios Gonçalves, em entendimento que não se
concorda, afirma que a antecipação de tutela não pode ser concedida na sentença,
mas por meio de decisão em separado, não só porque o recurso de apelação será
recebido no efeito suspensivo, mas principalmente porque o recurso adequado para
a impugnação da antecipação é o agravo de instrumento.29
Outra questão interessante, e da anterior decorrente, é o local apropriado na
sentença para o juiz antecipar a tutela. Para Nagibe de Melo Jorge Neto, sendo a
tutela de urgência deferida no corpo da sentença, por uma questão de encadeamento
lógico das ideias e organização da sentença, o ilustre magistrado federal cearense

28
Cf. STJ. AgRg no REsp nº 456.633/MG, Rel. Min. Paulo Medina, 6ª Turma, DJ, 1º ago. 2006.
29
MARINONI. A antecipação da tutela na reforma processual, p. 59-61; GONÇALVES. Novo curso de direito pro-
cessual civil, v. 1, p. 300-301.

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Regime das medidas de urgência no futuro CPC

propõe que a antecipação de tutela deve ser analisada em tópico próprio, depois da
fundamentação. Isso porque, nesse momento, o julgador já superou todas as preli-
minares que poderiam obstaculizar o julgamento da demanda e já analisou todas as
questões fáticas e jurídicas trazidas pelas partes.30
Por último, saliente-se que o exame do pedido de tutela de urgência também
pode ser feito em grau de recurso. Esta medida se justifica, tendo em vista o próprio
objetivo desta tutela diferenciada: garantir a efetividade da prestação jurisdicional —
e esta vale em qualquer grau de jurisdição. Enquanto não solucionada definitivamente
a lide, o jurisdicionado pode pleitear a fruição ou a garantia de seu direito subjetivo,
não havendo qualquer razão para se obstaculizar esta tutela.
No Projeto de Lei do Senado nº 166/2010 (futuro CPC), os temas referentes ao
momento processual para o deferimento das tutelas de urgência e de evidência, bem
como o recurso adequado para impugnar a decisão que delas tratar, estão dispostos
nos arts. 271 a 273, verbis:

Art. 271. Na decisão que conceder ou negar a tutela de urgência e a


tutela de evidência, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões de
seu convencimento.
Parágrafo único. A decisão será impugnável por agravo de instrumento.
Art. 272. A tutela de urgência e a tutela de evidência serão requeridas ao
juiz da causa e, quando antecedentes, ao juízo competente para conhe-
cer do pedido principal.
Parágrafo único. Nas ações e nos recursos pendentes no tribunal, perante
este será a medida requerida.

Numa análise preliminar, algumas conclusões podem ser inferidas: (i) o recurso
cabível da decisão que conceder ou negar a tutela de urgência ou a tutela de evidên-
cia é o agravo de instrumento; (ii) toda decisão deve ser fundamentada, sobretudo a
que envolver as tutelas de urgência e de evidência; (iii) a competência do juízo para
apreciar tais medidas é o mesmo daquele que analisará o pedido principal, conforme
os procedimentos dos arts. 282 e 283 do Projeto.

3.5 Procedimento
No atual CPC vigente, os procedimentos são tão variados quantas são as medidas
de urgência previstas no Código. Assim, tem-se o tratamento da tutela antecipada no
art. 273; já o procedimento das cautelares está previsto nos arts. 796 a 889 do CPC.
No Projeto de Lei do Senado nº 166/2010 (futuro CPC), o procedimento das
medidas de urgência vem sendo tratado, de forma conjunta e simplificada, nos

30
JORGE NETO. Sentença cível: teoria e prática, p. 234.

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arts. 279 a 286. Nesse Capítulo II – Do procedimento das medidas de urgência,


verifica-se que estas podem ser requeridas em caráter antecedente ou incidental,
semelhante ao procedimento atual das cautelares, e sem grandes divergências pro-
cedimentais entre ambas.
Quando requerida antes do pedido principal, a petição inicial da medida de
urgência deve ser formulada com a indicação da lide, seu fundamento e a exposição
sumária do direito ameaçado e do receio de lesão (art. 279, PLS nº 166/2010). Dada
a própria urgência, inerente à medida requerida, deverá o citado contestar o pedido
no prazo de cinco dias (art. 280, PLS nº 166/2010).
Há também presunção de veracidade dos fatos alegados no pedido e não con-
testados pelo citado (art. 281, PLS). Curiosa, no entanto, é a previsão do §2º deste
dispositivo legal: “Concedida a medida em caráter liminar e não havendo impugna-
ção, após sua efetivação integral, o juiz extinguirá o processo, conservando a sua efi-
cácia”. Ora, como então restará resguardado o direito do postulante: através apenas
da medida de urgência não impugnada? A decisão que extingue o processo julga ou
não o mérito? São questões que a doutrina certamente deverá enfrentar caso o texto
do Projeto de Lei seja aprovado desta forma.
Caso seja impugnada a medida liminar (art. 282), verifica-se no texto uma mar-
gem grande de liberdade para o magistrado para conceder prazo para apresentar o
pedido principal: 30 dias ou outro que melhor lhe aprouver. Essa liberdade é perigosa,
pois pode trazer insegurança jurídica às partes (notadamente, aos advogados), que
ficarão sujeitas a prazos distintos em cada secretaria, unidade e organização judiciá-
ria, ao critério discricionário de cada magistrado.
A inovação legal do §1º do art. 282 do Projeto, no entanto, caracteriza-se pela
celeridade e simplificação processual tão requerida. O pedido principal deverá ser
apresentado nos mesmos autos do requerimento da medida de urgência. Destarte,
não haverá o pagamento de novas custas, nem a necessidade de nova citação, ape-
nas de intimação (§2º).
O art. 283 do PLS propugna a prevalência da medida de urgência na pendên-
cia do processo principal, reflexo da efetividade tão almejada pela reforma, senão
vejamos:

Art. 283. As medidas conservam a sua eficácia na pendência do processo


em que esteja veiculado o pedido principal, mas podem, a qualquer
tempo, ser revogadas ou modificadas, em decisão fundamentada, exceto
quando um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se
incontroverso, caso em que a solução será definitiva.
§1º Salvo decisão judicial em contrário, a medida de urgência conservará
a eficácia durante o período de suspensão do processo.
§2º Nas hipóteses previstas no art. 282, §§ 2º e 3º, as medidas de
urgência conservarão seus efeitos enquanto não revogadas por decisão
de mérito proferidas em ação ajuizada por qualquer das partes.

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Regime das medidas de urgência no futuro CPC

Art. 284. [...]


§2º A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a
estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a
revogar, proferida em ação ajuizada por uma das partes.

Infere-se, portanto, que a manutenção da eficácia da medida de urgência é obje­


tivo primordial do legislador reformista, podendo apenas ser modificada por decisão
judicial em contrário, seja no próprio processo ou por meio de outra ação ajuizada
por qualquer das partes. A estabilidade dos efeitos oriundos da medida de urgência é
providência que se deflui tanto da parte final do caput do art. 283 (solução definitiva
para a parte incontroversa) como do §2º do art. 284 (a decisão que concede a tutela
de urgência), sendo dispensada a propositura de ação ajuizada por uma das partes.
Acerca da estabilização dos efeitos da tutela de urgência, consoante Luiz
Marinoni e Daniel Mitidiero, “trata-se de tentativa de sumarizar formal e materialmente
o processo, privilegiando-se a cognição sumária como meio para prestação da tutela
dos direitos”.31 No entanto, um questionamento deve ser suscitado: como se dará
esta estabilidade da tutela de urgência sem a coisa julgada? A estabilização será ad
eternum caso não haja o ajuizamento de outra ação? São dúvidas que remanescem
sem explicação, que certamente serão submetidas à doutrina e à jurisprudência pá-
trias, caso seja assim aprovada a redação do futuro CPC.

3.6 Execução
Uma vez concedida uma tutela de urgência, seja antecipando os efeitos do pedi-
do ou mesmo resguardando uma situação fática/jurídica futura, a fim de evitar lesão
irreparável ou de difícil reparação à parte, como qualquer decisão judicial, espera-se
o seu natural cumprimento. No entanto, isso nem sempre ocorre, razão pela qual é
necessário garantir a efetividade da prestação desta tutela jurisdicional.
O não cumprimento espontâneo pela parte contra a qual fora proferida a decisão
— via de regra, de cunho condenatório — gera uma prerrogativa para o Estado-juiz de
invadir sua esfera patrimonial, o que se chama de execução forçada.32 A satisfação
da obrigação, nestes termos, é de certo modo uma sanção imposta ao devedor que
não atendeu o comando estatal.
Partindo da premissa da provisoriedade das tutelas de urgência,33 a execução
da decisão judicial que as concedeu, de acordo com Reis Friede, dá-se nos moldes
do art. 475-N, inciso I, e art. 475-O, do atual CPC, verbis:

31
MARINONI; MITIDIERO. O projeto do CPC: críticas e propostas, p. 111.
32
Marcelo Lima Guerra trata da polêmica distinção entre “processo de execução” e “execução forçada”, porém
conclui que a distinção tem valor meramente terminológico, não havendo grave prejuízo em se utilizar como
sinônimos (como faz o CPC brasileiro) (Execução forçada: controle de admissibilidade, p. 48).
33
Para José Roberto dos Santos Bedaque, a provisoriedade da cautelar está ligada ao seu escopo, enquanto que
a da tutela sumária guarda relação com a cognição [Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de
urgência (tentativa de sistematização), p. 271].

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Essas decisões condenatórias, mesmo que ainda sejam provisórias em


razão da possibilidade de revisão e mutação do julgado proferido em
cognição sumária e superficial (na maioria das vezes), são tidas como
título executivo judicial, conforme redação do art. 475-N, inciso I, do CPC,
que dispõe que são títulos executivos judiciais a sentença proferida no
processo civil que reconheça a existência da obrigação de fazer, não
fazer, entregar coisa ou pagar quantia.
A tutela de urgência, quando concedida, será executada provisoriamente
e por conta e risco do exequente, nos termos do art. 475-O, e para se
estabelecer o procedimento executório a ser utilizado, deve-se levar em
consideração a natureza da obrigação.34

Observa-se que, na atual sistemática processual, a execução das tutelas de


urgência — dada a sua provisoriedade — é realizada, analogicamente, à execução
provisória de uma sentença condenatória, considerando a natureza da obrigação.
No Projeto de Lei do Senado nº 166/2010 (futuro CPC), dispõe o art. 273
que: “A efetivação da medida observará, no que couber, o parâmetro operativo do
cumprimento da sentença definitivo ou provisório”. Verificando, ainda no mesmo PL,
os artigos referentes ao cumprimento provisório e definitivo das sentenças conde-
natórias (Livro II – Processo de conhecimento e cumprimento de sentença, Título II
– Do cumprimento da sentença, Capítulo II – Do cumprimento provisório da sentença
condenatória em quantia certa: arts. 506 a 508; Capítulo III – Do cumprimento defi-
nitivo da sentença condenatória em quantia certa: arts. 509 a 513; Capítulo IV – Do
cumprimento da obrigação de prestar alimentos: arts. 514 a 518; Capítulo V – Do
cumprimento da obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública: arts. 519 e
520; Capítulo VI – Da sentença condenatória de fazer, não fazer ou entregar coisa:
arts. 521 a 523), entendemos que, numa análise preliminar, a execução das tutelas
de urgência não sofreu grandes modificações procedimentais.

3.7  Fungibilidade das tutelas de urgência


Nem sempre é possível notar com clareza se a medida adequada é de natureza
cautelar (a ser requerida de acordo com o procedimento descrito nos arts. 796 e se-
guintes, CPC) ou antecipação dos efeitos da tutela (art. 273, CPC). Para afastar esse
inconveniente, estabelece o §7º do art. 273 que “se o autor, a título de antecipação
de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes
os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do pro-
cesso ajuizado”.35
No Projeto de Lei do Senado nº 166/2010 (futuro CPC), não há correspondente a
este dispositivo legal. Isso se justifica porque a fungibilidade entre a tutela antecipada

34
FRIEDE; KLIPPEL; ALBANI. A tutela de urgência no processo civil brasileiro, p. 54.
35
Cf. STJ. REsp nº 653.381/RJ, Rel. Min. Nancy Andrigui, 3ª Turma, Julg. 21.02.2006.

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e a tutela cautelar, sob a égide do atual CPC, não se fará mais necessária, tendo
em vista que, no Projeto, incorporaram-se na sistemática das tutelas de urgência as
espécies: cautelar e satisfativa.

4  Tutela de evidência
4.1 Conceito
A tutela de evidência consiste no direito evidenciado ao juízo por meio de pro-
vas, sendo desnecessário e custoso às partes esperar o deslinde da causa para ver
satisfeito um direito evidente desde o início da lide.36
São situações em que a tutela atua mais que o fumus boni juris: uma probabili-
dade de certeza do direito alegado, pois a evidência exclui a cognição sumária, já que
a própria demanda se apresenta completa, mantendo-se uma margem de erro comum
à essência do julgamento humano em um processo cuja cognição foi exauriente. Essa
forma de tutela pode até confundir-se com o mandado de segurança, em face do
direito líquido e certo, mas a tutela de evidência não se restringe apenas a atos de
autoridades, mas abrange também atos de particulares.

4.2  Hipóteses de cabimento


No código atualmente vigente, identifica-se a tutela de evidência no inciso II
do art. 273, fundada na verossimilhança da alegação e no propósito protelatório ou
na natureza abusiva da defesa do réu. A introdução da tutela antecipada da parte
incontroversa do pedido ou do pedido incontroverso (art. 273, §6º, CPC) é também
exemplo de tutela de evidência.
As hipóteses legais de cabimento da tutela de evidência, no Projeto de Lei do
Senado nº 166/2010 (futuro CPC), estão previstas no art. 278, a saber:

Art. 278. A tutela da evidência será concedida, independentemente da de-


monstração de risco de dano irreparável ou de difícil reparação, quando:
I - ficar caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propó-
sito protelatório do requerido;
II - um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se incon-
troverso, caso em que a solução será definitiva;
III - a inicial for instruída com prova documental irrefutável do direito ale-
gado pelo autor a que o réu não oponha prova inequívoca; ou
IV - a matéria for unicamente de direito e houver tese firmada em julga-
mento de recursos repetitivos, em incidente de resolução de demandas
repetitivas ou em súmula vinculante.

36
FUX. Tutela de segurança e tutela de evidência.

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O inciso I do artigo em comento traz a mesma redação do inciso II do art. 273


do codex em vigor. A diferença é que a previsão atualmente vigente é tida como uma
das hipóteses legais para a concessão de tutela antecipada. José Miguel Garcia
Medina não a considera como tutela de urgência, mas também a critica como tutela
de evidência da forma como previsto no Projeto de Lei do futuro CPC. Segundo ele,
não se trata de tutela de evidência, pois a “concessão da liminar, nesta hipótese,
deve depender de demonstração de aparência — ainda que veemente, mas não
necessariamente evidente — da existência do direito”.37
O inciso II do art. 278 do PLS nº 166/2010 é similar ao disposto no §6º do
art. 273 do atual CPC, com o acréscimo da expressão “caso em que a solução será
definitiva”. Com essa singela modificação, entende-se tratar de um julgamento ante-
cipado da lide, sendo uma atecnia chamá-la de tutela antecipada ou de evidência, daí
a razão da definitividade da prestação jurisdicional parcialmente concedida.38
O inciso III do art. 287 do Projeto cria uma situação legal bastante curiosa.
Se o autor ingressa com uma ação judicial, cujo pedido está instruído com prova
documental irrefutável do direito alegado e não opondo o réu uma prova inequívoca,
tal situação configura tutela de evidência? Inicialmente, questiona-se: o que é prova
documental irrefutável? Existe prova infalível, que não pode ser refutada? O conceito
é absolutamente aberto e cria precedente extremamente perigoso e possivelmente
violador do princípio constitucional garantidor do contraditório e da ampla defesa.
O inciso IV do artigo em comento do Projeto segue a tendência para o estrei-
tamento das demandas judiciais nos tribunais superiores. Nesta ótica, cria-se uma
hipótese legal de cabimento de tutela de evidência para os casos de teses firmadas
em julgamentos de recursos repetitivos, em incidente de resolução de demandas
repetitivas e em súmulas vinculantes. A novidade tem por escopo a efetividade e a
instrumentalidade processual, calcada na estabilidade da jurisprudência.

4.3  Semelhanças e diferenças entre as tutelas de urgência e


de evidência
As semelhanças entre as tutelas de urgência e de evidência estão relacionadas
à simplificação do processo e à efetividade. Outro denominador comum entre essas
tutelas é a especial atenção do Projeto a uma fundamentação mais delicada quanto
à matéria (art. 271). Tal exigência se justifica pelo fato de que, pelo Projeto, as deci-
sões referentes às tutelas de urgência e de evidência terão maior estabilidade do que

37
MEDINA. Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas comparativas ao projeto do novo CPC,
p. 261.
38
Nessa mesma linha de entendimento, estão Reis Friede, Rodrigo Klippel e Thiago Albani (A tutela de urgência
no processo civil brasileiro, p. 159-162) e José Miguel Garcia Medina (Código de Processo Civil comentado:
com remissões e notas comparativas ao projeto do novo CPC, p. 263).

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Regime das medidas de urgência no futuro CPC

têm no sistema atual, ainda que de coisa julgada não se trate (vide art. 283, parte
final, PLS nº 166/2010).
Além das suas hipóteses legais de cabimento, a principal diferença entre a
tutela de urgência e a tutela de evidência consiste no fato de que, em relação a esta
não há a necessidade de demonstrar o periculum in mora, tal como ocorre na tutela
de urgência, pois se trata de situações em que a evidência do direito já se encontra
configurada nos autos. Igualmente não se deve perquirir o fumus boni juris, visto
que a ausência de defesa consistente (CPC, art. 273, II) ou de controvérsia sobre o
pedido ou parte dele (CPC, art. 273, §6º), representa, mais que a plausibilidade do
direito — autorizada por cognição superficial ou sumária —, a própria verificação de
sua existência, fundada em cognição judicial exauriente.
Por fim, como última diferença, na tutela de urgência permite-se a contrapartida
de caução real ou fidejussória (art. 276, parágrafo único, PLS); já na tutela de evidência,
as hipóteses expressas para sua concessão independem de caução (art. 278, PLS).

Conclusões preliminares
O clamor pela reforma da legislação processual civil brasileira é patente em
nossa sociedade, tanto por parte dos jurisdicionados (leigos na matéria) como dos
juristas39 (incluídos os juízes, advogados, promotores, procuradores etc.). A discus-
são preliminar colocada é se a reforma deve vir de forma ampla e geral (ou seja, um
novo código) ou deve ser pontual e cirúrgica (via minirreformas, a exemplo do que vem
sendo feito desde a década de 1990).
Se a filosofia do PLS nº 166/2010 é a de evitar mudanças bruscas ou radicais,
então algumas modificações em pontos específicos do atual CPC poderiam surtir
o mesmo efeito. Contudo, isso não é o que se deseja pelos autores do Projeto em
comento. A despeito da manutenção da estrutura geral do código, pretende-se algo
maior: implantar uma nova filosofia processual, pautada na organicidade, simplicidade,
segurança jurídica e efetividade processual.
No que diz respeito às tutelas de urgência e de evidência, merece encômios o
Projeto, notadamente nos arts. 269 a 286. Infere-se que a intenção do legislador é a de
imprimir uma maior organicidade e melhor sistematização dos institutos da tutela caute-
lar, tutela antecipada, tutela sumária e tutela de urgência. Cumpre salientar que o poder
conferido ao magistrado para garantir a efetividade das tutelas jurisdicionais é providên-
cia que vem sendo ampliada há décadas, através de reformas legislativas pontuais.
O PLS nº 166/2010 consagra a ampliação dos poderes concedidos aos magis-
trados na concessão de medidas destinadas à tutela de urgência e de evidência, que

39
O uso da expressão “juristas”, neste caso, é feito em substituição a “operadores do direito”, à qual tenho
profundas críticas.

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passam a ser tratadas em conjunto. Resta concluir que o Projeto institucionalizará


um “poder geral de urgência” ao lado do já existente e atual “poder geral de cautela”.
No entanto, mal utilizado, este amplo feixe de poderes concedidos aos magistrados
pode transformar-se num verdadeiro pandemônio processual, gerando o contrário da
finalidade maior de uma lei: a insegurança jurídica.
Por fim, entende-se que, nada obstante a brilhante iniciativa do Projeto, é impres­
cindível uma reforma constitucional que garanta mais estrutura e mais recursos ao
Poder Judiciário, reforçando a garantia de autogoverno.40 Isso porque a vigência de
um novo CPC, por mais moderno e bem elaborado que seja, não servirá, por si só,
para garantir a celeridade e o bom funcionamento do Poder Judiciário. É preciso,
concomitantemente à reforma, uma urgente mudança cultural na mentalidade dos
juristas, de modo a evitar que se criem outros “jeitinhos” processuais tão peculiares
aos brasileiros.

Referências
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urgência (tentativa de sistematização). 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009.
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São Paulo, v. 58, n. 401, p. 33-54, mar. 2011.
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frente às garantias fundamentais. Belo Horizonte: Arraes, 2012.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2002. v. 1.
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FUX, Luiz. Tutela de segurança e tutela de evidência. São Paulo: Saraiva, 1996.
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2004.
v. 1.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição. São Paulo: C. Bastos; Instituto
Brasileiro de Direito Constitucional, 2000.
GUERRA, Marcelo Lima. Execução forçada: controle de admissibilidade. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995.

40
A preocupação com um aumento orçamentário estatal destinado ao Poder Judiciário é corroborada por
Alexandre Mota Brandão (A tutela de urgência e o novo Código de Processo Civil. Revista Jurídica, p. 2).

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Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

CARVALHO, Ivo César Barreto de. Regime das medidas de urgência no futuro CPC.
Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 85,
p. 199-219, jan./mar. 2014.

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O direito de privacidade do empregado
e o poder diretivo do empregador –
Aspectos processuais

Renata Silva Amaral


Advogada. Professora Universitária. Mestranda em Direito Político e Econômico pela Universi-
dade Mackenzie/SP. Especialista em Contratos Empresariais pela Fundação Getulio Vargas/
SP – FGV Law. Membro do Grupo de Pesquisa Estado e Economia (Mackenzie/SP).

Resumo: Este artigo teve como foco e objetivo analisar o direito de privacidade do empregado e o poder
diretivo do empregador. Através de uma pesquisa bibliográfica, priorizando autores relevantes para o pre-
sente debate, foi possível concluir que mesmo a lei reconhecendo o poder diretivo do empregador, esse
poder jamais poderá gerar dano moral ao empregado frente aos direitos de sua personalidade, direitos a
sua intimidade e proteção da vida privada; uma vez que existe, em grande parte das vezes, uma fragilidade
na figura do empregado frente ao poder diretivo do empregador, torna-se cada vez mais essencial cuidado,
boa-fé, respeito e legislações mais efetivas no tocante a essa relação empregado-empregador, principal-
mente referente aos limites do poder diretivo do empregado, devendo a lei proteger o lado mais frágil: o
empregado e sua vida privada.
Palavras-chave: Privacidade. Intimidade. Poder diretivo. Dano moral.

Sumário: 1 Introdução – 2 A intimidade e a privacidade do empregado como um direito da personalidade


– 3 O poder diretivo do empregador e os direitos de intimidade e personalidade do trabalhador – A colisão
que provoca dano moral – 4 Considerações finais – Referências

1 Introdução
Desde os primórdios, o homem cogita da defesa de seus valores mais íntimos e
pessoais. Entretanto, a complexidade cada vez mais acentuada das relações sociais,
com as profundas transformações por que passa a sociedade, com uma verdadeira
inversão de valores, onde há nítida prevalência do material sobre a moral, a defesa do
patrimônio moral assume maior importância, cabendo ao Direito um papel fundamental.
Neste contexto, este artigo tem como objetivo analisar o direito de privacidade
do empregado e o poder diretivo do empregador, verificando as possibilidades de
dados morais nesse cenário, gerando possíveis aspectos processuais.
A importância do tema é relevante tanto do ponto de vista jurídico quanto social,
em virtude do incremento das tensões entre capital e trabalho gerando a competitivi-
dade e alterações no cotidiano dos trabalhadores que buscam um maior reconheci-
mento profissional, igualdade e independência financeira.

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Renata Silva Amaral

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 deu-se o grande despertar


do dano moral, visto que sepultou qualquer dúvida que ainda pudesse remanescer
acerca de sua reparabilidade, sua garantia como direito fundamental, e no cenário
trabalhista, quando o poder diretivo do empregador se extrapola frente à fragilidade
do empregado e seus direitos de personalidade, esse tipo de dano pode ocorrer,
levando ambos — empregado e empregador — a serem obrigados a assumir e en-
frentar certos aspectos processuais na tentativa de responsabilização e reparação.

2  A intimidade e a privacidade do empregado como um direito


da personalidade
O reconhecimento da necessidade de tutela dos valores existenciais da pessoa
humana marca o direito do final do século XIX. A concepção patrimonialista é supe-
rada, e o Direito passa a proteger o homem e os valores que traz encerrados em
si; a ultima ratio do Direito é o homem, deixando o direito civil de ser marcado pela
propriedade, pelos contratos, pela família. O núcleo do Direito é a pessoa humana;1
assim, os institutos jurídicos só se justificam se existirem em função do homem. A
proteção do homem com relação às condutas lesivas de terceiros era encontrada
com maior consistência no âmbito do Direito Penal.2 Por outro lado, na esfera civil,
a tutela da pessoa humana restringia-se à ideia de reparação do dano, mediante a
responsabilização do agente. Note-se, neste sentido, o caráter patrimonial da respon-
sabilidade civil, em que a reparação, em regra, dá-se pelo ressarcimento pecuniário.
O fundamento não é a agressão em si, mas o prejuízo causado pela agressão.3
Essa carência normativa e as implicações morais, éticas e jurídicas trazidas
pelo desenvolvimento tecnológico e das comunicações fizeram ressurgir estudos
acerca da teoria dos direitos da personalidade, “que teriam como finalidade proteger
a pessoa no que ela tem de mais essencial: a sua personalidade”.4 Neste contexto
faz-se então necessário uma análise mais detalhada sobre a evolução histórica dos
direitos da personalidade e sobre as generalidades desse instituto.

1
CORTIANO JUNIOR. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: FACHIN. Repensando
fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 30.
2
A tipificação, no campo do Direito Penal, de diversas condutas que atentam contra os direitos da personalidade
tem garantido a efetiva tutela desses direitos na generalidade dos sistemas mundiais. O Código Penal pátrio
contempla vários delitos, contra: a vida, a honra, a liberdade individual, a segurança, a saúde, a intimidade, o
respeito aos mortos, os direitos autorais (arts. 121 a 127, 129 a 136, 138 a 140, 146, 151, 153, 154, 184,
185, 187, 189, 197, 198, 208, 210, 212, 213 a 216, 241 a 243).
3
CORTIANO JUNIOR. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: FACHIN. Repensando
fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 34.
4
Cortiano Junior fala na “crise ético-existencial” que toma conta da sociedade em face do desenvolvimento
tecnológico, notadamente no campo das manipulações genéticas (In: FACHIN. Repensando fundamentos do
direito civil brasileiro contemporâneo, p. 34-35).

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

No decorrer da história e da evolução da sociedade, o homem passou a criar


normas com vista a limitar o poder estatal e estabelecer garantias individuais. A partir
do momento em que a concepção individualista da sociedade (o indivíduo isolado como
fundamento da sociedade) é acolhida na Declaração dos Direitos dos Estados Unidos
da América e na Revolução Francesa, os ideais de liberdade e igualdade deixam de ser
especulativos e passam a constituir o ponto inicial de um sistema de direitos.5
Com a Revolução Industrial, o número de acidentes de trabalho aumentou, sig-
nificativamente, em razão da expansão do uso de máquinas. A proteção das vítimas
desses acidentes levou ao surgimento de novas teorias, e as preocupações de índole
social fizeram nascer o direito da personalidade.
Bittar6 atribui a construção da teoria dos direitos da personalidade principalmente
com relação ao cristianismo, em que se assentou a ideia da dignidade do homem,
e também com relação à Escola de Direito Natural, que firmou a noção de direitos
naturais ou inatos do homem, correspondentes à natureza humana, a ela unidos,
indissoluvelmente, e preexistentes ao reconhecimento do Estado; e, ainda, com rela-
ção aos filósofos e pensadores do Iluminismo, em que se passou a valorizar o ser,
o indivíduo, frente ao Estado. A partir de então, nota-se o reconhecimento de certos
direitos do homem e do cidadão frente ao Poder Público, inicialmente por meio de
“Declarações de Direitos” e constitucionalização de alguns como liberdades públicas.
Com a disseminação do pensamento cristão, a noção de liberdade, ligada à
ideia de direito subjetivo na Antiguidade, passou a estar relacionada com a noção de
livre-arbítrio. As ideias iluministas passaram a identificar o direito natural não mais
como uma regra de conduta, mas como um modelo para as instituições jurídicas
positivas. Assim, a doutrina dos direitos da personalidade surgiu da reação contra o
domínio absolutista do Estado sobre o indivíduo. A consagração do individualismo, ou
seja, da preocupação com o indivíduo e o cidadão frente ao Estado, deu-se no fim do
século XVIII, com as Revoluções dos Estados Unidos da América (1776) e Francesa
(1789). A repercussão internacional da Revolução Francesa foi tão significativa que
culminou no reconhecimento desses direitos no plano internacional e constitucional
de muitas nações.
Em que pese esta dedicação da doutrina alemã ao estudo dos direitos da per-
sonalidade, o tratamento da matéria dava-se, ainda, de forma bastante fragmentada.
Estudos significativos sobre os direitos da personalidade surgiram apenas a partir da
segunda metade do século XIX, merecendo destaque os textos de autores italianos,
em face de sua legislação em estágio bastante avançado em relação às demais

5
CORTIANO JUNIOR. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: FACHIN. Repensando
fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo.
6
BITTAR. Os direitos da personalidade e o projeto de Código Civil brasileiro. Revista de Informação Legislativa,
p. 117.

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nações. A partir de então, os direitos da personalidade vêm sendo objeto de estudos


pelos doutrinadores e vêm, gradativamente, sendo adotados pelos ordenamentos
jurídicos dos Estados de Direito.
Ao dar início aos conceitos e análises sobre os direitos da personalidade, algumas
considerações se fazem necessárias sobre o conceito de personalidade sem aprofun-
dar-se, no entanto em conceituações. O termo “personalidade” (do latim personalitate)
é definido como: “Qualidade pessoal. Caráter essencial e exclusivo de uma pessoa”.7
No caso, o direito à personalidade entra em oposição à diferenciação relativa à
generalidade, expressando singularidade, independência e autonomia total do indiví-
duo. “Opõe-se à acepção de generalidade e expressa a singularidade, a independên-
cia, a vida autônoma do ente”.8 Entende-se que ter personalidade e defendê-la como
um direito faz parte do homem social assim como o desejo de defender seus direitos
e cumprir suas obrigações. “No sentido jurídico, é a aptidão que tem todo homem,
por força da lei, de exercer direitos e contrair obrigações”.9
Ao debater sobre personalidade em seu sentido jurídico, Capelo de Sousa10
destaca que, mesmo para efeitos jurídicos, não é unívoco o conceito de persona-
lidade, e questiona: “Que é, pois, personalidade para o direito? Que elementos da
individualidade física e moral do homem são protegidos pelo direito? Que expressões
da personalidade de cada homem são juridicamente tuteladas? [...]”.
Muitas são as respostas a serem apresentadas, de modo que definir perso-
nalidade como a aptidão para ser sujeito de direito, ou seja, sujeito de atribuição
de direitos e obrigações (art. 1º do Código Civil brasileiro) é bastante limitado. Em
se tratando de direitos da personalidade, deve-se considerar a personalidade como
objeto de direito, como um bem jurídico. O bem jurídico, por sua vez, configura um
valor cultural; tem cunho axiológico. Trata-se de um interesse do homem e, como
tal, deve ser garantido pelo Direito. Neste sentido, o ordenamento jurídico não cria o
bem jurídico, ele é um interesse humano vital erigido à condição de bem jurídico pela
proteção do Direito. Para sintetizar o significado de bem jurídico, valiosos são os ensi-
namentos de Prado,11 para quem o bem jurídico é uma realidade válida em si mesma,
cujo conteúdo axiológico independe do juízo valorativo do legislador. Destaca-se que
a norma não cria o bem jurídico, apenas a encontra, pois o fim do Direito é proteger
os interesses do homem, e estes preexistem à intervenção normativa.
A personalidade é um bem, sendo um dos mais importantes entre os bens jurí-
dicos, pois dele depende o pleno gozo e o exercício dos outros bens jurídicos. Assim,

7
DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA, v. 3, p. 1321.
8
SILVA. Dicionário jurídico, v. 3, p. 1154.
9
GUIMARÃES. Dicionário técnico jurídico, p. 437.
10
SOUSA. O direito geral da personalidade, p. 14.
11
PRADO. Bem jurídico-penal e Constituição, p. 32.

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

na condição de bem jurídico, a personalidade é tutelada juridicamente pelo Estado


democrático de Direito, por intermédio dos denominados “direitos da personalidade”
— que ora se passa a definir.

2.1  O princípio da dignidade humana como fundamento geral


do direito da personalidade
A preocupação com a dignidade da pessoa humana tem encontrado ressonân-
cia numa generalizada consagração normativa, geralmente, no próprio texto constitu-
cional, assumindo o status de norma estruturante de todo o ordenamento jurídico. A
Constituição portuguesa, por exemplo, considerou a dignidade da pessoa humana um
princípio fundamental (art. 1º); e a Grundgesetz alemã proclama que “A dignidade do
homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e a protegê-la”
(art. 1º, I).
Da mesma forma, na ordem social busca a realização da sonhada justiça
social (art. 193), na educação e no desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o
exercício da cidadania (art. 205). Sendo a dignidade da pessoa humana um princípio
fundamental da República Federativa do Brasil,12 deve haver uma inversão do locus
de preocupações, também no direito civil,13 como consequência necessária diante da
supremacia da Constituição no ordenamento jurídico nacional. Pois os princípios e
valores constitucionais devem se estender a todas as normas do ordenamento jurí-
dico, sob pena de se admitir uma concepção fragmentada, incompatível com a ideia
de um sistema unitário. Nesta acepção, a dignidade da pessoa humana não constitui
um direito, mas a base para a fundamentação de todos os direitos referentes à per-
sonalidade, um alicerce da Constituição. Conclui-se, pois, que

a dignidade é muito mais que um direito e que todos os direitos consti-


tucionais devem ser interpretados e medidos de acordo com os valores
implícitos no fundamento da dignidade [...] todo direito deriva e depende
de sua concordância com o fundamento da dignidade.14

12
Além de colocar a dignidade humana como um princípio fundamental da República — coexistindo, lado a lado,
com a fundamentalidade igualmente reconhecida na soberania, na cidadania, nos valores sociais do trabalho e da
livre-iniciativa —, a Constituição pátria consagrou a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais
mantidas pelo Estado (art. 4º, II) e dela igualmente tratou no Título VIII – Da Ordem Social, estabelecendo que
o planejamento familiar deveria fundar-se nos “princípios da dignidade humana e da paternidade responsável”
(art. 226, §7º) e que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao idoso (art. 230, caput) e, com
absoluta prioridade, à criança e ao adolescente (art. 227, caput), dentre outro direitos, o respeito à dignidade
(GARCIA. Dignidade da pessoa humana: referenciais metodológicos e regime jurídico. Jus Navigandi).
13
“A Constituição Federal de 1988 impôs ao Direito Civil o abandono da postura patrimonialista herdada do século
XIX, em especial do Código Napoleônico, migrando para uma concepção em que se privilegia o desenvolvimento
humano e a dignidade da pessoa concretamente considerada, em suas relações interpessoais, visando à sua
emancipação” (FACHIN; RUZYK. Um projeto de Código Civil na contramão da Constituição. Revista Trimestral
de Direito Civil).
14
RAMOS. Estudo comparado do direito da personalidade no Brasil e na Alemanha. Revista dos Tribunais, p. 19-20.

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Como tudo que é indispensável à própria existência, a legislação proíbe que a


dignidade seja renunciada15 (art. 11 do Código Civil brasileiro), representa direitos
que não podem sofrer limitações de forma voluntária, pois inerentes à condição de
dignidade do homem. Assim, a dignidade humana funciona como uma cláusula geral
de tutela da personalidade. O respeito à dignidade humana constitui um impera-
tivo constitucional que só se concretiza com a garantia dos direitos fundamentais e
invioláveis previstos no art. 5º da Constituição Federal. O conjunto desses direitos
inerentes à dignidade humana traduz o conceito de dignidade.

2.2  O direito a intimidade como direito da personalidade


Na Constituição estão previstos o direito de intimidade e o de privacidade, ora
bem, possuem os dois quase o mesmo significado, constituem um único instituto,
repetidos por meio de expressões diferentes no texto constitucional. Entretanto, no
território da privacidade é que se desenvolvem, por exemplo, as relações conjugais,
as relações entre pais e filho etc., que são peculiarizados exatamente pela interper-
sonalidade. Assim, havendo mais de uma pessoa envolvida, existe, por evidente,
espaço para violação de direitos, e é nessa porção dos relacionamentos sociais — a
chamada tirania da vida privada — que ganha importância o conceito de intimidade.16
Voltando-se à ideia da privacidade mais generalizada, pode-se dizer que privado
é aquilo particular que não é dado ao conhecimento público, enquanto que íntimo é
aquilo que faz parte da pessoa. Segundo René Ariel Dotti, citado por José Afonso da
Silva,17 a intimidade se caracteriza como a esfera secreta da vida do indivíduo, na
qual este tem o poder legal de evitar os demais. Integra a esfera íntima da pessoa,
porque é repositório de segredos e particularidades do foro moral e íntimo do indiví-
duo. Portanto, a intimidade denotaria o nível de espaço fechado da própria pessoa
(convicções filosóficas e religiosas), enquanto que a privacidade diria respeito aos
atos da vida pessoal não secreta, que devem ser subtraídos da curiosidade pública.18

2.3  Os direitos da personalidade do empregado


Em termos de contrato de trabalho, como visto, os sujeitos são o empregado
e o empregador, ambos em seus direitos e deveres. Ocorre que o contrato aqui tra-
tado não pode ser visto como um contrato empresarial qualquer, tendo em vista as
características peculiares que encerra, especialmente porque não se pode separar a
pessoa do trabalhador de suas atividades.

15
GUHUR. Programas de televisão e pessoas com necessidades especiais: uma reflexão acerca do grotesco e da
tutela civil da dignidade humana, f. 134.
16
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano, op. cit., p. 116.
17
DOTTI, René Ariel apud SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 210.
18
TEIXEIRA; MENDES apud LISBOA. Inviolabilidade de correspondência na internet. Revista Direito Eletrônico, p. 471.

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

Gediel19 relata que a importância do trabalho para a economia de mercado,


bem como um acentuado caráter patrimonialista nas relações empregatícias, acabou
por dificultar a aplicação dos direitos de personalidade em tal âmbito. Todavia, com
os movimentos humanistas e de repersonalização dos institutos do direito privado,
esse cenário está mudando, especialmente por força da Constituição Federal, na qual
constam como fundamentos os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa.
A cultura juslaboralista quanto aos direitos de personalidade tem se mostrado
sensível, de forma a atenuar as contradições da sociedade de mercado, marcada
pelo conflito de valores e de direitos. Nem poderia ser diferente quanto à assimilação
da repersonalização e dos direitos de personalidade na esfera do contrato de traba-
lho. Não se olvide que, hodiernamente, os direitos e deveres advindos do contrato
de trabalho não mais podem ser encarados apenas como prestação — empregado
labora — e contraprestação — empregador paga salário.
É fato que a ligação entre preceitos celetistas, civis e constitucionais permite
a aplicação, no contrato de trabalho, de institutos como a função social do contrato
e a boa-fé objetiva. Nem se questione a aplicação da dignidade da pessoa humana
e, portanto, dos direitos de personalidade, também porque o trabalho é fator de
dignidade do homem. Além disso, o empregado é necessariamente pessoa física, o
que também serve de argumento para a aplicação dos direitos de personalidade nas
relações de trabalho.

3  O poder diretivo do empregador e os direitos de intimidade


e personalidade do trabalhador – A colisão que provoca
dano moral
3.1  O poder diretivo e a subordinação
A subordinação a que um empregado está adstrito ao seu empregador possui
um grande vínculo com o poder diretivo deste, quando da ampla administração nego-
cial. Apesar de não serem sinônimas, tais expressões harmonizam-se sobremaneira.
Tal raciocínio se explica por meio de uma frase de Nascimento,20 “na relação de
emprego, a subordinação é um e o poder de direção o outro lado da moeda, de
modo que, sendo o empregado um trabalhador subordinado, está sujeito ao poder
de direção do empregador”. Ainda assim resta vago o conceito mais concreto sobre
o entendimento quanto ao poder diretivo do empregador. Os diversos autores da
área do direito trabalhista esmeram-se nas conceituações, que, embora não sejam

19
GEDIEL. A irrenunciabilidade a direitos da personalidade pelo trabalhador. In: SARLET (Org.). Constituição, direitos
fundamentais e direito privado.
20
NASCIMENTO. Iniciação ao direito do trabalho, p. 203.

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idênticas, via de regra, possuem uma univocidade. Mesmo frente à subordinação é


essencial citar que:

não se trataria de substituir o critério da subordinação pela da integração,


em empresa alheia — como, por vezes, se vem defendendo, no direito
comparado. Como já ressaltado, a subordinação está no âmago do Direito
do Trabalho, constituindo a própria circunstância fática que justifica a dis-
ciplina, em sua essência — no caso, a de proteção deste hipossuficiente,
dando contornos mais humanos a esta relação de subordinação.21

A aparente diversidade conceitual possui uma explicação, visto que o conceito


de poder diretivo não se extrai literalmente do texto legal, mas sim a partir de uma
interpretação do art. 2º da CLT.22 Como se percebe, o conceito de poder diretivo não
emana com clareza e vigor da leitura do citado artigo celetista. Por essa razão deve-se
complementar a leitura do art. 2º da CLT para uma correta conceituação quanto ao
poder diretivo do empregador. Fundamenta-se também legalmente tal poder através
de outros artigos da CLT, reconhecendo, em certa proporção, o jus variandi do empre-
gador no cenário local do trabalho.23
Retornando quanto à conceituação, como se pode perceber, ao final do art. 2º
da CLT, a lei menciona que cabe à empresa, entre outras obrigações, dirigir a presta-
ção pessoal do serviço. Sobre essa expressão então se debruçam os autores a fim
de buscar a melhor conceituação de tal fato.
Neste momento, passa-se à citação conceitual de alguns autores com intuito
de reunir um largo espectro de interpretações, uma vez que, como já afirmado, a con-
ceituação quanto ao poder diretivo não é literal. Para Martins,24 “o poder de direção
é a forma como o empregador define como serão desenvolvidas as atividades do
empregado decorrentes do contrato de trabalho”.
Delgado,25 aprofundando o tema, esclareceu que:

Poder empregatício é o conjunto de prerrogativas asseguradas pela or-


dem jurídica e tendencialmente concentradas na figura do empregador,
para exercício no contexto da relação de emprego. Pode ser conceituado,
ainda, como o conjunto de prerrogativas com respeito a direção, regula-
mentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa
e correspondente prestação de serviços.

21
RODRIGUES. Novo paradigma de subordinação na relação de emprego. Revista do Tribunal Regional do Trabalho
3ª Região, p. 64.
22
Art. 2º Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade eco-
nômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço (BRASIL, 2007, p. 39).
23
Parágrafo único do art. 468, CLT.
24
MARTINS. Direito do trabalho, p. 226.
25
DELGADO. Curso de direito do trabalho, p. 628.

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

Tal fato não é novo, o poder é algo inerente a todas as organizações sociais desde
que o homem comportou-se com ser gregário. O poder sempre esteve sustentado pela
noção de hierarquia, e, claro, neste entendimento, o empregador que possui o capital,
os meios de produção e a organização certamente acaba por ocupar, dentro da pirâmide
social, uma hierarquia superior em relação ao obreiro, exercendo assim, aquele sobre
este, o poder em todo o seu entendimento lato.
Não obstante ser o poder levantado como elo entre todos os conceitos apre-
sentados, não se pode fugir à lembrança, e ao entendimento, de que “não se trata
de noção social de empregador, mas de noção jurídica, que se extrai de um decisivo
elemento que é a direção”.26
De fato, a função do poder levantado pelos autores quanto ao dirigismo apontado
pela CLT diz respeito à capacidade empresarial de harmonizar responsavelmente a
atividade econômica como um todo, buscando minorar riscos e majorar resultados.
Dessa forma, traz benefícios claros no sentido da preservação dos postos de trabalho
ocupados pelos obreiros. Mais uma vez, Vilhena,27 ao dispor sobre a questão, reforça
o fato quanto ao que se destina o poder:

Não há poderes de homens sobre homens. Há relações jurídicas, intercâm-


bio jurídico. O que se sobrepões às pessoas, seja pelo contrato, seja pela
instituição, é a lei. Em círculo permanente na órbita do Direito, empregado
e empregador necessariamente devem ser vistos como esferas jurídicas
que se intercambiam dentro de um princípio de tutela coerentemente dis-
tribuída. É indispensável que se entenda, na análise do poder diretivo, que
se o poder é jurídico, ele se exercita entre esfera jurídicas, a do empregador
de um lado, e a de cada um dos seus empregados, os trabalhadores, do
outro. Logo, afasta-se a idéia de poder hierárquico em seu conteúdo perso-
nalístico, discricionário, que se exerça incondicionadamente.

Mediante a conceituação de poder diretivo do empregador, com a sua conse-


quente localização legal, importa ressaltar, por fim, que uma vez sendo tal poder
originário da ordem jurídica, esta prestará a função de balizadora, de tutela, para que
o empregador não dirija o ser humano, mas sim a sua atividade laboral. A doutrina
de forma geral levanta quatro concepções como sendo a base para se explicar a
natureza jurídica do poder diretivo do empregador. Algumas dessas concepções se
colocam de forma mais tradicional, conferindo todo ou grande parte do poder diretivo
às mãos do empregador, entretanto, uma dessas concepções busca um equilíbrio
maior entre patrões e empregados. Sem prejuízos, todas as vertentes serão agora
apresentadas, classificadas e analisadas.

26
VILHENA. Relação de emprego: estrutura legal e supostos, p. 209.
27
Relação de emprego: estrutura legal e supostos, p. 213.

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Renata Silva Amaral

a) Direito potestativo: tal concepção propõe uma verdadeira concentração de


poder unilateralmente a favor do empregador, este exerce seu poder diretivo sem
ameaças de interferência, não existem objeções que alcancem suas decisões.
Fazendo um paralelo em relação ao direito canônico, poder-se-ia compará-lo aos
dogmas papais. Para Delgado,

A noção de direito potestativo consuma a realização, ao máximo, da


soberania da vontade particular no universo do contexto social. Nesse
sentido, a concepção potestaiva corresponde ao elogio do individualismo
possessivo inerente ao mercado capitalista, e que foi a sua marca ideo-
lógica mais forte no período do liberalismo clássico.28

De fato, explicar o poder diretivo do empregador atualmente à luz do direito


potestativo opõe-se ao sentido das conquistas sociais adquiridas pelo povo e traba-
lhadores brasileiros a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. A ideia
central de democracia, igualdade e exclusão de tratamentos desumanos ditada pela
atual Carta Magna não cabe nas pretensões alcançadas pelo direito potestativo.
Santos29 é bastante enfático quando defende que não se pode colocar em um
segundo plano as conquistas constitucionais de 1988, especificamente quanto aos
direitos fundamentais do art. 5º. Entende o mesmo autor que:

[...] essas normas delimitam o poder diretivo do empregador, mais especifi-


camente no que respeita ao exercício de fiscalização, de controle e disciplina
no exercício de seu poder empregatício.

Assim, tal concepção hoje perdeu inteiramente a relevância.


b) Direito subjetivo:

é a prerrogativa conferida pela ordem jurídica ao titular no sentido de agir


para a satisfação de interesse próprio em estrita conformidade com a
norma ou cláusula contratual por esta protegida.30

Mais uma vez nota-se a total dissonância com a ideia democrática da atualidade.
Por essa razão tal concepção igualmente perdeu seu relevo para os dias atuais.
c) Status jurídico: esta terceira vertente, que tenta explicar a natureza jurídica
do poder diretivo do empregador, também nega ou não caminha em uma direção de
maior democratização em relação à justificação do poder dado ao empregador.

28
DELGADO. Curso de direito do trabalho, p. 650.
29
SANTOS. Limites do poder disciplinar do empregador: a tese do poder disciplinar compartilhado. Revista IOB
Trabalhista e Previdenciária, p. 54.
30
DELGADO. Curso de direito do trabalho, p. 650.

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

Pelo contrário, da mesma forma que as concepções anteriores, traz consigo


ainda uma roupagem de autoritarismo. Não por coincidência tal corrente ter tido seu
advento no início do século XX, por meio da doutrina justrabalhista germânica. A
presente concepção constrói-se a partir de duas perspectivas teóricas: ou considera
a natureza hierárquica inerente à estrutura diferenciada da empresa ou a considera
decorrência necessária do contrato empregatício. De modo geral, elaborou-se influen-
ciada pelo caldo de cultura autoritária e elitista que teve larga importância na primeira
metade do século XX no mundo ocidental, reunindo argumentos de variada origem,
quer institucionalistas, quer organicistas, quer corporativistas, assim pelo fato dessa
concepção apresentar claros traços de arbitrariedade, também esta possui sua vali-
dade em descrédito.
d) Direito-função: a doutrina reconhece nesta concepção um verdadeiro avanço
em relação à democratização ante as relações bilaterais entre empregador e obreiro.
Claramente é exposto que não se trata de uma obra acabada, uma tese pronta capaz
de cumprir com toda a gama de exigências que as complexas relações humanas
demandam, principalmente em se tratando de um desequilíbrio tão flagrante entre as
partes, qual seja, no ramo do direito trabalhista.
Nesta vertente, os estudos apontam para um importante crescimento de partici-
pação dos empregados nas decisões empresariais, limitando-se em parte o até então
amplo espectro do poder do empregador no que tange à direção.31
No entender de Delgado,32 o unilateralismo arbitrário das anteriores concepções
cede para um modelo que mesmo tendo também um traço unilateral ainda impregnado
no ranço do poder dirigismo, este se mostra um tanto atenuado, visto que o empre-
gador começa a reconhecer a necessidade de partilhar os interesses empresariais
com os empregados.

[...] constitui o poder atribuído ao titular para agir em tutela de interesse


alheio, e não de restrito interesse próprio. A potestade inerente ao direito
função não se esgotaria na prerrogativa favorável ao titular, importando
também na existência correlata de um dever a ele atribuído.33

Não resta dúvida que, perante um olhar mais atento, mesmo o direito-função
possui certa dificuldade de individualizar-se ante os três primeiros postulados; para
tanto é preciso lançar mão de Magano apud Delgado,34 explicando que “a diferença
reside apenas na orientação do aludido poder, que concebido como direito-função,
deve visar a satisfação do interesse não do empresário, mas da empresa”. Por essa

31
NASCIMENTO. Iniciação ao direito do trabalho.
32
DELGADO. Curso de direito do trabalho, 2006.
33
DELGADO. Curso de direito do trabalho, p. 653.
34
DELGADO. Curso de direito do trabalho, p. 655.

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sutil, mas importante diferença, tal concepção mais moderna é a que tem alcançado
maior aceitação como justificadora da natureza jurídica do poder diretivo do emprega-
dor. Se por um lado o art. 2º celetista cria (não só ele) o fundamento legal do poder
diretivo, no outro extremo, mas não de forma antagônica, existe também a fundamen-
tação doutrinária que irá procurar prestar as devidas sustentações teóricas com o fito
de elucidar de onde emerge o poder diretivo do empregador.35 De uma forma geral, os
autores apresentam como sendo três os elementos fundantes básicos justificadores
do poderio patronal. Alguns poucos ainda apresentam um quarto ou quinto elemen-
tos, pouco trabalhados e explorados, é bem verdade. Todas as cinco teorias serão
explanadas na sequência.
a) Teoria da propriedade privada: de forma bastante direta, esta vertente remete-se
à teoria da propriedade privada como justificadora para o poder de direção do emprega-
dor. Nascimento36 aduz desta hipótese que “o empregador manda porque é o dono”.
Certamente tal justificativa, a da propriedade privada, é mais antiga do que a própria
ideia do Direito do Trabalho, remontando ainda os tempos feudais, fato que não coa-
duna com a atualidade.
b) Teoria do institucionalismo: ao definir tal fundamento, Nascimento37 posiciona-se:

[...] por conceber a empresa como uma instituição, defende o direito do


empregador de exercer a autoridade e o Governo, condições indispensá-
veis e características de todo grupo social institucionalizado.

A presente teoria carrega em seu bojo características que limitam seu devido
aproveitamento no mundo contemporâneo, especificamente no direito trabalhista.
O fato de haver sido concebida na Europa Ocidental na primeira metade do século
passado trouxe necessariamente em seu ventre ideias políticas autoritárias, como o
fascismo. No entender de Furtado,38 é a observância da ordem pública, em proteção
aos interesses sociais e manutenção das instituições privadas, que possui uma fun-
ção social, que faz protuberar para uns a missão de comandar e punir e para outros o
dever de se curvar a tal hierarquia. Segundo os autores apreciados, o fundamento ora
versado também não justifica com exatidão o poder patronal, quando muito se poderia
dizer que “trata-se, na verdade, preferentemente de concepção justificadora de certo
tipo de situação de poder [...] do que uma concepção explicativa dessa situação”.39
c) Teoria contratualista: tal teoria faz coro com o ramo civilista do direito, pois
a partir da autonomia da vontade e capacidade das partes, ambas celebram entre
si o princípio da exigibilidade contratual. Tal premissa traduz-se pelo brocardo latino

35
GUNTHER; ZORNIG. O vínculo empregatício e o requisito da subordinação. Bonijuris.
36
NASCIMENTO. Iniciação ao direito do trabalho, p. 203.
37
NASCIMENTO. Iniciação ao direito do trabalho, 204.
38
FURTADO. Alteração do contrato de trabalho.
39
DELGADO. Curso de direito do trabalho, p. 641.

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

do pacta sunt servanda, sendo então que, a partir da celebração do pactuado, surge
dessa forma o poder diretivo do empregador. Tal tese, agora voltada especificamente
à área justrabalhista, é defendida por grande parte da doutrina especializada, como
aquela prevalecente nos dias atuais como justificadora do poder diretivo do emprega-
dor. Explanando sobre a tese, Nascimento40 explica que:

[...] o poder de direção encontra suporte no contrato de trabalho, ajuste


de vontades no qual o empregado espontaneamente se põe em posição
de subordinação, aceitando a direção da sua atividade pelo empregador.

Quanto ao significado de subordinação, para Furtado,41 é jurídico, visto advir de um


contrato que, segundo a melhor interpretação jurídica, significa ser lei entre as partes.
Seguindo a mesma corrente de entendimento, Delgado42 discorre sobre o tema,
destacando que:

As concepções que atribuem a existência e reprodução jurídicas do poder


infra-empresarial ao contrato empregatício consistem naquelas que melhor
traduzem o fundamento jurídico deste fenômeno. Trata-se das concepções
que melhor revelam o título e substrato jurídicos do poder empregatício
e melhor explicam a razão de ser jurídica desse fenômeno. É o contrato,
de fato, o elemento que melhor confere suporte à origem e reprodução
jurídicas de tal fenômeno de poder. Efetivamente o pacto de vontades [...],
que dá origem à relação de emprego, importa em um conjunto complexo
de direitos e deveres interagentes de ambas as partes, em que se integra
o poder empresarial interno.

Como mencionado no preâmbulo sobre os fundamentos doutrinários, as três


teses apresentadas até o momento são as que maior destaque possuem na doutrina
especializada trabalhista, sendo que, como assegurado quando mencionada a tese
contratualista, afirmou-se ser esta a que consegue congregar a hegemonia em torno
de sua aceitação.
No entanto, ainda restam algumas teses que não são apontadas em todos os
escritos dos estudiosos, mas que se reputam quanto à possibilidade de fundamenta-
ção tratada neste tópico, mas que não serão largamente exploradas por duas razões:
(i) não serem unanimidade entre os escritores; (ii) pelo fato de a teoria contratualista,
já abordada, ser aceita como a tese preponderante capaz de explicar o poder diretivo
do empregador. Porém, em se tratando o presente de um trabalho científico, não há
como fugir à menção sumária aos demais fundamentos doutrinários percebidos.

40
NASCIMENTO. Iniciação ao direito do trabalho, p. 203.
41
FURTADO. Alteração do contrato de trabalho.
42
FURTADO. Alteração do contrato de trabalho, p. 643.

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d) Teoria do interesse: para a presente hipótese,

O poder de direção resulta do interesse do empregador em organizar,


controlar e disciplinar o trabalho que remunera, destinado aos fins pro-
postos pelo seu empreendimento.43

e) Teoria da autonomia: trata e explica assim o autor quanto à presente tese:

Essa última vertente de explicação, na verdade, não surge como neces-


sariamente contraposta ou alternativa às vertentes anteriores, em espe-
cial à posição contratualista. A noção de autonomia é compatível por
inteiro com o contratualismo. Na verdade, o contratualismo que mais
importa ao direito do trabalho é aquele derivado da autonomia privada
coletiva, resultante da ação grupal organizada pelos trabalhadores — do
ser coletivo obreiro em suma — e do ser coletivo empresarial.44

Após serem apresentadas as cinco teorias, nota-se a convergência dos autores


para a teoria contratualista, como sendo esta capaz de fundamentar, do ponto de
vista doutrinário, a emergência do poder diretivo do empregador.

3.2  Colisão entre poder diretivo e os direitos da personalidade


do empregado
Como pessoa, o trabalhador deve ser considerado em todos os seus atributos.
Cumpre assinalar que a CLT brasileira, seguindo caminho semelhante ao do Código
Civil brasileiro de 1916, mostra-se lacônica quanto ao tema dos direitos da persona-
lidade, identificando-se como hipóteses vagas a ofensa à honra e à boa fama como
fundamentos para rescisão do contrato de trabalho por justa causa, consoante dis-
posto nos artigos 482, alínea “j”, e 483, alínea “e”. Outra hipótese é a proibição de
revistas íntimas, prevista no artigo 373-A, IV. Limitação legislativa que traduz o cunho
patrimonialista das disposições celetárias.
Os direitos de personalidade do empregado, com efeito, podem ser eleitos
como parâmetros para aferição, na prática, até onde o exercício do poder diretivo é
legítimo. Isso porque “[q]uando os direitos do empregador e do empregado entram
em choque, faz-se oportuno traçar até onde o primeiro detém poder de mando sobre
o segundo, em face dos direitos constitucionalmente garantidos”.45
Se, por um lado, as relações empregatícias modernas são dinâmicas e pautadas
nos fundamentos constitucionais da dignidade da pessoa humana e do solidarismo,

43
NASCIMENTO. Iniciação ao direito do trabalho, p. 204.
44
DELGADO. Curso de direito do trabalho, p. 645.
45
SIMÕES. Internet: direito do empregado x interesse do empregador. Síntese Trabalhista – Administrativa e
Previdenciária, p. 151.

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

bem como porque contratuais encontram na legislação civil conceitos que a elas se
aplicam, por outro lado têm assumido características que encerram a abusividade de
direito nas condutas, nas diretrizes traçadas pelo empregador, mitigando os direitos
de personalidade dos empregados. Referindo-se a disposições constitucionais quanto
a direitos de personalidade, Santos assim se manifesta: “Todas essas normas delimi-
tam o poder diretivo do empregador, mais especificamente no que respeita ao exercí-
cio de fiscalização, de controle e disciplina no exercício de seu poder empregatício”.46
Assim, de um lado tem-se que ao empregador é lícito e essencialmente necessá-
rio o poder de comando, de forma que possa concretizar a organização da empresa, e
esta atinja os fins a que se propõe. Ocorre que, diante de aspectos, valores constitu-
cionais e mesmo civis, esse poder diretivo pode ser mitigado e mesmo limitado, as-
sim como a subordinação do empregado não se configura como total e incondicional,
porque as relações empregatícias devem ser pautadas, sobretudo, por fundamentos
e princípios como dignidade da pessoa humana, solidarismo, função social, boa-fé
objetiva. O poder diretivo do empregador deverá, portanto, ser analisado sob a ótica
do abuso do direito, de forma que se verifique se sua atuação constitui-se como
abusiva ou não ante os direitos de personalidade dos empregados.
Tendo em mente o que se disse sobre a vinculação direta dos particulares aos
direitos fundamentais, na realidade prática ocorrerão casos de dúvida em relação
a qual dos particulares (se o empregado ou se o empregador) estará com a razão,
nestes casos, deverá ser realizada a ponderação, de forma a harmonizar princípios
constitucionais em colisão. O indivíduo, como trabalhador, ou seja, na qualidade de
empregado, por conta do contrato de trabalho e das características que lhe são ine-
rentes — principalmente por força da subordinação ao poder diretivo do empregado
— poderá sofrer limitações quanto aos seus direitos individuais fundamentais, entre
eles os direitos de personalidade.
Exemplos de tais colisões serão tratados em item posterior, com exemplos
práticos.

3.3  Casos de colisão dos direitos da personalidade do


empregado e o exercício abusivo do poder diretivo do
empregador
Não são raras as colisões entre poder diretivo do empregador e direitos de per-
sonalidade dos empregados. Algumas limitações aos direitos de personalidade dos

46
SANTOS. Limites ao poder disciplinar do empregador: a tese do poder disciplinar compartilhado. Revista Magister
de Direito Trabalhista e Previdenciário, p. 23.

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empregados podem ser admitidas, sendo certo que os balizadores se concretizam na


necessidade, na adequação e na razoabilidade.47
A empresa é decorrente de uma ação humana, por certo que sua finalidade
também deve ser o bem: “A busca do lucro se mistura de maneira inseparável com
a busca do bem comum”.48 Nessa senda, o bem somente pode ser alcançado se as
ações e atitudes humanas forem pautadas por valores, princípios coletivos de conduta,
mormente a dignidade da pessoa humana.49 Se a atividade empresarial (pautada na
livre-iniciativa) deve resguardar a dignidade da pessoa humana, e ela (empresa) é que
origina o contrato de trabalho e este, por sua vez, o poder diretivo do empregador,
está claro que se espraia para esse contrato e para as relações entre empregadores
e empregados a mesma dignidade da pessoa humana mencionada.
Diante desse panorama, reafirme-se que a dignidade da pessoa humana deve
ser espraiada para as relações de emprego, em todas as suas fases, sendo um grande
passo o respeito aos direitos da personalidade dos empregados, se considerado o
poder diretivo do empregador.
Como bem assinala Wandelli, “[...] associa-se aos intentos de utilizar-se da
teoria do abuso do direito para impor limites aos direitos fundamentais em nome do
interesse geral ou do Estado, moralidade, bons costumes, fins lícitos, ou segurança
nacional”.50 Embora não seja tão fácil avaliar a abusividade do direito no contrato
de trabalho, Meireles sugere alguns critérios para tal verificação. Em suma, serão
abusivos os atos que:
1. Restrinjam fora dos limites aceitos para a hipótese direitos e garantias fun-
damentais individuais e coletivos;
2. Estabeleçam vantagens desproporcionais ou tornem obrigações excessiva-
mente onerosas;
3. Estabeleçam obrigações incompatíveis com a boa-fé, com as funções econô-
micas e sociais e com os bons costumes;
4. Ofendam os princípios fundamentais do Direito do Trabalho e de proteção do
trabalhador;
5. Imponham a cobrança vexatória, em decorrência do inadimplemento de obri-
gação por parte do contratante.51

47
Critérios citados por Fernando Büscher von Teschenhausen Eberlin, ao explicar o caso de testes toxicológicos
que passaram a ser aceitos após o acidente ecológico de um petroleiro na costa do Alasca (Poder de direção do
empregador versus direito à privacidade do empregado. Revista Trabalhista – Direito e Processo, p.135-136).
48
SAVITZ. A empresa sustentável: o verdadeiro sucesso é o lucro com responsabilidade social e ambiental.
49
PAVELSKI. Assédio moral: falta de ética e prejuízo da sustentabilidade nas empresas. In: BARACAT (Coord.).
Controle do empregado pelo empregador: procedimentos lícitos e ilícitos, p. 315-316.
50
WANDELLI, op. cit., p. 69.
51
MEIRELES. Abuso do direito na relação de emprego.

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

Ao tratar do direito de resistência do empregado ante o poder diretivo do empre-


gador, Viana52 diz que a resistência equivale a uma defesa do empregado em relação
ao comando excessivo do empregador. Se a taxa de comando do empregador variar
tendo em vista fatores que não estão presos à lei ou ao contrato, o poder diretivo
estará desatendendo seus fins normais e justamente por isso será considerado como
sem necessidade. O que pode ocorrer, de pelo menos dois modos: intensivo, ou seja,
ordens mais duras, e extensiva, uma quantidade maior de ordens.
Nesses casos pode o empregado resistir ao excesso. Nota-se que o poder
diretivo causa constrangimento, e o empregado, no seu direito de resistência (jus
resistentiae), poderá dizer de um simples não ou também promover a justa causa do
empregador, com base no artigo 483 da CLT. O mesmo autor chega a falar em abuso
do direito no poder diretivo, dizendo que não se faz necessária a atuação de má-fé do
empregador, mas um exercício abusivo do comando que a lei lhe confere.53
Porém, como muito bem ressalta Dallegrave Neto, na prática o direito de resis-
tência do empregado dificilmente é utilizado, ante o temor de perder seu emprego,
ainda mais em se considerando os níveis de desemprego. Por outro lado, o empre-
gador quase sempre não tolera exercícios de resistência por parte do empregado,
exercendo seu direito de dispensá-lo.54 A seguir, constam algumas considerações a
respeito de casos em que o poder de direção do empregador estaria configurando
abuso do direito em confronto, principalmente, com os direitos de personalidade do
empregado.
Assinale-se que não se configura tarefa fácil tentar citar a casuística, até mesmo
porque num mesmo caso se pode verificar a restrição abusiva de mais de um direito
da personalidade, como a honra e a imagem, a honra e a intimidade. O direito à inti-
midade constitui o direito de preservação em segredo em relação a certos aspectos
pelos demais, de forma que não saibam que se é ou o que se faz.55
Porque previstos constitucionalmente, como dito, aplica-se na esfera do contrato
de trabalho, sempre se tendo em mente que, embora haja forte vínculo pessoal na
relação empregatícia, não se separa o trabalhador da sua prestação de serviços.
Um exemplo pode ser retratado em acontecimento ocorrido em Curitiba-PR,
Brasil, no qual um candidato que disputava nas eleições municipais o cargo de pre-
feito teve sua ficha de avaliação funcional divulgada pelo seu adversário. O candidato
tinha trabalhado em estabelecimento bancário e a avaliação se referia a ele como
pouco trabalhador e agitador.56

52
VIANA. Direito de resistência: possibilidades de autodefesa do empregado em face do empregador.
53
Art. 483. [...] a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons cos-
tumes, ou alheios ao contrato.
54
DALLEGRAVE NETO. Contrato individual de trabalho: uma visão estrutural.
55
BARROS. Proteção à intimidade do empregado, p. 29.
56
FONSECA. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica.

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Observe-se que aqui a empresa abusou de seu direito porque agiu de forma
contrária à boa-fé objetiva, pois feriu seu dever anexo de conduta constituído pelo
sigilo, pela proteção do empregado, aplicável mesmo após a extinção contratual. A
divulgação de dados médicos e genéticos do empregado, assim como preferências
ideológicas, de consumo, bem como quaisquer outras informações obtidas pela
empresa por força do vínculo empregatício, poderá ser considerada como abuso de
direito do empregador, pelo mesmo motivo antes mencionado. Inegável que tal con-
duta, ainda, estaria violando o direito à vida privada do empregado.
Um exemplo citado pela doutrina que põe em xeque a vida privada do empregado
seria a proibição, pelo empregador, de que fosse consumido cigarro no ambiente de
trabalho. Desde que essa restrição fosse informada pelo empregador aos seus empre-
gados, em princípio nada haveria de abusivo.
Porém, se o empregador, sem avisar da regra aplicasse punição ao empregado,
como uma advertência ou suspensão, estar-se-ia diante do abuso do direito no poder
diretivo, porque violado o dever de informação consubstanciado na boa-fé objetiva.
É certo, ainda, que os avanços tecnológicos, como sistemas de áudio e vídeo, para
além de significarem apenas fiscalização ou mesmo segurança, podem ser utilizados
de forma inadequada, ferindo, por exemplo, o direito de personalidade consubstan-
ciado na intimidade do indivíduo.
A título de exemplo, deve ser referido um julgado57 do Tribunal Regional do
Trabalho de Minas Gerais, Brasil, que considerou como violação da intimidade do
indivíduo a instalação de câmeras de vídeo nas dependências do banheiro utilizado
pelos empregados. Essa conduta do empregador fere frontalmente a função social
do contrato porque limita o direito fundamental e da personalidade consubstanciado
na intimidade.
Com efeito, não se tem como justificar, nesse caso, que o espaço de trabalho
pertence ao empregador e ele tem, portanto, assegurado constitucionalmente o direito
à propriedade. Ponderando os valores envolvidos, indubitável que a preservação da
intimidade do empregado deve prevalecer. Observe-se, contudo, que as câmeras, por
exemplo, têm sido consideradas como passíveis de utilização nos demais ambientes
de trabalho que não banheiros e vestiários. Com efeito, as decisões que tratam de
revistas de pertences e aplicam a sanção entendendo que os pertences fazem parte
da esfera íntima do empregado e entram na regra do artigo 373-A, VI da CLT, proibitiva

57
CARACTERIZAÇÃO DANO MORAL – INSTALAÇÃO DE CÂMERA DE VÍDEO NO BANHEIRO DA EMPRESA – VIOLAÇÃO
À INTIMIDADE DO EMPREGADO – Extrapola os limites do poder diretivo e fiscalizador, a empresa que instala
câmera de vídeo nos banheiros, porque viola a intimidade do empregado, acarretando-lhe, por óbvio, constran-
gimentos. Por decorrência de tal ato, deve a empresa ser responsabilizada pelo pagamento de indenização por
dano moral, à luz do inciso X do art. 5.o da Constituição Federal (TRT. 3ª R., RO nº 00413.2004.103.03.00.7,
4ª T., Rel. Juiz Fernando Luiz G. Rios Neto, DJMG, p. 8, 18 dez. 2004, JCF.5 JCF.5.X).

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

das revistas íntimas. Pondere-se, ainda quanto à utilização de aparelhos audiovisuais,


a necessidade de informação ao empregado de que ele está sendo controlado no
seu local de trabalho por meio de tais tecnologias. Ainda mais uma conduta abusiva
por parte do empregador, na concretização de seu poder diretivo, verifica-se quando
este limita o uso de sanitários pelos empregados, por questões de produtividade.
Infelizmente não são raros os casos em que o empregado tem número de vezes e
tempo certo para frequentar o banheiro do local onde trabalha. Essa situação já foi
apreciada pelo Judiciário, resultando na condenação em danos morais a favor do
empregado, por afronta a sua intimidade.
Embora o poder empregatício realmente legitime a adoção de medidas para a
fiscalização do local de trabalho, não pode o empregador fazer isso de modo a ofen-
der a dignidade de seus trabalhadores. Comete ato ilícito o titular de um direito que,
ao exercê-lo, excede os limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé
ou pelos bons costumes (art. 187 do Código Civil, aqui aplicável por força do art. 8º,
parágrafo único, da CLT). Assim, embora a instalação de câmeras para a fiscalização
do ambiente de trabalho seja conduta ordinariamente admissível, não pode ser ado-
tada de modo divorciado da finalidade permitida em lei, mediante constrangimento
dos empregados. Recursos das rés aos quais se nega provimento, no particular.58
A restrição dessa natureza imposta pelo empregador não só atenta contra os
fins econômicos do contrato como também contra os bons costumes e fere o dever
de proteção (integridade física do empregado), decorrente da boa-fé. Também pode
ser verificado o abuso do direito no poder diretivo do empregador quando este inter-
cepta mensagens eletrônicas sem que ao empregado tenha sido proibida a utilização
de tal meio de comunicação para fins particulares. Poderá ser constatada a restrição
da privacidade do empregado. Ainda que se conceba que o correio eletrônico da
empresa, ou seja, onde conste o nome da empresa, seja uma ferramenta de trabalho
e deva para tal fim ser utilizado, com esteio no dever anexo de informação trazido
pela boa-fé objetiva, é de se dizer que o empregador deve deixar claras, certas e
informadas, mormente por normas internas, as condições e regras de trabalho para
o empregado.

3.4  Aspectos processuais da colisão empregado versus


empregador no cenário do poder diretivo
Um dos principais aspectos processuais que leva aos tribunais empregado e
empregador é o dano moral gerado quando o poder diretivo do empregador se torna
abusivo, frente ao caráter de fragilidade na posição de empregado. Nesse cenário,

58
TRT-PR-03799-2006-513-09-00-8-ACO-31384-2008, 1ª T., Rel. Edmilson Antonio de Lima, DJPR, 02 set.
2008.

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Renata Silva Amaral

inclusive, incluem-se na atualidade os danos morais oriundos do abuso do poder


diretivo frente aos direitos da personalidade do empregado, direitos esses que são
na verdade o foco do dano moral.
Quando um empregador se sente no direito de revistar intimamente um empre-
gado ou quando se sente no direito total de adentrar na intimidade do empregado,
revistando até mesmo seu computador pessoal utilizado no ambiente de trabalho,
existe uma violação dos direitos da personalidade, gerando dano moral que conse-
quentemente irá refletir em um processo jurídico para que esse dano seja reconhecido
e/ou ressarcido. Assim, destaca-se que a palavra “dano” tem extensão ilimitada de
sentido. Representa o resultado de qualquer espécie de lesão, seja moral, religiosa,
econômica, política etc. Porém, a nível jurídico, limita-se a um prejuízo econômico ou
moral, sendo que o dano moral pode ser definido de várias formas e sob os diferen-
tes enfoques, sendo que todos os seus conceitos surgem de uma única nascente: a
lesão de interesses não patrimoniais de pessoa física ou jurídica.
No entendimento de Venosa:

Dano moral é o prejuízo que afeta o ânimo psíquico, moral e intelectual


da vítima. Sua atuação é dentro dos direitos da personalidade. Nesse
campo, o prejuízo transita pelo imponderável, daí por que aumentam as
dificuldades de se estabelecer justa recompensa pelo dano. Em muitas
situações, cuida-se de indenizar o inefável. Não é também qualquer dis-
sabor comezinho da vida que pode acarretar a indenização. Aqui, tam-
bém é importante o critério objetivo do homem médio, o bonus pater
familias: não se levará em conta o psiquismo do homem excessivamente
sensível, que se aborrece com fatos diuturnos da vida, nem o homem de
pouca ou nenhuma sensibilidade, capaz de resistir sempre às rudezas do
destino. Nesse campo, não há fórmulas seguras para auxiliar o juiz. Cabe
ao magistrado sentir em cada caso o pulsar da sociedade que o cerca.
O sofrimento como contraposição reflexa da alegria é uma constante do
comportamento humano universal.59

Sendo que os danos morais: “são lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa
natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em
contraposição a patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetí-
vel de valor econômico”.60
Nessa esteira, infere-se que o dano moral está embasado na proteção do ser
humano e tem como ideal compensá-lo do mal que lhe foi causado, seja ele por dor,
angústia, humilhação ou qualquer outro sentimento de desgosto suportado.

59
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, v. 4, p. 35.
60
Silva (1955, n. 1) apud RODRIGUES. Direito civil, v. 4, p. 189.

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

Não obstante, Florindo61 entende que se em decorrência de um ato houver a


diminuição ou subtração de qualquer bem de caráter jurídico, estamos diante do
dano. Trata-se de termo bastante amplo para significar qualquer prejuízo material ou
moral causado a uma pessoa.
Nessa esteira, infere-se que o dano moral está embasado na proteção do ser
humano e tem como ideal compensá-lo do mal que lhe foi causado, seja ele por dor,
angústia, humilhação ou qualquer outro sentimento de desgosto suportado. Diante
dos aspectos apresentados pelo dano moral, podemos dizer que o Direito do Trabalho,
por sua vez, também nos chama a contribuir para o respeito entre os homens, princi-
palmente porque nas relações de emprego frequentemente pode-se observar ofensas
que afetam a personalidade, que acarretam instabilidade nas relações.
O dano moral trabalhista ocorre sempre que uma das partes na relação de
emprego sente-se atingida pela outra, de modo que a consequência desse dano é o
aparecimento de sentimentos como aflição, medo, humilhação, angústia, frustração,
e uma série de outros fatos, ligados à ofensa dos direitos da personalidade. Sendo o
direito à intimidade e privacidade parte integrante do direito da personalidade, quando
o poder diretivo do empregador é abusivo nesse cenário, e este — o empregador —
se sente no direito de revistar e adentrar a vida íntima e intimidade do empregado,
o dano moral é obvio, gerando trâmites processuais, em que responsabilização e
reparação são imprescindíveis.
Para a caracterização do dano moral, basta o fato em si mesmo, ou seja, não
há necessidade de publicidade do fato ou prova do sofrimento, já que a dor moral
atinge o indivíduo na sua intimidade. Portanto, irremediavelmente quando o abuso do
poder diretivo atinge a personalidade, a vida íntima e privada do trabalhador, concretiza-­
se um dano na moral do mesmo. Considera-se que o fato gerador do dano moral
deve ser extremamente lesivo para violar um direito ligado à personalidade humana,
considerando-se, ainda, “o padrão médio da sociedade, a razoabilidade, e também os
fatores de tempo, lugar e o costume onde o ato fora praticado”.62
Não existe na legislação nacional uma maneira específica referente à casuística
do dano moral trabalhista. Entretanto, mesmo que existisse, não seria possível esta-
belecer todas as suas hipóteses de perpetração, diante das possibilidades de sua
ocorrência. Também são insuficientes as normas infraconstitucionais que determinam
limites ao poder de direção do empregador, resultando que a solução é a proteção
constitucional, restando à doutrina e à jurisprudência adaptá-las às possibilidades da
vida cotidiana.63

61
FLORINDO. Dano moral e o direito do trabalho.
62
SCHIAVI. Ações de reparação por danos morais decorrentes da relação de trabalho: os novos desafios da justiça
do trabalho após o Código Civil de 2002 e a Emenda Constitucional 45/2004, p. 71.
63
MORAIS. Dano moral nas relações de trabalho.

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Podem-se elencar, a título exemplificativo, algumas situações em que é possível


a ocorrência do dano moral trabalhista, como as chamadas “despedidas injuriosas”,
a divulgação de “listas negras”, a intromissão em aspectos da intimidade e da vida
privada do empregado e a utilização de controles audiovisuais sem o respeito à dig-
nidade do empregado.64
O fim maior das regras no ambiente de trabalho não é retirar do empregado seus
direitos, é sim resguardar a segurança da empresa, e proteger tanto o empregado
quanto o empregador. Evidente que para cada empresa haverá uma adaptação e ela-
boração das regras de acordo com sua necessidade. É deixado a cargo da empresa
estipular suas tolerâncias e limites para o uso dos e-mails e internet no ambiente
de trabalho, todavia, importante lembrar que, mesmo existindo uma tolerância maior
por parte da empresa, não significa que esta esteja apta a desrespeitar o direito do
empregado, violando suas mensagens, quebrando seu direito de sigilo e seu direito à
informação.
Portanto, mesmo a lei reconhecendo o poder diretivo do empregador, esse poder
jamais poderá gerar dano moral ao empregado, frente aos direitos de sua personalidade,
direitos a sua intimidade e proteção da vida privada, uma vez que existe, em grande
parte das vezes, uma fragilidade na figura do empregado frente ao poder diretivo do em-
pregador, torna-se cada vez mais essencial cuidado, boa-fé, respeito e legislações mais
efetivas no tocante a essa relação empregado-empregador, principalmente referente
aos limites do poder diretivo do empregado devendo a lei proteger o lado mais frágil: o
empregado e sua vida privada.

4  Considerações finais
Diante das assertivas elencadas ao longo deste artigo científico, teve-se como
objetivo de pesquisa demonstrar quais os elementos de colisão entre os direitos da
personalidade do empregado e o poder diretivo do empregador.
Assim, por todo o exposto, tem-se que, através do estudo da evolução histórica
do Direito do Trabalho, o empregado sempre esteve sujeito a uma relação de subor-
dinação ao empregador. Contudo, o estudo revela que essa sujeição, anteriormente,
era deveras degradante à dignidade humana desses empregados. Esta degradação
se mostrou nos períodos iniciais através da condição de escravidão do trabalho e,
posteriormente, pelas excessivas horas e baixos salários, a uma semiescravidão,
somente cessada após o nascimento de normas laborais protetoras dos direitos
básicos dos empregados.
Ainda, tem-se por certo que a relação empregatícia é formada por cinco requisi-
tos essenciais, quais sejam, ser realizado por pessoa física, de forma não eventual,

64
MORAIS. Dano moral nas relações de trabalho, p. 121.

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O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo do empregador...

pessoal, onerosa e, principalmente, subordinada. Noutras palavras, há sempre a


presença onipotente do empregador sobre o empregado. Por conseguinte, tendo sido
estudada a origem e evolução dos direitos fundamentais, pode-se concluir que seu
crescimento sempre visou criar melhores condições de vida não somente aos traba-
lhadores, mas ao ser humano em geral.
Conclui-se que através dos direitos de liberdade, seguido pela igualdade e fra-
ternidade e, atualmente, nos direitos dos povos. Cabe frisar, a dignidade da pessoa
humana está principalmente elencada nos dois primeiros direitos, apesar de que eles
não exaurem, totalmente, esse princípio básico. Seguindo este pensamento, chegou-­
se à conclusão de que a atual Constituição Federal traz como imperativo o respeito à
dignidade da pessoa humana e elenca os direitos fundamentais em diversos de seus
dispositivos, pertencendo o direito de privacidade ao seu art. 5º, inciso X. Esse direito
de privacidade, ainda, é subdividido em direito de proteção à intimidade, vida privada,
honra e imagem, e estes, por se constituírem em direitos fundamentais protegidos
constitucionalmente, são prevalentes na maioria das situações. Sendo que esse cená-
rio também abarca outro direito fundamental, contudo, na relação empregatícia, aplicá-
vel especificamente ao empregador, qual seja, o direito à propriedade. E é esse direito
que, conjuntamente com a característica de subordinação da relação de emprego, faz
com que possa o empregador organizar, controlar e disciplinar o serviço prestado pe-
los empregados. Ocorre que esse controle, conforme se viu, muitas vezes ultrapassa a
esfera da simples relação de ordem e cumprimento normais da relação empregatícia,
vindo a atingir aspectos íntimos do empregado que, por vezes, são abusivos.
Portanto, o grande dilema do presente estudo se pode definir como: no caso de
um conflito entre o direito à privacidade do empregado e o direito de propriedade do
empregador, qual deve prevalecer? Difícil esta solução, tendo em vista que ambos
são direitos fundamentais protegidos constitucionalmente, se situando, inclusive, em
patamar muito próximo. Portanto, conforme se viu dos julgados apresentados, a con-
clusão a que se pode chegar no presente estudo é que, em uma análise casuística,
o poder diretivo será limitado à medida que os avanços de seu direito de propriedade
ultrapassem, de forma abusiva, os limites da privacidade do empregado, conforme
exposto no inciso X do art. 5º da Constituição Federal.
Todavia, conforme também se conclui do estudo realizado, não são todas as
situações de invasão da esfera de privacidade do empregado que importarão na limi-
tação à atuação do empregador, o que se observa da possibilidade de monitoramento
de e-mails e revista pessoais dos empregados. Tais atos, quando procedidos com
cautela, em que pesem interferir na intimidade do empregado, não importarão em
abuso e, portanto, prevalecerá o poder diretivo do empregador. Esta subjetividade,
entretanto, em saber qual o limite entre a legalidade e o abuso, traz às partes da
relação empregatícia uma situação de completa falência da segurança jurídica. Bem

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Renata Silva Amaral

da verdade, grande parte das situações de limitação ao poder empregatício cairão


nessa “vala comum”, onde será necessário o discernimento do Judiciário para não
incorrer em supervalorização de direitos a uma das partes (o empregado) de modo a
inviabilizar a própria atividade laboral.
Assim, e inclusive se sugere como forma de solucionar o impasse criado por
este aparente conflito de normas, a normatização de toda a conduta legal realizá-
vel pelo empregador desponta como único meio de pavimentar a segurança jurídica.
Entretanto, enquanto não se chega a qualquer consenso sobre este tema, a única
possibilidade dos empregadores agirem, sem que importe na ofensa a eventuais direi-
tos do empregado, será sempre a máxima cautela e respeito, evitando as situações
que possam importar em atos contrários à intimidade, vida privada, honra ou imagem
de seus empregados.

Abstract: This article had as focus and objective to analyze the scene of the labour social rights due to
the directive power of the employer analyzing the limits of the economic power. Through a bibliographical
research, prioritizing excellent authors for the present debate, it was possible to conclude that very often,
the scene is not as it presents and that on behalf of the directive power of the employer, rights are burled
and offences and siege are materialized, when, for example, an employee is searched without any apparant
reason, a decriminalizing interview takes place, whenever there is absence of support to the maternity,
feeding and rest during working hours. Their rights are burled, in favor of higher economic development.
It was possible to conclude that it is extremely important to make their rights concrete in the working
environment, in a way to delimit the economic and directive power of the entrepreneurial sector, because it
is relevant for the country´s development. We cannot leave aside the welfare state for the workers who are
the driving force of the economic development.
Key words: Social rights. Economic power. Limits. Directive power.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


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AMARAL, Renata Silva. O direito de privacidade do empregado e o poder diretivo


do empregador: aspectos processuais. Revista Brasileira de Direito Processual –
RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 221-246, jan./mar. 2014.

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Índice

página página

Autor GONÇALVES, Gláucio Ferreira Maciel


- Artigo: Culpa médica e sua apuração
AMARAL, Renata Silva processual – Uma análise das teorias
- Artigo: O direito de privacidade do empregado da prova.................................................. 89
e o poder diretivo do empregador – Aspectos
processuais........................................... 221 GOUVEIA, Lúcio Grassi de
- Artigo: Audiência de conciliação versus
audiência preliminar – A opção pela primeira e
BARBERATO, Celso
as consequências da eliminação da segunda
- Artigo: A coisa julgada na ação coletiva
no projeto do Novo Código de Processo Civil
dos sojicultores – Comentário sobre o brasileiro (NCPC)...................................... 25
REsp nº 1.243.386/RS............................ 11
GUEDES, Márcio Bulgarelli
BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto - Artigo: A coisa julgada na ação coletiva
- Artigo: Da inexigibilidade do título judicial dos sojicultores – Comentário sobre o
fundamentado em norma declarada REsp nº 1.243.386/RS............................ 11
inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal (arts. 475-L, §1º, e 741, PAZ, Paula
parágrafo único, do CPC)........................ 119 - Artigo: Da inexigibilidade do título judicial
fundamentado em norma declarada
BONNA, Alexandre Pereira inconstitucional pelo Supremo Tribunal
- Artigo: Cooperação no processo civil – A Federal (arts. 475-L, §1º, e 741,
paridade do juiz e o reforço das posições parágrafo único, do CPC)........................ 119
jurídicas das partes a partir de uma nova
concepção de democracia e contraditório..... 75 PISETTA, Francieli
- Artigo: O amicus curiae no direito processual
CARVALHO, Ivo César Barreto de civil brasileiro......................................... 149
- Artigo: Regime das medidas de urgência
SOARES, Marcos José Porto
no futuro CPC........................................ 199
- Artigo: A ratio decidendi dos precedentes
judiciais................................................... 39
DEL BALZO, Adriana
- Artigo: La norma jurídica como mediadora
dinámica – Su gravitación sobre la postura
Título
garantista del proceso............................ 137
AMICUS curiae no direito processual civil
brasileiro, O
GAZZOLA, Luciana de Paula Lima - Artigo de: Francieli Pisetta....................... 149
- Artigo: Culpa médica e sua apuração
processual – Uma análise das teorias AUDIÊNCIA de conciliação versus audiência
da prova.................................................. 89 preliminar – A opção pela primeira e as
consequências da eliminação da segunda
GERAIGE NETO, Zaiden no projeto do Novo Código de Processo Civil
- Artigo: A coisa julgada na ação coletiva brasileiro (NCPC)
dos sojicultores – Comentário sobre o - Artigo de: Lúcio Grassi de Gouveia............. 25
REsp nº 1.243.386/RS............................ 11
COISA julgada na ação coletiva dos
GONÇALVES, Aroldo Plínio sojicultores – Comentário sobre o REsp
- Artigo: Processo civil e processo do trabalho nº 1.243.386/RS, A
– Possibilidades e limites da aplicação - Artigo de: Celso Barberato, Márcio Bulgarelli
subsidiária............................................ 181 Guedes, Zaiden Geraige Neto.................... 11

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índice

página página

COOPERAÇÃO no processo civil – A paridade AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO


do juiz e o reforço das posições jurídicas das - Ver: Audiência de conciliação versus audiência
partes a partir de uma nova concepção de preliminar – A opção pela primeira e as
democracia e contraditório consequências da eliminação da segunda
- Artigo de: Alexandre Pereira Bonna............. 75 no projeto do Novo Código de Processo Civil
brasileiro (NCPC). Artigo de: Lúcio Grassi
CULPA médica e sua apuração processual – de Gouveia.............................................. 25
Uma análise das teorias da prova
- Artigo de: Luciana de Paula Lima Gazzola, AUDIÊNCIA PRELIMINAR
Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves............. 89 - Ver: Audiência de conciliação versus audiência
preliminar – A opção pela primeira e as
DIREITO de privacidade do empregado e o consequências da eliminação da segunda
poder diretivo do empregador – Aspectos no projeto do Novo Código de Processo Civil
processuais, O brasileiro (NCPC). Artigo de: Lúcio Grassi
- Artigo de: Renata Silva Amaral................. 221 de Gouveia.............................................. 25

INEXIGIBILIDADE do título judicial fundamentado C


em norma declarada inconstitucional pelo COISA JULGADA
Supremo Tribunal Federal (arts. 475-L, §1º,
- Ver: A coisa julgada na ação coletiva
e 741, parágrafo único, do CPC), Da
dos sojicultores – Comentário sobre o
- Artigo de: Luiz Magno Pinto Bastos Junior,
REsp nº 1.243.386/RS. Artigo de: Celso
Paula Paz.............................................. 119
Barberato, Márcio Bulgarelli Guedes,
Zaiden Geraige Neto................................. 11
NORMA jurídica como mediadora dinámica –
Su gravitación sobre la postura garantista del
processo, La COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
- Artigo de: Adriana Del Balzo..................... 137 - Ver: Da inexigibilidade do título judicial
fundamentado em norma declarada
PROCESSO civil e processo do trabalho inconstitucional pelo Supremo Tribunal
– Possibilidades e limites da aplicação Federal (arts. 475-L, §1º, e 741, parágrafo
subsidiária único, do CPC). Artigo de: Luiz Magno
- Artigo de: Aroldo Plínio Gonçalves............ 181 Pinto Bastos Junior, Paula Paz................ 119

RATIO decidendi dos precedentes judiciais, A COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL


- Artigo de: Marcos José Porto Soares.......... 39 - Ver: Cooperação no processo civil – A
paridade do juiz e o reforço das posições
REGIME das medidas de urgência no jurídicas das partes a partir de uma nova
futuro CPC concepção de democracia e contraditório.
- Artigo de: Ivo César Barreto de Carvalho.... 199 Artigo de: Alexandre Pereira Bonna............ 75

Assunto COMMON LAW


- Ver: A ratio decidendi dos precedentes
A judiciais. Artigo de: Marcos José Porto
AMICUS CURIAE Soares.................................................... 39
- Ver: O amicus curiae no direito
processual civil brasileiro. Artigo de: CONSEQUÊNCIAS
Francieli Pisetta..................................... 149 - Ver: Audiência de conciliação versus audiência
preliminar – A opção pela primeira e as
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA consequências da eliminação da segunda
- Ver: Regime das medidas de urgência no no projeto do Novo Código de Processo Civil
futuro CPC. Artigo de: Ivo César Barreto de brasileiro (NCPC). Artigo de: Lúcio Grassi
Carvalho................................................ 199 de Gouveia.............................................. 25

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índice

página página

CONTRADITÓRIO EFETIVIDADE
- Ver: Cooperação no processo civil – A - Ver: Regime das medidas de urgência no
paridade do juiz e o reforço das posições futuro CPC. Artigo de: Ivo César Barreto de
jurídicas das partes a partir de uma nova Carvalho................................................ 199
concepção de democracia e contraditório.
Artigo de: Alexandre Pereira Bonna............ 75 F
FUTURO CPC
CULPA MÉDICA - Ver: Regime das medidas de urgência no
- Ver: Culpa médica e sua apuração futuro CPC. Artigo de: Ivo César Barreto de
processual – Uma análise das teorias Carvalho................................................ 199
da prova. Artigo de: Luciana de Paula
Lima Gazzola, Gláucio Ferreira Maciel H
Gonçalves............................................... 89 HIPÓTESES DE PARTICIPAÇÃO
- Ver: O amicus curiae no direito
D processual civil brasileiro. Artigo de:
DANO MORAL Francieli Pisetta..................................... 149
- Ver: O direito de privacidade do empregado e
o poder diretivo do empregador – Aspectos I
processuais. Artigo de: Renata Silva IMPESSOALIDADE JURISDICIONAL
Amaral.................................................. 221 - Ver: Processo civil e processo do
trabalho – Possibilidades e limites da
DEMOCRACIA DELIBERATIVA aplicação subsidiária. Artigo de: Aroldo
- Ver: Cooperação no processo civil – A Plínio Gonçalves..................................... 181
paridade do juiz e o reforço das posições
jurídicas das partes a partir de uma nova INEXIGIBILIDADE DE TÍTULO JUDICIAL
concepção de democracia e contraditório. - Ver: Da inexigibilidade do título judicial
Artigo de: Alexandre Pereira Bonna............ 75 fundamentado em norma declarada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal
DIREITO PROCESSUAL CIVIL Federal (arts. 475-L, §1º, e 741, parágrafo
- Ver: Processo civil e processo do trabalho único, do CPC). Artigo de: Luiz Magno
– Possibilidades e limites da aplicação Pinto Bastos Junior, Paula Paz................ 119
subsidiária. Artigo de: Aroldo Plínio
Gonçalves............................................. 181 INSUFICIÊNCIA LEGAL
- Ver: O amicus curiae no direito
DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO processual civil brasileiro. Artigo de:
- Ver: Processo civil e processo do trabalho Francieli Pisetta..................................... 149
– Possibilidades e limites da aplicação
subsidiária. Artigo de: Aroldo Plínio INTIMIDADE
Gonçalves............................................. 181 - Ver: O direito de privacidade do
empregado e o poder diretivo do empregador
DIREiTOS COLETIVOS – Aspectos processuais. Artigo de:
- Ver: A coisa julgada na ação coletiva Renata Silva Amaral............................... 221
dos sojicultores – Comentário sobre o
REsp nº 1.243.386/RS. Artigo de: Celso J
Barberato, Márcio Bulgarelli Guedes, JURISDIÇÃO COMUM
Zaiden Geraige Neto................................. 11 - Ver: Processo civil e processo do
trabalho – Possibilidades e limites da
E aplicação subsidiária. Artigo de: Aroldo
EFEITO VINCULANTE Plínio Gonçalves..................................... 181
- Ver: Da inexigibilidade do título judicial
fundamentado em norma declarada JURISDIÇÃO ESPECIAL
inconstitucional pelo Supremo Tribunal - Ver: Processo civil e processo do
Federal (arts. 475-L, §1º, e 741, parágrafo trabalho – Possibilidades e limites da
único, do CPC). Artigo de: Luiz Magno aplicação subsidiária. Artigo de: Aroldo
Pinto Bastos Junior, Paula Paz................ 119 Plínio Gonçalves..................................... 181

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 247-250, jan./mar. 2014 249

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índice

página página

L PROJETO DO NCPC
LEGITIMAÇÃO - Ver: Audiência de conciliação versus audiência
- Ver: A coisa julgada na ação coletiva preliminar – A opção pela primeira e as
dos sojicultores – Comentário sobre o consequências da eliminação da segunda
REsp nº 1.243.386/RS. Artigo de: Celso no projeto do Novo Código de Processo Civil
brasileiro (NCPC). Artigo de: Lúcio Grassi
Barberato, Márcio Bulgarelli Guedes, de Gouveia.............................................. 25
Zaiden Geraige Neto................................. 11
R
M RATIO DECIDENDI
MECANISMO DE DEFESA DO EXECUTADO - Ver: A ratio decidendi dos precedentes
- Ver: Da inexigibilidade do título judicial judiciais. Artigo de: Marcos José Porto
fundamentado em norma declarada Soares.................................................... 39
inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal (arts. 475-L, §1º, e 741, parágrafo RESPONSABILIDADE CIVIL
- Ver: Culpa médica e sua apuração processual
único, do CPC). Artigo de: Luiz Magno
– Uma análise das teorias da prova. Artigo
Pinto Bastos Junior, Paula Paz................ 119 de: Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio
Ferreira Maciel Gonçalves......................... 89
MEDIDA CAUTELAR
- Ver: Regime das medidas de urgência no S
futuro CPC. Artigo de: Ivo César Barreto de STARE DECISIS
Carvalho................................................ 199 - Ver: A ratio decidendi dos precedentes
judiciais. Artigo de: Marcos José Porto
N Soares.................................................... 39
NATUREZA JURÍDICA
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
- Ver: O amicus curiae no direito - Ver: Da inexigibilidade do título judicial
processual civil brasileiro. Artigo de: fundamentado em norma declarada
Francieli Pisetta..................................... 149 inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal (arts. 475-L, §1º, e 741, parágrafo
O único, do CPC). Artigo de: Luiz Magno
ÔNUS DA PROVA Pinto Bastos Junior, Paula Paz................ 119
- Ver: Culpa médica e sua apuração processual
– Uma análise das teorias da prova. Artigo T
TEORIAS DA PROVA
de: Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio
- Ver: Culpa médica e sua apuração processual
Ferreira Maciel Gonçalves......................... 89 – Uma análise das teorias da prova. Artigo
de: Luciana de Paula Lima Gazzola, Gláucio
P Ferreira Maciel Gonçalves......................... 89
PODER DIRETIVO
- Ver: O direito de privacidade do TROCA
empregado e o poder diretivo do empregador - Ver: Audiência de conciliação versus audiência
– Aspectos processuais. Artigo de: preliminar – A opção pela primeira e as
Renata Silva Amaral............................... 221 consequências da eliminação da segunda
no projeto do Novo Código de Processo Civil
brasileiro (NCPC). Artigo de: Lúcio Grassi
PRECEDENTES VINCULANTES de Gouveia.............................................. 25
- Ver: A ratio decidendi dos precedentes
judiciais. Artigo de: Marcos José Porto TUTELA DE EVIDÊNCIA
Soares.................................................... 39 - Ver: Regime das medidas de urgência no
futuro CPC. Artigo de: Ivo César Barreto
PRIVACIDADE de Carvalho........................................... 199
- Ver: O direito de privacidade do
empregado e o poder diretivo do empregador TUTELA DE URGÊNCIA
– Aspectos processuais. Artigo de: - Ver: Regime das medidas de urgência no
futuro CPC. Artigo de: Ivo César Barreto
Renata Silva Amaral............................... 221 de Carvalho........................................... 199

250 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 247-250, jan./mar. 2014

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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 85, p. 251-252, jan./mar. 2014 251

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Esta obra foi composta na fonte Frankfurt, corpo 10


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