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Casamento e amor não possuem nada em comum; estão tão apartados como pólos;
e são, de fato, antagônicos entre si. Sem dúvidas, certos casamentos são resultado
do amor. Entretanto, não é porque o amor só se afirma em casamento; é antes
porque poucas pessoas conseguem superar completamente uma convenção. Para
um grande número de homens e mulheres hoje em dia, o casamento nada é senão
uma farsa, mas a ele se submetem por amor à opinião pública. Em todo caso,
enquanto é verdade que certos casamentos baseiam-se no amor e enquanto é
igualmente verdade que certas vezes o amor continua durante a vida conjugal, eu
sustento que isso se dá independentemente do casamento e não devido a ele.
Por outro lado, é completamente falso que do casamento resulte amor. Um caso
milagroso se faz ouvir, em raras ocasiões, de cônjuges que caem em amor depois
de casados, mas em exame amiúde aí se encontrará um mero ajuste ao inevitável.
Certamente a habituação ao outro está distante da espontaneidade, da intensidade,
e da beatitude do amor, sem o que a intimidade do casamento deve revelar-se
degradante para ambos homem e mulher.
O estudioso social sério não se contentará com a popular desculpa superficial para
este fenômeno. Ele terá de escavar a vida mesma dos sexos profundamente adentro
para conhecer o porque de o casamento revelar-se tão desastroso.
Edward Carpenter diz que, por detrás de todo casamento, persiste uma ambiência
vitalícia dos dois sexos; ambiências tão diferentes entre si que homem e mulher
devem permanecer estranhos. Separados por uma muralha intransponível de
superstição, costume, e hábito, o casamento não tem a potencialidade de
desenvolver o conhecimento e o respeito mútuo, sem o que toda união está
destinada ao fracasso.
Quase desde a infância, é dito à garota comum que o casamento é seu objetivo final;
portanto seu treino e educação têm de ser direcionados para esse fim. Feito a besta
muda na engorda, ela é preparada para o abate. Mas para ela, estranho dizer, é
permitido conhecer muito menos sobre sua função como esposa e mãe do que para
o artesão comum sobre seu ofício. Para uma garota respeitável, é indecente e
imundo conhecer qualquer coisa da relação marital. Oh, pela incoerência da
respeitabilidade, requerer votos de casamento para tornar algo imundo no mais puro
e sagrado arranjo que ninguém ousa questionar ou criticar. Mas esta é exatamente a
atitude do entusiasta comum do casamento. A futura esposa e mãe é mantida na
mais completa ignorância em torno de sua única inclinação no campo competitivo —
o sexo. E assim ela adentra com um homem numa relação vitalícia só para
encontrar-se chocada, repelida e ultrajada além da medida pelo mais natural e
saudável instinto, o sexo. É seguro dizer que uma grande percentagem da
infelicidade, miséria, aflição e sofrimento físico do matrimônio se devem à ignorância
criminosa em matéria de sexo que é exortada como uma grande virtude. Tampouco
é de todo um exagero quando digo que devido a este fato deplorável, mais de um lar
foi desfeito.
Se, entretanto, a mulher for livre e grande o bastante para aprender o mistério do
sexo sem a sanção do Estado ou da Igreja, permanecerá condenada como
completamente imprópria para ser esposa de um “bom” homem, sua bondade
consistindo de um cérebro vazio e um bolso cheio de dinheiro. Pode haver qualquer
coisa mais ultrajante do que a idéia de uma mulher saudável, em plena idade, cheia
de paixão e vida, ter de negar a demanda da natureza, ter de reprimir seu desejo
mais intenso, minar a sua saúde e quebrantar seu espírito, ter de aturdir sua visão e
abster-se da profundidade e da glória da experiência do sexo, até que um homem
“bom” chegue para tomá-la como esposa? Isto é precisamente o que o casamento
significa. Como poderia tal arranjo terminar exceto em fracasso? Esse é um fator,
embora não menos importante, que diferencia o casamento do amor.
A nossa era é prática. O tempo em que Romeu e Julieta arriscaram-se à fúria dos
pais por amor, em que Gretchen expõs-se ao falatório dos vizinhos por amor, já era.
Se, em raras ocasiões, pessoas jovens se permitem à luxúria do romance, em
seguida os mais velhos cuidam para que, após pregados e martelados, se tornem
“sensatos”.
A lição moral instilada na garota não é a de se o homem arrebatou o seu amor, mas:
o “Quanto?”. O único Deus importante da vida prática americana: o homem
consegue ganhar a vida? Consegue sustentar uma esposa? Esta é a única coisa
que justifica o casamento. Gradualmente isto de todo satura o pensamento da
garota; seus sonhos já não são de luares e beijos, risos e lágrimas; agora sonha em
ir às compras e às boas pechinchas. Tal sordidez e pobreza da alma são elementos
inerentes à instituição do casamento. O Estado e a Igreja aprovam esse ideal e não
outro, simplesmente porque esse é o ideal que necessita que o Estado e a Igreja
controle homens e mulheres.
Apesar disso tudo, só um número muito pequeno do vasto exército das mulheres
trabalhadoras enxerga o seu trabalho como situação permanente, na mesma luz que
um homem o faz. Não importa quão decrépito seja este último, ele foi ensinado a ser
independente, a se auto-sustentar. Oh, eu sei que ninguém é verdadeiramente
independente em nossa moenda econômica; e ainda o espécime mais miserável de
homem odeia ser um parasita; ou, em todo caso, pelo menos ser conhecido como
tal.
A mulher considera transitória sua posição como trabalhadora, a ser deixada de lado
pelo primeiro pretendente. É este o porque de ser infinitamente mais difícil organizar
mulheres do que homens. “Porque devo me filiar a um sindicato? Vou me casar, ter
um lar”. Ela desde a infância não foi ensinada a enxergar isso como sua convocação
última? Ela aprende cedo o bastante que, apesar de não tão grande como a prisão
de uma fábrica, o lar tem portões e grades ainda mais sólidas. Possui um guardião
tão fiel que nada lhe pode escapar. A parte mais trágica, entretanto, é que o lar não
a liberta da escravidão assalariada; apenas aumenta seus afazeres.
Mas e a criança, como será protegida, senão pelo casamento? Depois de tudo, não
é esta a consideração mais importante a se fazer? A farsa, a hipocrisia! Casamento
protegendo a criança, mas centenas de crianças abandonadas e sem lar.
Casamento protegendo a criança, mas orfanatos e reformatórios lotados, a
Sociedade pela Prevenção de Crueldade a Criança se mantendo ocupada
resgatando as pequenas vítimas daqueles pais “amorosos”, para colocá-las sob
cuidados mais amorosos ainda, da Gerry Society2. Oh, mas que pilhéria!
O casamento poderá levar o cavalo até a água, mas já pôde obrigá-lo a beber? A lei
colocará o pai na detenção, irá vesti-lo em uniforme de presidiário; mas alguma vez
já matou a fome das crianças? Se o pai não tem emprego, ou se esconde sua
identidade, que faz então o casamento? Invoca a lei para levar o homem à “justiça”,
colocá-lo em segurança atrás de portões fechados; seu trabalho, entretanto, não vai
para criança, mas para o Estado. A criança só recebe uma memória enferrujada das
listras do pai.
Feito aquele outro arranjo paternal — o capitalismo. Rouba do homem seus direitos,
aturde o seu crescimento, envenena o seu corpo, o mantém na ignorância, na
pobreza, na dependência, daí institui caridades que medram sobre os últimos
vestígios do auto-respeito humano.
Amor livre? Como se o amor fosse outra coisa que não livre! O homem comprou
cérebros, mas todos os milhões no mundo falharam em comprar o amor. O homem
subjugou os corpos, mas todo o poder na terra foi incapaz de subjugar o amor. O
homem conquistou nações inteiras, mas todos os seus exércitos não puderam
conquistar o amor. O homem acorrentou e agrilhoou o espírito, mas tem sido
absolutamente indefeso diante do amor. Do alto de um trono, com todo esplendor e
pompa que o ouro pode comandar, os homens são ainda pobres e desolados se o
amor os perpassa. Mas quando fica, o casebre mais pobre irradia calor, cor e vida. E
assim, o amor possui o poder mágico para fazer de um mendigo um rei. Sim, o amor
é livre; não pode habitar outra atmosfera. Em liberdade se dá sem reservas,
abundantemente, completamente. Todas as leis nos estatutos, todos os tribunais do
universo, não podem arrancá-lo do solo, uma vez que o amor tenha fincado raízes.
Entretanto, se o solo é estéril, como o casamento poderia fazê-lo fruir? É feito a
última luta desesperada da vida breve contra a morte.
O amor não precisa de proteção; já é sua própria proteção. Tão logo vidas sejam
geradas pelo amor, nenhuma criança é desertada, passa fome ou vontade de
afeição. Que isto é verdade, eu o sei. Conheço mulheres que se tornaram mães em
liberdade dos homens que amaram. Poucas crianças na relação aproveitam o
cuidado, a proteção, a devoção que a maternidade livre é capaz de conferir.
Ibsen deve ter vislumbrado uma mãe livre, quando, num golpe de mestre, retratou
Ms. Alving3. Ela foi uma mãe ideal por superar o casamento e todos os seus
horrores, por quebrar suas correntes, e libertar o espírito para voar, até que uma
personalidade, regenerada e forte, lhe retornasse. Ai! Foi demasiado tarde para
recuperar sua alegria de viver, seu Oswald; mas não demasiado tarde para
compreender que o amor em liberdade é a única condição para uma vida bela.
Aquelas que, feito Ms. Alving, que pagaram com sangue e lágrimas por seu
despertar espiritual, repudiam o casamento como uma imposição, uma pilhéria baixa
e sem graça. Elas sabem que só o amor é, quer dure um breve espaço de tempo ou
pela eternidade, a única base criativa, inspiradora e elevada para uma nova raça e
para um novo mundo.
Em nosso presente estado pigmeu, para a maioria das pessoas, o amor é, de fato,
um estranho. Incompreendido e evitado, raramente finca raízes, e se o faz, tão logo
seca e morre. Suas fibras delicadas não aturam o stress e a tensão do cotidiano
maçante. Sua alma é complexa demais para ajustar-se à trama viscosa de nosso
tecido social. Ele chora e geme e sofre com aqueles que precisam dele, mas faltam
da capacidade de elevar-se ao cume do amor.
Notas do Tradutor:
3. Ms. Alving é personagem de Ibsen na obra “Ghost”, uma análise desta obra e
desta personagem encontra-se em livro já mencionado. N. do T.
Texto original: GOLDMAN, Emma. “Marriage and love” in: Anarchism and Other
Essays. New York: Dover Publications, 1969. p. 227.