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O Princípio da Precaução e o Dano Ambiental:

Aspectos Processuais no Ordenamento Jurídico Brasileiro


- Victor Reis do Valle Souza 1

1. Introdução: Delimitação do Princípio da Precaução


A precaução pode ser entendida como uma forma de defesa contra o risco. É
uma reserva, cautela ou prudência contra um dano não imediato, isto é, não atual.
Precaução, assim, é uma ação tomada antecipadamente para a proteção contra o risco de
danos e perigos futuros 2.

É diferente da prevenção, pois esta última está calcada na defesa ao dano


concreto, ao passo que a primeira se consubstancia na defesa ao risco de dano 3. Ou seja,
existe uma diferença no lapso temporal entre um e outro: enquanto que, na prevenção, o
dano discutido é passível de antecipação, na precaução trata-se apenas de uma
possibilidade de risco.

Atualmente, é um princípio previsto expressamente pelo ordenamento jurídico


interno do Brasil. É tanto um princípio oriundo de fontes normativas internas, isto é, que
foram propostas nacionalmente e passaram pelo trâmite regular no Congresso Nacional,
quanto fontes normativas externas, que passaram por algum processo de ratificação para
serem válidas dentro do ordenamento jurídico nacional.

Nesse sentido, pode-se citar o §1°, IV, do art. 225 da CF/88, aonde se lê que
incumbe ao Poder Público: “exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio
de impacto ambiental, a que se dará publicidade”.

Ademais, vários tratados internacionais sobre o meio ambiente possuem


previsões expressas acerca deste princípio. Entre eles, observamos a Convenção da

1
Estudante da Graduação. Matrícula: 180132105.
2
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 21. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2013. 1301 pág.
3
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de Direito Ambiental. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2021, p. 624-625; p. 1190-1192.
Diversidade Biológica 4, a Convenção-Quadro das Nações Unidas 5 e a Declaração do Rio
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento 6.

Sendo assim, cabe verificar os efeitos desse princípio dentro do ordenamento


jurídico brasileiro, com especial foco na processualística civil, que, em razão do
microssistema de tutela coletiva, tem se ocupado desse ramo (direito ambiental) de
maneira bastante específica em comparação com os ramos tradicionais do direito.

2. Inversão do Ônus Probatório


Um dos principais reflexos do princípio da precaução é a inversão do ônus da
prova nos casos de degradação ambiental.

Entende-se que não cabe à sociedade provar que determinada atividade causa
riscos de danos e é potencialmente danosa, pois a coletividade, além de ser uma das
principais afetadas pela atividade, não aufere ganhos dessas atividades, que concentram
seus benefícios em poucos sujeitos privados. Isso em detrimento do público.

Ocorre também porque o § 3° do art. 225 da CF/88 preceitua que a


responsabilidade pelo dano ambiental é objetiva.

Logo, não há necessidade de comprovação de dolo ou culpa, basta que a conduta


omissiva ou comissiva do agente tenha nexo de causalidade direto e imediato com os
danos ambientais percebidos 7.

4
“Observando também que, quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica,
a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou
minimizar essa ameaça” [Assinada no Rio de Janeiro em 5.6.1992, ratificada pelo Congresso Nacional pelo
Decreto Legislativo 2, de 3.2.1994, tendo entrado em vigor para o Brasil em 29.5.1994 e promulgada pelo
Decreto 2.519, de 16.3.1998 (D O U 17.3.1998) ].
5
“Princípios - 3. As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas
da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou
irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas
medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem
ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível”
[Decreto 2.652, de 1.7.1998, promulgando a Convenção (D O U 2.1.1999) ]
6
Princípio 15: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente
observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou
irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de
medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.
7
Nesse sentido, afirma o art. que “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente
sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
Nesse sentido, são vedadas intervenções no meio ambiente, salvo casos em que
resta comprovada a segurança das atividades praticadas. Isto para que as atividades
possivelmente poluidoras ou degradantes sejam retardadas até que exista consenso sobre
seus impactos e riscos ao meio ambiente.

Exatamente por isso, exige-se a realização de um EIA/RIMA (Estudo de Impacto


Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental), que servirá para a análise final acerca da
emissão de determinadas Licenças Prévias pela Administração Pública, de acordo com o
previsto na Lei n° 6.938/81 e no Decreto n° 99.274/90, que regulamentou essa primeira.

Ademais, já existem várias decisões apontando no sentido da inversão do ônus


probatório com fundamento na precaução 8. Também nessa direção, existem
entendimentos do STJ sobre o ônus do promotor do dano ambiental de comprovar de que
não o causou 9.

Outrossim, pela interpretação do art. 6º, VIII, da Lei n. 8.078/1990 (CDC) c/c o
art. 21 da Lei n. 7.347/1985 (Lei das Ações Civis Públicas), a inversão do ônus da prova
é justificável pela transferência do ônus de demonstrar a segurança do empreendimento
ao responsável pela atividade potencialmente lesiva.

Sendo bem público, o meio ambiente confere o “poder dever” ao magistrado


para inverter o ônus probatório em prol da sociedade, que tem o direito de saber sobre
danos a este, bem como ver reparada, compensada e/ou indenizada possível lesão.

Por fim, nota-se a mesma conclusão também em documentos legais no âmbito


internacional, como a “Declaração de Wingspread” 10 e a “Final Declaration of the First
‘Seas at risk’ Conference” 11.

Já a Comissão de Oslo decidiu que, antes da realização de atividades que


despejam lixo no mar, a inocuidade da atitude ao ecossistema deveria ser provada pelo
praticante 12.

8
Nesse sentido: AgInt no AREsp 1.311.669/SC; o REsp 1060753/SP; e o REsp 883656/RS.
9
A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental (Súmula n. 618/STJ).
10
Declaração de Wingspread, janeiro de 1998, Wisconsin. Segundo Cezar e Abrantes, a Declaração de
Wingspread comporta quatro elementos: I - ameaça de dano; II - inversão do ônus da prova; III- incerteza
científica e IV- medidas de precaução. Frederico G. Cezar, Paulo César C. Abrantes. Princípio…, 2003.
11
The First European Seas at Risk Conference, Copenhagen, 26–28 October 1994.
12
Carolyn Raffensperger, Joel Tickner (orgs). Protecting…, 1997.
3. Esferas de Responsabilização
A precaução, como dito, age no sentido de evitar os danos que não se sabe se
podem ocorrer 13. Essa segurança reforçada ao meio ambiente, por conseguinte, não deve
ser feita apenas por uma das esferas de responsabilização do Estado, mas por todas.

Dessa forma, a responsabilidade pelo dano ambiental está calcada sob uma
tríplice vertente de responsabilização: Civil, Administrativa e Penal, todas independentes
entre si.

Isto posto, dita independência entre as esferas justifica-se por mais de uma razão.
Entre as esferas administrativa e judicial, por exemplo, isso ocorre porque prevalece a
unidade da jurisdição (ou modelo anglo-americano). De acordo com ela, todo ato da
administração pública pode ser levado ao Poder Judiciário, que é o único a quem cabe o
exercício da atividade jurisdicional no Estado 14.

Nesse sentido, vê-se o art. 5°, XXXV, da CF, segundo o qual: “a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Exatamente por isso, cabe
ao Judiciário a revisão do mérito do ato administrativo para o devido controle de
legalidade, incluindo a possibilidade de responsabilização em ambas as esferas pelo
cometimento de atos ilícitos.

Já entre as esferas civil e penal, essa independência é uma decorrência lógica do


princípio da reparação integral (art. 225, §3°, CF). Assim, já decidiu o STJ que eventual
absolvição criminal ou perante a Administração Pública não interfere, em regra, na
responsabilização civil 15.

Essas independências entre as esferas, contudo, podem ser todas justificadas a


partir de um princípio geral do direito ambiental, que é o princípio da precaução. Isso
porque o espectro de consequências para a população, bem como toda uma série de
impactos definitivos sobre a fauna e a flora, pedem a adoção de medidas jurisdicionais

13
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental esquematizado. 8ª ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2021.
14
Celso Antônio B. de Mello. Curso…, 2015.
15
REsp 1.198.727/MG
urgentes, tanto para sanar lesões incertas às populações quanto para se precaver de danos
futuros ao meio ambiente.

Portanto, a independência entre as esferas serve como uma garantia ao meio


ambiente de que as medidas de proteção serão tomadas em tempo hábil para se evitar a
concretização de riscos incertos, além de adequadamente responsabilizar os promotores
do dano ambiental, que poderão sofrer sanções das mais diversas naturezas (cassação de
licença, restrição de direitos, pagamento de indenizações, etc).

4. Tutela Coletiva
Inicialmente pensado para a resolução de litígios individuais, o Direito
Processual Civil, com o advento do Estado Social, adequa-se para tutelar também
demandas de natureza coletiva, de modo que, cada vez mais, passa a se ocupar da tutela
de interesses de grupos específicos (consumidores, por exemplo) ou da sociedade
enquanto coletividade 16.

Assim, passa a viger, no ordenamento jurídico brasileiro, um “microssistema


processual coletivo”, ou seja, um diálogo de fontes normativas aptas a conferir um
tratamento legal para a tutela dos direitos metaindividuais. Fazem parte desse sistema: a
CF/88, o CDC e a Lei 7.347/85 (Lei das Ações Civis Públicas - LACP). À vista disso, os
direitos individuais homogêneos passaram a ser tutelados coletivamente por ACPs e
outras ações coletivas, não mais somente por ações individuais 17.

Nesse contexto, as ações coletivas surgem como o principal meio processual


para a tutela de direitos metaindividuais de cunho ambiental no judiciário. Isso ocorre
devido a própria natureza do dano ambiental, que é vasto, pois tende a atingir grande
número de pessoas e áreas, de origem, por vezes, desconhecida e com graves
repercussões, o que tende a acarretar em grandes indenizações e condenações para
reparações de danos.

Sendo assim, as ações coletivas atuam para: 1) garantir uma uniformização das
decisões em relação a determinado evento (como, por exemplo, a quebra de uma
barragem); 2) garantir uma representação adequada de um grupo de sujeitos
indeterminado; e 3) reunir as demandas em um único juízo, que poderá desafogar o

16
Humberto Theodoro Júnior. Algumas…, 2001; José Carlos Barbosa Moreira.
17
Marcos de Araújo Cavalcanti. A Questão…, 2014.
judiciário de milhares de ações ordinárias individuais e, desse modo, garantir uma maior
racionalidade para o processo.

Assim, a coletivização do processo, quando aplicado ao direito ambiental, tende


a facilitar o acesso à justiça pela técnica da aglutinação de demandas. Isso quando a
tutela coletiva traz ganhos comparativos em relação à tutela individual, pois favorece a
proteção de certos interesses que, de outro modo, não seriam levados ao judiciário ou
teriam tramitação muito mais complexa 18.

Assim, mostra-se uma preocupação com causas pequenas em que os lesados, por
sua dispersão e vulnerabilidade, não se habilitariam para ajuizar demandas individuais.
Evidencia-se, portanto, uma notória democratização do direito processual civil.

5. Referências

CAVALCANTI, Marcos de Araújo. A Questão Terminológica: “Ação Civil Pública” ou


“Ação Coletiva”. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, v. 132, p. 76-87,
mar. 2014.

Decreto 2.652, de 1.7.1998, promulgando a Convenção (D O U 2.1.1999).

Decreto Legislativo 2, de 3.2.1994, tendo entrado em vigor para o Brasil em 29.5.1994 e


promulgada pelo Decreto 2.519, de 16.3.1998 (D O U 17.3.1998) ].

Declaração de Wingspread, janeiro de 1998, Wisconsin.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 21. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2013. 1301 pág.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ª. ed. São
Paulo: Malheiros, 2015.

RAFFENSPERGER, Carolyn; TICKNER, Joel (orgs). Protecting public health and the
environment: implementing the precautionary principle. Washington: Island Press, 1999,
p. 353-4. E GIRAUD, Catherine: Le Droit et le príncipe de précaution: Leçons
d'Australie. Revue juridique de l’environnemen., n. 1, p. 15, 1997.

18
Edilson Vitorelli. Devido Processo…, 2019.
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental esquematizado. 8ª ed. São Paulo:
Saraiva Educação, 2021.

The First European Seas at Risk Conference, Copenhagen, 26–28 October 1994.

SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de Direito Ambiental. 2. ed.


Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 624-625; p. 1190-1192.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Algumas Observações Sobre a Ação Civil Pública e


Outras Ações Coletivas. RDC, [s. l], v. 9, p. 1-22, fev. 2001.

VITORELLI, Edilson. Devido Processo Legal Coletivo: dos direitos aos litígios coletivos
[livro eletrônico]. -- 2. ed. -- São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

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