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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL – RBDPRO


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R454 Revista Brasileira de Direito Processual : RBDPro. Território Nacional
– ano 15, n. 59, (jul./set. 2007)- . – Belo
Horizonte: Fórum, 2007- Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados são de
responsabilidade exclusiva de seus autores.
Trimestral
ISSN 0100-2589
Esta revista está catalogada em:
Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./ • RVBI (Rede Virtual de Bibliotecas – Congresso Nacional)
jun.1978 pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG. • Ulrich’s Periodicals Directory
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./ • Library of Congress (Biblioteca do Congresso dos EUA)
jun. 1988 pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ.
Publicação interrompida em 1988 e retomada Supervisão editorial: Leonardo Eustáquio Siqueira Araújo
pela Editora Fórum em 2007. Revisão: Bárbara Ferreira
Capa: Igor Jamur
1. Direito processual. I. Fórum. Projeto gráfico: Walter Santos
Diagramação: Bruno Lopes
CDD: 347.8
CDU: 347.9
Sumário

DOUTRINA
Artigos

“Acompanho o relator”: a síndrome da unanimidade nas câmaras criminais


do TJPE
Manuela Abath Valença
1 Introduzindo o problema: a justiça em linha de montagem no sistema de justiça
brasileiro ................................................................................................................... 9
2 A burocracia e a contribuição weberiana..................................................................... 11
3 A crise da unanimidade: adaptando as formalidades do processo às metas de
eficiência................................................................................................................. 16
4 A pesquisa de campo: observando e exoticizando o familiar......................................... 18
4.1 As observações não participantes.............................................................................. 20
4.2 O trabalho quantitativo com os acórdãos.................................................................... 20
4.3 O nosso universo...................................................................................................... 22
4.4 Discutindo os resultados: a lógica da unanimidade...................................................... 22
5 Conclusão................................................................................................................ 25
Referências.............................................................................................................. 26

Arrematação por preço vil na execução civil


Felipe Scalabrin
1 Introdução................................................................................................................ 29
2 Contextualização do problema.................................................................................... 30
2.1 Breves notas em torno da execução por quantia certa contra devedor solvente.............. 30
2.2 A arrematação por preço vil no senso comum da comunidade jurídica........................... 33
3 Aportes para o reconhecimento da vileza ................................................................... 34
3.1 O conflito entre o “princípio da menor onerosidade” e o “princípio da efetividade da
execução” ............................................................................................................... 34
3.2 Disposições legais aplicáveis à situação..................................................................... 38
3.3 Contributos doutrinários para o reconhecimento do instituto......................................... 40
3.4 A (des)orientação do Superior Tribunal de Justiça........................................................ 43
4 Considerações conclusivas........................................................................................ 47
Referências.............................................................................................................. 49

Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória


Renata Caroline Kroska
1 Natureza da eficácia civil da sentença penal condenatória ........................................... 51
2 Da sentença penal ................................................................................................... 52
2.1 Ato jurisdicional e sentença penal.............................................................................. 53
2.2 Sentença penal condenatória e sentença penal absolutória.......................................... 54
2.2.1 Sentença impositiva de medida de segurança............................................................. 54
2.2.2 Sentença impositiva de medida socioeducativa........................................................... 58
2.2.3 Sentença concessiva de perdão judicial ..................................................................... 60
2.2.4 Sentença que reconhece a prescrição penal................................................................ 62
2.2.5 Substitutivos processuais penais previstos na Lei nº 9.099/95................................... 65
3 Aspectos processuais da execução civil da sentença penal condenatória...................... 67
3.1 Legitimação ativa ..................................................................................................... 68
3.2 Legitimação passiva.................................................................................................. 70
3.3 Competência para a liquidação e/ou execução da sentença penal condenatória............ 72
3.4 Da liquidação da sentença penal condenatória............................................................ 73
3.5 Da execução da sentença penal condenatória............................................................. 77
3.5.1 Da defesa do executado............................................................................................ 77
3.5.2 Da prescrição da pretensão executiva da sentença penal condenatória......................... 82
4 Execução civil de sentença penal condenatória por crime contra bem jurídico de
natureza difusa, coletiva ou individual homogênea....................................................... 83
5 Breves comentários às alterações previstas no projeto do novo Código de Processo
Penal sobre a execução civil da sentença penal condenatória....................................... 87
6 Considerações finais................................................................................................. 88
Referências.............................................................................................................. 89

Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória


Carlos Eduardo Araújo de Carvalho
1 Introdução................................................................................................................ 93
2 Escorço histórico da questão da Coisa Julgada........................................................... 95
3 Relativização da Coisa Julgada e a tese da prejudicialidade constitucional.................. 111
4 Da conectividade de lides........................................................................................ 117
Referências............................................................................................................ 120

Construindo um campo linguístico pragmático para a aplicação do art. 93, IX,


da CF/88: por um vocabulário jurisdicional brasileiro renovado segundo a teoria
neoinstitucionalista do processo
Luís Henrique Vieira Rodrigues
1 Introdução ............................................................................................................. 124
2 A crise do modelo representacionista como fundamento das ciências sociais
aplicadas............................................................................................................... 125
3 A virada linguístico-pragmática e sua contribuição para o direito................................. 126
4 A Constituição de 1988 e a nova hermenêutica processual brasileira......................... 128
5 Jurisdição democrática e efetividade jurisdicional como vocabulários do campo
linguístico-pragmático da Constituição de 1988......................................................... 129
6 Conclusões............................................................................................................ 132
Referências............................................................................................................ 133

Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional: comentários à nova


jurisprudência pronunciada pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal
de Justiça
Felipe Fernandes Valente Júnior
1 Introdução.............................................................................................................. 135
2 Habeas corpus: breves considerações...................................................................... 136
3 Recurso ordinário em habeas corpus........................................................................ 140
4 Síntese dos acórdãos comentados........................................................................... 145
5 Análise do novo entendimento jurisprudencial........................................................... 148
6 Conclusão.............................................................................................................. 152
Referências............................................................................................................ 153
Legitimidade das associações civis para propositura de ação civil pública
no direito brasileiro: uma leitura multidisciplinar
Arno Apolinário Junior, Ricardo da Silva Gama
1 Introdução e aspectos metodológicos....................................................................... 155
2 Legitimidade ativa das associações concebida pela Lei nº 7.347/85.......................... 157
3 Imaginários reais e vinculação material, cultural e simbólica ..................................... 161
4 Discussão e conclusões.......................................................................................... 164
Referências............................................................................................................ 167

Mandado de segurança: da (in)constitucionalidade da fixação de honorários de


sucumbência e a prospecção do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da
ADIN nº 4.296
Lauriano Pereira Luz, Eduardo Hoffmann
1 Introdução.............................................................................................................. 169
2 O posicionamento doutrinário acerca da fixação de honorários advocatícios
sucumbenciais nas ações de mandado de segurança................................................ 171
3 A discussão sobre o tema na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.296............... 175
4 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do tema.................................... 178
5 Prospectando-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal na ADIN nº 4.296..... 181
Referências............................................................................................................ 183

O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um


paradigma discursivo da decisão judicial
Cláudia Albagli Nogueira
1 Introdução.............................................................................................................. 185
1.1 Do dogma da subsunção ao paradigma discursivo: o processo como espaço e limite
de construção do discurso....................................................................................... 188
1.1.1 Limite material ao paradigma discursivo: da intrínseca relação entre direito e moral..... 189
1.1.2 Limite formal: o processo como espaço e limite da construção do discurso................. 192
2 O Novo Código de Processo Civil.............................................................................. 194
2.1 O sistema de precedente judicial: capítulo XV do NCPC.............................................. 195
3 Precedente: distinções e conceitos fundamentais (ratio decidendi e obter dictum)....... 199
4 O sistema de precedente judicial no NCPC: qual racionalidade?.................................. 201
4.1 O precedente judicial como o argumento aplicável ao auditório universal..................... 202
4.2 Da pretensão de correção como limite substancial ao precedente judicial................... 203
4.3 Do consenso como teleologia do precedente judicial................................................. 205
Conclusão.............................................................................................................. 206
Referências............................................................................................................ 208

O paradigma racionalista e o momento de modificação do ônus da prova


Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto
1 Introdução.............................................................................................................. 211
2 O paradigma racionalista......................................................................................... 212
3 O momento da modificação do ônus da prova: visão tradicional.................................. 219
4 O momento da inversão do ônus da prova e o paradigma racionalista......................... 225
5 Conclusão.............................................................................................................. 226
Referências............................................................................................................ 227
Processo civil constitucional e os princípios da publicidade e da motivação
Pablo Zuniga Dourado
Introdução ............................................................................................................. 231
1 O processo civil constitucional no Brasil .................................................................. 232
2 Regras e princípios ................................................................................................ 237
3 Princípio da publicidade e da motivação ................................................................... 241
3.1 Princípio da publicidade .......................................................................................... 241
3.2. Princípio da motivação............................................................................................ 244
Conclusão ............................................................................................................. 247
Referências .......................................................................................................... 248

Proceso jurisdiccional, república y los institutos fundamentales del derecho


procesal
Glauco Gumerato Ramos
1 Prolegómenos........................................................................................................ 251
2 Hipótesis de trabajo .............................................................................................. 254
3 Arquetipo republicano ............................................................................................ 254
4 Institutos fundamentales del derecho procesal: visión tradicional .............................. 257
4.1 Panorama.............................................................................................................. 258
4.2 Jurisdicción .......................................................................................................... 261
4.3 Acción ................................................................................................................... 262
4.4 Proceso................................................................................................................. 263
5 Institutos fundamentales: perspectiva republicana.................................................... 264
5.1 (Re)Organización del tema ...................................................................................... 265
5.2 Acción ................................................................................................................... 267
5.3 Proceso ................................................................................................................ 268
5.4 Jurisdicción .......................................................................................................... 269
6 Conclusiones ........................................................................................................ 271

NOTAS E COMENTÁRIOS
Processo e República: uma relação necessária
Dierle Nunes, Alexandre Bahia ............................................................................................ 275

O parcelamento judicial no CPC Projetado: riscos e necessidade de mudança


pelo Senado
Dierle Nunes, Lúcio Delfino.................................................................................................. 283

RESENHA
JOBIM, Marco Félix. Medidas Estruturantes. Da Suprema Corte
Estadunidense ao Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre, 2013.
Dnieper Chagas de Assis..................................................................................................... 291
DOUTRINA Artigos
“Acompanho o relator”: a síndrome da
unanimidade nas câmaras criminais
do TJPE

Manuela Abath Valença


Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de
Brasília (UnB). Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE (2012).
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2010). Tem experiência na
área de criminologia e Direitos Penal e Processual Penal. Analista Ministerial no Ministério
Público de Pernambuco.

Resumo: A justiça penal brasileira é composta, em segunda instância, de órgãos colegiados. A


colegialidade é um modelo que demanda tempo, pois exige a apreciação do processo por mais de um
julgador. Quando o cenário em que esses órgãos atuam é de forte demanda, a colegialidade pode ser
francamente mitigada, gerando-se aquilo a que alguns processualistas vêm referindo como “síndrome da
unanimidade”: decisões unânimes em órgãos colegiados que estão mais relacionadas às necessidades
burocráticas de cumprimento de metas que propriamente a um real acordo a que chegam os julgadores.
Este trabalho é fruto de um exame quantitativo de 1.818 acórdãos em habeas corpus proferidos pelas
quatro câmaras criminais do TJPE e de uma observação etnográfica realizada junto às sessões dessas
mesmas câmaras. Concluímos que a regra são mesmo as decisões unânimes (98% dos casos) e que o
relator do processo possui um papel definitivo, pois a regra é ele ser acompanhado pelos demais membros
da câmara. A colegialidade mantém-se apenas como ritual, podendo-se afirmar que sociologicamente há
juízos monocráticos nesses órgãos colegiados.
Palavras-chave: Colegialidade. Burocracia. Metas de eficiência. Síndrome da unanimidade.

Sumário: 1 Introduzindo o problema: a justiça em linha de montagem no sistema de justiça brasileiro –


2 A burocracia e a contribuição weberiana – 3 A crise da unanimidade: adaptando as formalidades
do processo às metas de eficiência – 4 A pesquisa de campo: observando e exoticizando o familiar –
5 Conclusão – Referências

1 Introduzindo o problema: a justiça em linha de


montagem no sistema de justiça brasileiro
Um inusitado episódio ocorrido em 2003 pode introduzir os problemas e questões
que enfrentaremos neste trabalho. Naquele ano, o ex-ministro do STF, Nelson Jobim,
em uma palestra realizada em São Paulo e noticiada pelo jornal Estado de S. Paulo,
dirigiu-se ao público e o convidou para assistir a uma sessão da 2ª Turma do STF, da
qual Jobim fazia parte à época. Segundo o ex-ministro, o que aquelas pessoas iriam
presenciar eram julgamentos ocorrendo em série ou julgamento por atacado – para

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014 9
Manuela Abath Valença

utilizar os seus termos – e referiu-se ao que seria o momento final de uma sessão de
julgamento: “Vamos à lista do ministro Jobim. Sessenta processos. Nego provimento,
sem destaque. De acordo? De acordo. Pronto, tá julgado”.1
Jobim descreve o já conhecido julgamento por lista,2 prática comum em diversos
tribunais do país e que não soa nada estranho a quem vivencia o cotidiano da
justiça brasileira e de seus órgãos colegiados. Julgamentos em lista nos tribunais
ou uma colegialidade que às vezes existe apenas como um ritual sem maiores
correspondências com o que de fato ocorre, ensejando a já conhecida “crise da
unanimidade”, não são propriamente uma novidade para os operadores do
campo jurídico.3
Seria possível uma análise individualizada e detalhada de cada processo
que adentra o universo dessas varas e câmaras? Em que medida são adotados
mecanismos como o “julgamento em atacado”, conforme mencionado pelo ministro
ou simplesmente aquilo a que, neste trabalho, referirei como “justiça em linha
de montagem”?
A metáfora da “justiça em linha de montagem” foi utilizada em emblemático
estudo de Abraham S. Blumberg, publicado em 1967. A linha de montagem refere-se,
como se sabe, a um modo de produção empregado no modelo industrial do fordismo.
Este modelo chegou a ser considerado revolucionário por agilizar consideravelmente
a produção de automóveis ainda na década de vinte do século passado, adotando
como método, dentre outros, o movimento mecânico e processos padronizados. Ao
empregar o termo, Blumberg valorizou a dimensão da padronização e a necessidade
de produção em larga escala, afirmando ser uma justiça em linha de montagem
aquela que cria categorias prévias para processar e julgar, agilizando o ritmo
de julgamento.4
As observações realizadas junto às quatro câmaras criminais do Tribunal de
Justiça do Estado de Pernambuco nos levaram a presenciar um universo já conhecido
nos órgãos da justiça: grande número de processos e uma incapacidade generalizada
em lidar com essa demanda. As alternativas a esse impasse são muitas: desde os
conhecidos mutirões até a adoção de práticas de julgamentos em massa.
Para se ter uma ideia, observamos que, em cada sessão, uma câmara julgava
uma média de quinze habeas corpus. Se para cada um fosse feita uma sustentação
oral de quinze minutos (o máximo permitido), somando-se ainda os cerca de cinco

1
A referida notícia foi citada por Aury Lopes Júnior em: LOPES JR. (2010): XXIV.
2
Embora possa haver variações de tribunal a tribunal, de um modo geral o julgamento por lista segue a seguinte
sistemática: os casos repetidos, com mesma fundamentação e mesmo pedido, ou que tratem de questão de
direito sobre o qual já haja entendimento pacificado no tribunal ou no gabinete do desembargador relator, são
agrupados e é proferido um único voto para todos eles. A lista é encaminhada ao órgão colegiado muitas vezes
apenas para cumprir o ritual do julgamento na câmara ou na turma.
3
MOREIRA (1994): 7; GONÇALVES (2010): 53.
4
BLUMBERG (1967): 22.

10 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014
“Acompanho o relator”: a síndrome da unanimidade nas câmaras criminais do TJPE

minutos utilizados para a leitura do relatório e do voto, seriam – e esse cálculo é por
baixo – aproximadamente 20 minutos para cada HC. Sem reservar um só minuto para
discussões, isso totaliza 5 horas de julgamentos somente dos HCs! Somam-se a eles
pautas não menos cheias de apelações, recursos em sentido estrito, embargos de
declaração e todos os demais incidentes julgados pelo órgão.
O cálculo feito demonstra muito rapidamente algo que o senso comum mais
rasteiro já sabe: o judiciário está superlotado. Neste quadro, alguns habeas corpus
serão julgados em mais de 20 minutos e a grande maioria deles em um ritmo tão
veloz que nem os desembargadores podem acompanhar. Haverá um campo propício
ao surgimento daquilo a que alguns processualistas vêm referindo como “síndrome
da unanimidade”,5 isto é, uma produção de decisões unânimes em órgãos colegiados
que estão muito mais relacionadas às necessidades burocráticas de cumprimento de
metas que propriamente a um real acordo a que chegam os julgadores. Ou ainda o
que sociologicamente vem sendo referido como uma justiça em linha de montagem.
O judiciário brasileiro pauta-se em uma base organizacional burocrática e,
mais precisamente, baseada em aspectos de uma burocracia racional-legal. Isso
evidentemente não afasta as diversas leituras que lembram a persistência de
elementos patrimoniais em todos os seus níveis de funcionamento. Em verdade, a
história do Estado brasileiro é marcada pela “coexistência antagônica e conflitante
de formas tradicionais (patrimonialismo) com procedimentos racionais (burocracia)”.6
Entretanto, interessará adentrar o universo do funcionamento burocrático que
também se observa nesses órgãos e que se liga a uma padronização das respostas
dadas às demandas, objetivando-se a produção de respostas rápidas. A burocracia
racional-legal prometia (ou promete) a eficiência e, de alguma forma, trata-se de
um ideal que guia os profissionais dessas organizações. No limite, esses ideais de
eficiência podem ganhar uma importância central, que pouco se compatibiliza com
alguns princípios da justiça penal, tais quais a individualização do caso e a análise
acurada do cabimento de alguns institutos como a prisão preventiva (hipótese que
corresponde ao grande número dos habeas corpus examinados). Em que medida é
possível compatibilizar uma necessidade de eficiência e resposta jurisdicional a um
ideal de garantia de direitos? A seguir tentaremos abordar a pergunta, encetando-se
a abordagem com uma breve explanação do conceito weberiano de burocracia.

2 A burocracia e a contribuição weberiana


O estudo das organizações com características burocráticas demanda um
resgate do conceito de burocracia na obra de Max Weber. O conceito típico-ideal de

5
GONÇALVES (2010): 54.
6
WOLKMER (1998): 68.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014 11
Manuela Abath Valença

burocracia moderna construída pelo autor é fundamental para que compreendamos os


traços gerais que essas organizações tomaram na modernidade e que peculiaridades
elas assumiram e assumem.
A primeira noção importante para a compreensão da burocracia é a de
dominação. A dominação é “a probabilidade de encontrar obediência dentro de um
grupo determinado para ordens específicas”.7 Essa obediência pode derivar de uma
sorte de mecanismos, inclusive a coerção puramente física. Porém, a crença na
legitimidade desse domínio é o que o torna mais provável e durável.
A partir da relação de legitimidade que se estabelece, Weber destaca a existência
de três tipos de dominação: a racional, “que descansa na crença na legalidade de
ordenações estatuídas”;8 a tradicional, que se funda “na crença cotidiana na santidade
das tradições”;9 e a carismática, que se baseia na devoção afetiva à santidade ou ao
caráter exemplar de uma pessoa.
Qualquer forma de dominação que se exerce sobre um grupo de homens requer
um quadro administrativo. A dominação racional se desenvolverá prioritariamente em
uma forma administrativa burocrática. Aquela se funda na crença em um conjunto
de leis impessoais racionalmente estabelecidas, as quais regem não somente a
atividade dos cidadãos como um todo, mas dos próprios membros da administração.
O cidadão não obedece, assim, à pessoa do “chefe”, mas à ordem impessoal
estabelecida nos regulamentos. A burocracia é, pois, a forma mais pura de exercício
da autoridade legal.
A prevalência da administração burocrática na modernidade se deve a uma série
de fatores que Weber expõe ao longo de seus trabalhos. Mudanças econômicas,
sociais, políticas, científicas e filosóficas irão explicar a adoção quase que generalizada
de um modelo burocrático na organização de boa parte dos Estados ocidentais.
Primeiramente, o sistema capitalista e a sociedade industrial trazem consigo a
especialização técnica e uma divisão do trabalho social que engendram um aumento
quantitativo das tarefas administrativas, mas sobretudo um aumento qualitativo,
tendo em vista o surgimento de diversas ocupações especializadas, concluindo
Weber que “a burocracia é ocasionada mais pela ampliação subjetiva e qualitativa e
pelo desdobramento interno no âmbito das tarefas administrativas do que pelo seu
aumento extensivo e quantitativo”.10
Outra marca da modernidade ocidental é o desenvolvimento científico e o
domínio da natureza, que afastam o homem da crença nas explicações mágicas sobre
os fenômenos em geral, desencantando-os e fazendo prevalecer a crença na razão.

7
WEBER (1996): 70.
8
WEBER (1996): 172.
9
WEBER (1996): 172.
10
WEBER (1963): 246.

12 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014
“Acompanho o relator”: a síndrome da unanimidade nas câmaras criminais do TJPE

A racionalização emerge como padrão mais correto de descrição do mundo


e de formação das instituições políticas e sociais. É dessa forma que o
“desencantamento do mundo” de que nos fala Weber também contribui sobremaneira
para a prevalência da burocracia racional-legal como forma de administração dos
Estados na modernidade ocidental.
Por fim, a burocracia será, segundo Weber, a forma mais eficiente de lidar com
as demandas de velocidade, precisão, impessoalidade e constância exigidas tanto
pela produção capitalista quanto pela democracia de massa orientada pelos ideais
liberais e republicanos de isonomia e legalidade, valores que nortearam a composição
política de diversos Estados ocidentais nos séculos XVIII e XIX.
Não custa lembrar que, apesar de entender como a forma mais eficiente
de administrar, Weber via o desenvolvimento da burocracia também com algum
ceticismo, afinal tratava-se de uma máquina criada sob forte pressão de eficiência,
cujos valores de disciplina e de obediência às normas poderiam levar a uma atuação
desumanizada, a homens que funcionariam como meras engrenagens de uma
máquina que não está sob seu controle. “É horrível pensar que o mundo possa estar
um dia repleto dessas pequenas engrenagens, pequenos homens presos a pequenos
empregos”,11 comentou Weber.
O mundo jurídico sofreu diretamente com a burocratização das instâncias de
poder do Estado nesse período, pois ocorreu um processo de “positivação do direito,
que desvincula o sistema jurídico de sua tradicional vinculação com o sagrado,
substituído pela decisão tomada através de procedimentos preestabelecidos”.12
Então, não obstante ser possível identificar formas burocráticas de administração da
justiça ao longo da história, como comenta o próprio Weber, a burocracia racional-
legal é a novidade da modernidade.
O que caracteriza esse modelo?13 Segundo Weber, a) a existência de áreas de
jurisdição fixas e oficiais ordenadas de acordo com regulamentos; b) a existência
de hierarquia no quadro administrativo, com supervisão dos órgãos inferiores; c)
a prevalência de documentos escritos; d) a separação entre a esfera privada do
funcionário e a esfera pública na qual exerce o seu cargo; e) a profissionalização e

11
Livre tradução de: “it is horrible to think that the world could one day be filled with these little cogs, little man
clinging to little Jobs”. WEBER apud CLEGG (1994): 51.
12
AZEVEDO (2008): 120.
13
A burocracia é construída como um tipo ideal na obra weberiana. O tipo ideal é “formulado, primeiramente,
mediante uma exageração consciente das características essenciais do padrão de ação que interessa ao
pesquisador e, em segundo lugar, da síntese dessas orientações características em um conceito unificado e
rigoroso do ponto de vista lógico” (KALBERG (2010): 41). A construção de um tipo ideal obedece a uma exigência
da ciência, na medida em que uma categoria construída como um tipo ideal não se encontra propriamente
na realidade, mas auxilia no conhecimento dela. O exercício seria o de olhar um objeto e contrastá-lo com o
conceito típico ideal. Essa é, aliás, uma postura de Weber diante da própria ciência e de suas possibilidades.

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Manuela Abath Valença

treinamento técnico do corpo de funcionários; f) o desempenho do cargo segundo


regras gerais.14
De um modo geral, portanto, observa-se que a burocracia agrega como valores
o formalismo, a profissionalização, a hierarquia, a impessoalidade, a documentação
e a centralização. Nenhum desses padrões aparece de forma absoluta, pois, como já
dito, trata-se apenas de um conceito analítico.
Quais os ganhos da burocracia? A capacidade, em tese, de proporcionar
isonomia é, sem dúvidas, a maior das expectativas positivas em torno da burocracia,
o que, entretanto, pareceu um aspecto largamente frustrado ao longo da história
do judiciário brasileiro. Sempre incomodou certa tradição do pensamento social
brasileiro15 a apropriação pelos “donos do poder”, por uma “classe dominante”, pelos
grupos privilegiados, enfim, a apropriação do Estado, instrumentalizando-o conforme
os seus interesses. Em um esforço de concisão, Luciano Oliveira parece resumir um
pouco dessa vertigem:

Estamos a um passo do velho “patrimonialismo” voraz com que as


classes dominantes brasileiras sempre usaram a coisa pública quando a
ela acedem e dela se apropriam. Daí a vigência, entre nós, de brocardos
literariamente deliciosos, mas politicamente perversos, como o conhecido
“para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”. O qual, aliás, admite uma
variação ainda mais perversa: “para os inimigos, nem a lei!”.16

Na dimensão da isonomia, parecemos ainda um estado desburocratizado.


Entretanto, as representações do senso comum (e não apenas) sobre a burocracia
são muito menos otimistas. O próprio termo está mais claramente associado a
ambientes estagnados, obscuros, cheio de funcionários que atuam dentro de uma
rotina difícil de escapar. A rotinização parece ser uma marca dessas organizações.
Tais aspectos são visíveis nos julgamentos de órgãos judiciários, bastando para tanto
que o caso em exame não possua qualquer prestígio para ser individualizado. A busca
por metas, por eficiência, ou o simples cansaço vivido em função da repetição dos
casos e dos procedimentos levam os julgamentos a tomarem um ritmo de linha
de montagem.
Nos estudos sobre o sistema de justiça são comuns essas representações.
Para Battitucci et al17 a linha de montagem deriva de um excesso de burocracia,
onde a formalidade e as metas de eficiência chegam a um grau tão elevado, que o
tratamento dos processos ocorre de forma amplamente padronizada. Em 1995, Sapori

14
WEBER (1963): 229-31.
15
Neste sentido são as obras de autores como Sérgio Buarque de Holanda, José Murilo de Carvalho, Roberto da
Matta, Luciano Oliveira, Antônio Luís Paixão, entre outros.
16
OLIVEIRA, 2008.
17
BATITUCCI et al (2010): 248.

14 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014
“Acompanho o relator”: a síndrome da unanimidade nas câmaras criminais do TJPE

realizou uma pesquisa pioneira em juizados especiais de Belo Horizonte e observou


a existência de programas informais que conformavam a prática dos promotores,
defensores e juízes. A linha de montagem detectada por Sapori era composta de
uma meta de eficiência e por profissionais comprometidos com essa meta. Suprimir
algumas etapas do procedimento ou abrir mão de testemunhas em nome de uma
celeridade que não necessariamente interessava ao “cliente” da justiça penal.
De alguma forma, esse é um dos grandes achados da sociologia das
organizações. Em justiças burocratizadas, os interesses dos acusados costumam
divergir daqueles dos operadores da justiça, fortemente pressionados por metas de
eficiência. Assim, se para o réu o processo representa um momento angustiante
e importante de sua vida, para os que atuam na justiça não passa de mais um
processo, que faz parte de uma meta mais ligada a uma lógica de produção que
propriamente a uma lógica de justiça.18
Meyer e Rowan destacam que “o crescimento de estruturas institucionais
racionalizadas na sociedade [moderna] tornam organizações formais mais comuns e
mais elaboradas”.19 Porém, a adoção de regras formalmente institucionalizadas não
garante uma atuação racional por parte das organizações, embora seja fundamental
para garantir uma função mítica, a de proporcionar a legitimidade dessas organizações.
Para os autores, a própria adoção de critérios muito racionalizados nas decisões
sequer se harmoniza com a ideia de eficiência, que também orienta uma organização
como o judiciário. Como lidar com a exigência de garantir a legitimidade da organização
e, ao mesmo tempo, de apresentar resultados com eficiência?
Para Meyer e Rowan, essas exigências se compatibilizam através da adoção
cerimonial dos princípios racionalizadores20 das decisões, as quais, por seu turno,
em nada obedecem aos mandamentos das normas formais, desenvolvendo-
se no seio da organização um mecanismo de confidência entre seus agentes. As
decisões são tomadas segundo normas institucionalizadas informalmente no bojo da
organização, embora as normas formais sejam sempre evocadas retoricamente ou
cerimonialmente, como preferem os autores.
Tomemos o exemplo do princípio do colegiado. Os julgamentos dos habeas
corpus em segunda instância devem ser realizados por um órgão colegiado, o que
está relacionado a um objetivo de segurança jurídica, como foi dito. Porém, fica
claro que, na grande maioria dos casos, a decisão fica mesmo a cargo do relator

18
DIAS/ANDRADE (2011): 379-81.
19
MEYER /ROWAN (1977): 345.
20
A formulação feita por Rowan e Meyer aqui se assemelha ao que Pierre Bourdieu chama de violência simbólica,
artifício mediante o qual o jurista afirma estar fundamentando a sua decisão em um texto previamente
estabelecido e não em suas concepções pessoais, corroborando com a ideia de que as decisões são neutras
e impessoais. Os juristas dão como “fundadas a priori, dedutivamente, uma coisa que é fundada a posteriori,
empiricamente” (BOURDIEU (1991): 96).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014 15
Manuela Abath Valença

e sociologicamente se pode afirmar que são decisões tomadas monocraticamente.


Ainda assim, realiza-se toda uma cerimônia, compreendida pela sessão de julgamento,
pela leitura de um relatório e de um voto, que, ao final, é "posto em discussão"; os
votos são colhidos e a decisão é tomada "colegiadamente". Esta é a descrição mais
fiel do que Rowan e Meyer chamam de adoção cerimonial das normas formais.

3 A crise da unanimidade: adaptando as formalidades do


processo às metas de eficiência
A existência de órgãos julgadores colegiados está normalmente ligada a um
ideal de certeza e segurança jurídica. Tributa-se a mais de uma pessoa o julgamento
de uma causa por se acreditar que, dessa forma, chega-se a um provimento final
mais certo e justo. Os órgãos colegiados são comuns em todo sistema de justiça,
tanto no primeiro como no segundo grau.
No Brasil, a regra é a colegialidade nos tribunais, sendo o primeiro grau formado
por juízos monocráticos. Em outros países, como a França e a Espanha, verifica-se a
existência de órgãos colegiados em primeiro grau. Nos Estados Unidos esta também
é a regra no caso da justiça criminal, haja vista competir à instituição do júri (órgão
essencialmente coletivo) o julgamento dos crimes. A colegialidade é, portanto, uma
escolha que variará a depender do modelo administrativo da justiça.
Evidentemente, o julgamento colegiado demanda tempo. Pensando nisso,
algumas reformas legislativas foram realizadas no âmbito do processo civil, gerando
a já conhecida possibilidade de julgamento de mérito pelo próprio relator do processo.
Trata-se da previsão disposta no artigo 55721 do Código de Processo Civil.
No caso, o relator pode, por decisão monocrática, até mesmo dar provimento
a um recurso, se a decisão recorrida estiver em manifesto contraste com súmula ou
jurisprudência dominante dos tribunais superiores. Não interessam os pormenores
desse dispositivo, as discussões sobre o que significa “jurisprudência dominante” e
tampouco se esse dispositivo trouxe efeitos práticos do ponto de vista da celeridade.
Interessa apenas ressaltar que a tendência em reduzir a colegialidade é presente
em nosso ordenamento jurídico, muito embora esse dispositivo não se aplique à
justiça criminal.
A supressão da colegialidade fere direito fundamental? A resposta a essa
pergunta não é unânime, havendo uma série de debates sobre a essencialidade ou

21
Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado
ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal
Federal, ou de Tribunal Superior.
§1o-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do
Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso.

16 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014
“Acompanho o relator”: a síndrome da unanimidade nas câmaras criminais do TJPE

não do julgamento por órgãos coletivos. A constituição não prevê o colegiado como
modelo. Porém, há quem afirme que a colegialidade está implicitamente contida no
princípio do juiz natural, de modo que, se as legislações infraconstitucionais preveem
órgãos colegiados nos tribunais, é porque eles são os competentes para julgar o
feito, não cabendo ao relator fazê-lo.22
É possível fazer intermináveis considerações sobre a colegialidade, se ela de
fato traz ou não maior certeza aos julgamentos, se é imprescindível a sua observância
do ponto de vista da Constituição etc. Porém, há uma consideração tipicamente
sociojurídica a se fazer: a colegialidade sofre com o peso da superlotação e mantém-se
de pé apenas aparentemente, porque nos tribunais há muito que se criaram
mecanismos de superá-la.
Em uma das sessões a que assistimos, ocorreu um episódio curioso. O
desembargador (d. 14) relator do caso acabara de ler o seu voto, que era no sentido
de denegar uma ordem de habeas corpus. Prontamente, o presidente da sessão
passou a palavra ao outro desembargador que, como de praxe, acompanhou o relator.
Foi então que o presidente disse: "também acompanho. À unanimidade de votos,
concedeu-se a ordem, nos termos do voto do relator" e, logo após, lembrou o relator:
"meu voto é pela denegação". E, prontamente, o presidente da sessão ratificou: "À
unanimidade de votos, denegou-se a ordem, nos termos do relator". Mero engano?
Não, quando se percebe que esse é o padrão: adotar o colegiado de forma cerimonial.
Na prática, pois, diversos habeas corpus são julgados pelos relatores,
participando os demais apenas de um passivo “acompanho”. O julgamento por três
é, em verdade, o julgamento por um e isso está fortemente ligado à necessidade de
se julgar logo. Há outras questões, é certo. A unanimidade por vezes ocorre depois
de largas discussões entre os desembargadores, situações muito raras, é certo. A
unanimidade pode também já ser o fruto de entendimentos pacificados na câmara
criminal, embora jamais esteja pacificado que o caso em exame se aplique ao padrão
formado na câmara.
Ainda, a unanimidade pode decorrer de diversos fatores extraoficiais, apontados
em trabalho de Barbosa Moreira, que vão desde o horário em que ocorre a sessão até
a cadeira em que se sentam os julgadores. Há explicações de sobra, enfim, para uma
produção de mais de 98% de decisões unânimes nos órgãos pesquisados. Embora
não se possa negar que entre os desembargadores que passaram pelas câmaras
ao longo dos últimos dois anos23 possa haver certa afinidade de ideias e que nem
sempre a unanimidade é fruto de falta de discussão (conforme pudemos observar no
trabalho de campo), é possível imaginar que a colegialidade seja inconveniente para a

22
ARENHART (2001): 39-43.
23
Período da análise quantitativa dos acórdãos, conforme abordaremos no próximo ponto.

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necessidade de produção de resultados a qual está submetida qualquer organização.


Nas sessões a que assistimos o padrão foi exatamente o mesmo: raramente se
parava para discutir um caso.24

4 A pesquisa de campo: observando e exoticizando o


familiar
Os resultados apresentados em seguida são fruto de duas metodologias de
que lançamos mão. Primeiramente, do tratamento quantitativo com 1.818 acórdãos
proferidos pelas quatro câmaras criminais do TJPE e, em seguida, da observação
não participante nas plenárias de julgamento dos habeas corpus. Em verdade, o
estudo quantitativo dos acórdãos aparece um tanto como complemento ao trabalho
etnográfico e como elemento que ajudou a interpretar algumas das situações que
foram observadas.
A antropologia elaborou seus métodos com base nas pesquisas realizadas em
sociedades dedicadas à coleta, à caça, à agricultura de subsistência. Sociedades,
portanto, estranhas e distantes das de seus primeiros pesquisadores. Quando
Malinowski (1978), no início do século XX, funda as bases dos trabalhos etnográficos,
explorando o cotidiano e cultura dos povos das Ilhas Trobriand, retira-se de sua zona
de conforto de pesquisador de uma universidade europeia para viver com povos até
então desconhecidos, em um ambiente de clima hostil e hábitos estranhos.25
O processo de estranhamento, essencial na pesquisa etnográfica, parece
mais evidente quando saímos literalmente de nosso ambiente e adentramos outro
totalmente distante e nada familiar, como uma tribo indígena, uma comunidade
quilombola. A distância aparece como elemento imperativo. O momento inicial da
antropologia era um movimento de transformar o exótico em familiar, reduzindo essa
distância que de fato existia entre os pesquisadores e os observados.
Com o passar do tempo, a antropologia passa a explorar também o ambiente
das cidades. Ao voltar para a cidade, o movimento parece ser o de transformar
o familiar em exótico.26 Mas e quando nós pesquisadores fazemos parte dessas
instituições? Quando a compomos como atores? Juristas fazendo etnografia em

24
Os momentos em que isso ocorre são mais detalhadamente trabalhados na dissertação de mestrado da
autora. ABATH (2012).
25
Aliás, a divulgação dos diários de campo de Malinowski, após a sua morte, por parte de sua esposa,
causou um verdadeiro alvoroço no mundo da antropologia. Isso porque Malinowski dedicou em seus
escritos considerações pouco simpáticas em relação aos Trobriand. Embora tenha sido acusado de
preconceituoso (que poderia ser de fato, mas isso não vem à questão aqui), na verdade, registrou seus
sentimentos mais genuínos de um homem europeu e branco que desejava voltar a sua zona de conforto e
verdadeiramente se sentia desconfortável em uma ilha em que o estilo de vida em nada se aproximava do seu
(GEERTZ (1997): 85).
26
DA MATTA (1978): 28.

18 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014
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tribunal? Professores observando universidades? Fiéis vivenciando o estranhamento


em igrejas? Aqui é necessário, de fato, encetar o exercício de exoticizar o familiar.
Em O ofício do etnólogo ou como ter anthropological blues, Roberto da Matta
inicia traçando o que poderão ser os passos de um pesquisador que deseja realizar
uma pesquisa etnográfica. A primeira fase da pesquisa, a “teórico-prática”, é aquela
na qual ainda não temos contato com o nosso objeto e o conhecemos apenas a partir
dos “outros”: teorias, livros, reportagens e qualquer outra fonte que o mediatiza. A
segunda etapa, a do “período prático”, é a que antecede o início do campo, os últimos
preparos. Por fim, a terceira e última fase é chamada de “pessoal ou existencial” e é
formada pelo trabalho de campo propriamente dito, quando o pesquisador finalmente
mergulha no universo observado.
Rapidamente é possível perceber que o jurista etnólogo de tribunais não vivencia
essas três fases, ao menos não nessa ordem. Possivelmente ele já vivenciou a
realidade dos tribunais diversas vezes, mesmo antes de ser levado a teorizar sobre
ela. No geral, não enfrenta dificuldades para obter permissão de se inserir no campo
e, tampouco, de obedecer a certas etiquetas do universo pesquisado, que vão desde
a forma de se vestir ao tratamento a ser dispensado aos julgadores ou colegas
advogados. Por último, o que o jurista sabe de seu campo ele apreendeu não apenas
a partir dos “outros”, mas de “si mesmo”.
O primeiro passo parece ser então o de relativizar tudo o que se sabe do
tribunal, tudo o que a partir de “si mesmo” já se acredita saber daquele espaço. Se
fazer etnografia é como

tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito


estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas
e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais
do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado.27

é preciso que transformemos o velho tribunal nesse escrito estranho e desbotado.


Evidentemente conhecemos certos aspectos de suas vidas, crenças e valores,
afinal, sabemos quem são os juízes ou desembargadores mais sensíveis, mais
simpáticos, mais receptivos aos advogados, mais progressistas etc. Porém, no
exercício da advocacia ou mesmo como estagiários, não empreendemos um olhar
sistemático sobre essa realidade.
Esses são “mapas” que construímos um tanto quanto aleatoriamente e de
forma desconectada. É possível que nos surpreendamos quando nos propomos a
fazer leituras mais sistematizadas dessas realidades. O primeiro passo, portanto,
dado no desenrolar da pesquisa de campo, surgiu a partir da leitura de Gilberto Velho

27
GEERTZ (1989): 20.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014 19
Manuela Abath Valença

e de sua advertência: “O meu conhecimento pode estar seriamente comprometido


pela rotina, hábitos, estereótipos”.28

4.1 As observações não participantes


As sessões criminais ordinárias ocorrem às terças e quartas. A primeira sessão
a que assisti foi no dia 28 de fevereiro e a última no dia 11 de julho de 2012. Ao
todo foram 26 sessões, sendo oito da 1ª câmara, seis da 2ª, seis da 3ª e seis da
4ª. Assisti a mais sessões da primeira câmara porque um novo desembargador foi
empossado como titular. A forma de adaptação dele às regras das sessões era um
fato que eu pretendia observar.
Ressalte-se que o plano inicial era presenciar, pelo menos, 32 sessões, sendo
oito de cada câmara. Porém, no terceiro mês de pesquisa, eu já observava uma
verdadeira saturação do campo, porque as próprias reuniões são muito repetitivas e
pouca coisa nova acontece.

4.2 O trabalho quantitativo com os acórdãos


Conforme dispõe o artigo 27 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de
Pernambuco (Resolução nº 84, de 24.01.1996), compete às câmaras criminais
isoladas processar e julgar:

os habeas corpus, quando o coator for Secretário de Estado, o


Comandante Geral da Polícia Militar, o Comandante Geral do Corpo de
Bombeiros Militar, o Prefeito da Capital, o Procurador Geral da Justiça,
o Colégio de Procuradores de Justiça, o Corregedor Geral do Ministério
Público, o Procurador Geral do Estado e juiz ou tribunal de 1º grau,
inclusive nos casos de prisão administrativa ou civil.

Esta última hipótese abarca a grande maioria dos habeas corpus analisados
nessa pesquisa. Destaque-se que o habeas corpus é o instrumento utilizado quando
o coator é juiz de primeiro grau, o que faz com que a ação penal funcione como
verdadeiro recurso. Sendo assim, o que a grande maioria dos writs procura é um
segundo grau de jurisdição, onde se possa reverter uma decisão desfavorável sobre
a manutenção ou decretação de uma prisão preventiva pelo juiz da primeira instância.
Anteriormente já descrevemos o procedimento de julgamento dos habeas
corpus. Passemos então à descrição do desenho da pesquisa.
O estudo quantitativo dos acórdãos de habeas corpus liberatórios foi feito por
meio da consulta a um banco de dados criado pelo próprio TJPE, onde constam

28
VELHO (1978): 41.

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todos os acórdãos proferidos pelo tribunal de 2000 a 2011. Através do programa


disklite-meta é possível acessar as decisões contidas no banco por meio de processos
de busca pela data ou por palavras-chave. Utilizaram-se os argumentos "liberdade
provisória", "prisão preventiva" e "artigo 312 do Código de Processo Penal" e as
datas de julgamentos foram as compreendidas entre 1º de julho de 2009 e 1º de
julho de 2011. Destacamos que tal período foi escolhido por razões operacionais e
de tempo e por corresponder exatamente àquele em que a autora vem trabalhando
em uma outra pesquisa.29 Desse modo, foi possível aproveitar os acórdãos que já
vêm sendo trabalhados para analisá-los segundo os propósitos desta dissertação.
Feita a busca, foram disponibilizados quase dois mil acórdãos de habeas
corpus liberatórios. Entretanto, interessavam apenas os conhecidos pelo tribunal,
isto é, aqueles sobre os quais houve decisão de mérito sobre concessão ou não da
liberdade provisória. Ao final, ficamos com 1.818 acórdãos.
Composto o universo, passou-se a uma simples análise de conteúdo, colhendo-
se neles as seguintes variáveis: a) a câmara de origem, b) o crime, de acordo com
o bem jurídico protegido ou, em alguns casos, o próprio delito, c) o resultado da
demanda (se denegada ou concedida a ordem de habeas corpus) e d) o resultado
da decisão quanto à tendência dos votos (se unânime ou por maioria).30 Inicialmente
também pretendíamos saber o tipo de defesa do paciente (se pública ou privada),
mas essa informação não estava contida na esmagadora maioria dos casos.
Essas categorias foram pensadas evidentemente a partir da hipótese inicial do
trabalho e, diante da imensidão de dados que um acórdão oferece, foram olhados
apenas alguns. Martin W. Bauer, ao falar da análise de conteúdo, dispõe:

Embora o corpus de texto esteja aberto a uma multidão de possíveis


questões, a AC interpreta o texto apenas à luz do referencial de
codificação, que constitui uma seleção teórica que incorpora o objetivo
da pesquisa.31

29
Foi utilizado o banco construído na pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal: A construção de políticas
públicas de racionalização do poder punitivo”, fruto de um convênio entre o CNJ e a CAPES e coordenada
nacionalmente pelo Prof. Dr. Rodrigo de Azevedo e em Pernambuco pelo Prof. Dr. José Luiz Ratton. A pesquisa
possui quatro linhas, sendo uma delas sobre prisões preventivas no Brasil.
30
A variável “câmara de origem” foi colhida numericamente, de 1 a 4; a “bem jurídico” também numericamente,
atribuindo-se um valor de 1 a 11 de acordo com os bens jurídicos atingidos, utilizando-se a caracterização do
Código Penal (crimes contra a vida, contra o patrimônio etc.) e, no caso de legislação extravagante, atribuindo-
se um valor à lei como um todo (ex.: se o crime é de associação para o tráfico ou o referente a quaisquer
das condutas descritas no art. 33 da Lei nº 11.343, a categoria seria a mesma: lei de drogas). Apesar de
entender que a categorização pelo bem jurídico empobrece um pouco a análise, haja vista poderem estar no
mesmo patamar crimes como o de furto e de latrocínio – ambos caracterizados como contra o patrimônio –,
afigurou-se como a única alternativa redutora da complexidade que adviria de um tratamento do caso pelo tipo
penal. Poderíamos chegar a um banco com mais de 50 tipos de crime, considerando que só o artigo 33 antes
referido possui 14 verbos/condutas. Por fim, o resultado da demanda ou resultado de acordo com a tendência
dos votos foi colhido de forma dicotômica (concessivo ou denegatório e à unanimidade ou por maioria).
31
BAUER (2002): 199.

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4.3 O nosso universo


Já adiantamos no capítulo anterior que o habeas corpus não integra a pauta
da sessão da câmara, possuindo preferência sobre todos os demais processos.
Quando a sessão começa, eles são os primeiros a serem julgados. Isso dura, em
média, uma hora e meia e são julgados cerca de treze a quinze writs, podendo esse
número ultrapassar o de vinte. A média de tempo dedicada, na sessão, a cada
HC é de cinco minutos, dentro dos quais ocorre a leitura do relatório, do voto, a
discussão e o julgamento. Esse tempo pode ser bastante estendido ou reduzido.
Presenciamos ações de impugnação dessa natureza sendo julgadas em quarenta
minutos e outras, em menos de um minuto, entretanto, ambos são casos extremos e
não correspondem ao padrão. No geral, há um ritmo contínuo de julgamento durando
cerca de quatro minutos. É esse o cenário em que a linha de montagem se desenvolve.
Dediquemo-nos, agora, finalmente, a tratá-la.

4.4 Discutindo os resultados: a lógica da unanimidade

“Nós estamos trabalhando sob carga, sem tempo. Julgamos liberdade


como se julga em um jogo de futebol” (des. 4)
“Vamos votar simplificadamente” (des. 1)

Como já dito em outro momento deste trabalho, 98% das decisões analisadas
foram unânimes. A partir das observações realizadas, pudemos observar que a pressa
com que se julgam os habeas corpus é certamente um fator que leva a um padrão
de julgamento em que o relator vota e os demais desembargadores simplesmente
o acompanham. Há entre eles uma enorme relação de confiança (que é até mesmo
instrumental) e uma etiqueta partilhada entre quase todos que prescreve o dever
de se acompanhar no geral, afinal, imaginemos que cada desembargador decidisse
analisar com pormenor cada um dos casos julgados e o Tribunal entraria em colapso.
A produção de unanimidade está também relacionada a outros aspectos que
pudemos observar.
Barbosa Moreira, em trabalho publicado há alguns anos, falava-nos de
elementos extrajurídicos que compunham um órgão colegiado. Para a surpresa do
leitor, ele não estava a tratar de relações pessoais dos desembargadores entre si
ou com advogados ou ainda com sujeitos exteriores ao mundo jurídico. Não falava
de corrupção ou condução pouco proba da atividade judiciária. Moreira nos falava de
elementos quase sempre anônimos, mas que poderiam exercer enorme influência
sobre os julgamentos: a iluminação das salas, o tamanho delas, a disposição dos
assentos, a distância entre os julgadores e entre estes e os advogados, o horário e

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até mesmo o dia das sessões, as necessidades fisiológicas dos julgadores e outras
questões tão naturais que soam inofensivas.32
É evidente que, se a lógica geral é acompanhar o relator, não é preciso prestar
imensa atenção às razões de fato e de direito aduzidas por ele ao longo do voto. É
preferível confiar. É por essa razão que, por vezes, ao longo das leituras, os vogais
continuam com as suas atividades de rotina (atender ao telefone, dar continuidade
a papelada etc.). Porém, isso não acontece sempre. É possível identificar alguns
desembargadores que depositam enorme atenção à leitura do relatório e do voto
pelo relator e apenas esporadicamente são levados a perderem essa atenção e a
acompanhar cegamente. Acidentalmente, esses fatores apontados por Moreira
podem ser significativos na formação da síndrome da unanimidade porque podem
prejudicar o debate.
Chamamos esses elementos de incidentais porque eles não aparecem em todos
os casos. São, de fato, episódicos, embora não pouco relevantes. Dedicar-nos-emos
aqui a apresentar alguns deles, observados ao longo da pesquisa de campo.
Seguindo a esquematização de Moreira, comentaremos os fatores de ordem de
lugar, de tempo e de modo de julgamento.
Em termos de lugar, podemos destacar que a sala onde ocorrem as sessões é
bastante ampla, refrigerada, com cadeiras aparentemente muito confortáveis para os
desembargadores e com aparelho de som que permite que os julgadores, o advogado
e o membro do MP possam ser ouvidos com clareza. Há, digamos assim, condições
físicas para o debate.
Ao mesmo tempo, os votantes não ficam sentados lado a lado, o que poderia
provocar conversas paralelas que tirariam a atenção deles. Para Moreira, todos
esses fatores podem influenciar na forma como a votação é conduzida. Apenas um
deles me pareceu presente no universo investigado. O conforto das cadeiras onde
os desembargadores se sentam pode relaxá-los a tal ponto que, somado a outros
fatores, provoque sono neles. Por óbvio, não se espera cadeiras desconfortáveis.
Porém, sentir-se muito à vontade pode facilitar o sono, sobretudo nos horários mais
críticos do dia.
Adentramos, então, o conjunto dos segundos fatores elencados por Moreira,
que são os relacionados ao tempo. O dia, o horário, a quantidade de tempo e de
processos em pauta, o número de advogados que desejam fazer sustentação oral,
dentre outros, são fatores que podem exigir que as sessões ganhem um ritmo mais
ou menos acelerado e que ajudam ou atrapalham nos debates.
O primeiro e mais evidentes deles é o horário. Nas sessões que ocorrem à
tarde, após o almoço, o sono é um personagem que pode se tornar presente. Durante

32
MOREIRA (1994): 7-8

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Manuela Abath Valença

a etnografia, pudemos flagrar alguns cochilos breves, aquilo que o senso comum
chama de “pescar”. Em uma das ocasiões, inclusive, um advogado fazia sustentação
oral e sentiu necessidade de chamar nominalmente o desembargador que caiu na
tentação da siesta.33
No que tange ao tempo, os elementos sem dúvidas mais importantes na linha
de montagem foram a grande quantidade de processos em pauta e a presença de
muitos advogados para fazerem sustentação oral. Os desembargadores sabem que
em quaisquer dos dois casos, a sessão pode durar muitas horas e, portanto, podem
preferir suprimir alguns debates para que haja tempo de julgar tudo o que se previra
para o dia.
Presenciamos uma sessão em que um dos desembargadores já estava cerca
de meia hora atrasado e o presidente lamentava, afirmando que justamente naquele
dia tinham “não sei quantos advogados para fazer sustentação oral” (d. 1). A sua
preocupação era relevante. Para se ter uma ideia, neste dia, um dos habeas corpus
durou cerca de quarenta minutos para ser apreciado e nem chegou a ser julgado,
porque o d. 2 pediu vista. Isso faz desandar completamente o ritmo de linha de
produção e, em consequência, interfere na obtenção da meta de eficiência.
Em outra ocasião, o presidente da sessão iniciou os trabalhos com uma
advertência: “vamos votar simplificadamente”. De fato, foi a sessão mais acelerada
que pudemos presenciar: treze HCs em 37 minutos. Não pude entender ao certo a
razão da pressa, mas não tenho dúvidas de que se ligava ao problema da pauta ou
quiçá ao horário de finalização da sessão. Como destaca Moreira:34

Ocioso frisar a influência que essas vicissitudes são capazes de exercer


sobre o teor dos julgamentos. Acelerar o ritmo dos trabalhos, na ânsia
de conciliar o horário com o esgotamento da pauta, significará por vezes
levar os juízes a pronunciar-se de maneira irrefletida, em prejuízo da
valoração das teses e argumentos em causa.

Por fim, ainda outro episódio demonstrou o quanto o tempo pode ser relevante
para a existência de debates. Em outra sessão, um dos desembargadores (o d. 3)
informou que naquele dia teria uma evento em homenagem ao Procurador Geral de
Justiça e insinuou que a sua participação seria importante. Ele deixou claro que tinha
pressa para acabar a sessão. Foi então que um fato curioso aconteceu, não sabemos
se por coincidência ou porque o desembargador tinha mesmo a prioridade de concluir
a sessão a tempo de participar do tal evento.

33
Barbosa Moreira comenta sobre alguns casos na Cour de cassation francesa e na Reichsgericht alemã em
que os julgamentos foram impugnados por terem os julgadores dormido ao longo das discussões (MOREIRA
(1994): 11).
34
MOREIRA (1994): 15.

24 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014
“Acompanho o relator”: a síndrome da unanimidade nas câmaras criminais do TJPE

O d. 1 era relator de um processo e ao acabar de ler o relatório, antes mesmo


de ler o voto, foi surpreendido com um “acompanho” do d. 3. O d. 1 lê a ementa do
acórdão, proferindo o seu voto e comenta: “ele está com pressa, está com pressa”.
A situação provocou risos em todos os que acompanhavam a sessão.
Barbosa Moreira menciona, ainda, os elementos relacionados ao modo de
julgamento. Se ele é público ou secreto, se a parte interessada está presente na
sala de votação ou não, dentre outros fatores. O ponto mais importante a ressaltar
é a respeito do terceiro voto em um órgão colegiado formado por três julgadores,
como é o caso das câmaras criminais. Bem, se os dois primeiros votos proferidos
são no mesmo sentido, é inútil divergir quando você é o terceiro votante. Isso possui
influência direta sobre a produção de decisões unânimes.
Outro dado relevante diz respeito à personalidade do presidente da
câmara.35 Muitas vezes eles são mais capazes de influenciar na votação dos
processos, simplesmente por serem pessoas mais participativas e firmes em seus
posicionamentos. Quando vislumbram que a discussão tomará um rumo com o qual
não concordam, interferem e conduzem as discussões. Essa situação ficou visível em
uma das câmaras onde o presidente (d.7) possuía tais características.
Destaque-se ainda que a presença do advogado na sala de votação gera certo
dever de não apenas votar fundamentadamente como também de acompanhar com
atenção as discussões. Às vezes eles apelam para a presença dos familiares dos
pacientes, mas não nos pareceu que isso influa de alguma maneira na postura
dos desembargadores.
Por fim, ressaltemos a importância que outros acontecimentos fortuitos podem
ter na formação de um padrão de unanimidade: atender ao celular, conversar com
outras pessoas ao longo da leitura do voto, pensar em outra coisa, dar atenção
a algum fato que ocorre no público (um choro, uma fala de revolta, um gesto de
reprovação), enfim, todos esses pequenos atos do cotidiano que retiram a atenção
de qualquer pessoa.

5 Conclusão
A existência de órgãos colegiados em nosso sistema de justiça está geralmente
relacionada a um ideal de segurança jurídica. A colegialidade, entretanto, é um
modelo que demanda tempo e que pode não corresponder a outros objetivos de uma
organização como o judiciário, sobretudo aqueles ligados a suas metas burocráticas
de eficiência.

35
MOREIRA (1994): 20.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014 25
Manuela Abath Valença

O judiciário pernambucano – e não apenas ele – trabalha em uma conjuntura


de grande demanda e com taxas de congestionamento de processos que chegam a
níveis alarmantes. Isso pode levar a múltiplas estratégias, entre elas a mitigação do
colegiado e a reprodução de uma justiça em linha de montagem em que um voto é
lido e a discussão, resumida a dois simples “acompanho o relator”. Nas câmaras
criminais do TJPE esse é o padrão observado em grande parte dos julgamentos.
A colegialidade pode, ainda, ser abalada por questões relacionadas à rotina dos
julgamentos: horários, dias, formas de funcionamento da câmara. Pudemos notar
que esses fatores podem influenciar nos debates, suprimindo-os por completo ou
os prejudicando.
O quadro é de uma produção de 98% de decisões unânimes nos julgamentos
dos habeas corpus, nas quais a unanimidade nem sempre corresponde a um acordo
de ideias, mas que pode ser fruto da falta de debate proporcionado pelas exigências
de eficiência ou pela rotinização inerente à cerimônia da sessão de julgamento
desses writs.
Essa “síndrome de unanimidade” pode nos fazer concluir que a existência de
julgamento monocrático por parte do relator, uma possibilidade jurídica apenas no
artigo 557 do CPC, pode ser uma realidade sociológica em diversos órgãos da justiça,
penal ou não.

Abstract: The criminal courts in Brazil are basically collegiate courts. This is a model that spends time,
because the same process must be analyzed by more than one magistrate. In a scenario of over-burdening
of the courts, the collegiate is usually mitigated and remains just like a ritual without meaning. Some
experts of the criminal process call that “unanimity´s syndrome”, referring to a phenomenon where a large
number of decisions are unanimous, despite the lack of real agreement between the magistrates. The
task of this paper is to present a research based on a quantitative analysis of 1.818 decisions of the four
criminal chamber of a court in Brazil (TJPE) and an ethnographical observations of the trials sessions. The
overwhelming of the decisions (more than 90%) are unanimous and the judges tend to follow the first vote
mentioned. Considering the contributions of the organizational sociology, we conclude that the collegiate
courts works hardly like a monocratic court and it is largely related to bureaucratic priorities.
Key words: Collegiate courts. Bureaucracy. Efficiency. Unanimity’s syndrome.

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26 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

VALENÇA, Manuela Albath. “Acompanho o relator”: a síndrome da unanimidade nas


câmaras criminais do TJPE. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014.

28 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 9-28, out./dez. 2014
Arrematação por preço vil na
execução civil

Felipe Scalabrin
Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale dos Sinos, vinculado à linha
Hermenêutica, Constituição e Concretização de Direitos. Membro do Grupo de Pesquisas
em Direito Processual Civil vinculado ao CNPQ “O processo civil contemporâneo: do Estado
Liberal ao Estado Democrático de Direito”.

Resumo: O presente texto trata da arrematação por preço vil no âmbito da execução por quantia certa
contra devedor solvente. Busca-se uma compreensão em torno do reconhecimento deste conceito no
bojo da situação decidenda a partir dos aportes oriundos da doutrina e da jurisprudência acerca do tema.
Inescapável, ainda, a crítica ao Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-chave: Execução civil. Preço vil. Arrematação. Avaliação.

Sumário: 1 Introdução – 2 Contextualização do problema – 3 Aportes para o reconhecimento da vileza –


4 Considerações conclusivas – Referências

1 Introdução
O Superior Tribunal de Justiça tem sedimentado o entendimento segundo o qual
a alienação de bens do devedor para a satisfação do credor por ocasião da execução
forçada não pode se dar por valor inferior a 50% da avaliação dos bens. Noutras
palavras, no entendimento do Tribunal, haverá preço vil na venda judicial que não
atinja ao menos o patamar referido. Anacronicamente, a própria Corte possui julgados
que atestam que a questão jurídica discutida (existência de preço vil) depende de um
exame das peculiaridades do caso concreto, sem, no entanto, apontá-las.
Pari passu, acompanhando a (des)orientação do Tribunal Superior, tem se
tornado corrente na jurisprudência dos Tribunais inferiores o entendimento de que
a alienação judicial feita por até 50% do valor da avaliação é válida e, do contrário,
haverá nulidade no ato, porquanto violador do comando previsto no Diploma Processual
(art. 692).
Seguindo o desencadeamento hierárquico-jurisprudencial da questão, essa
perspectiva é corroborada nos juízos de primeiro grau, inclusive, p. ex., com o
surgimento de previsões específicas nos editais de leilão repudiando-se lanços por
valor inferior ao critério objetivamente prescrito ou, de igual modo, com a rejeição
liminar de propostas apresentadas por terceiros interessados na aquisição dos bens,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014 29
Felipe Scalabrin

frustrando-se, assim, a possibilidade de expropriação que, na sequência, asseguraria


a satisfação do crédito em execução.
Nesse contexto, o presente estudo pretende revisitar a questão do preço vil na
perspectiva doutrinária, legal e jurisprudencial para, então, verificar se é adequada a
tomada de decisão realizada pelo Superior Tribunal de Justiça e condutora da postura
dos demais órgãos jurisdicionais. Certamente, trata-se de questão que passa –
como todo dilema haurido do processo executivo – pelo cotejo entre a proteção do
executado e a satisfação do exequente; pela orientação geral em torno do conceito
jurídico versado e, por que não, pelo próprio papel do citado Tribunal Superior.
Antes, porém, é preciso memorar em que contexto surge o problema da
alienação por preço vil.

2 Contextualização do problema
2.1 Breves notas em torno da execução por quantia certa
contra devedor solvente
Também aceito como execução obrigacional,1 o processo de execução tem por
requisitos a existência de título hábil a confirmar o direito do autor e a afirmação do
inadimplemento pelo devedor.2 A execução por quantia certa é aquela que busca o
cumprimento de obrigação notadamente pecuniária.
Na busca pelo cumprimento da obrigação, o processo de execução surge como
medida jurisdicional que permite a invasão do patrimônio do devedor inadimplente
a fim de satisfazer o direito do credor.3 Através da chancela do Estado-Juiz passa a
ser possível, inclusive, a expropriação dos bens do devedor para que seja liquidado
o débito.4
Assim, diante do não pagamento espontâneo, está autorizado o credor a
ingressar em juízo, requerendo a citação do devedor para que, em derradeira
oportunidade,5 pague o débito no prazo de três dias, sob pena de prosseguimento da

1
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil. Volume 2. Execução obrigacional, execução real, ações
mandamentais. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 19 e ss.
2
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil, op. cit., p. 31-32; art. 580 do CPC: “A execução pode
ser instaurada caso o devedor não satisfaça a obrigação certa, líquida e exigível, consubstanciada em título
executivo (redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006)”.
3
“Lo scopo mediato dell’esecuzione si collega al rapporto giuridico sostanziale, ed è analogo a quello
dell’adempiemento: il procedimento esecutivo si muove per la realizzazione del diritto del creditore.” PUGLIATTI,
Salvatore. Esecuzione forzata e diritto sostanziale. Milano: Dott A. Giuffre, 1935, p. 135.
4
Art. 591 do CPC: “O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens
presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei”. Art. 646 do CPC: “A execução por quantia certa
tem por objeto expropriar bens do devedor, a fim de satisfazer o direito do credor”.
5
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil, op. cit., p. 84.

30 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014
Arrematação por preço vil na execução civil

execução. Não havendo o pagamento, a execução prossegue com a busca de bens


ou valores hábeis à satisfação da dívida (art. 652 do CPC).6
Nesse aspecto, o Estado, através do processo executivo, poderá invadir o
patrimônio alheio (do executado) para assim, coativamente, assegurar o pagamento
da dívida havida em favor do credor. Através da execução, realiza-se, pois, o
ato executivo.7
Não ocorrendo o pagamento, procede-se à penhora de bens do executado
(devedor), momento da execução que consiste, na antiga (e atual) lição de Salvatore
Pugliati, “nella determinazione dei beni sui quali deve cadere l’esecuzione e nel
sequestro o fermo di detti beni, per sottrarli alla materiale disponibilità del debitore”.8
Perfectibilizada a penhora de bens (móveis ou imóveis),9 deverão estes ser
avaliados, nos termos do art. 680 e seguintes do Diploma Processual. É a avaliação
que quantifica monetariamente o bem constrito. Noutras palavras, é este ato que
permite a aferição do valor, em pecúnia, daquilo que foi penhorado; é a sua “estimação
em dinheiro”.10
Destaque-se que, com as reformas oriundas da Lei nº 11.382/06, a avaliação
passou a ser realizada por Oficial de Justiça Avaliador. Fica dispensada, de regra, a
estimativa feita por perito avaliador que era a regra antes das mudanças. Entretanto,
a peculiaridade do objeto penhorado poderá demandar a avaliação por profissional
da área.11
Estabelecido o valor do bem objeto da penhora, iniciam-se os atos expropriatórios,
pois, como já adiantado: “o destino natural dos bens objeto do processo executório
é serem transformados, pela alienação, em dinheiro, de modo que, com o produto da
alienação, o credor seja pago”.12 Assim, com o produto da venda do bem do devedor,
paga-se o credor.

6
Art. 652 do CPC: “O executado será citado para, no prazo de 3 (três) dias, efetuar o pagamento da dívida
(Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006)”.
7
Não há pretensão, neste texto, de aprofundar o conceito de ato e (atos) executivo(s). Para tanto, consultar:
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil, op. cit., p. 25 e ss.
8
PUGLIATTI, Salvatore. Esecuzione forzata e diritto sostanziale, op. cit., pp. 145-146. Para um percuciente
estudo dos efeitos da penhora e do depósito no âmbito da execução forçada, na mesma obra: pp. 146-154.
9
A invasão patrimonial poderá ocorrer em diversas esferas que transbordariam o estudo. Diuturnamente a
técnica processual se aprimora para assegurar, sob o ponto de vista do exequente, a satisfação do crédito
pelas mais variadas vias. Não mais a penhora se limita aos bens do executado. O próprio Código de Processo
Civil arrola a possibilidade de incidir a penhora sobre créditos e outros direitos (art. 671 e seguintes), e ainda
chancela a penhora do estabelecimento empresarial (art. 677 e seguintes).
10
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. v. 3. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1997,
p. 321.
11
Art. 680 do CPC: “A avaliação será feita pelo oficial de justiça (art. 652), ressalvada a aceitação do valor
estimado pelo executado (art. 668, parágrafo único, inciso V); caso sejam necessários conhecimentos
especializados, o juiz nomeará avaliador, fixando-lhe prazo não superior a 10 (dez) dias para entrega
do laudo”.
12
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil, op. cit., p. 99.

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Felipe Scalabrin

Diversas são as modalidades de expropriação do bem através da via executiva.


A arrematação é uma delas – “mas não é a única”.13 Poderá, assim, ocorrer a
adjudicação, o usufruto forçado, ou ainda a alienação a particular. Em todas estas
hipóteses, deixa o bem penhorado de integrar o patrimônio do executado para que
seja satisfeito o crédito do exequente.
A arrematação é a consequência típica da hasta pública. Na lição de Ovídio
Baptista da Silva:

A transferência dos bens penhorados, em virtude da arrematação, dá-se


através de hasta pública, a qual, na sistemática do nosso direito, pode
consistir em praça ou em leilão (...). O procedimento da arrematação
desdobra-se substancialmente em três fases: a) a primeira delas
consistente nos atos preparatórios tendentes a anunciar a realização
da praça ou leilão; b) o procedimento de licitação propriamente dito
do bem penhorado; c) finalmente a assinatura do auto, com o qual a
arrematação, diz o art. 694 do CPC, considera-se perfeita, acabada
e irretratável.14

É nesse contexto que, para o encerramento do negócio jurídico público e


processual havido15 (alienação do bem a terceiro, seja qual for a modalidade), o
Código de Processo Civil condiciona a perfectibilização do ato à chancela judicial
(art. 694) e, ainda, dispõe:

Art. 692. Não será aceito lanço que, em segunda praça ou leilão, ofereça
preço vil. (Redação dada pela Lei nº 8.953, de 13.12.1994)
Parágrafo único. Será suspensa a arrematação logo que o produto da
alienação dos bens bastar para o pagamento do credor. (Incluído pela
Lei nº 8.953, de 13.12.1994) (grifou-se)

Eis, então, o nó górdio da questão que vai tencionado em torno da finalização da


alienação e na sua limitação quanto ao valor pelo qual se expropria o bem do devedor
para a satisfação do credor. Com adiantado, a jurisprudência paulatinamente tem
apontado um critério (não tão) objetivo para a verificação do que se entende por preço
vil. Necessário, então, alocar o problema no seu lugar a partir de algumas indicações
básicas de sentido acerca da problemática, o que se faz na sequência.

13
Idem, ibidem., p. 99.
14
Idem, ibidem., p. 101
15
Assume-se, aqui, que a arrematação possui natureza de “negócio jurídico processual” (Araken de Assis). Não
se pretende, entretanto, trazer à baila tal discussão. Para tanto, além da lição de Araken de Assis, consultar:
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil, op. cit., p. 100; PUGLIATTI, Salvatore. Esecuzione
forzata e diritto sostanziale, op. cit., p. 315; MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil.
Tomo XIII. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1961, pp. 339-353.

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Arrematação por preço vil na execução civil

2.2 A arrematação por preço vil no senso comum da


comunidade jurídica
Na lição de Araken de Assis a proibição de arrematação por preço vil, de
origem pretoriana, surge para evitar “distorções profundas e graves” no curso da
execução.16 Confira-se:

Como visto, na segunda licitação alienar-se-á o bem penhorado pelo


melhor preço, ainda que inferior ao justo, ou seja, ao preço da avaliação.
Ora, esta possibilidade de alienação, por menos do que o valor real da
coisa, apurado na etapa avaliatória, ensejou distorções profundas e
graves. Inúmeras vezes se transferiram bens do patrimônio do executado
a terceiros pelo valor aviltado. O fato não interessa a nenhum dos
figurantes do processo executivo de intenção sã.17

Essa assertiva é confirmada pelo célebre estudo de Rogério Lauria Tucci, que
traz precedentes de longa data no sentido de que “sendo vil o preço correspondente
ao lanço oferecido se impõe a ‘anulação da praça e dos atos posteriores, a fim de
que outra se realize, preenchendo as formalidades legais’”.18
Além disso, reverbera na doutrina a ideia de que se trata de conceito jurídico
indeterminado,19 de modo que não lhe é possível atribuir um “critério econômico
apriorístico”.20 Deve-se, para identificar a vileza do preço, comparar o valor do arremate
com o valor da coisa penhorada e, havendo evidente desproporção, considerar-se-á vil
o preço, inviabilizando, portanto, a venda.21 Como constatar, entretanto, a “evidente
desproporção”? Por hora, a questão fica sem resposta.
Ainda na trilha de Araken de Assis, considera-se viável traçar um comparativo
com o art. 701 do Código de Processo Civil segundo o qual mais de 80% do valor da
avaliação do bem não pode ser considerado preço vil. Não nega o autor, entretanto, a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que tem considerado hígido o valor de
até 50% do valor de avaliação, afastando, portanto, a vileza.22
Seja qual for o percentual, para o jurista gaúcho, se trata de hipótese de
discricionariedade judicial que deverá ser resolvida através do binômio economia
(art. 620) e efetividade da tutela para o credor, de modo que: “tudo dependerá

16
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 13ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 869.
17
ASSIS, Araken de. Manual da Execução, op. cit., p. 869.
18
O precedente mais antigo data de 1975 (Revista dos Tribunais, 478/113), TUCCI, Rogério Lauria. Execução
fiscal e preço vil da arrematação ou adjudicação. Revista de Crítica Judiciária, Uberaba, forense, 1987. v. 1,
p. 147-160, p. 156.
19
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2010. v.3,
pp. 366; DIDIER JR., Fredie (et. al.). Curso de Direito Processual. v. 5. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 643.
20
ASSIS, Araken de. Manual da Execução, op. cit., p. 870.
21
Idem, ibidem, p. 870.
22
Idem, ibidem.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014 33
Felipe Scalabrin

do caso concreto”.23 Como se observa, o doutrinador aposta na primazia do


causídico para a aferição da vileza, afinal o diploma processual não apresenta um
parâmetro objetivo.
Destaque-se, não é à toa que esta posição surge na doutrina atual, porquanto
reflete a construção jurisprudencial do instituto. Frise-se, igualmente, a frase que, com
objetividade, reflete a noção geral em torno do problema: “inadmissível afigura-se a
concepção da expropriação forçada de bens do executado, na execução por quantia
certa, como se fora uma espoliação de seu patrimônio. Muito pelo contrário, ela
deve efetivar-se equanimemente, satisfazendo-se o direito do credor-exequente, sem
sacrificar o acervo patrimonial do devedor-executado”.24 Oportunamente, a questão
será retomada.
Cumpre, então, analisar o ponto desde a perspectiva do binômio “princípio da
menor onerosidade” e “princípio da efetividade da execução”.

3 Aportes para o reconhecimento da vileza


3.1 O conflito entre o “princípio da menor onerosidade” e o
“princípio da efetividade da execução”
De início é preciso recordar a crítica de Lenio Streck ao crescente emprego
dos princípios, dos postulados e dos valores no mundo jurídico, afastando-se regras
democraticamente estabelecidas sem concreta justificação e impondo-se a aplicação
do juízo de proporcionalidade a todo o tempo. Merece destaque que tal postura não
possui respaldo quando colocada diante de uma visão crítico-reflexiva. Os princípios
são relevantíssimos e não podem ser banalizados, sob pena de perderem a sua
consistência no feixe da hermenêutica jurídica. Por esta razão, toda a discussão
pautada por princípios deve ser, antes, bem colocada. Não há regra que não opere
com um princípio de fundo, nem um princípio que possa ser invocado sem algum
conteúdo normativamente presente.25
Isto significa dizer que não se pode antecipar o conteúdo da norma jurídica
(norma princípio) sem que haja uma situação decidenda real. Ainda que existisse um
princípio da “menor onerosidade” e um “princípio da efetividade”, isto não bastaria
para que se pudesse resolver a questão. Note-se que caso a controvérsia devesse
ser resolvida com a utilização do princípio de modo completar a regra estabelecida,26

23
Idem, ibidem.
24
TUCCI, Rogério Lauria. Execução fiscal e preço vil da arrematação ou adjudicação, op. cit., p. 155.
25
STRECK, Lenio Luis. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 546.
26
Em outras palavras: como a regra acerca da definição de preço vil é obscura, necessária a aplicação subsidiária
de algum dos “princípios” norteadores da execução: menor onerosidade para o devedor e efetividade da tutela
executiva para o credor, pois o “texto” legal é omisso.

34 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014
Arrematação por preço vil na execução civil

estar-se-ia retomando o uso do “princípio” em seu sentido mais pobre: princípio


jurídico como “princípio geral do direito” – aplicável às situações de ausência de regra
“clara” – típico de uma fase metodológica (já) superada, a saber, o(s) positivismo(s)
exegético e normativista.27
Em tempos de constitucionalismo contemporâneo, os princípios jurídicos já
não possuem mais essa aplicação subsidiária e aberta para o ato decisional. Uma
decisão judicial de princípios assegura a “reconstrução institucional do Direito”,28
de modo que qualquer discussão “principiológica” deve ser enfrentada, com bem
salienta Streck, sob uma perspectiva de descontinuidade (rompendo com a fase
metodológica anterior) e na qual surge um dever de decidir de forma correta (leia-se,
conforme a Constituição).
Mais do que isso, os princípios não são meras “regras não expressas” ou
“regras estruturalmente diferentes das demais”. O conteúdo normativo dos princípios
se extrai “de uma convivência intersubjetiva que emana dos vínculos existentes
na moralidade política da comunidade”, possuindo um caráter deontológico.29
Os princípios são “vivenciados” – o que cobra dos atores jurídicos uma renovada
compreensão em torno do seu conceito.30 Destaque-se a seguinte passagem da obra
do citado jurista:

Podemos dizer que isso tudo funciona da seguinte forma: quando nos
ocupamos com questões jurídicas, possuímos, antecipadamente/pré-
compreensivamente, um todo conjuntural que nos permite articular os
diversos instrumentos que a tradição jurídica construiu. Há sempre um
todo antecipado em cada ato particular que praticamos como advogados,
procuradores, promotores, juízes etc. No contexto da tradição em que
estamos inseridos, este todo é representado pela Constituição. Mas
não a Constituição enquanto um texto composto de diversas fatias: os
artigos, os incisos, as alíneas etc., mas, sim, a Constituição entendida
como um evento que introduz, prospectivamente, um novo modelo de
sociedade. Este evento que é a Constituição está edificado sob certos
pressupostos que chegam até nós pela história institucional de nossa
comunidade. Tais pressupostos condicionam toda tarefa concretizadora
da norma, porque é a partir deles que podemos dizer se o direito que
se produz concretamente está legitimado de acordo com uma tradição
histórica que decidiu constituir uma sociedade democrática, livre, justa
e solidária.31

27
A respeito das diferentes noções que a acepção “princípio” pode conter: OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão
judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.
28
STRECK, Lenio Luis. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., p. 558.
29
STRECK, Lenio Luis. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., p. 540.
30
STRECK, Lenio Luis. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., p. 544.
31
STRECK, Lenio Luis. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., p. 546.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014 35
Felipe Scalabrin

Existe, com efeito, uma cooriginariedade entre os princípios que estruturam


o direito e a moral,32 de sorte que a decisão judicial se estrutura e legitima pelos
argumentos de princípio (principiológicos) empregados. Não basta deixar de aplicar
um dispositivo legal, valendo-se do pálio principiológico, tampouco é cabível a mera
complementação do dispositivo por algum princípio, pois o que se opera é uma
copertença entre princípios e regras. Como já referido: não há regras sem princípios
nem princípios sem regras.33
O desvelar normativo pressupõe a reconstrução histórico-institucional dos
princípios a partir da leitura da regra intersubjetivamente realizada pelo caso.
Assentadas tais premissas, não se pode negar que a efetividade detém certa
força normativa no âmbito do processo de execução, mas a verdade é que ela está
sempre presente. Há direito que se pretenda não efetivo(ável)? Nesse sentido, as
proposições trazidas por Marcelo Lima Guerra, ainda que albergadas por dimensão
teórica diametralmente oposta,34 evidenciam o fato inconteste de que a execução
deve ser pautada, sim, por mecanismos idôneos à satisfação de direitos sujeitos
à tutela executiva,35 ainda que seja questionável a existência de um “princípio
da efetividade”.36
Através deste “direito fundamental à tutela executiva”,37 assegura-se que a
técnica processual seja conduzida de modo a assegurar a satisfatividade do direito,
através da: a) interpretação das normas processuais com vista a tal desiderato e
b) aplicação da norma processual mais adequada – quando aplicável mais de uma –
à realização do direito substancial.38
Por outro lado, o art. 620 determina que a execução se promova pelo modo menos
gravoso para o devedor, quando por diversos meios for possível a sua realização. Tal

32
STRECK, Lenio Luis. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., p, p. 473.
33
STRECK, Lenio Luis. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., p, p. 562.
34
Para Marcelo Lima Guerra há uma diferença estrutural entre regras e princípios. Os princípios e os direitos
fundamentais são normas que operam de modo distinto, sendo possível a utilização do juízo de ponderação
de princípios. Tudo conforme a criticável fórmula prevista na Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy
(GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003, p. 84 e ss).
35
GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003, p. 104.
36
Pela sua existência, inclusive na condição de “princípio”: DIDIER JR., Fredie (et. al.). Curso de Direito
Processual. v. 5. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 47.
37
Assim conceituado: (...) “designa uma daquelas exigências ou valores relativos ao processo judicial, inseridas
no âmbito (ou campo semântico) do direito fundamental ao processo devido. Trata-se, portanto, de uma
ferramenta dogmática de elevada importância na solução dos problemas a ser enfrentados no presente
trabalho, relacionados à prestação efetiva da tutela executiva.” (...) Mais além, reforça-se a tese ao ser
afirmado que o direito fundamental à tutela executiva corresponde com a máxima coincidência possível entre
o direito substancial afirmado e a existência de meios executivos “capazes de proporcionar pronta e integral
satisfação a qualquer direito merecedor de tutela executiva” (GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e
a proteção do credor na execução civil, op. cit., p. 101-102).
38
GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil, op. cit., p. 104.

36 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014
Arrematação por preço vil na execução civil

preceito impede que a execução seja excessivamente onerosa ao executado, ou seja,


se torne uma execução “abusiva”.39 Para alguns, a questão deveria ser resolvida
com a utilização do princípio da proporcionalidade:40 entre o choque do princípio da
efetividade e do princípio da menor onerosidade, resolver-se-ia a questão controversa.
De tais assertivas “principiológicas”, surge, assim, um movimento pendular no
processo executivo, em especial na alienação de bens. Num relance, prestigia-se
a efetividade da tutela executiva e a expropriação do bem é medida que se impõe
independentemente do valor da avaliação, porquanto há a premente necessidade de
se adimplir o exequente, notadamente quando o executado não possui outros bens
que não aqueles penhorados. No giro inverso: a alienação de bens do devedor por
valor aquém do estipulado na avaliação importaria em onerosidade desproporcional,
porquanto o executado sofreria uma perda patrimonial superior ao que efetivamente
deve. Todavia, como não existem conceitos sem coisas, nem colisões sem objetos
colidentes, parece mais adequado repudiar, de início, o papel dos princípios para a
resolução do problema.
Isto porque, como qualquer problema semântico do direito, podem ser
encontrados indicativos de sentido para a resolução da controvérsia na própria
construção jurdicativa-jursisprudencial-decidenda sobre o tema,41 sendo dispensável,
ao menos a priori, o conjuro dos princípios jurídicos como pretendido.
É de se notar que, acaso aceita a tese de que a noção de “preço vil” seja resolvida
com simples emprego dos “princípios” da menor onerosidade e da efetividade, ficará
o órgão julgador dispensado de justificar (com argumentos de princípio!) as razões
pelas quais determinada solução foi empregada na situação concreta. Assim, ao
menos por ora, deve ficar afastada a elucidação do problema por esta via.42
Como então atribuir sentido concreto à vedação de arrematação por preço vil?
A solução para tal indagação – que parte da ideia de que, se há aqui uma porosidade
textual, ela deve ser preenchida pela própria construção histórica da realização do
direito43 – reside no exame do trato do tema pela própria legislação, pelas lições da
doutrina e pela sua realização judicativa nos tribunais.

39
DIDIER JR., Fredie (et. al.). Curso de Direito Processual, op. cit., p. 55.
40
DIDIER JR., Fredie (et. al.). Curso de Direito Processual, op. cit., p. 60.
41
Aliás, não é à toa que “a actual situação problemática do direito, e do pensamento jurídico, justifica que
recuemos a perguntarmo-nos radicalmente sobre o sentido do próprio direito” (CASTANHEIRA NEVES, Antonio.
Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito – ou as condições da emergência do
direito como direito. In: RAMOS, Rui Manuel de Moura (Coord.). Estudos em Homenagem à Professora Doutora
Isabel de Magalhães Collaço. Coimbra: Almedina, 2002, p. 837).
42
Note-se que, como apontado anteriormente, isto não significa que os princípios estarão na resposta
jurisdicional, pois, como já adiantado, toda a decisão deve ser uma decisão fundada em princípios.
43
Prestigia-se, portanto, a necessidade de se aceitar o “Direito como integridade” – de que trata Ronald Dworkin
(O Império do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 164 e ss).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014 37
Felipe Scalabrin

3.2 Disposições legais aplicáveis à situação


A legislação processual, como já amplamente apontado, veda que haja alienação
judicial44 no processo de execução por preço vil. O art. 692 do Código de Processo
Civil não apresenta, entretanto, um critério objetivo: não atribui numericamente um
índice que possa ser considerável como aviltante e, pois, obstaculizador da venda.
Com isso, o Diploma Processual prestigia o critério subjetivo do preço vil.45 Caso
se pretendesse que o preço vil fosse verificado por um percentual determinado, a lei
assim teria estipulado. Simples assim, pois, às vezes, aplicar a lei é o mais simples,
básico e necessário a se fazer.46 No caso, não há índice prescrito.47
Mas isto não significa que uma interpretação sistemática do ordenamento não
seja viável. Isto porque o art. 701 do CPC (já referido), mantendo a tradição do Código
de Processo Civil de 1939 (art. 972, §2º),48 assegurando “providência de favor
aos incapazes, consistente em verdadeira moratória”,49 determina o adiamento da
alienação de imóveis de incapazes quando o lanço não alcançar em praça pelo menos
80% do valor da avaliação.50 Mutatis mutandis, o imóvel de incapaz pode ser alienado
por 80% ou mais do quantum avaliado sem qualquer óbice legal. E se o imóvel de
incapaz – que goza de uma proteção legal diferenciada – pode ser alienado por esta
quantia, quanto mais o poderá a pessoa capaz.51 Esta interpretação, plenamente

44
Equipara-se aqui alienação a particular e arrematação, conforme já adiantara Pontes de Miranda nos seus
comentários à venda por iniciativa particular prevista no Código de Processo Civil de 1939 (Comentários ao
Código de Processo Civil, op. cit., p. 380).
45
SCHIAVI, Mauro. Aspectos polêmicos da execução trabalhista: Hasta pública, lance mínimo e lance vil no
processo do trabalho. Revista Ltr: Legislação do Trabalho, São Paulo, v. 69, n. 12, p. 1.435-1.445, dez, 2005,
p. 1.441.
46
STRECK, Lenio Luis. Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? Disponível em: <www.univali.br/periodicos>.
Acesso em 08/2012.
47
Houve a tentativa no âmbito do processo legislativo em estabelecer como critério objetivo o valor de 50% para
que se pudesse considerar vil o preço. Todavia, apesar dos debates, a Lei nº 11.382/06 acabou por não
alterar o art. 692 do CPC (a este respeito: GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Reflexões sobre o novo regime
de expropriação de bens introduzido pela Lei 11.382/2006. In: SHIMURA, Sérgio (Coord.). Execução civil e
cumprimento da sentença. São Paulo: Método, 2007, v. 2).
48
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, op. cit., p. 378.
49
CASTRO, Amílcar de. Do procedimento de execução: Código de processo civil – livro ii – arts. 566 a 747. 2. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 323.
50
Art. 701 do CPC: Quando o imóvel de incapaz não alcançar em praça pelo menos 80% (oitenta por cento) do
valor da avaliação, o juiz o confiará à guarda e administração de depositário idôneo, adiando a alienação por
prazo não superior a 1 (um) ano.
§1º Se, durante o adiamento, algum pretendente assegurar, mediante caução idônea, o preço da avaliação, o
juiz ordenará a alienação em praça.
§2º Se o pretendente à arrematação se arrepender, o juiz lhe imporá a multa de 20% (vinte por cento) sobre o
valor da avaliação, em benefício do incapaz, valendo a decisão como título executivo.
§3º Sem prejuízo do disposto nos dois parágrafos antecedentes, o juiz poderá autorizar a locação do imóvel
no prazo do adiamento.
§4º Findo o prazo do adiamento, o imóvel será alienado, na forma prevista no art. 686, VI.
51
ASSIS, Araken de. Manual da Execução, op. cit., p. 869. Contra, apontando que o art. 701 não guarda qualquer
relação com o tema tratado: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São
Paulo: Saraiva, 2010. v. 3, pp. 356.

38 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014
Arrematação por preço vil na execução civil

aceitável, reduz a margem de discricionariedade do órgão julgador, sendo inclusive


questionável a existência concreta de preço vil acima deste patamar.52
Outras disposições normativas expressamente aponta(va)m índices que afastam
a vileza do preço (pois, se a lei permite a sua alienação no patamar por ela definido,
certamente inexiste vileza). Assim, a antiga Lei de Execuções Fiscais (Decreto-Lei
nº 960/38) previa:

Art. 35. Para a primeira arrematação tomar-se-á por base o preço da


avaliação; para a segunda, esse preço com redução de 20%.
Art. 36. Não havendo licitantes à primeira praça, proceder-se-á à segunda,
observadas as formalidades e a redução previstas nos artigos anteriores;
se o mesmo ocorrer novamente, serão os bens vendidos pelo maior lance.
Parágrafo único. O arrematante, em qualquer caso, deverá garantir o
lance com o sinal correspondente a 20% do seu valor.
Art. 37. A Fazenda poderá requerer a adjudicação dos bens levados à praça,
após o último pregão, caso não encontrem licitantes. A adjudicação será
feita pelo preço do maior lance, ou pelo da avaliação, com o abatimento
de 40%, quando, na segunda praça, não tiver havido licitantes. (grifou-se)

É de se notar o flagrante favorecimento concedido ao exequente Fazenda Pública,


que poderia, sob o regime da referida lei, adjudicar os bens por valor 40% menor do
que a avaliação, ou seja, 60% da quantia avaliada.53 Além disso, a partir da terceira
hasta, por disposição expressa, não havia qualquer limitação de valor nos lances.
Obviamente, com o advento da atual Lei de Execuções Fiscais, torna-se inviável a
aplicação do Decreto nº 960/38, inclusive no que diz respeito às alienações judiciais.
Fato é que, já na vigência da Lei nº 6.830/80, a Lei nº 9.528/97 inseriu no
ordenamento jurídico uma série de dispositivos tendentes a otimizar o adimplemento
dos créditos públicos inscritos em dívida ativa, assegurando ao INSS (prerrogativa
que foi posteriormente estendida a qualquer execução fiscal de Dívida Ativa da União)
a garantia de que, no segundo leilão, os bens penhorados poderiam ser alienados
por qualquer valor, excetuado o vil (atual art. 98, II da Lei nº 8.212/90). Também foi
previsto que, se no primeiro ou no segundo leilões não houvesse licitantes, o INSS
poderia adjudicar o bem por 50% do valor da avaliação (atual §7º do art. 98 da Lei
nº 8.212/90). Ora, se é bem verdade que a adjudicação também se submete ao
regime da proibição de preço vil,54 certo é que a viabilidade de adjudicação por
50% do preço assegura à Fazenda Pública o direito de ver o bem arrematado por até
50% do valor de avaliação sem que haja preço vil.

52
Não se nega, entretanto, que a singularidade da situação decidenda aponte em sentido contrário mesmo
nesta situação extrema.
53
SCHIAVI, Mauro. Aspectos polêmicos da execução trabalhista: Hasta pública, lance mínimo e lance vil no
processo do trabalho, op. cit., p. 1.441.
54
TUCCI, Rogério Lauria. Execução fiscal e preço vil da arrematação ou adjudicação, op. cit.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014 39
Felipe Scalabrin

Não soa coerente, entretanto, a aplicação de dispositivos que visam conceder


prerrogativas aos entes públicos, à execução civil ordinária. Assim, conquanto
os artigos citados operem como balizas para uma compreensão do preço vil nas
execuções da Fazenda (Execução Fiscal), duvidosa seria a sua aplicação analógica
à execução contra devedor solvente prevista no CPC, de modo que continua
obnubilado, no plano da dogmática normativa/legislativa, o sentido mais adequado
para o problema. Necessário, assim, revisar, ainda que perfunctoriamente, algumas
contribuições da doutrina jurídica.

3.3 Contributos doutrinários para o reconhecimento do


instituto
Como já adiantado, prepondera – e isto se constata na pena de diversos
autores55 – a corrente subjetiva segundo a qual caberá ao juiz, diante do caso concreto
(da situação a ser decidida), verificar a evidente desproporção, “perceptível primo ictu
oculli”,56 entre o valor “real”57 do bem e o valor pelo qual se deu a expropriação.
Rogério Lauria Tucci aponta que o primeiro parâmetro a ser observado é a
atualização do valor do bem.58 Trata-se, na verdade, de se prestigiar a avaliação que
deve ser recente para evitar a espoliação do patrimônio do devedor. Cita, com acerto,
Amílcar de Castro, segundo o qual: “O credor não vem a juízo fazer bons negócios,
mas apenas cuidar de receber o que lhe é devido”.59 É de se notar que o prestígio à
avaliação como elemento objetivo para a verificação do preço vil ainda ecoa.60
De fato, é através da avaliação que se pode, objetivamente, auferir inicialmente
o valor de mercado do bem penhorado e, então, se fazer o cotejo com o valor de
eventual alienação.61 Entretanto, algumas outras posições devem ser destacadas
para que a questão fique clara.

55
Confira-se, a respeito a posição de Ernane Fidélis dos Santos: “o critério a ser seguido pelo juiz é o da
razoabilidade, tudo se apurando segundo o prudente arbítrio do julgador” (Manual de direito processual civil.
10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 2, p. 155). No mesmo sentido, a posição de Araken de Assis de que se
trata de um juízo “discricionário” (Manual da Execução, op. cit., p. 870).
56
TUCCI, Rogério Lauria. Execução fiscal e preço vil da arrematação ou adjudicação, op. cit., p. 158.
57
A avaliação não expressa o valor real do bem, como já bem apontava PONTES: “Avaliação, aqui, é a comunicação
de conhecimento sobre o valor que algum bem pode obter sendo alienado” (...). “A avaliação também é meio,
ato na sequência de atos executivos. Fixa o valor aproximado, com certa fé nas comunicações de conhecimento
que ela contém” (MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, op. cit., pp. 331-332).
58
TUCCI, Rogério Lauria. Execução fiscal e preço vil da arrematação ou adjudicação, op. cit., pp. 154-155.
59
AMÍLCAR DE CASTRO, Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo, 1974, vol. VIII, p. 358, n. 490,
apud TUCCI, Rogério Lauria. Execução fiscal e preço vil da arrematação ou adjudicação, op. cit., p. 154.
60
Nesse sentido: FORNACIARI JÚNIOR, Clito. Preço vil na hasta pública. Revista Magister de Direito Empresarial,
Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v. 6, n. 35, p. 43-45, out./nov. 2010, p. 45.
61
Assim também Humberto Theodoro Júnior: “preço vil é o que se apresenta excessivamente abaixo do valor
da avaliação devidamente atualizado. Aprecia-se essa circunstância levando-se em conta o valor de mercado
do bem, e não o montante da dívida exequenda (STJ, 3ª T., Resp 109.753-SP, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, ac.
de 10-3-1997, DJU, 22 de abril de 1997, p. 14426)” (Lei de execução fiscal: comentários e jurisprudência.
11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 158).

40 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014
Arrematação por preço vil na execução civil

Em doutrina, pretérita, destaque-se a posição de Orlando Soares: “De acordo


com o entendimento duma corrente jurisprudencial, preço vil ou irrisório será sempre
aquele cujo montante não foi suficiente para satisfação de parte razoável do crédito.
Quer dizer, não se cogita mais se o preço ofertado é ou não inferior ao valor da
avaliação, mas sim ao valor do crédito. Assim, tratando-se de bem penhorado, que
foi à praça por inúmeras vezes, sem previsibilidade de se chegar a bom termo, não é
de acolher a tese do preço vil (RT 623/106)”.62
Por sua vez, Ernane Fidélis dos Santos leciona: “Considerava a antiga redação
do art. 692 preço vil não o que fosse desproporcional ao valor do bem, mas o que não
bastasse para a satisfação razoável do crédito. A Lei nº 8.952/94 desconsiderou, no
entanto, o conceito, apenas fazendo proibição ao preço vil, o que significa que, ainda
que se pague parte razoável do débito, se houver desproporcionalidade do preço com
o real valor do bem, deve o juiz decretar a nulidade da arrematação, determinando
que outra seja feita”.63
Amílcar de Castro leciona que o art. 692 “desenvolve o mesmo pensamento
que anima o art. 620” e “o Estado deve, quanto possível, reintegrar o direito do
exequente com o mínimo de despesa, de incômodo e de sacrifício do executado”.64
Para Luiz Fux, “a avaliação tem o condão de impedir que o bem seja alienado
por preço vil. É, sem dúvida, uma garantia para o devedor posto que, do contrário,
manobras ardilosas poderiam despojar o executado de seus bens por qualquer preço,
suficiente apenas para pagar parcela do débito”. Além disso, a avaliação deve ser
realizada em data próxima à expropriação, para “manter a contemporaneidade da
aferição do valor”.65 E ainda: “A vileza do preço denota-se quando o bem é alienado
por valor muito inferior ao da avaliação, ao seu valor de mercado ou se o quantum é
insuficiente para o pagamento das custas da execução”.66
Vale recordar, ainda, a lição de Celso Neves:

A noção de preço vil, sem embargo da sua aparente objetividade,


é perplexiva, em razão da subjetividade de que depende. Que será
preço vil? Relaciona-se à apreciação com o valor em execução. Assim,
deverá ser considerado vil o preço que, em face dos valores dos bens
penhorados, seja exorbitantemente inferior ao da sua avaliação e, em
face da pretensão executória, se mostre insuficiente para atender, como
parte ponderável dela, à satisfação do exequente.67

62
SOARES, Orlando. Comentários ao Código de Processo Civil. 1. ed. v. 2. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 452.
63
SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. 10. ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 155.
64
CASTRO, Amílcar de. Do procedimento de execução: Código de processo civil – livro ii – arts. 566 a 747. 2. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 241.
65
FUX, Luiz. O novo processo de execução: o cumprimento da sentença e a execução extrajudicial. 1. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2008, p. 188.
66
Idem, p. 225.
67
NEVES, Celso. Comentários ao código de processo civil: artigos 646 a 795. 7. ed. v. 7. Rio de Janeiro:
Forense, 1999.

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Felipe Scalabrin

Por fim, deve ser destacado o posicionamento de Cássio Scarpinella Bueno,


segundo o qual o dispositivo na redação atual:

Afasta, por completo, qualquer relação entre a configuração do preço


vil com o percentual que a alienação do bem penhorado satisfaz do
crédito do exequente, é dizer: pode ocorrer de a totalidade do crédito
do exequente ser satisfeita e, não obstante, o preço ser, ainda, vil.
Inversamente, muito pouco do crédito do exequente pode ser satisfeito e
o valor pelo qual se arremata o bem não ter a vileza repelida pelo caput
do art. 692.68

Necessário recordar, entretanto, que a vedação de alienação por preço vil


tem por objeto evitar a espoliação do patrimônio do executado, impedindo que o
seu patrimônio seja colocado à disposição por valor incompatível ao devido e lhe
causando, assim, um prejuízo inconciliável com a necessidade de se satisfazer o
direito do credor.69
Dessarte, para a elucidação desse entrave, mais critérios – para além do cotejo
entre o valor de mercado do bem e o valor da alienação – precisam ser trazidos à
baila. É frequente, entretanto, que se destaque a necessidade de “circunstâncias
outras”70 para a formação do convencimento do juiz, sem que as mesmas
sejam apontadas.71
Alexandre Alliprandino Medeiros, no âmbito do processo trabalhista, aponta
cinco critérios: a) facilidade de alienação do bem; b) estado de conservação do bem;
c) valor total da execução; d) a necessidade do credor e a condição financeira do
devedor; e) depreciação do valor do bem no mercado em vista do lapso temporal da
avaliação em relação à hasta.72

68
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2010. v.3,
pp. 355-356.
69
Assim, por exemplo: se A, que possui um terreno avaliado em R$ 100.000,00, deve R$ 70.000,00 para B e
é acionado judicialmente e ação prossegue até o ultimato dos atos expropriatórios, com a venda judicial em
leilão do bem por R$ 70.000,00 e a alienação é considerada regular, sem que houvesse preço vil, A acaba por
pagar R$ 100.000,00 pela dívida de R$ 70.000,00. Neste caso, como na grande maioria dos casos, haverá
evidente prejuízo ao executado.
70
ARAGÃO, Severiano Ignácio de. Desfazimento da arrematação por preço vil. Arquivos dos Tribunais de Alçada.
Rio de Janeiro, degrau cultural, 1996. v. 26, p. 28-30, p. 30.
71
Não é o caso de Cassio Scarpinella, que contribui com interessante posição: “O que é possível de ser feito em
tese e fornecer subsídios indicativos de quando se está diante de preço vil a ser, como tal, rejeitado. A vileza
do lanço tem de ser constatada a partir do valor do próprio bem, nunca levando em conta fatores externos a
ele. O preço vil deve ser aferido a partir da comparação entre o valor da arrematação e o da avaliação do bem,
e não em relação ao grau de satisfação do exequente. No máximo, levar­se-ão em conta dificuldades da própria
execução – desinteresse na adjudicação (art. 685-A), frustração de alienação por iniciativa particular (art. 685-
C), eventuais hastas anteriores negativas, variação negativa do mercado consumidor do bem penhorado, por
exemplo –, para subsidiar o entendimento quanto à pertinência da alienação por preço esperado em situações
normais” (Curso sistematizado de direito processual civil, op. cit., p. 356).
72
Utilizada aqui a obra de: SCHIAVI, Mauro. Aspectos polêmicos da execução trabalhista: Hasta pública, lance
mínimo e lance vil no processo do trabalho, op. cit., p. 1.442.

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Arrematação por preço vil na execução civil

O estado de conservação do bem e a depreciação do seu valor no mercado


em vista do lapso temporal significam, na realidade, incongruências na avaliação
realizada e que podem ser sanadas com uma nova avaliação – o que é facilitado
com a legislação processual vigente, que permite inclusive a avaliação por Oficial de
Justiça. A necessidade do credor e a condição financeira do devedor são critérios que
remetem à humanização da execução e que se justificam somente nos casos em que
a execução atinja a esfera de direitos mais sensíveis de ambas as partes, credor e
devedor, não se demonstrando como um critério racional para a execução civil.73 O
valor da execução, como já visto, não deve operar como parâmetro para o preço vil.74
No que diz respeito à facilidade/dificuldade de alienação do bem, não se pode
negar que o critério é coerente com o seu antecedente (valor de mercado atribuído).
Isto porque, se por diversas vezes surgem distintas tentativas de venda e, ainda
assim, há dificuldade na alienação, fato é que o mercado comprador não possui
interesse na aquisição nos moldes propostos, o que revela uma inadequação no
preço que pode ser suprida pela redução no valor do lance. Não há aqui novidade no
tema que, há muito, vinha denunciado por Jorge de Miranda Magalhães.75
Com efeito, na presença de poucos elementos concretos para a aferição do tema
no âmbito doutrinário, necessário analisar, como proposto, a posição do Superior
Tribunal de Justiça – Tribunal que tem por escopo a uniformização na compreensão
acerca da legislação federal – em torno do tema.

3.4 A (des)orientação do Superior Tribunal de Justiça


Não há, com efeito, uniformidade na jurisprudência da Corte acerca do tema.
Todavia, existe uma orientação preponderante no âmbito do Superior Tribunal
de Justiça no sentido de não ser considerado vil o preço equivalente a até 50%
da avaliação do bem penhorado. Para o Superior Tribunal de Justiça, o elemento
determinante para a aferição do preço vil é a avaliação.
Há assim uma tendência pela corrente objetivista. Confira-se, a propósito, o
recente julgado que confirmou essa tese:

73
Não custa lembrar que a proposta de Alexandre Alliprandino Medeiros é proveniente do processo trabalhista
que tem acentuada a natureza alimentar dos créditos. O mesmo não se espelha nas demais execuções, seja
na civil, seja na fiscal.
74
Conforme supra item 03.
75
“Igualmente, porque o mercado não respondeu à oferta do bem, que em primeira praça, pelo preço de
avaliação, quer nas demais, por qualquer preço (evidentemente longe da vileza) é que a jurisprudência
tem entendido não ser vil o preço se, em quatro praças, não de obteve lanço superior e os devedores não
procuraram remir a execução (JTA 105/70), devendo essa característica ser avaliada pelas circunstâncias da
causa (STJ REsp 2.693 – RS, Min. Oueiros Leite), não sendo de se acolher a tese do preço vil (RT623,106), se
o bem penhorado foi à praça por inúmeras vezes, sem possibilidade de se chegar a bom termo, com intuitivo
prejuízo do exequente, pois o modo menos gravoso com que se deve processar a execução não pode, à toda
evidência, ‘deixar o credor desmunido de providências, de sorte a alcançar o seu crédito’” (A arrematação a
preço vil. Arquivos dos Tribunais de Alçada. Rio de Janeiro, degrau cultural, 1996. v. 24, p. 17-20, p. 18).

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Felipe Scalabrin

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE


INSTRUMENTO. EMBARGOS DE TERCEIRO. PENHORA. GARANTIA HIPOTECÁRIA.
CÉDULA DE CRÉDITO. IMPENHORABILIDADE RELATIVA. PREFERÊNCIA DO
CRÉDITO TRIBUTÁRIO. IMÓVEL ALIENADO POR VALOR SUPERIOR A 50%
DA AVALIAÇÃO. PREÇO VIL NÃO CARACTERIZADO. ACÓRDÃO RECORRIDO
EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ.
1. Caso em que o agravante impugna o entendimento manifestado pelo
Tribunal a quo no sentido de que a garantia tributária cede em favor do
crédito tributário, que a ela tem preferência, independentemente da data
da constituição do ônus.
2. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que a
impenhorabilidade de que trata o art. 57 do Decreto-lei 413/69 não é
absoluta, uma vez que o crédito tributário goza de preferência sobre os
demais créditos, à exceção dos de natureza trabalhista.
Precedentes: REsp 672.029/RS, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda
Turma, DJ 16/5/2005; REsp 681.402/RS, Rel. Ministra Denise
Arruda, Primeira Turma, DJ 17/9/2007; AgRg no Ag 1.043.984/RS,
Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 6/10/2008;
REsp 940.230/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma,
DJe 29/10/2008.
3. O STJ entende caracterizada a vileza do preço quando a arrematação
não alcançar, pelo menos, 50% do valor da avaliação.
Precedentes: REsp 788.338/SP, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki,
Primeira Turma, DJe 17/8/2009; AgRg no REsp 996.388/SP,
Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 27/8/2009; AgRg
no Ag 1.106.824/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda
Turma, DJe 15/5/2009; AgRg no REsp 995.449/SP, Rel. Ministra Denise
Arruda, Primeira Turma, DJe 16/3/2009.
4. No caso concreto, o acórdão a quo consignou que o bem foi alienado
por quantum superior a 50% (cinquenta por cento) do valor da avaliação.
5. Agravo regimental não provido.
(AgRg no Ag 1391061/PR, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA
TURMA, julgado em 07/06/2011, DJe 10/06/2011)

Há farta jurisprudência observando esta orientação.76 Todavia, o critério objetivo


(preponderante) já foi casuisticamente afastado. Aliás, há induvidoso anacronismo
na Corte uniformizadora da legislação federal, pois já se entendeu, em um caso, que
aproximadamente 33% do valor da avaliação não poderia ser considerado vil77 e, em
outra situação, que o mesmo valor de 33% foi configurador da vileza.78

76
AgRg no Ag 1.277.529/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, 2ª Turma, DJe 22/09/2010; REsp 1.017.301/RJ,
Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, DJe 26/05/2008; REsp 1052691/SC, Rel. Ministra
Eliana Calmon, 2ª Turma, DJe 26/11/2008; REsp 1057831/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques,
2ª Turma, DJe 14/10/2008; REsp 793.725/SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJ 02/10/2006;
AgRg nos EDcl no Ag 454.247/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, 1ª Turma, DJ 19/05/2003.
77
AgRg no Ag 1259306/SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, 1ª Turma, DJe 07/04/2011.
78
AgRg no Ag 1106824/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, DJe 15/05/2009.

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Arrematação por preço vil na execução civil

No que diz respeito à possibilidade de alienação por até 33% do valor da


avaliação sem que se considerasse preço vil, foi consignado que:

Não ocorre arrematação por preço vil na hipótese em que o bem foi
arrematado, em quarto leilão, por aproximadamente 33% do valor da
avaliação, e a natureza do bem, sua utilidade para terceiros, a dificuldade
do arrematante em receber o bem e a reiteração de leilões infrutíferos
indicam a razoabilidade do valor da arrematação, pois, ainda que o valor
da avaliação possa ser tomado como critério inicial para a caracterização
do preço vil, não deve atuar como único ou preponderante fator, devendo-
se levar em conta particularidades fáticas do caso e circunstâncias
negociais à época da alienação.

Tal precedente elucida que o próprio Tribunal não adere por completo à tese da
objetividade, na medida em que aceita a necessidade de se observar as peculiaridades
do caso concreto para verificação do preço vil.
Essa questão causa estranheza, na medida em que, em tese, não está autorizado
o Superior Tribunal de Justiça a proceder a revisões de matérias de cunho altamente
probatório. Há, neste particular, colidentes entendimentos quanto à possibilidade de
o Tribunal verificar ou não a existência de preço vil. Já se entendeu que tal exame
revolveria matéria fática e, portanto, insuscetível de reexame pela via especial.79 Por
outro lado, já se entendeu que não se trata de matéria de fato e que pode, sim, ser
verificada pelo Tribunal.80
Em linhas gerais, pode-se observar que o Superior Tribunal de Justiça já se
manifestou no sentido de não considerar vis arrematações realizadas por 50%, 60%
e 70% do valor da avaliação.81
Com efeito, o que se constata é que a orientação majoritária do Tribunal segue
a linha objetivista, mas de maneira temperada, pois aceita o critério subjetivo e, além
disso, corrobora a necessidade de verificação de outros elementos além da avaliação
do bem penhorado. Em outras palavras, a avaliação não pode ser considerada o único
critério para a verificação do preço vil, como já adiantado anteriormente e chancelado
pelo Superior Tribunal de Justiça:

Ainda que o valor da avaliação deva ser tomado como critério inicial para
identificação ou não de caracterização de preço vil em arrematação,
não deve atuar como único ou preponderante fator. Tal como destaca a
sentença, outras singularidades devem ser ponderadas, como a natureza

79
AgRg no REsp 1147635/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 08/04/2011; REsp 422.406/SP,
Rel. Ministro Castro Filho, 3ª Turma, DJ 23/09/2002, p. 360.
80
AgRg nos EDcl no Ag 454.247/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, 1ª Turma, DJ 19/05/2003, p. 134. Destaque-se o
amplo feixe de julgados anteriormente citados, que corroboram amplamente o exame do tema pelo Superior
Tribunal de Justiça.
81
AgRg no Ag 463.584/GO, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, 3ª Turma, DJ 18/12/2006, p. 360.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014 45
Felipe Scalabrin

do bem, sua utilidade para terceiros (e não apenas para o devedor),


modificações de tecnologia ou inovações de mercado, assim como é de
ser computada a dificuldade que o arrematante deve esperar em receber
a coisa (diante de eventuais embargos), isso embora faça pagamento à
vista. Além disso, a reiteração de leilões infrutíferos é sinal evidente de
que o preço da avaliação é incompatível com a realidade, para despertar
interesse em potenciais compradores.82

Alguns dos parâmetros ventilados causam mais insegurança do que arrimo ao


pleito. Como não pode a avaliação ser considerada o critério preponderante se o
próprio Superior Tribunal de Justiça já atestou ser ela indispensável, inclusive devendo
ser determinada de ofício pelo juiz?83 E como falar que a dificuldade que o arrematante
tem em receber a coisa diante de eventuais embargos pode ser levada em conta
para determinação do valor da coisa? Como pode a defesa do executado contra a
própria arrematação servir de elemento para que se decresça o valor do bem? Levado
às últimas consequências, este entendimento fulmina a própria pretensão à tutela
jurídica, pois, se o executado não apresenta embargos (= não se defende), a sua
redução patrimonial oriunda da execução será menor (= arrematação por um valor maior).
Ao que tudo indica, tais questões não foram refletidas com a acuidade necessária
pela Corte. Aliás, nem deveriam sê-lo, afinal o Superior Tribunal de Justiça não é um
Tribunal comprometido com a Justiça do caso concreto para proceder à revisão de
todos os tipos de decisões judiciais. Esta é, aliás, mais uma prova do anacronismo
da Corte, causado pelo próprio Tribunal – que gradativamente (e convenientemente)
amplia o seu leque de atuação e julga (quando quer) a questão.
Plenamente aplicável, aqui, a orientação de Igor Raatz dos Santos e Frederico
Leonel Nascimento e Silva, ao criticarem a desmedida apreciação das questões de
ordem pública pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, ao comportar em
seu repertório de jurisprudência duas teses antagônicas, o Tribunal fica autorizado
a escolher como (e se) irá analisar a questão, fulminando, assim o controle e a
previsibilidade de suas decisões e, ainda, atuando muito além do que deveria.84
Não custa recordar que para os referidos autores, que aderem à tese de
Castanheira Neves, cabe aos Tribunais Superiores assegurar a unidade do direito,
“de ordem jurídico-material problematicamente constituenda em contraposição a
uma unidade formal-sistemática pressuposta, ou seja, uma unidade de normativa
ordenação dinâmica e a posteriori, em oposição às unidades normativas a priori, já de
identidade, já de redução, já mesmo de totalmente pressuposta fundamentação”.85

82
Excerto do voto do relator Ministro Arnaldo Esteves Lima (AgRg no Ag 1259306/SP, DJe 07/04/2011).
83
REsp 1006387/SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 02/09/2010, DJe 15/09/2010.
84
SANTOS, Igor Raatz dos; SILVA, Frederico Leonel Nascimento e. Crítica à tese do julgamento de ofício das
“questões de ordem pública” em recurso especial: uma proposta de reflexão sobre o papel dos Tribunais
Superiores. Revista de Processo, São Paulo, v. 36, n. 202, p. 69-92, dez. 2011, p. 79.
85
Idem, ibidem, p. 85.

46 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014
Arrematação por preço vil na execução civil

4 Considerações conclusivas
Em tempos de massificação de conflitos e de acerbada quantidade de trabalho
pelos Tribunais, não causa estranheza o completo abandono dos casos concretos e
a crescente adoção de standards predeterminados de decisões.
Questões polêmicas e nas quais mais se cobra da jurisprudência e da doutrina
uma indicação de sentido para a própria realização do direito a partir de aportes dos
aportes da situação decidenda acabam sendo relegadas para um segundo plano.
Fazem-se concessões e apostas – como a feita à discricionariedade judicial, ou
o “prudente arbítrio” do juiz para aplicar o critério “mais justo e razoável” no caso
concreto86 – sem, entretanto, assegurar, sob o ponto de vista da necessária integridade
e unidade do direito, balizas orientadoras da interpretação judicial. Infelizmente, nestes
espaços privilegiados, onde a discussão sobre onde está o Direito vivenciado se torna
mais palpável, a comunidade jurídica – cada qual a seu modo – vacila.
Urge, portanto, que se abram espaços de reflexão.87 Verdadeiras clareiras para
uma indicação do sentido da juridicidade e para a retomada da realização material do
Direito. Significa dizer que é preciso repensar a forma como se atua e como se decide,
de modo que, ao invés de se buscar álibis argumentativos (como a invocação oca de
princípios ou elementos áridos como a razoabilidade), sejam efetivamente lançadas
as razões que a tradição jurídica em torno de determinado instituto apresenta e que
estes motivos sejam colocados em choque com a experiência constitucional para
que, então, se alcance uma resposta constitucionalmente adequada ao caso.
Em parcas linhas, o presente estudo buscou apresentar um problema quanto
ao que (não)se compreende por preço vil no âmbito do processo de execução e
instigar o debate para a problemática em torno do modo da realização do direito hoje;
especialmente na judicatura do Superior Tribunal de Justiça.
Para tanto, pretendeu-se trazer à baila parte da experiência jurídica já existente
em torno da controvérsia, com aportes doutrinários e jurisprudenciais, de modo a se
reconstruir (ainda que de maneira sintética) a tradição jurídica sobre o que se entende
por preço vil no bojo da execução civil.
Chancela-se, como deve ter ficado claro, que: “é difícil, senão impossível, definir
o que é preço vil em abstrato. E isso porque se trata de conceito vago e indeterminado
que, como tantos outros do Código de Processo Civil, pressupõe fato concreto,
certo e delimitado no tempo e no espaço para ser expresso, definido, concretizado.
É conceito que só existe na aplicação do direito, em sua dinâmica”.88

86
SCHIAVI, Mauro. Aspectos polêmicos da execução trabalhista: Hasta pública, lance mínimo e lance vil no
processo do trabalho, op. cit., p. 1.442.
87
No específico estudo do preço vil, merecem destaque as reflexões de Araken de Assis, Cassio Scarpinella
Bueno e o irrepetível trabalho de Rogério Lauria Tucci, que soube, com a precisão que lhe cabe, apresentar o
tema pela primeira oportunidade.
88
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 3, p. 356.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014 47
Felipe Scalabrin

Esta postura é, na verdade, uma escolha filosófica que indica que não se pode
atribuir sentido a algo sem que este algo se apresente diante do ser.
Com isso, pode-se apontar, a título conclusivo, que:
a) Não é possível antecipar a existência de vileza nas alienações judiciais
realizadas, não sendo possível preestabelecer o quantum que caracterizará (ou
não) a venda a preço vil. Esta apenas poderá ser verificada após a existência
efetiva de uma proposta (ou lance) que, cotejada com as condições do caso,
evidencie espoliação do patrimônio do executado e lhe cause, assim, prejuízo
inconciliável com a necessidade de se satisfazer o direito do exequente.
b) A legislação processual não estabelece um critério objetivo para a constatação
de preço vil, mas traz um forte indicativo que não pode ser desconsiderado
(tampouco tornar-se um dogma), a saber: 80% do valor da avaliação. Trata-se
de aplicação (sistemática) do art. 701 do CPC.
c) No campo doutrinário, prepondera a aceitação da discricionariedade judicial.
Caberá ao juiz, analisando as condições do caso concreto, avaliar se ocorreu
vileza ou não.
d) No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, prevalece o entendimento de que
está caracterizada a vileza do preço quando a arrematação não alcançar,
pelo menos, 50% do valor da avaliação. Adota-se o critério objetivo valor.
Todavia, o próprio STJ possui precedentes em sentido contrário, aceitando
que a avaliação é apenas o critério inicial para a definição da controvérsia e
que outros elementos poderão influenciar na definição de preço vil.
e) Há consenso, na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que a avaliação
exerce um papel fundamental na caracterização do preço vil.
f) Dos muitos “outros critérios” utilizados para a deflagração da vileza, o único
que não recebeu aqui qualquer crítica é aquele que diz respeito à facilidade/
dificuldade de alienação do bem. Ora, se por diversas oportunidades se
buscou a alienação do objeto e em nenhuma delas houve resposta positiva,
isto significa que, muito provavelmente, o “valor real” (aquele que corresponda
aos interesses do mercado comprador) não está espelhado na avaliação e,
portanto, poderá não ocorrer a causa de desfazimento mesmo quando o
lance for extremamente inferior ao valor da avaliação. Na feliz contribuição
de Cassio Scarpinella Bueno poderíamos denominar tais entraves na rubrica
de “dificuldades da própria execução”.
g) A existência ou não de preço vil, enquanto categoria jurídica, é um excelente
exemplo das contradições do imaginário jurídico brasileiro (notadamente
os Tribunais), que, cada vez mais, desprestigia as condições da situação
concreto-decidenda para albergar os seus dilemas em proposições
estagnadas (respostas prontas e desvencilhadas de uma real reflexão em
torno do caso).

48 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50, out./dez. 2014
Arrematação por preço vil na execução civil

Abstract: The current paper addresses the “vile price” during the auction on civil execution. It’s a search
of understanding and recognition of this concept in the midst of the case through contributions from the
doctrine and jurisprudence around the theme. Inevitable, also, a critique on the Superior Court of Justice.
Key words: Civil execution. Vile price. Auction. Evaluation.

Referências
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de Alçada. Rio de Janeiro, degrau cultural, 1996. v. 26, p. 28-30.
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BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. v. 3. São Paulo:
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de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 29-50,
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Aspectos polêmicos da execução civil da
sentença penal condenatória

Renata Caroline Kroska


Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Advogada militante em Curitiba/
PR. Estudante de pós-graduação em Direito Empresarial e Civil na Academia Brasileira de
Direito Constitucional. Tecnóloga em Comunicação Empresarial e Institucional pela UTFPR.

Resumo: O trabalho se propõe a um estudo verticalizado do instituto da execução civil da sentença


penal condenatória, iniciando pelo estudo da natureza dessa eficácia anexa conferida por lei à sentença
penal condenatória. Em seguida, analisam-se as sentenças penais polêmicas quanto a sua classificação
em absolutórias e condenatórias, como a sentença impositiva de medida de segurança e a sentença
concessiva de perdão judicial. Também merece análise o efeito do reconhecimento de prescrição da
pretensão persecutória, bem como da pretensão executória penal. Seguidamente, examinam-se os
aspectos processuais da execução civil da sentença penal condenatória, problematizando, entre outros
aspectos, a legitimação ativa e passiva, o procedimento de liquidação, o rito da execução e a defesa do
executado. Por fim, faz-se uma breve análise da execução das sentenças penais condenatórias por crimes
contra direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos e das reformas propostas no recente projeto
de Código Penal.
Palavras-chave: Execução civil. Processo civil. Sentença penal condenatória.

Sumário: 1 Natureza da eficácia civil da sentença penal condenatória – 2 Da sentença penal – 3 Aspectos
processuais da execução civil da sentença penal condenatória – 4 Execução civil de sentença penal
condenatória por crime contra bem jurídico de natureza difusa, coletiva ou individual homogênea – 5 Breves
comentários às alterações previstas no projeto do novo Código de Processo Penal sobre a execução civil
da sentença penal condenatória – 6 Considerações finais – Referências

1 Natureza da eficácia civil da sentença penal


condenatória
A inovação brasileira, que transformou a sentença penal condenatória transitada
em julgado em título executivo,1 rendeu alguns embates doutrinários. Enrico Tulio
Liebman, por exemplo, ao se debruçar sobre o tema, conferiu à sentença penal
condenatória apenas efeito civil declaratório e não executório, mas, já à época,
ressalvava que, se houvesse condenação em perdas e danos na sentença criminal,

1
“A novidade é exclusiva do direito pátrio, tendo em vista que inexiste qualquer regra a respeito nos ordenamentos
alienígenas.” MACEDO, Alexander dos Santos. Da Eficácia Preclusiva Panprocessual dos Efeitos Civis da
Sentença Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1989, p. 29.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 51
Renata Caroline Kroska

esta poderia ser executada civilmente.2 Pontes de Miranda, por sua vez, afirmou
categoricamente que o artigo 63 do Código de Processo Penal “atribui executabilidade
civil do julgado criminal que condene” (grifo do autor).3 Esse autor também sustentava
que o juízo criminal poderia atribuir um valor a título de indenização e advertia que
se a condenação possuísse grau de executividade quatro “é nos próprios autos
da ação de condenação penal que se executa a sentença”,4 porém, se o grau de
executividade fosse três ou menos, a execução deveria ser promovida no cível. O grau
de executividade quatro pode ser encontrado, por exemplo, quando o juiz criminal,
nos termos do art. 120 do Código de Processo Penal, determina a restituição da
coisa apreendida à vítima proprietária, incidente processado perante o próprio
juiz criminal.5
A eficácia extrapenal da sentença criminal do art. 63 do Código de Processo
Penal se verifica sempre que o juízo penal não puder promover a execução, havendo
que se esclarecer que os efeitos extrapenais não estão restritos à esfera cível,
existindo outros, por exemplo, a perda de cargo ou função pública, nos termos do
art. 92 do Código Penal,6 e a demissão por justa causa, quando transitar em julgado
a sentença criminal contra o empregado, conforme art. 482, d, da CLT.7
Araken de Assis compreende a execução civil da sentença penal condenatória
como eficácia anexa e “isso porque o efeito aí contemplado dimana, em linha direta,
da proposição legislativa”.8 Esclarecendo que a expressão “tornar certa” usada no
artigo 91, I, do Código Penal, embora típica de declaração, no caso, confere efeito
condenatório de natureza civil à sentença penal condenatória.9

2 Da sentença penal
É a lei, portanto, que confere status de título executivo à sentença penal
condenatória transitada em julgado, entretanto, definir quais decisões podem ser
classificadas como condenatórias é tarefa que oferece algumas dificuldades dignas
de atenção.

2
LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de Execução. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 68.
3
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. t. XXVII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1971,
p. 264.
4
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado. t. XXVII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1971,
p. 264.
5
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 307.
6
Art. 92, do CP: São também efeitos da condenação: I – a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo.
7
Art. 482, da CLT: Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: d) condenação
criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena.
8
ASSIS, Araken. Eficácia Civil da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91.
9
ASSIS, Araken. Eficácia Civil da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 92.

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Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

2.1 Ato jurisdicional e sentença penal


Segundo Mirabete atos jurisdicionais “são os pronunciamentos deliberatórios
do juiz no curso do processo que envolvem, com maior ou menor intensidade, um
julgamento, ou se destinam à movimentação do procedimento”.10 Os que perfazem
um julgamento são também chamados de decisões; já os destinados a movimentar o
processo são também conhecidos como despachos de expediente. Fernando Capez
traz a seguinte classificação para as decisões penais: interlocutórias simples são
as que solucionam “questões relativas à regularidade ou marcha processual”, sem
apreciar o mérito da causa, como o “recebimento da denúncia e a decretação de
prisão preventiva”11; interlocutórias mistas as quais se subdividem em terminativas
e não terminativas. As primeiras extinguem o processo sem julgar o mérito da causa
(ex.: rejeição da denúncia). Já as interlocutórias mistas não terminativas “são aquelas
que encerram uma etapa procedimental (ex.: decisão de pronúncia nos processos do
júri popular)”.12
Há, ainda, as sentenças em sentido próprio que “solucionam a lide julgando
o mérito da causa”13 ou, nas palavras de Capez, é “o ato pelo qual o juiz encerra o
processo no primeiro grau de jurisdição, bem como o seu respectivo ofício”.14 Frise-se
que essa classificação feita pelos processualistas penais não guarda coerência com
a Lei nº 11.232/2005, que, ao reformar o CPC, incluiu na definição de sentença as
decisões que extinguem o processo sem decisão do mérito (decisões interlocutórias
mistas terminativas) e as que decidem o mérito sem extinguir o processo, uma vez
que apenas finalizam a fase de conhecimento.
Os processualistas civis Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart,
adequando os conceitos ao CPC, definem as decisões interlocutórias como aquelas
em que se resolve questão incidente no processo. De outro ângulo, a sentença seria
a decisão que encerra a fase de conhecimento ou de execução.15 Essa definição
de sentença parece ser adequada ao processo penal, uma vez que a este também
segue uma fase de execução, a qual, apenas, tramita em juízo distinto daquele que
proferiu o julgamento, por razões de divisão de trabalho. Frise-se que somente as
sentenças propriamente ditas, cuja natureza seja condenatória, estão sujeitas ao
efeito anexo civil, excluindo-se as decisões interlocutórias e as medidas de urgência do
processo penal.16

10
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. São Paulo: Altas, 1992. p. 425.
11
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 509.
12
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 509.
13
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. São Paulo: Altas, 1992. p. 426.
14
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 510.
15
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 2. Processo de Conhecimento.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 411.
16
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 3. Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 414.

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Renata Caroline Kroska

2.2 Sentença penal condenatória e sentença penal


absolutória
As sentenças penais são classificadas em sentenças condenatórias e sentenças
absolutórias. As primeiras julgam total ou parcialmente procedente a pretensão
punitiva formulada na denúncia. As sentenças absolutórias, ao contrário, são as que
julgam improcedente a pretensão punitiva. Estas são subdivididas em absolutórias
próprias, absolutórias impróprias e terminativas de mérito. As absolutórias próprias
rejeitam a pretensão punitiva sem impor qualquer sanção ao acusado. Diferentemente
das impróprias, que deixam de acolher a pretensão punitiva em virtude de debilidade
mental do acusado, mas reconhecem a prática da infração penal e, por isso, aplicam-lhe
medida de segurança. Já nas terminativas de mérito, o juiz se manifesta sobre o
mérito da causa sem, contudo, condenar ou absolver o réu. É o que acontece quando
o juiz declara extinta a punibilidade, por exemplo.
As sentenças condenatórias estão, via de regra, sujeitas à incidência do art. 63
do Código de Processo Penal, isto é, transformam-se em título executivo civil, exceto
quando a própria lei retirar-lhe esse efeito, como acontece em algumas sentenças
prolatadas nos juizados especiais criminais. De outro ângulo, as sentenças
absolutórias próprias, as quais não condenam ao cumprimento de pena, por excluírem
a tipicidade17 ou a ilicitude, não geram título executivo civil. Contudo, existem
sentenças penais que demandam um estudo mais acurado a fim de se descobrir se
possível ou não a eficácia anexa civil conferida pela lei.

2.2.1 Sentença impositiva de medida de segurança


Culpabilidade é entendida como “juízo de valor negativo ou reprovação do autor
pela realização não justificada de um crime”.18 São inculpáveis os autores de crime que
sofrem de “doença mental” ou que possuem “desenvolvimento mental incompleto ou
retardado” e por essa razão não são capazes de compreender o caráter ilícito do fato
ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, nos termos do artigo 26 do
Código Penal. Essas pessoas são absolvidas, porém, impõe-se lhes uma medida de
segurança, por isso os manuais de processo penal, majoritariamente, a classificam
como sendo uma sentença absolutória imprópria.
Contudo, Pontes de Miranda, em extensa análise das sentenças condenatórias
feita na obra Tratado das Ações, adota posicionamento diverso quando afirma:

17
“A tipicidade é a adequação do fato humano ao tipo de ilícito contido na norma incriminadora.” DOTTI, René
Ariel. Curso de Direito Penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 311.
18
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte geral. Curitiba: ICPC Editora e LTDA; Lumen Juris, 2007,
p. 276.

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Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

As ações penais são, quase sempre, conforme dissemos, ações


condenatórias (reclusão, prisão, multa). […] As próprias medidas de
segurança impostas em sentença de condenação, ou de absolvição,
são condenatórias, quer as medidas sejam pessoais (detentivas, de
liberdade vigiada, de proibição de frequentar determinados lugares ou de
sair fora da hora), quer patrimoniais.19

Os tribunais, quando se referem à imposição de medida de segurança,


consideram a sentença como de caráter absolutório e não condenatório,20
impossibilitando, a priori, a execução civil dessas sentenças. Vem ao encontro desse
entendimento uma interpretação sistemática do artigo 63 do Código de Processo
Penal com o artigo 91, I, do Código Penal. 21 O art. 63 do CPP prevê a execução
civil da sentença penal condenatória; o art. 91, I, do CP estabelece como efeito
da condenação, e tão somente dela, “tornar certa a obrigação de indenizar o dano
causado pelo crime”. Nessa perspectiva, é sustentável que o efeito anexo civil da
sentença penal condenatória decorre da condenação penal e não da declaração da
existência e autoria do fato.
Destaque-se, porém, que a sentença absolutória impositiva de medida de
segurança não impediria a vítima, ou legitimados, de ajuizar ação civil de conhecimento
contra o responsável civil, a fim de obter o ressarcimento do dano. A vítima, nesse
caso, seria beneficiada pela coisa julgada incidente sobre a declaração constante
na sentença penal absolutória que reconheceu a autoria e a existência do fato, não
sendo possível rediscuti-las, conforme esclarece Araken de Assis: “imprópria que seja
a absolvição em face da inimputabilidade penal, sentença desse jaez somente faz

19
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado das Ações. Tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1974, p. 324.
20
HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO - AGENTE INIMPUTÁVEL - ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - IMPOSIÇÃO DE MEDIDA
DE SEGURANÇA DE INTERNAÇÃO - PRETENDIDO TRATAMENTO AMBULATORIAL - IMPOSSIBILIDADE - CRIME
PUNÍVEL COM RECLUSÃO - ART. 97, “CAPUT”, DO CÓDIGO PENAL. Constatada por perícia a inimputabilidade
do réu – ao tempo da ação e em virtude de doença mental, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito
do fato –, imperiosa a sua absolvição sumária, com imposição de medida de segurança de internação, tal
como preconizado pelo art. 97, “caput”, primeira parte, do Código Penal, cujo prazo mínimo, consideradas as
circunstâncias do caso, deve ser reduzido para um ano. APELAÇÃO DESPROVIDA. REDUÇÃO, DE OFÍCIO, DO
PRAZO MÍNIMO DE CUMPRIMENTO DA MEDIDA DE SEGURANÇA (TJPR - 1ª Cam. Crim. Des. Rel. Telmo Cherem.
Julg. 03.set.2009).
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO TENTADO. INIMPUTABILIDADE. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA
E SUBMISSÃO À MEDIDA DE SEGURANÇA. ALEGAÇÃO DE CAUSA EXCLUDENTE DE ILICITUDE. LEGÍTIMA
DEFESA. COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM
CONCEDIDA. 1. A absolvição sumária por inimputabilidade do acusado constitui sentença absolutória imprópria,
a qual impõe a aplicação de medida de segurança, razão por que ao magistrado incumbe proceder à analise
da pretensão executiva, apurando-se a materialidade e autoria delitiva, de forma a justificar a imposição da
medida preventiva. 2. Reconhecida a existência do crime e a inimputabilidade do autor, tem-se presente causa
excludente de culpabilidade, incumbindo ao juízo sumariante, em regra, a aplicação da medida de segurança
(STJ – 5ª T – HC 99.649 – MG – Rel. Arnaldo Esteves Lima – Julg.17.jun.2010. Grifo nosso).
21
Art. 63, do CPP: Transitada em julgado a sentença penal condenatória, poderão promover-lhe a execução, no
juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.
Art. 91, do CP: São efeitos da condenação: I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 55
Renata Caroline Kroska

indiscutível a existência do fato e a autoria: a eficácia anexa, imposta às sentenças


condenatórias, não socorre o lesado”.22 Os professores Sérgio Cruz Arenhart e
Luiz Guilherme Marinoni concordam com o caráter absolutório da sentença penal
que aplica medida de segurança, porém, entendem-na como executável civilmente
argumentando que “em seu bojo há o reconhecimento do fato ilícito e a indicação da
sua autoria, estando presentes os requisitos necessários para caracterizar o direito
à indenização (art. 935 do CC)”.23
A tese dos professores Sérgio Cruz Arenhart e Luiz Guilherme Marinoni ainda não
foi levada à apreciação do Judiciário, o qual vinha acolhendo a reflexão do professor
Araken de Assis, como se observa na ementa do seguinte acórdão:

PROCESSUAL CIVIL. LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA.


RESPONSÁVEL CIVIL PELOS DANOS. ILEGITIMIDADE DE PARTE. CARÊNCIA
DA AÇÃO. A sentença penal condenatória não constitui título executivo
contra o responsável civil pelos danos decorrentes do ilícito, que não
fez parte da relação jurídico-processual, podendo ser ajuizada contra ele
ação, pelo processo de conhecimento, tendente à obtenção do título a
ser executado (grifo nosso).24

O art. 928 do Código Civil prevê a responsabilidade subsidiária do incapaz pelos


danos que causar, de maneira que os efeitos da condenação recairão, em geral, sobre
o patrimônio do curador, o qual responde objetivamente, isto é, independentemente
de culpa (art. 933, do CC), e em regime de solidariedade passiva com o incapaz
(art. 942, CC). Lembre-se de que o art. 275 do Código Civil, ao tratar da solidariedade
passiva, permitiu ao credor “exigir e receber de um ou de alguns dos devedores,
parcial ou totalmente, a dívida comum”, sendo que a ação proposta contra somente
um dos devedores não acarreta renúncia da solidariedade.
Uma interpretação sistemática dessas regras leva à compreensão de que é
possível ajuizar ação reparatória diretamente contra o curador em razão do regime
de solidariedade imposto pelo artigo 942 do Código Civil, sendo-lhe atribuído o dever
de reparar o dano causado pelo curatelado independentemente de culpa. Entretanto,
é pertinente indagar se é possível demandar diretamente, em fase executória, o
devedor solidário que não integrou o polo passivo da fase de conhecimento. Porque,
a rigor, é disso que se trata, visto que a execução civil seria proposta contra pessoa
que não foi parte na fase de conhecimento. Tendo em vista que esta reflexão acerca

22
ASSIS, Araken. Eficácia Civil da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 110.
23
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 3. Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 414.
24
STJ – 3ªT – REsp. 98.655. Rel. Min. Castro Filho Julg. 16.out.2003. No caso não se tratava de responsável
civil por incapaz, mas de empregador responsável por ato de empregado.

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Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

da execução civil da sentença penal condenatória ainda não chegou aos tribunais,
buscaram-se decisões análogas em obrigações solidárias passivas.
Foram encontradas tanto decisões de procedência para a execução direta
da sentença civil condenatória mesmo contra quem não participou da fase de
conhecimento, em razão da solidariedade passiva, quanto decisões de improcedência
para uma execução contra quem não foi parte, por entender que isso violaria os
princípios do contraditório e ampla defesa. No primeiro sentido, destaca-se ementa
de acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná transcrita:

Processual civil. Execução. Título judicial. Embargos. Nulidade do processo


executivo por falta de citação de corréus no processo de conhecimento.
Descaracterização, em decorrência da solidariedade passiva entre os
sucumbentes, pelo que cabe ao credor promover a execução contra
qualquer dos devedores solidários [sic].25

Prevalecendo o entendimento de que a sentença civil condenatória é executável


mesmo contra os devedores que, embora solidários, não tenham participado da
fase de conhecimento, há que se concluir, por via analógica, pela possibilidade de
execução da sentença penal condenatória diretamente contra o curador do incapaz,
em virtude da solidariedade. Em sentido diverso, cita-se o acórdão proferido pelo
Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em sede de Agravo de Instrumento, no qual
se considerou ilegítimo o prosseguimento de execução provisória contra as curadoras
de incapaz condenado em Ação Popular, nos termos do voto do relator, do qual se
transcreve um trecho elucidativo:

Compulsando os autos, observa-se que as Agravantes IDYLA MARIA


PEREGRINO ARAÚJO DE ALBUQUERQUE e o ESPÓLIO DE MARIA ODETE
ARAÚJO DE ALBUQUERQUE, representado pela primeira inventariante, de
fato, não integraram, na qualidade de parte, a relação jurídica processual
formada nos autos da Ação Popular nº 2002.82.00.008512-7, apenas
tendo figurado nesta como representantes do réu PEDRO DAMIÃO
PEREGRINO DE ALBUQUERQUE NETO.
[…]
Dessa forma, ante a falta de reconhecimento da responsabilidade
solidária entre o réu e suas curadoras na ação de conhecimento, verifica-
se a ausência de respaldo jurídico para a continuidade da execução
provisória contra estas, havendo-se que se determinar a suspensão da
execução contra elas. Assim, observa-se que, muito embora o Código
Civil de 2002, em seus arts. 932, II, e 933, preveja a responsabilidade,
independentemente de culpa, do curador pela reparação civil de ato
praticado pelos curatelados que estiverem sob sua autoridade e em
sua companhia, entendo, a princípio, que tal responsabilização deve

25
TJPR - Apelação Civil nº 0034759-3 – 2ª Cam. Civ. Rel. Des. Sydney Zappa. Julg. 16.nov.1994.

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Renata Caroline Kroska

ser reconhecida no processo de conhecimento, não podendo ser


apenas imposta em sede de execução, ainda mais em se tratando de
execução provisória.26

A decisão do Tribunal Regional Federal parece acertada, uma vez que fez
prevalecer o princípio constitucional do devido processo legal, à responsabilidade
objetiva do Código Civil. Submeter quem não foi parte na fase de conhecimento ao
cumprimento da sentença seria atentatório contra a garantia do due process por
restringir a ampla defesa, além de violar os limites subjetivos da coisa julgada,
conforme ressaltam Marinoni e Mitidiero:

Submeter aquele que não foi parte no processo, nada obstante participe
da relação unitária afirmada em juízo, à coisa julgada viola o direito
fundamental ao processo justo (art. 5º, inciso LIV, CRFB), na medida em
que pode privar o terceiro figurante da relação afirmada em juízo de seu
direito sem que se possibilite a sua participação no processo, e viola o
art. 472, CPC, pelo qual a coisa julgada não pode alcançar terceiros.27

Tendo em vista que a responsabilidade patrimonial do incapaz é subsidiária,


ou seja, primeiro atinge o patrimônio do curador, o qual não foi parte na ação penal,
entende-se que a sentença penal impositiva de medida de segurança não pode ser
imediatamente executada no cível. Corrobora com esse entendimento o argumento
literal, porém não menos importante, de que a sentença impositiva de segurança é
absolutória e não condenatória e, nos termos dos artigos 63, do CPP e 475 – N, II, do
CPC, são executáveis civilmente apenas as sentenças penais condenatórias.

2.2.2 Sentença impositiva de medida socioeducativa


Não menos complexa que a situação do incapaz sujeito à medida de segurança
é a do menor infrator. Igualmente ao que acontece no caso do incapaz sujeito à
medida de segurança, a responsabilidade dos pais ou do tutor do menor é solidária
e objetiva condicionada à excludente de responsabilidade de não estar o menor sob
a autoridade do pai ou tutor ou em companhia destes.28
O artigo 116 do ECA estabelece: “Em se tratando de ato infracional com reflexos
patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua
a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou por outra forma, compense o prejuízo

26
TRF-5 - T2 - Agravo de Instrumento nº 101129/PB (2009.05.00.089936-1) - Rel. Des. Fed. Francisco Barros
Dias. Julg. 01.dez.2009.
27
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 133.
28
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado
conforme a Constituição da República. v. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 820.

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Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

da vítima”. Antônio Chaves, em comentário a este dispositivo, esclarece que, em


audiência, é lavrado um acordo de composição do dano, o qual, após homologação,
adquire eficácia executória e destaca:

Diferem porque nesta [sentença penal condenatória] a sentença


condenatória é que serve como título executivo judicial, enquanto que
naquela, não havendo condenação, é a própria composição das partes
que dá ensejo à lavratura do termo que depois de homologado servirá
como título executivo judicial.29

Assim, o acordo homologado adquire eficácia executória civil. Outrossim, no


mesmo sentido dos apontamentos feitos em relação ao maior incapaz, o responsável
civil que não tiver participado do acordo, embora isso possa ser solicitado pelo menor
(art. 111, VI, do ECA), não pode ser diretamente executado sob pena de violação do
devido processo legal. O parágrafo único do art. 116 do ECA prevê a substituição da
composição do dano por outra medida adequada. As outras medidas previstas no
art. 112 do ECA são: advertência; prestação de serviços à comunidade; liberdade
assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento
educacional; qualquer uma das previstas no art. 101, I a IV. Este artigo, por sua vez,
prevê: encaminhamento aos pais ou responsável mediante termo de responsabilidade;
orientação, apoio e acompanhamento temporário; matrícula e frequência obrigatória
em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário
ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente.
Diante dessas outras medidas, poder-se-ia questionar se a sentença que as
impõe constituiria título executivo civil por incidência do art. 63 do CP. Responder a esse
questionamento demanda uma análise, ainda que breve, da natureza axiológica das
medidas socioeducativas. Primeiramente, é importante esclarecer que o Estatuto da
Criança e do Adolescente não objetiva punir as crianças e adolescentes aplicando-lhes
medidas socioeducativas, mas sim orientá-los, nas palavras de Renata Ceschin Melfi:

O Estatuto da Criança e do Adolescente utiliza a expressão ‘medida’ e


não ‘pena’, pelo fato da última possuir caráter de punição, sanção. A
intenção do ECA não é punir o adolescente, mas orientá-lo e protegê-lo
de forma que seja reintegrado à sociedade e não venha mais a praticar
atos infracionais.30

Embora o ato infracional seja definido como uma conduta descrita em


outro texto legislativo como crime ou contravenção, nos termos do art. 103 do

29
CHAVES, Antônio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTR, 1997, p. 518.
30
MELFI, Renata Ceschin. O Adolescente Infrator e a Imputabilidade Penal. Curitiba, 2004. Dissertação de
Mestrado. Faculdade de Direito. Universidade Federal do Paraná, p. 130.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 59
Renata Caroline Kroska

ECA,31 falta-lhe um elemento-chave do fato punível, qual seja a culpabilidade.


O menor, por ser inimputável, não pode ser submetido ao processo penal e nem ser
condenado a uma pena, em outras palavras, o menor é submetido a procedimento
distinto do previsto no Código de Processo Penal, não havendo que se falar em
incidência do art. 63 deste diploma. Ademais, é preciso ter em conta a necessidade
de oportunizar a participação no processo, garantindo-se o devido processo legal,
ficando aberta a via da ação reparatória, mas não sendo possível a execução civil.

2.2.3 Sentença concessiva de perdão judicial


Na sentença concessiva de perdão judicial, o juiz reconhece a materialidade
e a autoria do fato, bem como a culpabilidade do agente, mas deixa de aplicar a
pena, “por circunstâncias, condições resultados ou consequências especiais do
fato”.32 Para Leonardo Aguiar, trata-se de uma permissão legal dada ao julgador para
renunciar ao direito de punir em nome do Estado.33
A controvérsia doutrinária em torno da natureza dessa sentença é sintetizada
por Leonardo Aguiar nos seguintes termos:

Assim, aqueles que tomam o perdão judicial como causa de extinção do


crime ou como escusa absolutória consideram a sentença que o concede
como sendo de natureza absolutória. Já os que enxergam o instituto
com indulgência judicial consideram a sentença que o concede como
sendo de natureza condenatória. E, por fim, aqueles que classificam o
perdão judicial como causa extintiva de punibilidade normalmente tomam
a respectiva sentença como sendo de natureza declaratória.34

Entre os entendimentos descritos, prevaleceu o último, para o qual a sentença


concessiva de perdão judicial é declaratória extintiva da punibilidade, consolidado
na Súmula nº do Superior Tribunal de Justiça, que reza: “A sentença concessiva do
perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer
efeito condenatório”. Discordando desse entendimento, o professor Leonardo
Aguiar advoga no sentido de que “a sentença concessiva do benefício não declara a
extinção da punibilidade (como se esse fato já tivesse ocorrido e a sentença viesse
apenas a reconhecê-lo), mas sim gera essa nova situação, pelo que tomamos-la
como constitutiva”.35

31
Art. 103, do ECA: Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.
32
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte geral. Curitiba: ICPC Editora e Ltda.; Lumen Juris, 2007, p. 691.
33
AGUIAR, Leonardo Augusto de Almeida. Perdão Judicial. 2004. Dissertação. (Mestrado em Ciências Penais).
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2004, p. 184.
34
AGUIAR, Leonardo Augusto de Almeida. Perdão Judicial. 2004. Dissertação. (Mestrado em Ciências Penais).
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2004, p. 208.
35
AGUIAR, Leonardo Augusto de Almeida. Perdão Judicial. 2004. Dissertação. (Mestrado em Ciências Penais).
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2004, p. 214.

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Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

De qualquer sorte, torna-se pertinente indagar se a inexistência de efeito


condenatório a que se refere a Súmula 18 do STJ estaria restrita aos efeitos penais
ou se abrangeria o efeito anexo civil. Entendendo que o efeito anexo civil é decorrente
da condenação penal e que inexistindo esse não haveria também o primeiro, discorre
Wagner Pacheco:

Concedido o perdão judicial, nenhuma consequência jurídico-penal pode


advir ao beneficiário: não havendo sanção, não haverá efeito principal e
nem efeito secundário ou reflexo. Contudo, é obvio que o ofendido poderá
buscar no juízo cível a reparação do dano causado pelo réu perdoado.
Mas não disporá do título de que trata o art. 63 do CPP, competindo-lhe
objetivar a sua formação na área privada através de sentença em
processo de conhecimento, incidindo – no caso – o n. II do art. 67 do
estatuto formal penal36 (grifo do autor).

No mesmo sentido, Celso Delmanto: “O ofendido poderá promover a reparação


do dano no juízo civil, mas sem se valer da sentença concessiva do perdão como
se ela fosse a decisão condenatória penal que serve de título executivo judicial
no cível”.37 Araken de Assis se envereda pelo mesmo caminho ao afirmar: “o
provimento concessivo do perdão judicial não é condenatório, conforme última forma
da jurisprudência pátria, crismada na súmula 18 do STJ, e, portanto, se revela
desprovido da eficácia anexa, insculpida no art. 91, I do Cód. Penal”.38 Em sentido
contrário, Ruy Armando Gessinger defende a possibilidade de execução da sentença
penal concessiva de perdão judicial:

Se o Juiz já disse que o réu agiu com culpa, não há razão para que, no
cível, se obrigue o prejudicado ao processo de conhecimento. A sentença
criminal que não aplica pena ao réu, como base §5º, do art. 121, e
no §8º, do art. 129, do C.P., é título executivo, a teor do art. 584, II
do CPC.39

A jurisprudência do STF, anterior à edição da Súmula 18 do STJ, havia se


firmado no sentido de que o perdão judicial presumia condenação, conforme
ementário colacionado:

Perdão judicial (art. 121, §6º, do Código penal, na redação dada pela
lei 6.416/77). O perdão judicial pressupõe condenação da qual se excluem –

36
PACHECO, Wagner Brússolo. O perdão judicial no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 69,
n. 533, p. 283-297, mar. 1980, p. 296.
37
DELMANTO, Celso. Perdão Judicial e Seus Efeitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 68, n. 524,
p. 311-314, jun. 1979, p. 314.
38
ASSIS, Araken. Eficácia Civil da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 195.
39
GESSINGER, Ruy Armando. Da Dispensa da Pena. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984, p. 79-80.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 61
Renata Caroline Kroska

uma vez que ele se adstringe à não aplicação da pena – a pena principal,
a accessória e a medida de segurança, mas não os demais efeitos da
condenação. Recurso Ordinário a que se nega provimento (grifo nosso).40
Perdão Judicial. Efeitos. O perdão judicial pressupõe condenação, pelo
que não se estende aos efeitos secundários próprios da sentença penal
condenatória (grifo nosso).41
O Perdão Judicial pressupõe condenação e, em consequência, não se
estende aos efeitos secundários próprios da sentença de natureza
condenatória, tais como pagamento das custas do processo, inclusão
do nome no rol dos culpados e pressuposto para a reincidência. Recurso
extraordinário criminal conhecido e provido (grifo nosso).42

Ao contrário da situação do incapaz, em que falta um dos elementos constitutivos


do crime (culpabilidade) para que a sentença possa ser considerada condenatória,
o perdão judicial é concedido ao réu que, tendo plenas condições de compreender
o caráter ilícito do fato, praticou um crime. O Estado-Juiz, diante de circunstâncias
especialíssimas, abdica de aplicar a pena, mas isso não implica a improcedência da
denúncia, pelo contrário. Diante disso, é possível fundamentar a execução civil da
sentença concessiva de perdão judicial, embora não seja essa a orientação sumulada
pelo STJ.
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart asseveram que o perdão judicial
é superveniente ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória tornando-se
irrelevante para a executividade.43 Da mesma forma a concessão de graça ou indulto
pelo Presidente da República não impactam sobre a executividade, uma vez que
esses benefícios pressupõem sentença penal condenatória transitada em julgado.44

2.2.4 Sentença que reconhece a prescrição penal


José Frederico Marques ensina que a prescrição penal “é a extinção do direito
de punir do Estado pelo decurso do tempo”.45 Em definição semelhante, Cirino dos
Santos define a prescrição penal como “a perda do direito de exercer a ação penal
por fatos puníveis, pelo decurso do tempo”.46 Contrariamente, René Ariel Dotti propõe
que a pretensão seja vista, no Direito Penal, “como ação extintiva da punibilidade que
exerce o decurso do tempo, quando inerte o poder público na repressão do crime”.47

40
STF - Recurso de Habeas Corpus nº 57.798/SP - 2ªT - Rel. Min. Moreira Alves. Julg. 08. abr. 1980.
41
STF - Recurso Extraordinário Criminal 104.679-1/ SP - 2ª T - Rel. Min. Aldir Passarinho. Julg. 22. out. 1985.
42
STF - Recurso Extraordinário Criminal 92.907/PR - 1ª T. Rel. Min. Cunha Peixoto. Julg. 10. mar. 1981.
43
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 3. Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 414.
44
TOURINHO FILHO, Fernando Costa. Processo Penal. v. 1. Bauru: Editora Jalovi, 1979, p. 534.
45
MARQUES, Frederico. Tratado de Direito Penal. v. 3. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 497.
46
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte geral. Curitiba: ICPC Editora e Ltda.; Lumen Juris, 2007, p. 677.
47
DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 680.

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Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

Damásio de Jesus, por sua vez, entende que a prescrição atinge a pretensão
a qual pode ser punitiva ou executória.48 Muito embora não haja consenso acerca
do conceito de prescrição entre os penalistas, eles concordam com a existência
de duas espécies de prescrição penal: uma que atinge a ação penal e outra que
atinge a execução da pena. Assim pode-se compreender a prescrição como perda da
pretensão de exercer a ação penal, também denominada de prescrição da pretensão
punitiva, ou como perda da pretensão executória da pena.
No primeiro caso, o Estado fica impossibilitado de promover a ação penal contra
o acusado e, consequentemente, impede a “apreciação do mérito da imputação”.49
Na realidade, não haverá ação penal, razão pela qual também não haverá sentença,
nem absolutória nem condenatória, de maneira que não surgirá título executivo para
a vítima. Nesse sentido Lozano Júnior:

Assim, após ter sido o sujeito ativo do delito beneficiado pela prescrição
punitiva, não sofrerá ele nenhuma pena ou medida de segurança (efeitos
penais principais) [...]. Igualmente, não serão impostos os efeitos
extrapenais (civis, administrativos e políticos), previstos nos arts. 91 e
92 do CP.50

O mesmo não se pode dizer no tocante à prescrição da pretensão executória da


pena que acontece após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Essa
prescrição pune a inércia do Estado em promover a execução da pena estabelecida na
sentença. Sobre os efeitos do reconhecimento da prescrição nesses casos, leciona
Damásio de Jesus:

A declaração da extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão


executória impede a execução das penas principais e da medida de
segurança (CP, art. 86), substituindo as penas acessórias (CP, art. 118,
parágrafo único) e as consequências de ordem secundária da sentença
condenatória […]. Assim, embora incidente a prescrição da pretensão
executória, a sentença condenatória pode ser executada no juízo cível
para efeito de reparação do dano (CPP, art. 63).51

Diante do exposto, depreende-se que o reconhecimento da prescrição da


pretensão executória da pena não tem o condão de extinguir o título executivo criado
pela sentença penal condenatória transitada em julgado. Em decisão proferida pelo
Superior Tribunal de Justiça no ano de 1998, observa-se confusão entre os conceitos
de prescrição punitiva e prescrição executória. Tratava-se desta última, uma vez

48
JESUS, Damásio Evangelista de. Prescrição Penal. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 19.
49
JESUS, Damásio Evangelista de. Prescrição Penal. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 28.
50
LOZANO JÚNIOR, José Júlio. Prescrição Penal. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 44.
51
JESUS, Damásio Evangelista de. Prescrição Penal. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 85.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 63
Renata Caroline Kroska

que havia sentença condenatória transitada em julgado, porém, denominou-se de


pretensão punitiva, reconhecendo, contudo, os efeitos da primeira.
Tratou-se de caso em que o banco Itaú promoveu ação indenizatória contra
ex-funcionário condenado por crime que o prejudicou. O autor obteve título executivo
civil, com o qual penhorou imóvel adquirido com o fruto do ilícito. Em sede recursal o
réu sustentava que a prescrição da punibilidade teria extinguido o título executivo, o
qual nem era de origem criminal. O recurso foi julgado improcedente, por unanimidade,
nos termos do voto do relator, ministro Ruy Rosado de Aguiar, do qual se transcreve
um trecho bastante elucidativo:

Ocorre que a sentença criminal que reconhece a extinção da punibilidade


pela prescrição da pretensão punitiva, calculada pela pena em concreto,
nada afirma sobre a existência do fato ou sobre a autoria. Ao contrário,
partindo da premissa que há o crime e o acusado é o seu autor – e autor
culpado, tanto que proferida uma sentença condenatória – o juízo criminal
extingue a punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva, a dizer que
o Estado se abstém de extrair qualquer efeito penal daquele fato, mas
isso não faz desaparecer o juízo de culpabilidade formulado contra o
réu, condenando-o a certa pena, a partir do que foi possível reconhecer
a prescrição pela pena aplicada [...] Crime houve e ficou assim julgado
na instância criminal, sendo que a extinção da punibilidade concedida
depois de um juízo sobre a existência do fato criminal, típico e ilícito.52

Em decisão mais recente, proferida em 13 de setembro de 2005, a Colenda


Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a orientação de que a sentença
que extingue a punibilidade não desconstitui o título executivo da sentença penal
condenatória, conforme ilustra a ementa:

PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL - OMISSÃO NO JULGADO


RECORRIDO - INEXISTÊNCIA - SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA
TRANSITADA EM JULGADO - POSTERIOR EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA
PRESCRIÇÃO RETROATIVA - EXECUÇÃO, NO JUÍZO CÍVEL, DO DECISUM -
POSSIBILIDADE - RECONHECIMENTO DO FATO ILÍCITO E DA AUTORIA
MANTIDOS - TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL (ART. 584, II, DO CPC).
[...]
2 - O reconhecimento da extinção da punibilidade pela prescrição retroativa
após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória não afasta a
caracterização desta como título executivo no âmbito cível, a ensejar a
reparação do dano causado ao ofendido. Dispensável é a propositura de
ação de conhecimento. Incidência do art. 63 do CPP e do art. 584, II, do
CPC. [...]53 (grifo nosso).

52
STJ-T4- Recurso Especial nº 163.786-SP. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. Julg. 19.05.1998.
53
STJ - 4T - Recurso Especial nº 722.429-RS. Relator: Min. Jorge Scartezzini. Julg. 13.09.2005.

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Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

Novamente, em 2008, a matéria foi levada à discussão no Superior Tribunal de


Justiça, agora diante da Terceira Turma que assim decidiu:

PROCESSUAL CIVIL. POSSIBILIDADE DE LIQUIDAÇÃO E EXECUÇÃO CIVIL


DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA, AINDA QUE POSTERIORMENTE
SE RECONHEÇA A PRESCRIÇÃO RETROATIVA DA PRETENSÃO PUNITIVA
COM BASE NA PENA EM CONCRETO. PEDIDO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
GRATUITA NEGADO. ANÁLISE DA SITUAÇÃO FÁTICA RELACIONADA À
ALEGADA POBREZA DA PARTE. POSSIBILIDADE DE RECUSA DO BENEFÍCIO,
SE DEMONSTRADA SUA DESNECESSIDADE. INVIABILIDADE DO REEXAME
DAS PROVAS EM RECURSO ESPECIAL.
- A sentença penal condenatória produz efeitos cíveis, ainda que,
posteriormente, se reconheça a prescrição da pretensão punitiva,
retroativamente, com base na pena fixada em concreto. - Ao art. 67, II,
CPP, deve-se dar interpretação que prestigie o princípio constitucional da
razoável duração do processo. Havendo certeza sobre o ilícito, “a decisão
que julgar extinga a punibilidade” não impedirá, em sentido amplo, a
propositura de “ação civil”, ou seja, ação de conhecimento, execução
ou cautelar. Entendimento diverso imporia ao jurisdicionado o ônus de
suportar a duração de dois processos de conhecimento, um na esfera
cível e outro na criminal, para que se julguem rigorosamente os mesmos
fatos. [...] Recurso Especial não conhecido54 (grifo nosso).

Diante do embasamento doutrinário precedente e da jurisprudência colacionada


proveniente da Corte de uniformização da legislação federal, STJ, há de se concluir
que a prescrição da pretensão executória, reconhecida após o trânsito em julgado
da sentença penal condenatória não lhe retira a executabilidade civil. Já a sentença
que reconhece a prescrição da pretensão punitiva, isto é, da persecução criminal
pelo Estado, não pode gerar título executivo civil, uma vez que, sequer, trata-se de
sentença condenatória.

2.2.5 Substitutivos processuais penais previstos na Lei


nº 9.099/95
A Lei dos Juizados Especiais, Lei nº 9.099/1995, inovou no ordenamento
jurídico pátrio ao inserir os institutos da composição dos danos, da transação penal
e da suspensão condicional do processo. A composição dos danos será reduzida a
escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a
ser executado no juízo civil competente, nos termos do artigo 74 da Lei nº 9.099/95.
O parágrafo único desse artigo estabelece que o acordo homologado implica renúncia
ao direito de queixa ou representação por parte do ofendido.

54
STJ – 3T. Recurso Especial 789.251-RS. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Julg. 11.nov. 2008.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 65
Renata Caroline Kroska

Observa-se que o caput do artigo é taxativo no que se refere à eficácia civil do


acordo homologado entre as partes, o qual, consoante ressalva feita por Mirabete,
assemelha-se ao obtido com a sentença penal condenatória transitada em julgado.55
O juízo competente para a execução deste título, desde que dentro do limite de 40
salários mínimos, são os próprios Juizados Especiais Cíveis56 sob o argumento de
que o próprio artigo 3º, §1º, da Lei nº 9.099/95 prevê que aos Juizados Especiais
compete a execução dos seus julgados.
Caso reste inexitosa a composição, permite-se ao ofendido exercer, desde
logo, o seu direito de representação, consoante artigo 75 da Lei nº 9.099/1995. Se
houve representação ou se o crime era de ação penal pública incondicionada, cujo
oferecimento de denúncia compete ao Ministério Público, é possível que se coloque
à disposição do infrator a transação penal ou suspensão condicional do processo.
Na transação penal, o Ministério Público propõe a aplicação direta da pena de multa
ou restritiva de direito, em troca de não prosseguir com a ação de maneira a não
acarretar a condenação do infrator, com registro de antecedentes e demais efeitos
nocivos dela decorrentes. Se o infrator a aceitar, haverá uma transação penal, cuja
homologação pelo juiz faz coisa julgada.
A doutrina penalista discute se a natureza dessa sentença seria apenas
homologatória de transação57 ou condenatória.58 Todavia, essa discussão não
tem grande importância para este estudo, uma vez que o artigo 76, §6º, da Lei
nº 9.099/1995, excepcionou a eficácia anexa de título executivo civil das sentenças
homologatórias de transação penal, reservando aos interessados a proposição de
ação conhecimento: “A imposição da sanção de que trata o §4º deste artigo não
constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no
mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação
cabível no juízo cível”.
Nereu José Giacomolli ao tratar dos efeitos dessa sentença destaca: “a
aceitação da multa ou da restrição de direitos não implicará reconhecimento de culpa,
quebra de presunção de inocência ou presunção de culpa na esfera civil, onde poderá
ser discutida a reparação do dano”.59 Desse entendimento, depreende-se que, ao
contrário da sentença penal condenatória transitada em julgado, a qual, além de
ser título executivo civil, torna indiscutível, no cível, a autoria e a existência do fato,

55
MIRABETE, Júlio Fabrini. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Atlas, 1997, p. 75.
56
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz
Flávio. Juizados Especiais Criminais. Comentários à Lei 9.099/1995. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
p. 135.
57
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz
Flávio. Juizados Especiais Criminais. Comentários à Lei 9.099/1995. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
p. 157.
58
MIRABETE, Júlio Fabrini. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Atlas, 1997, p. 90.
59
GIACOMOLLI, Nereu José. Juizados Especiais Criminais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 107.

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Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

a sentença homologatória de transação penal deixa toda a matéria em aberto para


discussão no juízo cível.
Cabe ainda uma breve análise do instituto da suspensão condicional do processo
pelo qual se suspende “a ação penal após o recebimento da denúncia, desde que o
réu preencha determinados requisitos e obedeça a certas condições durante o prazo
prefixado”.60 Quanto à natureza da sentença impositiva da suspensão condicional do
processo, sustenta Beatriz Abraão de Oliveira que não se trata de decisão que “julga
o mérito da causa nem discute a culpa, não absolve, não condena, não julga extinta a
punibilidade e, consequentemente, não gera nenhum efeito penal secundário próprio
da sentença penal condenatória”.61
Diante do exposto, conclui-se que a Lei dos Juizados Especiais conferiu status
de título executivo civil apenas à sentença homologatória da composição dos danos
civis. Essa lei especial também excetuou a incidência do art. 91, I do Código Penal,
que torna certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, das sentenças
homologatórias de conciliação e transação e da sentença concessiva de suspensão
condicional do processo.

3 Aspectos processuais da execução civil da sentença


penal condenatória
Transitada em julgado a sentença penal condenatória, constata-se a existência
de um título executivo apto de liquidação e/ou execução no juízo cível. Diz-se liquidação
ou execução porque, conforme se esclarecerá adiante, o juiz criminal tem permissão
legal para arbitrar um valor a título de reparação de danos (art. 63, parágrafo único,
do CPP), de maneira que se o ofendido estiver satisfeito com esse valor deverá
promover diretamente a execução. Porém, se o juiz criminal não atribuir valor de
reparação, a execução será precedida de liquidação.
É possível ainda que o juiz criminal arbitre um valor com o qual o ofendido não
concorda. Assim, se houver interesse em apurar o valor real do dano, o ofendido estará
munido de um título parte líquido e parte ilíquido, podendo promover a liquidação e a
execução de forma simultânea ainda que em autos apartados.62
A execução civil impõe a necessidade de constituir novos autos, devendo-se
apresentar “uma petição inicial […] contendo seus requisitos próprios: identificação

60
MIRABETE, Júlio Fabrini. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Atlas, 1997, p. 143.
61
OLIVEIRA, Beatriz Abraão de. Juizados Especiais Criminais. Teoria e Prática. Rio de Janeiro, Renovar, 2007,
p. 76. No mesmo sentido MIRABETE, Júlio Fabrini. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Atlas, 1997,
p. 143.
62
Conforme leciona Araken de Assis: “[...] a execução da parte líquida e a liquidação da parte ilíquida do título
judicial, simultaneamente, surgirá a necessidade de esta última se realizar em autos apartados, à vista de
certidão do título, em virtude da impossibilidade prática de convivência, nos mesmos autos, da execução e da
liquidação.” ASSIS, Araken. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 164.

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das partes, causa de pedir e pedido. É preciso que os réus apontados nessa petição
sejam citados [...]”63 nos termos do parágrafo único do artigo 475-N. Tendo em vista
a necessidade de se manter o original da sentença nos autos do juízo criminal, a
petição inicial será processada mediante certidão do juízo criminal.64

3.1 Legitimação ativa


Legitimidade é a qualidade que possuem os titulares da ação, os quais podem
ingressar no polo ativo ou no polo passivo da demanda, isto é, como autor e réu, no
caso de uma execução, como exequente e executado. O art. 63 do Código de Processo
Penal prevê como legitimados, no juízo cível, para executar o título proveniente de
sentença penal condenatória: o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.
Inicialmente, convém indagar se o termo ofendido diz respeito apenas ao sujeito
passivo do crime. Assim, num crime contra a ordem tributária, por exemplo, em que
o gestor de uma empresa sonegou tributos e com isso prejudicou a pessoa jurídica
e, consequentemente, os sócios, teria a pessoa jurídica, ou os sócios, legitimidade
para executar a sentença penal condenatória mesmo não sendo sujeito passivo do
delito, uma vez que essa posição é ocupada pelo Estado? Segundo Hélio Tornaghi,
a pessoa jurídica, nesse exemplo, teria legitimidade para promover a execução civil
da sentença penal condenatória, pois “ofendido é, não apenas o sujeito passivo do
crime, mas quem quer que por causa do fato que o constitui sofre dano civil” (grifo do
autor).65 Destaque-se, contudo, que tal entendimento não é pacífico. Manifestam-se
em sentido absolutamente contrário Marinoni e Arenhart para os quais “o título
executivo só se forma em prol da vítima ou de seus sucessores, não beneficiando
terceiros, que deverão propor ação ressarcitória no juízo cível para que possam ver
seus prejuízos ressarcidos”.66
Saliente-se, ainda, que o legislador foi previdente ao incluir no rol de legitimados
o representante legal do ofendido, pressupondo a incapacidade deste, bem como
seus herdeiros, antevendo um possível falecimento. Contudo, impõe-se uma reflexão
acerca de quem são os herdeiros legitimados para a execução. O Código Civil de 2002,
na complicada regra sucessória do artigo 1.829, conferiu ao cônjuge sobrevivente a
qualidade de herdeiro necessário, conforme esclarece o professor Eduardo de Oliveira
Leite: “agora, o cônjuge sobrevivente concorre a divisão da legítima, em igualdade

63
BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos Civis da Sentença Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 115.
64
ASSIS, Araken. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 164.
65
TORNAGHI, Hélio. Compêndio de Processo Penal. Tomo II. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1967, p.556.
66
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 3. Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 414.

68 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014
Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

com os descendentes ou ascendentes do falecido. Isto é, deixa de ser herdeiro


legítimo facultativo e passa a ser herdeiro legítimo necessário”.67
Entretanto, como dito anteriormente, a regra é complicada na medida em que
prevê exceções: 1) a primeira exclui o cônjuge casado com o de cujus em regime de
comunhão universal de bens, ou seja, a viúva meeira não é sucessora e, portanto,
não é legitimada a propor a execução civil; 2) da mesma forma o cônjuge casado com
o de cujus em separação obrigatória de bens não é herdeiro e, portanto, não é parte
legítima para propor a execução; 3) e por último, o cônjuge casado em comunhão
parcial de bens com o de cujus, o qual não deixou bens particulares. Assim, se o
falecido deixou bens particulares, o cônjuge sobrevivente concorre com os demais
herdeiros e, portanto, é herdeiro. Porém, se não houver bens particulares do de cujus,
o cônjuge sobrevivente estará albergado apenas pela meação, logo, não é herdeiro e
em vista disso não é legitimado para a execução civil.68
De acordo com a regra sucessória, os cônjuges, que não incorram em uma
das exceções descritas no art. 1829, são sucessores e, portanto, podem executar
civilmente a sentença penal condenatória. Se não houver ascendente nem
descendente, o cônjuge será o único sucessor, pois a lei o prefere aos colaterais,
conforme artigos 1830 e 1839 do Código Civil.
Vivendo o de cujus em união estável, o artigo 1725 do Código Civil estabelece
que “aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão
parcial de bens”, sendo, portanto, o companheiro sobrevivente herdeiro legitimado à
execução. Considerando o princípio da efetiva tutela do direito material, não se deve
exigir prévia sentença declaratória de união de estável para conferir tal legitimação
ao companheiro, podendo este apresentar provas da união nos próprios autos
da execução.
Importante destacar ainda que se o de cujus fixou herdeiros em testamento,
estes também são sucessores e por essa razão podem executar a sentença

67
LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito Civil Aplicado. v. 6. Direito das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, p. 138.
68
A terceira turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar, em 01/12/2009, o Recurso Especial nº 992.749,
adotou a seguinte interpretação para o art. 1.829 do CC: no regime de comunhão parcial, o cônjuge
sobrevivente faz jus à meação, bem como herda os bens comuns em concorrência com os descendentes. Já
os bens particulares são partilháveis somente entre descendentes. Nas palavras da relatora Ministra Nancy
Andrighi: “Desse modo, preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado
da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência
hereditária sobre os bens comuns, haja ou não bens particulares, partilháveis, estes, unicamente entre os
descendentes” (STJ – 3ª T – REsp 992.749. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julg. 01.dez.2009). Seguindo a linha
do STJ, o cônjuge sobrevivente casado em regime de comunhão parcial poderia executar a sentença penal
condenatória, independentemente da existência de bens particulares. O STJ também eliminou as distinções
entre o regime legal de separação de bens e o regime convencional de separação de bens ao interpretar que
ambos se tratam de separação obrigatória, contrariando a Súmula 377 do STF que admitia a comunicação dos
bens adquiridos na constância do casamento contraído sob regime de separação legal de bens.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 69
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penal condenatória. Já os legatários somente poderão executar a sentença penal


condenatória se o legado versar exatamente sobre esse crédito.
O art. 68 do Código de Processo Penal prevê ainda que a execução, e até
mesmo a ação civil de conhecimento, pode ser promovida pelo Ministério Público,
a requerimento do interessado, quando o titular do direito à reparação do dano for
pobre. Houve quem discutisse a constitucionalidade dessa regra, fundamentando-se
no art. 128, §5º da Constituição Federal, no qual se proíbe que os membros do
Ministério Público exerçam a advocacia.
Sobre esse assunto o Supremo Tribunal Federal se manifestou no Recurso
Extraordinário nº 135.328-7, publicado no Diário Oficial de 20 de abril de 2001,
reconhecendo a “inconstitucionalidade progressiva” do dispositivo. Assim, na medida
em que os Estados forem instituindo suas Defensorias Públicas, o Ministério Público
vai perdendo esta legitimação, a qual passará a ser inteiramente daqueles órgãos.69
Trata-se, conforme leciona Araken de Assis, de legitimidade ativa extraordinária, uma
vez que “o Ministério Público não é titular do direito à reparação – autônoma, pois age
em nome próprio, e concorrente, porque convive com a pretensão dos legitimados
ativos ordinários”70 (grifo do autor).

3.2 Legitimação passiva


A ação penal se desenvolve tendo no polo passivo apenas o sujeito que praticou
a conduta criminosa, ao qual devem ser observadas as garantias da ampla defesa
e do devido processo legal, entre outras. E é, justamente, em respeito a estes dois
princípios, acrescidos da limitação subjetiva da coisa julgada, que a doutrina defende,
majoritariamente, que um terceiro não pode vir a “suportar as consequências nocivas
de uma sentença proferida em processo do qual não participou”.71 Assim, segundo

69
LEGITIMIDADE – AÇÃO EX DELICTO – MINISTÉRIO PÚBLICO – DEFENSORIA PÚBLICA – ARTIGO 68 DO CÓDIGO
DE PROCESSO PENAL – CARTA DA REPÚBLICA DE 1988. A teor do disposto no artigo 134 da Constituição
Federal, cabe à Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a orientação e
a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV, da carta, estando restrita a
atuação do Ministério Público, no campo dos interesses sociais e individuais, àqueles indisponíveis (parte final
do artigo 127 da Constituição Federal). Inconstitucionalidade progressiva – viabilização do exercício do direito
assegurado constitucionalmente – assistência jurídica e judiciária aos necessitados – subsistência temporária
da legitimação do Ministério Público. Ao Estado, no que assegurado constitucionalmente certo direito,
cumpre viabilizar o respectivo exercício. Enquanto não criada por lei, organizada – e, portanto, preenchidos os
cargos próprios na unidade da Federação –, a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo 68 do Código
de Processo Penal, estando o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista.
Irrelevância de a assistência vir sendo prestada por Órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não
lhe competir, constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente
profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento (STF - R.E. Nº135.328-7 - Rel. Min. Marco Aurélio.
Julg. 29.jun.1994).
70
ASSIS, Araken. Eficácia Civil da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 95.
71
GRINOVER, Ada Pellegrini. Eficácia e Autoridade da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978,
p. 50.

70 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014
Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

essa orientação, somente o condenado, na ação penal, pode ocupar o polo passivo
da execução civil, único entendimento compatível com os princípios anteriormente
referidos e com a regra do artigo 568, I do Código de Processo Civil que estipula como
sujeito passivo na execução “o devedor, reconhecido como tal no título executivo”.
Ada Pellegrini Grinover sintetiza a ideia nestes termos: “a obrigação de indenizar
torna-se certa com relação ao réu do processo penal. Não com relação a terceiros, para
quem aquela sentença condenatória é res inter alios”.72 Nessa perspectiva, quem
quiser obter indenização do civilmente responsável por incapaz ou do empregador
do motorista que causou acidente de trânsito durante o horário de trabalho, por
exemplo, deverá adotar, desde logo, o caminho da ação civil indenizatória, e não
esperar a sentença penal condenatória transitada em julgado no intuito de executá-la,
nas palavras de Araken de Assis:

É de se concluir portanto, que todas as pessoas que respondem,


civilmente, pelo delito penal, de modo objetivo ou com base na culpa,
não se submetem a eficácia anexa. Contra elas, o lesado precisará obter
título executivo civil (art. 584, I, do Código de Processo Civil), ou seja,
deverá propor ação reparatória civil.73

Entretanto, há quem defenda a possibilidade de execução da sentença penal


condenatória contra o responsável instaurando divergência jurisprudencial sobre
matéria como ressalta Burini em sua obra sobre o assunto. Os defensores da execução
direta sustentam, em síntese, que a defesa seria oportunizada, após a penhora, nos
embargos à execução e que tal medida tende a viabilizar a tutela jurisdicional efetiva.
Contudo, Burini mostra-se pessoalmente ressabiado com a ideia, afirmando que:
“A preocupação com a celeridade processual não deve servir como motivo para a
desintegração sumária de princípios e garantias processuais, essenciais ao exercício
democrático da jurisdição”.74
De qualquer sorte, entende-se mais adequada a tese que respeita o devido
processo legal e os limites subjetivos da coisa julgada, de maneira que, somente
munido do título obtido em ação indenizatória civil, o ofendido, seus herdeiros ou
seu representante legal poderá obter a reparação que almeja de um terceiro sobre o
qual recaia a responsabilidade civil. Essa é também a orientação que tem prevalecido
no Superior Tribunal de Justiça, conforme acórdão do Recurso Especial 343.917-MA

72
GRINOVER, Ada Pellegrini. Eficácia e Autoridade da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978,
p. 51.
73
ASSIS, Araken. Eficácia Civil da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 96. No mesmo
sentido, Sílvio de Salvo Venosa: “para que terceiros sejam chamados a reparar o dano, deve ser promovida
ação de conhecimento, a denominada actio civilis ex delicto, sendo-lhes estranha a matéria decidida no juízo
criminal, abrindo-se, assim, ampla discussão sobre o fato e o dano no juízo cível. VENOSA, Sílvio de Salvo.
Direito Civil. (Responsabilidade Civil). v. 4. São Paulo: Atlas, 2003, p. 135.
74
BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos Civis da Sentença Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 130.

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proferido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no qual foi relator o
Ministro Castro Filho. Tratou-se de execução civil de sentença penal condenatória
intentada por mãe de vítima de acidente automotivo causado por preposto de
empresa. A empresa sustentou, tanto em apelação quanto em recurso especial, sua
ilegitimidade para integrar o polo passivo da execução. A Terceira Turma acolheu a
tese da empresa e, por unanimidade, deu provimento ao recurso nos termos do voto
do relator, conforme ementa:

PROCESSUAL CIVIL. LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA.


RESPONSÁVEL CIVIL PELOS DANOS. ILEGITIMIDADE DE PARTE. CARÊNCIA
DA AÇÃO. A sentença penal condenatória não constitui título executivo
contra o responsável civil pelos danos decorrentes do ilícito, que não
fez parte da relação jurídico-processual, podendo ser ajuizada contra ele
ação, pelo processo de conhecimento, tendente à obtenção do título a
ser executado. Recurso especial provido.75

No que se refere aos crimes cometidos em concurso de agentes, cuja


condenação recai sobre todos eles, “admite-se a solidariedade passiva pelo fato de
terem sido dois ou mais os réus condenados pela prática de ato ilícito. Trata-se, pois,
de caso de solidariedade passiva decorrente da lei”.76

3.3 Competência para a liquidação e/ou execução da


sentença penal condenatória
O artigo 475-P, III, do CPC, estabelece como competente para liquidar e executar
a sentença penal condenatória o “juízo cível competente”. Segundo Araken de Assis,
o juízo competente é aquele em que ocorreu o delito, forum comissi delicti,77 conforme
artigo 100, V, a, do CPC. Entretanto, “tratando-se de delito ocorrido em acidente de
trânsito (art. 100, parágrafo único do CPC), à vítima e aos seus herdeiros se abre a
possibilidade de liquidar e/ ou executar o título no foro do seu domicílio”.78 Observe-se
que o juízo da liquidação torna-se prevento em relação ao juízo da execução.79
Araken de Assis ressalta que não “interessa a ‘justiça’ que produziu o título,
pois o vínculo se dissolve, exceto no que respeita aos títulos produzidos perante
o Juizado Especial (art. 3º,§1º, da Lei nº 9.099/1995)”,80 os quais devem ser por
eles executados. Nessa perspectiva as sentenças penais condenatórias proferidas

75
STJ – 3T – Recurso Especial 343.917 – MA. (2001/0105336-6). Relator: Min. Castro Filho. Julg. 16.10.2003.
76
MIRABETE, Júlio Fabrini. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Atlas, 1997, p. 131.
77
ASSIS, Araken. Eficácia Civil da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 96.
78
ASSIS, Araken. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 393.
79
ASSIS, Araken. Eficácia Civil da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 96.
80
ASSIS, Araken. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 393.

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Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

pela Justiça Federal e pela Justiça Militar são liquidáveis e executáveis perante as
Justiças Estaduais, exceto quando o exequente for a União, entidade autárquica ou
empresa pública federal (art. 109, I, da CF), situações em que a execução compete à
Justiça Federal.81
Os autores, em geral, não fazem menção à reparação de danos decorrentes
de crimes eleitorais, contudo, por analogia, é de se entender que a sentença penal
condenatória de crime eleitoral, cuja prolação coube à Justiça Eleitoral, é executável
perante as Justiças Estaduais, exceto quando a União, autarquia federal ou empresa
pública federal forem exequentes, situação em que a competência passa a ser
da Justiça Federal.
Corrobora com esse entendimento o artigo 243, §1º do Código Eleitoral, o
qual estabelece que “o ofendido por calúnia, difamação ou injúria, sem prejuízo e
independentemente da ação penal competente, poderá demandar, no Juízo Cível
a reparação do dano moral [...]”. Ou seja, o Código Eleitoral remete ao juízo cível
a competência para processar e julgar as ações indenizatórias decorrentes de tais
crimes. Assim, analogamente, entende-se que a sentença penal condenatória por crime
eleitoral deve ser executada, para fim de reparação de danos, junto ao juízo cível.
Não obstante, o professor de direito eleitoral da Universidade Federal
do Maranhão, Fábio Braga, tem sustentado a competência da Justiça Eleitoral
para processar e julgar as ações de indenização oriundas de crimes eleitorais,
sob o argumento de que ela estaria “municiada com melhores critérios e maior
discernimento, com arrimo em sua doutrina e jurisprudência particulares, para
proferir um julgamento mais prudente, justo e equilibrado”.82 Ademais, a competência
em razão da matéria, segundo esse autor, seria fixada pela “natureza jurídica da
questão controvertida”83 expressa no pedido e na causa de pedir. Entretanto, dada a
novidade da tese, prevalece, também no tocante aos crimes eleitorais, a orientação
geral de que as sentenças penais condenatórias prolatadas pelas Justiças Especiais
devem ser executadas junto à Justiça Comum, Estadual ou Federal, de acordo com
a qualidade pessoal do liquidante/exequente, tendo como foro o do local do delito.

3.4 Da liquidação da sentença penal condenatória


Título executivo “é o documento a que a lei atribui eficácia executiva”.84 Tratando-se
de eficácia fixada por lei, é perfeitamente possível que ela imponha condições para

81
DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 212.
82
BRAGA, Fábio. A competência da justiça eleitoral para apreciar o dano moral oriundo da propaganda política no rádio
e na televisão. Disponível em: <http://www.oab.org.br/ena/users/gerente/ 120275384464174131941.pdf>.
83
BRAGA, Fábio. A competência da justiça eleitoral para apreciar o dano moral oriundo da propaganda política no rádio
e na televisão. Disponível em: <http://www.oab.org.br/ena/users/gerente/ 120275384464174131941.pdf>.
84
ASSIS, Araken. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 155.

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atribuir eficácia executiva ao documento. Dessa tarefa se incumbiu o artigo 586 do


Código de Processo Civil, que dispõe: “a execução para cobrança de crédito fundar-se-á
sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível”. Assim, para que um título
judicial ou extrajudicial possa ser executado, é preciso que ele se apresente como
certo, líquido e exigível.
Enquanto a certeza diz respeito “à existência da prestação que se quer ver
realizada”,85 a exigibilidade é verificada com o “implemento do termo, ou da condição”86
a qual permitirá que a obrigação seja imposta de forma coativa.87 No tocante à
liquidez, trata-se da “exata definição daquilo que é devido e de sua quantidade”.88
A sentença penal condenatória reveste-se de certeza, uma vez que reconhece
a violação de um direito de outrem ou, conforme elucida Burini, “na medida em que
reconhecida a existência de um ilícito que, por força do fenômeno da múltipla incidência,
encontra a porta civil de entrada no ordenamento jurídico”.89 Já a exigibilidade da
sentença penal condenatória é implementada, perante a esfera civil, com o “trânsito
em julgado da sentença penal, formando-se o an debeatur, condição sine qua non
para o transporte in utilibus dos efeitos da sentença penal”.90 Entretanto, recorde-se
que o trânsito em julgado é importante na medida em que confere especial qualidade
de coisa julgada à matéria já decidida, tornando-a indiscutível. Sob essa perspectiva,
é de se observar que o trânsito em julgado da sentença penal condenatória contribui
para que esta adquira, também, certeza e não somente exigibilidade.
Em vista disso, a despeito da permissão legal para requerimento da liquidação
de sentença na pendência de recurso prevista no artigo 475-A do Código de Processo
Civil, a sentença penal condenatória somente pode ser liquidada após verificado o
trânsito em julgado, pois, “a pendência de recurso na sede penal retira um atributo
essencial do ato jurisdicional apto à constituição de um título executivo: a certeza,
decorrente do trânsito em julgado exigido pelo art. 475-N, do mesmo diploma”.91
Diversamente do que ocorre com a certeza e a exigibilidade, a sentença penal
condenatória transitada em julgado pode não ser dotada de liquidez, quando o juiz
penal não estipula um valor a título de reparação indenizatória, precisando, portanto,
ser submetida ao procedimento de liquidação. Esclareça-se, desde logo, que, muito
embora a reforma do Código de Processo Penal entabulada pela Lei nº 11.719/2008

85
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 3. Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 120.
86
ASSIS, Araken. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 162.
87
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 3. Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 119.
88
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 3. Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 121.
89
BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos Civis da Sentença Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 112.
90
BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos Civis da Sentença Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 112.
91
BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos Civis da Sentença Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 116.

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Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

tenha incumbido o juiz criminal de fixar um valor mínimo para reparação de danos,
esta não tem o condão de suprimir a liquidação civil, conforme ressalva a própria lei:
“Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada
pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem
prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido”. O inciso IV
do artigo 387 a que se refere a norma supracitada estabelece que o juiz criminal,
ao proferir a sentença condenatória, “fixará valor mínimo para reparação dos danos
causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”. Esse valor
arbitrado a título de perdas e danos não se submete à liquidação, como esclarece
Araken de Assis:

A sentença penal condenatória dotada de semelhante efeito é a


definitiva, transitada em julgado – não existe execução provisória –, e
submetida, obrigatoriamente, ao procedimento de liquidação (art. 475-A
do CPC), exceto no que respeita ao valor fixado no próprio ato a título
de perdas e danos (art. 63, parágrafo único do CPP, c/c art. 387, IV,
do CPP). Não se pode supor, ante o princípio da separação, que o juiz
penal haja liquidado, senão de modo parcial, a obrigação de reparar o
dano civil.92

Burini, tecendo comentários ao, à época, projeto de lei que propunha a alteração
do Código de Processo Penal, manifestou certo descontentamento com a condenação
de ofício a ser feita pelo juiz criminal. Segundo ele, é necessária toda uma adequação
do processo criminal no intuito de permitir o ingresso da vítima no feito, na qualidade
de parte, a qual incumbirá a formulação do pedido de condenação.93
Há que se concordar com Burini no sentido de que a condenação do réu a
perdas e danos na esfera penal exige pedido expressamente formulado para tanto,
a fim de manter coerência com o princípio da demanda,94 norteador do processo.
Todavia, tal requisito formal pode ser cumprido com a expressa formulação do pedido
pelo Ministério Público, não havendo necessidade de que seja aduzido pela vítima.
Importante recordar que o efeito condenatório civil da sentença penal
condenatória decorre de lei e existe independentemente da expressa quantificação
de dano que poderá ser realizada, completa ou parcialmente, através da liquidação
civil, a qual, conforme esclarecido anteriormente, não se opera em relação ao valor

92
ASSIS, Araken. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 173.
93
BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos Civis da Sentença Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 136-137.
94
“Cabe à parte a atribuição de provocar a atuação da função jurisdicional, uma vez que os órgãos incumbidos de
prestá-la são inertes. Decorrência dessa regra é a impossibilidade de o juiz tomar providências que superem
ou sejam estranhas aos limites do pedido (ne eat iudex ultra petita partium)” (CAPEZ, 2010, p. 64). No
mesmo sentido Mirabete: “Do princípio da inciativa das partes decorre como consequência que o juiz, ao
decidir a causa, deve cingir-se aos limites do pedido do autor (MP ou ofendido) e das exceções aduzidas pela
outra parte (réu), não julgando sobre o que não foi solicitado pelo autor (ne eat iudex ultra petita partium)”.
MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1992, p. 49.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 75
Renata Caroline Kroska

fixado a título de reparação de dano pelo juiz criminal. Assim, se houver interesse, por
parte do ofendido, ou dos legitimados previstos no artigo 63 do CPP, em apurar a real
extensão do dano, para que seja arbitrado um valor de condenação mais satisfatório,
a sentença penal será submetida ao incidente de liquidação antes da execução.
Todavia, se julgar satisfatória a quantia fixada pelo juízo criminal, basta promover a
execução diretamente.
A liquidação tem natureza de “incidente processual”, tratando-se de “mera
fase do processo, constituindo providência integrativa da sentença exequenda”.95
Para a liquidação da sentença penal condenatória exige-se, conforme artigo 475-N,
parágrafo único,96 do CPC, a expedição de mandado de citação ao devedor no juízo
cível para liquidação ou execução da sentença penal condenatória, formando-se
novo processo. Entre as formas de liquidação de sentença, por cálculo,97
arbitramento98 e artigos,99 Araken de Assis julga mais adequada a que se processa
por artigos, “pois existem fatos, estranhos ao objeto litigioso da ação penal […]
cuja prova se afigura indispensável à apuração do quantum debeatur”.100 Já
Bruno Corrêa Burini defende ser aplicável, em algumas situações, a liquidação
por arbitramento.101
Destaque-se que no incidente de liquidação somente são admitidas provas que
tenham implicações no quantum debeatur, não sendo possível rediscutir a autoria e a
existência do fato. Nesse sentido asseverou o Ministro Sálvio de Figueiredo em voto
proferido no Recurso em Mandado de Segurança nº 5.444-6 de São Paulo: “Assinalo,
ao finalizar, que, no juízo liquidadório, antecedente à execução para fins de tornar
líquido o título judicial, provas podem ser produzidas, mas apenas para a fixação do
quantum debeatur”.102

95
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 3. Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 125.
96
“Nos casos dos incisos II, IV e VI, o mandado inicial (art. 475-J) incluirá a ordem de citação do devedor, no
juízo cível, para liquidação ou execução, conforme o caso”. O inciso contempla, justamente, a sentença penal
condenatória, enquanto os incisos IV e VI tratam da sentença arbitral e sentença estrangeira homologada pelo
Superior Tribunal de Justiça, respectivamente.
97
“Em outras palavras quando a apuração exata do quantum depender apenas de cálculo aritmético […].”
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 3. Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 125.
98
A liquidação por arbitramento se dá mediante a atividade de perito judicial, objetivando fixar o valor de certo
bem ou de determinada prestação. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo
Civil. v. 3. Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 130.
99
A liquidação por artigos deve ser feita quando, para determinação do valor da condenação, houver necessidade
de se alegar ou provar fato novo (art. 475 – E). Entende-se por fato novo o que ficou de fora da condenação por
não ter sido alegado, em virtude de autorização legal, na fase de conhecimento e que tenha influência direta
na apuração do quantum debeatur. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo
Civil. v. 3. Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 131, grifos dos autores.
100
ASSIS, Araken. Eficácia Civil da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 97.
101
BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos Civis da Sentença Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 117-118.
102
STJ - 4T - Recurso em Mandado de Segurança nº 5.444-6-SP. Relator: Min. Sálvio de Figueiredo.
Julg. 30.05.1995.

76 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014
Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

3.5 Da execução da sentença penal condenatória


Discute-se, na doutrina, se o procedimento aplicável à execução civil da
sentença penal condenatória seria o referente ao cumprimento de sentença previsto
nos artigos 475-A a 475-R, ou se tratar-se-ia do processo executivo autônomo regido
pelos artigos 566 e seguintes, comum aos títulos extrajudiciais. Segundo Burini, Ada
Pellegrini Grinover está no rol de autores que sustenta que a fase de cumprimento de
sentença está restrita ao título executivo civil, de maneira que os títulos executivos
extrajudiciais, bem como as sentenças proferidas fora do processo civil estatal
(sentença penal condenatória, laudo arbitral, sentença estrangeira homologada e
acordo extrajudicial homologado), seguem o rito Livro II do CPC, ou seja, de processo
autônomo de execução.103
Burini defende a tese de que a execução da sentença penal condenatória
deve ser processada pela fase de cumprimento de sentença, argumentando que
a “sentença penal condenatória é tratada pelo Código de Processo Civil como se
fosse uma sentença genérica”,104 isto é, semelhante àquelas obtidas nos processos
coletivos. O autor acrescenta, como argumento de menor relevância, o fato de o
artigo 475-N do CPC, bem como seu parágrafo único, o qual faz expressa menção à
execução da sentença penal condenatória, estar localizado entre os dispositivos que
tratam do cumprimento de sentença.
O parágrafo único do art. 475-N exige que as liquidações/execuções oriundas
de sentença penal condenatória, de sentença estrangeira homologada e de sentença
arbitral sejam inciadas pela citação do devedor. Não obstante, é de se entender
que, se devedor foi citado pessoalmente para a liquidação de sentença, não há
necessidade de nova citação para execução, intimando-se o devedor na pessoa do
seu advogado. Entretanto, perceba-se que não há consenso doutrinário em relação ao
procedimento adotado para executar a sentença penal condenatória. Ressalte-se que
a questão é de extrema relevância, pois, tem, entre outras implicações, impactos na
defesa do executado. De qualquer sorte, recorde-se que o art. 475-R, do CPC, prevê
a aplicação subsidiária das normas que regulam a execução de título extrajudicial ao
cumprimento de sentença.

3.5.1 Da defesa do executado


A falta de consenso doutrinário sobre o procedimento a ser adotado na execução
civil da sentença penal implica indefinições quanto à defesa do executado, se deve

103
BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos Civis da Sentença Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 114.
104
BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos Civis da Sentença Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 114.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 77
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seguir o rito da impugnação ao cumprimento de sentença, regida pelos arts. 475-L e


475-M do CPC, ou se o rito dos embargos à execução, regido pelos arts. 745 a 747
do CPC.
Na jurisprudência, a indecisão se repete. Encontram-se como defesa do
executado tanto embargos à execução, típicos de execuções de títulos extrajudiciais,
quanto impugnação ao cumprimento de sentença. No primeiro sentido, a título
de exemplificação, cita-se a Apelação Cível 355.492-4/3 levada a julgamento na
Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
em 18 de dezembro de 2008. Em primeiro grau, o executado se defendeu via
embargos à execução, os quais foram julgados procedentes pelo Juízo a quo,
sob o argumento de que a sentença penal condenatória deveria ser submetida à
liquidação antes da execução. O Tribunal, por sua vez, reconhecendo que, “no caso
concreto, a sentença penal condenatória é certa e líquida, a dispensar a liquidação
por arbitramento ou por artigos”, julgou, por unanimidade, procedente o recurso,
conforme ementa:

RESPONSABILIDADE PENAL E SUA INFLUÊNCIA NA RESPONSABILIDADE


CIVIL – Execução de sentença penal condenatória pelo crime de
estelionato – Sentença penal que em seus fundamentos fixa o valor do
dano, correspondente ao desfalque dado por contador de cooperativa –
Laudo produzido na esfera penal que não deixa margem de dúvida quanto
ao valor do desfalque – Quantum que não é discutido nos embargos
à execução, que se apega a questões exclusivamente formais –
Desnecessidade de prévia liquidação, no caso concreto, diante da
fixação do quantum na ação penal — Recurso provido, para o fim de
julgar improcedentes os embargos à execução105 (grifo nosso).

O Tribunal de Justiça do Paraná, em julgamento ao Agravo de Instrumento


nº 563.305, posicionou-se no sentido de ser cabível impugnação ao cumprimento de
sentença. No caso, o agravante insurgiu-se contra decisão do Juízo a quo que o intimou
para efetuar o pagamento das custas referentes à impugnação ao cumprimento de
sentença, sob pena de não conhecimento do incidente. A Quinta Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Paraná reformou a decisão de primeiro grau, ficando vencido
o Desembargador Adalberto Jorge Xisto Pereira. Do voto do relator se extraem os
seguintes trechos:

O parágrafo único do mencionado artigo é auto-elucidativo, sendo


transparente que, nos casos do inciso II - sentença penal, inciso IV -
sentença arbitral - e inciso VI - sentença estrangeira, há necessidade
de citação. Ora, se há necessidade de citação, é óbvio que se trata de

105
TJSP – 4ª Cam. Dir. Privado. Apelação Cível 355.492-4/3. Relator: Des. Francisco Loureiro. Julg. 18.12.2008.

78 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014
Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

uma nova ação, uma ‘ação de cumprimento de sentença’ que assim se


denomina por um simples fato: não pode ser satisfeita nos mesmos
autos onde foi proferida!
[...]
Assim, havendo citação, bem como registro, autuação, distribuição e
intimação do devedor para pagamento, como é o caso destes autos, há
“ação de cumprimento de sentença”, sendo cabível, portanto, a exigência
de custas, pois, em caso contrário, estar-se-ia criando uma hipótese de
isenção de custas, em contrariedade ao princípio da causalidade.
Referidas custas devem ser recolhidas por quem provoca a jurisdição, ou
seja, pelo exequente, que, ao final, caso reste vencedor, com o julgamento
de improcedência da impugnação, será ressarcido pelo devedor. Logo,
tais custas se referem tanto ao pedido de cumprimento de sentença
como da impugnação.
Ademais, sendo a impugnação a defesa cabível ao devedor quando do
cumprimento de sentença, não se configurando como procedimento novo,
como era a hipótese dos embargos à execução, não gera necessidade de
recolhimento de custas.106

Considerando a falta de uniformidade quanto à forma pela qual se processa


a defesa do executado, parte-se para uma análise das possíveis defesas. Entre as
matérias alegáveis em defesa previstas no art. 745, tem-se no inciso IV a retenção
de benfeitorias, a qual não possui aplicação na execução civil da sentença penal
condenatória. Já entre as defesas, simultaneamente previstas nos arts. 475-L e 745
do CPC, tem-se aquelas que não apresentam grandes dificuldades por serem comuns
a todas as execuções, quais sejam, a arguição de excesso de execução, e a penhora
incorreta ou avaliação errônea.
De outro vértice, o artigo 745, V permite que o executado alegue qualquer
matéria de defesa aduzível em processo de conhecimento. Há, portanto, ampla
cognição em embargos à execução. No que se refere à inexistência ou nulidade de
citação na fase de conhecimento, prevista no art. 475-L, I, do CPC, é evidente que
se o juiz cível a declarar estará, por consequência, desconstituindo o título executivo
a ele apresentado. Marinoni e Arenhart posicionam-se no sentido de que o juiz cível
não detém tal poder, estando a cognição judicial limitada aos aspectos executórios,
nas palavras dos autores:

[…] não cabe ao juízo cível desconstituir o título executivo formado na


esfera criminal. Não lhe compete, assim, conhecer de temas como a falta
ou nulidade da citação na ação penal ou de outras questões de mérito da
condenação, ainda que o tema fosse destes que podem ser examinados
de ofício. É que estes assuntos são reservados ao juízo criminal, não

TJPR- 5ª Cam. Civ. Agravo de Instrumento 563.305-0. Relator: Des. Marcos Moura. Julg. 04.08.2009.
106

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 79
Renata Caroline Kroska

podendo o órgão da execução usurpar a sua competência.107 (grifo


dos autores)

Em sentido contrário cita-se o comentário tecido ao artigo 574 no Código


de Processo Civil Interpretado, organizado por Antônio Carlos Marcato, no qual se
defende que eventual defeito do processo criminal deve ser reconhecido pelo juízo
cível em razão do princípio da unidade da jurisdição. Este autor assevera que essa
incorreção do processo penal deve ser arguida na primeira oportunidade, de maneira
que “havendo necessidade de liquidação […] a eventual falha na citação deverá ser
alegada, discutida e resolvida no processo liquidatório”.108
Discorda-se desse entendimento, tendo em vista que a desconstituição do título
executivo constituído na esfera penal pelo juiz cível atentaria contra as regras de
competência integrativas do devido processo legal. Ademais, o réu dispõe de adequado
remédio para a desconstituição da sentença penal em sede de recurso de apelação
ou em revisão criminal, cujo julgamento procedente, extinguirá, por via reflexa, o título
executivo civil. Destaque-se ainda que essa situação, indubitavelmente, consiste em
fundamento suficientemente relevante para ensejar o efeito suspensivo previsto no
artigo 475-M do CPC.
O artigo 745, I, do CPC prevê ainda a alegação de nulidade da execução por
não ser executivo o título apresentado. Trata-se do caso em que “ausente a certeza,
liquidez ou exigibilidade”.109 Como visto anteriormente, o trânsito em julgado da
sentença penal condenatória lhe confere certeza e exigibilidade. Já a liquidez pode
ser obtida mediante liquidação prévia da sentença. Semelhante a esta defesa em
embargos (745, I, do CPC), tem-se, no artigo 475-L, II, a possibilidade de arguição
de inexigibilidade do título no cumprimento de sentença. Entre as situações fáticas
alegáveis sob a égide desse dispositivo, está a superveniência de sentença absolutória
obtida em revisão criminal. Através da revisão criminal o réu pode pleitear, após o
trânsito em julgado da sentença, a qualquer tempo, o reexame do seu processo
criminal. Existem, conforme sintetiza Fernando Capez, cinco situações que permitem
lançar mão da revisão criminal: quando a sentença condenatória contrariar texto
expresso da lei; quando for contrária às evidências dos autos; quando se basear em
provas comprovadamente falsas; quando surgirem provas da inocência do condenado;
quando surgirem provas de circunstâncias provocadoras da diminuição da pena.110
Bruno Corrêa Burini sustenta que a sentença absolutória obtida em revisão
criminal retira da sentença sob execução a certeza necessária a qualquer título

107
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 3. Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 415.
108
MARCATO, Antônio Carlos (org.). Código de Processo Civil Interpretado. São Paulo: Atlas, 2004, p. 1.710.
109
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 713.
110
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 801-803.

80 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014
Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

executivo.111Araken de Assis, por sua vez, entende que a sentença em sede de revisão
criminal extingue o efeito anexo previsto em lei, pois “os efeitos anexos são estranhos
à eficácia própria da sentença e, portanto, à coisa julgada material. Não compartilham
assim a indiscutibilidade atribuída ao elemento declarativo da sentença transita em
julgado”.112 De outro vértice, digna de nota é a tese de Alexander de Macedo, para o
qual o efeito executório da sentença penal é “irrescindível” porque tomado por “uma
eficácia preclusiva panprocessual da coisa julgada material penal”.113
Contudo, entende-se, majoritariamente, que uma defesa dessa natureza
ventilada e comprovada impede o prosseguimento da execução. Tratando-se de
execução já finda, é possível a repetição do indébito, entretanto o exequente da
sentença criminal pode defender-se comprovando que, inobstante a desconstituição
do título, houve ilícito civil a ensejar indenização.114 Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de
Andrade Nery defendem, inclusive, que a revisão criminal constitui título condenatório
de natureza civil contra o Estado, de quem o executado poderá pleitear reparação,
nos termos do artigo 630 do CPP.115
É, igualmente, objeto de discussão doutrinária se o executado pode valer-se
da coisa julgada civil para defender-se da execução. Melhor explicando: a ação
indenizatória proposta pela vítima foi julgada improcedente, porém, a sentença penal
condenou o autor do crime, razão pela qual a vítima, ou outro legitimado, propõe
a execução do título. Poderia o executado defender-se alegando exceção de coisa
julgada? Segundo Antônio Carlos Marcato, Humberto Teodoro Júnior sustenta a total
independência da sentença penal condenatória como título executivo judicial, “de tal
sorte que ao executado não aproveitaria sequer a exceção de coisa julgada”.116
Esse foi entendimento que prevaleceu na Terceira Turma do STJ, em Agravo
Regimental ao Agravo de Instrumento nº 93.815, oriundo de Minas Gerais, no qual,
entendeu-se executável a sentença penal condenatória mesmo havendo coisa julgada
cível em sentido contrário, conforme trechos extraídos do voto do relator:

Na espécie, as decisões na esfera cível foram anteriores ao provimento


na esfera penal. Assim, como asseverou o acórdão recorrido, é possível
a coexistência de decisões contraditórias uma no cível outra no juízo
criminal, contudo, não há espaço para a rescisória, vez que, ao caso, não
se subsume nenhum dos incisos do art. 458, do CPC. [...]

111
BURINI, Bruno Corrêa. Efeitos Civis da Sentença Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 177.
112
ASSIS, Araken. Eficácia Civil da Sentença Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 172.
113
MACEDO, Alexander dos Santos. Da Eficácia Preclusiva Panprocessual dos Efeitos Civis da Sentença Penal.
Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 1989, p. 67-74.
114
ASSIS, Araken. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 174.
115
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. E legislação
extravagante. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2007, p. 751.
116
MARCATO, Antônio Carlos (org.). Código de Processo Civil Interpretado. São Paulo: Atlas, 2004, p. 1709.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 81
Renata Caroline Kroska

Como é cediço, a sentença penal condenatória torna certa a obrigação de


indenizar o dano causado. No ponto, o recorrente poderá aviar a execução da
própria sentença criminal transitada em julgado, segundo dispõe o art. 584,
II, do CPC, pois trata-se de título executivo judicial.117 (grifo nosso)

Em sentido diverso, porém, Sérgio Shimura sustenta que “se a jurisdição,


ontologicamente, é uma só, a coisa julgada formada validamente, em primeiro lugar,
há que merecer o tratamento que o próprio Texto Constitucional lhe confere”.118
Por último, tem-se a previsão do art. 475-L, VI, do CPC que permite ao
executado opor “qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação,
como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que
superveniente à sentença”. Quanto a essa matéria, Marinoni e Mitidiero frisam a
importância da ocorrência de tal causa ter se dado após o trânsito em julgado da
sentença, “porque, do contrário, a possibilidade de alegação estará preclusa em face
da coisa julgada ou de sua eficácia preclusiva”.119
Importante destacar que a execução civil de sentença penal condenatória
consiste em exceção à impenhorabilidade do bem de família legal, conforme art. 3º,
VI, da Lei nº 8.009/1990. O bem de família legal, instituído por essa lei, corresponde
a todo imóvel de propriedade de entidade familiar que não responde pelas dívidas
contraídas pelos proprietários, ressalvadas as exceções, entre elas a execução civil
de sentença penal condenatória.
Existe também o bem de família voluntário instituído mediante ato de vontade
submetido a registro na matrícula imobiliária e regulado pelos artigos 1.711 a 1.722
do Código Civil. Observe-se que o rol de exceções para o bem de família voluntário
é menor que aquele conferido ao bem de família legal, pois conforme artigo 1.715
aquele responderá somente por dívidas decorrentes de tributos relativos ao prédio
ou despesa de condomínio. Não estando contemplada, portanto, a ressalva quanto à
possibilidade de penhora em virtude de execução civil de sentença penal.

3.5.2 Da prescrição da pretensão executiva da sentença


penal condenatória
A prescrição também consiste em uma das defesas possíveis do executado,
contudo, devido a sua relevância, pode, inclusive, ser reconhecida de ofício pelo juiz,
razão pela qual se propõe seu estudo em apartado.

117
STJ- 3T - Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 93.815 MG. Relator: Min. Waldemar Zvetter.
Julg. 11.03.1996.
118
SHIMURA, Sérgio. Título Executivo. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 218.
119
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 471.

82 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014
Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

De acordo com a Súmula 150 do Supremo Tribunal Federal, a execução


prescreve no mesmo prazo da ação de conhecimento. Tendo em vista que a ação
civil oriunda de crime é a indenizatória, cujo prazo prescricional, previsto no art. 206,
§3º, V, do Código Civil, é de três anos, a prescrição para promover liquidação e/ou
execução da sentença penal condenatória transitada em julgado também é de três
anos. Recorde-se que, se o titular da pretensão executória for incapaz, contra ele não
corre prescrição, nos termos do artigo 198 do Código Civil.

4 Execução civil de sentença penal condenatória por


crime contra bem jurídico de natureza difusa, coletiva ou
individual homogênea
É possível que o crime seja cometido contra um bem jurídico que não pertence
a uma pessoa específica, mas sim a várias pessoas individualmente consideradas,
ou a sociedade como um todo, ou ainda a uma coletividade. Tais bens jurídicos são
protegidos por direitos de natureza individual homogênea, difusa, ou coletiva. Por
direitos ou interesses difusos entendem-se, nas palavras de Bruno Miragem:

[...] aqueles transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam


titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.
Trata-se de direitos ou interesses que independem da existência de
uma relação jurídica anterior entre seus titulares e aqueles contra quem
serão tutelados.120

Os direitos difusos assemelham-se aos direitos coletivos, mas com eles não
se confundem, pois nestes há “concretas relações jurídico-formais” que tornam
possível “a alusão à corporificação de grupos, classes ou categorias, em torno dos
quais se concentram pretensões comuns e indivisíveis”.121 Já os direitos individuais
homogêneos são coletivos apenas na forma por que são exercidos, não em sua
essência, a qual permanece individual.122 Nesse sentido asseveram Marinoni
e Arenhart:

Os direitos individuais homogêneos, embora não sejam, por razões


óbvias, definidos como transindividuais, podem ser tutelados por meio
de ação coletiva, a qual tem, nesse caso, seu procedimento específico
delineado a partir do art. 91 do CDC. Isso ocorre porque os direitos

120
MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 355.
121
VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 55.
122
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: conceito e legitimação da para agir. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 147.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 83
Renata Caroline Kroska

individuais que podem ser lesados nas relações de massa merecem


procedimento diferenciado.123

Entre os vários instrumentos legislativos que tentam proteger os direitos difusos,


coletivos e individuais homogêneos, têm-se os tipos penais, os quais preveem
punições para aqueles que violam ou colocam em risco tais direitos. Tratam-se,
entre outros, dos crimes ambientais (art. 29 e seguintes da Lei nº 9.605/1998)
e dos crimes contra a relação de consumo (arts. 61 a 74 do Código de Defesa
do Consumidor). Esses diplomas legislativos estabelecem a condenação criminal
de pessoas físicas e, inclusive, de pessoas jurídicas, deixando de aplicar a estas
somente as penas privativas de liberdade por evidente incompatibilidade lógica.
O Código de Defesa do Consumidor prevê que a sentença penal condenatória
beneficia as vítimas e seus sucessores, “os quais poderão proceder à liquidação e à
execução nos termos dos artigos 96 a 99”, de maneira semelhante ao que acontece
com as condenações obtidas em Ação Civil Pública. Tendo em vista que o artigo 96
foi vetado pelo Presidente da República, a disciplina da liquidação e execução começa
pelo artigo 97, o qual prevê que “a liquidação e execução da sentença poderão ser
promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que
trata o art. 82”. O artigo 82, por sua vez, confere legitimação a: Ministério Público;
União, Estados, Municípios e Distrito Federal; entidades e órgãos da administração
pública, direta ou indireta, ainda que despersonalizados, destinados a proteger os
interesses e direitos previstos no CDC; associações regularmente constituídas há
pelo menos um ano e destinadas a proteger os interesses e direitos previstos no
Código. Lembrando que esse requisito pode ser dispensado pelo juiz, conforme §1º
do art. 82, quando se tratar de ações coletivas para a defesa de interesses individuais
homogêneos em que haja manifesto interesse social ou dada a relevância do bem
jurídico protegido.
Contudo, conforme esclarece Antônio Herman Benjamin em comentário ao
artigo 97 do CDC, “a legitimação prevista no art. 82 não é automática, somente
podendo se dar na hipótese do art. 100 do CDC, ou seja, se, no prazo de um ano,
não houver a habilitação de um número de interessados compatível com a gravidade
do dano”.124 Havendo nenhum ou poucos habilitados, os legitimados do art. 82
do CDC podem executar a sentença condenatória, situação em que os valores
obtidos serão revertidos em favor “do Fundo Federal de Direitos Difusos, ou de

123
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. v. 2. Processo de Conhecimento.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 741.
124
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa
do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 1.087.

84 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014
Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

seus equivalentes em nível estadual e/ou municipal”125 (idem). Essa reversão da


indenização para um Fundo é o que a doutrina chama de fluid recovery, em português,
reparação fluida, que, como ressalta Elton Venturi, não diz respeito “tão somente à
soma das indenizações individuais não pleiteadas”.126 O dinheiro arrecadado deve
ser destinado a projetos que visem à reparação do dano causado e à prevenção de
futuros danos semelhantes.
Elton Venturi leciona que esse prazo de um ano “serve como parâmetro a
autorizar que os entes do art. 82 movam competente quantificação da indenização
global e residual, diante da inércia ou do pequeno número de vítimas e seus
sucessores que se habilitaram”.127 Venturi também adverte que o Ministério Público
não ostenta, como função institucional, a defesa de direitos individuais e, portanto,
não pode “promover a liquidação de danos individuais homogêneos na qualidade
de representante de vítimas e sucessores”.128 Assim, a legitimação ordinária do
Ministério Público está restrita à liquidação e execução dos “danos sociais” efetivada
pela execução coletiva prevista no art. 98 do CDC.
A execução coletiva da sentença penal condenatória pode ser promovida pelos
legitimados do artigo 82 e abrange “as vítimas cujas indenizações já tiverem sido
fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções”.
Bastante elucidativa é a lição Ada Pelegrini Grinover sobre este dispositivo:

A execução coletiva é necessariamente individualizada, abrangendo


o grupo de vítimas cujas indenizações já tiverem sido fixadas na(s)
sentença(s) de liquidação. À medida que novas sentenças surgirem, os
entes ou pessoas a que a lei atribui representação das vítimas poderão
proceder a outras execuções coletivas.129

Embora o artigo trate da execução coletiva, alude, novamente, às execuções


individuais, as quais não serão prejudicadas. Diante do exposto, observa-se que
o Código de Defesa do Consumidor dedica-se muito mais a disciplinar a execução
individual do que a coletiva.130 Mencione-se, ainda, que dentro do microssistema
das ações coletivas, composto pela Lei da Ação Civil Pública (7.347/1985), Lei
da Ação Popular (4.717/1965) e Código de Defesa do Consumidor, apenas este
último disciplina a execução coletiva e, como já dito, o faz, privilegiando, a reparação
individual à coletiva.

125
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa
do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 1.087.
126
VENTURI, Elton. Execução da Tutela Coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 155.
127
VENTURI, Elton. Execução da Tutela Coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 137.
128
VENTURI, Elton. Execução da Tutela Coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 164.
129
GRINOVER, Ada Pellegrini. et all. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Comentado pelos autores do
anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 890.
130
Nesse sentido: VENTURI, Elton. Execução da Tutela Coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 116.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 85
Renata Caroline Kroska

A Lei de Crimes Ambientais é ainda mais lacunosa, limitando-se a estipular a


execução civil da sentença penal condenatória nos seguintes termos:

Art. 20 – A sentença penal condenatória, sempre que possível, fixará


o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração,
considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido ou pelo meio ambiente.
Parágrafo único. Transitada em julgado a sentença penal condenatória, a
execução poderá efetuar-se pelo valor fixado nos termos do caput, sem
prejuízo da liquidação para apuração do dano efetivamente sofrido.

A redação desse artigo é semelhante àquela do parágrafo único do art. 63 do


CPP inserido pela Lei nº 11.719/2008, e insuficiente para disciplinar a liquidação
e execução do montante apurado para reparar o dano decorrente de crime dessa
natureza. Gilberto Passos de Freitas, ao tratar desse dispositivo, adverte que a lei
nada fala sobre a legitimação ativa para promover a execução, de maneira que o autor
propõe como solução, bastante plausível aliás, a aplicação do art. 5º da Lei da Ação
Civil Pública, Lei nº 7.347/1985, quais sejam: o Ministério Público; a Defensoria
Pública; a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; a autarquia, empresa
pública, fundação ou sociedade de economia mista; e, por fim, as associações,
constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre as finalidades institucionais,
entre outras possíveis, a proteção do meio ambiente.131
Todavia, não se pode olvidar que o artigo 20 da Lei de Crimes Ambientais
faz expressa menção ao ofendido, sendo perfeitamente possível que um crime
ambiental, além de causar dano social, cause dano a alguém individualmente, que
poderá liquidar e executar a sentença penal condenatória proferida.
Há de se concluir, portanto, que os legitimados ativos para promover a execução
civil da sentença penal condenatória por delito ambiental ou de relação de consumo
são os previstos no artigo 15 da Lei da Ação Civil Pública e no artigo 82 do Código de
Defesa do Consumidor, respectivamente, bem como em ambos os casos o ofendido
e sucessores.
No que se refere ao legitimado passivo da execução, individual ou coletiva,
decorrente de sentença penal condenatória por crime ambiental ou crime contra a
relação de consumo, são pertinentes as reflexões trazidas no início do trabalho,
prevalecendo o entendimento de que somente o condenado na sentença penal pode
ser executado civilmente, ressaltando-se que nestes crimes o condenado pode ser
uma pessoa jurídica.
Vêm igualmente a propósito as reflexões acerca dos substitutivos penais.
Recorde-se que a sentença homologatória de transação penal e a concessiva de

131
FREITAS, Gilberto Passos. Ilícito Penal Ambiental e Reparação do Dano. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 205.

86 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014
Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

suspensão condicional do processo impedem a formação de título executivo,


diferentemente da composição civil, a qual gera título executivo, cuja execução deverá
ser promovida junto ao Juizado Especial Cível correlato. É competente, para liquidação
e/ou execução da sentença penal condenatória por violação de direito difuso, coletivo
ou individual homogêneo, a Justiça Comum, Estadual ou Federal, de acordo com a
qualidade pessoal do liquidante/exequente, tendo como foro o do local do delito.
O procedimento para liquidação, diante da inexistência de previsão própria
para as ações coletivas, segue o rito estabelecido nos artigos 475-A a 475-H do
Código de Processo Civil. Quanto à execução, pertinentes os apontamentos feitos
anteriormente, se o rito a ser seguido é o de cumprimento de sentença ou o da
execução de título extrajudicial. De qualquer sorte, reprisam-se as ponderações feitas
quanto às matérias alegáveis em defesa do executado.
No tocante à desconstituição do título, segundo a doutrina majoritária, esta
pode ser obtida por revisão criminal, de maneira que, se absolver o réu, este terá o
direito de reaver dos exequentes o valor pago. Contudo, no âmbito das execuções
coletivas, isso se torna inviável, pois, como fará o executado para reaver a quantia
paga a cada um dos exequentes? Nesse particular, a lição de Nery Júnior e Rosa
Maria Nery parece mais adequada ao defender que a sentença de revisão criminal
constitui título executivo contra o Estado para fim de reparação do dano.

5 Breves comentários às alterações previstas no projeto


do novo Código de Processo Penal sobre a execução
civil da sentença penal condenatória
O projeto do Novo Código de Processo Penal prevê a eficácia anexa executória
civil da sentença penal condenatória em seu artigo 82 nos seguintes termos:

Transitada em julgado a sentença penal condenatória, e sem prejuízo da


propositura da ação de indenização, poderão promover-lhe a execução,
no cível (art. 475-N, II, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código
de Processo Civil), as pessoas mencionadas no art. 75.

O artigo 75, mencionado no dispositivo transcrito a seguir, substitui o vocábulo


ofendido por vítima e, tal qual o artigo 63, prevê o representante legal e os herdeiros.
Ou seja, continuam pertinentes as observações feitas neste trabalho acerca dos
legitimados, com exceção da vítima, à qual o próprio projeto oferece um conceito
no art. 88.

Considera-se “vítima” a pessoa que suporta os efeitos da ação


criminosa, consumada ou tentada, dolosa ou culposa, vindo a sofrer,
conforme a natureza e circunstâncias do crime, ameaças ou danos

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014 87
Renata Caroline Kroska

físicos, psicológicos, morais, patrimoniais ou quaisquer outras violações


de seus direitos fundamentais.

Esse conceito legal coaduna com a definição atribuída por Hélio Tornaghi ao
vocábulo ofendido, ou seja, consideram-se incluídos nesse conceito todos aqueles
que suportam algum efeito do crime e não somente o sujeito passivo do tipo penal.
O projeto do Código de Processo Penal também inova no aspecto processual
ao prever a participação da vítima, ou legitimados, na qualidade de parte civil, a qual
além de possuir as mesmas faculdades e deveres processuais do assistente, pode
requerer a recomposição do dano moral causado pela infração nos termos do artigo 80
do projeto. Contudo, o parágrafo único do artigo ressalva que, se o arbitramento de
dano moral depender de provas não contidas na peça acusatória ou depender de
provas que possam tumultuar a marcha regular do processo, a questão deverá ser
discutida em sede de liquidação no juízo cível:

Art. 80. Parágrafo único – Quando o arbitramento do dano moral depender


da prova de fatos ou circunstâncias não contidas na peça acusatória ou
a sua comprovação puder causar transtornos ao regular desenvolvimento
do processo penal, a questão deverá ser remetida ao juízo cível, sem
prejuízo do disposto no art. 475-N, II, da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro
de 1973 – Código de Processo Civil.

O art. 81 atenta para o fato de que essa adesão da vítima à ação penal não
impede a propositura de ação civil contra os responsáveis civis. Esclarece ainda que,
ajuizada ação de reparação no juízo cível, a adesão ao processo penal na qualidade
de parte civil resta prejudicada sem, contudo, prejudicar a execução civil da sentença
penal condenatória.
Há, ainda, previsão legal para atribuição de condenação em honorários
advocatícios, bem como individualização por pessoa do dano moral quando houver
pluralidade de sucessores, nos termos do art. 79, §1º: “O arbitramento do dano
moral será fixado na sentença condenatória e individualizado por pessoa, no caso de
ausência ou morte da vítima e de pluralidade de sucessores habilitados nos autos”.
A inserção da parte civil no processo penal pode vir a tornar o processo penal
ainda menos célere, tumultuando a instrução com matérias irrelevantes para a
sentença penal. O projeto pretende ainda tornar dispensável a liquidação civil do
dano, restringindo-a às situações excepcionais previstas no artigo 80, alargando a
competência dos, já assoberbados, juízes criminais.

6 Considerações finais
A execução civil da sentença penal condenatória não é novidade no
ordenamento jurídico brasileiro, todavia, não detém, com poucas exceções, acurada

88 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014
Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal condenatória

atenção da doutrina, nem conta com a promoção de um diálogo entre os diversos


ramos do direito envolvidos a fim de que sejam discutidos aspectos importantes de
sua operacionalização.
O Poder Legislativo, buscando conferir maior efetividade ao instituto, segue
legislando no que acredita ser um aprimoramento da lei sem, no entanto, atentar-se
para a realidade dos processos civil e penal que seguem racionalidades distintas
e não têm identidade de objetivos. Nesse mister, convém recordar que a vítima de
um crime participa do processo penal na qualidade de testemunha de acusação e
não de parte como seria no processo civil. Assim, a questão que se apresenta é
se é conveniente e instrumentalmente prático permitir a persecução de interesses
particulares dentro de um processo criminal ou se isso não acaba por desvirtuá-lo de
sua finalidade principal.
Reafirma-se, portanto, a necessidade de um autêntico diálogo entre os
doutrinadores das diversas áreas para que a execução civil da sentença penal
condenatória tenha o tratamento adequado dos Poderes Legislativo e Judiciário e que
possa ser efetivamente utilizada para satisfação dos interesses individuais e sociais
existentes tanto no processo civil quanto no processo criminal.

Abstract: This paper is intended to a vertical study of the conviction tort action process, starting by the exam
of this parallel effectiveness’ nature, granted to the conviction by Law. Right after that, one proceeds to an
analysis of the polemic sentences, concerning their classification as acquittal or conviction, as the Custodial
Sentences or the Pardon. It is also worth the study of the recognition of the statute of limitations effects on
criminal procedure. One goes then to an examination of the procedure aspects on the conviction tort action,
developing, among other subjects, the plaintiff and defendant roles, the quantification claim, the Damages
Procedure and the defendant answer. Finally, one makes a brief analysis on the conviction tort action for
crimes against group, corporate and collective individual rights and on the recent Criminal Code Project.
Key words: Damages. Civil procedure. Conviction.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

KROSKA, Renata Caroline. Aspectos polêmicos da execução civil da sentença penal


condenatória. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014.

92 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 51-92, out./dez. 2014
Coisa Julgada inconstitucional por
prejudicialidade transrescisória

Carlos Eduardo Araújo de Carvalho


Mestre em Direito Processual. Especialista em Direito Processual Constitucional. Professor
do Centro Universitário de Sete Lagoas. Professor da PUC-Minas IEC e Sócio-Advogado da
Cardoso & Capanema Advogados Associados.

Sumário: 1 Introdução – 2 Escorço histórico da questão da Coisa Julgada – 3 Relativização da Coisa


Julgada e a tese da prejudicialidade constitucional – 4 Da conectividade de lides – Referências

1 Introdução
As concepções correntes acerca de um determinado instituto jurídico estão
intrinsecamente ligadas ao paradigma teórico no qual estão inseridas. Nenhuma
apreciação é feita, entretanto, à luz de conhecimentos exclusivos de determinada
ciência ou especialidade – no processo de construção do conhecimento interferem
elementos sociais de outras áreas do saber com apreciável e variada dose de
influência: é o fenômeno da interdisciplinaridade.
Basta observarmos a evolução do conceito de jurisdição, tão atrelado ao
conceito de Coisa Julgada, que se concebeu como uma emanação do poder e atributo
do soberano, confundindo-se com a própria noção de Estado e que hoje não pode ser
confundido com um poder, mas sim entendido como uma função estatal.1
Grande salto evolutivo foi dado com o advento da “modernidade”, que culminou
com a ruptura do absolutismo monárquico e com a despersonificação do Estado.
Outro grande salto ocorreu no campo científico, com a criação de uma disciplina
destinada ao estudo do processo e sua relação com as outras instituições jurídicas
(Estado, entre outras) e a própria mudança na epistemologia contemporânea.
Da mesma forma ocorre com a concepção de “Coisa Julgada”, que varia
conforme o jogo dos fatores de conhecimento. É no campo do Direito Processual
que vicejam teorias que visam conceituar, estruturar e delimitar os grandes eixos
edificadores da Ciência Processual, quais sejam a Ação, a Jurisdição, o Processo,

1
CARVALHO DIAS, Ronaldo Bretãs. Responsabilidade Civil do Estado pela Função Jurisdicional. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014 93
Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

o Procedimento e mais recentemente, ressurgiram as discussões sobre a “Coisa


Julgada”. Vale ressaltar que todas estas discussões são recentes e só ocorreram no
terceiro quartel do século XIX e início do XX.
Sobre as teorias pioneiras dos grandes mestres ao longo desse período é que se
ergue todo o arcabouço teórico do processo moderno. Desde Pothier e Savigny até os
processualistas Chiovenda e Carnelutti, daí para Liebman e entre nós Alfredo Buzaid,
como também em Couture, Allorio e Fazzalari e, em nosso país, Humberto Theodoro
Júnior e Cândido Rangel Dinamarco, e a partir de uma concepção constitucionalista
e democrática de Processo José Alfredo de Oliveira Baracho e Rosemiro Pereira
Leal, os temas da extensão da Coisa Julgada e da motivação das sentenças, nas
melhores palavras de José Ignácio Botelho de Mesquita, têm “sido o centro para onde
fatalmente convergem as atenções de todos os estudiosos desta disciplina, pois é o
ponto onde vão repercutir suas concepções particulares sobre os conceitos básicos
do processo civil”.2
Na evolução da ciência do processo, os meios de impugnação da sentença
transitada em julgado são feitos de alternâncias, como uma estrutura pendular, entre
nulidade e rescindibilidade.3 E o Código Civil de 2002 traz solução eclética ao debate
sobre a natureza jurídica processual ou substancial da Coisa Julgada, atribuindo igual
valor ao aspecto lógico e materialístico do instituto.4 Pois, o conceito de bem jurídico,
assegurado pela Coisa Julgada, não pode ser identificado com a relação jurídica
substancial ou a situação ou o efeito dela imediatamente derivados. O art. 189
do Código Civil de 2002 erige em objeto da prescrição a pretensão. “Ora, como a
prescrição induz extinção do processo com julgamento de mérito, (art. 269, IV, CPC);
como é de mérito a sentença hábil a fazer Coisa Julgada (art. 468, CPC), a Coisa
Julgada diz respeito à pretensão. A pretensão é, pois, a res in iudicium deducta que,
após o trânsito em julgado, torna-se Res Iudicata.”
Assim, o problema dos vícios da sentença não pode ser buscado tão somente
no processo em que proferida, mas também o deve ser no universo extra-autos,
no mundo vivido, em contato com a realidade, e até mesmo com a porção de lide
remanescente. Pois é certo que a Coisa Julgada, diversamente da preclusão, opera
fora dos autos, no mundo vivido, voltando-se para esse. É essa a razão pela qual
a doutrina repisa, repetidamente, na questão da flexibilização, ou seja, por essa
insuficiência do exame das vias impugnativas da sentença de mérito transitada, que
não enumeradas no atual Código de Processo Civil, na mesma esteira do de 1939,
faz crer que a única via seria a Ação Rescisória.

2
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Teses, Estudos e Pareceres de Processo Civil. vol. 2. São Paulo: Ed. RT,
2005, p. 97.
3
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Coisa julgada e transrescindibilidade. No prelo. p. 6.
4
THEODORO JÚNIOR, Humberto. <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Humberto%20Theodoro%20
J%C3%BAnior(6)%20-formatado.pdf>.

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

Desta forma, neste trabalho verificar-se-á as conexões entre prejudicialidade


pelo vício existente e a Coisa Julgada, haja vista que tal problema não pode ser
solucionado apenas como o novo julgamento, como se dá no recissorium, que
promove a discussão além do prazo da ação rescisória, com o cuidado de não
legitimar a eternização do contraditório, em prejuízo da segurança jurídica. Ou
seja, defender-se-á neste breve trabalho uma interpretação correta e legítima que
promova a conjuração de vícios porventura existentes e comungue o contraditório e a
segurança jurídica.

2 Escorço histórico da questão da Coisa Julgada


A investigação sobre as origens do instituto da Coisa Julgada nos permite
vislumbrar os fundamentos que, ao longo do tempo, vêm servindo de base teórica
para os diversos posicionamentos que procuram delinear o instituto, pois conforme
assevera Celso Neves:

Estudar a Coisa Julgada é examinar sua história, fixar – através de


dados que ela forneça – o seu conceito, distinguir, neste, o essencial
do acidental, apontar os seus lindes, para definição do conteúdo que
lhe é específico, preordenando, assim, os efeitos que lhe são próprios.
A contraprova da exatidão com que se procede, essa só a vida poderá
dar, quando não reaja à normatividade decorrente dos resultados a que
se tenha chegado.5

Eduardo Couture nos ensina que o instituto da Coisa Julgada não era conhecido
no direito romano primitivo, ressaltando o autor uruguaio que:

(...) el derecho romano tuvo de la cosa juzgada una noción distinta a la


actual, dado el carácter rigurosamente privado de su proceso; más que
la conclusión del juicio por cosa juzgada, en el derecho procesal romano
interesaba su iniciación por litiscontestatio; ciertas investigaciones
practicadas sobre el primitivo derecho procesal noruego han demonstrado
que el instituto de la cosa juzgada era desconocido y que siempre en
presencia de un nuevo elemento de convicción era posible rever el
proceso ya decidido (...).6

Entretanto Savigny, indicado como o jurisconsulto que pela primeira vez


sistematizou cientificamente a questão, via a existência da Coisa Julgada no Direito
Romano destacando dois momentos ou dois modos de compreensão deste instituto,

5
NEVES. Celso. Coisa Julgada civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1971, p. 10 apud Eccezinedi Cosa
Giudicata, Ed. Boca, 1883, vol. I, p. 4.
6
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Ed. Depalma, 1976, p. 406.

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Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

que se teriam sucedido na progressiva formulação do conteúdo da res judicata.7 De


acordo com agudo estudo elaborado por José Ignácio de Botelho Mesquita, ensinava
Savigny que:

(...) no antigo Direito Romano, o objetivo de impedir a reprodução das


ações era alcançado através da consumação decorrente da litiscontetatio,
qualquer que fosse o conteúdo do julgamento que pusesse fim ao
processo. Esta consumação verificar-se-ia algumas vezes ipso jure, mas,
mais frequentemente, por meio da exceptio rei judicatae, caracterizando-se
fundamentalmente – esta exceptio por: a) fundar-se na existência de
um julgamento e não no seu conteúdo e b) ter um resultado puramente
negativo, qual o de impedir uma nova ação e não o de estatuir sobre
um direito.8

Mas complementa Mesquita que a concepção “eminentemente privatística do


processo romano” não comportava o aspecto jurisdicional, ou seja, público, que lhe
pretendeu acentuar Savigny, e apoiado em Liebman sustenta não ser possível pensar
que os romanos fundassem a Coisa Julgada em uma ficção de verdade, pois para eles:

(...) mais do que para quaisquer outros, seria errôneo falar a respeito da
Coisa Julgada numa ficção ou presunção de verdade, visto que era ela
o que de mais concreto e real se podia dar, enquanto a sentença não
declarava a existência ou inexistência de um direito, mas criava antes
um direito novo.9

A teoria da “ficção da verdade” foi elaborada por Savigny numa tentativa de


enfrentar o problema das sentenças injustas, resultantes de erro de fato ou de
direito. Savigny justificou o fato de também essas sentenças fazerem Coisa Julgada,
baseando sua autoridade numa verdade artificial ou, em outras palavras, a autoridade
da Coisa Julgada existente na sentença, que se baseava na ficção de verdade que
ela continha.10
Ao tratar dos limites objetivos da Coisa Julgada, Eduardo Couture menciona
o ensinamento de Savigny, cuja ideia foi dominante durante todo um século e teve
manifestações em vários países de cultura latina, referindo-se que:

Según la conocida enseñanza de Savigny, la sentencia es un todo único


e inseparable; entre los fundamentos y lo dispositivo media una relación

7
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Teses, Estudos e Pareceres de Processo Civil. v. 2. São Paulo: RT, 2005,
p. 101.
8
Idem Ob. Cit. p. 101.
9
Idem. Eficácia e Autoridade da Sentença. Trad. por Alfredo Buzaid e Benvindo Aires, Rio de Janeiro, 1945,
p. 13 apud MESQUITA, ob. Cit. p. 102.
10
SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil. vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1986,
p. 432.

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

tan estrecha que unos y otro no pueden ser nunca desmembrados si no


se desea desnaturalizar la unidad lógica y jurídica de la decisión. Ésta fue
la idea dominante durante el siglo pasado, que sólo varía a fines de él en
Alemania bajo el influjo de la disposición del §32 de la Z.P.O.11

Com efeito, o que se observa na doutrina de Savigny é a tentativa de resolver


o problema de justificação da obrigatoriedade das sentenças, mesmo quando estas
apresentassem erro ou injustiça, problema que vem se arrastando desde a Idade
Média, segundo Moacyr Amaral Santos, até nossos dias, quando se discute a
possibilidade de relativização da Coisa Julgada.
Eduardo Couture adverte que o conceito jurídico de Coisa Julgada é algo mais
que a soma de seus termos, e que em nenhum idioma de raiz latina os vocábulos
empregados para indicá-la expressam plenamente seu conceito.12
Assim, como mencionado anteriormente, estudar um instituto é verificar, na sua
primordialidade teórica, os aspectos do conhecimento, no qual foram gerados. Ou
seja, verificar a faticidade, na qual foram produzidos, para em seguida confrontá-los
com concepções atuais.
Começando por Chiovenda,13 um dos precursores da moderna teoria da Coisa
Julgada, que retomando o estudo da coisa a partir de antigos textos romanos,
vislumbrou a autoridade desta na vontade do Estado, que se expressa através
da aplicação da vontade da lei no caso concreto pelo juiz. Para o mestre italiano
“com a sentença só se consegue a certeza de existência de tal vontade e, pois, a
incontestabilidade do bem reconhecido ou negado”.14
O mestre italiano entendeu que os romanos conceberam a Coisa Julgada
intrinsecamente ao seu próprio modo de compreensão do direito e da necessidade do
direito, ou seja, “(...) com razões inteiramente práticas, de utilidade social. Para que
a vida social se desenvolva da forma mais segura e pacífica, é necessário imprimir
certeza ao gozo dos bens da vida, e garantir o resultado do processo (...)”.15
A partir desse estudo, Chiovenda tece a teoria da existência de uma relação
entre a Coisa Julgada para os romanos e sua acepção moderna.16 Liebman
reconhece nos estudos de Chiovenda uma grande contribuição para a compreensão
jurídica do instituto da Coisa Julgada distinta das conotações político-sociais que
lhe são atribuídas, o que fez emergir outros elementos para depuração de seu

11
COUTURE, Idem Ob. Cit. Fundamentos... p. 427.
12
COUTURE, Idem Ob. Cit. Fundamentos... p. 441.
13
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, Vol. I. Tradução de J. Guimarães Menegale.
São Paulo: Saraiva, p. 183 e CHIOVENDA, Giuseppe, Instituições de Direito Processual Civil, Volume I, 1. ed.
Bookseller, Campinas: 1998.
14
Idem, Ob. Cit. p. 514.
15
Idem. Instituições de Direito Processual Civil, p. 447.
16
Idem Ob. Cit., p. 447.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014 97
Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

conceito, como, por exemplo, a distinção da Coisa Julgada substancial da Coisa


Julgada formal.17
Calamandrei, partindo do estudo feito por seu mestre Chiovenda, e
aprofundando-o, procurou conectá-lo aos estudos que ele próprio desenvolveu sobre
a jurisdição e afirma ser a Coisa Julgada uma certeza meramente jurídica. Esta
discussão foi proveitosa a seu tempo e nos dias atuais reabriu a discussão sobre
qual é realmente a natureza jurídica da Coisa Julgada.
Allorio desenvolveu a ideia de Calamandrei e a concebeu como fundamental
para a definição de jurisdição da Coisa Julgada. Essa tese floresceu com a adesão,
dentre outros, de Couture ao afirmar que:

En ese sentido, es bien perceptible la diferencia entre la sentencia


judicial y el laudo arbitral. Ambos pueden ser igualmente eficaces. Pero
en tanto la sentencia tiene su atributo de autoridad, el imperium, el laudo
arbitral carece de esa calidad o inherencia.18

Allorio baseia-se na Coisa Julgada para formular sua teoria, na qual o julgador
e o administrador aplicam a lei ao caso concreto, mas só a atividade do primeiro
seria capaz de imunizar-se, ou seja, de adquirir o atributo da imutabilidade. Em outras
palavras, as funções do Estado não podem ser definidas por seus fins, mas somente
por suas formas, concluindo que onde existe Coisa Julgada há exercício de jurisdição,
onde não há Coisa Julgada não há jurisdição, mas administração:

Os limites da Coisa Julgada tributária (e de resto da eficácia constitutiva


da decisão tributária) são os mesmos da lide tributária: portanto, proferida
decisão munida de autoridade de julgado, positiva ou negativa, sobre
o direito de anulação de um determinado lançamento, tal decisão não
tem mais eficácia em relação a outros lançamentos, mesmo similares,
concernentes a períodos de impostos sucessivos, nem mesmo se, com
respeito à legalidade desses últimos atos, existem relevantes questões
idênticas às que foram já judicialmente resolvidas.19

Ovídio Baptista da Silva diz que Liebman e Couture teriam sido, de certa
forma, adeptos desta teoria na medida em que atribuíram grande importância à
Coisa Julgada. Também Calamandrei, teria sido um dos simpatizantes desta
composição teórica.
Contudo, foi Carnelutti quem, partindo de outras vertentes teóricas, ensinava
a Coisa Julgada como a solução de questões controversas, postulando que a

17
Idem Ob. Cit.., p. 11 (aditamentos ao §1º).
18
COUTURE. Idem Ob. Cit. Fundamentos... p. 50.
19
ALLORIO, Enrico. Problemas de Derecho Procesal, Tomo II, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América,
1963, p. 31 e segs.

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

imutabilidade incide sobre a sua função declaratória e não sobre seu caráter
imperativo; vislumbrando, assim, a possibilidade de uma mesma questão interessar
a diversas demandas.

Deve-se considerar a diferença entre questão e lide no sentido de que,


não só uma lide pode implicar várias questões, como também de que
uma questão pode ser de interesse de várias lides. (...) Quando uma
lide apresenta uma questão que pode se estender a outras lides, tal
questão é denominada questão prejudicial, mas em sentido diferente
do recém-considerado: em sentido estrito, é uma questão prejudicial a
questão cuja resolução constitui uma premissa também para a decisão
de outra lide.20

Liebman, reconhecendo os méritos da formulação de Chiovenda e de


Calamandrei, e conhecendo a proposta de Carnelutti, mas pretendendo aperfeiçoá-la,
iniciou por distinguir a autoridade da Coisa Julgada dos efeitos da sentença, para,
em seguida, definir a primeira como uma qualidade que torna imutável o comando
emergente da sentença tanto no seu conteúdo como nos seus efeitos.21
Teixeira Filho escreve que Liebman conseguiu desnudar a inconsistência da
teoria dos efeitos reflexos da sentença ao mostrar que o equívoco fundamental dessa
doutrina residia no fato de tomar a Coisa Julgada como efeito da sentença, quando
na verdade ela é qualidade especial da sentença, protegendo-a com a cláusula
da imutabilidade.22
Após demonstrar que as diversas eficácias da sentença podem se manifestar
independentemente da autoridade da Coisa Julgada, e que, portanto, eficácia
da sentença e autoridade da Coisa Julgada são coisas distintas, Liebman, não
enfrentando o mérito do problema da natureza volitiva ou intelectiva da atividade
judicial, destaca que da sentença emerge um comando. A eficácia de uma sentença,
per se, não pode impedir que um juiz, investido da mesma competência daquele que
decidiu anteriormente o caso, reexamine o caso e decida de forma diferente. Então,
segundo o autor:

Uma razão de utilidade pública e social intervém para evitar essa possibilidade,
tornando o comando imutável. Nisso consiste, pois, a autoridade da
Coisa Julgada, que se pode definir, com precisão, como imutabilidade do
comando emergente de uma sentença. Não se identifica ela simplesmente
com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando;
é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que
reveste o ato também em seu conteúdo e a torna, assim, imutáveis,

20
CARNELUTTI, Idem Ob. Cit. 1999. p. 87-88.
21
Idem Ob. Cit., p. 11 (aditamentos ao §1º).
22
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. Ação rescisória no processo do trabalho, 2. ed., São Paulo: LTr, p. 205.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014 99
Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam,


do próprio ato. A eficácia natural da sentença, com a aquisição dessa
ulterior qualidade, acha-se, então, intensificada e o caso decidido.23

Assim, a Coisa Julgada para Liebman é uma qualidade que torna imutável o
comando emergente da sentença, tanto no seu conteúdo como nos seus efeitos,
consistindo assim a Coisa Julgada na imutabilidade da sentença em sua existência
formal, e ainda dos efeitos dela provenientes.24 E afirma:

... ao invés de estabelecer os limites da Coisa Julgada com fundamento


nas questões discutidas, convém lembrar que o que a Coisa Julgada
deve assegurar é o resultado prático e certo do processo (ou, em outras
palavras, o seu efeito), e nada mais que isso; e é, pelo contrário,
irrelevante a amplitude da matéria lógica discutida e examinada. Pode
esta ter ultrapassado os limites da questão que foi deduzida no processo
como seu objeto, ou pode também ter-se restringido mais do que ela
poderia ter comportado, sem que por isso se altere o âmbito em que se
opera a Coisa Julgada. E para identificar o objeto (sentido técnico) do
processo e, em consequência, da Coisa Julgada, é necessário considerar
que a sentença representa a resposta do juiz aos pedidos das partes
e que por isso (prescindindo da hipótese excepcional de decisão extra
petita) tem ela os mesmos limites desses pedidos, que ministram,
assim, o mais seguro critério para estabelecer os limites da Coisa
Julgada. Em conclusão, é exato dizer que a Coisa Julgada restringe-se à
parte dispositiva da sentença [...].25

Sob esse aspecto Couture se mostra muito mais meticuloso pontuando,


primeiramente, a existência de duas vertentes opostas: uma que compreende que a
sentença se apresenta como um conjunto e outra que admite a possibilidade de uma
cisão, para fazer incidir a Coisa Julgada somente na sua parte dispositiva.
E assim, revela que, em seu particular entendimento, os motivos ou fundamentos
da decisão podem ser utilizados como elemento de passagens pouco claras do
dispositivo da decisão, sustentando que os motivos bem podem chegar a passar em
Coisa Julgada, e resume:

... puede afirmarse que, en principio, las premisas o considerandos del


fato no hacen cosa juzgada. Pero por excepción adquieren esa autoridad
cuando el dispositivo se remite a ellos en forma expresa o cuando
constituyen un antecedente lógico absolutamente inseparable (cuestión
prejudicial) del dispositivo.26

23
Idem Ob. Cit., p. 50/51.
24
LIEBMAN, Idem. Eficácia e Autoridade da Sentença, tradução brasileira de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Rio
de Janeiro: Forense, 3. ed., 1984, p. 54.
25
LIEBMAN. Idem Ob. Cit. 1981, p. 56-57.
26
Idem Ob. Cit., p. 146.

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

Para Liebman, a Coisa Julgada não é um efeito da sentença. Caracterizada por


um estado de segurança jurídica quanto às relações entre os litigantes do processo,
a Coisa Julgada material incide sobre os efeitos da sentença de mérito, mas não é
também um efeito desta. Nos efeitos da sentença, através do Estado-juiz, reside a
fórmula de convivência pacífica não encontrada pelos sujeitos de modo amigável.
A regra, então, é a da limitação objetiva da Coisa Julgada ao objeto da lide. Vale
a lição de Liebman a este respeito:

... não se abrangem na Coisa Julgada, ainda que discutidas e decididas,


as questões que, sem constituir objeto do processo em sentido estrito,
o juiz deverá examinar como premissa da questão principal (questões
prejudiciais em sentido estrito): foram elas conhecidas, mas não
decididas, porque sobre elas o juiz não sentenciou, e por isso podem
ser julgadas livremente em outro processo, mas para fim diverso do
objetivado no processo anterior; e o resultado desse processo deve
permanecer intangível, mas para qualquer outro efeito subsistem intactas
as questões prejudiciais[...].27

Na concepção de Liebman, adotada pela doutrina brasileira, a eficácia da


sentença está ligada a um comando, que pode ser de natureza declaratória, constitutiva
ou condenatória. O comando nasce com a sentença e não com o trânsito em julgado
da decisão. Assim, o comando contido na sentença é suscetível de reforma e está
sujeito à contradição por outra decisão judicial. O objetivo da teoria de Liebman é
a incontestável distinção entre a Coisa Julgada e a eficácia da sentença, restando
estabelecido que a res judicata não é efeito da decisão, mas um atributo deste, que
torna imutável o comando proferido na sentença. A eficácia da sentença não impede,
portanto, o reexame do caso decidido. O atributo de caráter social que resultará na
vedação de nova discussão acerca do objeto da sentença não é o comando nela
contido (eficácia), mas sim a Coisa Julgada, que consiste, no dizer de Liebman, na
indiscutibilidade e imutabilidade como qualidades dos efeitos da sentença.

O caminho mais simples para entender o que vem a ser Coisa Julgada
consiste, afinal, em considerar como seriam as coisas, se ela não
existisse. Procuremos, então, entender que espécie de eficácia é
necessária ao próprio conceito de sentença, supondo que a Coisa
Julgada não existe. Ora, a função que o juiz exerce exige logicamente
que a sentença tenha eficácia vinculante. Essa eficácia, porém, da
sentença – assim como a de qualquer ato do Estado – está subordinada
à sua conformidade com o direito, que qualquer juiz tem em qualquer
momento o poder de apreciar: consequentemente, qualquer juiz poderá
recusar-se a reconhecer a eficácia da sentença cuja injustiça tenha
apurado, e por isso decidir o caso concreto diversamente. Mas, se tal

27
LIEBMAN, Idem Ob. Cit. 1981, p. 56-57.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014 101
Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

eficácia é natureza da sentença, seria o escopo da jurisdição tão-só


imperfeitamente alcançado. Por isso, o legislador dá mais um passo e
veda toda a apreciação e todo reexame, quando se torna a sentença
definitiva: com a preclusão dos recursos, não só a sentença já não é
recorrível (a chamada Coisa Julgada formal), mas os seus efeitos não
são contestáveis, nem por outro juiz, em qualquer processo (a chamada
Coisa Julgada material).28

Diante disso, a Coisa Julgada não mais se mistura com os efeitos da sentença
em posição homogênea, mas configura a qualidade de incontestabilidade e
indiscutibilidade desses efeitos. O que se torna intangível não é apenas a sentença
considerada como ato, mas também o comando nela proclamado.
Em Couture, a Coisa Julgada deve ser compreendida por dois ângulos que se
complementam: como autoridade e como uma medida de eficácia, residindo aí os
principais pontos que a caracterizam.
Note-se que a tônica de Liebman é justamente a de diferenciar a autoridade
da Coisa Julgada dos efeitos da sentença, caracterizando-a como a qualidade
desses efeitos. Ora, a substituição do vocábulo “qualidade” por “eficácia” teve, por
consequência, que afastar esse entendimento, acabando quase por aproximar a
legislação brasileira das antigas formulações de Hellwig, para quem a Coisa Julgada
relacionava-se exclusivamente ao efeito declaratório da sentença.
Liebman, ao tratar dos limites subjetivos da Coisa Julgada, fundamenta todo o
seu pensamento na diferença entre eficácia da sentença e autoridade da sentença.
Para o autor, eficácia da sentença é tão somente sua capacidade de produzir os
efeitos advindos da decisão e autoridade da Coisa Julgada: é aquilo que se acrescenta
aos efeitos da sentença para torná-los imutáveis.
Para abordar o tema, Liebman enfrenta duas questões: a da eficácia da sentença
perante terceiros e a Coisa Julgada em relação a terceiros. Toda resolução do
problema que visa demonstrar os efeitos reflexos da Coisa Julgada perante terceiros
tende ao insucesso, porque, se a própria Coisa Julgada não é efeito da sentença, não
poderá sê-lo para terceiros nem por via direta nem por via reflexa.
O autor analisa o problema dos limites subjetivos reafirmando sua distinção
entre eficácia natural da sentença e Coisa Julgada: a primeira resulta da idoneidade
natural dos atos estatais e a segunda é a qualidade da sentença – restrita às partes.
As partes, como sujeitos da relação, são as primeiras que sofrem a eficácia da
decisão, mas não existem motivos para excluir terceiros que também podem sofrer a
eficácia da decisão. Isto porque o juiz, ao prolatar a decisão, atua em nome do Estado
declarando a vontade da lei ao caso concreto.

28
LIEBMAN. Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 52-53.

102 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014
Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

[...] desde que recebe a sentença a sua eficácia do poder soberano da


autoridade em cujo nome é pronunciada, da qualidade pública e estatal
do órgão que a prolata (visto que já se logrou a plena consciência
desta verdade), seria de todo em todo inexplicável que valesse ela só
para um e não para todos como formulação da vontade do Estado no
caso concreto.29

Para Liebman, já que o processo não é negócio combinado em família e produtor


de efeitos somente para as partes indicadas, e sim atividade pública para garantir a
observância da lei, devem todos se sujeitar à sentença.
Abstratamente, então, todos estão sujeitos à eficácia da sentença, mas
praticamente só sofrerão seus efeitos aqueles que têm alguma relação com o objeto
da sentença. As partes serão de logo atingidas pelos efeitos da sentença, e depois,
gradativamente, todos cujos direitos estão de certo modo em relação de conexão,
dependência ou interferência prática ou jurídica com a relação decidida.
Desta forma, entre as partes e terceiros só há esta grande diferença: que para
as partes, quando a sentença passa em julgado, os seus efeitos se tornam imutáveis,
ao passo que para os terceiros isto não acontece.30
Ocorre, porém, que, embora a sentença seja um comando estatal que afirma
a vontade da lei, o juiz, ao decidir, pode cometer erros. Assim, a eficácia natural
da sentença, quando for considerada independente da Coisa Julgada (relativa a
terceiros), está subordinada à sua conformidade com o direito. Tal conformidade se
presume e o contrário deve ser demonstrado.
Os efeitos da sentença para terceiros se produzem com menor intensidade,
“porque podem ser em cada caso repelidos pela demonstração de que a vontade do
Estado é, em realidade, diferente da declarada”.31
Nem todos os terceiros podem repelir os efeitos da sentença, demonstrando
a injustiça da decisão. Só é possível que terceiros que tenham interesse jurídico se
utilizem desta prerrogativa. Aqueles que sofrem com a sentença apenas prejuízo de
fato não possuem a faculdade de demonstrar a injustiça da sentença. Tal faculdade
só pertencerá “aos que são titulares de direito incompatível com a sentença e por ela
são, pois, juridicamente prejudicados”.32
Conclui Liebman que os terceiros juridicamente indiferentes, os quais serão
prejudicados de fato pela sentença, não poderão se insurgir contra ela. Neste caso,
a eficácia natural da sentença equivale à Coisa Julgada. Já os terceiros interessados
não poderão ser prejudicados pela sentença, mas só poderão evitar seu prejuízo se
demonstrarem a injustiça da decisão.

29
LIEBMAN, Idem Ob. Cit. 1981, p. 125.
30
Idem Ob. Cit. 1981, p. 126.
31
Idem Ob. Cit. 1981, p. 141.
32
LIEBMAN. Idem Ob. Cit. 1981, p. 145.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014 103
Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

A influência de Allorio é muito marcante nessas teorias que centram a atuação


da jurisdição na materialização da Coisa Julgada. Couture, seguindo essa corrente,
diz que “a autoridade da Coisa Julgada é, assim, uma qualidade ou atributo próprio
da sentença que emana de um órgão jurisdicional quando haja adquirido o seu
caráter definitivo”.33
Neste sentido afirma o nobre processualista uruguaio: “el proceso es el medio
necesario de obtención de la cosa juzgada y esta es, como se sostiene habitualmente,
el fin del proceso”.34
Ao afirmar que a autoridade da Coisa Julgada é a qualidade ou atributo próprio
do julgado que emana do órgão jurisdicional, Couture deixa claro que compartilha
também com o pensamento de Liebman, pois “A linguagem induziu-nos, portanto,
inconscientemente, à descoberta desta verdade: que a autoridade da Coisa Julgada
não é o efeito da sentença, mas uma qualidade, um modo de ser e de manifestar-se
dos seus efeitos, quaisquer que sejam, vários e diversos, consoante as diferentes
categorias das sentenças”.35
Porém, foi somente com Fazzalari que, num outro norte, e optando por uma posição
filosófica-sociológica, que prioriza a teoria democrática num viés procedimentalista,
a rediscussão da Coisa Julgada pode ganhar novas formas, começando por distinguir
procedimento de processo e de jurisdição.
Fazzalari trata a Coisa Julgada, assim, a partir da validade e eficácia dos atos
processuais. Para Fazzalari, a validade consiste nas condutas que a lei reconecta
como consequências dela mesma. O ato vai, desta forma, considerado não mais
como o comportamento estimado da norma, isso é como objeto da vontade normativa;
mas como pressuposto para a valoração normativa de outros comportamentos (isto
é como fattispecie), ou seja: quais são os comportamentos que guardam eficácia,
do ponto da vista do conteúdo, e referidos no ato que constitui todo o pressuposto;
podendo-se, ainda que impropriamente, indicar como seus efeitos.36
Tal asseveração ocorre apenas porque a lei substancialmente modifica a vontade
do agente, ao correlacionar eficácia à manifestação de vontade, isto é: torna lícitos e
devidos certos comportamentos, assim como disposto pelo agente – que se repete,
por metáfora, pois aquela manifestação cria aquela eficácia, e tal metáfora é usada,
também, referindo-se ao provimento jurisdicional à criação das situações novas. Ou

33
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. Depalma. 3ª edición. Buenos Aires. 1985,
p. 401.
34
COUTURE, Eduardo J. El proceso como institución. In: Studi in onoredi Enrico Redenti. Milano: Datt. A. Giuffrè,
1951, v. I, p. 367.
35
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da Sentença e outros Escritos sobre a Coisa Julgada. Tradução
original: Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução posterior a 1945 e notas relativas ao direito brasileiro
vigente: Ada Pellegrini Grinover. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 6.
36
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Padova: Cedam. 8. ed. 2ª. Ristampa. 2001, p. 435.

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

seja: aquele efeito é criado pela lei, no sentido de que é a lei que irá conectá-los ao
conteúdo do pressuposto desta manifestação.
Desta forma, Fazzalari diz que, consequentemente, a manifestação da vontade
tem eficácia heterônoma e não autônoma, ou seja, imposta da lei e não do sujeito
agente. A “autonomia privada é resolvida na possibilidade do privado de fixar,
com o negócio, o conteúdo dos efeitos, porque a lei o mutua, às vezes também
enriquecendo-o ou limitando-o”.37
A lei processual faz, nesta esteira de pensamento, realizar toda sua eficácia nos
casos concretos, nos atos processuais, no sentido de reconectar outra conduta lícita
ou devida. Isto corresponde obviamente à estrutura própria do procedimento, no qual
qualquer ato é efeito daquele precedente e pressuposto daquele seguinte.38

O ato processual obtém tal eficácia não só quando está perfeitamente


conforme ao modelo normativo (na linguagem usual: “válido”), mas
também quando tal conformidade não se pode encontrar: o que
vale dizer também quando o ato processual seja viciado (ou, se se
preferir, inválido).39

Naturalmente a lei processual reage contra a invalidade. Esta, de fato, apresenta


uma série de remédios contra o ato concreto em desconformidade ao modelo
normativo abstrato. Assim, os provimentos finais – as sentenças – estão sujeitos às
impugnações, mediante as quais se faz valer também o vício dos atos preparatórios,
já que esses repercutem sobre a sentença. Durante o desenvolvimento do processo,
os atos preparatórios inválidos estão sujeitos a anulação.
Contudo, nas lições de Fazzalari, decorrido, todavia, o término do prazo, ou
seja, precluso o remédio, o ato por ventura “inválido” terá toda a sua eficácia,40
o que faz com que o ordenamento (sistema) necessite de outra forma de tornar o
ato novamente inválido, ou seja, necessitar-se-á de um procedimento próprio para
rejeitá-lo novamente.
Fazzalari passa a tratar então da diferenciação da anulabilidade e nulidade, e se
questiona se estas terão alguma diferenciação prática, pois a variedade de conteúdo
dos atos processuais não pode corresponder à variedade de efeitos.41 Desta forma,
para os conteúdos dos atos processuais, de acordo com todos os efeitos, é possível
apenas a análise e a descrição, não a enunciação dos princípios gerais, salvo, se
um ato do processo é próprio, porque, quando pressupõe um ato da sequência

37
Idem Ob. Cit. p. 436.
38
Idem Ob. Cit. p. 437.
39
Idem Ob. Cit. p. 437.
40
Idem Ob. Cit. p. 437.
41
Idem Ob. Cit. p. 437.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014 105
Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

processual, que é, por sua vez, pressuposto de outro ato, que tem, assim, um efeito,
ou seja, um outro ato processual.42
Os efeitos são exatamente constituídos da conduta (lícita e/ou ilícita) que a
lei jurisdicional (a norma constitucional que institui os juízes e os mune de império)
conecta ao provimento, e mediante as quais esta atua o conteúdo da manifestação
de vontade, o “comando” do qual o provimento consiste. Ou seja, aquela conduta
representa, por assim dizer, a projeção daquela manifestação de vontade no
patrimônio das partes. Portanto, agora, no processo civil, a sentença (constitutiva)
de resolução de contrato projeta o seu comando no patrimônio dos contraentes,
instituindo uma situação substancial de conteúdo diverso daquela precedente, e
composta de deveres e direitos lato sensu restituídos.
De tal ângulo, os efeitos das medidas jurisdicionais se apresentam como o
epílogo, o coroamento de toda a atividade processual (do juiz, dos auxiliares, das
partes), e passam consequentemente, e impropriamente, a indicar-se como efeitos
do processo.
A eficácia dos provimentos jurisdicionais, isto é: a projeção da vontade do juiz
na esfera substancial é acompanhada de uma força particular (no sentido que a
lei reconhece ao provimento, não somente nas condutas que realizam o conteúdo
da vontade, mas também nos comportamentos que garantam aquela força). Esta
provém da supraordenação do juiz de respeitar todos os outros sujeitos (isonomia),
no âmbito da própria competência; a qual não é senão um aspecto da soberania
do Estado, e atende à mesma constatação do ordenamento. A força no discurso é
usada para indicar como a imperatividade ou autoritariedade ajuda, entre outros, os
provimentos que, impondo um dever, exigem obediência, legitimando a execução
forçada, ou seja, atribuindo executividade ao ato.
Desta forma, a prolação da sentença marca o término da atividade jurisdicional.
Logo, o último ato a ser desempenhado pelo juiz, enquanto sujeito do processo, é a
prolação da sentença, que opera da mesma maneira que os demais atos processuais
praticados no decorrer do procedimento, ou seja, pelo sistema de preclusões.
“O ato processual, uma vez completo, não pode ser eliminado”.43 Esta
afirmação do professor italiano é metafórica; em verdade, ele pode ser removido
ou não dos meios, não sendo nunca um ato completo (quod factum infectum fieri
nequit), bem como não tendo eficácia. Esta última, entretanto, dura; naturalmente,
ela se realiza nos limites dos tempos correlatos ao seu conteúdo.

Il principio è, infatti, qui come altrove, quello della conservazione del


valore giuridico, cioè dell’atto compiuto, e quindi della sua efficacia.

42
Idem Ob. Cit. p. 443.
43
L’attoprocessuale, una volta compiuto, non può essere eliminato (O ato processual, uma vez realizado, não
pode ser eliminado) tradução livre de Fazzalari, Idem Ob. Cit. p. 455.

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

Tale principio discende da ciò: che il soggetto (qui la parte, il giudice,


l’ausiliare) è munito del potere (o dovere) di compiere l’atto; che tale
potere (o dovere) si consuma nel compimento dell’atto e non comprende
la possibilità di ritornare su quanto si è fatto; che, per ritornarvi, ocorre un
nuovo potere (o dovere) appositamente largito dalla legge; che, di regola,
la legge processuale non largisce questa replica di potere (o dovere): ‘ne
bis in idem’.44

Desta forma Fazzalari enfrenta a questão da “Coisa Julgada” focalizando


antes seu aspecto prático e consequencial. Proferida a sentença, as partes poderão
impugná-la, com efeito preclusivo, e, fazendo-o, poderão ou não lograr bom êxito. Em
tais casos o próprio juiz não poderá conhecer qualquer outra impugnação, ou pedido
contrário aos efeitos produzidos, nem outro qualquer juiz, face à preclusão ocorrida
para as partes. Referindo-se, porém, à “autoritá di giucato”, entendeu-a como “...
atributo degli effetti della sentenza” e não como efeito da sentença, concepção
aproximada da de Liebman.
Também como Liebman, Fazzalari distingue a eficácia da sentença do mérito
da Coisa Julgada, que considera fenômeno estritamente processual, chamando de
“Coisa Julgada substancial” aquela espécie de decisão que nunca pode ser revista:
a de mérito.
Rosemiro Pereira Leal entende que: “Como se depreende da obra de Fazzalari, o
término do exercício da atividade jurisdicional verifica-se com a prolação da sentença
pelo juiz e com a sua ‘irretratabilidade’, em função da ocorrência da chamada ‘Coisa
Julgada’, o que dará ao seu ato a devida eficácia”.45
Como dito, Fazzalari não crê numa validade absoluta de todos os atos
processuais. Nesse sentido afirma: “Di regola: quindi, con le dove te exezione. Così,
quando l’atto processuale è ‘invalido’, la legge attribuisce nuovi appositi poteri o
doveri (alla parte e/o al giudice), perché esso – rectius: la sua efficacia – sai eliminato,
e, ove ocorra, rinovatto”.46
Sendo possível uma “cause d’invalidità”, Fazzalari trata de delinear as
possibilidades de revisitação desse julgado. Donde estabelece quatro “rimedi”.
No âmbito objetivo da Coisa Julgada substancial, distingue o “dispositivo” da
“motivação”. Ambos se sujeitam à irretratabilidade, mas enquanto a “motivação” se

44
Fazzalari, Idem Ob. Cit. p. 456 – O princípio é, de fato, como o outro, aquele da conservação do valor jurídico,
isto é, do ato completo, e seguido de sua eficácia. Tal princípio descende disto: que o sujeito (aqui a parte,
o juiz, o auxiliar) é munido de poder (ou dever) de terminar o ato; que tal poder (ou dever) se consuma no
cumprimento do ato e não compreende a possibilidade de retornar ao momento em que foi feito; que, para
retornarmos, ocorre um novo poder (ou dever) em oposição ao permitido por lei; que, de regra, a lei processual
não permite esta réplica do poder (ou dever); "ne bis in idem”.
45
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização Inconstitucional da Coisa Julgada. Temática Processual e Reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 7.
46
Idem Ob. Cit. p. 456.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014 107
Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

limita ao âmbito interno do julgamento, o “dispositivo”, que decorre do provimento, se


revela também externamente pelo efeito preclusivo sofrido pelas partes.
Quanto aos limites subjetivos do julgado, Fazzalari, com fulcro na lei italiana,
lembra as hipóteses, também previstas na lei brasileira, de incidência da “res judicata”
sobre as partes, herdeiros e sucessores, inclusive adquirente que, ao participar do
processo, sem substituição, é tratado como parte (litisconsorte qualificado).
Sobre os terceiros, apenas interessados por relação de dependência, Fazzalari
lembra que, participando ou não do processo, podem sofrer a eficácia da decisão,
mas sem submissão à Coisa Julgada, muito embora se deva reconhecer que, em
Res iudicata est èl’asserzione dei Romane (intendendo che il processo era finito, e
nient’altro poteva essere compiuto in giudizio). Ancora oggi si parla dipassaggio in
cosa giudicata (o, se si preferisce, in giudicato) della sentenza non più soggetta –
come si è sopra visto – a impugnati ve ordinarie (art. 324 CPC). Questa situazione
processuale, imposta dall’esigenza di porre termine alla lite, involge determinadas
relações por conexão, os efeitos são os mesmo da irretratabilidade da sentença.
Res iudicata é a afirmação dos romanos (entendendo que o processo estava
terminado, e nenhum outro podia ser concluído no juízo). Assim, hoje se fala de
“passado em Coisa Julgada” (ou, se preferir, “em julgado”) da sentença não mais
sujeita – como foi visto anteriormente – o ordinário impugnativo (art. 324 CPC). Esta
situação processual impõe a exigência de colocar termo à lide e envolve:

a) que a sentença se torna incontestável em juízo por obra das partes,


devido exatamente à sua deficiência de ulterior poder para continuar o
processo ou para instaurar um novo sob o mesmo objeto, modificando
a sentença já emitida (e não impugnável); de fato, não é necessário
configurar, nas comparações daqueles assuntos, uma proibição para
contestar a sentença, bastando a constatação que a lei não concede a
eles novos poderes para fazê-lo.47
b) Que, correlativamente, se torna intocável, por assim dizer, da parte
do juiz que a emitiu, e no mesmo por qualquer outro juiz; agora aqui não
por causa de uma proibição, mas pela simples falta dos poderes (rectius
deveres): nemoiudexsineactore.48

São estas as duas faces da irretratabilidade da sentença em sede judiciária:


irretratabilidade que advém do atributo da eficácia do mesmo, e que, ainda pela

47
a) che la sentenza diviene incontestabile in giudizio ad opera delle parti, data appunto la loro carenza di ulteriori
poteri processuali per proseguire il processo o per insteurarne uno nuovo sul medesimo oggetto, obliterando
la sentenza già emessa (e non più impugnabile): infatti, non occorre configurare, nei confronti di quei soggetti,
un divieto di contestare la sentenza, bastando l’aconstatazione che la legge non largisce loro nuovi poteri per
farlo (Idem. Opt. Cit. p.460).
48
b) che, correlativamente, divine intoccabile, percosì dire, da parte del giudice che l’haemessa, e da qualsia
si altro giudice; ancora qui non a causa di un divieto, ma per semplice mancanza di poteri (rectiusdoveri):
nemoiudex sine actore (Idem. Opt. Cit. p. 460).

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

tradição milenar, se chama de autoridade da Coisa Julgada ou Coisa Julgada


tout court.49
Tal atributo, no qual a Coisa Julgada consiste, atinge tanto às sentenças que
concernem ao rito, quanto a todos os efeitos sob processo (assim não pode mais
ser discutido se o juiz que declarou o defeito justo da jurisdição deve, ao contrário,
pronunciar no mérito; nem se pode discutir mais se o juiz que emitiu a sentença de
rejeição – isto é, recusou o provimento jurisdicional – deve, ao contrário, emiti-lo),
quanto àqueles do mérito, que contêm um verdadeiro e próprio comando jurisdicional
– de condenação, de acertamento, constitutiva – e que envolve eficácia na esfera
substancial (assim, não se pode discutir o débito de Tizio para Caio, pois imposto da
sentença de condenação).50
A propósito de “passar em julgado” a lei traça uma linha de demarcação: de um
lado deve ser considerado “passado em julgado” e, portanto munida da “autoridade
de julgado”, isto é, a “irretratabilidade”, a sentença que não está mais sujeita a
impugnação ordinária. De outro lado, também a sentença “passada em julgado”
e, consequentemente, predicada como “irretratável”, permanece sujeita a outras
impugnações, mediante as quais, obviamente, a lei permite rediscutir a sentença.

Assim, a sentença civil permanece sujeita a revogação (nas outras


hipóteses das quais prevê o art. 395 cit.) e à oposição de terceiro
(art. 404 c.p.c.); tanto quanto à revisão penal (art. 629 e segg. Cpp). A
demarcação se explica com a exigência de satisfazer duas necessidades
igualmente vivas e contrapostas: de um lado, aquela de “bloquear”
o processo e os seus resultados (de modo que as partes e todos os
sujeitos que estão conectados ao acerto definitivo, não podem mais
continuar discutindo o julgado); de outro, aquele de não precluir, apesar
do fim do processo, a sanção viciada de particulares gravidades que
sucessivamente emergem.51

Desta feita, afirma-se que a irretratabilidade da “passagem em julgado” é para


as sentenças em abstrato, sujeitas à revogação e/ou oposição de terceiro, ou, no
processo penal, para rever uma irretratabilidade relativa, uma convenção, validíssima,

49
Sono queste le due facce della irretrattabilità della sentenza in sede giudiziaria: irretrattabilità che divine un
attributo della efficacia della medesima, e che, ancora per tradizione millenaria, si chiama autorità della cosa
giudicata o cosa giudicata tout court. Idem. Op. Cit. p. 460.
50
Tale attributo, in chela cosa giudicata consiste, spetta tanto alle sentenze che concernono il rito ed ai loro
effeti sul processo (così non si può più discutere se il giudice che ha dichiarato il proprio di fetto di giurisdizione
debba, invece, pronunciare nel merito; né si può dicutere più se il giudice che ha emesso la sentenza diregetto –
che ha, cio è, rifiutato il provvedimento giurisdizionale – debba, invece, emeterlo), quanto a quelle di merito,
che contengo no ciò è un vero e proprio comando giurisdizionale – dicondanna, diaccertamento, consitutivo – e
che svolgo no efficacia nella sfera sostanziale (cosi, non si può discutere il debito di Tizio verso Caio, quale
imposto dalla sentenza di condanna). Idem. Op. Cit. p. 461.
51
Idem Ob. Cit. p. 475/476.

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dada a excetividade dos remédios aos quais a sentença ainda permanece exposta,
pela vontade própria do legislador.52

Confirmam-se, também, a legitimidade teórica e a oportunidade de


distinguir entre as impugnações que restam aqui e aquelas que vão
destinadas para a “passagem em julgado”: indicando – como é usado –
as primeiras como “ordinárias” e as segundas como “extraordinárias”.
Esses dão lugar a um novo processo a respeito daquele concluído com o
“trânsito em julgado”.53

Não se pode, ao contrário, falar sobre a “relatividade” da Coisa Julgada na


hipótese em que a eficácia substancial da sentença resulta disposta e/ou modificada
já não no juízo, mas no mundo substancial. “No seu lugar nós fizemos o sinal à
disponibilidade dos efeitos da sentença de mérito da parte, dos privados, destinatários
da mesma”.54
Fazzalari então explica:

Se bem que a renovada constatação que a irretratabilidade da sentença,


em que o julgado consiste, vige só em sede judiciária consentirão falar de
“relatividade” também em outro sentido: não como havíamos delimitado,
para colher as exceções constituintes dos processos em que aquela
irretratabilidade não ocorre (enquanto a lei concede novos poderes
processuais, como a instauração do um novo processo de impugnação
extraordinária), se bem próprio para enfatizar, de forma completa, que
essa obra se ateve somente ao âmbito judiciário. Mas isso foi bastante
batido e rebatido.55

Para Fazzalari, a “autoridade da Coisa Julgada” é tida como incontestabilidade


(por obra das partes) e intocabilidade (por obra do juiz), consequentemente, como
irretratabilidade em sede judiciária do provimento jurisdicional e de seus efeitos.
A maioria dos processualistas brasileiros se mostra sempre empenhada em
extrair as bases da ciência processual das disposições infraconstitucionais, razão
pela qual a doutrina pátria aponta a adoção da teoria perfilhada por Liebman quanto
à conceituação de Coisa Julgada.56
Na atual quadra histórica da concepção de processo como direito-garantia
constitucional, a Coisa Julgada deixa de ser vista apenas pelo ângulo de sua inserção
nesta ou naquela norma do ordenamento jurídico, na advertência de Rosemiro
Pereira Leal:

52
Idem Ob. Cit. p. 476.
53
Idem Ob. Cit. p. 476.
54
Idem Ob. Cit. p. 477.
55
Idem Ob. Cit. p. 477.
56
Ver por todos SANTOS, Moacyr Amaral. Op. Cit. p. 440.

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

A Coisa Julgada, com a vigência da Constituição Brasileira de 1988,


assumiu os contornos teóricos de instituto jurídico autônomo, perdendo
a inerência significativa de mero atributo, qualidade (como quis Liebman
e atualmente Dinamarco) de efeito da sentença de mérito com autoridade
a suscitar ainda, em preliminar, exceção substancial (art. 301, VI,
CPC) extintiva do procedimento instaurado. Daí, impõe-se a distinção
entre a sentença transitada em julgado como ato jurisdicional afetado
pela preclusão máxima e a Coisa Julgada, esta agora como garantia
constitucional de existência, exigibilidade e eficácia de provimentos
meritais pelo atendimento fundamental do devido processo.57

Deve-se apenas enfatizar aqui que a doutrina do sistema jurídico brasileiro


abraça a teoria de Liebman, sendo que vários autores defendem a teoria deste
jurista italiano; entre outros, pode-se citar Moacyr Amaral Santos e José Frederico
Marques.58 O vigente CPC enuncia a Coisa Julgada da seguinte forma: “é só o
comando pronunciado pelo juiz que se torna imutável, não a atividade lógica exercida
pelo juiz para preparar e justificar a decisão”.59
Contudo, é tempo de a doutrina brasileira voltar ao tema das interações entre
preclusão e Coisa Julgada, em face da regra do parágrafo único do art. 741 do CPC,
pois introduz a oponibilidade de outras exceções, fundadas em antecedente lógico
da sentença, pois agora não basta mais dizer, como feito outrora, que o art. 474 e
o art. 741, ambos do CPC, se harmonizem em que “as modificativas ou extintivas
da obrigação, arguíveis na execução, são as supervenientes à sentença, e não
aquelas que, preexistentes, deixaram de ser opostas”.60 Uma vez que o argumento
de inconstitucionalidade da inovação, que gera a inexigibilidade do título judicial
passado em julgado, só pode ser utilizado se se demostrasse total impossibilidade
de ressonância antecedente à sentença. A tônica da discussão da flexibilização da
coisa julgada, segue, então, essa ótica. Mas deve ser verificada sobre o prisma da
legalidade e do devido processo por procedimento adequado e justificado.

3 Relativização da Coisa Julgada e a tese da


prejudicialidade constitucional
Primeiramente cumpre ressaltar a infelicidade na escolha do termo
“flexibilização” e deve-se ressaltar, por oportuno, que não é discussão nova na ciência
do Direito Processual, como pôde ser observado no escorço histórico do instituto, e
já era possível vislumbrar nos estudos que Couture desenvolveu sobre os limites

57
LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização Inconstitucional da Coisa Julgada. Temática Processual e Reflexões
Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 3.
58
Manual de Direito Processual Civil, vol. 3, p. 235.
59
LIEBMAN, Enrico Túlio. Eficácia e autoridade da sentença. Rio: Forense, 1945, p. 51.
60
PIMENTEL, Wellington Moreira. Comentários ao CPC. vol. VIII, 2. ed. São Paulo: RT, 1979, p. 609.

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subjetivos da Coisa Julgada um tratamento da possibilidade de revisão de sentenças


transitadas em julgado. Seu objeto de análise, no entanto, restringiu-se apenas à
hipótese de “revogação da Coisa Julgada”, caso “obtida mediante fraude ou conluio”,
ocasionando prejuízos a litigantes ou terceiros,61 o que demonstra, novamente, o
movimento pendular entre nulidade e rescindibilidade, já sobressaltado alhures.
Porém a doutrina brasileira e o Supremo Tribunal Federal – STF dão tratamento
diverso à questão, e o fundamento dado à tese da “relativização”, para tornar possível
a rediscussão do que foi afirmado pela sentença transitada em julgado, é o de que a
indiscutibilidade da Coisa Julgada não pode prevalecer sobre a realidade, e que assim
deve ser possível rever a conclusão formada, como no caso da ação de investigação
de paternidade, cuja sentença, transitada em julgado, declarou que o autor não é
filho do réu (ou o inverso), vindo depois um exame de DNA a demonstrar o contrário.62
Sustentam tal argumento a partir de três princípios: o da proporcionalidade, o
da legalidade e o da instrumentalidade. No exame deste último, sublinha-se que o
processo, quando visto em sua dimensão instrumental, somente tem sentido quando
o julgamento estiver pautado pelos ideais de justiça e adequado à realidade. Em relação
ao princípio da legalidade, afirma-se que, como o poder do Estado deve ser exercido
nos limites da lei, não é possível pretender conferir a proteção da Coisa Julgada
a uma sentença totalmente alheia ao direito positivo. Por fim, no que diz respeito
ao princípio da proporcionalidade, sustenta-se que a Coisa Julgada, por ser apenas
um dos valores protegidos constitucionalmente, não pode prevalecer sobre outros
valores que têm o mesmo grau hierárquico. Admitindo-se que a Coisa Julgada pode se
chocar com outros princípios igualmente dignos de proteção, conclui-se que a Coisa
Julgada pode ceder diante de outro valor merecedor de agasalho.63 O que modifica o

61
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil. São Paulo: Saraiva & Cia. Livraria Acadêmica,
1946, p. 352. Cabe mencionar que Couture apoiou-se no instituto da ação revocatória prevista no art. 302
do Projeto de Código Civil Argentino desenvolvido por Juan Antonio Bibiloni em 1936 cujo texto dizia: “Cuando
hubiere connivencia fraudulenta entre las partes, los terceros prejudicados podrán ejercer la acción revocatoria”
(COUTURE, Eduardo J. Estudios de Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Ediar Soc. Anón. Editores, 1950,
v. III, p. 387-404.
Célebre é o seu verídico exemplo de um proprietário rural que simulou um processo em que se discutia a
investigação de paternidade de filho que aquele de fato teve com uma empregada sua, para desaparecer as
consequências jurídicas e econômicas da filiação. O advogado da mãe, em conluio com o proprietário rural,
deixou transcorrer propositalmente o prazo para produção de provas, e, visto que este negou os fatos, a sentença
forçosamente veio a julgar improcedente o pedido. Em face da fraude, caberia para Couture a revisão da sentença
por meio da ação revocatória (COUTURE, Eduardo J. Estudios de Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Ediar Soc.
Anón. Editores, 1950, v. III, p. 388-389). Sobre o tema, o autor chegou a destacar que a legislação do Uruguai
não previa semelhantes ao da ação revocatória. Dentre as várias legislações que tomou por base em seus
estudos – da Espanha, do Chile, de Córdoba, e mesmo os anteriores Códigos Processuais de Estados brasileiros
como do Espírito Santo, Pernambuco, Santa Catarina, Minas Gerais e São Paulo – Couture louvou o Código de
Processo Brasileiro de 1939, nesta passagem: “en el derecho moderno la forma autónoma de revoción, aparece
en El Código do Proceso Civil Brasileño, sancionado em 1939.” (COUTURE, Eduardo J. Estudios de Derecho
Procesal Civil. Buenos Aires: Ediar Soc. Anón. Editores, 1950, v. III, p. 407-409).
62
MARINONI, Luiz Guilherme. Relativizar a Coisa Julgada Material? <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/
Luiz%20G.%20Marinoni(4)%20-formatado.pdf>. p. 3.
63
MARINONI, Luiz Guilherme. Relativizar a Coisa Julgada Material? <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/
Luiz%20G.%20Marinoni(4)%20-formatado.pdf>. p. 3.

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

entendimento consagrado pela Súmula nº 343, que afirma não caber “ação rescisória
por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado
em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. Em um dos acórdãos que
deram origem a essa súmula, frisou o seu relator, o saudoso Ministro Victor Nunes
Leal, que “a má interpretação que justifica o judicium rescindens há de ser de tal
modo aberrante do texto que equivalha à sua violação literal”. Lembrou, ainda, que
“a Justiça nem sempre observa, na prática quotidiana, esse salutar princípio, que,
entretanto, devemos defender, em prol da estabilidade das decisões judiciais” e que
tal súmula somente se aplica à interpretação controvertida da lei infraconstitucional.
Afirma-se, nessa linha, que a Súmula no 343 se reporta à interpretação controvertida
da lei, e não à matéria constitucional, que, pela sua supremacia jurídica, “não pode
ficar sujeita à perplexidade”.
Imaginar que a ação rescisória pode servir para unificar o entendimento
sobre a Constituição é desconsiderar a coisa julgada. Se é certo que o Supremo
Tribunal Federal deve zelar pela uniformidade na interpretação da Constituição, isso
obviamente não quer dizer que ele possa impor a desconsideração dos julgados que
já produziram Coisa Julgada material.
Aliás, se fosse verdade, como pensam aqueles que não admitem a aplicação
da Súmula nº 343, que a interpretação do Supremo Tribunal Federal deve implicar a
desconsideração da Coisa Julgada, o mesmo deveria acontecer quando a interpretação
da lei federal se consolidou no Superior Tribunal de Justiça. Não se diga, como já fez
o Superior Tribunal de Justiça, que a diferença entre as duas situações está em que,
no caso da declaração de inconstitucionalidade, a Coisa Julgada se funda em lei
inválida, enquanto que “uma decisão contra a lei ou que lhe negue vigência supõe
lei válida”.
Não se pode mais negar, e o art. 27 da Lei nº 9.869/99 é enfático nisso,
que, em razão de a decisão de inconstitucionalidade ter, em princípio, eficácia
ex tunc, não é possível a manutenção de situações anteriores fundadas na lei
declarada inconstitucional (na lei inválida). Se isso é evidentemente possível, não é
correto argumentar que a Coisa Julgada material, quando fundada em lei declarada
inconstitucional, não deve ser considerada pelo simples fato de ter se baseado em
uma “lei inválida”.64
A tese, portanto, é débil, pois levaria à conclusão dedutiva de que a função
do Supremo Tribunal Federal é a de ditar a interpretação da Constituição, e, assim,
ao declarar a inconstitucionalidade da lei, deve se voltar ao passado para fazer
prevalecer o seu entendimento em relação a todos aqueles que já tiveram os seus
litígios solucionados pelo próprio Poder Judiciário, o que levaria à instituição de um

64
MARINONI, Luiz Guilherme. Relativizar a Coisa Julgada Material? <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/
Luiz%20G.%20Marinoni(4)%20-formatado.pdf>. p. 11.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014 113
Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

“controle da constitucionalidade da decisão transitada em julgado”, ou melhor, na


aceitação de que o controle da constitucionalidade da lei pode levar ao uso da ação
rescisória como mecanismo para uniformizar a interpretação da Constituição, o que
é pouco mais do que absurdo.
O teor do novo parágrafo único do art. 741 do CPC, segundo o qual o executado
poderá, por meio de embargos à execução, afirmar a inexigibilidade do título judicial
(sentença) “fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo
Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis
com a Constituição Federal”, fazendo referência à declaração de inconstitucionalidade
realizada pelo Supremo Tribunal Federal através do controle concentrado ou
incidentalmente. No primeiro caso, o executado somente poderia se valer da decisão
do Supremo Tribunal Federal quando a decisão não houvesse ressalvado a Coisa
Julgada. Na segunda hipótese, os embargos somente teriam cabimento quando o
Senado, após a decisão incidenter tantum, tivesse retirado a norma do ordenamento
jurídico, imprimindo a essa norma retirada eficácia ex tunc. Afirma-se, ainda, que os
embargos podem ser manejados quando a sentença aplicou ou interpretou o texto
legal de modo já considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse
sentido, alude-se à “declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de
texto” e à “interpretação conforme a Constituição”, que constituem instrumentos de
controle da constitucionalidade das leis e atos normativos.65
Ora, trata-se de dispositivo baseado em uma falácia lógica, na qual se supõe
que os embargos do executado devem servir para manter a uniformidade das decisões
jurisdicionais, como se a Coisa Julgada fosse um valor menor e insignificante.
O confronto entre a preclusão e a Coisa Julgada, nos termos do art. 189 do
Código Civil, ou seja, nos limites da pretensão, permite deduzir o que possa justificar
a desconstituição da sentença inconstitucional, pelo remanescente da exaustão do
contraditório, numa outra perspectiva.
Essa correlação entre preclusão e Coisa Julgada é herança dos estudos de
Chiovenda,66 que admite o reexame de algumas questões decididas por interlocutórias,
após o encerramento das discussões,67 bem como pela maioria dos autores italianos,
como pôde ser visto.

65
MARINONI, Luiz Guilherme. Relativizar a Coisa Julgada Material? <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/
Luiz%20G.%20Marinoni(4)%20-formatado.pdf>. p. 12.
66
CHIOVENDA, Giuseppe. Coisa giudicata e Preclusione, in Saggi di Diritto Processuale Civile, Giuffrè, Milano, vol.
Terzo, 1993, p. 278-279.
67
Non bisogna dimenticare, infatti, che i problemi della preclusione non opera automaticamente ma in virtù di
un successivo atto del giudice, che nella decisione finale, (...), svolge il ruolo di conta de legge, per la sua
dichiarazione in caso concreto: (...) L’avviso sopra può essere espressa da lui diventa definitiva rispetto alle parti,
ma non per il legislatore. Traduzido livremente como: “Não convém esquecer, na verdade, que a preclusão das
questões não opera automaticamente, mas em virtude de um sucessivo ato do juiz, que na decisão definitiva,
(...), cumpre a atuação da vontade da lei, mediante a sua declaração no caso concreto: (...) O precedente aviso
por ele expresso pode ser tornado definitivo respeito às partes, mas não respeito ao legislador”.

114 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014
Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

Assim, segundo o mestre italiano as questões prejudiciais decididas em uma


lide podem ser discutidas em uma lide sucessiva, a menos que a questão prejudicial
seja elevada a grau de ação declaratória incidental, caso em que se estará diante de
uma demanda autônoma, concernente a um bem da vida diverso.68
No Direito brasileiro a prejudicial só faz Coisa Julgada se posta em declaratória
incidental (art. 469, III do CPC), mas não há expressamente regra quanto a haver ou
não a eficácia preclusiva sobre a prejudicialidade decidida incidenter tantum. A lide
sucessiva é admitida, como leciona Carnelutti, quando as diversas lides estejam em
relação de subordinação.69
Porém, mister saber se a questão prejudicial, não posta em causa declaratória
incidente, poderá ser discutida em outra lide sob dois ângulos: o primeiro: quando
não alegada, mas não atingida pela eficácia da preclusão; e segundo, quando
concernente a um bem jurídico diverso, porventura incompatível com o bem jurídico
consagrado no julgado.
Pois, a doutrina clássica, esteada em Chiovenda, encarou apenas a
prejudicialidade simples, ou seja, a constante dos autos, implícita ou explicitamente
contida nos autos. E não tratou da prejudicialidade complexa, ou seja, daquela que
pode ser convertida em ação.
Leciona José Marcos Rodrigues Vieira que:

Prejudicialidade, para efeito da influência sobre a prejudicada, em


hipótese em que não tenha havido declaratória incidente, não é tão
somente a questão simples, mas também a complexa, que podendo ser
objeto de outro processo, em ação autônoma, interfira, se suscitada na
forma de um pleito, no bem jurídico tutelado na causa prejudicada. No
processo italiano, vale dizer, a lide subordinante faz natural presença
na sentença (salvo se o juiz a decida, apesar de incompetente), se não
pelo accertamento incidentale, por speciale volontà di legge. Tal dicção,
proclamadamente chiovendiana, do art. 34, do Codice. Portanto, mesmo
que pela só contestação, integraria, a solução, necessariamente, a coisa
julgada, sem necessidade de lide diversa: não é o que se passa entre
nós, brasileiros.70

A pretensão diversa, ou seja, aquela incompatível com a anterior, não decidida


ou decidida incidenter tantum, é nominada por José Marcos Rodrigues Vieira como:
vício transrescisório. E pode ser arguido por extralimitados à lide, não abrangido
pela eficácia preclusiva concernente ao deduzido e ao dedutível, porém influente
sobre a lide, a ponto de elidir, ali onde produzida, a Coisa Julgada. Interpretação

68
CHIOVENDA, Giuseppe. Coisa giudicata e Preclusione, in Saggi di Diritto Processuale Civile, Giuffrè, Milano, vol.
Terzo, 1993, p. 278-279.
69
CARNELUTTI, Francesco. Sistema del Diritto Processuale Civile, vol. I, Cedam, Padova, 1936, p. 629.
70
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Coisa julgada e transrescindibilidade. No prelo. p. 6.

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Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

essa, extraída, segundo o autor, dos arts. 468, 469, III, 471 e 474, ora em face do
parágrafo único do art. 741, todos do CPC, única forma processual, juridicamente
válida, de se falar em relativização da Coisa Julgada, segundo o autor.
Ressalte-se que prejudicial, seja processual, seja de mérito,71 é a questão
determinante da decisão de questão vinculada, ante a “igualdade de natureza
das operações mentais realizadas pelo juiz para resolver a condicionante e a
condicionada (principal)”.72
As questões prejudiciais a que falte estatura para se converterem em causa,
assim, são atingidas, em regra, pela eficácia preclusiva da Coisa Julgada (art. 474
do CPC), mas isso não resolve o problema da prejudicialidade constitucional, não
alegada, consistir em lide diversa e, portanto, dever versar relação jurídica outra,
substancial ou processual.
A doutrina se divide em duas correntes quanto à lide diversa, ou seja, difere da
I) prejudicialidade arguida em declaratória incidente, sobre a mesma relação jurídica
material, da II) relativa à outra relação jurídica, subordinante – pluralidade de lides
sobre pluralidade de relações jurídicas – o que é pura opção de técnica processual.73
Daí os embates de Pontes de Miranda e Barbosa Moreira;74 e Ernani Fidelis dos
Santos e Ovídio Batista.75
José Marcos Rodrigues Vieira nos ensina que “no seu sentido mais amplo,
fala-se de prejudiciais constitucionais processuais e prejudiciais constitucionais
substanciais. Umas e outras – não agitadas antes do julgado, por isso que não
atingidas, quer pela coisa julgada, quer pela eficácia preclusiva”.76 E defende que,
sendo pertencentes a lide diversa, voltadas à incompatibilidade de resultado, podem
ser suscitadas em contraditório de embargos à execução ou de ação autônoma e,
assim, mesmo sob a futura reforma, na etapa de cumprimento de sentença, como
fase do mesmo processo, vez que as questões prejudiciais constitucionais não se
submetem à Coisa Julgada, por isso mesmo que não há, entre nós, ação declaratória

71
“quanto às questões prejudiciais, podem ser relativas ao ‘mérito’ ou não. As que não são relativas ao mérito
podem prejudicar todo o processo, o que lhes tira a qualidade de prejudiciais e as faz extintivas do processo”.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao CPC, Vol. V. p. 174.
72
BARBOSA MOREIRA. José Carlos. Questões prejudiciais e Coisa Julgada, in revista de Direito da Procuradoria
Geral do Estado da Guanabara, vol. XVI, 1967, p. 170; “Em uma causa [...] aparecerá relevante a prejudicial de
legitimidade constitucional que se choque não com leis atinentes à relação substancial que o juiz deva aplica
‘in iudicando’, mas leis atinentes às formas processuais que o juiz seja levado a observar ‘in procedendo’”.
CALAMANDREI, Piero. Corte Constituzionale e Autorità giudiziaria, in Opere Giuridiche, III, Morano, Napoli,
1968. p. 622 traduzido livremente do original: “In una causa [...] legittimità costituzionale preliminare appareri
levante il fatto che scosse non di competenza leggi di relazione sostanziali che il giudice deve applicare ‘in
iudicando’, maleggi relative alle forme processuali che il giudice è portato ad osservare ‘in procedendo’”.
73
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Coisa julgada e transrescindibilidade. No prelo. p. 11.
74
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Os limites objetivos da Coisa Julgada no sistema do novo CPC, in Temas de
Direito Processual, 1ª série, Saraiva, 1977, p. 96.
75
BATISTA DA SILVA, Ovídio. Sentença e Coisa Julgada. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1979, p. 159.
76
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Coisa julgada e transrescindibilidade. No prelo. p. 12.

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

incidente de inconstitucionalidade.77 Mas, mesmo assim, o questionamento persiste,


ou seja, toda e qualquer prejudicial constitucional, não debatida, pode ser objeto de
discussão a posteriori?
A visão da doutrina, seguindo Calamandrei e Carnelutti, é a de que o parágrafo
único do art. 741 do CPC cria a possibilidade da Coisa Julgada contrária, subordinante
a posteriori, sobre a lide conexa.
Daí a concepção de Humberto Theodoro Jr. de que “em face da coisa julgada
que viole diretamente a Constituição, deve ser reconhecido aos juízes um poder geral
de controle incidental de constitucionalidade da coisa julgada”.78
Não cremos ser esta a melhor solução, pois a relativização extremada do
instituto gera a própria inexistência do mesmo, ou seja, se todo e qualquer um
pudesse flexibilizar a Coisa Julgada, não existiria coisa julgada, nem tão pouco ação
rescisória contra a sentença.79
Pois, afinal, qual seria o significado da expressão tida por inconstitucional, no
texto do parágrafo único, do art. 741 do CPC? Inconstitucional do ponto de vista
formal ou material? Declarada inconstitucional por quem? Pelo STF ou por qualquer
juiz ou tribunal? Em procedimento de Ação Direta ou controle difuso? Em diversos ou
em um único caso? Ou pelo embargante, mesmo em tese inovadora, leading case?

4 Da conectividade de lides
De fato, não há Coisa Julgada sem pedido, e não se justifica a rediscussão do
mérito. Assim, a prejudicialidade pressupõe a conexão de lides. E a prejudicialidade
tem sua relevância processual ressaltada em estudos contemporâneos. Nesse
sentido Cappelletti:

A norma cuja legitimidade constitucional se discute deve ser ‘relevante’


no processo principal, ou seja, e mais precisamente, deve ser tal que
dela ‘dependa’ no todo ou em parte o juízo da causa principal. Em outras
palavras, o ‘status’ de sujeição àquela norma deve ser condicionante
respeito ao (juízo sobre a) relação jurídica ou sobre o ‘status’ substancial
ou mesmo somente processual, que se discute no processo principal.80

77
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Coisa julgada e transrescindibilidade. No prelo. p. 12.
78
THEODORO JR, Humberto. A Coisa Julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle,
in Coisa Julgada Inconstitucional. 4. ed. Rio: América Jurídica, 2004, p. 97.
79
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada relatividade da coisa julgada material, in
revista de Direito Processual Civil, Gênesis, vol. 34, 2004, p. 730-731.
80
CAPPELLETTI, Mauro. La pregiudizialità Constituzionale nel Processo Civile. Univ. Firenze, Fondazione Piero
Calamandrei, Multa Paucis, Varense, 1972, p. 103 traduzido livremente do original: “La norma la cui legittimità
costituzionale è discusso deve essere ‘rilevante’ nella causa principale, vale a dire, più precisamente, dovrebbe
essere tale che ‘dipende’ in tutto o in parte La sentenza della causa principale. In altre parole, lo ‘status’ di
soggezione a tale standard dovrebbe essere il rispetto per il vincolo (sul campo) rapporto giuridico o sostanziale
‘status’ procedurali o anche solo, di cui si parla nella causa principale.

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Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

Olavo de Oliveira Neto identifica duas modalidades de conexão, quais sejam,


I) de lides (própria) e II) por prejudicialidade impeditiva, entre execução e embargos,
ou entre execução e declaratória de nulidade do título: não é possível a conexão por
prejudicialidade determinativa, já que na execução não há decisão de mérito. E, assim,
os velhos casos de sobrevivência da querela nullitatis in sanabilis pertenceriam à
mesma modalidade.81 Todavia um tertium genius deve ser ressaltado, qual seja, III)
prejudicialidade determinativa, que exclui o prosseguimento da execução, pela falta
de pressuposto da execução; vale dizer, perfeitamente cabível em ação declaratória
autônoma, não na via dos embargos à execução, estes, restritos à inexigibilidade.
Liebman nos esclarece: “... ao grau e à eficácia da cognição do juiz em
referência à questão prejudicial ora indicada [...] como concernente a um ‘petitum’
de [...] declarar a inexistência do crédito e eliminar, por consequência, a eficácia
executória do título”.
E o próprio Liebman afirma que é na generalidade dos pressupostos de
Bulow que encontramos o rol de ações que permitem a própria prejudicialidade: 1)
Embargos à execução; ou 2) Ação declaratória de nulidade do título, terreno próprio
para arguição de verificação das condições do processo executório, que, quando do
julgamento da ação principal, não permitiu o exame da prejudicialidade. Mas que agora
será verificada pelo ângulo argumentativo da inconstitucionalidade da interpretação
adotada. Ressaltando que o conceito de norma jurídica destoa do de texto legal
(enunciado normativo) e repousa na interpretação que se faz desse enunciado.
Neste aspecto, há se ressaltar que o processo civil brasileiro é infenso à tese
dos julgamentos implícitos.
Notadamente, a doutrina clássica, no esteio de Barbosa Moreira, não discute
o julgado inconstitucional, pelo só fato do julgamento, posterior ou anterior, pelo
Supremo Tribunal em ação direta, e o mesmo ocorre em via difusa de controle de
constitucionalidade. Contudo, a tese da flexibilização é a comunicação de efeito
impeditivo ou determinativo subordinante, pela prejudicial constitucional. Tal
concepção, segundo seus defensores, respeita a Coisa Julgada, uma vez que atua
fora de seus limites, não lhe atingindo a substância, mas somente seus efeitos.
Certo é que, a interpretação mais adequada, nesse caso, é aquela que se
preocupa com as salvaguardas legais da Coisa Julgada, criadas no decorrer de sua
própria evolução histórica. Neste aspecto a onda flexibilizante deve ser repensada em
parâmetros normativos, constitucionalmente adequados, pela verificação do “critério
da relevância da matéria”, ou nas palavras de Vieira: “critério da transcendência”,82
pois a garantia do due process of law, que está diretamente vinculada à constrição de
direitos e bens, interessa a execução, muito embora não se possa rediscutir a lide.

81
OLIVEIRA NETO, Olavo de. Op. Cit. p. 93-95.
82
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Coisa julgada e transrescindibilidade. No prelo. p. 13.

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Coisa Julgada inconstitucional por prejudicialidade transrescisória

Assim, há necessidade de verificação da existência de lide conexa por


prejudicialidade não julgada, que dará possibilidade jurídica para a invocação de
declaração de inconstitucionalidade, a posteriori, quando da realização do julgado.
Ressaltando que são momentos processuais distintos, quais sejam, a formação da
Coisa Julgada e a realização do julgado (aplicação).
O que se verifica, como explica Vieira,83 é que o parágrafo único do art. 741 do
CPC permite o controle de constitucionalidade sobre o abuso de poder de julgar, sendo
lícito deduzir pretensão impreclusa, transcendente aos limites da lide e das questões
decididas, desde que demonstrada a conexão prejudicial, por fato antecedente à
execução (efetivação do julgado).
Assim, a crítica de Vieira é certeira, pois, ao verificar-se a exemplificação e
o casuísmo dos artigos doutrinários sobre o tema, o que se percebe é a tentativa
premente de desconstituir a Coisa Julgada, fora dos limites do devido processo, por
justificativa ajurídicas.84
Afinal, a Coisa Julgada não pode ser “relativizada” por acessos casuísticos,
pois se trata de garantia fundamental assegurada pela Constituição de 1988, e
como tal integra a garantia do devido processo, sendo a Coisa Julgada o que torna
“os provimentos válidos (ainda que de eficácia impossível) e só suscetíveis de
rescisoriedade pelo devido processo”.85
Contudo, o tema tratado pelo parágrafo único do art. 741 não é de rescindibilidade
(rescissorium), e sim de exercício de outra pretensão, com seus próprios prazos, não
se falando quer de Coisa Julgada, quer de eficácia preclusiva.86 Assim, os embargos
à execução são equiparáveis a uma declaratória autônoma de lide diversa (conexão
por prejudicialidade não julgada), que tem a seu favor a garantia da jurisdição e do
devido processo legal.
Não se afirma aqui que os meios derivam do fim constitucional,87 sob pena de
retrocesso histórico do processo, por diminuí-lo a instrumento.
Tendo como paradigma irrenunciável o devido processo, é a Coisa Julgada que
assegura a liquidez, certeza, exigibilidade e o cumprimento da sentença transitada em
julgado, alcançada pela preclusão máxima. Sendo assim, num Estado Democrático
de Direito a relativização de tal garantia jamais poderia decorrer sem observância do
devido processo.

83
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Opt. Cit.
84
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Opt. Cit.
85
LEAL, Rosemiro Pereira. A relativização inconstitucional da Coisa Julgada. In: LEAL, Rosemiro Pereira.
Relativização Inconstitucional da Coisa Julgada – Temática processual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte: Del
Rey, 2005, p. 14-15. Esse entendimento encontra vizinhança com o de Sérgio Gilberto Porto (PORTO, Sérgio
Gilberto. Cidadania processual e relativização da Coisa Julgada. In: Revista jurídica: órgão nacional de doutrina,
jurisprudência, legislação e crítica judiciária. Porto Alegre: Notadez, v. 51, n. 304, fev. de 2003, p. 23-31).
86
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Opt. Cit.
87
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Forense: Rio, 1979, p. 312.

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Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

Devido ao minucioso desenvolvimento de seus estudos a respeito da Coisa


Julgada, e o cuidado demonstrado por Couture em acatar as doutrinas dominantes, a
possibilidade ou impossibilidade da “relativização” da Coisa Julgada é uma questão
em aberto, mas a ausência da enumeração das vias de impugnação da sentença de
mérito limita a percepção dos juristas.88
Contudo, apesar dos meios postos restarem implicitamente postos pela
Constituição, o que se verifica é que se tem que propiciar interpretações
constitucionalmente adequadas. E esse modesto estudo da Coisa Julgada
inconstitucional é uma tentativa de adequação de uma construção doutrinária
pertinente ao paradigma do Estado Democrático de Direito, uma vez que a Coisa
Julgada só pode ser compreendida como uma garantia fundamental constitucional.

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88
OLIVEIRA NETO, Olavo. Conexão por Prejudicialidade. São Paulo: RT, 1994, p. 93 e 95.

120 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014
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prejudicialidade transrescisória. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 93-121, out./dez. 2014 121
Construindo um campo linguístico
pragmático para a aplicação do art. 93, IX,
da CF/88: por um vocabulário
jurisdicional brasileiro renovado segundo
a teoria neoinstitucionalista do processo

Luís Henrique Vieira Rodrigues


Advogado, Mestre em Direito Público pela PUC/MG. Professor de Teoria Geral do Processo
da Faculdade Del Rey.

Sumário: 1 Introdução – 2 A crise do modelo representacionista como fundamento das ciências sociais
aplicadas – 3 A virada linguístico-pragmática e sua contribuição para o direito – 4 A Constituição de 1988
e a nova hermenêutica processual brasileira – 5 Jurisdição democrática e efetividade jurisdicional como
vocabulários do campo linguístico pragmático da Constituição de 1988 – 6 Conclusões – Referências
Resumo: Consiste em objetivo do presente texto evidenciar a necessidade de re(des)locamento dos
processos de produção e aplicação do texto legal, notadamente quanto à sua aplicação e seus efeitos
subsequentes, do campo estritamente da aplicação formalista para uma construção no campo da
linguagem. Direcionando a abordagem para o direito processual, o presente artigo sustenta a necessidade
de legitimação de conceitos e instituições, como “processo”, “ação” e “jurisdição”, no âmbito de uma
racionalidade discursiva que transcenda o comando formal do art. 93, IX da CF/881 e que atribua conteúdo
substantivo a tais conceitos. Considerando a existência de um campo linguístico pragmático concernente
a este dispositivo normativo decorrente do texto da Constituição de 1988 à luz das contribuições do
pragmatismo filosófico, buscaremos situar o estudo das instituições da teoria geral do processo no âmbito
das teorias do direito e discurso. Desta maneira, para tratar da crise do modelo representacionista (redutor
da ideia de verdade como representação ou correspondência a priori de uma coisa ou conceito a uma
ideia preestabelecida), utilizaremos a teoria da linguagem de Wittgenstein. Com o propósito de evidenciar
o papel meramente descritivo até a filosofia ocidental em sua tradição cartesiana, a crítica de Heidegger
por uma ontologia em substituição à denúncia do papel meramente epistemológico da filosofia. A fim de
estabelecer uma interface entre a filosofia e o direito, adotaremos autores, cronologicamente situados
entre Willian James e Robert Brandom, para sustentar que o pragmatismo trouxe importantes contribuições
para a justificação do direito em bases linguísticas e com fim concretista. Já no aspecto da análise do
direito brasileiro, notadamente com relação à Constituição de 1988, a obra “A resposta correta”, do
Prof. Álvaro Ricardo de Souza Cruz, será utilizada para justificar a necessidade para a adoção de uma
hermenêutica concretista do texto constitucional. Ao fim, ao tratar da necessidade de um novo olhar para
os conceitos elementares da teoria geral do processo, utilizaremos a obra do Prof. Rosemiro Pereira Leal
para sustentar a renovação do vocabulário processual brasileiro, que, sob o aspecto da jurisdição, da ação
e do processo, deve se inclinar mais à construção de sentido em bases da teoria do direito e do discurso
do que no poder autoevidente decorrente de uma autoridade imanente ao poder estatal.

Palavras-chave: Pragmatismo filosófico. Hermenêutica concretista. Teoria neoinstitucionalista do processo.


Jurisdição democrática. Efetividade de direitos fundamentais.

1
“Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura,
observados os seguintes princípios: [...] IX: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]”.

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Luís Henrique Vieira Rodrigues

1 Introdução
Seria possível sustentar a existência de um campo linguístico pragmático
decorrente do texto da Constituição de 1988? Se a resposta for positiva, seria
possível conceber tal campo como um produto da interpretação, ou como modelo a ser
perquirido pelos operadores do direito? Recorrendo às contribuições do pragmatismo
filosófico, o objetivo do presente artigo é situar o estudo das instituições da teoria
geral do processo no âmbito das teorias do direito e discurso. Brandom, em sua
crítica à luz da contribuição do pensamento de Wittgenstein,2

It is a challenge to retain this insight about the significance of four


normative attitudes while a accommodating Wittgensten’s pragmatist
point about norms (and so jettisoning the intellectualist insistence on
the explicitness of norms that colors Kant’s treatment). In order to do
so, it must be possible to distinguish the attitude of acknowledging
implicity or in pratice the correctness of some class of performances
from merely exhibiting regularities of performance by producing only
those that fall within that class. Otherwise, inanimate objects will count
as acknowledging the correctness of laws of physics, and the distinction
Kant points out is lost. As befores, the challenge is to reject intellectualist
regulism about norms without falling into nonnormative regularism.

Ao tratar como a ideia de verdade como correspondência de um objeto ou


conceito a uma ideia fixa falseia o processo de construção de sentido e entendimento
no campo da linguagem, Wittgenstein pondera:3

Estaríamos na ilusão de que o especial, o profundo, o essencial (para


nós) de nossa investigação residiria no fato de que ela tenta compreender
a essência incomparável da linguagem. Isto é, a ordem que existe entre
conceito de frase, palavra, conclusão, verdade e experiência, etc. Esta
ordem é uma super ordem entre – por assim dizer – superconceitos.
Enquanto as palavras “linguagem”, “experiência”, “mundo”, se têm
um emprego, devem ter um tão humilde quanto as palavras “mesa”,
“lâmpada”, “porta”. [...] O fato fundamental aqui é que fixamos regras,
uma técnica para um jogo e que, quando seguimos as regras, as coisas
não se passam como havíamos suposto. Que portanto nos aprisionamos,
por assim dizer, em nossas próprias regras. [...]A filosofia simplesmente
coloca as coisas, não alucida nada e não conclui nada. Com tudo fica em
aberto, não há nada a elucidar. Pois o que está oculto não nos interessa.

Com este objetivo, o presente texto procurará evidenciar a necessidade de


re(des)locamento da produção e aplicação do texto legal, notadamente quanto

2
BRANDOM, Robert. Making it explicit: reasoning, representing, and discursive commitment. Harvard United
Press, 1998. p. 32.
3
WITTGENSTEIN, Ludwig. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 63-67.

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Construindo um campo linguístico pragmático para a aplicação do art. 93, IX,...

à sua aplicação e efeitos decorrentes, que necessariamente precisa se articular


às contribuições da teoria linguagem. Direcionando a abordagem para o direito
processual, o presente artigo sustenta a necessidade de legitimação de conceitos e
instituições como “processo”, “ação” e “jurisdição”, no âmbito de uma racionalidade
discursiva que transcenda o comando formal do art. 93, IX da CF/88 e que atribua
conteúdo substantivo a tais conceitos.

2 A crise do modelo representacionista como fundamento


das ciências sociais aplicadas
A atualidade do estudo do direito impõe uma revisão dos pilares que sustentaram
esta abordagem até aqui. O modelo consubstanciado na representação e equivalência
de uma coisa em vista de uma ideia não traduz de forma consistente a realidade
humana e seus fenômenos que se fundam na linguagem. E esta ordem de ideias
não sucede de forma diferente na teoria geral do processo. As diversas fases que
compõem a história do processo civil evidenciam que esta ciência está jungida à ideia
de representação, seja a imanentista, a científica ou a instrumental. O pragmatismo
filosófico, ao sustentar a adoção de uma base linguística e portanto discursiva para
as humanidades, apresenta que os produtos da linguagem são sempre processos em
construção e nunca dados a priori. Segundo Ferreira:4

O contraste essencial é que, para o racionalismo, a realidade já está


pronta e completa desde toda eternidade, enquanto para o pragmatismo
está sendo feita, à espera de seu aspecto futuro. Por um lado, o universo
está absolutamente firme, por outro, está perseguindo suas aventuras.

Neste sentido, sustentar o processo civil como conjunto de instituições que,


somadas no contexto linguístico pragmático da Constituição de 1988, podem criar
campo para a concretização das garantias processuais, sobretudo com relação a
uma jurisdição orientada pela democracia e efetividade, é o objetivo a que o texto
visa alcançar. Para tanto, adoto como marco teórico a teoria neoinsitucionalista
de Rosemiro Pereira Leal, propondo um diálogo de tal teoria com o pragmatismo
linguístico norte-americano, em uma linha de pensamento que vai de James a
Brandom.5 Conforme James,6

Se, porém, seguimos o método pragmático, não nos podemos limitar a


nenhuma dessas palavras como definitivas. Tem-se de extrair de cada

4
FERREIRA, Arthur A. L. Willian James, pragmatismo e psicologia. p. 11. apud JAMES, Willian. Pragmatismo, p. 93.
5
Atualmente esta corrente de pensamento é conhecida como neopragmatista.
6
JAMES, Willian. Pragmatismo. São Paulo: Martin Claret, 2006.

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Luís Henrique Vieira Rodrigues

palavra o seu valore de compra prático, pô-lo a trabalhar dentro da corrente


de nossa experiência. Desdobra-se, então, menos como uma solução
do que como um programa para mais trabalho, e mais particularmente
como uma indicação dos caminhos pelos quais as realidades existentes
podem ser modificadas. As teorias, assim, tornam-se instrumentos, e
não respostas aos enigmas, sobre as quais podemos descansar. [...]
Não tem dogmas nem doutrinas, salvo seu método.

Pedro Salem,7 ao tratar das contribuições de Dewey, adverte:

Atribuindo ao cartesianismo a formulação de uma série de dualismo que


impregnou a filosofia moderna e deixou marcas indeléveis em diversos
outros campos do saber, Dewey insistiu em sinalizar seus prejuízos
intelectuais. Primeiramente o cartesianismo nos fez crer na separação
ontológica entre corpo e mente. Mas para Dewey, corpo e mente fazem
parte de uma mesma manifestação natural. São duas expressões
fenomênicas da relação do indivíduo com o mundo que, contrariamente
ao que propunha Descartes, não refletem substâncias distintas.

James e Dewey podem ser considerados pensadores originários nesta tradição


ao trabalharem a ideia de intencionalidade não como produto da consciência, mas
como instrumento de construção coletiva de práticas e usos capazes de construir
seus sentidos no âmbito da discursividade com vistas à intervenção no real.

3 A virada linguístico-pragmática e sua contribuição para o


direito
Wittgenstein colocou em xeque a ideia de verdade como representação. Ao
propor a ruptura da vinculação do modelo da certeza à Filosofia da Consciência e
o representacionismo8 à mesma ligada, sugeriu o deslocamento da investigação
filosófica para o campo da linguagem. Heidegger também teceu importante contribuição
ao sugerir que a filosofia se limitou a uma análise epistemológica quando se ocupou
exclusivamente da descrição do ser. Segundo Paulo Ghiraldelli Jr:9

Heidegger então concluiu que a filosofia se esquece do ser, e se preocupa


com o conhecer, com as representações certas. Afastada da ontoogia,
transforma-se em epistemologia ou melhor, reduz-se a epistemologia.

7
O cultivo da esperança: John Dewey e o conceito de ação. p. 27.
8
A questão da determinação da facti specie ou da abstração tipológica da norma parte de uma análise sintático/
semântico dos textos legais calcada em pressupostos gregos presentes no Crátilo de Platão, algo já de há
muito superado pelo giro linguístico. Assim, analisar textos legais fora de seu contexto de aplicação pode, no
máximo, gerar preconceitos de fundo metafísico no intérprete, eis que não há norma desconectada de sua
faticidade (CRUZ, 2011, p. 186).
9
Dewey e a inteligência cooperativa: a avaliação dos problemas presentes.

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Segundo Brandom,10 ao tratar da análise heideggeriana:

His conceiving of ontology in terms of self-adjudicating anthropological


categories, as summed up in the slogan that “fundamental ontology
is the regional ontology of Dasein”; his corresponding antitraditional
assertion of the ontological priority of the domain of the Zuhandensein
to that to the Vorhandensein, wich latter is seen as rooted in or
precipitated out of that more basic (Heidegger says “primordial”) world of
human significances; and the non-Cartesian account of awareness and
classificatory consciousness as social and practical.

Na perspectiva da virada linguístico-pragmática, temos que o significado do


termo decorre de seu uso, e não de um objeto correspondente no mundo da vida.
Esta nova orientação descarta a possibilidade de conceber a verdade como essência,
equivalência ou propriedade imanente à coisa mesma. Para o direito, esta contribuição
convida à reformulação das bases teóricas do sistema jurídico, pois lança novas
luzes para o estudo da decisão judicial, que passa a ser concebida como um produto
e nunca um dado preconcebido do processo. Segundo Wittgenstein:11

Nessas palavras temos, assim me parece, uma determinada imagem da


essência da linguagem humana. A saber, esta: as palavras da linguagem
denominam objetos – frases são ligações de tais denominações. Nesta
imagem da linguagem encontramos as raízes da ideia: cada palavra tem
uma significação. Esta significação é agregada à palavra. É o objeto
que a palavra substitui. [...] O pensamento está rodeado de um nimbo.
Sua essência, a lógica, representa uma ordem, e na verdade a ordem a
priori do mundo e ao pensamento. Esta ordem, porém, ao que parece,
deve ser altamente simples. Esta antes de toda experiência; nenhuma
perturbação e nenhuma incerteza empírica devem afetá-la. Deve ser do
mais puro cristal. Este cristal, porém, não aparece como uma abstração,
mas como alguma coisa concreta e mesmo como a mais concreta, como
que mais dura (Tractatus lógico-philosoficus. No. 55563).

Sustento que esta desconstrução do conceito de verdade deve ser estendida


ao direito, na medida em que práticas discursivas são mais aptas a construir uma
jurisdição democrática. Hoje sua concepção está mais inclinada para a manifestação
do poder estatal de coerção do que como escopo de atuação dos direitos
fundamentais, sobretudo aos vinculados ao processo e ao direito de ação, como, por
exemplo, o devido processo legal. Vertendo a questão para a sistemática processual
brasileira, temos que o novo texto constitucional refundou a lógica processual ao

10
BRANDOM, Robert. B. Tales of Mighty Dead. Historical Essays in the Metaphysicis of Intentionality. Harvard
University Press. London, England, 2002.
11
WITTGENSTEIN, Ludwig. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 24.

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Luís Henrique Vieira Rodrigues

constitucionalizar (institucionalizar/procedimentalizar) categorias jurídicas como


elementos nucleares no campo do processo civil. Esta nova estrutura normativa
não apenas criou caminho para a integração dos cânones do processo civil à nova
Constituição, mas adequou os institutos do processo à nova sistemática.

4 A Constituição de 1988 e a nova hermenêutica


processual brasileira
Na obra “A resposta correta – Incursões jurídicas e filosóficas sobre as teorias
da justiça”, o Prof. Álvaro Ricardo de Souza Cruz12 estabelece uma importante reflexão
sobre a necessidade de articulação entre o direito e o pragmatismo filosófico, como
verificamos a seguir:

No jogo da linguagem jurídica, o pensar pragmatista tem recheado grande


parte das teorias da Justiça contemporâneas, todas elas falando em
uma hermenêutica concretista, isto, é, que a formação do sentido das
normas somente se produz diante das circunstâncias relevantes do caso
concreto. Nesse sentido, surgem, como bons exemplos, a metódica
estruturante de Friedrich Muller, o Direito como integridade de Ronald
Dworkin e a teoria da argumentação de Robert Alexy.

Tomazette,13 ao tratar dos óbices à efetividade do processo, destaca:

Na busca do acesso efetivo à justiça, é mister identificar os óbices a esta


efetividade, a fim de encontrar meios para sua superação, de modo que
o processo esteja cada vez mais apto a atingir todas as suas finalidades.
[...] O Professor Cândido Rangel Dinamarco identifica quatro pontos
sensíveis na busca da efetividade do processo, a saber: a) a admissão
em juízo; b) o modo de ser do processo; c) a justiça das decisões;
e d) a sua efetividade, destacando a possibilidade de exigências
antagônicas na busca da efetividade.

Estabelecendo uma análise crítica do cotejo das duas transcrições, notadamente


quanto à construção de sentido do texto legal e à busca por “justiça das decisões”,
seria possível considerar que as possibilidades de aplicação do texto constitucional
se atenham mais à estrutura de organização jurisdicional (como poder do estado)
do que como instrumento para a instrumentalização do processo legal, segundo o
caso concreto e aberto a todos os meios de prova ao mesmo inerente? Para renovar
este olhar sobre o processo, embora constitucionalizado mas ainda distante de uma

12
Cruz, Álvaro Ricardo Souza. A resposta correta. Incursões jurídicas e filosóficas sobre as teorias da justiça.
Arraes, 2011. p. 90.
13
TOMAZETTE, Marlon. A efetividade da tutela jurisdicional e o cumprimento da tutela antecipada. In: Revista
Brasileira de Direito Processual, n. 59. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2011.

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Construindo um campo linguístico pragmático para a aplicação do art. 93, IX,...

hermenêutica concretista e aberta às contribuições do pragmatismo filosófico, é


que sustento a adoção de um novo vocabulário jurisdicional brasileiro, segundo as
contribuições da teoria neoinstitucionalista do processo, conforme a obra “Teoria
Geral do Processo – Primeiros Estudos”, do Prof. Rosemiro Pereira Leal. O novo
vocabulário cuja criação ora se sustenta, portanto, não deve residir exclusivamente no
texto, como um maná autoevidente que grace como uma dádiva metafísica do texto
legal. Um vocabulário alternativo do texto constitucional decorre de sua construção a
partir de um trabalho de redefinição de sentido da norma no processo de aplicação
do direito, sobretudo com a desconstrução e descarte de velhos conceitos que
sustentaram a velha ordem até aqui, exemplificadas através das ideias de uma
jurisdição que se justifique pura e simplesmente como manifestação do Estado pela
legitimação da violência.
Defendo a adoção de um escopo que sustente a necessidade da substituição
do poder de império pela testabilidade do discurso jurídico e sua adequação não
ao direito, mas sobretudo ao devido processo legal, segundo as provas produzidas
no contexto do caso concreto. Neste aspecto, cumpre destacar o papel da virada
linguístico-pragmática, que pode ser conceituada como movimento que se ocupou em
(re)assentar em bases críticas e discursivas do processo de produção e aplicação do
conhecimento humano. Este movimento pode ser indicado sobremaneira no âmbito
das ciências sociais aplicadas; sobretudo no direito, ao sugerir que a construção de
sentido da norma considere seus aspectos pretéritos e futuros quanto à produção
de efeitos.

5 Jurisdição democrática e efetividade jurisdicional


como vocabulários do campo linguístico-pragmático da
Constituição de 1988
As transformações oriundas das críticas aos modelos mentalistas (Descartes,
Kant e Hegel) presentes na cultura judaico-cristã passam por uma redescrição operada
por pensadores ligados a uma tradição mais centrada no papel da linguagem que a
modelos totalizantes. Segundo Rorty,14

Descartar o racionalismo residual do que herdamos do Iluminismo


é conveniente por muitas razões. Algumas delas são teóricas e
somente de interesse de professores de filosofia, tal como a aparente
incompatibilidade da teoria da verdade como correspondência com a
abordagem naturalista da origem das mentes humanas.

14
RORTY, Richard Rorty. Pragmatismo e política. São Paulo: Martins, 2005. p. 21.

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Nesta tradição, é possível indicar, além de Heidegger15 e Wittgenstein, no


pensamento europeu, uma escola de pensamento genuinamente norte-americano,
com destaque na presente análise para James, Dewey, Rorty e Brandom (além de
Peirce, Schiller, Searle, Sellars, Quine, Davidson, cuja importância de todos estes
autores registramos). A redescrição pragmática sustenta o retorno aos conceitos de
ato, intencionalidade e a construção de sentido através do uso social dos termos, no
plano do discurso, reposicionando a ideia de construção semântica dos conceitos,
através de seus usos sociais, particularmente com ênfase no que o ato traz de
implícito, ainda que de maneira intencional.
Esta abordagem toca o direito de uma forma muito direta, pois na atualidade
os déficits de legitimidade e efetividade, tanto na produção como na aplicação do
texto legal, ocupam a ordem do dia nos debates do pensamento jurídico. Acredito
que o direito processual nos permite (re)descrever a partir de uma hermenêutica
constitucional, segundo as contribuições da teoria da linguagem, institutos basilares
do processo civil, como jurisdição, processo e ação. Esta redescrição adquire relevo
na atualidade, pois parcela considerável do déficit de operação da jurisdição brasileira
reside em sua inaptidão quanto à prestação de um serviço eficiente e democrático na
sociedade de massa. Nesta sociedade, se por um lado a internet permite a integração
global dos indivíduos, por outro algumas instituições continuam a operar na lógica
verticalizada e hermética de códigos singulares, assim como o do direito, que com
sua especificidade técnica (cuja cientificidade e defesa da tecnicidade exacerbada)
por vezes compromete a realização do direito no campo nos princípios constitucionais
ao negar eficácia ao princípio da instrumentalidade do processo.
Neste sentido, a ideia clássica de jurisdição como poder estatal exercido
através da substituição das partes para aplicação (se caso necessário, violenta)
do direito deve dar lugar à construção de um espaço que seja o escopo para a
atuação substantiva do direito16 através de práticas ligadas à jurisdição (atos jurídicos
formais, em sentido estrito) que permitam uma instrumentalização e reconhecimento
dos direitos de forma democrática e universal. Assim, pressuposto para a construção
de uma jurisdição democrática é a horizontalização entre as partes do processo,
com paridade de prerrogativas inclusive no âmbito do exercício de suas razões.
Contra uma herança autoritária no âmbito institucional e antropológica,17 é preciso

15
Importante destacar que a análise heideggeriana, no sentido da redução da filosofia à epistemologia, recebe
uma crítica de Derrida, para o qual este modelo também recai no perigo totalizante. Ao tratar desta abordagem
procedida por Derrida, Jurandir Freire Costa sustenta que ele “afirmou que seu interesse estava em pensar
sobre o limite de qualquer tentativa de totalizar”. E a totalização parace-lhe algo indesejável porque afirma
o privilégio da identidade contra a diferença. In: COSTA, Jurandir Freire. O ponto de vista do outro... Rio de
Janeiro: Garamond, 2012. p. 248.
16
GRINOVER, Ada, in Teoria Geral do Processo.
17
Guimarães Rosa ilustra com maestria a figura das “potentes chefias” em Grande Sertão – Veredas, vista
desde os coronéis da República Velha, até hoje através dos monopólios de poder político, econômico e dos
setores de comunicação, centrados na figura dos (ex)governadores eternos.

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Construindo um campo linguístico pragmático para a aplicação do art. 93, IX,...

sustentar a abertura desta comunidade jurídica fechada à exigência de uma jurisdição


discursiva sujeita ao crivo da linguagem e seu assento na realidade do processo.
Defender um novo olhar implica acatar a ideia de colocá-la em prática, no sentido de
buscarmos uma jurisdição eficiente e democrática, livre do agir simbólico18 de seus
agentes, que muitas vezes instrumentalizam cenicamente ações judiciais e medidas
em seu bojo, para se desincumbir da responsabilidade de realmente garantir acesso
a um provimento jurisdicional adequado, atento à paridade de armas, à licitude
das provas coligidas e, sobretudo, ao devido processo legal. Neste momento, as
figuras de lide, inércia e coercibilidade que caracterizam a jurisdição, dariam lugar
às suas instituições que de fato garantiriam práticas discursivas substancialmente
conformadas ao comando do art. 93, IX da CF/88, sobretudo quanto ao princípio da
legalidade, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, da presunção
de inocência e da vedação de obtenção de provas ilícitas para a instauração de lide
e controvérsias penais.
Segundo Rosemiro Pereira Leal,19 ao tratar das contribuições da teoria
constitucionalista na redefinição do conceito e finalidade do processo sob a ótica
constitucionalizada, verbis:

Na teoria neoinstitucionalista, o processo devido como devido processo


(direito a advir) é institucionalizante do sistema jurídico por uma
principiologia autodiscursiva (contraditório, isonomia e ampla defesa)
fundante de uma procedimentalidade a ser adotada como hermenêutica de
legitimação auto includente dos destinatários normativos líquidos, certos
e exigíveis já assegurados no discurso constituinte da constitucionalidade.
A jurisdição constitucional, na escola Constitucionalista do processo,
considerada atividade tutelar dos atos jurídicos e demais decisões
provimentais, é instituto de condução de um processo instrumentador da
autoridade jurisdicional, enquanto na escola neoinstitucionalista, o devido
processo constitucional é instituto de problematização e testabilidade da
deontologia positivista do discurso jurídico-político e não de um modelo
constitucional de processo garantista a partir da base constituída do
direito a ser ainda acertado pela autoridade jurisdicional – como se lê na
Escola Constitucionalista do processo.

Assim, no plano dos direitos fundamentais, observamos que o seu papel


de centralidade foi irradiado também na perspectiva da processualidade, seja no
aspecto do jurisdicionado, seja no da jurisdição. A ideia de jurisdição democrática

18
Desenvolvi este tema de forma mais abrangente na Dissertação de Mestrado defendida junto à PUC/MG, com
o título: O Controle de contas da administração pública segundo a jurisdição constitucional brasileira: uma
abordagem da atuação dos Tribunais de Contas segundo uma interpretação pós-positivista dos princípios da
legalidade e eficiência. Luís Henrique Vieira Rodrigues, disponível em <www.biblioteca.pucminas.br/teses/
Direito_RodriguesLHV_1.pdf>. acesso em 15/02/2013.
19
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo – Primeiros estudos. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 245.

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Luís Henrique Vieira Rodrigues

visa a horizontalizar a relação entre o juízo (juiz/administradores e serventuários da


justiça), ministério público, defensores públicos e advogados, a fim de garantir a
concretização do devido processo legal, bem como assegurar que à ampla defesa
e ao contraditório sejam atribuídos conteúdos materiais, segundo uma decisão no
campo da fundamentação racional das decisões (art. 93, IX) com bases nas provas
nos autos produzidas através de todos os meios inerentes ao caso.

6 Conclusões
Para Rorty, vocabulários alternativos são instrumentos de mudança. Para o
escopo da presente análise, novos vocabulários apontam para uma nova gramática
constitucional, como fundamento para a construção de sentido do texto, mas
também para atualizar a compreensão do sistema de justiça pela ótica da linguagem.
O trecho citado por Dworkin,20 em que pesem as críticas registradas ao pragmatismo
filosófico, permite-nos identificar os propósitos de Rorty ao sugerir a adoção de
novos vocabulários:

Rorty diz que devemos abandonar a ideia de que a indagação jurídica ou


moral, ou mesmo científica, é uma tentativa de descobrir o que realmente
é assim, o que o direito realmente é, o que os textos realmente significam,
que instituições realmente são justas, ou como é, de fato, o universo. Em
vez disso, deveríamos admitir que nosso vocabulário é apenas o único
que temos, aquele que parece atender aos nossos interesses ou ser
útil para nós, deveríamos também aceitar o fato de que, quando esse
vocabulário de ideias e proposições deixar de parecer útil – deixar de
atender aos nossos interesses – podemos e devemos muda-lo, para ver
“como nos saímos” com um vocabulário diferente. Assim compreendida,
a indagação é experimental. Experimentamos novas ideias para ver como
elas funcionam, para ver quais ideias ou vocabulários se mostram úteis
ou interessantes.

Neste sentido, considerando que a experiência jurídica é sempre um instrumento,


nunca um fim em si mesmo, devemos considerar que o processo de sua interpretação
e aplicação se opera no âmbito da linguagem. Reconhecer esta característica impõe
redescrever os conceitos que ainda se prendem ao passado, em que pese o sistema
ter dado um passo importante sobre o aspecto dos signos jurídicos com o novo texto
constitucional. Neste novo cenário, a aplicação do direito no âmbito da jurisdição,
notadamente conforme a necessidade de fundamentação das decisões segundo
o art. 93, IX, precisa ser articulada às contribuições do pragmatismo filosófico,
notadamente quanto à sua aptidão para a adoção de uma hermenêutica concretista.

20
DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 54.

132 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 123-134, out./dez. 2014
Construindo um campo linguístico pragmático para a aplicação do art. 93, IX,...

E a aplicação do direito conforme as peculiaridades do caso concreto é que


permitirá uma articulação entre o processo e a linguagem, concebendo o devido
processo como um fenômeno de junção da realidade processual e da linguagem
jurídica. As possibilidades de construção de uma jurisdição eficiente e democrática,
que reconheça direitos e assegure garantias, está muito mais vinculada à capacidade
dos sujeitos processuais utilizarem-na como escopo substantivo do direito, segundo
o direito de ação declinado e as provas produzidas no processo, do que como
manifestação do Estado como elemento que substitui a vontade das partes e, de
forma heterônoma, se lhes impõe coercitivamente a decisão. São por estas razões
que o esforço de renovar o vocabulário jurisdicional brasileiro torna-se missão
importante para que a presença imprescindível do art. 93, IX da CF/88 seja sinônimo
de uma jurisdição horizontalizada e aberta à discursividade dos sujeitos do processo,
como instrumento de acesso e realização de justiça para as partes.

Abstract: Concern objective of the present text to evidence the necessity of (re)dislocation of the process
of production and application of legal text, particularly about it application and its subsequents effects to
field particularly of formal application. To a construction in the language field. Turning the present boarding
to the processual law the present article sustain the necessity of legitimation of contents and institutions
as process action and jurisdiction in scope of a discursive rationality that transcend the formal command
of article 93, IX of CF/88 and attribute substantive content to that contents. Considering the existence of a
linguistic pragmatistic field to concern of this normative dispositive about the text of Constitution of 1988
by light of contributes of philosophic pragmatism we search to situate the study of institutions of general
process theory in the scope of theory of Law and discurse. In this form to treat about the crisis of model of
representacionism (reducer of the idea of true as representation or correspondence a priori of thing or pre
establish content) we adopt a language theory of Wittgenstein. With the purpose to evidence to play the part
particularly to describe until the occidental philosophy in it cartesian tradition the critics by Heidegger to a
construct a ontology in substitution of denunciation to play the part particularly epistemologic of philosophy.
By the purpose to establish an interface between philosophic and law we adopt authors who’s the scope in
time goes to Willian James until Robert Brandom to sustain that pragmatism bring importants contributions
to justify of law in linguistics basis and with the concretist purpose. At once in the aspect of analysis of
brazilian law particularly with relation of Constitution of 1988 the work “A resposta correta” of the teacher
Doctor Álvaro Ricardo de Souza Cruz, to be adopt the justify of the necessity to adoption a hermeneutic
with concretist purpose of constitutional text. At the end to treat the necessity of a new look to elementary
contents of the general process theory we adopt the work of the teacher Doctor Rosemiro Pereira Leal to
sustain the restauring of brazilian processual vocabulary than under the scope of jurisdiction the action and
the process can turning more to it construction of sense in basis of theory of law and discurse than self-
evidence current authority inherent of state power.
Key words: Teory of language. Philosophical pragmatism. Teory neoinstitucionalist of process. Efectiveness
of fundamentals rights.

Referências
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Harvard University Press. London, England, 2002.
BRANDOM, Robert. Making it explicit: reasoning, representing, and discursive commitment. Harvard
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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 123-134, out./dez. 2014 133
Luís Henrique Vieira Rodrigues

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

RODRIGUES, Luís Henrique Vieira. Construindo um campo linguístico-pragmático


para a aplicação do art. 93, IX, da CF/88: por um vocabulário jurisdicional brasileiro
renovado segundo a teoria neoinstitucionalista do processo. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 123-134,
out./dez. 2014.

134 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 123-134, out./dez. 2014
Habeas corpus e o recurso ordinário
constitucional: comentários à nova
jurisprudência pronunciada pelo
Supremo Tribunal Federal e Superior
Tribunal de Justiça

Felipe Fernandes Valente Júnior


Bacharel em Direito pela Faculdade Christus. Advogado e Consultor Jurídico.

Resumo: Trata-se de comentários a acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior
Tribunal de Justiça. Traz considerações sobre alguns pontos da garantia constitucional do habeas corpus
e do recurso ordinário constitucional em habeas corpus, e analisa a nova jurisprudência sobre o habeas
corpus substitutivo de recurso ordinário.
Palavras-chave: Habeas corpus. Jurisprudência. Constitucional. Processo penal.

Sumário: 1 Introdução – 2 Habeas corpus: breves considerações – 3 Recurso ordinário em habeas


corpus – 4 Síntese dos acórdãos comentados – 5 Análise do novo posicionamento jurisprudencial –
6 Conclusão – Referências

1 Introdução
O presente artigo, por meio de breves comentários a acórdãos proferidos
pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, pretende tecer
considerações sobre alguns pontos do uso do instituto denominado Habeas Corpus.
Especificamente, tratar-se-á da atual jurisprudência pronunciada pela Primeira Turma do
Supremo Tribunal Federal, que vem sendo adotada pelo Superior Tribunal de Justiça,
sobre o manejo desta ação tão nobre. Além dessa introdução e de uma conclusão, o texto
conta com outras quatro partes. Na primeira parte será feita uma breve síntese sobre
o habeas corpus, fornecendo considerações gerais e importantes sobre o instrumental.
Na segunda parte será exposto um estudo sobre o Recurso Ordinário Constitucional em
habeas corpus, abordando sua noção, procedimento e as hipóteses de cabimento. Na
terceira parte será feita uma breve síntese dos acórdãos comentados. Na quarta, por
fim, será analisado o novo entendimento jurisprudencial adotado pelo Supremo Tribunal
Federal e que está sendo acompanhado pelo Superior Tribunal de Justiça.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014 135
Felipe Fernandes Valente Júnior

2 Habeas corpus: breves considerações


Inicialmente, destaca-se que não será abordado exaustivamente o tema do
habeas corpus, mas apenas de forma superficial em face da extensão do assunto.
Frisa-se que também se utiliza o termo writ para se referir ao habeas corpus.
Historicamente, o habeas corpus tem sua origem na Inglaterra, no século XIII,
quando os barões e os donos de terra reivindicavam certas garantias ao rei João Sem
Terra, tais como ser julgado pelos seus pares e não ter prisões arbitrárias. O monarca
inglês deu ouvidos aos reclamos, e a Magna Carta, outorgada em 1215, estabeleceu
as bases do habeas corpus em um de seus dispositivos preconizando que “nenhum
homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado
fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem
mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus
pares ou de harmonia com as leis do país”.
Já em 1628, houve o movimento da Petition of Rights (Petição de Direitos), na
qual os membros do Parlamento inglês reivindicaram ao monarca o reconhecimento
de direitos e liberdades já reconhecidos na Magna Carta aos súditos.
Posteriormente, em 1679, surge a primeira lei tratando sobre o tema
expressamente o Habeas Corpus Act, que se destinava especificamente para pessoas
acusadas de crimes, em que a reclamação poderia ser feita pelo próprio detido ou por
um terceiro, e fazia com que o preso fosse levado perante um lord ou um juiz para
que se soubessem os motivos da prisão e, então, poderia ser concedida a ordem de
habeas corpus, com ou sem caução, com o compromisso de comparecer aos atos
do processo.
As aplicações do habeas corpus se expandiram para as colônias americanas,
sendo o writ incorporado na Constituição dos Estados Unidos da América em 1787.
Em 1816, houve o segundo Habeas Corpus Act, tendo uma abrangência maior
que o primeiro e conferindo um espectro mais largo de atuação, não se limitando aos
acusados de crime.
Já no Brasil, a Constituição Imperial, de 1824, não tratou expressamente do
habeas corpus, mas forneceu bases para ele, ao dispor que ninguém seria preso,
sem culpa formada, exceto nos caso declarados em lei; e nestes, dentro do prazo
de 24 horas, contadas na entrada da prisão, seria dada uma nota de culpa ao
preso assinada pelo juiz, constando o motivo da prisão, os nomes do acusador e os
das testemunhas.
Apenas em 1832 é que a garantia do habeas corpus aparece no Código de
Processo Criminal, em seu artigo 340, ao dispor que “todo cidadão que entender que
ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento em sua liberdade tem direito de
pedir uma ordem de habeas corpus em seu favor”.

136 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014
Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional: comentários à nova jurisprudência pronunciada...

Posteriormente, em 1871, a Lei nº 2.033 dá ao writ uma estrutura maior, pois


abrangia os casos de ameaça à liberdade. Em seguida, em 1891, a Constituição
Republicana citou pela primeira vez em um texto constitucional brasileiro o habeas
corpus ao preconizar que “dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou
se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade ou abuso
de poder”. A redação do texto constitucional ensejou uma interpretação bastante
ampla de cabimento do instrumental, surgindo, então, a “doutrina brasileira do
habeas corpus”, em que o ilustre advogado baiano Rui Barbosa sustentava que o writ
fosse cabível em todos os casos em que um direito estivesse violado ou ameaçado.
Outro grande jurista da época, Pedro Lessa, defendia que o instrumento se limitava à
defesa da liberdade de locomoção, sendo incabível para a defesa de outros direitos.
Predominou a ideia de que o instrumental poderia ser utilizado para proteger qualquer
espécie de direito individual violado e não apenas a liberdade de locomoção.
Em 1926, com a reforma constitucional, o habeas corpus ficou restrito à
proteção da liberdade de locomoção. Além disso, a Constituição de 1934 criou o
mandado de segurança para proteger outros direitos que não estivessem ligados à
liberdade de locomoção. As demais Constituições brasileiras incorporaram a garantia
dos habeas corpus, sendo tal garantia suspensa apenas pelo Ato Institucional nº 5,
de 1968, nos casos de crimes políticos e ofensivos à segurança nacional, que fora
editado nos anos sombrios da ditadura, sem dúvida alguma, o ato mais agressivo do
poder militar contra a história da República.
Hoje, o habeas corpus está previsto no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição
Federal de 1988, que estabelece: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém
sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de
locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
O habeas corpus também está previsto nos artigos 647 a 667, do Código de
Processo Penal, situando-se no Título II do Livro III, que trata dos recursos em geral.
Embora localizado entre os recursos, o writ é uma ação autônoma de impugnação de
caráter constitucional. Cabível quando qualquer pessoa sofrer ou se achar ameaçada
de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir, vir e permanecer, por
ilegalidade ou abuso de poder. Dessa forma, não está sujeito a prazos, podendo ser
impetrado a qualquer tempo, durante o inquérito policial, durante a ação penal e,
ainda, após o trânsito em julgado da sentença.
Veja-se que o habeas corpus serve para afastar constrangimento ilegal
já consumado à liberdade de locomoção, tendo a característica de repressivo
ou liberatório, bem como para afastar uma ameaça ou um fundado receio de
constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, sendo também preventivo.
A ação é tão nobre que não há custas nem preparo, não é preciso que o autor
seja o titular do direito de ir e vir, não é preciso sequer ter capacidade postulatória ou

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014 137
Felipe Fernandes Valente Júnior

a representação de um advogado para a sua impetração, e que, mesmo em face do


princípio da inércia da jurisdição, o magistrado pode conceder, sem que haja pedido
ou provocação expressa nesse sentido, a ordem de habeas corpus de ofício, quando
no curso de um inquérito ou de um processo verificar que alguém está sofrendo
ou ameaçado de sofrer um constrangimento ilegal, conforme norma inscrita no
artigo 654, §2º, do Código de Processo Penal.1
No habeas corpus tem-se como sujeitos o paciente, aquele que sofre ou está
ameaçado de sofrer uma coação ilegal, o impetrante, que é o autor da ação e pede a
concessão da ordem, podendo ser o próprio paciente, e a autoridade coatora, que é
a autoridade ou o particular que pratica a ilegalidade ou o abuso de poder.
O writ tem um quê de hierarquia, pois deve ser sempre dirigido à autoridade
imediatamente superior à autoridade coatora. Por exemplo, se a autoridade coatora
for um delegado de polícia civil, a ação será dirigida para um juiz de direito de primeira
instância. Se a autoridade coatora for um juiz federal, será competente para julgar o
habeas o Tribunal Regional Federal ao qual o juiz esteja vinculado. Se um Tribunal de
Justiça for a autoridade coatora, o habeas corpus será de competência do Superior
Tribunal de Justiça. Caso a autoridade coatora seja o Superior Tribunal de Justiça, o
writ será dirigido ao Supremo Tribunal Federal.
A Constituição Federal, por sua vez, elenca alguns casos em que se atribui
previamente a competência de determinados tribunais em razão do paciente e da
autoridade coatora. Segundo o artigo 102, inciso I, alínea “d”, o Supremo Tribunal
Federal tem competência originária para processar e julgar habeas corpus quando
o paciente for Presidente da República, Vice-Presidente da República, membros
do Congresso Nacional, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral
da República, Ministros de Estado, Comandantes da Marinha, do Exército e da
Aeronáutica, membros dos Tribunais Superiores, do Tribunal de Contas da União
e chefe de missão diplomática de caráter permanente. Já o artigo 102, inciso I,
alínea “i”, preceitua que o Supremo Tribunal Federal tem competência originária para
processar e julgar habeas corpus quando o coator for o Tribunal Superior ou quando
o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos
diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à
mesma jurisdição em uma única instância.
A Carta da República dispõe ainda da competência originária do Superior
Tribunal de justiça para processar e julgar habeas corpus, em seu artigo 105, inciso I,
alínea “c”, quando o coator ou paciente for os Governadores dos Estados e do Distrito
Federal, Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal,

1
Art. 654 [...] §2º Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de  habeas  corpus,
quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.

138 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014
Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional: comentários à nova jurisprudência pronunciada...

membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, dos Tribunais
Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, membros dos
Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União
que oficiem perante tribunais, ou quando o coator for tribunal sujeito à jurisdição
do Superior Tribunal de Justiça ou quando o coator for Ministro de Estado ou
Comandante da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, ressalvada a competência da
Justiça Eleitoral.
O habeas corpus não exige muitas formalidades, pois a liberdade de locomoção
não pode ficar subjugada por questões minúsculas, por questões menores, devendo,
portanto, o julgador afastar particularidades formais, pormenores formais para
conceder, quando for o caso, de ofício a ordem de habeas corpus. O Código de
Processo Penal, em seu artigo 654, §1º, preceitua que a petição do writ conterá
basicamente o nome da pessoa que sofre ou está ameaçada de sofrer violência ou
coação, o nome de quem está exercendo a violência, coação ou ameaça; a descrição
dos fatos que configuram o constrangimento; e a assinatura do impetrante, ou de
alguém a seu rogo.2
O artigo 648, do referido diploma legal, elenca algumas hipóteses em que
se permite a impetração do habeas corpus. Frisando-se que o elenco citado não é
taxativo, pois podem surgir situações que reclamem a impetração do instrumento e
que não estejam previstas no referido diploma legal.3
É uma ação que tem como característica principal a rapidez e a celeridade,
tendo prioridade no julgamento e independe de pauta. Possui um rito sumário que
exige prova pré-constituída do direito alegado, não se podendo discutir ou produzir
provas, devendo o direito invocado ser líquido e certo, ou seja, aquele que se prova
de plano, de maneira inequívoca, a existência do constrangimento ilegal à liberdade
de locomoção. Trata-se, portanto, de uma ação guiada pelo princípio da efetividade,
pois o cidadão recebe a proteção jurisdicional, quando for o caso, de maneira muito
mais célere do que em um procedimento recursal.
Embora não exista previsão em lei, é plenamente possível a concessão de liminar
em ação de habeas corpus, desde que presentes os pressupostos de uma cautelar.
Esses pressupostos são o fumus boni iuris ou fumaça do bom direito e o periculum

2
Art. 654. [...] §1º A petição de habeas corpus conterá: a) o nome da pessoa que sofre ou está ameaçada de
sofrer violência ou coação e o de quem exercer a violência, coação ou ameaça; b) a declaração da espécie
de constrangimento ou, em caso de simples ameaça de coação, as razões em que funda o seu temor; c) a
assinatura do impetrante, ou de alguém a seu rogo, quando não souber ou não puder escrever, e a designação
das respectivas residências.
3
Art. 648. A coação considerar-se-á ilegal: I - quando não houver justa causa; II - quando alguém estiver preso
por mais tempo do que determina a lei; III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo;
IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação; V - quando não for alguém admitido a prestar
fiança, nos casos em que a lei a autoriza; VI - quando o processo for manifestamente nulo; VII - quando extinta
a punibilidade.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014 139
Felipe Fernandes Valente Júnior

in mora ou perigo na demora. Trata-se, portanto, de um poderoso instrumento de


cessação do constrangimento ilegal que obstaculiza o direito fundamental à liberdade
de locomoção.

3 Recurso ordinário em habeas corpus


O recurso ordinário tem expressa indicação na Constituição Federal, sendo
de competência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça,
dependendo da matéria e do órgão do qual emanado o acórdão recorrido, e bem
simples de ser manejado. O presente trabalho se propõe a destacar tão somente a
hipótese do recurso ordinário em habeas corpus, de modo que não serão analisadas
as outras situações cabíveis.
De acordo com a Constituição Federal, em seu artigo 102, inciso II, cabe ao
Supremo Tribunal Federal julgar em recurso ordinário: o habeas corpus, o mandado
de segurança, o habeas data e o mandado de injunção decididos em única instância
pelos Tribunais Superiores (Superior Tribunal de Justiça, Superior Tribunal Militar,
Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal Superior do Trabalho), se denegatória a decisão;
o crime político.
Dessa forma, conforme expressamente consignado na Constituição Federal, o
recurso não é possível contra as decisões dos Tribunais Superiores que concedem
a ordem suplicada. Como exemplo, pode-se citar o caso em que uma ação tem seu
trâmite originário em um Tribunal de Justiça ou em um Tribunal Regional Federal e
do acordão proferido por uma dessas cortes pode a defesa impetrar um habeas
corpus para o Superior Tribunal de Justiça, e, caso denegada a ordem neste
Tribunal Superior, é cabível o recurso ordinário em habeas corpus para o Supremo
Tribunal Federal.
Conforme a Súmula nº 319 do Supremo Tribunal Federal e o artigo 310 do
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, o prazo para a interposição do
recurso ordinário contra a decisão que denegar o habeas corpus será de cinco dias,
mediante petição nos próprios autos, já acompanhada das respectivas razões do
pedido de reforma, dirigida ao presidente do Tribunal Superior.
Nos termos do artigo 311 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal,
depois de distribuído o recurso, a Secretaria do Tribunal, imediatamente, fará os
autos com vista ao Procurador-Geral, pelo prazo de dois dias. Com a manifestação
do Ministério Público, será o recurso concluso ao relator, que submeterá o feito
a julgamento.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, esse recurso, segundo o artigo 105,
inciso II, da Constituição Federal, é cabível para julgar: os habeas corpus decididos
em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais
dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão for denegatória;

140 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014
Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional: comentários à nova jurisprudência pronunciada...

os mandados de segurança decididos em única instância pelos Tribunais Regionais


Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando
denegatória a decisão; as causas em que forem partes Estado estrangeiro ou
organismo internacional, de um lado, e, do outro, Município ou pessoa residente ou
domiciliada no país.
Por exemplo, caso um advogado de defesa impetre um habeas corpus contra
uma decisão de um juiz perante um Tribunal de Justiça ou um Tribunal Regional
Federal e o tribunal venha a denegar a ordem suplicada, caberá então ingressar com
o recurso ordinário constitucional em habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça.
Segundo o entendimento de alguns doutrinadores, o recurso ordinário reaprecia
a matéria veiculada na instância inferior, sendo uma via ordinária de impugnação
com um amplo efeito devolutivo, consagrando o apotegma latino tantum devolutum
quantum appellatum. Ou seja, transfere para órgão diverso daquele que proferiu a
decisão recorrida o conhecimento de toda a matéria impugnada.
A Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990, que institui normas procedimentais
para os processos que especifica perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo
Tribunal Federal, estabelece no artigo 30 que o recurso ordinário para o Superior
Tribunal de Justiça, das decisões denegatórias de habeas corpus, será interposto
no prazo de cinco dias, mediante petição nos próprios autos, já acompanhada das
respectivas razões do pedido de reforma, dirigida ao presidente do Tribunal que
denegou a ordem de habeas corpus.
Como o presente recurso é interposto no tribunal que denegou a ordem do
habeas corpus, o seu processamento acaba sendo mais demorado que o do habeas
corpus, pois a defesa terá de aguardar a publicação do acórdão para interpor o
recurso, depois a petição e as razões do pedido de reforma serão juntadas aos autos
e, em seguida, ocorrerá a remessa do processo ao tribunal competente. O que acaba
postergando o arbítrio sofrido pelo paciente.
Apesar do recurso ordinário em habeas corpus se sujeitar a prazo certo para
sua interposição, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça
acertadamente têm conhecido os recursos intempestivos como se fossem habeas
corpus e analisado o mérito dos pedidos. Conforme os seguintes julgados:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. INTEMPESTIVIDADE. PEDIDO


CONHECIDO COMO HC ORIGINÁRIO. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL.
ALEGADA FALTA DE JUSTA CAUSA. ILEGALIDADE FLAGRANTE OU ABUSO DE
PODER. REGRAMENTO CONSTITUCIONAL DO HABEAS CORPUS. NULIDADE
DA DECISÃO COLEGIADA DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. MAGISTRADO
QUE SE DECLAROU APTO A VOTAR. SESSÃO DE JULGAMENTO DE HABEAS
CORPUS. INTIMAÇÃO DO ADVOGADO. DESNECESSIDADE. AUSÊNCIA
DE REQUERIMENTO. RECURSO DESPROVIDO. 1. A intempestividade
do recurso ordinário em habeas corpus não impede o conhecimento
da matéria como pedido originário de salvo conduto. Precedentes:

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014 141
Felipe Fernandes Valente Júnior

RHCs 67.788 e 81.503, da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence;


83.491, da relatoria do ministro Joaquim Barbosa; e 91.442, da minha
relatoria. 2. É firme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto à
excepcionalidade do trancamento de ação penal pela via processualmente
contida do habeas corpus. A Constituição Federal de 1988, ao cuidar
dele, habeas corpus, pelo inciso LXVIII do art. 5º, autoriza o respectivo
manejo “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer
violência ou coação em sua liberdade de locomoção”. Mas a Constituição
não para por aí e arremata o seu discurso: “por ilegalidade ou abuso de
poder”. De outro modo, aliás, não podia ser, pois ilegalidade e abuso
de poder não se presumem; ao contrário, a presunção é exatamente
inversa. Nessas situações, o indeferimento do habeas corpus não é uma
exceção; exceção é o trancamento da ação penal à luz desses elementos
interpretativos diretamente hauridos da Carta Magna. 3. A decisão de
recebimento da inicial acusatória não é de ser considerada nula. Isso
porque o magistrado votante, embora não houvesse presenciado as
sustentações orais, se deu por absolutamente apto para proferir voto.
Circunstância que é autorizada pelo próprio Regimento Interno do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região (§2º do art. 130). 4. Não há cerceamento
de defesa se o advogado (impetrante) deixa de formular pedido expresso
de ciência da data provável de julgamento do habeas corpus para fins de
sustentação oral. Precedente: HC 89.339, da relatoria do ministro Cezar
Peluso. 5. Recurso ordinário conhecido como habeas corpus originário,
porém denegado.
(STF, RHC 104539, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma,
julgado em 26/10/2010, DJe-033 DIVULG 17-02-2011 PUBLIC 18-02-
2011 EMENT VOL-02466-01 PP-00103)
PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS.
INTEMPESTIVIDADE. CONHECIMENTO DO RECURSO COMO HABEAS
CORPUS ORIGINÁRIO. PRECEDENTES. POSSIBILIDADE DE TRABALHO
EXTERNO E LIVRAMENTO CONDICIONAL. PLEITO CUJA APRECIAÇÃO
REPRESENTARIA INDEVIDA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. REGRESSÃO DE
REGIME PRISIONAL. UNIFICAÇÃO DE PENAS. BENEFÍCIOS DA EXECUÇÃO.
ARTS. 111 E 118 DA LEI 7.210/84. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM
PARCIALMENTE CONHECIDA E DENEGADA NA PARTE CONHECIDA. I -
Recurso interposto intempestivamente mas que, conforme orientação
firmada por esta Corte (HC 87.304, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence),
deve ser conhecido como habeas corpus originário. II - As pretensões
acerca da possibilidade de trabalho externo e da obtenção de livramento
condicional não podem ser conhecidas, na medida em que o STJ não
se pronunciou a respeito porque não foram apreciadas pelo Tribunal
a quo. III - Exame desses pleitos, nesta sede, importaria em indevida
supressão de instância. IV - As saídas temporárias para frequentar curso
superior ou visitar a família são benefícios que só podem ser concedidos
a condenados que estejam cumprindo as respectivas penas em regime
semiaberto, conforme expressa disposição da LEP. V - A jurisprudência
desta Corte não admite o cumprimento da pena em regime mais rigoroso
ao argumento de que inexiste estabelecimento para o desconto da
sanção corporal em regime mais brando (Por exemplo, HC 94.829/SP,
Rel. para o acórdão Min. Menezes Direito e HC 87.985/SP, Rel. Min.

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Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional: comentários à nova jurisprudência pronunciada...

Celso de Mello. VI - No caso, todavia, em virtude de nova condenação,


o paciente teve suas penas unificadas, o que justifica a regressão de
regime do semiaberto para o fechado. VII - Ordem parcialmente conhecida
e denegada na parte conhecida.
(STF, RHC 94808, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira
Turma, julgado em 10/03/2009, DJe-064 DIVULG 02-04-2009 PUBLIC
03-04-2009 EMENT VOL-02355-03 PP-00533)
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. INTEMPESTIVIDADE.
INSURGÊNCIA CONHECIDA COMO PETIÇÃO ORIGINÁRIA. ROUBO
MAJORADO. PRISÃO PREVENTIVA FUNDAMENTADA NA GARANTIA DA
ORDEM PÚBLICA. GRAVIDADE DO CRIME E PERICULOSIDADE DO AGENTE.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. RECURSO CONHECIDO
COMO PETIÇÃO ORIGINÁRIA A QUAL SE NEGA DEFERIMENTO.
1. Ainda que intempestivo o recurso ordinário, na esteira da remansosa
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é admissível o seu
recebimento como writ substitutivo.
2. O Recorrente foi preso em flagrante como incurso nos arts. 157, §2º,
incisos I e II, c.c. o art. 14, inciso II, ambos do Código Penal, e 244-
B, da Lei 8.069/90, logo após assaltar a vítima de arma em punho,
acompanhado de menor, na via pública, em plena luz do dia.
3. A imposição da custódia preventiva encontra-se suficientemente
fundamentada, em face das circunstâncias do caso que, pelas
características delineadas, retratam, in concreto, a periculosidade do
agente, a indicar a necessidade de sua segregação para a garantia da
ordem pública, em se considerando, sobretudo, o modus operandi dos
delitos. Precedentes.
4. Recurso conhecido como petição originária a que se nega deferimento.
(STJ, RHC 32.834/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado
em 07/08/2012, DJe 15/08/2012)
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. INTEMPESTIVIDADE.
CONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. APLICABILIDADE DE CAUSA DE
DIMINUIÇÃO DE PENA. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA.
1. “Intempestivo o recurso ordinário, recebe-se a súplica como habeas
corpus substitutivo, consoante iterativa e sedimentada jurisprudência”
(RHC n. 24.211/ES, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma,
DJe 8/6/2011).
2. O reconhecimento da “participação de menor importância”, sobretudo
quando fundamentadamente afastada no julgamento da ação penal,
demanda dilação probatória, incabível na via estreita do writ.
3. Recurso ordinário recebido como habeas corpus substitutivo. Ordem
denegada.
(STJ, RHC 26.070/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA
TURMA, julgado em 22/08/2011, DJe 12/09/2011)

Nota-se, pelos julgados anteriores, que devem ser superados os formalismos, as


amarras formais do direito em nome do respeito à liberdade, em nome da amplitude
da garantia do habeas corpus.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014 143
Felipe Fernandes Valente Júnior

Uma questão que merece destaque é o fato de o Superior Tribunal de Justiça não
conhecer do recurso em habeas corpus, mas, em homenagem ao princípio da ampla
defesa, acaba examinando a possibilidade da concessão de habeas corpus de ofício,
nos casos em que o recorrente não possui capacidade postulatória.4 O que parece ser
equivocado, pois, embora seja um recurso, ele equivale a um habeas corpus só que
com nova roupagem, nova forma, mas no fundo tem o mesmo valor que um writ.
O Supremo Tribunal Federal, por outro lado, tem corretamente firmado que se
qualquer pessoa pode impetrar um habeas corpus, não há qualquer razão para que
se exija capacidade postulatória para se recorrer da decisão que indeferiu o habeas
corpus. Segundo os julgados:

HABEAS CORPUS. EXIGÊNCIA DE PROCURAÇÃO PARA INTERPOSIÇÃO


DO RESPECTIVO RECURSO ORDINÁRIO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL
RECONHECIDO. DESNECESSIDADE DO PATROCÍNIO POR PROFISSIONAL
DA ADVOCACIA. O Código de Processo Penal, em consonância com o texto
constitucional de 1988, prestigia o caráter popular do habeas corpus, ao
admitir a impetração por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem.
Assim, não é de se exigir habilitação legal para impetração originária do
writ ou para interposição do respectivo recurso ordinário. Precedente (HC
73.455). Habeas Corpus deferido.
(STF, HC 86307, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado
em 17/11/2005, DJ 26-05-2006 PP-00019 EMENT VOL-02234-01
PP-00199 RTJ VOL-00201-01 PP-00223 RT v. 95, n. 853, 2006, p. 500-501)
RECURSO - HABEAS CORPUS - DISPENSA DA CAPACIDADE POSTULATÓRIA.
Versando o processo sobre a ação constitucional de habeas corpus,
tem-se a possibilidade de acompanhamento pelo leigo, que pode interpor
recurso, sem a exigência de a peça mostrar-se subscrita por profissional
da advocacia. Precedentes: Habeas Corpus nº 73.455-3/DF, Segunda
Turma, relator ministro Francisco Rezek, Diário da Justiça de 7 de março
de 1997, e Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 60.421-8/ES,
Segunda Turma, relator ministro Moreira Alves, Revista Trimestral de
Jurisprudência 108/117-20. O enfoque é linear, alcançando o recurso
interposto contra decisão de turma recursal de juizado especial proferida
por força de habeas corpus
(STF, HC 84716, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado
em 19/10/2004, DJ 26-11-2004 PP-00025 EMENT VOL-02174-02
PP-00389 RT v. 94, n. 834, 2005, p. 493-495 LEXSTF v. 27, n. 314,
2005, p. 476-480)

Defende-se, portanto, que é totalmente sem razão admitir que o habeas


corpus possa ser impetrado por qualquer pessoa, e na hora de recorrer exigir-se

4
Nesse sentido: STJ, RHC 25.444/RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado
em 26/08/2010, DJe 04/10/2010; STJ, RHC 23.742/RJ, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 17/03/2009, DJe 06/04/2009.

144 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014
Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional: comentários à nova jurisprudência pronunciada...

que seja feito por advogado inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados
do Brasil.5
Por fim, quanto ao processamento do recurso ordinário no Superior Tribunal
de Justiça, a matéria vem regulada no artigo 31 da Lei nº 8.038, de 28 de maio
de 1990, assim como no artigo 245 do Regimento Interno do Superior Tribunal de
Justiça, segundo os quais após a distribuição do recurso, a Secretaria do Tribunal,
imediatamente, fará os autos com vista ao Ministério Público, pelo prazo de dois dias
para o seu parecer. Com a manifestação, os autos serão conclusos ao relator, e este
submeterá o feito a julgamento.

4 Síntese dos acórdãos comentados


O primeiro acórdão se refere ao Habeas Corpus nº 109.956/PR, proferido no
Supremo Tribunal Federal, cujo relator foi o Ministro Marco Aurélio.
Fábio Tomio Ueno foi denunciado perante o Juízo da Vara Criminal de Castro,
Estado do Paraná, por infração do artigo 121, §2º, incisos I e IV do Código Penal,
porque, movido pelo sentimento de vingança, porquanto seu irmão teria sido agredido
por seguranças da vítima, dirigiu-se à residência desta e disparou arma de fogo,
causando-lhe a morte. O paciente alegou faltar fundamentação à decisão do juiz de
primeiro grau que indeferiu diligências postuladas pela defesa, notadamente novas
provas periciais.
Inconformado, o paciente impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná requerendo a realização das diligências. O Tribunal denegou a
ordem, sob o fundamento de que a decisão de indeferimento foi suficientemente
fundamentada pelo juiz, a via estreita do habeas corpus não comporta a análise
aprofundada do conjunto probatório, e que a conveniência e utilidade da prova
faz parte da livre apreciação do magistrado, não havendo qualquer cerceamento
de defesa.
Então, o advogado do paciente impetrara um novo habeas corpus no Superior
Tribunal de Justiça contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,
alegando constrangimento ilegal decorrente do indeferimento do juiz de primeiro grau
das diligências requeridas pela defesa, afirmando que estas são pertinentes em
face da busca de verdade real, e não se mostram desnecessárias, inconvenientes
ou protelatórias.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, denegou a ordem, pois tem o
entendimento pacificado de que o deferimento de diligências é ato que se inclui
na discricionariedade regrada do juiz, cabendo a ele aferir, em cada caso, a real

5
Em recente decisão os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, acordaram
em conhecer do recurso ordinário em habeas corpus que fora interposto por estagiário do curso de Direito (STJ,
RHC 28.280/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 20/11/2012, DJe 03/12/2012).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014 145
Felipe Fernandes Valente Júnior

necessidade da medida para a formação de sua convicção. Além disso, o magistrado


de primeiro grau, de forma fundamentada, teria enfrentado cada um dos pedidos de
produção de prova formulados pela defesa, não havendo que falar em ofensa à ampla
defesa, pois afastou as provas consideradas desnecessárias, em harmonia com o
princípio da persuasão racional. Consignou-se, ainda, que o Superior Tribunal de
Justiça não pode substituir o juízo natural da causa na análise e utilização devida das
provas carreadas durante a instrução penal, sob pena de usurpação de competência
e ofensa ao princípio e garantia constitucionais do juiz natural.
Em seguida, a defesa impetrou novamente um habeas corpus, desta vez, para
o Supremo Tribunal Federal, impugnando o acórdão do Superior Tribunal de Justiça,
ressaltando a importância da perícia dentro do contexto probatório e aduzindo não
poder o requerimento de produção de nova prova ser indeferido em virtude de prévios
esclarecimentos lacônicos prestados pelos peritos. A defesa aponta a existência de
defeitos formais na nomeação dos peritos e no laudo de necropsia e defende a
completa falta de metodologia da investigação policial, no que proporciona versões
do fato distanciadas da realidade. Aduz, ainda, serem os destinatários finais da prova
os jurados e não o juiz singular.
O Ministro relator Marco Aurélio consignou a inadequação do habeas
corpus quando for cabível o uso de recurso ordinário constitucional. Defendeu o
restabelecimento da eficácia do instrumental, pois a Constituição Federal prevê
o recurso ordinário, não o habeas corpus substitutivo, sugerindo a mudança na
orientação jurisprudencial da Suprema Corte em não conhecer habeas substitutivo,
devendo haver uma correção de rumos. Sustentou que para os casos já impetrados
antes do novo entendimento não haveria prejuízo, pois as questões serão analisadas
de ofício nas hipóteses de flagrante ilegalidade, abuso de poder ou teratologia. No
mais, o relator diante do contexto, decidiu que não haveria campo para o deferimento
de ordem de ofício. Colhe-se a ementa do julgado:

HABEAS CORPUS – JULGAMENTO POR TRIBUNAL SUPERIOR –


IMPUGNAÇÃO. A teor do disposto no artigo 102, inciso II, alínea “a”,
da Constituição Federal, contra decisão, proferida em processo revelador
de habeas corpus, a implicar a não concessão da ordem, cabível é o
recurso ordinário. Evolução quanto à admissibilidade do substitutivo do
habeas corpus. PROCESSO-CRIME – DILIGÊNCIAS – INADEQUAÇÃO. Uma
vez inexistente base para o implemento de diligências, cumpre ao Juízo,
na condução do processo, indeferi-las.
(STF, HC 109956, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma,
julgado em 07/08/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-178 DIVULG 10-
09-2012 PUBLIC 11-09-2012)

O acórdão seguinte se refere ao Habeas Corpus nº 239.550/RJ, proferido no


Superior Tribunal de Justiça de relatoria da Ministra Laurita Vaz.

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Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional: comentários à nova jurisprudência pronunciada...

Zilmara Fernandes da Silva foi presa em flagrante delito no dia 13.12.2011,


pela suposta prática de crime tipificado no artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/2006,
tendo sido a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva. A defesa requereu
a revogação da custódia, o que foi indeferido pelo juiz de primeiro grau.
Contra essa decisão, fora impetrado habeas corpus no Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro alegando que a paciente sofre constrangimento ilegal em
virtude da conversão da sua prisão em flagrante em prisão preventiva. Sustentou
não haver justa causa para o decreto prisional, pois, diante da primariedade, bons
antecedentes, e do fato de a paciente não integrar nenhuma facção criminosa, terá
direito à conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos, de acordo
com o estabelecido no artigo 33, §4º, da Lei nº 11.343/2006. Aduziu, ainda, haver
excesso de prazo, porquanto, até a data da impetração do habeas corpus, a paciente
ainda não havia sido denunciada pelo Ministério Público.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro denegou a ordem, fundado na
inexistência de qualquer constrangimento ilegal a ser sanado, uma vez que a conversão
da prisão em flagrante em prisão preventiva se deu de forma fundamentada, tendo
o juiz de primeiro grau se valido dos fatos emanados do caso concreto. O Tribunal
também entendeu que para saber se à paciente seria imputada pena restritiva de
direitos, dever-se-ia adentrar no mérito da causa, o que é inviável em sede de habeas
corpus. Por fim, não verificou excesso de prazo a ensejar a concessão da ordem,
afirmando que o processo seguia seu trâmite regularmente.
Inconformada, a defesa da paciente impetrou um novo habeas corpus, agora
no Superior Tribunal de Justiça, contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro. Alegou que a paciente fora presa, apenas, por estar na companhia
de pessoa, que sem seu conhecimento, transitava com drogas junto ao corpo.
Asseverou, ainda, a existência de desproporção entre a prisão cautelar e a eventual
pena a ser aplicada em caso de condenação, tendo em vista a primariedade, os bons
antecedentes, residência fixa, não integrar qualquer organização criminosa e outros
parâmetros a serem considerados na dosimetria da pena, que certamente será fixada
no mínimo legal, sendo convertida em pena restritiva de direitos.
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, acompanhando a nova
orientação jurisprudencial adotada pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal,
em absoluta consonância com os princípios constitucionais, principalmente os do
devido processo legal, da celeridade, e da economia processual e da razoável duração
do processo, decidiu não ser cabível a impetração de habeas corpus substitutivo de
recurso ordinário, sem prejuízo de, eventualmente, se for o caso, deferir a ordem de
ofício, para os habeas já impetrados antes da mudança do entendimento.
Apesar de não conhecer do habeas corpus, a ordem foi concedida de ofício para
revogar a prisão preventiva por falta de fundamentação da decisão de primeiro grau,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014 147
Felipe Fernandes Valente Júnior

que manteve a prisão cautelar da paciente por estar amparada, tão somente, na
gravidade abstrata do delito e no seu caráter hediondo. Veja-se a ementa do julgado:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. DESCABIMENTO.


COMPETÊNCIA DAS CORTES SUPERIORES. MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO.
MODIFICAÇÃO DO ENTENDIMENTO DESTE SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA, EM CONSONÂNCIA COM A SUPREMA CORTE. TRÁFICO ILÍCITO DE
DROGAS. NECESSIDADE DA CUSTÓDIA CAUTELAR NÃO DEMONSTRADA.
AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO CONCRETA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL
EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM DE HABEAS
CORPUS CONCEDIDA, DE OFÍCIO.
1. O Excelso Supremo Tribunal Federal, em recentes pronunciamentos,
aponta para uma retomada do curso regular do processo penal, ao
inadmitir o habeas corpus substitutivo do recurso ordinário. Precedentes:
HC 109.956/PR, 1.ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 11/09/2012;
HC 104.045/RJ, 1.ª Turma, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 06/09/2012.
Decisões monocráticas dos ministros Luiz Fux e Dias Tóffoli,
respectivamente, nos autos do HC 114.550/AC (DJe de 27/08/2012) e
HC 114.924/RJ (DJe de 27/08/2012).
2. Sem embargo, mostra-se precisa a ponderação lançada pelo Ministro
Marco Aurélio, no sentido de que, “no tocante a habeas já formalizado sob
a óptica da substituição do recurso constitucional, não ocorrerá prejuízo
para o paciente, ante a possibilidade de vir-se a conceder, se for o caso,
a ordem de ofício”.
3. Hipótese em que a decisão de primeiro grau, corroborada pelo Tribunal
a quo no writ originário, não apresentou argumentos idôneos e suficientes
à manutenção da prisão cautelar da ora Paciente, pois, apesar de afirmar
a presença de indícios suficientes de autoria e materialidade para a
deflagração da ação penal, não apontou elementos concretos extraídos
dos autos que justificassem a necessidade da custódia, restando
esta amparada, tão somente, na gravidade abstrata do delito e no seu
caráter hediondo.
4. Habeas corpus não conhecido. Ordem de habeas corpus concedida,
de ofício, para revogar a prisão preventiva da ora Paciente, ressalvada
a possibilidade da expedição de outro decreto prisional, desde que
devidamente fundamentado, ou, ainda, da adoção de outras medidas
cautelares pelo Juízo condutor do processo, conforme salientado no voto.
(STJ, HC 239550/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado
em 18/09/2012, DJe 26/09/2012)

Essa nova jurisprudência ditada pelo Supremo Tribunal Federal e acompanhada


pelo Superior Tribunal de Justiça será tratada no tópico seguinte.

5 Análise do novo entendimento jurisprudencial


Os tribunais pátrios, conferindo uma maior efetividade a esta tão importante
garantia constitucional que é o habeas corpus, acabaram construindo a figura do

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Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional: comentários à nova jurisprudência pronunciada...

habeas corpus substitutivo ou sucedâneo de recurso, em que sendo negado um


writ anterior poderia se impetrar um novo habeas na instância superior ao invés
de interpor o recurso previsto em lei. Dessa forma, a autoridade jurisdicional que
denegar a ordem contra o ato considerado constrangimento ilegal pelo paciente ou
impetrante acaba encampando a alegada ilegalidade, passando, então, a figurar
como autoridade coatora.
O problema é que se vive em momento de superlotação nos estabelecimentos
prisionais, em que ordens de prisões temporárias e preventivas são decretadas a
rodo, e operações da Polícia Federal e das Polícias Civis, efetuando prisões cautelares,
estão estampadas quase todos os dias nos noticiários. E que, apesar de vivermos
em uma República, fundada em um Estado Democrático de Direito, regida por uma
Constituição Federal e por leis votadas pelo Poder Legislativo, o que se vê é o número
de impetrações de habeas corpus crescer vertiginosamente, dando a impressão
de que a sociedade democrática vive em um regime de total ilegalidade e abuso
de poder.
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça estão
lotados de habeas corpus. Por exemplo, no Supremo, em 2010, foram distribuídos
4.207 habeas corpus. Já em 2011, foram 3.788, e, em 2012, 3.133. No Superior
Tribunal, em 2010, foram distribuídos 35.820 habeas corpus, em 2011, foram
36.125, e, em 2012, 32.427.6
Os números citados assustam, e a questão é muito séria, pois o habeas corpus
é uma ação sumaríssima, devendo, portanto, ter o seu julgamento da forma mais
célere possível nos Tribunais e, se isso não acontece, o simples fato de não se
julgar rapidamente o instrumental pode significar uma causa para a identificação do
constrangimento ilegal sanável pela via do próprio habeas corpus, como já decidiu o
Supremo Tribunal Federal, conforme os seguintes julgados:

Constitucional. Habeas Corpus. Julgamento célere – CF, art. 5º,


inc. LXXVIII. Demora não razoável. Constrangimento ilegal caracterizado.
1. A Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. LXXVIII, preceitua que “a
todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação”. 2. In casu, o writ foi impetrado no STJ em 25/11/2009 e
redistribuído com parecer ministerial em 19/06/2009, sem o julgamento
do mérito até a presente data, impondo-se, por isso, acolher o argumento
da não razoabilidade pela demora. 3. Ordem concedida para determinar
ao Superior Tribunal de Justiça que apresente o feito em mesa na primeira
sessão após a comunicação desta decisão.

6
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico
=estatistica&pagina=pesquisaClasse>. Acesso em: 05 fev. 2013; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – O
Tribunal da Cidadania. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/?vPortalAreaPai=183
&vPortalArea=584>. Acesso em: 05 fev. 2013.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014 149
Felipe Fernandes Valente Júnior

(STF, HC 108643, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em


25/09/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-211 DIVULG 25-10-2012
PUBLIC 26-10-2012)
HABEAS CORPUS. AÇÃO CONSTITUCIONAL IMPETRADA NO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA HÁ QUASE DOIS ANOS. DEMORA NO JULGAMENTO.
DIREITO À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. NATUREZA JURÍDICA DO
HABEAS CORPUS, A DOTÁ-LO DE PRIMAZIA SOBRE QUALQUER OUTRA
AÇÃO JUDICIAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. O habeas corpus é a via
processual que tutela especificamente a liberdade de locomoção, bem
jurídico mais fortemente protegido por uma dada ação constitucional.
2. O direito à razoável duração do processo não é senão projeção do direito
de acesso eficaz ao Poder Judiciário. Direito a que corresponde o dever
estatal de julgar com segurança (elemento técnico) e presteza (elemento
temporal). No habeas corpus, tal dever estatal de decidir se marca por um
tônus de presteza máxima, sem nenhum prejuízo para o dever de fazê-lo
com apuro técnico. 3. Assiste ao Supremo Tribunal Federal determinar
aos Tribunais Superiores o julgamento de mérito de habeas corpus, se
entender irrazoável a demora no respectivo julgamento. Isso, é claro,
sempre que o impetrante se desincumbir do seu dever processual de
pré-constituir a prova de que se encontra padecente de “violência ou
coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso
de poder” (inciso LXVIII do art. 5º da Constituição Federal). 4. Ordem
concedida para que a autoridade impetrada apresente o HC 181.141,
em mesa, até a décima Sessão da Turma em que oficia, subsequente à
comunicação da presente ordem.
(STF, HC 112298, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado
em 13/03/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-061 DIVULG 23-03-2012
PUBLIC 26-03-2012)
HABEAS CORPUS. AÇÃO CONSTITUCIONAL IMPETRADA NO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA HÁ MAIS DE CINCO ANOS. DEMORA NO
JULGAMENTO. DIREITO À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO.
NATUREZA JURÍDICA DO HABEAS CORPUS, A DOTÁ-LO DE PRIMAZIA
SOBRE QUALQUER OUTRA AÇÃO JUDICIAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. O
habeas corpus é a via processual que tutela especificamente a liberdade
de locomoção, bem jurídico mais fortemente protegido por uma dada ação
constitucional. 2. O direito à razoável duração do processo não é senão
o de acesso eficaz ao Poder Judiciário. Direito, esse, a que corresponde
o dever estatal de julgar. No habeas corpus, tal dever estatal de decidir
se marca por um tônus de presteza máxima. 3. Assiste ao Supremo
Tribunal Federal determinar aos Tribunais Superiores o julgamento de
mérito de habeas corpus, se entender irrazoável a demora no respectivo
julgamento. Isso, é claro, sempre que o impetrante se desincumbir do seu
dever processual de pré-constituir a prova de que se encontra padecente
de “violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade
ou abuso de poder” (inciso LXVIII do art. 5º da Constituição Federal).
4. Ordem concedida para assinalar o prazo de 10 sessões, contado da
redistribuição da referida ação constitucional, para o julgamento da causa.
(STF, HC 110319, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado
em 08/11/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-046 DIVULG 05-03-2012
PUBLIC 06-03-2012)

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Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional: comentários à nova jurisprudência pronunciada...

Nota-se, pelos julgados, que a liberdade de locomoção do paciente está


comprometida pela falta de efetividade da prestação jurisdicional, em face da demora
no julgamento do habeas corpus. Veja-se o absurdo ter-se que impetrar um habeas
corpus na instância superior para que seja julgado um writ que fora impetrado há anos
na instância inferior. Diante dessa situação, a Primeira Turma do Supremo Tribunal
Federal, por meio do Habeas Corpus nº 109.956/PR, relator Ministro Marco Aurélio, a
fim de desemperrar a máquina judiciária e diminuir o número de habeas que tramitam
naquela Corte, passou a não mais admitir o posicionamento de se conhecer habeas
corpus substitutivo de recurso ordinário constitucional, buscando dar efetividade à
norma prevista no artigo 102, inciso II, alínea “a”, da Constituição Federal.7
Além disso, a Quinta e a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça,
competentes para julgar matéria de Direito Penal neste Tribunal, passaram a
acompanhar o posicionamento da Primeira Turma da Suprema Corte, sob o pretexto
de dar celeridade processual ao Tribunal e de conferir efetividade às normas previstas
no artigo 105, inciso II, alínea a, da Constituição Federal, e nos artigos 30 a 32 da
Lei nº 8.038/1990.8
De fato, é inegável o excessivo número de habeas corpus existentes atualmente
nos Tribunais Superiores, muitos deles substitutivos de recurso ordinário constitucional.
Contudo, apesar do fim almejado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal e
dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça em querer racionalizar, otimizar e agilizar
as atividades judicantes ser louvável, acredita-se que não seja a melhor solução para
o problema. Com o novo entendimento, o paciente que está preso e teve o seu writ
negado no Tribunal terá de esperar a publicação do acórdão, o que às vezes pode
levar meses, para só então interpor o recurso ordinário, perdurando ainda mais o
constrangimento ilegal, pois a sistemática do recurso ordinário em habeas corpus é
muito mais lenta que a da impetração substitutiva de recurso.
Não se trata de fazer reviver a “doutrina brasileira do habeas corpus”, nem de
tornar letra morta os artigos 102, inciso II, alínea “a”, e 105, inciso II, alínea “a”,
ambos da Constituição Federal, mas é o valor liberdade que está envolvido, de modo
que o paciente não pode ficar injustamente encarcerado em um depósito de seres
humanos, superlotado, com lixo amontoado e infestado de baratas, ratos e doenças,
esperando o lento julgamento do recurso ordinário constitucional.

7
No mesmo sentido: STF, HC 108487, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 21/08/2012,
PROCESSO ELETRÔNICO DJe-181 DIVULG 13-09-2012 PUBLIC 14-09-2012; STF, HC 106377, Relator(a):
Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 21/08/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-177 DIVULG
06-09-2012 PUBLIC 10-09-2012; STF, HC 112625, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em
07/08/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-204 DIVULG 17-10-2012 PUBLIC 18-10-2012.
8
No mesmo sentido: STJ, HC 245.433/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em
20/11/2012, DJe 30/11/2012; STJ, HC 242.366/RJ, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEXTA TURMA,
julgado em 18/09/2012, DJe 26/09/2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014 151
Felipe Fernandes Valente Júnior

Está-se a falar da ação constitucional de maior tradição histórica e importância


para a liberdade do cidadão. Não pode o julgador estabelecer uma condição para o
conhecimento do habeas corpus, de modo a criar um pressuposto de manejo que
não está previsto na Constituição Federal. Esse novo entendimento da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, que está sendo adotado pelo Superior Tribunal
de Justiça, restringe o âmbito de cabimento do mais antigo instrumento processual
criado especificamente para proteger o direito fundamental à liberdade de locomoção.
Não há dúvidas de que os Ministros das mais altas Cortes do Brasil têm que
desempenhar um trabalho hercúleo para dar conta de julgar tantos processos, e
desatar esse nó górdio não será fácil. Mas não será criando obstáculos ou restringindo
a utilização do habeas corpus que se resolverão os problemas. Esse recente
posicionamento adotado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, que vem
sendo acompanhado pelo Superior Tribunal de Justiça, tolhe a eficácia e a aplicabilidade
desta ação tão nobre. Causa muita estranheza essa nova jurisprudência, ainda mais
por ser oriunda logo do Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição Federal.

6 Conclusão
O habeas corpus, instrumento processual constitucional, é cabível contra ato do
Poder Público ou de particular que resulte, de modo direto e imediato, em ofensa à
liberdade de locomoção, à liberdade de ir, vir e permanecer do indivíduo.
De acordo com as características do habeas corpus, o magistrado deve sempre
procurar suplantar certas deficiências formais, propiciando a convalidação do ato para
que a substância do pedido seja apreciada e, enfim, decidida como de direito, pois na
questão da liberdade, formalidades devem ser preteridas. A amplitude e a magnitude
desse remédio heroico reclama uma visão menos formalista, mais desprendida, mais
realista e mais ligada à substância da atividade de se fazer justiça.
O julgador não pode limitar o acesso ao habeas corpus, uma das maiores
garantias constitucionais e talvez o maior patrimônio do cidadão. Tal atitude é
negar o acesso à Justiça, ir contra a proteção ao direito fundamental à liberdade
de locomoção, sobretudo dos segmentos mais vulneráveis da população brasileira.
Descabe, em pleno período democrático, o aviltamento de garantias constitucionais.
Por derradeiro, o novo entendimento adotado pela Primeira Turma do Supremo
Tribunal Federal, que vem sendo seguido pelo Superior Tribunal de Justiça, de não
conhecer o habeas corpus substitutivo de recurso ordinário constitucional, está muito
mais calcado em razões de ordem prática, pragmática, de gerência judiciária, para
reduzir o absurdo número de processos que tramitam nos Tribunais Superiores, do
que em princípios jurídicos.

152 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014
Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional: comentários à nova jurisprudência pronunciada...

Abstract: These are the comments delivered its judgment in the Supreme Court and the Superior Court.
Brings considerations on some points of constitutional guarantee of habeas corpus and constitutional
ordinary appeal in habeas corpus, and analyzes the new jurisprudence on habeas corpus substitute for
ordinary appeal.
Key words: Habeas Corpus. Jurisprudence. Constitutional. Criminal procedure.

Referências
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

VALENTE JR., Felipe Fernandes. Habeas corpus e o recurso ordinário constitucional:


comentários à nova jurisprudência pronunciada pelo Supremo Tribunal Federal e
Superior Tribunal de Justiça. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 135-153, out./dez. 2014 153
Legitimidade das associações civis para
propositura de ação civil pública
no direito brasileiro: uma leitura
multidisciplinar

Arno Apolinário Junior


Advogado Sênior da PETROBRAS. Coordenador jurídico de Curitiba-PR. Especialista em Novas
Tendências do Direito pela UFPR.

Ricardo da Silva Gama


Advogado Pleno da PETROBRAS na área ambiental. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas
pela UEPG. Doutorando em Sociologia pela UFPR.

Resumo: Quais os limites à atuação das associações civis como sujeitos ativos na propositura de ações
civis públicas no direito brasileiro? Este é o problema de pesquisa ao qual se procura dar resposta. Para
tanto, partiu-se da hipótese que o sistema legal não é suficientemente capaz de regular a atuação das
organizações civis na propositura de ações civis públicas, devendo ser complementado pelos imaginários
reais das coletividades humanas beneficiárias da tutela jurisdicional perseguida pelas organizações. Após
um ingresso nos contornos do imaginário formal e dos imaginários reais sobre a adequada representação
das organizações sociais nas lides de massa, mediante aproximação de elementos teóricos da sociologia,
chegou-se à conclusão de restar confirmada a hipótese no contexto da pesquisa, tecendo-se uma discussão
final acerca da restrição da efetiva participação social gerada pela inadequada representação no seio da
legitimidade das associações civis para proporem ação civil pública.

Palavras-chave: Ação civil pública. Representação adequada. Associações civis.

Sumário: 1 Introdução e aspectos metodológicos – 2 Legitimidade ativa das associações concebida


pela Lei nº 7.347/85 – 3 Imaginários reais e vinculação material, cultural e simbólica – 4 Discussão e
conclusões – Referências

1 Introdução e aspectos metodológicos


Quais os limites à atuação das associações civis como sujeitos ativos na
propositura de ações civis públicas no direito brasileiro? Este é o problema de
pesquisa ao qual se procura dar resposta aproximativa neste estudo. Para tanto,
partiu-se da hipótese – formulada com base em dados preliminares – no sentido
de que: o sistema legal brasileiro de tutela coletiva não é suficientemente capaz
de regular a atuação das organizações civis na propositura de ações civis públicas,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014 155
Arno Apolinário Junior, Ricardo da Silva Gama

devendo ser complementado pelos imaginários reais1 das coletividades humanas


beneficiárias da tutela jurisdicional perseguida pelas organizações da sociedade civil
em sede de direitos difusos2 e coletivos em sentido estrito.3 A perquirição acerca dos
direitos individuais homogêneos4 não integra o objeto deste estudo.
Desdobrada a hipótese, tomou-se como base para sua confrontação a mediação
das seguintes variáveis:

1.1. Para identificar o imaginário formal5 referente à legitimidade


das associações para propor ação civil pública, procurou-se a sua
caracterização na ordem institucional e jurídica formal, oficialmente
estabelecida no âmbito da União pela Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil
Pública) e pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90);
1.2. Para identificar se os imaginários reais das coletividades humanas
beneficiárias dos pedidos formulados em sede de tutela coletiva diferem
e/ou complementam o posicionamento formal, prudente levantar os
estudos acerca da aproximação das ciências sociais em relação ao
tema das organizações sociais e do imaginário social, no objetivo de
obter indicação de situações que pudessem gerar saberes importantes à
coletividade, não previstos nas definições oficiais. Os dados necessários
foram colhidos mediante levantamento da literatura especializada, de
informações disponibilizadas pelo poder público e sociedade civil, além
de coleta de decisões proferidas pelos Tribunais brasileiros.

Na intenção de comprovar ou refutar a hipótese, busca-se, primeiramente, a


apresentação e análise do imaginário formal sobre a adequada representação social
para propositura de ação civil pública nas normativas que compreendem o sistema
brasileiro de tutela judicial coletiva, passando-se, a seguir, para a perquirição dos
indicadores das ciências sociais e empíricos referentes aos imaginários reais sobre
a legitimidade para propositura de ação civil pública.
Posteriormente, é promovida uma discussão acerca das possibilidades de
diálogo horizontal entre os saberes formais e não formais para uma integração
que possibilite enriquecer o olhar sobre o tema, o que representa um verdadeiro

1
Campo de significações imaginárias e simbólicas, geneticamente vinculado aos conjuntos formados pelas
coletividades diretamente beneficiárias, cujos integrantes são possuidores de propriedades comuns, na
medida em que os imaginários sociais criam uma realidade e conformam a identidade psíquica dos indivíduos
(CASTORIADIS, 2007, p. 400). Ademais, o tempo e espaço, em si, são portadores de múltiplas leituras sociais
e culturais, das quais o conteúdo imaginário é deveras importante (MASKREY, 1994, p. 13).
2
Direitos “transindividuais de natureza indivisível de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por
circunstâncias de fato” (ARANTES, 1999, p. 88). Ex.: Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
3
Direitos “transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas
ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base” (ARANTES, 1999, p. 88). Ex.: Direitos
decorrentes de relações de contrato de trabalho.
4
Direitos individuais com origem comum.
5
Visão aparentemente objetiva de uma dada realidade, legitimada e institucionalizada socialmente (MASKREY,
1994, p. 14) independentemente das visões e intenções dos agentes sociais, comparável à concepção de
‘fato social’ cunhada por Durkheim (1966).

156 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014
Legitimidade das associações civis para propositura de ação civil pública...

confrontamento da hipótese (e da problemática que lhe dá suporte) com os dados


colhidos na aproximação procedida durante o processo de pesquisa.
Partiu-se da perspectiva da atividade científica voltada para a aproximação
de uma realidade complexa, multifacetada e não linear, com relação à qual não se
admite simples relação de causa e efeito (MORIN, 2000). Concebeu-se uma realidade
constituída de processos dinâmicos, orgânicos, cuja fluência decorre da interação de
sujeitos e objetos, de modo dialógico, sem o seu afastamento pelo conhecimento
(DALLA VECCHIA, 2008, p. 157). Afina-se o estudo ao entendimento de que não
há referência absoluta às aproximações da realidade, encontrando-se os sujeitos
imersos em uma recursividade contínua de interações para esta finalidade, não
explicável pela abordagem representacionista (MATURANA & VARELA, 2007, p. 263).
Os problemas jurídicos e sociais, dentre os quais se insere o objeto do estudo,
compreendem sistemas complexos, “nos quais intervêm processos de diferentes
racionalidades, ordens de materialidade e escalas espaço-temporais” (LEFF, 2000,
p. 20), pelo que se pode asseverar que o campo das disputas sociojurídico-políticas é
constituído das interconexões e seu conhecimento exige uma abordagem integralista
e multidisciplinar, a qual permita a conexão das ciências com o senso comum, bem
como das esferas do dever ser e do material, da economia, da tecnologia e da cultura.

2 Legitimidade ativa das associações concebida pela Lei


nº 7.347/85
Com o evolver da complexidade da sociedade e o crescimento da economia,
massificando as relações entre as pessoas e entre estas e as sociedades
empresárias e bem assim aumentando a demanda por serviços do Estado, outros
interesses surgiram no campo social e político que não poderiam se qualificar como
individuais, como é o caso dos difusos, ou ainda outros, que, embora possam ser
individuados, atingem um grande número de pessoas, que são os coletivos e os
individuais homogêneos.
Estes interesses de massa – quer pela amplitude de pessoas que são os
seus titulares, quer pela indeterminação dos mesmos ou, ainda, por individualmente
considerados não serem para cada um deles ou mesmo por não serem seus titulares
passíveis de identificação – existem e como tal reclamam proteção através da
prestação jurisdicional, sendo este o ponto de inserção da ação civil pública como
instrumento hábil a dar cobro a esta necessidade como instrumento de pacificação
social, permitindo acesso à justiça e reafirmando a ideia de cidadania. Neste sentido
é que foi promulgada a Lei nº 7.347/85, a Lei da Ação Civil Pública.
A ação civil pública foi instituída no Brasil pela Lei nº 7.347/85, em cujo
preâmbulo está consignado que o comando legal “Disciplina a ação civil pública de

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014 157
Arno Apolinário Junior, Ricardo da Silva Gama

responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens


e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras
providências”. Como pode ser observado, destina-se a ser meio de proteção de bens,
interesses e direitos individuais de forma coletiva.
Mancuso (1997, p. 19), versando sobre a ação civil pública, entende que o
interesse protegido pela medida judicial não é o interesse público, mas sim e antes
interesses coletivos, de grupos determinados e difusos, cujos titulares não são
identificáveis, mas nem um nem outro, quer pela conflitividade dos interesses, quer
pela amplitude de seu alcance, podem ser qualificados como interesse público.
Neste sentido, os interesses que a ação civil pública permite proteger de
ordinário não seriam passíveis de qualificação como interesse público, mas sim e
antes como interesses metaindividuais (ou ainda transindividuais ou supraindividuais),
que podem identificar-se ou não com o interesse público e bem assim também
podem ser individualizados, quando se tratar de interesses coletivos ou individuais
homogêneos. Ressalte-se que neste trabalho não se está a tratar dos direitos
individuais homogêneos, mas apenas dos direitos difusos e coletivos stricto sensu.
Desta forma, a ação civil pública é um adequado instrumento de realização
de interesses denominados metaindividuais, mas não pode ser tomada como meio
único de satisfação ou realização destes interesses, substituindo sociologicamente
os seus titulares, pois, como bem aclara Grinover (2000, p. 13), sua dimensão
desborda o jurídico e avança na senda do político, o que possibilita seja com esta
finalidade manejada.
Para propor a ação civil pública na defesa dos interesses difusos e coletivos, a
lei previu um rol de colegitimados ativos, de forma taxativa e exaustiva, que engloba
os seguintes sujeitos: a instituição Ministério Público, a União, os Estados e o
Distrito Federal, os Municípios, as Autarquias, as Empresas Públicas, as Fundações,
as Sociedades de Economia Mista e, por fim, as Associações Civis constituídas há
pelo menos 1 (um) ano e que tenham como finalidade social a defesa do interesse
questionado (art. 5º, V, da Lei nº 7.347/85 e art. 82, IV, do Código de Defesa do
Consumidor) – o requisito de tempo de existência pode ser dispensado pelo órgão
jurisdicional que conhecer o pedido, quando entender que há manifesto interesse
social pela dimensão ou característica do dano ou pela relevância do bem jurídico a
ser protegido (art. 5º, §4º, da Lei nº 7.347/85 e art. 82, §1º, do Código de Defesa
do Consumidor).
A legitimidade ativa dos integrantes do rol taxativo para o ajuizamento da ação
civil pública é concorrente, autônoma e disjuntiva, ou seja, qualquer deles pode propô-la
independentemente do assentimento ou concordância dos demais colegitimados.
Embora a legitimação dos entes enumerados na Lei nº 7.347/85 seja autônoma,
disjuntiva e concorrente, nada impede que proponham ações civis públicas em

158 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014
Legitimidade das associações civis para propositura de ação civil pública...

litisconsórcio ativo, combinando e somando esforços para a defesa do interesse


metaindividual perseguido.
O motivo aparente para que assim fosse estruturada a legitimação ativa para a
propositura da ação civil pública parece ter sido a qualidade dos interesses que visa
proteger e/ou efetivar através da prestação jurisdicional. O interesse posto na ação
civil pública não é o individual e disponível, mas sim e antes interesses indisponíveis
de uma coletividade ou ainda difusos, sem titular individual determinável. São antes
interesses de massa, convergentes sobre um mesmo objeto indivisível, notadamente
como quer Grinover (1999, p. 28), “sinteticamente referíveis à qualidade de vida”.
Sendo estes interesses metaindividuais focados a partir desta ótica, não é difícil
compreender os motivos que levaram a compor legalmente a relação dos legitimados
à sua propositura, sendo um mosto de Poder Público, representado pelas pessoas
jurídicas de direito público interno, suas autarquias, fundações, empresas públicas
e sociedades de economia mista, sociedade civil organizada e um ente institucional,
que é o Ministério Público.
Poder-se-ia afirmar que embora a relação de colegitimados pareça ser em
princípio uma forma de dificultar o acesso à Justiça na proteção dos interesses
metaindividuais, ela é bastante ampla, pois concorrem independentemente para a
sua propositura tanto o Poder Público e a instituição Ministério Público, que de uma
forma ou de outra são o Estado, como também a sociedade civil (organizada), a quem
este deve promover o bem comum. Onde e quando o Estado omita, a sociedade civil
organizada atua. Esta parece ser a anima da lei.
Interessante notar que todos os colegitimados ativos para a propositura da ação
civil pública, em certo grau, defendem também interesse próprio. Pela própria acepção
de interesses difusos e coletivos em sentido estrito, que são convergentes, pode-se
dizer que a legitimação deles mais se aproxima, no plano jurídico, da ordinária do que
da extraordinária. Contudo, esta discussão não diz respeito ao mérito deste estudo.
A concorrência da legitimação, a seu turno, permite que a realidade do interesse
metaindividual posto à apreciação jurisdicional possa ter a tutela prestada após
completa análise percuciente de vários matizes do mesmo fato afirmado, pois é
possível que certo interesse metaindividual seja desconhecido do Estado, mas não
da sociedade civil organizada, que, mais próxima da realidade, deve sentir o calor das
ofensas a seus interesses, especialmente quando de fato representa a coletividade
diretamente impactada.
Neste ponto, cabe aduzir que as associações civis detêm colegitimação para
propositura de ação civil pública dirigida à defesa dos interesses metaindividuais,
porém, como requisitos legais essenciais, devem possuir mais de ano de constituição
e, ainda, finalidade institucional estatutária ligada à defesa do interesse perseguido
em juízo, ou que tal seja deliberado em assembleia geral. Deve existir pertinência

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014 159
Arno Apolinário Junior, Ricardo da Silva Gama

entre o objeto social da associação e o interesse que vai perseguir na ação civil
pública. Trata-se, aparentemente, de uma definição aceitável dentro do ponto de
vista científico, proferida por uma instituição política constitutiva do Estado Brasileiro
(Congresso Nacional).
Todavia, em que pese serem dois os requisitos exigidos da associação civil para
propor ação civil pública, um deles pode ser dispensado pelo órgão jurisdicional, a seu
nuto e, fundadamente, face à dimensão ou característica do dano que se pretende
evitar, relevância do bem jurídico a ser tutelado ou manifesto interesse social.
Neste caso, as associações civis devem pelo menos demonstrar seu interesse,
no sentido de necessidade-utilidade-adequação como condição de procedibilidade
para que seja reconhecida a sua legitimação para a causa, além de possuir
representatividade adequada à obtenção do pronunciamento jurisdicional pretendido.
Às associações civis não só o seu objeto social deve conter a previsão de defesa
do interesse metaindividual que persegue em juízo, como a sua representatividade
é presumida pela lei quando exige constituição há pelo menos 1 (um) ano antes do
ajuizamento do feito, salvo em casos de relevância social ou risco de dano iminente
de difícil ou impossível reparação, quando este quesito pode ser dispensado pelo
órgão julgador que dele conhecer, fundadamente.
O problema da adequada legitimação para agir na defesa dos interesses difusos
e coletivos tem chamado a atenção dos pesquisadores, pois dada a importância
maior ou menor do interesse, a amplitude de seu alcance e a relevância fática ou
jurídica do pedido, é desaconselhada a admissão de qualquer colegitimado na sua
persecução judicial.
E o projeto de lei hoje em tramitação,6 que trata do anteprojeto do código
brasileiro de processos coletivos, com relação à legitimidade das associações,
reproduz a atual disposição da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do
Consumidor, ao definir:

Art. 20. Legitimação. São legitimados concorrentemente à ação coletiva


ativa: (...); IX - as associações civis e as fundações de direito privado
legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano,
que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses ou
direitos indicados neste Código, dispensadas a autorização assemblear
ou pessoal e a apresentação do rol nominal dos associados ou membros.
(...). § 4º Em relação às associações civis e às fundações de direito
privado, o juiz poderá dispensar o requisito da pré-constituição, quando
haja manifesto interesse social evidenciado pelas características do dano,
pela relevância do bem jurídico a ser protegido ou pelo reconhecimento
de representatividade adequada (inciso I deste artigo).

6
Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos - Janeiro de 2007 - Ministério da Justiça - Última
versão, <http://www.mpcon.org.br/site/portal/jurisprudencias_detalhe.asp?campo=2897>.

160 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014
Legitimidade das associações civis para propositura de ação civil pública...

Em vista deste quadro, resta necessária uma melhor adequação no imaginário


formal acerca da representação adequada para propositura da ação civil pública por
parte das organizações sociais, de forma que haja a mais perfeita correlação possível
entre o pedido e o colegitimado que o declinou. O imaginário formal, neste caso,
representa a vontade objetiva institucionalmente legitimada perante a sociedade
mediante a promulgação de um comando normativo, o qual precisa ser temperado
pelas dinâmicas políticas, econômicas e sociais que materializam o dia a dia das
sociedades complexas.
Sob este enfoque, o imaginário formal porta características que o identificam
com a lógica identitária-conjuntiva (CASTORIADIS, 2007, p. 405), haja vista sua
aproximação das ciências exatas modernas e a imposição da visão técnico-jurídica,
por vezes vinculada a aspectos funcionais e instrumentais operacionalizados pela
linguagem, insuficientes para transmitir aos possíveis atores de interesse o valor
simbólico e imaginário da legitimidade processual ativa das associações para
promover ações civis públicas.
E esta lógica de reprodução social desembocou numa crise de paradigma de
projeto de sociedade, mostrando-se insustentável a insistência em sua exploração
indefinidamente (SANTOS 2008, p. 189).

3 Imaginários reais e vinculação material, cultural e


simbólica
Como visto no tópico anterior, a Lei da Ação Civil Pública – que representa
o imaginário formal no caso – confere legitimidade às associações civis para
ingressarem com ação civil pública, nos moldes dos seus artigos 1º e 5º, V, o que
é repetido no art. 82, IV, do Código de Defesa do Consumidor. Para tanto, basta
que a associação tenha sido criada há pelo menos 1 (um) ano e inclua, entre suas
finalidades institucionais, a proteção do interesse que busca a proteção em juízo.
Assim, para que haja adequada representação pela associação civil, no modelo
trazido pelo imaginário formal, os seus objetivos institucionais e o objeto da ação
civil pública devem ter relação de pertinência temática, o que pode ter caráter
relativamente genérico, devendo-se agir com ponderação para evitar abusos no uso
deste instrumento.
Como projeto de superação desta lógica, Santos (2008, p. 116-118) se
apoia no que chama de sociologia das ausências e das emergências, invertendo a
compreensão ocidental do mundo (SANTOS, 2008, p. 95), baseada na impotência
(nada se pode fazer contra eventos externos à racionalidade – determinismo),
arrogância (autossuficiência – livre-arbítrio), metonímica (única forma de racionalidade
possível – reducionismo) e proléptica (progressão histórica linear). A seu ver, a

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014 161
Arno Apolinário Junior, Ricardo da Silva Gama

contração do presente promovida pela razão hegemônica esconde a maior parte da


riqueza inesgotável das experiências sociais do mundo (SANTOS, 2008, p. 101),
motivo pelo qual passa a ser confrontada pelas ideias de entropia e catástrofe,
incorporadas pelas teorias da complexidade e do caos (SANTOS, 2008, p. 96).
Neste sentido, a demanda social deve evoluir no sentido da exigência crescente
em matéria de segurança – o que inclui a legitimidade – e rejeitar cada vez mais
o conceito de fatalidade, (GARBACCIO & PAGEAUX, 2009, p. 301), mediante uma
ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes, de modo a maximizar a
probabilidade de esperança em relação à de frustração (SANTOS, 2008, p. 118),
o que se torna bastante evidente no caso de representação de uma coletividade
por um ente desprovido de laços culturais, materiais e simbólicos com a mesma.
Assim, a contração do futuro o torna escasso e merecedor de cuidado com relação às
alternativas possíveis que podem variar da esperança ao desastre (SANTOS, 2008,
p. 118), e por isso precisa de adequada tutela pelos seus representantes. E esta
medida de transposição pressupõe que toda formação humana (social) desenvolve-se
em relação com seu entorno, diretamente condicionado por práticas culturais
(LEFF, 2000, p. 51-95; OSTROM et al., 2009, p. 56). Assim, não há como conferir
legitimidade para propor ação civil pública a uma associação em relação à qual as
coletividades interessadas não se sentem representadas.
O legitimado que teria melhor condição de invocar tutela jurisdicional sobre os
interesses difusos e coletivos seria aquele que estivesse adequadamente aparelhado
em conhecimentos, meios e estrutura a dar cobro da tarefa, notadamente porque os
efeitos de sua atuação, se procedente ou não, terão necessariamente consequências
jurídicas sobre o interesse perseguido e a coletividade que será sua destinatária.
Imagine-se, a título de exemplo, uma associação de bairro que resolve exigir através
de ação civil pública uma melhoria na coleta de lixo prestada pelo Município. Ora, neste
caso, embora seja um interesse coletivo, a melhor e mais adequada legitimação para
a defesa deste interesse coletivo é da própria associação, que melhor conhece as
necessidades locais e as provas com as quais poderá obter a procedência do pedido.
Não teria sentido que atuasse neste caso como autor uma entidade de abrangência
nacional ou internacional, mesmo que sua atuação tivesse pertinência temática.
Como pode ser observado, deve haver certa vinculação entre a importância, a
relevância, as consequências e a urgência do pedido declinado e o legitimado que o
declinou. Não faz sentido uma entidade de âmbito municipal propor uma ação civil
pública cujos efeitos da sentença alcancem âmbito estadual ou nacional (e vice-versa),
mesmo porque esta realidade pode ser desconhecida pela entidade em sua plenitude.
Em que pese a Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) não faça qualquer
restrição à área de atuação das entidades constantes do seu artigo 5º – do que
decorre o entendimento de que independentemente das associações possuírem sede

162 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014
Legitimidade das associações civis para propositura de ação civil pública...

e foro em Comarca diversa daquela em que ocorreu o fato poderão agir em defesa
dos interesses difusos e coletivos –, a questão posta não se resume à abrangência
territorial de atuação das associações, mas sim à generalidade das possibilidades
de sua intervenção, que podem atingir quaisquer interesses em qualquer território, se
balizada apenas em ditames estatutários.
Sobre o tema, já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça (AgRg no REsp
901936/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 16.03.2009), ao mencionar que
“Essa generalidade não pode ser, entretanto, desarrazoada, sob pena de admitirmos
a criação de uma associação civil para a defesa de qualquer interesse, o que
desnaturaria a exigência de representatividade adequada do grupo lesado”.
A estratégia de capitulação de determinados bens como de titularidade difusa
não pode ser utilizada para se projetar no infinito a legitimidade das associações
civis para propositura da ação civil pública, sob pena de desvirtuar-se a finalidade do
instituto, que pode passar a servir a interesses oportunistas.
Nesta medida, devem ser reconhecidas como legitimadas somente as
associações detentoras de finalidades mais condizentes com a situação e inclusive
com presença efetiva na localidade onde ocorreram os fatos discutidos na ação civil
pública, pois melhores conhecedoras da região, do seu povo e da sua cultura.
A legitimidade diz respeito ao poder (ou dever) de agir em face de determinada
situação. Não é razoável uma abertura indefinida na escala territorial vinculada
à legitimidade das associações, pois neste caso estas passarão não mais a ser
representantes da sociedade civil, mas sim de seus próprios interesses, o que contribui
para o agravamento da marginalização da participação comunitária e, consequentemente,
da utilização de seus saberes e do respeito à sua cultura e identidade.
Esta medida de transposição pressupõe que toda formação humana (social)
desenvolve-se em relação com seu entorno, diretamente condicionado por práticas
culturais, em relação às quais as associações que não têm atuação efetiva no
local dos fatos levados a juízo não possuem conhecimento, já que territorial e
simbolicamente desvinculadas das comunidades locais, situação que lhe esvazia por
completo a legitimidade.
Do ponto de vista da realidade social, para que sejam legitimadas a propor
ação civil pública devem as associações possuir laços de territorialidade com o local
e comunidades representadas, o que exige sua permeabilidade cultural, material e
simbólica com as coletividades locais, que devem se reconhecer como representadas
pela entidade associativa.
Persiste assim um campo de significações imaginárias e simbólicas,
geneticamente vinculado aos conjuntos formados pelas populações representadas,
possuidoras de propriedades comuns que as colocam em situação de vulnerabilidade
(CASTORIADIS, 2007, p. 400).

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Arno Apolinário Junior, Ricardo da Silva Gama

Vislumbra-se neste meio o divórcio entre o imaginário formal que sustenta


intervenções externas e os múltiplos imaginários reais da população (MASKREY,
1994, p. 27), os quais têm como ponto de apoio um fato que incita a instituição
de significações, ontologicamente representadas em indivíduos, atos e objetos
(CASTORIADIS, 2007, p. 268 e 401). Vê-se, dessa forma, que estas coletividades
humanas instituem o mundo como seu mundo – suas representações e seu
fazer social – através de significações particulares emergentes de um panorama
social-histórico que faz ser, para uma sociedade dada, o copertencer de objetos, atos
e indivíduos aparentemente heterogêneos (CASTORIADIS, 2007, p. 405-409).
A literatura especializada registra alguns exemplos do descompasso entre o
imaginário formal e os imaginários reais, onde a atuação oferecida não é aquela esperada
pelas comunidades (MASKREY, 1994, p. 25), indicando, entre outros, os seguintes casos:

- a implementação de políticas públicas, especialmente nos países


não centrais, que elevaram os níveis de concentração populacional e
acabaram por tornar estes ordenamentos mais vulneráveis a diversos
tipos de desastre (COELHO, 2005, p. 240); e
- a promoção de um verdadeiro combate aos saberes enraizados das
comunidades locais (COELHO, 2005, p. 240).

Os exemplos citados, referentes a situações registradas na América Latina e


África, se ajustam facilmente à lógica do sistema de representação adequada para
propositura de ação civil pública por organizações sociais no Brasil, que despreza os
saberes locais.
Em vista deste cenário, pode-se afirmar, em certa medida, que cada família
e comunidade vive sua própria representação da realidade (e possui seu próprio
imaginário), variando enormemente de região para região e em conformidade com
os grupos sociais envolvidos (MASKREY, 1994, p. 27), o que demanda uma análise
mais acurada por parte dos operadores do direito nesta seara.

4 Discussão e conclusões
As premissas até o momento apresentadas, sugestivas de uma nova atitude
teórica, prática e epistemológica no campo dos direitos coletivos, dirige-se à
conformação de um novo senso comum jurídico, amparado na crítica ao monopólio
estatal e científico do direito; no questionamento do seu caráter despolitizado e
ampliação da sua compreensão como meio de transformação social legitimada no
plano político (SANTOS, 2011, p. 14). Com isso, busca-se alterar a discrepância
entre “perguntas fortes” formuladas pela sociedade e “respostas fracas” em geral
prestadas pelo Poder Judiciário, as quais impõem ao direito a conotação de um
instrumento da burguesia e das oligarquias (SANTOS, 2011, p. 33).

164 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014
Legitimidade das associações civis para propositura de ação civil pública...

Para além dos modelos tradicionais de solução de controvérsias no plano


jurídico, deve-se atentar para a denominada “procura suprimida”, representativa
da busca daqueles sujeitos que têm consciência de seus direitos, mas sentem-se
impossibilitados de reivindicá-los em casos de violações (SANTOS, 2011, p. 37), o
que, de certo modo, corresponde aos imaginários reais das coletividades diretamente
interessadas na tutela coletiva de seus direitos. Nas palavras de Santos (2011,
p. 37-38) “Não é a filantropia, nem a caridade das organizações não governamentais
que procuram; apenas reivindicam seus direitos”, fato que pode levar a uma intensa
transformação no sistema jurídico, em vias de uma “revolução democrática da justiça”
que tenha por premissa uma nova simbologia do acesso à justiça, com sensibilidade
para distinguir a “justiça dramática” da “justiça de rotina” (SANTOS, 2011, p. 46).
Ademais, o privilégio do imaginário formal no que diz respeito à legitimação
de organizações sociais para propositura de ação civil pública serve como elemento
inibidor da preparação de integrantes das próprias comunidades interessadas para
assumirem a posição de mediadores e representantes na solução de demandas e
conflitos locais e, consequentemente, da participação popular.
Asseverado isto, retoma-se a hipótese que norteou a investigação, que tem o
seguinte enunciado: o sistema legal brasileiro de tutela coletiva não é suficientemente
capaz de regular a atuação das organizações civis na propositura de ações civis
públicas, devendo ser complementado pelos imaginários reais das coletividades
humanas beneficiárias da tutela jurisdicional perseguida pelas organizações da
sociedade civil em sede de direitos difusos e coletivos em sentido estrito.
O estamento formal referente à legitimidade social para propor ação civil pública
foi identificado na ordem institucional e jurídica formal, oficialmente estabelecida
no âmbito da União pela Lei nº 7.347/85 e pelo Código de Defesa do Consumidor.
Como visto, trata-se de expediente passível de fortes críticas no âmbito das ciências
sociais, já que toma como pressuposto a prevalência do tecnicismo sobre os
saberes locais.
Já com relação aos imaginários reais, buscaram-se elementos em estudos
acerca da aproximação das ciências sociais ao tema do novo senso comum no
campo jurídico.
Como visto ao longo da argumentação que baliza o estudo, há uma dissociação
entre imaginário formal (que sustenta intervenções externas) e os diversos imaginários
locais, porém reais, advindos das populações diretamente beneficiárias da tutela
perseguida nas lides de massa. Este desencontro encaminha ao agravamento da
exclusão de coletividades representadas inadequadamente por associações que
não têm em face das mesmas vinculação material, cultural e simbólica, já que os
diferentes grupos sociais manejam imaginários distintos com base em leituras e
percepções próprias de tempo e espaço (MASKREY, 2004, p. 22).

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Arno Apolinário Junior, Ricardo da Silva Gama

Uma forma de aproximação e abertura para os imaginários reais apoia-se


naquilo que Santos (2008, p. 116-118) chama de sociologia das ausências e das
emergências, invertendo a lógica da compreensão ocidental do mundo (SANTOS,
2008, p. 95), através da dilação do presente – extraindo-lhe o máximo das dinâmicas
sociais – e contração do futuro – tornando-o escasso e merecedor de cuidado com
relação às alternativas possíveis, as quais podem ser colhidas mediante a conjugação
da técnica com os saberes locais, proporcionando um verdadeiro diálogo de saberes.
Ademais, ao se observar os requisitos vestibulares (threshold requirements)
para o conhecimento das mandatory class actions nos Estados Unidos da América,
encontra-se entre os mesmos, numa fase de certificação anterior ao litígio,
a necessidade de proteção justa e adequada dos interesses da classe. E isto é
realizado através de um juízo discricionário do Magistrado que recebe a causa, com
base em elementos teóricos, dados empíricos e mesmo em concepções subjetivas.
Ainda nesta linha, Mancuso (2001, p. 138) traz convicção no sentido de que
existe tendência de se conferir representatividade processual aos movimentos
sociais, não personificados, tratando-se de excesso de formalismo a exigência de
constituição de organizações formais para atuação em juízo, já que esta exigência
não tem qualquer relação de pertinência com a representação adequada.
Aliás, no projeto original da Lei da Ação Civil Pública brasileira existia previsão da
necessidade de verificação judicial da representatividade adequada das associações
em cada caso concreto, o que acabou por ser afastado quando da publicação da
lei (FORNACIARI, 2010, p. 83), circunstância que revela um prestígio do imaginário
formal com relação a esta questão.
Este quadro implica uma abertura para possíveis maus usos da ação civil
pública – especialmente quando há inversão do ônus da prova, recaindo o custo
de sua produção ao réu, como em muitas ações ambientais –, razão pela qual é
pertinente a sugestão de adoção de controle mais severo para conhecimento das
ações civis públicas, além de rígida punição a litigantes de má-fé.
Como se vê, para os fins deste trabalho, encontra-se confirmada a hipótese
suscitada inicialmente, podendo-se afirmar com relativa segurança e objetividade –
de acordo com os dados e marcos teóricos que dão suporte à pesquisa – que o
imaginário formal não reflete o posicionamento mais adequado acerca da legitimidade
representativa das associações civis para propositura de ações civis públicas,
devendo ser temperado pela efetiva verificação, no caso concreto, da vinculação
material, cultural e simbólica da organização social frente à comunidade diretamente
beneficiária da tutela perseguida judicialmente.
Em resposta ao problema de pesquisa, suscita-se que os limites à atuação
das associações civis como sujeitos ativos na propositura de ações civis públicas no
direito brasileiro têm sido, de modo geral, ignorados pelos operadores do direito no

166 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014
Legitimidade das associações civis para propositura de ação civil pública...

Brasil, com base no imaginário formal estabelecido sobre o tema, que aponta critérios
objetivos desvinculados da realidade social para admissão dessa modalidade de
politização do direito (ou judicialização da política), mediante adoção de uma postura
omissiva e voltada para o atendimento de exigências meramente formais.
Mostra-se assim, diante de fatos e elementos objetivos, na medida possível,
que não há em regra consideração dos elementos de vinculação material, cultural
e simbólica – integrativos dos imaginários reais das coletividades diretamente
interessadas – a fim de verificar a representação adequada pelas organizações
sociais na defesa de interesses difusos e coletivos em juízo, mediante propositura
de ações civis públicas.

Abstract: How are the limits of civil associations in the mass litigation according the Brazilian law? This
is the question to be solved in this paper. To do it, was deployed a hypothesis: the legal system is not
sufficiently prepared to regulate the adequacy representation of social organizations to propose mandatory
class actions and must be completed by the real imaginary of communities directly involved with the right
object of persecution. After a sociological approach on theme of formal and real imaginaries in reference
of adequacy representation for social organizations in mass litigation, the study direct your conclusions to
the confirmation of the research hypothesis and promotes a final discussion about the restriction of social
participation caused by this model of adequacy representation carried by the legal system.
Key words: Mandatory class action. Adequacy representation. Civil associations.

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Arno Apolinário Junior, Ricardo da Silva Gama

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


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APOLINÁRIO JR., Arno; GAMA, Ricardo da Silva. Legitimidade das associações


civis para propositura de ação civil pública no direito brasileiro: uma leitura
multidisciplinar. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014.

168 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 155-168, out./dez. 2014
Mandado de segurança: da (in)
constitucionalidade da fixação de
honorários de sucumbência e a
prospecção do julgamento pelo Supremo
Tribunal Federal da ADIN nº 4.296

Lauriano Pereira Luz


Acadêmico do 5º ano do curso de Direito da Faculdade Assis Gurgacz, Cascavel Paraná.
Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

Eduardo Hoffmann
Docente dos cursos de Direito e Medicina da Faculdade Assis Gurgacz, Cascavel, Paraná,
e docente no curso de Direito da Faculdade Sul Brasil, Toledo, Paraná. Pós-graduado em
Direito Público e em Direito Tributário pela Unisul. Mestre em Direito Processual Civil e
Cidadania pela Universidade Paranaense. Assessor Jurídico da Câmara Municipal de Toledo,
Paraná. Advogado.

Resumo: Tem este artigo como tema o mandado de segurança, em especial a fixação de honorários
advocatícios sucumbenciais nas ações dessa natureza. Ao investigar as origens do não cabimento de
honorários sucumbenciais e a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da proibição de sua fixação
pela Lei nº 12.016/2009, prospectou-se qual será o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 4.296. Para tanto, a pesquisa foi desenvolvida
por meio de abordagem qualitativa, com o emprego da técnica bibliográfica e a exploração de fontes em
livros, artigos científicos, textos legais e jurisprudência da Suprema Corte e do Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-chave: Mandado de segurança. Honorários advocatícios. Sucumbência. Constitucionalidade.
Inconstitucionalidade.

Sumário: 1 Introdução – 2 O posicionamento doutrinário acerca da fixação de honorários advocatícios


sucumbenciais nas ações de mandado de segurança – 3 A discussão sobre o tema na Ação Direta
de Inconstitucionalidade nº 4.296 – 4 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do tema –
5 Prospectando-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal na ADIN nº 4.296 – Referências

1 Introdução
Aborda-se no presente estudo o mandado de segurança, contemplando
essencialmente a discussão acerca da (in)constitucionalidade da fixação de
honorários advocatícios de sucumbência nas ações dessa natureza, prospectando-se

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014 169
Lauriano Pereira Luz, Eduardo Hoffmann

o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de


Inconstitucionalidade nº 4.296.
O writ, na qualidade de remédio jurídico de índole constitucional, foi estatuído
como direito fundamental no art. 5º, inc. LXIX,1 da Carta Política de 1988 (CF/1988).
É apto a afastar arbitrariedades cometidas por autoridade pública ou agente de
pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público, por ilegalidade ou abuso
de poder, quando o administrado se vê agredido em algum direito líquido e certo, não
sendo o caso amparado por habeas-corpus ou habeas-data.
Na lição de Meirelles, Wald e Mendes2 é o meio constitucional posto à
disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou
universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo,
líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão por ato de autoridade, que não encontra
amparo em habeas corpus ou habeas data, seja de que categoria for e sejam quais
forem as funções que exerça.
Fux,3 em corroboração, conceitua o mandado de segurança como instrumento
processual constitucional assegurado ao particular, seja pessoa física ou jurídica,
brasileiro ou estrangeiro, na defesa de direito líquido e certo, individual ou coletivo,
não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que este for lesado (tutela
repressiva) ou ameaçado de lesão (tutela preventiva) por ato ilegal, ou que implique
abuso de poder, praticado pela Administração Pública, por meio de seus agentes, na
representação direta ou indireta da entidade pública.
Ao relatar a evolução do tratamento constitucional do mandado de segurança,
Fux afirma que o advento da CF/1988 representou a efetiva conquista do Estado
4

Democrático de Direito no Brasil. Narra o autor que esse remédio processual é


previsto na Carta Magna no bojo do elenco das garantias e direitos fundamentais,
cláusula pétrea, portanto, vedando-se a sua supressão por deliberação ou
emenda constitucional.
Para o autor, o mandado de segurança, visando garantir direitos individuais
e coletivos ameaçados ou violados por ato de pessoa que exerça função pública,
na prática judiciária vem se revelando um notável instrumento eficaz no combate a
ilegalidades ou abusos de poder no exercício de medidas autoexecutórias realizadas
pelo Estado, consubstanciando uma modalidade especial de ação.
Sua importância é notada à medida que se verifica que o legislador dedicou
especial atenção regulamentando-o em lei. Assim ocorreu com a Lei nº 1.533, de

1
CF/1988, art. 5º (...) inciso LXIX − conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo,
não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de
poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
2
MEIRELLES, H. L.; WALD, A.; MENDES, G. F. Mandado de segurança e ações constitucionais. 32. ed. São
Paulo: Malheiros, 2009.
3
FUX, L. Mandado de segurança. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
4
FUX, L. Mandado de segurança. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

170 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014
Mandado de segurança: da (in)constitucionalidade da fixação de honorários de sucumbência e a...

31 de dezembro de 1951 e, atualmente, com a regulamentação infraconstitucional


contida na Lei nº 12.016, de 07 de agosto de 2009, que estabeleceu em seu
artigo 255 o não cabimento da condenação em honorários advocatícios sucumbenciais.
A fixação de honorários advocatícios em função da sucumbência processual faz
parte da sistemática jurídica nacional, conforme se denota da leitura do art. 206 do
Código de Processo Civil (CPC/1973), por decorrência do princípio da sucumbência,
impondo tal ônus àquele que injustamente dá causa à propositura de processos
judiciais, vindo a ser vencido na demanda.
Daí uma das finalidades desse mecanismo processual: a tentativa de inibição da
prática de condutas que certamente seriam encaradas judicialmente como injustas.
Com base nesse contexto é que naturalmente se questiona o não cabimento da
fixação de verba honorária sucumbencial nas ações de mandado de segurança.
Tal é a importância do tema que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 4.296, com intuito de
que seja declarada a inconstitucionalidade de alguns dispositivos da Lei do Mandado
de Segurança de 2009, Lei nº 12.016, dentre os quais o art. 25.
Dessa forma, com o fim de prospectar-se qual será o posicionamento do Supremo
Tribunal Federal – se a declaração da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade
da fixação de honorários advocatícios sucumbenciais nas ações de mandado
de segurança – são explorados adiante os diferentes posicionamentos jurídicos
apontados sobre o assunto na doutrina, na ADIN nº 4.296 e na jurisprudência do STF.

2 O posicionamento doutrinário acerca da fixação de


honorários advocatícios sucumbenciais nas ações de
mandado de segurança
Ao discorrer sobre os fundamentos constitucionais dos honorários de
sucumbência, Talamini7 defende que a imputação judicial de honorários advocatícios
atende a imposições constitucionais, não constituindo simples opção legislativa ou
favor da lei, sendo elemento relevante para a consecução de garantias fundamentais
do processo.
O autor vai além ao afirmar que a disposição constitucional de que o advogado
é essencial ao adequado desenvolvimento da jurisdição (art. 133 da CF/1988) não

5
Lei nº 12.016/2009, Art. 25. Não cabem, no processo de mandado de segurança, a interposição de embargos
infringentes e a condenação ao pagamento dos honorários advocatícios, sem prejuízo da aplicação de sanções
no caso de litigância de má-fé.
6
CPC/1973, Art. 20. A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os
honorários advocatícios. Esta verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar
em causa própria.
7
TALAMINI, E. Fundamentos constitucionais dos honorários de sucumbência: breve nota. Cadernos Jurídicos,
OAB Paraná, n. 31, p. 1-3, jul. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014 171
Lauriano Pereira Luz, Eduardo Hoffmann

cria tal direito, mas apenas o declara, reconhecendo a complexidade do ordenamento


jurídico e dos mecanismos processuais de composição dos conflitos, assim como a
imprescindibilidade desse profissional à obtenção da justiça nos casos concretos.
Em relação à verba honorária sucumbencial nos processos de mandado de
segurança, sustenta Theodoro Júnior8 que o art. 25 da Lei nº 12.016/2009 dispõe
sobre o seu não cabimento, tendo sido inserido no texto legal em consagração ao
entendimento jurisprudencial sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, na Súmula
nº 512,9 e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), na Súmula nº 105,10 acolhendo o
legislador a diretriz emanada dos Tribunais Superiores.
Para Agrícola Barbi,11 a jurisprudência do STF, consolidada na Súmula nº 512, não
deu a melhor solução possível ao assunto e desatende ao princípio da sucumbência,
que é geralmente adotado no direito das nações cultas. Relata o autor que no STJ o
assunto foi muito debatido, havendo decisões contrárias à jurisprudência do STF,12
mas aquele Tribunal acabou cedendo à jurisprudência da Suprema Corte e editou a
Súmula nº 105.
Lembra Fux13 que é regra geral do CPC/1973 imputar à parte vencida o
pagamento das custas e dos honorários advocatícios. Apesar disso, afirma o autor
que a jurisprudência do STF firmou-se no sentido contrário, de não se aplicar a regra
de sucumbência à ação mandamental, não só com o intuito de não inibir o uso desse
remédio constitucional, mas especialmente com o argumento de que esta é regida
por lei especial, sendo imune à norma geral presente na Lei Processual Civil.
No posicionamento de Medina e Araújo,14 a Lei nº 12.016/2009, ao disciplinar
infraconstitucionalmente o mandado de segurança, poderia ter resolvido um problema
histórico, mas falhou quanto ao relevante tema da fixação dos honorários advocatícios.
Defendem os autores que a vedação à fixação dessa verba sob o argumento de que a
condenação em sucumbência limitaria o acesso à justiça não subsiste, sustentando
que a única justificativa para a restrição está relacionada à proteção do poder público.
Silva,15 ao contrapor o argumento de que a condenação em honorários
sucumbenciais inibiria o acesso à justiça e reconhecendo a hipossuficiência dos
administrados em face do poder público, defende solução alternativa ao caso.
Em seu entendimento, os honorários advocatícios sucumbenciais deveriam ser

8
THEODORO JÚNIOR, H. O mandado de segurança segundo a Lei nº 12.016, de 07 de agosto de 2009. Rio de
Janeiro: Forense, 2009.
9
Súmula nº 512 do STF: Não cabe condenação em honorários de advogado na ação de mandado de segurança.
10
Súmula nº 105 do STJ: Na ação de mandado de segurança não se admite condenação em honorários
advocatícios.
11
AGRÍCOLA BARBI, C. Do mandado de segurança. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
12
Ac. no REsp. nº 17.124-0-RS, em DJU de 15.02.1993, Ac. no REsp. nº 15.468-0-RS, em DJU de 12.04.1993.
13
FUX, L. Mandado de segurança. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
14
MEDINA, J. M. G.; ARAÚJO, F. C. de. Mandado de segurança individual e coletivo: comentários à Lei nº 12.016,
de 07 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
15
SILVA, A. O novo mandado de segurança. Leme: J. H. Mizuno, 2010.

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Mandado de segurança: da (in)constitucionalidade da fixação de honorários de sucumbência e a...

fixados apenas na hipótese de procedência do pedido e concessão da segurança,


consignando-se o ônus à pessoa jurídica responsável pelo ato tido por antijurídico. No
mesmo sentido é o entendimento de Vitta.16
Para Lopes,17 os fundamentos apresentados pelas Cortes Superiores ao afastar
a verba honorária sucumbencial das ações mandamentais são variados, entre os
quais destacam-se: não haveria lide no mandado de segurança; o mandado de
segurança é ação peculiar, com legislação específica, e se assimila ao habeas corpus,
no qual também não há condenação em honorários de advogado; seria problemática
a condenação em honorários nos casos de mandado de segurança impetrado contra
ato judicial; o representante judicial do Estado já é remunerado pelos cofres públicos,
pelo que não poderia receber honorários.
Apesar dos citados fundamentos, Lopes assevera que os subsídios apresentados
em reforço destes não são lógicos e que não se pode chancelar o enriquecimento
sem causa da parte derrotada na ação mandamental, qualquer que seja ela. Segundo
o autor, aquele que, de modo injurídico, dá causa à propositura da demanda, há de
indenizar as despesas que a outra parte assumiu em função do processo, aplicando-se
também ao processo de mandado de segurança o princípio geral da sucumbência e
da vedação do enriquecimento sem causa.
No mesmo sentido é o posicionamento de Klippel e Neffa Junior,18 que
afirmam a insubsistência dos argumentos determinantes do entendimento das
Cortes Superiores, entendimento este que veio a ser positivado no supracitado
diploma legislativo.
Os professores José Carlos Barbosa Moreira19 e Yussef Said Cahali20 são mais
específicos ao impugnar os fundamentos determinantes do posicionamento do STF
(Súmula nº 512), dando resposta consistente a cada um deles, no claro anseio de
revisão do entendimento sumulado. Para esses autores, o melhor entendimento para
a matéria é o cabimento dos honorários advocatícios sucumbenciais nas ações de
mandado de segurança, devendo ser fixados tanto em desfavor da parte impetrante
quanto da parte impetrada, a depender da concessão ou não da segurança pleiteada.

16
VITTA, H. G. Mandado de segurança: comentários à Lei nº 12.016/2009. São Paulo: Saraiva, 2010.
17
LOPES, M. L. R. Comentários à nova lei do mandado de segurança. Niterói: Impetus, 2009.
18
KLIPPEL, R.; NEFFA JUNIOR, J. A. Comentários à lei de mandado de segurança (Lei nº 12.016/09): artigo por
artigo, doutrina e jurisprudência. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
19
BARBOSA MOREIRA, J. C. Mandado de segurança e condenação em honorários de advogado. Revista dos
Tribunais, RT, n. 418, p. 48-53, ago. 1970. Para o conhecimento mais aprofundado dos fundamentos
determinantes do posicionamento do STF e dos consistentes argumentos lançados pelo professor José Carlos
Barbosa Moreira em impugnação daqueles, é bastante recomendável a leitura de seu artigo Mandado de
Segurança e Condenação em Honorários de Advogado (São Paulo: RT, n. 418, p. 48-53, ago. 1970), publicado
pouco tempo após a edição da Súmula nº 512 pelo STF.
20
SAID CAHALI, Y. Honorários advocatícios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. No mesmo sentido
da nota anterior, recomenda-se a leitura dos ensinamentos do professor Yussef Said Cahali em sua obra
Honorários Advocatícios (2. ed. São Paulo: RT, 1990. p. 732-737), que teve sua 1ª edição publicada em 1978,
poucos anos após a consolidação do entendimento do STF na Súmula nº 512.

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Lauriano Pereira Luz, Eduardo Hoffmann

Nos dizeres do professor Yussef Said Cahali,21 a simples insistência com que
nossos Tribunais têm sido continuamente provocados para manifestação a respeito
dos honorários em mandado de segurança já revela a ânsia revisionista projetada
pela insatisfação do critério jurisprudencial que tem prevalecido.
Em suas edições anteriores da obra Mandado de Segurança, defendia o saudoso
Hely Lopes Meirelles o cabimento da condenação em honorários advocatícios,
consoante dispõe o art. 20 do CPC/1973, que firmou o princípio da sucumbência
em substituição ao da culpa ou dolo processual. Para o doutrinador, desde que o
mandado de segurança seja uma causa, vale dizer, uma ação civil, deveria haver a
condenação do vencido em honorários, não importando que o rito dessa ação seja
especial, mesmo porque nas demais ações especiais o princípio da sucumbência
sempre foi aplicado sem restrições.22
Também em defesa do cabimento dos honorários sucumbenciais na ação
mandamental é a lição de Garcia Redondo, Oliveira e Cramer,23 ao lembrarem
que a condenação em honorários de sucumbência desestimula o ajuizamento
de ações completamente descabidas, contribuindo para a criação de efetiva
responsabilidade processual.
Em sentido contrário, Bueno24 sustenta que a vedação aos honorários
advocatícios em mandado de segurança é a melhor solução para a espécie. Afirma
ele que, do ponto de vista do “modelo constitucional”, entendimento diverso
poderia incentivar o particular, diante da ilegalidade ou abusividade praticada pelo
Poder Público ou por quem lhe faça as vezes, no questionamento do ato perante o
Estado-juiz, a buscar, sem receio, pela verba honorária da parte contrária.
De igual forma é o posicionamento de Pereira.25 Para o autor, a base constitucional
do writ sustenta o não cabimento da fixação de verba honorária sucumbencial. Afirma
ele que há de ocorrer estímulo ao uso da ação mandamental, não se podendo
sancionar o particular em caso de insucesso da impetração.
Conforme Pereira,26 a reiteração do entendimento jurisprudencial das Cortes
Superiores – firmado nas Súmulas nº 512 do STF e nº 105 do STJ – pela Lei
nº 12.016/2009 não é inconstitucional. Não subsiste, em seu entendimento, a
sustentação de que a imprescindibilidade do advogado à administração da justiça

21
SAID CAHALI, Y. Honorários advocatícios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
22
MEIRELLES, H. L.; WALD, A.; MENDES, G. F. Mandado de segurança e ações constitucionais. 32. ed. São
Paulo: Malheiros, 2009.
23
GARCIA REDONDO, B.; OLIVEIRA, G. P.; CRAMER, R. Mandado de segurança: comentários à Lei n. 12.016/2009.
São Paulo: Método, 2009.
24
BUENO, C. S. A nova lei do mandado de segurança. São Paulo: Saraiva, 2009.
25
PEREIRA, H. V. O novo mandado de segurança: comentários à Lei nº 12.016, de 7/8/2009. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2010.
26
PEREIRA, H. V. O novo mandado de segurança: comentários à Lei nº 12.016, de 7/8/2009. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2010.

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Mandado de segurança: da (in)constitucionalidade da fixação de honorários de sucumbência e a...

(art. 133 da CF/198827) justificaria a fixação da verba honorária sucumbencial nas


ações de natureza mandamental.
Nesse tumultuado contexto – divergências doutrinárias, posicionamentos
jurisprudenciais firmados em súmulas e disposição infraconstitucional afirmando o
não cabimento da condenação em honorários advocatícios nas ações de mandado
de segurança – é que surge um novo ingrediente a estimular a discussão sobre o
assunto: a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.296, proposta pelo Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

3 A discussão sobre o tema na Ação Direta de


Inconstitucionalidade nº 4.296
Na petição inicial da ADIN nº 4.296, o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) sustenta que, ao disciplinar as hipóteses de cabimento
do mandado de segurança, o legislador não preservou a amplitude desta ação de
natureza constitucional, tendo a Lei nº 12.016/2009 violado a Constituição Federal,
na medida em que a apequenou por razões meramente de proteção ao poder público
e de suas autoridades.
Complementa o Conselho afirmando que o diploma legal em questão estabeleceu
severas limitações para o uso de um instituto essencial para a proteção dos direitos
individuais e coletivos, residindo aí a razão para proposição da ADIN nº 4.296.
Impugnando a constitucionalidade do não cabimento da condenação ao
pagamento de honorários advocatícios nas ações de mandado de segurança, previsto
no art. 25 da Lei do Mandado de Segurança, o Conselho defende que tal dispositivo
ofende a literalidade do art. 133 da CF/1988.
Asseverando a indispensabilidade do advogado à administração da justiça,
reconhecida pelo texto constitucional no dispositivo supracitado, e associando a
verba honorária de sucumbência à mantença desse profissional, assim como à sua
natureza alimentar, o Conselho assegura ser inconstitucional a previsão legal do
art. 25 da Lei do Mandado de Segurança, dizendo que também o são as Súmulas
nº 512 do STF e nº 105 do STJ. Nas palavras sustentadas pelo Conselho Federal
(p. 53-54 da petição inicial):

A questão, assim, é que o dispositivo ora impugnado revela-se


inconstitucional por desmerecer o trabalho dos advogados em mandado
de segurança, violando, de consequência, o art. 133 da Constituição
Federal ao proclamar que o advogado é indispensável à administração
da Justiça, vez que a existência deste profissional é iniludível e depende
do recebimento de honorários, que é a forma de sua remuneração. [...]

27
CF/1988, Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e
manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014 175
Lauriano Pereira Luz, Eduardo Hoffmann

De pontuar a relevância deste reconhecimento constitucional [...], que


naturalmente não teve por fim constituir uma casta profissional, mas está
indissociavelmente atado às garantias e direitos individuais e sociais,
quando estes direitos são ameaçados ou violados por ato de autoridade
pública, já que o advogado dispõe de recursos técnicos para, no manejo
dos instrumentos processuais adequados, trabalhar para solucioná-los
através do Judiciário.

Para o Conselho, não é crível, tampouco razoável, que o jurisdicionado tenha


que contratar advogado para se defender de ato abusivo ou ilegal promovido pelo
poder público e este não sofra nenhum tipo de penalização, caso vencido.
Postula o Conselho que, se o poder público viola direito líquido e certo do
jurisdicionado e este necessita contratar advogado para defender seus interesses e
ver reconhecida, judicialmente, a ilegalidade ou abusividade perpetrada, é indiscutível
a inconstitucionalidade da previsão legal de não cabimento da condenação ao
pagamento dos honorários advocatícios, posto que a condenação do vencido na verba
sucumbencial é consequência natural e inexorável de toda e qualquer lide – com
supedâneo legal no CPC/1973 (art. 20) e no Estatuto da Advocacia e da Ordem dos
Advogados do Brasil, Lei nº 8.906/1994 (arts. 2228 e 2329).
Ultimando a defesa da inconstitucionalidade do dispositivo em questão, o
Conselho afirma que a verba sucumbencial tem por escopo o necessário caráter
pedagógico que decorre de toda e qualquer lide, alegando que não é justo para
aquele que se vir atingido por ato ilegal ou abusivo da autoridade pública arcar,
integralmente, com os honorários de seu advogado, enquanto ao Estado nenhuma
penalidade pecuniária se imporá.
O Presidente da República, adotando parecer da Consultoria-Geral da
União, prestou informações ao STF em relação à ADIN nº 4.296 afirmando serem
constitucionais os dispositivos da Lei do Mandado de Segurança objetos de
questionamento nessa demanda.
Segundo o referido parecer, os argumentos jurídicos aviltados pelo Conselho
Federal da OAB foram limitados a afirmações genéricas, sendo insuficientes para a
caracterização do vício de constitucionalidade e para abalar a validade da lei.
Em defesa da constitucionalidade do não cabimento da condenação em
honorários de sucumbência nas ações de mandado de segurança, argumenta-se no
parecer que o Código de Processo Civil não se aplica às ações especiais; que as ações

28
Lei nº 8.906/1994, art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos
honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência. [...]
29
Lei nº 8.906/1994, Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência,
pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer
que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.

176 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014
Mandado de segurança: da (in)constitucionalidade da fixação de honorários de sucumbência e a...

constitucionais não rendem ensejo à condenação em honorários advocatícios; que a


possibilidade de condenação em honorários advocatícios nos casos de denegação da
segurança poderia inibir a impetração do mandado de segurança, amesquinhando a
eminente função exercida pelo writ constitucional; que a concessão da segurança, com
a consequente anulação do ato tido por ilegal ou abusivo, já contém em si o caráter
pedagógico, além do que a autoridade coatora poderá sempre ser responsabilizada
em sede administrativa; e, por fim, que o dispositivo legal impugnado não ofende a
Constituição, tendo apenas positivado um entendimento jurisprudencial mais do que
consagrado, estabelecido há mais de 40 anos e sumulado pela Suprema Corte.
Quanto à alegação de que houve, com a edição da Lei do Mandado de Segurança,
violação do art. 133 da CF/1988, o parecer indica que esta não deve prosperar, haja
vista que tal dispositivo constitucional não tutela o direito absoluto aos honorários de
sucumbência e nem sequer é possível extrair de seu conteúdo esse pretenso direito
quando o seu texto se refere à indispensabilidade do advogado.
A Câmara dos Deputados, por seu Presidente, prestou informações ao STF
sustentando que a lei impugnada na ADIN nº 4.296 foi processada pelo Congresso Nacional
dentro dos mais estritos trâmites constitucionais e regimentais inerentes à espécie.
O Senado Federal, por meio de sua Advocacia-Geral, prestou informações ao
STF pleiteando pela improcedência da ADIN nº 4.296, por considerar que faltou
plausibilidade jurídica aos argumentos tecidos na petição inicial.
Em seu parecer, essa Instituição argumenta que a condenação em honorários
advocatícios poderia resultar em desestímulo ao uso do writ, reduzindo a máxima
efetividade desta garantia constitucional; que não se afigura crível a insurgência
quanto à inconstitucionalidade de questão há muito pacificada e sumulada pela
Suprema Corte; que nas outras ações constitucionais também não há condenação
em honorários advocatícios; e que o mandado de segurança constitui verdadeira
garantia constitucional, com regras próprias, ao qual não se pode estender a lógica
referente à generalidade dos processos.
O Advogado-Geral da União, em defesa da constitucionalidade do não cabimento
da condenação em honorários de sucumbência nas ações de mandado de segurança,
sustenta que o art. 25 da Lei do Mandado de Segurança tão somente positivou
o entendimento da Suprema Corte já disposto na Súmula nº 512, atribuindo-lhe
natureza de disposição legal.
Para o Advogado-Geral da União, o legislador ordinário federal optou pela não
incidência do art. 20 do CPC/1973 ao rito do mandado de segurança, em razão
da especial natureza dessa espécie de procedimento e dos objetivos visados pelo
Constituinte originário, que pretendeu conferir a maior efetividade possível ao writ,
o que restaria inviabilizado pela possibilidade de condenação ao pagamento de
honorários advocatícios sucumbenciais.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014 177
Lauriano Pereira Luz, Eduardo Hoffmann

Em impugnação à alegação inicial de que a vedação imposta pelo questionado


art. 25 da Lei nº 12.016/2009 violaria o art. 133 da CF/1988, o Advogado-Geral da
União valeu-se da doutrina de José Afonso da Silva, que assevera que essa norma
constitucional limita-se a consagrar um princípio basilar do funcionamento do Poder
Judiciário, cuja inércia requer um elemento técnico propulsor.30
Completa o Advogado-Geral da União, afirmando que não há como extrair do
art. 133 da Lei Maior exegese no sentido de que, no mandado de segurança, que
é uma ação constitucional, caberia a condenação ao pagamento de honorários
advocatícios sucumbenciais.
Finalizando sua defesa, o Advogado-Geral da União sustenta que a vedação de
condenação ao pagamento de referida verba não viola o dispositivo constitucional
mencionado, sendo válido o art. 25 da Lei nº 12.016/2009.
Para o Procurador-Geral da República, o dispositivo impugnado na inicial
apenas formalizou legalmente uma prática tradicional já estampada na jurisprudência
sumulada pelo Supremo Tribunal Federal, na Súmula nº 512, tendo o legislador
apenas incorporado na lei o entendimento reiterado desta Corte.
Acrescenta o Procurador-Geral da República que a Constituição não trata de
pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais nas ações de mandado de
segurança sequer reflexamente, assim como que tal medida processual, na qualidade
de garantia constitucional, requer a maior acessibilidade jurisdicional possível,
também justificando o não cabimento da condenação na referida verba.
Por fim, o parecer do Procurador-Geral da República foi emitido em consonância
com as defesas já expendidas pelo Presidente da República, pelo Senado Federal
e pelo Advogado-Geral da União, postulando pela improcedência do pedido, com
o reconhecimento da constitucionalidade do não cabimento da condenação ao
pagamento de honorários advocatícios nas ações de mandado de segurança.
Essas são, enfim, as argumentações dos atores atuantes na ADIN nº 4.296
– postulando o Conselho Federal da OAB pela inconstitucionalidade do dispositivo
impugnado e o Presidente da República, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal,
o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República pela constitucionalidade
do dispositivo.

4 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do


tema
O Supremo Tribunal Federal há muito, na sessão plenária realizada em
03.12.1969, firmou posicionamento contrário à fixação de honorários advocatícios

30
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2008. p. 613.

178 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014
Mandado de segurança: da (in)constitucionalidade da fixação de honorários de sucumbência e a...

sucumbenciais nas ações mandamentais, editando a Súmula nº 512, que assim


dispõe: não cabe condenação em honorários de advogado na ação de mandado
de segurança.
Tal entendimento foi estatuído depois de reiteradas discussões sobre o
tema, tendo como precedentes, especialmente, o julgamento do RE 61.097,31
do RE 65.572,32 do MS 19.07133 e do RE 66.843.34 No entanto, por mais que o
entendimento da Suprema Corte sobre o assunto tenha se solidificado por meio da
supracitada Súmula, tal não se deu sem acaloradas discussões.35
No julgamento do RE 61.097, por exemplo, o Ministro Amaral Santos sustentou
firmemente que o princípio da sucumbência atinge todo e qualquer processo, em
contraposição à sustentação do Ministro Eloy da Rocha, que afirmou ser aplicável
este princípio apenas aos processos regulados pelo Código de Processo Civil e não
aos processos regulados por lei especial, como o mandado de segurança.
Nas palavras do Ministro Adaucto Cardoso, em convergência com o Ministro
Amaral Santos, o princípio da sucumbência, que deve ser entendido com as cautelas
naturais à interpretação de todas as leis, é um ideal cuja aplicação devemos dilatar
quanto possível e sempre que a autoridade arbitrária ou prepotente for responsável
por atos que se corrijam por meio de mandado de segurança. Assim, para o Ministro,
a condenação nos honorários de advogado deve ser pronunciada com a concessão
da segurança, a fim de que a autoridade arbitrária seja solidariamente responsável
com a administração.

31
O ANTIGO IMPOSTO DE VENDAS E CONSIGNAÇÕES NÃO INCIDIA SOBRE O VALOR DA TAXA COBRADA POR GUIA
E DEVIDA AO INSTITUTO DO AÇÚCAR E DO ÁLCOOL. NÃO CABE, EM MANDADO DE SEGURANÇA, CONDENAÇÃO
AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS DE ADVOGADO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO
EM PARTE (RE 61097, Relator(a): Min. AMARAL SANTOS, Tribunal Pleno, julgado em 12/09/1968, EMENT
VOL-00788-03 PP-00820 RTJ VOL-00051-03 PP-00805).
32
CONTRATO CELEBRADO COM A CAIXA ECONÔMICA PARA FINANCIAMENTO. IMPOSTO DEVIDO DEPOIS
DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 5. SÚMULA N. 468. PROVIMENTO DO RECURSO (RE 65572, Relator(a):
Min. THEMISTOCLES CAVALCANTI, Segunda Turma, julgado em 08/10/1968, DJ 22-11-1968 PP-*****).
33
1) DIÁRIA DE BRASÍLIA. CONSULTOR JURÍDICO E ASSISTENTES JURÍDICOS DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO,
LOTADOS NA CAPITAL. SEGURANÇA CONCEDIDA. PRECEDENTES DO STF. 2) HONORÁRIOS NÃO DEVIDOS
(RE 65.097, 12.9.68) (MS 19071, Relator(a): Min. VICTOR NUNES, Tribunal Pleno, julgado em 31/10/1968,
DJ 18-11-1968 PP-***** EMENT VOL-00747-02 PP-*****).
34
Não há condenação em honorários em processo de mandado de segurança (RE 66843, Relator(a):
Min. THEMISTOCLES CAVALCANTI, Segunda Turma, julgado em 11/04/1969, DJ 23-05-1969 PP-02157
EMENT VOL-00765-03 PP-01008).
No
STJ, a edição da Súmula nº 105, em confirmação ao entendimento do STF, foi aprovada, por maioria de
votos, em sessão plenária realizada no dia 26/05/1994, tendo como precedentes o EREsp 27.879/RJ, o
EREsp 880/RS, o EREsp 18.649/RJ e o EREsp 36.285/RS.
35
Confrontos de entendimento igualmente marcaram a edição da Súmula nº 105 pelo STJ. Defendendo o não
cabimento dos honorários advocatícios sucumbenciais nas ações de mandado de segurança, recomenda-se
sejam lidos os votos proferidos nos EREsps 27.879/RJ e 880/RS pelo Ministro Nilson Naves (que contém
farta construção doutrinária e jurisprudencial) e nos EREsps 36.285/RS e 880/RS pelo Ministro Antônio de
Pádua Ribeiro. Contrariamente, sustentando o cabimento da condenação na referida verba, leiam-se os votos
proferidos no EREsp 27.879/RJ pelo Ministro Cesar Rocha (também contendo rica construção doutrinária e
jurisprudencial) e no EREsp 880/RS pelos Ministros Eduardo Ribeiro, Peçanha Martins, Humberto Gomes de
Barros e Cesar Rocha.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014 179
Lauriano Pereira Luz, Eduardo Hoffmann

Apesar das divergências de posicionamento de seus Ministros, a Suprema


Corte, por maioria de votos, entendeu não ser cabível a condenação em honorários
sucumbenciais nas ações mandamentais, convertendo tal entendimento em sua
Súmula nº 512.
Nos processos precedentes à edição dessa súmula, os argumentos que
ampararam a disposição sumular cingiram-se, essencialmente, na discussão
acerca da não existência de parte vencedora ou vencida nas ações de mandado de
segurança, uma vez que sua sentença não importa em trânsito em julgado enquanto
pendente o prazo prescricional para propositura da demanda na via ordinária; na
ausência de defesa da autoridade tida como coatora nas ações mandamentais; na
não aplicação do princípio da sucumbência às ações reguladas por lei especial, salvo
por disposição expressa nesse sentido; na analogia aos processos de habeas corpus,
em que não há condenação em honorários sucumbenciais; no óbice ao acesso à
justiça que representaria a potencial condenação em verba honorária; no potencial
desencorajamento do uso da garantia constitucional que consiste o mandado de
segurança; e na impossibilidade de destinação de honorários sucumbenciais aos
procuradores da autoridade pública tida como coatora, pois estes já são remunerados
pelas respectivas instituições públicas a que são vinculados.
Já a argumentação contrária ao verbete sumular apoiou-se, principalmente, na
afirmação de que há perfeita formação da relação processual nas ações de mandado
de segurança; na distinção entre as ações mandamentais, de natureza cível, e o
habeas corpus, de natureza penal; no potencial encorajamento das autoridades
públicas a praticarem atos de prepotência, dada a inexistência de risco de condenação
em verba honorária; na aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Civil
aos processos de mandado de segurança; e na comparação da ação mandamental
com as ações de natureza cível, em que se aplica o princípio da sucumbência.
Vencidos os argumentos favoráveis à fixação dos honorários sucumbenciais,
pacificou-se o entendimento do Supremo por meio da Súmula nº 512,36 que, na
ausência de disposição legal expressa, passou a ser aplicada indistintamente às
ações de mandado de segurança pelos Juízos e Tribunais pátrios.37

36
As decisões da Suprema Corte posteriores à edição da Súmula nº 512 confirmaram sua aplicação:
RE 100.105/RS, Relator Min. Moreira Alves, Julgamento em 08/11/1983, Segunda Turma; RE 106.482/RS,
Relator Min. Sydney Sanches, Julgamento em 22/04/1988, Primeira Turma; RE 108.083/RS, Relator
Min. Francisco Rezek, Julgamento em 25/10/1988, Segunda Turma; AgR RE 412.806/SC, Relator
Min. Sepúlveda Pertence, Julgamento em 05/09/2006, Primeira Turma.
37
Também no STJ, posteriormente à edição de sua Súmula nº 105, as decisões confirmaram a orientação
sumulada: REsp 56.997/RS, Relator Min. Edson Vidigal, Julgamento em 04/06/1996, Quinta Turma; EDcl
no REsp 577.396/PE, Relator Min. Castro Filho, Julgamento em 07/11/2006, Terceira Turma; EDcl no AgRg
no REsp 906.245/RJ, Relator Min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP), Julgamento em
06/08/2009, Sexta Turma; AgRg no REsp 1.202.168/MG, Relatora Min. Diva Malerbi (Desembargadora
convocada do TRF 3ª REGIÃO), Julgamento em 27/11/2012, Segunda Turma.

180 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014
Mandado de segurança: da (in)constitucionalidade da fixação de honorários de sucumbência e a...

Decorrência natural do avanço do processo legislativo e do ordenamento


jurídico é a incorporação ao texto legal da jurisprudência pacificada nos Tribunais, o
que ocorreu tão logo a matéria teve sua regulamentação atualizada ao contexto do
ordenamento jurídico instituído pela CF/1988 – com o artigo 25 da Lei do Mandado
de Segurança.

5 Prospectando-se o posicionamento do Supremo Tribunal


Federal na ADIN nº 4.296
Construída a necessária estrutura conceitual – coletânea de posicionamentos
doutrinários, identificação dos argumentos dos diferentes sujeitos atuantes na
ADIN nº 4.296 e identificação do posicionamento jurisprudencial do STF – possível
se torna a prospecção de qual será a decisão da Suprema Corte na referida ADIN,
se a declaração da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade do art. 25
da Lei do Mandado de Segurança no que diz respeito à fixação dos honorários
advocatícios sucumbenciais.
Nesse propósito, importante a retomada da essência dos entendimentos
elencados, buscando-se uma reflexão sobre como se dará a evolução do julgamento
da ADIN nº 4.296.
Analisando-se o posicionamento da doutrina pesquisada, percebe-se que a maior
parte dos autores, ao discorrer sobre o tema, considera um equívoco o entendimento
do STF presente na Súmula nº 512, assim como a adoção pelo Poder Legislativo de
tal entendimento ao positivá-lo no art. 25 da Lei nº 12.016/2009.
Explorando-se a arguição expendida pelo Conselho Federal da OAB na ADIN
nº 4.296, nota-se que este falhou na sustentação de inconstitucionalidade do não
cabimento da verba honorária sucumbencial na ação mandamental. Com todo o respeito
que merece esta Instituição, é de se reconhecer que sua arguição apenas tangenciou o
tema, deixando de amparar o pleito de inconstitucionalidade em argumentos robustos
o suficiente para colocar em dúvida o até então entendimento jurisprudencial (Súmula
nº 512 do STF e nº 105 do STJ) e a consequente positivação desse entendimento
pelo legislador infraconstitucional (art. 25 da Lei nº 12.016/2009).
A plausibilidade de tal afirmação pode ser verificada em leitura relativamente
atenta da proposição inicial do Conselho, que postula pela inconstitucionalidade do
dispositivo impugnado com argumentação genérica, embasando-a, em essência, no
reconhecimento constitucional da indispensabilidade do advogado à administração
da justiça (art. 133 da CF/1988) e no caráter alimentar que caracteriza a verba
honorária sucumbencial.
Poderia o Conselho ter explorado o tema com enfoque mais específico em relação
aos argumentos pelos quais a jurisprudência já havia pacificado o entendimento por

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014 181
Lauriano Pereira Luz, Eduardo Hoffmann

meio da edição das supracitadas Súmulas.38 Mas deixou de fazê-lo, comprometendo


seriamente o sucesso de seu pleito, uma vez que limitou a discussão pela Suprema
Corte aos argumentos que lançou.
Diversamente do que fez o Conselho, a argumentação erigida pelos demais
atuantes da ADIN nº 4.296 – especialmente as teses apresentadas pelo Presidente
da República, pelo Advogado-Geral da União e pelo Procurador-Geral da República –
fornece forte sustentação à declaração de constitucionalidade do dispositivo
então impugnado.
Consigne-se, ainda, que o STF solidificou seu entendimento sobre o não
cabimento da citada verba sucumbencial há mais de 4 (quatro) décadas, quando, em
03.12.1969, seu plenário aprovou a edição da Súmula nº 512.
Destaque-se, também, que, quando o Poder Legislativo regulamentou o
mandado de segurança atualizando-o ao contexto do ordenamento jurídico instituído
pela CF/1988 – por meio da Lei nº 12.016/2009 –, nada mais fez em relação ao tema
do que confirmar no texto legal o entendimento sumulado pelo STF e correntemente
adotado pela jurisprudência nacional.
Em acréscimo, assinale-se o fato de que o STF é uma Corte Política, que exerce
relevante papel na sustentação do Poder Público, o que sugere que suas decisões
são mais comedidas quando se envolvem potenciais ônus aos cofres públicos, como
no caso do dispositivo legal impugnado.
Por fim, também pertinente nesse contexto é a constatação de que o STF, como
Corte Suprema que é, não se mostra tão suscetível a mudanças de posicionamento
sem que haja embasamento robusto nas sustentações que lhe são submetidas
a julgamento.
Nesse cenário, frente às evidências relacionadas – principalmente considerando
a fragilidade dos argumentos elencados pelo Conselho Federal da OAB –, é de
se imaginar que a maior probabilidade de solução à lide em discussão seja a
declaração da constitucionalidade do dispositivo legal, enterrando-se em definitivo o
questionamento acerca do não cabimento dos honorários advocatícios sucumbenciais
nas ações de mandado de segurança.
Esta é, então, a prospecção do julgamento do STF na ADIN nº 4.296, em relação
ao cabimento dos honorários advocatícios sucumbenciais nas ações de mandado de
segurança: a Corte Suprema declarará a constitucionalidade do não cabimento dessa
verba, confirmando seu entendimento sumulado e a validade do dispositivo legal
ora impugnado.

38
Várias seriam as sustentações possíveis para se questionar a orientação jurisprudencial que deu origem à
Súmula nº 512 do STF, como pode ser verificado nas obras dos professores José Carlos Barbosa Moreira e
Yussef Said Cahali (ver referência em notas anteriores).

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Mandado de segurança: da (in)constitucionalidade da fixação de honorários de sucumbência e a...

Abstract: This article has as it’s main theme the injunction, in particular the setting of attorney fees
in actions of this nature. While investigating the origins of the appropriateness of attorney fees and
constitutionality or unconstitutionality of the ban on its fixation by Law nº 12.016/2009, prospected up
what will be the position of the Supreme Court judgment in the Direct Action of Unconstitutionality (ADIN)
nº 4.296. Therefore, the research was conducted through a qualitative approach, with the use of technical
literature and operation of sources in books, scientific papers, legal texts and jurisprudence of the Supreme
Court and Superior Court.
Key words: Writ of safety. Attorney fees. Loss. Constitutionality. Unconstitutional.

Referências
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12 de setembro de 1968.
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Acórdão de 8 de outubro de 1968.
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de 31 de outubro de 1968.
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R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014 183
Lauriano Pereira Luz, Eduardo Hoffmann

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

LUZ, Lauriano Pereira; Hoffmann, Eduardo. Mandado de segurança: da (in)


constitucionalidade da fixação de honorários de sucumbência e a prospecção do
julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADIN nº 4.296. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184,
out./dez. 2014.

184 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 169-184, out./dez. 2014
O Novo Código de Processo Civil e
o sistema de precedentes judiciais:
pensando um paradigma discursivo
da decisão judicial

Cláudia Albagli Nogueira


Doutoranda em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Professora de Teoria do
Direito da Universidade Federal da Bahia e da Faculdade Baiana de Direito.

Sumário: 1 Introdução – 2 O Novo Código de Processo Civil – 3 Precedente: distinções e conceitos


fundamentais (ratio decidendi e obter dictum) – 4 O sistema de precedente judicial no NCPC: qual
racionalidade? – Conclusão – Referências
Resumo: A Teoria do Direito nos aponta a superação de um sistema lógico-dedutivo, baseado no dogma
da subsunção, para um paradigma jurídico discursivo, que incorpora a moral e entende o processo como
espaço indispensável à efetivação do direito, por possibilitar a construção democrática de argumentos.
Nessa esteira, o Novo Código de Processo Civil brasileiro, prestes à aprovação pelo Congresso Nacional,
apresenta reformulação de todo o sistema processual, inclusive, com a introdução de um capítulo para
a regulamentação de um sistema de precedentes judiciais. Pensar esse sistema de precedentes na
concepção jurídica atual e procurar delimitar possíveis limites à preservação da racionalidade da decisão
judicial é o que se procura fazer no trabalho que se segue. Os conceitos de auditório universal, pretensão
de correção e consenso são trabalhados como possíveis balizas da decisão judicial. Conclui-se pela
importância da oficialização do sistema de precedente judicial para a celeridade da Justiça e resguardo da
segurança, igualdade e previsibilidade das decisões judiciais.

Palavras-chave: Novo Código de Processo Civil. Precedentes judiciais. Pós-positivismo.

1 Introdução
Já é consolidado o entendimento de que vivemos um novo tempo no direito.
Sem adentrar nos debates terminológicos,1 não há como negar a existência de uma

1
Não há unanimidade quanto ao modo de denominar a fase atual do direito. O termo mais comum entre
os autores brasileiros é “pós-positivismo”, expressão criticada por Dimitri Dimoulis, para quem a referida
expressão é praticamente desconhecida fora do Brasil, sendo usado esporadicamente em países de língua
alemã. Ele ressalta que o erro do termo está em asseverar o fator cronológico, sem expressar um novo
ideário. E, mais ainda, mesmo cronologicamente não se pode dizer que, como simples crítica ao positivismo,
seja novidade, pois se faz críticas ao positivismo desde o final do século XIX (DIMOULIS, Dimitri. Positivismo
jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico político. São Paulo: Método,
2006, p. 48-63). Suzanna Pozollo, por sua vez, fala em “Positivismo Inclusivo” para caracterizar o ideário
jurídico que se apresenta (POZOLLO, Suzanna. DUARTE, Écio Oto Ramos. Neoconstitucionalismo e positivismo
jurídico: as faces da Teoria do Direito em tempos de interpretação moral da Constituição. São Paulo: Landy,
2010). Há, ainda, autores, a exemplo de Fredie Didier Jr., que falam em “neopositivismo” (DIDIER JR., Fredie.
Sobre a teoria geral do processo: essa desconhecida. Salvador: Juspodivm, 2012).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014 185
Cláudia Albagli Nogueira

nova visão, que supera o paradigma positivista e introduz outro modo de pensar e
aplicar o direito.
Essa mudança se opera tanto no plano universal, já que autores de várias
partes do mundo produzem reflexões teóricas, cada um a partir de sua ótica,2
como também no plano local, em que encontramos diversos trabalhos que
formam quase que um entendimento unívoco sobre o quadro de mutações que
se apresentam.3
Capitaneado pelo processo de implementação da Constituição Federal de 1988
e restabelecimento do estado democrático de direito, o que temos no Brasil é um amplo
processo de fortalecimento das instituições democráticas, pari passu à normatização
dos princípios e consequentes transformações no modo de interpretar e aplicar o
direito. Esse é o quadro que temos, que está e com o qual convivemos de modo bem
próximo, especialmente na última década, quando cresceu demasiadamente o número
de obras abordando o neopositivismo, neoconstitucionalismo e neoprocessualismo,
nomenclaturas utilizadas para referenciar as transformações ocorridas nos diferentes
ramos do direito pátrio.
Seriam, assim, alterações vindas no bojo desse novo movimento jurídico: a
consideração dos princípios no processo de interpretação e aplicação do direito;
a ascensão do papel da hermenêutica como teoria interpretativa a serviço da
superação da concepção formalista do direito; o pensamento problemático do
direito; a valorização do discurso como instrumento para a construção de interações
comunicativas que têm a tarefa de integrar o processo de interpretação e aplicação da
norma; e a processualização, na compreensão do processo como espaço necessário
para a efetivação do direito.
O que nos interessa, contudo, é procurar analisar as possíveis implicações a
ocorrer a partir da promulgação e entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil

2
Por todos, mencionamos: DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 2. ed. Tradução: Nelson Boeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2007; ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2011; PECZENICK, Aleksander. On law and reason: law and filosophy library. Vol.
8. Berlim: Springer, 2009; POZOLLO, Suzanna; DUARTE, Écio Oto Ramos. Neoconstitucionalismo e positivismo
jurídico: as faces da teoria do direito em tempos de interpretação moral da Constituição. São Paulo: Landy,
2010; ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios. São Paulo: Malheiros,
2006; MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução Waldéa Barcellos. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
3
Dentre muitos: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico político. Coleção Professor Gilmar Mendes. São Paulo: Método, 2006; GUERRA FILHO,
Willis Santiago. A autopoiese do direito na sociedade pós-moderna: introdução a uma teoria sistêmica. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1997; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2009; ZANETTI JR., Hermes. Processo constitucional: modelo constitucional do processo civil
brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo
da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís
Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008, p. 327-378.

186 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014
O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo...

(NCPC),4 mais precisamente no que se refere à menção a um sistema de precedentes


conforme se infere dos seus artigos 520 a 522.5
Não obstante já tenhamos exemplos de disposições legais que nos remetem a
essa realidade,6 a abertura pelo NCPC de um capítulo para tratar de um sistema de
precedentes é muito significativa e nos impele a pensar sobre quais alterações se
seguirão no ordenamento jurídico e, também, no mecanismo de decisão, já que o juiz
deixará de pensar a decisão numa repercussão exclusivamente endoprocessual para
pensá-la prospectivamente e para além do processo, porque poderá transmudar-se
em regra geral, como é da natureza do precedente.
O propósito, pois, é debater um pouco do NCPC no que se refere aos precedentes
judiciais, realçando o aspecto discursivo, na compreensão de que nesta dimensão
estará o nó górdio da atividade judicial nos próximos tempos.
Para tanto, dividimos o nosso trabalho em quatro partes, a saber: uma
primeira parte em que irá ser abordada a superação do sistema fundado no dogma
da subsunção para um sistema discursivamente construído, procurando entender
a relevância e o papel do processo como espaço de delimitação do discurso e
direito fundamental do cidadão, bem como a intrínseca relação entre direito e moral
estabelecida no discurso racionalmente elaborado. Num segundo momento será
explicado o NCPC e especificada a parte dos precedentes judiciais e o limite das
disposições legais sobre. Na terceira parte, delimitaremos o conceito de precedente
judicial e as principais noções a ele associadas e, por fim, na quarta parte, uma
reflexão sobre as decisões judiciais dentro dessa nova lógica processual, na busca
de apresentar alguns possíveis limites para o resguardo da racionalidade na sentença
judicial e funcionamento do sistema de precedentes.

4
BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei do Senado nº 8.046, de 2010. Código de Processo Civil.
Revoga a Lei nº 5.869, de 1973. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_ mostra
rintegra;jsessionid=4CFB5D5581A0125C71FAEC6A8CB0AD20.node2?codteor=831805&filename=PL+8046
/2010>. Acesso em 13 abr. 2013.
5
Os artigos indicados são do projeto em trâmite na Câmara dos Deputados, revisado até março de 2013,
podendo, contudo, sofrer eventuais alterações na numeração até ulterior consolidação do novo texto do Código
de Processo Civil (CPC).
6
Já se encontram no nosso sistema exemplos de mecanismos processuais que funcionam como precedentes
judiciais, em razão do caráter vinculativo, embora em diferentes graus. Assim temos previsões de caráter
meramente persuasivo: art. 285-A do CPC, que autoriza o juiz a julgar improcedente prima facie a inicial caso
trate de ação repetitiva, com matéria somente de direito e sobre a qual já haja decisão de improcedência
anterior pelo mesmo juízo; o incidente de uniformização de jurisprudência previsto nos artigos 476 a 479 do
CPC, dos embargos de divergência (art. 546 do CPC), bem como do recurso especial por dissídio jurisprudencial
(art. 105, inciso III, alínea “c” da CF/88). As com caráter impeditivo ou obstativo: Súmulas do STJ ou do STF
(art. 518, §1º do CPC), impedimento ao reexame necessário (art. 475, §3º do CPC) e o impedimento à revisão
da matéria recursal, como se extrai do art. 557 do CPC. E de caráter vinculante: a própria súmula vinculante
prevista no art. 103-A da Constituição Federal, o entendimento consolidado na súmula de cada um dos
tribunais, que tem força vinculante em relação ao próprio tribunal e o controle difuso de constitucionalidade
que com a sua objetivação tornam-se obrigatórios para o STF e todos os demais órgãos jurisdicionados
do país.

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Cláudia Albagli Nogueira

1.1 Do dogma da subsunção ao paradigma discursivo:


o processo como espaço e limite de construção do
discurso
Dentre as muitas mudanças implementadas na Teoria do Direito a partir da
reformulação do ideário positivista, a superação do dogma da subsunção7 está
como uma das principais revoluções incorporadas, porque modifica a metodologia da
decisão judicial, impondo um novo modo de raciocínio jurídico.
Não se estar a falar em abandono da técnica de subsunção,8 porque ainda válida
para a grande maioria das situações em que o juiz irá decidir com base em regra
diretamente aplicável ao caso concreto. O que há é a assimilação de outras técnicas
de decisão judicial tendentes a atender àquelas situações em que se apresentam
os chamados casos difíceis, ou seja, demandas judiciais em que não se encontra
resposta a partir da simples aplicação de regra, fazendo-se necessário o recurso a
outros modos de resolução do conflito com vistas a resguardar a justiça da decisão.
São casos conflituosos em que não há como decidir com base no sistema
lógico-dedutivo de aplicação da regra, seja porque esta não atende à excepcionalidade
da demanda ou em virtude da oposição de um (ou mais) princípio(s) previsto(s) no
sistema jurídico e aplicável ao caso concreto.
Como consequência imediata, está a exigência de uma maior carga argumentativa,
pois, se estamos a falar da excepcionalidade, que é a não aplicação da regra, pela
sua superação ou pela sobreposição de um princípio, indispensável que estejam
fartamente expressas as razões para a alternativa por outro sistema de decisão
judicial, sendo o mais comumente apontado a técnica de ponderação.9 Cabe ao juiz
o compromisso com a densidade argumentativa que demonstre a plausibilidade e
resguarde a racionalidade da decisão judicial.
É fundamental que tenhamos em conta que para a superação de uma regra faz-
se necessária a concretização do ideal de justiça que justifique a medida, servindo
este como um mecanismo regulador. Isto porque o atendimento a uma norma
positivada também traz um componente moral10 e para a sua superação deve haver
uma justificativa igualmente admissível.

7
O denominado “dogma da subsunção” é expressão conceitual do positivismo jurídico e representa o raciocínio
silogístico aplicado ao direito, tomando como premissa maior a norma, premissa menor o fato e a conclusão
como sendo a decisão judicial.
8
Para uma crítica ao abandono da técnica de subsunção, ler ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a
“Ciência do Direito” e o “Direito da Ciência”. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal da Bahia, Homenagem à Profa. Monica Neves Aguiar da Silva, n. 21, 2010.2, p. 131-150.
9
O aplicador, diante da possibilidade de mais de uma solução presente no ordenamento, fará um balanceamento
a partir do caso concreto e dará a solução que melhor associe segurança e justiça.
10
Posição defendida por Aleksander Peczenick: “But fixity of the law and predictability of legal decisions has a moral
value. If a result of a legal reasoning in a particular case is not worse from the point of view of other moral
values, then it is, all things considered, less arbitrary, than a result of a purely moral reasoning would be”
(PECZENICK, Aleksander. On law and reason: law and filosophy library. Vol. 8. Berlim: Springer, 2009, p. 199).

188 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014
O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo...

Por essa razão, fala-se em um paradigma discursivo, porque passa a tomar


a construção argumentativa como mecanismo de controle e proteção da justiça da
decisão judicial. Seria por onde se faria a ponte entre o direito real e o direito ideal
(justo correto), sendo a argumentação o meio capaz de fundamentar racionalmente
as normas e decisões tomadas com fundamento no direito, sejam elas regras
ou princípios.11
O discurso jurídico, por sua vez, depende de limites materiais e formais,
sendo daí que defendemos, ainda como componentes do estado atual do direito, a
intrínseca relação entre direito e moral (limite material) e o processo como espaço de
delimitação e controle dessa atividade argumentativa (limite formal), consolidando-se
como direito fundamental do cidadão.

1.1.1 Limite material ao paradigma discursivo: da


intrínseca relação entre direito e moral
Afirmar a reaproximação entre direito e moral está na base das teorias atuais
do direito, em contraponto àquilo que foi mote de negação pelo positivismo lógico e
também por positivistas pós-kelsenianos. Manifesta-se essa aproximação quando
atestada a normatização dos princípios, o seu papel como meio de fundamentação,
integração ou interpretação do direito ou, também, pela possibilidade da consideração
de argumentos morais quando da decisão judicial.
O positivismo jurídico, que encontra em Hans Kelsen sua face mais bem
definida, trazia a afirmação da separação entre direito e moral como pressuposto
para a compreensão do fenômeno jurídico normativo e sua autonomia científica. O
referido autor afirmava que a tarefa da ciência jurídica seria uma descrição alheia a
valores e, portanto, distinta da moral.12
Embora com pensamento mais moderado, Herbert Lionel Adolphus Hart
manteve-se na linha positivista e insistiu na tese da separação entre direito
e moral. Assim, não obstante tenha reconhecido que o direito foi influenciado
pela moral ao longo dos séculos, não acreditou haver necessidade de um

11
BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial. São Paulo: Noeses, 2012, p. 169.
12
Diz o autor: “A necessidade de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética, significa que, do
ponto de vista de um conhecimento científico do Direito Positivo, a legitimação deste por uma ordem moral
distinta da ordem jurídica é irrelevante, pois a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto,
mas apenas tem de o conhecer e descrever. Embora as normas jurídicas, como prescrições de dever-ser,
constituam valores, a tarefa da ciência jurídica não é de forma alguma uma valoração ou apreciação do seu
objeto, mas uma descrição do mesmo alheia a valores (wertfreie). O jurista científico não se identifica com
qualquer valor, nem mesmo com o valor jurídico por ele descrito. [...] uma norma jurídica pode ser considerada
como válida ainda que contrarie a ordem moral” (In: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João
Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 77).

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Cláudia Albagli Nogueira

sistema jurídico mostrar conformidade específica com a moral, crendo que são
sistemas estanques.13
Somente com a crise do paradigma do pensamento positivista é que a tese
da separação passou a ser contestada de maneira veemente, com substanciosas
colaborações da Teoria dos Princípios,14 bem assim os autores denominados
procedimentalistas, conforme analisaremos na sequência do texto.
O principal fundamento para a defesa da aproximação entre direito e moral está
no resgate do indivíduo como preocupação central do direito. Passada a segunda
grande guerra, o pensamento jurídico passa a ser alvo de críticas por permitir
sustentar, com a tese positivista, a possibilidade de sistemas jurídicos atentatórios à
dignidade humana. Resgata-se a exigência da proteção à pessoa humana e a relação
direito/moral passa a estar no cerne do recondicionamento do pensamento jurídico.
A moral passa a ser apresentada como fundamento primeiro do direito, que não
deve distanciar-se de um pressuposto axiológico que garanta a proteção do indivíduo
na sua dignidade. O fundamento, pois, não é de caráter formal, como se deu no
positivismo com a tese da separação, mas sim de caráter material, mais do que
isso, estrutural. É estar certo de que o direito não pode ser construído sem ter como
base fundamentos morais, pois o contrário disso é a abertura para a justificação de
sistemas atentatórios à pessoa humana.
Quem bem define a intrínseca relação entre direito e moral é Robert Alexy,
quando, em texto de sua autoria, atribui três fatores: princípios e argumentos morais
seriam abarcados pelo direito, limitação do direito positivo pela moral e a moral como
fundamento da obediência ao direito.15
O primeiro fator, segundo Alexy, é que o direito tem a pretensão de correção
(argumento da correção) e, para isso, acaba por abarcar princípios morais. Estes,
por sua correção, são incorporados no direito por uma regra de conhecimento como
“prática normativa convencional”.16 É o chamado “positivismo inclusivo”.17

13
Diz Hart: “Não se pode negar em sã consciência que o desenvolvimento do direito tem de fato sido influenciado,
em todos os tempos e lugares, tanto pela moral quanto pelos ideais convencionais de grupos sociais específicos,
e também por formas esclarecidas de crítica moral oferecidas com insistência por alguns indivíduos cujo horizonte
moral transcendeu a moral comumente aceita. Mas é possível compreender erroneamente essa verdade, vendo-a
como autorização para uma afirmação diferente: a de que um sistema jurídico deve necessariamente mostrar
alguma conformidade específica com a moral ou a justiça.” (In: HART, Herbert Lionel Adolphus. O Conceito de
direito. Tradução: Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 239).
14
Consideramos como Teoria dos Princípios as diferentes visões e conceituações apresentadas por Ronald Dworkin,
especialmente em sua obra “Levando os Direitos a Sério” (2007); Robert Alexy, na sua “Teoria dos Direitos
Fundamentais” (2011); e, em terras brasileiras, Humberto Ávila, com a sua “Teoria dos Princípios” (2006).
15
ALEXY, Robert. Direito e Moral. In: HECK, Luís Afonso (Org.). Direito natural, direito positivo, direito discursivo.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 117.
16
Ibidem, p. 117.
17
Suzanna Pozollo e Écio Oto Ramos Duarte explicam que “a tese central do positivismo inclusivo indica que
quando os juízes apelam a determinados padrões morais na resolução dos casos jurisdicionais suscitados,
em verdade, terminam por incorporar ditos conteúdos de moralidade na composição do direito juridicamente
válido”. (In: POZOLLO, Suzanna; DUARTE, Écio Oto Ramos. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as
faces da teoria do direito em tempos de interpretação moral da constituição. São Paulo: Landy, 2010, p. 46).

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O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo...

Sobre a pretensão de correção, este tema será desenvolvido na parte final


do trabalho, quando trataremos de modo específico dos precedentes judiciais e a
racionalidade da decisão que o contém.
O segundo fator apontado pelo autor alemão é o que ele denomina de “problema
da limitação”,18 por entender que a moral serve como limite externo ao direito. Portanto,
quando presente uma injustiça gritante, deve a validez jurídica da norma ser eliminada,
entendendo-se que dá-se primazia à justiça material ante a segurança jurídica.19
O terceiro e último fator apontado pelo autor é o “problema da fundamentação”,20
ou seja, da existência ou não da cobrança de uma norma somente porque é ela
direito, independentemente do seu conteúdo. Para o autor essa visão é equivocada
porque o indivíduo coloca-se de acordo com a norma jurídica não só porque é norma,
mas porque age conforme preceitos morais. Assim, haveria na moral um fundamento
para a obediência ao direito, assim como na norma imoral uma autorização para
desatendimento ao direito.21
Nessa mesma linha, Oscar Vilhena Vieira, tratando da interpretação constitucional,
ressalta que a Constituição Federal não pode ter sua legitimidade limitada à sua
positividade legal, devendo ser intrinsecamente boa, funcionando como “reserva de
justiça”.22 Desse modo, conforme o autor, na dúvida interpretativa deve-se sempre
buscar a alternativa moralmente mais correta para preencher o conteúdo aberto das
normas jusfundamentais. Sendo a moral um fundamento último para a Lei Maior.23
Jürgen Habermas, sob outra ótica, analisa a relação entre direito e moral
concretizada em nível procedimental. No pensamento habermasiano, a aproximação
entre direito e moral não se daria no fundamento do sistema jurídico, na criação ou
assimilação das normas jurídicas (momento anterior), mas na aplicação da norma,
através do espaço procedimental e por meio do discurso jurídico (momento posterior).
Segundo Habermas, a moral não estaria mais pairando acima do direito, como
“uma proposição suprapositiva de normas”;24 está ela contida no direito positivo
sem, contudo, estar absorvida por ele. Assim, o espaço processual é o lugar de
concretização da moral.25

18
Alexy, op. cit., p.119.
19
Ibidem, p. 119.
20
Ibidem, p. 120.
21
Ibidem, p. 122.
22
VIEIRA, Oscar Vilhena. A moralidade da Constituição e os limites da empreitada interpretativa, ou entre
Beethoven e Bernstein. In: SILVA, Virgílio Afonso da. (Org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros
Editores, 2010, p. 230.
23
Ibidem, p. 232.
24
HABERMAS, Jürgen. Direito e moral. Lisboa: Instituto Piaget, 1986, p. 63.
25
Diz Habermas: “A moralidade que não só defronta o direito, mas que, também, se estabelece, por si só, no
direito positivo, é, certamente, de natureza puramente processual; ela libertou-se de todos os conteúdos
determinados de normas e sublimou-se num procedimento de fundamentação e aplicação, de possíveis
conteúdos de normas. Deste modo, um direito processual e uma moral processual conseguem controlar-se
mutuamente.” (Ibidem, p. 57).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014 191
Cláudia Albagli Nogueira

É sob essa ótica que entendemos e propomos a análise do processo como o


segundo mecanismo de balizamento a esse paradigma discursivo, pela possibilidade
de nos limites formais nele estabelecidos estar a delimitação para a construção
legítima de argumentos e da própria decisão judicial.

1.1.2 Limite formal: o processo como espaço e limite da


construção do discurso
A crescente complexidade das questões levadas a juízo em contraposição à
insuficiência das normas faz do processo o espaço indispensável à solução das
demandas, porque ali serão construídas as decisões sob a garantia de limites
temporais e procedimentais. Apresenta-se o processo como garantia constitucional do
indivíduo, um ambiente de proteção, exercício e satisfação de direitos fundamentais.26
É expressão do Estado Democrático de Direito pelo feixe de garantias a ele
associadas e pelo reconhecimento de um espaço não apenas de simples aplicação
do direito, mas também de compreensão (como vivência da norma) e criação do
Estado-juiz sob os limites e possibilidades assegurados e materializados no devido
processo legal (sentido formal e substantivo).27
Willis Santiago Guerra Filho28 destaca que é pela processualização que deixamos
de ter respostas já dadas para termos respostas construídas. Não haveria uma
verdade ou decisão já pronta, escondida no processo; a verdade se dá na construção e
desenvolvimento do processo, daí apresentar-se o espaço processual como verdadeiro
reforço ao Estado Democrático de Direito e limite válido ao paradigma discursivo.
O Judiciário faz do processo o espaço de criação e produção de direito e esse
se mostra adequado para tanto por resguardar a participação democrática dos
indivíduos, seja isolada ou coletivamente, onde os interessados são convencidos
da conveniência de se perseguir certo objetivo e da adequação dos meios a serem
empregados para atingir essa finalidade.29
No processo está, pois, a concretização de um direito fundamental e a forma
de controle do paradigma discursivo, seja por delimitar o espaço de formação dos

26
DANTAS, Miguel Calmon. O direito fundamental à processualização: fundamento para uma teoria geral do
processo. In: DIDIER JR. Fredie; JORDÃO, Eduardo Ferreira. (Org.). Teoria do processo: panorama doutrinário
mundial. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 686.
27
O devido processo legal no sentido material ou substancial vem a significar a proteção do devido processo
em relação ao conteúdo da demanda, atuando no que diz respeito ao direito material, enquanto o devido
processo no sentido formal refere-se às repercussões e incidências no direito processual, visando assegurar
o respeito às formas processuais no que representam garantias. (NERY JR., Nelson. Princípios do processo na
Constituição Federal. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 83-87).
28
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 169.
29
GUERRA FILHO, Willis Santiago. A autopoiese do direito na sociedade pós-moderna: introdução a uma teoria
sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 80.

192 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014
O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo...

argumentos, seja por possibilitar a implantação de uma nova lógica diversa da tradição
positivista e que atende à complexidade da sociedade contemporânea.
Voltando a Habermas e a sua afirmação do processo como espaço de
concretização da moral, diz ele:30

A moralidade que não só defronta o direito, mas que, também, se


estabelece, por si só, no direito positivo, é, certamente, de natureza
puramente processual; ela libertou-se de todos os conteúdos
determinados de normas e sublimou-se num procedimento de
fundamentação e aplicação, de possíveis conteúdos de normas. Deste
modo, um direito processual e uma moral processual conseguem
controlar-se mutuamente.

No pensamento do autor, legalidade só pode gerar legitimidade na medida


em que a ordem jurídica reage de modo reflexivo à necessidade de justificação,
entendendo ele que isso ocorre necessariamente no espaço processual.
A possibilidade das opiniões divergentes serem colocadas em comunicação
na busca do consenso necessita de uma dimensão pragmática que se reflete nos
procedimentos, onde se harmonizam direitos individuais e coletivos.31 Justiça e
racionalidade – manifestações do jusnaturalismo e positivismo lógico – convergem
para o debate em torno da procedimentalização, seus limites e possibilidade,
alinhando Teoria do Direito e Teoria do Processo.
Conforme Habermas, o fato de querermos fundamentar eticamente o direito não
implica um retorno ao jusnaturalismo, em qualquer de seus matizes. As propostas
do direito natural, com suas demandas universalmente obrigatórias, são demasiado
fortes para a contemporaneidade jurídica, pluralista e com várias pretensões ao
estabelecimento de verdades morais, que, embora conflitantes, não podem ser
excluídas. Para Habermas, a legitimidade do direito deve ser buscada nas teorias
éticas procedimentais.32
É com esse espírito que passamos a analisar o projeto em trâmite do Novo
Código de Processo Civil, especificamente no que se refere aos artigos em que trata
dos precedentes judiciais, na busca de refletir sobre os limites da decisão judicial
para a garantia da sua racionalidade e funcionamento satisfatório do sistema de
precedentes. Como marcos teóricos, estão: a compreensão da aproximação entre
direito e moral e o processo como direito fundamental e limite válido à construção
racional do discurso judicial.

30
HABERMAS, Jürgen. Direito e moral. Lisboa: Instituto Piaget, 1986, p. 57.
31
GUERRA FILHO, Willis. Por uma filosofia processual do direito. In: DIDIER JR. Fredie; JORDÃO, Eduardo Ferreira.
(Org.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 1.003.
32
HABERMAS, op. cit., p. 53.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014 193
Cláudia Albagli Nogueira

2 O Novo Código de Processo Civil


Em trâmite na Câmara dos Deputados para aprovação do relatório final, o PL
nº 8.046/1033 dispõe sobre a revogação da Lei nº 5.869/73 (Código de Processo
Civil) e aprovação de novas regras para o processo civil brasileiro (NCPC).
O PL nº 8.046/10 reúne todas as proposições em trâmite nas casas do
Congresso que tratavam de modificações no ainda vigente CPC e formula uma
nova proposta para o funcionamento do sistema judicial. Já com 900 (novecentas)
emendas ao projeto originário vindo do Senado Federal (PL 166/10), o NCPC promete
revolucionar o processo judicial pelas significativas mudanças que propõe ao sistema
atualmente em vigor, especialmente por trazer à parte geral o regramento do processo
eletrônico, avanço indispensável para a consolidação de um sistema mais célere e
adequado às exigências da atualidade.
Convém lembrar que estamos falando das regras pertinentes a todas aquelas
ações que não sejam penais, podendo-se incluir até mesmo as ações trabalhistas,
já que estas usam subsidiariamente o CPC. Desse modo, é patente a importância do
NCPC para a práxis jurídica brasileira, sendo a sua aprovação um respeitável passo
para o aperfeiçoamento do nosso Poder Judiciário; afinal de contas, o atual CPC
é anterior à Constituição Federal de 1988, portanto, elaborado e aprovado sem o
referencial político do estado democrático de direito.
Por si só, esse dado já é significante para se compreender a necessidade e
impacto do NCPC. Acresçam-se as transformações ocorridas na Teoria do Direito,
como já sinteticamente apresentado na primeira parte desse texto, bem assim várias
modificações implementadas em sistemas conexos, como a criação do Código de
Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso, o novo Código Civil e o sistema de
mediação e arbitragem.
Dentre as alterações propostas, está a modificação no sistema de produção
de provas no processo de conhecimento, a possibilidade no processo de execução
de penhora de parte dos salários para quitar dívidas e a inscrição dos devedores em
cadastros de proteção ao crédito. Alguns procedimentos especiais extintos pelo texto
do Senado foram recuperados pela Câmara, que também criou um rito específico para
as ações de família. Quanto aos recursos, o procedimento para apelar da sentença
sofreu alterações, com o objetivo de agilizar o processo.34

33
BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 8.046, de 2010. Código de Processo Civil. Revoga a Lei nº 5.869,
de 1973. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=
4CFB5D5581A0125C71FAEC6A8CB0AD20.node2?codteor=831805&filename=PL+8046/2010>. Acesso
em 13 abr. 2013.
34
Para uma síntese interessante das mudanças do NCPC sugerimos os Editoriais 151, 156 e 160 do Prof. Fredie
Didier Jr. Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/editorial/>. Acesso em: 13 abr. 2013.

194 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014
O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo...

Assim, chega o NCPC com a imensa responsabilidade de suprir as deficiências


cumuladas no nosso sistema judicial e adequar-se para o cumprimento do ideal de
oferecimento célere e justo da prestação jurisdicional. No geral o seu espírito é de
diminuição das formalidades legais sem prejuízo da proteção ao jurisdicionado.

2.1 O sistema de precedente judicial: capítulo XV do NCPC


No bojo dessas modificações é que está a criação de um sistema de
precedentes judiciais, ponto da proposta em trâmite que nos interessa de maneira
específica. A abertura no texto do NCPC para o tratamento do precedente judicial
institui oficialmente um sistema no direito brasileiro elaborando regras destinadas
a fixar o modo de aplicação e as consequências jurídicas impostas às partes no
processo e ao julgador para o atendimento dos precedentes judiciais.
Em verdade, pode-se dizer que o NCPC organiza as regras já existentes em nosso
sistema, como já mencionado na introdução deste texto, associando os princípios da
legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção
da confiança e da isonomia como pressupostos valorativos da obrigatoriedade do
sistema de precedentes judiciais. A ideia é a uniformização da jurisprudência dos
tribunais superiores, de modo a dar ao jurisdicionado maior previsibilidade das
demandas judiciais e reduzir o nível de insegurança existente pela possibilidade
de decisões díspares em casos judiciais onde a semelhança dos fatos materiais
indique a aplicação da mesma solução judicial.
A criação e organização de um sistema de precedentes pelo NCPC atende à
expectativa de todo e qualquer jurisdicionado de ter a decisão da sua causa em
sintonia com aquilo que é o entendimento majoritário do juízo ao qual se recorre e,
por decorrência, ver assegurada a justiça pelo tratamento semelhante de demandas
semelhantes. É o princípio da justiça formal universal, recorrentemente mencionado
por MacCormick,35 e que é a base para o respeito aos precedentes.
Ainda não definitivamente consolidado, já que passível de alterações até a
ulterior aprovação do texto final, o capítulo quinze do Novo Código de Processo Civil
traz longa disposição sobre a aplicação de precedentes fixando as diretrizes que
determinarão a uniformização da jurisprudência brasileira e assegurarão ao cidadão
uma maior segurança quanto às decisões judiciais:36

35
MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 96.
36
BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 8046, de 2010. Código de Processo Civil. Revoga a Lei nº 5.869,
de 1973. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=
4CFB5D5581A0125C71FAEC6A8CB0AD20.node2?codteor=831805&filename=PL+8046/2010>. Acesso
em 13 abr. 2013

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CAPÍTULO XV
DO PRECEDENTE JUDICIAL
Art. 520 Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável.
Parágrafo único. Na forma e segundo as condições fixadas no regimento
interno, os tribunais devem editar enunciados correspondentes à súmula
da jurisprudência dominante.
Art.521 Para dar efetividade ao disposto no art. 520 e aos princípios da
legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da
proteção da confiança e da isonomia, as disposições seguintes devem
ser observadas:
I – os juízes e os tribunais seguirão a súmula vinculante, os acórdãos em
incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas
repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial
repetitivos;
II – os juízes e os tribunais seguirão os enunciados das súmulas do
Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional, do Superior Tribunal
de Justiça em matéria infraconstitucional e dos tribunais aos quais
estiverem vinculados, nesta ordem;
III – não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os
juízes e os tribunais seguirão os precedentes:
a) do plenário do Supremo Tribunal Federal, em matéria constitucional;
b) da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal de Justiça, nesta
ordem, em matéria infraconstitucional;
IV – não havendo precedente do Supremo Tribunal Federal ou do Superior
Tribunal de Justiça, os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de
Justiça ou do Tribunal Regional Federal seguirão os precedentes do
plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem;
V – os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça seguirão, em
matéria de direito local, os precedentes do plenário ou do órgão especial
respectivo, nesta ordem.
§1º Na hipótese de alteração da sua jurisprudência dominante, sumulada
ou não, ou de seu precedente, os tribunais podem modular os efeitos da
decisão que supera o entendimento anterior, limitando sua retroatividade
ou lhe atribuindo efeitos prospectivos.
§2º A mudança de entendimento sedimentado, que tenha ou não sido
sumulado, observará a necessidade de fundamentação adequada e
específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção
da confiança e da isonomia.
§3º Nas hipóteses dos incisos II a V do caput deste artigo, a mudança
de entendimento sedimentado poderá realizar-se incidentalmente, no
processo de julgamento de recurso ou de causa de competência originária
do tribunal, observado, sempre, o disposto no §1º deste artigo.
§4º O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos
fundamentos determinantes adotados pela maioria dos membros do
colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado.
§5º Não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste artigo:

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I - os fundamentos, ainda que presentes no acórdão, que não forem


imprescindíveis para que se alcance o resultado fixado em seu dispositivo;
II - os fundamentos, ainda que relevantes e contidos no acórdão, que não
tiverem sido adotados ou referendados pela maioria dos membros do
órgão julgador.
§6º O precedente ou a jurisprudência dotado do efeito previsto nos incisos
do caput deste artigo pode não ser seguido, quando o órgão jurisdicional
distinguir o caso sob julgamento, demonstrando, mediante argumentação
racional e justificativa convincente, tratar-se de caso particularizado por
situação fática distinta ou questão jurídica não examinada, a impor outra
solução jurídica.
§7o Os tribunais deverão dar publicidade aos seus precedentes, organizando-os
por questão jurídica decidida e divulgando-os preferencialmente por meio
da rede mundial de computadores.
Art. 522 Para os fins deste Código, considera-se julgamento de casos repetitivos:
I – o do incidente de resolução de demandas repetitivas;
II – o dos recursos especial e extraordinário repetitivos.

No tocante à eficácia, determina a obrigatoriedade de todos os juízos e tribunais


de seguir as súmulas vinculantes (trazendo para CPC previsão já contida na CF/88),
os acórdãos em assunção de competência, em incidente de resolução de demandas
repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos
(art. 521, I).
Estabelece, ainda, a eficácia obrigatória do precedente judicial de acordo com
as relações de competência (obrigatoriedade de cumprimento das súmulas do STF
em matéria constitucional e em matéria infraconstitucional as súmulas do STJ e seus
tribunais, nessa ordem – art. 521, II) e relações de hierarquia (tribunais inferiores e
juízos obrigados a seguir os seus superiores – art. 521, IV).
Em não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes
e os tribunais seguirão os precedentes: a) do plenário do Supremo Tribunal Federal,
em matéria constitucional; b) da Corte Especial ou das Seções do Superior Tribunal
de Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional (art. 521, III, “a”, “b”) e
em matéria de direito local os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça
seguirão os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem
(art. 521, V).
Ainda no art. 521 do NCPC estão elencadas as regras para efeito temporal do
precedente, superação e distinção.
O art. 521, §1º, trata da modulação dos efeitos da decisão quando esta
representar a superação de um precedente anterior (jurisprudência dominante ou
súmula). Assim, poderão os tribunais modular os efeitos das decisões modificadoras,
de modo a determinar a amplitude da sua retroatividade, ou até mesmo fixar apenas
efeitos prospectivos à decisão. Uma vez mais, o propósito do legislador é guardar

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014 197
Cláudia Albagli Nogueira

certa margem de liberdade ao Judiciário para resguardar a segurança jurídica das


decisões e entendimentos majoritários dos seus órgãos. Autorizando a modulação de
efeitos, caberá aos tribunais, caso a caso, analisar quanto à necessidade ou não de
barrar os efeitos retroativos da mudança de jurisprudência ou alteração de súmula.
O NCPC inova também por trazer já embutida a sistemática de superação dos
precedentes, conforme se extrai do art. 521, §1º a §3º. Nestas disposições estão as
exigências de forma e conteúdo para que se supere um precedente firmado, sempre
com o intento de assegurar ao jurisdicionado segurança e isonomia. Os tribunais não
estão coagidos a seguir cegamente uma súmula ou jurisprudência se convencidos
de que esta não mais se aplica, mas têm por dever justificar racionalmente o
seu posicionamento.
Regulamenta a questão da possibilidade de na decisão judicial realizar-se a
distinção (distinguishing) afastando a aplicação do precedente (art. 521, §6º).
A distinção é fundamental no exercício de convencimento do magistrado, vez que,
uma vez identificada particularidades (situação fática distinta e situação jurídica não
decidida), o juiz tem por obrigação eximir-se à aplicação do precedente e realizar
novo juízo sobre a causa. O parágrafo mencionado fala ainda da necessidade de
justificação racional e convincente para afastar o precedente, reforçando, pois, o
dever de fundamentação do julgador, o que demonstra que a atividade de aplicação
do precedente em nada mecaniza o julgamento, exigindo do mesmo modo o
compromisso de formação do convencimento e fundamentação, seja para aplicar ou
afastar um precedente.
Por fim, o art.521 cuida de elucidar o que forma o precedente que obrigará aos
juízes e tribunais, esclarecendo que não são os motivos anexos da decisão, mas os
determinantes, sem os quais o julgador não teria chegado ao dispositivo final. São os
motivos determinantes, ou ratio decidendi, que formarão o precedente a ser seguido
nas decisões subsequentes, porque nele está o cerne do entendimento do julgador
sobre o qual recai o caráter vinculante da decisão.
De maneira sintética são essas as disposições referentes aos precedentes
judiciais e que deverão balizar os procedimentos nos tribunais superiores a partir da
promulgação do Novo Código de Processo Civil, o que deve acontecer ainda neste
ano de 2013. Reafirmamos a relevância do capítulo ora analisado pela implantação
de uma nova lógica judicial tanto pelos efeitos pretendidos a partir da proteção aos
precedentes judiciais (previsibilidade, igualdade de tratamento e segurança jurídica),
como também por invocar uma nova racionalidade às decisões judiciais, que deverão
ser elaboradas conscientes de oferecerem substrato para aplicação a casos futuros,
não se esgotando nos limites subjetivos da demanda em que se formam.
É daqui que se nos apresenta a necessidade de uma reflexão mais aprofundada
sobre o tema precedente judicial, já que, vislumbrando a implantação de um sistema

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O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo...

no nosso Novo Código de Processo Civil, é de se perguntar qual racionalidade se


espera das decisões judiciais? Ou, em outras palavras, quais os possíveis limites
para que reste resguardada a racionalidade da decisão judicial sem prejuízo do
funcionamento do sistema de precedente judicial?

3 Precedente: distinções e conceitos fundamentais (ratio


decidendi e obter dictum)
É da Teoria do Stare Decisis que vêm os precedentes. A Teoria do Stare Decisis
é aquela adotada pelos países da common law e considera os precedentes judiciais
como de observância obrigatória (blinding precedents). Assim, é a prática de aplicar
precedentes para o desenvolvimento do raciocínio jurídico na decisão ou como forma
de alegação, de modo a manter a igualdade entre casos anteriores e presentes que
sejam similares, que é a base do Stare Decisis.37
Henry Black, juridicamente, define o precedente judicial como um caso
sentenciado ou decisão de uma corte considerada como fornecedora de um exemplo
ou de autoridade para um caso similar ou idêntico posteriormente surgido ou para
uma questão similar de direito.38
Os precedentes são as decisões de uma corte que servem de subsídio para
processos posteriores similares. O próprio nome já diz: é algo que precede o
anteriormente ocorrido. São decisões de uma corte que são consideradas para um
caso subsequente e podem, portanto, projetar efeitos jurídicos ao futuro condicionando
os indivíduos, o que demonstra a sua força normativa.39
Assim, nem toda decisão constitui um precedente, pois existem decisões
que não possuem qualquer relevância para situações subsequentes, não havendo
porque formar precedente. É necessária a potencialidade para se tornar paradigma
de orientação a advogados e magistrados,40 tem-se de elaborar tese jurídica inédita
ou definitivamente delineá-la, deixando-a cristalina.41
Entre as distinções indispensáveis, é preciso que fique claro que o precedente
judicial não se confunde com a jurisprudência, há entre eles uma diferença quantitativa:
para que se forme jurisprudência é indispensável um conjunto de decisões reiteradas,
enquanto que para que haja precedente é suficiente apenas uma decisão.

37
LIMA, Augusto César Moreira. Precedentes no direito. São Paulo: LTR, 2008, p. 45.
38
BLACK, Henry Campbell. Black’s law dictionary. 7. ed. St. Paul: West Publishing, 1990, p. 1176, tradução
nossa. No original: “an adjudge case or decision of a court, considered as furnishing an example or authority
for an identical or similar case afterwards arising or a similar question of law”.
39
ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: racionalidade da tutela jurisdicional. Curitiba: Juruá,
2012, p. 92.
40
NEVES, Antônio Castanheira. O instituto dos assentos e a função jurídica dos supremos tribunais apud
ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais. Curitiba: Juruá, 2012, p. 93.
41
MARINONI, Luís Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 216.

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Cláudia Albagli Nogueira

Francisco Rosito menciona, ainda, uma diferença qualitativa ente precedente


e jurisprudência, já que “enquanto os precedentes oferecem substrato para sua
aplicação a casos futuros, a jurisprudência apenas aponta sentidos”.42
Já as súmulas são proposições sobre a interpretação do direito que decorrem
da jurisprudência assentada num determinado Tribunal.43 Têm formato de enunciado
e no nosso país é publicada em numeração crescente. Pretendem expor a ratio
decidendi comum a reiteradas decisões sobre uma matéria concretizadas num
Tribunal superior.44 Pelo sistema do NCPC, os precedentes serão extraídos das
súmulas e acórdãos dos tribunais superiores, conforme explanamos anteriormente.
Feitas as distinções e delimitação do conceito de precedente, vamos conhecer
dois dos conceitos fundamentais para a composição da chamada dimensão objetiva
do precedente:45 a ratio decidendi e o obter dictum.
A ratio decidendi46 é o conceito mais importante dentro da teoria dos precedentes.
É a motivação da decisão, os fundamentos do juiz, os argumentos por ele utilizados
que são determinantes para a situação e que podem servir de paradigma para
futuras decisões. São as razões de decidir do precedente que vão operar vinculação,
extraindo-se uma regra geral que se aplica a outras situações semelhantes.47 Ao
analisar o precedente, deve o operador primeiramente identificá-lo e distingui-lo, pois
é a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law).48
Considera-se na atualidade que esta engloba não só o dispositivo da sentença,
mas também os fundamentos principais para aquela decisão. Assim é que a ratio
decidendi inclui os fatos relevantes da causa (statement of material facts), o raciocínio
lógico-jurídico da decisão (legal reasoning) e o juízo decisório (judgement).
Outro conceito de enorme relevância é o obiter dictum,49 que são as proposições
da decisão que não fazem parte da ratio decidendi. Estão presentes na decisão, mas
não são necessárias para a decisão. São juízos acessórios, secundários, utilizados
pelo juiz para a construção da decisão judicial, mas prescindíveis para o deslinde

42
ROSITO, op. cit., p.100.
43
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico
político. São Paulo: Método, 2006, p. 179.
44
ROSITO, op. cit., p. 95.
45
Francisco Rosito denomina dimensão objetiva do precedente a parte específica da decisão que adquire
força de precedente, seja vinculativo, seja persuasivo. (ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais:
racionalidade da tutela jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2012, p.103).
46
A expressão Ratio Decidendi é mais utilizada pelos ingleses e, comumente, vem a expressar a razão de
decidir. Na linguagem dos operadores americanos é denominada de Holding (TUCCI, José Rogério Cruz e.
Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 177; PERRONE, Patrícia.
Precedentes judiciais: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. São Paulo:
Renovar, 2008, p. 118).
47
DIDIER JR. Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de processo civil. Vol. 2. 7. ed. Salvador:
Juspodivm, 2012, p. 388.
48
TUCCI, op. cit., p. 175.
49
No plural, é obiter dicta (In: SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante.
Curitiba: Juruá, 2008, p. 139).

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O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo...

da controvérsia. Para José Rogério Cruz e Tucci50 o obiter dictum não se presta para
ser invocado como precedente vinculante em caso análogo, mas pode servir como
argumento de persuasão.
O obiter dictum, não obstante não componha a regra de direito (rule of law)
extraída do precedente, desempenha papel persuasivo e argumentativo fundamental,
podendo ser relevante o seu uso para fundamentação de situações similares.
Teoricamente, a distinção entre ratio decidendi e obter dictum parece fácil, mas,
na prática, pode haver a dificuldade de identificação, no que sugere Karl Engisch que
a distinção se dê por exclusão, ou seja, deve o sujeito delimitar a ratio (“somente
será vinculativa na medida em que necessária para a decisão do caso jurídico”) e não
se encaixando o argumento nessa análise tratar-se-ia de obter dictum.51

4 O sistema de precedente judicial no NCPC: qual


racionalidade?
Se o processo é direito fundamental e se configura como espaço apto à
construção contraditória dos argumentos que colaborarão para a formação da
convicção judicial, a sentença é o ápice desse desenvolvimento, porque pretende pôr
fim ao conflito ali existente. Desse modo, guarda uma racionalidade que exige que
uma de suas premissas deva ser a formulação de uma norma universal.
Alexy explica que o fundamento para isso consiste que as sentenças devem
se apoiar em regra universal, o que corresponde ao princípio da justiça formal, o
qual exclui que, em dois casos cujos aspectos relevantes para a decisão podem ser
descritos de modo igual completamente, sejam pronunciadas sentenças distintas.52
Sendo esse um pressuposto filosófico para as sentenças em geral, mais ainda
aplicável se mostra às decisões que têm a pretensão de formar um precedente
judicial. Nesse caso, acresce a responsabilidade do Judiciário, porque sabido que a
sentença produzida servirá de referencial para os casos subsequentes, exigindo-se,
pois, o compromisso com uma racionalidade que assegure a formação de um
paradigma jurídico.
Pensar essa racionalidade é tarefa que impulsiona muitos teóricos e que não
há de se esgotar, porque sempre renovado o desafio. No nosso caso, a mudança
que implicará a oficialização de um sistema de precedente, a partir da promulgação
do Novo Código de Processo Civil, é que nos exige refletir teoricamente quais balizas

50
TUCCI, op. cit., p. 177.
51
ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 10. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008,
p. 365.
52
ALEXY, Robert. Direito, razão discurso: estudos para a filosofia do direito. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 21.

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acompanharão a atividade do magistrado para que sua tarefa decisória, nas situações
estabelecidas pela nova lei, atenda ao propósito de pôr fim ao conflito decidido e de
formar precedente que se aplicará aos casos futuros.
A sentença deixa de ser apenas uma peça referente àquela demanda judicial
e ganha repercussão externa alcançando os casos futuros que, pela relação de
semelhança relevante com a situação paradigma, bebem na sua ratio para resolver
à demanda.
Há, então, a necessidade de se afirmar limites a demarcar a atividade judicial
para atender à pretensão de universalização da decisão.

4.1 O precedente judicial como o argumento aplicável ao


auditório universal
Na obra “Tratado da Argumentação: a nova retórica”, Chaim Perelman e Lucie
Olbrechts-Tyteca trazem a distinção entre persuadir e convencer, dizendo-nos que a
persuasão é uma argumentação que pretende valer apenas para o auditório particular
(específico), enquanto que a convincente seria aquela que deveria obter a adesão de
todo ser racional, válida, portanto, para o auditório universal.53
Assim, o convencimento refere-se ao caráter racional da adesão, sendo
que a natureza do auditório é que determina tanto o aspecto que assumirão as
argumentações quanto o caráter, o alcance que lhe serão atribuídos. A persuasão,
por sua vez, não deixa de atender ao propósito da ação, mas não ultrapassaria os
limites subjetivos do auditório particular porque são argumentos construídos para
alcançar aqueles sujeitos específicos.
Recorremos a essa distinção porque acreditamos que um dos primeiros limites
a balizar os juízes na elaboração das decisões, cientes de que elas poderão formar
precedentes judiciais, é a assimilação de que se dirigirão a auditórios universais
(tantos quantos venham a encaixar-se em situação de semelhança com a decidida) e
não a auditórios particulares, compostos pelas partes do processo.
Quando pensamos em um sistema de precedentes, falamos de auditório
universal, porque composto por indivíduos não limitados previamente, aos quais o
juiz deverá convencer. Daí o cuidado que se deve ter com a construção discursiva da
decisão, compreendendo que poderão suas argumentações ganhar status de norma
geral (a ratio decidendi) e ultrapassar o limite subjetivo da decisão. O juiz deve ter o
convencimento como finalidade da sua decisão e não somente persuasão.
Assim, as argumentações voltadas para um auditório universal devem ter
fundamentos generalizáveis, quer dizer, princípios ou argumentos que todos os que

53
PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução: Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 31.

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O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo...

aceitem as normas da racionalidade estejam dispostos a acolher.54 Deve atender ao


propósito de formar um paradigma para os casos semelhantes que serão futuramente
decididos, por isso o convencimento, porque baseado em discurso racional e que
pretende atender a uma universalidade.

4.2 Da pretensão de correção como limite substancial ao


precedente judicial
A pretensão de correção é um fundamento do direito na compreensão pós-
positivista e deve aqui ser estendido à incorporação do sistema de precedente judicial,
como uma pretensão de correção adequada à racionalidade da decisão judicial que
formará o precedente e que deve ter em conta não se exaurir no caso decidido.
Robert Alexy diz que a pretensão de correção é um objetivo do direito, quando
justifica a intrínseca relação deste com a moral (ver seção 1.1.1). Fala da pretensão
de correção a partir de três perspectivas: 1) o que significa que o direito promove uma
pretensão? 2) o que deve ser entendido sob a necessidade da pretensão? 3) em que
consiste o conteúdo da pretensão, a correção?55
Para a primeira pergunta, diz ele que a pretensão de correção do direito abarca a
afirmação da correção através das leis e decisões judiciais, implicando uma garantia
de “fundamentabilidade” e de esperança, assim entendido como o fato de que cada
um que se põe no ponto de vista do sistema respectivo e é racional reconhece o ato
jurídico como correto.56
Explica ele, ainda, que a pretensão de correção somente é de interesse
para o conceito de direito quando ela, necessariamente, está unida com o direito.
“Pudesse o direito tanto promover, como não promover essa pretensão, tratar-se-ia
nela somente de uma das numerosas qualidades contingentes do direito”.57 Daí a
pretensão de correção como uma necessidade do direito, porque recurso à validade
do seu discurso.
E, por fim, ao falar do conteúdo da pretensão, a correção, explica que o discurso
jurídico pode ter conteúdos distintos a depender se é referido a uma lei ou a uma
decisão judicial, porém, em ambos, há uma pretensão de fundamentabilidade, ou seja,
a necessidade de fundamentação de normas gerais ou individuais, portanto, questões

54
AARNIO, Aulis. ¿Una única respuesta correcta? In: AARNIO, Aulis; ATIENZA, Manuel; LAPORTA, Francisco.
Bases teóricas de la interpretación jurídica. Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Europeo, 2010, p. 19.
55
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 3. ed. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011, p. 20.
56
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 3. ed. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011, p. 21.
57
Ibidem, p. 21.

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Cláudia Albagli Nogueira

normativas ou práticas. O conteúdo seria, pois, a necessidade de fundamentação, ou


um dever jurídico de decidir corretamente.58
Do conceito de pretensão de correção como dever jurídico de decidir corretamente
é que entendemos outro limite à racionalidade da decisão judicial formadora de
precedente judicial. Estamos a afirmar desde o início do presente trabalho que,
com as mudanças na Teoria do Direito e agora também no processo civil, cresce a
preocupação com o dever de construir, interpretar e aplicar corretamente o direito,
procurando sempre alcançar o maior grau de correção possível. O princípio da
moralidade que é trazido para dentro do direito por meio da pretensão de correção,
vale como um princípio geral dos ordenamentos jurídicos.59
Em um sistema de precedentes, segue-se a mesma linha, porque à medida que
a regra a vigorar para futuras decisões estará contida na decisão judicial, maior a
responsabilidade com a racionalidade do discurso, com a justificação dos argumentos
apresentados e o compromisso com a pretensão de correção.
Assim, na composição atual da Teoria do Direito, está a responsabilidade de
trabalhar em favor de um modelo de fundamentação onde será possível estabelecer
um enunciado controlável racionalmente e que atenda à pretensão de universalidade
que decorre do precedente judicial. Não significa imaginarmos que estaremos livres
das arbitrariedades, sempre passíveis de ocorrer quando se trata do raciocínio
prático, mas que existirá um limite racional que controlará a decisão. “A prática é
realizável aproximadamente e sua realização suficiente não garante qualquer correção
definitiva, mas tão-somente relativa.”60
Aleksander Peczenick traz interessante posicionamento quando fala que existem
diferentes níveis de justificação e que nas decisões judiciais trabalha com a ideia
de “justificação contextualmente suficiente”, ou as razões suficientes à decisão.
Estas não estariam, contudo, livres da “derrotabilidade”, ou seja, da possibilidade de
serem desconstituídas.61 Livre da derrotabilidade, explica o autor, só as justificações
últimas, que são as filosóficas. As justificações contextualmente suficientes são o
intermédio entre a justificação última e a descrição empírica e são, sim, passíveis de
serem derrotadas, assim como os precedentes podem ser superados.
Assim, a correção se produz não apenas através do processo, mas no
processo. Não devendo uma teoria processual não se desvencilhar dos conteúdos e
da experiência, porque nestes estão os mecanismos de controle da sua racionalidade
e alcance da correção.

58
ALEXY apud BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do precedente judicial. São Paulo: Noeses, 2012, p. 150.
59
BUSTAMANTE, op. cit., p. 166.
60
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 176.
61
ATIENZA, Manuel. Entrevista a Aleksander Peczenick. Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 22, 1999,
p. 665.

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4.3 Do consenso como teleologia do precedente judicial


A argumentação racional de uma decisão busca alcançar o consenso, assim
entendido como a legitimação social da decisão.
Com a incorporação de um sistema de precedentes, deverá o juiz não só se
preocupar com a racionalidade endoprocessual, mas também com o efeito prospectivo
que terá a decisão, já que repercutirá em decisões futuras. Assim, o consenso em
torno da decisão apresenta-se como objetivo da atividade judicial, defendendo-se
a ideia de que é ele alcançado através da participação democrática dos sujeitos
no processo.
Habermas fala sobre a correção do enunciado ser resultado de um procedimento
comunicativo capaz de lhe conferir aceitabilidade racional.62 Daí compreender-se,
como dito na primeira parte deste trabalho, que o processo é direito fundamental
por possibilitar o controle realizado no espaço da contrariedade de ideias (exercício
do contraditório) e chegar a um resultado final que não se cinge à legalidade, mas
também assegura a legitimidade, pois que democraticamente racionalizado.
O consenso é a verdade de um sentido discursivamente construído, o que reforça
a ideia de legitimidade, já que no consenso estaria a receptividade e aceitabilidade do
enunciado sentencial, mais precisamente a ratio decidendi. O consenso no sentido
habermasiano que aqui compartilhamos parte do pressuposto de que é preciso uma
argumentação real, da qual participem cooperativamente os concernidos. Só um
processo de entendimento mútuo intersubjetivo pode levar a um acordo que é de
natureza reflexiva; só então os participantes terão certeza de que chegaram a uma
convicção comum.63
Para o consenso, coloca Habermas como exigências: a) todo aquele que possa
contribuir para o discurso não deve ser excluído;64 b) a todos os participantes é
assegurada igual oportunidade; c) todos devem acreditar no que afirmam, sustentando
pretensão de veracidade; d) deve estar ausente de influências externas, a única
motivação deve ser o melhor argumento.
Desse modo, concluímos que o consenso decorre da intersubjetividade e da
possibilidade de no conjunto das arrumações argumentativas alcançar a convicção
em torno do discurso proferido. O consenso, assim como a pretensão de correção,

62
“[...] não basta a entrada em vigor positivista das normas para assegurar duradouramente sua validez social.
A imposição duradoura de uma norma depende também da possibilidade de mobilizar, num dado contexto da
tradição, razões que sejam suficientes pelo menos para fazer parecer legítima a pretensão de validez no círculo
das pessoas a que se endereça. Aplicado às sociedades modernas, isso significa: sem legitimidade, não há
lealdade das massas” (In: HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução: Guido A. de
Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 83).
63
Ibidem, p. 88.
64
Eis o argumento primordial para incorporação ao processo da figura jurídica do amicus curiae.

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Cláudia Albagli Nogueira

não é definitivo nem incorrigível,65 mas oferece até a sua falsificação a certeza de que
necessita o discurso jurídico para pôr fim aos conflitos levados a juízo, bem assim
àqueles semelhantes que venham a se apresentar.
O precedente judicial deve, pois, seguir esse caminho, ser uma técnica
processual a serviço da efetividade e concretização da justiça, através da uniformidade
na aplicação do direito. Deve garantir a legítima expectativa de se ter decisão
semelhante à do caso já julgado e consensualmente formado porque resultado da
participação cooperativa dos interessados.
Asseguradas as condições apontadas, a decorrência lógica deve ser o consenso
em torno da decisão e, por consequência, a sua legitimidade para solucionar o
conflito do processo em que é emitida e aqueles subsequentes que com ele guardem
uma relação de semelhança e exige idêntico entendimento. O NCPC parece trazer
as condições para esse consenso porque transverso pelo espírito democrático e
resguardado da ampla participação no processo judicial. Uma vez mais: segurança,
isonomia e proteção da confiança.

Conclusão
Chegamos ao final sem que isso represente o esgotamento do tema abordado;
ao contrário, passamos por uma estrada em que os caminhantes ainda iniciarão
o percurso. É certo que, após a promulgação do Novo Código de Processo Civil,
muitas mudanças, sugestões e interpretações irão surgir, como resultado natural
da implementação de um novo sistema processual. O que se pretendeu foi trazer
algumas reflexões partindo do panorama da Teoria do Direito contemporâneo e
conjugando com o sistema processual e o regime de precedentes que está proposto
na legislação em fase final de aprovação.
A admissão de um regime de precedentes concretiza uma nova fase do direito
processual, onde os resultados obtidos no processo são qualificados por não se
esgotarem nos limites da lide. O processo passa a ser valorizado como espaço de
criação do direito pelo Estado-juiz, de participação democrática da sociedade e de
vivência da norma.66 É meio de desenvolvimento do direito material, o que é expresso
mediante os precedentes oriundos da atividade jurisdicional.67
O Poder Judiciário no Brasil anseia pela resolução cada vez mais profícua dos
problemas levados a ele e o uso de precedentes permite um caminhar mais célere, sem
retirar a característica de juridicidade da decisão. Do precedente resulta celeridade

65
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 4. ed. Tradução: António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Kulbekian, 2010, p. 430.
66
FARIA, José Eduardo. Direito e conjuntura. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 78.
67
ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: racionalidade da tutela jurisdicional. Curitiba: Juruá,
2012, p. 225.

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porque já oferece uma solução pronta para situações que se assemelhem aos seus
fatos principais (material facts), sem que haja o risco de tratamento diferenciado.
O sistema de precedentes judiciais consagra, ainda, a aproximação entre
direito e moral, pois toma como premissa o direito discursivamente construído e
não aquele resultado única e exclusivamente do uso da técnica de subsunção. A
moral institucionaliza-se quando o indivíduo, no seu sentido relacional (comunidade
de argumentação), constrói o discurso processual, deixando de ser apenas o objeto
da ação e tornando-se parte dela.68
Entendido o funcionamento do regime instituído pelo NCPC, o grande desafio
do magistrado é adequar-se a uma nova metodologia processual em que o produto
da atividade jurisdicional, a sentença, poderá deixar de ser apenas norma individual
aplicável ao caso decidido para converter-se, pelo menos uma parte dela (ratio
decidendi), em regra geral a alcançar todas as situações que por uma relação de
semelhança mereçam idêntico tratamento.
Daí recorrermos à Teoria da Argumentação nos conceitos de auditório universal
(Perelman), pretensão de correção (Alexy) e consenso (Habermas) como possíveis
balizas para uma atividade decisional que há de assumir função normativa.
Em todos os conceitos extraídos da Teoria da Argumentação e apresentados
ao longo deste trabalho, em comum está a premissa do princípio da justiça formal
e da participação democrática de todos quantos sejam interessados na decisão a
ser proferida.
As ideias de correção e consenso estão ambas fundamentadas na percepção
da decisão como resultado de um processo discursivamente desenvolvido e que,
dessa maneira, assegura, ao mesmo tempo, a legitimidade da decisão e a viabilidade
de resposta à complexidade das demandas contemporâneas.
Uma última consideração mostra-se necessária de ser mencionada, já não
mais referente aos precedentes em si, mas resultante da observação sistemática do
direito. É notável a aproximação dos dois grandes sistemas judiciais, Common Law
e Civil Law.
De nossa parte, sistema tradicionalmente codificado, a abertura para a
determinação de regras a reger um sistema de precedente judicial demonstra o novo
espírito que se pretende implantar na sistemática judiciária brasileira. A aproximação
dos grandes sistemas implica uma mudança considerável de comportamento dos
operadores do direito, dos doutrinadores e até mesmo dos docentes, que terão que
preparar os jovens para uma realidade prática que não mais se funda em um sistema
exclusivamente legalista.

68
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 4. ed. Tradução: António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Kulbekian, 2010, p. 430.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014 207
Cláudia Albagli Nogueira

Os juízes, em especial, não são mais mero aplicadores da lei, mas, sobretudo,
criadores do direito, embora não estejam completamente livres de vínculos.69 Os
precedentes contribuem para realizar essa atividade criativa, vinculada a um
parâmetro mínimo declarado pelo próprio Judiciário, o que, espera-se, permitir uma
maior eficiência e produção de resultados.

Abstract: The legal theory points us to overcome a logical-deductive system, based on the dogma of
subsumption, to a legal paradigm of discourse that incorporates moral and understands the process space
as essential to ensuring the right, by allowing the construction of democratic arguments. On this track, the
New Brazilian Code of Civil Procedure, ready for approval by Congress, has recast the entire court system,
including the introduction of a chapter for the regulation of a system of judicial precedents. Think this
system of legal precedent in the current design and seek to delimit possible limits to preserve the rationality
of judgment is what we try to do the work that follows. The concepts of universal audience, pretense
correction and consensus are worked out as beacons of potential judicial. It concludes the importance of
formalizing the system of judicial precedent for speedy justice and security guard, equality and predictability
of judicial decisions.
Key words: New Code of Civil Procedure. Judicial precedents. Post-positivism.

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69
Cf. CAPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução: Carlos Alberto Álvaro Oliveira. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 1999, p. 24.

208 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014
O Novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo...

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NOGUEIRA, Cláudia Albagli. O Novo Código de Processo Civil e o sistema de


precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo da decisão judicial.
Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 88,
p. 185-210, out./dez. 2014.

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O paradigma racionalista e o momento
de modificação do ônus da prova

Lucas Buril de Macedo


Mestrando em Direito pela UFPE. Professor de Direito Processual Civil da Escola Superior de
Advocacia Professor Ruy Antunes, da OAB-PE. Bacharel em Direito pela UNICAP. Membro da
Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo. Advogado.

Ravi Peixoto
Mestrando em Direito pela UFPE. Professor de Direito Processual Civil da Escola Superior de
Advocacia Professor Ruy Antunes, da OAB-PE. Bacharel em Direito pela UFPE. Membro da
Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo. Advogado.

Resumo: O presente artigo objetiva a análise do momento de modificação do ônus da prova sob uma nova
perspectiva, à luz de uma superação do paradigma racionalista. O debate sobre a temática continua atual
em sede doutrinária e jurisprudencial, com a utilização de diversos argumentos por ambas as posições.
Entretanto, nenhum dos defensores de ambas as posições optou por uma análise tendo por base as ideias
construídas por Ovídio Baptista, que serão utilizadas para a construção de nossas ideias nesse artigo, de
modo a tornar inexplicável a defesa da modificação do ônus da prova na sentença.
Palavras-chave: Paradigma racionalista. Ônus da prova. Momento da modificação.

Sumário: 1 Introdução – 2 O paradigma racionalista – 3 O momento da modificação do ônus da


prova: visão tradicional – 4 O momento da inversão do ônus da prova e o paradigma racionalista –
5 Conclusão – Referências

1 Introdução
O presente ensaio, escrito em homenagem a um dos maiores processualistas
desse país, visa fazer um pequeno tributo ao seu maior legado: a “revelação” do
paradigma racionalista e o questionamento de suas bases e consequências, em
uma de suas obras mais significativas, denominada Processo e Ideologia, bem como
em várias outras ao longo de sua magnífica carreira, em que se voltou ao tema,
questionando com acurácia as bases da dogmática processual civil.
O professor Ovídio Baptista, certa feita, afirmou que “o Direito Processual foi
o domínio jurídico mais danificado por essa metodologia (paradigma racionalista),”1

1
Processo e ideologia: o paradigma racionalista. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 1.

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Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto

passando, em diversos momentos, a questionar nossas leis e as construções


doutrinárias, especialmente a classificação e eficácia das sentenças, a sistematização
e o estudo dos provimentos cautelares, o conceito de coisa julgada, a problemática
da existência da ação material e o tratamento de suas eficácias, a obrigacionalização
dos direitos reais, o sistema recursal.
A doutrina brasileira, infelizmente, tem ignorado, salvo honrosas exceções,2 as
reflexões e lições desse processualista, tanto para o seu desenvolvimento quanto
para a crítica ou diálogo. Neste ensaio, pretendemos fornecer uma nova visão acerca
do momento para a modificação do ônus da prova, seja na inversão do ônus da prova
permitido no Código de Defesa do Consumidor, seja à luz da teoria da dinamização
probatória. Esperamos, com este breve ensaio, homenagear o professor Ovídio Araújo
Baptista da Silva da melhor forma possível, fazendo algo que ele tanto valorizou e
tanto o fez em suas obras: discutindo ideias.
Este artigo será dividido em três partes, havendo, de início, um breve esboço do
paradigma racionalista e das mais importantes críticas a ele dirigidas. Partimos, em
seguida, para uma análise da posição tradicional acerca do momento da modificação
do ônus da prova. Finalmente, relacionamos os dois pontos observados, para que se
faça uma proposta de nova visão sobre o tema.

2 O paradigma racionalista
No primeiro parágrafo de sua mencionada obra, Ovídio Baptista nos oferece um
conceito inicial de paradigma racionalista como sendo uma doutrina que “procurou
fazer do Direito uma ‘ciência’, sujeita aos princípios metodológicos utilizados
pelas matemáticas”.3 O racionalismo leva a efeitos prejudiciais para a construção
jurídica: trata-se de metodologia que lhe é artificial e inadequada, levando à
geometrização do direito, a partir de uma retórica que acabar por criar “um mundo em
franco distanciamento de contingências histórico-temporais, encaradas com olhos
de repúdio”.4
Essa definição nos serve de ponto de partida para que possamos, em
poucas linhas, tentar explicar melhor o seu surgimento e a sua manutenção em
nosso sistema, muitas vezes de forma velada. Muito embora, em tese, essa
seja uma doutrina teoricamente ultrapassada, dado o advento da “guinada

2
Exemplificadamente: GOMES, Fábio Luiz. Responsabilidade Objetiva e Antecipação de Tutela: A superação do
paradigma da modernidade. São Paulo: RT, 2006; PEREIRA, Mateus Costa. O paradigma racionalista e a sua
repercussão no direito processual brasileiro. Dissertação de Mestrado. Recife: Unicap, 2009; ISAIA, Cristiano
Becker. Processo Civil e Hermenêutica – A Crise do Procedimento Ordinário e o Redesenhar da Jurisdição
Processual Civil pela Sentença (Democrática) Liminar de Mérito. Belo Horizonte: Juruá, 2012.
3
Processo…. cit. p. 1.
4
PEREIRA, Mateus Costa. O paradigma racionalista... cit., p. 58.

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O paradigma racionalista e o momento de modificação do ônus da prova

interpretativa” do direito,5 ela se mantém em no nosso ensino jurídico e na


nossa prática.6
O racionalismo, uma vez inserido no mundo jurídico, deu origem à denominada
Escola da Exegese, que teve seu ápice no século XIX e teve como um de seus principais
pensadores Montesquieu, com suas célebres palavras de que o juiz era a mera boca
da lei.7 O Código de Napoleão, com sua pretensão de completude, sistematicidade e
exatidão também foi um dos grandes marcos dessa ideologia.8
A pretensão de exatidão do direito teria origens em uma leitura de Savigny
do direito romano, em que ao magistrado não caberia encontrar a solução
do caso concreto, mas, sim, utilizar-se para tanto dos pareceres oferecidos
pelos jurisconsultos. É que a solução do caso era encontrada pelo parecerista e
não pelo magistrado e, como ele já recebia o caso resolvido, bastaria apenas a
utilização de uma simples lógica dedutiva, análoga ao raciocínio matemático.9 Esse
distanciamento do fato para o foco na norma abstrata foi generalizado no direito
medieval, onde, em certos casos, limitava-se o magistrado a subscrever o parecer

5
“A expressão ‘guinada interpretativa’ foi cunhada no fim dos anos setenta para registrar o que seria o
advento de um novo paradigma das ciências sociais, um paradigma talvez sobretudo epistemológico.
Nos últimos vinte anos, vem sendo empregada também por juristas teóricos, tanto anglo-saxões quanto
‘continentais’, para aludir à evolução recente da teoria e da filosofia do direito, e até mesmo para qualificar
globalmente o que corresponderia ao momento atual da cultura jurídica reflexiva. Como se sabe, nas
soluções terminológicas marcadas, como era o caso aí, pela influência das ideias de Thomas Kuhn, a
noção de ‘paradigma’ conota um sentido ou um efeito de ‘normalização’ da pesquisa e de superação de
suas crises. Mas basta levar em consideração a persistência do ideal empírico-analítico em alguns setores
importantes da teoria do direito (ou ainda o recente alinhamento de alguns juristas norte-americanos a
um neorrealismo filosófico) para se descartar de plano uma tal eficácia estabilizadora da presença de
um paradigma epistemológico hermenêutico. Por isso, a ideia de uma guinada interpretativa da teoria do
direito é plausível sobretudo quando remete a um dado extraepistemológico: a teoria jurídica contemporânea
seria considerada, em seu conjunto, como ‘interpretativa’ por se ter tornado acentuadamente sensível
à importância central da interpretação na experiência jurídica, do que decorreriam duas consequências:
a organização de uma agenda temática dominada em grande parte pelo problema da interpretação e de
sua pluralidade, e a tendência pronunciada a aproximar a interpretação (ou noções afins, como a de
argumentação) do centro da concepção, pressuposta ou conscientemente articulada, do direito” (JUST,
Gustavo. O direito como ordem e hermenêutica. Revista de informação legislativa. Brasília, ano 46, n. 181,
jan./mar. 2009, p. 7-8).
6
Processo... cit. p. 55.
7
Igualmente: PEREIRA, Mateus Costa; FERNANDES, André Lucas. “Prolegômenos ao pensamento jurídico-
filosófico de Pontes de Miranda. DIDIER JR., Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa; GOUVEIA
FILHO, Roberto P. Campos. Pontes de Miranda e o direito processual. Salvador: Juspodivm, 2013,
p. 40-43. Percebe-se a apreensão no reconhecimento de alguma discricionariedade ao magistrado e
a necessidade de segurança pelas seguintes palavras do famoso filósofo: “los jueces de la nación no
son, según sabemos, sino la boca por donde habla la ley, seres inanimados que no pueden moderar ni
su fuerza ni su rigor” (El espíritu de las leyes. Madrid: Librería General de Victoriano Suárez, 1906, t. I,
p. 237).
8
CORDEIRO, António Menezes. “Introdução à edição portuguesa.” In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento
sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
p. LXXXVI.
9
SAVIGNY, F. De la vocación de la nuestra época para la legislación y la ciencia del derecho. Buenos Aires:
Editorial Ayala, 1946, p. 62-63.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 211--230, out./dez. 2014 213
Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto

encomendado.10, 11 Essa separação entre o “fato” e o “direito” acabou por reduzir


o direito apenas ao mundo normativo, enclausurando o direito em abstrações, e,
especificamente, forçando uma neutralização do processo às complexidades do
caso concreto.12
A partir dessa realidade, ocorreu o que se denominou de geometrização do
direito, e especificamente do processo, caracterizada pelo afastamento da realidade
fática da atividade jurisdicional, que foi “abstratizada” por doutrinadores como
Savigny. Dessa forma, a complexidade do caso concreto passava a ser ignorada
pelos juristas, os quais almejariam a construção de um sistema jurídico com a
pretensão de exatidão das ciências naturais.13 Dessa forma, ao invés de valerem-se
da experiência judiciária, os juristas optaram por conseguir o mesmo resultado
pela via geométrica, no que se pode chamar de “retórica da objetividade”, visando
mortificar a interpretação – já que o juiz não diria nada mais que a lei, nesse sentido,
o que estar a falar, por seus atos, é o próprio texto legal – que, nada obstante, é
certamente inerente à atividade jurisdicional.14
Essa Escola, em tese, foi superada, com pensadores como Josef Esser,15 Chaim
Perelman16 e Theodor Viehweg.17 No entanto, permanece com grande força, devido ao

10
Processo… cit. p. 40. Menciona a doutrina que na Alemanha, durante certo tempo, os casos eram
frequentemente enviados das cortes para as faculdades para que fossem resolvidos. (MERRYMAN, John
Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. The civil law tradition: an introduction to the legal systems of Europe and
Latin America. 3. ed. Stanford: Stanford University Press, 2007, p.57).
11
Constata Castanheira Neves que os juristas do direito medieval estavam “convencidos de poder encontrar
no corpus juris civilis a solução para qualquer questão jurídica: o texto, pensado completo e coerente é
a expressão da ratio e da aequitas. E nessa perspectiva o pensamento jurídico assumiu-se decerto como
interpretação de textos: o direito oferecia-se enunciado em textos e através desses textos, no modo exegético-
comentarístico e sob o argumentum ex verbo, obter-se-iam todos os critérios jurídicos para a prática jurídica
(Metodologia Jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 86-87).
12
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Direito material e processo. Estudos de direito processual civil: homenagem
ao Professor Egas Dirceu Moniz de Aragão. MARINONI, Luiz Guilherme. São Paulo: RT, 2005, p. 404-405.
Afirma o professor em outra obra: “o direito material, pensado como norma, não como fato, será sempre
abstrato’. Ele somente se concretiza na sentença. Se vou ao mercado fazer compras e, para isto, emito
um cheque, ainda não estarei no campo do direito; isto seria um fenômeno sociológico. Não há ‘concreção’
fora do processo. O direito material, enquanto norma, será sempre ‘abstrato’. Os negócios jurídicos, por
mais ‘concretos’ que o sejam, não passam de fenômenos apenas sociológicos” (Unidade do ordenamento e
Jurisdição declaratória. Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 23).
13
Processo… cit. p. 38-41. Aponta Franz Wieacker que o afastamento da realidade foi uma trágica opção-chave do
formalismo, tornando “inevitável o alheamento da ciência jurídica em relação às realidades sociais, políticas e
morais do direito” (História do direito privado moderno. 4. Ed. Lisbos: Calouste Gulbenkian, 2010, p. 458).
14
“Tradicionalmente estava em jogo a aplicação de leis. Estas deviam ter um conteúdo determinado pela vontade
do seu autor (legislante). É, portanto, o legislador (por intermédio da boca do juiz) que fala, decide, assume a
responsabilidade, não o juiz. Quem fala não é um sujeito humano, mas um texto: o juiz como bouche de la loi;
como se sabe, esse modelo remonta a Montesquieu.
Esse paradigma familiar opera com pressupostos toscos: a possibilidade de uma única interpretação
correta em cada caso, de um centro de sentido e conteúdo claro, de uma unidade objetiva do sentido dos
textos jurídicos. Pressupor tais coisas parece ilusório diante do foro da filosofia da linguagem mais recente,
entremente explicitada há redondamente três décadas, e diante do foro da atual teoria linguística dos textos”
(MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 148).
15
Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Barcelona: Bosch, 1961.
16
TYTECA-OLDBRECHTS, Lucies. Tratado de argumentação. Lisboa: Instituto Piaget, 2007.
17
Tópica e jurisprudência. Porto Alegre: Safe, 2008.

214 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 211--230, out./dez. 2014
O paradigma racionalista e o momento de modificação do ônus da prova

dogma da neutralidade da lei, ainda havendo quem defenda a natureza meramente


declaratória da jurisdição, segundo a qual ao magistrado caberia apenas revelar a
solução que já estaria plenamente contida no texto normativo.18 Seria o dogma da
solução única, o que retiraria a responsabilidade justificativa do magistrado, pois
a ele caberia apenas descobrir a vontade da lei, decretando-se, assim, o fim da
hermenêutica e da retórica.19 Conforme constatado pelo professor Ovídio Baptista,
“é a natureza declaratória da jurisdição que dispensa os juízes de fundamentar as
sentenças e os tribunais de fundamentarem seus acórdãos”.20 O processualista, de
forma geral, embora inserido em um ordenamento jurídico extremamente complexo,
continua preso ao raciocínio liberal acerca da atividade jurisdicional, impedindo,
assim, uma visão crítica da sua própria ciência: ele se torna cego ao paradigma que
o domina.
A dogmática ainda está presa ao cientificismo que almejou aproximar o direito
das ciências naturais, criando-se a ilusão de uma resposta única, opção metodológica
que acabou por gerar tantos efeitos danosos ao processo. De forma alguma o direito
pode fazer parte do mundo natural, tendo em vista que ele é regido pelas necessidades
da sociedade, ao contrário da natureza, que não varia no tempo e espaço. O direito
é, sim, integrante do mundo cultural, tendo um forte caráter histórico, como toda a
cultura. Ele, então, “é o resultado do processo valorativo, da atividade de realização

18
Realizando constatação semelhante, embora voltada à própria teoria do direito, em crítica ao formalismo
jurídico, que afasta o direito da complexidade do caso concreto, cf.: MENEZES CORDEIRO. António Manuel da
Rocha e. op. cit., p. XIII-XXV.
Essa doutrina foi consagrada na processualística com Giuseppe Chiovenda, o qual afirmava que “la jurisdicción
consiste en la actuación de la ley mediante la sustitución de la actividad de órganos públicos a la actividad
ajena, ya sea afirmando la existencia de una voluntad de ley, ya poniéndola posteriormente en práctica”
(Principios de derecho procesal civil. Madrid, Editorial Reus, 1922, t. I, p. 349).
Essa doutrina, mesmo após todos os aportes teóricos acerca da importância da hermenêutica, da atuação
dos princípios como normas, da diferenciação entre texto e norma, continua vigente para parcela da
processualística. De modo exemplificativo, veja-se o conceito de jurisdição em uma obra publicada em 2012:
“jurisdição é a atuação (entendida não só como a declaração, mas também a imposição) da vontade concreta
da lei pelo Estado, em especial pelo Poder Judiciário. Trata-se de um trinômio: poder, função e atividade. Sua
função primordial é realizar a paz social” (AMENDOEIRA JR., Sidnei. Manual de direito processual civil. 2. ed.
São Paulo Saraiva, 2012, p. 26).
Alexandre Freita Câmara possui posição semelhante, a única diferença é a modificação do termo vontade
concreta da lei por vontade concreta do direito objetivo de modo a adequar a concepção chiovendiana ao
Estado Constitucional, muito embora isto em pouco mude. O doutrinador expressamente se mantém adepto
à concepção da jurisdição declaratória. Substitui apenas a vontade da lei pela vontade da Constituição. São
apenas “vontades” diferentes (Lições de direito processual civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009,
v. I, p. 67-69).
Para ver uma análise crítica sobre esse conceito de atividade jurisdicional, que acaba por blindar a construção
de um aporte crítico e reflexivo do imaginário jurídico, cf.: ISAIA, Cristiano Becker. O legado jurisdicional da
modalidade estatal liberal em pleno paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito. Revista da
Faculdade de Direito do sul de Minas. n. 28. Pouso Alegre: FDSM, 2009, p. 168-175.
19
Nesse sentido: SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Verdade e significado. Disponível em: <http://www.
baptistadasilva.com.br/>, acesso às 14h, do dia 06 de maio de 2013, p. 3.
20
Epistemologia das ciências culturais. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009, p. 29.

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Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto

de valores; é o valor realizado e concretizado em forma de vida social”.21 É necessária


uma modificação do modo de ver o direito, pois o próprio reconhecimento da sua
historicidade já demonstraria a inexistência de respostas verdadeiras ou falsas.
Essa pretensão de solução única diminui a importância da fundamentação, tendo
em vista que não caberia ao magistrado construir, cooperativamente, com as partes
a solução do caso concreto. Isso porque bastaria ao magistrado, para fundamentar
suas decisões, afirmar que incidiu essa ou aquela norma, que teria sentido unívoco,
evitando o debate sobre qual o sentido adotado, ou mesmo sobre a influência dos
fatos no seu entendimento.22 Se o magistrado apenas declara, a ele não se exige a
fundamentação – ela é até desnecessária. A solução do caso, para essa doutrina,
é clara, pois bastaria a ele apenas explicar como descobriu a vontade da lei, por
exemplo, colacionando alguns acórdãos no mesmo sentido para que explicite o fato
de ter alcançado a “verdade”.23
Veja-se, por exemplo, a seguinte manifestação do jurista espanhol Andrés
de la Oliva Santos acerca da atividade do magistrado, posição com a qual não é
possível discordar e que demonstra o “mundo imaginário” em que os juristas
tentaram se inserir, mas que acabou por servir apenas para mitigar a importância da
fundamentação e do contraditório:

Un juez (normal, no necesariamente portentoso) no es – y nunca lo ha


sido, ni en los momentos de la máxima efervescencia revolucionaria
francesa – un autómata aplicativo, la mera boca de que pronuncia las
palabras de la ley. La naturaleza ineludible de su quehacer le lleva a una
creación jurídica, la sentencia, distinta de la ley, por respetuosa que con
la ley sea esa sentencia.24

Haveria, também, uma certa dificuldade, pelos juristas adeptos do caráter


declaratório da jurisdição com a natural incerteza das categorias do direito material
enquanto alegadas no processo (direito subjetivo, pretensão e ação). Para essa
doutrina, o direito será sempre certo, desde o início do procedimento jurisdicional.
Bastará ao magistrado descobrir a verdade que para ele não estava clara em seu
início, recusando-se a admitir que essa incerteza não é subjetiva, mas objetiva.25

21
NÓBREGA, J. Flóscolo da. Introdução ao direito. 8. ed. João Pessoa: Edições Linha d’água, 2007, p. 36.
22
Sobre a importância da fundamentação, uma vez admitido o caráter problemático do direito, pois teria ela
a função de estabelecer os limites entre a discricionariedade e o arbítrio, devendo haver a análise das
circunstâncias fáticas, bem como a análise dos argumentos tanto da parte vencedora, quanto da sucumbente:
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Fundamentação das sentenças como garantia constitucional. Jurisdição,
direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
23
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Justiça da lei e justiça do caso. Disponível em: <http://www.baptistadasilva.
com.br/ >, acesso às 10h, do dia 05 de maio de 2013, p. 11.
24
El papel del juez en el Proceso Civil: frente a la ideología, prudentia iuris. Navarra: Civitas, 2012, p. 80 (grifos nossos).
25
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Unidade… cit. p. 68. É importante, no entanto, a leitura de todo esse artigo,
em que o autor analisa profunda análise sobre a temática.

216 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 211--230, out./dez. 2014
O paradigma racionalista e o momento de modificação do ônus da prova

O processo, então, seria pensado a partir do dogma da segurança jurídica e


da manutenção do status quo, não se admitindo a construção jurisprudencial do
direito, pois o procedimento deveria levar apenas à descoberta da vontade da lei, do
soberano, do contrário, esta seria injusta.26
Essa doutrina da exegese ainda possui outra consequência maléfica, que seria
o dogma da neutralidade da lei, que representaria apenas a vontade da maioria,
reforçando o seu caráter democrático e que a admissão de discricionariedade nas
decisões seria, por si, antidemocrático. No entanto, essa doutrina ignora tanto o fato
de que as leis, muitas vezes, são meros produtos de maiorias fictícias e de grupos
de poderes dominantes no legislativo,27 bem como a constatação de que o Poder
Judiciário é um dos únicos que permitem a participação direta daqueles influenciados
pela norma produzida.28
No processo civil, o procedimento ordinário é o grande pilar do paradigma
racionalista, pois ele seria o único instrumento que permitiria que a “verdade” fosse
encontrada, além de consagrar a “neutralidade” do processo, onde o magistrado só
estaria autorizado a decidir após produzir o “sonhado juízo de certeza”,29 rechaçados
os juízos de verossimilhança.30 Não é por acaso que o princípio da adequação ficou
esquecido por tantos anos31 e há uma grande desvalorização dos procedimentos
especiais, em principal, aqueles de cognição sumária, em favor das vias ordinárias.
Essa busca pela segurança e pelos juízos de certeza gerou ainda a exclusão das
diversas formas de contraditório, tais como o diferido e o contraditório para consagrar
como única forma legítima aquele realizado previamente. Tem-se, ainda, a negação
dos juízos provisórios, pois, de acordo com a construção do que seria sentença pelo
CPC, esta dependeria sempre do juízo de certeza (mesmo que seja sobre matéria
processual), retirando o caráter de sentença das decisões liminares.32
Um dos fatores que impedem a ultrapassagem do paradigma racionalista
pelo processo civil seria o fato de que ele ainda mantém o indivíduo como o seu
protagonista, enquanto outras ciências humanas, tais como a história, teriam
percebido que as verdadeiras forças sociais seriam representadas pelos grupos.33

26
HOBBES, Thomas. Leviatã. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_thomas_
hobbes_leviatan.pdf>, acesso às 14h, do dia 06 de maio de 2013, p. 92.
27
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid: Editorial Trotta, 2009, p. 37.
28
CAMBI, Eduardo. Norma e processo na crença democrática. REPRO, São Paulo: RT, 2003, v. 110.
29
Processo… cit. p. 27.
30
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Epistemologia… cit., p. 7. Ovídio, em outras oportunidades, chega a criticar
ferrenhamente o princípio do contraditório e da ampla defesa, segundo o qual, à risca, seria impossível a
existência de provimentos liminares.
31
Veja-se, com proveito, a seguinte obra de Luiz Guilherme Marinoni, em especial os capítulos 2 a 4: Técnica
processual e tutela dos direitos. 3. ed. São Paulo: RT, 2010.
32
Processo… Cit. p. 112-113.
33
Processo… Cit. p. 61.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 211--230, out./dez. 2014 217
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Veja-se, por exemplo, a enorme dificuldade encontrada em nosso país para


a introdução do processo coletivo, uma vez que todas as construções teóricas
foram pensadas para o processo individual.34 Essa dificuldade, por sua vez, não foi
encontrada nos países do common law, onde o Poder Judiciário não foi afetado pela
revolução europeia.35
O processo civil moderno, então, transformou-se em uma disciplina abstrata,
que “não depende de experiências, mas de definições, integra o paradigma que
nos mantém presos ao racionalismo, especialmente ao Iluminismo, que a História
encarregou-se de sepultar”.36
Seria importante, então, resgatar o caráter eminentemente problemático do
direito, resgatando-se a retórica e a hermenêutica, pois ele não pode ser forçosamente
tratado como se fosse uma ciência matemática, capaz de fornecer respostas exatas.
É importante a admissão de que as sentenças são “um reflexo da constelação de
valores válidos para as circunstâncias históricas que os produziram”37 e de que o
processo civil, tal qual o direito material, depende e deve se moldar ao meio social
em que esteja inserido.38 As decisões não são certas ou erradas, mas justas ou
injustas, abrindo-se, assim, o caminho para os juízos de verossimilhança no processo,
revalorizando, justamente, o seu caráter dialético.39 Só assim é que será possível a
superação do paradigma racionalista.

34
Nesse sentido, defende-se a superação da summa divisio clássica entre direito público e privado como
um dos entraves à construção de um processo coletivo, substituindo-a pela divisão relativizada entre
direitos individuais e coletivos, cf. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: superação da
Summa Divisio Direito Público e Direito Privado por uma nova Summa Divisio Constitucionalizada. Belo
Horizonte: Del Rey, 2008, p. 418. Exemplificadamente, veja-se a opinião de Sergio Gilberto Porto, que já
afirmou ser o regime clássico da coisa julgada “absolutamente imprestável para a definição nos quais
o direito posto em causa tenha caráter coletivo ou difuso, eis projetado no Código de Processo Civil
atual para pacificação apenas de conflitos individuais” (A coisa julgada civil. 4. ed. São Paulo: RT, 2011,
p. 14-15).
35
Inclusive, afirma Ovídio Baptista que “enquanto o direito inglês procura preservar a segurança do direito,
os sistemas legalistas da Europa continental, identificando o direito como a lei, satisfazem-se com a
segurança da lei do Estado, sem qualquer preocupação por sua eventual injustiça material” (Jurisdição
e execução na tradição romano-canônica, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 90). No mesmo
sentido: MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. op. cit., p. 16-17. Após se referir à meta da
revolução continental de afastar o judiciário de ingerências no poder, já que estava próximo à nobreza,
aduz que: “In the United States and England, on the contrary, there was different kind of judicial tradition,
one in which judges had often been a progressive force on the side of the individual against the abuse of
power by the ruler, and had played an important part in the centralization of governmental power and the
destruction of feudalism. The fear of judicial lawmaking and of judicial interference in administration did
not exist” (p. 17).
36
Processo… cit. p. 79.
37
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Epistemologia… cit. p. 36.
38
Veja-se a gama de exemplos utilizados pelo autor para demonstrar a construção da boa-fé objetiva e seus
deveres decorrentes como um exemplo de reação ao paradigma racionalista e da quebra do absolutismo do
pacta sunt servanda, demonstrando, assim, a plurivocidade de sentidos dos textos normativos (Justiça…
cit. p. 1-8).
39
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Verdade... cit. p. 8-9. Consoante demonstra o autor, a verossimilhança não
ocorre apenas nas decisões provisórias, mas também nas sentenças.

218 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 211--230, out./dez. 2014
O paradigma racionalista e o momento de modificação do ônus da prova

3 O momento da modificação do ônus da prova: visão


tradicional
A celeuma quanto ao momento da redistribuição do ônus da prova remete à
contenda doutrinária no que toca à aplicação do art. 6º, VIII, do CDC: há entendimento
que julga correta a inversão no deferimento da petição inicial; outros esgrimem a
tese da flexibilização da regra na fase de saneamento; e, por fim, parcela da doutrina
entende o momento oportuno quando da sentença.
A dinamização do onus probandi em decisão citatória não é adequada.40
Nesse momento não se sabe efetivamente das dificuldades da prova, na verdade,
a situação instrutória do réu pode ser ainda mais complicada, além de sequer ser
possível o conhecimento dos pontos controvertidos, que dependem da resposta do
réu.41 O contraditório deve ser observado para além da audiência bilateral das partes,
sendo esse seu caráter meramente formal, devendo haver a concessão ao réu da
oportunidade de elucidar a situação litigiosa e de influenciar no juízo do magistrado.
Como o princípio da cooperação também opera em matéria de direito, essa
oportunidade deve ser concedida também no que diz respeito à dinamização do ônus
da prova, outrossim, não há qualquer prejuízo na esfera jurídica do demandante pela
espera de momento mais avançado e oportuno. O mesmo se diga do requerimento
de inversão pelo réu: deve-se ouvir o autor primeiramente, na réplica, sob pena de
vulneração ao princípio do contraditório efetivo.
No que se refere à opinião doutrinária do momento processual como sendo a
sentença, ela está pautada na premissa de que o ônus da prova só possui dimensão
objetiva, ou seja, é tão somente regra de julgamento.42 Assim, afirma-se que somente
após a valoração do conjunto probatório o magistrado seria capaz de analisar ou

40
Defendendo a possibilidade da inversão do ônus da prova na própria inicial em caso de Ação Civil Pública,
pois entende possível, em tal hipótese, a existência de um inquérito civil anterior à ação judicial capaz de
produzir os elementos necessários para a formação, já na inicial, do juízo de verossimilhança necessário para
a aplicação do art. 6º, VIII do CDC, cf.: MARTINS, Plínio Lacerda. A inversão do ônus da prova na ação civil
pública proposta pelo Ministério Público em defesa dos consumidores. Revista de direito do consumidor. São
Paulo: RT, 1999, n. 31, p. 75-77.
41
SILVA, Bruno Freire e. A inversão judicial do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Aspectos
processuais do Código de defesa do Consumidor. CARVALHO, Fabiano; BARIONI, Rodrigo. (Coords.). São Paulo:
RT, 2008, p. 19.
42
Nesse exato sentido, afirmando que o ônus da prova é regra de juízo, portanto, é esse o momento adequado
para a inversão da prova, cf.: NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil
comentado. 10. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 608; GRINOVER, Ada Pellegrini. Et alli. Código Brasileiro de Defesa
do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007,
p. 814-816; ARENHART, Sérgio Cruz. Ônus da prova e sua modificação no processo civil brasileiro. Disponível
em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Cruz%20Arenhart%20-%20onus%20da%20prova%20
e%20sua%20modifica%C3%A7%C3%A3o%20no%20dpc.pdf>. Acesso às 8h do dia 8 de fevereiro de 2013,
p. 25-28; EBERLIN, Fernando Bücher Von Teschenhausen. A inversão do ônus da prova nos processos que
envolvem relação de consumo: regra de comportamento ou critério de julgamento? Revista Dialética de Direito
Processual. n. 45. São Paulo: Dialética, 2006, p. 38.

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não das regras de distribuição do ônus da prova e esse momento ocorreria apenas
na sentença.43
Ainda há a crítica em relação ao fato de que, uma vez inserida a modificação
no momento da audiência preliminar, haveria aumento da complexidade do processo,
além de grande comodidade para o sujeito desonerado, que não teria necessidade
de participar da produção de prova. Além do mais, o magistrado ainda não teria
condições de, no saneamento, avaliar a maior facilidade na produção de provas.44 Essa
corrente ainda afirma que a parte já saberia, de antemão, acerca da possibilidade de
modificação do ônus probatório, motivo pelo qual não haveria surpresa em inversão
no momento da sentença.45 Por fim, ainda se argumenta que a inversão ocorrida
anteriormente à sentença acabaria por gerar um prejulgamento da causa.46
Encontra-se ainda um último argumento, conexo ao do aumento da complexidade
processual, que seria a violação do princípio da duração razoável do processo, pois
criaria mais uma decisão incidente, que poderia ser recorrida, bem como poderia
ocorrer de haver reforma dessa decisão após a apelação, pelo tribunal, o que forçaria
a toda uma nova fase preliminar.47
Acerca dessa corrente, podem ser feitas algumas ponderações à luz da
doutrina tradicional. Inicialmente, ocorre que o viés subjetivo da carga probatória
é complementar e essencial à regra de julgamento, sem o qual a atividade judicial
prescindirá do contraditório, o que, notoriamente, viola a garantia constitucional do
devido processo legal.
Além disso, a atuação do ônus subjetivo faz o procedimento legítimo, eis que,
no Estado constitucional, a legitimação do processo é nomeadamente imanente à
participação: “Demais disso, não é admissível que os litigantes sejam surpreendidos
por decisão que se apoie, em ponto fundamental, numa visão jurídica por eles não
apercebida”.48 Haveria, com a adoção dessa posição, a violação do princípio da
cooperação, especificamente do dever de consulta dele decorrente, que impede a

43
GARCIA, André Almeida. A distribuição do ônus da prova e sua inversão judicial no sistema processual vigente
e no projetado. Repro. São Paulo: RT, 2012, v. 208, p. 118. Defendendo posição semelhante: LOPES, João
Batista. Ônus da prova e teoria das cargas dinâmicas no novo Código de Processo Civil. Repro. São Paulo: RT;
2012, n. 204, p. 238
Também parecendo adotar posição semelhante, uma vez que aponta a desnecessidade de decisão sobre o
tema, cf.: MACHADO, Marcelo Pacheco. Ônus estático, ônus dinâmico e inversão do ônus da prova: análise
crítica do projeto do novo código de processo civil. Repro. São Paulo: RT, 2012, v. 208, p. 312-313.
44
MACHADO, Marcelo Pacheco. Ônus estático, ônus dinâmico e inversão do ônus da prova: análise crítica do
projeto do novo código de processo civil… cit. p. 312-313.
45
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado… cit. p. 609.
46
GRINOVER, Ada Pellegrini. Et alli. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor... cit. p. , p. 814-816.
47
EBERLIN, Fernando Bücher Von Teschenhausen. A inversão do ônus da prova nos processos que envolvem
relação de consumo... cit. p. 38.
48
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Disponível em: <http://www.
abdpc.org.br/abdpc/artigos/Carlos%20A%20A%20de%20Oliveira%20(8)%20-formatado.pdf>, acesso às 14,
do dia 06 de maio de 2013, p. 13.

220 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 211--230, out./dez. 2014
O paradigma racionalista e o momento de modificação do ônus da prova

prolação de decisões-surpresa, quando há utilização de ponto de direito ou de fato


não discutido pelas partes.49-50
Como ficou assentado, a aplicação da regra de julgamento invertida, sem
sinalização anterior, ignora o dever de colaboração do juiz com as partes, ocasionando
decisão-surpresa. Ora, a própria dinamização dos ônus probatórios tem alicerce na
cooperação, seria uma imensa agressão lógico-jurídica ignorar esse princípio na
atuação do magistrado,51 condutor do processo e responsável pela sua adequação.
Da mesma forma, tendo como base o princípio da adequação, não se pode admitir a
adaptação do procedimento de modo a gerar surpresas nas partes. O procedimento
é a espinha dorsal do processo e, admitindo-se a sua adaptação às partes, deve ser
garantida a previsibilidade das suas atuações.
Ademais, a visão da regra neste feitio gera uma exacerbação do formalismo, em
detrimento da justiça do decisum. Com a ciência anterior dos litigantes, a atividade
instrutória será norteada pelo encargo, potencializando as chances do convencimento
de verdade, o que, por sua vez, propicia uma prestação jurisdicional de maior
justeza, porquanto sem uma mínima correição fática não há que se falar de justiça
substancial.52 Bem observadas as coisas, a inversão do ônus probatório em sentença
é uma sanção, e não uma técnica processual para estruturar o processo a partir dos
direitos fundamentais processuais, eis que cerceia, claramente, o direito de defesa
da parte a quem foi atribuído o onus probandi.
A atividade probatória, para sua efetividade, deve estar aclarada para as partes
antes do início da instrução, é uma providência preliminar, permitindo uma postura
processual adequada para elucidação das questões fáticas e evitando decisões-
surpresa. Este é o posicionamento apto a que a técnica da dinamização do ônus da
prova seja real tutela dos direitos fundamentais processuais, sem infringi-los.

49
Especificamente sobre a nulidade da decisão de “terceira via”, cf.: GRADI, Marco. Il principio del contradittorio
e la nullità della sentenza della “terza via”. Rivista di diritto processuale. n. 4. Pádua: Cedam, 2010.
50
Nesse sentido, já afirmou o STJ que “Mesmo que controverso o tema, dúvida não há quanto ao cabimento da
inversão do ônus da prova ainda na fase instrutória – momento, aliás, logicamente mais adequado do que na
sentença, na medida em que não impõe qualquer surpresa às partes litigantes (…)” (STJ, REsp 662.608/SP,
4ª T., Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 12/12/2006, DJ 05/02/2007, p. 242).
51
Aduz, nesse sentido, diferenciando-se meramente o nomen juris, Eduardo Cambi: “Seria um grande equívoco
introduzir a distribuição dinâmica da carga probatória com base no princípio da solidariedade, mas, tal como
faz grande parte da doutrina brasileira em relação à inversão do ônus da prova do art. 6º, inc. VIII, CDC,
percebê-lo como um critério de julgamento, a ser considerado pelo juiz somente no momento de sentenciar.
Neste caso, a distribuição deixaria de ser solidária na medida em que daria ensejo às decisões surpresas:
a facilidade na produção da prova deve ser reconhecida antes da decisão para que a parte onerada tenha
amplas condições de provar os fatos controvertidos, evitando que, a pretexto de tutelar o bem jurídico coletivo,
se retirem todas as oportunidades de defesa” (A prova civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: RT,
2006, p. 343). Peyrano, à luz do direito argentino (La doctrina de las cargas probatorias dinámicas puesta
a prueba. Revista uruguaya de derecho procesal. n. 2 de 1992, p. 244), aduz ser necessário, no sistema
processual argentino, para aplicabilidade justa da flexibilização da carga probatória, a criação de lege ferenda
da nossa audiência preliminar, o que reforça, pela autoridade do autor, a tese aqui esgrimida (La doctrina...
cit., p. 244).
52
Nesse sentido: TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Madrid: Editorial Trotta, 2005, p. 63-65.

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Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto

Acerca da pretensa violação do princípio da duração razoável do processo, é


importante a consciência de que ele não é o único princípio vigente em nosso sistema
processual, não sendo absoluto, devendo ser aplicado em harmonia com o princípio
da cooperação. Assim, entre uma celeridade que atente contra o devido processo
legal e um processo justo, impõe-se a escolha do segundo.
Acerca do argumento sobre o prejulgamento da causa, simples é a sua
resposta. Ocorre que a modificação do ônus da prova, por vezes, nada tem a ver
com a verossimilhança, sendo baseada na hipossuficiência de uma parte em relação
a outra. Não haveria, de qualquer modo, um prévio julgamento. E, mesmo em
caso de inversão baseada em verossimilhança o argumento não se sustenta. Isso
porque o magistrado, ao modificar o ônus da prova, permite à parte a possibilidade
de desincumbir do ônus da prova. Exemplificadamente, em causa relativa a direito
do consumidor, havendo inversão do ônus da prova e o fornecedor sendo capaz
de demonstrar a inexistência do fato constitutivo do direito do autor, ele não será
sucumbente. Se prejulgamento fosse, não poderia a parte contrária modificar o seu
resultado posteriormente.
O momento processual adequado, para essa corrente, é o da audiência
preliminar. Aliás, o texto do art. 331, §2º, do CPC, corrobora para isso, ao dispor
que o magistrado, nessa ocasião, “decidirá as questões processuais pendentes e
determinará as provas a serem produzidas”.
Não sendo o caso de audiência preliminar, o juiz deverá sinalizar a inversão do
onus probandi no despacho saneador, já que possibilita, com isso, o pleno exercício
do contraditório e do direito de acesso à justiça. Indispensável é que as partes
tenham, na fase instrutória, consciência da estrutura do processo, repudiando a mera
expectativa do julgamento, sendo levadas à força pelo juiz no trâmite processual,
para uma possibilidade efetiva de contribuição e influência no decisum, legitimando
a prestação jurisdicional.
Finalmente, a dinamização, enquanto técnica indispensável à concretização
do acesso à justice, pode ser determinada a posteriori, quando o julgador perceber
a hipossuficiência probatória em momento avançado, ou mesmo em fase recursal.
É preferível, no entanto, que a dinamização aconteça no decorrer da instrução. De
qualquer forma, independentemente do momento ou fase processual em que a
técnica seja empregada, o que importa é que o juiz mantenha incólume a garantia
constitucional do contraditório,53 permitindo à parte onerada o exercício do direito à
prova. Mesmo que o juízo acerca da necessidade de modificação do ônus probatório
seja alcançado na sentença, o que é possível, mesmo assim, deve permitir à parte a

53
STJ, AgRg no REsp 1.095.663/RJ, 4ª T., Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 04/08/2009, DJe 17/08/2009.

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O paradigma racionalista e o momento de modificação do ônus da prova

produção das provas a ela incumbidas.54 Consoante se apontou supra, muito embora
isso possa gerar um relativo atraso na resolução da causa, não se pode admitir que
o objetivo de celeridade subverta todos os demais princípios processuais.
A parte onerada deve ter sempre a oportunidade de, a partir da modificação
da regra geral, requerer e produzir provas, fazer alegações em contraditório etc. Ao
proceder dessa forma, o magistrado evitará eventual sanção de nulidade sobre os
seus atos, por violação do princípio da cooperação.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como se viu, por certo
tempo, teve como posicionamento dominante a modificação do ônus da prova.
No entanto, desde 2007, já havia certa divergência, como restou consignado no
RESP 422778/SP. Nesse precedente, consta da ementa a seguinte afirmação:
“Conforme posicionamento dominante da doutrina e da jurisprudência, a inversão
do ônus da prova, prevista no inc. VIII, do art. 6º do CDC, é regra de julgamento.
Vencidos os Ministros Castro Filho e Humberto Gomes de Barros, que entenderam
que a inversão do ônus da prova deve ocorrer no momento da dilação probatória”.55
Há, na jurisprudência do STJ, também, uma série de precedentes no sentido
de que o momento adequado para a inversão seria o do saneamento.56 Isso apenas
confirma que este Tribunal, por vários anos, manteve forte divergência em seus
julgados, havendo diversos acórdãos interpretando tanto como regra de julgamento
quanto como regra de procedimento.
Pois bem, em 2011, houve a interposição de embargos de divergência no STJ,
suscitando justamente o questionamento acerca do tema, havendo o reconhecimento
da divergência entre as duas turmas que compõem a 2ª Seção. O resultado foi o
reconhecimento – e consequente desprovimento do Recurso Especial – por maioria de
votos (vencidos o Ministro Sidnei Beneti e o Desembargador convocado Vasco Della
Giustina) de que a inversão do ônus da prova seria, sim, uma regra de procedimento,
consoante restou explicitado na seguinte ementa:

RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE POR VÍCIO NO


PRODUTO (ART. 18 DO CDC). ÔNUS DA PROVA. INVERSÃO ‘OPE JUDICIS’

54
Nesse sentido: GIDI, Antonio. Aspectos da inversão do ônus da prova no Código do Consumidor. Revista de
direito processual civil. n. 3, Curitiba: Genesis, 1996, p. 587.
55
STJ, REsp 422.778/SP, 3ª T., Rel. Min. Castro Filho, p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, j. 19/06/2007,
DJ 27/08/2007, p. 220.
56
STJ, REsp 195.760/PR, 3ª T., Rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 20/05/1999, DJ 23/08/1999, p. 122; STJ,
REsp 442.854/SP, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 11/11/2002, DJ 07/04/2003, p. 283 (Neste
precedente, há interessante discussão entre os ministros acerca do momento da inversão do ônus da prova,
que merece ser lida); STJ, REsp 662.608/SP, 4ª T., Rel. Min. Hélio Quaglia, j. 12/12/2006, DJ 05/02/2007,
p. 242; STJ, REsp 881.651/BA, 4ª T., Rel. Min. Hélio Quaglia, j. 10/04/2007, DJ 21/05/2007, p. 592;
STJ, REsp 598.620/MG, 3ª T., Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 07/12/2004, DJ 18/04/2005,
p. 314; STJ, REsp 720.930/RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomao, j. 20/10/2009, DJe 09/11/2009 STJ,
EREsp 422.778/SP, 2ª seção, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Rel. p/ Acórdão Min. Maria Isabel Gallotti,
j. 29/02/2012, DJe 21/06/2012.

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Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto

(ART. 6º, VIII, DO CDC). MOMENTO DA INVERSÃO. PREFERENCIALMENTE


NA FASE DE SANEAMENTO DO PROCESSO.
A inversão do ônus da prova pode decorrer da lei (‘ope legis’), como
na responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço (arts. 12 e 14
do CDC), ou por determinação judicial (‘ope judicis’), como no caso dos
autos, versando acerca da responsabilidade por vício no produto (art. 18
do CDC).
Inteligência das regras dos arts. 12, §3º, II, e 14, §3º, I, e 6º, VIII,
do CDC.
A distribuição do ônus da prova, além de constituir regra de julgamento
dirigida ao juiz (aspecto objetivo), apresenta-se também como norma de
conduta para as partes, pautando, conforme o ônus atribuído a cada uma
delas, o seu comportamento processual (aspecto subjetivo). Doutrina.
Se o modo como distribuído o ônus da prova influi no comportamento
processual das partes (aspecto subjetivo), não pode a inversão ‘ope
judicis’ ocorrer quando do julgamento da causa pelo juiz (sentença) ou
pelo tribunal (acórdão).
Previsão nesse sentido do art. 262, §1º, do Projeto de Código de
Processo Civil.
A inversão ‘ope judicis’ do ônus probatório deve ocorrer preferencialmente
na fase de saneamento do processo ou, pelo menos, assegurando-se
à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo a reabertura de
oportunidade para apresentação de provas.
Divergência jurisprudencial entre a Terceira e a Quarta Turma desta Corte.
RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.57

Essa corrente parece ser, na atualidade, a dominante na doutrina,58 contando


com a adesão do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, como mencionado.

57
STJ, REsp 802.832/MG, 2ª Seção, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 13/04/2011, DJe 21/09/2011.
58
Nesse sentido: MARINONI, Luis Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil anotado artigo por
artigo. 2. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 336-337; DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael.
Curso de direito processual civil. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2011, v. 2, p. 85-88; CARPES, Artur. Ônus
dinâmico da prova. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 134-140; NUNES, Rizzato. Comentários ao
código de defesa do consumidor. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 232-233; CAMBI, Eduardo. A prova civil...
cit. p. 343; : GIDI, Antonio. Aspectos da inversão do ônus da prova no Código do Consumidor, p. 587-588;
SILVA, Bruno Freire e. A inversão judicial do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor.. cit.
p. 19; HOFFMAN, Paulo. Inversão do ônus da prova prevista no Código de Defesa do Consumidor – critério
de julgamento (sob a ótica do juiz) e critério de procedimento (para o fornecedor). Aspectos processuais do
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224 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 211--230, out./dez. 2014
O paradigma racionalista e o momento de modificação do ônus da prova

Concordamos com o posicionamento dessa corrente, no entanto, entendemos que as


críticas ao posicionamento de que seria regra de julgamento podem ser ainda mais
incisivas, conforme veremos no próximo tópico.

4 O momento da inversão do ônus da prova e o paradigma


racionalista
No ponto 2 deste artigo, fizemos uma análise do paradigma racionalista, com o
objetivo de demonstrar a sua contínua influência na processualística brasileira atual.
Ocorre que, por vezes, a doutrina é dominada por esse paradigma e sequer nota a
sua influência. Acreditamos que a discussão sobre o momento da inversão do ônus
da prova traz um grande exemplo desse fato.
Vimos, no ponto anterior, a enorme celeuma doutrinária acerca desse momento,
a qual, atualmente, pende para o lado de que seja regra de procedimento, muito
embora não seja de forma alguma tema pacificado. Há ainda doutrinadores de grande
renome, como Nelson Nery Junior e Ada Pellegrini Grinover, defendendo a inversão
como regra de julgamento.
Citamos, então, diversos argumentos desta corrente e, deliberadamente,
deixamos de responder a um deles, relacionado à questão de que a parte, ao
participar do processo, já saberia as regras do jogo, portanto, não seria surpreendida
pelo resultado do julgamento. Tal argumento é quase uma confissão da doutrina da
exegese e da adoção da jurisdição como atividade declaratória, onde bastaria ao
magistrado revelar a vontade da lei.
Seja pela via do CDC, seja pela via constitucional, que permite a dinamização
do ônus probatório, nota-se que é sempre uma modificação ope judicis, que depende
do debate entre as partes. Não é, de forma alguma, como o é uma inversão legal, tal
como prevista no art. 38 do CDC. Há, portanto, necessidade de contraditório, pois,
como bem se sabe, o texto difere da norma, a qual depende de interpretação.
A modificação do ônus da prova, então, depende, por completo, da dinâmica do
caso concreto, dos fatos, dos debates. Por mais que as partes saibam, desde o início
da relação processual, as regras do jogo, não podem saber o resultado.
Admitir a existência de norma permissiva de modificação do ônus da prova à
luz do caso concreto como algo “claro” é admitir a jurisdição declaratória. Consoante
alertou Ovídio Baptista, para essa doutrina, o direito será sempre certo, desde o início
do procedimento jurisdicional. O magistrado precisará apenas revelar a vontade da
lei, que é clara. A incerteza, para o juiz declaratório, não é subjetiva, mas objetiva.59
Por conseguinte, uma vez se admitindo a natural complexidade das normas,
que dependem do diálogo entre as partes e os magistrados para o encontro da

59
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Unidade… cit. p. 68.

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Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto

interpretação mais correta ao caso concreto, não se pode admitir a modificação do


ônus da prova como regra de julgamento. O momento adequado para o debate é
a inicial e a contestação, onde cada qual irá alegar os fatos pertinentes e a (im)
possibilidade de arcar com o ônus de sua prova.
E, antes da instrução probatória, deve o magistrado demonstrar o seu raciocínio,
fundamentadamente, acerca de qual parte arcará com a prova desse ou daquele fato.
Não se pode admitir que a parte, desde o início, seja capaz de realizar um exercício
de futurologia para saber se caberá a ela, ou não, o ônus de prova de determinado
fato.60 Impõe-se a necessidade de uma decisão demonstrando a responsabilidade
probatória de cada uma das partes.
Não há como negar a existência de discricionariedade – jamais arbitrariedade –
nessa decisão. Sendo assim, só por meio de decisão anterior ao momento probatório
é que as partes podem ser capazes de se desincumbir desse ônus. Do contrário,
havendo essa modificação apenas na sentença, não será possível à parte modificar a
sua atuação, de modo a não ser forçada a arcar com os possíveis prejuízos advindos
do ônus probatório a ela imposto.
Mencione-se ainda o risco de engessamento trazido pela sua consideração como
regra de julgamento. É que, não sendo a modificação realizada à luz das condições
da causa, mais sim de forma prévia e abstrata em função de casos anteriores – a
exemplo do CDC que já prevê a possibilidade de inversão –, há o engessamento
da teoria, o que faz com que ela deixe de ser dinâmica e volte a ser estática.61 No
entanto, mesmo no caso do Código de Defesa do Consumidor, impõe-se a análise dos
fatos e alegações das partes, não se podendo interpretar como regra de julgamento
apenas porque o direito positivo permite essa eventual modificação.

5 Conclusão
O paradigma racionalista, por vezes, influencia sutilmente os juristas. Essa
ideologia, por vezes, domina-o de forma velada, de forma que ele sequer percebe a
sua influência.
O caso do momento de modificação do ônus probatório é um desses casos. A
doutrina e a jurisprudência, até hoje, debatem a temática, mas, em nenhum momento
foi mencionada a questão do paradigma racionalista. O objetivo desse artigo foi
basicamente esse. À luz dos ensinamentos de Ovídio Baptista, que, durante toda sua
carreira acadêmica, combateu essa ideologia nociva à evolução do direito processual,
tentamos fornecer uma nova visão a esse debate. Não se pode admiti-la como regra
de julgamento justamente porque impõe anterior decisão para que a parte seja capaz

60
De forma semelhante: NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. A inversão do ônus da prova… cit. p. 111.
61
CREMASCO, Suzana Santi. A distribuição… cit. p. 91.

226 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 211--230, out./dez. 2014
O paradigma racionalista e o momento de modificação do ônus da prova

de arcar com o seu ônus da prova, pois, por si só, ela não é capaz de adivinhar a
quem será determinado o seu ônus pelo magistrado.

Abstract: The present essay has as objective to analyse the moment to change the burden of proof by a
new perspective, based on the overcoming of the rationalist paradigm. The debate of the theme continues
in the doctrine and in the jurisprudence, with the use of many arguments in both positions. However, none
of the defenders has opted for an analysis based on the ideas constructed by Ovídio Baptista, wich will
be used to the construction of our ideas in this essay, in a way that the position that defends that the
modification of the burden of proof is made on the sentence is unjunstifiable.
Key words: Rationalism paradigm. Burden of proof. Moment of modification.

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230 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 211--230, out./dez. 2014
Processo civil constitucional e os
princípios da publicidade e da motivação

Pablo Zuniga Dourado


Juiz Federal do TRF da 1ª Região. Graduado pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Especialista em Direito Constitucional-Eleitoral pela Universidade de Brasília (UnB) e
Processo Civil pelo UNICEUMA. Experiência em diversos cargos públicos, da área jurídica,
com aprovação em concurso e exercício dos cargos de Defensor Público, Promotor de Justiça
e Juiz de Direito. Exerceu magistério no âmbito de graduação. Professor em diversos cursos
jurídicos em Brasília.

Resumo: O artigo trata da consolidação do Direito Processual Constitucional no Brasil e suas consequências
na interpretação dos princípios da publicidade e da motivação. A proposta é que os referidos princípios
exigem do juiz fundamentação destinada ao povo, por meio de argumentos racionais estabelecidos
publicamente e passíveis de crítica. A interpretação reivindicada é consectário do Estado Democrático de
Direito, cuja exigência de democratização da sociedade irradia efeitos no Direito Processual.
Palavras-chave: Direito Processual Constitucional. Princípios da publicidade e da motivação. Argumentação
racional. Estado Democrático de Direito.

Sumário: Introdução – 1 O processo civil constitucional no Brasil – 2 Regras e princípios – 3 Princípio da


publicidade e da motivação – Conclusão – Referências

Introdução
Diante da consolidação histórica do direito processual constitucional, como
devem ser interpretados os princípios da publicidade e da motivação? Essa pergunta
é o mote do texto que iremos apresentar. Vamos tentar demonstrar ao longo do artigo
que o direito processual evoluiu e passou por transformações; constitucionalizou-se.
Recorremos às bases do Estado Democrático de Direito, com a proposta de que é
possível interpretação no sentido de exigir dos juízes que fundamentem racionalmente
suas decisões.
A prestação de contas por meio da motivação e da publicidade é nossa
preocupação central. Defenderemos que os elementos nucleares dos princípios
citados não devem ser interpretados com base apenas na perspectiva formal. Vamos
propor que a função endoprocessual (interna) dos princípios da motivação e da
publicidade é insuficiente. Utilizaremos a doutrina que defende a necessidade de
cumprir, também, a função extraprocessual (fundamentação e publicidade dirigidas
ao povo: perspectiva externa), a fim de compatibilizar o processo com o princípio do
Estado Democrático de Direito e tornar o acesso à justiça realmente efetivo.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014 231
Pablo Zuniga Dourado

Temos a intenção de demonstrar como o déficit de fundamentação e de


publicidade é incompatível com o princípio democrático. Sustentaremos que é
imprescindível a prestação de contas pelos juízes, que somente se realiza com a
exposição de argumentos racionais em ambiente público, tendo em vista a correlação
lógica entre os princípios da motivação e da publicidade.

1 O processo civil constitucional no Brasil


Podemos afirmar que o fenômeno da constitucionalização do processo civil
tem origem nas profundas transformações ocorridas sobre os direitos humanos, nos
séculos XVIII e XIX,1 com ênfase no direito de acesso à justiça. Nessa época, o
“Direito de acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do
indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação”. A ideia central de que o acesso
à justiça era um “direito natural” não significava necessidade de uma ação do Estado
para proteção dos direitos naturais, de tal sorte que “o acesso formal, mas não
efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva”.2 Mesmo
o estudo do direito processual era divorciado ou indiferente aos problemas reais de
foro cível (preocupações da maioria da população), pois primordialmente formalista
e dogmático.
O aumento de tamanho e complexidade das sociedades do laissez-faire
ocasionou uma “transformação radical” no conceito de direitos humanos. O advento
do Welfare State e a consequente necessidade de implementação de novos
direitos substantivos, coletivos, sobretudo (por exemplo, consumidores, locatários,
empregados e cidadãos), fizeram com que o direito ao acesso efetivo à justiça
ganhasse especial atenção. Assim, “o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado
como o requisito fundamental — o mais básico dos direitos humanos — de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar,
os direitos de todos”.3

1
A origem histórica – ainda que de modo embrionário e primitivo –, da visão do processo como garantia
constitucional remonta à Carta de João sem terra de 1215, que estabeleceu o devido processo legal (due
processo of law). Outros exemplos de diplomas que consagraram o processo como direito fundamental que
se sucederam são: Habeas Corpus Act de 1679; Declaração de Direitos da Inglaterra (BilI of Rights) de 1689
e Act of Settlement de 1701; Declaração do Bom Povo da Virgínia (1776); emenda V e VI (Bill of Rights de
1787 – devido processo legal criminal) e emenda XIV de 1868 (devido processo legal civil); e Declaração
Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), esta é um modelo para a maioria das constituições
ocidentais (OVALLE FAVELA, José. Constitución y proceso. Disponível em: <http://www.poder-judicial-bc.gob.
mx/admonjus/n24/ AJ24_008.htm>, p. 209).
2
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Brian. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1988. Trad. Ellen Gracie
Northfleet, p. 9.
3
Idem, 1988, p. 10.

232 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014
Processo civil constitucional e os princípios da publicidade e da motivação

Diante da preocupação central de acesso à justiça,4 desenvolve-se a


posição segundo a qual o processo serve à tutela efetiva do direito.5 Entretanto,
frequentemente o direito sucumbe ao processo. A inversão ocorre pela desnaturação
prática dos princípios que se constituem garantia da justiça, bem como porque a
própria lei processual, por imperfeição, priva o processo de sua função tutelar. Daí
decorre a necessidade de uma lei para tutelar as leis de tutela, a fim de garantir que
o direito não seja sufocado pelo processo. O princípio da Supremacia da Constituição
sobre as leis processuais tem essa função,6 ou seja, “a tutela do processo se realiza
por império das previsões constitucionais”.7

4
Geraige Neto ressalta que o princípio não se materializa apenas com a formal disponibilidade do acesso à
Justiça (o ingresso em juízo), mas, também, com “a garantia e o respeito ao verdadeiro due process of law,
em seus aspectos processual e substancial” (GERAIGE NETO, Zaiden. Princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 27): “Pensamos que se deva interpretar o princípio
da inafastabilidade do controle jurisdicional de forma sempre entrelaçada aos demais princípios do processo
civil insculpidos na Constituição da República, notadamente o dueprocess of law, uma vez que não é por
outro motivo que é considerado o alicerce axiomático sobre o qual se sustentam todos os outros princípios,
dando ensejo à previsão constitucional do inc. LIV de seu art. 5º, ao prescrever que “ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (Idem, 2003, p. 29).
5
Barbosa Moreira disserta sobre uma espécie de “programa básico” da efetividade: “a) o processo deve
dispor de instrumentos de tutela adequados, na medida do possível, a todos os direitos (e outras posições
jurídicas de vantagem) contemplados no ordenamento, quer resultem de expressa previsão normativa, quer
se possam inferir do sistema; b) esses instrumentos devem ser praticamente utilizáveis, ao menos em
princípio, sejam quais forem os supostos titulares dos direitos (e das outras posições jurídicas de vantagem)
de cuja preservação ou reintegração se cogita, inclusive quando indeterminado ou indeterminável o círculo
dos eventuais sujeitos; c) impende assegurar condições propícias à exata e completa reconstituição dos
fatos relevantes, a fim de que o convencimento do julgador corresponda, tanto quanto puder, à realidade;
d) em toda a extensão da possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte
vitoriosa o gozo pleno da específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento; e) cumpre que se possa
atingir semelhante resultado com o mínimo dispêndio de tempo e energias” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos.
Efetividade do processo e técnica processual, Temas de Direito Processual: sexta série. São Paulo: Saraiva,
1997, p. 1).
6
A possibilidade de outro órgão declarar ato do Legislativo inválido tem gênese no celebre julgamento do
caso Marbury v. Madison (justice John Marshal), pela Suprema Corte americana, em fevereiro de 1803
(MARSHALL, John. Decisões constitucionais de Marshall. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1903). É engenho
de Kelsen a existência de órgão fora da estrutura dos três poderes com a finalidade de exercer controle de
constitucionalidade e resguardar a supremacia da constituição: “A garantia constitucional é, de todas as
hipóteses de garantia de regularidade, aquela em que é maior a tentação de encarregar da anulação dos
atos irregulares o próprio órgão que os produziu. Mas é, também, a situação e, que tal procedimento parece
ser mais contra-indicado: com efeito, a única forma em que esse procedimento parece suscetível de oferecer
alguma garantia eficaz de constitucionalidade – declaração da irregularidade do ato por um terceiro órgão e
obrigação, imposta ao órgão autor, de anulá-lo – é impraticável, pois o parlamento não pode, por natureza,
ser obrigado de forma eficaz. Haveria ingenuidade política em supor que anularia uma lei por ele aprovada
apenas porque outra instância a teria declarado inconstitucional. De fato, o órgão legislativo se considera
um livre criador do Direito, não um órgão de aplicação do Direito, vinculado à Constituição, embora o seja
teoricamente, ainda que em medida relativamente restrita. Assim é que não se deve contar com o Parlamento
para implementar sua própria subordinação à Constituição. O órgão que convém incumbir de anular seus atos
inconstitucionais deve ser distinto dele, independente dele e, portanto, de qualquer outra autoridade estatal:
esse órgão deve ser uma jurisdição ou um tribunal constitucional” (KELSEN, HANS. A Garantia Jurisdicional da
Constituição (A Justiça Constitucional). Trad. Jean François Cleaver. Direito Público, nº 01, Jul-Ago-Set, 2003.
7
Tradução livre do autor: “La tutela del proceso se realiza por imperio de las previsiones constitucionales”
(COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Depalma, 1976, p. 148). No
mesmo sentido: OVALLE FAVELA, Ob. cit., p. 213 e PÉREZ, David Vallespín. El modelo constitucional de juicio
justo en el ámbito del proceso civil – Conexión entre el derecho a la tutela judicial efectiva y el derecho a un
proceso con todas las garantías. Barcelona: Atelier, 2002, p. 47.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014 233
Pablo Zuniga Dourado

Nesse contexto, as constituições do século XX, salvo raras exceções, são


consideradas declarações de princípios de direitos processuais, protetores dos
direitos da pessoa humana. No âmbito do direito internacional há a declaração da
ONU de 1948, cujos textos preconizam estas mesmas garantias. Assim, a teoria da
inconstitucionalidade da lei processual não é orientação endereçada ao intérprete;
mais do que ao juiz, defensor e professor, ela se dirige ao legislador; serve para
determinar o âmbito de validade da obra do legislador.8
Os direitos fundamentais e a efetividade das garantias passam a ocupar posição
medular em quase todos os sistemas constitucionais modernos.9 Nas palavras
de Morello:

E expressos em seu sentido mais puro e completo: os direitos


fundamentais são o próprio fundamento da ordem jurídico-política geral
e, consequentemente, limite e orientação básica de cada ato do poder
político surgido tanto da vontade popular como dos poderes de direito,
econômicos, privados, que se concentram nos Mercados.10

Enfim, após cem anos de conquistas, houve a consolidação definitiva do


direito processual constitucional, embasado na ideia de que todas as pessoas
devem contar com um remédio efetivo, seja em sede administrativa ou judicial, right
to an effective remedy (art. 6º, da Declaração Europeia dos Direitos do Homem),
isto é, o direito à tutela e à jurisdição entendidos como direitos fundamentais da
pessoa humana.11

8
Couture reassalta que não existe uma teoria geral de tutela constitucional do processo, no sentido de enumerar
soluções conclusivas, tendo em vista a variedade do direito positivo, mas a teoria consiste em determinar a
relação de validade entre a Constituição em sentido positivo, e a forma dada a um processo pela lei editada
no mesmo direito positivo. O autor fixa aquelas que considera premissas para entendimento do problema: “a)
la Constituición presupone la existencia de un proceso como garantía de la persona humana; b) la ley, en el
desenvolvimiento normativo jerárquico de preceptos, debe instituir ese proceso; c) pero la ley no puede instiuír
formas que hagan ilusoria la concepción del proceso consagrada en la Constituicíon; d) si la ley instituyera
una forma de proceso que privara al individuo de una razonable oportunidad para hacer valer su derecho, sería
inconstitucional; e) en esas condiciones, deben entrar em juego los medios de impugnacíon que el orden
jurídico local instituya para hacer efectivo el contralor de la constitucionalidad de las leyes” (COUTURE, Ob. cit.,
p. 150).
9
Segundo Rocha e Guedes: “Puede observarse que el sistema de derechos funda­mentales se tornó el núcleo
básico del orden constitucio­nal. La Constitución innovó, al privilegiar, tanto en sus fundamentos como en sus
objetivos, la dignidad de la persona humana, atribuyéndole un valor esencial que da unidad de sentido a la
Carta. Con ello, el sistema estruc­turado, concebido como expresión de un orden de valores, pasó a orientar
la interpretación constitucional en su conjunto” (ROCHA, Eliana Pires; GUEDES, Jefferson Carús. Derechos
Fundamentales y Proceso Civil en el Brasil: algunas técnicas procesales compensatorias de desigualdades
sociales y la protección judicial de los derechos fundamentales. Anuario de Derechos Humanos, v. 11.
Universidad Complutense de Madrid: Madrid, 2010, p. 458).
10
Tradução livre do autor: “Y lo expresamos em su sentido más prístino y cabal: los derechos fundamentais
son la base misma del entero orden jurídico-político y, en consecuencia, limite y orientación básica de toda
actuación del poder político surgido tanto de la voluntad popular como de los poderes de hecho, económicos,
privados, que se concentran em el Mercado” (MORELLO, Augusto Mario. Constitución y proceso: La nueva
edad de las garantías jurisdiccionales. La Plata: Platense, 1998, p. 60).
11
OVALLE FAVELA, Ob. cit., p. 212.

234 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014
Processo civil constitucional e os princípios da publicidade e da motivação

Outro problema histórico central é a igualdade.12,13 O ponto parece ser que o


processo civil, densificado por seus procedimentos, tem como núcleo uma estrutura
em torno de um juiz independente e imparcial, a fim de assegurar a paridade de armas
e o equilíbrio real no desenvolvimento dos debates. A forma de ter essa consciência é
entender a razoabilidade da flexibilidade e não a rigidez das formas e das normas.14
Em outras palavras:

A efetividade perfeita, no contexto de um dado direito substantivo,


poderia ser expressa como a completa “igualdade de armas” – a
garantia de que a conclusão final depende apenas de méritos jurídicos
relativos das partes antagônicas, sem relação com diferenças que
sejam estranhas ao Direito e que, no entanto, afetam a afirmação e
reivindicação dos direitos. Essa perfeita igualdade, naturalmente,
é utópica. As diferenças entre as partes não podem jamais ser
completamente erradicadas.15

Os ordenamentos jurídicos dos estados latino-americanos não escapam


da evolução histórica alinhavada. Receberam, também, a par da influência
do direito romano-germânico, a influência do direito público norte-americano,

12
No âmbito das discussões sobre o problema da igualdade e demais garantias constitucionais do processo,
há importante debate entre o chamado ativismo judicial e o garantismo processual. De cunho ideológico,
é uma discussão pouco conhecida na doutrina brasileira, embora intenso por toda a América espanhola (e
hispano-parlante) e Europa (Espanha, Itália e Portugal). Segundo o Ramos: “Em linhas gerais é um debate
em torno: i) dos aspectos ideológicos do processo civil, ii) dos seus sistemas de enjuizamento inquisitivo
ou dispositivo (inquisitorial system e adversarial system), iii) do papel do juiz e da atitude das partes na
relação processual, iv) da dimensão constitucional da jurisdição, v) do conteúdo e do significado do devido
processo legal, vi) da garantia constitucional da ampla defesa e contraditório, dentre outros”. É certo que a
grande maioria dos processualistas brasileiros é filiada ao ativismo judicial por razões históricas, tais como
a forte influência da Escola processual de São Paulo, que legou o grande desenvolvimento do processo civil
brasileiro, e adepta da citada corrente doutrinária, de modo que o tema parece ser desprezado pela maior
parte da doutrina. Resumidamente, Ramos apresenta o pensamento de cada uma das teses do conclave:
“O ativismo judicial defende uma postura mais contundente da atividade judicial para resolver problemas
que às vezes não contam com adequada solução legislativa. É dizer: outorga-se ao juiz um poder criativo que
em última análise valoriza o compromisso constitucional da jurisdição, e isso ainda que não haja previsão
legal que o autorize na respectiva atuação. Já o garantismo processual defende uma maior valorização da
categoria fundamental processo, e consequentemente da cláusula constitucional do due process, de modo
a valorizar a ampla defesa, o contraditório e a imparcialidade do juiz, como os pilares de legitimação da
decisão jurisdicional a ser decretada. Para o ativismo, o juiz deve atuar de maneira a resolver problemas
no curso do processo, e isso independente da diligência da parte em postular pelas respectivas soluções,
haja ou não autorização legislativa para a atuação do juiz. Para o garantismo, o processo é um método
no qual o resultado dependerá do efetivo debate entre as partes e de sua diligência em melhor manejar a
respectiva atividade. Os garantistas buscam aplicar as bases dogmáticas do garantismo de Luigi Ferraijoli
originariamente voltado às ciências penais (direito material e processo) ao direito processual civil”. Assim, a
discussão gira, sobretudo, em torno dos institutos da jurisdição e do processo (RAMOS, Glauco Gumerato.
Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação de debate. Revista Brasileira de Direito Processual,
n. 70. Belo Horizonte: Fórum, 2010. (p. 83-102)).
13
Para ilustrar a posição majoritária da doutrina brasileira quanto ao debate entre garantismo processual e
o ativismo judicial, com clara opção pela segunda corrente, consultar BARBOSA MOREIRA, José Carlos.
Neoprivatismo processual, Temas de Direito Processual, nona série. São Paulo: Saraiva, 2007.
14
MORELLO, Ob. cit., p. 61.
15
CAPELLETI; GARTH, Ob. cit., p. 15.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014 235
Pablo Zuniga Dourado

especialmente das garantias constitucionais do processo civil, sobretudo o due


processo law.16
No Brasil, as constituições brasileiras anteriores a 1988 pouco se
ocupavam do processo, sobretudo o processo civil. A mudança de panorama
ocorre com o advento da Constituição de 1988.17 Mas, a constitucionalização
do processo não cessou, porquanto o sistema continuou a receber modificações
no sentido de consolidar as garantias constitucionais do processo, como, por
exemplo, a alteração sofrida no recurso extraordinário promovida pela Emenda
Constitucional nº 45/2004.18
Barbosa Moreira sintetiza sua posição sobre a constitucionalização do processo
civil no ordenamento jurídico brasileiro:

A elevação de garantias processuais ao patamar constitucional, em


1988, tem óbvia significação, à luz das circunstâncias históricas. O país
emergia de longo período de governos arbitrários, durante os quais não
se pode dizer que fossem elas fielmente observadas. Era compreensível
o cuidado de impregnar a nova Constituição de valores inerentes ao
Estado de Direito que então se restaurava.19

Dentre os princípios consagrados pela Constituição de 1988, considerados


essenciais ao sistema, tais como: a inafastabilidade da jurisdição (art. 5°, XXXV, CF);
o juiz natural (art. 5°, XXXVII e LIII, CF); o contraditório e a ampla defesa
(art. 5°, LV, CF); a vedação às provas obtidas por meios ilícitos (art. 5°, LVI, CF); o
devido processo legal (art. 5°, LIV, CF); interessa a este artigo, especialmente, os
da publicidade (art. 5º, LX e art. 93, IX, CF) e da motivação, que discutiremos em
tópico próprio.20

16
OVALLE FAVELA, Ob. cit., p. 238-239.
17
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A constitucionalização do processo no direito brasileiro, Estudos de
Direito Processual Constitucional: homenagem brasileira a Héctor Fix-Zamudio em seus 50 anos como
Pesquisador do Direito. São Paulo: UNAM-Malheiros, 2009. Coord. Eduardo Ferrer MacGregor e Arturo
Zaldívar Lelo de Larrea, p. 54.
18
Idem, 2009, p. 54.
19
Ibidem, p. 55.
20
É possível argumentar que a proximidade das espécies de norma – constitucionais e processuais
infraconstitucionais –, leva ao entendimento sobre as leis reguladoras do processo como “direito
constitucional aplicado”. Além disso, que a fundamentalidade das normas constitucionais sobre
processo é incontestável, no Brasil, tendo em vista se situarem no art. 5º, “hábitat natural dos
direitos e das garantias fundamentais”, bem como que a dicção do parágrafo 2º, do art. 5º e o
advento da Emenda Constitucional nº 45, deixam certo o conteúdo de direitos fundamentais dessas
normas. Assim, “as normas de processo, presentes na Constituição, são materiais e formalmente
constitucionais, isto porque, além de previstas no texto, têm conteúdo de direito fundamental”
(DALL’ALBA, Felipe Camilo. A ampla defesa vista sob um olhar constitucional processual. Temas
atuais de Direito Público. Org. Antonio Marcos Guerreiro Salmeirão; Leslie de Oliveira Bocchino.
Curitiba: UTFPR, 2007, p. 225-256).

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Processo civil constitucional e os princípios da publicidade e da motivação

2 Regras e princípios
A distinção estabelecida por Dworkin entre regras e princípios,21 com o objetivo
de contraposição ao positivismo de Hart,22 refere-se aos princípios como “outros
padrões” para a definição de direitos e obrigações jurídicas, que não são regras,
particularmente nos casos difíceis (hard cases). A preocupação de Dworkin é
demonstrar que a diferença lógica e de aplicação entre essas espécies influencia
a compreensão sobre o processo decisório dos juízes, sobretudo no que toca à
fundamentação externada:

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica.


Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca
da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se
quanto à natureza da obrigação que oferecem. As regras são aplicáveis
à maneira tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula,
então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece
deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para
a decisão.23

21
É importante destacar que os argumentos de Dworkin referentes aos princípios devem ser analisados com
grande cuidado, porquanto o termo pode ser utilizado de maneira genérica pelo autor, ou seja, “para indicar
todo esse conjunto de padrões que não são regras”, sendo certo que haverá momentos que o significado
do termo “princípio” será mais preciso e indicará a diferença entre princípios e políticas, conforme já
demonstramos linhas atrás: “Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser
alcançado em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que
certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra
mudanças adversas). Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou
assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência
de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade.” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a
sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 36).
22
Herbert L.A. Hart, positivista contemporâneo e um dos principais destinatários das críticas de Dworkin,
preocupa-se em separar Direito e Moral. Esta preocupação é apresentada como avanço na análise do fenômeno
jurídico de formação da justiça, a qual “é tradicionalmente concebida como mantendo ou restaurando um
equilíbrio ou uma proporção, e o seu preceito condutor é frenquentemente formulado como ‘tratar da mesma
maneira os casos semelhantes’; ainda que devamos acrescentar a este último ‘e tratar diferentemente
os casos diferentes’” (HART, H.L.A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1994,
p. 173). Hart considera que o Direito não pode ser entendido apenas em uma perspectiva externa, mas
interna, também. Há centralização na perspectiva empírica da teoria, porquanto sua tese descreve a realidade.
A norma de reconhecimento de Hart é um fazer (práticas sociais); não é um ponto de partida ideal (metafísico),
o que a diferencia da grundnorm (norma hipotética fundamental) de Kelsen. A norma de reconhecimento é
realmente empírica. A estrutura do direito proposto constitui um modelo de regras, a saber: primárias (normas
de conduta); e secundárias (normas de reconhecimento, câmbio e adjudicação) (Idem, 1994, p. 122-128).
Na concepção do positivismo kelseniano, acima da constituição histórica, há apenas a norma hipotética
fundamental (grundnorm), de origem metafísica, por não encontrar seu fundamento de validade em outra
norma superior: “Chamamos de norma “fundamental” a norma cuja validade não pode ser derivada de uma
norma superior. Todas as normas cuja validade podem ter sua origem remontada a uma mesma norma
fundamental formam um sistema de normas, uma ordem. Esta norma básica, em sua condição de origem
comum, constitui o vínculo entre todas as diferentes normas em que consiste uma ordem” (KELSEN, Hans.
Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992,
p. 116). No mesmo sentido KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. 4.ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 51-52.
23
Dworkin, Ob. cit., p. 39.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014 237
Pablo Zuniga Dourado

No caso dos princípios há a dimensão do peso ou importância, inexistente nas


regras, de sorte que nas situações de colisão entre princípios o intérprete-aplicador
deve ter em conta “a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma
mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política
particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia”.24
Ao contrário, no caso de regras em conflito, uma delas não pode ser válida (aplicação
à maneira “tudo ou nada”).25
O ponto parece ser que os princípios têm função de criação de obrigações
jurídicas, logo, devem estabelecer deveres de obediência aos juízes. É crível sustentar
que não há liberdade de escolha desses padrões (discricionariedade em sentido
forte), mas sim dever de aplicar os princípios concebidos pelos praticantes do direito
e aceitos pela comunidade, isto é, devemos tratar os princípios ou o conjunto deles
como direito, haja vista que eles podem impor uma obrigação jurídica, da mesma
forma com que são estabelecidos por uma regra jurídica. Vale dizer: os princípios,
para Dworkin, pertencem ao direito e funcionam como normas jurídicas, motivo pelo
qual a tarefa do juiz será a justificação racional do princípio eleito – nos casos de
intercruzamento –, a garantir o máximo de adesão possível e editar a decisão correta;
existem direitos morais, originários de regras morais, ao lado de direitos legais.26
Faceta de certo modo diferente do entendimento do problema da distinção de
regras e princípios,27,28 com bastante prestígio na doutrina pátria, é abordada por

24
Idem, 2010, p. 42.
25
A posição de Dworkin não está isenta de controvérsia. Lopes tece severas críticas à tese de Dworkin,
especificamente na postulação sobre a distinção de natureza entre regras e princípios, alinhavada na obra
Levando os direitos a sério: “Uma consulta rápida aos clássicos do pensamento jurídico europeu mostra que
várias das dúvidas e dos problemas que assaltam Dworkin já foram enfrentadas. Assim, por exemplo, sua
idéia de que o juiz, ao decidir os casos, deve proceder com certo respeito a “princípios” que dão forma a toda
o sistema jurídico é uma expressão da boa e velha fórmula, tradicional desde os medievais, da interpretação
sistemática (...) Olhada ainda com mais atenção, a proposta de Dworkin ignora toda a tradição da hermenêutica,
jurídica e não jurídica, produzida fora do âmbito norte-americano. Assim, problemas de interpretação, também
tradicionais para os juristas não americanos, parecem ser absoluta novidade na exposição de Dworkin”
(LOPES, José Reinaldo de Lima. Princípios e regras. Disponível na internet .em: <http://www.egov.ufsc.
br/portal/sites/default/files/anexos.pdf>. Acesso em: 17.08.2012, p. 12-13). Com argumentos idênticos
consultar: LOPES, José Reinaldo de Lima. Juízo jurídico e a falsa solução das regras e princípios. Disponível na
internet em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15639-15640-1-PB.pdf>. Acesso
em: 17.08.2012.
26
Podemos sustentar que essa ideia apresenta relação com a doutrina kantiana do Direito, logo, nesse ponto não
parece apresentar total originalidade (LOPES, José Reinaldo de Lima. Juízo jurídico e a falsa solução das regras
e princípios. Disponível na internet em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15639-
15640-1-PB.pdf>. Acesso em: 17.08.2012, p. 4). Com idêntico argumento: LOPES, José Reinaldo de Lima.
Princípios e regras. Disponível na internet em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos.pdf>.
Acesso em: 17.08.2012.
27
Alexy afirma ser Dworkin o iniciador da discussão sobre as diferenças entre regras e princípios: “Still, it was
Ronald Dworkin’s major challenge to H.L. Hart’s version of legal positivism, inititially in “The Model of Rules”,
that marked the beginnings of a broad discussion (Dworkin 1967)” (ALEXY, Robert. On the Structure of Legal
Principles. Ratio Juris. vol. 13, nº 3, September 2000, p. 294).
28
Outro enfoque dado pela doutrina é a distinção entre regras e princípios porque estes são fundamentos da
ordem jurídica relativos a valores, ou seja, “as regras estabelecem deveres ou condutas específicas e não
são referentes, de forma direta, a valores que dêem sentido de unidade ao direito” (FREITAS FILHO, Roberto.

238 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014
Processo civil constitucional e os princípios da publicidade e da motivação

Robert Alexy, segundo o qual os princípios são “comandos de otimização”, ou seja,


“são normas que requerem que algo seja realizado na maior medida possível, das
possibilidades fáticas e jurídicas (Alexy, 2002, p. 7)”.29 Por sua vez as regras, segundo
Alexy, são “comandos definitivos”, de modo que a diferença entre as espécies de
normas não é apenas de grau, mas de qualidade.30
A distinção, nessa perspectiva, fica mais clara quando se compara as soluções
dadas nos conflitos entre regras e nas colisões entre princípios, embora compartilhem
o aspecto de que duas normas, quando aplicadas separadamente, conduzem a
incompatíveis resultados, ou seja, dois julgamentos (obrigações jurídicas) concretos
ou específicos contraditórios.31
Segundo Alexy: “Um conflito entre duas regras só pode ser resolvido pela
introdução de uma cláusula de excepção para uma das duas regras ou declarar
pelo menos uma delas inválida”,32 enquanto a colisão de princípios é resolvida
por balanceamento (The Balancing Law), que “é uma parte do que é requerido por
um princípio mais abrangente (comprehensive). Esse princípio mais abrangente é
o princípio da proporcionalidade (Verhältnismäbigkeitsgrundsatz)”.33 Em outras
palavras: na prática o balanceamento é o princípio da proporcionalidade, ou um de
seus aspectos essenciais.
Assim: “Comandos de otimização são os objetos do balanceamento ou
ponderação. Eles podem ser chamados de ‘the ideal ought’ ou ideais (ALEXY, 1995,
203ff.). Um ‘ought’ ideal é algo que deve ser otimizado e, assim, transformado em um
‘ought’ real (ALEXY, 1995, 204)”.34 Há, portanto, no âmbito do balanceamento, uma

Intervenção judicial nos contratos e aplicação dos princípios e das clásulas gerais: o caso do leasing. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009, p. 211), razão pela qual é crível reivindicar que “A despeito do caráter
fundante e valorativo dos princípios sua distinção em relação às regras ocorre fundamentalmente pela forma
lógico-textual como se apresentam” (Idem, 2009, p. 211). Assim, nada obstante a presença constante dos
princípios na experiência jurídica, a novidade aparentemente decorre da necessidade de compreender, no
âmbito da realidade de sociedades complexas, a natureza e o processo de aplicação dessas espécies de
normas. Freitas Filho sustenta: “Os princípios sempre estiveram presentes na experiência jurídica. O que há,
hoje, de diferente em relação aos mesmos é que a teoria jurídica se preocupa com a questão de entender
a natureza e o processo de aplicação de normas que tenham um grau de generalidade suficientemente alto
para poder abarcar a multiplicidade de fenômenos que têm de ser regulados em uma sociedade altamente
complexa como a atual. Nesse sentido há uma novidade no tocante aos princípios: é opinião corrente em parte
significativa da doutrina que o tipo de norma apta a regular uma sociedade complexa tenha de ser um modelo
de norma semanticamente aberto e de caráter avaliatório” (Ibidem, p. 211-212).
29
ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, Balanceamento e Racionalidade. Trad. Menelick de Carvalho Netto.
Ratio Juris. vol. 16, n. 2, June 2003, p. 131-140.
30
Rules therefore comprise a decision in the fields o factual and legal possibilities. They are definitive commands.
This means that the difference between rules and principles is a diference in quality and not only one of degree.
Every norm is either a rule or a principle (Alexy 1996, 77ff.; 1995, 203)” (ALEXY, Ob. cit, p. 295).
31
Idem, 2000, p. 295.
32
A conflict between two rules can only be solved by either introducing an exception clause into one of the two
rules or declaring at least one of them invalid (Ibidem, p. 295).
33
ALEXY, Ob. cit., p. 131-140.
34
Commands to be optimized are the objects of balancing or weighing. They can be termed “the ideal ought” or
“ideals” (Alexy 1995, 203ff.). An ideal “ought” is something that is to be optimized and thereby transformed
into a real “ought” (Alexy 1995, 204) (ALEXY, Ob. cit., p. 300).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014 239
Pablo Zuniga Dourado

implicação lógica entre os princípios (comandos de otimização) e o “ideal” “ought”,


ou seja, existem dois lados da mesma moeda.35 Parece que os princípios são “ideais”
aceitos pela comunidade que devem ser convertidos em obrigação jurídica no caso
concreto, por meio dos julgamentos feitos pelos juízes e Tribunais.36
Podemos observar que existem variadas visões sobre o problema das diferenças
entre regras e princípios. É possível sustentar, conforme nosso objetivo neste
trabalho, a necessidade de aproveitarmos os aspectos que cada uma das posições
traz para o problema do discurso jurídico,37 especificamente no que toca à motivação

35
These are two sides of the same coin (Idem, 2000, p. 301).
36
Alexy parece ter aceitado as críticas de Sieckmann de que mandados de otimização não são aptos à
ponderação, porquanto passa a diferenciar “mandados de otimização” da visão dos princípios como “normas
a serem otimizadas”, ou ainda, convertidas em obrigação jurídica no caso concreto: “This in no way says that
principle theory in the guise of the optimization thesis collapses; it simply gives it a sharper focus. A distinction
is to be made between commands to be optimized and commands to optimize. Commands to be optimized are
the objects of balancing or weighing. They can be termed “the ideal ought” or “ideals”’ (Alexy 1995, 203ff.). An
ideal “ought” is something that is to be optimized and thereby transformed into a real “ought” (Alexy 1995, 204).
As the object of optimization, it is placed on the object level. Contrariwise, the commands to optimize, that is,
the optimization commands, are placed on a meta-level. On this level they prescribe what is to be done with that
which is found on the object level. They impose the obligation that their subject matter, the commands to be
optimized, be realized to the greatest extent possible. As optimization commands they are not to be optimized
but to be fulfilled by optimization.
Principles, therefore, as the subject matter of balancing are not optimization commands but rather commands
to be optimized. As such they comprehend an ideal ``ought’’ that is not yet relativized to the actual and legal
possibilities. In spite of this, it is useful to talk about principles as optimization commands or obligations.
It expresses in an altogether straightforward way the nature of principles. In saying what is to be done with
principles, one says all that matters from the point of view of legal practice. This practical aspect is lent support
by a theoretical consideration” (Ibidem, p. 300).
37
Acreditamos que as teorias da argumentação jurídica se configuram relevantes porque compartilhamos a
ideia de que a prática do Direito consiste, fundamentalmente, em argumentar (ATIENZA, Manuel. As razões
do direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3ª ed., São Paulo:
Landy Editora, 2006, p. 18). Provavelmente, um dos fatores que geram o déficit de fundamentação nas
decisões judiciais é a negligência da maioria dos juristas com os temas da teoria da argumentação jurídica,
embora o interesse tenha crescido, consoante os fatores afirmados por Atienza (Idem, 2006, p. 15-19).
Esclarecemos, embasados no quarto e quinto fator alinhavado por Atienza – a ascensão da democracia como
forma de governo e a consolidação do Estado Democrático de Direito –, que a coerência das decisões judiciais
tem relação com a necessidade de exposição pública de argumentos racionais, pois pensamos que a força
persuasiva das razões por meio do debate estabelecido com ideias contrárias é elemento constitutivo da
democracia e legitimador da função do juiz. A preocupação com a teoria da argumentação parece importante
porque suas bases possibilitam a prestação de contas (accountability) pelos juízes, na medida em que
possibilita a demonstração pública das razões que fundamentam as decisões jurídicas. Vale dizer: a coerência
das decisões por meio de argumentos racionais transparentes é exigência do Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, Maccormick afirma em trecho ilustrativo: “Assim, surgem as disputas acerca da interpretação
correta dos materiais jurídicos, sobre a correta interpretação das provas, sobre a correta avaliação dos
elementos de prova em conflito, sobre a caracterização adequada dos fatos provados ou confessados, ou
sobre sua relevância com relação aos materiais jurídicos apresentados. Essas disputas não são um tipo de
excrescência patológica em um sistema que deveria de outra forma funcionar tranquilamente. Elas são um
elemento integrante de uma ordem jurídica que esteja funcionando de acordo com os ideais do Estado de
Direito. Isso porque esse princípio insiste na apresentação pelo governo de base jurídica adequada a qualquer
ação, completada pelo direito de todos os indivíduos de questionar as bases jurídicas apresentadas pelo
governo para suas ações”. E conclui: “A ideia de Estado de Direito sugerida aqui insiste no direito de defesa de
questionar e rebater a causa que lhe é apresentada. Não há segurança contra os governos arbitrários a não ser
que esse questionamento seja livremente permitido, e sujeito a apreciação por agentes do Estado separados e
distanciados daqueles que conduzem as acusações penais” (MACCORMICK, Neil. Retórica e estado de direito.
Tradução Conrado Hubner Mendes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 36-37).

240 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014
Processo civil constitucional e os princípios da publicidade e da motivação

e à publicidade. Sem perder de vista a ideia de que os pontos de partida de um


sistema jurídico são os mesmos pontos de partida de outros sistemas normativos.
Compartilhamos a reivindicação de Alexy:

De importância central para isso é a ideia de que o discurso jurídico é


um caso especial do discurso prático geral. O que os discursos jurídicos
têm em comum com o discurso prático geral consiste em que, em ambas
as formas de discurso, trata-se da correção de enunciados normativos.
Fundamentar-se-á que tanto com a afirmação de um enunciado prático
geral, como com a afirmação ou pronunciamento de um enunciado
jurídico, levanta-se uma pretensão de correção. No discurso jurídico,
trata-se de um caso especial, porque a argumentação jurídica ocorre
sob uma série de condições limitadoras. Entre essas, devem-se
mencionar especialmente a sujeição à lei, a consideração obrigatória
dos precedentes, seu enquadramento na dogmática elaborada pela
Ciência do Direito organizada institucionalmente, assim como – o que
não concerne, todavia, ao discurso científico-jurídico – as limitações das
regras do ordenamento processual.38

O reconhecimento de obediência aos parâmetros epigrafados nos discursos


jurídicos apenas é possível por intermédio de fundamentação racional clara,
disponível – logo, pública –, aos destinatários da função jurisdicional, sem importar
a consolidação final do julgamento, se procedente ou improcedente a demanda.39
Acreditamos que os argumentos utilizados nas decisões não podem ser endereçados
exclusivamente às partes do processo, mas a todos do povo, titular da parcela de
poder de que se investe o juiz.

3 Princípio da publicidade e da motivação


3.1 Princípio da publicidade
A necessidade de argumentação racional como corolário da democratização do
processo e do Estado Democrático de Direito externada no tópico anterior deve ser a
premissa adotada na interpretação do princípio da publicidade. No Brasil, em face da
“rarefeita tradição democrática” o fenômeno do “contínuo repensar do processo” é

38
ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação
jurídica. Trad. Zilda Hautchinson Schild Silva. 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 31.
39
Nesse sentido: “O direito de acesso à justiça implica o direito ao processo, entendendo-se que o jurisdicionado
postula um direito a uma decisão final incidente sobre o fundo da causa, sempre que haja cumprido e observado
os requisitos processuais da ação e de seu prolongamento até o fim, isto é, eventuais recursos interpostos.
Ou seja, no direito de acesso à justiça inclui-se o direito de obter uma decisão fundada na lei, embora
dependente da observância de certos requisitos ou pressupostos processuais, legalmente consagrados. Por
isso, a efetivação de um direito ao processo não equivale necessariamente a uma decisão favorável: basta
uma decisão fundada no direito, quer seja favorável ou desfavorável às pretensões deduzidas em juízo”
(GERAIGE NETO, Ob. cit., p. 33).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014 241
Pablo Zuniga Dourado

ainda mais drástico, por conta “de elites governantes avessas às críticas populares”.
Segundo Almada, significa:

Na versão pós-moderna, concebida para que a atividade jurisdicional


seja capaz de efetivamente satisfazer as necessidades dos litigantes
numa dimensão justa e participativa, a garantia da publicidade nada
mais significa senão a clara incorporação pelo processo dos ideais da
democracia. De fato, somente o Estado de Direito é que pode dar vazão
plena à recomendação constitucional de revelação interna e externa
(popular) dos atos judiciais, permitindo que o processo angarie adesão e
legitimidade social.40

Nesse contexto, o princípio da publicidade, inserido no catálogo de garantias


constitucionais, possui dois matizes, correspondentes às suas funções no processo:
o da publicidade interna, que aliada ao contraditório serve aos sujeitos considerados
como partes diretamente ligados ao litígio discutido; e o da publicidade externa,
que “assenta-se na necessidade de controle público da atividade jurisdicional”, haja
vista que o processo moderno não admite mais a repulsa à ciência (informação)
dos elementos da causa. Há necessidade de prestação de contas pelos juízes
(accountability),41 como finalidade da publicidade. Vale dizer:

A opinião pública debruça-se sobre o processo judicial à cata de pecadilhos


e deslizes dos agentes responsáveis pela sua condução do mesmo modo
que o faz relativamente às demais atividades do Estado, exigindo que lhe
sejam prestadas contas reais e efetivas, sem que os juízes, embora
independentes, possam se pôr à margem desse controle. A doutrina não
discrepa do sentimento popular que pugna pela fiscalização concentrada
e difusa da atividade jurisdicional, bastando mencionar Cappelletti, para
quem é necessária a responsabilização dos juízes perante a sociedade,
quer no plano jurídico, sempre que haja violação injustificada dos deveres
que sobre eles recaem (responsabilidade administrativo-disciplinar,
penal e civil), quer no plano social, por meio das críticas acadêmicas e
dos órgãos de comunicação de massa.42

40
ALMADA, Roberto José Ferreira de. A garantia processual da publicidade. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 102.
41
De modo simplificado podemos traduzir a expressão inglesa como “prestação de contas”, porém, o sentido é
mais elástico, porquanto accountability “é um dos requisitos do Estado de Direito segundo o qual ocupantes
de cargos públicos devem responder pelas suas ações segundo regras jurídicas preestabelecidas e segundo
as previsões legais que determinam o limite do exercício do poder pelos órgãos do Estado”, logo, “A noção
de accountability é, portanto, um antídoto em relação ao arbítrio e tem como pressuposto o fato de que o
judiciário possui um enorme poder e deve ser publicamente responsável” (FREITAS FILHO, Roberto. Estudos
Jurídicos Críticos (CLS) e coerência das decisões. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 44, n. 175,
jul./set. 2007, p. 42).
42
ALMADA, Ob. cit., p. 109-110.

242 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014
Processo civil constitucional e os princípios da publicidade e da motivação

No que tange ao aspecto externo da publicidade existe íntima intrincação


lógica com a motivação das decisões judiciais como forma de legitimação popular da
atividade jurisdicional. A interrelação tem essencial contribuição para a racionalização
do sistema de administração da justiça. A motivação, por razões decorrentes da
ideologia democrática, passou a ser um mecanismo capaz de assegurar o controle
externo, da parte do povo, sobre o modo com que o juiz exercita o poder que lhe é
confiado (publicidade externa).43
Nesse sentido, o âmbito externo da publicidade configura elemento de
legitimidade da autoridade do juiz, porquanto esse agente público, também, é um
delegado do povo. Há necessidade de serem demonstrados os fundamentos de fato
e direito das decisões judiciais, a fim de que tais fundamentos possam ser discutidos
e controlados pelo auditório externo de forma difusa.44
Positivada, a publicidade (art. 5º, LX e art. 93, IX, CF) significa que “todos
os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos”. O princípio, como
de resto todos os outros, não possui caráter absoluto, pois pode sofrer restrições
para a proteção de valores como a “defesa da intimidade” e o “interesse social”,
como previsto na própria Constituição, art. 5º, LX e art. 93, IX, da CF.45 Todavia, a
aplicação do princípio da proporcionalidade (balanceamento) na restrição à garantia
deve manter a premissa já dissertada, principalmente quanto ao matiz externo da
publicidade, de tal modo que:

Sem que caibam generalizações no tratamento que se deve dedicar à


publicidade externa quando estiver em jogo o interesse público ou social,
é apenas no caso concreto que serão reveladas as razões eventuais de
se mostrar aconselhável a sua restrição, em maior ou menor grau. Não
obstante seja impossível a sistematização dos casos que justificam a
excepcional supressão da garantia processual da publicidade no plano
extraprocessual, é possível, perfeitamente associá-los, grosso modo,
à necessidade de resguardo da eficácia operacional do procedimento,
em cujo contexto se inserem as situações de ameaça à imparcialidade
do julgador e de deturpação dos institutos processuais relacionados
à postulação e defesa, instrução probatória e decisão da causa.
Sempre que, enfim, for possível identificar a ameaça de realização,
pelo processo, dos papéis instrumentais que lhe tocam no plano
da resolução do conflito, especialmente à luz do devido processo
legal e do contraditório, será cabível a restrição do princípio da
publicidade externa.46

43
Idem, 2005 p. 117-118.
44
Ibidem, p. 119-120.
45
BARBOSA MOREIRA, Ob. cit.
46
ALMADA, Ob. cit., p. 137-138.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014 243
Pablo Zuniga Dourado

3.2. Princípio da motivação


Foi com o advento da Constituição Federal de 1988 que a obrigação de se
motivarem as decisões judiciais passou ao status de garantia constitucional.47
Segundo Moreira:

A ele se submetem todos os pronunciamentos de órgãos judiciais, de


quaisquer instâncias. Não ficam excluídas as decisões qualificáveis como
discricionárias: é indispensável que se possa saber se o órgão exercitou
bem sua discrição. Ainda quando a lei autorize o juiz a fundamentar a decisão
“de modo conciso” (CPC, art. 165, fine), como faz quanto às decisões
interlocutórias, isso de maneira alguma importa dispensá-lo do dever de
expor as razões, de fato e de direito, que lhe sustentam a conclusão:
fundamentação concisa não é o mesmo que ausência de fundamentação.48

Podemos dividir as funções de fundamentação das decisões judiciais49 em


duas. A primeira, endoprocessual, que predominou durante muito tempo na doutrina,
consiste em identificar “a obrigação da motivação das decisões judiciais como um
simples instrumento técnico processual posto a serviço da exigência de funcionamento
do processo e da organização centralizada da magistratura”.50 A garantia era de
ordem meramente instrumental, isto é, como uma regra voltada apenas para um
melhor funcionamento dos mecanismos processuais.
Evidentemente, a exclusividade desse viés é insuficiente a cumprir a garantia
de fundamentação, tendo em vista as exigências inerentes à democratização do
processo e ao Estado Democrático de Direito. Na visão de Nojori:

Assim, fica claro que os aspectos endoprocessuais são insuficientes para


revelar todas as facetas que o dever de fundamentar as decisões judiciais
implica. Se acaso a fundamentação só se prestasse para que os juízes
de instância superior pudessem melhor conhecer as razões pelas quais

47
Podemos sustentar que a história brasileira apresenta enorme mosaico de leis que preconizavam a obrigação
de se fundamentar as decisões judiciais. Desde períodos anteriores à própria configuração política de nosso
país como Estado independente (Ordenações Filipinas – 1603) até a emancipação política, a obrigatoriedade de
fundamentação sempre esteve presente entre nós. O famoso Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850,
foi o primeiro ato legislativo genuinamente nacional a tratar do assunto. A partir do advento da Constituição
de 1891, os Estados passaram a ter competência federativa para legislar sobre direito processual, quando
surgiram os Códigos Estaduais, que se limitaram a copiar os velhos preceitos herdados das Ordenações do
Reino. A Constituição Federal de 1937, art. 16, XVI, restabeleceu a unidade legislativa em matéria processual
e a regra de se fundamentarem as decisões judiciais passou a fazer parte do Código de Processo Civil
de 18 de setembro de 1939. O atual Código de Processo Civil, promulgado em 1973, expressa em várias
disposições a necessidade de se fundamentarem as decisões (NOJIRI, Sérgio. O dever de fundamentar as
decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 28).
48
BARBOSA MOREIRA, Ob. cit.
49
Segundo Nojori: “Portanto, quando a Lei Maior fala em decisão judicial, entendemos que tal expressão
diz respeito a toda manifestação judicial de conteúdo decisório que possa causar gravame à parte ou ao
interessado no processo. E a verificação deste prejuízo deve poder ser aferida por critérios objetivos. É preciso
que o provimento não motivado implique real agravamento de uma dada situação, vale dizer, que tenha havido
uma deterioração na esfera jurídica do destinatário da decisão” (Idem, 1998, p. 35).
50
Ibidem, p. 30.

244 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014
Processo civil constitucional e os princípios da publicidade e da motivação

um juiz de instância inferior decidiu desta ou daquela forma, não haveria


necessidade de se fundamentar uma decisão de última instância, o que,
vimos, não é verdadeiro.
Entendemos que, apesar de dar ao processo um cunho racional, a função
endoprocessual da fundamentação das decisões judiciais revela apenas
uma das vertentes deste instituto jurídico, restando inexplorados aspectos
fundamentais do mesmo.51

A segunda, que queremos sublinhar, é a perspectiva extraprocessual. Esta parece


decorrer logicamente do Estado Democrático de Direito,52 conforme preconizado no
art. 1º, da CF. O adjetivo, por assim dizer, “democrático”, a qualificar o Estado de
Direito tem a finalidade de compatibilizar o referido princípio com o democrático. Na
visão de Barbosa Moreira:

O controle extraprocessual deve ser exercitável, antes de mais nada,


pelos jurisdicjonados in genere, corno tais. A sua viabilidade é condição
essencial para que, no seio da comunidade, se fortaleça a confiança na
tutela jurisdicional — fator inestimável, no Estado de Direito, da coesão
social e da solidez das instituições.53

Desse modo, a Constituição estruturou-o de forma a contemplar a participação


popular como um dos mais importantes instrumentos de exercício político à disposição dos
cidadãos, de sorte que o uso de qualquer parcela de poder deve ser seguido da prestação
contas ao povo. A fundamentação irracional, incompleta ou opaca – sem levar em conta
todas as circunstâncias de fato e de direito que cercam o caso –, é absolutamente
incompatível com o princípio fundamental esgrimido. As opções valorativas, comumente
feitas pelos juízes, haja vista a natureza aberta das normas constitucionais,54

51
Ibidem, p. 31-32.
52
“A fórmula do Estado de Direito (Rechtsstaat) é de origem germânica. Foi Carl Th. Welcker, em sua obra Die
letzen Gründe Von Recht, Staat und Strafe, de 1813, que criou essa expressão”. A ideia originária era a
necessidade de organização e regulação da atividade estatal por princípios racionais. “O Estado não poderia
servir a fins transcendentais de caráter divino, nem de interesses daqueles que governam, mas de todos os
indivíduos que o integram, garantindo a liberdade, a segurança e a propriedade”. Hoje o conceito de Estado de
Direito pode ser sintetizado como aquele que se subordina à lei, isto é, como o Estado que se curva diante do
direito que ele próprio criou (Ibidem, p. 32).
53
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de
Direito, Temas de Direito Processual: segunda série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 90.
54
A doutrina refere-se ao fato de que nada obstante se configurarem norma jurídica, as constituições trazem
dispositivos cujo conteúdo envolve não só comandos normativos, mas opções fundamentais de um Estado e
de uma sociedade em determinada época histórica; bem como a declaração de direitos fundamentais. São
preenchidas por valores fundamentais e princípios essenciais a uma determinada nação (COELHO, Inocêncio
Mártires. Interpretação Constitucional. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 89). É
composta essencialmente por “normas abertas”, que se distinguem das “normas fechadas” porque nestas
o modo de aplicação é subsuntivo direto, enquanto aquelas exigem do aplicador um esforço interpretativo
adicional: “a aproximação valorativa, ou seja, uma avaliação prévia do caso concreto cotejado à previsão
normativa para que, considerada a situação fática específica, se possa determinar, na ratio decidendi, a regra
a ser aplicada” FREITAS FILHO, Roberto. Intervenção judicial nos contratos e aplicação dos princípios e das
clásulas gerais: o caso do leasing. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009, p. 10).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014 245
Pablo Zuniga Dourado

devem ser detalhadas e explicitadas de modo exaustivo ao auditório público. “Com


efeito, considerando a dimensão de seu significado jurídico-político, desponta, na
atualidade, a necessidade de controle (extraprocessual) ‘generalizado’ e ‘difuso’
sobre o modus operandi do juiz no tocante à administração da justiça”.55
O Judiciário parece exercer o papel de controle, em defesa das minorias, ou
seja, serve à salvaguarda de direitos individuais e contra eventuais opressões das
maiorias. Vale dizer:

O Poder Judiciário difere do Poder Executivo e do Poder Legislativo.


Estes se pautam por outros valores, que felizmente são estranhos ao
exercício da magistratura. O juiz, ao contrário do político, exerce uma
função eminentemente técnica, e não deve se preocupar em agradar as
maiorias (busca de votos); sua principal função consiste em aplicar a lei
ao caso concreto, não devendo levar em consideração se tal aplicação
satisfaz ou não a vontade de uma certa parcela da sociedade. Para o juiz
importa a decisão que obedeça a determinados parâmetros já previstos
anteriormente em lei.56

No Brasil, o importante papel que o Poder Judiciário exerce de democratização


da sociedade só se satisfaz plenamente por meio da fundamentação. O povo deve
ser informado sobre os parâmetros utilizados nos julgamentos, mister que só se
realiza por argumentação racional e publicidade (accountability).
Fica clara a insuficiência da função exclusivamente endoprocessual da
fundamentação de decisões judiciais. A função extraprocessual transcende a visão
exclusivamente formalista e materializa a ideia de que os princípios da motivação
e da publicidade servem, na verdade, a prestar contas do exercício do poder pelos
juízes ao verdadeiro detentor do poder, o povo, em ordem a democratizar a função
judicial do Estado.
É necessário destacar, ainda, a conexão entre os princípios da motivação e
da publicidade:

Existe, pois, uma inabalável conexão entre o princípio da publicidade e o


que prescreve o dever de fundamentar as decisões judiciais. Apesar de
este último possibilitar ao cidadão a efetiva participação no controle da
juridicidade dos atos emandados do poder público, é a publicidade do ato
decisório processual que torna efetiva a aplicação real do enunciado no
art. 93, IX, da CF, servindo como um instrumento de eficácia da regra que
obriga à fundamentação das decisões.57

55
TUCCI, José Rogério Cruz e. Garantias constitucionais da publicidade dos atos processuais e da motivação das
decisões no projeto do CPC - análise e proposta. Revista de Processo. São Paulo. v. 35. n. 190. p. 257-69.
dez./2010.
56
NOJORI, Ob. Cit., p. 33.
57
Idem, 1998, p. 34.

246 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014
Processo civil constitucional e os princípios da publicidade e da motivação

É essencial que haja certa previsibilidade nas condutas dos juízes, haja vista
que o ordenamento jurídico (regras e princípios) é concebido de modo compartilhado,
bem como que as decisões judiciais guardem certa sistematicidade na aplicação dos
princípios do direito.
Apenas com a transparência nos argumentos é possível verificar o respeito
aos parâmetros definidos historicamente pela Ciência do Direito, jurisprudência e
pelos princípios, bem como os critérios utilizados pelo juiz nas decisões judiciais
dos casos, especificamente suas escolhas valorativas. Sem conhecimento público
da fundamentação não há como verificar a obediência ao princípio da igualdade –
tratamento igual a casos iguais –, também, corolário do Estado Democrático de
Direito, de modo a tornar o acesso efetivo à justiça um postulado meramente formal.

Conclusão
O direito processual constitucional no Brasil encontra-se consolidado, sobretudo,
depois da promulgação da Constituição de 1988. Esse fenômeno leva à conclusão
inevitável de que as normas constitucionais sobre processo, sobretudo as dispositivas
de princípios, possuem natureza de direitos fundamentais.
Esse status torna essencial a consciência sobre as consequências da escolha
constituinte pelo Estado Democrático de Direito. O princípio democrático, qualificador
do Estado de Direito, torna a titularidade do poder exclusividade do povo, de modo
que todos os agentes públicos investidos de parcela de poder devem prestar contas
ao povo.
Os princípios da motivação e da publicidade – intrincados logicamente – no
processo exercem, também, a finalidade de prestação de contas pelos juízes
(accountability). A função endoprocessual (interna) ostentada por estes postulados é
insuficiente. A obediência ao Estado Democrático de Direito somente se materializa
com o cumprimento da função extraprocessual (externa). Por essa razão, as escolhas
valorativas feitas pelos juízes, comuns na interpretação de normas abertas (como
por exemplo, as constitucionais) devem ser exaustivamente explicitadas por meio de
argumentos racionais coerentes com o sistema de princípios. O juiz não pode escapar
dos parâmetros definidos para o exercício do poder jurisdicional, sob pena de lhe
faltar legitimidade.
Sem transparência no exercício da atividade jurisdicional, o acesso efetivo à
justiça fica prejudicado, tendo em vista a falta de previsibilidade nas decisões judiciais.
A fundamentação opaca leva o cidadão a procurar outros meios de solucionar suas
demandas e gera desconfiança sobre a instituição do Poder Judiciário, porquanto
conduz a desigualdades, isto é, soluções diferentes para casos semelhantes.
Portanto, cabe ao juiz democraticamente fundamentar suas decisões. O
discurso externado deve ser submetido ao crivo racional de todos (publicidade e

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Pablo Zuniga Dourado

motivação) – accountability –, exatamente nos moldes do que determina a Constituição


(CF, art. 93, IX e X). Em outras palavras, deve ser possível verificar a correção dos
argumentos utilizados pelos juízes e criticá-los publicamente.

Abstract: The article deals with the consolidation of Constitutional Procedural Law in Brazil and its
consequences for the interpretation of the principles of publicity and motivation. The proposal is that those
principles require the judge’s reasoning aimed at people through rational arguments set out publicly and
open to criticism. The interpretation is claimed with logical consequence the Democratic State, whose
demand for democratization of society radiates effects on Procedural Law.
Key words: Constitutional Procedural Law. Principles of publicity and motivation. Rational arguments.
Democratic state.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

DOURADO, Pablo Zuniga. Processo civil constitucional e os princípios da publicidade


e da motivação. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 22, n. 88, p. 231-249, out./dez. 2014.

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Proceso jurisdiccional, república y los
institutos fundamentales del derecho
procesal1

Glauco Gumerato Ramos


Miembro de los Institutos Brasileño (IBDP), Iberoamericano (IIDP) y Panamericano (IPDP) de
Derecho Procesal. Profesor de la Facultad de Derecho Anhanguera de Jundiaí. Vicepresidente
en Brasil del Instituto Panamericano de Derecho Procesal. Abogado en Jundiaí.

Sumario: 1 Prolegómenos – 2 Hipótesis de trabajo – 3 Arquetipo republicano – 4 Institutos fundamentales


del derecho procesal: visión tradicional – 5 Institutos fundamentales: perspectiva republicana –
6 Conclusiones
Resumen: Es un texto de carácter dogmático del garantismo procesal donde se propone la búsqueda
de la dimensión semántica de los Institutos (o Categorías) Fundamentales del Derecho Procesal dentro
del marco constitucional republicano y democrático. En el texto se propone la creación de la(s) norma(s)
jurídica(s) que incide(n) sobre el tema a partir del denominado principio republicano.

Palabras-clave: Proceso. República. Garantismo procesal. Institutos fundamentales del proceso (= Trilogía
Estructural). Acción, Proceso, Jurisdicción. Dimensión semántica. Principio republicano.

1 Prolegómenos
Proceso y República son categorías jurídico-políticas que habitan los cuadrantes
de la Teoría General del Derecho y entre ellas existe una fuerte correlación pragmática.
Es por ello que el proceso jurisdiccional debe tener su engranaje de funcionamiento
regida por los atributos que caracterizan al principio republicano.
¡Nada más elemental!
Si el Proceso es operado en el ambiente republicano, es natural que los
caracteres de la República marquen fuertemente su perfil fisiológico-funcional, bien
en la actuación del ciudadano que busca – como demandante o demandado – la
actuación de la tutela jurisdiccional (= ex parte populis), bien en el proceder y en el
decidir del agente político que ejerce el poder que es propio de la Judicatura (= ex
parte principis). Significa decir que tanto en la óptica de quien pide la actuación de la

1
Texto-base de mi intervención en el VIII Congreso de Derecho Procesal de Uberaba, realizado el 11 de setiembre
de 2014, repetida en el XIII Congreso Nacional de Derecho Procesal Garantista, realizado en Azul, Argentina,
el 22 de setiembre de 2014.

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Glauco Gumerato Ramos

jurisdicción (= partes), como en la de quien la ejerce (= jueces), la mirada prospectiva


es proyectada hacia el ambiente constitucional republicano, y democrático.
Los denominados Institutos Fundamentales del Derecho Procesal surgen en
la Teoría del Proceso como fruto de las reflexiones posteriores al inicio de la fase
denominada científica (= o de autonomía) del derecho procesal, inaugurada a partir de
la publicación del clásico libro de Oskar von Bülow,2 en la segunda mitad del Siglo XIX.
A partir de allí se formaron los conceptos de las categorías acción, proceso y
jurisdicción dentro de una dogmática procesal civilística potenciada en perspectiva
(ultra)publicista y autoritaria – por lo tanto, ex parte principis –, cuya obra legislativa
de Franz Klein para el Imperio Austro-Húngaro fue la semilla de la cual germinaron
varios modelos de CPC’s de Europa Continental y de América Latina3 a lo largo del
siglo XX.4
Después de la segunda mitad del Siglo XX el derecho procesal pasó a ser
pensado desde una perspectiva instrumentalista – cada vez más criticada en Brasil5–,
donde el objetivo del Proceso es el alcanzamiento de los “objetivos” político, jurídico,
social y económico del Estado.6
Actualmente se vive la fiebre-confusa del denominado neoconstitucionalismo y
nuestra doctrina de turno identificó un cierto neoprocesalismo.7 El discurso jurídico
que está en la base de esas diversas doctrinas caracterizadas por el prefijo “neo”
que las adjetivan, disimula el aspecto estatal-autoritario que le da soporte a través
de posturas dogmáticas que, mediante “hoz y martillo” (= activismo socialista) o bajo

2
BÜLOW, Oskar von. La teoría de las excepciones procesales y los presupuestos procesales (Die Lehre von den
Prozesseinreden und die Prozessvoraussetzungen), traducción de Miguel Ángel Rosas Lichtschein, Buenos
Aires: EJEA, 1964.
3
Cf. CIPRIANI, Franco. “El centenario del Reglamento de Klein (El proceso civil entre libertad y autoridad), en
Batallas por la Justicia Civil – Ensayos (compilación y traducción de EUGENIA ARIANO DEHO), Lima: Cultural
Cuzco, 2003, pp. 59-87. Cf., también RAMOS, Glauco Gumerato. “Ativismo e Garantismo no processo civil:
apresentação do debate”, en Ativismo judicial e garantismo processual, coords. DIDER JR., Fredie, NALINI,
José Renato, RAMOS, Glauco Gumerato y LEVY, Wilson, Salvador: Ed. JusPodium, 2013, pp. 273-286.
4
También sobre la influencia de la obra de Klein en la legislación procesal que se formó en el siglo XX, cf., LENT,
Friedrich, Diritto processuale civile tedesco – Prima parte: Il procedimento di cognizione (Zivilprozessrecht,
traducción de EDOARDO F. Ricci), Napoli: Morano Editore, 1962, p. 364 (Profilo storico del processo civile –
§102. Il secolo ventesimo).
5
LÊNIO STRECK: “En el ámbito del proceso civil, por ejemplo, tenemos una explicación privilegiada de como esa
mezclilla acrítica de tradiciones puede llevar a resultados peligrosos para la formación de nuestra arquitectura
democrática. En efecto, el predominio de las vertientes instrumentalistas del proceso en el campo de la teoría
procesal produjo un tipo intrigante de sincretismo de tradiciones. La idea de que el proceso es un instrumento
teleológico cuyo fin es determinado a partir de objetivos políticos, sociales y jurídicos encargada a la jurisdicción
para – solipsisticamente – llevarlos a la realización”. Cf. en Verdade e Consenso – Constituição, Hermenêutica
e Teorias Discursivas, São Paulo: Saraiva, 4ª ed., 2ª tiragem, 2012, p. 30. Lênio Streck es uno de los mayores
críticos del activismo judicial reinante en Brasil sobre la formación de la dogmática constitucional y de teoría
general del derecho.
6
Sobre las ideas instrumentalistas, cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, São
Paulo: Malheiros Editores, 6. ed. 1998, passim.
7
En el caso de Brasil, por ejemplo, ver CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo –
Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2. ed.,
2011, passim.

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Proceso jurisdiccional, república y los institutos fundamentales del derecho...

“fascio” (= activismo fascista),8 pretenden hacer del Derecho, y del Proceso que lo
concretiza, un instrumento idiosincrático al servicio de una cierta “ética subjetiva” que
emana del “sentido de justicia” de aquel que ejerce el poder jurisdiccional, que así
actúa amparado-legitimado en la “fuerza” del discurso neoprocesal-neoconstitucional.
La intención es buena y ello no se niega ello. Pero toda vez que determinada
proposición jurídica aparece justificada en fundamentos que mixturan Derecho y
moral, el análisis riguroso del discurso que busca legitimarla nos revela la faceta de
un dirigismo-decisionismo que invariablemente debilita uno de los más importantes
atributos del Derecho: la seguridad jurídica.
Este ensayo rechaza cualquiera de las “tesis” defendidas por los distintos
“neoconstitucionalismos”9 que actualmente contagian el discurso jurídico, lo
que acaba fomentando un proceso jurisdiccional que en el plano pragmático se
presenta debilitado en “republicanismo”. Se descarta, de la misma forma, posturas
instrumentalistas que buscan explicar el Proceso como un “instrumento”10 orientado
a las realizaciones de los fines del Estado – por lo tanto, ex parte principis –, dado
que eso proporciona que el proceso jurisdiccional sea pensado y concretizado a partir
de premisas autoritarias.
Como el ambiente republicano y democrático es refractario al uso del poder con
base en el propio albedrío del agente político, el solipsismo judicial (Lênio Streck)
es incompatible con la dimensión semántica del mundo jurídico-constitucional.11 El
manejo adecuado del proceso jurisdiccional debe circunscribirse a los límites de las
imposiciones constitucionales que marcan su perfil, que en un último análisis existen
para racionalizar el discurso jurídico que fundamenta la toma de decisión por parte
autoridad judicial.
Pensado el Proceso a partir de las garantías procesales previstas en el plano
sintáctico de los enunciados prescriptivos contenidos en la Constitución, se hace
perfectamente posible redimensionar el contenido semántico de varias de las

8
Ver AROCA, Juan Montero. “Sobre el mito autoritario de la buena fe procesal”, en Proceso civil e ideología –
Un prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos (coordinador JUAN MONTERO AROCA), Tirant lo
Blanch: Valencia, 2006, pp. 294-353. Ver también, con mucho provecho, COSTA, Eduardo “Los criterios de la
legitimación jurisdiccional según los activismos socialista, fascista y gerencial”, en RBDPro 82/205.
9
Sobre la existencia de varios “neoconstitucionalismos”, así como ciertos aspectos de la crítica dogmática de
los que son acreedores, cf. el excelente “Neoconstitucionalismo: entre la ciencia del derecho y el derecho de
la ciencia”, ÁVILA, Humberto. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE). Salvador: Instituto Brasileiro de
Direito Público, n. 17, jan/fev/mar, 2009. Disponible en: <http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp>.
10
Criticando – a mi modo de ver, de forma acertada – la instrumentalidad y la idea de proceso como “instrumento”,
cf. CALMON DE PASSOS, “Instrumentalidade do processo e devido processo legal”, en J. J. Calmon de Passos –
Ensaios e Artigos, vol. I, organizadores DIDIER JR, Fredie y BRAGA, Paula Sarno. Salvador: Ed. JusPodium,
2014, pp. 31-43. También fue publicado en la RePro 102, en abril de 2001.
11
Sobre algunas características de la dimensión semántica del plano constitucional que impactan el proceso
jurisdiccional, cf. mi artículo “Aspectos semânticos de uma contradição pragmática. O garantismo processual
sob o enfoque da filosofia da linguagem”, RAMOS, Glauco Gumerato, en Ativismo judicial e garantismo
processual, coords. DIDER JR., Fredie, NALINI, José Renato, RAMOS, Glauco Gumerato e LEVY, Wilson,
Salvador: Ed. JusPodium, 2013, pp. 245-253.

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Glauco Gumerato Ramos

categorías jurídico-procesales y eso tiende a repercutir en la propia forma de ser del


proceso jurisdiccional que manejamos. Si nuestro orden constitucional está fundado
en preceptos republicanos y democráticos, es natural que el ambiente establecido
influencie los vínculos entre el ciudadano y el poder jurisdiccional.
Este ensayo sugiere que un orden constitucional confesadamente republicano
y democrático sirve de punto de partida para nuevas reflexiones sobre temas de alta
relevancia para el derecho procesal, como lo son, por ejemplo, los denominados
Institutos Fundamentales (= acción, proceso, jurisdicción).

2 Hipótesis de trabajo
Partiendo de la premisa de que los conceptos Proceso y República se
correlacionan en sus dimensiones pragmáticas, y que eso necesariamente debe ser
tomado en cuenta en las formulaciones teóricas y en las resoluciones prácticas del
proceso jurisdiccional, a partir del denominado principio republicano se buscará, por
lo tanto, trazar nuevos contornos a los conceptos de acción, proceso y jurisdicción.
A partir de aquello que consta en la mayoría de los manuales que tratan sobre
la teoría general del proceso, será demostrado como estos conceptos fundamentales
fueron vislumbrados y trabajados por la doctrina a partir de la fase científica del derecho
procesal. También será demostrado que la dogmática procesalcivilística fundamentó
su discurso jurídico mucho más para justificar los institutos fundamentales desde
una óptica estatizante, y por lo tanto autoritaria, que bajo la perspectiva del principal
interesado en la solución de los problemas que son llevados a la resolución a través
del proceso jurisdiccional, que es el ciudadano.
Con i) la fijación de los elementos que caracterizan la República, ii) la aceptación
de que el principio republicano es determinante para el funcionamiento del Proceso, y
iii) como los temas de los institutos fundamentales están dispuestos analíticamente
en la Constitución brasileña, se buscará construir las normas jurídicas que dan soporte
al redimensionamiento de los conceptos de acción, de proceso y de jurisdicción. Serán
propuestos conceptos dogmáticos que compatibilicen, esto es, conceptos que guarden
armonía entre la norma y lo que es observado empíricamente en el día a día del proceso.
Por tanto, los Institutos Fundamentales del derecho procesal serán aquí
presentados desde una perspectiva republicana.

3 Arquetipo republicano
Naturalmente la idea de República será tomada aquí en su acepción moderna,
de la forma como es vislumbrada actualmente. En este sentido, recordemos las
enseñanzas de Geraldo Ataliba. En su obra clásica, el constitucionalista de la PUC/SP
sintetiza de forma simple y precisa los caracteres que informan la idea de República:

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Proceso jurisdiccional, república y los institutos fundamentales del derecho...

República es el régimen político en el que los que ejercen funciones


políticas (ejecutivas y legislativas) representan al pueblo y deciden en
su nombre, haciéndolo con responsabilidad, electivamente y mediante
mandatos renovables periodicamente.12

Con base en este concepto es posible identificar los principales atributos que la
califican: i) responsabilidad, ii) representatividad y iii) periodicidad. Considero que es
posible agregar a estos otro atributo que integra fisiológicamente la República: el de
la Separación de los Poderes.13
Se nota que hay una identificación de las funciones políticas con las actividades
ejecutivas y legislativas, y son políticas porque son ejercidas por mandatarios del
pueblo, dado que escogen los rumbos que seguirán las respectiva actividades. A estas
funciones (= ejecutiva y legislativa) no aparece vinculada la función jurisdiccional, lo
que obviamente no proyecta la actividad de la persona física que la ejerce (= juez) a
un nivel de irresponsabilidad funcional, aquí tomada en su acepción republicana. Si
así lo fuera, tendríamos oráculos, y no jueces, desvinculados del orden constitucional
republicano y democrático al cual todos, individuo, sociedad civil y Estado,
estamos sometidos.
Siguiendo el raciocinio aquí expuesto, el hecho que el juez no tenga
representatividad tiene un significado único y republicano: en la República ellos
NO representan la voluntad del pueblo, dado que esa misión republicana compete
al Legislador, siendo éste el motivo por el que los jueces NO son elegidos por el
voto popular.
Al Poder Judicial y a sus jueces les es reservado un papel eminentemente
técnico, consistente en el análisis y en la aplicación de la Ley a los casos concretos
que son sometidos a su apreciación. Aquí considerada en su dimensión pragmática
de ordenamiento jurídico, organizado a partir de la Constitución y de los demás
reglamentos legales fundamentados en ella, la Ley es producto de los órganos
de representación popular, revelando aquello que la sociedad escogió para su
propia organización.
En el proceso de aplicación – técnica, impersonal e imparcial – de la Ley, no cabe
al juez o al tribunal tomar en cuenta su propia voluntad. En el ambiente republicano,
las idiosincrasias de aquel que ejerce la jurisdicción en ninguna hipótesis puede actuar
como motivo determinante en el proceso de decisión. Y así funciona exactamente

12
Cf. ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, 3ª ed., p. 15.
13
La Separación de los Poderes aquí mencionada es la pensada por Montesquieu, y no por Locke, y refleja la
regla contenida en nuestras Constituciones en el sentido de que el Legislativo, el Ejecutivo y la Judicatura
son poderes independientes y armónicos entre sí. EROS GRAU: “... de las ponderaciones de Locke y de
Montesquieu, podemos verificar que el primero propone una separación dual entre tres poderes – el Legislativo,
de un lado, y el Ejecutivo y el Federativo, de otro – y el segundo sugiere no la división o separación, sino el
equilibrio entre tres poderes distintos –el Legislativo, el Ejecutivo y la Judicatura”.

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Glauco Gumerato Ramos

porque el juez no representa la voluntad del pueblo, dado que no es elegido por el voto
popular (= representatividad). En este mismo sentido se manifiesta Geraldo Ataliba:
“no hay razón para que el instituto representativo se haga sentir en la selección de
los ciudadanos que servirán en el Poder Judicial. Las funciones técnicas no deben ser
representativas, dado que son no políticas”.14
Sintetizando de forma rigurosa: la Judicatura ejerce la función técnica de decidir
con base en la Ley (= voluntad popular) y en las reglas constitucionales que orientan
el poder jurisdiccional. No le corresponde escoger. Elección es algo propio de las
funciones políticas (= ejecutiva y legislativa). El juez no tiene representatividad porque
en la República la función jurisdiccional es técnica, no resultando de la voluntad del
pueblo y, así pues, de ninguna persona física.
Como consecuencia de la representatividad – propia de las funciones políticas –
existe la periodicidad, representada en el periodo establecido por la Ley para la
duración del mandato popular. La correlación existente entre la representatividad y la
periodicidad marca un atributo fundamental de la República que es la posibilidad que
tiene la voluntad popular, a través del voto, para controlar el ingreso y la permanencia
de los ciudadanos que irán a desarrollar las funciones políticas ejecutivas y legislativas.
Generalmente, en América Latina y en Europa continental, el Poder Judicial es
formado por ciudadanos que se tornan jueces mediante concurso público, ejerciendo
sus funciones vitaliciamente o hasta que alcancen el límite temporal impuesto por la
Ley para el alejamiento definitivo de sus funciones a través de la jubilación. Aunque
tengamos en mente que en la República la composición de algunos Tribunales es
realizada a través de un proceso de elección compartida entre órganos ejecutivos y
legislativos, y aunque el ejercicio de la respectiva función, en tesis, pueda darse por
un determinado periodo de tiempo (=mandato), es evidente que incluso en estos
casos la función jurisdiccional no representa la voluntad popular y seguirá siendo una
función técnica de interpretación y de aplicación de la Ley. Esta Ley es el estándar
jurídico que es manifestada por en enunciados prescriptivos y establecidos por sus
representantes que son elegidos para el desempeño periódico de funciones políticas.
La República también tiene como atributo la responsabilidad a la que están
sujetos aquellos que ejercen funciones políticas (= ejecutiva y legislativa). Estas
funciones – por ser políticas – son ejercidas mediante actos de elección de quien
las ejerce, y tales elecciones son realizadas con amparo en la voluntad popular que
las legitima.
Existen varias formas para responsabilizarse al agente republicano que ejerce
función ejecutiva o legislativa. El impeachment, por ejemplo, es una de ellas. Pero en el
ambiente republicano, donde la representatividad ocurre con base en la periodicidad,

14
ATALIBA, Geraldo, op. cit, p. 113.

256 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 251-272, out./dez. 2014
Proceso jurisdiccional, república y los institutos fundamentales del derecho...

una de las formas más contundentes de responsabilidad de aquellos que ejercen


funciones políticas se da por la propia voluntad popular, que siempre tendrá la opción
de no elegir o no reelegir a aquel ciudadano que no se mostró digno de la confianza y
ello es expresado a través del voto.
Como no son elegidos – y no son elegidos porque no representan la voluntad
popular –, ¿estarían los jueces inmunes a la responsabilidad que caracteriza al
principio republicano? O, dicho de otra manera, ¿la responsabilidad republicana deja
de alcanzar a los jueces cuando, en el curso del proceso jurisdiccional, manejan la
jurisdicción como una función política, escogiendo los rumbos de la solución a ser
dada a un caso concreto con base en el propio albedrío?
A pesar de estar destituidos de la representatividad y de la periodicidad que
caracterizan a las funciones políticas (= ejecutiva y legislativa), es evidente que los
jueces deben sujetarse a la responsabilidad republicana cuando violaran los límites
técnicos de la función jurisdiccional – esencialmente vinculada a la actividad de
decidir – y cuando partan de forma deliberada para elecciones fundadas en el propio
albedrío, rigurosamente deslegitimadas de la representatividad que caracteriza la
voluntad popular.
La República, por lo tanto, presupone la responsabilidad de cada uno de sus
agentes políticos. Los agentes políticos son todos los ciudadanos que integran
la estructura estatal desempeñando la función ejecutiva y legislativa (= funciones
políticas; implica elección) y la función jurisdiccional (= función técnica; implica
decisión). Por consiguiente, no todo agente político ejerce función política.

4 Institutos fundamentales del derecho procesal: visión


tradicional
La doctrina a lo largo del siglo XX trató los institutos fundamentales enalteciendo
y potenciando la jurisdicción como el polo metodológico de mayor relevancia. Ella
sería el elemento más importante del eje sistemático a partir del que se estructuró
la denominada teoría general del proceso. A partir de allí el proceso fue reducido a
un mero “instrumento de la jurisdicción”.15 En síntesis: aquél fue puesto al servicio
de ésta.
Siendo la jurisdicción una función resultante del ejercicio del poder, fue natural
que la dogmática procesal desarrollase ideas de carácter autoritario para explicar
científicamente varios de los temas vinculados al funcionamiento del proceso

15
ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos, GRINOVER, Ada Pellegrini y DINAMARCO, Cândido Rangel: “El proceso es
indispensable a la función jurisdiccional ejercida con la finalidad de eliminar conflictos y realizar la justicia
mediante la actuación de la voluntad concreta de la ley. Es, por definición, el instrumento a través del que
la jurisdicción opera (instrumento para la positivación del poder)”. Cf. Teoria geral do processo. São Paulo:
Malheiros Editores, 27. ed., p. 301.

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jurisdiccional. Los motivos para las concepciones procesal civilista ex parte principis
son diversos. Franz Klein (= CPC austríaco de 1895) y Anton Menger (= socialismo
jurídico), ambos a partir del Imperio Austro-Húngaro, auxiliaron en esa forma de ver
las cosas. Pero la teoría general del proceso, estructurada en torno a la jurisdicción,
también colaboró decisivamente para ello.
Denomino visión tradicional al análisis de la teoría general del proceso a partir
de esta perspectiva fuertemente publicista-autoritaria.

4.1 Panorama
La propuesta de concebir el derecho procesal a partir de institutos (o categorías)
fundamentales fue esbozada por Chiovenda en una Clase Magna que profirió en la
Universidad de Bolonia el 03 de febrero de 1903,16 sobre la “acción en el sistema de
los derechos”.17 Chiovenda, en los apuntes de su discurso en Bolonia, se tornó un
clásico para los estudios posteriores del derecho procesal, lanza en un pie de página
la semilla que algún tiempo después permitió germinar la idea de que los engranajes
del derecho procesal se desarrollan a partir de tres conceptos fundamentales.
Posteriormente, Podetti pasa a denominarlos trilogía estructural del proceso.18
La lectura del respectivo pie de página19 muestra que en aquel momento la
intuición de Chiovenda fue en el sentido de organizar los tres conceptos fundamentales
en el siguiente orden: acción, jurisdicción y proceso, conclusión a la que se llega
porque en aquel escrito el procesalista italiano explica que las tres grandes divisiones
que se complementan recíprocamente serían la teoría de la acción (= acción) y las
condiciones de la tutela jurídica (= jurisdicción), así como la teoría de los presupuestos
procesales y del procedimiento (= proceso).
Se ve que en el texto-base de su exposición en la Universidad de Bolonia, en
1903, Chiovenda no comenzó su argumentación sobre los conceptos fundamentales
de la jurisdicción. Con el pasar del tiempo ello se mostró tan al gusto de aquellos que
se aventuraron a trabajar sobre el tema.
Adviértase que en sus Instituciones Chiovenda se mantiene coherente con
las lecciones expuesta en Bolonia, dado que la exposición de estos conceptos

16
Sobre la fecha exacta de la conferencia de Chiovenda en Bolonia, cf. ECHANDÍA, Hernando Devis. Teoria
General del Proceso, tomo I, Buenos Aires: Editorial Universidad, 1984, p. 17.
17
CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos (traducción de Hiltomar Martins Oliveira), Belo
Horizonte: Ed. Líder, 2003, passim.
18
PODETTI, José Ramiro. Teoría y técnica del proceso civil y trilogía estructural de la ciencia del proceso civil,
Buenos Aires: Ediar, 1963, pp. 334 y ss.
19
CHIOVENDA: “Considerado este triple aspecto, el proceso recibe su completa significación: un lado presupone
el otro y ninguno puede ser estudiado aisladamente con aprovechamiento. De esta forma, en la ciencia del
derecho procesal resultan tres grandes divisiones que se completan recíprocamente: la teoría de la acción y
de las condiciones de la tutela jurídica, la teoría de los presupuestos procesales y la teoría del procedimiento”,
cf., el pie de página 2, op. cit., p. 43.

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Proceso jurisdiccional, república y los institutos fundamentales del derecho...

fundamentales tiene como punto de partida la acción. Sin embargo, Chiovenda


perfeccionó su idea originaria para versar el asunto de manera más lógica y
racional –como más adelante se explicará–, tratando de explicar los conceptos
fundamentales en esta secuencia: acción, proceso, jurisdicción. Nos basta observar
el plano de la exposición contenido en el sumario del volumen 1 de sus Instituciones
de Derecho Procesal Civil. En la “primera parte” de sus Instituciones se observa
que aborda El Derecho y la Acción (§1º), y El Proceso Civil y la Relación Jurídica
Procesal (§2º), y solamente en su “segunda parte” es que Chiovenda tratará sobre
la Actuación de la Ley en pro del demandante y del demandado (§6º y ss.).20 Por
lo tanto, el orden sistemático de Chiovenda fue acción, proceso y jurisdicción.
¡Lo dejamos registrado!
Pero la semilla plantada por Chiovenda fue germinada por las manos de
Calamandrei. Chiovenda fue el maestro de Calamandrei. Éste habría vislumbrado
la importancia de explicar los fundamentos del derecho procesal a partir de la
organización sistemática de estos tres conceptos, conforme relata Cipriano Gómez
Lara con fundamento en un estudio anterior de Alcalá-Zamora y Castillo.21
En la “segunda sección” del volumen 1 de su Derecho procesal civil – estudios
sobre el proceso civil, Calamandrei se sirve de más de 100 páginas para esbozar
los conceptos, los desdoblamientos y las distinciones entre estos tres conceptos
denominados por él como el fundamental trinomio sistemático, pero nos advierte
lo siguiente:

No es posible que se inicie con utilidad el estudio descriptivo y


exegético de un Código de derecho procesal si no se parte por las
tres nociones fundamentales de orden sistemático, que no están
definidas, sino presupuestas, por las leyes positivas: jurisdicción,
acción, processo.22

20
CHIOVENDA, Giuseppe Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1 (traducción de Paolo Capitanio de la 2ª
ed., del original italiano), Campinas: Ed. Bookseller, 1998.
21
CIPRIANO GÓMEZ LARA: “Esta idea de los tres conceptos fundamentales de la ciencia procesal, se apuntó por
primera vez en las notas de un discurso o prolusión inaugural de un curso, en el año de 1903, pronunciado
por Chiovenda en la Universidad de Bolonia. Alcalá-Zamorra y Castillo nos expresa que en una pequeña nota,
consistente en unas cuantas líneas, Chiovenda ‘… apunta la idea de que los conceptos fundamentales del
proceso son acción, jurisdicción y proceso’. Parece ser que Chiovenda, sin embargo, con posterioridad al año
de 1903, no desenvuelve ni desarrolla esta importantísima idea de que los conceptos de acción, jurisdicción
y proceso, sean los conceptos más importantes y fundamentales de la ciencia procesal. Un discípulo suyo,
‘… Calamandrei, quien se da cuenta de la transcendencia del hallazgo y entonces él, ya sí de una manera
categórica y precisa, afirma que las ideas fundamentales para la elaboración de la sistemática procesal, son
esas tres y, a partir de entonces, una serie de autores de diferentes países van suscribiendo el mismo punto
de vista y sustentan la idea de que la sistemática procesal puede alzarse sobre estos tres conceptos, e
inclusive en Argentina, un autor, Podetti, los engloba bajo la denominación de trilogía estructural del proceso’.
Cf., GÓMEZ LARA, Cipriano. Teoría General del Proceso, México-DF: Universidad Nacional Autónoma de México,
Tercera Reimpresión, 1981, p. 105.
22
Cf. CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil – Estudos sobre o processo civil (traducción de Luiz Abezia y
Sandra Drina Fernandez Barbery), Campinas: Ed. Bookseller, 1999, p. 93.

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A partir de allí se observa que la exposición de Calamandrei inicia contextualizando


la jurisdicción, considerada por él como el “primer argumento de estudio”23 y
que tendría por objeto de su actividad a la acción. De esa manera, “jurisdicción y
acción entran en contacto y se unen a través del proceso, el cual formará el tercer
argumento”24 del estudio presentado por él.25
La mayoría de los libros de teoría general del proceso existentes en Brasil, en
América española y en Europa continental, desarrolla la exposición de los Institutos
Fundamentales iniciando por el concepto de jurisdicción, bien enumerando la acción
y el proceso como “segundo y tercer argumento”, en la misma línea de Calamandrei,
bien colocando al proceso en segundo lugar y terminando con la acción. Poco importa
el orden de la inversión acción-proceso, pero podemos manifestar que es sintomático
que se inicie por la jurisdicción. La mayoría absoluta de los tomos de teoría general del
proceso invariablemente contextualiza el tema a partir del concepto de jurisdicción y
eso es fácilmente verificable a través de una rápida consulta en nuestras bibliotecas.
Dentro de ese panorama de proponer la organización de los Institutos
Fundamentales y siguiéndose el orden jurisdicción, acción y proceso, el discurso de
la doctrina fue siempre uniforme y legitimador del Poder estatal como el gran dirigente
y protagonista de la escena procesal. Es por ello que la jurisdicción es trabajada como
el polo metodológico preponderante.
A partir de allí la doctrina pasó a enaltecer la importancia de los Institutos
Fundamentales, sin embargo, siempre con el enaltecimiento de la jurisdicción
(= Poder) por sobre el proceso (= Garantía) y la propia acción (= Libertad). Como ya
fue señalado, eso se verifica en la forma como los libros de teoría general del proceso
metódicamente organizan el asunto, comenzando de forma general por la exaltación/
explicación de la jurisdicción. La acción y el proceso son tratados siempre después
de aquélla.
Esa forma de organizar el tema (= jurisdicción, acción, proceso), realizada por la
mayoría de los manuales de teoría general del proceso, revela el pendor – aunque sea
inconsciente – de la dogmática procesalcivilística en enaltecer la jurisdicción como
la categoría jurídica más importante de la Trilogía Estructural del Derecho Procesal
(Ramiro Podetti). Este fenómeno discursivo, naturalmente, colaboró en la construcción
de concepciones autoritarias para el derecho procesal.
¡Naturalmente existen las excepciones! Adolfo Alvarado Velloso en su Sistema
Procesal es categórico en rechazar el estudio de la teoría general del proceso que
inicie por la jurisdicción, dado que entiende que eso revela una manera autoritaria de

23
Op. cit. p. 94.
24
Idem.
25
CALAMANDREI fue categórico al punto de manifestar lo siguiente: “El trinomio de las nociones fundamentales
que constituyen las premisas de nuestro estudio se completa con la de proceso”. Cf., op. cit. p. 253.

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concebirse el fenómeno procesal. El procesalista argentino explica que esa dinámica


de exposición de los conceptos fundamentales es realizada en la perspectiva del
poder (= jurisdicción), y no de la libertad (= acción)26 o – diría yo – de la garantía
(= proceso).
La visión macroscópica como los manuales de teoría general del proceso
explican cada uno de los Institutos Fundamentales, lo que es bien conocido por
los procesalistas. De modo general parten de los mismos supuestos conceptuales
radicados en las ideas que fueron expuestas originariamente por Calamandrei.

4.2 Jurisdicción
La doctrina en general acepta un clásico concepto doctrinario que concibe
la jurisdicción a partir de aquel que sería su principal objetivo: “la actuación de la
voluntad concreta de la Ley” (Chiovenda). En ese contexto la Ley es la proyección del
derecho objetivo establecido por el Estado, a través del cual “los particulares deben,
en sus relaciones sociales, ajustar su conducta”.27 El Estado, por su parte, tendría
por finalidad fundamental la “preservación del orden en la sociedad”.28
Calamandrei, influenció fuertemente a la doctrina que posteriormente se dedicó
a estudiar los Institutos Fundamentales, al referirse sobre el CPC italiano de 1940
afirma que este código habría invertido el orden de disposición del tema si se compara
con el código anterior, que iniciaba sus disposiciones legislativas generales sobre la
acción, mientras que el CPC-40 tiene como punto de partida la jurisdicción y el juez.
Esta inversión sistemática en un CPC que inicia sus disposiciones legales por
la jurisdicción, en vez de la acción, a ejemplo de lo que ocurrió en el código de 1940
en Italia, se puede decir que es una orientación política de cuño “estratégico”, en
una clara opción estatizante-autoritaria de enaltecimiento del concepto de jurisdicción
como forma de actuación del Poder. A partir de allí los Institutos Fundamentales
pasaron a ser trabajados desde una perspectiva ex parte principis.
Calamandrei también recuerda que la exposición de motivos del CPC italiano
de 1940, denominada Relazione Grandi en referencia a su subscritor y Ministro
de Justicia de ese periodo, Dino Grandi, fue categórica al enaltecer la prioridad del

26
ADOLFO ALVARADO VELLOSO: “Para lograr coherencia sistemática en todo lo que aquí se refiera al proceso,
y habida cuenta de que en el Capítulo anterior lo he presentado como el objeto de la acción procesal, parece
claro que debo comenzar toda explicación a partir de su completa tipificación.
Con ello, a más de aceptar como buena la presentación del tema que se hacía en la legislación del lejano
pasado, asumo una posición filosófica que coloca a la libertad personal por encima de todo otro valor y,
consiguientemente, considera que el Estado se halla al servicio del individuo y no a la inversa, cual lo ha
imaginado el mundo totalitario que inicia toda explicación desde el concepto de jurisdicción y no por el de
acción”. Cf. en Sistema procesal – Garantía de la Libertad, tomo I, Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores,
2009, p. 201.
27
Cf. CALAMANDREI, op. cit. p. 96.
28
Idem;

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concepto de jurisdicción. Con referencia a la inversión jurisdicción-acción, afirma la


exposición de motivos del CPC-40:

Mientras que el Código de 1865 iniciaba su primer libro, dedicado al


proceso de cognición, por las disposiciones generales sobre el ejercicio
de la acción, el nuevo código parte de la jurisdicción y del juez. Esta
variación en el orden sistemático, es índice de un cambio de mentalidad:
el anterior código se planteaba los problemas desde el punto de vista del
litigante que pide justicia, el nuevo los encara desde un punto de vista del
juez que debe administrarla; mientras que el antiguo código consideraba
la acción con un prius de la jurisdicción, el nuevo código, invirtiendo los
términos del binomio, concibe la actividad de la parte en función del
poder de juez. Cf. en Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio,
Bogotá: Editorial Temis, 2004, p. 190.29,30

Por lo tanto, aunque la doctrina no se dé cuenta del hecho, o no lo confiese,


trabajar los Institutos Fundamentales comenzando por la jurisdicción es una forma de
priorizar y enaltecer el respectivo concepto en franca potencialización del Poder, lo que
invariablemente trae consigo una perspectiva autoritaria – y por eso antirrepublicana –
en la comprensión/realización/concretización del fenómeno procesal.

4.3 Acción
La dogmática procesal hizo correr “ríos de tinta” cuando escribía sobre la acción.
En diversos momentos históricos fueron construidas varias teorías, polémicas etc.,
que se formaron sobre ella. Como ejemplos elocuentes de especulaciones teóricas en
torno a la acción se puede indicar: la teoría imanentista; la polémica Windisheid-Muther
sobre las eventuales distinciones entre la actio romana, la klagerecht y la anspurch;
la teoría de la acción como derecho autónomo y concreto; la teoría de la acción como
derecho autónomo y abstracto; teoría de la acción solo como derecho autónomo; la
teoría de la acción de Liebman.31
Independiente de cualquier variación teórica a su respecto, la visión tradicional
de la teoría general del proceso siempre fue en el sentido de vislumbrar la acción
como el derecho al ejercicio de la actividad jurisdiccional, o, más específicamente, el
derecho a un pronunciamiento jurisdiccional.
La acción es ejercida contra el Estado-juez y a partir de allí surge la “obligación”
para que éste efectivice la prestación estatal-jurisdiccional. Sinteticemos: el interesado
ejerce su derecho de acción y el Estado-juez provee la solución del problema.

29
Ibidem.
30
Vale recordarse que JAIRRO PARRA QUIJANO tradujo al español la Relazione Grandi. Se citó la versión de Jairro
Parra al ítem 19 de la Relazione (= Sistema y técnica del Código).
31
Cf. ARAÚJO CINTRA, GRINOVER y DINAMARCO, op. cit., pp. 271-277.

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Aunque de manera disimulada, esa forma de vislumbrar la acción revela una


realidad asentada en un vínculo de sujeción que somete a aquel que ejerce el derecho
de acción a los designios del Estado-juez.
Se suma a todas esas circunstancias el hecho de que delante de la prohibición
de la autotutela, y de la asunción por el Estado de la prerrogativa exclusiva de ejercer
la función jurisdiccional, en la perspectiva tradicional el ejercicio de la acción permite
que sea viabilizado el fin de la jurisdicción, que es “la exacta observancia del derecho
objetivo”,32 o la actuación de la voluntad concreta de la Ley. En esa perspectiva,
la realización/concretización del derecho subjetivo del jurisdiccionado es sutilmente
relegado a un segundo plano de importancia delante del interés primero del Estado
en hacerse presente a través de la jurisdicción para imponer el derecho objetivo al
caso concreto.

4.4 Proceso
De la misma forma que ocurrió con la acción, varias fueron las teorías que
buscaron explicar el proceso y su naturaleza jurídica. De entre las que ganaron un
mayor prestigio y son comúnmente referenciadas por la doctrina tenemos: el proceso
como contrato; el proceso como cuasi-contrato; proceso como servicio público;
proceso como institución; proceso como situación jurídica; proceso como relación
jurídica; proceso como instrumento para la consecución de los objetivos del Estado.
En el transcurso del siglo XX el proceso definitivamente pasó a ser encarado como
el instrumento a través del que la jurisdicción opera su finalidad de concretización de
los objetivos (= finalidades) del Estado. Proceso y jurisdicción pasan a correlacionarse
bajo la lógica maquiavélica de fin (= jurisdicción) y medio (= proceso). Se perfecciona
la concepción instrumentalista del proceso.
Siendo la jurisdicción la actividad-fin de mayor preponderancia del fenómeno
procesal, el proceso naturalmente es colocado al servicio de aquélla, de modo que
muchas veces las reglas de su funcionamiento pueden incluso ser puestas de lado
para no comprometer la finalidad mayor que es la propia “afirmación” del poder a
través de la actuación jurisdiccional.
En esa perspectiva, donde el proceso se presenta preterido delante de
la jurisdicción, el eventual seccionamiento de su secuencia lógica, que existe
exactamente para garantizar la realización plena del contradictorio y la amplia defensa,
acaba siendo tolerado, en los moldes de una “perennización del fetiche de la Justicia
Rápida, cuya velocidad puede ser aumentada si se suprime el proceso e, incluso, el
procedimiento, con la altanera supremacía de la jurisdicción. Es en ese vértice que

32
Cf. CALAMANDREI, op. cit. 187.

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nos incumbe analizar la coherente judicialización del Proceso Civil como instrumento
de eficiencia tiránica de una jurisdicción justiciera”.33
El proceso colocado al servicio de la jurisdicción es un proceso débil, cuyo
discurso en torno a su “efectividad” justifica que la “celeridad procesal” sea utilizada
en detrimento de la regularidad-funcional que la observación de todas sus etapas
pretende garantizar.34
En suma: la visión tradicional del proceso no deja de ser estatizante-autoritaria
porque su manejo está orientado a la concretización del poder representado por
la jurisdicción.

5 Institutos fundamentales: perspectiva republicana


Es preciso concebir la idea y el concepto de cada uno de los Institutos
Fundamentales del derecho procesal tomando en cuenta las directrices
constitucionales-republicana. Con este ensayo pretendo alcanzar este objetivo.
A continuación muestro una propuesta de redimensionamiento de los conceptos
de acción, proceso y jurisdicción, que en este exacto orden secuencial deben ser
estudiados, por ser una manera más lógica, más racional y más adecuada para
comprenderlos desde una perspectiva republicana.
No se profundizará en el estudio sobre los principios y/o desdoblamientos de
cada uno de estos Institutos Fundamentales, como por ejemplo: i) sobre la evolución
histórica del concepto de acción, o sobre las condiciones de la acción, o sobre la
clasificación de las acciones; ii) sobre la naturaleza jurídica del proceso jurisdiccional,
o sobre los tipos de proceso, o sobre los presupuestos procesales; tampoco se
tratará sobre iii) el significado etimológico de jurisdicción, o sobre sus características,
o sobre la tutela jurisdiccional clásica o diferenciada. Estos y otros temas correlativos
no serán abordados en este ensayo.
Sólo será expuesto el concepto que se entiende posible atribuir a cada uno de
los elementos integrantes de este trinomio metodológico cuando sean trabajados con

33
Cf., uno de los más contundentes críticos de las posturas instrumentalistas, LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria
Geral do Processo – Primeiros Estudos, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 8ª ed., 2009, p. 254. Las palabras en
negrita son del original.
34
GLAUCO GUMERATO RAMOS: “La lógica de la celeridad procesal representa un problema de superestructura
del proceso (= estructura jurídica + ideología). Si son pensadas las cosas, el discurso en torno a la celeridad
revela que la preocupación en concretizarla es del Estado-Judicial, que bien o mal, respetando o no las garantías
constitucionales, el debido proceso legal, finalmente, el propio modelo republicano en el cual y para el cual es
ejercida la jurisdicción, pretende solucionar con la mayor rapidez posible las demandas que le son sometidas por los
ciudadanos. Para esa heroica misión, la celeridad procesal surge de capa y espada en el interior del discurso – tan
melancólico, como inocente – siendo ella una especie de panacea que colabora con la “tan anhelada” efectividad
del proceso. La efectividad del proceso, así como la celeridad procesal, funcionan delante de nosotros como
sintagmas discursivos capaces de resolver de forma instantánea, si no son todos, varios de los problemas que
vivenciamos en el día a día de nuestras funciones delante del Poder Judicial”. Este texto todavía es inédito y lleva
por título “Crítica macroscópica al fetiche de la celeridad procesal. Perspectiva del CPC de hoy y en el de mañana”.

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Proceso jurisdiccional, república y los institutos fundamentales del derecho...

una perspectiva republicana. Fijados los respectivos conceptos, todos elaborados


a partir de enunciados prescriptivos contenidos en la Constitución brasileña y en
el Pacto de San José de Costa Rica,35 considero que es posible que se construya
una teoría general del proceso jurisdiccional que corresponda a las directrices
establecidas exclusivamente en el plano jurídico y en la propia observación empírica
del fenómeno procesal. Vale decir: intentaré armonizar las directrices sintáctica,
semántica y pragmática del ordenamiento jurídico-constitucional al cual estamos –
jurídicamente – vinculados.

5.1 (Re)Organización del tema


A pesar que la dogmática procesal se asiente en el sentido común para explicar
los Institutos Fundamentales a partir de las premisas lanzadas por Calamandrei, que
sistematizó los conceptos y las distinciones entre jurisdicción, acción y proceso en
perspectiva (ultra)publicista, incluso así es posible (re)organizar el tema trabajando
estos conceptos y teniéndose en cuenta el principio republicano que habita nuestras
Constituciones y que, por lo tanto, es determinante en el funcionamiento del
proceso jurisdiccional.
Anteriormente ya se hizo mención al hecho de que se debe a Chiovenda la
idea de estudiar el derecho procesal a partir del eje sistemático representando por
los conceptos de acción, de jurisdicción y de proceso – en este exacto orden –,
conforme se desprende de sus notas contenidas en el texto-base de la Clase Magna
que profirió en la Universidad de Bolonia en el año 1903. También fue mencionado
que en el volumen 1 de sus Instituciones, tal vez motivado por un imperativo lógico-
racional, Chiovenda comenzó su exposición por los Institutos Fundamentales a partir
del concepto de acción, seguido por el de proceso y concluyendo por el de jurisdicción.
Este ensayo descarta la presentación que tradicionalmente la doctrina realiza
del tema. Pienso que las cosas pueden ser explicadas por aquello que empíricamente
representan ellas, naturalmente teniéndose en cuenta el ambiente republicano y
democrático en el que el proceso jurisdiccional será operado.
Antes de todo es preciso aceptar el imperativo lógico-racional de que el análisis
de las categorías fundamentales del derecho procesal debe seguir el eje sistemático
así dispuesto: acción, proceso, jurisdicción.
En el orden constitucional republicano y democrático al que estamos sometidos,
no parecer traer ninguna dificultad racional la percepción empírica de que cada una de
esas categorías (=o institutos) fundamentales existen en el mundo de la vida como
antecedente lógico de la realidad posterior que – también lógicamente – le sucede.

35
En especial su artículo 8º, que trata de las “Garantías Judiciales”.

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Explico a través de interrogaciones ¿Hay proceso sin acción? ¿Hay jurisdicción


sin proceso? ¿Hay jurisdicción sin que el proceso se haya iniciado por la acción? La
respuesta para todas estas preguntas será negativa, lo que nos lleva a la conclusión
empírica de que en cuestión de Institutos Fundamentales el posterior siempre será
una consecuencia del anterior.
Es evidente que se puede estudiar de forma separada cada uno de esos
conceptos (= acción, proceso, jurisdicción). Pero a partir del momento en el que
la doctrina llamó la atención para el hecho de que el fenómeno procesal debe ser
vislumbrado científicamente a partir del eje sistemático formado por los Institutos
Fundamentales, es evidente que las cosas deben ser pensadas siguiendo la lógica
funcional de aquello que, en perspectiva macroscópico-pragmática, denominamos
Proceso, que en un último análisis representa la organización sistemático-fisiológica
de la acción, del proceso y de la jurisdicción, esto es, de los conceptos fundamentales.
La obviedad de esta observación empírica gana fuerza cuando se mira la cuestión
a partir de la influencia provocada por el principio republicano. Este principio revela que
el ambiente político-constitucional en el que vivimos es la República, necesariamente
estructurada para la contención/disminución del albedrío relacionado al ejercicio del
Poder y por ello no puede haber duda de que los engranajes que mueven el proceso
jurisdiccional no pueden ser explicadas desde una perspectiva ex parte principis.
Por el contrario – manifiesto y reafirmo aquí –, el proceso jurisdiccional necesita ser
pensado y estructurado a partir de la libertad (= dispositividad) que la Constitución
confiere al jurisdiccionado para iniciarlo, o no, a través del ejercicio de la garantía
constitucional-libertaria de la acción. De modo que sin la acción (= libertad), no habrá
el proceso (= garantía) que da legitimación constitucional-republicana-democrática al
ejercicio de la jurisdicción (= poder).
Este importante aspecto de la Teoría General del Proceso tiene adherencia
plástica a cualquiera de las manifestaciones del proceso jurisdiccional, inclusive en
el ámbito procesal penal. Allí, el dominus litis (= Ministerio Público) sólo ejercerá
responsablemente la acción en los casos en los que estuvieran presentes las señales
concretas que la justifique, que son los indicios de autoría (= aspecto subjetivo del
hecho penal) y la prueba de la materialidad (= aspecto objetivo del hecho penal).
De forma minuciosa podemos decir lo siguiente: a través del ejercicio de la
acción (= libertad) será formado el proceso (= garantía) que viabilizará la actuación
legítima de la jurisdicción (= poder). Es por eso que por un imperativo lógico la
secuencia de la exposición y de la contextualización del trinomio fundamental sólo
puede ser la siguiente: acción-proceso-jurisdicción.
Considero que este orden de exposición/presentación de los Institutos
Fundamentales, además de ser lógico – dado que deriva de la propia naturaleza de
las cosas –, está rigurosamente adecuado al ambiente republicano en el que conviven

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Proceso jurisdiccional, república y los institutos fundamentales del derecho...

el individuo, la sociedad civil y el Estado, como consecuencia de la propia estructura


jurídica establecida por la Constitución.
Se reconoce que la forma con la cual la dogmática procesal estructuró los Institutos
Fundamentales a lo largo del siglo XX correspondió a las especulaciones propias de
su época, y tal vez por ello se enalteció a la jurisdicción como valor preponderante
cuando fue comparada con la acción y el proceso. Pero ahora es importante dejar de
lado ciertos conceptos que no compatibilicen con un orden constitucional republicano
y democrático, para que se pueda (re)dimensionar la comprensión en torno a los
conceptos fundamentales del derecho procesal.
Valiéndome de enunciados prescriptivos contenidos en el Pacto de San José y
en la Constitución brasileña – pero el ejercicio es posible en cualquier Constitución
Republicana –, esbozaré más adelante los conceptos de cada uno de los elementos
integrantes de este trinomio fundamental para la Teoría General del Proceso. Para ello
partiré de las siguientes premisas: i) proceso y república son valores político-jurídico-
constitucionales que se correlacionan; ii) la función jurisdiccional no es una función
política (= de elección), sino técnica (= de decisión); iii) el principio republicano es
determinante para la actuación legítima del poder estatal; iv) el principio republicano
implica reducción/contención del albedrío; v) los ciudadanos integrantes del Poder
Judicial republicano no pueden fundamentar sus decisiones mediante supuestos
subjetivos-idiosincráticos o incluso metajurídicos; vi) el ejercicio de la acción es una
garantía resultante de la libertad que es viabilizada por la República; vii) el proceso
es un método de debate que consiste en la correlativa garantía constitucional
orientada por el principio republicano; viii) la jurisdicción es una manifestación de
poder republicano.

5.2 Acción
¿Qué es la acción para el proceso jurisdiccional republicano?
Discusiones clásicas sobre el concepto de acción como, por ejemplo, el
entablado entre Windscheid-Muther, o la acción como instancia bilateral, para Briseño
Sierra, o incluso acción material versus acción procesal, para Pontes de Miranda,
aquí serán puestas de lado. Se comprende la complejidad y profundidad de estos y de
otros estudios sobre el tema, como también se comprende el valor histórico de cada
una de esas proposiciones. Pero el hecho es que en la actualidad, después de toda
la evolución del derecho procesal, sumando a la observación empírica del respectivo
fenómeno, la acción puede ser vislumbrada-conceptuada a partir de lo que ella es y
para qué sirve.
La acción es una garantía constitucional cuyo ejercicio permite al jurisdiccionado
llevar cualquier pretensión jurídica, atribuyéndosele la propia libertad (= dispositividad), a
la apreciación del Poder Judicial. Y mucho más. Es a través de ella se iniciará el proceso.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 251-272, out./dez. 2014 267
Glauco Gumerato Ramos

En este enunciado descriptivo (= concepto), cuya simplicidad reposa en la


observación empírica de lo que ocurre en el mundo de la vida, se explica lo que ella es
y para qué sirve. Además, este concepto vincula el ejercicio de la acción a la libertad
(= dispositividad) que el orden constitucional republicano atribuye a todos.
La Constitución de la República brasileña (encabezado del art. 1º) es clara en
afirmar como garantías fundamentales: i) que son inviolables, entre otros, “el derecho
a la libertad y a la igualdad” (Constitución de la República Brasileña, encabezado del
art. 5º; ii) que “nadie será obligado a hacer o dejar de hacer alguna cosa salvo en
virtud de la ley” (CRBra, art. 5º, II); iii) que “la ley no excluirá de la apreciación del
Poder Judicial lesión o amenaza a derecho” (CRBra, art. 5º, XXXV).
A partir de estos enunciados prescriptivos es posible llegar al enunciado
descriptivo propuesto arriba para la (re)formulación del concepto de acción en el
ambiente republicano y democrático. Pero no es solo ello. Estos enunciados
prescriptivos extraídos de la Constitución brasileña – además de los que se puede
extraer del Pacto de San José de Costa Rica – permiten una argumentación jurídica
en la cual es revelada la norma que nos legitima a formular el concepto republicano
de acción, arriba lanzado.
En este sentido, suena lógico que todo fenómeno procesal se inicie a partir del
ejercicio de esta libertad que la Constitución nos permite, y que es representada por
la acción a través de la cual será iniciado/formado el proceso para que la jurisdicción
pueda actuar en la esfera jurídica de los jurisdiccionados.

5.3 Proceso
¿Cómo debe ser estructurado el concepto proceso en el ambiente constitucional
republicano y democrático?
Evidentemente que aquí será descartada toda y cualquier concepción
instrumentalista que ve en el proceso el medio (= instrumento) para alcanzar los
fines (= objetivos) del Estado.
Las ideas resultantes de este tipo de postura revelan una fuerte carga autoritaria-
dirigista, muy propia de los Estados-activos,36 en el que los respectivos agentes
políticos se creen que están ungidos para dictar los designios del individuo y de la
sociedad civil, naturalmente debilitando la libertad eventualmente establecida por el

36
MIRJAN R. DAMASKA: “No es necesario decir que la autonomía individual está lejos de ser sacrosanta. Para un
Estado activista, los individuos no necesitan ni siquiera ser jueces fiables de su mejor interés; su percepción,
conformada por una práctica social defectuosa, puede ser errada e incorrecta. Desde luego, mientras más se
adapten los ciudadanos a la imagen nacida de las teorías del Estado, más fácil será que el Estado permita
una mayor definición individual: los deseos de los ciudadanos son cada vez más lo que el Estado quiere que
deseen”. Cf. en Las caras de la justicia y el poder del Estado – Análisis comparado del proceso legal (Título
original en inglés The Faces of Justices and State Authority: A comparative approach to the legal process),
Santiago de Chile: Editorial Juridica de Chile, 2000, p. 142.

268 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 251-272, out./dez. 2014
Proceso jurisdiccional, república y los institutos fundamentales del derecho...

orden jurídico. En suma: es una postura dogmática que sugiere que el proceso debe
estar al servicio de un “Estado fuerte” y por ello se termina alejando de la moldura
política que forma una República constitucional. Por tal motivo – repítase – aquí se
descarta cualquier concepción instrumentalista.
El proceso es una actividad (= o método), regida por el contradictorio y por la
amplia defensa, que se inicia con la acción y se orienta a garantizar, en su curso (=
tutela de urgencia) o al final (= tutela definitiva), el ejercicio republicano y democrático
de la jurisdicción. Por lo tanto, el proceso es una garantía que nos es dada por la
Constitución para que sus reglas sean observadas antes que el Estado ejerza su poder
sobre la esfera jurídica de libertad del individuo y de la sociedad, libertad, de hecho,
garantizada por la propia Constitución. Por lo tanto, es el desencadenamiento racional
y jurídico del proceso que legitimará el ejercicio del poder republicano representado
por la jurisdicción.
En la Constitución de la República brasileña (encabezado del art. 1º) se
encuentran prescritas las siguientes garantías fundamentales: i) son inviolables, de
entre otros, “el derecho a la libertad y a la igualdad” (Constitución de la República de
Brasil, encabezado de art. 5º; ii) “nadie será privado de su libertad o de sus bienes sin
el debido proceso legal” (CRBra, art. 5º, LIV); iii) “a los litigantes, en proceso judicial
o administrativo, y a los acusados en general les son asegurados el contradictorio y
la amplia defensa” (CRBra, art. 5º, XXXV).
A partir de la combinación hermenéutica de estos enunciados prescriptivos
contenidos, por ejemplo, en el Pacto de San José y en la Constitución brasileña –
aprovecho para repetir que otras Constituciones prevén cosas en el mismo sentido –,
se llega a la norma jurídica que viabiliza el (re)dimensionamiento del concepto de
proceso que, esencialmente, es una garantía constitucional que legitima el ejercicio
del poder (= jurisdicción).
En síntesis: el proceso es una garantía para que la libertad resultante del ejercicio
de la acción viabilice la actuación legítima del poder republicano representado por
la jurisdicción.

5.4 Jurisdicción
Por último, ¿cuál es la dimensión del poder jurisdiccional en el ambiente
constitucional republicano y democrático en el que vivimos? Una primera respuesta
se impone: por tratarse de un poder republicano, su dimensión jamás será ilimitada,
bien con referencia a las soluciones (= decisiones), bien con referencia a los
procedimientos para llegarse a los resultados que le son propios.
Se descarta aquí, definitivamente, el dogma de que la jurisdicción es el núcleo
irradiador y/o justificador del fenómeno procesal, el más importante y preponderante
de los Institutos Fundamentales trabajados por la Teoría General del Proceso, tal

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 251-272, out./dez. 2014 269
Glauco Gumerato Ramos

como constó en la exposición de motivos del CPC italiano de 1940, conforme fue
recordado por Calamandrei en el ensayo ya referido. Esta jurisdicción es concebida
por las posturas instrumentalistas como un poder “redentor” en las manos de un juez
“oráculo”, predestinado a “justiciar” el caso concreto con base en el propio sentido de
justicia, ciertamente es algo propio de conjeturas metafísicas que insisten, de manera
idiosincrática y escolástica, en la suposición de que el Derecho solamente existe si
estuviese sometido a la Moral. De hecho, este tipo de postura integra el contenido
“romántico” del discurso neoconstitucional-neoprocesal, dado que conciben que la
vida en sociedad debe ser conducida activamente por el sentido de justicia de una
Judicatura solipsista y por ello revelaría una forma autoritaria y antirrepublicana de
concebir la jurisdicción. Manifiesto esto con mucho respeto a los que piensan de esta
forma, pero considero que es preciso decirlo.
La jurisdicción es la función técnica concedida preponderantemente37 al Poder
Judicial para que pueda decidir, con base en supuestos jurídicos, y de manera
definitiva, imparcial e independiente de la intromisión de cualquier función política,
las cuestiones que le son sometidas a través del proceso iniciado por el ejercicio de
la acción.
En la República no hay espacio – o no debería haber – para que la jurisdicción sea
considerada como el instituto fundamental de mayor preponderancia dogmática de la
teoría general del proceso. Jurisdicción es poder, poder republicano, cuyo ejercicio no
puede darse de forma arbitraria. La jurisdicción es demasiado importante, no se niega
eso. Sin ella de nada serviría la acción y el proceso. Pero en el ambiente republicano
y democrático, en el que constitucionalmente el poder emana del pueblo (CRBra,
art. 1º, párrafo único), es donde la realidad semántica y pragmática del ejercicio de
la jurisdicción se efectiviza sin la interferencia de otros argumentos distintos de los
jurídicos, es decir, solamente con conceptos del orden jurídico en el que está siendo
operado la jurisdicción.
En la Constitución de la República brasileña (encabezado del art. 1º), que
establece la independencia armónica de los Poderes Legislativo, Ejecutivo y Judicatura,
se prescriben las siguientes garantías fundamentales: i) que son inviolables, de entre
otros, “el derecho a la libertad y a la igualdad” (Constitución de la República de
Brasil, encabezado del art. 5º; ii) que “nadie será privado de su libertad o de sus
bienes sin el debido proceso legal” (CRBra, art. 5º, LIV); iii) que “a los litigantes, en
proceso judicial o administrativo, y a los acusados en general les son asegurados
el contradictorio y la amplia defensa” (CRBra, art. 5º, XXXV); iv) que “no habrá juicio

37
Digo “preponderantemente” porque hay situaciones, aunque sean raras, en las que la Constitución confiere
jurisdicción a otro Poder republicano, confiriéndole la posibilidad de decidir jurisdiccionalmente. Es lo que
ocurre, por ejemplo, en el caso de impeachment del Presidente de la República, que será juzgado por el
Senado Federal (CRBra, art. 52, I).

270 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 251-272, out./dez. 2014
Proceso jurisdiccional, república y los institutos fundamentales del derecho...

o tribunal de excepción” (CRBra, art. 5º, XXXVII); v) que “todos los juicios del Poder
Judicial serán públicos y que todas las decisiones serán fundamentadas bajo pena
de nulidad” (CRBra, art. 93, IX); vi) que es prohibido al juez “dedicarse a la actividad
político-partidaria” (Constitución de la República de Brasil, art. 95, párrafo único, III).
El concepto arriba propuesto para jurisdicción es coherente con los enunciados
prescriptivos contenidos en la Constitución. Los dispositivos mencionados, sin perjuicio
de otros que ciertamente se me escapan en este instante, alejan la preponderancia
que tradicionalmente la dogmática procesal otorga al concepto de jurisdicción.
Si vivimos en una República es natural, y no puede sorprendernos, el hecho de
que el ejercicio legítimo de la función jurisdiccional – dado que es técnica – se encuentra
más lejos de las elecciones sobre las cuales el albedrío humano se fundamenta para
la toma de las propias decisiones. Y una de las grandes finalidades políticas de la
República es exactamente contener/disminuir el albedrío. Los atributos republicanos
son determinantes para el dimensionamiento del poder, inclusive y específicamente
el jurisdiccional, que por definición no expresa ninguna función política. En estas –
funciones políticas –, las elecciones se legitiman en la representatividad. Mientras que
la función jurisdiccional se legitima con la observancia de las reglas preestablecidas
para su funcionamiento, no siendo permitida ninguna postura idiosincrática o
solipsista por parte de quien la ejerce. Pero toda la vez que esto acontece tiene a
generarse la –antirrepublicana – arbitrariedad.

6 Conclusiones
Existieron varias razones que llevaron a la dogmática procesal a desarrollarse
sobre bases autoritarias. Este ensayo buscó demostrar que el orden y el contenido
de la exposición que tradicionalmente la teoría general del proceso otorga a los
Institutos Fundamentales fue una de ellas. Es innegable, y suena hasta intuitivo,
que presentar las categorías fundamentales en torno al eje sistemático jurisdicción-
acción-proceso revela la opción estratégica de aceptar que el “poder” tendría una
mayor preponderancia en la dinámica del Proceso. Por eso la jurisdicción apareció
como el polo metodológico de mayor relevancia. Se mostró también que la etiología
de este enfoque (= jurisdicción-acción-proceso) se debió a la sistematización dada
por Calamandrei a partir de las ideas proporcionadas por Chiovenda en su exposición
de 1903 en la Universidad de Bolonia, que tanto influenció los estudios posteriores
sobre la teoría general del proceso.
Se pretendió llamar la atención para el hecho de que los Institutos Fundamentales
del derecho procesal pueden – ¡y deben! – ser pensados desde la perspectiva
republicana y, claro está, democrática. Incluso porque nuestras Constituciones
establecen un orden jurídico de arquetipo republicano. La visión tradicional cuando
expone el tema, con todo el respeto, no guarda compatibilidad con los valores

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 251-272, out./dez. 2014 271
GLAUCO GUMERATO RAMOS

constitucionales republicanos, dado que enaltece demasiado el poder (= jurisdicción)


en detrimento de la libertad (= acción) y de la respectiva garantía (= proceso) que le
es correlativa.
El objetivo de este ensayo es colaborar para que la conceptuación y el desarrollo
de las categorías fundamentales del derecho procesal puedan ser redimensionadas.
No necesariamente en los exactos términos aquí propuestos, que en esencia revelan
mi forma de encarar el fenómeno resultante de este eje fundamental formado por
el trinomio acción-proceso-jurisdicción, dado que tiene tanta importancia para el
procesalista, para la teoría general del proceso y para la sociedad republicanamente
organizada. ¡Somos libres para pensar y así debemos proceder!
Espero que las reflexiones aquí traídas puedan servir, al menos, para provocar y
fomentar otras reflexiones que cada uno de nosotros puede – y debe – realizar en pro
de la mejora de la ciencia del proceso, que necesita ser (re)ecuacionada a partir de
la realidad actual del orden jurídico-político establecido por nuestras Constituciones.
Esa actual realidad de las cosas nos impone la misión de manejar una teoría general
del proceso en la cual la acción sea la proyección de la libertad, el proceso sea
la concretización de la garantía y la jurisdicción sea la manifestación del poder
racionalizado por el principio republicano.
Mi esperanza es que estas ideas puedan repercutir. Ideas sencillas – lo
reconozco –, pero sinceras, y fundamentadas en la racionalidad que la observación
del fenómeno procesal permite vislumbrar a cualquiera de nosotros.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

RAMOS, Glauco Gumerato. Proceso jurisdiccional, república y los institutos


fundamentales del derecho procesal. Revista Brasileira de Direito Processual –
RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 251-272, out./dez. 2014.

272 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 251-272, out./dez. 2014
NOTAS E COMENTÁRIOS
Processo e República: uma relação
necessária

Dierle Nunes
Doutor em direito processual (PUC Minas/Università degli Studi di Roma “La Sapienza”).
Mestre em direito processual (PUC Minas). Professor permanente do PPGD da PUC Minas.
Professor adjunto na PUC Minas e na UFMG. Secretário-Geral Adjunto do IBDP e Membro
fundador do ABDPC. Advogado. Membro da Comissão de Juristas que assessorou na
elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

Alexandre Bahia
Doutor em Direito Constitucional – UFMG, professor adjunto na UFOP e IBMEC-MG.

Vivemos na sociedade brasileira uma crise de responsabilidade e solidariedade


social, ou seja, uma crise de publicismo, pela cooptação do interesse público pelos
atores que buscam representá-lo no âmbito estatal.
E o problema não é só dos agentes do estado, que privatizam o interesse
público segundo suas contingências privadas (pré-compreensões, interesses etc.),
mas de todos os cidadãos que, predominantemente, proferem decisões pessoais em
consonância com suas buscas individuais de benefícios.
Um bom exemplo disto é o recente pleito eleitoral no qual, no discurso de
escolha de cada um dos eleitores, de modo mais comum, se encontra(va) a busca
daquilo que poderia melhor representar os ganhos pessoais ou do grupo (classe)
social ao qual pertence. Poucos analisaram os projetos dos candidatos e muitos
votaram em conhecidos ou pessoas que diziam que atenderiam a seus interesses
morais, religiosos, mesmo financeiros, ou seja, privados.
Esta crise, ao lado das outras, vem sendo denunciada por muitos acerca do
déficit do trato da “coisa pública” em busca do exercício de um poder participado,
ou seja, não solitário, fiscalizado mediante ferramentas hábeis a controlar potenciais
desvios. A solidariedade social não ocorre apenas na participação em eleições, mas
certamente a forma como pessoas/grupos tratam daquela denuncia seu êxito ou
déficit.1 Em nosso caso, o tratamento privatístico da questão mostra uma ausência
de habitus (Bourdieu) republicano. Pequenas privatizações da “res publica” fazem
parte tão íntima do nosso cotidiano que não é de se admirar o quanto a população é
refratária a tratar de questões “macro”, i.é, que vão além do seu interesse próprio. Ora,
um país carente de República é a única forma de explicar as pequenas aristocracias,
estatais ou não, que cooptam o espaço (e parcela do dinheiro) público, fazendo

1
Conferir discussão sobre o auxílio-moradia para o magistrado: http://migre.me/mbeWv.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 275-281, out./dez. 2014 275
Dierle Nunes, Alexandre Bahia

com que, ao lado dos “sobreintegrados”, que gozam das benesses do “publicus”,
convivam os “subintegrados”, relegados ao “privatus” (em um dos sentidos possíveis
do latim, ou seja, “excluídos”). Perceba-se que beneficiários do público-estatal não
são apenas seus servidores/agentes políticos, mas também, no Brasil, o mercado e
o âmbito tido como “privado”, uma vez que este se alimenta de benefícios diretos e
indiretos provocados por aquele.
No micro âmbito do sistema processual este panorama se repete em grande
medida em decorrência da tendência de um comportamento não cooperativo dos
sujeitos processuais, especialmente, quando se percebe a animosidade latente (ou
declarada) entre as profissões jurídicas; não podendo olvidar a própria realização de
suas atividades isoladas a partir do horizonte e do papel que desempenham dentro
do aludido sistema.
Dificilmente vemos um profissional de nossa área promovendo uma autoanálise
mais profunda do seu papel e dos vícios da atividade que desenvolve. É mais fácil,
sendo advogado, acusar o juiz das mazelas do sistema, e sendo juiz, acusar o
advogado das agruras que padece no seu cotidiano (e isto se repete para os outros
“atores”: Ministério Público, serventuários etc.)2 – de forma similar, aliás, que se
faz quando se diz que “o povo” não sabe votar ou que “os políticos” são corruptos,
esquecendo nós que fazemos parte do primeiro e escolhemos os segundos.
A apresentação (real) da advocacia como função essencial à administração da
justiça vem alardeada como capaz de promover defesa técnica com competência
de atuação (Handlunskompetenz), e cria a ilusão de ausência de déficits técnicos
muito sérios em muitos profissionais que atuam no exercício do múnus, facilmente
constatáveis empiricamente por qualquer um que milita no foro.
A defesa corporativa dos benefícios da classe muitas vezes despreza os riscos
publicísticos a que isto pode conduzir. Mais uma vez o caso é de se lembrar que
nossas ações privadas têm repercussão pública, ainda mais ações de uma profissão
(a advocacia, o parquet etc.) que majoritariamente agem face ao “Estado-juiz”.
Do mesmo modo, a apresentação do juiz como protagonista do sistema que
com imparcialidade julga corretamente traz algo a ser contestado.
O mito da imparcialidade (neutralidade) como blindagem ao elemento anímico
do juiz faz crer no seu desinteresse no julgamento, de modo absoluto, conduzindo ao
desprezo de suas pré-compreensões e propensões cognitivas solitárias no ato de julgar.
E aqui não se está discutindo a imparTialidade (com T – ou terzietá), como
já comum entre os processualistas, como postura de “não parte” que vedaria ao
magistrado qualquer função típica das partes.3

2
Cf. NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008.
3
Acerca do tema cf. CABRAL, Antônio do Passo. Imparcialidade e impartialidade. In: DIDIER, Fredie (et al.)
(coords.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Salvador, JusPodivm, 2008.

276 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 275-281, out./dez. 2014
Processo e República: uma relação necessária

Se critica se faz a falaciosa ausência de elemento anímico do julgador ou


suposta neutralidade, quando se constata a existência de verdadeiros ancoramentos
cognitivos4 promovidos antes do próprio processo (como, por exemplo, o preconceito
inconsciente em relação a grupos étnicos/raciais ou de diversa orientação sexual)5
e propensões cognitivas produzidas durante o processo (v.g. contaminação cognitiva
do magistrado que teve contato com a prova excluída por ilicitude), para não falar da
formação prévia daqueles que são os julgadores, em sua maior parte provenientes das
elites econômicas do país, chegando-se ao ponto até de haver certa “coincidência”
de sobrenomes (mais uma vez, em sentido oposto aos mecanismos republicanos).6
Em face da quantidade de trabalho de um sistema que já conta com mais de
95 milhões de processos7 segundo o último relatório “Justiça em Números” do CNJ,
a tendência de contaminação cognitiva em busca de maior rapidez do julgamento
precisa ser levada em consideração.
Estudos empíricos (psicológicos e jurídicos), realizados com magistrados
americanos, demonstram que o juiz sofre propensões cognitivas que o induzem a
usar atalhos para ajudá-lo a lidar com a pressão da incerteza e do tempo inerentes
ao processo judicial. É evidenciado que mesmo sendo experiente e bem treinado, sua
vulnerabilidade a uma ilusão cognitiva no julgamento solitário influencia sua atuação.8
Um exemplo singelo encontrado nas pesquisas, que aclara esta situação, é a
propensão do magistrado que indefere uma liminar a julgar, ao final, improcedente o
pedido. Por um efeito de bloqueio ficou demonstrado que o juiz fica menos propenso
à mudança de sua decisão mesmo à luz de novas informações ou depois de mais
tempo para a reflexão. Tal bloqueio cognitivo ocorre por causa da tendência a querer
justificar a alocação inicial de recursos (fuga ao retrabalho), confirmando que a
decisão inicial estava correta.9 Tal constatação deve induzir o fomento ao debate
como ferramenta de quebra das ilusões e propensões cognitivas.
E aqui poderíamos ampliar no caso brasileiro para o uso de ementas de julgados
e súmulas sem reflexão e como âncoras facilitadoras dos julgamentos, com o único
sentido privado de otimizar numericamente o número de decisões. Faz-se uso de
súmulas e “precedentes” sem a devida recuperação do(s) caso(s) paradigma(s),

4
No Brasil, um estudioso importante da temática é o Professor Eduardo José Fonseca da Costa, que promove
em seu trabalho doutoral um estudo do dilema dos poderes oficiosos de produção de prova pelo magistrado
em face das propensões cognitivas.
5
KANG, Jerry et al. Implicit Bias in the Courtroom. UCLA Law Review. v. 59, 2012. p. 1175.
6
ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. A Nobreza Togada: as elites jurídicas e a política da justiça no Brasil.
Tese apresentada no Departamento de Ciência Política da USP. São Paulo, 2010. Disponível em: http://migre.
me/m9Fog
7
Disponível em: http://migre.me/m9Fmj
8
GUTHRIE, Chris, RACHLINSKI, Jeffrey J., WISTRICH, Andrew J. Inside the judicial mind. Cornell Law Review,
777, May, 2001, p. 778-829.
9
LYNCH, Kevin J. The lock-in effect of preliminary injunctions. Florida Law Review, Vol. 66. Ap. 2013.
p. 779 -821.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 275-281, out./dez. 2014 277
Dierle Nunes, Alexandre Bahia

valendo-se apenas de ementas ou do pequeno texto das súmulas, como se uns e


outros pudessem ter algum sentido sem aquilo (os casos) que lhes deram origem
e se confundindo a ratiodecidendi (fundamento determinante) com algum trecho da
ementa ou do voto.10
Ademais, não podemos nos olvidar da denúncia empreendida por Carlos
Maximiliano por mera observação, em 1925, de que os profissionais tendem à lei do
menor esforço no uso do direito jurisprudencial.11 O jurista jamais imaginaria como
este uso seria mais vocacionado ao que criticava e que estudos empíricos atuais
informariam que isto decorreria inclusive da propensão de confirmação (confirmation
bias) que induz o intérprete a um raciocínio distorcido, de uso e confirmação de todo
material (v.g. provas, julgados) que atesta uma versão dos fatos (que acredita) e
negligencia e desprezo a tudo que a contradiz.
Tal percepção de contaminação cognitiva e ausência de neutralidade em
outros países induz a promoção de estudos sérios com a finalidade de criação de
contramedidas. O National Center for State Courts (NCSC), por exemplo, organizou
um projeto piloto de três estados (Califórnia, Minnesota e Dakota do Norte) para
ensinar juízes e funcionários do tribunal sobre as propensões do magistrado ao
julgar em matéria que envolva preconceito. Em verdade, foi necessário demonstrar
cientificamente aos juízes sobre as cognições sociais implícitas, os problemas
destas propensões cognitivas (para tomada das apontadas e contramedidas técnico-
processuais) e os riscos que elas trazem para o bom julgar,12 inclusive aumentando
a importância do sistema recursal.
Todas estas constatações que mostram a autenticidade de preocupações
acadêmicas envolvendo a crítica ao solipsismo e protagonismo judiciais,13 de um lado,
e com a busca estratégica de sucesso, inclusive de má-fé, além da atecnia, por parte
dos advogados, de outro, demonstram empiricamente a existência do problema e a
necessidade de dimensionamento de contramedidas processuais com a finalidade de
esvaziar e controlar os comportamentos não cooperativos e contaminados de todos
os sujeitos processuais.
Torna-se imperativo, ao se pensar o sistema processual, a criação de
mecanismos de fiscalidade ao exercício dos micropoderes exercidos ao longo do iter

10
Cf. NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Enunciados de Súmulas: Falta aos tribunais formulação
robusta sobre precedentes. Consultor Jurídico, 07/01/2014. Disponível em: http://migre.me/mbeEA.
11
“Em virtude da lei do menor esforço e também para assegurarem os advogados o êxito e os juízes inferiores a
manutenção de suas sentenças, do que muitos se vangloriam, preferem, causídicos e magistrados, às exposi-
ções sistemáticas de doutrina jurídica os repositórios de jurisprudência”. SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira
dos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 181. Percepção facilitadora também
percebida em outros contextos como o processo penal, por todos, o excelente livro: ROSA, Alexandre Morais da.
Guia Compacto do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 31.
12
KANG, Jerry et al. Implicit Bias in the Courtroom. UCLA Law Review. v. 59, 2012. p. 1175.
13
NUNES, Dierle; DELFINO, Lúcio. Juiz deve ser visto como garantidor de direitos fundamentais, nada mais.
Disponível em: http://migre.me/m7Fbw.

278 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 275-281, out./dez. 2014
Processo e República: uma relação necessária

processual, além da criação de espaços de interação (participação) que viabilizem


consensos procedimentais aptos a viabilizar, no ambiente real do debate processual,
a prolação de provimentos que representem o exercício de poder participado, com
atuação e influência de todos os envolvidos.
Esta é uma das finalidades de um processo democrático lastreado numa teoria
deontológica de comparticipação/cooperação, por nós defendida desde 2003,14
e projetada no Novo Código de Processo Civil,15 mediante a indução de balizas
procedimentais fortes do contraditório, como influência e não surpresa (art. 10),16
boa-fé processual (art. 5º),17 cooperação (art. 6º)18 e fundamentação19 estruturada da
decisão (art. 499).20
Na síntese empreendida por Francisco José Borges Motta e Adalberto Narciso
Hommerding, nossa proposta de democratização do processo civil parte “dos eixos
da comparticipação e do policentrismo. A ideia defendida é a de que, numa visão
constitucional e democrática, não existe entre os sujeitos processuais submissão
(como no esquema da relação jurídica bülowiana), mas, sim, interdependência, na
qual a procedimentalidade é a balizadora das decisões. O processo é percebido
como uma garantia contra o exercício ilegítimo de poderes públicos e privados em
todos os campos (jurisdicional, administrativo, legislativo), com o fim de controlar os
provimentos dos agentes políticos e garantir a legitimidade discursiva e democrática
das decisões. Argumenta-se no sentido de que o estabelecimento de focos de

14
O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa. Faculdade
Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte: 2003. Em versão publica-
da: Direito constitucional ao recurso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. NUNES, Dierle. Processo jurisdicional
democrático. Curitiba: Juruá, 2008.
15
Texto disponível em: http://migre.me/mb7bL
16
Art. 10. Em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a
respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável
de ofício.
17
Art. 5º. Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
18
Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável,
decisão de mérito justa e efetiva.
19
Problema da fundamentação há muito estudado pela Escola Mineira de Direito Processual: BRÊTAS DE
CARVALHO DIAS, Ronaldo. A fundamentação das decisões jurisdicionais no Estado Democrático de Direito. In.
Processo e Constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. FUX, Luiz; NERY
JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
20
“Art. 499. São elementos essenciais da sentença: [...] §1º Não se considera fundamentada qualquer decisão
judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à pará-
frase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos
jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que
se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no pro-
cesso capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente
ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob
julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou
precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a su-
peração do entendimento. §2º No caso de colisão entre normas, o órgão jurisdicional deve justificar o objeto
e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma
afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. §3º A decisão judicial deve ser interpretada
a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.”

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 275-281, out./dez. 2014 279
Dierle Nunes, Alexandre Bahia

centralidade (seja nas partes, seja no juiz) não se adapta ao perfil democrático dos
Estados de direito da alta modernidade. Assume-se um paradigma procedimental
de Estado Democrático de Direito, no qual se impõe a prevalência concomitante
da soberania do povo e dos direitos fundamentais (cooriginários e reciprocamente
constitutivos) em todos os campos, especialmente na esfera estatal. No âmbito
jurisdicional, resgata-se a discussão entre todos os sujeitos processuais, sem
privilégios a qualquer deles, mediante a implementação dos direitos fundamentais,
que balizam a tomada de decisões em seu aspecto formal e substancial. Propõe-se
a divisão da atuação entre as partes e os juízes, clarificando a sua interdependência,
de modo a absorver os aspectos benéficos tanto dos movimentos liberais quanto dos
sociais. Aposta-se na leitura do contraditório na modalidade de garantia de influência
como referente constitucional do policentrismo e da comparticipação, em vista de
que agrega, ao mesmo tempo, o exercício da autonomia pública e privada, tornando
o cidadão simultaneamente autor e destinatário do provimento”.21
Assim, com o Novo CPC, se constata que o sistema normativo exorciza a
incrustada versão que imprime aos princípios constitucionais essência meramente
formal, acomodando as partes e seus advogados em um arranjo afetado e ficcional
em que o conteúdo legítimo e democrático de uma decisão soçobra diante das
pré-compreensões para as quais o decisor obteve (ou não) comprovação nos
autos ou que o mesmo gerou ancoramentos e bloqueios ao julgar. Os princípios
constitucionalizados do processo exigirão do juiz que mostre de forma ostensiva
como formou sua decisão: não pode decidir questões de ofício sem consulta prévia
às partes; não pode citar leis/precedentes/súmulas sem mostrar como se aplicam
ao caso; não pode fazer “ponderações” de princípios sem igualmente mostrar sua
pertinência às especificidades dos autos. Tudo isso implica o reconhecimento legal
de uma renovada ideia de contraditório que já defendemos há anos. Tais princípios,
mais do que nunca, serão compreendidos como normas retoras do processo no dia
a dia dos profissionais.
Busca-se assim publicizar o debate processual entre todos os sujeitos
processuais, de forma que o processo deixe de ser formado por atos isolados dos
sujeitos processuais e passe a ser o produto da comparticipação destes na formação
do provimento jurisdicional. Reconhece-se que há papéis distintos, mas que todos
cooperam para o resultado final.

21
Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 73, jan. 2013 – abr. 2013. Acessível em http://www.
amprs.org.br/arquivos/revista_artigo/arquivo_1383852047.pdf Acerca do processo constitucional conferir:
BRÊTAS DE CARVALHO DIAS, Ronaldo. Processo constitucional e Estado democrático de direito. Belo Horizonte:
Del Rey, 2010. Para uma análise crítica do direito à prova sob o enfoque no Novo CPC: BRÊTAS DE CARVALHO
DIAS, Ronaldo. Las pruebas en el proyecto del nuevo Código de Proceso Civil Brasileño: sistema normati-
vo constitucional. In RÚA, Mónica Bustamante. Reformas procesales en Colombia y en el mundo. Medellín:
Universidad de Medellín, 2014. p. 509-522.

280 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 275-281, out./dez. 2014
Processo e República: uma relação necessária

A hora é de fazermos um balanço sobre o tipo de sociedade, e, no particular, que


tipo de processo, queremos. Urge que os princípios republicanos sejam incorporados
em nossas ações privadas e na forma como lidamos com o público.
De igual forma, é tempo de o processo ser revestido de seu caráter público,
não significando isso apenas estar ligado a uma função do Estado, mas, sim, que
seja local público, franqueado a todos; ademais, que em uma sociedade republicana,
na qual reconheçamos que, ao lado da necessidade da decisão, está, em relação
de tensão, o requisito da correção da mesma. Essa equação, como dito, não será
resolvida dando-se preferência absoluta à celeridade, ao julgamento de casos como
“teses” que podem ser remetidas a uma súmula/precedente, considerados, uns
e outros de forma abstrata. Não é essa a leitura “sob a melhor luz” (Dworkin) dos
princípios do Estado Democrático de Direito.
Cumprir nosso dever constitucional de respeito ao devido processo legal,
ao contraditório e à ampla defesa são as únicas formas de se produzir decisões
legítimas; ao mesmo tempo, se tais decisões são o produto não da atividade sobre-
humana de um juiz, mas do trabalho comparticipado de todos os sujeitos, logo, pode-
se ganhar também em celeridade.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Processo e República: uma relação necessária.


Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 88,
p. 275-281, out./dez. 2014.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 275-281, out./dez. 2014 281
O parcelamento judicial no CPC
Projetado: riscos e necessidade de
mudança pelo Senado

Dierle Nunes
Advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio
do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da
Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na
Câmara dos Deputados.

Lúcio Delfino
Advogado, pós-doutorando em Direito pela UNISINOS. Doutor em Direito pela PUC-SP. Diretor
da Revista Brasileira de Direito Processual. Professor universitário.

Como se sabe, é tradicional a preocupação da processualística com o (des)


cumprimento do tempo razoável (devido) do processo. Já se tem conhecimento, há
bons anos, mediante pesquisas empíricas,1 que, em regra, mais de 80% do tempo
do processo é despendido nos cartórios judiciais, que são invisíveis para a grande
maioria dos atores do sistema, desde o legislador, passando pelos juízes, tribunais,
advogados etc. E, mesmo com a tendência de informatização judicial, que resolverá
parcela dos “tempos mortos” do processo, o tempo cartorial permanecerá um
problema relevante. Ademais, não é possível olvidar a impossibilidade de processos
relâmpagos, especialmente quando, em vertente constitucional, se percebe que o
tempo devido do processo é o tempo do devido processo legal.
Todas estas constatações induzem (e induzirão) no legislador a preocupação
em delinear técnicas que favoreçam a satisfação efetiva das obrigações em tempo
devido. E assim é em face da impossibilidade de se resolver o tempo processual sem
uma abordagem macroestrutural, que considere todos os aspectos do sistema (lei,
gestão, planejamento, espécies de litigiosidade, entre outros).
Tal situação permitiu a introdução no atual CPC do art. 745-A, técnica que, ao
vislumbrar a enorme duração das execuções cíveis no Brasil, assegura ao executado
a possibilidade de reconhecimento da dívida e parcelamento da obrigação de pagar
em até seis parcelas, tempo que, em regra, será inferior ao que se gastaria caso
se cumprissem todas as fases da etapa executiva (penhora, expropriação etc.) e,
nesses termos, seria aceita pelo credor, sem maiores embaraços.
No entanto, a opção pelo uso da técnica sempre é capaz de suscitar dúvidas caso
se adotem requisitos que não sejam objetivos, uma vez que para o seu deferimento

1
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Análise da gestão e funcionamento dos cartórios judiciais. Brasília, 2007. p. 29.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 283-288, out./dez. 2014 283
Dierle Nunes, Lúcio Delfino

exige a lei processual que o executado reconheça a dívida. A verdade é que o simples
risco de o juiz não conceder o fracionamento poderá conduzir o executado à sua
não utilização.
Ao partir deste pano de fundo, é possível tematizar a adoção da técnica no CPC
Projetado e, deste modo, verificar os perigos que o novo modelo poderá gerar.
Coube ao art. 932 do Projeto do NCPC2 regular o parcelamento judicial,
servindo-lhe de modelo o citado art. 745-A do CPC-1973, do qual é cópia melhorada
no que tange a aspectos procedimentais e detalhes que atualmente encontram
divergência doutrinária e jurisprudencial. A despeito disso, parte dos seus novos
contornos merecem críticas porque podem colocar em risco a própria utilidade da
técnica em sua substância.
São requisitos objetivos a serem cumpridos cumulativamente pelo executado a
fim de obter o parcelamento (e nesse ponto não há alterações entre o CPC-1973 e o
Projeto do NCPC): i) apresentação da proposta (requerimento escrito) no prazo para
embargos; ii) formulação de proposta que não ultrapasse o limite de seis parcelas
mensais (acrescidas de correção monetária e juros de um por cento ao mês); iii)
reconhecimento do crédito exequendo; iv) realização e comprovação do depósito de
trinta por cento do valor em execução, incluídos custas e honorários advocatícios.
Como novidade, o dispositivo impõe seja a proposta elaborada de “forma motivada”,
significando isso que não é suficiente o cumprimento dos requisitos objetivos
indicados na lei processual. A norma abre para a subjetividade e acrescenta novo
requisito cuja legitimidade será avaliada pelo julgador ao lado de eventual fundamento
suscitado pelo exequente destinado a frustrar o deferimento do parcelamento legal.
Recebida a proposta, que não será de modo algum admitida em fase de
cumprimento de sentença (art. 932, §7º do CPC-2014), o prazo para oposição de
embargos interrompe-se (art. 932, §5º) e ao juiz cumpre instaurar o contraditório
(art. 932, §1º, última parte): o exequente será intimado para manifestar-se sobre

2
Art. 932. No prazo para embargos, reconhecendo o crédito do exequente e comprovando o depósito de trinta
por cento do valor em execução, mais custas e honorários de advogado, faculta-se ao executado requerer,
de forma motivada, seja admitido a pagar o restante em até seis parcelas mensais, acrescidas de correção
monetária e juros de um por cento ao mês. §1º O exequente será intimado para manifestar-se sobre o
preenchimento dos pressupostos do caput ou apresentar qualquer fundamento relevante para a não concessão
do parcelamento. O juiz decidirá o requerimento em cinco dias. §2º Enquanto não apreciado o requerimento,
o executado terá de depositar as parcelas vincendas, facultado ao exequente seu levantamento. §3º Deferida
a proposta, o exequente levantará a quantia depositada e serão suspensos os atos executivos; caso seja
indeferida, seguir-se-ão os atos executivos, mantido o depósito, que será convertido em penhora. §4º O
não pagamento de qualquer das prestações acarretará cumulativamente: I – o vencimento das prestações
subsequentes e o prosseguimento do processo, com o imediato início dos atos executivos; II – a imposição ao
executado de multa de dez por cento sobre o valor das prestações não pagas. §5º O pedido de parcelamento
previsto no caput interrompe o prazo para a oposição de embargos. Deferido o parcelamento, o executado não
poderá opor embargos à execução. Indeferido o pedido, o prazo de quinze dias para oposição de embargos
começa a correr da publicação da respectiva decisão. §6º Cabe agravo de instrumento da decisão do juiz que
acolhe ou rejeita o parcelamento. §7º O disposto neste artigo não se aplica ao cumprimento da sentença.

284 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 283-288, out./dez. 2014
O parcelamento judicial no CPC Projetado: riscos e necessidade de mudança pelo Senado

o preenchimento dos pressupostos exigidos pelo dispositivo, sendo-lhe agora


lícito, além disso, que apresente fundamento relevante para a não concessão
do parcelamento.
Apesar de silente o art. 745-A do CPC-1973, boa parte da doutrina já defendia
a indispensabilidade do contraditório para oportunizar também ao exequente a
possibilidade de ingerência no deferimento do benefício, dando-lhe o ensejo de
impugnar eventual afirmação falsa de que os requisitos exigidos foram cumpridos.3
No CPC em vigor, o debate que se aceita (ou que se deveria aceitar) nesse arranjo
procedimental é raso, restrito à adequação dos aludidos requisitos objetivos para
o seu deferimento, não prevendo a lei espaço para exame de manifestações que
superem questões relativas à sua prova, afastadas por isso contaminações via
argumentos pessoais. Ou em termos técnicos: no plano horizontal a cognição judicial
aceitável pela leitura do art. 745-A do CPC-1973 é limitada, pois restrita tão somente à
análise da regularidade no cumprimento dos requisitos (objetivos) previstos na norma.
E embora exauriente no plano vertical (grau de profundidade), a limitação cognitiva
horizontal (extensão ou amplitude) referida opera ao procedimento inquestionável
celeridade e praticidade, de maneira que ao juiz cumpre trabalho intelectual singelo
e quase mecanizado.
Com o novo dispositivo (art. 932), o contraditório ganha mais complexidade
justamente porque está o exequente liberado a suscitar argumentos que vão além do
mero incumprimento dos requisitos objetivos. Enfim, está autorizado por lei ao apego
a qualquer razão relevante, de cunho subjetivo, o que demandará por parte do juiz
superior zelo e atenção. Daí ser correto afirmar que o art. 932 do CPC-2014 institui
incidente procedimental cuja cognição, em ambos os planos (vertical e horizontal),
apresenta-se exauriente, diferentemente do dispositivo que lhe serviu de referência,

3
Ao contrário da posição defendida no presente texto, doutrinadores há que advogam, comentando o atual
art. 745-A, possibilidade mais alargada de ingerência por parte do exequente. É como pensa Rodrigo Baroni,
para quem “deve-se permitir ao exequente que impugne a concessão do parcelamento desde que apresente
motivo relevante e o faça de maneira fundamentada. Não se pode olvidar as inúmeras situações práticas
que podem suceder no caso concreto, algumas das quais, eventualmente, que representam risco iminente
ao exequente, caso seja concedido o parcelamento pretendido. Desde que a situação fática esteja revestida
de possível dano irreparável ao exequente, devidamente comprovado, pode o juiz indeferir o parcelamento
solicitado pelo executado. Também poderá o exequente opor-se ao parcelamento se provar, por exemplo, que
a execução rapidamente chegaria ao seu final, com a integral satisfação do crédito, em período de tempo
inferior àquele pretendido o parcelamento. Assim, não há direito subjetivo à concessão do parcelamento, ainda
que estejam presentes os requisitos legais.” (BARONI, Rodrigo. Breves considerações sobre o parcelamento
previsto no art. 745-A do CPC. Execução civil. Estudos em homenagem ao Prof. Humberto Theodoro Júnior.
Coordenação de Ernane Fidélis dos Santos, Luiz Rodrigues Wambier, Nelson Nery Jr. e Teresa Arruda Alvim
Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 699-703). Acredita-se, entretanto, que a abertura
a qual o ilustre jurista confere ao contraditório, no procedimento do parcelamento judicial, é nociva à própria
finalidade que se pretende com a aludida técnica. Nos moldes do atual art. 745-A, pensa-se o executado possui
um direito ao parcelamento judicial, de maneira que, para obtê-lo, basta-lhe preencher os requisitos objetivos
exigidos. Eventual “risco iminente” não se apresenta como justificativa aceitável para admitir uma abertura
cognitiva tal, uma vez que a solução se instrumentalizaria via medidas cautelares, remédios adequados para
assegurar o resultado útil e efetivo do processo.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 283-288, out./dez. 2014 285
Dierle Nunes, Lúcio Delfino

cuja leitura impõe aceitar até mesmo possibilidade de audiência de instrução para
colher provas orais destinadas à formação do convencimento judicial.
O texto projetado, nesse ponto, não merece aplausos. Ainda que seja pouco
comum ao exequente postar-se contra pedidos de parcelamento, a abertura legal
para justificativas que extrapolem os requisitos de cunho objetivo poderá, em alguns
casos, criar dificuldades ao uso concreto da técnica e à sua efetividade.4 Não
obstante divergências doutrinárias, é coerente o posicionamento segundo o qual o
parcelamento judicial não admite contestações. Nascido o direito ao parcelamento com
a implementação dos requisitos exigidos em lei, ao exequente cumpre apenas curvar-se
à vontade de parcelar a dívida trazida pelo executado.5 Entretanto, com a abertura
ao subjetivismo proporcionada pelo art. 932 do CPC Projetado, cai por terra essa
construção teórica: afinal, não mais será suficiente ao executado o cumprimento de
requisitos objetivos uma vez que a lei processual augura ao exequente a possibilidade
de argumentar contrariamente ao parcelamento fazendo uso de “qualquer fundamento
relevante”. De algo que hoje deriva (ou deveria derivar) da atuação do executado, inova
o regramento projetado e estabelece espécie de injunção subordinada também à
análise de fundamentos subjetivos e provas variáveis conforme o caso, a ser deferida
e implementada a depender do convencimento judicial.
De outro lado, apesar de o texto legal impor que os atos executivos serão
suspensos apenas depois do deferimento da proposta, melhor seria que o fenômeno
já ocorresse desde o recebimento da proposta apresentada pelo executado. Não
se ignora que o dispositivo ressalta que o requerimento deve ser decidido em cinco
dias (art. 932, §1º, última parte), mas é pouco provável que tal meta temporal seja
respeitada porque: i) o prazo é impróprio; ii) a abertura ao subjetivismo prevista no

4
Não é fácil imaginar circunstâncias que poderiam levar o exequente a opor-se ao parcelamento judicial.
Ora, como leciona Humberto Theodoro Júnior, a medida traz vantagens tanto para o executado como para
o exequente. O devedor se beneficia com o prazo de espera e com o afastamento dos riscos e custos da
expropriação executiva; e o credor, por sua vez, recebe uma parcela do crédito, desde logo, e fica livre dos
percalços dos embargos do executado, sem contar que a sua espera é pequena – apenas seis meses no
máximo –, um prazo que não seria suficiente para solucionar os eventuais embargos e chegar à expropriação
dos bens penhorados e à efetiva satisfação do crédito em execução. (JÚNIOR, Humberto Theodoro. A reforma
da execução do título extrajudicial. Lei nº 11.382, de 06 de dezembro de 2006. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
p. 216). De toda sorte, a experiência demonstra que a ninguém é dado subestimar a criatividade da prática
jurídica. E sem dúvida o próprio legislador não cai nesse erro, pois regula expressamente a possibilidade de
o exequente impugnar o parcelamento pretendido desde que se utilize de “fundamento relevante”. Seu erro
é outro: abrir o contraditório para questões subjetivas que só farão surgir a incerteza, e com ela receios que
poderão conduzir o executado a não pleitear o parcelamento e sim defender-se mediante embargos. Melhor
que essas circunstâncias excepcionais sejam tuteladas via medidas cautelares, sem a necessidade de colocar
em risco a própria lógica, o uso e a efetividade da técnica parcelatória.
5
Essa é a precisa lição de Humberto Theodoro Júnior: “Não se afigura, in casu, um poder discricionário do juiz
diante do pedido de parcelamento. Presentes os requisitos legais, é direito do executado obtê-lo. Ausente,
contudo, alguns desses requisitos, o requerimento haverá de ser indeferido.” (JÚNIOR, Humberto Theodoro.
A reforma da execução do título extrajudicial. Lei nº 11.382, de 06 de dezembro de 2006. Rio de Janeiro:
Forense, 2007. p. 219).

286 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 283-288, out./dez. 2014
O parcelamento judicial no CPC Projetado: riscos e necessidade de mudança pelo Senado

novo procedimento poderá impor a necessidade de colher prova oral em audiência


designada para esse fim; iii) o art. 153 do CPC Projetado impõe que a publicação
e efetivação dos pronunciamentos judiciais deve obedecer à ordem cronológica de
recebimento, o que poderá implicar lentidão considerável, sobremodo considerando
a excessiva carga de trabalho que assola o Judiciário, por si só um obstáculo que
emperra o transcurso procedimental célere. Por isso, verificando o juiz impossibilidade
de decidir no prazo, é seu dever determinar a suspensão dos atos executivos de
imediato, assim que a proposta lhe for apresentada, valendo-se para tanto do seu
poder geral de cautela (art. 301 do CPC-2014), de sorte a evitar que o prosseguimento
da atividade executiva acarrete danos desnecessários ao executado.
Mediante decisão interlocutória, atacável via agravo de instrumento (art. 932,
§6º do CPC-2014), a proposta será ou não deferida, cabendo ao executado, até que
se atinja esse momento, depositar as parcelas vincendas, facultado ao exequente
seu levantamento (art. 932, §2º do CPC-2014). Se deferida, o exequente levantará
a quantia depositada e permanecerão suspensos os atos executivos – ou serão
suspensos, se ainda não o tiverem sido (art. 932, §3º, primeira parte, do CPC-
2014). O não pagamento de qualquer das prestações implicará, de pleno direito: i) o
vencimento das prestações subsequentes e o prosseguimento do processo, com o
imediato início dos atos executivos; e ii) a imposição ao executado de multa (punitiva)
de dez por cento sobre o valor das prestações não pagas. Para além disso, ao
executado estará prejudicada a oposição de embargos em face da renúncia oriunda
do reconhecimento do crédito em execução (art. 932, §5º do CPC-2014), formulada
por ele já quando elaborou sua proposta de parcelamento.
Caso indeferida a proposta, seguir-se-ão os atos executivos, mantido o
depósito, que será convertido em penhora (art. 932, §3º, última parte, do CPC-2014),
salvo se, diante de eventual interposição de agravo, sobrevier decisão antecipada
que determine a manutenção da suspensão. Ao executado, em tal hipótese, está
autorizada a oposição de embargos, cujo prazo principia-se a partir da publicação da
respectiva decisão de indeferimento (art. 932, §5º, última parte, do CPC-2014).
Nesse último ponto, é visível o contrassenso da norma: de um lado exige ao
executado que reconheça expressamente o crédito exequendo até como condição para
o deferimento da benesse legal; porém, de outro, admite, no caso de indeferimento da
proposta, a oferta de embargos. O que sugere a lei processual é que o juiz simplesmente
desconsidere o ato de reconhecimento do crédito exequendo formulado de forma
expressa pelo executado, como se aquilo nada significasse e nem estivesse presente
nos autos, autorizando a oposição de embargos cujo alvo poderá atingir o próprio
crédito anteriormente reconhecido. Cria-se situação de risco para o executado: afinal,
poderá ser taxado de litigante de má-fé na melhor das hipóteses (venire contra factum

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 283-288, out./dez. 2014 287
DIERLE NUNES, LÚCIO DELFINO

proprium),6 sem contar que seu ato de reconhecimento decerto tornará eventual oposição
ao crédito desmoralizada (propensões cognitivas),7 podendo servir para sustentar o
convencimento judicial, ainda que o julgador não admita expressamente o fato.
O art. 932 do CPC Projetado, portanto, traz melhorias técnicas e inegavelmente
apresenta um detalhamento procedimental mais cuidadoso que aquele cuja redação
serviu de parâmetro para o legislador. Não obstante, o equívoco está na abertura que
o texto confere para a subjetividade, porquanto a opção legislativa eleva sobremaneira
o grau de dúvidas daquele que pretender usufruir da benesse legal, já que não terá
como saber, com segurança, se o deferimento vai ou não ocorrer.
A subjetividade não se ajusta aos contornos da técnica, sendo perniciosa por
recrudescer o risco de indeferimento da proposta: talvez os executados optem por não
incorrer no risco de reconhecer o crédito exequendo exigido como condição primária
para a postulação do parcelamento judicial, ausente a garantia de que tal benefício será
concedido, em especial porque, na hipótese de indeferimento, a margem de defesa via
embargos diminuirá consideravelmente, sobretudo pelo menoscabo que o reconhecimento
anteriormente feito, e registrado nos autos, decerto incutirá na mente do julgador.
Nos moldes apresentados, é de se defender que o instituto, no Novo CPC, deva
ser mantido como um direito potestativo do executado, não devendo ser condicionado
a qualquer fundamentação. De outro lado, a opção pelo parcelamento deverá importar
renúncia ao direito de opor embargos, uma vez que outra solução induziria a quebra
da boa-fé processual e da cooperação encampadas pela nova legislação.
A boa notícia é que o Senado Federal tem plenas condições de revisar a redação
do dispositivo, fazendo prevalecer a versão por ele proposta, bastante similar ao atual
art. 745-A e, por isso, superior, naquilo que realmente importa, ao texto elaborado
pela Câmara dos Deputados.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

NUNES, Dierle; DELFINO, Lúcio. O parcelamento judicial no CPC Projetado: riscos e


necessidade de mudança pelo Senado. Revista Brasileira de Direito Processual –
RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 283-288, out./dez. 2014.

6
Importante, sobre o ponto, a voz de Rodrigo Mazzei: “Saliente-se, outrossim, que a questão não está no âmbito
(apenas) do direito processual, uma vez que a postura do executado foi de reconhecimento do crédito, com a
promessa de pagamento, ou seja, não foi negada, em nenhum instante a existência da relação material obrigacional
entre as partes, devidamente internada em título executivo. Nestas condições, a situação não merece ficar apenas
no plano processual, uma vez que a conduta do executado não pode ser contraditória à postura por ele adotada
anteriormente que, aliás, alterou, em essência, o direito do credor de exigir o pagamento por inteiro (arts. 314 e 315
do CC). Especialmente no campo das obrigações, não se permite a adoção de comportamentos contraditórios, em
razão do princípio venire contra factum proprium, que encontra abrigo na cláusula geral da boa-fé.” (MAZZEI, Rodrigo.
Reforma do CPC. Leis nº 11.382/2006 e nº 11.341/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 615).
7
NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Processo e república: uma relação necessária. Acessível em: http://migre.me/mbYh3.

288 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 283-288, out./dez. 2014
RESENHAS
JOBIM, Marco Félix. Medidas
Estruturantes. Da Suprema Corte
Estadunidense ao Supremo Tribunal
Federal. Porto Alegre, 2013.

Dnieper Chagas de Assis


Advogado. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG) e da Association
Internacionale de Droit Pénal, em Bordeaux, na França. Pós-Graduando em Ciências Penais
pela Universidade Anhanguera. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro .
Professor de Processo Civil da Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC, de Uberaba.

A obra de autoria do Dr. Marco Félix Jobim é fruto de sua tese de


doutorado aprovada por unanimidade pelos examinadores e “alberga uma complexa
responsabilidade judicante sob o encargo do Supremo Tribunal Federal”. Inicia seu
trabalho tecendo valorosos comentários sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos
da América, bem como citando casos emblemáticos enfrentados pela Corte Americana.
Em seguida, aborda de forma detalhada a Suprema Corte brasileira e a viabilidade
das medidas estruturantes, traçando uma crítica dos mecanismos de interpretação
adotados pela Corte Americana e o Supremo Tribunal Federal.
Sem perder de vista o propósito da obra, o autor debruça em debates que levam
ao questionamento do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição
Federativa e sua atuação legiferante através das Ações Diretas de Inconstitucionalidade
e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
De forma concisa são trazidos à baila casos paradigmas para as medidas
estruturantes pelo Supremo Tribunal Federal, como a inconstitucionalidade do art. 5º
da Lei de Biossegurança; a união estável de pessoas do mesmo sexo e; o caso do
feto anencéfalo.
Por conseguinte, a obra aborda ainda os casos julgados e as recomendações
nos votos como uma forma de medida estruturante, citando como exemplo o caso
Raposa Serra do Sol e o direito de greve dos servidores públicos civis, cujo voto é da
lavra do Ministro Ricardo Lewandovski.
Já na parte derradeira do livro, Marco Jobim invoca questões sociais como um
dos grandes alicerces das medidas estruturantes, dizendo que cabe ao Supremo
Tribunal Federal não só julgar, mas dar sentido ao texto legal que confronta com a
Constituição por meio dos casos que julga, dizendo que o bem-estar, o desenvolvimento,
a igualdade e a justiça podem ser alcançados através desses julgados da Suprema
Corte brasileira.

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Dnieper Chagas de Assis

Concluindo, o autor sugere diferir os processos coletivos dos individuais,


com critérios específicos para solução de conflitos para cada um desse modelo de
processo, afirmando que os novos paradigmas culturais ensejam novos direitos e
que, por sua vez, necessitarão de medidas estruturantes capazes de enfrentar essas
leis que a alguns agradam e por outros são indesejadas, não perdendo de vista,
jamais, o papel da Suprema Corte, não só como guardiã da Constituição Federal, mas
como garantidora dos direitos individuais e coletivos nela elencados. Sem dúvida uma
leitura indispensável a qualquer operador do Direito.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

JOBIM, Marco Félix. Medidas Estruturantes. Da Suprema Corte Estadunidense ao


Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre, 2013. Resenha de: ASSIS, Dnieper Chagas
de. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22,
n. 88, p. 291-292, out./dez. 2014.

292 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 291-292, out./dez. 2014
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as citações textuais longas (mais de três linhas) devem constituir um pará­grafo inde­pen­
dente, com recuo esquerdo de 2cm (alinhamento justificado), utilizando-se espaçamento
entrelinhas simples e tamanho da fonte 10; as citações textuais curtas (de até três
linhas) devem ser inseridas no texto, entre aspas e sem itálico. As expressões em língua
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