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COORDENADORES

Paulo Henrique dos Santos Lucon


Ricardo de Carvalho Aprigliano
João Paulo Hecker da Silva
Ronaldo Vasconcelos
André Orthmann

PROCESSO EM
JORNADAS
XI JORNADAS BRASILEIRAS DE DIREITO PROCESSUAL
XXV JORNADAS IBERO-AMERICANAS DE DIREITO PROCESSUAL

2016

Lucon et al -Processo em Jornadas-1ed.indb 3 25/08/2016 14:48:14


CAPÍTULO 1

Revisitando a teoria
geral do processo
Ada Pellegrini Grinover1

Depois de mais de 40 anos de estudo, pesquisa e ensino do direto processual – em to-


das as suas áreas –, a partir da ciência conceitual clássica, mas sempre acompanhando sua
evolução; após o aniversário de 40 anos de nossa obra conjunta (Teoria Geral do Processo
– Cintra, Grinover & Dinamarco) que se tornou um clássico no país; atingida minha plena
maturidade intelectual, estou hoje firmemente convencida de que os conceitos tradicionais
da fase científica do direito processual – meu ponto de partida – não são mais adequados a
responder à realidade subjacente e à evolução do direito processual. Não basta revisitá-los
– como me empenhei em fazer na 31ª edição da Teoria Geral do Processo (2015) - mas é
preciso reestruturá-los. Chegou a hora de mudá-los, para que, sim, possam ter aderência
ao direito material, mas, sobretudo, para que a partir da análise dos conflitos existentes na
complexa sociedade de hoje, se alcance a tutela processual adequada. E a tutela processual
adequada (à qual têm direito ambas as partes) só pode ser obtida pela via de um processo
e procedimento adequados.
Qual o ponto de partida para essa revisão?
O estudo do direito processual a partir da análise de um campo específico da realidade
social para determinar a melhor resposta processual para a crise de direito em jogo. Isso sig-
nifica examinar os conflitos que existem na sociedade, para chegar à tutela processual ade-
quada. E como a tutela processual adequada, em última análise, se perfaz por intermédio
do procedimento adequado, nesses trabalhos o procedimento assume uma nova dimensão,
sendo, ao lado do processo, instrumento para o atingimento da pacificação.
Falamos em tutela processual e não em tutela jurisdicional, porque, assim como a juris-
dição hoje, em nossa visão, não se restringe à estatal e à arbitral– abrangendo os chamados
meios consensuais de solução de conflitos -, a jurisdição é garantia do acesso à justiça. En-
quanto o processo administrativo em contraditório - embora não jurisdicional - tem natu-
reza processual e também é instrumental à solução de conflitos. Assim também ocorre com
o processo legislativo. Neles há processo, porque há contraditório, mas não há jurisdição.
Desses pressupostos metodológicos, surge a necessidade de reestruturar os conceitos
clássicos dos institutos fundamentais do direito processual: a jurisdição não pode mais ser
definida como poder, função e atividade, pois na justiça conciliativa não há exercício do
poder. Ela passa a ser, em nossa visão, garantia de acesso à justiça (estatal ou não), consisten-
te numa função e atividade, cuja autoridade é respeitada pelo corpo social e legitimada pelo
devido processo legal, voltadas, em seu escopo social, sobretudo á pacificação com justiça.
Por outro lado, as características essenciais da jurisdição não podem mais ser detectadas
segundo a doutrina clássica: não há lide na justiça conciliativa, assim como não há lide

1. Professora Titular da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – USP.

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ADA PELLEGRINI GRINOVER

no processo penal e no processo civil necessários; tampouco há substitutividade na gestão


cooperativa do processo na justiça arbitral, nem na justiça conciliativa (e hoje, na justiça
estatal cooperativa instaurada no Brasil); e é uma ficção a ideia de que o juiz se substitui
à vontade das partes, que não souberam ou não puderam se autocompor, onde a vontade
das partes é despicienda; ou seja, em todos os casos de processos necessários, penais e não
penais. Sem falar que na justiça conciliativa ninguém se substitui à vontade das partes, que
constroem, pelo consenso, a solução que desejam para o conflito. A definitividade, por sua
vez, não é prerrogativa da jurisdição, pois a preclusão administrativa também leva a um
grau de imunidade comparável ao da coisa julgada. E a própria coisa julgada perdeu sua
característica de verdadeiro dogma e, ao mesmo tempo, a concepção restritiva de só poder
acompanhar a sentença oriunda de cognição profunda e exauriente, uma vez que a mesma
estabilidade reveste outros pronunciamentos judiciais que – segundo alguns - não fazem
coisa julgada. Quanto à inércia, depende ela exclusivamente do sistema processual adotado,
podendo haver situações em que até a jurisdição estatal se automovimenta, como também
ocorre no Brasil. E não há inércia nos meios consensuais de solução de conflitos, para os
quais as pessoas em conflito podem ser chamadas.
A ação, por sua vez, como direito (ou poder) à jurisdição, também vem sofrendo mu-
danças conceituais, conforme as alterações que se notam na configuração de jurisdição. E
institutos já conhecidos (como a reclamação aos tribunais), assim como institutos novos
(como a antecipação da prova fora da situação de urgência) escapam do conceito clássico
de ação, em que alguns se esforçam por enquadrá-los. Há também mudanças no princípio
dispositivo, em face dos poderes ampliados do juiz - sobretudo, mas não só, nos processos
coletivos - e dos poderes das partes, numa nova simbiose entre público e privado, que ainda
suscita debates estéreis. E não há exercício de ação na justiça consensual.
Velhas polêmicas em torno da teoria monista e da teoria dualista do processo ficam
superadas diante da percepção de que há processos que simplesmente aplicam o direito
material, e processos que criam o direito, como no precedente vinculante e em matéria de
políticas públicas. E aqui ressurge o estudo da função criadora dos tribunais, escapando
também do velho esquema que considerava a jurisprudência mera interpretação. Claro que
a caracterização da jurisprudência como interpretação ou como fonte do direito processual
depende de cada ordenamento, mas não se pode desconhecer a cada vez mais forte vincu-
lação existente entre civil law e common law, discutindo-se hoje se ainda se pode falar em
duas famílias distintas. E, a propósito de ordenamento jurídico, fala-se correntemente nele
(o novo Código de Processo Civil, por exemplo, chega a utilizar a expressão em substituição
ao termo “lei” – art. 18), mas pouco se fala de suas conceituação e características e, sobretu-
do, de seu conteúdo. Duvido que os jovens processualistas que aqui estão já tenham ouvido
falar do ius praetorium.
O que resta aparentemente incólume é a defesa, reforçada pelos princípios e regras
constitucionais e legais e os das convenções internacionais sobre direitos humanos, embora
ela também esteja submetida- e eventualmente mitigada - a um método de interpretação
pouco estudado: o evolutivo.
Por seu lado, a conceituação de processo como relação jurídica processual confunde
o conteúdo do processo com sua natureza. O processo contém a relação jurídica proces-
sual, mas não é a relação jurídica processual. Processo é procedimento em contraditório (e o
conceito de contraditório é indissolúvel dos poderes, deveres, faculdades e ônus existentes
na relação processual, de modo que essa conceituação a abrange). Sendo assim, o procedi-
mento não é mais uma simples técnica a serviço da condução do processo, mas se torna um

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REVISITANDO A TEORIA GERAL DO PROCESSO

instrumento – tanto quanto o processo – para o atingimento da tutela adequada (jurisdi-


cional ou não). E aqui avulta a importância de examinar também o processo administrativo
não jurisdicional, seja sancionatório, seja aquele em que há litigantes. Nele há contraditório
e também visa à pacificação, mas nada tem a ver com o acesso à justiça e sua garantia – a
jurisdição. Nessa ampla visão, a processualidade abarca também o processo legislativo, que
também é procedimento em contraditório (de natureza política) embora não esteja ligado
ao acesso à justiça (jurisdição) e à solução de conflitos (processo), senão em sentido muito
lato, ou seja como escolha e regulação normativa para reger os futuros conflitos.
O que se pretende fazer, com essas ideias, é deitar os fundamentos de uma nova Teoria
Geral do Processo.
O modelo utilizado para tratar a Teoria Geral do Processo só pode ser o método induti-
vo, cuja solene proclamação, em diversas obras, não tem sido utilizada na prática. Mas é só a
partir do método indutivo, examinando as características de cada processo e procedimento
utilizado para a solução de conflitos diversos, que é possível extrair os princípios gerais que
regem cada disciplina processual. Só assim se pode construir uma verdadeira teoria geral
do processo e do procedimento, que nada mais é do que um método de estudar todas as fa-
cetas do direito processual, à luz da Constituição e do ordenamento jurídico como um todo,
tendo como objetivo a busca da tutela adequada e a indicação dos verdadeiros princípios
gerais aplicáveis a todas as disciplinas processuais.
Mas o que estou afirmando não deve despertar assombro, pois na verdade estou apenas
reatando fios e tirando as devidas consequências de ideias que ficaram no meio do cami-
nho.
Vejam só, meus amigos, alguns exemplos:
- foi dissecada a ideia de acesso à justiça, mas ninguém percebeu que ele é indissoluvel-
mente ligado ao conceito de jurisdição, cuja natureza é exatamente a de garantia do referido
acesso à justiça;
- muito se falou em pacificação, como escopo da jurisdição, mas nesta só se incluíram
os métodos adversariais (jurisdição estatal e arbitral), deixando-se fora os métodos consen-
suais (justiça conciliativa);
- a instrumentalidade do processo ficou no meio do caminho, em sua visão meramente
finalística, como meio de atuar o direito material, mas não se experimentou o método a que
a instrumentalidade inevitavelmente leva: a análise do processo a partir da crise de direito
material (os conflitos), utilizando a instrumentalidade metodológica;
- falou-se muito do processo administrativo não jurisdicional e de suas garantias, mas
ninguém chegou à conclusão de que a processualidade (como procedimento em contraditó-
rio) compreende a jurisdição, mas é mais ampla do que esta, pois os processos administra-
tivo e legislativo não constituem garantia do acesso à justiça;
- defendeu-se ou atacou-se a jurisprudência vinculante nos países de civil law, mas
ninguém se preocupou em analisar o conteúdo do ordenamento jurídico, que compreende
o ius praetorium e suas características de unidade, completude e coerência;
- fala-se do princípio da separação de poderes como obstáculo à atuação do Judiciário,
mas só recentemente os constitucionalistas despertaram para o estudo da função do Judici-
ário no Estado Democrático de Direito;
- Combateu-se ou defendeu-se o ativismo judicial, sem a preocupação de traçar seus
limites;

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ADA PELLEGRINI GRINOVER

- Discute-se até hoje a natureza pública ou privada do processo, com ênfase menor ou
maior ao princípio dispositivo e à sua gestão, sem se perceber que o processo tem natureza
híbrida e um ou outro aspecto pode prevalecer de acordo com o modelo adotado;
- discute-se sobre o procedimento rígido ou flexível, mas, nas tentativas de flexibiliza-
ção, ninguém invoca a necessidade de um diálogo dos procedimentos;
- ainda há quem afirme que a coisa julgada só pode cobrir a sentença que for resultado
de cognição profunda e exauriente, quando há exemplos, como no ordenamento brasileiro
(desde o CPC de 1973), de coisa julgada cobrindo a sentença oriunda de cognição sumária;
- poucos perceberam que há diversos graus de estabilização das decisões, sendo a coisa
julgada soberana apenas o mais elevado, mas que também existem outros, inclusive em
relação a decisões processuais;
- fala-se de um processo coletivo, como entidade única, mas não se percebe que existe,
de um lado, o genérico, destinado a solucionar conflitos que envolvem categoria, grupos e
classes de pessoas, e, do outro, o estrutural, que se destina aos conflitos de direito público;
- ainda se lembram a teoria monista e dualista do processo, quando hoje existem pro-
cessos que se limitam a aplicar a norma de direito material pré-existente e outros que criam
normas, como na função criadora da jurisprudência e no processo estrutural, que não olha
para o passado mas sim para o futuro;
- há referências generalizadas ao método de interpretação histórico-evolutiva, mas ele é
normalmente aplicado para dissecar o passado, e não para justificar mudanças de interpre-
tação aplicáveis ao futuro, de acordo com a evolução da realidade social;
E assim poderíamos continuar, quase ad infinitum.
O que quero dizer, meus amigos, é que a ciência processual, nestas últimas décadas,
inovou profundamente em relação a instituto e técnicas, mas não soube fazer com que estes
mudassem os conceitos.
Minha esperança, neste preciso momento, é que essas reflexões possam inspirar a pro-
missora geração de jovens processualistas que me escutam ou me leem, para incentivá-los à
elaboração de uma nova teoria geral do processo, que revisite seus fundamentos conceitu-
ais, adaptando-os à realidade social e que corresponda à renovação dos institutos do direito
processual.

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