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As normas constitucionais programáticas e

a reserva do possível

Paulo Roberto Lyrio Pimenta

Sumário
1. Delimitação do estudo. 2. Rediscutindo a
eficácia das normas jurídicas. 3. As normas cons-
titucionais programáticas. 3.1. Conceito, origem
e eficácia. 3.2. Tipos de normas programáticas.
4. As situações subjetivas geradas pelas normas
programáticas. 5. A reserva do possível. 6. A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
7. Conclusões.

1. Delimitação do estudo
O presente estudo ocupa-se da possi-
bilidade de aplicação da teoria da reserva
do possível como forma de contenção da
eficácia das normas constitucionais pro-
gramáticas.
Nos últimos anos no Brasil, em face
do reconhecimento pelo Supremo Tribu-
nal Federal, ainda que tardio, da eficácia
dessas normas constitucionais, surgiu a
discussão acerca das limitações financeiro-
-orçamentárias à implementação dos
direitos subjetivos por estas assegurados.
Com base na experiência alemã, na qual
apareceu a teoria da “reserva do possível”
(der Vorbehalt des Möglichen), pretende-se
Paulo Roberto Lyrio Pimenta é Pós-Doutor discutir no presente estudo se existe uma
em Direito pela Ludwig-Maximilians-Univer-
fórmula capaz de compatibilizar a aplica-
sität (Universidade de Munique), Doutor em
Direito pela PUC-SP e Mestre em Direito pela
ção desta concepção jurisprudencial com a
UFBA, onde leciona nos Cursos de Graduação eficácia inerente às normas constitucionais,
e de Pós-Graduação. Juiz Federal na Bahia. Ex- inclusive aquelas qualificadas como “pro-
-Pesquisador do CNPQ. gramáticas”.

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2. Rediscutindo a eficácia tivamente cumprida por seu destinatário.
das normas jurídicas Assim, por exemplo, a norma que prevê o
uso obrigatório de cinto de segurança em
A eficácia apresenta basicamente três veículos automotores apresentará eficácia
acepções na teoria do direito: a) aptidão social no instante em que os condutores de
para produzir efeitos jurídicos; b)produção automóveis fizerem uso desse equipamento
de efeitos jurídicos; c)aplicabilidade. de segurança. Convém salientar, contudo,
Em relação às regras jurídicas, tem-se que, ainda que a norma não seja cumprida,
afirmado que a eficácia pode se manifestar poderá apresentar esse tipo de eficácia,
de quatro formas distintas. à medida que os objetivos visados com a
A primeira, denominada eficácia técnica, sua edição sejam atendidos, a exemplo da
refere-se à aptidão de a norma produzir satisfação ideológica (FERRAZ JÚNIOR,
efeitos, considerando a sua estrutura. Vale 2001, p. 95).
dizer, examina-se, neste ponto, se os âm- Obviamente que a existência de eficácia
bitos de validade (KELSEN, 2000, p. 13) social dependerá da presença das demais
estão delineados de maneira precisa, para modalidades de eficácia, pois a ausência de
que a norma tenha aptidão para atuar no algum dos âmbitos de validade da norma
plano dos fatos. Destarte, observar-se-á se ou o descompasso entre esta e o plano dos
os âmbitos de validade material, pessoal, fatos impossibilitará a sua observância.
temporal e espacial estão descritos, de for- É com base na eficácia técnica que to-
ma suficiente, pela fonte formal de direito das as normas jurídicas, e não apenas as
(documento normativo) que tiver veiculado constitucionais, podem ser classificadas
a regra. Trata-se, em outras palavras, de um em normas de eficácia plena, contível e
problema intranormativo. Assim, a análise limitada. O problema aí é da presença ou
da eficácia em comento é interna à norma não dos domínios de vigência da norma,
jurídica. que a permitem atuar no plano dos fatos.
No segundo, denominado eficácia semân- Tal aptidão de produzir efeitos – eficácia
tica, confronta-se o plano normativo com a técnica –, como ensina Tércio Sampaio Fer-
situação de fato por ele regulado. Assim, raz Júnior (2001, p. 196), admite graus, cuja
o cotejo entre a hipótese normativa e o aferição depende da verificação das funções
suporte fático revelará a compatibilidade eficaciais. Nesta linha de entendimento, são
necessária para a norma atuar. O descom- três as funções eficaciais: de bloqueio, de
passo entre o plano dos fatos e o da norma programa e de resguardo. A primeira bus-
importará na ausência desse tipo de eficá- ca obstaculizar a prática de determinada
cia. Ex.: norma que prevê a utilização por conduta, enquanto a de programa impõe
determinados sujeitos de um tipo de apa- um fim a ser alcançado e a de resguardo
relho audiovisual inexistente no mercado. um determinado comportamento (FERRAZ
Se tais modalidades eficaciais se fizerem JÚNIOR, 2001, p. 97). Dada à similitude
presentes, a regra jurídica incide, jurisdi- entre as duas últimas, preferimos separar
cizando suportes fáticos, fenômeno deno- as funções eficaciais em duas categorias:
minado por Miranda (1999, p. 63) eficácia positiva e negativa.
legal: “a incidência da regra jurídica é a sua Nas normas jurídicas, as mencionadas
eficácia; não se confunde com ela, nem com funções se manifestam por meio de graus
a eficácia do fato jurídico; a eficácia da regra diversos. Assim, numa regra de outorga
jurídica é a sua incidência” (1999, p. 63). de competência, a principal função é a
Por fim, tem-se a hipótese de eficácia so- positiva, aparecendo a negativa de forma
cial (efetividade), que significa a produção secundária. Quando a CF outorga, por
dos efeitos previstos pela norma no plano exemplo, competência exclusiva à União
dos fatos, por ter sido voluntária ou coa- para legislar sobre direito penal, faculta a
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este ente a prática de um comportamento Assim, as Constituições passaram a
positivo, destacando-se a função positiva. inserir em seus textos direitos econômicos
No entanto, tal regra veda que os demais e sociais, em vez de se limitarem à consa-
entes políticos legislem sobre a matéria, gração de direitos civis e liberdades polí-
aparecendo aí a função negativa. É possí- ticas. Essa mudança de postura das Cartas
vel, portanto, falar numa função primária Constitucionais importou no aparecimento
e noutra secundária. das normas constitucionais programáti-
Com base em tais funções e tendo em cas, na medida em que estas passaram
vista os âmbitos de validade é que as nor- a representar a fórmula aceitável para o
mas jurídicas admitem a classificação supra, reconhecimento, em sede constitucional,
quanto ao grau de eficácia: plena, limitada de novos direitos, todavia, sem eficácia
e contível. Quando a função eficacial pu- técnica suficiente.
der ser obtida sem a ajuda de outra regra, Essa deficiência técnica das normas em
diz-se que a norma tem eficácia plena. epígrafe conduziu a doutrina a uma inte-
Quando houver necessidade de auxílio de ressante discussão em torno da sua eficácia.
outras normas, a hipótese será de eficácia Num primeiro momento, defendia-se que
limitada, por uma deficiência interna à as normas programáticas não passavam de
norma, enquanto na última situação a exortações morais, declarações desprovidas
eficácia é plena, havendo a possibilidade de qualquer eficácia. Posteriormente, entre-
de outra norma restringir a possibilidade tanto, por força da influência da doutrina
de produção de efeitos (FERRAZ JÚNIOR, italiana, preocupada com a existência de
2001, p. 197-198). um grande número de regras programá-
ticas na Constituição italiana de 1947, um
3. As normas constitucionais novo posicionamento apareceu.
programáticas Liderados pelo constitucionalista ita-
liano Vezio Crisafulli, uma nova corrente
doutrinária surgiu, defendendo a eficácia
3.1. Conceito, origem e eficácia das normas constitucionais programáticas,
As normas constitucionais programáti- recusando a estas o mero rótulo de “con-
cas podem ser definidas, de maneira sintéti- selhos”, “declamações” ou “exortações
ca, como regras constitucionais que buscam morais”.
conciliar interesses de grupos políticos e Segundo essa corrente, que em estudo
sociais antagônicos, apresentando conteú- anterior denominamos “corrente moder-
do econômico-social e função eficacial de na” (PIMENTA, 1999, p. 150), as normas
programa, obrigando os órgãos públicos, em estudo são eficazes, contudo, o modo
mediante a determinação das diretrizes como a eficácia se manifesta é diferente, em
que estes devem cumprir (PIMENTA, 1999, relação às demais regras constitucionais.
p. 173). Com efeito, como os âmbitos (elementos)
Essas regras apareceram com o sur- normativos sofrem de uma deficiência,
gimento do Estado Social, no período por não estarem devidamente delimitados,
posterior à Primeira Guerra Mundial, existe de fato um obstáculo à aplicabilidade
notadamente após a crise de 1920. A partir direta e imediata das normas programáti-
desse período, o Estado passou a intervir cas. Contudo, elas produzem efeitos jurí-
de forma constante no domínio econômico, dicos, que se espalham por todo o sistema,
transformando-se no principal protagonis- pelos seguintes motivos: i) estabelecem
ta da cena econômica. Defendia-se, como um vínculo obrigatório para os órgãos
anota acertadamente Edvaldo Brito (1982, públicos; ii) limitam a discricionariedade
p. 19), “em lugar da liberdade que oprimia, a dos órgãos legislativos; iii) determinam a
intervenção que libertaria”. inconstitucionalidade superveniente das
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normas infralegais que disponham em Por fim, tem-se as normas programáticas
sentido contrário; iv) proíbem a edição de definidoras dos fins organizacionais, econômicos
normas contrárias; v) servem como ele- e sociais do Estado, as quais fixam os fins
mento de integração dos demais preceitos mediante os quais o Estado se organiza,
constitucionais; vi) fixam diretivas para inclusive os de natureza econômica e social.
o legislador ordinário; vii) estabelecem Ex: normas veiculadas pelo art. 170 e 193.
diretrizes para a interpretação das fontes Com base nesta separação, pode-se exa-
infraconstitucionais. minar, então, quais são as situações jurídi-
Da admissibilidade da eficácia das nor- cas produzidas pelas normas em epígrafe.
mas em estudo surge uma outra questão: a
definição do tipo de situação jurídica que 4. As situações subjetivas geradas
podem produzir, exame que demanda,
pelas normas programáticas
necessariamente, uma separação acerca dos
tipos de normas programáticas. A situação jurídica é um conjunto de
comportamentos possíveis, ou seja, um fei-
3.2. Tipos de normas programáticas xe de condutas modalizadas pelas normas
As normas constitucionais programá- jurídicas. Há um leque enorme de situações
ticas apresentam conteúdo diversificado, jurídicas que podem ser produzidas pelas
sendo formuladas, ademais, por meio de normas jurídicas, entre as quais pode-se
diferentes tipos de enunciados prescritivos. mencionar as situações de poder, direito
Por esse motivo, podem ser separadas em subjetivo, dever jurídico, sujeição, etc.
quatro tipos (PIMENTA, 1999, p. 142-145). As normas constitucionais são eficazes,
O primeiro tipo consiste nas normas como salientado anteriormente. No en-
programáticas em sentido estrito, as quais tanto, a eficácia manifesta-se de maneira
mencionam uma legislação futura para a diversa, em relação às normas de eficácia
atuação positiva do programa que veicu- plena e de aplicabilidade direta e imediata,
lam, ou seja, prevêem um programa, exigin- bem como as normas de eficácia contível.
do que o legislador o implemente por meio Em qualquer situação, as normas pro-
de lei. Como exemplo dessa modalidade, gramáticas geram direito subjetivo. Não se
podem-se citar as normas veiculadas pelos deseja aqui ingressar na discussão acerca
arts. 186, 174, §1o, e 173, §4o, da Constituição do conceito de direito subjetivo, eis que
Federal. escapa ao objeto do presente estudo. No
De outro lado, existem as normas progra- momento, o importante é perceber que a
máticas meramente definidoras de programas, expressão “direito subjetivo” engloba um
que estabelecem os programas, entretanto, conjunto grande de posições jurídicas, di-
não mencionam a necessidade de atuação versas entre si.
do legislador por meio de lei. Ex: norma Em face da existência dessa diversidade,
veiculada pelo art. 144 da CF. os direitos subjetivos podem ser separados,
Há, ainda, as normas programáticas segundo a proposta teórica de Robert Alexy
enunciativas ou declaratórias de direitos. Es- (1988, p. 171-185), em direitos a ações ne-
sas normas enunciam direitos, geralmente gativas (Rechte auf negative Handlungen) e
econômicos ou sociais, sem estabelecer a direitos a ações positivas (Rechte auf positive
forma em que deverão ser implementados, Handlungen). No primeiro grupo (direitos
vinculando, todavia, todos os órgãos pú- de defesa), identificam-se três espécies:
blicos à sua observância, mesmo diante da i) direitos ao não embaraço de ações; ii)
ausência de regulação infraconstitucional. direitos à não afetação de características e
As normas inseridas pelos arts. 6o, 196 e situações; iii) direitos à não eliminação de
205 da Carta Magna são típicos exemplos posições jurídicas. No âmbito dos direitos
dessa modalidade. a ações positivas, duas modalidades de-

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vem ser identificadas: direitos cujo objeto realização do programa. Contudo, isso não
é uma ação fática (faktische Handlung) ou a impede a adoção de providências normati-
uma ação normativa (normative Handlung) vas. Logo, dependendo da situação, essas
(ALEXY, 1988, p.179). normas poderão gerar direitos a prestações
O direito a uma prestação fática consiste fáticas ou normativas.
no direito de exigir do Estado a adoção de Por outro lado, as normas programá-
providências materiais, ou seja, de pres- ticas enunciativas ou declaratórias de
tações fáticas, através de diversos meios. direitos veiculam os chamados direitos
Alexy (1988, p. 174-181) exemplifica tal fundamentais sociais. Essa modalidade de
situação, citando o direito de um proprie- direito fundamental pode ser satisfeita por
tário de escola privada a um auxílio estatal meio de prestações normativas ou fáticas.
por meio de subvenções, o direito a um Tudo vai depender da estrutura do enun-
mínimo existencial e a pretensão individual ciado prescritivo que o veicule. Isso porque
do cidadão à criação de vagas nas universi- alguns direitos sociais são extremamente
dades. A satisfação desses direitos requer complexos, exigindo para a sua satisfação
a utilização de alguma forma jurídica, no a realização de um leque grande de ações
entanto, essa não é relevante. O importante estatais, que podem ir desde prestações em
é que, após a adoção de alguma providência dinheiro até a elaboração de normas gerais.
estatal, o direito possa ser desfrutado pelo Por fim, deve-se examinar as situações
seu titular. A irrelevância da forma jurídica jurídicas geradas pelas normas programá-
utilizada na realização da conduta estatal ticas definidoras dos fins organizacionais,
para a satisfação do direito, segundo Alexy econômicos e sociais do Estado. Tais nor-
(1988, p. 180), é o critério diferenciador mas prevêm as finalidades pelas quais o
dessa modalidade de direito subjetivo do Estado se organiza. Assim, estabelecem os
direito a ações positivas normativas. objetivos que devem ser perseguidos pelo
O direito a uma ação normativa (norma- Estado. Logo, são normas que estabelecem
tive Handlung), por sua vez, exige, para a um direito a uma prestação estatal, direito
sua satisfação, a produção de atos estatais a algo (Rechte auf etwas), na feliz expressão
de criação de normas (ALEXY, 1988, p.180) de Robert Alexy (1988, p. 181). Tais direi-
jurídicas. Vale dizer, em tais situações, o tos, como defende o festejado publicista
Estado deve atuar, elaborando normas alemão, são relações triádicas entre um
gerais ou individuais. titular de um direito fundamental, o Es-
Com base nessa separação, evidencia-se tado e uma ação estatal positiva (ALEXY,
que as normas programáticas criam para o 1988, p. 406). Para o alcance da finalidade
particular o direito a algo, ou seja, direito a prevista em tais normas programáticas, o
prestações positivas por parte do Estado, as Estado deve adotar uma série de condutas,
quais podem consistir em prestações fáticas tanto de ordem material quanto normati-
ou normativas. va. Assim, por exemplo, para realizar o
As normas programáticas em sentido direito subjetivo veiculado pelo art. 170, V,
estrito estabelecem programas, exigindo da CF, promulgou-se o Código de Defesa
que o legislador os implemente por meio do Consumidor e uma série grande de
de lei, vale reafirmar. Sendo assim, criam normas legislativas. De outro lado, para
para os seus destinatários direito subjetivo satisfazer o direito previsto no art. 170,
a prestações normativas, pois normas ge- VI (defesa do meio ambiente), exige-se do
rais deverão ser veiculadas por meio de lei Estado condutas normativas e prestações
para que o direito seja satisfeito. materiais. Disso se infere que as normas
As normas programáticas, meramente em estudo poderão veicular tanto direitos
definidoras de programas, não estabelecem a prestações fáticas quanto direitos a ações
a necessidade de atuação legislativa para a normativas.

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Do exposto, pode-se concluir que todas Essa teoria apareceu em um julgamento
as normas programáticas geram direitos do primeiro Senado do Bundesverfassungs-
subjetivos a prestações positivas (Rechte gericht, ocorrido em 18 de julho de 1972, in-
auf positive Handlungen), variando o tipo de titulado caso “numerus clausus”, realizado
direito conforme a modalidade da norma em sede de controle de constitucionalidade
programática. das leis, que tinha por objeto legislações
Por conseguinte, a realização desses sobre limitação ao acesso à Faculdade de
direitos subjetivos poderá importar em Medicina das Universidades de Hamburgo
custos financeiros pelo Estado. Como há e da Bavária, promulgadas, respectivamen-
uma limitação dos recursos financeiros te, em 1969 e 1970 (GRIMM; KIRCHHOF;
disponíveis pelo Estado, existe uma neces- EICHBERGER, 2007, p. 282-297).
sidade de tentar encontrar uma fórmula A lei da Universidade de Hamburgo
para solucionar esse problema. estabelecia, em seu §17, I, que o acesso para
algumas Faculdades poderia ser limitado,
se e enquanto fosse necessário à capacida-
5. A reserva do possível de de absorção da Universidade, a fim de
A satisfação dos direitos subjetivos a garantir corretamente o estudo na respecti-
prestações fáticas, inclusive aqueles veicu- va área de especialidade. Previa, também,
lados pelas normas programáticas, exige a que as limitações ao acesso à Universidade
realização de despesas pelo Estado. Portan- poderiam ser regulamentadas por meios
to, a implementação desses direitos importa de regulamentos de admissão, nos quais
em custos para o ente público. Isso não quer poderiam ser encontrados também deter-
dizer que os direitos a prestações negativas minações sobre a escolha e o número de
(direitos de defesa) não importem também candidatos admitidos. Tais regulamentos
em despesas. O que se deseja acentuar é que seriam concluídos pelo Conselho (Senado)
os direitos a prestações positivas apresen- Acadêmico, depois da oitiva das áreas de
tam uma maior relevância econômica, pois especialidades afetadas. Com base nesse
a satisfação não pode ocorrer sem que para dispositivo legal, o Conselho Acadêmi-
isso se aloquem recursos financeiros. co estabeleceu, então, regulamentos de
Assim, existem limites de duas natu- admissão para o semestre de verão de
rezas para o Estado dispor das prestações 1970 prevendo que 60% das vagas seriam
reconhecidas pelas normas constitucionais preenchidas pelo critério do desempenho
que outorgam esse tipo de direito: a) limite e 40% pelo princípio anual. Pelo primeiro
fático, que se relaciona à disponibilidade critério, seriam consideradas basicamente
efetiva de recursos; b) limite jurídico, pois as notas do certificado de matrícula; en-
há um limitado poder do estado em dispor quanto pelo segundo seriam admitidos os
do objeto do direito reconhecido (SARLET; candidatos que tivessem prestado serviço
FIGUEREDO, 2010, p. 28-29). Como exem- militar ou serviço comunitário (GRIMM;
plo dessa segunda modalidade, pode-se KIRCHHOF; EICHBERGER, 2007, p. 283-
citar a impossibilidade de determinado 284).
ente em realizar determinada conduta, por A lei do Estado da Bavária, por sua
esta não se enquadrar no âmbito de suas vez, promulgada em 8 de julho de 1970,
competências constitucionais. prescrevia que a admissão à Universidade
Baseando-se na constatação da existên- seria limitada com base no critério da neces-
cia de limites financeiro-orçamentários, sidade de conservação de um determinado
surgiu na Alemanha, no início dos anos estabelecimento de ensino, em termos de
de 1970, determinada construção teórica: capacidade de absorção da Instituição
a reserva do possível (Der Vorbehalt des Superior. Além disso, a lei previa critérios
Möglichen). para a alocação de vagas e continha, inclusi-
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ve, uma autorização para a regulamentação Destarte, nasceu a teoria da reserva do
para o Ministério da Cultura da Bavária possível, ratificada pelo Tribunal Cons-
implementar essas especificações. titucional Federal alemão em julgados
A Corte observou, inicialmente, que o posteriores, a qual corresponde à ideia de
art. 12, inciso I, da Grundgesetz, que consa- que a efetivação de direitos constitucionais
gra a liberdade de profissão, assegura aos sociais submete-se à reserva da capacidade
indivíduos um direito de defesa contra financeira do Estado, pois depende de pres-
limitações para o sistema educacional. To- tações financiadas pelos cofres públicos.
davia, não se trata apenas de uma função Essa disponibilidade financeira deve ser
de proteção contra intervenções do poder avaliada pelo Poder Legislativo, pois é o
público, pois também existe no Estado órgão que detém competência constitucio-
moderno uma exigência complementar dos nal para elaborar o orçamento público. É
direitos fundamentais em assegurar uma ele quem decide, assim, o que corresponde
participação em prestações estatais. a uma exigência razoável, suscetível de ser
Concluiu-se que o art. 12, I, combinado atendida pelo orçamento.
com o art. 3, I, da GG e o mandamento do Sendo assim, consoante concluem
Estado Social assegurariam ao cidadão Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo (2010, p.
um direito subjetivo ao preenchimento 30), a reserva do possível apresenta uma
dos pressupostos subjetivos à admissão tríplice dimensão, pois alcança a efetiva
da Faculdade da sua escolha. Esse di- disponibilidade fática dos recursos finan-
reito de acesso seria limitado (GRIMM; ceiros necessários à efetivação de direitos
KIRCHHOF; EICHBERGER, 2007, p. 287) fundamentais, a disponibilidade jurídica
Enquanto direito de participação, não dos recursos humanos e materiais – que se
se restringiria aos existentes, contudo, refere à distribuição de receitas, competên-
submeter-se-ia à reserva do possível (Vor- cias tributárias, orçamentárias, legislativas
behalt des Möglichen), no sentido do que o e administrativas – e a proporcionalidade
indivíduo pode exigir razoavelmente da e a razoabilidade da prestação postulada
sociedade. É o legislador quem tem a res- pelo cidadão.
ponsabilidade em primeira linha de realizar Trata-se, em outras palavras, de um
esse julgamento, o qual, por meio do seu limite jurídico e fático à efetivação dos
orçamento econômico, também considera direitos fundamentais, inclusive daqueles
outras preocupações da comunidade e, assegurados por normas constitucionais
conforme o dispositivo expressamente no programáticas. Vale dizer, em determi-
art. 109, II, da GG, tem que corresponder nadas situações, a eficácia dessas normas
às necessidades de cálculo do equilíbrio pode vir a sofrer uma restrição, decorrente
geral econômico. da falta de recursos financeiros estatais,
Nesta passagem do julgado reside o para realizar determinada providência
núcleo da teoria em pauta, a qual reconhece material.
a existência de limitações orçamentárias à Isso significa que a efetivação de direi-
realização das pretensões asseguradas por tos assegurados pelas normas em epígrafe
dispositivos constitucionais, admitindo que pode colidir com princípios constitucionais
cabe ao legislador realizar a escolha das orçamentários. Assim sendo, não há como
prioridades, eis que detém competência negar que o único caminho existente para
constitucional para elaborar o orçamento, resolver esse problema é defender a aplica-
estando adstrito ao cumprimento de deter- ção da ponderação, do sopesamento entre
minadas regras constitucionais ao realizar princípios, como defende Alexy (1988, p.
essa tarefa. Por isso, o indivíduo só pode 465):
exigir o que a sociedade lhe pode oferecer “a questão acerca de quais direitos
em condições razoáveis. fundamentais sociais o indivíduo
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definitivamente tem é uma questão um direito definitivo à prestação, pois o
de ponderação entre princípios. De princípio da liberdade fática terá um peso
um lado está, sobretudo, o princí- maior do que os demais princípios cons-
pio da liberdade fática. Do outro titucionais formais e materiais colidentes,
lado estão os princípios formais da como defende Alexy (1988, p. 470).
competência decisória do legislador Por essa razão, Ricardo Lobo Torres
democraticamente legitimado e o (2010, p. 74) conclui que “a proteção posi-
princípio da separação de poderes, tiva do mínimo existencial não se encontra
além de princípios materiais, que sob a reserva do possível, pois a sua fruição
dizem respeito sobretudo à liberdade não depende do orçamento nem de políti-
jurídica de terceiros, mas também a cas públicas, ao contrário do que acontece
outros direitos fundamentais sociais com os direitos sociais”.
e a interesses coletivos”. Em outras palavras, em tais situações
Ao analisar o tema, Cristina Queiroz, a eficácia da norma programática que vei-
Professora da Universidade Autônoma cular um direito com essa qualidade não
de Lisboa, extrai idêntica conclusão, ao poderá ser afastada por razões financeiras.
afirmar que a reserva do possível não sig- A reserva do possível terá, portanto, um
nifica ineficácia dos direitos fundamentais peso menor, que impossibilita a sua apli-
sociais. A cláusula, segundo ela, “expressa cação. Calha aqui a observação de Alexy
unicamente a necessidade de sua ponderação” (1988): “a força do princípio da competência
(QUEIROZ, 2005, p. 211). orçamentária do legislador não é ilimitada.
Destarte, a reserva do possível não Ele não é um princípio absoluto”.
importa em esvaziamento da eficácia das Do exposto, pode-se inferir que haverá
normas programáticas ou até mesmo em dificuldades na sindicabilidade (justicia-
reconhecimento da sua ineficácia. De forma bilidade) dos direitos em estudo; contudo,
alguma. O significado dessa construção ju- isso não pode ser razão suficiente para se
risprudencial é que os direitos estabelecidos defender a impossibilidade do controle
pelas normas em estudo são direitos prima jurisdicional em face desse tipo de situação.
facie, razão pela qual estão submetidos a Dificuldades também existem para o exer-
uma necessidade de ponderação (ALEXY, cício da função jurisdicional em inúmeras
1988, p. 468-469). Logo, em determinados situações; no entanto, os obstáculos não
casos poderá ter um peso maior um prin- podem representar óbice à sindicabilidade.
cípio orçamentário, em detrimento de um Convém observar, no entanto, que,
direito fundamentado em um princípio diante do caso concreto, quando o Poder
veiculado pelas normas programáticas. Público alegar a inexistência de recursos
Noutros, uma situação inversa poderá financeiros para a efetivação de determi-
ocorrer, com a prevalência do princípio nado direito previsto em norma progra-
consagrado pelas normas em pauta. mática, postulando, portanto, a aplicação
A atribuição de um maior peso ao direi- da reserva do possível, deverá fazer prova
to decorrente de um princípio consagrado da alegação. A teoria não pode ser utiliza-
por uma norma constitucional programá- da como mero pretexto para se esvaziar a
tica deverá ocorrer quando se tratar de eficácia das normas constitucionais pro-
direitos fundamentais sociais mínimos (mi- gramáticas. Alegação de falta de recursos
nimale soziale Grundrechte), ou seja, direito à desacompanhada de prova não possibilita
moradia, educação fundamental, patamar a aplicação da reserva do possível.
mínimo de assistência médica, enfim, a um Parece-nos, pois, que, ao examinar de-
padrão mínimo de sobrevivência (ALEXY, terminada pretensão deduzida em Juízo de
1988, p. 466). Em tais casos, o cidadão terá efetivação de um direito que irá importar

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em custos financeiros para o Poder Público, rara, denominada Distrofia Muscular de
deve o Poder Judiciário atuar com a máxi- Duchenel. O Ministro prolator da Decisão
ma cautela, pois não detém conhecimento afirmou que
sobre as possibilidades financeiras do Es- “a imprescindibilidade da medida
tado em efetivá-la, no plano fático. Assim, cautelar concedida pelo Poder Judi-
deve observar, inicialmente, a razoabili- ciário do Estado de Santa Catarina
dade e a proporcionalidade da pretensão. (necessidade de transplante das
Não é razoável, por exemplo, postular-se células mioblásticas, que constitui
judicialmente a construção de uma escola o único meio capaz de salvar a vida
para se assegurar a determinado cidadão do paciente) e a impostergabilidade
o direito à educação, previsto na Consti- do cumprimento do dever político-
tucional. Nesse caso, seria mais razoável -constitucional que se impõe ao Poder
postular a obtenção de vaga em uma escola Público, em todas as dimensões da
pública já existente. organização federativa, de assegurar
Em segundo lugar, o Judiciário deve ve- a todos a proteção à saúde (CF, art.
rificar se a providência material postulada 196) e de dispensar especial tutela à
se insere no âmbito das competências do criança e ao adolescente (CF, art. 6o,
ente público que vier a figurar como réu c/c art. 227, §1o) constituem fatores
na demanda. Não se pode, por exemplo, que, associados a um imperativo de
exigir de um Município a realização de solidariedade humana, desautorizam
uma prestação de competência da União. o deferimento do pedido formulado
Por fim, deve realizar a ponderação, pelo Estado de Santa Catarina” (STF,
caso o Poder Público tenha alegado a apli- Pet 1246 MC/SC, Rel. Min. Celso de
cação da reserva do possível. Aqui entra a Mello, DJ 13/02/1997).
investigação do tipo de direito fundamental Após reconhecer a eficácia da norma que
demandado, pois, se este se enquadrar na consagra o direito à saúde, o Ministro rea-
classe dos direitos sociais mínimos, terá lizou uma ponderação, afastando o argu-
maior peso o princípio que o consagra do mento de impossibilidade de cumprimento
que princípios financeiro-orçamentários. da decisão em face do ônus financeiro que
O problema da efetivação das normas iria causar ao Poder Público, verbis:
programáticas pelo Poder Judiciário, “Entre proteger a inviolabilidade do
portanto, é bastante complexo, exigindo direito à vida, que se qualifica como
um procedimento racional, orientado pela direito subjetivo inalienável assegu-
fórmula da ponderação (Abwägung). rado pela própria Constituição da
República (art. 5o, caput), ou fazer
6. A jurisprudência do Supremo prevalecer, contra essa prerrogativa
fundamental, um interesse financeiro
Tribunal Federal
e secundário do Estado, entendo –
O primeiro precedente importante do uma vez configurado esse dilema
Supremo Tribunal Federal sobre o tema em – que razões de ordem ético-jurídica
pauta foi uma decisão monocrática proferi- impõem ao julgador uma só e pos-
da, em 31 de janeiro de 1997, pelo Ministro sível opção: o respeito indeclinável
Celso de Mello, que, no exercício da Pre- à vida” (STF, Pet 1246 MC/SC, Rel.
sidência, indeferiu pedido de suspensão Min. Celso de Mello, DJ 13/02/1997).
de medida liminar concedida por Juiz de Posteriormente, ao apreciar pedido de
Direito, que havia determinado ao Estado intervenção federal no Estado de São Pau-
de Santa Catarina o custeio de tratamento lo, fundamentado no não pagamento de
de saúde de um menor portador de doença precatórios, a Corte rejeitou esse pedido,

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por entender que não observava o prin- relativos ao tema em epígrafe. Em primeiro
cípio da proporcionalidade. Com base na lugar, ressaltou-se a atribuição do STF para
doutrina de Robert Alexy (1988), realizou efetivar os direitos econômicos, sociais e
uma ponderação entre princípios (STF, culturais, sob pena de violação positiva
IF no 470-5, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ ou negativa da Constituição. Além disso,
20/06/2003). O aspecto mais importante reconheceu-se que a Suprema Corte não
dessa decisão é a referência expressa con- tem atribuição para formular e implementar
tida no voto do Relator ao caso “numerus políticas públicas; todavia, em caráter ex-
clausus” do Bundesverfassungsgericht, acima cepcional, tal atribuição poderá ser exercida
mencionado. Pela primeira vez o Tribunal pelo Poder Judiciário, em face do descum-
enfrentou expressamente o tema objeto primento dos encargos políticos-jurídicos
desse precedente da Corte alemã, para dos órgãos competentes que importe em
concluir que o Estado estaria submetido comprometimento da eficácia dos direitos
à “reserva do financeiramente possível”, individuais e/ou coletivos de estatura cons-
existindo “um quadro de impossibilidade titucional. A Corte assinalou, ainda, que
financeira quanto ao pagamento integral “o caráter pragmático das regras
e imediato dos precatórios relativos a inscritas no texto da Carta Política
créditos de natureza alimentícia” (STF, ‘não pode converter-se em promessa
IF no 470-5, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ constitucional inconsequente, sob
20/06/2003). Rejeitou-se, então, o pedido pena de o Poder Público, fraudando
de intervenção, por entender que não ha- justas expectativas nele depositadas
via recursos financeiros disponíveis para pela coletividade, substituir, de
o Estado realizar o pagamento em dia dos maneira ilegítima, o cumprimento
precatórios de caráter alimentar. Destar- de seu impostergável dever, por um
te, afastou-se a aplicação dos princípios gesto irresponsável de infidelidade
relativos ao pagamento dos precatórios, governamental ao que determina a
dando-se prioridade à limitação financeiro- própria Lei Fundamental do Estado’”
-orçamentária do Estado. (STF, Informativo 345, 2004).
Em abril de 2004, ocorreu um dos mais Nessa passagem do voto do Ministro Rela-
importantes julgamentos sobre o tema em tor, está consagrado, portanto, o reconheci-
estudo. O caso versava sobre uma Arguição mento, de forma expressa, da eficácia das
de Descumprimento de Preceito Funda- normas constitucionais programáticas, na
mental (ADF) no 45, ajuizada contra o veto linha do que defende a moderna doutrina
do Presidente da República sobre o §2o do sobre a matéria. Finalmente, a decisão
art. 55 da Lei de Diretrizes Orçamentárias. apresenta, ainda, a análise da “reserva
O autor da ação alegava que o veto presi- do possível”. O Tribunal admitiu que a
dencial havia importado em desrespeito realização de direitos econômicos, sociais
a preceito fundamental decorrente da EC e culturais depende, em grande medida,
29/2000, que foi promulgada para garan- de um vínculo financeiro subordinado às
tir recursos financeiros mínimos a serem possibilidades orçamentárias do Estado.
aplicados nas ações e serviços de saúde. Sendo assim, a limitação de recursos deverá
Posteriormente, o Presidente da República ser levada em consideração pelo intérprete
remeteu ao Congresso Nacional projeto de ao examinar se algum bem jurídico pode
lei que restaurou em sua integralidade o ser exigido na via judicial. No entanto,
dispositivo vetado. as prestações que compõem o mínimo
Por esse motivo, a ADPF foi julgada existencial não poderiam ser afetadas pela
prejudicada, todavia, o voto do Ministro limitação financeiro-orçamentária. Por fim,
Relator examinou importantes aspectos concluiu-se que

16 Revista de Informação Legislativa


“os condicionamentos impostos, pela se submete à avaliação meramente discri-
cláusula da ‘reserva do possível’, ao cionária da Administração Pública para ser
processo de concretização dos direi- implementado. Vale dizer, foi reconhecida
tos de segunda geração – de implan- a eficácia da norma do art. 208, IV, do Tex-
tação sempre onerosa –, traduzem-se to Magno. Mais uma vez foi reconhecida
em um binômio que compreende, de a competência do Poder Judiciário para
um lado, (1) a razoabilidade da pre- determinar a implementação de políticas
tensão individual/social deduzida públicas, em face da omissão do Poder Pú-
em face do Poder Público e, de outro, blico capaz de comprometer a eficácia dos
(2) a existência de disponibilidade direitos sociais e culturais consagrados pela
financeira do Estado para tornar Constituição Federal (STF, RE no 410715,
efetivas as prestações positivas dele Rel. Min. Celso de Mello, DJ 03/02/2006.).
reclamadas” (STF, Informativo 345, O tema da reserva do possível também foi
2004). examinado. A Corte reconheceu, no voto
A análise desse julgado demonstra que o do Ministro Relator, que a implementação
Tribunal nele estabeleceu premissas neces- dos direitos econômicos e sociais depende
sárias à efetivação dos direitos previstos pe- da realização de prestações positivas pelo
las normas constitucionais programáticas, Estado, que importam em custos financei-
entre os quais se inclui a necessidade de ros. Por isso, a realização desses direitos é
observância do condicionamento imposto gradual, em face do inescapável vínculo
pela reserva do possível, cujo conteúdo, financeiro existente com as possibilidades
inclusive, foi definido. orçamentárias do Estado. No entanto, não
Esse entendimento acerca da efetivação pode o Poder Público manipular a sua ati-
dos direitos econômicos, sociais e culturais vidade financeira para criar um obstáculo
foi ratificado pelo Pretório Excelso no final à efetivação desses direitos fundamentais.
do ano de 2005, em decisão que envolvia o Em julgados posteriores, que também
direito de educação, relatada pelo Ministro versavam sobre o direito à educação, a
Celso de Mello. Neste caso, o Ministério Corte reafirmou esse posicionamento.1 O
Público do Estado de São Paulo havia ministro Relator esclareceu, ainda, em seu
ingressado com uma Ação Civil Pública voto, que “ao Poder Judiciário cabe fazer
contra o Município de Santo André para valer, no conflito de interesses, a lei e a
obrigar o ente público, com base no art. 208, Carta Federal. Deficiência orçamentária não
IV, da CF, a providenciar vaga a criança em tem o efeito de projetar no tempo e, confor-
creches e pré-escolas próximas de sua resi- me a política em curso, indefinidamente o
dência. O juiz de direito deferiu o pedido, cumprimento de preceitos constitucionais
obrigando o Município ao cumprimento de importância ímpar, no que voltados à
do mandamento constitucional. Inconfor- educação”.
mado, o réu apelou da decisão, obtendo No julgamento da Ação Direta de In-
êxito no Tribunal de Justiça de São Paulo, constitucionalidade no 3.768, o Pretório
que desobrigou, então, o Poder Público do Excelso voltou a enfrentar o problema da
cumprimento do direito reconhecido pela reserva do possível. O objeto dessa ADIN
Constituição Federal. O Ministério Público, era o art. 39 da Lei no 10.741, de 01/10/2003,
então, interpôs Recurso Extraordinário denominada Estatuto do Idoso, que asse-
perante o Supremo Tribunal Federal. No gura gratuidade dos transportes públicos
julgamento dessa matéria, o Pretório Ex- 1
STF, AG. REG. no AI No 455.802, Rel. Min. Marco
celso admitiu que a educação infantil é Aurélio, DJ 17/08/2007; AG. REG. no RE 411. 518, Rel.
um direito fundamental de toda criança, Min. Marco Aurélio, DJ 26/04/2007; AG. REG. no RE
consagrado em sede constitucional, que não no 401.673, DJ 17/08/2007.

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urbanos e semiurbanos aos que têm mais a se manifestar sobre o tema em estudo. O
de 65 (sessenta e cinco) anos. O Tribunal caso versava sobre o descumprimento, pelo
reconheceu a eficácia plena do art. 230, Município de Florianópolis, do Programa
§2o, da Constituição Federal, que teria sido Social denominado Programa-sentinela,
reproduzida pela norma impugnada pela destinado à proteção de adolescentes víti-
ação em tela. A Corte afirmou que mas de abuso e/ou de exploração sexual. O
“a gratuidade do transporte coletivo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Ca-
representa uma condição mínima de tarina havia decidido que a Administração
mobilidade, a favorecer a participa- Pública teria discricionariedade na adoção
ção dos idosos na comunidade, assim de políticas sociais derivadas de normas
como inviabiliza a concretização de programáticas. O Ministério Público Esta-
sua dignidade e de seu bem-estar, não dual, então, recorreu dessa decisão para o
se compadece com condicionamento Supremo Tribunal Federal, por meio da via
posto pelo princípio da reserva do do recurso extraordinário.
possível” (STF, ADIN no 3.768, Rel. Ao examinar o pleito do Parquet, a
Min Carmen Lúcia, DJ 26/10/2007). Corte entendeu que existiria uma omis-
Em outras palavras, reafirmou-se que o são inconstitucional do Poder Público no
direito que integra o mínimo existencial adimplemento de um dever imposto pela
não está submetido à reserva do possível. Constituição Federal (art. 227), em norma
O tema da efetivação do direito à saúde programática, de forma cogente. Ademais,
retornou à pauta do Pretório Excelso em afirmou-se que a cláusula da reserva do
2010, no julgamento do agravo regimen- possível não pode ser invocada, quando da
tal na suspensão de liminar. O Tribunal sua aplicação puder resultar comprometi-
reconheceu que todas as dimensões do mento dos direitos que integram o mínimo
direito em exame demandam o emprego de existencial (STF, Informativo 581, 2010). A
recursos públicos, envolvendo, pois, ques- Corte reafirmou, mais uma vez, o seu en-
tões relacionadas aos limites financeiro- tendimento acerca da sindicabilidade das
-orçamentários. Para solucionar o problema políticas públicas e reconheceu a eficácia
de compatilização da efetivação do direito das normas constitucionais programáticas,
com a reserva do possível, defendeu-se que admitindo que a Administração tem uma
“problemas concretos deverão ser margem mínima de discricionariedade
resolvidos levando-se em conside- em face dessa classe de normas. Outros-
ração todas as perspectivas que a sim, sustentou a existência de um direito
questão dos direitos sociais envolve. subjetivo à legislação, que decorreria da
Juízos de ponderação são inevitáveis imposição do texto constitucional de dever
neste contexto prenhe de complexas estatal de emanar normas legais. Assim, tal
relações conflituosas entre princípios dever está diretamente relacionado à classe
e diretrizes políticas ou, em outros das normas programáticas que denomina-
termos, entre direitos individuais mos “normas programáticas em sentido
e bens coletivos” (STF, Ag. Reg. na estrito”. Em suma, a jurisprudência do
suspensão de liminar 47, Rel. Min. Tribunal sobre tais normas e a reserva do
Gilmar Mendes, DJ 30/04/2010). possível foi ratificada, inclusive no que se
Evidencia- se, assim, que a Corte optou refere ao mínimo existencial, que não pode
pela ponderação como a única fórmula ser alcançado por restrições financeiro-
possível para solucionar a tensão entre a -orçamentárias.
efetivação de um direito social e a limitação Posteriormente, em abril de 2010, nova
financeiro-orçamentária. decisão sobre o direito à saúde foi proferida
No julgamento do Recurso Extraordi- pela Corte Excelsa (STF, Informativo 582,
nário no 482.611, o Pretório Excelso voltou 2010), que manteve sua jurisprudência
18 Revista de Informação Legislativa
acerca do tema em epígrafe, cuja origem d) uma vez comprovada a incapacidade
foi a decisão proferida na Petição no 1.246, econômico-financeira do ente estatal, deste
mencionada anteriormente. O Tribunal não se poderá exigir razoavelmente a ime-
mais uma vez proclamou o irrecusável diata efetivação do comando veiculado por
valor constitucional do direito à saúde, afir- uma norma constitucional. Com base nes-
mando que o programa previsto em norma ses fundamentos, o Tribunal determinou
constitucional que dispõe sobre o assunto que o Município de São Paulo observasse
deve necessariamente ser implementado os direitos das crianças, viabilizando em
mediante a adoção de políticas públicas favor destas a matrícula em unidades de
responsáveis. Foi reconhecida, ainda, a educação infantil próximas de sua resi-
intangibilidade do mínimo existencial em dência ou do endereço de trabalho de seus
face da cláusula da reserva do possível. representantes legais.
A Corte reconheceu que a realização dos Com base na análise desses julgados,
direitos econômicos, sociais e culturais é pode-se extrair as seguintes conclusões so-
gradual, estando subordinada às possibili- bre a jurisprudência do Supremo Tribunal
dades orçamentárias do Estado. Diante do Federal: a) reconhecimento da eficácia das
conflito entre o interesse financeiro e secun- normas programáticas que veiculam pro-
dário do Poder Público e o direito à saúde, gramas, vinculando-os ou não ao princípio
este foi priorizado. Vale dizer, realizou-se da legalidade; b) admissão da competência
uma ponderação, que constitui o método do Poder Judiciário para determinar ao Po-
adequado à solução do problema. Além dis- der Público, omisso no cumprimento de um
so, outros dois pontos foram examinados dever constitucional, a implementação de
pelo Tribunal: o direito à legislação, cuja so- um direito fundamental social; c) reconhe-
lução foi idêntica à manifestada por ocasião cimento de que a efetivação desses direitos
do julgamento do RE 482.611, e o princípio depende de possibilidades econômico-
da proibição do retrocesso, que impede, no -financeiras do Estado; d) a incapacidade
âmbito dos direitos fundamentais sociais, financeira do Estado poderá impossibilitar
que sejam desconstituídas as conquistas já a efetivação imediata desses direitos; e)
alcançadas pelo cidadão ou pela formação essa incapacidade deve ser comprovada,
social em que ele vive. Desse modo, neste não podendo o Poder Público utilizar esse
julgamento a Corte não se afastou do seu argumento como forma dolosa de não
entendimento já consagrado sobre o tema implementar os direitos sociais; f) possibi-
em análise. lidade de ponderação entre o direito social
No corrente ano, veio a lume uma e princípios orçamentários que impedem
nova decisão sobre a educação infantil a sua implementação no caso concreto; g)
(STF, Informativo, 632, 2011). Ao julgar o garantia do mínimo existencial não pode
ARE no 639337, a Corte ratificou a sua ju- ser afastada por limitações financeiro-
risprudência sobre a matéria, enfatizando -orçamentárias do ente público.
os seguintes pontos: a) reconhecimento da
fundamentalidade do direito à educação
7. Conclusões
infantil (CF, art. 208, IV); b) admissão da
competência excepcional do Poder Judi- I – As normas constitucionais progra-
ciário para determinar a implementação máticas são eficazes, no entanto, a eficácia
de políticas públicas, em face de inércia manifesta-se neste caso de modo diferente,
do Poder Público em cumprir uma norma em relação às demais normas constitucio-
constitucional programática; c) impossibi- nais;
lidade de alegação pelo Estado da cláusula II – As normas constitucionais progra-
da reserva do possível para se esquivar do máticas geram direito subjetivo para o
cumprimento de um dever constitucional; administrado;
Brasília a. 49 n. 193 jan./mar. 2012 19
III – A teoria da reserva do possível por limitações financeiro-orçamentárias do
corresponde à ideia de que a efetivação de ente público.
direitos constitucionais sociais submete-se à
reserva da capacidade financeira do Estado,
pois depende de prestações financiadas
Referências
pelos cofres públicos. Essa disponibilidade
financeira deve ser avaliada pelo Poder ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Baden-Baden:
Legislativo, pois é o órgão que detém Nomos, 1988.
competência constitucional para elaborar
BRITO, Edvaldo. Reflexos Jurídicos da atuação do Estado
o orçamento público; no domínio econômico: desenvolvimento econômico,
IV – A reserva do possível não importa bem estar social. São Paulo: Saraiva, 1982.
em esvaziamento da eficácia das normas
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao
programáticas, ou até mesmo em reconheci- Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed.
mento da sua ineficácia. De forma alguma. São Paulo: Atlas, 2001.
O significado dessa construção jurispru-
GRIMM, Dieter; KICHHOF, Paul; EICHBERGER,
dencial é que os direitos estabelecidos pelas Michael. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts.
normas em estudo são direitos prima facie, 3. Aufl. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007.
razão pela qual estão submetidos a uma
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo:
necessidade de ponderação. Logo, em de-
Martins Fontes, 2000.
terminados casos poderá ter um peso maior
um princípio orçamentário, em detrimento MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado
de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 1999.
de um direito fundamentado em um princí-
pio veiculado pelas normas programáticas; PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Eficácia e aplicabilidade
V – A jurisprudência do Supremo Tri- das Normas Constitucionais Programáticas. São Paulo:
bunal Federal posiciona-se da seguinte Max Limonad, 1999.
forma acerca da efetivação dos direitos QUEIROZ, Cristina. Direitos Fundamentais Sociais:
fundamentais sociais consagrados pelas questões interpretativas e limites de justiciabilidade.
normas programáticas: a) reconhecimento In: SILVA, Virgílio Afonso (Org.). Interpretação Consti-
tucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 165-216.
da eficácia das normas programáticas; b)
admissão da competência excepcional do SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana F.
Poder Judiciário para determinar a imple- Reserva do possível, mínimo existencial e direito á
saúde: algumas aproximações. In: ______; TIMM, Lu-
mentação de um direito fundamental so-
ciano Benetti (Org.). Direitos Fundamentais: orçamento
cial; c) reconhecimento de que a efetivação e “reserva do possível”. 2. ed. rev. e ampl. Porto alegre:
desses direitos depende de possibilidades Livraria do Advogado, 2010. p. 13-50.
econômico-financeiras do Estado; d) pos-
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os di-
sibilidade de ponderação entre o direito reitos sociais e os desafios de natureza orçamentária.
social e princípios orçamentários que impe- In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti
dem a sua implementação no caso concreto; (Org.). Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do
e) reconhecimento de que a garantia do possível”. 2. ed. rev. e ampl. Porto alegre: Livraria do
mínimo existencial não pode ser afastada Advogado, 2010. p. 63-78.

20 Revista de Informação Legislativa

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