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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL – RBDPro

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Daniel Mitidiero José Alfredo de Oliveira Baracho (in memoriam) Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias
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Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá Murillo Sapia Gutier Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro

R454 Revista Brasileira de Direito Processual : RBDPro. – ano 15, n. 59, (jul./set. 2007)- . – Belo Horizonte:
Fórum, 2007-

Trimestral
ISSN 0100-2589

Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./jun.1978 pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG.
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./jun. 1988 pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ.
Publicação interrompida em 1988 e retomada pela Editora Fórum em 2007.

1. Direito processual. I. Fórum.


CDD: 347.8
CDU: 347.9

© 2012 Editora Fórum Ltda.


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Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados Projeto gráfico: Virgínia Loureiro
são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Diagramação: Reginaldo César de Sousa Pedrosa
Sumário
Editorial .................................................................................................................................................................7

DOUTRINA
Artigos

Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo


Sergio Chiarloni........................................................................................................................................................................11
1 Premessa..................................................................................................................................................11
2 Equilibrio come adeguatezza dello strumento rispetto al suo scopo. La garanzia
costituzionale del ricorso in cassazione divenuta irragionevole per eterogenesi
dei fini........................................................................................................................................................14
3 Il principio del “giusto processo regolato dalla legge”: una clausola generale
riassuntiva delle garanzie formali previste nell’art. 111 nuovo testo Cost. e nel
contempo “ragionevolmente” indirizzata alla giustizia della decisione............................17
4 L’irragionevole squilibrio tra “giusto processo” e l’inesistenza di un dovere di
verità delle parti nonché di una efficace sanzione per il rifiuto di obbedire all’ordine
di esibizione............................................................................................................................................20
5 Equilibrio tra diritto di azione e diritto di difesa nella disciplina delle notificazioni ����23
6 Il formalismo delle garanzie..............................................................................................................24
6.1 Una ricostruzione irragionevolmente squilibrata nei rapporti tra principio di
ragionevole durata del processo e diritto di azione.................................................................24
6.2 La sanzione di nullità irragionevolmente applicata alle sentenze della terza via
a causa di un’erronea applicazione del principio del contraddittorio...............................26

Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado para concessão de medicamentos


pelo Sistema Único de Saúde
Magno Federici Gomes.........................................................................................................................................................33
1 Introdução...............................................................................................................................................34
2 Evolução dos direitos fundamentais..............................................................................................37
2.1 Evolução das dimensões dos direitos fundamentais...............................................................37
2.2 O Estado Democrático de Direito....................................................................................................41
2.3 Garantia aos direitos fundamentais...............................................................................................42
3 Direito social à saúde...........................................................................................................................43
4 Princípios aplicados à saúde pública e ao Sistema Único de Saúde...................................48
4.1 Princípio da dignidade da pessoa humana.................................................................................48
4.2 Princípio da legalidade........................................................................................................................48
4.3 Princípio da eficiência..........................................................................................................................48
4.4 Princípios da universalidade e da integralidade........................................................................49
4.5 Princípio da descentralização político-administrativa, princípio da hierarquização
e princípio da regionalização............................................................................................................50
4.6 Princípio da igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios
de qualquer espécie e princípio da equidade............................................................................50
5 Da judicialização da saúde.................................................................................................................51
6 Mandado de segurança e o direito líquido e certo...................................................................55
7 Considerações finais.............................................................................................................................63
Referências..............................................................................................................................................67
O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado
Democrático de Direito
Fabrício Simão da Cunha Araújo......................................................................................................................................71
1 Introdução...............................................................................................................................................72
2 Estado Democrático de Direito........................................................................................................73
3 Processo constitucional......................................................................................................................75
3.1 A contribuição de Fazzalari................................................................................................................75
3.2 O processo constitucional..................................................................................................................77
3.3 Contraditório..........................................................................................................................................79
3.4 Jurisdição Constitucional Democrática.........................................................................................80
4 Direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito....................................................82
4.1 Direitos fundamentais, humanos e individuais..........................................................................83
4.2 Características dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito..............84
4.3 Da dimensão objetiva dos direitos fundamentais....................................................................85
4.4 Funções dos direitos fundamentais ..............................................................................................86
5 O incremento de proteção pelo processo constitucional......................................................89
6 Considerações finais.............................................................................................................................95
Referências..............................................................................................................................................97

O sono dogmático e o projeto de um novo CPC


Luiz Eduardo Ribeiro Mourão......................................................................................................................................... 101
1 O sono dogmático............................................................................................................................. 101
2 O pensamento dogmático e o fenômeno jurídico................................................................ 102
3 A experiência brasileira de codificação...................................................................................... 103
4 Dogmatismo versus o direito vivo............................................................................................... 104
5 Do projeto do novo Código de Processo Civil......................................................................... 105
5.1 Da justificativa lógica........................................................................................................................ 105
5.2 Da crise do Poder Judiciário........................................................................................................... 107
6 Conclusão............................................................................................................................................. 108

Coisa julgada material menos que inter partes na extinção da execução pela satisfação
da obrigação no Direito Processual Civil brasileiro
Rafael Cavalcanti Lemos.................................................................................................................................................... 109
1 Introdução............................................................................................................................................ 109
2 Coisa julgada na extinção da execução..................................................................................... 111
3 Conclusão............................................................................................................................................. 117
Referências........................................................................................................................................... 119

Criação judicial do direito e importância dos precedentes


Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior.................................................................. 123
Introdução............................................................................................................................................ 123
1 Criação judicial do direito............................................................................................................... 124
2 Importância dos precedentes........................................................................................................ 133
3 Conclusão............................................................................................................................................. 141
Referências........................................................................................................................................... 142

Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro


Felipe Barcarollo................................................................................................................................................................... 145
Introdução............................................................................................................................................ 145
1 O paradigma racionalista e o Direito Processual Civil brasileiro....................................... 147
1.1 Direito e Hermenêutica – O Direito Processual Civil como ciência puramente
normativa e seu distanciamento da História........................................................................... 149
2 O processo ordinário (de conhecimento) como apogeu do paradigma
racionalista........................................................................................................................................... 158
2.1 O Processo de Cognição e sua vocação para a plenariedade processual –
A certeza, o mortificante procedimento ordinário e o horror aos juízos
sumários................................................................................................................................................ 162
Considerações finais.......................................................................................................................... 175
Referências........................................................................................................................................... 178

A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos


contribuintes – Análise do julgamento do Recurso Extraordinário nº 213.631/MG
Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto.............................................. 181
Introdução............................................................................................................................................ 182
1 A atribuição institucional do Ministério Público para a defesa dos interesses
difusos, coletivos e individuais homogêneos.......................................................................... 184
2 A vedação do manejo da ação civil pública para impugnação de tributos
(art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/1985)....................................................................... 187
3 A impossibilidade da utilização da ação civil pública como sucedâneo de
ação direta de inconstitucionalidade......................................................................................... 190
4 Análise do julgamento pelo STF do RE nº 213.631/MG – A defesa coletiva dos
interesses de contribuintes frente à lei inconstitucional instituidora de tributo........ 192
Considerações finais.......................................................................................................................... 200
Referências........................................................................................................................................... 201

Parecer

Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do


contraditório, da igualdade das partes e da ampla defesa – Regra da congruência
objetiva – Árbitro que não cumpre os deveres de diligência e competência
Fredie Didier Jr., Leandro Aragão................................................................................................................................. 205
1 O caso sob consulta........................................................................................................................... 206
2 A consulta e o parecer...................................................................................................................... 208
3 Uma primeira premissa: a natureza da sentença arbitral e a aplicação dos
princípios e garantias inerentes à tutela constitucional do processo............................. 209
4 Uma segunda premissa: os vícios e defeitos da sentença arbitral são os mesmos
da sentença judicial........................................................................................................................... 211
5 Ação anulatória de sentença arbitral: art. 33 da LArb – Limitação da sentença
arbitral ao objeto determinado no termo de compromisso arbitral – Extrapolação
dos limites – Transgressão à regra da congruência objetiva.............................................. 212
5.1 Introdução............................................................................................................................................ 212
5.2 A abrangência dos artigos 128 e 460, CPC, e a correlação com os artigos 10, III,
26, III, e 32, IV e V, todos da LArb................................................................................................... 213
5.3 Análise do caso concreto em razão da tese da congruência da demanda arbitral
com a sentença arbitral.................................................................................................................... 219
5.3.1 A não consideração de argumentos relevantes da defesa e a sentença citra petita:
ofensa ao contraditório, à ampla defesa e à igualdade das partes – Sentença arbitral
anulável em sua inteireza................................................................................................................ 219
5.3.2 O acréscimo de coisa não pedida na parcela condenatória e a sentença arbitral
ultra petita: ofensa ao contraditório e à ampla defesa – Sentença arbitral anulável 220
5.3.3 A não fundamentação da parte da sentença arbitral relativa ao modo de calcular as
perdas e danos e a sentença citra petita: ofensa ao contraditório e à igualdade das
partes – Sentença arbitral viciada................................................................................................ 223
6 Fundamentação da sentença arbitral inteiramente copiado de um artigo da
internet não citado como fonte: vício de motivação e violação das obrigações
de diligência, competência e livre convencimento – Situação inusitada (para
dizer o mínimo) – Desprestígio para a formação de uma cultura da arbitragem....... 224
7 Inexistência de requisito de validade da sentença arbitral: o procedimento
arbitral não respeitou nem mesmo o procedimento interno previsto no
regulamento da Câmara de Arbitragem – Violação da convenção de arbitragem.... 226
8 Conclusão............................................................................................................................................. 226

NOTAS E COMENTÁRIOS

Discurso ao homenageado no Congresso de Uberaba de Direito Processual – VI Edição:


Dr. Gilberto Martins Vasconcelos
Claudiovir Delfino, Lúcio Delfino.................................................................................................................................. 231

Discurso de abertura da Comenda Edson Prata: Ano 2012


Gilberto Martins Vasconcelos......................................................................................................................................... 233

ÍNDICE ..................................................................................................................................................................................... 237

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES.......................................................................................................................... 243


Editorial
A presente edição traz as seguintes contribuições doutrinarias:
1 Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo. Sergio Chiarloni
enfrenta tema relacionado às garantias processuais em suas diversas vertentes.
Aborda, entre outros assuntos, a garantia constitucional do recurso, o princípio
do giusto processo, o direito à duração razoável do processo e sua relação com o
direito de ação e as consequências decorrentes do desrespeito ao contraditório.
2 Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado para concessão de
medicamentos pelo Sistema Único de Saúde. Magno Federici Gomes desenvolve
interessante artigo, de cunho acadêmico e pragmático, com base no método
teórico-documental, cuja finalidade é: (i) apontar o acerto ou não da utilização
do mandado de segurança para assegurar o fornecimento de medicamentos por
autoridades públicas, com fundamento na investigação de decisões proferidas
no Estado de Minas Gerais; (ii) evidenciar a problemática do uso de receituários,
relatórios, laudos e prescrições feitas por médicos como meios de prova para ins-
truir mandados de segurança; (iii) assinalar, como opção ao mandamus, o manejo
de ação ordinária, com pedido cominatório e requerimento de tutela antecipada,
evitando-se com isso questionamentos sobre a ausência de direito líquido e certo.
3 O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamen-
tais no Estado Democrático de Direito. Fabrício Simão da Cunha Araújo demonstra
que o processo emancipou-se de sua função clássica de instrumento da jurisdição
para se assumir como elemento estruturante e indispensável à construção con-
tínua do Estado Democrático de Direito. Enfrenta uma variedade de temáticas,
como: (i) o conceito de Estado Democrático de Direito; (ii) os contornos do pro-
cesso constitucional; (iii) a importância do contraditório; (iv) a ideia de jurisdição
democrática; (v) os direitos fundamentais na contemporaneidade, suas funções e
dimensões.
4 O sono dogmático e o projeto de um novo CPC. Luiz Eduardo Ribeiro
Mourão combate as bases que, em sua ótica, justificariam a promulgação de um
novo Código de Processo Civil, vale dizer: (i) a de natureza lógica e acadêmica, que
busca uma unidade racional do Código; e (ii) a de cunho empírico, consistente na
promessa de efetividade na atividade jurisdicional, que hoje amarga grave crise.
5 Coisa julgada material menos que inter partes na extinção da execução
pela satisfação da obrigação no Direito Processual Civil brasileiro. Rafael Cavalcanti
Lemos, em exame ao art. 795 do Código de Processo Civil, conclui que a coisa

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 7-8, out./dez. 2012
8 Editorial

julgada material na sentença extintiva da execução pela satisfação da obrigação


é menos que inter partes, salvo quando o pagamento ocorrer voluntariamente e
sem erro por quem não seja consumidor e tampouco sujeito passivo de obriga-
ção tributária.
6 Criação judicial do direito e a importância dos precedentes. Lúcio Grassi
de Gouveia e Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior advogam a necessidade da
criação de mecanismos que balizem a atividade decisória a fim de assegurar tra-
tamento isonômico aos casos concretos semelhantes. Em especial, apegam-se à
importância da observância dos precedentes judiciais.
7 Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro.
Felipe Barcarollo, amparado sobretudo nas lições de Ovídio A. Baptista da Silva,
esclarece que o direito processual civil assenta-se atualmente numa concepção
racionalista, que, por ser refratária aos fenômenos sociais, apresenta-se em abso-
luto incapaz de atender aos anseios e necessidades de uma sociedade multiface-
tada e plurívoca.
8 A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos
contribuintes – Análise do julgamento do Recurso Extraordinário nº 213.631/MG.
Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz e Zaiden Geraige Neto defen-
dem a legitimidade do Ministério Público para a defesa através da tutela coletiva
dos direitos dos contribuintes quando verificada a inconstitucionalidade da lei
que institui ou regulamenta o tributo. Abordam, ademais, a natureza desses direi-
tos, bem assim o disposto no art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/1985. Por fim,
promovem um exame pormenorizado do julgamento do Recurso Extraordinário
nº 231.631/MG.
A revista também traz interessantíssimo parecer, elaborado por Fredie
Didier Jr. e Leandro Aragão, por meio do qual demonstram que o devido processo
legal e seus consectários não só iluminam a arbitragem, como a ela se aplica toda a
lapidação teórica desenvolvida para os elementos, condutas e estruturas atreladas
à natureza jurisdicional do processo civil.
Por fim, em “Notas e Comentários”, encontram-se reproduzidos dois discur-
sos proferidos no Congresso de Uberaba de Direito Processual – VI Edição, que este
ano homenageou o Dr. Gilberto Martins Vasconcelos, advogado de destaque e
cuja biografia é marcada pela luta empreendida contra a ditadura nos chamados
anos de chumbo.
Boa leitura!
Os Diretores

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 7-8, out./dez. 2012
DOUTRINA
Artigos
Ragionevolezza costituzionale e
garanzie del processo1

Sergio Chiarloni
Emerito dell’Università di Torino.

Sommario: 1 Premessa – 2 Equilibrio come adeguatezza dello strumento


rispetto al suo scopo. La garanzia costituzionale del ricorso in cassazione
divenuta irragionevole per eterogenesi dei fini – 3 Il principio del “giusto
processo regolato dalla legge”: una clausola generale riassuntiva delle
garanzie formali previste nell’art. 111 nuovo testo Cost. e nel contempo
“ragionevolmente” indirizzata alla giustizia della decisione – 4 L’irragionevole
squilibrio tra “giusto processo” e l’inesistenza di un dovere di verità delle
parti nonché di una efficace sanzione per il rifiuto di obbedire all’ordine di
esibizione – 5 Equilibrio tra diritto di azione e diritto di difesa nella disciplina
delle notificazioni – 6 Il formalismo delle garanzie

1  Premessa
Se pensiamo all’uso del termine ragionevolezza nel linguaggio comune,
defi­nita come “la qualità dell’agire con equilibrio”, vediamo subito che le molte-
plici specificazioni nei linguaggi specialistici mantengono intatta l’idea di base nei
diversi ambiti cui si applica (sia pure con le rispettive particolarità e sia pure nel
contesto di grandi difficoltà ricostruttive dovute al fatto che siamo in presenza di
una tecnica argomentativa basata su un concetto “sfuggente, ambiguo, polisenso”2
quando si tratti di cercarne l’inquadramento sistematico in singoli settori).
Così, per la filosofia politica, la ragionevolezza è indirizzata a far coesistere
l’uguaglianza con l’equità nei sistemi democratici pluralisti;3 per la giurisprudenza cos-
tituzionale è indirizzata a delimitare i ruoli tra un legislatore democraticamente eletto

1
Texto com autorização de publicação no Brasil ofertada ao Prof. Dr. Dierle Nunes.
2
Così SPADARO, Conclusioni, in La ragionevolezza nel diritto, Torino, 2002, p. 415.
3
Cfr. VIOLA, La ragionevolezza politica secondo Rawls, in VIGNA C., Etiche e politiche della postmodernità,
Vol. I, Milano 2003, p. 163 ss.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 11-31, out./dez. 2012
12 Sergio Chiarloni

e il custode della costituzione, che è un organo estraneo al circuito democratico;4


per il diritto amministrativo è indirizzata a contemperare l’interesse pubblico con

4
Sulla ragionevolezza come tecnica argomentativa rinvio al sito Archivio di Diritto e Storia costitu-
zionali, curato da Mario Dogliani e M. G. Losano, (<www.dircost.unito.it/SentNet1.01/def/sn_des-
crizione_argomenti.shtml>), da cui è tratto il schema che segue:
A. Tecniche utilizzate per produrre la norma parametro attraverso l’attribuzione — mediante bilan-
ciamento/concretizzazione — di significati specifici a enunciati costituzionali contenenti principi
Bilanciamento come individuazione del contenuto minimo essenziale – (B1)
Bilanciamento come individuazione dell’ottima proporzione – (B2)
Il procedimento ermeneutico in cui consiste il bilanciamento tra principi costituzionali può essere
così sintetizzato:
a) esiste un conflitto tra il principio — genericamente inteso — cui può essere ricondotta la dispo-
sizione X (oppure: il combinato delle disposizioni A, B e C) e il principio — genericamente inteso
— cui può essere ricondotta la disposizione Y (oppure: il combinato delle disposizioni E, F e G);
b) tale conflitto può essere risolto in due modi: 1) individuando la migliore proporzione possibile
tra i due principi, oppure 2) individuando i limiti oltre i quali la compressione di uno dei due prin-
cipi non può andare;
c) nel primo caso la Corte definirà il punto di ottimo equilibrio; nel secondo definirà il contenuto
minimo essenziale dei principi in conflitto (o comunque di quello “aggredito”);
d) ma la individuazione di questi punti (di equilibrio) o di queste linee (di confine) consegue alla
assunzione da parte della Corte:
di uno tra i tanti possibili criteri di giustizia, i quali, come ha dimostrato Kelsen, rinviano tutti —
tranne quello della carità — a ordinamenti di valori e di preferenze la cui esistenza è presupposta
e accettata da chi utilizza il criterio;
di uno specifico significato attribuito, a fronte del caso concreto, a quel principio;
e) sulla base di questo specifico significato attribuito ad un particolare principio di giustizia — e
cioè sulla base di una “doppia preferenza” che individua il criterio di giustizia concreto idoneo
a risolvere il conflitto — la Corte attribuisce alle disposizioni costituzionali che costituiscono i
poli del conflitto medesimo, i significati idonei a risolverlo. Nel caso dell’ottima proporzione si
dichiareranno incostituzionali tutti i significati delle disposizioni che non coincidono con quello
che esprime tale puntuale equilibro. Nel caso del significato minimo essenziale si dichiareranno
incostituzionali solo i significati che si collocano oltre quello “di confine”.
Nell’ipotesi sopra formulata la Corte attraverso l’interpretazione delle disposizioni in conflitto
individua una norma parametro (che definisce o l’ottimo equilibrio o il confine invalicabile). Si
potrebbe ritenere — contrariamente a questa ricostruzione — che il bilanciamento non derivi
dall’applicazione di una norma, ma sia una tecnica applicativa che scioglie un dilemma che non
può essere risolto attraverso un’ulteriore attività interpretativa delle disposizioni in conflitto.
Occorre però constatare che la Corte, quando ricorre alla tecnica del bilanciamento, opera il bilan-
ciamento medesimo come se consistesse nell’applicazione di una norma parametro individuata
attraverso l’interpretazione delle disposizioni in conflitto.
Altri ricostruiscono il procedimento ermeneutico comunemente definito del bilanciamento tra
principi costituzionali in termini diversi.
Ritenendo la ponderazione non un modo di applicare i principi, ma un modo di scegliere il prin-
cipio applicabile in casi di conflitto, la ponderazione medesima è ritenuta attività che precede
l’applicazione (dell’uno o dell’altro principio) ed è quindi cosa diversa da essa. L’applicazione del
principio individuato consiste, in quest’ottica, nella “concretizzazione” del principio medesimo,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 11-31, out./dez. 2012
Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo 13

quello dei privati coinvolti nell’attività della pubblica amministrazione; per il diritto
privato è indirizzata a integrare l’autonomia negoziale con la buona fede.5

ossia nell’individuazione di una regola fino a quel momento inespressa — a fattispecie chiusa,
indefettibile, non generica — che consenta la sussunzione altrimenti impossibile, data la natura
generica del principio.
Quest’ultima ricostruzione non produce risultati così distanti da quella precedentemente descritta
se si considera che la regola inespressa, che risulta dalla concretizzazione del principio, svolge
la medesima funzione di quelli che sono stati definiti il punto di ottimo equilibrio e il contenuto
minimo essenziale dei principi in conflitto.
B. Tecniche utilizzate per produrre la norma parametro attraverso giudizi di ragionevolezza che non
valgono poi a selezionare possibili significati di enunciati costituzionali
Giustizia come convenienza:
Ragionevolezza strumentale (giudizio di ragionevolezza formulabile in termini di idoneità, efficacia,
proporzionalità) (G1)
Giustizia come convenienza:
Ragionevolezza intersoggettiva (giudizio di ragionevolezza formulabile in termini di eguaglianza) (G2)
Giustizia come convenienza:
Applicazioni residuali del principio di ragionevolezza) – (G3)
Esistono frequenti ipotesi in cui il parametro che la Corte utilizza per decidere della incostitu-
zionalità di una norma ordinaria non consiste in un significato attribuito ad una disposizione
costituzionale: casi cioè in cui il legame tra parametro del giudizio ed enunciati del testo della
Costituzione è interrotto.
L’utilizzazione di un tale tipo di parametro può ricorrere:
a) quando una norma appare contraddittoria rispetto al fine che il legislatore, implicitamente o
esplicitamente, dichiara di voler perseguire (incoerenza teleologica);
b) quando una norma appare intimamente contraddittoria (incoerenza interna) o irriducibile al
sistema legislativo in cui dovrebbe inserirsi, e cioè irrimediabilmente non armonizzabile con esso
(incoerenza sistemica);
c) quando — al di fuori del campo di applicazione del principio di uguaglianza, e cioè laddove la
discrezionalità legislativa non è vincolata da norme costituzionali — un rapporto giuridico appare
disciplinato in modo tale da sacrificare irragionevolmente gli interessi di una delle parti.
Questa elencazione non è e non può essere tassativa, perché la Corte fa valere, ove lo ritenga,
criteri di ragionevolezza che considera presupposti dalla Costituzione nel suo complesso, ma che
non possono essere fatti derivare da alcuna disposizione specifica.
In tutti questi casi la Corte applica — al di là del modo con cui fraseggia le sue argomentazioni
— il criterio della giustizia come convenienza, come adeguatezza della norma al caso concreto.
Utilizza cioè come parametro la norma giusta che dovrebbe esserci, ma che non c’è: quella norma
che il sentimento di giustizia dell’interprete, di fronte al caso concreto, percepisce come mancante.
Si tratta di parametri, per definizione, estranei agli enunciati del diritto scritto.
Nelle ipotesi considerate quel che conta non è, in sé, il ricorso a una regola di giustizia, ma il fatto che
tale regola non venga utilizzata per selezionare uno dei significati possibili di un enunciato. Se così
fosse si tratterebbe di un semplice uso del criterio equitativo: criterio dal contenuto indefinibile, ma
che, se utilizzato per attribuire ad un enunciato uno dei suoi significati possibili e per argomentarne
la preferibilità, svolge un ruolo del tutto identico a quello degli altri argomenti ermeneutici. Quel che
differenzia le ipotesi ora esaminate dall’uso del criterio equitativo è che qui il principio di giustizia
opera non come regola sull’interpretazione del diritto, ma come regola sulla sua produzione.
5
Cfr. ZORZETTO, Ragionevolezza, politica del diritto e semiotica giuridica: considerazioni in margine al
libro Ragionevolezza e autonomia negoziale, in D&Q, 2010, p. 602 s.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 11-31, out./dez. 2012
14 Sergio Chiarloni

Ebbene, poiché per convinzione metodologica di lunga data sono ostile al


concettualismo dogmatico, e sono convinto che qualsiasi linguaggio specialistico
è privo di senso se non è traducibile (sia pure con lunghi e complicati passaggi)
nei termini del linguaggio comune, tratterò di ragionevolezza e garanzie proces-
suali movendo proprio da quell’ “agire con equilibrio” che ho trovato nella defini-
zione di un vocabolario.
Naturalmente, mi rendo conto di partire anch’io con il non lieve bagaglio di
un concetto vago e mal definito. Ma sono convinto che qui l’intuizione gioca un
ruolo fondamentale per avviarne l’intendimento, dicendoci qualcosa di prezioso:
che la ragionevolezza è un valore che va ben oltre l’ambito del diritto: è un ele-
mento costitutivo dell’homo sapiens, che lo contrappone all’hubris irragionevole
dell’homo demens in uno scontro infinito e dall’esito ancora incerto. Credo sia per
questo sottinteso motivo che tra i costituzionalisti e i filosofi del diritto si diffonde
la convinzione che il principio della ragionevolezza pratica ha ormai assunto il
rango di valore costituzionale,6 grazie alla costituzionalizzazione dei diritti umani.7
Comunque, non ci si deve spaventare: persino nelle scienze della natura
concetti vaghi e mal definiti e a volte con un forte contenuto metaforico (dovuto
quest’ultimo al trasferimento da un ramo scientifico ad un altro) hanno costituito
mattoni fondamentali per la costruzione (o la descrizione) di importanti teorie.
Qualche volta grazie ad una fertilizzazione incrociata.8

2  Equilibrio come adeguatezza dello strumento rispetto al suo


scopo. La garanzia costituzionale del ricorso in cassazione
divenuta irragionevole per eterogenesi dei fini
Mi sembra di poter dire che uno strumento è in equilibrio con le finalità
per le quali è stato pensato se è adeguato a raggiungerle. Ora, vi sono garanzie
processuali previste in Costituzione che non sono valori in sé alla luce dei principi,
ma possiedono la suddetta caratteristica strumentale e devono pertanto essere
valutate come ragionevoli se sono capaci di raggiungere i risultati per cui sono
state istituite.
Questa caratteristica va attribuita alla garanzia del ricorso in cassazione per
violazione di legge contro tutte le sentenze, prevista dall’art. 111 Cost. Un organo

6
Cfr. RUGGERI A., Ragionevolezza e valori, attraverso il prisma della giustizia costituzionale, in Diritto e
società, 2000, p. 567 ss.
7
VIOLA F. Ragionevolezza, cooperazione e regola d’ora, in Ars interpretandi, 2002, p. 110.
8
Basti pensare a “software” nella neurobiologia o a “memoria” nell’informatica.

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Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo 15

unico e centralizzato di suprema giustizia ha il suo compito principale nell’assicurare


“l’uniforme interpretazione della legge” come dice l’art. 65 dell’ordinamento giu-
diziario del 1942, nei confronti delle divergenze che frequentemente si verificano
tra i giudici di merito. Nella prospettiva del processo civile il costituente ha istitui-
to la garanzia del ricorso per i soggetti coinvolti in una controversia allo scopo di
garantire la parità di trattamento, che se non assicurata vedrebbe degradare per
loro a vuota enunciazione astratta il fondamentale principio enunciato dall’art. 3
primo comma Cost.
Sennonché la protezione costituzionale del ricorso in cassazione ha fallito
il perseguimento dell’uguaglianza attraverso l’uniformità della giurisprudenza.
Proprio la mancanza di filtri ai ricorsi, come previsti in molti altri ordinamenti, non
solo di common law, ha reso i prodotti giurisprudenziali della corte suprema simili
a quelli di un supermercato,9 dove la parte soccombente spesso trova, accanto a
quelli contrari, anche i precedenti favorevoli che possono indurla a tentare la sorte.
Ci troviamo qui di fronte ad uno dei casi più eminenti di eterogenesi dei fini per-
seguiti da una norma processuale.10 Proprio la garanzia del ricorso contro tutte
le sentenze ha determinato l’impossibilità per la corte di cassazione di assicurare
l’uniforme interpretazione e applicazione della legge. La ragione è semplice e può
venir racchiusa in un detto della saggezza popolare: tot capita tot sententiae. Da
molti anni troppo numerosi e in progressiva via di aumento sono i ricorsi, ormai

L’icastico paragone è di TARUFFO, Il vertice ambiguo, Bologna 1991, p. 103.


9

Può essere interessante ricordare che l’eterogenesi dei fini ha assunto rilievo nella giurisprudenza
10

della corte, ma con risultati assai diversi: intesa come mutamento-sostituzione nel tempo della
ratio legis rispetto alla originaria non compatibile ha consentito di respingere incidenti di costitu-
zionalità, grazie ad un’interpretazione adeguatrice basata sulle nuove finalità della norma, che le
consente di superare il vaglio di ragionevolezza. Cfr in proposito MORRONE, Corte costituzionale
e principio generale di ragionevolezza, in....... ricorda Corte cost. sent. n. 5/62, che dichiara l’illegit-
timità del divieto di vendita e di ammasso del c.d. risone, stabilito nell’immediato dopoguerra
in funzione delle esigenze generali dell’alimentazione nazionale, in ragione della violazione del
principio di riserva di legge in materia di libertà d’impresa. Questa decisione è particolarmente
rilevante perché, per la prima volta, viene in considerazione la problematica dell’eterogenesi dei
fini in sede di sindacato d costituzionalità. La Corte costituzionale, infatti, riconosce al legislato-
re “la possibilità di valutare (sempre che ciò non avvenga in modo arbitrario) se sopravvivono
ragioni di interesse generale per la conservazione nell’ordinamento, di istituti in esso presenti,
indipendentemente dai motivi che dettero loro origine”. Questo specifico punto diede vita a una
nota polemica tra Vezio Crisafulli e Carlo Esposito proprio intorno alla questione se fosse rilevante
o meno in sede di controllo di costituzionalità, la perdita successiva di ratio legis di una legge.
Cfr. V. Crisafulli, Osservazione, “Giur cost.”, 1962, 43 ss. (favorevole a una lettura della ratio legis nel
quadro dell’ordinamento obiettivo e, quindi, implicitamente favorevole all’eterogenesi dei fini), C.
Esposito, Gli art. 3, 41 e 43 della Costituzione e le misure legislative e amministrative in materia eco-
nomica, ivi, 48 ss. (sostenitore, invece, dell’esigenza che la legge mantenesse una medesima ratio
legis sempre in linea con la Costituzione).

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16 Sergio Chiarloni

quasi decuplicati rispetto agli anni cinquanta del secolo scorso, così che troppo
numerosi e in progressiva via di aumento sono i giudici chiamati a deciderli.
La conseguenza è sotto gli occhi di tutti. Aggiungendo disordine giurispru-
denziale al disordine legislativo che caratterizza l’attività dei moderni parlamenti,
la nostra corte suprema presenta un presenta un panorama di pronunce contras-
tanti tra sezione e sezione, tra sezioni semplici e sezioni unite e spesso addirittura
anche all’interno della medesima sezione, ivi comprese le stesse sezioni unite, sul
filo di ambiti di (quasi)contemporaneità, che nulla hanno a che vedere con le esi-
genze di una maturazione consapevole e di una evoluzione naturale della giuris-
prudenza, anche perché sovente si tratta di contrasti riguardanti l’interpretazione
e l’applicazione di norme non recenti. Basterà qui ricordare la raccolta dei con-
trasti operata in articoli e anche grossi volumi da un meritevole studioso.11 Per
quanto riguarda la procedura civile vi sono i casi recenti dei contrasti in materia di
ammissibilità del ricorso incidentale condizionato e di clausola abusiva regolante
la competenza per territorio nei contratti del consumatore.12
Siamo di fronte ad un circolo vizioso. Quanto più aumentano i ricorsi, tanto
più aumentano i contrasti sia per la difficoltà per i giudici chiamati alla decisione
di venir a conoscenza dei precedenti più recenti a causa dell’elefantiasi della corte
e del suo interno disordine organizzativo, sia per le appena accennate incompri-
mibili divergenze sui valori sottesi all’interpretazione giuridica, che si verificano
nelle valutazioni dei differenti collegi che ruotano entro le sezioni. Ma quanto

11
MONETA, La cassazione civile e i suoi contrasti di giurisprudenza del 1990, in Contr. e impresa, 1992,
p. 1245 ss.; ID., Mutamenti nella giurisprudenza della Cassazione Civile. Ottocentosessantasette casi
di contrasto nel quinquennio 1988-1992, Padova 1993; ID., Conflitti giurisprudenziali in Cassazione. I
contrasti della Cassazione civile dal settembre 1993 al dicembre 1994, Padova, 1995.
12
Limitandomi all’ultimo caso, ricordo che secondo un primo provvedimento, il quale ha accolto
un regolamento contro una sentenza del tribunale di Bologna (Cass. 24 luglio 2001, n.10086, in
Corr. giur. 2001, p. 1435), occorrerebbe dare una lettura sostanzialmente abrogante del numero 19
dell’art. 1469 bis c.c.: la clausola generale che riservi la competenza al domicilio o alla sede del pro-
fessionista non sarebbe vessatoria, perché riproduttiva di una disposizione di legge, appunto l’art.
20 c.p.c. quando (come di solito accade) se ne verifichino i presupposti. Ma una sentenza immedia-
tamente successiva (Cass. 28 agosto 2001, n. 11282 in Corr. giur. 2002, p. 215, con nota di CONTI, La
cassazione ripensa al ruolo esclusivo del consumatore e in Foro it., 2001, I, 3588, con nota di PALMIERI,
Foro esclusivo del consumatore e abusività della deroga convenzionale alla competenza per territorio:
mai più in giudizio lontano da casa) accogliendo un orientamento già emerso in dottrina (Cfr., per
tutti, DALMOTTO, Un nuovo foro esclusivo per il consumatore?, in Giur. it. 1997, IV, c. 161 ss., che mette
opportunamente in rilievo le aporie e i circoli viziosi cui danno luogo le altre interpretazioni) ritiene
che, dovendosi evitare un risultato ermeneutico che renda inutile la disposizione di tutela del con-
sumatore, anche in aderenza all’art. 1469 quater c.c. ai cui sensi in caso di dubbio deve prevalere
l’interpretazione a lui favorevole, il n. 19 dell’art. 1469 bis c.c. vada ricostruito come una disposizione
di carattere processuale che ha innovato la disciplina della competenza introducendo un nuovo
foro esclusivo (ma derogabile), che rende inapplicabile l’art. 20 c.p.c. alle cause dei consumatori.

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Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo 17

aumentano i contrasti, consentendo al soccombente nel giudizio di merito trova


precedenti anche favorevoli, tanto più aumentano i ricorsi.
La garanzia costituzionale del ricorso in cassazione è insomma diventata
irragionevole, perché si è disintegrata l’adeguatezza dello strumento rispetto al
suo fine. Bisognerebbe abolirla, anche perché essa si pone in netto contrasto con
il principio della ragionevole durata del processo davanti alla corte suprema, mal-
grado le ingenti risorse impiegate, soprattutto per l’organico. Ma la cosa è difficile,
per ragioni che è inutile approfondire, sia pure in un contesto di propositi di riforma
della nostra carta fondamentale proprio in materia di giustizia.13 Quanto ai tenta-
tivi operati fin dal 2006 dal legislatore ordinario, indirizzati a deflazionare i ricorsi,
dal vincolo delle sezioni semplici ai precedenti delle sezioni unite, al quesito di
diritto e alla sua successiva sostituzione nel 2009 con un filtro di ammissibilità è
presto per dire che abbiano avuto successo.

3  Il principio del “giusto processo regolato dalla legge”: una


clausola generale riassuntiva delle garanzie formali previste
nell’art. 111 nuovo testo Cost. e nel contempo “ragionevolmente”
indirizzata alla giustizia della decisione
Accade talvolta che l’astuzia del sistema vada molto oltre le intenzioni del
legislatore. Nel 1999 la legge delle leggi è stata modificata con una risposta ab
irato del Parlamento ad una singola sentenza della Corte costituzionale, che, invo-
cando il principio di non dispersione della prova, aveva dichiarato illegittimo l’art.
513, secondo comma del codice di procedura penale nella parte in cui sanciva
l’inutilizzabilità di dichiarazioni di persone imputate in reato connesso raccolte in
sede di indagini preliminari se al dibattimento mancava l’accordo di tutte le parti
per la loro utilizzazione.
La legge costituzionale, approvata con ampia maggioranza, aveva il suo ful-
cro in una serie di norme sul processo penale che, senza contentarsi di enunciare
il principio del contraddittorio nella formazione della prova, che sarebbe stato
suscettibile di ragionevoli eccezioni ad opera del legislatore ordinario, prevedeva
analiticamente, con un puntiglioso passo più da codice di rito che da carta fon-
damentale, l’impossibilità di provare la colpevolezza dell’imputato sulla base di
dichiarazioni rese da chi per libera scelta si è sottratto all’interrogatorio da parte
dell’imputato o del suo difensore, stabilendo anche le relative eccezioni, tassati-
vamente enunciate.

Nel testo base sul sistema delle garanzie elaborato dalla commissione bicamerale per le riforme
13

costituzionali del 2002, si trova la proposta di una norma sostitutiva dell’attuale art. 111, comma
settimo, che ammetteva il ricorso in cassazione per le sentenze nei soli casi previsti dalla legge.

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18 Sergio Chiarloni

Nello stesso tempo la legge esordiva nella sua modifica dell’art. 111 con due
commi applicabili a tutti i processi, classico caso di ipocrita indoramento della
pillola all’evidente scopo di inserire in un contesto più vasto (e anche più digni-
toso) la più specifica revisione voluta dal Parlamento. Il primo proclama che “la
giurisdizione si attua mediante il giusto processo regolato dalla legge”. Il secondo
che “ogni processo si svolge nel contraddittorio delle parti, in condizioni di parità,
davanti a giudice terzo e imparziale. La legge ne assicura la ragionevole durata”.
Ora, probabilmente perché sviato dal pregiudizio che l’intenzione del legis-
latore dovesse essere decisiva nel ricostruire una nuova disciplina e perché per-
suaso che la modifica dell’art. 111 fosse un poco onorevole sintomo del contrasto
che fin dal 1992 oppone la politica alla giustizia nel nostro paese, rappresentando
l’epitaffio simbolico alla stagione c.d. di “mani pulite”, che aveva visto la procura
della repubblica di Milano mettere sotto processo per corruzione e finanziamento
illecito dei partiti settori rilevanti della classe dirigente, avevo in un primo tempo
sostenuto che queste due disposizioni avessero il valore dell’aria fritta, almeno
per quanto riguarda il processo civile.14 Più precisamente, ero convinto che dalla
fondamentale norma di raffronto per le discipline processuali rappresentata
dall’art. 24, Cost., anche nella sua connessione con l’art. 3, fossero ricavabili tutte
le garanzie enunciate dal nuovo secondo comma dell’art. 111 secondo cadenze
assai più analitiche (oltre che alquanto enfatiche e per questa ragione foriere di
inutili complicazioni per l’interprete).15
Assieme ad altri scrittori,16 pensavo insomma che non fossimo affatto in pre-
senza di una rifondazione dei principi costituzionali del processo e che pertanto

14
Cfr. Il nuovo articolo 111 della Costituzione e il processo civile, in Riv. Dir. Proc., 2000, p. 1010 ss.;
Giusto processo e fallimento, in Riv. Trim. Dir. Proc. Civ., 2003, p. 453.
15
E’ interessante notare che, occupandosi del processo penale, FERRUA, Il processo penale dopo la
riforma dell’art. 111 della Costituzione, in Quest. giust., 2000, p. 30 asserisce senza mezzi termini da
un lato la necessità dell’introduzione della garanzia riferita al contraddittorio nella formazione
della prova (che non si applica al processo civile) e, dall’altro, la superfluità delle altre regole “con-
fusamente affastellate” nell’art. 111 Cost e destinate a suscitare più che a risolvere problemi.
16
DIDONE, Appunti sul giusto processo di fallimento, in Il nuovo articolo 111 della Costituzione e il “giusto
processo” in materia civile, a cura di B. Capponi e V. Verde, Atti del convegno di Campobasso (26
febbraio 2000), Napoli, 2002, 105; MONTELEONE, Il processo civile alla luce dell’art. 111 Cost., in Giust.
civ., 2001, 523, il quale ritiene che il nuovo art. 111 abbia un’efficacia dichiarativa e non costitutiva,
avendo reso esplicito ed incontrovertibile ciò che già costituiva il presupposto implicito del nostro
sistema giudiziario; parzialmente in questo senso sono anche BOVE, Art. 111 Cost. e “giusto processo
civile”, in Riv dir. proc., 2002, 482 il quale afferma che “con la riforma costituzionale in oggetto si
sono esplicitate o chiarite meglio garanzie del processo già in precedenza ricavabili per implicito
dall’impianto costituzionale”; e CECCHETTI, voce Giusto processo, in Enc. dir., aggiornamento,
vol. V, Milano, 2001, 618 il quale sostiene che le uniche norme autenticamente nuove introdotte
nell’art. 111 sono quelle contenute nei commi 4 e 5, relative al processo penale.

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Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo 19

non esistessero norme del processo civile legittime prima dell’entrata in vigore
della legge costituzionale 23 novembre 1999, n. 2 e illegittime dopo. Ad identica
conclusione giunge poco dopo la Corte costituzionale.17
Ma non avevo allora sufficientemente riflettuto sul fatto che l’inserzione nel
sistema provoca sovente effetti che trascendono l’intentio legis. Re melius perpensa,
mi sono reso successivamente conto che un effetto del genere si è verificato nel
nostro caso. Ho così sentito il dovere dell’autocritica, proprio sulla base di interro-
gativi fondati sull’idea di ragionevolezza nell’approfondire il significato di giusto
processo. E’ mai possibile, mi sono domandato, che nell’introdurre il nuovo prin-
cipio la modifica della costituzione continui a disciplinare un meccanismo per
produrre risultati, senza occuparsi della bontà di questi ultimi? Ecco allora che
grazie ai lavori di una giovane studiosa18 ho sentito lo stimolo ad occuparmi delle
teorie anglosassoni sulla giustizia procedurale allo scopo di sviluppare le scarse
intuizioni indirizzate in dottrina19 a sostenere che il processo è giusto nella misura
in cui sia strutturato in modo da indirizzarsi a produrre risultati accurati, ossia
provvedimenti corretti dal punto di vista della soluzione sia della questione

17
Corte Cost. 28 maggio 2001, n. 167 (ordinanza), in Giur. it., 2001, 2233, con nota di DIDONE, Giusto pro-
cesso, imparzialità del giudice e opposizione allo stato passivo: la Consulta non ci ripensa; Corte Cost 31
maggio 2001, n. 176 (ordinanza), ivi, 2001, 2014, con nota di DIDONE, La terzietà del giudice nell’art. 146 l.f.
18
BERTOLINO G., Giusto processo civile e giusta decisione, Riflessioni sul concetto di giustizia procedurale in
relazione al valore della accuratezza delle decisioni giudiziarie nel processo civile, tesi di dottorato discussa
all’università di Bologna il 12 giugno 2007. E v. ora Giusto processo civile e verità, Contributo allo studio
della relazione tra garanzie processuali e accertamento dei fatti nel processo civile, Torino 2010.
19
Cfr, con particolare vigore TARUFFO, Poteri probatori delle parti e del giudice in Europa, in Riv. Trim.
Dir. Proc. Civ., 2006, 476 s.: “l’ideologia secondo la quale il processo deve tendere a concludersi
con decisioni giuste appare coerente con un’interpretazione non formalistica e non meramente
ripetitiva della clausola costituzionale del “giusto processo”; BRACCIALINI. Spunti tardivi sul giusto
processo, in Questione giustizia, 2005, 1208: “quando diciamo giusto processo, ci riferiamo solo
a regole processuali a garanzia del contraddittorio, oppure abbiamo anche in mente obiettivi
sostanziali del processo e ci preme che esso sia reale strumento di realizzazione dei diritti e non
solo il sistematico strumento per renderli ineffettivi? E il giudice è solo l’arbitro di questa partita
spesso ad armi impari, o non dovrebbe essere il garante del suo giusto risultato, cioè la realizzazione
in concreto del diritto calpestato? Secondo me questo è il contributo concettuale più significativo
di tutto l’articolato, il suo stimolo più fecondo; questa è la domanda inevasa che ancora dovrebbe
mettere in mora la dottrina processualcivilistica.”; PIVETTI e NARDIN, Un processo civile per il cittadino
(Lineamenti di una proposta di riforma della procedura civile), in <www.magistraturademocratica.it>,
inserito nel Dicembre 2005: “occorre anche che il processo si svolga in modo tale da tendere ad una
decisione giusta, oltre che sollecita. “Giusto processo”, infatti, non significa esclusivamente processo
conforme alle altre regole specifiche e agli altri principi espressamente consacrati nel nuovo art. 111
o in altre norme costituzionali riguardanti il processo” Ma vedi altresì DI MAJO, La tutela civile dei
diritti, Milano, 2001, vol. III, 7; CARRATTA, Prova e convincimento del giudice nel processo civile, in Riv.
Dir. Proc., 2003, 36 e ss.; PIVETTI, Per un processo civile giusto e ragionevole, in Il nuovo art.111 della
costituzione e il giusto processo civile cit., 63;. Per un accenno alla connessione tra giusto processo e
dovere di verità delle parti cfr. COMOGLIO, Etica e tecnica del “giusto processo”, Torino, 2004, 276.

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20 Sergio Chiarloni

di fatto sia della questione di diritto, ovviamente nei limiti consentiti in questo
mondo e nel rispetto della garanzie. Nell’ambito di una concezione cognitivista
e non decisionista del processo giurisdizionale, dove l’accertamento veritiero dei
fatti ne costituisca un fondamentale ideale regolativo. D’altronde le stesse garan-
zie processuali menzionate nel secondo comma dell’art. 111 sono strettamente
connesse con la giustizia della decisione. Contraddittorio e parità delle armi sono
pensate anche20 allo scopo di far scaturire, grazie alla dialettica processuale, la
soluzione giusta delle questioni di fatto e di diritto dedotte nella controversia.21
Sulla terzietà e imparzialità come garanzie soprattutto indirizzate ad evitare deci-
sioni sbilanciate non occorre spendere parola. Ma anche la ragionevole durata ha
a che fare con la giustizia della decisione. Non solo per il connotato di ingiusti-
zia che inquina la sentenza giusta, passata in giudicato per così dire fuori tempo
massimo, magari dopo lustri dall’episodio della vita che ha dato origine alla con-
troversia. Ma anche perché, se passa molto tempo tra l’istruzione probatoria e la
decisione, diminuiscono le probabilità di corretta valutazione delle prove.22
Dall’interpretazione ora ribadita emerge che il fine di giustizia è lo scopo ultimo
che la costituzione indica nell’enunciare che il processo deve essere “giusto” al primo
comma dell’art. 111 Cost. La garanzia ad una tendenziale giusta decisione innerva un
fondamentale principio costituzionale in materia di giurisdizione, accanto alle garan-
zie interne allo stesso processo, contraddittorio, parità delle armi, terzietà e imparzia-
lità, ragionevole durata, poi articolate nel secondo comma dell’art. 111 e anch’esse
tutte cospiranti a quel risultato, come abbiamo appena visto.

4  L’irragionevole squilibrio tra “giusto processo” e l’inesistenza di


un dovere di verità delle parti nonché di una efficace sanzione
per il rifiuto di obbedire all’ordine di esibizione
L’interprete ha allora il compito di chiedersi se la disciplina positiva non sia
denotata da irragionevoli lacune per la mancanza di strumentazioni indirizzate ad
20
Senza, cioè, voler negare fondamento alle tesi di quei teorici anglosassoni della giustizia proce-
durale che pongono l’accento anche sulla valorizzazione per così dire interna delle garanzie pro-
cessuali, sia dal punto di vista della legittimazione politica delle procedure, sia dal punto di vista
della soddisfazione dei partecipanti per la correttezza del trattamento ricevuto. Per indicazioni
bibliografiche al riguardo cfr. BERTOLINO G., Giusto processo civile e giusta decisione cit., 62 ss.
21
Di forza epistemica del contraddittorio parla FERRUA, Il “giusto processo, 2 ed., Bologna, 2007, 91 ss.
22
Vale la pena di ricordare che SOLUM, Procedural Justice, in 78 Southern California Law Review, 2004,
p. 251 s., distinguendo tra sistemic accuracy (la generale correttezza statistica dei risultati dell’atti-
vità giurisdizionale) e case accuracy (la correttezza della soluzione del singolo caso) fa un analogo
ragionamento con riguardo alla disciplina della prescrizione, sottolineando come la regola che
obbliga, a pena di estinzione del diritto vantato in giudizio, ad iniziare la controversia entro un
tempo determinato è di grande aiuto per la prima, mentre la seconda viene salvaguardata dalla
opportuna diffusione nel pubblico dei contenuti della disciplina suddetta.

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Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo 21

ottenere una decisione giusta. Naturalmente, è inutile soggiungere, in un quadro


di rispetto delle garanzie interne al processo.
La sentenza è giusta quando passa l’esame di un doppio criterio di verità.
Quando cioè è il frutto di una corretta interpretazione delle norme coinvolte e di
un’esatta ricostruzione dei fatti. Naturalmente, è appena il caso di rilevarlo, se si
vuole scansare l’accusa di positivismo ingenuo, non si tratta qui di verità assolute,
proprie soltanto del ragionamento matematico deduttivo. I criteri che entrano in
gioco sono criteri di approssimazione per ambedue i settori. Proprio per questa
ragione la giustizia procedurale del processo giurisdizionale è una giustizia imper­
fetta, a segnalare nel medesimo tempo la connessione con l’accuratezza del risul-
tato e l’impossibilità di avere l’assoluta certezza di raggiungerla.23
La correttezza del ragionamento interpretativo dipende dalla bontà della
formazione professionale assicurata ai giudici e dai controlli in sede di impugna-
zione, fino alla corte di cassazione, organo della nomofilachia. Qui non mi pare
che esista un rapporto che valga la pena di essere approfondito tra regolazione
del processo e correttezza del decisum.
Le cose cambiano se guardiamo alla disciplina del giudizio sul fatto. Il giusto
processo esige che la disciplina delle prove sia indirizzata non tanto ad assicu-
rare la certezza di un’esatta ricostruzione del fatto, cosa impossibile; quanto ad
eliminare le fonti di incertezza relative a quella ricostruzione, ovviamente quelle
che sono eliminabili senza mettere a rischio le garanzie costituzionali “interne”:
contraddittorio, parità delle armi, imparzialità del giudice.
Non corrisponde a questa ricostruzione del concetto di giusto processo, né
la facoltà consolidata delle parti di mentire tanto in sede di interrogatorio formale
che di interrogatorio libero, né la disciplina dell’esibizione, che non prevede alcun
mezzo coercitivo per acquisire al processo i documenti nella disponibilità della
parte che non intende produrli. A differenza di quanto accade negli ordinamenti
di common law, a cominciare da quello nordamericano, pur provvisto di una cos-
tituzione rigida che prevede le garanzie ricavabili dal principio del due process.24
Ordinamenti dove la parte può essere chiamata a testimoniare e la disciplina della

Cfr., per questo rilievo, da ultimo, FERRUA, Il “giusto processo” cit., 67.
23

Ma anche alcuni ordinamenti di civil law si vanno orientando in questa direzione. Ad esempio il
24

code de procédure civile francese stabilisce all’art 11 primo comma che “Les parties sont tenues
d’apporter leur concours aux mesures d’instruction sauf au juge à tirer toute conséquence d’une
abstention ou d’un refus” e al secondo comma che “ Si une partie détient un élément de preuve, le
juge peut, à la requête de l’autre partie, lui enjoindre de le produire, au besoin à peine d’astreinte.
Il peut, à la requête d’une des parties, demander ou ordonner, au besoin sous la même peine, la
production de tous documents détenus par de tiers, s’il n’exixte pas d’empêchement legitime”.

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22 Sergio Chiarloni

discovery prevede sanzioni pesanti, che arrivano fino alla privazione della libertà
per contempt of court, nel caso che la parte non fornisca all’avversario tutta la docu-
mentazione rilevante.25
In proposito, per quanto riguarda l’inesistenza di un obbligo della parte di
dire la verità,26 sia in sede di allegazione dei fatti, sia in sede istruttoria è ormai di so-
lare evidenza la debolezza del riferimento all’onere della prova, l’inutilizzabilità del
principio nemo testis in causa propria storicamente condizionato a tempi remoti
e l’inconsistenza del tradizionale richiamo giustificativo al principio nemo tenetur
edere contra se, la cui portata va ristretta al processo penale,27 come fondamento del
privilege against self incrimination,28 senza alcuna stringente necessità di estenderla
ai diritti dei privati, come giustamente sottolineano i giuristi anglosassoni.29 Per

25
Per un recente confronto tra l’ordinamento italiano e quello inglese cfr. CHIARLONI, Riflessioni
micro­comparative su ideologie processuali e accertamento della verità, in Riv. Trim. Dir. Proc. Civ.,
2009, numero speciale Due Iceberg a confronto: le derive di common law e civil law, p. 101 ss. Per
un’analisi della attuale disciplina della discovery inglese, dove vengono evidenziate le caratteristi-
che della disclosure, con l’attenzione rivolta a supposti problemi di riconoscimento ed esecuzione
che i relativi provvedimenti potrebbero incontrare negli ordinamenti continentali, cfr. ZUFFI, La
disclosure inglese: aspetti comparatistici e transnazionali, in Corr. giur., 2007, 35 ss.
26
In un saggio di grande acutezza, L’avvocato e la verità, ora in Il processo civile nello stato democratico,
Napoli, 2006, 131 ss., CIPRIANI sottopone a serrata critica un mio vecchio lavoro dove sostenevo
alquanto provocatoriamente che parti e avvocati nel processo civile italiano hanno “un consolidato
diritto di mentire”, senza che per gli avvocati si ponga neppure un problema di deontologia professionale.
Riconosco di avere esagerato nella forma e prendo atto che ora l’art. 14 del nuovo codice deontologico
degli avvocati prevede per loro un dovere di verità. Tuttavia rimane il fatto che nel nostro ordinamento
non esiste un dovere di verità per le parti sottoposte all’interrogatorio (opportunamente previsto
con forme loro peculiari oltre Manica e oltre Atlantico) e che per quanto riguarda gli avvocati è facile
prevedere la non applicazione in sede disciplinare della ricordata norma del codice deontologico. La
bella analisi di Cipriani sulla dialettica processuale quando vede protagonisti bravi e leali professionisti
mi trova ovviamente del tutto d’accordo, anche se sulla “parzialità istituzionale” dell’avvocato non si
possono ignorare i rilievi di TARUFFO, Involvement and Detachment in the Presentation of Evidence, in
The Eyes of Justice a cura di R. Kevelson, New York 1993, 272 ss .
27
Per una pluralità di ragioni, attentamente esaminate da BERTOLINO G., Giusto processo civile e
giusta decisione cit., 162 ss. Né va dimenticato che nel quinto emendamento la stessa costituzione
nordamericana restringe al processo penale la portata del principio.
28
CAPPELLETTI, La testimonianza della parte nel sistema dell’oralità. Contributo alla teoria della utiliz-
zazione probatoria del sapere delle parti nel processo civile, Vol. II, Milano 1969, 236 e 380.
29
Cfr, ad esempio, LANGBEIN, The Historical Origins of the Privilege Against Self Incrimination at
Common Law, in Mich. Law Rev., 1994, 1047 ss., citato da BERTOLINO G. Op.ult. cit., 166, nota 87. A
meno di non correre il rischio di cadere nella fallacia naturalistica, non serve osservare in contrario
che non avrebbe senso parlare di una “peculiarità penalistica” del principio nemo tenetur, in quanto
esso costituirebbe “solo un sfacettatura di una ben più generale guarentigia della parte di ogni
fenomeno processuale”. Così CONSOLO in Postilla….sed (e quando) magis amica veritas?, in Corr.
giur., 2007, 45. Va peraltro ricordato che anche a parere di Consolo, questa “guarentigia” è scalfibile,
sia pure con prudenza, ad esempio introducendo il dovere di verità a carico di determinate parti:
“società che attinge al mercato dei capitali e tenuta alla trasparenza informativa, ente pubblico
soggetto all’accesso; produttore di beni di largo consumo; associazioni pro bono attrici in processi di

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Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo 23

quanto riguarda l’ineffettività dell’ordine di esibizione, non eseguibile forzatamente e


senza la previsione di misure coercitive per il caso di mancata esecuzione spontanea,
sembra palese il contrasto con il diritto di difendersi provando, almeno tutte le volte
che la parte interessata non disponga di altri mezzi di prova. Qui diventa veramente
difficile immaginare che una qualche garanzia interna al processo si frapponga ad
una disciplina che assicuri con sanzioni adeguate l’adempimento del relativo prov­
vedimento del giudice. Senza contare poi l’enorme importanza e direi l’urgenza di
introdurre la coercibilità dell’ordine di esibizione, con riguardo alla recente introdu-
zione della c.d. azione di classe dove molto sovente sono soltanto i convenuti (si pensi
alle banche e alle compagnie di assicurazione) ad avere la disponibilità di gran parte
della documentazione rilevante.
Per concludere, soprattutto in tema di esibizione, ma forse anche in tema
di doveri delle parti, l’irragionevole lacunosità della disciplina positiva dovrebbe
portare ad un intervento della corte costituzionale, con un provvedimento di
accoglimento c.d. manipolativo, che dichiari quella disciplina illegittima, in
quanto non prevede la coercibilità dell’ordine di esibizione, e non prevede la
testimonianza delle parti, oltre che un obbligo verità nelle allegazioni e nelle
dichiarazioni rese in sede di interrogatorio.

5  Equilibrio tra diritto di azione e diritto di difesa nella disciplina


delle notificazioni
La ragionevolezza costituzionale impone che le garanzie processuali ten-
gano conto in modo bilanciato degli interessi di ambedue le parti che si vedono
contrapposte in una controversia. Sotto questo profilo è fondamentale che gli atti
indirizzati a metterle in contatto siano regolati in modo da assicurare nei limiti del
possibile la conoscenza dell’atto introduttivo del processo da parte del convenuto.
A questo scopo provvedono le disposizioni del codice di rito che disciplinano i
requisiti delle notificazioni e i vizi rilevanti per la loro mancanza. Naturalmente,
anche in presenza di questi vizi, la ragionevolezza vuole che essi diventino irrile­
vanti se il convenuto si costituisce, così riequilibrando le reciproche posizioni.
Questa la ratio della norma in materia di sanatoria delle nullità per raggiungi-
mento dello scopo. Sennonché, probabilmente per un’influenza del clima autorita-
rio in cui la disposizione fu emanata, l’art. 11, primo comma, del R. D. 30 ottobre

rilevanza collettiva, curatele fallimentari”, Una discreta tipologia, non c’è dubbio. Mancano tuttavia
indicazioni su sanzioni adeguate per la violazione dell’obbligo. Non mi pare che la responsabilità
aggravata, cui si accenna, sia sufficiente, vista anche la ricorrente ritrosia nella sua applicazione per
i casi in cui è attualmente prevista.

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24 Sergio Chiarloni

1933, n. 1611, secondo l’interpretazione consolidata della cassazione, escludeva


dalla sanatoria per raggiungimento dello scopo le nullità delle notificazioni alla
pubblica amministrazione. Lo squilibrio che così si determinava è stato tolto di
mezzo dalla Corte costituzionale con la sentenza n. 97 del 1967, che nel conquis-
tato clima democratico non poteva ritenere ragionevole la disuguaglianza di tratta-
mento in questo settore tra pubblica amministrazione e comune cittadino.
Sempre in tema di notificazioni, l “ottimo equilibrio” dei contrapposti interessi
di notificante e notificato, questa volta sulla base di un’analisi delle conseguenze nel
singolo caso, è stato più recentemente compiuto dalla corte costituzionale con la
sentenza 26 gennaio 2010, n 3. La declaratoria di illegittimità costituzionale dell’art
140 c.p.c., per violazione dell’art. 3 Cost., primo comma, e dell’art. 24 Cost., secondo
comma, nella parte in cui prevede che la notifica si perfeziona, per il destinatario,
con la spedizione della raccomandata informativa, anziché con il ricevimento della
stessa o, comunque, decorsi dieci giorni dalla relativa spedizione, viene motivata
sottolineando che la disposizione, facendo decorrere per il destinatario dell’atto
notificato i termini per agire a sua difesa da un momento anteriore alla concreta
conoscibilità dell’atto, dava luogo a un “non ragionevole bilanciamento tra gli inte-
ressi del notificante [...] e quelli del destinatario, in una materia nella quale, invece,
le garanzie di difesa e di tutela del contraddittorio devono essere improntate a
canoni di effettività e di parità”.

6  Il formalismo delle garanzie


Da molto tempo mi accade di scrivere di “formalismo delle garanzie”. Con ques-
ta formula intendo connotare quei casi in cui il formalismo processuale, un male che
può farsi strumento del torto secondo le parole di Hegel,30 si mimetizza dietro la
santità dei principi sanciti dalla costituzione fin dal 1948 nell’art. 24 e recentemente
più analiticamente articolati dal nuovo testo dell’art. 111 sotto la nozione di giusto
processo. Con la conseguenza di rovesciare le garanzie nel loro contrario, da presidi
di giustizia a cause d’ingiustizia o d’ingiusta dilazione della decisione. Tra i casi appro-
fonditi in passato31 ne rammento qui due, che ritengo di particolare interesse.

6.1  Una ricostruzione irragionevolmente squilibrata nei rapporti tra


principio di ragionevole durata del processo e diritto di azione
Poiché il secondo comma dell’art. 111 Cost. proclama che “la legge assicura
la ragionevole durata del processo” dovremmo aspettarci una disciplina grazie alla

Cfr. Lineamenti di filosofia del diritto trad. it., 4 ed., Bari, 1971, p. 193.
30

Cfr., Formalismi e garanzie, Studi sul processo civile. Torino, 1995, passim.
31

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Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo 25

quale se l’ordinamento processuale mette a disposizione più mezzi per ottenere


lo stesso risultato utile, si deve ricorrere al mezzo, più semplice e cioè quello che
comporta un minor impiego di tempo, oltre che un minor utilizzo di risorse.
Ad esempio, possiamo immaginare che si debba utilizzare il procedimento
per decreto ingiuntivo anziché il procedimento ordinario se esistono i relativi pre-
supposti; e che si debba iniziare direttamente il procedimento di esecuzione forzata,
anziché richiedere il decreto ingiuntivo o iniziare un processo ordinario se il creditore
ha in mano un titolo esecutivo.
Ovviamente, non sarebbe opportuno impedire direttamente alla parte
l’utilizzo del mezzo più dispendioso in termini di tempo e di utilizzo delle risorse
attraverso qualche sanzione come l’improcedibilità. Si verificherebbe un insieme
di complicazioni superiore a quelle che si vogliono evitare.
Basterebbe introdurre mezzi indiretti di persuasione: stabilire che, se la parte
vuole utilizzare un mezzo, che importa un maggior dispendio di risorse giurisdi-
zionali rispetto a quello meno dispendioso a sua disposizione, lo farà a sue spese.
Il legislatore aveva già provato qualcosa di simile con la legge 10 maggio
1976, n. 180, che, in modifica dell’art. 641 ultimo comma del c.p.c., aveva stabilito
che nel decreto ingiuntivo emanato sulla base di titoli già muniti di efficacia ese-
cutiva non vengono liquidate le spese e gli onorari, da liquidarsi soltanto nel caso
di rigetto della successiva, eventuale, opposizione.
Ma il guaio è che, con la sentenza n. 303 del 1986 la Corte costituzionale ha
fulminato la norma con una declaratoria di illegittimità costituzionale sulla base di
una motivazione di poche righe, dove troviamo scritto che l’illegittimità per viola-
zione degli art. 3 e 24 Cost “deriva da ciò che l’esecutorietà provvisoria del decreto
giustificata dall’essere il creditore munito di titolo esecutivo non cessa di essere
legittimata dall’accoglimento della domanda, di cui è normale complemento la
liquidazione delle spese e delle competenze in difetto della quale il diritto di agire
in giudizio, per antico insegnamento sarebbe in guisa monca garantito” (qui mi
sembra evidente l’accenno al vecchio, forse non antico monito di Chiovenda,
secondo cui l’attore che ha ragione dovrebbe ottenere agendo in giudizio “quello,
proprio quello e tutto quello” che avrebbe ottenuto grazie all’adempimento spon-
taneo del suo debitore).
Queste poche autorevoli parole non hanno suscitato la reazione che ci si
sarebbe dovuti aspettare.
Ma, se ci riflettiamo un poco sopra, dovremmo essere capaci di renderci
conto che siamo in presenza di un caso eminente di formalismo delle garanzie.
Tralascio il rilievo che in questo modo si propone un’interpretazione del
diritto di azione tale da racchiudere in sé il principio della soccombenza, cosa già di

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26 Sergio Chiarloni

per sé discutibile, visto che esistono ordinamenti a costituzione rigida attenta alle
garanzie processuali come quello nordamericano che non prevede la condanna
alle spese a favore della parte vittoriosa.32
Mi limito ad osservare che il diritto di azione in sede di cognizione non
merita protezione costituzionale quando si è già titolari del diritto di agire per
l’esecuzione forzata.
Questo per l’ovvia strumentalità del primo al secondo diritto dal punto di
vista delle utilità che interessano al creditore.
E non varrebbe obiettare che con l’azione di cognizione si otterrebbero risul-
tati come la definitività dell’accertamento derivante dal giudicato o la iscrivibilità
dell’ipoteca giudiziale, che non si ottengono agendo in executivis.
Si tratterebbe di obiezioni che denunciano la mentalità astratta che talvolta
affligge la nostra dottrina.
Del giudicato il creditore non si fa nulla se ottiene il bene della vita perse-
guito con l’esecuzione forzata. Altrimenti potrà perseguirlo di fronte a qualsiasi
successiva reazione processuale del debitore, ad esempio se sarà proposta oppo-
sizione all’esecuzione.
Quanto all’ipoteca giudiziale, mi par giusto che il creditore, che può proce-
dere al pignoramento immobiliare con il suo titolo, paghi le spese per il plus di
vantaggio che può riscuotere dall’ipoteca, la cui iscrizione non è di sicuro mani-
festazione del diritto di azione, ma un suo secondario effetto.

6.2  La sanzione di nullità irragionevolmente applicata alle


sentenze della terza via a causa di un’erronea applicazione
del principio del contraddittorio
Nelle elaborazioni più che ventennali della dottrina, recentemente fatte
proprie dal legislatore processuale troviamo un secondo caso di formalismo delle
garanzie e pertanto di irragionevolezza della disciplina che ne è scaturita. Alludo
al nuovo secondo comma dell’art. 101 c.p.c. introdotto dalla legge 69/2009, che
fulmina con la comminatoria della nullità le c.d. sentenze della terza via. Recita la
nuova norma che “se ritiene di porre a fondamento della decisione una questione
rilevata d’ufficio, il giudice riserva la decisione, assegnando alle parti, a pena di
nullità, un termine, non inferiore a venti e non superiore a quaranta giorni, per
il deposito in cancelleria di memorie contenenti osservazioni sulla medesima
questione”.

Anche se, proprio da ultimo, negli Stati Uniti si discute dell’opportunità di introdurre il principio
32

della soccombenza, già diventato operativo nel Texas in materia di responsabilità civile, con in
vista in modo particolare l’obbiettivo di deflazionare i casi di medical malpractice. Cfr al riguardo
Tort reform, in The Economist 10-16 dicembre 2011, p. 43.

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Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo 27

La norma ora introdotta ha dietro di sé una lunga storia, che farebbe esclamare
con soddisfazione Rodolfo Sacco che qui ci troviamo di fronte ad un esempio emi-
nente di una dottrina che diventa “fonte del diritto”.33
Fin dal 1968 un autorevole scrittore, Vittorio Denti,34 accompagnato negli anni
successivi da una schiera piuttosto nutrita, (tra gli altri da Ferri, che al problema ha
dedicato un’intera monografia, Tarzia, Comoglio, Lanfranchi, Cavallini, Luiso, Civinini,
Fabiani, Proto Pisani, e Consolo) sosteneva la tesi della nullità della sentenza ema-
nata dal giudice su questioni pregiudiziali attinenti al processo o questioni prelimi-
nari di merito rilevabili d’ufficio, non sottoposte alla discussione delle parti. Nullità,
può apparire a chiunque immediatamente intuitivo, per violazione del contradditto-
rio, fondamentale garanzia costituzionale del processo, anche se a quei tempi non
ancora espressamente codificata, come è avvenuto nel 1999 con la riforma del
giusto processo, ma affermata in maniera consolidata nella giurisprudenza della
Corte costituzionale in sede di interpretazione dell’art. 24.
Con qualche ritardo, mi pare a partire dal 2001, la giurisprudenza della cas-
sazione segue, sia pure con qualche modesta oscillazione.
Oltre vent’anni or sono ebbi ad occuparmi di questa tesi perché essa mi
sembrava a causa dell’assolutezza con cui veniva allora enunciata, un caso tipico
di formalismo delle garanzie. Certo, è innegabile l’esistenza di un preciso dovere
del giudice di sottoporre alla discussione tra le parti le questioni che intendesse
sol­levare d’ufficio. Sanzionabile in via disciplinare, secondo le indicazioni che
ci vengono dall’art. 124 del c.p.p., sicura espressione di un principio generale
dell’universo processuale, dove dice che “i magistrati sono tenuti ad osservare le
norme di questo codice anche quando l’inosservanza non importa nullità o altra
sanzione processuale” e “i dirigenti degli uffici vigilano sull’osservanza delle norme
anche ai fini della responsabilità disciplinare”
Ma non riuscivo proprio a vedere una violazione del principio del contraddittorio
nella emanazione di una sentenza della terza via, considerata in sé e per sé. La ques-
tione rilevata d’ufficio, dicevo allora, non è una questione dell’ufficio, appartenente
ad un misterioso patrimonio di sue conoscenze esoteriche. E’ una questione sempre
risolvibile in base a nozioni, giuridiche o fattuali, che appartengono ad un patrimonio
di conoscenze che sono comuni al giudice e alle parti, o meglio ai loro avvocati. Ne

33
Cfr. La dottrina fonte del diritto, in Studi in memoria di Tarello, II, Milano 1990, p. 449 ss; I principi
generali nei sistemi giuridici europei, in Atti del convegno sui principi generali del diritto organizzato
dall’Accademia nazionale dei Lincei, Roma, 1992, p.170. Qualche mia notazione critica in La dottri-
na fonte del diritto?, in Riv. Trim. Dir. Proc. Civ, 1993, p. 439 ss.
34
in Questioni rilevabili d’ufficio, diritto di difesa e “formalismo delle garanzie”, in Riv. Trim. Dir. Proc. Civ., 1987.

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28 Sergio Chiarloni

deriva che il non avere il giudice indicato la questione non costituisce la causa
del mancato contraddittorio su di essa, da ravvisare piuttosto in un’insufficiente
attenzione dei difensori, e in modo particolare del difensore della parte controin-
teressata rispetto alle conseguenze del suo rilievo. Non per nulla, quando i di-
fensori sanno fare il proprio mestiere, le questioni rilevabili d’ufficio, prima che
l’ufficio autonomamente le ravvisi, sono sollevate dalle parti, tanto che la dottrina
ha sentito il bisogno di disegnare un’apposita categoria concettuale per questa
attività, istituendo la species delle eccezioni in senso improprio o exceptiones facti.
Contrariamente a ciò che alla superficie può apparire, l’inosservanza del
dovere del giudice di stimolare il contraddittorio delle parti sulle questioni rilevabili
d’ufficio non mette in giuoco, di per sé,(e cioè salvo i casi, rari, ne sono convinto, in
cui il rilievo ufficioso ha impedito possibili concreti ulteriori sviluppi delle allega-
zioni di parte) il principio del contraddittorio e la correlativa nullità che sanziona
il suo mancato rispetto. Trattandosi del dovere di sollecitare la previa discussione
su questioni che appartengono al patrimonio del comune sapere di tutti i soggetti
del processo, il principio che viene in considerazione è un altro, la cui trasgres-
sione non comporta (e sarebbe irragionevole che comportasse) la nullità della
sentenza. Si tratta del principio di reciproca collaborazione del giudice con le parti
al fine di garantire la leale condotta del processo e la giustizia del provvedimento,
un principio che la dottrina ha da tempo individuato come una componente ispi-
ratrice importante delle moderne discipline processuali.
La correttezza di questa conclusione viene meglio in luce se prendiamo in
considerazione quale sia il reale significato della tesi favorevole in assoluto alla
nullità nell’ambito dei giudizi d’impugnazione.
Supponiamo che la sentenza sia palesemente ingiusta perché il giudice ha
sbagliato proprio nel risolvere la questione rilevabile d’ufficio: in casi del genere
è senz’altro possibile, e magari anche probabile, che il non avere aperto lo spa-
zio all’esercizio del diritto di difesa delle parti abbia contribuito in modo deter-
minante alla commissione dell’errore. Ma, evidentemente, ciò che qui balza in
primo piano è solo quest’errore, che si tratterà di riparare nel successivo grado
d’impugnazione. Anche dal punto di vista dell’interesse delle parti, la pretesa
violazione del contraddittorio rimane qui sullo sfondo, trascolora, anzi, si può
ben dirlo, perde completamente di rilevanza. La parte non si sognerà neppure
di eccepirla nei motivi di gravame, anche perché l’ordine logico delle questioni
imporrebbe di rilevarla per prima, magari con qualche spiacevole conseguenza
se ci troviamo in cassazione.
La verità è che il problema di un autonomo rilievo del vizio che sto anali-
zzando è suscettibile di porsi specialmente nelle ipotesi in cui il giudice non ha

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Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo 29

sottoposto alla previa discussione delle parti la questione rilevabile d’ufficio, e


tuttavia, nello stesso tempo, l’ha risolta correttamente.
Sul piano dell’appello, appare subito chiaro che la censura relativa alla
mancata attivazione del contraddittorio non può essere di alcuna utilità per il
soccombente, qualora costui non abbia motivo di lamentare la sostanziale ingius-
tizia della sentenza impugnata. L’appellante non potrà, invero, ottenere in tal
caso né la rimessione in primo grado, stante la tassatività delle ipotesi previste
dagli art. 353 e 354 c.p.c., né la rinnovazione di atti ai sensi del combinato disposto
degli art. 354, 4° comma, e 356.
Otterrà questa rinnovazione, particolarmente importante per quanto riguarda
la rimessione in termini per le istanze istruttorie, se e soltanto potrà lamentare che il
rilievo ufficioso senza previa stimolazione del contraddittorio ha impedito ulteriori
allegazioni bisognose di prova che sarebbero state capaci di indirizzare la sentenza
di primo grado verso un risultato per lui favorevole malgrado la correttezza della
soluzione d’ufficio (ho rivendicato la proprietà sulla base di un contratto che è nullo
e allora faccio valere l’usucapione). Sul piano della Cassazione le cose dovrebbero
andare a prima vista in maniera diversa, poiché è un paradosso dell’attuale disci-
plina del nostro giudizio di legittimità con scissione organica tra fase rescindente
e fase rescissoria la necessità di accogliere l’impugnazione in tutta una serie di casi
(quando non sia possibile la decisione sul merito ex art. 384, comma 2° c.p.c.) in
cui i medesimi motivi posti a base di essa non otterrebbero alcun risultato utile se
proposti davanti ad un giudice di un gravame sostitutivo quale l’appello.
Tuttavia, anche con riferimento alla cassazione è possibile intravedere qual-
che ragione per contestare una ricostruzione della disciplina per la quale il man-
cato contraddittorio preventivo sulle questioni rilevabili d’ufficio vizia di per sé, e
cioè senza che sia necessaria alcun’altra considerazione, il processo e la sentenza.
Occorre esercitare l’ars distinguendi. Così ci troveremo di fronte a quattro
alternative.
1. La sentenza impugnata in cassazione è giusta sotto qualsiasi immagi-
nabile profilo, e allora predicarne la nullità con necessario accoglimento
con rinvio del ricorso del soccombente che la faccia valere appare frutto
di un atteggiamento formalistico che finisce, come dice Hegel, di farsi
strumento del torto, perché verrebbero premiati gli intenti dilatori della
parte che nel torto si trova. A questo proposito basti pensare al caso in
cui il giudice d’appello dichiari correttamente d’ufficio, ma senza con-
traddittorio, il difetto di giurisdizione (pare a me come a molti errata la
recente giurisprudenza che ha avanzato un’interpretazione abrogante

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30 Sergio Chiarloni

dell’art. 37 c.p.c.). Avremo il paradosso di una corte di cassazione, supremo


organo regolatore della giurisdizione, investita della nullità ai sensi dell’art.
101, comma secondo e quindi obbligata ad accogliere con rinvio il ricorso
non avendo la corte alcun potere di sostituzione delle sentenze invalide.
2. La sentenza impugnata in cassazione è ingiusta per avere il giudice di
merito risolto erroneamente la questione rilevabile d’ufficio, e allora
esisterà comunque lo spazio per ottenere l’annullamento astraendo
dalla pretesa violazione del contraddittorio, diventata irrilevante e pro-
ponendo il mezzo di ricorso inteso a denunciare il vizio che c’è.
3. La sentenza impugnata in cassazione è ingiusta per l’errata risoluzione
della questione rilevata dall’ufficio, ma l’ingiustizia può risultare soltanto
a seguito di nuove allegazioni di parte, impedite dalla mancata previa
stimolazione del contraddittorio. Caso tipico, ricordato da Francesco
Luiso, quello del rilievo d’ufficio di nullità di una clausola abusiva, che si
sarebbe potuta superare dimostrando l’avvenuta trattativa individuale
ai sensi dell’art. 34, 4 comma del codice del consumo. Qui le conseguenze
saranno analoghe a quelle indicate subito sotto.
4. La sentenza impugnata in cassazione è ingiusta, malgrado la questione
rilevabile d’ufficio sia stata risolta correttamente. Sulla frequenza stati­
stica di un caso del genere, ribadisco che dovrebbe trattarsi di casi estre-
mamente rari. Rileviamo che, come nel caso precedente, può soltanto
riguardare la soluzione esatta di una questione preliminare di merito,
giammai la soluzione esatta di una questione pregiudiziale attinente al
processo. Si tratta dei casi in cui la questione rilevabile d’ufficio è sì stata
risolta correttamente, ma la sentenza è ugualmente ingiusta, perché,
non avendo il giudice stimolato il contraddittorio su di essa, ha impedito
alla parte quella modifica della domanda consentita che le avrebbe
comunque ottenuto un risultato favorevole. Assieme a quello prece-
dente, sarà questo il secondo caso in cui si avrà un autonomo rilievo
della mancata stimolazione del contraddittorio sulla questione rilevata
d’ufficio, qui correttamente risolta: e anche qui si dovrà concludere per
l’accoglimento del ricorso indirizzato all’annullamento della sentenza
impugnata, a patto però che articoli con precisione l’amputazione della
storia processuale causata dal rilievo solitario della questione. Ed in
questa restrittiva direzione si è orientata opportunamente orientato il
giudice di legittimità nelle sue più recenti pronunce.
Possiamo tirare le fila del discorso: la previsione di nullità della c.d. sentenza
della terza via ha bisogno di un’interpretazione correttiva che segue le linee

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Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo 31

interpretative seguite dalle più recenti sentenze della cassazione prima di questo
intervento del legislatore che, nel voler codificare un indirizzo giurisprudenziale,
lo ha inopportunamente irrigidito, senza fare alcun cenno delle distinzioni appena
ricordate. Affinché il vizio sia dichiarabile in sede di gravame non basta la so-
luzione solitaria di una questione ad opera del giudice. Occorre, come sempre,
l’interesse ad impugnare. Che nel nostro caso assume, peraltro, una connotazione
particolare quando il giudice abbia risolto correttamente la questione (oppure,
se ha sbagliato, quando l’ingiustizia possa risultare solo a seguito di ulteriori alle-
gazioni di parte, impedite dal rilievo officioso ex abrupto). La violazione del con-
traddittorio deve essere tale da non aver permesso alla parte, di far prendere alla
controversia, con allegazioni successive, una strada alternativa che le consenta
di pervenire ugualmente alla desiderata vittoria. Il nuovo testo dell’art. 360 bis
numero 2 c.p.c. può contribuire forse a questa soluzione, nella misura in cui esige
che il vizio della sentenza impugnata per ragioni di procedura determini una vio-
lazione dei principi regolatori del giusto processo.
Tuttavia, non sono sicuro che quest’interpretazione correttiva o quell’altra,
assai ingegnosa, recentemente escogitata da Claudio Consolo che individua una
curiosa forma di sanatoria ex post della nullità, saranno unanimemente condivise.
Si potrà sempre trovare qualche interprete e qualche giudice capaci di obiettare,
sulla base della collocazione sistematica della nuovo art. 101 comma 2º, che la
violazione del principio del contraddittorio, per avere il giudice di secondo grado
deciso questioni d’ufficio senza sottoporle alla discussione delle parti, deve sem-
pre essere punita dal giudice di legittimità, con assoluta indifferenza al fatto che la
violazione abbia o non abbia influito sulla giustizia della sentenza. Al di fuori della
sentenza della terza via, non solo in campo penale, dove sono legioni, ma anche
in campo civile la fantasia casistica dei ricorrenti che hanno trovato ascolto presso
la corte suprema ci mostra con dovizia esempi del genere.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

CHIARLONI, Sergio. Ragionevolezza costituzionale e garanzie del processo. Revista Brasileira


de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 11-31, out./dez. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 11-31, out./dez. 2012
Acesso à jurisdição e instrumento
processual adequado para concessão
de medicamentos pelo Sistema Único
de Saúde1

Magno Federici Gomes


Pós-Doutor em Direito Público e Educação pela Universidade Nova
de Lisboa, Portugal. Pós-Doutor em Direito Civil e Processual Civil,
Doutor em Direito e Mestre em Direito Processual pela Universidad
de Deusto, Espanha. Mestre em Educação pela PUC Minas.
Coordenador do curso de Direito da Faculdade Padre Arnaldo
Janssen. Professor do Mestrado Acadêmico em Direito do Centro
Universitário UNA. Professor Adjunto da PUC Minas. Advogado
e Sócio do Escritório Raffaele & Federici Advocacia Associada.
E-mail: <federici@pucminas.br>.

Resumo: O mandado de segurança é garantia da Constituição da República


de 1988 (CR/88) contra abuso de autoridade do Poder Público e a favor da
saúde, um direito indisponível, além de imprescindível. Assim, com a nega-
tiva de fornecimento de medicamentos por autoridades públicas percebe-se
o crescimento de mandados de segurança por esta, suposta, omissão admi-
nistrativa. Discute-se se os receituários, relatórios, laudos, prescrições feitas
por médicos que acompanham determinado paciente são meios de prova
hábeis para concessão de mandado de segurança. Este trabalho observa
as tendências do Poder Judiciário mineiro, em segunda instância, por meio
de decisões proferidas e questiona a adequação do mandado de segurança
como meio processual para concessão de medicamentos, por via judicial. A
necessidade de análise do meio probatório nas ações de saúde pública possui
grande relevância social, principalmente mediante a garantia constitucional
do mandado de segurança: uma porque a sociedade brasileira se embasa
nos princípios de proteção à saúde e à vida, outra porque se entende como
de extrema importância a instigação, a produção de conhecimento ou os
fundamentos acerca da aplicação dos citados princípios. O método utilizado
para realização deste artigo foi o teórico-documental, com análise empírica
de acórdãos disponibilizados no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
(TJMG), nos anos de 2005 a 2009. Concluiu-se que o mandado de seguran-
ça é meio adequado para fins de concessão de medicamento e tratamento.

Este estudo contou com a valiosa colaboração da advogada Anna Karoline Pacheco Teixeira, na pes-
1

quisa e interpretação das decisões empregadas para a consecução das conclusões ora apresentadas.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
34 Magno Federici Gomes

Entretanto, existe posicionamento, ainda minoritário, que descaracteriza os


prontuários médicos e receitas como prova líquida e certa, o que causa lesão
ao direito à saúde e dúvida quanto à impetração do mandado de segurança,
o que deve ser reparado pelo ajuizamento de ação ordinária com pedido
cominatório e requerimento de tutela antecipada, a fim de se evitar o ques-
tionamento sobre o direito líquido e certo em mandado de segurança.

Palavras-chave: Acesso à jurisdição. Mandado de segurança. Direito líquido


e certo. Saúde pública. Direito à saúde. Sistema Único de Saúde. Prova.

Sumário: 1 Introdução – 2 Evolução dos direitos fundamentais – 3 Direito


social à saúde – 4 Princípios aplicados à saúde pública e ao Sistema Único de
Saúde – 5 Da judicialização da saúde – 6 Mandado de segurança e o direito
líquido e certo – 7 Considerações finais – Referências

1 Introdução
O presente trabalho pretende demonstrar a caracterização do direito líquido
e certo nos mandados de segurança cuja pretensão do impetrante é a manuten-
ção de sua saúde mediante o recebimento de medicamentos ou tratamentos pres-
critos por um médico e que deveriam ser disponibilizados pelo Estado, por seus
três entes federados.
Quando o paciente é portador de determinada enfermidade e tem negada
a disponibilização do medicamento prescrito pelo médico por um ou todos os
entes federados, é comum que pleiteie judicialmente aquilo que foi obstado admi-
nistrativamente, pela autoridade pública. É justamente a negativa que impulsiona
as ações judiciais acerca do direito à saúde, que legitimam a aplicação imediata
do art. 196 da Constituição da República de 1988 (CR/88) e que implica a dis-
cussão do que seria meio probatório para fins de caracterizar a necessidade do
medicamento e a negativa da autoridade coatora em distribuí-lo.
O Direito à saúde, nesse sentido, é garantido pelo Estado, conforme art. 196
da CR/88, sendo: “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, prote-
ção e recuperação”.2
A decisão de acionar o Poder Judiciário será estudada mediante a análise do
instrumento processual adequado para conduzir o processo, tendo em vista a lide

BRASIL, 1988, art. 196.


2

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Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 35

formada entre o Estado e o paciente, sendo o primeiro aquele que nega a pretensão
sanitária e o segundo aquele que necessita do medicamento ou tratamento.
Dessa maneira, buscar-se-á compreender o mandado de segurança como
instituto do Estado Democrático de Direito, legítimo para a garantia dos direitos
fundamentais e fortalecedor de uma ampla proteção de tais pretensões. O Estado
Democrático de Direito, portanto, zela pela garantia dos direitos e deveres esta-
belecidos na CR/88, legitima os direitos fundamentais como básicos e necessários
para a manutenção e funcionamento do próprio Estado e tem como fundamento
o regime democrático, que respeita aos anseios sociais.
O estudo abarcará o mandado de segurança como meio de fornecer segu-
rança jurídica para relações entre particulares e Administração Pública. O instituto
será descrito a partir do ponto de vista dos direitos fundamentais, mais especifi-
camente do direito à saúde.
Assim, o direito à saúde, como direito fundamental, dentro de um Estado
Democrático de Direito, também será objeto deste trabalho. Para Silva (2006):

É espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida huma-


na só agora é elevado à condição de direito fundamental do homem. E
há de informar-se pelo princípio de direito igual a vida de todos os seres
humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem o
direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciên-
cia médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de
não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais.3

Será analisada, ainda, a adequação entre o tipo de ação proposta contra o


Poder Judiciário e a necessidade do autor. Tal análise é de extrema importância
uma vez ser fator que poderá prejudicar a relação e desenvoltura do processo,
sendo capaz de obstar o direito material pleiteado ou tornar menos célere o seu
reconhecimento, em flagrante efetivação do princípio constitucional do amplo e
irrestrito acesso à jurisdição.
Nas ações relativas à saúde pública, a falta de adequação procedimental
pode acarretar um agravante à saúde do paciente ou possível resultado de morte,
na medida do atraso do recebimento da tutela sanitária almejada.
A caracterização do “direito líquido e certo” em prescrições, prontuários e
laudos médicos causam longas discussões judiciais que prejudicam o indivíduo,
que necessita da tutela jurisdicional pleiteada por motivo de manutenção de sua
saúde. Dessa forma, questionaram-se os meios de prova do mandado de segurança
para eficácia da referida garantia constitucional, em prol da segurança jurídica.

SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 308.


3

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36 Magno Federici Gomes

Assim, a ameaça de lesão ou a efetiva lesão, especificada na contextualização


do mandado de segurança, para efetivação do direito constitucional à saúde, acaba
sendo questionada a todo o momento, dentro das demandas apresentadas ao Poder
Judiciário.
São diversos os entendimentos que analisam a questão. Os Tribunais bra-
sileiros frequentemente debatem o tema e colocam em dúvida a eficácia das
prescrições médicas ou documentos médicos como meios de prova do direito
líquido e certo. Muitos desses posicionamentos não analisam a saúde do ponto
de vista de sua indispensabilidade, tornando a discussão sumamente formalista
e nada humanitária. No ordenamento jurídico brasileiro, especificamente na Lei
nº 8.080/90, a saúde caracteriza-se como “um direito fundamental do ser humano,
devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.4 O
legislador acrescenta:

A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros,


a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o tra-
balho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e
serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organi-
zação social e econômica do País.5

O método utilizado para realização deste artigo foi o teórico-documental e


jurídico propositivo, com análise empírica de acórdãos disponibilizados no site do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), nos anos de 2005 a 2009.
Assim, foram pesquisados e analisados quantitativamente os acórdãos que
tinham como objeto os mandados de segurança com discussão sobre o direito
líquido e certo acerca da concessão de medicamentos via Sistema Único de Saúde
(SUS). Tais decisões estavam disponíveis no sítio eletrônico do TJMG6 e tratava-se
de pedidos de medicamentos, via garantia constitucional do writ. Para efeito de
investigação no site, as seguintes palavras foram consultadas na pesquisa livre:
saúde, mandado de segurança, medicamento. Durante a elaboração do trabalho
foram analisadas e estudadas todas as referências indicadas.
O marco teórico da presente investigação foi o livro Mandado de segurança,
do digno teórico Meirelles (2007), cujo teor da obra é referência para estudar o
instituto do mandado de segurança justamente por sua análise crítica, explana-
ção dos posicionamentos, jurisprudência e de correntes teóricas.

4
BRASIL, 1990, art. 2º.
5
BRASIL, 1990, art. 3º.
6
Disponível em: <www.tjmg.jus.br>.

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Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 37

O presente trabalho abordará a evolução dos direitos fundamentais a partir


da análise dos Estados Social e Liberal, bem como a postura do cidadão perante os
direitos fundamentais. Após, estudará o direito social à saúde e sua evolução no
Brasil, destacando a visão do legislador perante o direito à saúde, desde a primeira
Constituição brasileira. Com isso, analisará os princípios aplicados à saúde pública
e ao SUS, bem como sua interpretação diante da necessidade de garantir o direito
fundamental à saúde. Depois, tratará da judicialização da saúde, isto é, o número
crescente de ações judiciais para garantia da tutela sanitária. Por fim, estudará o
instituto do mandado de segurança conforme a CR/88 e a Lei nº 12.016/09, bem
como analisará a proteção dos direitos fundamentais, especificamente à saúde,
diante da necessidade do cidadão em garantir àquele direito. Sem a pretensão de
esgotar o assunto, portanto, será analisada a viabilidade da prova pré-constituída
em mandados de segurança individuais, para fins de concessão de medicamen-
tos e tratamentos por meio do SUS.

2  Evolução dos direitos fundamentais


Para a compreensão do direito à saúde como direito social é preciso com-
preender a evolução das dimensões de direitos fundamentais, sendo estas contri-
buições para amadurecimento do conceito e importância destes direitos.

2.1  Evolução das dimensões dos direitos fundamentais


A sociedade, ao longo de sua evolução, se conscientiza das necessidades de
proteção e garantia de determinados direitos sem os quais seria impossível viver
ou conviver. Nesse sentido, o sistema jurídico incorporou estes anseios ao direito
positivo, criando e legitimando a indisponibilidade dos direitos fundamentais.
No contexto histórico, a primeira dimensão de direitos fundamentais zela
os direitos de liberdade. Na estreita do século XIX, a posição liberal é berço desta
dimensão que garante a individualidade, o direito à vida, liberdade, proteção da
propriedade com proteção legal.

Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular


o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou
atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais
característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante
o Estado e caracterizam-se por serem oponíveis ao Estado. Seus titulares
são os indivíduos.7

BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 475.


7

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38 Magno Federici Gomes

Por sua vez, a segunda dimensão de direito pauta-se nos direitos de igualdade
e é caracterizada pelo Estado Social.
Na concepção do Estado Social, os liberais protegeriam a propriedade privada
para continuarem no poder. Com grande repúdio aos direitos de liberdade, os cida-
dãos no Estado Social tinham como fundamento o Estado patriarca, coletivo e garan-
tidor da igualdade. O individualismo do Estado Liberal seria trocado pelo coletivismo
oferecido pelo Estado Social.
Não obstante, para grande parte da população burguesa, o Estado Social
foi fundamento para regimes ditatoriais, um Estado garantidor, puro e simples,
sacrificaria as liberdades individuais em prol de uma coletividade.
Araújo Sá (2002) acrescenta:

Os direitos de segunda geração, vale dizer, os direitos sociais, culturais e


econômicos, caracterizam-se por exigirem prestações positivas do Estado.
Não se trata mais, como nos direitos de primeira geração, de impedir a
intervenção do Estado em desfavor das liberdades individuais. Os direitos
de segunda geração conferem ao indivíduo o direito de exigir do Estado
prestações sociais nos campos da saúde, alimentação, educação, habita-
ção, trabalho.8

A desigualdade social herdada do Estado Liberal, oriunda do descaso aos


cidadãos das camadas mais pobres da sociedade, era a principal barreira a ser
vencida no Estado Social. Para isto, seria necessário incorporar políticas públicas,
possibilitar um controle Estatal no mercado e estatizar empresas. O Estado Social
representou uma transformação ao modelo de Estado Liberal e mudou a concep-
ção de cidadania. O primeiro oferecia maiores direitos aos trabalhadores, preocu-
pou-se com a condição do proletariado e sua família, também se preocupava com
os cidadãos em geral, enquanto que o segundo oferecia proteção à burguesia.
Nesse contexto, os direitos fundamentais sociais surgiram como prestações
Estatais aos cidadãos que estavam, com a crise do Estado Liberal, em situações
críticas quanto à saúde, trabalho, alimentação, moradia etc. De maneira que:

podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fun-
damentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo
Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais,
que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que
tentem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto,
direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos

ARAÚJO SÁ. Ação Civil Pública e controle de constitucionalidade, p. 11.


8

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Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 39

do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições


materiais mais propícias ao aferimento da igualdade real, o que, por sua
vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da
liberdade.9

São direitos sociais, portanto, as prestações positivas do Estado que visam


a diminuir a desigualdade entre os cidadãos. Não obstante, o cidadão no Estado
Social exerce seu direito ao voto, protegido pela ampliação desse sistema. Assim,
com a extensão do sufrágio, o cidadão assimilou estes instrumentos demo­
cráticos, como a prática dos seus direitos trabalhistas, o que colaborou com a
dimen­são do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, as políticas públicas
voltadas a toda sociedade possibilitaram que o cidadão exercesse sua cidadania
reconhecendo-se como sujeito ativo em prol da sociedade. Portanto, “a dimen-
são objetiva dos direitos fundamentais liga-se ao reconhecimento de tais direitos,
além de imporem certas prestações aos poderes estatais, consagram também os
valores mais importantes em uma comunidade política [...]”.10
O cidadão mais consciente de seus direitos e deveres começa, no Estado
Social, a requerer tudo aquilo que o Estado se dispôs a lhe garantir. Assim, o su-
jeito de direitos e deveres reconhece que pode modificar a sociedade mediante
suas posturas positivas e fortalece seu reconhecimento enquanto cidadão e exerce,
ativamente, sua cidadania.

O fato mesmo de que a lista desses direitos esteja em contínua amplia-


ção não só demonstra que o ponto de partida do hipotético estado de
natureza perdeu toda plausibilidade, mas nos deveria tornar consciente
de que o mundo das relações sociais de onde essas exigências derivam
é muito mais complexo, e de que, para a vida e para a sobrevivência dos
homens, nessa nova sociedade, não bastam os chamados direitos funda-
mentais, como direito à vida, à liberdade e à propriedade.11

Com o Estado Social, o sujeito ativo, participativo e intelectual passou a ter


espaço não só na sociedade, mas nas políticas estruturadoras do Estado. O cida-
dão, portanto, neste modelo de Estado não só exerce seus direitos e reconhece
seus deveres, mas começa ter postura enquanto sujeito ativo em prol de uma
sociedade, não de sua individualidade.

9
SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 286-287.
10
SARMENTO. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: SAMPAIO.
Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, p. 253.
11
BOBBIO. A era dos direitos, p. 75.

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40 Magno Federici Gomes

Cabe ressaltar, segundo Comparato (2001), que a Constituição Mexicana de


1917 bem como a Constituição de Weimar (Alemã) representaram um marco ao ins-
tituírem os direitos sociais em seus países, introduzindo no Sistema Jurídico desses
países, até então, a segunda dimensão de direitos fundamentais do homem. Nesse
sentido:

Entre a Constituição mexicana e a Weimarer Verfassung, eclode a Revo-


lução Russa, um conhecimento decisivo na evolução da humanidade
do século XX. O III Congresso Pan-Russo dos Sovietes, de Deputados
Operários, Soldados e Camponeses, reunidos em Moscou, adotou, em 4
de janeiro de 1918, portanto antes do término da 1ª Guerra Mundial, a
Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado. Nesse docu-
mento são afirmadas e levadas às suas conseqüências, agora com apoio
da doutrina marxista, várias medidas constantes da Constituição mexi-
cana, tanto no campo sócio-econômico quanto no político [...]. Mas aí,
como se vê, já se está fora do quadro dos direitos humanos, fundados no
princípio da igualdade essencial entre todos, de qualquer grupo ou classe
social. Desde o seu ensaio juvenil sobre a Questão Judiciária, publicado
em 1843, Marx criticou a concepção francesa de Direitos dos Homens,
separados dos direitos do cidadão, como consagradora da grande sepa-
ração burguesa entre sociedade política e sociedade civil, dicotomia essa
fundada na propriedade privada.
Os direitos do homem não passariam de barreiras ou marcos divisórios
entre os indivíduos, em tudo e por tudo semelhante aos limites da pro-
priedade territorial. E os direitos do cidadão, sobretudo numa época de
sufrágio censitário, nada mais seriam do que autênticos privilégios dos
burgueses, em exclusão da classe operária. Na sociedade comunista, cujas
linhas-mestras foram esboçadas no Manifesto do Partido Comunista, cinco
anos mais tarde, só os trabalhadores têm direitos e só eles constituem o
povo, titular da soberania política. Sem dúvida, na Constituição Mexicana
de 1917 não se fazem as exclusões sociais próprias do marxismo: o povo
mexicano não é reduzido unicamente à classe trabalhadora [...].12

A terceira dimensão de direitos concentra a evolução das duas primeiras


gerações e, na visão de Bonavides,13 legitima os direitos de solidariedade. Reitera
Araújo Sá (2002):

Na pauta doutrinariamente mais indicada de direitos fundamentais de


terceira geração estão os direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio
ambiente e qualidade de vida, à comunicação, ao patrimônio comum da

COMPARATO. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 186-189.


12

BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 481.


13

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Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 41

humanidade. Refletem, à evidência, novas exigências humanas e em uma


sociedade marcada pelos impactos dos avanços tecnológicos, pelo esgo-
tamento dos recursos naturais, por cicatrizes de graves conflitos bélicos e
extremas desigualdades econômicas no plano internacional.14

Por fim, resta, nesse ponto de vista, a quarta dimensão de direitos funda-
mentais, os chamados direitos pluralistas que englobariam a democracia, a infor-
mação e a comunicação. Os direitos da quarta dimensão correspondem àqueles
que envolvem a participação social em todos os seus aspectos, seja elegendo
seus representantes, participando de grupos sociais, morando e contribuindo
com sua cidade.

2.2  O Estado Democrático de Direito


A evolução das dimensões de direitos possibilitou a titularidades de direitos
classificados como fundamentais, o aumento da participação popular, a imple-
mentação de mecanismos de garantias de direitos e deveres, bem como a res-
ponsabilidade Estatal da preservação e manutenção dessas pretensões, agora
fundamentais.
Nesse aspecto, o Estado Democrático de Direito incorpora a proteção dos
direitos individuais, coletivos e difusos, bem como zela pela ordem contínua da
democracia e liberdade, pauta-se, ainda, pela prevalência constitucional.
O Estado Democrático de Direito visa a garantir os direitos fundamentais da
pessoa humana, segundo Silva.15 Pontualmente, a relevância da interpretação
da norma legal no Estado Democrático de Direito não se pauta, somente, pela
interpretação literal, visto que as esferas sociais, políticas e econômicas estão
constantemente sujeitas às transformações e afetam diretamente a proteção aos
direitos fundamentais.
Nos casos relativos ao direito à saúde, como o exemplo que será analisado
posteriormente neste trabalho, é comum o argumento Estatal de que o orçamento
previsto para gastos públicos não preveem as decisões judiciais. Portanto, o argu-
mento econômico é justificado, para os três entes federados, como forma de não
atenção ao direito fundamental social da saúde. O que de fato ocorre e transforma
a interpretação legislativa, desconsiderando, errônea e equivocadamente, a indis-
ponibilidade do direito.

ARAÚJO SÁ. Ação Civil Pública e controle de constitucionalidade, p. 12.


14

SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 117.


15

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42 Magno Federici Gomes

É precisamente no Estado Democrático de Direito que se ressalta a relevância


da lei, pois ele não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o que
imperou no Estado de Direito clássico. Pois ele tem que estar em condições
de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma
alteração na situação da comunidade. Significa dizer: a lei não deve ficar
numa esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de arbitragem,
pois precisa influir na realidade social. E se a Constituição se abre para as
transformações políticas, econômicas e sociais que a sociedade brasileira
requer, a lei se elevará de importância, na medida em que, sendo funda-
mental expressão do direito positivo, caracteriza-se como desdobramento
necessário do conteúdo da Constituição e aí exerce função transformadora
da sociedade, impondo mudanças sociais democráticas, ainda que possa
continuar a desempenhar uma função conservadora, garantindo a sobre-
vivência de valores socialmente aceitos.16

O Estado deve sempre garantir ao cidadão condições dignas, principal-


mente aquelas estabelecidas em lei, independente de interpretação puramente
normativa.

2.3  Garantia aos direitos fundamentais


Os direitos fundamentais são aqueles imprescindíveis à condição do homem,
inerentes ao Estado Democrático de Direito, que não se podem dispor e que precei-
tuam um anseio social a ser resguardado. Diante disso, a importância dos direitos
fundamentais é que preocupou o legislador para que os protegesse permanente-
mente mediante garantias constitucionais, isto é, instrumentos que possibilitam a
não violação e a realização dos direitos fundamentais.
A CR/88 adotou uma série de procedimentos específicos à tutela de direitos
fundamentais no âmbito judicial. Tais procedimentos, pela celeridade de proces-
samento, inerentes à importância especial do bem tutelado, tornaram-se popu-
lares. Assim:

A Constituição de 1988 é basicamente em muitas de suas dimensões


essen­ciais uma Constituição do Estado Social. Portanto, os problemas
constitucionais referentes a relação de poderes e exercício de direitos sub-
jetivos têm que ser examinados e resolvidos à luz dos conceitos derivados
daquela modalidade de ordenamento. Uma coisa é a Constituição do Es-
tado liberal, outra a Constituição do Estado Social. A primeira é uma Cons-
tituição antigoverno e anti-Estado; a segunda uma Constituição de valores
refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no Poder. Nem

SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 121-122.


16

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Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 43

todos os países que têm procurado realizar o Estado social e sobretudo


concretizar os direitos sociais básicos, o fizeram por meio do poder cons-
tituinte, em ordem a estabelecer na Lei Magna os fundamentos desse
Estado e nela formular a Carta social dos direitos que o caracterizam.17

O legislador constituinte observou que a relevância social do direito funda-


mental não poderia ser esquivada e na CR/88 estabeleceu as garantias aos direi-
tos fundamentais, o que possibilitou o sentimento de segurança jurídica. Assim,
transmite-se a compreensão de que se o direito considerado fundamental for
posteriormente afetado, poderá aquele que sofreu tal afetação procurar procedi-
mentos adequados à manutenção e à garantia do direito.
Conforme Canotilho (1993):

Rigorosamente, as clássicas garantias são também direitos, embora muitas


vezes se salientasse nelas o caráter instrumental de protecção dos direitos.
As garantias traduziam-se quer no direito dos cidadãos a exigir dos poderes
públicos a protecção dos seus direitos, quer no reconhecimento de meios
processuais adequados a essa finalidade (ex.: direito de acesso aos tribu-
nais para defesa dos direitos, princípio do nullum crimen sine lege e nulla
poena sine crimien, direito de hábeas corpus, princípio non bis in idem).18

As garantias postuladas na CR/88 como direitos fundamentais são denomi-


nadas como remédios constitucionais. O mandado de segurança, tanto individual
quanto coletivo; a ação popular; a ação civil pública; o mandado de injunção; o
habeas data são procedimentos constitucionalmente estabelecidos pela CR/88 à
direta proteção dos direitos fundamentais e dos preceitos constitucionais.

3  Direito social à saúde


A saúde é classificada na CR/88 como um direito fundamental social, ou
seja, um direito coletivo, cuja tutela desse direito compete ao Estado.

Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direi-
tos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas
pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitu-
cionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, di-
reitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais.
São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como
pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam

BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 371.


17

CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 520.


18

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44 Magno Federici Gomes

condições materiais mais propícias ao aferimento da igualdade real, o


que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício
efetivo da liberdade.19

Não foi por simples elenco que o legislador constituinte optou por dispor,
na CR/88, o direito à saúde como um direito social, mas por adequação ao que
seria um direito social. O referido direito é uma condição para dignidade da pes-
soa humana, compreendendo, assim, a prestação do serviço que corresponda à
promoção da saúde que deverá atender à coletividade, mesmo que existam casos
específicos neste meio.
Repise-se que a tutela do direito à saúde é dever estatal, bem como as con-
dições de manutenção deste direito, pois que inerentes ao direito à vida. Nesse
sentido, o art. 6º da CR/88 dispõe: “são direitos sociais a educação, a saúde, o tra-
balho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à materni-
dade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.20
Além de um direito social, o direito à saúde é um direito essencialmente de
interesse público subjetivo.

Ao lume do conceito de interesse público apontado como o correto, será


evidentemente descabido contestar que os indivíduos têm direito sub-
jetivo à defesa de interesses consagrados em normas expedidas para a
instauração de interesses propriamente públicos naqueles casos em que
seu descumprimento pelo Estado acarreta ônus ou gravames suportados
individualmente por cada qual. O mesmo dir-se-á em relação às corres-
pondentes hipóteses em que o descumprimento pelo Estado (frequente-
mente por omissão) de norma de Direito Público desta mesma tipologia
não acarreta ônus, mas priva da obtenção de vantagens, de proveitos,
que o irresignado pessoalmente, em sua individualidade, desfrutaria se a
norma de Direito Público fosse cumprida.
A assertiva se sustenta, igualmente, nos casos em que tal desfrute (ou,
inver­samente gravame), ao atingi-los individualmente, atingiria, tam-
bém, conatural e conjuntamente, uma generalidade de indivíduos ou
uma cate­goria deles, por se tratar de efeitos jurídicos que pela própria
natureza ou índole do ato em causa se esparziriam inexoravelmente
sobre uma coletividade de pessoas, de tal sorte que não haveria como
incidir apenas singularmente. E isto até mesmo porque tais interesses
só são públicos, e mereceram ser entisicados como tal, precisamente por
responderem às conveniências da multiplicidade de indivíduos destarte
neles abrangidos.21

19
SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 286-287.
20
BRASIL, 1988, art. 6º.
21
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 52.

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O direito à saúde, assim, é indisponível. O cidadão não pode dispor da saúde


uma vez que será o mesmo que dispor de sua vida, portanto o direito subjetivo à
saúde é de extrema importância ao direito e deve ser zelado pelo Estado.
No que toca à evolução de tal direito social no Brasil, o termo “saúde pública”
tem origem do vínculo: saúde e Poder Público. De maneira que a saúde pública é
subordinada à regulamentação e fiscalização por parte de órgãos federais, mu-
nicipais e estaduais. Historicamente, as Constituições brasileiras de 1824 e 1891
“não estabeleceram alicerces para a adoção pontual de políticas sanitárias devi-
damente relacionadas ao Estado”.22
A Constituição de 1824 indicou que nenhuma lei seria estabelecida sem uti-
lidade pública.23 A Constituição de 1891 estabeleceu os três poderes (Legislativo,
Executivo e Judiciário), mas não direcionou nenhuma norma específica ao direito
à saúde.
Em 1934, a Constituição Vargas, assim conhecida, adotou competência
concorrente entre União e Estados a cuidar da saúde e assistências públicas.24 Tal
Constituição, ainda, ficou conhecida como paternalista por estipular direitos tra-
balhistas e ampliar os direitos sociais.
A Constituição brasileira de 1946 compeliu a União competência de legislar
sobre a defesa e proteção da saúde, bem como a Constituição, do regime militar,
de 1967.
Com a promulgação da CR/88, a saúde passou a ser um direito de todos
e dever do Estado. Assim, o legislador constituinte criou uma responsabilidade
Estatal completamente vinculada à CR/88, em conformidade com seu art. 196: “a
saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação”.25
Pela primeira vez, o direito posto vinculava um dever puramente Estatal, que
deveria ser garantido pelos três entes federados (União, Estados e Municípios) em
um sistema de mútua cooperação, bem como de comum dever. Assim, o art. 23 da
CR/88 dispõe: “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios [...] II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garan-
tia das pessoas portadoras deficiência”.26

22
RAEFFRAY. Direito da saúde: de acordo com a Constituição Federal, p. 155.
23
BRASIL, 1824, art. 179.
24
BRASIL, 1934, art. 10.
25
BRASIL, 1988, art. 196.
26
BRASIL, 1988, art. 23, inciso II.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
46 Magno Federici Gomes

GRÁFICO 1 - Evolução da quantidade de acórdãos por ano cujo polo passivo da demanda são os
municípios, com as palavras-chave “mandado de segurança, saúde, medicamento,
município”.
Fonte: Sítio eletrônico do TJMG. Acesso em: 1º abr. 2009

No primeiro momento, ao promulgar a CR/88, a saúde foi vista como um


conjunto de medidas, ainda em potencial, destinado à promoção da saúde, sendo
que tais medidas deveriam ser suportadas pelo Estado.
Não obstante tal percepção, a norma do art. 196 da CR/88 era, ainda, de
eficácia limitada, pois não estipulava quais seriam os critérios para a promoção
da saúde, nem como seria organizada a divisão de competências, de maneira
infracons­titucional e regulamentadora, entre os entes da federação.27
Nesse sentido, para regulamentar o que seria o conjunto de medidas políti-
co-sociais e econômicas para a promoção da saúde, em 1990, foi sancionada a Lei
nº 8.080/90, que criou o SUS para organizar e estabelecer parâmetros para cada
ente federado com objetivo de disponibilização da tutela sanitária.
Assim, o SUS foi conhecido como um conjunto de serviços prestado pela
Administração Pública, ou seja, um “conjunto de ações e serviços de saúde, prestados

Em sentido equivalente: “Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das
27

desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da


Federação e da República, não pode relegar a saúde pública a um plano diverso daquele que o
coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais” [BRASIL. Superior Tribunal
de Justiça. Primeira Turma. Recurso Especial nº 575.998/MG (2003/0132074-8). Rel. Min. Luiz Fux.
Brasília, 07 out. 2004. DJ-eletrônico, Brasília, 16 nov. 2004].

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por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração


direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público”.28
O sistema de saúde, como serviço público, antes da CR/88, era somente
garantido à parcela de trabalhadores vinculados à previdência social, através do
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), passou,
então, a ser extensivo a toda a população do país e devendo, ainda, ser prestado
pelo órgão público de maneira gratuita. Então, “serviços indelegáveis são aqueles
que, por sua natureza ou pelo fato de assim dispor o ordenamento jurídico, com-
portam ser executados pelo Estado ou por particulares colaboradores”.29

GRÁFICO 2 - Evolução da quantidade de acórdãos por ano cujo polo passivo da demanda são os
municípios, com as palavras-chave “mandado de segurança, saúde, medicamento,
estado”.
Fonte: Sítio eletrônico do TJMG. Acesso em: 1º abr. 2009

Assim, a natureza da prestação de serviço que promova a saúde passou, tam-


bém, a ser de natureza pública indelegável, como define Carvalho Filho (2007), ou
própria, como define Meirelles (2007), pois são serviços que devem ser executados
pelo Estado.

BRASIL, 1990, art. 4º.


28

CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 273.


29

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
48 Magno Federici Gomes

4  Princípios aplicados à saúde pública e ao Sistema Único de Saúde


Princípios são normas jurídicas de conhecimentos abstratos e implícitos que
orientam o ordenamento jurídico posto. Para Canotilho (1993) “os princípios são
normas jurídicas impositiva de uma optimização, compatíveis com os vários graus
de caracterização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos”.30

4.1  Princípio da dignidade da pessoa humana


Por ser a pessoa humana fiel destinatária aos preceitos constitucionais e ao
direito, o princípio da dignidade da pessoa humana concebe a ideia de que ne-
nhum bem é maior do que a dignidade. A pessoa humana deve ser sempre pro-
tegida e garantida com tudo aquilo disposto nos preceitos constitucionais e
infraconstitucionais. Portanto, parte do pressuposto da não violação de direitos
e do devido zelo aos direitos fundamentais. Para Silva (2006) “é um valor supremo
que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o
direito à vida”.31

4.2  Princípio da legalidade


O princípio da legalidade conduz a ideia de que todas as decisões devem
ser pautadas naquilo que a lei convém como dever ser. Toda e qualquer “garantia”
a determinado direito está pautada na legalidade dos atos. Assim, o direito sani-
tário, não diferente, é pautado em dispositivos legais constitucionais e infracons-
titucionais que regulam a possibilidade de receber determinada tutela sanitária.
O princípio da legalidade “implica subordinação completa do administra-
dor à lei. Todos os entes públicos, desde o que lhe ocupe a cúspide até o mais
modesto deles, devem ser instrumentos de fiel e dócil realização das finalidades
normativas”.32

4.3  Princípio da eficiência


O princípio da eficiência parte do pressuposto de que o serviço e os atos
prestados pela Administração Pública deverão ser eficientes no que tange à pro-
dução de resultados, economicidade para não surtir efeitos negativos ao orça-
mento público e devida prestação do que for requerido.

30
CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 167.
31
SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 105.
32
MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 83.

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Vale a pena observar, entretanto, que o princípio da eficiência não alcança


apenas os serviços públicos prestados diretamente à coletividade. Ao con-
trário, deve ser observado também em relação aos serviços administrativos
internos das pessoas federativas e das pessoas a elas vinculadas. Significa
que a Administração deve recorrer à moderna tecnologia e aos métodos hoje
adotados para obter a qualidade total da execução das atividades a seu cargo,
criando, inclusive, novo organograma em que se destaquem as funções
gerenciais e a competência dos agentes que devem exercê-las.33

Como destacado no pensamento de Carvalho Filho (2007), a Administração


Pública, ainda, deverá recorrer a todos os tipos de tecnologia para concretizar
aquilo que for sua obrigação.
Na saúde pública, observa-se posicionamento inverso, o avanço tecnológico
na indústria farmacêutica, a título de exemplo, acaba sendo motivo para que o
Estado não cumpra com a obrigação de disponibilizar os medicamentos neces-
sários a determinadas enfermidades, justamente por não conseguir acompanhar
as novas tecnologias. A celeridade dos avanços tecnológicos entra em conflito
com a morosidade do gerenciamento da Administração Pública, muitas vezes ao
argumento que a tecnologia ainda não foi totalmente difundida ou os custos para
implementá-la são muito maiores que as tecnologias usuais.

4.4  Princípios da universalidade e da integralidade


Os princípios da universalidade e da integralidade estão diretamente ligados
ao SUS e devem ser bem compreendidos para melhor entendimento das deman-
das sanitárias no âmbito judicial.
A CR/88 compreende a saúde em seu aspecto universal, “saúde é direito
de todos”.34 O princípio da universalidade parte do pressuposto que o acesso
ao direito à saúde é universal a todos aqueles que dependem da prestação de
serviço público para garantia e manutenção de sua saúde. Nesse contexto, o
Estado passou a garantir ao cidadão acesso a todos os serviços sanitários com o
objetivo de promover sua saúde.
O princípio da integralidade, por sua vez, é entendido “como conjunto arti-
culado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e cole-
tivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”.35
Em outras palavras, o princípio da integralidade é o conjunto de medidas capaz

33
CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 23, grifos nossos.
34
BRASIL, 1988, art. 196.
35
BRASIL, 1990, art. 7º, inciso II.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
50 Magno Federici Gomes

de oferecer tratamentos ou considerar a situação individual ou coletiva de


indivíduos, levando-se sempre em consideração os mecanismos de promoção
da saúde, oferecidos pelo SUS ou, ainda, os que poderão vir a ser oferecidos com
o avanço tecnológico dos tratamentos sanitários.

4.5  Princípio da descentralização político-administrativa, princípio


da hierarquização e princípio da regionalização
O princípio da descentralização político-administrativa é aquele em que
atribui a cada ente federativo uma determinada relevância no SUS.
Em lado não tão diferente, está o princípio da hierarquização que aloca os
entes federados de acordo com a complexidade dos níveis de atenção à saúde,
estipulados pela Lei nº 8.080/90.
Pelo princípio da regionalização, por sua vez, regionaliza-se o SUS para que
cada cidadão tenha acesso ao sistema na localidade mais próxima a sua estadia
ou residência, limitando áreas de abrangências aos serviços sanitários de acordo,
também, com a complexidade dos níveis de atenção à saúde.

4.6  Princípio da igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos


ou privilégios de qualquer espécie e princípio da equidade
O SUS, justamente pelo caráter universal, não pode excluir ou esquivar-se
de nenhum cidadão, seja por qualquer motivo. O princípio da igualdade é preceito
básico do sistema jurídico constitucional.
Posiciona-se Silva (2006), dizendo que “é que a igualdade constitui o signo
fundamental da democracia. Não admite os privilégios e distinções que um regime
simplesmente liberal consagra”.36
O princípio da equidade é muito próximo ao princípio da igualdade, uma vez
que transmite a ideia de que os cidadãos deverão ter a mesma oportunidade de
receber tratamento adequado a promoção de sua saúde. Segundo Duarte (2000):

Para haver, de fato, oportunidades iguais para todos os membros da


socie­dade, a equidade precisa ser observada também no “ponto de partida”:
apenas pessoas submetidas às mesmas condições de vida podem vir a
ser consideradas “em igualdade” para competir com base em habilidade
e méritos individuais. Esta é, sem dúvida, uma concepção mais completa
e complexa, que possibilita a inclusão de aspectos estruturais na determi-
nação do grau de mobilidade das diferentes classes sociais.37

SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 212.


36

DUARTE. Eqüidade na legislação: um princípio do Sistema Único de Saúde?. Ciência & Saúde
37

Coletiva, p. 444.

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Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 51

Entretanto, cabe ser ressaltado, que a mesma oportunidade de tratamento,


bem como a igualdade de não admitir privilégios e distinção do direito, conforme
pauta a igualdade formal, não se confundem com a necessidade da construção de
medidas positivas e específicas a proteção de determinados direitos. A extrema
necessidade do direito e a indisponibilidade da tutela desse direito são justificati-
vas para a diferenciação de tratamentos, portanto no ponto de vista da igualdade
material os desiguais deverão ser tratados diferencialmente na medida de sua
desigualdade. Assim, o direito à saúde deve ser sempre considerado de maneira
célere, uma vez que a própria vida do ser humano está em risco.

5  Da judicialização da saúde
O SUS foi criado para garantir aos cidadãos amplo acesso aos programas de
atenção e promoção da saúde para que eles tivessem como consequência, lógica,
a qualidade e a longevidade saudável de vida.
O SUS foi criado pela CR/88, mas regulamentado pela Lei nº 8.080/90, e foi
justamente pela inexperiência de administrar um sistema sanitário tão amplo e
complexo, além da impossibilidade de previsão de todas as enfermidades e trata-
mentos, que o sistema apresenta falhas estruturais desde sua implementação não
fornecendo em sua integralidade serviços eficientes.
Nesse sentido, um sistema que foi criado pela própria CR/88 e tem o Estado
como administrador e responsável pelas políticas de promoção da saúde, não
consegue comportar o que o texto constitucional prevê.
Lado outro, o SUS não possui orçamento suficiente a comportar as deman-
das administrativas. Assim, torna ineficazes os tratamentos de doenças específi-
cas ou recentemente descobertas, bem como as que tenham tecnologia diversa
daquelas já disponíveis.
De um lado, existe o direito integral e universal à saúde, devendo este ser
suportado pelo Estado, e, de outro, o próprio Estado não consegue acompanhar
as demandas de um direito tão sensível quanto à saúde.
Nesse contexto, observou-se um acréscimo de ações judiciais em face dos
entes federados para que eles fossem compelidos à prestação de serviços sani-
tários como internações, medicamentos, cirurgias, próteses e consultas médicas,
especialmente da garantia constitucional do mandado de segurança.
No TJMG, conforme disponibilização de acórdãos em sítio eletrônico, ob-
serva-se o claro crescimento das decisões acerca das negativas à saúde pública.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
52 Magno Federici Gomes

GRÁFICO 3 - Quantidade de acórdãos por ano com as palavras-chave “mandado de


segurança, negativa, SUS, universal”.
Fonte: Sítio eletrônico do TJMG. Acesso em: 1º abr. 2009.

Como pode ser constatado, o TJMG, em seu banco de dados, disponibiliza


a consulta de acórdãos, isto é, de decisões de órgãos colegiados do Tribunal. A
partir de tal consulta, foi verificado o número crescente de acórdãos que abordam
a negativa do SUS que implica em violação ao direito à saúde e a consequente im-
petração de mandado de segurança é um reflexo do fenômeno da judicialização
da saúde, ou seja, as prestações de ações para promoção da saúde tornaram-se
objeto de discussão judicial.
No que tange, especificamente, ao fornecimento de medicamentos, o número
crescente de ações também pode ser observado.
O SUS, representado pelos entes federados, nas ações cujo direito deman-
dado é o direito à saúde, tem como argumentos lineares o orçamento público e
o princípio da reserva do possível, que cada vez que é mais alegado na seara do
Poder Judiciário, e a concessão a um grupo de indivíduos específicos diminuiria
para a coletividade. Além disso, a organização administrativa do SUS (fila), na qual
cada indivíduo tem que passar pelo processo administrativo imposto e esperar o
prazo especificado para o atendimento; a impossibilidade de acompanhar o avan-
ço tecnológico por imposições legais como a licitação; o efeito do medicamento
que, muitas vezes, nem é indicado ou regulado pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA), nem adequado à doença do paciente.38

Conforme: “O fato de ser o medicamento disponibilizado apenas para certo tipo de moléstia vem
38

demonstrar que o Estado não vem ainda desempenhando o seu correto papel na saúde pública,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 53

O cidadão, muitas das vezes, em vez de encontrar o tratamento adequado,


se depara com a negativa da tutela sanitária. Além da negativa, ainda existem, na
maioria dos casos, muitos cidadãos que dispõem de poucos recursos financeiros
e têm dificuldades em arcar com o tratamento.
Nesse contexto, a tradicional função pacificadora do Magistrado, nas ações
de saúde pública, é acompanhada de uma nova função: a de elaborador de polí-
ticas públicas. A cada nova decisão judicial o Juiz responsável pelo processo pro-
fere uma decisão que afetará diretamente um comando já acionado: seja a CR/88,
no que tange ao papel do Estado na promoção de políticas públicas sanitárias,
seja na interferência de instruções dos entes federados para a disponibilização
dos tratamentos médicos adequados às enfermidades.

GRÁFICO 4 - Evolução da quantidade de acórdãos por ano que sempre observaram a


saúde como direito fundamental, com as palavras-chave “mandado de
segurança, saúde, me­di­ca­mento, direito fundamental”.
Fonte: Sítio eletrônico do TJMG. Acesso em: 1º abr. 2009

deixando de disponibilizar medicamentos para casos graves como o do câncer, o que se agrava
quando se vê que se trata de remédio para dor, que atinge a própria dignidade humana — uma
das mais sagradas — a de viver ou morrer com dignidade. A complexidade maior ou menor do me-
dicamento, como a impossibilidade de ser combinado com outros remédios, não pode impedir o
Estado de cumprir o seu dever, ficando a prescrição sob controle médico do paciente. O fato de não
constar da lista não exclui a responsabilidade do Estado. [...] A atribuição ao município não exclui
a responsabilidade do Estado, mormente quando comprovado que aquele não tem disponibiliza-
do os medicamentos em questão. A responsabilidade do Estado não é residual” [MINAS GERAIS.
Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Primeira Câmara Cível. Apelação Cível nº 1.0000.04.415672-
7/000 (4156727-43.2004.8.13.0000). Rel. Des. Vanessa Verdolim Hudson Andrade. Belo Horizonte,
1º jun. 2005. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Publicação em: 15 jun. 2005].

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54 Magno Federici Gomes

Ao ser capaz de adotar posicionamento incisivo e direto aos temas demandados,


relacionados ao direito à saúde, o Juiz adota critérios para conceder ou não a ordem
(mandado de segurança) e julgar procedente ou não o pedido (ações ordinárias),
visto que tais atos deveriam, em tese e equivocadamente, ser concedidos somente
em esfera administrativa.
Tal postura positiva do Magistrado, ao estipular o método administrativo que
a tutela sanitária deverá ser prestada e como cidadão deverá se posicionar judi­
cialmente, é debatido com frequência nos Tribunais. Além de suscitar o debate da
função jurisdicional e função administrativa, cabe explicitar:

Função jurisdicional é a função que o Estado, e somente ele, exerce por


via de decisões que resolvem controvérsias com força de “coisa julgada”,
atributo este que corresponde à decisão proferida em última instância pelo
Judiciário e que é predicado desfrutado por qualquer sentença ou acór-
dão contra o qual não tenha havido tempestivo recurso.
Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes,
exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no
sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desem-
penhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente,
infraconstitucionais, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder
Judiciário.39

Nesse conflito, tem-se a função jurisdicional incidindo na função adminis-


trativa, em esferas de poderes diferentes, no momento em que a decisão judicial
pode criar novas ações ao Poder Executivo responsável pela gestão e manuten-
ção do SUS.
Cappelletti (1993) é pontual ao se manifestar:

Discricionariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o


juiz, embora inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente
um criador completamente livre de vínculos. Na verdade, todo o sistema
jurídico civilizado procurou estabelecer e aplicar certos limites à liberdade
judicial, tanto processuais quanto substanciais.40

Assim, as controvérsias levadas ao Poder Judiciário possibilitam que este


estipule o que deverá ser feito, portanto não ocorre o ato arbitrário do jurisdi-
cionado ao se posicionar sobre os critérios administrativos adotados pelo Poder
Executivo.

BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 35, grifos nossos.


39

CAPPELLETTI. Juízes legisladores?., p. 24-25.


40

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Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 55

6  Mandado de segurança e o direito líquido e certo


O mandado de segurança é instituto do direito constitucional como garantia
dos direitos.

Mandado de segurança é o meio constitucional posto à disposição de


toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou uni-
versalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou
coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data,
lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de categoria for
e sejam quais forem as funções que exerça.41

O legislador constituinte de 1988, ao estabelecer as garantias aos direito


fundamentais e constitucionais, não se esqueceu do mandado de segurança, cuja
promulgação da Lei específica nº 1.533 foi em 1951, atualmente revogada pela
Lei nº 12.016/09.
O mandado de segurança, como demonstrado, é instituto do Estado
Democrático de Direito com natureza de ação civil42 e pauta-se em garantir direito
líquido e certo contra ato de autoridade pública que o viola ou poderá violá-lo.43

O mandado de segurança, previsto no mesmo art. 5º, LXIX e LXX, da


Constituição, respectivamente consagradores das modalidades indivi-
dual e cole­tivo, e regulado pela Lei 1.533, de 31.12.51,44 é a providência
sumamente expedita adequada para proteger direito líquido e certo não
amparável por habeas corpus e habeas data, quando o responsável pela
ilegalidade ou abuso de poder seja autoridade pública ou agente de pes-
soa jurídica no exercício de atribuições públicas.
Considera-se “líquido e certo” o direito, “independentemente de sua com-
plexidade, quando os fatos a que se deva aplicá-lo sejam demonstráveis
“de plano”; é dizer, quando independam de instrução probatória, sendo
comprováveis por documentação acostada quando da impetração da
segurança ou, então, requisitada pelo juiz a instâncias do impetrante,
se o documento necessário estiver em poder de autoridade que recuse
fornecê-lo (art. 6º, parágrafo único, da Lei 1.533).45 Posto que esta medida
judicial destina-se a “proteger” o direito violado ou que esteja sob iminente

41
MEIRELLES. Mandado de segurança, p. 25-26.
42
SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 477.
43
BRASIL, 1988, art. 5º, inciso LXIX.
44
A Lei nº 1.533/1951 foi revogada pela atual Lei nº 12.016/09.
45
Atualmente previsto no art. 6º, §1º, da Lei nº 12.016/09.

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56 Magno Federici Gomes

ameaça de violação, o juiz, em sendo requerido pela parte, deverá


liminarmente, inaudita altera parte, suspender o ato impugnado, caso
sejam relevantes os fundamentos do pedido e haja risco de que, não sendo
adotada tal providência, resulte ineficaz a decisão final, se vier a ser
concessiva da segurança (art. 7º, II, da Lei citada).46 Conceder uma limi-
nar não é uma liberalidade do juiz, assim como negá-la é uma discrição
sua. Preenchidos os pressupostos legais, a liminar tem que ser deferida.
Não preenchidos, tem que ser negada.
O mandado de segurança individual visa assegurar o direito pertinente
individualmente ao ou impetrantes, ao passo que o mandado de segu-
rança coletivo é via aberta aos partidos políticos com representação no
Congresso Nacional, às organizações sindicais, entidades de classe ou
associações legalmente constituídas e em funcionamento há pelo menos
um ano, em defesa daqueles interesses de seus membros ou associados
que concernem ao fator que os congrega na entidade, dadas as finalida-
des que lhe correspondem e consubstanciam seu objeto social.47

O mandado de segurança, conforme a Lei nº 1.533/51, será concedido para


a proteção de “direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus, sempre
que, ilegalmente ou com abuso de poder, alguém sofrer violação ou houver justo
receio de sofrê-la por parte de autoridade”.48 Apesar de ser instrumento previsto
constitucionalmente, o mandado de segurança sempre que for impetrado deverá
a parte ter assistência de um advogado, pois é ele que possui a capacidade postu-
latória perante o Poder Judiciário para a impetração do remédio em tela.
A norma que regula o mandado de segurança, ainda, prevê que a petição
inicial do mandamus deverá ser elaborada de acordo com os requisitos estabele-
cidos pelo Código de Processo Civil (CPC), quais sejam os arts. 282 e 283 da citada
norma processual.49 O mandado de segurança tem como objeto “a correção de
ato ou omissão de autoridade, desde que ilegal e ofensivo de direito individual ou
coletivo, líquido e certo, do impetrante”.50

46
Atualmente previsto no inciso III do art. 7º da Lei nº 12.016/09.
47
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 880-882.
48
BRASIL, 1951, art. 1º. O dispositivo citado atualmente encontra-se previsto no art. 1º da Lei
nº 12.016/09.
49
BRASIL, 2009, art. 6º.
50
MEIRELLES. Mandado de segurança, p. 40.

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Ano

GRÁFICO 5 - Evolução da quantidade de acórdãos por ano que discutem a liquidez


e certeza da prova no mandado de segurança, com as palavras-
chave“mandado de segurança, saúde, medicamento, direito líquido
e certo”.
Fonte: Sítio eletrônico do TJMG. Acesso em: 1º abr. 2009

A Lei nº 12.016/09 estabelece a prioridade de processamento do mandado


de segurança perante os atos judiciais, com exceção do habeas corpus.51 Por este
motivo, muitas vezes o mandado de segurança é selecionado como procedimento
adequado, o que de fato confunde a necessidade do direito com a adequação pro-
cessual estabelecida. Não mais, o mandado de segurança deverá ser impetrado
até “cento e vinde dias contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado”,52
o que não obsta, após o lapso temporal exigido, o ajuizamento de ação ordinária.
Ademais, a sentença que concede ou não o mandado de segurança sempre
será objeto de reexame necessário,53 sendo sua execução imediata.54
Dito isso, a grande divergência nas ações de saúde pública, cujo mandado de
segurança é considerado pelo impetrante o procedimento processual adequado, é
a caracterização do direito líquido e certo.
Direito líquido e certo é o direito visualizado de plano, que não incide contro-
vérsia entre as partes, nem dúvida em relação sua natureza. Por ser considerado de
plano, a não demonstração do direito de plano acarreta a impossibilidade de impe-
trar mandado de segurança, por este motivo considera-se que é uma condição da

51
BRASIL, 2009, art. 20.
52
BRASIL, 2009, art. 23.
53
BRASIL, 2009, art. 14, § 1º.
54
MEIRELLES. Mandado de segurança, p. 101.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
58 Magno Federici Gomes

ação, requisito de admissibilidade intrínseco do mandamus, a demonstração do


direito líquido e certo. Para Meirelles (2007):

Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência,


delimitado na sua extensão e apto a ser exercido no momento da impetra-
ção. Por outras palavras, o direito invocado, para ser amparável por man-
dado de segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos
os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se sua existência
for duvidosa; se sua extensão ainda não estiver delimitada; se seu exercí-
cio depender de situações e fatos ainda indeterminados, não rede ensejo
à segurança, embora possa ser definido por outros meios judiciais.55

A própria definição de direito líquido e certo é campo de discussão entre os


teóricos, com já ressaltava Santos (1977):

Não há dúvida que não é fácil uma noção exata de direito líquido e certo,
embora genericamente, assim se possa considerar todo direito legitima-
mente adquirido, cujo exercício não dependa da realização de condição.
O direito líquido e certo é que decorre da lei e pode ser reconhecida a
priori, isto é, se gera convencimento vigoroso imediato e seu reconhe-
cimento independe da aferição de intricadas questões de fato; é aquele
que se entremostra imune de enérgica contratida e sua cognição pode
ser feita de forma sumária, sem esforços fatigantes. Certo, é o direito que
o seu titular exercendo ou pode exercer no momento da impetração, por
ter uma ação que o assegura.56

Ainda, Ferraz (2006) se posiciona:

Cumpre ressaltar que o direito líquido e certo é uma condição da ação


criada no patamar constitucional — o que, inclusive, nos dispensa de
digres­sões quanto ao maior ou menor acerto na escolha da expressão. E
aqui, no Texto Maior, ao mesmo tempo em que só se enseja o writ se de
plano verificável a existência dessa condição, também só se concede, afinal,
a segurança o direito líquido e certo a início tido por plausível, por último
se constatar efetivamente existente. É dizer: no mandado de segurança o
direito líquido e certo é, a um só tempo, condição da ação e seu fim último
(na primeira face, com juízo provisório; na segunda como objetivo de tutela
jurisdicional). Assim, a sentença que negue, ou afirme, o direito líquido
e certo realiza o próprio fim da ação; trata-se de uma decisão de mérito,
que exaure o campo da indagação, próprio do mandado de segurança.57

55
MEIRELLES. Mandado de segurança, p. 38.
56
SANTOS. O mandado de segurança na doutrina e na jurisprudência, p. 30.
57
FERRAZ. Mandado de segurança, p. 35.

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Portanto, o direito líquido e certo é a condição da ação dos mandados de


segurança por ser critério objetivo para resolução da lide, ensejando a extinção
do feito sem resolução de mérito acaso não esteja configurado.
Dessa forma, apesar de o direito líquido e certo depender, em regra, de
um critério objetivo para a sua verificação, a primeira pergunta, que demanda
estudos mais aprofundados, seria se a sua configuração poderá variar conforme
o subjetivismo do juiz.
É tamanha a importância dessa análise que o TJMG, em determinados julga-
dos, não concede a ordem do mandado de segurança por motivo de inadequa-
ção procedimental, o que nas ações de saúde pública pode não só prejudicar o
direito em futura ação ordinária como prejudicar à própria saúde do paciente. Nas
ações de saúde pública, ainda, o tempo é um dos fatores prejudiciais ao paciente
que a cada dia pode sofrer agravantes em seu estado de saúde.
Apesar de o TJMG reiteradamente conceder ordens aos mandados de segu­
rança para fins de concessão de medicamentos pelo SUS, existe uma corrente,
ainda minoritária, que acredita que nas ações de saúde pública a prescrição médica,
o receituário e os exames médicos não constituem prova pré-constituída e não são
passíveis de impetração do mandado de segurança.58
A prova pré-constituída é a prova pré-existente, já conhecida. Assim como o
direito líquido e certo, que também pode ser observado como aquele que já existe
de plano, sendo esse um direito inquestionável e com alto grau de plausibilidade.

As provas tendentes a demonstrar a liquidez e certeza do direito podem


ser de todas as modalidades admitidas em lei, desde que acompanhem
a inicial, salvo no caso de documento em poder do impetrado (art. 6,
pará­grafo único) ou superveniente às informações. Admite-se também,
a qualquer tempo, o oferecimento de parecer jurídico pelas partes, o que

Nesse sentido: “Conforme por mim manifestado em outras oportunidades junto ao 4º Grupo de
58

Câmaras e perante esta Oitava Câmara Cível, entendo que o veículo do mandado de segurança,
dada a sua estreiteza, sobretudo no que diz respeito à produção de provas, não comporta, em princí-
pio, pedidos de fornecimento de medicamentos, de pagamento de tratamentos médicos etc. De fato,
a via estreita do ‘writ of mandamus’ exige a prova documental pré-constituída para a configuração
do direito líquido e certo amparável por esta ação constitucional. Com efeito, a prova configu-
radora do direito líquido e certo deve ser pré-constituída e, a meu aviso, ‘data venia’, a só previ-
são constitucional da saúde como direito de todos não é suficiente para que o Poder Judiciário
determine uma dessas providências à autoridade administrativa. Neste sentido, a prova juntada
com a impetração do ‘writ’ deve ser exaustiva de modo que demonstre cabalmente a ilegalidade
e o abuso cometido por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribui-
ções do Poder Público” [MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Oitava Câmara Cível.
Apelação Cível nº 1.0145.04.135895-6/001 (1358956-93.2004.8.13.0145). Rel. Des. Edgard Penna
Amorim. Belo Horizonte, 17 ago. 2006. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Publicação em: 1º nov.
2006, grifos nossos].

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
60 Magno Federici Gomes

não se confunde com documento. O que se exige é prova pré-constituída


das situações e fatos que embasam o direito invocado pelo impetrante.59

O que causa bastante contradição é o fato de que o direito líquido e certo,


até mesmo para doutrina, como se posicionam Meirelles (2007) e Ferraz (2006),
é um direito objetivo, mas com definição subjetiva, isto é, sabe-se que o direito
líquido e certo é aquele inquestionável, mas sempre que ele for objeto de ação
judicial, partindo do pressuposto que existe lide, será objeto de controvérsia.
O mandado de segurança, nas ações cujo medicamento é o pleito almejado
pelo impetrante, acaba por ter sua análise probatória prejudicada: o médico atesta
que o paciente necessita daquele medicamento; o SUS nega o medicamento ao
paciente; o paciente leva o atestado ao Poder Judiciário como prova de seu direito
líquido e certo que já está previsto na CR/88 (art. 196); e o órgão jurisdicional não
considera o direito líquido e certo porque o seria um direito questionável. Para o
paciente, que é o lado mais sensível de toda essa demanda judicial, o pleito de um
direito acaba sendo uma via crucis.
O mandado de segurança, apesar de ser procedimento processual cabível
para concessão de medicamentos pelo SUS, acaba sendo prejudicado por corrente
minoritária do TJMG. A não pacificação de um tribunal relativo a uma demanda
específica implica, obviamente, em insegurança jurídica.
Existem posicionamentos de que o direito líquido e certo, para concessão
de medicamento, é a prova documental constituída da negativa do fármaco pelo
Estado, bem como a prescrição.60

MEIRELLES. Mandado de segurança, p. 38.


59

Assim: “[...] no caso específico dos autos, extrai-se da declaração médica de fl. 06, emitida por
60

especialista em oncologia clínica da Associação Feminina de Prevenção e Combate ao Câncer


de Juiz de Fora – Ascomcer, conveniada com o Sistema Único de Saúde, que a autora é porta-
dora de câncer, necessitando do uso do medicamento denominado Avastin. Assim, existindo
prescrição médica sobre a necessidade do uso do medicamento, não pode o ente municipal
deixar de fornecê-los sob qualquer justificativa, muito menos sob a esfera de falta de orça-
mento, tendo em vista o dever constitucional de garantir o direito à saúde, de forma absoluta.
Dessa feita, entendo que restou demonstrado o direito líquido e certo da autora na medida em
que necessita da medicação apontada para ter melhores condições de vida, conforme posto no
relatório médico. Destarte, rogando venia ao posicionamento do em. Des. Relator, tenho que, o
simples fato de serem particulares os documentos juntados pela autora que atestam a necessi-
dade da medicação, não é capaz de afastar, a meu ver, a comprovação do direito líquido e certo
da autora, mormente considerando que o réu não impugnou a declaração médica, nem mes-
mo demonstrou fornecer outros medicamentos para tratamento da moléstia de que padece a
parte, ao que se acresce o fato de que o Hospital Maria José Baeta Reis, da Associação Feminina
de Prevenção e Combate ao Câncer de Juiz de Fora – Ascomcer, é filiado ao SUS” [MINAS GERAIS.
Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Oitava Câmara Cível. Apelação Cível nº 1.0145.06.305256-0/001
(3052560-71.2006.8.13.0145). Rel. Des. Edgard Penna Amorim. Belo Horizonte, 24 abr. 2008. Tribunal
de Justiça de Minas Gerais. Publicação em: 31 maio 2008].

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O direito líquido e certo para a concessão de medicamento pode ser comprovado


de plano com a prescrição médica. Resta claro que a dúvida em relação ao medica-
mento incidirá responsabilidade civil do médico, não violação ao direito do paciente.
Em outras palavras, a dúvida que incide sobre a real necessidade ao medicamento,
já atestado pelo médico, influi diretamente na dúvida da própria prescrição médica.
O documento atestado pelo médico é prova de que o paciente necessita do
tratamento prescrito.
Ora, o médico é plenamente responsável pela prescrição e deve ser respon-
sável se aquela não for adequada à enfermidade do paciente. Além disso, o pa-
ciente não poderá sofrer violação do direito à saúde, através da disponibilização
do medicamento, simplesmente pela dúvida fundada na prescrição médica ou
documento que tem origem médica. Por esse motivo, os atestados médicos e
prescrições advindas de uma autoridade médica devem ser levados em conside-
ração como direito líquido e certo. Em sentido equivalente:

A conduta do agente, comissiva ou omissiva, é pressuposto da responsa-


bilidade civil, ou seja, inexiste responsabilidade civil, sem haver comporta-
mento humano contrário à ordem jurídica. Tanto a ação (facere) quanto a
omissão (non facere) do agente geram o dever de indenizar, se conjugada
com os demais requisitos da responsabilidade civil.61

A não adequação processual do mandado de segurança como ação cabí-


vel ao pleito de medicamentos em face do SUS só desestimula a impetração da
garantia constitucional. Não possibilitará que o paciente deixe de acionar o seu
direito, visto que poderá ajuizar ação ordinária, com pedido cominatório e com
requerimento de tutela antecipada (art. 273 do CPC), nem justifica para o caso em
questão, quando o paciente porta documento declarado pelo médico responsá-
vel, a não impetração do mandado de segurança.
A tutela antecipada é instituto do direito processual que visa a antecipar total
ou parcialmente os efeitos da tutela pretendida, mas não é uma ação.62 Nesse con-
texto, é permitido ao autor da ação requerer a medida antecipatória, desde que seja
preenchido determinados requisitos processuais. A tutela antecipada será reque-
rida pelo autor na petição inicial,63 sendo que o CPC estabelece como requisito

61
ARRUDA JÚNIOR. Responsabilidade civil pela venda de medicamentos sujeitos à prescrição médica,
p. 71.
62
MONTENEGRO FILHO. Curso de direito processual civil: medidas de urgência, tutela antecipada e a
ação cautelar procedimentos especiais, v. 3, p. 20.
63
MONTENEGRO FILHO. Curso de direito processual civil: medidas de urgência, tutela antecipada e a
ação cautelar procedimentos especiais, p. 22.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
62 Magno Federici Gomes

para o deferimento o pedido que vai antecipar os efeitos da tutela deve ser sempre
realizado quando existir prova inequívoca que evidencie a verossimilhança da
alegação (condizente com a verdade real do fato), fique caracterizado o abuso de
direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu e haja fundado receio
de dano irreparável ou de difícil reparação — como a possibilidade de morte do
paciente que necessita de determinado medicamento (art. 273). Além desses requisi-
tos, a tutela antecipada poderá ser revogada e nunca será concedida quando houver
perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.64

A falta absoluta de exigências legais quanto às formas procedimentais


levaria à desordem, à confusão, à incerteza. Na medida do necessário
para estabelecer no processo um clima de segurança para as partes, a
regulamentação legal representa a garantia dessas relações recíprocas
e com o juiz; por isso, as formas procedimentais essenciais devem ser
certas e determinadas, a fim de assegurar que o resultado do processo
espelhe na medida do possível a realidade histórica e axiológica (sistema
da legalidade).
Por outro lado, as formas não devem sufocar a naturalidade e rapidez do
processo. Trata-se de um problema técnico-político: a aversão às formas é
motivada, em geral, pelo excesso de formalismo, mas não é aconselhável
evitar esse inconveniente abolindo por completo as exigências formais ou
deixando ao juiz a tarefa de determinar as formas — pois essa solução
abriria caminho ao arbítrio.65

O desestímulo ao instituto apenas descaracteriza a própria garantia consti-


tucional, o que é um retrocesso ao acesso à jurisdição.
O acesso à jurisdição (art. 5º, inciso XXXV, da CR/88) torna-se ineficaz se o
meio processual utilizado não condiz com a realidade do cidadão ou com seu
anseio acerca da tutela jurisdicional. A sociedade não pode ficar a mercê do con-
flito doutrinário nas hipóteses de saúde, uma vez que muitos casos são urgentes,
mormente a própria enfermidade do paciente. O meio processual é, por sua vez,
o facilitador da segurança jurídica, não o contrário.
A consequente violação da prestação de serviço sanitário transgride, tam-
bém, o direito líquido e certo no momento em que nega o direito à saúde. Nesse
contexto, o mandado de segurança individual é o meio processual adequado
para se garantir o direito à saúde.

BRASIL, 1973, art. 273, §§1º e 4º.


64

CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria geral do processo, p. 343-344.


65

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Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 63

Como já posicionado, a dilação probatória é a questão que caracteriza ou


não cabimento do mandado de segurança ou a admissibilidade da ação de conhe-
cimento, pelo procedimento comum ordinário.
O procedimento comum ordinário possibilita maior dilação probatória jus-
tamente por possibilitar prova controvertida. Além disso, é o procedimento de
maior complexidade e lapso temporal. Assim, pontua Montenegro Filho (2007a)
que “o procedimento comum ordinário é caracterizado como sendo o mais com-
pleto da Lei de Ritos, gerando frustrações à parte que imaginava que poderia resol-
ver o conflito de interesses em um curo espaço de tempo”.66
Por análise crítica, observa-se que o procedimento ordinário é menos célere
que o do mandado de segurança (Lei nº 12.016/09). Nas ações de saúde pública, a
enfermidade não espera o procedimento processual considerado adequado pelo
Estado para concessão, via judicial, de determinado tratamento. Poder-se-ia pensar
que o real motivo para delongar a demanda seria a perda de objeto. Muitas vezes
o próprio paciente arca com os custos de um serviço que deveria ser prestado
pelo Estado, para não ter sua saúde prejudicada. Infelizmente, a falta de estrutu-
ração entre os serviços sanitários, orçamento do SUS e a sua organização ainda
permitem que isso aconteça.

7  Considerações finais
O presente estudo partiu da necessidade de identificar o que caracteriza
o direito líquido e certo no mandado de segurança, para fins de concessão de
medicamentos ou tratamentos pelo SUS.
Conforme pontuado na Introdução, a escolha do tema foi feita a partir da
necessidade e indispensabilidade da tutela sanitária.
O direito à saúde é extremamente sensível e deve ser olhado de maneira
especial. Está diretamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana
e a própria vida do jurisdicionado. Tal direito é indisponível (subjetivo) e impres-
critível. Assim, o cidadão que necessita da prestação sanitária e não a recebe do
Estado, deve, ao menos, ter o devido acesso à jurisdição, de maneira ampla e
irrestrita.
Posto isto, chega-se a um posicionamento de que o mandado de segurança,
uma garantia constitucional estabelecida na CR/88, contra ato de abuso de uma
autoridade pública que viola ou poderá violar direito líquido e certo, é devida-
mente adequado ao pleito sanitário.

MONTENEGRO FILHO. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhe-
66

cimento. v. 1, p. 167.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
64 Magno Federici Gomes

Para tanto, pretendeu-se demonstrar que a necessidade da tutela jurisdicional


célere e a indisponibilidade do direito, quando é indispensável a prestação do ser-
viço sanitário, caracterizam uma violação ao direito à saúde e que tal contrariedade
fica caracterizada pela simples demonstração do atestado médico de uma determi-
nada situação e do tratamento a ser realizado, bem como da negativa do SUS quanto
à devida atenção ao direito de saúde no caso concreto.
Observou-se que o TJMG ainda não adotou posicionamento único sobre
qual seria o direito líquido e certo para fins de concessão de medicamento pelo
SUS, o que transmite insegurança jurídica nas ações sanitárias.
No presente estudo, defende-se a ideia de que todos os laudos, prescrições,
receituários e documentos assinados pelo médico responsável do paciente, que
neces­sita de determinada prestação sanitária, podem ser considerados como direito
líquido e certo. Portanto, somente o médico que acompanha o caso específico pode
atestar acerca da viabilidade do tratamento sanitário. Presumir a má-fé na expedição
do receituário, por parte do médico que acompanha o tratamento do paciente, não
passa de justificativa falaciosa dos que querem se furtar da prestação sanitária, prin-
cipalmente porque o delito de falsidade pode ser imputado ao emitente.
Por esse motivo, o médico é inteiramente responsável pela indicação do
medicamento, ou tratamento, necessário ao paciente. É frequente a argumenta-
ção dos gestores do SUS, nos mandados de segurança para a concessão de medi-
camentos pelo SUS, que o fármaco indicado pode ser facilmente substituído por
outro (genérico, similar e com indicação à enfermidade). Todavia, não é frequente
esse questionamento em face do médico que realizou a indicação, principalmente
pela falta de conhecimento técnico do paciente necessitado.
Por sua vez, o médico que não é responsabilizado pode continuar receitando
os medicamentos desnecessários. São diversos os motivos dessa indicação: seja
o posicionamento da indústria farmacêutica na receita, seja o tratamento alter-
nativo ou o conhecimento de uma nova tecnologia. Do ponto de vista jurídico, o
paciente-impetrante pode não receber seu medicamento caso seja denegada a
segurança. Entretanto, nada impede que outros pacientes possam impetrar outros
writs com o mesmo objeto, o que não resolve, ou não ameniza, o problema da
judicialização da saúde.
Ora, com exceção dos casos de notória má-fé e fraude contra o SUS, o pa-
ciente está à mercê de toda essa situação. Para ele, o médico indica a terapia capaz
de amenizar ou curar a enfermidade diagnosticada. Se o medicamento não é for-
necido pelo SUS, é natural que o paciente defenda o posicionamento indicado
pelo médico. A relação médico-paciente é a base para o tratamento. Por outro

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 65

lado, as indicações médicas devem ser aquelas legalizadas no país e devem ter
respaldo na literatura médica nacional. Assim, conclui-se pela responsabilidade
civil e criminal do médico que indica tratamentos não necessários aos pacientes,
sempre observado o contraditório e a ampla defesa, em processo próprio em face
do profissional da saúde.
Não obstante a questão incidente apresentada, a falta de capacidade téc-
nica, acerca das tecnologias sanitárias e de procedimentos médicos, bem como
a ausência de conhecimento do histórico do paciente é obstáculo à compreen-
são dos Magistrados sobre o direito pleiteado. Por isso, alguns Excelentíssimos
Desembargadores consideram a ação ordinária como a mais adequada para a
concessão de medicamentos pelo SUS, visto que nela teriam maior detalhe pro-
batório para motivar as decisões, durante o trâmite da demanda.
Restou evidenciado que a morosidade do Poder Judiciário em identificar
à liquidez e certeza nos mandados de segurança, cujo objeto seja a prestação
sanitária, ou ao menos estabelecer o procedimento correto para tais demandas,
só retarda a devida tutela jurisdicional ao paciente que tanto necessita. Por con-
seguinte, o retardo na prestação de serviço sanitário tem como consequência a
violação do direito à saúde, da dignidade da pessoa humana, do amplo acesso à
jurisdição e, finalmente, do direito à vida dos cidadãos.
A natureza jurídica da prestação de serviços sanitários, como serviço público
indelegável ou próprio, deve ser repensada. Tornar o SUS um serviço delegável ou
impróprio poderá trazer diversas oportunidades aos jurisdicionados, por meio de
licitações. A licitação dos serviços sanitários poderia ser uma opção para evitar o
desgaste do Sistema, na medida em que o Estado possa identificar os problemas
de sua gestão e delegar a terceiros a obrigação, por meio de contraprestação pecu-
niária, de manter o SUS funcionando nos moldes da lei. A mudança de natureza de
um serviço público não é algo fácil, depende de modificação legislativa e cultural,
mas é plenamente possível.
Outra hipótese a ser pensada para o problema em questão seria a adaptação
do procedimento especial do mandado de segurança, especialmente para a saúde.
A simples nomeação do perito ex officio, após as informações prestadas pela auto-
ridade pública e antes do parecer do representante do Ministério Público, no pro-
cedimento do mandado de segurança, como exemplo, poderia dirimir o conflito da
dilação probatória.
Considera-se, assim, que, apesar de o mandado de segurança ser instrumento
adequado para concessão de medicamentos pelo SUS, não é recomendada a
impetração de tal garantia no Poder Judiciário mineiro, pois o Egrégio TJMG ainda

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
66 Magno Federici Gomes

transmite a insegurança ao não se manifestar sobre o direito líquido e certo para


os casos de saúde pública, demonstrando subjetivismo quanto à sua caracteriza-
ção no caso concreto. Com isso, cabe também ação cominatória de obrigação de
fazer, com requerimento de tutela antecipada, para a concessão de medicamen-
tos ou tratamento pelo SUS, diante dos posicionamentos divergentes acerca do
meio processual cabível.
Finalmente, torna-se necessária a adequação dos procedimentos adminis-
trativos do SUS, para reduzir o número de negativas extrajudiciais justificadas pela
ausência do medicamento (não do tratamento). O SUS deveria indicar e fornecer,
ainda no âmbito administrativo, assim que negado um medicamento determinado,
outro tratamento médico ou fármaco que fosse considerado eficaz a enfermidade
do paciente, sempre com a ciência do médico do paciente-solicitante. De forma
ética e eficiente, a gestão do SUS pode indicar ao próprio médico do paciente, jus-
tificadamente, a viabilidade de outro tratamento. Esse instrumento poderia facilitar
o diálogo tripartite (médico, paciente e SUS), diminuindo o conflito acerca da tutela
sanitária no âmbito do Poder Judiciário. A relação dialógica poderia, ainda, demons-
trar para as três partes dessa relação sanitária os motivos pelos quais o paciente
necessita do medicamento; pelos quais o médico prescreve o fármaco e pelos quais
o SUS nega ou indica outro medicamento em substituição. É necessário salientar
que o SUS foi criado para garantir aos cidadãos o amplo acesso aos programas de
atenção e promoção da saúde, para que eles tenham como consequência lógica a
qualidade e a longevidade da vida.
Por fim, cabe ressaltar que é importante pensar em maneiras para solucio-
nar o problema da negativa do SUS aos tratamentos de seus pacientes, antes de
arguir o que está errado no âmbito judicial. Deve ser sempre frisado que a via judi-
cial é, sempre, a última instância a ser seguida. O SUS foi criado para alcançar e ser
disponível a todos, de modo universal, de forma célere, gratuita, descentralizada
e, exatamente por isso, a gestão administrativa deve pensar no bem dos que dele
necessitam para manter o direito mais inviolável de todos: a vida.

Access to Jurisdiction and Procedure Tool Suitable for Grant Medicines


from Unified Health System

Abstract: Writ of mandamus is guarantee of the Brazilian Constitution of 1988


against abuse of authority by the Public Authority and good of the health,
an unavailable right, beyond essential. Thus, with the refusal of medicine
supply for public authorities one perceives the growth of Mandamus for this,
supposed, administration omission. Such sources argue if mandamus would

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
Acesso à jurisdição e instrumento processual adequado... 67

be evidences for concession of writ by reports, findings, lapsings made


for doctors who follow definitive patient. This work observes the trends of
the Judiciary Power, in second tier, by means of pronounced decisions and
questions the adequacy of writ of mandamus as half procedural for medicine
concession, for saw judicial. The necessity possesss great social relevance
the analysis of the probatory way in the actions of public health, mainly by
means of the constitutional guarantee it writ of mandamus: one because
the Brazilian society have bases in the principles protection to the health
and the life, another one because it is understood as extreme importance
the instigation, the production knowledge or the beddings concerning the
application of the cited principles. The method used for accomplishment
this work was the theoretician-documentary, in such a way, were proofed
sentences in the site of the TJMG, the years in 2005 had been analyzed
the 2009. It was observed that writ of mandamus half is adjusted for ends
medicine and treatment concessions. However, positioning, still minority
exists, that deprives in characteristics medical handbooks and prescriptions
as liquid and certain proof, what cause injury to the right to the health and
doubt how much the action of writ of mandamus, having to be repaired by
the filling of a suit common share with comminatory order and petition of
anticipated guardianship, in order to prevent the questioning on the liquid
and certain right in writ of mandamus.

Key words: Access to Jurisdiction. Writ of mandamus. Liquid and certain right.
Public health. Health’s right. SUS. Proof.

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Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 33-69, out./dez. 2012
O processo constitucional como
elemento de proteção dos direitos
fundamentais no Estado Democrático
de Direito

Fabrício Simão da Cunha Araújo


Mestrando em Direito Processual pela PUC Minas.
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação
da Faculdade de Direito da PUC Minas. Juiz de Direito em MG.

Resumo: O Estado Democrático de Direito ergue-se sobre dois principais


pilares, corolários da soberania popular. De um lado, tem o dever de garantir
ao povo participação ativa no exercício das funções estatais, como condição
de legitimidade dos atos do poder público. De outro lado, fundamenta-se
na prevalência dos direitos e garantias fundamentais, o que implica o desen­
volvimento, a ampliação e a efetivação de um número cada vez maior desses
direitos. No que tange ao processo, a partir de sua concepção como proce-
dimento em contraditório ganhou feição democrática, já que passou a pri-
vilegiar a participação das partes. Contudo, é só com a teoria do processo
constitucional que ele ganha natureza jurídica de elemento estruturante do
Estado Democrático de Direito. Caracterizando-se pela intransigente obser-
vância das garantias constitucionais, o processo se alça à estatura de meto-
dologia normativa de garantia e construção dos direitos fundamentais, de
forma a controlar os abusos e omissões da autoridade pública e assumir a
função de elo entre os mencionados fundamentos do Estado Democrático
de Direito. É que, ao mesmo tempo em que o processo, através de suas bases
sólidas de estatura constitucional, garante pela tutela jurídica, a efetividade
constantemente expansiva dos direitos fundamentais, assegura que o conteú­
do concreto de tais direitos será sempre construído pela protagonista par-
ticipação dos interessados na tutela jurídica, em simétrica paridade, e não
ditado pelo Estado. Na jurisprudência, podemos perceber como o processo
constitucional tem, em constante progressão, sido capaz de cumprir essa
função, especialmente no que tange aos direitos fundamentais a uma pres-
tação positiva do Estado. Pela criação de espaço procedimental cognitivo-­
argumentativo e possibilita a organização do discurso quanto à extensão
da eficácia do direito fundamental especificamente pleiteado, às reais con-
dições fático-jurídicas do Estado atendê-lo e aos limites da independência
entre as funções estatais essenciais, em prol da supremacia da Constituição,
da soberania popular, da máxima eficácia dos direitos fundamentais, enfim,
do Estado Democrático de Direito.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
72 Fabrício Simão da Cunha Araújo

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Processo constitucional.


Jurisdição constitucional das liberdades. Contraditório. Direitos fundamen-
tais. Reserva do possível. Repartição e independência das funções estatais
essenciais.

Sumário: 1 Introdução – 2 Estado Democrático de Direito – 3 Processo cons-


titucional – 4 Direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito – 5
O incremento de proteção pelo processo constitucional – 6 Considerações
finais – Referências

1  Introdução
Após as tragédias vividas durante a Segunda Guerra mundial, ao se perce-
ber que a mera previsão constitucional de direitos fundamentais sem a garantia
dos meios para sua implementação não assegurava sua efetividade na proteção
do ser humano, houve um generalizado movimento de constitucionalização de
princípios processuais em diversos países.
Iniciou-se, portanto, movimento que permitiu elevar o processo à estatura
de garantia fundamental, em uma nova concepção. Deixou de ser instrumento
para solução de conflitos pelo Estado para se tornar garantia à pessoa humana de
resistir aos abusos e omissões do Estado e/ou de outros particulares, conceden-
do-lhe espaço político para participação do diálogo democrático.
Agora com hierarquia constitucional, os princípios processuais estruturais
passaram a condicionar a interpretação das normas procedimentais infraconsti-
tucionais de forma a efetivamente permitir a participação da pessoa no exercício
do poder pelo Estado. A partir deles é que se procedeu à “implantação de um coe-
so e eficiente sistema de garantias e mecanismos que protegesse e assegurasse a
efetividade”1 dos direitos fundamentais.
O Estado, portanto, informado pelo princípio democrático, forjado sobre
um complexo e extenso rol de direitos e garantias fundamentais, exerce todas
as suas funções sempre de forma concertada e aberta para a efetiva participação
dos interessados como requisito de legitimidade de seus atos.

BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 44.


1

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 73

2  Estado Democrático de Direito


O Estado Democrático de Direito pode ser definido como a fusão de dois
princípios ou sistemas conexos, o Estado Democrático e o de Direito, de forma
que, segundo Ronaldo Brêtas, tais paradigmas constituam “sistemas jurídico-­
normativos consistentes, [...] verdadeiros complexos de ideias, princípios e regras
juridicamente coordenados”.2
Em apertada síntese, o Estado de Direito condensa os seguintes subprin-
cípios: (i) império da lei, (ii) separação das funções de Estado, (iii) submissão do
Estado à lei e (iv) reconhecimento de direitos fundamentais.3
O princípio democrático, por sua vez, está ligado de forma imanente com a
fonte de legitimação do poder exercido pelo Estado, que é o povo.
Na acepção formal, em poucas palavras, portanto, pode-se qualificar o
Estado como Democrático de Direito quando erige como premissas fundamen-
tais: a soberania popular, o respeito da hierarquia das normas, da repartição das
funções estatais e dos direitos fundamentais.
Contudo, é necessário mais do que previsão normativa nesse sentido. Pelo
princípio democrático, o exercício das funções estatais e o direito devem exter-
nar, como condição de sua legitimidade, constante conexão com a soberania
popular, que se manifesta de duas principais formas: pela ampla participação
do povo, em po­sição de protagonismo, na criação, interpretação e aplicação do
direito (logo, no exercício das funções estatais) e pela máxima efetividade dos direi-
tos fun­­­damentais.
Há, portanto, uma “tensão interna, sob o paradigma do Estado Democrático
de Direito, entre a pretensão de legitimidade e a positividade do Direito”.4 Se de
um lado o Estado de Direito perquire a validade do Direito, o Estado Democrático
exige sua legitimidade.
A soberania, é bom frisar, tem como titular o povo e não o Estado. De fato,
segundo Rosemiro Pereira Leal, a Constituição Brasileira de 1988 (CB/88) assenta o
conceito moderno de soberania por buscar no povo, “muito antes que no Estado a
fonte de sua própria existência e legitimidade jurídicas”.5
Contudo, não basta asseverar que tal titularidade pertence ao povo de for-
ma retórica, mantendo-o com caráter icônico e, consequentemente, abstrato

2
BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 57.
3
BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 51.
4
CATTONI DE OLIVEIRA. O processo constitucional como instrumento da jurisdição constitucional.
Revista da Faculdade Mineira de Direito, p. 164.
5
LEAL. Soberania e mercado mundial: a crise jurídica das economias, p. 35.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
74 Fabrício Simão da Cunha Araújo

e inofensivo. É necessário que o povo seja enxergado “como instância global


de legitimidade democrática”,6 ou seja conjunto de agentes a serem ouvidos
de forma ampla, em todos os discursos de produção,aplicação, modificação e
extinção dos direitos, de forma que deixem “de ser meramente destinatários do
Direito, mas tornem-se seus co-autores”.7
Por isso é que Rosemiro Pereira Leal define povo como o “conjunto de le­­gi­ti­
mados ao processo”8 e André Del Negri fala em “povo processualmente le­­giti­ma­do”.9
E não basta, para a legitimidade do Estado (e de suas funções), garantir a
participação do povo. Como instituição que se legitima pela Constituição demo-
crática, é imprescindível “a construção de um locus normativo-linguístico assegu-
rador de um status democrático” aberto a todos. Caso contrário, não se poderá
denominar o povo de “legitimados ao processo”.10
Ainda vale advertir, não se pode falar em soberania popular como a repetir a
clássica fórmula de “governo da maioria”, típica da visão republicanista de Estado
Social. No Estado Democrático, a legitimidade do direito pressupõe o invariável
respeito dos direitos fundamentais no sentido de “trunfos contra a maioria”.11
Nesse sentido, André Del Negri esclarece que:

No Estado Constitucional e Democrático a compreensão de democra-


cia há de acolher reconstruções conceituais que desmistifiquem a ideia
super­ficial de que o simples fato de haver mobilização da população (lin-
guagem natural) há a construção da democracia. [...] Daí a necessidade de
as pessoas serem portadoras de canais procedimentalizados que possam
interrogar o sistema normativo.12

Portanto, os procedimentos jurídicos através dos quais o poder estatal é


exercido só se legitimam democraticamente quando facultam ao povo (na acep-
ção que se vem de mencionar) a participação efetiva na sua construção, através
de espaços processualizados garantidores de balizas dialógicas eficazes.

6
DEL NEGRI. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade demo-
crática, p. 31.
7
CRUZ. Jurisdição constitucional democrática, p. 220.
8
LEAL. Processo como teoria da lei democrática, p. 59.
9
DEL NEGRI, op. cit., p. 32.
10
DEL NEGRI. Processo constitucional e decisão interna corporis, p. 28.
11
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Ed., 2003
apud SARLET; MARINONI; MITIDIERO. Curso de direito constitucional, p. 249.
12
DEL NEGRI. Processo constitucional e decisão interna corporis, p. 57.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 75

Toda atividade estatal deve se realizar seguindo a sequência de atos previstos


em lei (procedimento) para a atuação jurídica do poder. Para que tal procedimento
possa se qualificar de processo, conferindo legitimidade democrática ao poder exer-
cido, deve atender ao arcabouço de garantias processuais previstas na Constituição.
A este arcabouço, Del Negri denomina Devido Processo Constitucional, con-
ceituando-o como a “instituição regenciadora de todo e qualquer procedimento
(devido processo legal), a fim de tutelar a produção de provimentos seja adminis-
trativo, legislativo ou judicial”. Continua esclarecendo que “[...] o devido processo
legal, é um direito-garantia que os cidadãos possuem com relação a uma produ-
ção democrática do Direito”.13
Em suma, o Estado de Direito, na acepção democrática de individualidade
coletiva aglutinadora da soberania difusa investida no povo,14 exerce suas funções
fundamentais por meio de diferentes processos de atuação jurídica do poder15 de
forma que, na medida em que se entrelaçam concertadamente, formam um ciclo
de atos de legitimação.16

3  Processo constitucional
3.1  A contribuição de Fazzalari
Elio Fazzalari, por sua obra de maior repercussão no mundo jurídico, Instituzioni
di diritto processuale,17 rompeu com a clássica concepção do processo como relação
jurídica, defendida inicialmente por Oskar von Bülow e repetida por Chiovenda,
Carnelutti, Calamandrei e Liebman, além da Escola Paulista de processo.18

13
DEL NEGRI. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade demo-
crática, p. 118.
14
Partimos das lições de Georg Jellinek, para quem, na acepção social, o Estado seria “unidade de
associação dotada originariamente de poder de dominação”, para, adaptando a noção ao princípio
democrático, concluirmos que a soberania recai no Estado não originariamente, mas na medida
em que se configura como individualidade coletiva que aglutina a soberania difusa investida no
povo (citado por BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 10).
15
Segundo Luiz Sanchez Agesta, jurista espanhol, as funções do Estado são procedimentos essen-
ciais de exercício do poder (citado por BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de
Direito, p. 12).
16
BRÊTAS. Uma introdução ao estudo do processo constitucional. In: CASTRO; FREITAS (Coord.).
Direito processual: Estado Democrático da processualidade jurídica constitucionalizada, p. 124.
Inspirado nas lições de Friedrich Müller, Brêtas explica que o movimento de o povo eleger seus
representantes para que esses formulem as leis que regerão tanto a atuação estatal quanto as
relações sociais particulares formaria um ciclo de atos de legitimação que aponta o lado demo-
crático do Estado de Direito.
17
FAZZALARI. Istituzioni di diritto processuale.
18
CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria geral do processo, p. 247.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
76 Fabrício Simão da Cunha Araújo

O procedimento, para Fazzalari, seria a estrutura constituída da sequência de


normas, atos e posições subjetivas, em uma determinada conexão, em que o cumpri-
mento de uma norma da sequência é pressuposto de incidência da norma seguinte,
de validade do ato nela previsto e extensão do ato previsto na norma antecedente,
visando a obtenção de um provimento19 estatal.
O processo então seria espécie do gênero procedimento. Isto porque, seria
procedimento em que se apresenta característica complementar específica, o con-
traditório. Em outras palavras, seria o procedimento caracterizado pela participa-
ção dos possíveis afetados pelo provimento, em estrutura dialética garantidora de
simétrica paridade na colaboração para sua construção.
Nesse sentido, o processo passa a ganhar características de garantia da pes-
soa, pois, sempre que um ato estatal ocasionar ou puder ocasionar privações em
sua vida, liberdade, propriedade, enfim, em seu acervo jurídico, poderá participar
da construção deste provimento.
Daí a diferença essencial entre a teoria do processo como relação jurídica e
do processo como procedimento em contraditório. Para a primeira o processo seria
como veículo, meio ou instrumento da produção de provimentos. Para a segunda,
o processo é requisito inafastável para construção e legitimação do provimento, de
forma necessariamente dialogada entre os seus destinatários.20
Ademais, a ideia de relação jurídica é incompatível com a igualdade e sime-
tria de paridade necessária à legitimidade do provimento estatal. É que a relação
jurídica, na sua concepção civilista clássica, pressupõe um vínculo de sujeição
entre o sujeito ativo e passivo, atribuindo-se àquele o poder de exigir deste uma
conduta e a este o dever de prestá-la.
No processo, contudo, nenhuma parte pode, juridicamente, impor à outra
a prática de qualquer ato processual. Pelo contrário, o contraditório implica em
igualdade de tratamento (procedural dueprocess) e simetria de participação (subs-
tantive dueprocess), garantindo a todos os atingidos pelo ato a oportunidade de
defenderem de forma plena os seus interesses e argumentos na construção do
provimento.
O processo amplia os seus contornos na medida em que passa a privilegiar
a participação como elemento marcante e imprescindível de sua própria existên-
cia e da legitimidade do provimento estatal, seja ele jurisdicional, administrativo

19
O provimento, para Fazzalari, seria o ato estatal (administrativo, legislativo ou jurisdicional) impe-
rativo, sempre consistente na conclusão de um procedimento.
20
PENNA; LARA; CARVALHO. Processo, ação e jurisdição em Fazzalari. In: LEAL (Coord.). Estudos con-
tinuados de teoria do processo.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 77

ou legislativo. Certamente, portanto, foi a partir da contribuição fazzalariana que


o processo começou a ser entendido como fator de democratização do direito,
seja porque erguida sobre a pedra angular da participação, seja porque permitiu
superar “a idéia de uma teoria geral do processo, definida apenas como teoria do
processo jurisdicional”.21
Entretanto, data venia, é com a concepção constitucionalista que o processo
arvora-se à qualificação de elemento estrutural e imprescindível à construção do
Estado Democrático de Direito.

3.2  O processo constitucional


Foi só a partir da Segunda Guerra Mundial, conforme já mencionado, que
o processo passou a se consolidar como garantia constitucional, através da con-
sagração de princípios de direito processual nas Constituições da Itália, Espanha,
França e Alemanha.
Esse fenômeno proporcionou o surgimento do Direito Processual Cons­ti­
tucional ou do Processo Constitucional, consistente “na condensação meto­do­
lógica e sistemática dos princípios constitucionais do processo”.22 Trata-se de
colocação científica que examina o processo em suas relações com a Constituição,
abrangendo de um lado a tutela constitucional dos princípios fundamentais da
organização judiciária (órgãos, competência, garantias) e do processo (ação e defesa,
e postulados decorrentes) e de outro lado a jurisdição constitucional (controle
jurisdicional de constitucionalidade, jurisdição constitucional das liberdades).23
Segundo José Alfredo de Oliveira Baracho, a partir de então, “a tutela do
processo efetiva-se pelo reconhecimento do princípio da supremacia da Cons­
tituição sobre as normas processuais”,24 na direção de proteção efetiva dos direi-
tos fundamentais.25
O fato de as normas processuais passarem a ter estatura constitucional,
além de conferir-lhes hierarquia superior a quaisquer normas que lhes buscasse
restringir o âmbito de aplicação, também externou escolha fundamental do cons-
tituinte por um direito construído discursiva e democraticamente,26 culminando

21
BARROS. O modelo constitucional de processo e o processo penal: a necessidade de uma in-
terpretação das reformas do processo penal a partir da Constituição. In: CATTONI DE OLIVEIRA;
MACHADO (Coord.). Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo
democrático brasileiro, p. 333.
22
BARACHO. Processo constitucional, p. 125-126.
23
Ibidem.
24
BARACHO. Processo constitucional. Revista Forense, p. 105.
25
BARACHO, op. cit., p. 119.
26
CATTONI DE OLIVEIRA. O processo constitucional como instrumento da jurisdição constitucional.
Revista da Faculdade Mineira de Direito, p. 162.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
78 Fabrício Simão da Cunha Araújo

na criação de um “modelo constitucional” do processo jurisdicional e elevando


o processo a “centro de gravidade de toda a estrutura de atuação dos valores
constitucionais”.27
Certamente, Fazzalari já defendia o caráter discursivo do processo, contudo,
a fixação das balizas procedimentais em estatura constitucional, além de ampliar
o rol das garantias essenciais ao processo, acentuou em muito a potencialidade
do processo em veicular de forma efetiva os argumentos de cada parte na cons-
trução do direito.
Ademais, o processo, ao se configurar como espaço-discursivo construído
nas sólidas bases das garantias constitucionais fundamentais, se alinha muito
mais com o princípio democrático, visto que sociedades totalitárias são avessas
ao debate e o processo constitucional garante um “recinto de isonomia argumen-
tativa ampla e simultânea”,28 contra todo e qualquer poder, seja ele político ou
econômico.
Por esses motivos, Baracho discorre que o processo constitucional “não é
apenas um direito instrumental, mas uma metodologia de garantia dos direitos
fundamentais. Suas instituições estruturais [...] remetem-nos à efetivação dos direi-
tos essenciais”.29
Para Marcelo Cunha de Araújo o processo na acepção constitucional se
torna garantia fundamental, responsável pelo fornecimento da possibilidade de
discussão e participação em “um espaço de discurso ao cidadão, inserto em um
Estado Democrático de Direito, na construção de uma aplicação do direito legis-
lado em determinado caso concreto”.30
Para Brêtas, o processo (constitucional) é garantia fundamental de legiti-
midade democrática da jurisdição, pela promoção de um espaço procedimental
cognitivo-argumentativo que garanta aos interessados a efetiva participação na
atividade estatal de individualização das normas jurídicas abstratas e genéricas
do ordenamento jurídico a incidir na solução das particularidades do caso con-
creto reconstruído dialeticamente no processo.31
Diante do que se vem expor, ousamos definir o processo constitucional
como metodologia normativa que, pela inafastável obediência às garantias fun-
damentais, é formadora de um espaço procedimental cognitivo-argumentativo

27
ANDOLINA. O papel do processo na atuação do ordenamento constitucional e transnacional.
Revista de Processo, p. 64.
28
DEL NEGRI. Processo constitucional e decisão interna corporis, p. 41.
29
BARACHO. Direito processual constitucional: aspectos contemporâneos, p. 47.
30
ARAÚJO. O novo processo constitucional, p. 105.
31
BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 34, 37.

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O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 79

apto a permitir que a pessoa atingida pela decisão estatal efetivamente participe
de sua construção.
Portanto, o processo deixa de ser instrumento da jurisdição para alçar a con-
dição de elemento estruturante do Estado Democrático de Direito, sem o qual
nem a Jurisdição nem as outras funções estatais poderão ser exercidas. Além disso,
na medida em que compete ao Estado-Juiz adotar as providências necessárias para
a observância das garantias processuais no bojo do processo, é a Jurisdição que
atua como instrumento por meio do qual o processo se realiza.
A constitucionalização de normas processuais implica também a alteração
da interpretação de clássicos/antigos institutos, considerando a eficácia irradiante
das garantias constitucionais processuais. Entre muitos, pela brevidade deste tra-
balho e seus objetivos, vale a pena analisar especificamente o contraditório.

3.3  Contraditório
O espaço de diálogo criado pelo processo decorre de uma estrutura meto-
dológica normativamente construída que, ao mesmo tempo em que viabiliza
o embate discursivo-argumentativo das partes, em simétrica paridade, é apta a
afastar subjetivismo ou ideologia do agente público decisor, ou o denominado
prudente arbítrio do juiz.
É que, se na acepção clássica, o contraditório pressupunha o direito de
infor­mação e possibilidade de reação, na acepção constitucionalista do processo,
deixou de ser mera bilateralidade de audiência e passou a ser tido como “possi-
bilidade de influência (Einwirkungsmöglichkeit) sobre o conteúdo das decisões
e sobre o desenvolvimento do processo”,32 o que implica a impossibilidade de se
decidir qualquer questão relevante de ofício sem a anterior contribuição das par-
tes, considerando-se como relevante a questão de fato ou de direito necessária
como premissa ou fundamento para a decisão.33
Nesse mesmo sentido, Lenio Luiz Streck34 destaca uma renovada concepção
do contraditório, não mais no sentido negativo de garantia de oposição ou resis-
tência à atuação alheia, mas sim garantia no sentido positivo, de influir ativamente
no desenvolvimento do processo e na formação da resposta judicial.

32
NUNES. Processo jurisdicional democrático, p. 226.
33
NUNES, op. cit., p. 229-230.
34
STRECK. Hermenêutica, Constituição e processo ou de “como discricionariedade não combina com
democracia”: o contraponto da resposta correta. In: CATTONI DE OLIVEIRA; MACHADO (Coord.).
Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro, p. 18.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
80 Fabrício Simão da Cunha Araújo

Esse direito de efetivamente influir no conteúdo das decisões implicaria


também o direito da parte e o correlato dever da autoridade de não só tomar
conhecimento dos argumentos formulados, mas analisá-los de forma séria e
detida.35
Daí, Streck assevera, com amparo nas lições de Flaviane de Magalhães Barros,
que a limitação ao subjetivismo do juiz se daria pelo impedimento de adotar uma
fundamentação que extrapole os argumentos jurídicos de modo que a “decisão
racional se garanta em termos de coerência normativa, a partir da definição do
argumento mais adequado ao caso”.36
Humberto Theodoro Júnior assevera que o julgado “sempre será fruto do
debate das partes, e o juiz motivará sua decisão em cima dos argumentos ex-
traídos das alegações dos litigantes, seja para acolhê-las seja para rejeitá-las”.37 A
decisão jurisdicional não pode ser ato isolado, deve ser resultado lógico da discus-
são jurídica ocorrida no ambiente processual, de onde se infere a imprescindível e
umbilical “conexão do princípio do contraditório e o princípio da fundamentação
das decisões jurisdicionais”.38
Em suma, “a atividade do intérprete — quer julgador, quer cientista — não
consiste em meramente descrever o significado previamente existente dos disposi-
tivos. Sua atividade consiste em constituir esse significados”.39 Pelo contraditório, na
sua perspectiva democrático-constitucional, essa construção/constituição só pode
ser pela cooperação daqueles a quem ela interessa. Eles oferecerão os argumentos
como se fossem tijolos e à função jurisdicional incumbe utilizar os melhores, no
sentido daqueles que edifiquem o caminho adequado à realização da Constituição,
mas sempre dizendo, tijolo por tijolo, porque devem ou não ser utilizados.

3.4  Jurisdição Constitucional Democrática


Além do contraditório, outros princípios ou garantias propriamente pro-
cessuais ganham interpretação expansiva e reforçada, como o direito de ação, a
ampla defesa e a isonomia. Além desses, a percepção constitucional do processo
também abarca, conforme já asseverado, o fortalecimento da Jurisdição pela atri-
buição de estatura constitucional aos seus princípios estruturais.

35
STF, Pleno, MS nº 24.268/MG, Rel. para o acórdão Min. Gilmar Mendes, ac. 05.02.2004, RTJ 191/922.
36
Ibidem.
37
THEODORO JÚNIOR. Constituição e processo: desafios constitucionais da reforma do processo civil
no Brasil. In: CATTONI DE OLIVEIRA; MACHADO (Coord.). Constituição e processo: a contribuição do
processo ao constitucionalismo democrático brasileiro, p. 253.
38
BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 101.
39
ÁVILA. Teoria dos princípios 003, p. 24.

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O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 81

Nesse sentido, na esteira da brilhante obra de Brêtas, ganham relevo princípios


diretivos da Jurisdição como: o do juízo constitucional, da vinculação da jurisdição
ao Estado Democrático de Direito (condensação dos princípios da supremacia da
Constituição e da reserva legal), do devido processo constitucional, da fundamenta-
ção das decisões jurisdicionais (em observância do contraditório e da congruência)
e o da eficiência jurisdicional.40
Com este reforçado arcabouço constitucional estruturante, fortalece-se a
independência da função jurisdicional estatal e, por consequência, a jurisdição
constitucional que, replicando a clássica distinção entre direito objetivo e sub-
jetivo, abrange a um só tempo a garantia da Constituição (o controle de consti-
tucionalidade das leis) e a jurisdição constitucional das liberdades (garantia dos
direitos fundamentais).41
Esclarecendo, enquanto o controle de constitucionalidade é o juízo de afe-
rição da adequação ou compatibilidade das normas infraconstitucionais à Lei
Fundamental, a jurisdição constitucional das liberdades é “a atividade jurisdicio-
nal destinada à tutela das normas constitucionais que consagram os direitos da
pessoa humana”.42
A atribuição de estatura constitucional às normas estruturais da função estatal
jurisdicional permite que essas duas finalidades sejam efetivamente cumpridas, na
medida em que enaltece e potencializa sua aptidão de conformar as demais funções
estatais aos preceitos constitucionais.
Assim, no paradigma do Estado Democrático de Direito, para que se possa
falar em modelo constitucional do processo não só se deve assegurar espaço de
participação real das pessoas, mas, para que as discussões ali travadas não sejam
inócuas e o melhor argumento seja realmente levado a efeito, a função jurisdicio-
nal deve ser sempre constitucional.
Necessário reforçar: sob a égide do Estado Constitucional Democrático,
toda jurisdição é constitucional.43 Isso, por três motivos: (i) sempre se analisa pre-
liminarmente, ainda que de forma implícita, a constitucionalidade da lei;44 (ii) a

40
BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, 2010.
41
CATTONI DE OLIVEIRA. O processo constitucional como instrumento da jurisdição constitucional.
Revista da Faculdade Mineira de Direito, p. 166.
42
BARACHO. Processo constitucional. Revista Forense, p. 111.
43
No mesmo sentido, cf. Brêtas, referindo-se ao sistema jurídico-constitucional brasileiro (BRÊTAS.
Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 47).
44
Isso se afirma especialmente em ordenamentos jurídicos que trabalham com o controle de cons-
titucionalidade difuso. Entretanto, mesmo naqueles em que só um órgão jurisdicional concentra a
análise de controle de constitucionalidade, a interpretação da norma infraconstitucional deve ser
sempre conforme a Constituição e com o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
82 Fabrício Simão da Cunha Araújo

decisão jurisdicional sempre deve ser apta a realizar,45 em maior ou menor extensão
e intensidade, direta ou indiretamente, direitos fundamentais, especialmente
considerando o princípio da máxima eficácia, o da dimensão objetiva e a cha-
mada eficácia horizontal dos direitos fundamentais.46 Conforme sufraga Baracho,
“as interpretações de uma norma ordinária não podem desconhecer o conteúdo
normativo do direito fundamental”.47 O terceiro motivo seria que, conforme já
asseverado, (iii) a Jurisdição deve, em todo e qualquer processo, adotar as provi-
dências necessárias para a observância das garantias constitucionais fundamen-
tais no bojo do processo, sob pena de ilegitimidade.
Nessa perspectiva, o processo constitucional passa a garantir não só as nor-
mas constitucionais processuais, mas a Constituição como um todo já que res-
guarda procedimentalmente as garantias ali sufragadas e, de forma simultânea
e por consequência, a efetivação dos direitos essenciais também previstos no
mesmo diploma normativo fundamental.
Vale transcrever a lição de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira:

Ao possibilitar a garantia dos direitos fundamentais processuais juris-


dicionais, nos próprios processos constitucionais de controle judicial de
constitucionalidade das leis e do processo legislativo, a Jurisdição Cons-
titucional também garantirá as condições para o exercício da autonomia
jurídica dos cidadãos, pela aplicação do princípio do devido processo le-
gal, compreen­dido, aqui, como “modelo constitucional do processo” (para
utilizar a expressão de Andolina-Vignera), a si mesma.48

4  Direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito


Além de exercer suas funções essenciais por meio do devido processo consti-
tucional, o Estado Democrático também se caracteriza pela prevalência, constante
expansão e máxima efetividade dos direitos e garantias fundamentais.

45
Tanto do ponto de vista de uma interpretação atenta ao direito fundamental quanto do ponto de
vista de a decisão ser levada a efeito para concretização (com o perdão da redundância) efetiva,
do direito fundamental.
46
O princípio da máxima eficácia e a dimensão objetiva dos direitos fundamentais serão objeto
de análise posteriormente neste artigo. Quanto à eficácia horizontal dos direitos fundamentais,
pode-se dizer, resumida e superficialmente, que consiste no reconhecimento de que os direitos
fundamentais, além de for­ça normativa frente ao Estado (eficácia vertical), limitando ou exigindo
sua atuação, também teriam for­ça normativa entre particulares, ou seja, de que o particular pode
violar diretamente a Constituição, assim como o ofendido pode pleitear proteção com forte nor-
mativo direto na Lei Fundamental.
47
BARACHO. Teoria geral do processo constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito, p. 125.
48
CATTONI DE OLIVEIRA. A legitimidade democrática da Constituição da República Federativa do Brasil:
uma reflexão sobre o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito no marco da teoria do
discurso de Jurgen Habermas. In: GALUPPO (Coord.). Constituição e democracia: fundamentos, p. 257.

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O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 83

4.1  Direitos fundamentais, humanos e individuais


Inicialmente, mister estabelecer a diferença conceitual entre os direitos huma-
nos, direitos fundamentais e direitos individuais. Segundo Sarlet:

O termo “direitos fundamentais” se aplica àqueles direitos (em geral atri-


buídos à pessoa humana) reconhecidos e positivados na esfera do direito
constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão
por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano
como tal, independemente de sua vinculação com determinada ordem
constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos
os povos e em todos os lugares, de tal sorte que revelam um caráter supra-
nacional (internacional) e universal.49

Rosemiro Pereira Leal, por sua vez, distingue direitos fundamentais dos
direitos individuais ao asseverar que estes seriam de acepção liberal, republica-
na ou procedimentalista do Estado, visto que pressupõem que o cidadão já esta-
ria apto à sobrevivência por “direitos subjetivos já historicamente apropriados ao
tempo da constitucionalização das garantias protetivas da continuidade de suas
formas de vida de fruição de liberdade, dignidade, igualdade e segurança política
e patrimonial”.50
Assevera que os direitos fundamentais, por outro lado, seriam típicos do
regime democrático, como “nível jurídico de igualdade estrutural para todos (iso-
nomia vital e teórico-linguística) assegurado e extensivo aos excluídos sociais”.51
Notável a diferença da concepção exposta pelo professor e seus efeitos para
nossas investigações quanto à proteção de direitos fundamentais por meio do
processo, na medida em que os direitos fundamentais seriam garantidores de
“isonomia vital e teórico-linguística” fundando pela via processual direitos de exis-
tência, personalidade, consciência e seus consectários.
Nesse sentido, o processo, ao garantir aos interessados no provimento
estatal participar de sua construção, entrega a estes a definição dos sentidos
normativos vigentes nos textos legais e, por consequência, o direito mais funda-
mental na democracia que é o de vida humana autoconstruída, autoesclarecida
e autoilustrada.52

49
SARLET; MARINONI; MITIDIERO. Curso de direito constitucional, p. 249. No mesmo sentido, sufraga
BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 70.
50
LEAL. Modelos processuais e Constituição democrática. In: CATTONI DE OLIVEIRA; MACHADO
(Coord.). Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático bra-
sileiro, p. 288.
51
Ibidem.
52
LEAL, op. cit., p. 290-291.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
84 Fabrício Simão da Cunha Araújo

A própria noção de direitos humanos implica não uma libertação, mas sim
uma relação de senhor e servo em relação àquele que tem os direitos “reconhe-
cidos” pelo outro. O que se tem então é direito fundamental, pela via proposicio-
nal, por conjecturas teóricas, a partir de uma linguagem jurídico-discursiva que,
se no âmbito processual se mostrar amparada na lei democrática, não pode ser
recusada.
Assim, na perspectiva constitucional do processo, o direito fundamental
garantidor da efetividade dos direitos fundamentais não seria o direito à prote-
ção judicial e sim o direito à proteção processual.

4.2  Características dos direitos fundamentais no Estado


Democrático de Direito
As Constituições democráticas, promulgadas no pós-guerra, se caracteri-
zam de forma comum por atribuírem especial importância aos direitos e garantias
fundamentais, o que se nota, entre outros motivos, por tratarem deles em seus
capítulos inaugurais e por lhes conferir regime jurídico diferenciado.53 Portanto,
os direitos fundamentais em sistemas jurídicos democrático-constitucionais se
diferenciam dos demais direitos ali previstos pela circunstância de que sua funda-
mentalidade é simultaneamente formal e material.
A fundamentalidade formal seria decorrente do regime jurídico diferen-
ciado atribuído a estes direitos, especialmente: (i) a supremacia hierárquica em
relação às demais normas jurídicas; (ii) a proteção recebida no que tange à sus-
ceptibilidade às emendas constitucionais (limites formais e materiais ao poder
constituinte derivado); (iii) a aplicabilidade de tais normas é direta, vinculando de
forma imediata as entidades públicas e também os atores privados.54
Quanto à fundamentalidade no sentido material, trata-se do conteúdo de
tais direitos, revelador da posição ocupada pela pessoa humana em determinado
Estado ou sociedade.55 Ou seja, a positivação de determinado direito humano na
ordem constitucional, além da relevância da tutela do bem jurídico específico,
ainda é relevante como perspectiva das opções do Constituinte.

53
Nesse sentido, a Constituição Brasileira de 1988, tal como ocorre na Lei Fundamental de Bonn
(1949), na Constituição portuguesa (1976) e na Constituição espanhola (1978).
54
SARLET; MARINONI; MITIDIERO. Curso de direito constitucional, p. 249. No mesmo sentido, sufraga
BRÊTAS. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 267.
55
SARLET, op. cit., p. 267.

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O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 85

4.3  Da dimensão objetiva dos direitos fundamentais


Assim, os direitos fundamentais são “a um só tempo, direitos subjetivos e
elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva”56 ou seja, “formam a
base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito Democrático”.57
Os direitos fundamentais, portanto, além da dimensão subjetiva clássica
de proteção de situações individuais, também instituem uma ordem objetiva de
valores fundamentais, “bases fundamentais da ordem jurídica”58 ou “as bases da
ordem jurídica da coletividade”,59 que torna de interesse geral da sociedade o seu
respeito e a sua satisfação. Nesse sentido é o entendimento de Daniel Sarmento,
Konrad Hesse, Paulo Bonavides,60 Suzana de Toledo Barros,61 Ingo Wolfgang
Sarlet62 e Jorge Reis Novais.63
Dessa acepção objetiva dos direitos fundamentais decorrem, basicamente,
dois efeitos jurídicos mais relevantes: (i) os direitos fundamentais ganham eficá-
cia irradiante, condicionando a interpretação de todas as normas infraconstitu-
cionais que compõem o sistema jurídico, filtradas em seu sentido para assegurar

56
MENDES. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional,
p. 36.
57
MENDES, op. cit., p. 36.
58
SARMENTO. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: SAMPAIO
(Coord). Jurisdição constitucional e os direitos fundamentais, p. 254.
59
HESSE. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, p. 239.
60
BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 481.
61
BARROS. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de
direitos fundamentais, p. 128.
62
SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 34. Vale a pena transcrever os ensinamentos de
Sarlet: “ficando consignado que os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de
serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além
disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia
em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e
executivos. Em outras palavras, [...] um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação
positiva dos poderes públicos” (grifos nossos).
63
NOVAIS. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição,
p. 66. Para ele: “para além da sua dimensão subjectiva, os direitos fundamentais constituem, no
seu conjunto, um sistema ou ordem objectiva de valores que legitima a ordem jurídico-constitu-
cional do Estado, que condiciona constitutivamente toda a actuação dos poderes constituídos
e que irradia uma força expansiva a todos os ramos do direito [...] é possível retirar das normas
de direitos fundamentais, mesmo daquelas que preveem primariamente posições jurídicas sub-
jectivas, conteúdos jurídicos des-subjectivizados, que se subtraem ao quadro da estrita relação
Estado/indivíduo para reclamarem uma validade universal e que são próprios da qualidade dos
direitos fundamentais enquanto elementos objectivos fundamentais da ordem de Estado de
direito democrático. [...] O reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais pode
ser assinalado [...] como a inovação mais produtiva na dogmática dos direitos fundamentais do
pós-guerra” (grifos nossos).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
86 Fabrício Simão da Cunha Araújo

coerência com tais direitos, daí a técnica hermenêutica de interpretação conforme


a Constituição e (ii) função protetiva dos direitos fundamentais: em cada positiva-
ção constitucional de direito fundamental há uma norma impositiva/vinculante
ao Estado do dever de proteger e promover os direitos fundamentais — “dever de
proteção implícito dos direitos fundamentais vinculante aos entes estatais”.64 Por
isto é que, segundo José Carlos Vieira de Andrade, ao ultrapassarem a concepção
individual e subjetiva encerrada em cada cidadão isoladamente considerado, os
direitos fundamentais valem juridicamente também como valores ou fins que a
sociedade, através do Estado, se propõe a perseguir.65

4.4  Funções dos direitos fundamentais


Sob a égide do Estado Democrático de Direito, em que os direitos funda-
mentais assumem papel principal e estratégico, segundo Mendes, valendo-se dos
ensinamentos de Georg Jellineck, os direitos fundamentais cumprem diferentes
funções na ordem jurídica. Na sua concepção clássica, são direitos de defesa, des-
tinados a defender posições subjetivas contra a intervenção do Poder Público.
Portanto, contém disposições definidoras de uma “competência negativa do
Poder Público [...] que fica obrigado a respeitar o núcleo de liberdade constitucio-
nalmente assegurado”.66
Entretanto, a concepção dos direitos fundamentais exclusivamente como
direitos de defesa não garante o pleno exercício da vida, liberdade e dignidade.
Da mesma forma que a existência de provimento estatal (lei, ato administrativo
ou jurisdicional) pode ser atentatória, também sua falta pode se revelar afrontosa
ao piso existencial mínimo de vida com dignidade.
Daí que podem cumprir também a função de garantias positivas do exer-
cício de liberdades, assim denominados porque exigiriam não um dever de abs-
tenção, mas de atuação. Gilmar Mendes distingue quatro espécies de direitos
fundamentais positivos que, seguindo seus ensinamentos,67 passamos a explanar.
Nos casos em que a atuação estatal exigida é normativa, trata-se de direitos
fundamentais de proteção de institutos jurídicos, como é o caso do direito de pro-
priedade, direito de herança, direito de greve, direito ao juiz natural, entre outros.
Com efeito, aqui não basta que o legislador se abstenha de estabelecer restrições

64
MORO. A tutela judicial dos direitos fundamentais pelo Ministério Público. Páginas de Direito.
65
VIEIRA DE ANDRADE. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 145.
66
MENDES. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucio-
nal, p. 36-37.
67
MENDES, op. cit., p. 44-47.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 87

normativas ao núcleo essencial desses institutos, cabe-lhe definir por regras os


contornos e a amplitude desses direitos, densificando o seu conteúdo.
Por outro lado, quando o que se exige é uma atuação concreta do Estado, de
forma a “criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos
constitucionalmente assegurados”,68 trata-se de direitos fundamentais enquanto
direitos a prestações positivas. É o caso dos direitos fundamentais de caráter social,
como educação, saúde, transporte público, moradia, alimentação, entre outros.
Há direitos fundamentais que para serem efetivados e fruídos exigem do
Estado providências no sentido de criação e conformação de órgãos, setores e/ou
repartições além de, simultaneamente, providências normativas aptas a ordenar
a fruição de tais direitos. Trata-se de direitos fundamentais à organização e ao pro-
cedimento. É o caso dos direitos de acesso à justiça, direito de proteção judiciária,
direito de defesa e direitos à efetividade e celeridade processual.
Por fim, há hipóteses em que é necessária a atuação normativa ou concreta
do Estado de forma a excluir benefício incompatível com o princípio da igual-
dade, para que se resguarde o direito fundamental de isonomia. É o caso, por
exemplo, de determinada norma ou ato administrativo que estabeleça benefícios
a certo grupo sem fazê-lo para outro, à míngua de critérios de diferenciação que
legitimem o tratamento discriminatório.
Diante de extenso rol de direitos fundamentais como garantias positivas
para o exercício de liberdade previsto na Constituição Brasileira de 1988, muito se
discute quanto ao grau de vinculação e eficácia de tais direitos frente ao Estado,
bem como da possibilidade de se exigir processualmente prestações positivas,
normativas ou administrativas, para sua implementação. Em outras palavras, se
tais direitos são passíveis de realização pelo processo constitucional.
É que, em sentido contrário, argumenta-se que o Estado estaria limitado por
uma reserva do possível, não sendo razoável exigir-lhe o cumprimento de todas
as prestações positivas previstas na Constituição. Ao argumento de que a reserva
do possível seria verdadeiramente uma reserva “financeira” do possível, os órgãos
esta­tais inadimplentes asseveram que, diante da notória limitação de orçamentos,
a escolha de quais políticas públicas priorizar e executar seriam primariamente
dos órgãos executivos e legislativos, por um crivo de discricionariedade insindicá-
vel pelos órgãos jurisdicionais.
Ainda se aduz que o princípio da separação dos poderes não permitiria que
através de um processo jurisdicional se impusesse aos órgãos estatais administra-
tivos ou legislativos obrigações de fazer inerentes à sua função típica.

MENDES, op. cit., p. 46.


68

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
88 Fabrício Simão da Cunha Araújo

Tais argumentos poderiam ser mais persuasivos em sistemas jurídicos nos


quais os direitos fundamentais de caráter positivo não foram consagrados ex­pres­
samente no texto constitucional, como é o caso da Alemanha. No Brasil, contudo,
sem sentido a discussão. É que no sistema constitucional brasileiro toda e qual-
quer norma definidora de direitos e garantias fundamentais tem aplicação ime-
diata, nos termos do art. 5º, §§1º e 2º.69
Não só os direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos previstos
no art. 5º, mas todas as normas definidoras de tais direitos e garantias do sistema
têm aplicação imediata, incluídas, portanto, as demais previstas no Título II da
CB/88, (os direitos sociais, os direitos relativos à nacionalidade e os direitos políti-
cos), as inseridas na ordem jurídica por meio de tratado internacional, as previstas
na própria CB/88 em outros títulos ou, ainda, as que decorram de interpretação
sistemática e constitucional do ordenamento jurídico (art. 5º, §2º e §3º, da CB/88).
Ademais, no sentido da possibilidade de sua efetivação pelo processo cons­
titucional, também é relevante o fato de que o constituinte originário, além de
prescrever extenso rol de direitos fundamentais de caráter positivo, cuidou de pre­ver
também as garantias processuais-constitucionais para sua realização. Há ações
constitucionais específicas para assegurar direitos e garantias fundamentais
quando a sua violação decorre de omissão do poder público, quais sejam, o man-
dado de injunção (art. 5º, LXXI) e ação direta de inconstitucionalidade por omis-
são (art. 103, §2º, ambos da CB/88).
Demonstrado que não se lhes pode negar eficácia jurídica, é relevante res-
saltar que, por outro lado, tampouco se lhes pode conferir (ao menos não sem
uma reflexão crítica em ambiente constitucionalmente processualizado) a mesma
efetividade (ou eficácia social) que os direitos fundamentais de caráter negativo,
ou enquanto clássicos direitos de defesa.
Portanto, é no âmbito dialógico, criado pelas balizas de um processo cons-
titucional, que eventuais violações dessas “obrigações de fazer” impostas pelas
normas constitucionais ao poder público devem ser apreciadas e cotejadas com
argumentos contrários de reserva do possível e separação de poderes.

69
Ao contrário do que possa parecer, o artigo 5º, §1º, da Constituição Brasileira de 1988 não con-
fere aplicabilidade imediata somente aos direitos e garantias fundamentais previstos no art. 5º.
Basta comparar que o Título II da CB/88 é denominado “Dos direitos e garantias fundamentais”
e o art. 5º, §1º, prescreve que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata” (grifos nossos). Ainda, em simples interpretação literal, basta verificar o teor
do art. 5º, §2º, da Constituição Brasileira de 1988, pelo qual se estabelece regime materialmente
aberto de direitos fundamentais.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 89

5  O incremento de proteção pelo processo constitucional


Diante dos traços delineados, verifica-se que o processo constitucional, pela
jurisdição constitucional das liberdades, ao tornar concretos os direitos funda-
mentais reconhecidos constitucionalmente, assegura a legitimidade necessária
ao princípio democrático.
Embora haja interessantes questões a se analisar sobre a efetivação jurisdi-
cional dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa, as maiores dificul-
dades e desafios se dão em relação aos direitos fundamentais enquanto garantias
positivas do exercício de liberdades.
Conforme já asseverado, possuem maior e mais complexa amplitude do
que os direitos fundamentais de defesa. Trata-se de normas de cunho impositivo
de deveres ao Estado, atribuindo deveres, programas de ação, fins, tarefas e/ou
políticas públicas aos poderes públicos.
Quando se trata de direitos a serem implementados com programação e exe-
cução gradual, continuada e coordenada, não gozam da mesma eficácia jurídica
que direitos de proteção e defesa, sob pena de se comprometerem seriamente a
execução de outras políticas públicas e a garantia de outros direitos fundamentais
de outros cidadãos.
Por outro lado, diante da previsão do art. 5º, §1º, da CB/88 e, consequente-
mente dos princípios democrático-constitucionais de máxima eficácia e efetivi-
dade dos direitos fundamentais (dimensão objetiva dos direitos fundamentais),
há que lhes conferir eficácia jurídica plena, ao menos para reconhecer que inde-
pendem de lei para serem observados. Ingo Sarlet, ao discorrer sobre os direitos
fundamentais de caráter positivo, assevera que:

Em termos pragmáticos, o que importa destacar, neste contexto, é o fato


de que um direito fundamental não poderá ter a sua proteção e fruição
negada pura e simplesmente por conta do argumento de que se trata
de direito positivado como norma programática e de eficácia meramente
limitada, pelo menos não no sentido de que o reconhecimento de uma
posição subjetiva se encontra na completa dependência de uma interpo-
sição legislativa.

Deveras, portanto, pelo princípio democrático, é a lei que está sempre orien-
tada para o cumprimento, observância e densificação dos direitos fundamentais
e não estes que ficam à mercê da lei, sob pena de se lhes retirar, seu caráter de
“trunfos contra a maioria”.70 A forma e a extensão dessa aplicabilidade direta,

NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Ed., 2003
70

apud SARLET; MARINONI; MITIDIERO. Curso de direito constitucional, p. 249.

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90 Fabrício Simão da Cunha Araújo

independente de lei, deverão ser consideradas à luz das peculiaridades de cada


direito fundamental e das circunstâncias concretas.
Em outros termos, só através de um procedimento obediente às garantias
fundamentais e, por consequência, formador de um espaço procedimental cog-
nitivo-argumentativo apto a permitir que a pessoa atingida pela decisão estatal
efetivamente participe de sua construção, que se delineará a efetividade (eficácia
social) de tais previsões constitucionais.
Certamente, é pelo processo constitucional, com observância especialmente
das garantias fundamentais do contraditório (na acepção positiva), da ampla defesa
(aqui incluídos o direito fundamental à prova e à assistência jurídica por advogado),
da motivação das decisões e da reserva legal, que se fará o acertamento do direito
fundamental ao indicar a “resposta adequada à Constituição, isto é, uma resposta
que deve ser confirmada na própria Constituição”,71 de forma a assegurar a efetiva
dignidade da pessoa humana.
Deveras, pela via processual, realmente apta a ser qualificada como cons-
titucional, se vem limitando o argumento de “reserva do possível” em prol da
efetividade dos direitos fundamentais positivados, conforme se verifica na juris-
prudência72 do egrégio Supremo Tribunal Federal (STF).
Na medida cautelar incidental à ADPF nº 45, o Min. Celso de Mello reconhe-
ceu que a análise da alegação de reserva do possível deve-se dar caso a caso, sob
balizas processuais. Assentou que se trata de argumento que deve ser provado
de forma objetiva para que o poder público se desonere do dever imposto pela
Constituição.73

71
STRECK. O que é isto: “decidir conforme a consciência”?: protogênese do protagonismo judicial.
In: MACHADO; CATTONI DE OLIVEIRA (Coord.). Constituição e processo: entre o direito e a política,
p. 247.
72
No RE nº 271.286/RS se assegurou a eficácia plena do direito à saúde, impondo ao Estado o dever
de fornecer medicamentos gratuitamente. No mesmo sentido, o RE nº 367.089/RS. Ainda, no AI
nº 222.046/SP se assegurou aplicabilidade ao art. 7º, XVIII, garantindo o direito à licença remune-
rada de 120 dias à gestante.
73
“É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais — além de caracterizar-se pela gra-
dualidade de seu processo de concretização — depende, em grande medida, de um inescapável
vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, com-
provada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá
razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando
fundado no texto da Carta Política. [...] Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do
possível” — ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível — não pode ser invo-
cada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitu-
cionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação
ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial
fundamentalidade. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial),

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O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 91

O egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ), no REsp nº 764.085/PR decidiu


de forma semelhante: “A reserva do possível não pode ser apresentada como ale-
gação genérica, destituída de provas da inexistência de recursos financeiros”.74
Daí a importância do processo constitucional, especialmente da vinculação
da decisão ao contraditório e à reserva legal para a construção do provimento:
pleiteando o autor direito reconhecido em lei (no caso, a CB/88), provados os fatos
constitutivos de seu direito (situação de necessidade), compete ao réu fazer prova
de fato impeditivo (insuficiência de recursos) para se eximir de dar efetividade ao
direito fundamental (art. 333, II, do Código de Processo Civil).
No Recurso Extraordinário nº 410.715/SP, a Segunda Turma do STF mitigou
alegações contrárias à efetividade dos direitos fundamentais sociais baseadas na
independência das funções estatais.75 Assegurou a aplicabilidade direta ao art. 208,
IV, da CB/88, no sentido de garantir o direito à creche para crianças entre 0 a 6 anos
de idade.
Mais uma vez, pela análise dos argumentos aventados, das provas produzi-
das pelas partes, das peculiaridades do direito fundamental pleiteado no caso con-
creto e das demais normas pertinentes (princípios e regras), com forte na garantia
do processo constitucional, deu-se efetividade ao direito fundamental social.
Insista-se que, no caso, foi a confirmação da vinculação da função jurisdicio-
nal ao Estado Democrático de Direito (portanto, ao princípio da supremacia da
Constituição e da reserva legal) que implicou a prevalência do direito fundamental

estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois
de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros
projetos se deverá investir” (ADPF 45 MC/DF. Distrito Federal. Rel. Min. Celso de Mello. DJ, 04 maio
2004, grifos nossos).
74
REsp nº 764.085/PR. Rel. Min. Humberto Martins. Segunda Turma. DJe, 10 dez. 2009.
75
Os Municípios — que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF,
art. 211, §2º) — não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que
lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limi-
tação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se
do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a com-
prometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito
básico de índole social. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerro-
gativa de formular e executar políticas públicas revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário,
determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas
definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplen-
tes, cuja omissão — por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre
eles incidem em caráter mandatório — mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de
direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à “reserva
do possível”. (RE nº 410.715 AgR/SP. AG.REG. no Recurso Extraordinário. Rel. Min. Celso de Mello.
Segunda Turma. DJ, 03 fev. 2006, grifos nossos).

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à educação sobre argumentos que, caso veiculados fora desse ambiente procedimental
cognitivo-argumentativo sustentado pelas sólidas balizas das garantias processuais
fundamentais, poderiam prosperar.
Deveras, a prevalência da jurisdição constitucional das liberdades sobre o argu­
mento de violação à “separação de poderes” deve-se dar no espaço dialógico cria­do
pelo processo constitucional, o que só reforça o princípio democrático, já que além
de dar efetividade ao direito fundamental, a omissão administrativa/legislativa é
sanada pela ação da pessoa legitimada ao processo. Na esteira das lições de Baracho,
“a jurisdição constitucional atua por meio do processo constitucional e tutela a regu-
laridade constitucional do exercício ou atividades dos órgãos constitucionais”.76
No mesmo sentido, o egrégio Superior Tribunal de Justiça no Resp nº 1.041.197,77
ao determinar o fornecimento de equipamentos médicos a hospital universitário,
após a análise das peculiaridades do caso concreto no espaço processual, sufragou
que:

seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes,


originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos funda-
mentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos
direitos sociais, igualmente fundamentais. Com efeito, a correta interpre-
tação do referido princípio, em matéria de políticas públicas, deve ser a
de utilizá-lo apenas para limitar a atuação do judiciário quando a admi-
nistração pública atua dentro dos limites concedidos pela lei. Em casos
excepcionais, quando a administração extrapola os limites da competên-
cia que lhe fora atribuída e age sem razão, ou fugindo da finalidade a qual
estava vinculada, autorizado se encontra o Poder Judiciário a corrigir tal
distorção restaurando a ordem jurídica violada.

Nos casos em que a prestação positiva exigida do poder público é de caráter


normativo, a constitucionalização do processo também tem permitido o desenvol-
vimento e a alteração da jurisprudência quanto aos efeitos produzidos pela sen-
tença proferida no mandado de injunção e por consequência maior efetividade
aos direitos fundamentais.
Inicialmente a jurisprudência do STF restringia a amplitude da jurisdição cons-
titucional, ao argumento de que lhe competiria exclusivamente declarar a mora do
poder público em editar a norma e cientificá-lo nesse sentido. Trata-se da posição não

BARACHO. Processo constitucional, p. 110, 113-114.


76

REsp nº 1.041.197/MS. Rel. Min. Humberto Martins. Segunda Turma. DJe, 16 set. 2009.
77

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O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 93

concretista.78 A sentença tinha exclusivamente efeitos declaratórios, sem qualquer


força mandamental ou constitutiva, aproximando-se de uma recomendação.
Esse posicionamento, ao interpretar equivocadamente a repartição das fun­
ções estatais em detrimento da jurisdição constitucional das liberdades, fez com
que vários dispositivos constitucionais restassem sem qualquer efetividade, mes-
mo diante de inúmeras concessões de injunção.
É o caso do direito fundamental ao aviso prévio proporcional, previsto no
art. 7º, XXI, da CB/88. Várias foram as injunções concedidas, de 1992 a 2007,79
declarando a mora do Congresso Nacional sem que isso fosse suficiente para
levar à concretização do direito fundamental.
Por isso, o STF foi alvo de várias críticas acadêmicas. Entre outros, vale citar
Luís Roberto Barroso:

As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas,


conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade.
De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento,
uma prescrição uma ordem, com força jurídica e não moral. Logo, a sua
inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cum-
primento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo esta-
belecimento das consequências da insubmissão ao seu comando.80

Vulnera-se a imperatividade de uma norma de direito quer quando se faz


aquilo que ela proíbe, quer quando se deixa fazer o que ela determina.81

Quanto ao argumento jurisprudencial específico de que o mandado de injun-


ção serviria para dar ciência da mora ao órgão estatal inadimplente, Barroso arremata
citando artigo jornalístico publicado por José Carlos Barbosa Moreira: “para dar ciên-
cia de algo a quem quer que seja, servia — e bastava — a boa e velha notificação”.82
Segundo Cattoni essa posição passiva e ofensiva à força normativa da
Constituição adotada pelo STF revela um entendimento inadequado do princí-
pio democrático e tem levado “ao surgimento de verdadeiras ‘ilhas corporativas
de discricionariedade’, o que estará resultando [sic] numa quase total ausência de

78
MORAES. Direito constitucional, p. 171-172
79
MI nº 369; MI nº 95; MI nº 124; MI nº 278; MI nº 695.
80
BARROSO. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 225.
81
BARROSO, op. cit., p. 233.
82
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. S.O.S para mandado de injunção. Jornal do Brasil, 11 set. 1990, 1º
Caderno, p. 11 apud BARROSO. Interpretação e aplicação da Constituição, p. 235.

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94 Fabrício Simão da Cunha Araújo

parâmetros normativos, abrindo espaço, dessa forma, para um exercício cada vez
mais arbitrário do poder político”.83
Diante das críticas e da flagrante inconstitucionalidade da omissão, ofensiva
a direitos fundamentais de aplicabilidade imediata, a jurisprudência do STF evo-
luiu para passar conferir efeitos constitutivos à concessão da injunção. Trata-se da
posição concretista direta.84
Nesse sentido, nos casos de direito de greve de servidor público85 e aposen-
tadoria especial do servidor público,86 aplicaram-se diplomas legais por analogia
(Leis nºs 7.783/1989 e nº 8.213/1991, respectivamente), resguardando o direito
fundamental e, inclusive, reconhecendo expressamente à função jurisdicional o
poder de, em pontos específicos, em que incompatível a lei aplicada por analogia,
“traçar os parâmetros atinentes a esse exercício”.87
Conforme se verifica, insista-se novamente, é pela via do processo constitu-
cional que se confere legitimidade democrática ao Direito, permitindo o acerta-
mento do direito fundamental e sua efetividade no caso concreto, mesmo que,
eventualmente, contra majoritariamente.
É que, “num Estado fundado na dignidade da pessoa humana [...] cada pes-
soa tem a si assegurada uma esfera de autonomia e liberdade individual que não
pode ser comprimida nem restringida pelo só fato de um ato normativo ou política
pública ser decorrente de uma decisão majoritária”.88
Conforme assevera Cattoni de Oliveira, não há que se falar que haveria
atuação legislativa da jurisdição constitucional visto que a função legislativa se
estrutura por discursos de justificação jurídico-normativa (ou de validade jurídi-
ca), para “estabelecimento de programas ou políticas para a realização de direitos
fundamentais” e a função jurisdicional por discursos de “aplicação reconstrutiva
do Direito Constitucional” (adequação de uma norma válida a uma situação de
aplicação).89

83
CATTONI DE OLIVEIRA. Direito processual constitucional, p. 234.
84
MORAES. Direito constitucional, p. 171-172. Vale esclarecer que a posição concretista direta con-
siste na determinação de regra apta a concretizar o direito pela própria sentença, conferindo
efeito constitutivo a esta. Já na posição concretista indireta se determina prazo para que o órgão
público inadimplente cumpra seu dever constitucional e edite a norma em cotejo, sob pena de, se
o Judiciário o fizer, não cumpra seu dever no prazo determinado. Nesse caso, portanto, confere-se
caráter mandamental à sentença.
85
MI nº 712, Pleno, Rel. Min. Eros Grau, DJe, 31 out. 2008; MI nº 670, Rel. para o acórdão Min. Gilmar
Mendes, DJe, 31 out. 2008; MI nº 708, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe, 31 out. 2008.
86
MI nº 721, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe, 30 nov. 2007.
87
MI nº 712, Pleno, Rel. Min. Eros Grau, DJe, 31 out. 2008.
88
SARLET; MARINONI; MITIDIERO. Curso de direito constitucional, p. 563.
89
CATTONI DE OLIVEIRA. O processo constitucional como instrumento da jurisdição constitucional.
Revista da Faculdade Mineira de Direito, p. 164, 168.

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O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 95

Ademais, nas palavras de Sarlet, “não existe razão para entender que o juiz
tem o poder para controlar a constitucionalidade da lei, quando esta é prejudicial
à solução do litígio, e não tem poder para controlar a falta de lei quando esta e
imprescindível à tutela de um direito fundamental”.90

6  Considerações finais
Neste trabalho, de forma sucinta, fixaram-se os contornos que caracterizam
Estado Democrático de Direito. Foi possível demonstrar que a soberania, na demo­
cracia, é titularizada pelo povo, que não é um sujeito passivo, apático, objeto de
manobras e de discursos demagógicos, mas sim a comunidade de legitimados ao
processo. Isto garante e, deveras, pressupõe sua participação a todo o momento
nos processos de atuação jurídica do poder estatal democrático.
Entre outras características, o Estado Democrático também se define pela
convicta garantia dos direitos fundamentais, o que tem impulsionado o desen-
volvimento de teorias voltadas à proteção dos mesmos. Nesse sentido, os direi-
tos fundamentais, externando escolhas fundamentais do constituinte, formam
ordem objetiva de valores, cuja proteção é intransigível dever do Estado. Assim,
não basta o reconhecimento constitucional dos mesmos, é necessário que se lhes
confira além de eficácia jurídica, a social (efetividade) e aplicabilidade imediata,
seja como direitos de defesa ou exigências de prestações positivas estatais. De
toda forma, a garantia de efetividade desses direitos sempre se dá pelo processo.
Quanto ao processo, a partir das contribuições de diversos juristas, buscamos
retratar como o processo emancipou-se de sua função clássica de instrumento da
jurisdição para se transformar em elemento estruturante e imprescindível à cons-
tante construção do Estado Democrático de Direito.
O modelo constitucional de processo, sustentado pelas sólidas vigas das garan-
tias constitucionais, em especial, o contraditório (incluindo sua acepção positiva) a
ampla defesa, além dos princípios diretivos da Jurisdição, é apto a fiscalizar, reivindicar
e impor ao Poder Público, ou mesmo a particulares, o cumprimento e observância
dos direitos e garantias fundamentais.
Nesse sentido, eventuais fundamentos que se contraponham à efetividade
dos direitos fundamentais devem ser formulados na via processual e pelas sólidas
balizas/garantias constitucionais, considerando a supremacia constitucional e a
consequente dimensão objetiva dos direitos fundamentais e as peculiaridades do
caso concreto, deverá prevalecer o melhor argumento.

SARLET, op. cit., p. 891.


90

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No caso dos direitos fundamentais de caráter positivo ou programático,


por exemplo, conforme demonstrado, o processo constitucional tem sido apto
a limitar argumentos de reserva do possível quando formulados sem atenção à
metodologia normativa processual, em prol da supremacia da constituição e do
propósito democrático dos direitos fundamentais de “trunfos contra a maioria”.
Em suma, o arcabouço de direitos fundamentais que estrutura a sociedade
é construído e reconstruído permanentemente pelo processo. Em última análise,
consequentemente, é a intransigível observância das garantias constitucionais no
âmbito processual que viabiliza a efetividade de todos os direitos fundamentais.
Portanto, emerge daí o acerto da teoria constitucionalista do processo ao
erigir tais garantias a elementos imprescindíveis à qualificação do procedimento
como processo, já que são, por consequência, os mais basilares requisitos da exis-
tência digna. A partir dessas sólidas vigas/garantias, é que atua a jurisdição (que
no Estado Democrático de Direito é sempre constitucional) e se assegura ao povo
o direito de reivindicar, fiscalizar e principalmente construir os próprios direitos
fundamentais.
Enfim, o processo constitucional permite, então, que os direitos fundamen-
tais não sejam simplesmente concedidos ou reconhecidos como um favor feito
pela autoridade, seja ela legislativa, administrativa ou jurisdicional, mas sim que
decorram diretamente das proposições e construções feitas na via processual, no
espaço procedimental cognitivo-argumentativo, a partir da linguagem jurídico-­
discursiva apta a impor à autoridade o dever de torná-los efetivos.

The Constitutional Process as an Element of Fundamental Right’s Protection


in the Democratic State of Law

Abstract: This article aims to investigate the contributions of the consti­


tutional process for the protection of fundamental rights and, consequently,
for the construction of a democratic State, which stands on two main
grounds. On one side, it has the duty to ensure the active participation of
people in the exercise of State functions and, on the other, the prevalence
of fundamental rights and guarantees. The process starts its inclusion in
democratic paradigm with its conception as a contradictory procedure,
since the focus are the stakeholders. However, it is only with the theory of
the constitutional process that it raises to the status of democratic State´s
structuring element. Characterized, then, by uncompromising observance of
constitutional guarantees, the process becomes a normative methodology
to ensure and (re)construct the fundamental rights in order to curb abuses
and omissions of public authorities and assume the role of link between
the aforementioned foundations of a democratic State. While the process,

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O processo constitucional como elemento de proteção dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito 97

through its strong foundations of constitutional stature, ensures legal


protection by constantly expanding the effectiveness of fundamental rights,
ensures also that the concrete content of such rights will always be built by
the protagonist participation of stakeholders in symmetric parity and not
simply dictated by the state. Creating a cognitive-argumentative procedural
space, it organizes the discourse about the extent of the effectiveness of the
fundamental right specifically pleaded (especially the positive ones), the real
factual and legal conditions of the State to meet the demand and the limits of
independence between State´s essential functions, in favor of the supremacy
of the Constitution, popular sovereignty, the maximum effectiveness of
fundamental rights, ultimately, the Democratic State of Law.

Key words: Democratic State of Law. Constitutional process. Constitutional


Jurisdiction of liberties. Contradictory. Fundamental rights. Reserve of
State´s obligations within the possibilities. Distribution and independence
of State´s essential functions.

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ARAÚJO, Fabrício Simão da Cunha. O processo constitucional como elemento de proteção


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Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 71-99, out./dez. 2012
O sono dogmático e o projeto
de um novo CPC

Luiz Eduardo Ribeiro Mourão


Mestre e Doutor pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUCSP). Advogado.

Palavras-chave: Sono dogmático. Pensamento dogmático. Direito vivo.

Sumário: 1 O sono dogmático – 2 O pensamento dogmático e o fenômeno


jurídico – 3 A experiência brasileira de codificação – 4 Dogmatismo versus o
direito vivo – 5 Do projeto do novo Código de Processo Civil – 6 Conclusão
– Referências

1  O sono dogmático
A expressão sono dogmático foi usada pelo filósofo alemão Immanuel Kant,
no prefácio dos Prolegômenos: “Confesso abertamente haver sido a advertência
de David Hume que, já lá vão muitos anos, pela primeira vez me despertou de
meu sono dogmático e incutiu às minhas pesquisas no domínio da filosofia espe-
culativa orientação inteiramente diferente”.1
A compreensão dessa expressão está atrelada ao momento histórico do autor,
no qual a razão fora elevada ao grande mestre da humanidade. A crença nas suas
habilidades para compreensão do universo e a definição das verdades era prepon-
derante entre os pensadores. O método de investigação, por excelência, era o dedu-
tivo e a ciência mais louvada, a matemática.
Paul Hazard, ao escrever sobre o pensamento europeu do século XVIII, afirma
que nessa nova época os homens pensavam não haver “função mais alta que a
sua (da razão), pois está encarregada de revelar a verdade, de denunciar o erro. Da
razão depende toda a ciência e toda a filosofia”.2 E “A razão basta a si própria: quem

Prefácio. KANT, Immanuel. Prolegômenos. São Paulo: Comp. Edit. Nacional, 1959. p. 28 (grifos nossos).
1

Id.
2

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102 Luiz Eduardo Ribeiro Mourão

a possui e exerce sem preconceitos jamais se engana [...] ela segue infalivelmente
o caminho da verdade”.3
Uma das consequências dessa confiança exacerbada na razão foi a produção
dos sistemas teóricos dogmáticos, no sentido “daqueles que tendem a absolutizar
suas próprias teorias, sem se disporem a pô-las em discussão de forma crítica (e
muito menos a revê-las ou refutá-las)”.4 André Comte-Sponville afirma que dog-
matismo, no sentido corrente, é “um pendor para os dogmas, uma incapacidade
de duvidar daquilo em que se acredita. É gostar mais da certeza do que da verdade,
a ponto de dar por certo tudo o que se julga verdadeiro”.5
Um exemplo concreto dessa visão de mundo, na qual se tenta sistematizar
o conhecimento do universo, por meio do estabelecimento de leis e princípios
racionais, dos quais todos os demais seriam deduzidos, encontra-se na famosa
obra de Isaac Newton, denominada Philosophiae naturalis principia mathematica,
na qual esse físico e matemático procurou explicar o movimento dos corpos por
meio de fórmulas matemáticas, gerando a mecânica clássica.
Concluímos, pois, que uma das principais ideias subjacentes à expressão
sono dogmático é a fé na razão, trabalhada com o método dedutivo.

2  O pensamento dogmático e o fenômeno jurídico


Sendo tarefa dificílima o homem se isolar de seu contexto histórico, esse
movimento dogmático estendeu seus efeitos para o mundo jurídico, tendo como
uma de suas principais consequências o movimento das codificações.
Leciona John M. Kelly:

O espírito racionalista do século XVIII não produziu somente obras acadê-


micas sobre a lei da natureza, mas também as primeiras tentativas legis-
lativas para codificar os sistemas jurídicos nacionais em linhas sugeridas
pelo ideal do direito natural. A mais influente dessas codificações é, natu-
ralmente, o código civil francês, que entrou em vigor logo após a virada
do século XIX.6

Segundo o autor acima citado, “esse trabalho havia sido antecipado pelos
esforços de outros lugares, notadamente da Prússia e da Áustria, para pôr em

3
Ibid., p. 37, 40. (O itálico não consta no original).
4
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 344.
5
Dicionário filosófico. Martins Fontes: São Paulo, 2003. p. 181 (grifos nossos).
6
Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 345.

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O sono dogmático e o projeto de um novo CPC 103

ordem um direito civil heterogêneo, herdado da desconcertante penumbra do


costume local e acréscimos romanos da Idade Média”.7
Segundo Franz Wieacker, “A ligação do jusracionalismo com o iluminismo
produziu, primeiro nos estados absolutos do centro e do sul da Europa, depois na
Europa ocidental após o processo revolucionário francês, uma primeira onda das
codificações modernas”.8
O Código Prussiano foi promulgado em 1794, o Austríaco em 1881, o Código
Civil Francês, chamado Código de Napoleão, em 1804, o Código Civil Alemão em
1900, o Código Civil Italiano em 1942 e o Português em 1966.
Percebe-se, portanto, que o século XIX, como fruto histórico do Iluminismo
(Idade da Razão), foi a era das grandes codificações europeias. Subjaz a essa ten-
dência a concepção da razão como faculdade suficiente para apreensão de todo
o fenômeno jurídico, a ponto de sistematizá-lo, de forma dogmática, em monu-
mentos linguísticos, denominados códigos. O Direito, assim, era tratado como um
sistema de normas, cuja aplicação seria feita pelo método lógico dedutivo, por
meio dos órgãos competentes.

3  A experiência brasileira de codificação


No Brasil, essa tendência parece ter chegado a situações extremas. Anali­
saremos, pelos limites deste trabalho, apenas dois códigos nacionais: a) a Cons­
tituição Federal e b) o Código de Processo Civil.
A história das codificações da Constituição Federal é interessantíssima.
Desde sua independência política, já foram promulgadas sete novas Constituições
Federais no Brasil.
A primeira foi a Constituição Federal de 1824, fruto da independência polí-
tica da Brasil.
A segunda foi promulgada em 1891, sessenta e sete anos após, como resultado
da proclamação da República.
A terceira, como consequência da derrota constitucionalista de 1932, foi
promulgada em 1934, apenas trinta e quatro anos após a anterior.
A quarta foi promulgada em razão do golpe de Estado de Getúlio Vargas, que
produziu a Constituição de 1937. Portanto, apenas dois anos após sua antecessora.
A quinta foi promulgada em 1946 e está relacionada ao movimento de demo-
cratização, pós Vargas. Portanto, catorze anos depois da anterior.

Ibid., p. 344.
7

História do direito privado moderno. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 365-366.
8

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104 Luiz Eduardo Ribeiro Mourão

A sexta Constituição Federal foi promulgada em 1967, vinte e um anos após


a que a precedeu.
A sétima foi promulgada em 1988 e relaciona-se ao movimento político de
redemocratização do país. Esta última procedeu à anterior em vinte e um anos.
Uma análise matemática indica a média de uma nova Constituição Federal
a cada vinte e cinco anos. Assim, se a vida média do homem brasileiro está em
torno de setenta e cinco anos, diríamos que, em matemática, cada cidadão bra-
sileiro teria, ao longo da vida, assistido três vezes à promulgação de uma nova
Constituição Federal.
Essa constatação empírica realmente nos mostra a tendência dogmática
dos constitucionalistas, no sentido de esperar que a alteração da Carta Política,
no mundo normativo, irá transformar o mundo empírico.
A situação do Código de Processo Civil, se comparada com a da Constituição
Federal, até que não é tão ruim. Entretanto, se cotejada com a experiência dos
países europeus, é crítica.
O primeiro Código de Processo Civil foi promulgado em 1939, ou seja, na
primeira metade dos novecentos. O segundo código foi promulgado em 1973,
no final da segunda metade do mesmo século. Como a iniciativa de revogação
do atual CPC só ocorreu agora, no início do século XXI, podemos dizer que os
processualistas têm-se contentado com dois códigos por século. Teríamos, em
matemática, cinquenta anos como a média de vida um CPC, no Brasil.
A experiência europeia é bastante diferente. Como vimos acima, grande
parte de seus códigos, produzidos nos séculos XIX e XX, anda continuam em vigor.

4  Dogmatismo versus o direito vivo9


O dogmatismo, segundo Kant, teria colocado o homem em estado de sono,
enquanto a leitura de Hume o teria despertado. Essa metáfora é bastante inte-
ressante, pois coloca em confronto dois estados físico-psicológicos do homem: o
sono e a vigília.
É importante notar que a atividade mental, no sono, produz os sonhos, que
só existem como abstrações. Constituem-se de fantasias! Em estado de vigília, no
entanto, o homem mantém contato com o mundo exterior, que chamamos de
realidade.
Podemos dizer, assim, numa interpretação livre dessa expressão, que o dog-
matismo produz objetos ideais, em contraposição à análise empírica do fenômeno

A expressão direito vivo foi usada no Brasil, por Eduardo José da Fonseca Costa, como título de seu
9

livro: O direito vivo das liminares, publicado pela editora Saraiva.

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O sono dogmático e o projeto de um novo CPC 105

jurídico, que nos coloca em contato com o mundo real, composto pelos objetos
físicos. À vertente racional relaciona-se o dogmatismo; à tendência empírica cor-
responde o direito vivo.

5  Do projeto do novo Código de Processo Civil


Acreditamos que a promulgação do novo Código de Processo Civil está pro-
fundamente atrelada ao sono dogmático kantiano, o que se pode constatar pelas
duas grandes justificativas para sua elaboração. A primeira, de natureza acadêmica,
está atrelada à afirmação de que o Código de Processo Civil de 1973 teria se tor-
nado, ao longo dos anos, uma “colcha de retalhos”. Essa crítica tem natureza pura-
mente lógica, na medida em que se baseia na suposta perda de unidade racional
do Código. A segunda justificativa tem natureza empírica e consiste na promessa
de efetividade na prestação da atividade jurisdicional, hoje em crise.

5.1  Da justificativa lógica


Quanto ao argumento lógico, temos algumas considerações contrárias.
Inicialmente, a justificativa de que se precisa promulgar um novo código,
pois o Código de 1973 teria perdido sua unidade sistemática, visa satisfazer, tão
somente, a necessidade lógica da razão humana. Não é uma necessidade empí-
rica, real, mas acadêmica. É um motivo que se estriba nas mentes dogmáticas,
que acreditam poder, com o uso da razão, montar um sistema de normas lógico
e perfeitamente coerente. Se, no código atual, há decisões com natureza de
sentença, que são agraváveis, contrariando a lógica do sistema, a verdade é que
esse problema é apenas acadêmico, na medida em que, para os profissionais do
direito, essa incongruência nada afeta, desde que esteja definido pela lei e pela
jurisprudência qual o recurso correto.
Além dessa primeira observação, de a necessidade de coerência lógica estar
atrelada apenas à razão, acreditamos que ela se funda no erro de pensar que seja
possível a elaboração de um sistema normativo totalmente lógico e absolutamente
coerente. Tal missão, a nosso ver, é impossível. Temos certeza de que, com a promul-
gação desse novo Código de Processo Civil, irão surgir inúmeras discussões jurídi-
cas sobre a correta compreensão das normas.
Aliás, da afirmação acima extraímos nossa terceira oposição ao projeto do
novo Código de Processo Civil, com base nesse viés intelectual. Nossa objeção
baseia-se na teleologia do processo, que é o julgamento do mérito. Portanto, toda
questão paralela, de natureza processual, em geral provoca o retardamento da pres-
tação jurisdicional, mediante a complicação do exercício da atividade jurisdicional.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 101-108, out./dez. 2012
106 Luiz Eduardo Ribeiro Mourão

Um exemplo do que queremos dizer pode ser fornecido com a inserção,


no ordenamento jurídico processual de 1973, do artigo 273, que instituiu as cha-
madas tutelas antecipadas. Quanto a essa alteração, temos duas considerações
a ser feitas. A primeira, de cunho prático, reside na confusão que produzia na
prática judiciária, em razão da necessidade lógica de diferenciação do que seja
uma medida cautelar e uma tutela antecipada. Assim, não raras foram as vezes
que os advogados ajuizavam ações cautelares e tinham o processo extinto, pois o
magistrado acreditava tratar-se de uma medida antecipatória. O inverso também
ocorria. Para solucionar esse impasse, foi necessária nova alteração legislativa,
que inseriu o parágrafo sétimo ao artigo 273, possibilitando a fungibilidade das
medidas.
Ora, se apenas uma alteração gerou a produção de tamanha discussão for-
mal, ou seja, de natureza puramente processual, em detrimento do atendimento
das necessidades do jurisdicionado, imaginemos quantas novas discussões lógico-­
processuais surgirão quanto à aplicação de um novo CPC. O aumento das discus-
sões com conteúdo processual será inevitável, desviando a atividade jurisdicional
de seu foco, que é a solução da lide.
A segunda crítica que fazemos baseia-se na percepção de que toda essa
celeuma, inclusive a própria inserção do artigo 273 no CPC de 1973, decorreu de
uma necessidade lógico-acadêmica de diferenciar as tutelas cautelares das ante-
cipatórias, sem perceber que ambas tinham um ponto em comum, mais relevante,
que é o fato de lidarem com situações emergenciais.
Se os doutrinadores estivessem se importando menos com o rigor lógico e
as definições precisas, típicas do método cartesiano, acreditamos que nem sequer
teria sido necessária a inclusão do artigo 273 no CPC de 1973, pois o poder geral
de cautela do magistrado poderia ter suprido essa falta.
Aliás, o CPC de 1973, quando entrou em vigor, foi considerado por muitos
um grande monumento jurídico, quiçá uma das mais modernas legislações pro-
cessuais do mundo. Passados apenas quarenta anos, já caiu em descrédito pelos
doutos. Esperamos que, na segunda metade do século XXI, o novo CPC, se promul-
gado, já não esteja também obsoleto e, novamente, creiamos na salvação oriunda
da promulgação de um novo Código, como agora.
Evidentemente, não somos contra a busca da precisão lógica, mas deseja-
mos ressaltar que essa não pode ser levada ao extremo, em prejuízo dos fatos
da vida. Afinal, esses não seguem a coerência lógica da razão pura, mas, muitas
vezes, apresentam-se de forma desordenada e confusa.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 101-108, out./dez. 2012
O sono dogmático e o projeto de um novo CPC 107

5.2  Da crise do Poder Judiciário


A segunda grande justificativa para a promulgação de um novo Código de
Processo Civil consiste na busca de solucionar a crise por que passa o exercício da
jurisdição.
Nesse ponto, o sono dogmático atinge o seu ápice, pois se estriba na ideia
de que o problema da crise da prestação da atividade jurisdicional está no mundo
abstrato, ou seja, legislativo. Essa percepção, segundo pensamos, é absolutamente
equivocada, pois a chamada crise do Poder Judiciário decorre quase que exclusiva-
mente de problemas estruturais do órgão que exerce a jurisdição. Por conseguinte,
a modificação legislativa consiste numa alternativa que não ataca o problema real
da famigerada crise. É uma proposta ilusória.
Segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional da Justiça – CNJ,10 em
2009, o Poder Judiciário possuía 16,1 mil magistrados e 312,5 mil servidores e a
taxa de congestionamento global da Justiça era de 71%, ou seja, todo esse per-
centual de processos não tinha sido solucionado. Na fase de execução, na qual se
praticam atividades para se concretizar o direito subjetivo no mundo empírico,
a taxa de congestionamento chegava a 80% na Justiça Federal e 90% na Justiça
Estadual.
Além do mais, o Poder Judiciário, segundo a referida pesquisa, possuía 16,1
mil magistrados e 312,5 mil servidores. Ora, segundo uma pesquisa publicada
pela revista Exame, a maior empresa brasileira, por número de funcionários, é a
ECT, com 107.992 empregados. A Odebrecht, que vem em segundo lugar, tem
92.128 funcionários. O Pão de Açúcar, em 5º lugar, teria 60 mil funcionários apro-
ximadamente.11 Portanto, pergunta-se, como o Poder Judiciário, com o triplo de
funcionários da maior empresa brasileira, não consegue prestar, de forma efetiva,
a função jurisdicional?
A pergunta que surge é a seguinte: a promulgação de um novo CPC resol-
verá esse problema empírico relativo à estrutura do Poder Judiciário? A promul-
gação de um novo CPC irá diminuir as demandas judiciais? Acreditamos que, no
mundo moderno, onde os cidadãos são cada vez mais aquinhoados com novos
direitos subjetivos, a tendência seja justamente de aumento das demandas judi-
ciais. A promulgação do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, produziu
um aumento de direitos subjetivos e, consequentemente, de litígios consumeris-
tas, que acabaram desaguando no Poder Judiciário.

10
Essas informações fazem parte da pesquisa “Justiça em números”, elaborada pelo Departamento
de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Supremo Tribunal Federal.
11
Dados fornecidos pela revista Exame.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 101-108, out./dez. 2012
108 Luiz Eduardo Ribeiro Mourão

A solução da crise do Poder Judiciário está na reforma da estrutura desse


órgão e não na modificação da legislação processual. Os dogmatas, contudo,
adormecidos, acreditam que a promulgação de um novo Código de Processo Civil
irá resolver o problema empírico de sobrecarga de demandas, numa estrutura
organizacional que ainda deixa muito a desejar, ainda mais quando comparada
com a administração das competitivas empresas do mundo privado.

6  Conclusão
Encerramos nossa exposição com duas conhecidas expressões da literatura
mundial:
A primeira refere-se à famosa afirmação de Kierkegaard, sobre a filosofia
idealista de Hegel, que tinha as pompas de um castelo, enquanto a realidade de
vida mais se assemelha a uma vida na choupana. Sem sombra de dúvida, a aca-
demia, especialmente no estudo do processo civil, vive num imenso castelo de
ideias e conceitos, cada vez mais precisos e logicamente interligados. Entretanto,
o jurisdicionado vivencia a prestação do serviço jurisdicional, como morador de
uma simples choupana, devido a sua ineficiência.
A segunda são as sábias palavras contidas nas Sagradas Escrituras, segundo a
qual não se põe remendo novo em veste velha, nem vinho novo em odres velhos,
sob pena de se perder ambos. Assim, enquanto o “odre” (Poder Judiciário) não for
severamente adequado às necessidades impostas pela sociedade, o vinho novo
continuará sendo desperdiçado, em prejuízo de toda uma nação.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. O sono dogmático e o projeto de um novo CPC. Revista Bra-
sileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 101-108, out./dez. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 101-108, out./dez. 2012
Coisa julgada material menos que
inter partes na extinção da execução
pela satisfação da obrigação no Direito
Processual Civil brasileiro

Rafael Cavalcanti Lemos


Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de
Buenos Aires. Mestrando em Ciências Jurídicas pela Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Direito
Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco.
Membro da Deutsch-Brasilianische Juristenvereinigung. Membro
Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros. Coordenador
Adjunto da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco.
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

Resumo: O art. 795 do Código de Processo Civil brasileiro afirma que a extin-
ção da execução só produz efeito quando declarada por sentença. Doutrina
e jurisprudência controvertem acerca da formação de coisa julgada material
na sentença de extinção da execução em virtude da satisfação da obrigação.
É menos que inter partes a coisa julgada material na sentença extintiva da
execução pela satisfação da obrigação, salvo quando o pagamento se der,
voluntariamente e sem erro, por quem não seja consumidor nem sujeito pas-
sivo de obrigação tributária.

Palavras-chave: Satisfação. Obrigação. Extinção. Execução. Sentença. Coisa


julgada material.

Sumário: 1 Introdução – 2 Coisa julgada na extinção da execução – 3 Conclusão


– Referências

1  Introdução
O Código de Processo Civil brasileiro (doravante CPC) arrola, em seu art. 794,
três hipóteses de extinção da execução civil, em todas as quais o próprio direito
material é atingido: (i) quando o devedor, coativa ou voluntariamente, satisfaz a
obrigação, (ii) quando o devedor obtém, por transação ou outro meio qualquer,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 109-121, out./dez. 2012
110 Rafael Cavalcanti Lemos

a remissão integral da dívida e (iii) quando o credor renuncia ao crédito. Essas


hipóteses de extinção da execução são meramente exemplificativas, podendo
ainda ser arroladas as seguintes: a) quando acolhidos os embargos do devedor, a
impugnação ao cumprimento de sentença ou a exceção ou objeção de pré-exe-
cutividade; b) quando pronunciada ex officio a prescrição (art. 219, §5º, do CPC);
c) quando o credor desistir da execução (art. 569, caput, do CPC); d) quando não
for encontrado o devedor ou inexistirem bens penhoráveis, na execução de título
executivo extrajudicial em juizado especial (art. 53, §4º, da Lei nº 9.099/1995); e)
quando acolhido o pedido de revisão criminal (caput dos arts. 63 e 626 do Código
de Processo Penal); f ) quando acolhido recurso interposto contra decisão execu-
tada provisoriamente (arts. 475-I, §1º, e 475-O, II e §1º, do CPC); e g) nos casos
pertinentes de (g.1) nulidade da execução (art. 618 do CPC) ou (g.2) extinção do
processo sem resolução do mérito indicados no art. 267 do CPC, aplicável subsi-
diariamente por força do art. 598 do CPC [cf. MONTENEGRO FILHO, 2011, p. 453;
WAMBIER (Coord.); ALMEIDA; TALAMINI, 2008, p. 295-297; ASSIS, 2007, p. 489;
GONÇALVES, 2011, p. 231-232; DIDIER JR. et al., 2010, p. 339-340].
Como observa Lima (1979, p. 89-90), o pagamento da dívida pelo devedor é
o modo mais perfeito de extinção da obrigação, porquanto por ele (pagamento)
dá-se o cumprimento efetivo da obrigação, sendo a prestação do que era devido
(a entrega, na obrigação de dar; a execução, na obrigação de fazer; a abstenção,
na de não fazer).
Inclui-se, ainda, na hipótese do art. 794, I, do CPC, a remição1 da execução
(art. 651 do CPC), que não é senão a satisfação integral (dívida e despesas proces-
suais) da obrigação após o momento executivo em que legalmente ela (satisfação)
é esperada (cf. caput dos arts. 475-J e 652 do CPC), mas anterior à alienação dos
bens penhorados (MOREIRA, 2010, p. 252).
Também se inclui nessa hipótese (do art. 794, I, do CPC), consoante deci-
dido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp nº 151.191/PE (cf.
também EREsp nº 79.825/SP e REsp nº 149.204/PE), o pagamento administrativo
quando em curso embargos à execução, independentemente de que o devedor
continue desejando ver apreciados os argumentos trazidos a juízo nos embargos:

PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS. PAGAMENTO DO


DÉBITO NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO. NECES­
SIDADE. CPC, ART. 794, I. PRECEDENTES.

Nesta acepção, termo constante do Código de Processo Civil português de 1876 e desaparecido
1

desse código a partir de 1939, com sugestão de prosseguimento em seu uso em Portugal por
Ferreira (2010, p. 414).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 109-121, out./dez. 2012
Coisa julgada material menos que inter partes na extinção da execução pela satisfação da obrigação... 111

- Satisfeita a obrigação fiscal na via administrativa, impõe-se a extinção


da execução e dos embargos de devedor, como estabelecido no art. 794,
I CPC.
- Recurso especial conhecido e provido, restabelecendo-se a sentença de
1º grau federal.
(REsp nº 151.191/PE, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, Segunda Turma,
julgado em 09.05.2000, DJ, p. 90, 12 jun. 2000).

Enfim, entre as hipóteses de extinção da execução no Projeto de Lei nº 166/2010


no Senado, outrossim consta a satisfação da obrigação, no inciso II do art. 845.
O art. 795 do CPC (art. 846 no Projeto de Lei nº 166/2010 no Senado), por
seu turno, afirma que a extinção da execução só produz efeito quando declarada
por sentença.
O presente trabalho visa justamente analisar que efeito produz a sentença
(ou acórdão ou decisão monocrática de membro de tribunal, quando neste for
processada a execução, cf. DIDIER JR. et al., 2010, p. 340) extintiva da execução
transitada em julgado, quando esta (execução) se encerra pela satisfação da obri-
gação (art. 794, I, do CPC).

2  Coisa julgada na extinção da execução


Diz o art. 467 do CPC que coisa julgada material é a eficácia que torna imu-
tável e indiscutível a sentença não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordi-
nário. Quer-se, com isso, dizer que a coisa julgada material pressupõe a formal
(SILVA, 2000a, p. 485), embora o momento de formação de uma seja o mesmo da
outra (WAMBIER (Coord.); ALMEIDA; TALAMINI, 2000, p. 615-616).
No dispositivo seguinte (art. 468 do CPC), lê-se que possui força de lei, nos
limites da lide e das questões decididas, a sentença que julgar, total ou parcial-
mente, aquela (lide). Essa força de lei é que marca distintivamente a coisa julgada
material da meramente formal (SILVA, 2000a, p. 485-486).
Para Santos (2006, p. 248), a sentença pela qual se extingue a execução em
virtude de transação, novação ou renúncia do direito limita-se a declarar essa extin-
ção e a validade formal do ato que a causou, podendo ser desconstituído qualquer
desses atos como os atos jurídicos em geral, na forma da lei civil (art. 486 do CPC).
Eis, nesse sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo:

1056814007 Apelação com Revisão Relator(a): Romeu Ricupero. Comarca:


São Paulo. Órgão julgador: 36ª Câmara de Direito Privado. Data do julga-
mento: 17/01/2008. Data de registro: 22/01/2008. Ementa: Locação em

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112 Rafael Cavalcanti Lemos

shopping center – Resilição – Execução extinta por acordo – Locatária que


propõe, anos depois, ação de revisão de cláusulas contratuais c/c repe-
tição de indébito – Carência da ação – Transação extrajudicial que só se
pode anular por vício de consentimento – Petição inicial que sequer aborda
o tema da anulação da transação e, muito menos, o de eventual vício de
consentimento – Ademais, impossibilidade de revisão de contrato findo,
ainda mais nas circunstâncias deste caso concreto, após confissões de
dívida, execução de título extrajudicial e acordo extrajudicial, com quita-
ções recíprocas – Apelação não provida.

Contudo, e ainda segundo Santos (2006, p. 248), extinta a execução quando


o devedor satisfaz a obrigação (art. 794, I, do CPC), a sentença respectiva permite
a formação da coisa julgada material e, destarte, desfaz-se tão só com o emprego
da ação rescisória (art. 485, caput, do CPC).
Nesse sentido, o acórdão seguinte do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO. REPETIÇÃO DE VALORES PAGOS EM EXECUÇÃO


FISCAL. COISA JULGADA. Conforme o art. 794 do CPC, a sentença que
extin­gue a ação em razão de pagamento é de mérito, devendo ser rescin-
dida ou anulada em ação própria. Apelação provida para extinguir o feito
sem julgamento de mérito (Apelação Cível nº 2008.72.12.000670-9/SC, Pri-
meira Turma do TRF da 4ª Região, Rel. Maria de Fátima Freitas Labarrère.
j. 27.07.2011, unânime, DE, 08 ago. 2011).

Montenegro Filho (2011, p. 454) sustenta que apenas a sentença proferida


nos embargos do devedor, quando não se limite a apreciar questões de ordem
processual, autoriza a formação da coisa julgada material. As demais sentenças de
extinção da execução não seriam de mérito e assim não ensejariam a propositura
de ação rescisória.
Para Marinoni e Arenhadt (2008, p. 344, 464), faz coisa julgada material
apenas a sentença que julga a impugnação a seu cumprimento, os embargos do
deve­dor e a exceção ou objeção de pré-executividade. O pagamento voluntário,
a transação e a renúncia, na execução, não passariam de atos jurídicos perfeitos
homo­logáveis por sentença, a qual, proferida, seria apta à formação de coisa jul-
gada meramente formal, anulando-se o ato em caso de vício de consentimento
(art. 486 do CPC). Para os referidos autores, ultimadas as providências da execução
com a satisfação forçada da obrigação, prolata-se sentença “meramente extintiva”,
que não se reveste da autoridade da coisa julgada material.
Obiter dictum, oscila entre exceção e objeção de pré-executividade2 o nome
conferido ao instrumento processual não regulamentado em lei vigente (mas

Em Maia Filho (2004, p. 34-37) e Nery Jr. (2000, p. 139), contudo e respectivamente, arguição de
2

inexecutividade e exceção ou objeção de executividade.

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Coisa julgada material menos que inter partes na extinção da execução pela satisfação da obrigação... 113

previsto no art. 10º do Decreto Imperial nº 9.885/1888, cf. OLIVEIRA, 2001, p. 102),
ressuscitado pela doutrina (OLIVEIRA, 2001, p. 103, 106; ONÓFRIO; ONÓFRIO, 2001,
p. 95-96) e acolhido pela jurisprudência (cf. decisão monocrática do Min. Benedito
Gonçalves no AREsp nº 1459/RS, publicada no DJe de 13.05.2011) a fim de provocar
o juiz a decidir acerca de questão cognoscível ex officio antes de extinta a execu-
ção. Como explica Donizetti (2010, p. 459-460):

“Exceção”, porque se trata de defesa; “de pré-executividade”, porque a


defesa pode ser deduzida antes da penhora, que caracteriza o primeiro
ato de execução. Exceção tem sentido genérico, ou seja, qualquer defesa
denomina-se exceção. Entretanto, se a questão deduzida na defesa é de
ordem pública, utiliza-se o termo objeção de pré-executividade. Exceção
de pré-executividade é gênero, do qual a objeção de pré-executividade
é espécie. Comumente, apenas as matérias de ordem pública podem ser
deduzidas em exceção de pré-executividade. Entretanto, há entendimento,
para nós correto, no sentido de que outras questões (o pagamento, por
exemplo), não obstante de ordem privada, podem ser arguidas por essa
via, desde que haja prova pré-constituída, isto é, desde que não haja
necessidade de dilação probatória.

Como alertam Wambier, Almeida e Talamini (2008, p. 297), uma importante


consequência do entendimento de que a sentença extintiva da execução pela
satisfação da obrigação faz coisa julgada material é a impossibilidade de o exe-
cutado ajuizar ação de repetição de indébito (art. 876 do Código Civil brasileiro
— doravante, CC).
Para Souza (1998, p. 523-524), apenas a sentença que julga os embargos
do devedor ou a exceção de pré-executividade, fazendo coisa julgada material,
impede a propositura de ação de repetição de indébito.
Entende Theodoro Júnior (2007, p. 457-458) que, como o direito do credor
nunca estaria em litígio na própria execução, pois ela não tem por escopo o acer-
tamento de uma relação jurídica controvertida nem é de índole contraditória
a sentença que a extingue, esta (sentença) não seria apta à formação da coisa
julgada material (no mesmo sentido, cf. LUISO, 2000, p. 45-46). Imutabilidade e
indiscutibilidade, deste modo, teriam pertinência apenas para com as sentenças
proferidas num processo de conhecimento, e tão somente nessa espécie de pro-
cesso se poderia falar de sentença de mérito. Assim, o pagamento na execução
a conduz à extinção, mas, se o título era materialmente ilegítimo, lícito é que o
executado mova em face do exequente uma ação de repetição de indébito, mor-
mente ante o que dispõe o art. 574 do CPC (ressarcimento do devedor pelo cre-
dor, quando declarada inexistente a obrigação que deu lugar à execução), salvo

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114 Rafael Cavalcanti Lemos

quando a legitimidade da dívida tenha sido debatida e confirmada em sede de


embargos, de impugnação ao cumprimento da sentença ou num processo
de conhecimento anterior à execução [WAMBIER (Coord.); ALMEIDA; TALAMINI,
2008, p. 297-298], porque, neste caso (da ressalva) terão sido respeitados os arts.
5º, XXXV (inafastabilidade da jurisdição), LIV (devido processo legal) e LV (con-
traditório e ampla defesa), da Constituição do Brasil de 1988 e 472 do CPC (coisa
julgada inter partes); cf. DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2011, p. 428-429.
Perfilhando esse entendimento, destarte decidiu o Tribunal de Justiça de
São Paulo:

1110493009 Apelação com Revisão Relator(a): Felipe Ferreira. Comarca:


Santos. Órgão julgador: 26ª Câmara de Direito Privado. Data do julgamento:
05/05/2008. Data de registro: 12/05/2008. Ementa: LOCAÇÃO DE IMÓ-
VEIS. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. 1. Perfeitamente viável a propositura de
ação de repetição de indébito se a execução foi promovida com base em
título ilegítimo e se sobre tal questão não houve qualquer discussão entre
as partes. 2. Havendo cláusula expressa no contrato de locação de que
a prorrogação deve se dar de forma escrita, a garantia prestada deve se
limitar ao prazo ali determinado. Sentença mantida. Recurso improvido.

Gonçalves (2011, p. 232) entende que qualquer sentença proferida na exe-


cução faz coisa julgada meramente formal, mas a repetição de indébito exige que
nela (execução) o pagamento se tenha dado com erro (art. 877 do CC).
Lecionam Wambier, Almeida e Talamini (2008, p. 298) que haveria, em prin-
cípio, apenas uma limitação subjetiva à formação da coisa julgada material na
execução, porquanto, não discutindo o executado a legitimidade da dívida em
embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou processo de conheci-
mento anterior, a sentença extintiva da execução pela satisfação da obrigação,
após seu trânsito em julgado, faria coisa julgada material tão só ao exequente,
impedindo-lhe nova execução para receber o mesmo crédito cuja extinção pela
satisfação foi declarada por sentença.
Nesse sentido (sem, porém, referir-se à restrição subjetiva da coisa julgada
material ao exequente) é o acórdão no REsp nº 1.259.254/RJ (publicado no DJe, 08
set. 2011), julgado pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 1º.09.2011,
em que foi decidido que faz coisa julgada material a “extinção da execução, ainda
que por vício in judicando e uma vez transitada em julgado a respectiva decisão,
não legitima[da] a sua abertura superveniente sob a alegação de erro de cálculo,
porquanto a isso corresponderia transformar simples petitio em ação rescisória
imune ao prazo decadencial”. Desse modo, “transitada em julgado a decisão de

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Coisa julgada material menos que inter partes na extinção da execução pela satisfação da obrigação... 115

extinção do processo de execução, com fulcro no artigo 794, I, do CPC, é defeso


reabri-lo sob o fundamento de ter havido erro de cálculo”. A “sentença extintiva da
execução, fundada na satisfação da obrigação (art. 794, I, do CPC), impossibilita
a inovação da pretensão executória, [mesmo] sob o argumento do erro material,
sob pena de o devedor viver constantemente com a espada de Dâmocles sob sua
cabeça”.
Note-se que nem do pedido de mera correção de inexatidão material ou
erro de cálculo (art. 465, I, do CPC) pôde socorrer-se o exequente, uma vez tran-
sitada em julgado a sentença que declarou extinta a execução pela satisfação da
obrigação, a qual sentença somente se poderia desconstituir por meio de ação
rescisória.
O acórdão no REsp nº 1.259.254/RJ não fez senão confirmar o acórdão para­
digmático da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do
REsp nº 1.143.471/PR, com aplicação do procedimento previsto no art. 543-C do
CPC, acrescido a esse código pela Lei nº 11.672/2008 (Lei dos Recursos Repetitivos).
No mesmo sentido dos Recursos Especiais nºs 1.259.254/RJ e 1.143.471/PR,
também os acórdãos do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp
nº 1.253.922/SP (2ª Turma do STJ. Rel. Mauro Campbell Marques. J. 02.08.2011, unâ-
nime. DJe, 09 ago. 2011) e do AgRg no Agravo de Instrumento nº 1.395.342/PR (2ª
Turma do STJ. Rel. Mauro Campbell Marques. J. 19.05.2011, unânime. DJe, 31 maio
2011), bem como o seguinte acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo:

0025616-41.2004.8.26.0000 Agravo de Instrumento / EXECUÇÃO FIS-


CAL Relator(a): Rebello Pinho. Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Pú-
blico. Data de registro: 29/09/2004. Outros números: 366.275-5/2-00,
994.04.025616-8. Ementa: EXECUÇÃO FISCAL – Exceção de pré-executivi-
dade fundada em alegação de ofensa à coisa julgada – Admissibilidade,
quando aferível de plano, com base em prova documental – Execução de
diferença objeto de execução anterior julgada extinta com base no art. 794,
I, do CPC por sentença transitada em julgado e imputada como existente
em razão de agentes da Fazenda do Estado – lnadmissibilidade, ante a
coisa julgada – Acolhimento da exceção de pré- executividade, com julga-
mento de extinção da execução – Condenação da credora ao pagamento
dos encargos de sucumbência – Recurso provido.

E os acórdãos do Tribunal Regional Federal da 4ª Região no julgamento dos


Agravos de Instrumento nºs 2009.04.00.034484-1/PR e 30999-35.2010.404.0000/SC:

PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO.


TRÂNSITO EM JULGADO. PEDIDO DE PAGAMENTO DE VALORES REMANES-
CENTES. IMPOSSIBILIDADE. 1. O pedido de intimação da CEF para o paga-
mento de valores discriminados é descabido, pois já houve extinção da

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116 Rafael Cavalcanti Lemos

execução, com fulcro no artigo 794, inciso I, do CPC (decisão transitada


em julgado). 2. Considerando que referida decisão transitou em julgado,
descabe qualquer insurgência da parte quanto aos valores recebidos,
pois deveria ter se manifestado no momento processual oportuno,
mediante o recurso cabível. 3. Inoportuna a discussão da matéria no
atual estágio processual, pois a sentença, passada em julgado, tem
autoridade de coisa julgada, o que a torna imutável e indiscutível, nos ter-
mos do artigo 467 do CPC. 4. Agravo de instrumento improvido. (Agravo
de Instrumento nº 2009.04.00.034484-1/PR, 3ª Turma do TRF da 4ª Região,
Rel. Fernando Quadros da Silva. J. 17.05.2011, unânime, DE, 23 maio 2011).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO EXTINTA.


COISA JULGADA. SALDO REMANESCENTE. PRECLUSÃO. Transitada em jul-
gado a sentença extintiva da execução, com fundamento no artigo 794,
I, do Código de Processo Civil, preclui a faculdade dos exequentes pleitear
o pagamento de eventual valor remanescente. (Agravo de Instrumento
nº 30999-35.2010.404.0000/SC, 3ª Turma do TRF da 4ª Região, Rel. Fernando
Quadros da Silva. J. 26.04.2011, unânime, DE, 02 maio 2011).

O disposto no art. 581 do CPC (impossibilidade de o credor prosseguir na exe-


cução de obrigação satisfeita) reforça a tese da formação de coisa julgada material
para com o credor na execução extinta por satisfação da obrigação, cominando-lhe
o art. 940 do CC, por sua vez, a sanção de pagar ao devedor o dobro do que, já
havendo sido pago, vier a pedir de má-fé (Súmula nº 159 do STF).
Consoante José Lebre de Freitas (2009, p. 356-357), porque deixou de existir
a sentença de extinção da execução no direito português, produzindo-se, sem
intervenção judicial, o efeito extintivo da instância nas hipóteses do art. 9193 (com
redação dada pelo DL nº 226/2008) do Código de Processo Civil português, den-
tre elas a satisfação da obrigação, descabida, atualmente, em Portugal, a discus-
são sobre a formação da coisa julgada na execução. A despeito disso, “hoje como
ontem, o efeito de direito substantivo do facto (pagamento ou outro) invocado
na acção executiva não deixa de se produzir, obstando ao êxito duma nova acção
executiva, mas não impedindo a propositura, pelo executado, duma acção de res-
tituição do indevido” (FREITAS, 2009, p. 357).
Para Didier Jr. et al. (2010, p. 337), em todas as hipóteses do art. 794 do CPC
o trânsito em julgado da sentença leva à formação da coisa julgada material; nas
demais hipóteses, a coisa julgada é meramente formal.
No extremo oposto está Neves (1999, p. 296), para quem “Em todos esses [do
art. 794 do CPC] casos, extingue-se [apenas] a litispendência executória e todos os

Cf., em Abílio Neto (2009, p. 1354), hipóteses não mencionadas expressamente nesse dispositivo.
3

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Coisa julgada material menos que inter partes na extinção da execução pela satisfação da obrigação... 117

seus efeitos, embora possa o processo servir, ad probationem, em processo futuro,


entre as mesmas ou outras partes, desde que, para isso, ofereça, probatoriamente,
eficácia objetiva e atendibilidade, segundo os princípios, não só de direito proces-
sual como, também, de direito material”.

3  Conclusão
Os títulos executivos destinam-se a demonstrar a um juízo a grande probabili-
dade de existência (LIEBMAN, 1992, p. 201) dum direito exequendo e, assim, permi-
tir ao credor instaurar, desde logo, a execução (MENDES, 1986, p. 283). A execução
— que, para Ruggiero e Maroi (1950, p. 588), tem caráter de sanção — presta-se a
que, no interesse do credor (art. 612 do CPC) e por meio do Estado, seja dada rea-
lização a um direito material, por o demandado não haver cumprido a obrigação
ou tê-lo feito insatisfatoriamente4 (MIRANDA, 2003, p. 57; MAGALHÃES, 1940,
p. 131; cf. art. 580 do CPC).
O contraditório, princípio estruturante do processo civil, manifesta-se fazendo
regra de que o juiz não deve decidir sobre questão de fato ou direito antes que as
partes tenham a oportunidade de se manifestar sobre ela (MACHADO; PIMENTA,
2010, p. 31). No CPC brasileiro de 1939, distinguia-se o processo executório do
(processo) executivo, fundando-se aquele (processo executório) na sentença
condenatória e este (processo executivo) em negócios jurídicos (art. 298 do CPC
brasileiro de 1939) ou atos estatais de natureza não jurisdicional (como no proces-
so executivo fiscal), distendendo-se procedimentalmente o segundo (processo
executivo) com uma fase prévia de cognição e havendo “extensos parênteses de
processo de conhecimento” nos incidentes do primeiro (processo executório); cf.
MARQUES, 1971, p. 25-26. Voltando ao CPC brasileiro vigente (de 1973), a ausência
de manejo de embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou processo
de conhecimento prévio em que se poderia questionar a legitimidade do título
executivo não constitui óbice à formação da coisa julgada material na execução
extinta por sentença pela satisfação da obrigação, se a lei abre ao devedor a pos-
sibilidade de contraditório adequado (“suficientes modos e formas de expressão

Já na vigência do CPC de 1973, mas antes da Lei nº 11.232/2005, Silva (2000b, p. 200, 254-255)
4

fazia notar que a chamada ação de cobrança, no direito brasileiro, não cobrava: a sentença que
a julgava acolhendo o pedido do autor apenas exortava o condenado a cumpri-la (a verdadeira
cobrança viria num processo de execução), havendo nela, por conseguinte, mero exercício de
pretensão de crédito, fundada no direito das obrigações, e não (exercício) de verdadeira ação
(“a insuficiência da sentença condenatória para auto-executar-se, na mesma relação processual
que a fez nascer, é uma marca genética da natureza obrigacional da pretensão de que nascera a
correspondente ação condenatória” (SILVA, 2000b, p. 200-201).

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118 Rafael Cavalcanti Lemos

das suas [das partes] posições”, na feliz expressão de SOUSA, 1993, p. 14) ao título
(judicial — menor amplitude do questionamento — ou extrajudicial — maior
amplitude do questionamento) de que dispõe o credor (cf. arts. 475-L e 745,
especialmente o inciso V, do CPC)5 — NERY JR., 2000, p. 137-140.
Facultando ao devedor ressarcir-se, pelo credor, dos danos sofridos na execu-
ção de obrigação que venha a ser declarada inexistente (sem restringir o momento de
declaração da inexistência), o art. 574 do CPC (art. 702 no Projeto de Lei nº 166/2010
no Senado), conjugado com normas insertas alhures, exclui do campo subjetivo de
incidência da coisa julgada material, quando extinta aquela (execução) por satisfação
da obrigação, o sujeito passivo de obrigação tributária (art. 165 do Código Tributário
Nacional brasileiro — cf. também art. 38, caput, da Lei nº 6.830/1980), o devedor
consumidor (art. 42, parágrafo único, da Lei nº 8.078/1990 — cf. também Súmula
nº 322 do STJ) e o (devedor) que, não sendo nem um (consumidor) nem outro
(sujeito passivo de obrigação tributária),6 paga forçado ou, com erro, voluntaria-
mente (art. 877 do CC),7 legalmente autorizados que estão todos estes à repetição
do indébito.
A propósito do erro, Rodrigues (1998, p. 186) tem-no como “a idéia falsa da
realidade, capaz de conduzir o declarante a manifestar sua vontade de maneira
diversa da que manifestaria se porventura melhor a conhecesse”, podendo, por
seu turno, o pagamento voluntário com erro (cujo onus probandi é do solvens
— art. 877 do CC) ser objetiva ou subjetivamente indevido (DINIZ, 2006a, p. 683;
2006b, p. 253-254): no primeiro caso, quando alguém, ignorando a inexistência da
dívida, paga-a; no segundo, quando alguém, crendo ser devedor sem o ser, paga
dívida existente.8
Diz, porém, Sousa (1993, p. 13-14):

As formalidades em que se traduz o procedimento destinam-se, antes do


mais, a enquadrar a conflitualidade das partes processuais, definindo o modo

5
Importa ainda destacar que, no Projeto de Lei nº 166/2010 no Senado (art. 837, §3º), o parcela-
mento da dívida em execução importa renúncia ao direito de discuti-la, o que afirmam Marinoni
e Mitidiero (2010, p. 161-162) valer já no direito processual brasileiro vigente (art. 475-A do CPC),
por preclusão lógica.
6
Observe-se que, para com o devedor consumidor ou sujeito passivo tributário, a legislação extra-
vagante antecipou-se ao juiz (dito assistencial por VAZ, 1998, p. 307) que buscasse realizar a trans-
cendente função ético-social e jurídico-política de promover, no processo, a igualdade chamada
real ou substancial de litigantes desnivelados por razão econômica, social ou cultural.
7
Com praticamente a mesma redação do art. 965 do Código Civil brasileiro de 1916 e, portanto,
sujeito à mesma interpretação doutrinária e jurisprudencial (MALUF, 2006, p. 705).
8
Cf. várias hipóteses de pagamento voluntário com erro que autorizam a repetição do indébito
nos arts. 3.482 e 3.484 (com ressalvas nos arts. 3.483 e 3.485 a 3.491) do esboço de Código Civil de
Augusto Teixeira de Freitas (1983, p. 516), cujo esboço influenciou diretamente os Códigos Civis
argentino e uruguaio bem como, por meio do primeiro, o paraguaio (FREITAS, 1983, p. XXXIV-XXXV).

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Coisa julgada material menos que inter partes na extinção da execução pela satisfação da obrigação... 119

e a forma de expressão das suas posições, frequentemente antagônicas, e


impondo uma disciplina à sua actuação processual. Não raramente, contu-
do, as partes, apesar da sua conflitualidade, estão de acordo quanto a cer-
tos aspectos, mais ou menos amplos, da questão litigiosa. Por isso, aquelas
formalidades também visam permitir que as partes mostrem, a par das suas
discordâncias, os consensos existentes ou prováveis. Estes consensos podem
mesmo determinar a extinção do processo quando as partes se conciliam ou
uma delas adere, por acto voluntário próprio, à posição da contraparte. É o
que sucede quando, por exemplo, o credor demandante reconhece a falta
de fundamento do direito invocado em juízo ou o devedor demandado
realiza espontaneamente a prestação exigida pelo seu credor. (SOUSA,
1993, p. 13-14)

O devedor comum (não consumidor nem sujeito passivo tributário), destarte,


caso satisfaça, voluntariamente e sem erro, a obrigação ilegítima em execução, não
deve, arrependido, esperar repetição de indébito, porquanto terá procedido a uma
liberalidade, a qual não justifica restituição (LIMA, 1979, p. 160; DINIZ, 2006b, p. 253).
É, pois, menos que inter partes (i.e. cinge-se ao credor) a coisa julgada material
na sentença extintiva da execução pela satisfação da obrigação, salvo quando ela
(satisfação) se der, voluntariamente e sem erro, por quem não seja consumidor
nem sujeito passivo de obrigação tributária.

Zusammenfassung: Der Artikel 795 der brasilianischen Zivilprozessordnung


äußert, dass das Ende der Zwangsvollstreckung Effekt erzeugt¸ nur wenn
durch ein Urteil erklärt wird. Doktrin und Jurisprudenz besprechen, ob
das Urteil, das das Ende der Zwangsvollstreckung erklärt, materielle
Rechtskraft erzeugt. Die materielle Rechtskraft ist weniger als inter partes,
wenn das Urteil das Ende der Zwangsvollstreckung wegen der Erfüllung der
Verpflichtung erklärt, außer wenn der Schuldner, der nicht Verbraucher oder
Steuerschuldner ist, die Verpflichtung freiwillig und ohne Irrtum erfüllt.

Schlüsselwörter: Erfüllung. Verpflichtung. Ende. Zwangsvollstreckung.


Urteil. Materielle Rechtskraft.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

LEMOS, Rafael Cavalcanti. Coisa julgada material menos que inter partes na extinção da
execução pela satisfação da obrigação no Direito Processual Civil brasileiro. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 109-121, out./dez. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 109-121, out./dez. 2012
Criação judicial do direito e importância
dos precedentes

Lúcio Grassi de Gouveia


Professor de Mestrado em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco. Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa.
Mestre em Direito pela UFPE. Juiz de Direito.

Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior


Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.
Graduado em Direito pela UFPB. Professor Universitário. Advogado.

Resumo: Sendo da essência da atividade decisória de juízes e tribunais a


possibilidade de existência de soluções díspares para casos concretos idênti-
cos, em face de sua natureza criativa, tornam-se necessários e cada vez mais
sofisticados os mecanismos assecuratórios da igualdade de tratamento dos
cidadãos e da efetividade das decisões judiciais, especialmente a observân-
cia dos precedentes.

Palavras-chave: Julgamento. Criação judicial do direito. Possibilidade de


disparidade de decisões dos juízes e tribunais para casos concretos seme-
lhantes. Necessidade de observação dos precedentes.

Sumário: Introdução – 1 Criação judicial do direito – 2 Importância dos pre-


cedentes – 3 Conclusão – Referências

Introdução
Veremos que juízes e tribunais, ao julgarem casos concretos, exercem ativi-
dade criativa. Cada vez mais o Poder Judiciário é provocado para “dizer o direito”
diante do esvaziamento de conteúdos prévios das regras do sistema.
Várias correntes do pensamento jurídico tentaram fundamentar racional-
mente as decisões de juízes e tribunais. As debilidades de tais teorias tornaram-se
evidentes, tendo em vista a consideração de que os critérios interpretativos são
desprovidos de qualquer ordenação hierárquica, há problematicidade do uso dos
princípios gerais do ordenamento jurídico, insuficiência dos métodos de subsunção

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
124 Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior

lógica e dificuldade de um parâmetro para as possíveis formulações de juízos de


valor pelo julgador.
Dessa forma, ganha importância o estudo do papel a ser desempenhado
pelo julgador. Constatado que exerce atividade criativa, vê-se o sistema, diante
da necessidade de ser efetivo e isonômico (casos concretos semelhantes devem
ter o mesmo tratamento), impelido a criar mecanismos que balizem a atividade
decisória, tornando a observância dos precedentes judiciais recomendável ou
obrigatória.

1  Criação judicial do direito


Antes da análise da importância dos precedentes no direito pátrio vigente,
devemos responder à seguinte pergunta: o juiz declara ou cria direito?
Durante muito tempo foi concebida a atividade mental do juiz numa pers-
pectiva estática, apta a gerar uma decisão única, completa e correta. Etapas como
reconstrução da realidade exterior, procura da norma capaz de prover sobre aquela
realidade e a individualização do efeito concreto reconhecido da norma eram vistos
como etapas diversas, que se sucediam lógica e cronologicamente.
O apego ao excessivo formalismo e a defesa intransigente do modelo puro
silogístico, o entendimento de que a defesa deve ser exercitada distintamente
quanto aos elementos de fato e de direito são atualmente considerados modelos
ultrapassados.
Tem afirmado Ovídio Baptista da Silva que

os juristas modernos não conseguem pensar o direito a partir do caso;


não conseguem pensá-lo através do problema. Somos induzidos por
uma determinação paradigmática, a pensá-lo como sendo produzido
pela regra, pela norma, enfim pelos códigos. Somos herdeiros da cultura
européia das uniformidades, que devota um profundo desprezo pelas
diferenças.1

Bem salienta o referido professor que

o conflito entre nossa sujeição paradigmática e as contingências impos-


tas por uma sociedade urbana de massa, com marcantes plurivocidades
de visão de mundo, seja político, familiar, ético e até mesmo religioso,
gera enormes dificuldades em torno do conceito de direito, especialmente
quando nos deparamos com o fenômeno jurisdicional. As tentativas de

SILVA. Justiça da lei e justiça do caso.


1

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
Criação judicial do direito e importância dos precedentes 125

quebrar as regras, de abrir brechas no sistema, de flexibilizá-lo, arejando-as,


de modo a superar o idealismo próprio do Iluminismo europeu, que —
ingenuamente — pretendeu transformar o Direito numa fórmula mate-
mática, seguidamente defrontam-se com as mais graves e inesperadas
dificuldades, opostas por nossa submissão ao paradigma racionalista, ins-
pirador das várias matizes de positivismo jurídico, que os mais otimistas
imaginam que já estejam superados.2

Superada essa visão estática, acertamento do fato e aplicação do direito


não são mais vistos como momentos pertencentes a fases diversas e isoladas. Na
doutrina alemã e na italiana, já é reconhecido há tempos que a elaboração silo-
gística é claramente inadequada a alcançar a real dinâmica do processo formativo
da decisão e esquematiza a posteriori e com exagerado simplismo uma operação
que é, pelo contrário, muito laboriosa e complexa. Funcionaria como uma espécie
de justificação ex post da decisão tomada pelo aplicador do direito.
Mantida a importância da noção de sistema em direito, mas de sistema
aberto e móvel, atualmente prevalece o entendimento de que, na busca pelo apli-
cador do direito do sentido adequado da norma, o método lógico-dedutivo não
pode ser utilizado em sua pureza, considerando a norma geral e abstrata (premissa
maior), o fato concreto (premissa menor) e a norma individual e concreta (con-
clusão), ligadas somente por procedimentos lógicos e sem qualquer participação
valorativa do aplicador do direito. Não queremos aqui afastar a importância da
lógica jurídica, mas constatarmos que, se a decisão é lógica, não é somente lógica,
até porque o julgador, antes de acionar as ferramentas lógicas, faz uma série de
escolhas, servindo a lógica muitas vezes para legitimar uma das decisões possí-
veis para o caso concreto.
Dessa forma, não é a refutação do pensamento sistemático que solucionará
o problema da construção de uma teoria capaz de explicar o processo decisório
pelos aplicadores do direito, sendo, porém, imprescindível que sejam afastadas
aquelas teorias que procuram explicá-lo como procedimento estritamente lógi-
co-dedutivo no qual ao decisor não cabe fazer escolhas, no qual de uma premissa
maior que é a norma jurídica se subsuma a premissa menor, que corresponde à
situação fática, chegando-se silogisticamente a uma conclusão única e correta.
Verificada a inadequação da aplicação do método lógico-dedutivo em sua
pureza, surgiram entendimentos mais brandos, como o defendido por Engish,3
de que, a partir da premissa maior, intercalam-se diversas premissas menores que

SILVA. Justiça da lei e justiça do caso.


2

ENGISH. Introdução ao pensamento jurídico, 6. ed.


3

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
126 Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior

possibilitam a subsunção do fato à norma, para assim possibilitar a fixação da


norma individual e concreta, como conclusão.
A norma geral e abstrata formar-se-ia pela observação das normas do sis-
tema jurídico que interessassem ao caso concreto, aplicadas conjuntamente. As
premissas menores, a partir de uma situação concreta em que as normas proces-
suais garantiriam o enquadramento da conduta concreta ao tipo e a prova de
que tal fato é imputável à determinação do sujeito. Assim, utilizando-se da lógica
dedutiva, poder-se-ia formar a conclusão, a decisão do órgão aplicador do direito.
Há ainda autores que sustentam que a subsunção, com o auxílio da interpre-
tação, estaria viabilizada mesmo no caso em que a lei emprega conceitos vagos
ou descrições de tipos. Nessa linha Koch e Russmann,4 cujos posicionamentos
podem ser vistos como uma reação aos ataques sofridos pelo modelo lógico-de-
dutivo de aplicação do direito. Procuram comprometer tanto quanto possível o
juiz em relação à indicação de fundamentos comprováveis de suas decisões, sem
margem para apelo ao sentimento jurídico, à equidade ou ideias gerais vagas. Tal
assertiva não resiste ao mais simples exame científico, posto que conceitos vagos
como as expressões “irrelevante”, “preponderante”, têm uma amplitude oscilante
no seio da qual não se pode dizer com segurança se os diversos casos concretos
que se lhe apresentam estariam ou não compreendidos em suas esferas. Poder-se-ia
falar, porém, em subsunção quando o legislador se limitasse à utilização de grande-
zas quantitativas ou temporais fixas.
Merece destaque, portanto, o entendimento de que o ponto específico da
interpretação, o apreender do sentido ou do significado de um termo ou de uma
proposição no contexto de uma cadeia de regulação, iria para além das regras
lógicas, considerando sua razoabilidade e apreciações subjetivas do texto norma-
tivo. O processo de dedução da maior parte das decisões, a partir da lei, por meio
de uma subsunção lógica, seria inadequado ou de pouco significado.5
Segundo Müller,

limitadas são as possibilidades da lógica na ciência jurídica. Já devido


a sua forma lingüística, as prescrições jurídicas não fornecem, na maio-
ria dos casos, nenhum ponto de partida para operações exatas de lógica
formal [...]. Passos que são caracterizados como lógicos são, via de regra,

4
KOCH/RÜSSMANN. Juristiche Begründungslehre, 1982, p. 67 et seq. apud LARENZ. Metodologia da
ciência do direito, p. 185.
5
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 328-329.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
Criação judicial do direito e importância dos precedentes 127

possíveis em decisões e na restante concretização do direito somente


quando o resultado já se delineia nitidamente quanto ao seu teor jurí-
dico, isto é, quando as premissas já estão elaboradas. As premissas são,
entretanto, de natureza material e não podem ser obtidas por meio da
lógica formal.6

Defensor de uma coordenação valorativa e não subsuntiva, Larenz entende


que na apreciação de uma situação de fato, para se descobrir se esta recai na
previsão de uma das proposições jurídicas potencialmente aplicáveis, exige-se
do julgador juízos baseados na interpretação da conduta humana, outros juízos
proporcionados pela experiência social, juízos de valor e uma margem de livre
apreciação por parte do juiz, quando na impossibilidade de utilização de ponde-
rações convincentes.7
Seguindo esse raciocínio, o processo de dedução da maior parte das deci-
sões, a partir da lei, por meio de uma subsunção lógica (de situação de fato sob
a previsão de uma norma legal) ou é geralmente inadequado ou tem significado
mínimo. O ponto central da descoberta do direito e da justificação da decisão, na
maioria das vezes, reside em juízos de valor por parte do juiz. E o modelo silogís-
tico puro fornece-nos a falsa impressão de que a decisão foi obtida seguindo-se
uma sequência lógica rigorosa de pensamento.
Sabemos que o legislador, muitas vezes propositalmente, deixa uma certa
mar­gem de livre apreciação para o aplicador do direito. Mas mesmo nesta livre mar­
gem de apreciação, alguns casos que se lhe apresentam são típicos e contém seme­
lhanças marcantes com casos já resolvidos. Existe ainda uma pequena minoria de
casos em que a decisão depende única e exclusivamente da valoração do juiz que,
neste caso, deve tomá-la.
Assim, a comparação e a ponderação valorativas devem atuar no lugar da
subsunção, tendo o modelo lógico-dedutivo em sua pureza utilização somente
naqueles casos em que a decisão é consequência imediata da norma aplicada.
Pelo que temos visto, a crítica ao emprego da lógica tradicional na interpreta-
ção do direito se dirige contra a aplicação desta lógica tradicional aos conteúdos das
normas jurídicas. O problema da interpretação do direito é um problema de lógica
material, de lógica dos conteúdos e não de lógica formal. A lógica formal, de tipo
puro, a priori — por conseguinte a lógica tradicional da dedução silogística — tem
certamente emprego correto e necessário no tratamento e análise dos conceitos

MÜLLER. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito, p. 69.
6

LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 340.


7

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
128 Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior

jurídicos puros e essenciais como os de norma jurídica, relação jurídica, direito


subjetivo, entre outros.
Se as regras da coerência lógica nos dão a possibilidade de fundamentar a
“verdade jurídica”, as mesmas não são suficientes para caracterizar uma definição,
uma interpretação, ou uma decisão como certa, verdadeira ou justa.
O processo decisório poderá consistir em opções valorativas conflitantes em
que, diante de algumas decisões possíveis, o decisor, utilizando-se de sua carga de
conhecimentos, ideologia, emoções, personalidade e formação, escolherá a que
entender adequada.
Porém, ao admitir que o rigor lógico-dedutivo não é suficiente para resolver
a ampla gama de questões que se apresentam ao julgador, alguns autores che-
gam a defender o irracionalismo pregado pelas escolas realistas, que elegeram o
elemento volitivo do aplicador do direito como ponto fundamental do processo
decisório. Nessa linha, Sobota, Brutau e Ballweg admitem que o juiz primeiro chega
ao resultado para depois procurar as normas e princípios que o justifiquem.
Para Sobota,

os retóricos mostram-se céticos a respeito desses sistemas intelectuais.


Sob sua perspectiva, nem atribuições universais nem regras instrumen-
tais constituem a estrutura principal do discurso jurídico. Elas são ape-
nas um dos vários instrumentos produzidos para construir esta realidade
artificial, porém eficaz, chamada direito. Nada obstante, o discurso aca-
dêmico tende a identificar fenômenos normativos com a efetivação de
regras instrumentais. Além disso, esta posição moderna é reforçada pelo
poder de um antigo conceito, o conceito de silogismo. Em retórica analí-
tica não acreditamos em qualquer desses conceitos. Em nossa opinião, a
prática jurídica não é governada nem pelas premissas maiores nem por
normas instrumentais. Preferimos o conceito menos preciso de regulari-
dades. “Regularidades”, tal como as entendemos, não são nem tão gerais
nem tão permanentes como se supunha serem as leis da física clássica.
Elas constituem formações cibernéticas dinâmicas, tais como a rede viva
da célula ou as estações do ano, modas, rituais ou padrões de compor-
tamento. Regularidades são “padrões” e não “estruturas” ou “regras” —
“padrões” construídos por um observador dentro do próprio sistema.
Tais regularidades não dirigem ou controlam a natureza, nem fornecem
qualquer descrição universal dela. Elas são parte de toda ação; elas orga-
nizam essas ações e são produzidas pelas mesmas ações. Acho que o pro-
cesso decisório jurídico não é governado por normas universais, mas sim
moldado e constituído por tais padrões mutáveis e auto-organizados, os
quais se encontram freqüentemente articulados como regras, mas são de
fato apenas “regularidades”. Neste sentido, quem quer que se disponha a
descobrir os padrões básicos da comunicação normativa, deve examinar

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
Criação judicial do direito e importância dos precedentes 129

a retórica dos juízes e advogados ao invés da engenharia social de nossos


dias ou dos estudos dialéticos dos lógicos. Fazendo isso, não se deve igno-
rar o fato de que a partir de um certo grau de complexidade cultural, mui-
tos discursos se tornaram interligados com a retórica das regras explícitas,
como, p. ex., as normas tributárias egípcias, os Dez Mandamentos ou os
códigos de Draco e Solon. Contudo, essas normas eram apenas um estrei-
to segmento dentro do círculo de outras formações normativas tais como
rituais, costumes, parábolas, sinais emotivos ou precedentes. Hoje, com a
vasta proliferação de normas legais, esta relação quantitativa foi provavel-
mente invertida. Mas a decisão judicial ainda é baseada aproximadamente
nos mesmos padrões aplicados nos primórdios da retórica judicial.8

Sabemos que o ordenamento jurídico não tem condições de prever todas


as hipóteses de casos concretos que ocorrem em nossa vida social e, mesmo que
se tivesse essa pretensão, a linguagem natural e aberta utilizada pelo legislador
propicia ao intérprete-aplicador do direito grande margem de liberdade para a
realização de uma interpretação objetivista-atualista, de natureza teleológica,
atualizando a norma jurídica sem afrontá-la.
O julgador deve empregar sua inteligência para averiguar qual seja o âmbito
material de validade, a extensão e alcance do comando normativo, observando
as valorações em que a própria lei se inspirou, atualizando-a de acordo com o
momento da aplicação e os valores sociais vigentes. Fala-se em equidade, mas esta
não visaria apenas corrigir a lei, mas interpretá-la razoavelmente, de acordo com
uma realidade social versátil e mutante. O sentido da norma jurídica pode e deve
variar conforme a evolução social e as novas normas inseridas pelo legislador atual,
na ordem jurídica, podem introduzir nesta um novo significado capaz de influir no
sentido das normas anteriores, visto que o ordenamento jurídico deve ser encarado
como uma unidade sistêmica. Ao juiz cabe trabalhar com a estrutura aberta da
linguagem natural utilizada pelo legislador para resolver, dentro do próprio orde-
namento jurídico, o caso concreto de forma adequada e justa.
Mas se hoje temos essa ideia de que o pensamento lógico-dedutivo não re-
solve sozinho grande parte dos casos que se apresentam ao juiz, isso muito se deve
à influência das teorias da argumentação.
Observe-se que a noção aristotélica de dialética, cujas implicações foram
sendo ignoradas ao longo da trajetória da filosofia ocidental, não mereceu a aten-
ção dada à demonstração analítica. Dentre os dois modos de raciocinar, prevale-
ceu esta em detrimento da argumentação dialética, que passou a ser tomada por

SOBOTA, Katharina. Don’t mention the norm!. International Journal for the Semiotics of Law, p. 45-60.
8

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
130 Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior

mera técnica a serviço de interesses mesquinhos, os quais, por não conseguirem


se afirmar por sua própria “verdade”, veem-se na contingência de lançar mão de
quaisquer meios para obter a adesão dos interlocutores. A dialética parece sair de
um esquecimento de séculos para, a partir de Chaim Perelman e Theodor Viehweg,
dentre outros, mostrar que aplicação do direito não é um processo mera­mente
lógico-dedutivo, que este não é capaz de explicar como se opera a interferência
dos juízos de valor do aplicador da norma, tema que não seria objeto da ciência
jurídica, na visão de Kelsen.
Mas se na primeira fase do pensamento de Perelman, este procura demons-
trar que julgamentos de valor são inteiramente arbitrários, insuscetíveis de trata-
mento racional, numa outra fase, percebe que considerar irracional a aplicação do
direito importa renunciar a qualquer filosofia prática e abandonar a disciplina da
conduta humana ao sabor de emoções e interesses, quer dizer, confiá-la à violên-
cia. Nessa fase, elege como projeto de pesquisa uma “lógica dos julgamentos de
valor”, objeto de estudo da chamada nova retórica. Afasta interpretações jurídicas
verdadeiras, contentando-se com oportunas (diríamos nós adequadas), no que
procura demonstrar o esgotamento do modelo cientificista de conhecimento
do direito. O direito passa a ser pensamento tecnológico e não científico, tendo
como consequências a perda do caráter normativo da teoria do conhecimento ju­
rí­dico e integração entre a produção doutrinário-acadêmica e o cotidiano do pro­
fissional do direito. Abandonam-se procedimentos que deveriam ser seguidos para
atingimento da certeza e verdade do conhecimento para preocupar-se com a
descrição do processo de produção do conhecimento do direito, não mais postu-
lando a adoção de determinado método como pressuposto de qualificação desse
conhecimento.9
Alexy, em uma postura ousada e corajosa, defende que a teoria do discurso
é teoria procedimental e uma norma só pode ser correta quando resultante de um
procedimento definido pelas regras do discurso. O procedimento “filtra” os argu-
mentos para que o resultado seja uma norma adequada. Considera a argumentação
jurídica como caso especial de argumentação prática geral, em virtude da existên-
cia de limitações como a sujeição à lei, a obrigatória consideração dos precedentes,
o enquadramento na dogmática institucionalizada e, no que se refere ao discurso
científico-jurídico, as limitações através das regras do ordenamento processual.10

9
COELHO. Prefácio. In: PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA. Tratado da argumentação: a nova retórica,
p. XVII.
10
ALEXY. Teoria de la argumentación jurídica, p. 36.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
Criação judicial do direito e importância dos precedentes 131

No outro polo, para os defensores atuais da utilização da hermenêutica,


uma visão atual da metodologia do direito não pode prescindir de noções como
pré-compreensão e círculo hermenêutico. Larenz examina com maestria esses
fenô­menos, constatando inicialmente que, na interpretação, o significado das pa­
la­vras em cada caso só pode inferir-se da conexão de sentido do texto e este, por
sua vez, em última análise, apenas do significado — que aqui seja pertinente —
das palavras que o formam e da combinação de palavras, então terá o intérprete
de — e, em geral, todo aquele que queira compreender um texto coerente ou um
discurso —, em relação a cada palavra, tomar em perspectiva previamente o sen-
tido da frase por ele esperado e o sentido do texto no seu conjunto; e a partir daí,
sempre que surjam dúvidas, retroceder ao significado da palavra primeiramente
aceite e, conforme o caso, retificar este ou a sua ulterior compreensão do texto,
tanto quanto seja preciso, de modo a resultar uma concordância sem falhas. Para
isso, terá que lançar mão, como controle e auxiliares interpretativos, das mencio-
nadas “circunstâncias hermeneuticamente relevantes”.11
Na esteira da compatibilização entre pensamentos sistemático e problemá-
tico, Castanheira Neves admite que

era lícito duvidar-se da perfeita redução metódica do pensamento jurídico


à hermenêutica: não tanto porque esse pensamento, ao contrário das
outras “ciências do espírito”, opera com uma normatividade vinculante e
não é, como tal, livre na determinação do sentido; mas sobretudo porque
a sua intenção metodológica não se esgota numa compreensão (o pen-
samento jurídico como “doutrina de um correto compreender”) e antes
se cumpre numa decisão (o pensamento jurídico como a doutrina de um
válido decidir, e decidir com grande espaço de autonomia constituinte,
como sabemos) — não se trata de uma atividade culturalmente cognitiva,
mas de uma atividade normativamente praxística [...]. A hermenêutica
pode, no entanto, ser ainda referida pelo pensamento jurídico-metodo-
lógico com um outro e mais atual sentido. Aquele que exatamente lhe
permitiria a “nova hermenêutica”: não já apenas numa reconsideração
metódica dos cânones de sua interpretação, mas numa inteligibilidade
crítico-metodológica, do actus específico que lhe cumpre na realização
de sua tarefa prático-normativa. Foi assim que se convocaram as cate-
gorias hermenêuticas da “pré-compreensão” e do “círculo hermenêutico”,
do “referente” transtextualmente constitutivo e do contexto comunitaria-
mente significante, da dialógica e problemática dialética determinante
dos sentidos e do consensus comunicativamente justificativo, do caráter
historicamente condicionado ou situado da compreensão e assim tam-
bém da sua índole “aplicativa” ou “concretizadora”, etc. — pretendendo-se

LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 242-243.


11

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
132 Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior

com essas categorias esclarecer, na sua estrutura e na sua intencionalidade,


a verdadeira natureza metodológica do judicium jurídico [...]. E todavia
não se furta ainda esta orientação a uma manifesta ambigüidade. Podem,
com efeito, considerar-se aquelas categorias como metodológicas “con-
dições de possibilidade” também para o pensamento jurídico, mas isso
não permite omitir que a sua essencializante problemática não está sim-
plesmente no compreender dos sentidos culturais que o direito positivo
objetive e sim no judicativo decidir de concretos problemas jurídicos, en-
quanto casos normativo-sociais: aquelas categorias hão de converter-se
em condições de possibilidade ou coordenadas metodológicas, não de
um científico ou cognitivo compreender, mas de um prático e judicativo
decidir [...] a concretização jurídica converte “o específico interesse de
conhecimento da ciência do direito e da prática jurídica num interesse
de decisão”.12

Grande contribuição a essa maneira de ver o direito trouxe a Teoria Estruturante


do Direito. Seu idealizador, Müller, afirma que

pertence a esta teoria, no quadro da teoria estruturante do direito (TED),


a diferença entre norma e texto normativo, o conceito de concretização
como construção da norma jurídica geral, em cada caso a ser solucionado
— em outras palavras: a temporalidade inerente da normatividade. Ela
não é uma “virtude” dos textos na codificação, mas ela é um processo real,
concreto de trabalho que deve ser assumido, socialmente e politicamente,
com responsabilidade pelo operador do direito (ou seja, um conceito da
teoria da ação, combinado com o conceito pragmático da linguagem na
lingüística moderna do direito).13

Alguns ensinamentos da Teoria Estruturante do Direito se encaixam como


uma luva para explicar até certo ponto a atividade criativa do juiz. Nessa linha de
raciocínio,

o pensamento jurídico deixa de ser tão-só o analítico-teorético conheci-


mento (a reprodução) de um direito pressupostamente constituído a que
se seguiria uma mera aplicação, para participar ele também na norma-
tiva-constituição (da produção) do direito através da sua problemático-­
concreta e judicativo-decisória realização histórica — e enquanto uma tal
realização, nesse sentido, exige já uma concretização, já uma integração,
já um autônomo desenvolvimento constitutivo do direito positivo, pelo
que o juiz participa da criação do direito.14

12
NEVES. Método jurídico. In: NEVES. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da
sua metodologia e outros, v. 2, p. 319-320.
13
MÜLLER. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito, p. 291.
14
NEVES. O actual problema metodológico da realização do direito. In: NEVES. Digesta: escritos acerca
do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, p. 258-260.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
Criação judicial do direito e importância dos precedentes 133

Como nos propusemos a demonstrar, o juiz, ao julgar o caso concreto, cria


direito.

2  Importância dos precedentes


Conforme já demonstrado no item anterior, o método hermenêutico do
silo­gismo subsuntivo, durante muito tempo, exerceu grande influência nos paí-
ses de tradição romano-germânica (civil law). Por séculos, vigorou a ideia de que
era possível estabelecer absoluta clareza e segurança jurídica através de normas
rigorosamente elaboradas, que seriam suficientes para garantir uma absoluta
univocidade às decisões judiciais.15
Na modernidade, o Legislativo tinha a pretensão de regulamentar todos
os setores da atividade humana, através de normas claras, a fim de que o juiz se
limitasse a aplicar a lei sem interpretá-la. No entanto, hoje, a técnica empregada
é outra. O Legislativo, propositadamente, tem se utilizado de regras de textura
aberta, conceitos indeterminados e cláusulas gerais, permitindo às partes e ao
Judiciário uma maior latitude na efetividade da tutela jurisdicional.
Observe-se que, se outrora o Legislativo tinha a pretensão de onipotência,
atualmente, reconhece sua impotência para regular todas as situações concretas
e acaba por adotar a técnica de redação das regras de textura aberta, que permite
ao juiz adaptar o direito às mudanças e às peculiaridades dos casos concretos.
Por conseguinte, sendo um fenômeno global, a opção do Legislativo pela
inclusão de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados nos respectivos
ordenamentos jurídicos e, levando em consideração que tais normas têm uma
tessitura aberta e, em regra, sequer precisam os efeitos jurídicos da hipótese
fática, cumpre indagar qual o método mais adequado para o trato dessas espé-
cies normativas e qual papel se exige do juiz diante delas.
De acordo com Humberto Ávila,16 o silogismo subsuntivo, próprio da Moder­
nidade e do Positivismo jurídico do século XIX, onde vigorava o dogma da estrita
aplicação da lei, é imprestável para se lidar com cláusulas gerais, que exigem uma
construção de sentido diante do caso concreto.17

15
ENGISH. Introdução ao pensamento jurídico, 10. ed., p. 208.
16
ÁVILA. Subsunção e concreção na aplicação do direito. In: MEDEIROS. Faculdade de Direito da
PUCRS: o ensino jurídico no limiar do novo século, p. 423.
17
Nesse mesmo sentido, ler Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcelos, em artigo intitulado: A nova
interpretação constitucional: ponderação e papel dos princípios: “No fluxo das modernidades
aqui assinaladas, existem técnicas, valores e personagens que ganharam destaque. E outros que,
sem desaparecerem, passaram a dividir o palco, perdendo a primazia do papel principal. Um
bom exemplo: a norma, na sua dicção abstrata, já não desfruta da onipotência de outros tempos.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
134 Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior

Ora, se o método subsuntivo ainda pode ser adequado para o trato com as
normas de tipicidade rígida, a concreção é o método próprio para a aplicação
das normas de textura aberta e, como afirma Karl Larenz: “Não existe uma concre-
tização do Direito pura e simplesmente livre, porque isso seria arbítrio, portanto
o contrário do Direito. Mas tampouco existe uma concretização do Direito pura e
simplesmente vinculada [...]”.18
É inegável que a existência de cláusulas gerais reforça o poder criativo do
juiz, que é chamado a interferir mais ativamente na construção do sentido da norma,
visando à solução de problemas concretos que lhe são submetidos. Destarte, “não
se pode ignorar que, de uma maneira ou de outra, as cláusulas gerais imprimem
no sistema certa dose de imprevisibilidade e de insegurança, à medida que têm a
finalidade de alcançar a justiça do caso concreto”.19
Então, em se tratando de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indetermi-
nados, a grande questão está em achar o ponto de equilíbrio, a fim de que o juiz
tenha liberdade para construir o sentido da norma diante do caso concreto e,
ao mesmo tempo, o direito possa ser realizado com segurança, previsibilidade e
isonomia.
E o que se defende neste ensaio é que o respeito aos precedentes exerça
papel fundamental nesse particular, pois se o sentido de uma cláusula geral é
construído diante de um caso concreto, ou melhor, se o juiz cria a norma jurídica
para decidir a questão que lhe é apresentada, como se admitir que, diante de
fatos semelhantes e diante de uma mesma cláusula geral, haja solução diversa?
Como ficariam a segurança jurídica, a certeza e a previsibilidade nessa hipótese?
Logo, se os países de tradição jurídica romano-germânica vêm adotando
amplamente a técnica legislativa das cláusulas gerais e conceitos jurídicos inde-
terminados, indubitavelmente, é aberto um elevado grau de criatividade aos seus
juízes, sendo, assim, imprescindível a implementação de uma cultura de respeito
aos precedentes.
Nesse sentido, vale salientar que Humberto Ávila,20 ao apresentar os cin-
co elementos que integram a aplicação do direito na concreção — a) finalidade
concreta da norma; b) pré-compreensão; c) valoração judicial dos resultados da

Para muitos não se pode sequer falar da existência de norma antes que se dê sua interação com
os fatos, tal como pronunciada por um intérprete” (BARROSO; BARCELLOS. A nova interpretação
constitucional: ponderação, argumentação e papel dos princípios. In: LEITE. (Org.). Dos princípios
constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição, p. 101-103).
18
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, 3. ed., 150.
19
MENKE. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. Revista
AJURIS, p. 88.
20
ÁVILA. Subsunção e concreção na aplicação do direito. In: MEDEIROS. Faculdade de Direito da
PUCRS: o ensino jurídico no limiar do novo século, p. 439-444.

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Criação judicial do direito e importância dos precedentes 135

decisão; d) consenso como fundamento parcial da decisão; e) precedente judicial


—, põe em lugar de destaque a figura do precedente.
Ou seja, ao sistema que incorpora a técnica legislativa das cláusulas gerais,
afiguram-se indispensáveis o respeito aos precedentes e o método hermenêutico
do grupo de casos, desenvolvido pela doutrina alemã.
Com apoio em Fabiano Menke,21 pode-se afirmar que “a doutrina alemã
pode ser considerada pioneira na teorização e sistematização do denominado
método de grupo de casos como auxiliar do intérprete das cláusulas gerais”. Por
meio desse método, através de um processo em tudo semelhante à busca da
ratio decidendi e à técnica do distinguishing tão familiares aos common lawyers,
compara-se o caso a ser decidido com os casos isolados que integram um grupo
de casos já julgados sobre determinada norma; de forma que havendo identi-
dade fático-normativa entre os casos, é possível agregar o novo caso ao grupo
já consolidado e, “no que toca à sua fundamentação, bastará a indicação de que
pertence ao grupo, de maneira que ocorre um verdadeiro reaproveitamento das
razões já expendidas nas hipóteses assemelhadas”.
Observe-se que o método do grupo de casos também põe em relevo o pre-
cedente judicial; restando, assim, mais do que demonstrado que o respeito aos
precedentes é imprescindível a um sistema que adote a técnica legislativa das
cláusulas gerais.
Como defende Marinoni,22 “o que realmente importa neste momento é cons­
tatar que o juiz que trabalha com conceitos indeterminados e regras abertas está
muito longe do juiz concebido para unicamente aplicar a lei”, de forma que o res-
peito aos precedentes, desnecessário quando o juiz apenas aplica a lei, é indispen-
sável na jurisdição contemporânea.23
Não é ocioso destacar que os precedentes judiciais existem em qualquer
sistema jurídico, seja ele integrante da tradição jurídica de civil law ou de common
law. O que muda, nos diversos sistemas, é se os precedentes têm eficácia mera-
mente persuasiva ou eficácia vinculante.

21
MENKE. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. Revista
AJURIS, p. 83.
22
MARINONI. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade
de respeito aos precedentes no Brasil. Revista de Processo, p. 227.
23
Hermes Zaneti Jr. compartilha da mesma opinião, leia-se: “A consequência é óbvia, apesar de polê­
mica. Ademais, revela-se inerente ao atual estágio do direito constitucional (EC 45/04): a jurispru-
dência em um direito de princípios e cláusulas gerais, ao densificá-los na aplicação, cria direito, e não
prescinde de um caráter vinculativo para fazer valer uma certa estabilidade desse direito criado. A
jurisprudência é, portanto, fonte primária do direito, ao lado da lei” (ZANETI JR. A constitucionali-
zação do processo: a virada do paradigma racional e político no processo civil brasileiro do Estado
Democrático Constitucional, f. 103-104).

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136 Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior

Precedente judicial é algo diverso de jurisprudência e de jurisprudência


dominante. Enquanto o termo jurisprudência quer significar uma coleção de acór­
dãos; precedente judicial significa uma única decisão judicial, considerada em
relação de anterioridade a outras, cujo núcleo essencial (ratio decidendi), extraível
por indução, tende a servir como premissa para julgamentos posteriores de casos
análogos.24
Disso se infere que o fundamento do precedente judicial está em produzir
uma norma jurídica (legal rule) com potencial de aplicar-se a uma infinidade de
análogos casos futuros. Ou seja, só faz sentido invocar-se a doutrina dos prece-
dentes, quando houver a possibilidade do fundamento determinante de um caso
servir para solucionar os casos análogos (Treat like cases alike).
Nesse sentido Dworkin25 afirmou com propriedade que “A força gravitacional
de um precedente pode ser explicada por um apelo, não à sabedoria da imple-
mentação de leis promulgadas, mas à equidade que está em tratar os casos seme-
lhantes do mesmo modo”.
O precedente judicial, seja ele uma decisão monocrática ou colegiada, depen­
dendo do sistema em que se prende, é classificado em precedente vinculante (binding
precedent) e precedente persuasivo (persuasive precedent). Vale salientar que os
precedentes persuasivos, tradicionalmente, estão mais associados aos sistemas
de civil law e os precedentes vinculantes aos sistemas de common law (princípio
do stare decisis); sendo certo, contudo, que, atualmente, essa associação encon-
tra-se um tanto quanto ultrapassada, tendo em vista que os países de civil law,
pelo menos em sede de jurisdição constitucional, há algum tempo vêm produ-
zindo precedentes vinculantes.
No common law, o aspecto que caracteriza a regra do precedente é o seu
cunho fortemente coercitivo; sendo esse princípio jurídico denominado stare
decisis. Essa teoria impõe aos juízes o dever funcional de seguir, nos casos suces-
sivos, os motivos determinantes (ratio decidendi) dos precedentes proferidos em
situações análogas. Ou seja, a teoria do stare decisis não se contenta em que o
órgão jurisdicional encarregado de proferir decisão examine os precedentes como
subsídio persuasivo relevante a considerar no momento de construir a sentença.
“Estes precedentes, na verdade, são vinculantes, mesmo que exista apenas um

24
Marcelo Alves Dias de Souza, citando Black, define o precedente judicial como “um caso sentenciado
ou decisão da corte considerada como fornecedora de um exemplo ou de autoridade para um caso
similar ou idêntico posteriormente surgido ou para uma questão similar de direito” (SOUZA. Do pre-
cedente judicial à súmula vinculante, p. 41).
25
DWORKIN. Levando os direitos a sério, p. 176.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
Criação judicial do direito e importância dos precedentes 137

único pronunciamento pertinente (precedent in point) de uma corte de hierarquia


superior”.26
Assinale-se, por oportuno, que o sistemático desrespeito aos precedentes
compromete o próprio Estado de Direito, na medida em que as coisas passam
a ocorrer como se houvesse várias leis regendo a mesma conduta, o que indu-
bitavelmente gera um clima de integral instabilidade e ausência absoluta de
previsibilidade.27
Como assevera Teresa Wambier:28 “de que adianta ter uma só lei com diver-
sas interpretações possíveis? Tantas pautas de conduta haverá, quantas forem
estas interpretações. É como, repetimos, se houvesse várias leis disciplinando a
mesma situação”.
A essa mesma conclusão chegou Eduardo Cambi,29 no clássico artigo inti-
tulado “Jurisprudência lotérica”: “Ora, quando uma mesma regra ou princípio é
interpretado de maneira diversa por Juízes ou Tribunais em casos iguais, isso gera
insegurança jurídica, pois, para o mesmo problema, uns obtêm e outros deixam de
obter a tutela jurisdicional”.
Ainda de acordo com Eduardo Cambi,30 o patológico fenômeno que o mesmo
chamou de jurisprudência lotérica elimina a certeza do direito, sendo causa de crise,
na medida em que é a certeza e a previsibilidade quanto à aplicação do direito que
dão segurança à sociedade; já que, sob um direito incerto, ninguém vive seguro dos
bens ou da vida.
Ora, é inegável que a adoção de uma cultura de respeito aos precedentes
nos países de tradição romano-germânica, na medida em que proporciona a uni-
formização da jurisprudência, aumenta em muito a previsibilidade das decisões
e, portanto, a segurança jurídica.
Outrossim, ainda, pode-se afirmar que o respeito aos precedentes judiciais
encontra fundamento no seio das doutrinas de Luhmann e Canaris, que estão
dentre as mais festejadas teorias sobre sistemas, que, apesar de diferentes, podem
justificar o respeito ao precedente, na medida em que (i) ambas colocam o juiz em
local de destaque no sistema; (ii) aceitam que os precedentes reduzem as possibi-
lidades hermenêuticas e, (iii) tratam com profundidade da confiança.

26
TUCCI. Precedente judicial como fonte do direito, p. 12-13.
27
WAMBIER. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. Revista
de Processo, 144.
28
Idem, p. 146.
29
CAMBI. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais, p. 111.
30
CAMBI. Jurisprudência lotérica. Revista dos Tribunais, p. 111.

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138 Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior

Com efeito, com base na teoria dos sistemas de Luhmann,31 pode-se afirmar
que o sistema jurídico, voltando-se à solução de conflitos, tem a função de garan­tir
as expectativas normativas de comportamento. Assim, o sistema jurídico, guiado
pela Dogmática, representa uma redução da extrema complexidade da realidade
social. O papel do direito nas sociedades contemporâneas seria o desenvolvimento
compreensivo da generalização e da estabilização das expectativas normativas de
comportamento.32
Como programa de solução de conflitos, o sistema jurídico trabalha com
expectativas normativas de comportamento, bem como com o dever de se ante­
ciparem as consequências dos atos e fatos jurídicos. O sistema jurídico, com a
meta de possibilitar a vida social, torna-se autoreferencial, oferecendo um mínimo de
confiança e de segurança nos julgados e de orientação às expectativas normativas.33
Por isso é que, uma vez definida a posição dos tribunais sobre certa matéria,
surge um quadro de referência, segundo o qual as decisões podem ser esperadas,
ou melhor, cria-se, assim, verdadeira norma judicial de orientação da conduta.
Nesse sentido leiam-se trechos de obras de Luhmann, tratando primeiro da
complexidade e depois de sua redução com os processos decisórios:

A afirmação mais abstrata que se pode fazer sobre um sistema, e que é


válida para qualquer tipo de sistema, é a de que entre sistema e meio há
uma única diferença, que pode ser descrita como diferença de complexi-
dade: o meio de um sistema é sempre mais complexo do que o próprio
sistema.34
Do ponto de vista evolutivo da sociedade, caberia considerar o direito
como uma espécie de processo de domesticação dos conflitos. Na obra
Sistemas sociales, eu propus a seguinte tese: o sistema de direito serve
como sistema de imunidade, para a sociedade; o que não significa que
o direito seja baseado somente nesta razão. Esse nexo entre direito e
sistema de imunidade se determina mais ao considerar que o direito se
constitui como antecipação dos possíveis conflitos. [...] Quando alguém
apela ao direito, o material de comunicação se reordena; os textos se
tornam rele­vantes; citam-se outros casos; as opiniões de determinadas
instâncias adquirem importância; torna-se possível remontar no tempo,
em séculos, talvez milênios, desde que os fatos possam fornecer informa-
ção para o conflito. O direto serve para dar continuidade à informação, ao

31
LUHMANN. Sociologia do direito I, p. 178.
32
LUHMANN. Sociologia do direito I, p. 180.
33
LUHMANN. Sociologia do direito I, p. 180-181.
34
LUHMANN. Sociologia do direito I, p. 183-184.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
Criação judicial do direito e importância dos precedentes 139

esta­belecer contatos com outros meios de comunicação, como a política


e a ciência. Ele é adequado para a sociedade, não só quando pode reco-
nhecer os conflitos existentes, mas também, de fato, quando pode pro-
duzir os conflitos suficientes e disponibilizar sua própria complexidade
para tentar resolvê-los.35
Uma outra particularidade da instauração de processos decisórios reside
em colocar em potencial decisório à disposição dentro de um certo qua-
dro de referência, segundo o qual as decisões podem ser esperadas.36
De um critério concebido de forma abstrata resultam melhores possibili-
dades de integração, nele pode-se acomodar mais expectativas normati-
vas, mas ele também pressupõe processos mais eficientes de seleção que
ajudem a superar a grande distância que separa as premissas programá-
ticas para decisões das próprias decisões em cada caso.37
Os processos são antes de tudo mecanismos de institucionalização sele-
tiva. Neles é decidido quais normas geram um consenso real ou presumí-
vel, tornando-se socialmente utilizáveis.38

De acordo com a teoria de Canaris,39 o significado base de sistema consiste


em reunião, conjunto, todo, funcionamento harmônico entre os diversos elemen-
tos neste inseridos, que têm como características essenciais a ordenação e a unidade,
que juntas exprimem um estado de coisas intrínseco racionalmente apreensível e
evitam a dispersão em uma multiplicidade de singularidades desconexas. Logo,
constituindo o direito um sistema, deve manter as características básicas da orde-
nação e unidade.40
Canaris41 aponta a unidade e a ordem (coerência) como características
imanentes à idéia de sistema; uma está intrinsecamente relacionada à outra, o
que não significa que não possam ser diferenciadas. A unidade, de acordo com o
sentido próprio do termo, conduz ao entendimento de que o sistema não possui
inúmeras vertentes singulares e desconexas, por isso que o aplicador do direito
utiliza o método sistemático de interpretação.

35
LUHMANN. Introdução à teoria dos sistemas, p. 327-328.
36
LUHMANN. Sociologia do direito I, p. 178.
37
LUHMANN. Sociologia do direito I, p. 180.
38
LUHMANN. Sociologia do direito I, p. 181.
39
CANARIS. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 9-23.
40
De acordo com Marcelo Neves, “Os sistemas proposicionais com função prescritiva (normativa),
como o jurídico, por estarem localizados no ‘mundo’ da práxis e não na ordem do logos ou da gnose,
prescindem de coerência. Daí advertirem Alchourrón e Bulygin ser dificilmente aconselhável a
restrição do termo sistema aos conjuntos proposicionais coerentes, pois não são raros conjuntos
normativos incoerentes. Portanto, em relação aos sistemas proposicionais prescritivos, a coerên-
cia é tão-só um ideal racional, fundado na exigência de segurança” (NEVES. Teoria da inconstitucio-
nalidade das leis, p. 2-3.)
41
CANARIS. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 12, 14-15.

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140 Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior

Da teoria do sistema de Canaris, pode-se pinçar, ainda, a noção da natureza


constitutiva (criativa) da decisão judicial e a ideia de que somente se admite o
sistema como unidade e ordem, regido pelos princípios supremos da segurança
e da justiça, de forma que não pode se compadecer com a quebra da confiança e
da boa-fé objetiva; tendo em vista que o ordenamento jurídico que positiva a pro­
teção da confiança, assegura os efeitos da “ilusão”, ou seja, assegura os efeitos do
fato que induziu à confiança. Tudo isso conduz à projeção dos efeitos futuros que
ocorreriam, se não tivesse surgido o fato violador da confiança.
O respeito aos precedentes, ao minorar as possíveis divergências jurispru-
denciais, conferindo coerência e unidade à ordem jurídica, encontra fundamento
no conceito de sistema pensado por Canaris. Ademais, também proporciona res-
peito aos valores supremos do Direito — justiça e segurança. Leia-se o seguinte
trecho da obra de Canaris:

[...] a idéia do sistema jurídico justifica-se a partir de um dos mais ele-


vados valores do Direito, nomeadamente do princípio da justiça e das
suas concretizações no princípio da igualdade e na tendência para a
generalização. Acontece ainda que outro valor supremo, a segurança
jurídica, aponta na mesma direcção. Também ela pressiona, em todas as
suas mani­festações — seja como determinabilidade e previsibilidade do
Direito, como estabilidade e continuidade da legislação e da jurisprudên-
cia ou simplesmente como praticabilidade da aplicação do Direito [...].42

O que se pretende demonstrar é que, tanto na teoria de Luhmann quanto


na de Canaris, a reiteração dos precedentes dos Tribunais gera uma expectativa
normativa de comportamento nos jurisdicionados e enseja a previsibilidade das
consequências dos atos, ou melhor, a confiança em que casos idênticos serão
deci­didos da mesma forma, não podendo, portanto, a confiança e a boa-fé obje-
tiva serem quebradas com a aplicação repentina e sorrateira de decisão que não
estava dentre as possibilidades hermenêuticas.
Por conseguinte, facilmente pode-se inferir que o respeito aos precedentes
encontra fundamento nessas duas festejadas teorias do sistema, pois, à medida
que surgem os precedentes judiciais, diminui-se a complexidade em torno da
questão e, consequentemente, reduzem-se as possibilidades hermenêuticas,
criando nos jurisdicionados expectativas normativas, que são preservadas, jus-
tamente, com a uniformidade e estabilidade na realização do direito, ou seja,
cria-se um círculo virtuoso.

CANARIS. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 22.


42

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
Criação judicial do direito e importância dos precedentes 141

3  Conclusão
Constatado que juízes e tribunais exercem atividade criativa, vê-se o sistema,
diante da necessidade de ser efetivo e isonômico (casos concretos semelhantes
devem ter o mesmo tratamento), impelido a criar mecanismos que balizem a ati-
vidade decisória, tornando a observância dos precedentes judiciais recomendável
ou obrigatória.
É importante destacar, ainda, que o Brasil, há cerca vinte anos, vem cami-
nhando rumo a um sistema de precedentes;43 porém, mesmo diante das inúmeras
inovações legislativas ocorridas nas últimas duas décadas, visando impor maior
grau de respeito aos precedentes, a divergência jurisprudencial atingiu níveis ina-
ceitáveis, o que denota uma carência de afinidade com o trato dos precedentes
judiciais e dos institutos relacionados à sua aplicação e superação.44

43
Nesse sentido, pode-se citar as seguintes inovações legislativas: (i) Permissão para que o Relator de
RESP e RE, no STJ e STF, respectivamente, julgue monocraticamente, quando o acórdão recorrido
contrariar a jurisprudência dominante da Corte – Art. 38 da Lei nº 8.038 de 28.05.1990; (ii) Atribuição
de efeitos vinculantes à decisão proferida em Ação Declaratória de Constitucionalidade – Art. 102,
§2º da CF, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 03/1993; (iii) Julgamento monocrático pelo
Relator, quanto à inadmissibilidade, provimento ou desprovimento de recurso, quando encontrar
fundamento em súmula ou jurisprudência dominante do STJ ou STF – Art. 557 do CPC, com as alte-
rações da Lei nº 9.139, de 30.11.1995, e da Lei nº 9.756, de 17.12.1998; (iv) Julgamento monocrático
pelo Relator no STJ e STF, para em agravo de instrumento, dar provimento ao RESP ou RE inadmi-
tido, quando o acórdão recorrido estiver em confronto com súmula ou jurisprudência dominante
dessas Cortes – Art. 544, §3º, com redação data pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998, DOU, 18 dez. 1998;
(v) Julgamento monocrático pelo Relator do Conflito de Competência, quando houver jurispru-
dência dominante do tribunal sobre a matéria – Art. 120, parágrafo único, acrescentado pela Lei
nº 9.756, de 17.12.1998, DOU, 18 dez. 1998; (vi) Dispensa da reserva do plenário, quanto à argui-
ção de inconstitucionalidade, quando já houver decisão do plenário ou órgão especial do pró-
prio tribunal ou do plenário do STF – Art. 481, parágrafo único, do CPC, acrescentado pela Lei
nº 9.756/98; (vii) Efeitos vinculantes da Declaração de Constitucionalidade ou Inconstitucionalidade
– Art. 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868, de 10.11.99; (viii) Efeito vinculante na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental – Art. 10, §3º, da Lei nº 9.882, de 03.12.99; (ix) Afetação
de julgamento a órgão indicado pelo regimento interno – Art. 555, §1º, do CPC, acrescenta-
do pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001; (x) Súmula Vinculante – Art. 103-A, acrescentado pela EC
nº 45/2004; Lei nº 11.417 de 16.12.2006; (xi) Súmula impeditiva de recurso – Art. 518, §1º, do
CPC, acrescentado pela Lei nº 11.276, de 07.02.2006; (xii) Repercussão geral no RE – Art. 102, §3º,
da CF, acrescentado pela EC nº 45/2004; art. 543-A, acrescentado pela Lei nº 11.418, de 19.12.2006,
DOU, 20 dez. 2006; e (xiii) Julgamento por amostragem dos recursos extraordinário e especial –
Arts. 543-B e 543-C do CPC, acrescentados pela Lei nº 11.418, de 19.12.2006, DOU, 20 dez. 2006.
44
Nesse sentido, pode-se citar: ratio decidendi; obiter dictum; distinguishing; overruling; technique of
sinaling; transformation, overriding e antecipatory overruling.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
142 Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior

Abstract: Being the essence of decision-making activity of courts and


judges the possibility of existence of disparate solutions for similar concrete
cases, due to his creative nature, are necessary and ever more sophisticated
procedural mechanisms intented do insure equal treatment of citizens and
the effectiveness of judgments, especially the observance of the precedents.

Key words: Trial. Judicial creation of law. Possibility to diferent decisions


of judges and courts to similar concrete cases. Need for observation of the
precedents.

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Criação judicial do direito e importância dos precedentes 143

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

GOUVEIA, Lúcio Grassi de; ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. Criação judicial do
direito e importância dos precedentes. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 123-143, out./dez. 2012
Os influxos do paradigma racionalista no
Direito Processual Civil brasileiro

Felipe Barcarollo
Advogado. Coordenador da Procuradoria da UNISINOS.
Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (UNISINOS). Pós-graduando em Direito Tributário
pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).

Resumo: A concepção racionalista do Direito Processual Civil brasileiro, en-


quanto ciência puramente normativa, indica a incapacidade do atual para-
digma processual em atender aos anseios e necessidades de uma sociedade
multifacetada e plurívoca. Busca-se demonstrar o compromisso do Processo
de Conhecimento com a plenariedade processual, através da instauração de
juízos fundados na certeza e a vocação genética do sistema para o contra-
ditório prévio, impedindo-se qualquer forma de contraditório diferido ou
eventual.

Palavras-chave: Direito Processual Civil brasileiro. Paradigma racionalista.

Sumário: Introdução – 1 O paradigma racionalista e o Direito Processual


Civil brasileiro – 2 O processo ordinário (de conhecimento) como apogeu do
para­digma racionalista – Considerações finais – Referências

Introdução
O Direito Processual Civil brasileiro está, invariavelmente, comprometido
com o paradigma racionalista, que procura tornar o Direito ciência absoluta, refra-
tária dos fenômenos sociais, refém da história e descomprometida com o tempo.
A concepção do Direito Processual Civil, na atual quadra histórica, sofre os
influxos do paradigma racionalista, que concebe o direito como ciência de pesar,
medir e contar, próprio das ciências demonstrativas ou matemáticas, que, como será
investigado no presente trabalho, já experimentam uma crise em seus dogmas.
O distanciamento entre o direito do foro e o direito das universidades, a cul-
tura dos manuais e o mundo dos fatos, traduz um pouco do paradoxo que sofre a
ciência do direito, mormente o processo civil contemporâneo.

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146 Felipe Barcarollo

A noção de direito não é estática. Os juristas que são conservadores não são
juristas. Afinal, vivemos em um mundo essencialmente hermenêutico, porquanto
somos seres históricos. O direito, como fenômeno social, brota do povo; portanto,
evolui. O direito é um fenômeno social, razão pela qual ubi societas, ibi jus, ubi
jus, ibi societas. Onde está a sociedade está o direito, onde está o direito está a
sociedade.
A história de todos os povos, portanto, é a história do direito que os organiza,
que está em curso, que é rompido e substituído por aqueles que os governam e os
guiam em direção a seu destino, conforme a maneira de ser das diversas culturas e
civilizações. Todas essas digressões servem para mostrar como o jurista é um histo-
riador em potencial e o historiador é um jurista em potencial.
Conquanto ressaltadas estas premissas, os institutos ou categorias proces-
suais, sobretudo o Processo de Conhecimento, não conseguem conviver com
esta visão de mundo. Afinal, inolvidável dizer-se que o direito é ciência de valores.
Inconcebível vislumbrar o Direito como algo perene, eterno, imutável.
Por estas razões, o atual processo civil pátrio e sua ideologia — o pressuposto
racionalista — revelam a força que os dogmas ou verdades imutáveis exercem sobre
o nosso ordenamento jurídico processual, descontextualizando o indivíduo de seu
meio cultural, impedindo que a lei reste harmonizada frente às novas realidades
sociais.
“A vida do direito não tem sido lógica; tem sido experiência”.1 No entanto,
aos profissionais do direito que transitam pelos foros judiciais, verifica-se que a
lógica binária matemática — do certo e do errado — ainda é aplicada de forma
maciça nos processos judiciais. Continua o jurista fiel ao raciocínio matemático e
a seu corolário lógico: a neutralidade axiológica do sistema.
O distanciamento entre verdade e aparência é inequívoco em todas as ciên-
cias, sobretudo nas ciências do espírito. A verossimilhança é verificável a todo o
tempo nas demandas judiciais. O magistrado, diuturnamente, depara-se diante
de situações que envolvem juízos de probabilidade, como a ação de mandado
de segurança, a antecipação de tutela, os interditos possessórios, dentre outros.
No entanto, o raciocínio jurídico almeja a perenidade, a univocidade de sen-
tido, a verdade, os juízos de certeza, a cognição exauriente, a plenariedade e a
ordinariedade processuais, a irrelevância dos significados perante as verdades.
A lógica é, a um só tempo, constructo e artifício humano, que almeja elimi-
nar a diferença existente no mundo. Nesse sentido, o direito não pode ser com-
preendido como dogma, porquanto o direito, enquanto ciência jurídica e social, é
ciência do espírito, da compreensão hermenêutica.

CARDOZO. A natureza do processo judicial, p. 20.


1

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 147

No entanto, os juristas, de forma insistente, conservam o dogma, eternizando-o


como se o Direito e a História fossem ciências ou áreas de conhecimento absolu-
tamente antagônicas. História e direito estão umbilicalmente ligados. Nesse dia-
pasão, Karl Mannheim ensina que o conhecimento torna-se ideológico “quando
mantém o status quo e deixa de levar em conta as novas realidades, lidando com
as situações práticas valendo-se de formas que as ocultem ou as retratem através
de categorias impróprias”.2
O direito é ciência da cultura. Convive com a contingência, com a comple-
xidade, com a diversidade, com o entrechoque social constante. Logo, o Direito
distancia-se das ciências matemáticas ou demonstrativas, haja vista que é ciência
da compreensão.
A concepção more geometrico do Direito, desprovida da compreensão her-
menêutica, representa arcaísmo inenarrável. Ao revés, o direito apresenta plasti-
cidade, maleabilidade, enfim, é permeável a mudanças.
A contingência trazida pela dinâmica das relações sociais, ao contrário de po­
sições estáticas, indica que o atual Processo de Conhecimento encontra-se inapto
a servir a uma sociedade de massas, porquanto convive, de forma exacerbada,
com juízos de certeza, sob o prisma racionalista.
O que se busca sinalizar, no transcurso do trabalho, é a concepção raciona-
lista do Direito — o Direito Processual Civil como ciência puramente normativa e
seu distanciamento da História, apresentando algumas premissas que indicam a
incapacidade do atual paradigma processual em atender aos anseios e necessida-
des de uma sociedade multifacetada e plurívoca.
Por derradeiro, demonstra-se o compromisso do Processo de Conhecimento
com a plenariedade processual, através da instauração de juízos fundados na cer-
teza e a vocação genética do sistema para o contraditório prévio, impedindo-se
qualquer forma de contraditório diferido ou eventual.

1  O paradigma racionalista e o Direito Processual Civil brasileiro


A ideologia do Direito Processual Civil pátrio, na atual conjuntura histórico-­
temporal, está atrelada/comprometida com o paradigma racionalista, segundo o
qual, na esteira de Ovídio A. Baptista da Silva, “seria possível ao homem, pela força
da razão, atingir a essência da verdade”.3

MANNHEIM. Ideologia e utopia, p. 122.


2

SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 7.


3

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148 Felipe Barcarollo

Assim, o processo civil atual está comprometido com o ideário racionalista,


próprio das ciências matemáticas, porquanto acrítico, dogmático, a-histórico, não
representando os anseios que a sociedade hodierna requer. Os moldes racionalis-
tas, na seara do Direito Processual Civil, trazem consequências funestas à transfor-
mação da sociedade, característica essa que deve ser a tônica das ciências jurídicas,
porquanto desatreladas das ciências demonstrativas, aquelas que se cingem a con-
tar, medir, pesar. Estamos a tratar de ciência do espírito, ciência da compreensão
hermenêutica!
O fato é que o homem, enquanto indivíduo social, durante muitos séculos
se movimenta(va) na esfera da abstração analítico-dedutiva. Nesse ponto, traz-se
à colação a doutrina de Ernildo Stein, que em sua obra História e Ideologia, assim
leciona:

Os pontos de partida absolutos, as evidências definitivas eram as matrizes


donde emergia a compreensão do homem. A alma, o espírito, a raciona-
lidade absorviam as atenções, enquanto a concretude encarnada, a vida,
a história apresentavam-se mais como empecilhos para a penetração nos
mistérios humanos. Ou então, os estudos positivos do homem, como
parte do mundo da natureza, se chocavam, por sua vez, contra um fator
perturbador da líquida explicação do simples animal humano. Portanto,
ou se partia da abstrata natureza humana ou se computavam dados posi-
tivos cuja soma jamais correspondia ao que vinha pré-determinado
na reflexão filosófica. O homem devia dar-se como evidência prévia ou
como objeto de uma explicação posterior. A filosofia e a ciência entravam
em conflito diante do enigma humano.4

Destarte, o paradigma racionalista, com sua dedução abstrata e explicação


científica, simples subsunção do fato à norma, sem atentar para o caráter herme-
nêutico do Direito, não atinge o homem como vida, facticidade e história concreta.
Este é o atual quadro do direito, mormente do Direito Processual Civil brasileiro na
atual conjuntura histórica.
Assim, constata-se que o processo civil pátrio está fortemente comprometido
com o paradigma racionalista, porquanto aos profissionais que militam no foro é
nítida a discrepância entre o direito dos manuais, concebidos more geometrico, e
o mundo da vida. Destarte, necessário se faz, na esteira do saudoso mestre Ovídio
A. Baptista da Silva, “uma urgente e necessária imersão do Direito no campo cul-
tural, de modo a superar o tratamento que a tradição manualística dá ao direito”.5

STEIN. História e ideologia, p. 13.


4

SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 3.


5

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 149

Assim, verifica-se que o paradoxo do processo civil pátrio deve-se ao modelo


de jurisdição que nos é trazida pela legislação de regência, em uma sociedade plurí-
voca, complexa e multifacetada, que se encontra balizada pelo paradigma raciona-
lista, impróprio para a compreensão do direito como fenômeno da vida.

1.1  Direito e Hermenêutica – O Direito Processual Civil como


ciência puramente normativa e seu distanciamento da História
A história efeitual, de que o paradigma racionalista processual guarda dis-
tância (há um fosso abissal), vem a corroborar o perfil eminentemente dogmático
e atomizado do direito da labuta forense e o direito dos códigos. O que se verifica,
nessa perspectiva, é que os problemas agudos em nosso país e em nosso direito
guardam conexão com os contrastes existentes entre a letra da lei e o comporta-
mento geometrizado dos (re)produtores do direito. Há uma incompreensão, da
maciça horda de profissionais do Direito, de que somos seres históricos, contextua­
lizados no tempo.6 Não sabemos conviver com a velocidade da mobilidade social!
As ciências matemáticas (química, física, matemática e biologia) já sofrem revolu-
ções significativas com a descoberta dos quarks e léptons, relativizando dogmas e
exatidões até então inquestionáveis. Nesse sentido, o jurista, que labora com a ciência
do espírito, insiste em enclausurar-se no domínio do absoluto, do imutável.
O status quo do processo civil pátrio e do Direito Brasileiro está fortemente
imbuído pelo padrão epistemológico do Século das Luzes, ancorado no mundo
normativo e seu consequente corolário: o pressuposto de ser a lei uma proposição
unívoca, engessando-se, por conseguinte, todo o arcabouço do sistema jurídico.
Dessa forma, a dogmática jurídica veio a congelar a produção do Direito em nosso
país, fruto do descompasso havido entre o direito dos códigos e o direito do foro.
Precisamos, isto sim, de uma jurisdição compatível com as mutações sociais, em
sociedade que sofre incessantes modificações, ao passo que o Direito (e o processo
civil) permanecem jungidos e atomizados ao vetusto paradigma racionalista, pró-
prio das ciências de pesar, medir e contar.
Ao revés das ciências exatas (matemática, física, química), o direito está
comprometido com a história (afinal, somos seres históricos, possuímos uma his-
tória, nascemos, vivemos e pereceremos em um contexto histórico). Hans-Georg

BAUMAN. Modernidade líquida, p. 15-16. Eis as lições de Bauman: Na modernidade, o tempo tem his-
6

tória, tem história por causa de sua “capacidade de carga”, perpetuamente em expansão — o alonga-
mento dos trechos do espaço que unidades do tempo permitem “passar”, “atravessar”, “cobrir” — ou
conquistar. O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço
(diferentemente do espaço eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não encolhe)
se torna uma questão do engenho, da imaginação e da capacidade humanas.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 145-179, out./dez. 2012
150 Felipe Barcarollo

Gadamer, em sua obra El giro hermeneutico, ensina que “sigo há tempo o princípio
metodológico de não empreender nada sem levar em conta a história que se escon-
de atrás dos conceitos”.7
Em suma, Ovídio A. Baptista da Silva, eminente processualista gaúcho, busca
apontar/denunciar de forma lapidar, em seus ensinamentos, o distanciamento exis-
tente entre o Direito e a vida social, o direito dos que militam no foro e o direito dos
manuais e das universidades. Denuncia-se o compromisso do processo civil com o
paradigma racionalista, que fez do direito uma ciência sujeita aos princípios meto-
dológicos típicos das ciências exatas, de viés estanque, desatrelado da história.
O apego ao paradigma racionalista transformou o direito em um conjunto
sistematizado de conceitos herméticos, com pretensão à segurança e à eternidade,
desvinculando o ser humano do contexto histórico. Os danos causados pela dogmá-
tica jurídica ao processo civil e ao direito podem ser observados aos que labutam,
diariamente, na atividade forense. Assim, forçoso se faz a superação do dogmatismo,
no escopo de perfilhar trilhas que aproximem o direito do seu nascedouro: o seio
social, o Direito como cultura, história, recuperando sua dimensão hermenêutica.
A problemática ora instaurada, segundo Lênio Streck, consiste em tornar-
mo-nos reféns de um pensamento metafísico, no interior do qual a linguagem
nada mais é do que veículo condutor de conceitos que carregam em si o “sentido
das coisas”, senão vejamos:

Enfim, longe de ser alçada à cimeira condição de possibilidade do nosso


modo-de-ser-no-mundo — tese balizadora do ontological turn que revo-
lucionou a hermenêutica do século XX —, a linguagem, para esse pen-
samento que povoa o imaginário dos juristas, continua relegada a uma
terceira coisa que se interpõe entre um sujeito (o intérprete do direito) e
um objeto (a “realidade”). Inseridos nesse contexto, os juristas continuam
a trabalhar no universo da ultrapassada — porque metafísica — relação
cognitiva sujeito-objeto. Conseqüentemente, a “verdade” torna-se pro-
duto de uma adequada manipulação desse “procedimento cognitivo”,
mascarado pelas diversas metodologias “hermenêuticas”, que, mediante
o uso dos diversos cânones ou fórmulas, procuram dar a ilusão da certeza
do processo interpretativo.8

A certeza almejada em nosso processo civil brasileiro e a consequente busca


da verdade querem significar, à luz do paradigma racionalista, a pretensão de tornar

GADAMER. El giro hermeneutico, p. 12.


7

STRECK. Hermenêutica (jurídica): compreendemos porque interpretamos ou interpretamos por-


8

que compreendemos?: uma resposta a partir do Ontological Turn. In: ANUÁRIO do programa de
pós-graduação em direito UNISINOS, p. 223-224.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 145-179, out./dez. 2012
Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 151

o corpus legislativo dotado de univocidade de sentido, tornando despiciendo o


fator histórico para a compreensão do Direito enquanto ciência do espírito, da
compreensão hermenêutica. Jürgen Habermas, em Teoría de la acción comunica-
tiva, salienta que as teorias das ciências experimentais modernas necessitam de
um novo diálogo, no escopo de imprimir maior relevo à história da ciência, no
contexto da evolução social.9
Repristinando os argumentos já ventilados, o Direito desenvolve-se no
transcurso da história, é um constructo humano, não havendo ordenamento ju-
rídico previamente lapidado, à sombra das relações sociais. A lei (e isto é o óbvio,
mas consiste em fenômeno refratário à maioria dos operadores do Direito) é fruto
das relações sociais, que se altera ao sabor das circunstâncias, necessidades e con-
tingências históricas.
Existe um vácuo, um fosso, uma distância abissal entre o discurso teórico (do
senso comum teórico dos juristas) e o direito do foro, entre o direito dito e o direito
do fazer, entre a cultura manualesca e os acontecimentos do mundo da vida.
No que concerne à ideologia, Ovídio Baptista observa que este conceito
possui ligação genética com o racionalismo, ao mostrar que a concepção corrente
pressupõe que a pessoa que se isenta de ideologia, ou que acusa o outro de
ideo­lógico, haja superado sua própria cultura, encontrando o sonhado “ponto de
Arquimedes”, de onde, livre de qualquer compromisso com a tradição que o tenha
formado, haja atingido a verdade absoluta.10
Para Ovídio Baptista,

Não é tarefa difícil descobrir as raízes ideológicas que presidem o sistema


processual, mantendo seus compromissos com o Racionalismo. Deste
compromisso é que provém a suposição de que a lei jurídica seja uma
proposição análoga às verdades matemáticas.11

9
HABERMAS. Teoría de la acción comunicativa: racionalidad de la acción y racionalización social,
p. 17. Habermas propugna o referido diálogo nestes termos: “Como demuestra la filosofía de la
ciencia y la historia de la ciencia, la explicación formal de las condiciones de racionalidad y los
análisis empíricos de la materialización y evolución histórica de las estructuras de racionalidad, se
entrelazan entre sí de forma peculiar. Las teorías acerca de las ciencias experimentales modernas,
ya se planteen en la línea del positivismo lógico, del racionalismo crítico o del constructivismo
metódico, presentan una pretensión normativa y a la vez universalista, que ya no puede venir
respaldada por supuestos fundamentalistas de tipo ontológico o de tipo transcendental. Tal pre-
tensión sólo puede contrastarse con la evidencia de contraejemplos, y, en última instancia, el
único respaldo con que pueden contar es que la teoría reconstructiva resulte capaz de destacar
aspectos internos de la historia de la ciencia y de explicar sistemáticamente, en colaboración con
análisis de tipo empírico, la historia efectiva de la ciencia, narrativamente documentada, en el
contexto de las evoluciones sociales”.
10
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 15.
11
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 16.

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152 Felipe Barcarollo

É nesse sentido que podemos verificar que o processo civil pátrio (não só
ele, mas o direito brasileiro como um todo), preso ao ideário dogmático, possui
perfil nitidamente a-histórico, atemporal, cujo tempo foi sequestrado pela norma,
veículo este de valor unívoco, como uma equação algébrica, que somente admite/
suporta um determinado e já sabido resultado. Conclui Ovídio Baptista que “se a
norma jurídica assemelha-se a uma proposição algébrica, será impensável supor
que ela tenha duas vontades; que possa permitir a seus aplicadores uma dose,
mínima que seja, de discricionariedade”.12
Dado o caráter hermético e petrificado da norma jurídica, nos moldes da
dogmática, o intérprete não pode(ria) compreender a norma hermeneuticamente,
mas sim, com a racionalidade de um matemático, resolver o problema algébrico,
típica construção more geometrico.
Assim, o paradigma racionalista, que permeia a (re)produção e o consumo
do ensino jurídico no Brasil, está polarizado pelos moldes matemáticos, critérios
de cientificidade próprios do modelo cartesiano do século XVII, a partir das medi-
tações metafísicas de Descartes13, que influenciaram sobremaneira as civilizações
posteriores. Nesta fase, temos a prevalência da certeza sobre a verdade. O racio-
nalismo, enquanto imagem ideológica do homem como ens rationale, tem como
meta reconduzir o mundo a um sistema de afirmações unívocas, seja nas ciências
naturais, seja no Direito.
O modelo racionalista busca assentar-se em afirmações verdadeiras, cer-
tas, privando-se do contexto da historicidade, porquanto o passado não possui
o caráter de fundamento de validade da ordem jurídica existente. Afirma René
Descartes, em Discurso sobre o método:

O primeiro consistia em jamais aceitar como verdadeira coisa alguma que


eu não conhecesse à evidência [...]. O segundo consistia em dividir cada
dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto preciso e necessário
para resolvê-las. O terceiro, pôr em ordem em meus pensamentos, come-
çando pelos assuntos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos
para atingir, paulatinamente, gradativamente, o conhecimento dos mais
complexos, e supondo ainda uma ordem entre os que não se precedem
normalmente uns aos outros. E o último, fazer, para cada caso, numera-
ções tão exatas e revisões tão gerais que estivesse certo de não ter esque-
cido nada. Essas longas cadeias de razões à certeza do método, desde
que se consiga conservar sempre a ordem necessária para fazer a dedu-
ção uma das outras [...].14

12
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 17.
13
DESCARTES. Meditações metafísicas, p. 35.
14
DESCARTES. Discurso sobre o método, p. 40-41.

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 153

Lapidar é a consideração que o Professor Ovídio Baptista tece acerca do


nevrálgico paradigma racionalista, e sua profunda contradição com o pensa-
mento moderno, nestes termos:

Existe, na verdade, uma profunda contradição no pensamento moderno


que, tendo compreendido o Homem como um ser histórico, considera,
mesmo assim, a modernidade como eterna. A civilização moderna acon-
tece num mundo essencialmente hermenêutico, [...], no qual nada pode
aspirar ao “selo da eternidade”, a não ser a própria modernidade, que se
imagina detentora do segredo da perenidade.15

Cediça a constatação de que o pensamento moderno não alcança a compreen­


são de sua historicidade. O direito não se produz em laboratório. O laboratório,
para o direito, é o mundo da vida, as interações sociais, o convívio. O dogma, e sua
compreensão molecular/atomizada, possui inato em seu gérmen o pressuposto
paradigmático do racionalismo, que é construído como se representasse o último
estágio da perfeição humana.
Ovídio Baptista, em seu Processo e ideologia, a partir de texto publicado no
jornal Folha de S.Paulo, intitulado “A lógica da amnésia”, de Jacques Rancière, aponta
que

Aprendemos a viver apenas o presente, praticando a “lógica da amnésia”,


que é também um produto midiático, da “sociedade espetáculo”, uma
conseqüência do acúmulo de informações que gera seu oposto, a não
informação. [...] A lógica da amnésia, no entanto, faz com que os leitores
de jornal e os freqüentadores da mídia eletrônica recebam a cínica admis-
são de que a guerra tivera outras razões, “como quem comenta o tempo”,
porque o passado nada significa, vive-se apenas o presente, mesmo que
a compreensão desta nossa contingência de nada sirva para as vítimas
da guerra.16

Assim, com a percuciência que lhe é peculiar, Ovídio Baptista conclui que
a descrição do fenômeno tem significação para nosso empenho de desvelar o
“pensamento dogmático”. Um dos pressupostos da cristalização do dogma é, pre-
cisamente, a eliminação da crítica histórica; em nosso caso, a irrelevância assu­
mida pela genealogia dos conceitos jurídicos. O esquecimento do passado é a
condição do dogma.17

15
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 17.
16
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 19.
17
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 19.

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154 Felipe Barcarollo

A dogmática, segundo o Professor Ovídio Baptista, exclui qualquer possibilidade


de compreensão hermenêutica do texto. A construção de sentido pelo “outro” é
“política”, consequentemente ideológica. O jurista entrevistado, ingenuamente,
supunha possuir o segredo de uma linguagem divina que lhe permitia penetrar na
essência imutável da proposição normativa, exorcizando todas as compreensões
que lhe fossem contrárias, por serem ideológicas, ou “políticas”, não como a “dele”
eminentemente “técnica”. Deste ponto é possível descortinar a oposição entre
“paradigma dogmático” e a ciência do Direito enquanto ciência do espírito, ciên-
cia da compreensão hermenêutica.18
Processo e ideologia é obra singular, sem precedente no processo civil pátrio.
Através da obra em análise, Ovídio Baptista denuncia as mazelas que acometem o
sistema jurídico brasileiro contemporâneo, mormente na seara do Direito Processual
Civil. Valendo-se das lições de Karl Mannheim, o abalizado processualista gaúcho
salienta que uma teoria será, portanto, errada se, em uma dada situação prática, usar
conceitos e categorias que, utilizados, impediriam o homem de se adaptar àquele
estágio histórico. Normas, teorias e modos de pensamento antiquados e inaplicáveis
tendem a degenerar em ideologias, cuja função consiste em ocultar o real signifi-
cado da conduta, ao invés de revelá-lo. Desse modo, salienta que o conhecimento
torna-se ideológico “quando deixa de levar em conta as novas realidades, lidando
com as situações práticas valendo-se de formas que as ocultem ou as retratem atra-
vés de categorias impróprias”.19
Assim, ao perquirir-se as instituições processuais, fácil constatar-se a presença do
racionalismo como pressuposto filosófico, imprimindo caráter nitidamente ideo­
lógico ao sistema, representando, desse modo, “um modo de pensamento anacrô-
nico, superado pelo desenvolvimento histórico que nos separa do Iluminismo do
século XVIII”.20
O racionalismo e sua consequente vocação para a geometrização das ciên­cias
veio a transformar o direito em uma ciência lógico-formal-dedutiva,21 demonstrável

18
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 21.
19
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 22.
20
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 22.
21
VIEHWEG. Tópica y jurisprudencia, p. 124. Na obra em análise, Theodor Viehweg leciona sobre o
papel do direito e sua concepção no sistema jurídico de sua época, situação que se vislumbra
no ordenamento jurídico hodierno, senão vejamos: “Prescondiendo de algunas particularidades,
que no son esenciales, el Derecho Civil, que hemos tomado como ejemplo, habría quedado con
ello univocamente sistematizado, es decir, lógicamente fundamentado. Si se consiguiera además
poner, de un modo semejante, todos los demás ámbitos jurídicos bajo unos axiomas y conceptos
fundamentales unitarios y haver lo mismo con el ámbito total del Derecho positivo en cuestión,
entonces y sólo entonces estaría permitido hablar de una auténtica fundamentación lógica del
derecho y de un sistema jurídico en sentido lógico”.

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 155

como uma fórmula matemática. Este, segundo pontifica Ovídio Baptista, é um dos
pressupostos de que se valeu o Iluminismo para eliminar da instância judiciária qual-
quer veleidade de criação jurisprudencial do direito.22
Gottfried Wilhelm Leibniz, em sua obra Discurso da Metafísica e outros textos,
filósofo que, juntamente com René Descartes, influenciou de forma substancial o
paradigma racionalista, impressiona o leitor em suas considerações metafísicas,
senão vejamos:

As vontades ou ações de Deus dividem-se, comumente, em ordinárias e


extraordinárias. Mas é bom considerar-se que Deus nada faz fora da ordem.
Assim, aquilo que é tido por extraordinário, o é apenas relativamente a al-
guma ordem particular estabelecida entre as criaturas, pois quanto à ordem
universal tudo está em conformidade com ela. [...] Suponhamos, por exem-
plo, que alguém lance ao acaso muitos pontos sobre o papel, como os que
exercem a arte ridícula da geomancia. Digo que é possível encontrar uma
linha geométrica cuja noção seja constante e uniforme segundo uma certa
regra, de maneira a passar esta linha por todos estes pontos e na mesma
ordem em que a mão os marcara. [...] Não existe, por exemplo, rosto algum
cujo contorno não faça parte de uma linha geométrica e não possa dese-
nhar-se de um só traço por certo movimento regulado.23

Analisa Ovídio Baptista que o chamado “Processo de Conhecimento”, na ver-


dade processo somente “declaratório”, vocacionado para demandas plenárias, é o
instrumento dessa ideologia. É através do “Processo de Conhecimento”, ordinário
por natureza, que o sistema retira do magistrado o poder de império de que se
valia o pretor romano, ao conceder a tutela interdital. É por meio dele que o sistema
pretende manter a neutralidade — melhor, a passividade — do juiz durante o
curso da causa, para somente depois de haver descoberto a “vontade da lei”,
autorizar-lhe a julgar, produzindo o sonhado juízo de certeza. Por final, conclui
Ovídio Baptista:

Sabemos, embora nem todos tenham a disposição de confessá-lo, que o


direito é uma ciência da cultura, que labora com verdades contingentes,
situando-se muito distante da matemática e muito próximo das ciências his-
tóricas; que o Direito, afinal, é uma ciência da compreensão, não uma ciência
explicativa; que o juiz, ao contrário do que desejava Chiovenda, tem, sim,
vontade e que o ato jurisdicional é necessariamente discricionário.24

22
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 24.
23
LEIBNIZ. Discurso de metafísica e outros textos, p. 12.
24
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 28.

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156 Felipe Barcarollo

A incessante busca pela certeza (segurança jurídica), próprio do racionalismo,


trouxe a utilização de metodologia típica das ciências da natureza ou da matemática,
o que ocasionou um distanciamento da doutrina e do ensino universitário para com
os fatos quotidianos enfrentados na labuta forense. Preocupa-se, exacerbadamen-
te, com a norma, tornando os fatos coadjuvantes na cena forense. Ovídio Baptista,
nesse aspecto, assim leciona:

Ensina-se, ao contrário, nas universidades o “direito puro”, apenas a norma,


como axioma, não como problema. Ao aluno oculta-se a essencial dimen-
são problemática do Direito, que só pode ser compreendido depois, através
de uma longa e penosa aprendizagem profissional, que desfaça as ilusões
que a Universidade lhe inculcara. Constata-se, sem nenhum esforço, que o
ensino universitário no Brasil é cartesiano, more geometrico.25

Para a ruptura do paradigma racionalista e, por conseguinte, do dogma, o


primeiro sustentáculo do sistema a ser quebrado é a doutrina da separação dos
poderes do Estado, o que vem a tornar os juízes irresponsáveis, porquanto atre-
lados ao vetusto paradigma racionalista, onde somente é dado ao magistrado o
efetivo poder de império, típico da tutela interdital do direito romano, após o juiz
haver descoberto a vontade da lei, para, a partir desse momento, produzir o oní­rico
acertamento do direito. Nesse aspecto, importante colacionar excerto da obra de
Piero Calamandrei, senão vejamos:

[...] não é honesto [...] refugiar-se atrás da cômoda frase feita de quem diz
que a magistratura é superior a toda crítica e a toda suspeita: como se os
magistrados fossem criaturas sobre-humanas, não tocados pela miséria
desta terra, e por isso intangíveis. Quem se satisfaz com estas vãs adula-
ções ofende à seriedade da magistratura: a qual não se honra adulando-a,
mas ajudando-a, sinceramente, a estar à altura de sua missão.26

Outro preocupante fator herdado pelo Direito Processual Civil pátrio, através
do paradigma racionalista, diz respeito ao fato de os juízes serem a bouche de la loi.
À magistratura, na atual formatação do sistema jurídico brasileiro, é conferido po-
der sem seu corolário lógico: a responsabilidade. Isso vem, de forma inequívoca, a
colidir com o sistema democrático, como bem ressalta Mauro Cappelletti, in litteris:

O poder, é bem sabido, freqüentemente cresce sem o correspondente


crescimento de responsabilidade. In rerum natura, portanto, não existe

SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 36.


25

CALAMANDREI. Elogio dei giudici scritto da un avvocato, p. 1250-1251.


26

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 157

correlação necessária entre poder e responsabilidade, no sentido indicado


por Merryman. Mas um poder não sujeito a prestar contas representa
patologia, ou seja, o que Merryman apelida, com expressão que oculta
um pouco o seu conteúdo ideológico, de falta de “organização racional”,
mas que, em ciência política, pode-se simplesmente rotular de autorita-
rismo e, na expressão extrema, de tirania. Parece-me sempre válida, em
verdade, a afirmação de que “um poder sem responsabilidade é incompa-
tível com um sistema democrático”.27

Ovídio Baptista, em sua obra Processo e ideologia, salienta a sistemática ado-


tada por Platão para selecionar seus alunos. Este filósofo grego recusava-se a
admi­tir o candidato ao estudo da filosofia que não havia exercitado previamente
a matemática. Dessa forma, a crise metodológica que herdamos nas universida-
des brasileiras, especialmente no Direito Processual Civil, obrigado a tornar-se
ciência de medir, pesar e contar, está atrelada ao conceito de ciência que, na
esteira de Ovídio Baptista, não vai além disso.28
A metodologia adotada pelas Universidades brasileiras, sedimentada pelo
paradigma racionalista (ultrapassado pela História), é, na esteira de Ovídio Baptista,
um normativismo grosseiro que para mais nada serve, senão para a produção de
dóceis instrumentos do sistema. A epistemologia de nossa Universidade excluiu
do currículo “o caso”. Essa redução metodológica elimina o fato, como elemento
constitutivo do jurídico, sonegando aos estudantes a dimensão problemática ine-
rente ao fenômeno jurídico. Reduz o fato à norma, dada a impossibilidade própria
da cultura moderna, com seu pensamento more geometrico, de conviver com a
diferença que produzirá, no Direito, as indesejáveis incertezas que o racionalismo
tanto temia.
Segundo Ovídio Baptista, já Pontes de Miranda alertava que o espaço cria-
do pelas doutrinas políticas liberais serve para excluir o jurista do mundo social.
Prossegue o abalizado processualista e filósofo:

O ensino jurídico com seu terrível anacronismo metodológico permanece


temporalmente congelado, servindo-se de critérios concebidos pelas filoso-
fias racionalistas, em seu grandioso projeto de transformar o Direito numa
ciência exata, destinada a resolver as complexas questões humanas como
quem resolve teoremas geométricos.29

27
CAPPELLETTI. Juízes irresponsáveis, p. 18.
28
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 40.
29
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 50.

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158 Felipe Barcarollo

Dado o apego e o culto ao racionalismo, o ensino do direito nas universidades


brasileiras consiste em cristalino aparelho ideológico do Estado, porquanto a uni-
versidade é um dos sustentáculos do paradigma racionalista e autoritário no Brasil.
Daí, segundo Ovídio Baptista, a impermeabilidade das universidades brasileiras às
mudanças, o fator de represamento, que impede o rompimento das universidades
(do ensino) com o compromisso do racionalismo.30
Thomas Kuhn, em A tensão essencial, salienta que “uma característica das re-
voluções científicas é que estas exigem a remodelação dos manuais de ciência”.31
Pondera Ovídio Baptista que, dentre nós, “os manuais concebidos more geome-
trico multiplicam-se como cogumelos”.32 O nobre processualista, em Processo e
ideologia, lapidarmente pontua:

A “astúcia da razão conservadora” está, precisamente, na ideologia que so-


mos levados a reproduzir da velha e conhecida separação entre o dictum
e o factum. Dizemos alegremente que o racionalismo, que supunha ser o
Direito uma ciência tão exata quanto a matemática, está definitivamente
morto e sepultado. É o dictum. É o discurso. No mundo real, no entanto,
não apenas preservamos zelosamente as instituições formadas para rea-
lizar essa quimera, como encantamo-nos com suas virtudes milagrosas. É
o factum. É o discurso invertido que, ao mesmo tempo em que impede a
evolução do sistema, mantém-nos confiantes em seus prodígios.33

Alfim, como corolário do racionalismo, movimento típico do período da Ilus­


tração, que teve no indivíduo o cerne de suas preocupações, salienta-se que o pro-
cesso civil atual está formatado para atender a categorias tradicionais, demandas
que versam acerca de relações individualizadas Caius x Ticius, imprestável para
solucionar demandas coletivas (supraindividuais ou relações jurídicas comuni-
tárias), dado o caráter individualista que permeia nossa sistemática proces-
sual (e do direito), inapto a conviver com juízos fundados em probabilidade ou
verossimilhança.

2  O processo ordinário (de conhecimento) como apogeu do


paradigma racionalista
Com a maestria que lhe é peculiar, Ovídio A. Baptista da Silva, ilibado jurista,
assevera:

30
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 52.
31
KUHN. A tensão essencial, p. 281.
32
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 53.
33
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 55.

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 159

Para resumir, a História, como ocorre com as demais ciências do espírito,


pressupõe a compreensão hermenêutica. A abordagem própria das ciên-
cias demonstrativas, a que o racionalismo pretendeu submeter o pensa-
mento jurídico, será sempre uma metodologia artificial e inadequada para
o Direito, estando fatalmente destinada ao fracasso.34

A matematização ou geometrização do pensamento jurídico revela o extre­mo


equívoco em que laboram os juristas, posto que transformam o Direito, ciência do
espírito, em puro artificialismo, em ciência demonstrativa que se cinge a pesar, medir
e contar. Aqui reside o paradigma do processo civil pátrio e da ciência jurídica que,
de forma incessante e insistente, almeja o selo da eternidade, da perenidade. Pontes
de Miranda já alertava que “a lógica e a matemática, elas mesmas, já se libertam da
sua preponderância, que as anquilosava, que lhes dava o “ar de eternidade” das cons-
truções egípcias”.35
Como asseverado no capítulo anterior, o Direito Processual Civil pátrio, na
atual conjuntura histórico-temporal, não consegue conviver com os institutos ou
categorias do Direito cambiantes, notadamente o Processo de Conhecimento. Na
esteira de Franz Wieacker, “o Direito e o seu rumo ao formalismo representa uma
trágica opção-chave”.36
Na sociedade de massa, não há que se conceber o homem individualmente.
O indivíduo, na sociedade frenética e da pressa, não pode ser, por si mesmo e em
si mesmo, sujeito da História. Ovídio Baptista salienta que as verdadeiras forças
sociais estão representadas pelos grupos. Não obstante a atual sociedade multi-
facetada extrapolar a posição individualista e egocentrista do Século das Luzes e
da Reforma Religiosa, ressalta Ovídio A. Baptista da Silva que as instituições pro-
cessuais, tais como foram concebidas, permanecem tendo o indivíduo como seu
protagonista.37

34
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 60.
35
PONTES DE MIRANDA. O problema fundamental do conhecimento, p. 229.
36
WIEACKER. História do direito privado moderno, p. 458. Nesta obra, Franz Wieacker pontua os seguin-
tes aspectos, inteiramente aplicáveis ao Direito Processual Civil brasileiro hodierno: “Por outro lado,
no que respeita à ligação da ciência jurídica com a sua realidade social, este formalismo representa
uma trágica opção-chave. Se em Savigny ainda permanecia em aberto o problema de saber se com
as instituições se significava manifestações reais ou, pelo contrário, tipos ideais da vida em comum
dos homens, aqui toda a dúvida se desfaz e resulta claro que o conceito científico se desligou da
vida e apenas tem uma existência intelectual. Assim, tornou-se inevitável o alheamento da ciência
jurídica em relação às realidades sociais, políticas e morais do direito e foi conduzido à vitória o
formalismo com o qual se chegou a uma renovação da ciência jurídica, renovação que inicialmente
tinha surgido como uma reacção contra o racionalismo formal do jusracionalismo”.
37
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 61.

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160 Felipe Barcarollo

As incertezas, sob o viés racionalista, merecem ser expurgadas do sistema


jurídico. Ao Direito Processual Civil há uma impossibilidade latente de conviver
com as incertezas inerentes à vida humana. A formalização do direito processual
visa à segurança jurídica, à constante fuga da contingência dos fatos, do mundo
real. É sob este prisma que o Direito torna-se caudatário das ciências matemáticas.
Consoante lapidarmente doutrina de Pontes de Miranda, até mesmo as clássicas
ciências duras estão a sofrer modificações, senão vejamos: “a nova física e o materia-
lismo das ciências duras está mais do que em crise com a ciência contemporânea”.38
A grande problemática do Direito Processual Civil Brasileiro centra-se no
apego exacerbado ao Processo de Conhecimento — procedimento ordinário, na
busca incessante e diuturna pela certeza, a ser declarada ao proferir-se a sentença,
incumbindo ao magistrado, ao lavrá-la, revelar a vontade da lei.
O ponto nevrálgico que o influxo do paradigma racionalista carreia ao
processo civil pátrio diz respeito à concepção do Direito como ciência demonstra-
tiva, sujeita às metodologias matemáticas, eliminando-se do campo das ciências
jurídicas (do espírito) o caráter hermenêutico da compreensão em detrimento
da racionalidade das verdades claras, inequívocas, imutáveis. Esse limiar, para
Ovídio A. Baptista da Silva, consiste na “ridícula demonstração do anacronismo
epistemológico”39 em que estamos inseridos.
Em Sentença e coisa julgada, Ovídio Baptista salienta, em ensaio intitulado
“Racionalismo e Tutela Preventiva em Processo Civil”, que chama a atenção para as
dificuldades enfrentadas pela doutrina para conceber uma tutela processual que
tenha natureza puramente preventiva.40
O processo civil pátrio, enquanto processo eminentemente cognitivo, la-
bora na premissa de que a atividade do juiz encontra-se limitada a, unicamente,
revelar a vontade concreta da lei. Incumbe ao magistrado, nessa ordem de ideias,
verbalizar a vontade da lei: a tarefa exclusiva do magistrado se limita a investigar
a vontade da lei e seu sentido unívoco, porquanto ao jurista é inconcebível que a
lei possa comportar duas vontades.

38
PONTES DE MIRANDA. O problema fundamental do conhecimento, p. 229. Assim leciona Pontes de
Miranda: “Com a nova técnica da Física, as massas ‘duras’, de que se compunha a matéria e seriam a
‘matéria’, como que se dissolveram, e todo materialismo das massas ‘duras’ está mais do que em crise
com a ciência contemporânea. Isso, porém, não dá ganho de causa ao antimaterialismo, porque
não se substituiu a massa ‘dura’ pela não matéria, mas pelo jeto físico, que contém em si, de algum
modo, a massa ‘dura’ explicada. O que se apura é contra o materialismo e contra o antimaterialismo:
contra aquele, porque o substancialismo da doutrina metafísica do materialismo ruiu; contra esse,
porque os fatos estão a mostrar que a Física pode avançar nas suas indagações, que a Psicologia
tende a incluir-se plenamente nela e que os fenômenos naturais se regem, todos, pelas leis da
Física, hoje bem mais complexas em objeto, bem mais profundas, indo do cósmico ao minúsculo”.
39
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 69.
40
SILVA. Sentença e coisa julgada: ensaios e pareceres, p. 265.

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 161

Em recente ensaio intitulado “Verdade e Significado”, Ovídio Baptista ressalta


que, partindo da premissa de que o juiz seria aquele ser inanimado imaginado por
Montesquieu, incumbido de revelar a vontade da lei, cediça a constatação de que
ao magistrado é inconcebível jurisdicionar em sede de juízo de verossimilhança,
porquanto não sustentar sua decisão em certeza significaria não corresponder à
expressão da vontade unívoca da lei.41
Igualmente, em Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, o emérito
processualista afirma que a doutrina moderna, guardando absoluta fidelidade aos
princípios do direito privado romano, imprimindo supremacia às ações em de­tri­
mento dos interditos, trouxe a universalização ao procedimento ordinário, resul-
tante da instituição do Processo de Conhecimento.42
A jurisdição, como mera declaração, também é retratada em Piero Calamandrei,
que a entende como consequência do dogma da separação dos poderes, senão
vejamos:

[...] el juez ejerce función jurisdiccional solamente cuando, de conformi-


dad con el precepto de derecho procesal subentendido en toda norma
jurídica, decide sobre la existencia de voluntades concretas de la ley de las
que son destinatarios los sujetos de la relación controvertida y no cuando
ejecuta (o decide si debe ejecutar) voluntades de ley que nacen de las nor-
mas jurídicas, directa y expresamente dirigidas a él. En este segundo caso,
la actividad ejercida por el juez no es jurisdiccional, sino administrativa.43

O modo de conceber a jurisdição more geometrico é o sustentáculo básico do


Processo de Conhecimento que, na esteira de Ovídio A. Baptista da Silva, consuma-se
na separação entre a atividade puramente normativa e a atividade prática.44 De igual
sorte, Carl Joachim Friedrich, em Perspectiva histórica da filosofia do direito, salienta:

A separação entre o é e deve, dos domínios existencial e normativo, ao


qual corresponde a separação de substância e forma, produz a perspectiva
decididamente formal de teoria do Direito, que não deseja, por assim dizer,
sujar-se no contato com o mundo concreto.45

Lamentavelmente, este é o estágio do desenvolvimento humano que enfren-


tamos em nosso ordenamento jurídico pátrio, sobretudo na seara do processo civil.

41
SILVA. Verdade e significado. In: ROCHA; STRECK (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica:
programa de pós-graduação em Direito da UNISINOS, p. 265.
42
SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 38.
43
CALAMANDREI. Limites entre jurisdicción y administración en el proceso civil. In: STUDI sul proceso
civile, p. 45.
44
SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 46.
45
FRIEDRICH. Perspectiva histórica da filosofia do direito, p. 190.

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162 Felipe Barcarollo

Em que pese as (r)evoluções havidas no campo das ciências ditas puras (matemática,
química, física), que já se encontram em crise em virtude das revoluções que colo-
cam em xeque dogmas antes imutáveis, o operador do direito, que lida com ciência
do espírito, insiste em acorrentar-se ao mortificante procedimento ordinário, por-
quanto custa a entender que o Direito insere-se na história, que o Direito é ciência da
compreensão hermenêutica.

2.1  O Processo de Cognição e sua vocação para a plenariedade


processual – A certeza, o mortificante procedimento ordinário
e o horror aos juízos sumários
O atual processo civil pátrio encontra inenarráveis obstáculos para a cons-
trução de uma tutela autenticamente preventiva, fundada em juízos de proba-
bilidade e verossimilhança, ao revés do paradigma ora instalado e sua vocação
genética para a plenariedade processual. O desprezo pelo caso e pelos fatos, típico do
movimento racionalista instalado por René Descartes e Gottfried Wilhelm Leibniz,
continua a perpetuar-se em nosso ordenamento positivo pelos aplicadores do
direito.
Essa repulsa pela historicidade do Direito, no intento de se buscar regras e
princípios jurídicos de validade universal e eterna, produz consequências desas­
trosas ao Direito. Como adverte Ovídio A. Baptista da Silva, o fenômeno ora nar­rado
é plenamente conhecido dos juristas que lidam com o processo civil, porquanto
este é o ramo do direito mais comprometido com a história, uma vez que não
lhe cabe apenas a prescrição de regras de conduta, próprias do direito material,
mas interferir diretamente nos conflitos sociais, impondo certas limitações de
conduta.46
A arte de compreender é absolutamente vedada pelo modelo racionalista
imposto em nosso ordenamento jurídico. Ovídio A. Baptista da Silva questiona:

Como seria possível afirmar que a lei tem uma vontade, a ser descoberta
pelo intérprete, se essa vontade se modificasse periodicamente? Não seria
correto supor que a lei tivesse uma “vontade” quando as constantes modifi-
cações jurisprudenciais dão ao mesmo texto compreensões diferentes, apli-
cando-o muitas vezes em sentido diametralmente oposto ao proclamado
pouco antes pelo mesmo tribunal.47

SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 194.


46

SILVA. Verdade e significado. In: ROCHA; STRECK (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêuti-
47

ca: programa de pós-graduação em Direito da UNISINOS, p. 266.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 145-179, out./dez. 2012
Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 163

A doutrina, a jurisprudência e os profissionais do Direito insistentemente


invocam que o Processo de Conhecimento, nos moldes preconizados pelo Código
de Processo Civil, perseveram no sentido de que os provimentos antecipatórios
podem antecipar efeitos da tutela, jamais a própria tutela deduzida no petitório
inau­gural. Tal raciocínio é porta-voz do paradigma racionalista que não consegui-
mos superar. Nesta perspectiva, Ovídio A. Baptista da Silva doutrina:

Raciocina-se como se o juiz pudesse antecipar a conseqüência da tutela


sem formar sobre ela qualquer julgamento, precisamente porque, para a
doutrina tradicional, fiel à ordinariedade, julgamento fundado em veros­
similhança, julgamento não é: julgar provisoriamente é não julgar. Isto
permite que nossa doutrina conviva, em dúvida harmoniosa, com o Pro-
cesso de Conhecimento, concebido para ser ordinário — como o foi o seu
protótipo romano, sem admitir provimentos liminares de tipo interdital
—, e as medidas antecipatórias em geral, que contradizem estes pressu-
postos.48

Benjamin N. Cardozo, saudoso membro da Suprema Corte dos Estados


Unidos da América, em sua obra A natureza do processo judicial, corrobora as
lições aqui vazadas, no sentido de que os códigos e outras leis escritas podem
ameaçar a função judicial com repressão, desuso e atrofia.49 Isto é verificável pela
impossibilidade de conviver com uma tutela preventiva, aliada ao fato de que a
vontade unívoca da lei como corolário do racionalismo processual consiste em
inolvidável refração ao caráter hermenêutico do Direito. Tal status quo vem a acar-
retar futilidade ao sistema, na esteira de Benjamin N. Cardozo, nestes termos: “a
proibição justiniana de qualquer comentário sobre o produto de seus codificado-
res só é lembrada por sua futilidade”.50
Não obstante a isso, é de forma lamentável que se denuncia esta futilidade
do sistema, mormente na atual perspectiva vivenciada pelos profissionais que
lidam com o processo civil brasileiro. O atual paradigma não consegue conviver
com juízos de probabilidade. Ao revés, busca, de forma incessante, o juízo de cer-
teza ou a cognição exauriente e plenária como instrumento apto, na sentença, a
descobrir a vontade da lei. Ovídio A. Baptista da Silva, na obra Da sentença liminar
à nulidade da sentença, em ensaio intitulado “Tutela antecipatória e juízos de veros-
similhança”, pontifica:

48
SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 196-197.
49
CARDOZO. A natureza do processo judicial, p. 7-8.
50
CARDOZO. A natureza do processo judicial, p. 8.

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164 Felipe Barcarollo

Sem qualquer exagero, é possível dizer que a construção do conceito de


“tutela antecipatória”, resgatando uma categoria que a ciência moderna
pretendera sepultar, ao universalizar o procedimento ordinário, reves-
te-se de um sentido marcadamente sugestivo, cujas conseqüências ainda
não foram suficientemente avaliadas, de modo que se pudesse extrair
desta nova visão conceitual todos os resultados e implicações doutriná-
rias que ela poderá, sem dúvida, determinar. [...]
Ora, não se necessita de grande perspicácia e nem de investigações labo­
riosas, para saber que o inteiro Processo de Conhecimento é genetica-
mente, por índole e afeição, um vastíssimo e portentoso procedimento
ordinário, que, apenas por sê-lo, não admite provimentos liminares; e,
como natural decorrência da consagração universal da ordinariedade,
não poderá conviver com qualquer coisa que se defina como “tutela
antecipatória”.
Tanto isto é verdade, tão profundo era o compromisso de nosso legisla-
dor com a ordinariedade, que o CPC não vacilou em conceituar a sentença
como o ato final que põe termo ao procedimento. Para nosso direito e
para a doutrina que o consagrou em lei, não pode haver sentenças limi-
nares; porque o juiz não pode emitir juízos jurisdicionais verdadeiros que
não produzam coisa julgada; porque julgar haverá de corresponder a jul-
gar definitivamente, “compondo a lide”.
Finalmente, não pode haver sentenças liminares que, de alguma forma,
antecipem a tutela jurisdicional, porque os juízes do sistema romano-ca-
nônico estão proibidos de julgar apoiados em juízos de verossimilhança.
É interessante — e mais do que interessante, dramática e perversa — a
ideologia que se oculta sob este princípio que, em última análise, é o motor
teórico da concepção, tão profundamente arraigada no Direito Proces-
sual Civil, da neutralidade do Juiz, face ao conflito judiciário, que, por sua
vez, nem seria necessário dizê-lo, é o fundamento da ordinariedade.
Sempre que se alude a estas questões fundamentais de teoria geral do
processo, é importante ter presente a relação entre processo e tempo;
entre função jurisdicional e custo processual, representado pelo elemento
temporal que Carnelutti, com seu admirável talento, indicara como o grande
inimigo do Juiz.
A suprema sabedoria do legislador de processo está em saber distribuir,
com eqüidade e equilibradamente esse custo, de modo a não onerar exclu-
sivamente um dos litigantes, em benefício de seu adversário.
Ora, esse irremediável desequilíbrio, na distribuição do custo processual, é
uma característica congênita do Processo de Conhecimento — enquanto
procedimento conceitualmente ordinário.51

Nesse diapasão, à guisa de diagnosticar a patologia de que está acometido


nosso processo civil e suas consequências, através da exacerbação do paradigma

SILVA. Da sentença liminar à nulidade da sentença, p. 218-219.


51

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 145-179, out./dez. 2012
Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 165

racionalista em nosso ordenamento jurídico, Ovídio A. Baptista da Silva, com sua


inteligência e saber inigualável, doutrina:

Este é o preço afinal pago pelos ordenamentos jurídicos e pelos ambicio-


sos sistemas doutrinários de que foi prodigioso o pensamento europeu,
a partir do século XIX: a permanência do direito, a conservação indefinida
de suas regras e princípios faz-se a custo de uma cada vez mais completa
alienação da história e dos fatos sociais.
As pressões, no entanto, não impedem que a doutrina continue a elogiar
o Processo de Conhecimento e, conseqüentemente, a ordinariedade que
ideologicamente o plasmou e o alimenta, nem lhe abrandam a resistência
a ver, por exemplo, uma decisão de mérito — decisão, enquanto julgamen-
to a respeito da lide — no provimento liminar antecipatório, insistindo,
em razão de seus compromissos com a ordinariedade e com os juízos de
certeza, como os únicos capazes de manter o juiz na servil condição de
mero aplicador da “vontade do legislador”, em considerar todos os pro-
vimentos que não encerrem o processo, como decisões interlocutórias,
segundo os conceitua, imperativamente, o art. 162 do CPC.
É interessante observar como a doutrina tradicional convive, sem ques-
tionar-se, com a inocultável contradição existente, por exemplo, entre
o Processo de Conhecimento, definido, claramente por nossa lei como
procedimento ordinário (arts. 162 e 463 do CPC) e a inclusão nele das
denominadas medidas antecipatórias, agora introduzidas em nosso sis-
tema pelos arts. 273 e 461.52

Não obstante o processo civil pátrio estar alheio à história e à força das
transformações sociais, o direito comparado tem mostrado à ciência processual
contemporânea, através da juridiction des référés do direito francês, que a pressão
da experiência jurídica e a mutação social eloquente podem e devem instituir
modelos que representem/sinalizem os anseios que a sociedade atual necessita.
No entanto, o sistema jurídico pátrio resiste a esta concepção e encastela-se em
seus antiquados pressupostos racionalistas, que não se coadunam com as exigên-
cias da sociedade contemporânea na atual quadra histórica.
O congelamento do direito, dada a sua incompreensão como ciência da his-
tória, impede que o ordenamento jurídico seja aplicado de acordo com os reais
valores que a sociedade hodierna requer. Nesse aspecto, ao contrário da concep-
ção de que o magistrado deve revelar a vontade unívoca da lei (o corpus legis-
lativo é pleno, basta em si mesmo), devemos compreender a ciência do direito
como uma geleira em movimento que, nas palavras de Benjamin N. Cardozo, “este

SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 194-195.


52

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166 Felipe Barcarollo

trabalho é lento e gradual. Avança centímetro a centímetro. Seus efeitos devem


ser medidos por décadas, e muitos séculos. Assim medidos, vê-se que têm atrás
de si o poder e a pressão de uma geleira em movimento”.53
Os vínculos jamais desfeitos ou sequer questionados entre as instituições de
Direito Processual Civil contemporâneo, com o culto extremado pelo Processo de
Cognição e seu corolário lógico — a sentença de carga condenatória — trazidos
pelo racionalismo cartesiano, pressupõe nítida fronteira entre o mundo da teoria
e a prática forense, entre o direito e o fato, entre conhecimento e execução. Aliás,
a título de remate, lamentável afirmar-se que nas faculdades de Direito é comum
verificar-se que as disciplinas práticas são lecionadas por quem não lida com a
prática forense. Este é o quadro paradoxal do ensino do Direito no Brasil.
O culto pela certeza, porquanto só aceitamos juízos de certeza, jamais juízos
fundados em verossimilhança ou probabilidade, afirmam o compromisso do pro-
cesso civil brasileiro com a ideologia da ordinariedade, chancelada pelo Processo
de Conhecimento. Neste ínterim, confirma-se, em nosso ordenamento jurídico
vigente, o viés racionalista de Descartes e Leibniz de que a moral e o direito são
tão demonstráveis como qualquer teorema matemático, de que a norma jurídica
guarda em si mesma sentido unívoco e de que a sentença, produto de um juízo
de certeza, deve apresentar uma única solução correta, a exemplo de um teorema
ou fórmula matemática.54
Nesta ordem de idéias, Ovídio A. Baptista da Silva, na obra Da sentença liminar
à nulidade da sentença, afirma que o Processo de Conhecimento — como espécie
de tutela jurisdicional vocacionada para a ordinariedade — mostra, pelos menos,
dois pressupostos teóricos mais evidentes para a predisposição do Processo de
Conhecimento para a ordinariedade/plenariedade.55
O primeiro pressuposto teórico decorre do fato de a doutrina processual
conservar-se fiel ao modelo de procedimento da actio do direito privado romano
— com a supressão dos interditos —, universalizando as sentenças de natureza
condenatória, com execução diferida, ou seja, com um processo de execução
independente/autônomo, posterior à fase cognitiva, formador de nova relação
jurídica processual.56
A segunda causa determinante para a vocação do processo civil brasileiro
à ordinariedade decorre da seguinte premissa: o Processo de Conhecimento não

53
CARDOZO. A natureza do processo judicial, p. 14.
54
SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 197.
55
SILVA. Da sentença liminar à nulidade da sentença, p. 219.
56
SILVA. Da sentença liminar à nulidade da sentença, p. 219.

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 167

pode conviver diante de qualquer vestígio de executividade, em virtude de que a


doutrina o concebeu para que comportasse somente sentenças de carga declara-
tória, constitutiva e condenatória. Isso, por duas razões fundamentais, suprime do
processo de cognição qualquer espécie de provimento de cunho liminar. Ovídio
A. Baptista da Silva assim sustenta:

O motivo é simples: juízos de verossimilhança, que são o pressuposto da


tutela antecipatória, somente se tornam relevantes quando seja possível
extrair da demanda que os contenha, portanto da mesma relação proces-
sual, uma conseqüência executória ou mandamental, como decorrência
do juízo declaratório de probabilidade de existência do direito.
Se o julgador, em cognição sumária liminar, estiver capacitado a consi-
derar procedente, num elevado grau de probabilidade, a demanda pro-
posta pelo autor, de nada lhe valerá este juízo de verossimilhança se a
demanda for apenas declaratória, ou constitutiva, ou condenatória, que
torne inviável uma conseqüência executória ou mandamental. É que os
juízos declaratórios (neles incluídos, naturalmente, os juízos condenató-
rios) e os constitutivos, não podem ser provisórios. Ou por outra, somente
têm relevância processual quando de sua provisoriedade se possa extrair
conseqüências executórias.
Ora, se o Processo de Conhecimento, por definição, não contém execu-
ção, então as liminares desaparecem, como uma conseqüência irremediá-
vel de seu próprio conceito.
E, seria desnecessário dizê-lo, sem liminares o procedimento torna-se ordi-
nário, com a pressuposta e necessária postergação do julgamento para sua
fase terminal.57

Tal situação paradigmática, com a qual os operadores do direito não conse-


guem se desvencilhar, remonta ao sistema jurídico romano-canônico, em que aos
juízes era vedado julgar com base em verossimilhança. Assim, tal como concebi-
do nosso Processo de Conhecimento, não existe a possibilidade de decisão com
base em juízo de probabilidade, em julgar através de fatos verossímeis.
A vinculação existente entre ordinariedade e racionalismo58 é até mesmo supera-
da com Hans Kelsen, maior representante do positivismo jurídico, que lecionava sobre

SILVA. Da sentença liminar à nulidade da sentença, p. 219-220.


57

SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 143-144. Eis a pontual lição de Ovídio
58

Baptista acerca da vinculação existente entre a ordinariedade/plenaridade processual e o para-


digma racionalista: “O vínculo entre ordinariedade e racionalismo pode ser visto de várias perspec-
tivas. Uma delas situa-se na estrutura do procedimento, ao impor que o juiz somente possa julgar
a lide ao encerrar-se a relação processual, depois do amplo debate probatório que, segundo ima-
gina a doutrina, daria ao julgador a indispensável segurança, própria dos juízos de certeza. Era
nisso que consistia o procedimento da actio, o juízo do ordo judiciorum privatorum. O juiz privado

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168 Felipe Barcarollo

a possibilidade de se encontrar na norma jurídica várias possibilidade de interpretação,


todas elas válidas, legítimas e permitidas, nestes termos:

[...] a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma


única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias
que — na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar — têm
igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no
acto do órgão aplicador do Direito... A teoria usual da interpretação quer
fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas
as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada) e que a “justiça”
(correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Confi-
gura-se o processo desta interpretação como se se tratasse tão-­somente
de um ato intelectual de classificação e de compreensão, como se o órgão
aplicador do Direito apenas tivesse de pôr em ação o seu entendimento
(razão), mas não a sua vontade...59

Em que pese o racionalismo ter influído de maneira decisiva exerce sobre


o processo civil brasileiro, mister se faz ressaltar que René Descartes, um dos res-
ponsáveis pelo racionalismo imperante em nosso Direito, tratava da temática sob
outra perspectiva. Esse filósofo emprestava grande valor às verdades, como sói
acontecer ainda em nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, recusava-se a
aceitar probabilismos e verossimilhanças. No entanto, sua percepção de mundo e
a aplicação da sua filosofia era diversa da implementada em nosso ordenamento
jurídico, porquanto aceitava que, em muitas ocasiões, somos obrigados a aceitar
opiniões verossímeis, visto que as oportunidades de agir nos negócios passariam
em geral antes que pudéssemos nos livrar de todas as dúvidas. Ainda que não
concedamos mais verossimilhança a umas do que a outras situações, se a ação

(judex) — como agora — somente poderia julgar a causa ao encerrar-se a relação processual,
ao contrário do praetor, que a julgava sob summaria cognitio, sem que o conflito ficasse coberto
pela coisa julgada, que a doutrina moderna considera ‘pedra de toque’ da jurisdição. Esta é uma
verdade de todos conhecida, mas uma de suas conseqüências mais significativas não costuma
ser objeto de cogitação dos escritores, qual seja o pressuposto — essencial à ordinariedade —, de
que todas as eventuais decisões que, porventura, anteceda, a sentença, não serão, por definição,
provimentos que digam respeito à lide. Os juízes muitas vezes exageram na compreensão da
jurisdição como declaração de direitos, afirmando que os provimentos que antecedem a sen-
tença não conterão nem mesmo julgamento, porque se pressupõe que o juiz somente estará
autorizado a julgar quando puder revelar a ‘vontade da lei’. Tudo o que ele fizer antes, não importa
quão desastrosas sejam as consequências de seu provimento, haverá de dizer respeito apenas ao
processo, não ao direito material que, para a doutrina, ter-se-á conservado íntegro, ainda que, sob
o ponto de vista fático, resulte inteiramente destruído ou inútil”.
59
KELSEN. Teoria pura do direito, p. 467.

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 169

não admite contemporização, a razão requer que façamos a escolha de uma delas
e, depois de feita a escolha, sigamo-la com firmeza, como se a tivéssemos consi-
derado muito certa. Para Ovídio A. Baptista da Silva, o próprio Descartes recomenda
a adoção de outros critérios racionais aos casos em que nos deparamos com situa-
ções verossímeis.60
O Processo de Conhecimento, tal qual implantado e aplicado em nosso
ordenamento jurídico, com a supressão dos juízos de verossimilhança e exacer-
bação da certeza, da segurança jurídica, da plenariedade e da ordinariedade pro-
cessuais, conserva-se jungido aos ideais iluministas do século XVII, almejando o
selo da perenidade das instituições processuais. No entanto, esquecemos que os
conceitos jurídicos são oriundos do processo cultural, da história, da tradição.
Conforme ressaltado algures, a sistemática adotada pelo processo civil bra-
sileiro pressupõe que a tarefa do Processo de Conhecimento limita-se, unicamente,
a declarar direitos. Assim, o processo de cognição e sua vocação genética para
emitir juízos de certeza pressupõem que a lei é unívoca, que guarda em seu bojo
uma única solução correta. Como ressalta Ovídio A. Baptista da Silva, se a sentença
for o produto de um juízo de certeza, então não haverá lugar para qualquer
espécie de probabilismo, porque não poderá haver outra certeza que lhe seja
antagônica, como haveria se uma decisão judicial estivesse lastreada em juízo de
verossimilhança ou probabilidade.61
Para Ovídio A. Baptista da Silva, o cerne da problemática ora instalada con-
siste na eternidade do modelo racionalista, que se traduz na exacerbação da
certeza, da mesma forma com que se vangloriam as ciências demonstrativas ou
matemáticas, que hoje se sabe ultrapassam notável crise. Eis a escola do sábio
processualista, in verbis:

Na verdade, a grande questão que se oculta sob a aparente eternidade


do modelo racionalista, traduzido em processo civil pelo binômio conhe-
cimento-execução, como categorias separadas, e até antagônicas; essa
suposição de que o processo tenha a missão de estabelecer a verdade
defi­nitiva contida na lei, como se a função da jurisdição fosse revelar o
certo e o errado no convívio humano; toda essa questão nada mais é do
que a resistência inconsciente de nossa civilização em admitir que, ao
contrário dos três séculos que nos separam da Idade das Luzes, vivemos
um momento de profunda crise política e social e, acima de tudo, existen-
cial. E o preço que as épocas de crise têm de pagar aos desígnios insondá-
veis da História é a incômoda contingência de conviver com as incertezas,
que prenunciam as grandes revoluções culturais. [...]

SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 198-199.


60

SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 205-206.


61

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Queremos uma vez mais insistir em nossa questão fundamental: a


petrificação do “mundo jurídico”, conceitual e alienado da História só
pode fornecer-nos um instrumental construído para uma sociedade oti-
mista e confiante no progresso contínuo e indefinido de suas próprias
idealizações políticas e sociais, de que, agora, devemos servir-nos para a
regulação do convívio de uma sociedade apreensiva e às vezes pessi-
mista com relação a seu próprio futuro, para a disciplina de nossa época
que alguém já denominou a “era da incerteza”.62

Necessário se faz, nessa linha de ideias, a recuperação das tutelas executiva


e mandamental e o resgate da tutela interdital63 romana, tendo em vista que o
Pro­cesso de Conhecimento, como atualmente posto em nosso Direito, subverte
o ca­ráter histórico-temporal a que os conceitos e a própria vida dos jurisdiciona-
dos estão inevitavelmente sujeitos.
Uma das tentativas tímidas de mudança do status quo do Processo de
Conhecimento — inserção do artigo 273 no Código de Processo Civil — não é
bastante se os juristas continuarem a manter a estrutura criada sob o viés raciona-
lista, que se encontra impregnado em nosso sistema jurídico processual, aliado ao
fato da tradição universitária do Brasil, que estabelece baliza intransponível entre
os fatos e o direito. A abalizada doutrina de Ovídio A. Baptista da Silva nos traz a
seguinte contribuição:

Certamente, o estabelecimento de uma nova categoria diferenciada da


condenatória, para a qual a atividade judicial, expressa na sentença, não

SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 209-211.


62

KASER. Direito privado romano, p. 462-463. Nesta obra, Kaser demonstra o papel que os interditos
63

exerciam no direito romano, nestes termos: “Em lugar da actio o pretor promete às vezes um
interdictum, um instrumento jurídico que procura satisfazer o autor de forma mais EXPEDITA.
Depois de ter o autor apresentado a sua pretensão e o seu pedido, o pretor (após exame dos
pressupostos processuais) intima ao demandado uma PROIBIÇÃO (interdicere = ‘proibir’) ou uma
ORDEM, ambas tendo em vista a efectivação da pretensão do autor, i.e., manter ou restabelecer
a situação jurídica privada que o autor reclama como conforme ao Direito. [...] O interdito que o
pretor decreta no caso concreto é comparável à MEDIDA DE PROVIDÊNCIA CAUTELAR do actual
Direito Processual Civil alemão; contudo, o processo correlativo (agere ex interdicto), que pode
ser necessário para terminar o conflito, adapta-se ao tipo de interdito individual; cfr. também o
processo possessório do §§457 ss. da ZPO austríaca. A ORIGEM histórica do interdito deve ser um
PROCESSO ADMINISTRATIVO, no qual à desobediência à proibição do magistrado se terá segui-
do, inicialmente, a imposição de uma pena administrativa (multa). Só quando é substituído pelo
processo perante o juiz privado é que o inter­dito se converte em instrumento jurídico do Direito
Processual Civil. Ainda mais tarde remete para esta presumida raiz histórica a circunstância de
que os factos que dão lugar à concessão de interditos mostram, em regra, um carácter de inte-
resse PÚBLICO ou SACRAL. É o caso do grupo praticamente mais importante, o dos INTERDITOS
POSSESSÓRIOS [...]: o conceito de possessio remete para a posse em solo público [...]. Explica-se
pelo interesse público que o processo esteja munido com meios coactivos mais fortes do que o
processo ordinário”.

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 171

se limite a uma melancólica exortação dirigida ao condenado, mas se


traduza numa ordem imediatamente executiva, é em si mesmo altamente
positivo e desejável. Mas as verdadeiras vantagens dessa vitória inicial
haverão de refletir-se no novo conceito de jurisdição, agora imperativa e
não mais meramente arbitral e privada como a temos concebido e prati-
cado sob o domínio secular do Processo de Conhecimento; haverá igual-
mente de impor a recuperação dos juízos de verossimilhança a que faz
tímido aceno o art. 273 do CPC, em sua nova redação; provocando, final-
mente, o despertar da ilusão racionalista, responsável pela tentativa de
“geometrização” do Direito, livrando-o da servidão em que ele se encon-
tra; acima de tudo, criando juízes democraticamente responsáveis — não,
como agora, burocraticamente responsáveis, perante seus superiores
hierárquicos —, capazes de exercerem, em sua verdadeira transparência,
uma jurisdição criadora do direito, como ela necessariamente deverá
sê-lo, de modo que o Poder Judiciário possa tornar-se o agente inter-
mediário entre a lei e seus consumidores, como preconiza Cappelletti.64

A busca pela certeza e a tentativa de absolutizar e tornar imutáveis as situa­


ções da vida deduzidas em juízo acarretam em desconsiderar a evolução social,
o caráter histórico e contingente do Direito, enfim, o direito como compreensão
histórica e ciência hermenêutica. Assim, no atual paradigma processual, cediço
contatar-se que a teoria distancia-se da prática, o fazer do saber, o homem de sua
história e do seu tempo.
John Henry Merryman, em La tradicion juridica romano-canonica,65 salienta
que aos juristas pouco importa os fins do direito e os valores finais de justiça.

SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 214-215.


64

MERRYMAN. La tradicion juridica romano-canonica, p. 127-128. Ao tecer considerações sobre a


65

ciência jurídica, Merryman insta a problemática da desconsideração da história frente ao direito,


nos seguintes termos: “Por último, la ciencia jurídica trata de ser pura. Los jurisconsultos concen-
tran deliberadamente su atención em los fenómenos y los valores puramente legales, tales como
el valor ‘legal’ de la certeza en el derecho, y excluyen a todos los demás. Así se excluyen como no
legales los datos, las intuiciones y las teorías de las ciencias, por ejemplo. Incluso la historia queda
excluida como no legal, y esto parece peculiarmente incongruente en vista de que Savigny y sus
discípulos constituyen la llamada escuela histórica. La historia es interesante para los historia-
dores (incluidos los historiadores legales), pero no para la ciencia jurídica. Tampoco se interesa
el jurisconsulto por los fines del derecho, por valores finales tales como la justicia. Estos valores
podrían interesar a los filósofos, incluidos los filósofos legales, pero al jurisconsulto sólo le intere-
san el derecho y los valores puramente legales. El resultado es un corpo de doctrina muy artificial
que se aísla deliberadamente de lo que está ocurriendo en el exterior, en el resto de la cultura. [...]
Bajo la bandera de la ciencia jurídica convirtieron ciertos conceptos cargados de ideología en una
estructura legal conceptual sistemática que todavía se enseña en las facultades de derecho de las
universidades, la cual limita y orienta el pensamiento de los investigadores legales que la perpe-
túan, provee los parámetros de la interpretación y la aplicación judicial de leyes, precedentes y
transacciones legales, y, en una palabra, domina el proceso legal. El papel de estos supuestos y va-
lores se oculta tras una fachada de neutralidad ideológica, de un estudio científico de fenómenos

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172 Felipe Barcarollo

Neste aspecto, o profissional do direito isola-se do mundo exterior, do restante da


cultura e da história, limitando-se ao mundo artificializado da doutrina e do caso
vivenciado naquele exato instante.
Não há crença que não sofra abalos, nenhum dogma que não se mostre
questionável, nenhuma tradição estabelecida que não ameace dissolver-se. Ao
Direito para cada tendência encontramos uma contratendência. Afinal, nada é
estável, como assevera Pontes de Miranda, em passagens já colacionadas. Nada
é absoluto. Tudo é fluido66 e mutável. O direito é ciência da compreensão herme-
nêutica, um eterno vir a ser.
Nessa ordem de ideias, adverte Ovídio A. Baptista da Silva que o processo é
pedaço da vida humana e, enquanto tal, parcela da história. E questiona: “Com efei-
to, que é a lide, senão uma pequena unidade da história vivida por seres reais?”.67
Entretanto, a lógica do atual sistema não admite gradações: o jurista convive com
categorias estanques, com a lógica binária do certo ou errado, esquecendo-se
que nosso sistema é eminentemente plástico, cambiante, hermenêutico.68

puramente legales. En esta forma, la jurisprudencia sistemática europea materializa y perpetúa el


liberalismo del signo XIX, que conserva un conjunto selecto de supuestos y valores y deja afuera
todos los demás”.
66
BAUMAN. Modernidade líquida, p. 8. Importante trazer a metáfora de Bauman à situação ora anali-
sada, nos seguintes termos: “O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem
simples, é que os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os
fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm
dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do
tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito
a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o
que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem
apenas “por um momento”. Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao
contrário, o tempo é o que importa. Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o
tempo; ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro. Descrições de líquidos
são fotos instantâneas, que precisam ser datadas”.
67
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 265-266. Ovídio A. Baptista da Silva assim
leciona: “A dificuldade encontrada pela doutrina para operar a aproximação do Direito — quere-
mos referir-nos ao processo — com a História, enquanto ciência da compreensão, está em que,
aqui, não contaremos com juízos de certeza, como é próprio do raciocínio matemático. Para o
pensamento binário — do ‘certo’ e do ‘errado’ —, ao aproximarmos o Direito da epistemologia das
ciências da cultura, particularmente da História, estaremos legitimando o arbítrio judicial. Ou o
juiz conserva-se preso à ideologia iluminista, ou cairá no extremo oposto, tornando-se arbitrário”.
68
AARNIO. Lo racional como razonable, p. 112. Nesta obra, Aulis Aarnio salienta a importância da her-
menêutica para a compreensão do direito: “Se ha visto ya que uma tarea central de la dogmática
jurídica es la justificación de puntos de vista normativos, es decir, la justificación de por qué es ra-
cional y razonable aceptar la norma N como una parte del derecho válido (en Finlandia). A su vez,
la interpretación ha sido entendida como un asunto linguístico. Es primariamente la aclaración
de textos legales a través de la presentación de enunciados de interpretación. De los enunciados
de interpretación, los puntos de vista de interpretación establecen qué contenido de significado

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 173

Os pressupostos paradigmáticos que determinam a exacerbação da certeza


ao procedimento ordinário (de conhecimento) derivam, na esteira de Ovídio A.
Baptista da Silva, da dificuldade em compreender que os juízos históricos sobrepu-
jam-se à área epistemológica do certo e do errado, característica inata às ciências
matemáticas. Outro aspecto que merece realce, consoante preleciona o emérito
processualista, é a historicidade do ser humano, o que pressupõe a plasticidade
do Direito, seu constante e incessante construir.69 Aulis Aarnio diagnostica a situa-
ção em exame através da seguinte assertiva:

La aceptabilidad racional, en tanto principio regulativo de la dogmática


jurídica, juega el mismo papel que la verdad em las ciencias empíricas. Así
como las investigaciones empíricas tratan de aproximarse a la verdad, el
objetivo de la dogmática jurídica es maximizar la aceptabilidad racional.
Por otra parte, la aceptabilidad racional confiere sentido a la evaluación
de las posiciones normativas desde el punto de la certeza jurídica.70

O arcaísmo passivo que acomete nosso processo civil, dada a penetração


do paradigma racionalista em todas as frinchas do sistema processual, o convívio
dos juristas com conceitos ou categorias jurídicas estanques, eternizadas pelos
séculos, aliado ao fato do necessário rompimento com a metodologia das ciên-
cias demonstrativas/matemáticas (paradigma racionalista), sinalizam os motivos
pelos quais vivemos ainda na lógica binária, na concepção de mundo maniqueísta:
do certo e do errado, dado que o jurista não convive com os fatos, posto que a ele
existe um fosso abissal entre o plano da teoria e o mundo da prática. Para Ovídio
A. Baptista da Silva, um dos motivos, senão o principal, para o atual estado de
coisas do processo civil brasileiro se deve ao seguinte fator:

É indispensável, no entanto, acrescentar ao racionalismo, tão presente


na formação da ciência jurídica moderna, especialmente no Direito Pro-
cessual Civil, novos ingredientes que expliquem o fenômeno. Um deles,
talvez o de maior significação, decorre da doutrina política da “separa-
ção dos poderes”, marcada pela influência de Montesquieu, mas que nos
vem, mais propriamente, de Thomas Hobbes, a reduzir o Poder Judiciário
a um poder subordinado, ou melhor, a um órgão do poder, cuja missão
constitucional não deveria ir além da tarefa mecânica de reproduzir as

sería racional y correcto aceptar. Los puntos de vista interpretativos que así se producen pueden
siempre convertirse en puntos de vista normativos. Pero, como la interpretación es un asunto lin-
guístico, es más natural hablar de la interpretación de textos (legales) que la interpretación de normas
jurídicas” (grifos nossos).
69
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 267.
70
AARNIO. Lo racional como razonable, p. 286.

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174 Felipe Barcarollo

palavras da lei, de modo que a jurisdição não passasse de uma atividade


meramente intelectiva, sem que o julgador lhe pudesse adicionar a menor
parcela volitiva.71

O que se defende, na tentativa de oxigenar as instituições processuais, sobre-


tudo o Processo de Conhecimento — e sua vocação genética para a ordinariedade/
plenariedade — é a instauração de uma tutela preventiva, em que os juristas saibam
laborar diante de juízos de probabilidade ou verossimilhança, contrariamente
ao mortificante procedimento ordinário,72 que se encontra calcado em juízos de
certeza.
A não recepção de uma tutela autenticamente preventiva pelos juristas é
vista, por Ovídio A. Baptista da Silva, como cegueira ideológica, quando salienta
que há uma impossibilidade absoluta de que pessoas que trabalhem em paradig-
mas diferentes entendam-se e possam manter um diálogo produtivo, impedindo
a aceitação da existência entre uma tutela que seja, a um só tempo, cautelar e
principal.73 E o sábio mestre prossegue em seus ensinamentos:

O que surpreende e revela o núcleo do paradigma racionalista é consta-


tar que esse “pedaço” do meritum causae, ao descolar-se para uma fase
preliminar da ação, ou para formar um procedimento antecedente, de
cunho preparatório, deixa de ser mérito, para tornar-se um provimento
de natureza apenas processual. Por que? É fácil descobrir: por ele ser um
“julgamento provisório”. O sistema não pode admitir julgamentos provi-
sórios, dado que a missão do juiz é descobrir e revelar a “vontade da lei”,
coisa que a provisoriedade do julgamento não alcança. Se é provisório,
não será, para a doutrina, por definição, um julgamento de mérito. Para a
doutrina, nem mesmo será um julgamento.
É célebre, a este respeito, a atribuição de natureza cautelar a um deter-
minado provimento, segundo sua topologia processual. Como, para a
doutrina, o provimento cautelar não tem substância, consideram-se cau-
telares todos os provimentos que, de uma forma ou outra, dão regulação
provisória à lide, independentemente de seu conteúdo, com a simples
condição de serem produzidos antes da sentença. Se, no entanto, o mes-
míssimo provimento for proferido depois da sentença, então ele, milagro-
samente, transformar-se-á em provimento executivo.

71
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 92.
72
SILVA. Verdade e significado. In: ROCHA; STRECK (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica:
programa de pós-graduação em Direito da UNISINOS, p. 275.
73
SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 100-101. Salienta o abalizado jurista: “A
doutrina não convive em harmonia com a provisoriedade. É inadmissível para ela, julgamento que
seja, ao mesmo tempo, final e fundado em juízo de probabilidade. Para o sistema, torna-se indis-
pensável estabelecer alguma situação definitiva, como a coisa julgada, para que haja autêntica
atividade jurisdicional”.

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 175

É o singularíssimo fenômeno que ocorre com os provimentos antecipatórios


do art. 273 do CPC que, para a doutrina, seriam simples decisões interlocutó-
rias, enquanto provisórias, sob a forma de medidas liminares, depois, no
entanto, transformados em parcela do meritum causae, quando reinseridas
na sentença definitiva de procedência. Aquilo que o juiz concede como
medida antecipatória — apenas por ser provisória — não é considerado um
provimento de mérito. Entretanto, esse mesmo provimento tornado depois
definitivo, em virtude de sua absorção pela sentença, transforma-se em
decisão de mérito!74

Como grande conquista da burguesia, no Direito moderno, pode-se citar o


título executivo extrajudicial, instrumento criado pelos juristas no apogeu do capi-
talismo industrial, que encerra em si a gloriosa tutela sumária, com o estreitamento
do princípio do contraditório. Por outro lado, nosso Processo de Conhecimento con­
tinua jungido, insistentemente, ao conhecimento exauriente da lide, com a exclu-
são do contraditório diferido ou eventual, que, na esteira de Ovídio A. Baptista da
Silva, fora a arma responsável pela maior revolução do Direito Processual Civil face
à criação dos títulos executivos extrajudiciais.75
Por derradeiro, o mortificante procedimento ordinário, que elimina todas as
formas de contraditório eventual ou diferido, vem a ordinarizar/plenarizar todas
as demandas, porquanto desconsiderar liminares de mérito importa em ordina-
rizar todas as lides. Como sinal dos tempos atuais, o jurista conserva-se atrelado
ao modelo racionalista do Iluminismo, mantendo-se, destarte, o status quo more
geometrico: a certeza, a ordinariedade/plenariedade das demandas, a cognição
exauriente e o contraditório prévio, como forma de se perpetuarem incongruên-
cias, inconcebíveis no contexto de uma sociedade contingente e, diga-se o óbvio,
ululante, histórica.

Considerações finais
O pressuposto ou paradigma racionalista, que norteia o processo civil bra­
sileiro, e sua ideologia ou vocação para a plenariedade/ordinariedade processual
traduzem o equivocado pressuposto de que o Direito e a moral são tão demons-
tráveis quanto as ciências matemáticas.
A transformação do Direito em ciência demonstrativa ou generalizante, aquela
que se limita a pesar, medir e contar — aproximando-se inexoravelmente da lógica
— mantém o processo civil enclausurado e refém das metodologias demonstrativas.

SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 108-109.


74

SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 112.


75

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176 Felipe Barcarollo

No entanto, os juristas esqueceram que o Direito é ciência de índole social,


do espírito, e como tal, ciência da compreensão hermenêutica, que labora em um
contexto de cultura, tempo e tradição. Assim, inequívoco que o método cartesiano
— more geometrico — não merece ser aplicado no campo do Direito, sobretudo
pelo fato de que os juristas laboram diante da história, da transmudação da rea-
lidade social.
O terrível descompasso havido entre Direito e História — como premissa
do paradigma racionalista — transfere o Direito, enquanto ciência do espírito, ao
campo das verdades universais, perenes e eternas, com pretensão à eternidade.
Como lapidarmente pontua Ovídio A. Baptista da Silva, nossa capacidade
para ordinarizar e, como decorrência disto, “plenarizar” todas as demandas é uma
consequência inelutável imposta pelo paradigma da ordinariedade, que tem no
Processo de Conhecimento seu principal alicerce teórico.76
Mundo de ficção científica seria aquele em que todas as coisas fossem con-
cebidas de maneira uniforme, estanque, estandardizada, lógica. O direito é, essen­
cialmente, analógico, compreensão, significado. No entanto, os juristas estão
impregnados/contaminados pelo Processo de Conhecimento vigente, em toda a
sua plenitude, consectários e vicissitudes.
A grande problemática que se vislumbra no Processo de Conhecimento é a
incapacidade do mesmo em responder aos anseios de uma sociedade a cada dia
mais complexa. A contingência e a diversidade sociais não podem conviver com
um processo que se alastra de maneira injustificada no tempo, propugnando por
verdades fundadas em juízos de certeza, desconsiderando o caráter hermenêutico
e histórico do Direito.
O Direito concebido matematicamente, como sói acontecer na atual con-
juntura do processo civil brasileiro, elimina qualquer tentativa de questionamento,
ou seja, não é dado ao jurista/jurisdicionado questionar os dogmas em que está
fundado o sistema. Estamos a tratar do direito do tirano, concebido de forma
a-histórica, atemporal e descontextualizado do quotidiano.
A dificuldade encontrada no Processo de Conhecimento em conviver com
o meritum causae antes da sentença de mérito torna nosso sistema processual
refém de uma ideologia que concebe o Direito desatrelado da história, congelado
no tempo.
Logo, julgar provisoriamente consiste em não julgar, visto que julgar o mérito
da lide só é compatível como julgamento final da demanda, através da sentença

SILVA. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 218.


76

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Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro 177

de mérito, que, consoante preconiza o artigo 162, §2º, do Código de Processo Civil,
sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da
causa.
A situação apontada é plenamente verificável nas demandas cautelares, em
que se faz necessário, para legitimar o processo cautelar, a propositura de uma
ação principal, em que nesta lide o magistrado teria condições de verificar, através
de cognição exauriente e contraditório prévio, a certeza do direito invocado pela
parte e a vontade da lei.
Consoante já ressaltado alhures, nosso sistema processual não consegue con-
viver com julgamentos provisórios da lide, fundados em probabilidade ou verossimi-
lhança. Julgar provisoriamente, para a doutrina, consiste em não julgar o mérito da
demanda.
O compromisso do processo civil brasileiro com o paradigma racionalista
demonstra, com toda a evidência, que não será permitido ao juiz julgar com supe­
dâneo em juízo de verossimilhança. A grande problemática, consoante já expli-
citado, encontra fundamento na doutrina da separação dos poderes, segundo a
qual o juiz, ao proferir decisão de mérito da causa, sem antes descobri-lo, estaria
desempenhando papel de legislador, porquanto não é da essência de sua atividade
revelar a vontade da lei.
O nosso sistema processual ordinarizou-se, porquanto não comporta julga-
mentos de mérito em sede de provimentos de natureza liminar. Como nota essen-
cial do Processo de Conhecimento, forçoso se faz o contraditório prévio, em que o
juiz, necessariamente, em fase prévia à atividade de julgar, possa ouvir ambas as
partes e proporcionar às mesmas amplo contraditório. Somente a partir desse mo-
mento estaria apto o juiz, na qualidade de oráculo da lei, a descobrir sua vontade.
O horror aos juízos sumários corrobora e vem a explicar o paradigma racio-
nalista que contamina o Processo de Conhecimento, impedindo que o magistrado
decida com base em verossimilhança, através da supressão do contraditório prévio.
A grande revolução engendrada no Direito moderno — títulos executivos
extrajudiciais como forma de tutela sumária — e a possibilidade do contraditório
diferido ou eventual deveriam ser implantados no Processo de Conhecimento,
aos casos em que presente a verossimilhança das alegações, porquanto, nas ini-
gualáveis lições de Ovídio A. Baptista da Silva, o tropismo do contraditório prévio
consiste, apenas, em extensão ideológica da matriz racionalista, que reduz a juris-
dição à mecânica descoberta da vontade da lei.77

SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista, p. 112.


77

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178 Felipe Barcarollo

Abstract: The rationalist conception of the Brazilian Civil Procedure Law as


a science purely normative indicates the inability of the current procedural
paradigm to meet the wishes and needs of a multifaceted and plurivocal
society. It also demonstrates the commitment of the Cognitive Process with
plenary procedure, thanks to such judgments founded on the certainty and
vocation genetic system for the prior contradictory, preventing any form of
deferred or possibly contradictory.

Key words: Brazilian Civil Procedure Law. Rationalist paradigm.

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de Normas Técnicas (ABNT):

BARCAROLLO, Felipe. Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil


brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80,
p. 145-179, out./dez. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 145-179, out./dez. 2012
A legitimidade do Ministério Público
para a tutela coletiva dos interesses dos
contribuintes – Análise do julgamento
do Recurso Extraordinário nº 213.631/MG

Marcelo Rodrigues Mazzei


Procurador do Município de Ribeirão Preto/SP. Especialista em
Processo Civil e Mestrando em Direitos Coletivos e Cidadania
pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP).

Telma Oliveira Queiroz


Graduanda em Direito pela Universidade
de Ribeirão Preto (UNAERP).

Zaiden Geraige Neto


Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP. Professor de Direito do
Mestrado da UNAERP. MBA Executivo pela Fundação Getulio Vargas.
Membro efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e
do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Parecerista e
Consultor da Revista do Conselho da Justiça Federal. Advogado.

Resumo: O presente trabalho almeja demonstrar a legitimidade do Minis-


tério Público para a defesa através da tutela coletiva dos direitos dos con-
tribuintes quando verificada a inconstitucionalidade da lei instituidora ou
regulamentadora do tributo, abordando a natureza desses direitos e o dis-
posto no art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/1985, bem como promo-
vendo uma análise do teor do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do
Recurso Extraordinário nº 213.631/MG, que decidiu que o Ministério Público
não tem legitimidade para promover ação civil pública para a impugnação
da cobrança de tributos já que o direito do contribuinte não se caracteriza
como interesse social ou individual indisponível.

Palavras-chave: Legitimidade. Ministério Público. Tutela coletiva. Contri-


buinte.

Sumário: Introdução – 1 A atribuição institucional do Ministério Público para


a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos – 2 A ve-
dação do manejo da ação civil pública para impugnação de tributos (art. 1º,
parágrafo único, da Lei nº 7.347/1985) – 3 A impossibilidade da utilização da

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012
182 Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto

ação civil pública como sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade


– 4 Análise do julgamento pelo STF do RE nº 213.631/MG: a defesa coletiva
dos interesses de contribuintes frente à lei inconstitucional instituidora de
tributo – Considerações finais – Referências

Introdução
A legitimidade do Ministério Público para a defesa de interesses individuais
homogêneos sempre causou e ainda causa grande discussão no campo jurídico.
A principal problemática reside na delimitação de quais interesses individuais
homogêneos guardam relação com as atribuições institucionais do Ministério
Público, principalmente levando em consideração suas incumbências previstas
no art. 127 da Constituição Federal, como a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Exemplificando, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de afir-
mar que o Ministério Público tem legitimidade ativa para a defesa, em juízo, dos
direitos e interesses individuais homogêneos, quando impregnados de relevante
natureza social ou notório interesse público, como sucede com o direito de peti-
ção e o direito de obtenção de certidão em repartições públicas,1 bem como para
a defesa dos direitos individuais dos mutuários em contratos de financiamento
imobiliário firmados pelos no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação.2
Contudo, o alto-relevo social que deve estar presente na defesa de interesses
individuais homogêneos pelo Ministério Público nem sempre é tão perceptível
quanto nos exemplos dados. O próprio Supremo Tribunal Federal, reconhecendo
a ausência de interesse social e individual indisponível, já decidiu pela impossibi-
lidade do ajuizamento pelo órgão ministerial de ação civil pública para compelir
empresa do ramo de empreendimentos imobiliários a se abster de inserir em seus
contratos de compra e venda qualquer cláusula que estipulasse a título de cláu-
sula penal a perda de quantia superior a 10% dos valores recebidos em razão da
resolução da avença por culpa do comprador.3 Diversamente, reconheceu a legiti-
midade do Ministério Público para pleitear em juízo a anulação de autos de infração
lavrados pelo competente órgão de trânsito em virtude da ausência de concessão
de prazo para defesa prévia do autuado.4

1
STF. RE nº 472.489-AgR/RS, 2ª Turma. Rel. Min. Celso de Mello. Julg. 29.04.2008. DJe, 29 ago. 2008.
2
STF. RE nº 470.135-AgR-ED/MT, 2ª Turma. Rel. Min. Cezar Peluso. Julg. 22.05.2007. DJ, 29 jun. 2007.
3
STF. RE nº 204.200-AgR/SP, 2ª Turma. Rel. Min. Carlos Velloso. Julg. 08.10.2002. DJ, 08 nov. 2002.
4
STF. AI nº 781.029-AgR/RJ, 2ª Turma. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julg. 23.08.2011. DJ, 05 set. 2011.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012
A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes... 183

Nos dois casos citados, estava em discussão a tutela coletiva de dois direitos
fundamentais constitucionalmente previstos, o direito de defesa do consumidor
no caso do compromissário comprador lesado pela cláusula abusiva (art. 5º, inciso
XXXII, e art. 170, inciso V, da Constituição Federal) e o direito ao contraditório e ao
devido processo legal no caso das autuações de infrações de trânsito sem a opor-
tunidade de defesa prévia aos autuados (art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição
Federal). As duas hipóteses tratavam da defesa de direitos fundamentais, os quais,
ao menos aparentemente, ostentam o caráter de relevante valor social5 com nítido
interesse público na tutela coletiva por parte do Ministério Público.
No que concerne ao precedente jurisprudencial que é objeto de análise no
presente estudo — RE nº 213.631/MG, Pleno. Rel. Min. Ilmar Galvão. Julg. 09.12.1999.
DJ, 07 abr. 2000 —, o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento da ile-
gitimidade do Ministério Público para impugnação de tributo tido por inconstitu-
cional, por não restar configurada a presença de interesses difusos, considerados
como aqueles pertencentes concomitantemente a todos e a cada um dos membros
da sociedade, como um bem não individualizável ou divisível, mas, ao revés, estar-se-ia
diante de um grupo ou uma classe de pessoas com interesses puramente individuais
e disponíveis, sem relevância social, caracterizados como sujeitos passivos de uma
exigência tributária e não consumerista, cuja impugnação só pode ser promovida
por eles próprios, seja de forma individual ou coletiva.
Esse entendimento jurisprudencial vigora até os dias atuais,6 pacificando
o entendimento do Tribunal sobre a ilegitimidade do Ministério Público para a
impug­nação de exações tributárias inconstitucionais. Aliás, também é predo-
minante a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o
Ministério Público não detém legitimidade para promover ação civil pública com
o objetivo de impedir a cobrança de tributos na defesa de contribuintes, pois seus
interesses são divisíveis, disponíveis e individualizáveis, oriundos de relações jurí­
dicas assemelhadas, mas distintas entre si, sendo eu contribuintes não são con-
sumidores, não havendo como se vislumbrar sua equiparação aos portadores de
direitos difusos ou coletivos.7

5
“Os direitos fundamentais influem em todo o Direito — inclusive o Direito Administrativo e o Direito
Processual — não só quando tem por objeto as relações jurídicas dos cidadãos com os poderes pú-
blicos mas também quando regulam relações jurídicas entre os particulares. Em tal medida servem
de pauta tanto para o legislador como para as demais instâncias que aplicam o Direito, as quais, ao
estabelecer, interpretar e pôr em prática normas jurídicas, deverão ter em conta o efeito dos direitos
fundamentais” (HESSE. Temas fundamentais do direito constitucional, 2009a, p. 39).
6
STF. RE nº 559.985-AgR/DF, 2ª Turma. Rel. Min. Eros Grau. Julg. 04.12.2007. DJ, 31 jan. 2008.
7
STJ. AgRg no REsp nº 969.087/ES, 2ª Turma. Rel. Min. Castro Meira. Julg. 18.12.2008. DJe, 09 fev.
2009.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012
184 Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto

Para os fins do presente estudo, busca-se fundamentar a legitimidade do


Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes, proce-
dendo-se à análise de suas atribuições institucionais previstas na Constituição
Federal e legislação infraconstitucional, abordando tanto a vedação do manejo da
ação civil pública prevista no art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/1985 quanto
a utilização da ação civil pública para declaração da inconstitucionalidade de nor-
ma. Por fim, é realizada uma análise crítica do julgamento pelo Supremo Tribunal
Federal do RE nº 213.631/MG, que concluiu pela ilegitimidade do Ministério Público
para impugnação através de ação civil pública de tributo tido por inconstitucional.

1  A atribuição institucional do Ministério Público para a defesa dos


interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos
A Constituição Federal, em seu art. 129, prevê as diversas atribuições do
Ministério Público, dentre as quais a que guarda maior relevância ao presente es-
tudo é a de promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos.
Mesmo antes dessa previsão institucional na Constituição Federal de 1988, o
Ministério Público já possui atribuição de defesa dos interesses difusos e coletivos,
principalmente com a edição da Lei nº 6.938/1981. Segundo Marcelo Pedroso Goulart:

O ano de 1981 representou um salto na evolução histórica do Ministério Pú-


blico brasileiro. A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938),
promulgada em 31 de agosto, consagrou, no art. 14, parágrafo 1º, a respon-
sabilidade objetiva do poluidor, e, rompendo com os princípios individualis-
tas do Código de Processo Civil, conferiu ao Ministério Público legitimidade
para a propositura da ação civil pública ambiental, reconhecendo-o como
canal privilegiado da sociedade, alargando o acesso à Justiça.8

A Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985) ampliou o


papel do Ministério Público na defesa dos interesses coletivos e difusos, atribuin-
do-lhe legitimidade para a propositura de ações civis públicas de tutela do meio
ambiente, do patrimônio histórico e cultural e do consumidor.
Com a promulgação da atual Constituição Federal, as atribuições institucio-
nais previstas na legislação infraconstitucional para o órgão ministerial ganharam

GOULART. Ministério Público e democracia, p. 87.


8

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A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes... 185

contornos constitucionais, ampliando-se a tutela dos direitos difusos e coletivos com


a previsão de um rol não exaustivo no final do disposto no inciso III do art. 129, ins-
trumentalizando a defesa desses direitos por meio da instauração de inquérito civil
ou propositura de ação civil pública.9
Para Ada Pellegrini Grinover, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel
Dinamarco:

O Ministério Público é, na sociedade moderna, a instituição destinada à


preservação dos valores fundamentais do Estado enquanto comunidade
[...]. É que o Estado social de direito se caracteriza fundamentalmente pela
proteção do mais fraco (fraqueza que vem de diversas circunstâncias,
como a idade, estado intelectual, inexperiência, pobreza, impossibilidade
de agir ou compreender) e aos direitos e situações de abrangência comu-
nitária e portanto transindividual, de difícil preservação por iniciativa dos
particulares.10

Marcelo Pedroso Goulart, a respeito do papel do Ministério Público na defesa


dos interesses coletivos e difusos comenta:

No campo da defesa dos interesses coletivos, essa visão processual res-


tringe os procedimentos administrativos e inquéritos civis a instrumen-
tos de coleta das provas necessárias ao embasamento das ações civis
públicas. O Ministério Público transfere para o Poder Judiciário, via ação
civil pública, a solução de todas as questões que lhe são postas pela so-
ciedade. Trata-se de um Ministério Público dependente do Judiciário. O
resultado disso é desastroso, pois o Judiciário, em regra, responde mal às
demandas que envolvam interesses coletivos e difusos, negando vigência
aos novos direitos sociais consagrados na Constituição de 1988 e nas leis
democratizantes. [...] Na esfera civil, não pode ficar na dependência das
decisões judiciais. Deve ter como horizonte a solução direta de questões
referentes aos interesses sociais, coletivos e difusos. Os procedimentos
administrativos e inquéritos civis devem ser instrumentos aptos para tal
fim. O Ministério Público deve esgotar todas as possibilidades políticas
e administrativas de resolução das questões que lhe são postas (solu-
ções negociadas), utilizando esses procedimentos com o objetivo de
sacramentar acordos e ajustar condutas, sempre no sentido de afirmar os
valores democráticos e realizar na prática os direitos sociais. Para tal, deve
politizar e desjurisdicionarilzar sua atuação, ou seja, o Ministério Público
deve: transformar-se em efetivo agente político, superando a perspectiva

GOULART. Ministério Público e democracia, p. 90-91.


9

GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO. Teoria geral do processo, p. 210.


10

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012
186 Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto

meramente processual da sua atuação; atuar integradamente e em rede,


nos mais diversos níveis — local, regional, estatal, comunitário e global
— ocupando novos espaços e habilitando-se como negociador e formu-
lador de políticas públicas.11

O conceito de interesse difuso, coletivo e individual homogêneo é trazido


pelo art. 81 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Interesses difu-
sos são os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas
indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Interesses coletivos são os
transindividuais de natureza indivisível e de que seja titular um grupo, categoria
ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação
jurídica base. Interesses individuais homogêneos são os decorrentes de origem
comum, que “na sua essência remanescem individuais: todavia, o modo por que
se faz sua tutela processual pode e até deve ser de tipo coletivo”.12
Ao comentar o alcance da legitimidade da tutela de interesses difusos e cole-
tivos por parte do Ministério Público, Teori Albino Zavascki comenta:

Não há limitador explícito para a legitimação, a não ser o decorrente da


natureza dos bens tutelados. A legitimação é para a defesa de “interesses
difusos e coletivos”, que não se confundem com direitos ou interesses de
entidades públicas (cujo patrocínio, pelo Ministério Público, é expressa-
mente vedado pelo inciso IX do art. 129 da Constituição) ou com direitos
individuais (cujo patrocínio, por esse órgão, só é admitido quando forem
indisponíveis ao seu titular – art. 127). Em outras palavras: o Ministério
Público tem legitimação ampla e irrestrita para promover ação civil pública,
mas desde que o bem tutelado tenha natureza típica de direito ou inte-
resse difuso e coletivo.13

Assim, diversas normas preconizam como função institucional do Ministério


Público a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a tutela de inte­
resses difusos e coletivos (art. 129, incisos III e VI, da Constituição Federal, art. 6º, inciso
VII, alíneas “a”, “c” e “d”, inciso I, art. 8º, incisos I, II, IV, V, VII e VIII, da Lei Complementar
nº 75/93, art. 5º, inciso I, da Lei nº 7.347/85, art. 82, inciso I, da Lei nº 8.078/90,
Resolução nº 87/2006 do Conselho Superior do Ministério Público Federal e Re­
solução nº 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público).
Delimitado o alcance institucional do Ministério Público para a defesa de
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, passaremos para a análise
do art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/85.

11
GOULART. Ministério Público e democracia, p. 121-122.
12
MANCUSO. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir, p. 54.
13
ZAVASCKI. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, p. 74-75.

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A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes... 187

2  A vedação do manejo da ação civil pública para impugnação de


tributos (art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/1985)
O art. 1º, parágrafo único, da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) veda
expressamente a propositura de ação civil pública que veicule pretensões que
envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo
de Serviço ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem
ser individualmente determinados.
A atual redação do artigo foi dada pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 24
de agosto de 2001, que até o término do presente estudo ainda não havia sido
convertida em lei, ressaltando que nos termos do art. 2º da Emenda Constitucional
nº 32, de 11 de setembro de 2001, as medidas provisórias editadas em data ante-
rior à sua publicação continuam em vigor até que medida provisória ulterior as
revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.
Para os que defendem a constitucionalidade da norma citada, eventual ale-
gação de inconstitucionalidade por afronta ao princípio da inafastabilidade da
jurisdição prevista no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal pode ser refu-
tada quando visualizado o problema no âmbito da restrição da cognição judicial.
Para essa corrente doutrinária, a norma não impede a análise pelo Poder
Judiciário de lesão ou ameaça a direitos, mas apenas restringe a cognição do
magistrado no plano horizontal, tornando-a limitada ou parcial.14 Exemplificando,
a cognição parcial ou limitada está presente na apreciação judicial da contestação
na ação de desapropriação, que só poderá versar sobre vício do processo judicial
ou impugnação do preço, devendo qualquer outra questão deverá ser decidida
por ação direta autônoma (art. 20 do Decreto-Lei nº 3.365/1941). Igual situação
se vislumbra nos embargos de terceiro, mandado de segurança e habeas corpus.
Dessa forma, o princípio da inafastabilidade da apreciação do Poder Judi­
ciário de lesão ou ameaça a direito não é ofendido pelo disposto no art. 1º, pará­
grafo único, da Lei nº 7.347/85, haja vista a possibilidade de apreciação das matérias
dispostas na norma em outros instrumentos processuais que não em sede de ação
civil pública, inclusive em ações de cunho coletivo.
Já para os que advogam a inconstitucionalidade da norma por ofensa ao
princípio do acesso à justiça, a justificativa repousa na necessária interpretação
ampliativa dos direitos fundamentais, para que possam alcançar a máxima eficá-
cia nas circunstâncias fáticas do caso concreto.15

WATANABE. Cognição no processo civil, 2012.


14

HESSE. Temas fundamentais do direito constitucional, 2009b, p. 116.


15

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012
188 Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto

Uma vertente do princípio do acesso à justiça diz respeito à tutela dos


interesses difusos. A partir do momento que se verificou a necessidade de instru-
mentos eficazes de proteção dos interesses transindividuais, mormente dentro
de um ambiente predominantemente individualista do processo, considerando
a indeterminabilidade da titularidade dos direitos e o benefício jurisdicional da
concentração dos objetos de diversas demandas idênticas em um só processo, o
princípio do acesso à justiça alcançou novo patamar para se adequar a realidade
dos interesses difusos.16
Ao comentar o art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/85, Pedro Lenza afirma
que “novamente, retoma-se a crítica já exarada neste estudo, especialmente pelo
fato de que referida regra, introduzida por medida provisória, desnatura a essência
da tutela coletiva”.17
Cumpre apontar também a existência de inconstitucionalidade formal do
artigo, cuja redação vigente foi dada pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de
agosto de 2001, que ainda não foi convertida em lei.
Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet
Branco, “os vícios formais afetam o ato normativo singularmente considerado,
sem atingir seu conteúdo, referindo-se aos pressupostos e procedimentos relati-
vos à formação da lei”.18
Segundo parte da doutrina, incluído Cássio Scarpinella Bueno,19 a Medida
Provisória nº 2.180-35/2001 está inquinada pela inconstitucionalidade formal em
virtude da ausência dos pressupostos constitucionais de relevância e urgência ne-
cessários à edição de medidas provisórias (art. 62, caput, da Constituição Federal).
Os conceitos de urgência e relevância são indeterminados, necessitando
para sua delimitação a aferição das circunstâncias fáticas e jurídicas à época da
edição da medida provisória.
A redação introduzida pela medida provisória não possui urgência, uma vez
que não se vislumbra iminente perigo de dano a interesse público, tratando-se,
na verdade, da implementação de norma processual de caráter permanente que
abrange também situações jurídicas futuras e ainda incertas.
Quanto à possibilidade do controle jurisdicional de aferição da presença ou não
da relevância e urgência autorizadoras da edição de medida provisória pelo Poder

16
CAPPELETTI; BRYANT. Acesso à justiça.
17
LENZA. Teoria geral da Ação Civil Pública, p. 206.
18
MENDES; COELHO; BRANCO. Curso de direito constitucional, p. 961.
19
BUENO. A Ação Civil Pública e o Poder Público. Universitária – Revista do Curso de Mestrado em
Direito, p. 81-106.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012
A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes... 189

Executivo, note-se que o Supremo Tribunal Federal possui inúmeros precedentes


no sentido de que o controle dos requisitos de urgência e relevância, dado o seu
caráter eminentemente político, fica, em princípio, por conta dos Poderes Executivo
e Legislativo, inserido na seara da discricionariedade administrativa. Todavia, se tais
requisitos evidenciarem-se desarrazoados ou nitidamente ilegais, tornar-se-á pos-
sível o seu controle judicial, mormente por configurar clara ofensa ao princípio da
separação de poderes.20
Em razão da abusiva utilização da edição de medidas provisórias por parte
do Poder Executivo, fragilizando o equilíbrio entre os Poderes, a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal passou a adotar uma postura mais contundente no con-
trole dos pressupostos da relevância e urgência.
Como bem esclarece o Ministro Cezar Peluso em seu voto no julgamento da
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.736/DF, ao comentar o uso abusivo da edi-
ção de medidas provisórias pelo Poder Executivo:

[...] o exercício dessa excepcional prerrogativa presidencial, precisamente


porque transformado em inaceitável prática ordinária de Governo, torna
necessário — em função dos paradigmas constitucionais, que, de um
lado, consagram a separação de poderes e o princípio da liberdade e que,
de outro, repelem a formação de ordens normativas fundadas em pro-
cesso legislativo de caráter autocrático — que se imponha moderação no
uso da extraordinária competência de editar atos com força de lei, outor-
gada, ao Chefe do Poder Executivo da União, pelo art. 62 da Constituição
da República.21

Em excepcional voto proferido no julgamento da Ação Direta de In­cons­titu­


cionalidade nº 4.029/DF, cujo objeto foi a edição da Medida Provisória nº 366/2007,
que criou a autarquia federal Instituto Chico Mendes, o Ministro Luiz Fux do Supremo
Tribunal Federal assim concluiu:

A atuação do Judiciário no controle da existência dos requisitos constitu-


cionais de edição de Medidas Provisórias, ao contrário de denotar inge-
rência contramajoritária nos mecanismos políticos de diálogo dos outros
Poderes, serve à manutenção da Democracia e do equilíbrio entre os três
baluartes da República. John Hart Ely explicita de forma precisa o papel do
Judiciário no jogo democrático: “Courts thus should ensure not only that
administrators follow those legislative policy directions that do exist [...]
but also that such directions are given” [em tradução livre: “As Cortes, en-
tão, deveriam assegurar não somente que os administradores sigam essas

20
STF. ADI nº 162-MC, Pleno. Rel. Min. Moreira Alves. Julg. 14.12.1989. DJ, 19 set. 1997; STF. ADI
nº 1.647/PA, Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. Julg. 02.12.1998. DJ, 26 mar. 1999.
21
STF. ADI nº 2.736/DF, Pleno. Rel. Min. Cezar Peluso. Julg. 08.09.2010. DJe, 29 mar. 2011.

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190 Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto

orientações políticas dadas pelo Legislativo já existentes, mas também que


tais orientações sejam dadas”] (Democracy and Distrust – A Theory of Judicial
Review. Cambridge: Harvard University Press, 2002. p. 133). O Supremo Tri-
bunal Federal, nesta esteira, deve assegurar que o Legislativo não se torne
um simples anexo do Executivo, subserviente e pouco ativo, que se limite
a apreciar, na maior parte do tempo, as medidas materialmente legislativas
adotadas pelo Chefe da Administração. A má utilização dos provimentos de
urgência pelo Executivo pode gerar efeitos indesejados, não somente para
a ordem social, mas igualmente para a dinâmica decisória das Casas parla-
mentares, com constantes trancamentos de pauta e apressando a delibe-
ração sobre temas que demandariam maior reflexão.22

Como demonstrado, seja no plano material (afronta ao princípio do acesso à


justiça – art. 5º, inciso XXXV, da CF) ou no plano formal (ausência de urgência – art.
62, caput, da CF), a redação dada ao parágrafo único do art. 1º da Lei nº 7.347/85
pela Medida Provisória nº 2.180-35/2001 padece de inconstitucionalidade.

3  A impossibilidade da utilização da ação civil pública como


sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade
Em nosso processo civil vigora a regra segundo a qual a coisa julgada não
prejudica terceiros não integrantes da lide (art. 472 do CPC). Todavia, em matéria
de ação civil pública, tal regra é excepcionada. O art. 16 da Lei nº 7.347/85 dispõe
que, na ação civil pública, a sentença fará coisa julgada erga omnes nos limites da
competência territorial do órgão prolator, salvo se a ação for julgada improcedente
por deficiência de provas.
Assim, a procedência da ação civil pública ajuizada com o escopo de
meramente reconhecer a inconstitucionalidade de um tributo afetará todos
os contribuintes em razão dos efeitos subjetivos da coisa julgada na ação civil
pública, circunstância que denota o caráter de verdadeiro controle de constitu-
cionalidade concentrado, usurpando-se a competência originária do Supremo
Tribunal Federal na hipótese de tributo federal ou estadual em dissonância com a
Constituição Federal ou do Tribunal de Justiça do respectivo Estado, caso se trate
de tributo municipal em desacordo com norma prevista na Constituição Estadual.
Além disso, a legitimidade ativa para propositura da ação direta de incons-
titucionalidade é desatendida, já que essa competência no âmbito do Ministério
Público é exclusiva do Procurador-Geral da República (art. 103, inciso VI, da
Constituição Federal).

STF. ADI nº 4.029/AM, Pleno. Rel. Min. Luiz Fux. Julg. 08.03.2012. DJe, 27 jun. 2012.
22

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A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes... 191

Entretanto, na ação civil pública não se nega a possibilidade da declaração


de inconstitucionalidade incidental (incidenter tantum) de lei ou ato normativo
federal, estadual ou local. Contudo, a declaração incidental de inconstituciona-
lidade deve se apresentar como fundamento do pedido e não como o próprio
pedido, ressaltando que não faz coisa julgada o motivo, ainda que importante
para determinar o alcance do dispositivo da sentença (art. 469, inciso I, do CPC),
sendo que, apenas a parte dispositiva da sentença de mérito, que acolhe ou não o
pedido do autor, fica acobertada pela autoridade da coisa julgada.23
Conforme o Supremo Tribunal Federal decidiu, “a ação civil pública não pode
ser ajuizada como sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade, pois, em
caso de produção de efeitos erga omnes, estaria provocando verdadeiro controle
concentrado de constitucionalidade, usurpando competência do STF”.24
Para Luís Roberto Barroso:

No processo da ação civil pública ou coletiva, a aferição da constitucio-


nalidade de determinada norma se faz de modo difuso. O juiz atua para
solucionar o caso concreto que lhe é submetido, consistindo a apreciação
da constitucionalidade ou não da norma em mera questão prejudicial,
que vai subordinar logicamente a decisão proferida de acordo com o
pedido formulado.25

Na hipótese específica da inconstitucionalidade de tributos, para que seja


legítima sua impugnação através da propositura de ação civil pública, deve-se
ter em mente que o pedido será o cancelamento dos lançamentos tributários
efetuados com base na lei tida como inconstitucional (efeito desconstitutivo ou
constitutivo negativo), sendo a causa de pedir próxima a inconstitucionalidade da
norma tributária. No exemplo citado, eventual pedido cominatório ou declarató-
rio com a finalidade de proibir a realização de novos lançamentos tributários teria
como resultado prático a inconstitucionalidade da lei, haja vista a configuração da
ineficácia plena da exação, sendo, portanto, vedado em sede de ação civil pública.
Como visto, é possível a alegação de inconstitucionalidade de norma em
sede de ação civil pública, desde que tal pedido seja deduzido como causa de
pedir, fundamento ou simples questão prejudicial, indispensável à resolução do
litígio principal, vedada a sua inclusão como pedido principal da demanda.

23
DINAMARCO. Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 318-694.
24
STF. Rcl nº 633/SP, Rel. Min. Francisco Rezek. DJ, 23 set. 1996.
25
BARROSO. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p. 251.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012
192 Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto

4  Análise do julgamento pelo STF do RE nº 213.631/MG – A


defesa coletiva dos interesses de contribuintes frente à lei
inconstitucional instituidora de tributo
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar, em 09 de dezembro de 1999, o Re­
curso Extraordinário nº 213.631/MG, pacificou seu entendimento sobre a ilegiti-
midade do Ministério Público para a defesa dos interesses coletivos derivados de
uma relação tributária.
O referido julgamento teve como relator o Ministro Ilmar Galvão e tratava de
ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais
para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 23/73 do Município de Rio Novo,
que instituiu a taxa de iluminação pública.
Consta da ementa do acórdão em questão:

Ausência de legitimação do Ministério Público para ações da espécie, por


não configurada, no caso, a hipótese de interesses difusos, como tais con-
siderados os pertencentes concomitantemente a todos e a cada um dos
membros da sociedade, como um bem não individualizável ou divisível,
mas, ao revés, interesses de grupo ou classe de pessoas, sujeitos passivos
de uma exigência tributária cuja impugnação, por isso, só pode ser pro-
movida por eles próprios, de forma individual ou coletiva.

O Ministro relator, no teor de seu voto, ponderou:

[...] não tem legitimidade o Ministério Público para pleitear, em ação civil
pública, a exoneração do pagamento de tributos, hipótese em que não se
estaria diante de interesse difuso, mas de interesse de parcela determinada
da sociedade, a dos contribuintes, sendo fora de dúvida que, no plano fis-
cal, o interesse social, a rigor, coincide com o de arrecadar o tributo e não
com o de conjurá-lo. [...] Nessas circunstâncias, a rigor, dois são os inte-
resses lesados: um, de natureza divisível, individual, subjetiva, cuja defesa
cabe ao próprio lesado; e outro, de caráter indivisível, coletivo e difuso, de
interesse social, cuja proteção se impõe ao Ministério Público. Da segunda
espécie, desenganadamente, os interesses que respeitam à saúde, à edu-
cação, ao transporte público coletivo, à segurança dos consumidores, etc.,
problemas que, enfim, ficariam sem solução, com sério prejuízo para o
grupo social, não pudessem ser objeto da ação do Ministério Público dada,
entre outras razões, a grande dispersão de possíveis lesados e a pequena
expressão econômica do dano a que, de ordinário, fica exposta cada um
deles, fatores suscetíveis de dissuadi-los do recurso ao Poder Judiciário.

Como visto, em seu voto, o Ministro Ilmar Galvão, relator do recurso extraordi-
nário, destaca a ilegitimidade do Ministério Público tutelar via ação civil pública os

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A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes... 193

direitos integrantes de uma relação tributária, baseando sua decisão na inexistência


de relevância social para a tutela desses interesses individuais homogêneos, que
são identificáveis e divisíveis, além de ser indevida a comparação de contribuintes
a consumidores e a impossibilidade do manejo da ação civil pública para a decla-
ração de inconstitucionalidade de norma, sob pena de utilizá-la como verdadeiro
instrumento de controle concentrado de constitucionalidade.
Baseado neste precedente entre outros, o Conselho Superior do Ministério
Público do Estado de São Paulo revogou, na sessão de 06 de março de 2012, a
Súmula Administrativa nº 44, que previa que na defesa de interesses individuais
homogêneos que tenham expressão para a coletividade, o Ministério Público é
parte legítima para ajuizar ação civil pública em matéria tributária.
Igual suporte foi utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça para editar a
Súmula nº 470, segundo a qual o Ministério Público não tem legitimidade para
pleitear, em ação civil pública, a indenização decorrente do DPVAT em benefício
do segurado.
Conforme leciona Rodolfo de Camargo Mancuso sobre a legitimidade do
Ministério Público quando atua da defesa de interesses individuais homogêneos:

Cremos que o ponto de equilíbrio nessa controvérsia depende de que


seja devidamente valorizado o disposto no caput do art. 127 da CF, onde
se diz que ao Parquet compete a defesa dos ‘interesses sociais e indivi-
duais indisponíveis’. Ou seja, quando for individual o interesse, ele há de
vir qualificado pela nota da indisponibilidade, vale dizer, da prevalência
do caráter de ordem pública em face do bem da vida direto e imediato
perseguido pelo interessado. Até porque, de outro modo, a legitimação
remanesceria ordinária, individualmente ou em cúmulo subjetivo.26

A Súmula Administrativa nº 07, do Conselho Superior do Ministério Público


do Estado de São Paulo, enuncia:

O Ministério Público está legitimado à defesa de interesses ou direitos


individuais homogêneos que tenham expressão para a coletividade, tais
como: a) os que digam respeito a direitos ou garantias constitucionais,
bem como aqueles cujo bem jurídico a ser protegido seja relevante para
a sociedade (v.g., dignidade da pessoa humana, saúde e segurança das
pessoas, acesso das crianças e adolescentes à educação); b) nos casos
de grande dispersão dos lesados (v.g., dano de massa); c) quando a sua
defesa pelo Ministério Público convenha à coletividade, por assegurar a

MANCUSO. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consu-
26

midores: Lei 7.347/87 e legislação complementar, p. 120.

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194 Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto

implementação efetiva e o pleno funcionamento da ordem jurídica, nas


suas perspectivas econômica, social e tributária.

É certo que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário


nº 576.155/DF, submetido ao regime de repercussão geral, cujo relator foi o Mi­
nistro Ricardo Lewandowski, em decisão publicada em 24.11.2010, reconheceu a
legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública com
o pedido de anulação do Termo de Acordo de Regime Especial (TARE), que con-
cedia no âmbito do Distrito Federal, através da edição pelo Secretário da Fazenda
e Planejamento da Resolução nº 94/2002 e Portaria SEFP nº 507/2002, benefícios
fiscais (isenção) a determinadas empresas no montante de até 70% do valor devido
a título de ICMS (imposto de sobre a circulação de mercadorias e sobre a prestação
dos serviços de transportes interestadual e intermunicipal).
Neste caso específico, contudo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a
legitimidade do órgão ministerial sob o argumento da existência de claro dano
ao patrimônio público (interesse metaindividual) em decorrência da isenção tri-
butária ilegalmente concedida, onde empresas deixavam de recolher ao erário
público o imposto devido. Tal fundamento, entretanto, não é extensível aos casos
de defesa dos interesses individuais homogêneos dos contribuintes tributados
por uma exação inconstitucional.
Segundo o voto do Ministro relator do RE nº 576.155/DF, os interesses lesa-
dos pelo TARE são de natureza difusa (patrimônio público), haja vista a indivisibi-
lidade do seu objeto e a indeterminabilidade dos seus sujeitos, interligados por
uma circunstância de fato, consistente no dano ao erário público pela ausência
da correta arrecadação de tributos. Portanto, evidenciada a lesão ao patrimônio
público, é legítima a atuação do Ministério Público para sua defesa via ação civil
pública na forma do art. 129, inciso III, da Constituição Federal e Súmula nº 329
do STJ.27 Saliente-se que nesse julgamento sequer foi aventada eventual incons-
titucionalidade do disposto no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 7.347/1985,
restringindo-se o acórdão a apontar a sua mera inaplicabilidade ao caso.
Como demonstrado, o resultado do julgamento do RE nº 576.155/DF não
afasta a aplicação do entendimento jurídico firmado no RE nº 213.631/MG —
acórdão paradigma da presente análise — mormente em razão do último tra-
tar de interesses individuais homogêneos caracterizados pela possibilidade de
identificação dos sujeitos (contribuintes), pela divisibilidade do objeto (valor do

STJ. Súmula nº 329: “O Ministério Público tem legitimidade para propor Ação Civil Pública em
27

defesa do Patrimônio Público”.

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A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes... 195

tributo específico), decorrentes de uma origem comum (lei instituidora da taxa de


iluminação pública).
Contudo, apesar do paradigma jurisprudencial em análise e dos entendi-
mentos contrários expostos, é possível verificar fundamentos jurídicos para sus-
tentar a legitimidade do Ministério Público na defesa de interesses individuais
homogêneos de contribuintes em face de norma tributária inconstitucional.
A pacificação social célere e igualitária denota a relevância social da tutela
cole­tiva dos interesses dos contribuintes pelo Ministério Público. Evitam-se com isso
as inúmeras ações individuais de contribuintes que tramitam no Poder Judiciário,
tornando a máquina judiciária cada vez mais lenta, além de coibir em parte a exis-
tência de inúmeras decisões judiciais conflitantes, bastando para exemplificar citar
os casos de inúmeras instituições de assistência à saúde que ao comprovarem os
requisitos do art. 14 do CTN, asseguraram sua imunidade tributária com decisões
judiciais favoráveis com trânsito em julgado, independentemente da circunstância
da remuneração de seus serviços, diversamente de outras instituições de assistên-
cia à saúde que não lograram êxito no reconhecimento judicial da imunidade. Igual
sentido os julgamentos proferidos sobre a averiguação do preenchimento dos requi-
sitos para obtenção da imunidade tributária concedida às entidades beneficentes
de assistência social quando remunerados seus dirigentes.
Sendo assim, centralizando os interesses individuais homogêneos decor-
rentes de relações tributárias mediante a tutela na ação civil pública, atende-se
ao princípio da segurança jurídica, evitando-se diversas interpretações judiciais
para a mesma relação jurídica,28 promovendo a pacificação social através do tra-
tamento uniforme dos contribuintes, além de atender ao princípio da celeridade
do processo judicial, erigido a direito fundamental pela Emenda Constitucional
nº 45/2004 (art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal).
Aliás, como bem acentuou o Ministro Marco Aurélio em seu voto vencido,
“há outro aspecto a respaldar a conclusão sobre a legitimidade em foco. Viabiliza
a desburocratização do Judiciário, concentrando pretensões em um único pro-
cesso, além de implicar freio à fúria arrecadadora do Estado”.
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região, quando do julgamento da Ape­
lação Cível nº 02.12995-8, que tratava de ação civil pública ajuizada pelo Ministério
Público Federal objetivando a suspensão do desconto da contribuição social so-
bre a remuneração dos servidores públicos inativos, prevista no art. 231 da Lei
nº 8.112/90, com redação dada pela MP nº 1.451/96, decidiu que é evidente o

DELGADO. A imprevisibilidade das decisões judiciais. Revista Internacional de Direito Tributário.


28

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196 Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto

interesse social relevante no ajuizamento da ação coletiva a legitimar a atuação


ministerial, sendo de todo conveniente que tais direitos sejam tutelados através
de uma ação única, evitando-se, assim, proliferação de demandas versando so-
bre a mesma matéria, o desnecessário congestionamento do Poder Judiciário, e
a possibilidade de decisões conflitantes sobre o mesmo caso, em desprestígio à
isonomia dos jurisdicionados.29
Na mesma direção posicionou-se o Ministro aposentado do Superior Tribunal
de Justiça, Demócrito Reinaldo, quando do julgamento do Recurso Especial
nº 49.272/RS, onde decidiu:

[...] os interesses individuais (suspensão do indevido pagamento de taxa


de iluminação publica), embora pertinentes a pessoas naturais, se visua-
lizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, transcendem a
esfera de interesses puramentes individuais e passam a constituir interes-
ses da coletividade como um todo, impondo-se a proteção por via de um
instrumento processual único e de eficácia imediata - a ação coletiva. O
incabimento da ação direta de declaração de inconstitucionalidade, eis
que, as leis municipais nos. 25/77 e 272/85 são anteriores a Constituição
do Estado, justifica, também, o uso da ação civil publica, para evitar as
inumeráveis demandas judiciais (economia processual) e evitar decisões
incongruentes sobre idênticas questões jurídicas.30

O então Ministro do Superior Tribunal de Justiça, atual Ministro do Supremo


Tribunal Federal, Luiz Fux, quando do julgamento como relator do Recurso
Especial nº 478.944/SP, que tratava da legitimidade do Ministério Público para arguir
incidentalmente através de ação civil pública a inconstitucionalidade de taxa de lim-
peza pública, conforme trechos do seu voto:

Assim, face ao novel posicionamento da Suprema Corte quanto à possi-


bilidade do ajuizamento da Ação Civil Pública para a argüição incidental
de inconstitucionalidade de lei, entendimento este agora adotado neste
Sodalício, remanesce, nos presentes autos, a questão acerca da legitimi-
dade do Ministério Público para patrocinar, em sede de Ação Civil Pública,
interesses de contribuintes. Assinale-se que, em matéria tributária, os in-
teresses permeiam a esfera de um número indeterminado de indivíduos,
de vez que a norma tributária, de caráter geral e abstrato, atinge, embora
gerando efeitos para cada situação em concreto, a coletividade, transcen-
dendo a sede individual dos direitos que ali residem. Daí porque se pode

29
TRF2. Apelação Cível nº 02.12995-8/RJ, 6ª Turma. Rel. Des. Fed. Fernando Marques. Julg. 13.06.2006.
DJ, 02 out. 2006.
30
STJ. REsp nº 49.272/RS, 1ª Turma. Rel. Min. Demócrito Reinaldo. Julg. 21.09.1994. DJ, 17 out. 1994.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012
A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes... 197

afirmar que os interesses dos contribuintes são interesses transindividuais,


passíveis, portanto, de defesa por meio de Ação Civil Pública, para cujo
ajuizamento detém legitimidade o Ministério Público, posto que o res-
guardo de tais interesses está previsto dentre as funções institucionais
do órgão, conferida pela Carta Constitucional, cabendo-lhe promover o
inquérito civil e a ação civil pública com propósito de proteger o patri-
mônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos
e coletivos, à luz do art. 129, inciso III. [...] A soma dos interesses múltiplos
dos contribuintes constitui interesse transindividual, que por sua dimen-
são coletiva torna-se público e indisponível, apto a legitimar o Parquet a
velá-la em juízo. Aliás, em muitas decisões o Superior Tribunal de Justiça
vinha sufragando o entendimento de que a Ação Civil Pública voltada
contra a ilegalidade dos tributos não implicava em via oblíqua de con-
trole concentrado de constitucionalidade. Deveras, o Ministério Público,
por força do art. 129, III, da Constituição Federal é legitimado a promover
qualquer espécie de ação na defesa de direitos transindividuais, nestes
incluídos os direitos dos contribuintes de Taxa de Limpeza Urbana, ainda
que por Ação Civil Pública, cuja eficácia da decisão acerca do objeto
mediato é erga omnes ou ultra partes.31

Sob o aspecto do princípio do acesso à justiça, é importante transcrever


trechos do artigo produzido por Antônio de Souza Prudente, no qual destaca o
alcance potencial dos conflitos tributários:

Nesse contexto, o direito fundamental de acesso à Justiça, garantido, expres­


samente, pelo texto constitucional (CF, art. 50, XXXV), assegura-nos, também,
o direito à adequada tutela jurisdicional, por meio da ação civil pública, pro-
posta pelo Ministério Público, em defesa dos princípios constitucionais
tributários e dos interesses individuais homogêneos dos contribuintes,
coletiva e socialmente considerados, na dispersão do ilícito tributário de
origem legal comum, tal como ocorre com a cobrança abusiva da con-
tribuição previdenciária do servidor público inativo e da CPMF. [...] De
ver-se, assim, que, em matéria tributária, os interesses individuais ho-
mogêneos, legalmente definidos, como aqueles decorrentes de origem
comum, uma vez agredidos, coletivamente, em seu núcleo originário
(hipótese de incidência tributária e conseqüente fato gerador, de natureza
homogênea, a gestar obrigações tributárias e resultantes interesses indi-
viduais também homogêneos), sofrem, por força do impacto agressor, o
fenômeno da atomização processual, em defesa de interesse coletivo e
social, relevantes a legitimar a pronta atuação do Ministério Público, na
linha de determinação institucional dos arts. 127, caput e 129, III, da Cons-
tituição da República, traduzidos nas disposições dos arts. 5º, II, a e 6º,
incs. VII, “a” e “d” e XII, da Lei Complementar n. 75/93, mediante garantias

STJ. REsp nº 478.944/SP, 1ª Turma. Rel. Min. Luiz Fux. Julg. 02.09.2003. DJ, 29 set. 2003.
31

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198 Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto

instrumentais da ação civil pública, evitando, assim, a pulverização dos


litígios, com o conseqüente acúmulo de feitos judiciais nos tribunais do
País, nessa seara histórica de abusos tributários, onde o contribuinte, in-
dividualmente considerado, sem recursos e órfão da assistência judiciária
do Estado, queda-se inerte e vitimado, sem qualquer defesa, ante a brutal
arrogância do Fisco.32

Outro fundamento utilizado foi o de que a ação civil pública se presta para a
defesa de direitos individuais homogêneos, legitimado o Ministério Público para
aforá-la quando os titulares daqueles interesses ou direitos estiverem na situação
ou na condição de consumidores ou quando houver uma relação de consumo.
O art. 81, inciso III, da Lei nº 8.078/80, estabelece a tutela coletiva de direitos
individuais homogêneos, assim entendidos como aqueles derivados de uma ori-
gem comum. A tutela coletiva não se restringe aos direitos decorrentes das rela-
ções de consumo, haja vista a previsão do art. 21 da Lei nº 7.347/85, que determina a
aplicação de forma integrada das normas processuais do Código do Consumidor
à defesa de todos os direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogê-
neos, o que parte da doutrina denominou microssistema da tutela jurisdicional
coletiva.33
Cumpre ressaltar, ainda, que a legitimidade do Ministério Público para impug-
nação de lei tributária inconstitucional decorre primordialmente do seu dever insti-
tucional de defesa da ordem jurídica, tal como expressamente consta no art. 127 da
Constituição Federal.
Ao defender a ordem jurídica, o Ministério Público não atua como mero fiscal
da aplicação correta da lei. Ele atua principalmente como defensor da força norma-
tiva da Constituição Federal. Não é por acaso que o Procurador-Geral da República
é um dos legitimados para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade.
Para se aferir a dimensão do alcance lesivo da inconstitucionalidade de
uma norma, embora não seja cabível, nos termos do que dispõe a Súmula nº 343
do STF,34 ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei quando a decisão
rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos
Tribunais, devem ser excepcionados os casos em que a discussão versar sobre

32
SOUZA PRUDENTE. Legitimação constitucional do Ministério Público para Ação Civil Pública em
matéria tributária na defesa dos interesses individuais homogêneos. Revista de Estudos Judiciários
do Conselho da Justiça Federal, p. 77-79.
33
ALMEIDA. O microssistema de tutela jurisdicional coletiva (CDC e LACP) como conjunto de nor-
mas de superdireito processual coletivo. MPMG Jurídico, p. 24.
34
STF. Súmula nº 343: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a ação
rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012
A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes... 199

a constitucionalidade da norma. Nesses casos, o sentido da constitucionalidade


deve ser unívoco, não admitindo interpretação dissonante (inconstitucional),
apoian­do-se tal entendimento na aplicação do fundamento teórico do princípio
da supremacia das normas constitucionais, uma vez que “a manutenção de de-
cisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF
revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima
efetividade da norma constitucional”.35
Importante destacar trecho do voto do Ministro do Superior Tribunal de Justiça,
Teori Albino Zavascki no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso
Especial nº 687.903/RS ao exemplificar a inaplicabilidade do teor da Súmula nº 343
do STF a alguns casos:

[...] não se aplica quando se trata de “texto” constitucional: relativamente


a este, é cabível ação rescisória mesmo que a seu respeito haja contro-
vérsia interpretativa nos Tribunais. As razões fundantes do tratamento
diferenciado, segundo é possível colher da jurisprudência do STF, são, essen-
cialmente, a da “supremacia jurídica” da Constituição, cuja interpretação
“não pode ficar sujeita à perplexidade”, e a especial gravidade de que se
reveste o descumprimento das normas constitucionais, mormente o “vício”
da inconstitucionalidade das leis.

Assim, uma norma tributária inconstitucional é passível de impugnação


pelo Ministério Público através da propositura de ação civil pública no ideal de
defesa da ordem jurídica, como forma de expurgar os efeitos do mundo fático da
norma tida por inconstitucional.
Saliente-se ainda a posição adotada pelo Procurador de Justiça do Estado
de São Paulo, Sérgio Neves Coelho, para quem a legitimidade do Ministério
Público para a propositura de ação civil pública para a defesa dos interesses de
contribuintes encontra respaldo no art. 129, inciso II, da Constituição Federal, que
atribuiu ao órgão ministerial a função institucional de zelar pelo efetivo respeito
dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública assegurados na Carta
Magna, não podendo o legislador infraconstitucional criar obstáculos para a de-
fesa desses direitos mediante a utilização da ação civil pública.36

RE nº 328.812-ED/AM, Pleno. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julg. 06.03.2008. DJe, 02 maio 2008.
35

COELHO. Da legitimidade do Ministério Público para propositura de Ação Civil Pública na defesa
36

de interesses de contribuintes.

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200 Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto

Considerações finais
Depois da análise crítica da problemática acerca da legitimidade do Minis­
tério Público para tutelar via ação civil pública os interesses individuais homogê-
neos atinentes aos contribuintes envolvidos em uma relação tributária oriunda
de norma inconstitucional, pode-se concluir que a limitação prevista no art. 1º,
parágrafo único da Lei nº 7.347/85, com a redação dada pela MP 2.180-35/2001,
tanto no seu aspecto material, por afronta ao princípio do acesso à justiça, quanto
no aspecto formal, pela ausência da urgência exigida como requisito da edição de
medida provisória pelo art. 62 da Constituição Federal, mostra-se inconstitucional
sua aplicação.
Ainda, a declaração incidental de inconstitucionalidade da norma tributária
deve se apresentar apenas como fundamento do pedido e não como o próprio
pedido da ação civil pública, em razão do efeito erga omnes da decisão proferida
(art. 16 da Lei nº 7.347/85), sob pena de sua utilização como verdadeira ação direta
de inconstitucionalidade (controle concentrado).
O Ministério Público é parte legítima para tutelar através de ação civil públi-
ca os direitos integrantes de uma relação tributária, existindo relevância social na
pacificação social célere e igualitária dos conflitos de interesses em grande escala,
atendendo-se ao princípio da segurança jurídica e promovendo-se a pacificação
social através do tratamento uniforme dos contribuintes, além de fomentar o
princípio da celeridade do processo judicial.
Eleva-se dessa forma a irradiação dos efeitos do princípio do acesso à justiça
às demandas coletivas, concretizando-o como mandamento de otimização37 den-
tro das premissas fáticas e jurídicas existentes, além da legitimidade do Ministério
Público para impugnação de lei tributária inconstitucional também decorrer do
seu dever institucional da defesa da ordem jurídica, afetada pelo grave vício de
inconstitucionalidade da norma impugnada.

Abstract: The present work aims to demonstrate the legitimacy of Public


Prosecution to defend the collective rights of taxpayers when the tax law
has been declared unconstitutional, analyzing the nature of this rights and
the content of the 1st article, sole paragraph, of Law n. 7.347/85, doing a
careful analysis of the Supreme Court judgment in the extraordinary appeal
n. 213.631/MG, where the Supreme Court decides that a Public Prosecution
don’t have a legitimacy to defend the collective rights of taxpayers from the
tax law unconstitutional, because these rights aren’t individual unavailable
or represents a valuable social interest.

Key words: Legitimacy. Public Prosecution. Collective Custody. Taxpayer.

ALEXY. Teoria dos direitos fundamentais, p. 90.


37

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A legitimidade do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes... 201

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

MAZZEI, Marcelo Rodrigues; QUEIROZ,Telma Oliveira; GERAIGE NETO, Zaiden. A legitimidade


do Ministério Público para a tutela coletiva dos interesses dos contribuintes: análise do
julgamento do Recurso Extraordinário nº 213.631/MG. Revista Brasileira de Direito Processual
– RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 181-202, out./dez. 2012
DOUTRINA
Parecer
Sentença arbitral – Princípios
constitucionais do processo –
Inobservância do contraditório,
da igualdade das partes e da ampla
defesa – Regra da congruência objetiva
– Árbitro que não cumpre os deveres
de diligência e competência

Fredie Didier Jr.


Livre-docente pela USP. Pós-doutorado na Universidade de Lisboa.
Doutor pela PUC-SP. Mestre pela UFBA. Coordenador do curso de
graduação da Faculdade Baiana de Direito. Professor-adjunto da
Faculdade de Direito da UFBA. Membro da IAPL, do Instituto Ibero-
americano de Direito Processual e do Instituto Brasileiro de Direito
Processual. Presidente da Associação Norte e Nordeste
de Professores de Processo. Advogado e Consultor jurídico.
E-mail: <www.frediedidier.com.br>.

Leandro Aragão
Mestrando pela UFBA. Especialista em Direito Empresarial (PUC-SP).
Professor da Faculdade Baiana de Direito. Membro do Instituto de
Direito Societário Aplicado. Advogado e Consultor jurídico.

Sumário: 1 O caso sob consulta – 2 A consulta e o parecer – 3 Uma primeira


premissa: a natureza da sentença arbitral e a aplicação dos princípios e garan-
tias inerentes à tutela constitucional do processo – 4 Uma segunda premissa:
os vícios e defeitos da sentença arbitral são os mesmos da sentença judi-
cial – 5 Ação anulatória de sentença arbitral: art. 33 da LArb – Limitação da
sentença arbitral ao objeto determinado no termo de compromisso arbitral
– Extrapolação dos limites – Transgressão à regra da congruência objetiva
– 6 Fundamentação da sentença arbitral inteiramente copiado de um artigo
da internet não citado como fonte: vício de motivação e violação das obri-
gações de diligência, competência e livre convencimento – Situação inusitada
(para dizer o mínimo) – Desprestígio para a formação de uma cultura da
arbitragem – 7 Inexistência de requisito de validade da sentença arbitral: o
procedimento arbitral não respeitou nem mesmo o procedimento interno
previsto no regulamento da Câmara de Arbitragem – Violação da convenção
de arbitragem – 8 Conclusão

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206 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

1  O caso sob consulta


Em 2010, a Empresa X apresentou um pedido de instauração de processo
arbitral numa Câmara de Arbitragem.
Essa demanda decorreu de controvérsia sobre a existência ou não de uma
obrigação de pagamento por “demanda mínima” de serviços de infraestrutura
para fornecimento de água na capital de um Estado brasileiro. Tais serviços
foram objeto de um contrato de prestação de serviços celebrado anteriormente
com a Empresa Y. No requerimento encaminhado ao Presidente da Câmara de
Arbitragem, a Empresa X alega a existência de uma obrigação contratual que
lhe garantiria uma demanda mínima mensal de serviços e, consequentemente,
render-lhe-ia um pagamento mínimo e muito maior que o efetivamente feito.
Formula, então, alguns pedidos a serem apreciados no julgamento arbitral.
Pela sua importância para a construção analítica do parecer, segue a transcrição
dos pedidos tais quais escritos no requerimento de abertura de arbitragem; a cor-
reta identificação deles é a primeira etapa para a precisa identificação do conteúdo
da demanda arbitral:

3 - Seja a requerida condenada a efetuar o pagamento da indenização


referente a 70% (setenta por cento) da demanda mínima nos termos do
instrumento contratual firmado pelas partes, no valor de R$850.732,66
(oitocentos e cinqüenta mil, setecentos e trinta e dois reais e sessenta e
seis centavos);
4 - Seja compelida a Ré a cumprir o contrato a partir da distribuição desta,
com o conseqüente envio da demanda mínima diária de serviços, sob
pena de conversão em perdas e danos; [...].

Como se vê, os pedidos postos pela Empresa X na peça por meio da qual
requer a instauração do juízo arbitral são somente:
1. O pagamento de uma indenização por não cumprimento da obrigação
de demanda mínima até o instante da apresentação do pedido de aber-
tura da arbitragem (pedido atrelado a fatos passados);
2. O cumprimento da obrigação de demanda mínima diária por parte da
Empresa Y, a partir da data de distribuição da petição por meio da qual
se requereu a instauração da arbitragem (pedido para imposição de con-
dutas futuras, vale dizer, condutas a partir da distribuição da demanda
arbitral).
São esses — e só esses — os pedidos formulados pela Empresa X na petição
de solicitação de arbitragem.

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Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 207

A Empresa Y apresentou resposta ao requerimento de instauração de processo


arbitral da Empresa X. Sem se opor à instauração do juízo arbitral, a Empresa Y trouxe,
como tese de defesa, várias alegações sobre o descumprimento por parte da Empresa
X de obrigações cuja realização efetiva era pré-requisito para que se pudesse falar
em “demanda mínima” ou “pagamento por demanda mínima”. Em termos jurídico-­
processuais, a Empresa Y apresentou uma exceção de contrato não cumprido e teceu
outras considerações sobre o mérito da demanda arbitral que lhe fora dirigida.
Posteriormente, Empresa X e Empresa Y celebraram termo de compromisso
arbitral. Por meio desse ato de formalização de um negócio jurídico processual,
definiu-se que a matéria objeto de discussão é a cobrança de valores supostamente
devidos pela demandada à demandante em razão de inadimplemento contratual. É
isso o que está escrito no item 2 do compromisso. Percebe-se claramente que o
objeto do litígio arbitral foi delimitado para que somente sejam discutidos fatos
passados que tenham sido eficazes o bastante para gerar alguma consequência
jurídica naquele instante. É importante que isso fique bem claro.
Juntaram-se vários documentos e petições das partes. Em sequência, houve
uma audiência de instrução e julgamento na arbitragem. Após, as partes apresen-
taram suas alegações finais.
Mais a frente foi proferida sentença arbitral acolhendo o pedido, determi-
nando o pagamento da indenização pleiteada na peça inicial da Empresa X e,
curiosa e estranhamente, de um determinado valor a título de “perdas e danos”,
que não foi objeto do contraditório. Como o que foi decidido em definitivo nessa
arbitragem é matéria crucial para elaboração deste parecer, prefere-se transcre-
ver a parte dispositiva da sentença arbitral, que foi prosada nos seguintes termos:

Ante ao exposto, por tudo mais que dos autos conste, julgo procedente o
pedido formulado pela Demandante e condeno a Demandada no paga-
mento de:
a) Indenização estabelecida no Parágrafo Décimo Segundo, da Cláusula
Décima Primeira, fixada na demanda mínima referente ao período de 7
(sete) meses do Contrato, perfazendo o valor de R$ R$ [sic] 850.732,66
(oitocentos e cinqüenta mil, setecentos e trinta e dois reais e sessenta e
seis centavos), devidamente corrigidos a partir da data da citação;
b) Perdas e danos, calculados a base de 70% (setenta por cento) do valor
da demanda mínima, a incidir sobre o período dos 5 (cinco) meses rema-
nescentes do Contrato, perfazendo o valor de R$691.406,10 (seiscentos e
noventa e um mil, quatrocentos e seis reais e dez centavos), devidamente
corrigidos, a partir da data da sentença, mais juros e atualização monetá-
ria segundo índices oficiais regularmente estabelecidos;
c) Custas e honorários arbitrais, já devidamente pagos pela Demandante
quando do protocolo da ação.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
208 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

Esses são os pontos cuja exposição é necessária à correta construção argu-


mentativa do parecer. Mais para frente mencionarei alguns outros aspectos e mi-
núcias do que ocorreu ao longo do desenvolvimento do processo arbitral e que
porventura seja relevante para a elaboração do parecer.
Esse é o relatório.

2  A consulta e o parecer
O ilustre advogado Dr. *** consulta-me sobre a procedência da ação anu-
latória de sentença arbitral levada ao Poder Judiciário com base no art. 33 da Lei
Federal nº 9.307/1996 (de agora em diante, LArb).
Os fundamentos dessa ação anulatória são os seguintes:
(i) a sentença arbitral foi proferida fora dos limites da demanda e da con-
venção de arbitragem, ao incluir condenação quanto a fatos, questões
e valores que as partes expressamente excluíram do âmbito da demanda,
violando as normas extraídas do art. 21, §2º, da LArb, bem como a prote-
ção constitucional ao devido processo legal;
(ii) a sentença foi proferida com violação das obrigações de diligência, com-
petência e livre convencimento, ao se verificar que na sentença foi intro-
duzido um fundamento estranho ao contraditório, que, aliás, foi copiado
ipsis litteris de um artigo jurídico da internet não citado como fonte;
(iii) a sentença arbitral é anulável por infração ao art. 26 da LArb ao não
fundamentar a parte da decisão relativa ao modo de calcular as perdas
e danos;
(iv) a sentença arbitral não decidiu a inteireza da controvérsia submetida
à arbitragem, por não ter observado o direito de a parte ver ampla-
mente considerados os argumentos que compunham a tese central de
defesa, o que revelou a ausência, no árbitro, de capacidade, apreen-
são e isenção de ânimo para contemplar todas as razões apresentadas
pela defesa, seja para expressamente refutá-las, seja para claramente
acolhê-las — por essa razão, a sentença arbitral carece de requisitos do
art. 26 da LArb;
(v) o procedimento arbitral não respeitou nem mesmo o procedimento
interno da Câmara administradora, falecendo-lhe requisito essencial im-
posto pelo próprio normativo do Regulamento da Câmara de Arbitragem
e, portanto, foi proferida em desrespeito à convenção de arbitragem;
(vi) ao fim, a sentença arbitral foi emanada por quem não atuou com a ne-
cessária diligência e competência e, em razão disso, violou o devido

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Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 209

processo legal, o que a torna maculada por defeito que compromete a


sua validade.
Passo, de agora em diante, a expor as razões que conduzem à conclusão
adotada ao final deste parecer.

3  Uma primeira premissa: a natureza da sentença arbitral


e a aplicação dos princípios e garantias inerentes à tutela
constitucional do processo
Defendo a tese de que arbitragem é jurisdição. Tenho sustentado, no volume 1
do meu Curso de direito processual civil, que a arbitragem, no Brasil, não é equivalente
jurisdicional, como o disse Francesco Carnelutti para as arbitragens italianas. Ela é,
sim, propriamente jurisdição, exercida por particulares, com autorização do Estado
e como consequência do exercício do direito fundamental do auto regramento.1
A razão é que há na arbitragem todos os elementos necessários à caracte-
rização da jurisdição: existe um terceiro (árbitro ou tribunal arbitral) que decidirá
imparcialmente (art. 21, §2º, da Lei de Arbitragem) uma controvérsia concreta de
modo definitivo (art. 31 da Lei de Arbitragem), mediante um processo. Isso é o bas-
tante para configurar a natureza jurisdicional da arbitragem. Somado a isto, ainda
temos que, no Brasil, a própria lei dispôs que o árbitro é um juiz de fato e de direito
(art. 18 da Lei de Arbitragem), o que nos dá mais um forte elemento para susten-
tarmos a natureza jurisdicional da arbitragem. O certo é que a doutrina majoritária,
na qual me incluo, aponta no sentido de reconhecer que arbitragem é jurisdição.
Como jurisdição, deve ser exercida por meio de um processo.
Assim, todos os instrumentos de defesa e garantia postos no texto constitu-
cional para serem aplicados à técnica jurisdicional tradicional de solução dos con-
flitos conhecida como processo (estatal) são igualmente aplicáveis à arbitragem.
As garantias processuais constitucionais valem para toda e qualquer jurisdição,
seja ela privada (arbitragem), seja ela estatal (Poder Judiciário). Aqui, aliás, não há
divergência doutrinária. Até os que relutam em admitir a natureza jurisdicional
da arbitragem afirmam que se o objetivo da jurisdição tradicional é a pacificação
social e extirpação dos conflitos por meio substancialmente adequado (ou seja,
por meio justo), e se a arbitragem possui esses mesmos objetivos, todos os passos
estão sendo firmemente dados no sentido de reconhecimento definitivo do cará-
ter jurisdicional da arbitragem.2

1
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. v. 1, Teoria
geral do processo e processo de conhecimento. p. 99.
2
Por exemplo, Cândido Rangel Dinamarco, que é defensor da ideia de que arbitragem é parajurisdi-
cional, entende que a “similitude de propósitos entre processo arbitral e o estatal é suficiente para

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
210 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

Se a arbitragem tem de ser vista, portanto, sob a mesma lupa da tutela


constitucional do processo, parece óbvio que todas as normas processuais cons-
titucionais fundamentais têm ampla aplicabilidade na arbitragem. Garantias ele-
mentares como ampla defesa, contraditório, tempestividade, devido processo
legal, adequação, dentre outras presentes ou decorrentes do texto constitucio-
nal, são prontamente aplicáveis na arbitragem. A própria Lei de Arbitragem dá
mostras disso, ao ressaltar o contraditório, igualdade das partes e imparcialidade
do árbitro como características normativas de rigorosa incidência sobre o proce-
dimento arbitral (art. 21, §2º, da Lei de Arbitragem).
Disso decorre que devido processo legal, ampla defesa, contraditório, direito
de ter seus argumentos séria e detidamente considerados e todos os demais prin-
cípios e garantias processuais são prontamente incidentes sobre a arbitragem. Mais
que isso: toda a lapidação teórica desenvolvida de há muito para os elementos,
condutas e estruturas atreladas à natureza jurisdicional do processo civil estatal
poderão ser repassados para arbitragem.
Foi por esse motivo que Edoardo Ricci afirmou:

[...] a sentença arbitral produz efeitos análogos àqueles próprios da


sentença judicial. Este último sentido é acolhido pelo Direito Brasileiro,
por força do art. 31 da Lei 9.307/96. Da mesma forma que a arbitragem
italiana (art. 806 et seq., Codice di Procedura Civile) a arbitragem bra-
sileira termina por decisão capaz de produzir os efeitos da sentença
judicial, o que tem um preciso significado no terreno da interpretação.
Produzindo efeitos idênticos aos da sentença judicial, a sentença arbi-
tral encontra, nos princípios que informam aquela, a mais adequada
disciplina.3

Essas conclusões compõem uma primeira premissa essencial para a cons-


trução dos argumentos deste parecer.

abrigá-lo sob o manto do direito processual constitucional, o que importa considerar seus institutos
à luz dos superiores princípios e garantias endereçados pela Constituição da República aos institutos
processuais. Isso implica também, conseqüentemente, incluir o processo arbitral no círculo da teoria
geral do processo, entendida esta muito amplamente como legítima condensação metodológica
dos princípios e normas regentes do exercício do poder” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Limites da
sentença arbitral e de seu controle jurisdicional. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos em
arbitragem, mediação e negociação. Brasília: Brasília Jurídica; Grupos de Pesquisa, 2003. v. 2, p. 20).
3
RICCI, Edoardo Flavio. Reflexões sobre o art. 33 da Lei de Arbitragem. Revista de Processo, v. 24, n. 93,
p. 45-59, jan./mar. 1999. p. 48.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 211

4  Uma segunda premissa: os vícios e defeitos da sentença arbitral


são os mesmos da sentença judicial
Se arbitragem é jurisdição e se todas as normas processuais constitucionais
fundamentais são aplicadas à arbitragem, então é fácil concluir que os mecanismos
de solução das controvérsias no campo judicial-estatal e no campo arbitral são
semelhantes. As estruturas do processo jurisdicional estatal e da arbitragem
possuem o mesmo ajuste, já que, por serem jurisdição, elas têm de respeitar as
mesmas regras relativas ao correto e adequado avançar sobre o caminho proce-
dimental existente entre a apresentação do pedido e o seu julgamento.
Para tornar mais evidente essa afirmação, pensemos no seguinte.
Sabemos que, no processo judicial tradicional, o magistrado está vinculado
ao que está delimitado no pedido. O que está no pedido (demanda) tem de ser
decidido no comando sentencial levando-se em consideração todos os argumen-
tos das partes envolvidas. Mas só o que está no pedido; só aquilo: nem mais, nem
menos, nem outra coisa. O comando sentencial tem uma justa medida, que é o
conteúdo do pedido. Há, portanto, uma correlação entre o pedido (o objeto do
processo) e o dispositivo sentencial, de modo que a validade da sentença pres-
supõe que ela não fique aquém, nem ir além, tampouco diga coisa estranha ao
objeto do processo, sob pena de macular as garantias constitucionais do contra-
ditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
Se, pois, a correlação entre pedido e dispositivo sentencial é imprescindível
ao exercício da jurisdição, também o é, pois, à arbitragem. Está mais do que clara,
portanto, a existência de uma necessária vinculação entre o pedido formulado na
arbitragem e o comando da sentença arbitral, que deverá ser observada para que
não se tenha uma sentença arbitral recheada de defeitos em razão do não cumpri-
mento das garantias do contraditório, do devido processo legal e da ampla defesa.
Sendo assim, e tendo em vista que podemos levar toda a construção teó­
rica do processo civil tradicional na parte relativa aos elementos e estruturas da
função jurisdicional para o melhor entendimento da arbitragem, tem-se que o
tratamento desconstitutivo que o processo civil dá para as sentenças judiciais
extra e ultra petita deverá ser utilizado nos casos de sentença arbitral que decida
fora dos limites do pedido. O tratamento que o processo civil tradicional dá para
as sentenças judiciais que violem a regra da congruência deverá ser aplicado aos
casos de sentenças arbitrais que não se atenham ao que foi expressamente tido
como objeto da controvérsia no compromisso arbitral.
É importante que isso fique bem claro para que os argumentos possam
avançar, principalmente porque parte substancial deste parecer cuidará da regra
da congruência objetiva aplicável às sentenças arbitrais.

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212 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

5  Ação anulatória de sentença arbitral: art. 33 da LArb –


Limitação da sentença arbitral ao objeto determinado no
termo de compromisso arbitral – Extrapolação dos limites –
Transgressão à regra da congruência objetiva
5.1  Introdução
Consoante antecipado no item precedente, parcela do presente parecer
versa sobre a inobservância da regra da congruência por parte do árbitro que deci-
diu o caso Empresa X vs. Empresa Y. Em outros termos, busca-se responder ao final
desta peça à seguinte indagação: a sentença arbitral impugnada na ação anulató-
ria se correlaciona com os elementos objetivos da demanda apreciada?
Inicialmente, cumpre salientar que, quando se fala em congruência, vêm à
mente os dispositivos constantes nos artigos 128 e 460 do CPC. De acordo com
esses dispositivos, a decisão deve ser plena; isto é, deve analisar todos os pedidos
deduzidos e mais aqueles denominados de pedidos implícitos, mas deve limitar-se,
como regra, a tais pedidos, não podendo ir além deles.
A percepção está correta, mas é necessário ir mais adiante.
A decisão jurisdicional (seja judicial, seja arbitral) não precisa ser congruente
apenas em relação à demanda que ela resolve: precisa também ser congruente em
relação aos sujeitos a quem atinge, além de ser intrinsecamente congruente. É por
isso que se pode falar em congruência externa e congruência interna da decisão.
A congruência externa da decisão diz respeito à necessidade de que ela seja
correlacionada, em regra, com os sujeitos envolvidos no processo (congruência
subjetiva) e com os elementos objetivos da demanda que lhe deu ensejo e da
resposta do demandado (congruência objetiva).
A congruência interna diz respeito aos requisitos para a sua inteligência
como ato processual. Nesse sentido, a decisão precisa revestir-se dos atributos da
clareza, coerência, certeza e liquidez.
Interessa-nos, neste momento, apenas a congruência externa objetiva. É fun-
damental examinar o alcance dos comandos normativos decorrentes dos artigos
128 e 460 do CPC. Ainda que esses comandos normativos estejam postos no CPC
para regular o processo judicial estatal, as ideias deles extraídas valem também
para o processo arbitral, em razão da identidade da natureza jurisdicional que
estabelecemos acima como premissa. Por isso é que a teorização em torno dos
artigos 128 e 460 do CPC enriquece o debate sobre os limites da sentença arbitral
e apresenta fórmulas de resolução para eventuais extrapolações destes limites
que ocorre no processo arbitral. É o que farei no subitem seguinte.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 213

5.2  A abrangência dos artigos 128 e 460, CPC, e a correlação com


os artigos 10, III, 26, III, e 32, IV e V, todos da LArb
Toda a atividade cognitiva daquele que é responsável pela construção de
uma decisão jurisdicional (seja um juiz, seja um árbitro) tem por escopo acumu-
lar fundamento suficiente para que ele possa resolver uma demanda que lhe foi
dirigida, seja ela uma demanda principal (como a que está contida numa petição
inicial), incidental (como a da reconvenção ou da denunciação da lide) ou recursal
(como a ocorre com a apelação no caso do processo judicial).
Daí se vê que a decisão deve guardar intrínseca relação com a demanda que
lhe deu causa. Há entre elas um nexo de referibilidade, no sentido de que a decisão
deve sempre ter como parâmetro a demanda e seus elementos. É por isso que
já se disse que, no processo judicial, a petição inicial é um projeto da sentença
que se pretende obter.4 Transportando esta mesma ideia de nexo de referibilidade
para o processo arbitral (já que arbitragem é jurisdição), temos que a sentença
arbitral também está cognitivamente delimitada pelo objeto do processo arbitral.
A propósito, até para aqueles que ainda não firmaram a convicção sobre a natu-
reza jurisdicional da arbitragem, não há dúvidas que a sentença arbitral tem seu
dispositivo cingido ao que está no objeto da demanda arbitral. Um exemplo disto
é Cândido Rangel Dinamarco, que afirmou:

Entre as regras fundamentais de direito processual, de indiscutível aplicação


à arbitragem, é a da correlação entre o pedido e o concedido, expressa em
termos negativos no veto às sentenças extra vel ultra petita partium. O juiz
decidirá nos limites subjetivos e objetivos da demanda proposta, sendo-lhe
vedado conceder ao autor mais que o pedido ou coisa diversa da pedida
(CPC, arts. 128 e 460). Descontadas as hipóteses de sentença exorbitante
à causa de pedir ou aos elementos subjetivos das causas (partes), sem
interesse para o tema proposto, a correlação de que se fala tem por parâ-
metro o objeto do processo, a saber, a pretensão insatisfeita que as par-
tes apresentam ao julgador, em busca de solução e possível satisfação. A
tutela jurisdicional possível, em cada caso, tem por dimensão máxima a
dimensão da pretensão posta como objeto do processo.5 (grifos nossos)

Pois justamente por existir essa referibilidade, o legislador, nos artigos 128 e
460 do CPC, determina que a sentença deve conter a análise e a decisão de todos

4
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil: Lei nº 5.869, de 11 de
janeiro de 1973. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. v. 3, Arts. 270 a 331. p. 155.
5
DINAMARCO. Limites da sentença arbitral e de seu controle jurisdicional. In: AZEVEDO (Org.).
Estudos em arbitragem, mediação e negociação, v. 2, p. 23.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
214 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

os pedidos deduzidos no processo e somente deles, não podendo ir além nem


fora do que foi pleiteado. A noção vale para todo tipo de pronunciamento decisó-
rio. E pode ser aproveitado integralmente, também, para a análise da correlação
entre o objeto (pedido) da arbitragem e a decisão arbitral.
Esses dois artigos do CPC dão, portanto, substância à chamada regra da con-
gruência da decisão judicial, por meio da qual se determina a adoção de determinada
conduta descrita no texto da lei para que se mantenha fidelidade aos princípios que
a ela sobrejacentes e à finalidade que lhe dá suporte.6
No primeiro caso, o princípio do contraditório.
Já a finalidade que dá suporte à regra da congruência é a exigência de cor-
relação entre o que foi pedido e o que foi decidido. Para que a decisão tenha
sentido, ela tem de se relacionar por meio de um vínculo de pertinência com o
conteúdo do pedido, de modo que o conteúdo versado no momento da decisão
decorra exatamente da análise do conteúdo do pedido. Assim, a decisão será sen-
sata e satisfará com maior propriedade as exigências de segurança jurídica e de
pacificação social.
A regra da congruência é, também, uma conseqüência do princípio do con­
traditório. Há necessidade de a decisão corresponder ao que foi pedido por uma
das partes e foi respondido pela outra; há necessidade de corresponder ao que foi
discutido e rediscutido pelas partes. Por isso que a parte tem o direito de manifes-
tar-se sobre tudo o que possa interferir no conteúdo da decisão. Assim, o prolator
da decisão deverá ater-se ao que foi demandado exatamente porque as partes
somente puderam manifestar-se em relação a isso.
Pois essa mesma ideia vale para a decisão arbitral.
Os artigos 10, III, 26, III, e 32, IV e V, todos da LArb, são decisivos para com-
provar que a regra de congruência construída na tradição do processo civil estatal
se aplica às arbitragens. Como se não bastasse a constatação de que se aplicam
à arbitragem todas as normas processuais fundamentais, inclusive o princípio do
contraditório e a regra da congruência, daquele corolário, o próprio texto da Lei
de Arbitragem (LArb) reforça essa ideia. Esse reforço ocorre quando a LArb diz
que a matéria objeto da arbitragem, ou seja, o objeto do litígio,7 deverá constar

6
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7. ed. São Paulo:
Malheiros, 2007. p. 78.
7
José Cretella Neto critica a expressão “matéria da arbitragem” posta no inciso III do art. 10 da
LArb. Segundo ele, o “inciso III apresenta redação pouco técnica, pois não é suficiente indicar a
matéria da arbitragem (ex.: um contrato de distribuição de mercadorias importadas), mas o objeto
do litígio, ou seja, a lide, como no processo judicial” (CRETELLA NETO, José. Comentários à lei de
arbitragem brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 76).

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Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 215

do compromisso arbitral (art. 10, III, da LArb) e o dispositivo da sentença arbitral


deverá resolver todas as questões submetidas à arbitragem (art. 26, III, da LArb),
não podendo haver decisão fora dos limites do compromisso arbitral (art. 32, IV,
da LArb) ou decisão que não decida tudo o que neste foi livremente estipulado
pelas partes (art. 32, V, da LArb).
Antes de prosseguir, cabe uma observação.
A despeito de haver nos artigos 128 e 460 do CPC uma referência direta
apenas aos elementos objetivos da demanda (causa de pedir e pedido), é intuitivo
que a decisão deve guardar congruência também em relação aos sujeitos envol-
vidos no processo (elemento subjetivo da demanda) e com os fundamentos de
defesa suscitados pelo demandado.
Percebe-se, então, que na perspectiva objetiva da regra da congruência, a
atividade jurisdicional está limitada não apenas pelo pedido deduzido em juízo,
mas também pelos fundamentos de fato suscitados na demanda e na defesa.
Assim, julgar pedido formulado com base em fato essencial diverso daquele vei-
culado pelas partes é julgar fora dos limites da demanda.
Se o magistrado vai além desses limites, a sua decisão é ultra petita; se fica
fora deles, é extra petita; se fica aquém, é citra petita.
Como se vê, até mesmo as expressões utilizadas para qualificar a decisão
que desborda dos limites subjetivos ou objetivos da demanda fazem apenas refe-
rência ao pedido como parâmetro de limitação do exercício jurisdicional. Vallisney
de Souza Oliveira, ao tratar dos casos em que a decisão não se correlaciona com
os fundamentos da demanda, prefere fazer referência aos vícios extra causa petendi,
ultra causa petendi e citra causa petendi.8 Sem embargo desse apuro técnico, as
expressões ultra, extra e citra petita serão aqui utilizadas para todas as hipóteses
tão somente por uma questão de tradição e para simplificar a exposição, devendo
ser compreendidas em seu sentido lato.
Não há dúvidas, então, que a sentença arbitral pode padecer dos mesmos
vícios de uma sentença judicial, mesmo e principalmente daqueles que decorrem
da não observância da regra da congruência.
Essa é a tese mais corrente (e correta) na doutrina.
No entanto, é preciso ir mais além.
A limitação cognitiva do magistrado ao pedido e aos fundamentos das
partes no momento da decisão gera, como contrapartida, um dever de esgotar

OLIVEIRA, Vallisney de Souza. Nulidade da sentença e o princípio da congruência. 2. ed. São Paulo:
8

Saraiva, 2009. p. 255.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
216 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

analiticamente todos os argumentos apresentados pelas partes; inclusive e


principalmente, os argumentos jurídicos. O processo é um instrumento demo-
crático e de natureza dialógica, razões pelas quais há a pressuposição de que
o magistrado, até como uma demonstração explícita da natureza democrática
do poder jurisdicional, deverá levar em consideração todos os argumentos jurí-
dicos apresentados pelas partes para dar cumprimento ao dever de motivação
expresso no art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988.
Os argumentos jurídicos das partes são tão relevantes, que não podem ser
simplesmente desprezados por aquele que vai decidir a matéria objeto do litígio.
Eles têm de exercer influência determinante na construção argumentativa da
decisão jurisdicional para que essa não seja um simples monólogo. O processo —
seja judicial, seja arbitral — tem impacto decisivo sobre a vida e patrimônio das
pessoas de modo tal que não podemos torná-lo um monólogo daquele encar­
regado de exercer a jurisdição, seja ela a estatal, seja a privada (arbitragem). Ele
tem de ser nitidamente dialético, o que significa que os argumentos jurídicos das
partes têm de estar de alguma forma referenciados na decisão, seja para serem
acolhidos, seja para serem refutados.
O Min. Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, já disse a mesma coisa
que acabo de escrever em voto no MS nº 25.787/DF, só que com as vestes dos
direitos fundamentais. Para ele, a parte tem o direito fundamental de ver seus
argumentos detidamente apreciados pelo órgão julgador, mesmo que ao final do
processo cognitivo este venha a considerá-los expressamente inidôneos. A men-
ção à inidoneidade argumentativa, aliás, tem de ser expressa, explícita. A propósito,
vale, pela riqueza de conteúdo, a transcrição de parte do voto, principalmente no
tópico em que demonstra a existência de um direito fundamental das partes em ver
seus argumentos considerados de alguma forma:

Apreciando o chamado Anspruch auf rechtliches Gehör (pretensão à tutela


jurídica) no direito alemão, assinala o Bundesverfassungsgericht que essa
pretensão envolve não só o direito de manifestação e o direito de infor-
mação sobre o objeto do processo, mas também o direito do indivíduo de
ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar
(cf. Decisão da Corte Constitucional alemã – BverfGE 70, 288-293; sobre
o assunto, ver, também, PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte
– Staatsrecht II. Heidelberg, 1988, p. 281; BATTIS, Ulrich; GUSY, Christoph.
Einführung in das Staatsrecht. 3. ed. Heidelberg, 1991, p. 363-364).
Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que cor-
responde exatamente à garantia consagrada no art. 5º, LV, da Constituição,
contém os seguintes direitos:

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Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 217

1) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador


a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os ele-
mentos dele constantes;
2) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defen-
dente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os
elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;
3) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que
exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit
und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas (Cf.
PIEROTH; SCHLINK. Grundrechte – Staatsrecht II. Heidelberg, 1988, p. 281; BATTIS,
Ulrich; GUSY, Christoph. Einführung in das Staatsrecht. 3. ed. Heidelberg, 1991,
p. 363-364; Ver, também, DÜRIG/ASSMAN. In: MAUNS-DÜRIG. Grundgesezt-
Kommentar. Art. 103, vol. IV, nº 85-99).
Sobre o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão julgador
(Recht auf Berücksichtigung), que corresponde, obviamente, ao dever do juiz ou
da Administração de a eles conferir atenção (Beachtenspflicht), pode-se afirmar
que ele envolve não só o dever de tomar conhecimento (Kenntnisnahmepflicht),
como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas
(Erwägungspflicht) (Cf. DÜRIG/ASSMAN. In: MAUNS-DÜRIG. Grundgesezt-
Kommentar. Art. 103, vol. IV, nº 97).
É da obrigação de considerar as razões apresentadas que deriva o dever de
fundamentar as decisões (Decisão da Corte Constitucional – BverfGE 11,
218 (218); Cf. DÜRIG/ASSMAN. In: MAUNS-DÜRIG. Grundgesezt-Kommentar.
Art. 103, vol. IV, nº 97). (STF. MS nº 25.787/DF, Pleno. Rel. Min. Gilmar Mendes.
Julg. 08.11.2006. DJ, 14 set. 2007, grifos nossos)

Pode-se ver que a falta de conhecimento e consideração séria e detida sobre


os argumentos jurídicos apresentados pelas partes também gera uma sentença
que disse menos do que deveria; uma sentença citra petita, pois. Se não analisou
detidamente os argumentos de direito de uma das partes (principalmente da que
saiu derrotada no processo arbitral), o árbitro disse menos que do estava obrigado
a dizer.
Aliás, o dever de motivação nas decisões proferidas em arbitragens é tão
expressivo quanto no caso da jurisdição estatal por uma razão muito simples:
as partes escolheram determinada pessoa para ser árbitro porque depositaram
nela a confiança de que teriam alguém diligente e competente tecnicamente na
apreciação do fato e de todos, absolutamente todos os argumentos jurídicos das
partes. A pessoa escolhida para ser árbitro não estará sob pressão das contin-
gências decorrentes do excesso de serviços e/ou pela necessidade de decidir um
grande número de causas para serem lançadas na tabela de estatística dos órgãos
de controle do Judiciário. E isso simplesmente a obriga a analisar detidamente e

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218 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

com extrema seriedade todos os argumentos jurídicos apresentados pelas partes,


mesmo que seja para refutá-los (o que deverá fazer expressamente).
Se assim o é, então nós temos:

a) sentença (judicial/arbitral) ultra petita


O julgamento ultra petita ofende os princípios do contraditório e do devido
processo legal, visto que leva em conta fatos ou pedidos não discutidos no pro-
cesso, ou ainda porque estende seus efeitos a sujeito que não pôde participar em
contraditório da causa.

b) sentença (judicial/arbitral) citra petita


O julgamento citra petita viola os princípios da inafastabilidade do controle ju-
risdicional e da igualdade das partes e o dever de motivação (art. 93, IX, da CF/1988),
quando se revela pela ausência de manifestação sobre pedido ou pela ausência de
deliberação quanto a determinado sujeito da relação processual. Ofende, ainda, o
princípio do contraditório, sob sua perspectiva substancial, quando o magistrado
deixa de analisar fundamento relevante — de fato ou de direito — invocado pela
parte. Aqui, porque não se manifestou sobre fatos ou argumentos relevantes das par-
tes (e, não, por capítulos), a sentença citra petita deve ser anulada.

c) sentença (judicial/arbitral) extra petita


Já a decisão extra petita fere todos esses princípios, tendo em vista que con­
substancia hipótese em que o magistrado/árbitro deixa de analisar algo que
deveria ser apreciado e examina outra coisa em seu lugar.9 Será extra petita a deci­
são que: (i) tiver natureza diversa ou concede ao demandante coisa distinta da
que foi pedida; (ii) levar em consideração fundamento de fato não suscitado por
qualquer das partes, em lugar daqueles que foram efetivamente suscitados; ou
(iii) atingir sujeito que não faz parte da relação jurídica processual.
A decisão extra petita difere da ultra petita porque nessa o magistrado analisa
o pedido ou o fundamento de fato invocado pela parte, mas vai além dele, enquanto
naquela (extra petita) sequer se analisa o pedido ou o fundamento invocado pela
parte: analisa-se outro pedido ou outro fundamento, ambos não invocados.
Pode-se afirmar, portanto, que aqui o órgão jurisdicional inventa, dispondo sobre:
(i) uma espécie de provimento ou uma solução não pretendidos pelo demandante; (ii)
um fato não alegado nos autos; ou (iii) um sujeito que não participa do processo.10

9
OLIVEIRA. Nulidade da sentença e o princípio da congruência, p. 257.
Naturalmente, o verbo “inventar” é utilizado aqui com objetivo tão somente mnemônico. Assim, ainda
10

que o fato analisado na decisão tenha, efetivamente, ocorrido, ele seria “inventado” em relação à reali-
dade dos autos do processo. Trata-se apenas de uma fórmula para facilitar o entendimento.

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Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 219

Exemplo de ofensa à congruência objetiva se dá quando a parte pede que


o adversário seja condenado ao pagamento de uma quantia e o juiz, sem analisar
esse pedido, o condena à entrega de uma coisa determinada; ou ainda quando o
juiz, ao decidir, leva em consideração, na sua motivação, fundamento de fato não
alegado por qualquer das partes, e cuja análise não poderia ter sido feita de ofício.
Esses são alguns exemplos típicos de error in procedendo.
Se isso acontece, impõe-se a invalidação de toda a decisão, tendo em vista
que, em regra, não há o que possa ser aproveitado. Naturalmente, se a decisão
contém vários capítulos e apenas quanto a um deles se mostra extra petita, bastará
que se anule o capítulo viciado, preservando-se os demais.
Tecidas as considerações prévias que consideramos relevantes para a com-
preensão da matéria, especialmente a vinculação do julgador aos fundamentos
de fato e de direito expostos na demanda, passarei a examinar de agora em diante a
hipótese concreta submetida à presente consulta em razão dos argumentos desse
tópico 5.

5.3  Análise do caso concreto em razão da tese da congruência da


demanda arbitral com a sentença arbitral
5.3.1  A não consideração de argumentos relevantes da defesa
e a sentença citra petita: ofensa ao contraditório, à ampla
defesa e à igualdade das partes – Sentença arbitral anulável
em sua inteireza
Falei na apresentação dos elementos teóricos (ver os seis últimos parágrafos
do item 5.2 anterior), que todo e qualquer órgão jurisdicional (estatal ou privado)
possui um dever de exaurir analiticamente todos os argumentos de fato e prin-
cipalmente de direito apresentados pelas partes. Pela natureza dialógica do pro-
cesso jurisdicional e pelo seu caráter democrático, aquele encarregado de decidir
um litígio tem de explorar com seriedade e profundidade todos os argumentos
jurídicos que se lhe apresentam.
No caso sob consulta, a Empresa Y apresentou, dentre os seus argumentos
fático-jurídicos, as seguintes teses de defesa: a) a Empresa X não cumpriu um re-
quisito contratual imprescindível para que se pudesse falar em “pagamento/inde­
nização por demanda mínima” (exceção de contrato não cumprido); b) o Anexo I
ao contrato celebrado entre as partes não tem como função fixar um patamar de
demanda mínima (algo global) — como o quer a Empresa X na inicial —, mas, sim,
preestabelecer o valor unitário de cada serviço a ser prestado pela Empresa X (algo

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
220 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

individual); por este motivo, o Anexo I não se prestaria a qualquer cálculo aritmético
destinado a alcançar um valor supostamente devido a título de “demanda mínima”,
como também quer a Empresa X na peça de instauração da arbitral.
Esses dois argumentos de defesa expostos nas alíneas “a” e “b” acima foram
expressamente reforçados nas alegações finais da Empresa Y.
Mas a sentença arbitral não analisou séria e detidamente esses argumentos
de defesa, como impõe o dever de motivação já explorado teoricamente no item
5.2 deste parecer. A sentença arbitral não levou em consideração os importantís-
simos argumentos da defesa. Ela não contemplou, com serenidade, apreensão e
isenção de ânimo, as teses de que o Anexo I, apesar de reforçar a obrigação con-
tratual da Empresa X de informar adequadamente o número de equipes a serem
mobilizadas para a execução dos serviços, tinha somente a função de quantifi-
car monetária e individualmente determinados serviços. E se esse Anexo tinha
uma função individualizada, ele não poderia servir de base para qualquer cálculo
aritmé­tico de algo global e dependente de variáveis não cumpridas pela outra
parte como o era a “demanda mínima”. Porém, ao desconsiderar isso, a sentença
arbitral trilhou exatamente o caminho inverso, o que demonstra que a não con-
templação das razões de defesa foi determinante para que se chegasse àquele
resultado condenatório da Empresa Y.
Assim, a sentença arbitral não considerou analítica e detidamente alguns
argumentos relevantes da defesa. Tem-se, portanto, uma sentença arbitral citra
petita, que violou o contraditório e à igualdade das partes. Por esses motivos, a
sentença arbitral tem de ser anulada por inteiro. A sentença judicial que vier a
decidir a ação anulatória manejada contra a mencionada sentença arbitral deverá
formular, então, um juízo de total procedência da demanda.

5.3.2  O acréscimo de coisa não pedida na parcela condenatória


e a sentença arbitral ultra petita: ofensa ao contraditório e à
ampla defesa – Sentença arbitral anulável
Transcrevi na exposição resumida do caso sob consulta (tópico 1 deste pa-
recer) o pedido da Empresa X contido na petição de solicitação de arbitragem. Lá
está dito que aquela estipulou como pedido o seguinte:

3 - Seja a requerida condenada a efetuar o pagamento da indenização


referente a 70% (setenta por cento) da demanda mínima nos termos do
instrumento contratual firmado pelas partes, no valor de R$850.732,66
(oitocentos e cinqüenta mil, setecentos e trinta e dois reais e sessenta e
seis centavos);

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Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 221

4 - Seja compelida a Ré a cumprir o contrato a partir da distribuição desta,


com o conseqüente envio da demanda mínima diária de serviços, sob
pena de conversão em perdas e danos; [...].

Tem-se, portanto, que os pedidos postos pela Empresa X na peça por meio
da qual requer a instauração do juízo arbitral são somente o pagamento de uma
indenização por não cumprimento da obrigação de demanda mínima até o ins-
tante da apresentação do pedido de abertura da arbitragem. Somado a isto há
um pedido de cumprimento da obrigação de demanda mínima diária por parte
da Empresa Y a partir da data de distribuição da petição por meio da qual se reque-
reu a instauração da arbitragem.
Porém, no termo de compromisso arbitral, a matéria objeto da jurisdição arbi­
tral foi definida com maior precisão. Aqui ficou decidido que ela seria cobrança de
valores supostamente devidos pela demandada à demandante em razão de inadimple-
mento contratual. Isso foi escrito claramente no item 2 do compromisso. Portanto,
no ato de formalização do negócio jurídico processual chamado compromisso arbi-
tral, as partes livremente estipularam que a demanda só se refere a valores hipote-
ticamente devidos pela Empresa Y a Empresa X. Isto significa dizer que só estavam
sendo discutidos no processo arbitral fatos passados e consequências jurídicas que
igualmente se materializaram no passado; entendam-se, anteriores à dissolução do
contrato de prestação de serviços cuja cláusula compromissória deu suporte à cele-
bração de outro negócio jurídico: o compromisso arbitral.
Pela leitura do livremente estipulado pelas partes no item 2 do compromisso,
tem-se, portanto, que a demanda arbitral entre Empresa Y e Empresa X não conti-
nha em seu objeto decisório qualquer matéria relativa a perdas e danos, a obriga-
ções de fazer e de não fazer, e/ou muito menos conversão de obrigações de fazer
em perdas e danos.
Isto ficou ainda muito mais claro, aliás, com o próprio comportamento da
Empresa X, que afirmou peremptoriamente que a demanda — ou seja, o objeto
litigioso da arbitragem — não continha qualquer pedido para além de determi-
nada data. Vale a transcrição dos trechos dessa petição da Empresa X por serem
reveladoras do que se acabou de dizer:

A presente ação contempla o período do início do contrato, até o mês de


novembro de 2010, quando a ação foi ajuizada, sendo evidente o período.
Nota-se pela simples leitura da inicial, que não há pedido genérico com
relação ao período futuro que ainda pendia de execução quando da dis-
tribuição da ação, isso porque, diante de todos os percalços enfrentados
pela Autora vislumbrava-se que a rescisão contratual aconteceria em
pouco tempo. [...]

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222 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

Todos os documentos acostados pela Ré às fls. 395/503, compreendem


o período de dezembro de 2010, janeiro de 2011, portanto, completa-
mente fora do período discutido no presente procedimento, que trata do
início do contrato, até o início do mês de novembro de 2010.
Assim, qualquer menção aos documentos de fls. 395/503 para a resolu-
ção do presente caso é completamente incabível, pois a realidade contra-
tual foi alterada com a interposição do procedimento arbitral, ou seja: [...]
Ainda assim, cumpre esclarecer que todos os documentos, um a um, de
fls. 397; 408 e ss.; 414; 416; 418 e ss.; 433; 435; 439 etc., tratam dos meses
de dezembro de 2010 e janeiro de 2011; muito além do período delimi-
tado pela inicial.
A inicial foi protocolizada na Câmara de Arbitragem em 24 de novembro de
2010; e delimitou claramente a demanda até o mês de novembro de 2010.
Nota-se no petitório exordial que há menção sobre a possibilidade de
inde­nização sobre frustração de expectativa de faturamento, porém,
nada foi pedido nesse sentido, o que deixou de fora o período de dezembro
de 2010 a abril de 2011, quando o contrato encontraria o seu termo final.11

Se existia alguma dúvida sobre os limites da demanda arbitral, ela se dissi-


pou com a leitura do trecho transcrito acima. E ainda que alguém tenha duvidado
da clareza do objeto da demanda arbitral delimitado no item 2 do compromisso,
não há mais possibilidade alguma de controvérsia sobre os limites da demanda
arbitral após essa manifestação da Empresa X. Ela poderia, inclusive, ser interpre-
tada como um ato explícito de renúncia dentro do processo arbitral — negócio
jurídico processual unilateral dispositivo da pretensão processual.
Estranhamente, porém, foi prolatada em momento posterior uma sentença
arbitral que, além de acolher o pedido indenizatório existente em razão da con-
trovérsia sobre a obrigatoriedade ou não de pagamento por “demanda mínima
de serviços”, construiu um trecho condenatório completamente estranho ao
objeto delimitado pelas partes para a arbitragem. Por meio desse trecho foi deter­
minado o pagamento pela Empresa Y de R$691.406,10 (seiscentos e noventa e um
mil, quatrocentos e seis reais e dez centavos) a título de “perdas e danos” pelos “5
(cinco) meses remanescentes do Contrato”.
Nitidamente, a sentença arbitral proferida no caso Empresa X vs. Empresa Y
acolheu um pedido inexistente e que sequer foi debatido pelas partes. Con­denação
em perdas e danos pelos “5 (cinco) meses remanescentes do Contrato” (como diz
a sentença arbitral) não foi objeto do contraditório. O objeto da arbitragem deli-
mitado no termo de compromisso não contém essa previsão. E há manifestação

Petição da Empresa X apresentada ao árbitro em *** de *** de 2011.


11

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Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 223

clara e explícita da proponente Empresa X no sentido de que qualquer coisa


compreendida a data da solicitação de instauração da arbitragem até a data
final do contrato de prestação de serviços não estava sendo discutida na arbitra-
gem. Assim, o período de cinco meses entre a data da solicitação de instauração
da arbitragem e a data de dissolução do contrato de prestação de serviços foi
expressamente excluído do objeto da lide arbitral no termo de compromisso.
Posteriormente, isto foi reforçado pela própria manifestação da proponente
Empresa X na petição que contém uma renúncia, cujos trechos foram transcritos
acima.
A sentença arbitral proferida no caso Empresa X vs. Empresa Y é ultra petita
e, portanto, nula na parte relativa à condenação em perdas e danos. A sentença
judicial que vier a decidir a ação anulatória manejada contra esta parte da sentença
arbitral deverá formular, então, um juízo de procedência da demanda.

5.3.3  A não fundamentação da parte da sentença arbitral relativa


ao modo de calcular as perdas e danos e a sentença citra
petita: ofensa ao contraditório e à igualdade das partes –
Sentença arbitral viciada
Como já foi dito neste parecer, a parte tem direito a ter todos os seus argu-
mentos jurídicos séria e detidamente considerados por aquele que decidirá a con-
trovérsia. Isso é uma característica do exercício da jurisdição no Brasil, em razão do
seu caráter democrático e da garantia de que haverá um devido processo legal cal-
cado no contraditório, na ampla defesa e na igualdade das partes.
No caso sob consulta, a sentença arbitral foi peremptória em acolher um
pedido de “conversão em perdas e danos” que não foi delimitado no termo de
compromisso arbitral e se referia a período posterior à petição de instauração da
arbitragem formulada pela Empresa X.
Aliás, é importante deixar claro, a própria Empresa X disse peremptoriamente
que a demanda não continha qualquer pedido para além de novembro de 2010.
Mesmo assim, a sentença impôs à consulente uma condenação decorrente da
conversão em perdas e danos (algo que já foi analisado neste parecer no subitem
5.3.2 acima sobre a sentença ultra petita) pelo período pós-novembro de 2010,
que não era matéria objeto da arbitragem. Como se isso já não fosse o bastante
para invalidar a sentença na parte da condenação em perdas e danos, a sentença
arbitral ainda efetuou um cálculo obscuro e sem consistência. Ela não disse o por-
quê de ter chegado àquela operação aritmética. O trecho da sentença arbitral que
diz respeito a isso é lacônico e merece transcrição:

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
224 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

No tocante ao pedido de conversão em perdas e danos, resta claro a


impossibilidade de outra resolução frente à rescisão contratual.
Apesar do referido pleito ser ilíquido e não haver apresentação dos cál-
culos de liquidação pela Demandante liquido os mesmos por se tratar de
simples cálculo aritmético prestigiando o princípio da celeridade proces-
sual, [...]. (grifos nossos)

“Resta claro” é expressão retórica que não cabe numa sentença. “Resta claro”
é um mero estado subjetivo de quem está vendo algo e não sabe explicar as razões
ou motivos para aquilo existir também para os outros, de modo que esses possam
exercitar um controle intersubjetivo sobre a afirmação de existência desse algo.
“Resta claro” não é fundamentação de uma sentença que pretenda ser tida como
merecedora desse nome. Mais: dizer que o pedido ilíquido pode ser liquidado por
se tratar de simples cálculo aritmético sem que para isso tenham sido ouvidas as
partes (como foi no caso), é ofensa explícita ao devido processo legal, ao contradi-
tório e à ampla defesa, além de violar o art. 26, III, da LArb.
O trecho acima transcrito revela, então, falta de fundamentação. A sentença
arbitral é citra petita e houve ofensa ao contraditório, à ampla defesa e à igualdade
das partes. Por esses motivos (além dos que já foram ditos nos subitens anteriores),
a sentença arbitral tem de ser invalidada. A sentença judicial que vier a decidir a
ação anulatória manejada contra a mencionada sentença arbitral deverá formular,
então, um juízo de procedência.

6  Fundamentação da sentença arbitral inteiramente copiado de


um artigo da internet não citado como fonte: vício de motivação
e violação das obrigações de diligência, competência e livre
convencimento – Situação inusitada (para dizer o mínimo) –
Desprestígio para a formação de uma cultura da arbitragem
Deixei para esse ponto do parecer algo que me chamou muito a atenção.
Meus trabalhos de professor universitário, de consultor jurídico e de advogado
me permitem tomar contato com inúmeras situações inusitadas. Mas, sincera-
mente, não me recordo de ter visto algo tão insólito como o que li, reli e treli outra
vez no caso que me chegou para consulta.
A fundamentação de parte determinante da sentença arbitral do caso sob
consulta é uma cópia literal de um artigo jurídico colocado na internet sem que a
fonte tenha sequer sido citada. Isso mesmo: uma sentença cuja fundamentação é
a transcrição literal de um artigo jurídico quase integralmente obtido pela inter­net.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 225

Trata-se de um escrito de Gustavo Rene Nicolau com o título “Implicações práticas


da boa-fé objetiva” e inserido no portal Âmbito Jurídico.12 O árbitro não citou essa
fonte e tomou o que está escrito no artigo jurídico da internet como se fossem
palavras suas. Tentou demonstrar que elas foram escritas a partir do seu conhe-
cimento jurídico e da sua capacidade de livremente estabelecer os argumentos
jurídicos que levarão lógica e impreterivelmente a determinada conclusão da sen-
tença. Pior: o artigo jurídico da internet que foi copiado na sentença arbitral traz
inúmeras considerações teóricas e citações de doutrina sobre a boa-fé contratual e
boa-fé objetiva que sequer foram objetos de contraditório entre as partes.
Não há dúvida de que esta situação sui generis abala qualquer confiança que
as partes possam ter em relação à arbitragem. A sentença não se revelou como
expressão de um ato de diligência, inteligência e competência técnica daquele
em quem as partes depositaram toda a confiança, como determinam o caput e o
§6º do art. 13 da LArb. Quando se escolhe alguém para ser árbitro, pressupõe-se
que o escolhido seja capacitado para a tarefa. Alguém que dedicará boa parte
do seu tempo e de sua atenção para resolução da controvérsia. Principalmente,
alguém que, após estudar o caso cuidadosamente, empregará seus melhores
esforços na construção de uma solução justa do caso e não delegará as tarefas
de fundamentação ou de decisão a outra pessoa.
Neste caso, ocorreu justamente o contrário. Na prática, o árbitro não apre-
sentou os fundamentos de sua decisão: limitou-se a copiar literalmente um ar-
tigo jurídico da internet. Com isso, delegou, ainda que indiretamente, a tarefa
de decidir a controvérsia submetida à arbitragem com diligência e competência
que lhe foi atribuída para outro. A sentença não foi um ato pensado; foi uma
contrafação. Pois se assim o é, o ato de copiar o texto jurídico da internet se con-
figura num vício de motivação que fulmina a sentença arbitral por inteiro, além
de revelar uma predisposição para julgar em favor de uma das partes (no caso, a
Empresa X) que macula a imparcialidade e a igualdade entre as partes. Para pio-
rar, esta sentença inusitada desprestigia um instituto belíssimo e de excelência
como a arbitragem, num país já cheio de preconceitos e entraves culturais à sua
ampla utilização.
Por esse motivo, a sentença arbitral proferida no caso Empresa X vs. Empresa
Y deve ser invalidada por vício de motivação.

NICOLAU, Gustavo Rene. Implicações práticas da boa-fé objetiva. Âmbito Jurídico, Rio Grande,
12

XIV, n. 87, abr 2011. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link


=revista_artigos_leitura&artigo_id=9107>.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
226 Fredie Didier Jr., Leandro Aragão

7  Inexistência de requisito de validade da sentença arbitral: o


procedimento arbitral não respeitou nem mesmo o procedimento
interno previsto no regulamento da Câmara de Arbitragem –
Violação da convenção de arbitragem
O último ponto diz respeito a um requisito imprescindível à validade da sen-
tença arbitral.
Ela não foi previamente aprovada pela Câmara de Arbitragem como exige
o seu regulamento em determinados itens. Esses itens exigem que, antes da assi-
natura da sentença arbitral, um esboço dessa sentença seja apreciado e aprovado
pela Câmara de Arbitragem, que nele poderá efetuar até mesmo modificações
de natureza formal e, o mais importante, poderá chamar a atenção para pontos de
relevância a serem estritamente observados na elaboração do documento final.
Essa última hipótese se revela de extrema importância no caso sob consulta por-
que os inúmeros defeitos da sentença arbitral aqui em análise poderiam ter sido
evitados. Assim, como não há nos autos arbitrais qualquer informação no sentido
de um esboço da sentença arbitral ter sido submetido à avaliação e aprovação da
Câmara de Arbitragem, como exige o regulamento (que é parte da convenção
de arbitragem), a sentença arbitral deve ser anulada também por este motivo.

8  Conclusão
Pelas razões expostas até aqui, conclui-se:
a) a sentença arbitral proferida no caso Empresa X vs. Empresa Y não consi-
derou analítica e detidamente alguns argumentos relevantes da defesa e
isso a torna uma sentença citra petita, por vício de motivação, e deve ser
invalidada;
b) essa sentença arbitral acolheu um pedido completamente inexistente e
que sequer foi debatido pelas partes, com o que se tornou uma sentença
ultra petita, devendo, portanto, ser invalidada na parte relativa à conde-
nação em perdas e danos;
c) ainda em relação à condenação em perdas e danos, a sentença carece de
fundamentação, sendo, pois, citra petita e violando o contraditório, a am-
pla defesa e a igualdade das partes; também por esse motivo a sentença
arbitral tem de ser invalidada;
d) a fundamentação de parte determinante da sentença arbitral do caso sob
consulta é uma cópia literal de um artigo jurídico colocado na internet, o
que também gera um vício de motivação e viola os deveres de diligência,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
Sentença arbitral – Princípios constitucionais do processo – Inobservância do contraditório,da igualdade das partes... 227

imparcialidade e competência técnica do árbitro que proferiu a decisão,


devendo a sentença arbitral ser invalidada por esse motivo;
e) como não há nos autos arbitrais qualquer informação no sentido de um
esboço da sentença arbitral ter sido submetido à avaliação e aprovação
da Câmara de Arbitragem, como exige o regulamento (que é parte da
convenção de arbitragem), a sentença arbitral deve ser invalidada por falta
de um requisito essencial de validade.
Por fim, é importante dizer que a sentença arbitral desse caso sob consulta
deve ser anulada pelo Poder Judiciário para que se possa prestigiar o instituto da
arbitragem, por mais paradoxal que isso possa parecer num primeiro momento.
O Poder Judiciário, aliás, vem reiteradamente valorizando a arbitragem. Inúmeras
decisões do Superior Tribunal de Justiça e de Tribunais estaduais têm apontado
na direção de prestigiar a arbitragem e a sentença nela produzida. Mas, nesse
caso, a anulação de uma sentença arbitral tão absurda e recheada de defeitos
representará uma demonstração por parte do Poder Judiciário de que arbitragem
é coisa séria e merece ser adequadamente tutelada. Diante de casos esdrúxulos
como esse, é muito importante que o Poder Judiciário não tenha receio de anular
decisões arbitrais proferidas em desrespeito à Lei de Arbitragem e à Constituição
Federal, até como forma de aumentar a credibilidade institucional da arbitragem
perante toda a população. E em países como o nosso, onde ainda há inúmeros
preconceitos e resistências culturais contra a arbitragem, dir-se-ia até mais: é impres-
cindível que o Poder Judiciário assim o aja.
É o parecer.

Cidade de Salvador, Bahia, em 15 de agosto de 2011.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DIDIER JR., Fredie; ARAGÃO, Leandro. Sentença arbitral: princípios constitucionais do processo:
inobservância do contraditório, da igualdade das partes e da ampla defesa: regra da congruên-
cia objetiva: árbitro que não cumpre os deveres de diligência e competência. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012. Parecer.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 205-227, out./dez. 2012
NOTAS E COMENTÁRIOS
Discurso ao homenageado no
Congresso de Uberaba de Direito
Processual – VI Edição: Dr. Gilberto
Martins Vasconcelos

Claudiovir Delfino
Advogado. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.
Membro do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados
do Brasil. Árbitro da Câmara de Arbitragem de Minas Gerais.

Lúcio Delfino
Advogado. Doutor em Direito. Membro do Instituto
Brasileiro de Direito Processual. Membro do
Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

Por deferência dos doutores Fernando Rossi e João D’Amico coube-nos o


privilégio de saudar Gilberto Martins Vasconcelos, homenageado no Congresso de
Uberaba de Direito Processual – VI Edição. Tarefa fácil e honrosa.
A homenagem prestada nesta oportunidade é, a exemplo do que ocor-
reu nos outros cinco eventos, o reconhecimento pelo Instituto dos Advogados
de Minas Gerais (IAMG), pelo Centro de Estudos e Promoção ao Acesso à Justiça
(CEPAJ) e pela Universidade de Uberaba (UNIUBE) da importante contribuição
dada pelo homenageado à sociedade, a todas as entidades alhures indicadas, à
OAB-MG e à gloriosa classe dos advogados, que o tem como exemplo maior, por
honrá-la e dignificá-la.
Gilberto Martins Vasconcelos, filho de Vaz de Melo Vasconcelos e Araci
Martins Vasconcelos, casado com Suely Ferreira Vasconcelos, pai de Beto, Breno
e Ligia, nasceu em Delfinópolis transferindo-se para Uberaba com 17 anos de
idade. Ingressou na Faculdade de Direito do Triângulo Mineiro, em 1967, hoje
UNIUBE. Optou muito cedo pelo curso de Direito, acreditando ser possível ao
advogado promover a justiça e, particularmente a justiça social. Cursando o pri-
meiro ano, portanto ainda calouro, tornou-se Presidente do Centro Acadêmico
(DALO), àquela época com atuação política intensa. A partir de então filiou-se a
grupos que atuavam contra a ditadura instalada àquela época, a ponto de aban-
donar seus estudos para se dedicar inteiramente, de corpo e alma, aos movimen-
tos sociais que eclodiram no País. Os membros do movimento de que fazia parte

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 231-232, out./dez. 2012
232 Claudiovir Delfino, Lúcio Delfino

passaram para a clandestinidade, considerados pela ditadura como subversivos,


sendo cassados pela força da repressão, com todo o rigor, nos conhecidos anos
de chumbo. Gilberto viu, neste terrível período de triste lembrança, caírem um a
um seus combativos companheiros, ora mortos covardemente, ora presos e tor-
turados. Ele próprio não escapou dos porões da ditadura, vindo a ser julgado por
um corpo militar, que Gilberto fez questão, no início da sessão, de dizer que não
reconhecia a sua legitimidade. Como não poderia ser de outra forma, amargou
mais de dois anos de prisão. Sua então companheira de luta, julgada na mesma
oportunidade, era justamente a hoje presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, igual-
mente condenada.
Passado esse período negro da história do Brasil, retornou o nosso home-
nageado a Uberaba, onde concluiu o curso de Direito, vindo a integrar a banca
de Advocacia do Professor Edson Prata (1973). O que parecia à primeira vista uma
relação antagônica, já que o professor Edson Prata era avesso à política, o que
se viu foi uma simbiose, uma relação íntima que extrapolou, em muito, a mera
relação profissional: tornaram-se íntimos, amigos para sempre. Nesta fase da vida
o homenageado foi professor na Faculdade de Filosofia e na UNIUBE. Mais tar-
de, experiente e desejando alçar voos próprios, foi o nosso Gilberto advogar no
Estado de Goiás, na cidade de Campos Belos, e após oito anos transferiu-se para
Belo Horizonte, integrando um dos melhores escritórios de advocacia da capital,
retornando posteriormente, e para não mais sair, à nossa cidade, onde, definitiva-
mente, estabeleceu banca própria e, desde então, desenvolve intensa atividade
profissional.
Esse o breve perfil de Gilberto Martins Vasconcelos, cumprindo-nos ressaltar,
por fim, existir algo nele diferenciado, reluzente como ouro e que contagia aqueles
que com ele, como nós, têm o privilégio de conviver e desfrutar de sua imensa so-
lidariedade, da virtude, enfim, associada ao seu ser e que, segundo Augusto Cury,
expressa-se por “enxergar no próximo as lágrimas nunca choradas e as angústias
nunca verbalizadas”.
E é com essa oportuna citação de Augusto Cury que temos o prazer de dizer
publicamente, como diriam outros amigos de verdade: Gilberto fez-nos conhecer
a nobreza da amizade.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DELFINO, Claudiovir; DELFINO, Lúcio. Discurso ao homenageado no Congresso de Uberaba


de Direito Processual –VI Edição: Dr. Gilberto MartinsVasconcelos. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 231-232, out./dez. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 231-232, out./dez. 2012
Discurso de abertura da Comenda
Edson Prata: Ano 2012

Gilberto Martins Vasconcelos


Advogado. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

A Comenda Edson Prata foi instituída pela 1ª Seção do Instituto dos


Advogados de Minas Gerais, em 2004, pelas mãos e inteligência do dinâmico
colega e amigo de todas as horas, Dr. Aparecido João D’Amico, e do não menos
brilhante Dr. Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, ambos, à época, membros da
Escola Superior de Advocacia da OAB, o primeiro, coordenador em Uberaba, e
o segundo, diretor no Estado de Minas Gerais, com a inestimável participação
do fraternal companheiro Dr. Luiz Artur de Paiva Correa, então presidente da 14ª
Subseção da OAB de Minas Gerais.
Hoje me foi dada a incumbência de falar sobre a figura de Edson Prata e da
importância de sua trajetória de vida. Não é uma tarefa das mais fáceis, dada a
grandiosidade que reveste a figura desse homem.
Antes, porém, dirijo-me aos homenageados com esta comenda.
Caro amigo e ilustre magistrado Dr. Fausto Bawden de Castro e Silva, que
honra, de forma singular, ímpar, o trabalho judicante; Dra. Beatriz dos Santos
Teixeira, ilustre Oficiala do Cartório do 1º Ofício de Registro de Imóveis de Uberaba,
reconhecidamente uma das grandes autoridades em matéria de direito registral
imobiliário em nosso país; ilustre Dr. Virmondes Rodrigues Júnior, Magnífico Reitor
da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, que tem desenvolvido enorme
capa­cidade de gestão em seus afazeres, engrandecendo o nome de nossa cidade;
Dr. Luiz Ricardo Gomes Aranha, DD. Presidente do Instituto dos Advogados de
Minas Gerais, meu dileto amigo, companheiro de trabalho no Tribunal de Ética e
Disciplina da OAB-MG durante longos anos, grande advogado, grande homem.
Quero dizer-lhes que os senhores são pessoas especiais, que se destacaram de forma
diferenciada em suas áreas de atuação e, por isso, a escolha de seus nomes, para
receberem esta comenda, é um ato de reconhecida justiça.
É que, se de um lado, o recebimento dessa condecoração é uma especial
honraria para os ora indicados, como o foi para os que já a receberam, de outro
lado, todos os homenageados, de agora e de antes, lhe emprestam um enorme
brilho e, por extensão, ao nome do advogado Edson Prata, que construiu sua vida
e sua história nesta cidade de Uberaba.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 233-236, out./dez. 2012
234 Gilberto Martins Vasconcelos

Edson tinha enormes e reconhecidas virtudes. A brilhante ideia de ter sido


instituída a comenda que leva o seu nome, com inteira propriedade, é uma inar-
redável indicação de que seus feitos estão sendo reconhecidos.
Alguns fatos são públicos e notórios sobre a vida desse que foi um incansá-
vel homem das letras jurídicas, com quem tive a honra e o prazer de conviver e,
mais que isto, tive a felicidade de receber seus diários e proveitosos ensinamentos.
O nosso encontro, para sorte minha, foi a partir de uma situação, para dizer
o mínimo, inesperada.
Edson Prata dedicava-se à advocacia de forma sacerdotal. Estudava o tempo
todo, escrevia a cada momento. Construía sua lenda incansavelmente e sem dar
qualquer oportunidade ao ócio.
O Brasil, por sua vez, vivia tempos tenebrosos.
Instalada no poder, uma ditadura militar sufocava os anseios de todo um povo.
Jovens estudantes, como eu, eram presos, retirados do convívio de suas famí-
lias, torturados. Muitos foram mortos; entre eles, grandes amigos meus.
Nesse cenário, em razão do idealismo típico da juventude, fui preso por lutar
contra o estado de coisas então reinante. Fiquei, durante anos, recolhido em cár-
ceres ditatoriais.
Em 1972, quando voltei para Uberaba, ainda estudante de direito, fui fazer
estágio no escritório de dois grandes amigos: José Raimundo Jardim Alves Pinto e
Claudiovir Delfino. Registro, publicamente, meu agradecimento e minha admira-
ção por esses dois grandes homens.
Eles, José Raimundo e Claudiovir, jovens advogados, iniciando suas carreiras
profissionais, se associam a Edson Prata e, logo depois, me levam para trabalhar,
como estagiário, com aquele já famoso homem do direito.
Foi uma fortuna, para mim, esse fato. Lembro-me, a propósito, de Fernando
Pessoa, poeta que Edson Prata tanto admirava e que dizia: “Existem momentos ines-
quecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”. Naquele momento, essas
três condicionantes se deram em torno daqueles três incomparáveis advogados.
Edson me recebeu de braços abertos, integrou-me no mundo da advocacia e
me incluiu, com o destemor que o caracterizava, no rol daqueles com quem convivia.
Éramos tachados de terroristas, subversivos, e muitas vezes vistos como que
portadores de doenças contagiosas.
Poucas pessoas se disporiam a receber um ex-preso político em seus escri-
tórios, em seus lares, em suas rodas profissionais ou de amizades. Edson Prata, no
entanto, o fez.
Colocou-me em contato com pessoas que se tornariam minhas grandes amigas,
como Ronaldo Cunha Campos, Humberto Theodoro Júnior, Virgílio Machado Alvim,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 233-236, out./dez. 2012
Discurso de abertura da Comenda Edson Prata: Ano 2012 235

Aristóteles Atheniense, Gustavo Capanema de Almeida, Evaldo Marco Antônio, João


Delfino e tantas outras, fazendo com que eu fosse aceito pela comunidade.
E por que falo disso? Faço-o para destacar uma das características mais
marcantes da personalidade de Edson: a generosidade. Mas serve também para
ilustrar outra de suas exuberantes qualidades: o seu pluralismo. Era intelectual-
mente tolerante, aceitava as diferenças de pensamento, era um democrata que
não alardeava tal condição.
Minha mulher, Suely, que também o admirava e mantinha com ele um relacio-
namento fraterno, certo dia fez um comentário a seu respeito, que julgo da maior
importância e que explica muitas de suas realizações. Disse ela: “O Dr. Edson Prata
não queria ser grande sozinho”.
De fato, ele jamais quis ser grande sozinho. Por consequência, foi respon-
sável por incentivar, induzir e agrupar pessoas, atualmente grandes nomes do
mundo jurídico, em torno de projetos marcantes para o Brasil.
Foi assim que, com o seu dinamismo, ajuntando grandes inteligências da
advocacia, do judiciário, do Ministério Público, e intelectuais da área do direito
em geral, formou um conceito em matéria de Processo Civil com o surgimento
da Escola Processual do Triângulo Mineiro, tal como ficou conhecida. Edson, sem
dúvida, foi o indutor desse movimento.
Em torno da Revista Brasileira de Direito Processual, da qual era o editor, esta-
beleceu-se rica doutrina a respeito do Direito Processual.
Sua determinação era tamanha que chegava a executar até trabalhos tipi-
camente manuais, como separação de textos e montagem de índices, tudo para
que a revista fosse publicada no tempo certo.
A propósito, não posso deixar de mencionar que em 2007, pela garra de
dois jovens advogados e juristas, obviamente discípulos de Edson Prata, os Drs.
Lúcio Delfino e Fernando Fonseca Rossi, relançaram a Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro a partir do volume nº 59, trazendo-a novamente às bancas até
os dias de hoje, também doutrinariamente rica, como na época de Edson Prata.
Mas, editar, ou melhor, “construir” a Revista Brasileira de Direito Processual era
insuficiente para o espírito inquieto e dinâmico de Edson Prata.
Então, de sua consciência jurídica empreendedora surgem a Revista de Crítica
Judiciária, o Digesto de Processo, a publicação de livros de direito e de artigos diversos.
Mantém sua banca de advocacia, aumenta o seu sucesso empresarial, mas sempre,
nesse viés dos negócios, ligado ao seu projeto maior, que era a construção de um
pensamento novo para o direito brasileiro. Por isso, montou gráficas e fez nascer um
jornal, o Jornal da Manhã, agora completando quarenta anos de existência. Com isso,
publicava livros e mantinha, nas páginas do matutino, o espaço necessário para
promover discussões sobre direito.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 233-236, out./dez. 2012
236 Gilberto Martins Vasconcelos

Foi Edson Prata, ainda, o condutor que tornou possível a criação da 1ª Seção
do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, em Uberaba, entidade promotora
deste já reconhecido e indispensável congresso, que reúne expoentes do direito,
nacionais e estrangeiros.
Mais uma vez vou me socorrer de Fernando Pessoa, que pergunta e responde:
“E as pedras do caminho? Guardo todas, um dia construirei um castelo”.
Hoje, estamos aqui reverenciando o castelo construído por Edson Prata, que
deixou de ser um nome para ser um ícone.
A existência deste 6º Congresso de Uberaba de Direito Processual, sem qual-
quer dúvida, faz parte do castelo deixado por Edson, em continuação às oportu-
nas discussões havidas quando da preparação e, depois, da implementação do
atual Código de Processo Civil.
Os parênteses, agora, são oportunos para o registro do meu agradecimento a
uma pessoa que tem sido de fundamental importância na continuação dos aplau-
didos propósitos de Edson Prata. Trata-se de sua filha, Lídia Prata, que amplia, com a
contínua colocação de pedras, o castelo edificado por Edson Prata, assim o fazendo
com a inestimável contribuição de sua família. Exemplo disso é o voluntário apoio
que sempre dá à realização das várias edições deste congresso. Obrigado, Lídia!
Esse, em sucinto relato, é o homem que identifica a comenda hoje outorgada
ao Dr. Fausto, à Dra. Beatriz, ao Dr. Virmondes e ao Dr. Luiz Aranha.
Finalmente, quero agradecer a honra de ser homenageado nesta 6ª edição
do Congresso de Uberaba de Direito Processual, condecoração que trouxe enorme
felicidade a mim e à minha família, embora eu não conheça as razões determinan-
tes dessa decisão tomada pelos diretores da 1ª Seção do Instituto dos Advogados
de Minas Gerais, mas acredito que terá sido mais pela grandeza da amizade que
nos une. Agradeço-lhes!
Muito obrigado a todos os que tiveram a paciência de me ouvir e honrar
com suas presenças. Muito obrigado a todos os promotores e colaboradores deste
maravilhoso e proveitoso congresso. Muito obrigado pelas palavras gentis, cari-
nhosas, gratificantes de Claudiovir Delfino e Lúcio Delfino, na sessão de ontem.

21 de setembro de 2012.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

VASCONCELOS, Gilberto Martins. Discurso de abertura da Comenda Edson Prata: ano 2012.
Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 233-236,
out./dez. 2012.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 233-236, out./dez. 2012
Índice
página página

Autor GERAIGE NETO, Zaiden


- Artigo: A legitimidade do Ministério Público
ARAGÃO, Leandro para a tutela coletiva dos interesses dos con-
- Parecer: Sentença arbitral – Princípios tribuintes – Análise do julgamento do Recurso
constitucionais do processo – Inobservância Extraordinário nº 213.631/MG...............................181
do contraditório, da igualdade das partes e
da ampla defesa – Regra da congruência GOMES, Magno Federici
objetiva – Árbitro que não cumpre os - Artigo: Acesso à jurisdição e instrumento
deveres de diligência e competência.................205 processual adequado para concessão de
medicamentos pelo Sistema Único
ARAÚJO, Fabrício Simão da Cunha de Saúde.......................................................................... 33
- Artigo: O processo constitucional como
GOUVEIA, Lúcio Grassi de
elemento de proteção dos direitos
- Artigo: Criação judicial do direito e
fundamentais no Estado Democrático
importância dos precedentes...............................123
de Direito........................................................................ 71
LEMOS, Rafael Cavalcanti
ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de - Artigo: Coisa julgada material menos que
- Artigo: Criação judicial do direito e inter partes na extinção da execução pela
importância dos precedentes...............................123 satisfação da obrigação no Direito Processual
Civil brasileiro..............................................................109
BARCAROLLO, Felipe
- Artigo: Os influxos do paradigma racionalista MAZZEI, Marcelo Rodrigues
no Direito Processual Civil brasileiro...................145 - Artigo: A legitimidade do Ministério Público
para a tutela coletiva dos interesses dos
CHIARLONI, Sergio contribuintes – Análise do julgamento do
- Artigo: Ragionevolezza costituzionale e Recurso Extraordinário nº 213.631/MG..............181
garanzie del processo................................................. 11
MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro
DELFINO, Claudiovir - Artigo: O sono dogmático e o projeto de
- Notas e Comentários: Discurso ao um novo CPC...............................................................101
homenageado no Congresso de Uberaba de
Direito Processual – VI Edição: Dr. Gilberto QUEIROZ, Telma Oliveira
Martins Vasconcelos..................................................231 - Artigo: A legitimidade do Ministério Público
para a tutela coletiva dos interesses dos
DELFINO, Lúcio contribuintes – Análise do julgamento do
- Notas e Comentários: Discurso ao Recurso Extraordinário nº 213.631/MG..............181
homenageado no Congresso de Uberaba de
Direito Processual – VI Edição: Dr. Gilberto VASCONCELOS, Gilberto Martins
Martins Vasconcelos..................................................231 - Notas e Comentários: Discurso de abertura
da Comenda Edson Prata: Ano 2012....................233
DIDIER JR., Fredie
- Parecer: Sentença arbitral – Princípios Título
constitucionais do processo – Inobservância
do contraditório, da igualdade das partes e ACESSO à jurisdição e instrumento processual
da ampla defesa – Regra da congruência adequado para concessão de medicamentos
objetiva – Árbitro que não cumpre os pelo Sistema Único de Saúde
deveres de diligência e competência.................205 - Artigo de: Magno Federici Gomes........................... 33

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 237-241, out./dez. 2012
238 Índice

página página

COISA julgada material menos que inter partes Assunto


na extinção da execução pela satisfação da obri-
gação no Direito Processual Civil brasileiro A
- Artigo de: Rafael Cavalcanti Lemos.......................109 ACESSO À JURISDIÇÃO
- Ver: Acesso à jurisdição e instrumento processual
CRIAÇÃO judicial do direito e importância adequado para concessão de medicamentos
dos precedentes pelo Sistema Único de Saúde. Artigo de: Magno
- Artigo de: Lúcio Grassi de Gouveia, Jaldemiro Federici Gomes.............................................................. 33
Rodrigues de Ataíde Júnior....................................123
B
BRASILEIRO
DISCURSO ao homenageado no Congresso
- Ver: Os influxos do paradigma racionalista no
de Uberaba de Direito Processual – VI Edição:
Direito Processual Civil brasileiro. Artigo de:
Dr. Gilberto Martins Vasconcelos Felipe Barcarollo.........................................................145
- Notas e Comentários de: Claudiovir Delfino,
Lúcio Delfino................................................................231 C
CÂMARA DE ARBITRAGEM
DISCURSO de abertura da Comenda Edson Prata: - Ver: Sentença arbitral – Princípios constitucio-
Ano 2012 nais do processo – Inobservância do contraditó-
- Notas e Comentários de: Gilberto Martins rio, da igualdade das partes e da ampla defesa
Vasconcelos..................................................................233 – Regra da congruência objetiva – Árbitro que
não cumpre os deveres de diligência e com-
INFLUXOS do paradigma racionalista no Direito petência. Parecer de: Fredie Didier Jr., Leandro
Processual Civil brasileiro, Os Aragão............................................................................205
- Artigo de: Felipe Barcarollo......................................145
CIVIL
LEGITIMIDADE do Ministério Público para a - Ver: Os influxos do paradigma racionalista no
Direito Processual Civil brasileiro. Artigo de:
tutela coletiva dos interesses dos contribuintes –
Felipe Barcarollo.........................................................145
Análise do julgamento do Recurso Extraordinário
nº 213.631/MG, A
COISA JULGADA MATERIAL
- Artigo de: Marcelo Rodrigues Mazzei, Telma - Ver: Coisa julgada material menos que inter par-
Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige Neto...............181 tes na extinção da execução pela satisfação da
obrigação no Direito Processual Civil brasileiro.
PROCESSO constitucional como elemento de Artigo de: Rafael Cavalcanti Lemos......................109
proteção dos direitos fundamentais no Estado
Democrático de Direito, O COMENDA EDSON PRATA
- Artigo de: Fabrício Simão da Cunha Araújo......... 71 - Ver: Discurso de abertura da Comenda Edson
Prata: Ano 2012. Notas e Comentários de:
RAGIONEVOLEZZA costituzionale e garanzie del Gilberto Martins Vasconcelos................................233
processo
- Artigo de: Sergio Chiarloni......................................... 11 CONGRESSO DE UBERABA DE DIREITO PROCESSUAL
– VI EDIÇÃO
SENTENÇA arbitral – Princípios constitucionais - Ver: Discurso ao homenageado no Congresso
do processo – Inobservância do contraditório, da de Uberaba de Direito Processual – VI Edição: Dr.
Gilberto Martins Vasconcelos. Notas e Comentá-
igualdade das partes e da ampla defesa – Regra
rios de: Claudiovir Delfino, Lúcio Delfino...........231
da congruência objetiva – Árbitro que não cum-
pre os deveres de diligência e competência
CONTRADITÓRIO
- Parecer de: Fredie Didier Jr., Leandro Aragão....205 - Ver: O processo constitucional como elemento
de proteção dos direitos fundamentais no
SONO dogmático e o projeto de um novo CPC, O Estado Democrático de Direito. Artigo de:
- Artigo de: Luiz Eduardo Ribeiro Mourão.............101 Fabrício Simão da Cunha Araújo............................ 71

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Índice 239
página página

CONTRIBUINTE E
- Ver: A legitimidade do Ministério Público para a EDSON PRATA
tutela coletiva dos interesses dos contribuintes – - Ver: Discurso de abertura da Comenda Edson
Análise do julgamento do Recurso Extraordiná- Prata: Ano 2012. Notas e Comentários de:
rio nº 213.631/MG. Artigo de: Marcelo Rodrigues Gilberto Martins Vasconcelos................................233
Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige
Neto................................................................................181 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
- Ver: O processo constitucional como elemento
CRIAÇÃO JUDICIAL DO DIREITO de proteção dos direitos fundamentais no Es-
- Ver: Criação judicial do direito e importância dos tado Democrático de Direito. Artigo de: Fabrício
precedentes. Artigo de: Lúcio Grassi de Gouveia, Simão da Cunha Araújo............................................. 71
Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior...............123
EXECUÇÃO
D - Ver: Coisa julgada material menos que inter par-
“DEMANDA MÍNIMA” tes na extinção da execução pela satisfação da
- Ver: Sentença arbitral – Princípios constitucionais obrigação no Direito Processual Civil brasileiro.
do processo – Inobservância do contraditório, Artigo de: Rafael Cavalcanti Lemos......................109
da igualdade das partes e da ampla defesa –
Regra da congruência objetiva – Árbitro que EXTINÇÃO
não cumpre os deveres de diligência e com- - Ver: Coisa julgada material menos que inter par-
petência. Parecer de: Fredie Didier Jr., Leandro tes na extinção da execução pela satisfação da
Aragão............................................................................205 obrigação no Direito Processual Civil brasileiro.
Artigo de: Rafael Cavalcanti Lemos......................109
DIREITO À SAÚDE
- Ver: Acesso à jurisdição e instrumento processual
F
adequado para concessão de medicamentos
FORNECIMENTO DE ÁGUA
pelo Sistema Único de Saúde. Artigo de: Magno
- Ver: Sentença arbitral – Princípios constitucionais
Federici Gomes............................................................. 33
do processo – Inobservância do contraditório,
da igualdade das partes e da ampla defesa –
DIREITO LÍQUIDO E CERTO
- Ver: Acesso à jurisdição e instrumento processual Regra da congruência objetiva – Árbitro que
adequado para concessão de medicamentos não cumpre os deveres de diligência e com-
pelo Sistema Único de Saúde. Artigo de: Magno petência. Parecer de: Fredie Didier Jr., Leandro
Federici Gomes............................................................. 33 Aragão............................................................................205

DIREITO VIVO G
- Ver: O sono dogmático e o projeto de um GILBERTO MARTINS VASCONCELOS
novo CPC. Artigo de: Luiz Eduardo Ribeiro - Ver: Discurso ao homenageado no Congresso
Mourão...........................................................................101 de Uberaba de Direito Processual – VI Edição:
Dr. Gilberto Martins Vasconcelos. Notas e
DIREITOS FUNDAMENTAIS Comentários de: Claudiovir Delfino, Lúcio
- Ver: O processo constitucional como elemento Delfino............................................................................231
de proteção dos direitos fundamentais no
Estado Democrático de Direito. Artigo de: J
Fabrício Simão da Cunha Araújo............................ 71 JULGAMENTO
- Ver: Criação judicial do direito e importância dos
DISCURSO precedentes. Artigo de: Lúcio Grassi de Gouveia,
- Ver: Discurso ao homenageado no Congresso de Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior...............123
Uberaba de Direito Processual – VI Edição: Dr. Gil-
berto Martins Vasconcelos. Notas e Comentários JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DAS LIBERDADES
de: Claudiovir Delfino, Lúcio Delfino...................231 - Ver: O processo constitucional como elemento
- Ver: Discurso de abertura da Comenda Edson de proteção dos direitos fundamentais no Es-
Prata: Ano 2012. Notas e Comentários de: tado Democrático de Direito. Artigo de: Fabrício
Gilberto Martins Vasconcelos................................233 Simão da Cunha Araújo............................................. 71

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240 Índice

página página

L PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
LEGITIMIDADE - Ver: Sentença arbitral – Princípios constitucionais
- Ver: A legitimidade do Ministério Público para a do processo – Inobservância do contraditório,
tutela coletiva dos interesses dos contribuintes – da igualdade das partes e da ampla defesa –
Análise do julgamento do Recurso Extraordiná- Regra da congruência objetiva – Árbitro que
rio nº 213.631/MG. Artigo de: Marcelo Rodrigues não cumpre os deveres de diligência e com-
Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige petência. Parecer de: Fredie Didier Jr., Leandro
Neto................................................................................181 Aragão............................................................................205

M PROCESSO ARBITRAL
MANDADO DE SEGURANÇA - Ver: Sentença arbitral – Princípios constitucionais
- Ver: Acesso à jurisdição e instrumento processual do processo – Inobservância do contraditório,
adequado para concessão de medicamentos da igualdade das partes e da ampla defesa –
pelo Sistema Único de Saúde. Artigo de: Magno Regra da congruência objetiva – Árbitro que
Federici Gomes............................................................. 33 não cumpre os deveres de diligência e com-
petência. Parecer de: Fredie Didier Jr., Leandro
MINISTÉRIO PÚBLICO Aragão............................................................................205
- Ver: A legitimidade do Ministério Público para a
tutela coletiva dos interesses dos contribuintes – PROCESSO CONSTITUCIONAL
Análise do julgamento do Recurso Extraordiná- - Ver: O processo constitucional como elemento
rio nº 213.631/MG. Artigo de: Marcelo Rodrigues de proteção dos direitos fundamentais no Es-
Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige tado Democrático de Direito. Artigo de: Fabrício
Neto................................................................................181
Simão da Cunha Araújo............................................. 71
N
PROCESSO
NECESSIDADE DE OBSERVAÇÃO DOS PRECEDENTES
- Ver: Os influxos do paradigma racionalista no
- Ver: Criação judicial do direito e importância dos
Direito Processual Civil brasileiro. Artigo de:
precedentes. Artigo de: Lúcio Grassi de Gouveia,
Felipe Barcarollo.........................................................145
Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior...............123

O PROVA
OBRIGAÇÃO - Ver: Acesso à jurisdição e instrumento processual
- Ver: Coisa julgada material menos que inter par- adequado para concessão de medicamentos
tes na extinção da execução pela satisfação da pelo Sistema Único de Saúde. Artigo de: Magno
obrigação no Direito Processual Civil brasileiro. Federici Gomes............................................................. 33
Artigo de: Rafael Cavalcanti Lemos......................109
R
P RACIONALISTA
PARADIGMA - Ver: Os influxos do paradigma racionalista no
- Ver: Os influxos do paradigma racionalista no Direito Processual Civil brasileiro. Artigo de:
Direito Processual Civil brasileiro. Artigo de: Felipe Barcarollo.........................................................145
Felipe Barcarollo.........................................................145
REPARTIÇÃO E INDEPENDÊNCIA DAS FUNÇÕES
PENSAMENTO DOGMÁTICO ESTATAIS ESSENCIAIS
- Ver: O sono dogmático e o projeto de um - Ver: O processo constitucional como elemento
novo CPC. Artigo de: Luiz Eduardo Ribeiro de proteção dos direitos fundamentais no Es-
Mourão...........................................................................101 tado Democrático de Direito. Artigo de: Fabrício
Simão da Cunha Araújo............................................. 71
POSSIBILIDADE DE DISPARIDADE DE DECISÕES
DOS JUÍZES E TRIBUNAIS PARA CASOS CONCRETOS RESERVA DO POSSÍVEL
SEMELHANTES - Ver: O processo constitucional como elemento
- Ver: Criação judicial do direito e importância dos de proteção dos direitos fundamentais no Es-
precedentes. Artigo de: Lúcio Grassi de Gouveia, tado Democrático de Direito. Artigo de: Fabrício
Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior...............123 Simão da Cunha Araújo............................................. 71

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 237-241, out./dez. 2012
Índice 241
página página

S SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE


SATISFAÇÃO - Ver: Acesso à jurisdição e instrumento processual
- Ver: Coisa julgada material menos que inter par- adequado para concessão de medicamentos
tes na extinção da execução pela satisfação da pelo Sistema Único de Saúde. Artigo de: Magno
obrigação no Direito Processual Civil brasileiro. Federici Gomes............................................................. 33
Artigo de: Rafael Cavalcanti Lemos......................109
SONO DOGMÁTICO
SAÚDE PÚBLICA - Ver: O sono dogmático e o projeto de um
- Ver: Acesso à jurisdição e instrumento processual novo CPC. Artigo de: Luiz Eduardo Ribeiro
adequado para concessão de medicamentos Mourão...........................................................................101
pelo Sistema Único de Saúde. Artigo de: Magno
Federici Gomes............................................................. 33 T
TUTELA COLETIVA
SENTENÇA - Ver: A legitimidade do Ministério Público para a
- Ver: Coisa julgada material menos que inter par- tutela coletiva dos interesses dos contribuintes –
tes na extinção da execução pela satisfação da Análise do julgamento do Recurso Extraordiná-
obrigação no Direito Processual Civil brasileiro. rio nº 213.631/MG. Artigo de: Marcelo Rodrigues
Artigo de: Rafael Cavalcanti Lemos......................109 Mazzei, Telma Oliveira Queiroz, Zaiden Geraige
Neto................................................................................181
SERVIÇOS DE INFRAESTRUTURA
- Ver: Sentença arbitral – Princípios constitucionais
do processo – Inobservância do contraditório,
da igualdade das partes e da ampla defesa –
Regra da congruência objetiva – Árbitro que
não cumpre os deveres de diligência e com-
petência. Parecer de: Fredie Didier Jr., Leandro
Aragão............................................................................205

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Instruções para os autores

Os trabalhos para publicação na Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,


ISSN 0100-2589, editada pela Editora Fórum e com periodicidade trimestral, de­verão ser
encaminhados, no formato eletrônico, para o seguinte e-mail: <editorial@rbdpro.com.br>.
Os textos para publicação na RBDPro deverão ser inéditos e para publicação exclusiva.
Uma vez publicados nesta revista, também poderão sê-lo em livros e coletâneas, desde que
citada a publicação original. Roga-se aos autores o com­promisso de não publicá-los em
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A RBDPro reserva-se o direito de aceitar ou vetar qualquer original rece­bido, de
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eventuais alterações.
Os trabalhos deverão ser redigidos em formato Word, fonte Times New Roman,
tamanho 12, espaçamento entrelinhas de 1,5. Os parágrafos devem ser justificados. O
tamanho do papel deve ser A4 e as margens utilizadas idênticas de 3cm. Número médio
de 15/40 laudas. Deverão, ainda, estar acompanhados dos seguintes dados: nome do
autor, sua qualificação acadêmica e profissional, endereço, telefone e e-mail.
Os textos devem ser revisados, além de terem sua linguagem adequada a uma
publicação editorial científica. A escrita deve obedecer às novas regras orto­gráficas em
vigor desde a promulgação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a partir de 1º de
janeiro de 2009. As citações de textos anteriores ao acordo devem respeitar a ortografia
original.
Os originais dos artigos devem ser apresentados de forma completa, contendo:
título do artigo (na língua do texto e em inglês), nome do autor, filia­­ção institucional,
qualificação (mestrado, doutorado, cargos etc.), resumo do artigo, de até 250 palavras
(na língua do texto e em inglês – Abstract), palavras-chave, no máximo 5 (na língua do
texto e em inglês – Key words), sumário do artigo, epí­grafe (se houver), texto do artigo,
referências. O autor deverá fazer constar, no final do artigo, a data e o local em que foi
escrito o trabalho de sua autoria.
Recomenda-se que todo destaque que se queira dar ao texto seja feito com o
uso de itálico e não por meio do negrito e do sublinhado. As citações (palavras, expres­
sões, períodos) deverão ser cuidadosamente conferidas pelos autores e/ou tra­­dutores;
as citações textuais longas (mais de três linhas) devem constituir um pará­grafo inde­pen­
dente, com recuo esquerdo de 2cm (alinhamento justificado), utilizando-se espaçamento
entrelinhas simples e tamanho da fonte 10; as citações textuais curtas (de até três linhas)
devem ser inseridas no texto, entre aspas e sem itálico. As expressões em língua estrangeira
deverão ser padronizadas e destacadas em itálico. O uso de op. cit., ibidem e idem nas
notas bibliográficas deve ser evitado, substituindo-o pelo nome da obra por extenso.
Os trabalhos serão selecionados pelos Diretores e pelo Conselho Editorial da Revista,
que entrarão em contato com os respectivos autores para confir­mar o recebimento dos
textos. Os originais recebidos e não publicados não serão devolvidos. Não serão devidos
direitos autorais ou qualquer outra remune­ração pela publi­cação dos trabalhos. O autor
receberá gratuitamente um exemplar da revista sempre que o seu texto for publicado.

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244 Instruções para os autores

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Esta obra foi composta na fonte Myriad Pro,


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(miolo) e Supremo 250g (capa) pela Laser
Plus Gráfica. Belo Horizonte/MG, dezembro
de 2012.

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