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A CONTRADIÇÃO EXTERNA E O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM

DO JUÍZO

RAFAEL VINHEIRO MONTEIRO BARBOSA


Mestre e doutorando em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC-SP. Professor de Carreira de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Amazonas
– UFAM. Defensor Público no Estado do Amazonas. Membro do IBDP. Pesquisador e bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM. Membro do Grupo de
Trabalho criado pelo Ministério da Justiça para a elaboração do curso de mediação e negociação
para Defensores Públicos.

FÁBIO LINDOSO E LIMA


Graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Especialista em Direito
Civil e Processual Civil pelo CIESA. Membro do BRASILCON e articulista em temas de direito
privado. Advogado em Manaus/AM e Brasília/DF.

ÁREA DO DIREITO: Processual; Civil.

RESUMO: O presente estudo parte da premissa ABSTRACT: This study is based on an updated
de uma necessária releitura do princípio do livre view of the principle of rational motivation,
convencimento motivado, em uma concepção which implies the duty to disclosure the legal
moderna, para propor a existência de um dever and factual motivations behind rulings. In
de coerência do juízo, com fundamento nos addition to that, the present study also
princípio da boa-fé objetiva processual, da approached the duty of procedural good faith,
isonomia e da segurança jurídica, e que cria from the decision-makers, towards the parties,
verdadeiro dever de vinculação do Poder the right to equality and legal certainty. Those
Judiciário às suas decisões anteriores. factors, put together, create a duty of coherence,
not only between parties, but from the decision-
makers, towards the parties, imposing the
prohibition of any legal ruling that goes against
a precedent ruling, binding the decision-maker
to previous rulings from the same court.

PALAVRAS-CHAVE: Princípio do livre KEYWORDS: Rational Motivation - Procedural


convencimento motivado - Boa-fé objetiva good faith - Equality and legal certainty - Duty
processual - Isonomia e segurança jurídica - of coherence or consistency - Binding
Dever de coerência do juízo - Precedentes. precedents.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O dever de lealdade processual aplicado a todos aqueles que atuam
no processo; 2.1 O dever de coerência como reflexo da boa-fé objetiva processual; 2.2. O livre
convencimento motivado na concepção moderna; 2.3. A vinculação do juízo e do juiz às suas
decisões e às decisões do juízo – 3. A violação ao dever de coerência: a noção de contradição
interna e externa e os embargos de declaração – 4. O princípio da boa-fé objetiva como ferramenta
de controle do dever de coerência do juízo: Nemo potest venire contra factum proprium – 5.
Considerações finais – 6. Referências
1. INTRODUÇÃO

Já dizia o poeta: e que fique muito mal explicado. Não faço força para ser
entendido. Quem faz sentido é soldado. A atividade judicante, muito embora criativa,
deve obediência às amarras da lei. Dele – o juiz – posto que poeta não é, se espera toda
a coerência.
O problema do comportamento contraditório do juízo é palpável. A prática
demonstra mais corriqueira que desejável a prolação de decisões em sentidos
diametralmente opostos, que frustram a confiança legítima do jurisdicionado e a
coerência do juízo, fragilizando a noção de segurança jurídica.
Como exemplo mais claro, tem-se a vedação ao cabimento de embargos de
declaração para combater a contradição externa. Aliás, a simples existência do conceito
de contradição interna e externa já é prova cabal da problemática. É jurisprudência
remansosa no Superior Tribunal de Justiça a corrente que estabelece não serem cabíveis
os embargos de declaração para combater a contradição externa – aquela que não se
verifica dentro de uma decisão, mas do cotejo entre duas decisões distintas. Em suma, o
ordenamento oferece remédio para a contradição contida dentro de uma só decisão, mas
carece de solução para a contradição verificada entre decisões distintas.
Por outro lado, a confiança legítima – a outra face da coerência – é direito do
jurisdicionado, eis que reflexo do princípio da boa-fé objetiva. O aludido princípio, de
origem contratual,1 vivenciou grande expansão, de modo que se admite com
tranquilidade a aplicabilidade do princípio da boa-fé objetiva, notadamente de suas
especificidades, como o venire contra factum proprium, na seara do direito público.
Especialmente no âmbito do processo, a boa-fé objetiva processual veicula-se
através da cláusula geral contida no art. 14, inciso II, do Código de Processo Civil, que
prevê a obrigatoriedade de comportamento ético às partes e participantes do processo,
incluso o juízo.
Nesta equação também se deve levar em conta que o poder judiciário brasileiro
cada vez mais empresta força vinculante aos precedentes,2 o que tem reflexos inegáveis

1
“Foi no domínio dos contratos que a norma do comportamento de boa-fé germinou e encontrou sua
guarida mais segura. Acolhida aí como em seu domínio originário, expandiu-se depois por outros âmbitos
e por diversas formas de interacção entre sujeitos, de que a relação pré-contratual é porventura o exemplo
mais significativo”. CARNEIRO DA FRADA, Manuel Antônio de Castro Portugal. Teoria da confiança
e responsabilidade civil. Coimbra. Almedina, 2004. p. 431-432.
2
“Nata principalmente nelle corti inglesi nordamericane, la prassi del precedente si è diffusa in
moltissimi ordinamenti anche di civil law”. TARUFFO, Michele. La giurisprudenza tra casistica e
no conceito moderno de livre convencimento motivado. É nítido o paradoxo que se
constata ao se notar que o sistema busca a coerência em um sentido macro, mas faltam
instrumentos para combater a violação ao dever de coerência dentro e fora do processo,
o que finda por perpetuar as violações ao princípio da boa-fé objetiva e à vedação ao
comportamento contraditório - venire contra factum proprium.
Dentro deste contexto, o presente estudo propõe investigar a aplicabilidade do
princípio da boa-fé objetiva no processo civil como forma de combater o
comportamento contraditório do juízo, bem como estabelecer se existe e,
principalmente, qual é o conteúdo do dever de coerência do juízo à luz da conceituação
moderna de livre convencimento motivado.

2. O DEVER DE LEALDADE PROCESSUAL APLICADO A TODOS AQUELES QUE ATUAM NO


PROCESSO

Não se exige mais, como antigamente, uma declaração formal do litigante de que
demanda munido de boa-fé. Relata Giuseppe Chiovenda que no direito romano, no
canônico e nos seus derivados, o litigante necessitava, para litigar, emitir declaração
formal de que seu pleito era sério (jusjurandum calumniae).3
Até porque de reduzida eficácia, a declaração formal deixou de existir, mas não o
dever da parte de litigar imbuída de boa-fé.4 Várias são as legislações que sancionam
com pena pecuniária o demandante que propõe ação ciente de que carece de

uniformità. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milão, Giuffrè, anno LXVIII, n. 1, marzo
2014. p. 37; “Va anzitutto sottolineata la grande importanza che l’impiego del precedente e della
giurisprudenza riveste nella vita del diritto di tutti gli ordinamenti moderni. Ricerche svolte in vari sistemi
giuridici hanno dimostrato che il referimento al precedente non è più da tempo una caratteristica peculiare
degli ordinamenti di common law, essendo ormai presente in quasi tutti i sistemi, anche di civil law”.
TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile.
Milão, Giuffrè, anno LXI, n. 3, settembre 2007. p. 709. No mesmo sentido: FINE, Toni M. O uso do
precedente e o papel do princípio do stare decisis norte-americano. Revista dos Tribunais. São Paulo,
Revista dos Tribunais, v. 782, p. 90-96, dez. 2000; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e
evolução do direito. In. Direito jurisprudencial. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). 2.ª tiragem.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 18; LIMA, Paulo Bernardo Lindoso e. A segurança dos
conceitos. Revista Visão Jurídica. Edição n. 99, p. 58-62, 2014.
3
CHIOVENDA, Giuseppe. Principios de derecho procesal civil, tomo II. 3. ed. Madrid: Reus S.A., 2000.
p. 210. Cf. tb., COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed. Montevideo:
Editorial B de F, 2002. p. 156. Com apoio em Alfredo Buzaid, Márcio Louzada Carpena define o referido
instituto romano como o compromisso, mediante juramento, que o jurisdicionado fazia de litigar com
boa-fé. (Da (des)lealdade no processo civil. Revista Genesis. Curitiba, Genesis, v. 35, p. 146-166,
jan/mar. 2005).
4
A doutrina fala em fair play processual. No estrangeiro, Piero Calamandrei (Direito processual civil, v.
1. Campinas: Bookseller, 1999. p. 228); na literatura nacional, Bento Herculano Duarte e Zulmar Duarte
de Oliveira Junior (Princípios do processo civil: noções fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.
98).
fundamento (litigante temerario). É também comum responsabilizá-lo pelas perdas e
danos que a sua conduta de má-fé causou na outra parte, fazendo surgir uma espécie de
responsabilidade civil processual.5
O art. 14 do diploma processual brasileiro elenca como deveres das partes: a) a
exposição dos fatos em juízo conforme a verdade; b) o atuar com lealdade e boa-fé; c) a
exigência de não formulação de pretensões, nem defesas, cientes de que são destituídas
de fundamento; d) a vedação de produção de provas, ou de atos processuais inúteis ou
desnecessários; e a e) obrigação das partes de cumprirem com exatidão os provimentos
mandamentais, assim como não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais,
de natureza antecipatória ou final.6
O agir de boa-fé, portanto, engloba: (i) a convicção da parte de que tem razão para
demandar ou se defender (letra “c”) e (ii) o modo de se conduzir durante o processo
(letras “a”, “b”, “d” e “e”).7 8
O legislador, como se pode notar, pretendeu imantar o fenômeno da relação
processual do conteúdo ético necessário para guindar o processo a um espaço marcado
pela lealdade e honestidade. Apenas num ambiente com tais predicados seria possível
ao julgador, contando com a importante colaboração das partes envolvidas, resolver a
lide com justiça.9

5
Serve de exemplo a seguinte passagem de Eduardo Couture: “El litigante que actúa con ligeireza o con
malicia es condenado al pago de todo o parte de los gastos causídicos, como sanción a la culpa o dolo en
su comportamento procesal”. (Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed. Montevideo: Editorial B de
F, 2002. p. 157).
6
O direito italiano possui disposição similar, pois o art. 88 do Código de Processo Civil assevera que “le
parti e i loro difensori hanno il dovere di comportarsi in giudizio con lealtà e probità”. Cf. ZANZUCCHI,
Marco Tullio. Diritto processuale civile, v. I. 6. ed. Milano: Giuffrè, 1964. p. 369. Cf. tb., LIEBMAN,
Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile – principi. 6. ed. Milão: Giuffrè, 2002. p. 60. Na
legislação espanhola: Art. 247, regra 1ª da Ley de Enjuiciamiento Civil de 2000: “Los intervenientes en
todo tipo de procesos deberán ajustarse en sus actuaciones a las reglas de la buena fe”.
7
O agir de má-fé, que reflete justamente a desatenção aos deveres de lealdade e boa-fé, estão delineados
no art. 17 do CPC: Reputa-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto
expresso de lei ou fato incontroverso; II - alterar a verdade dos fatos; III - usar do processo para conseguir
objetivo ilegal; IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - proceder de modo
temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI - provocar incidentes manifestamente infundados;
VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
8
“Mas, desde logo, a visão sistemática da presente lei nos fornece elementos seguros para o entendimento
e traçado do perfil do que seja a boa-fé, porquanto, se no art. 17, vêm definidos os casos de má-fé, segue-
se que boa-fé será, precisamente, o contrário daquelas hipóteses”. ARRUDA ALVIM, José Manoel.
Código de Processo Civil comentado, vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. p. 130.
9
Os italianos costumam mencionar que o dever de lealdade e boa-fé funciona como um chamado para o
agir correto da parte, sob o plano ético, no desenvolvimento da atividade processual, que pode ser
condensado na expressão “regole del gioco”. CARPI, Federico; TARUFFO, Michele. Commentario breve
al Codice di Procedura Civile. 6. ed. Milão: CEDAM, 2009. p. 311. No mesmo sentido: LIEBMAN,
Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile – principi. 6. ed. Milão: Giuffrè, 2002. p. 60.
Este sempre foi o pensamento da doutrina clássica, motivo pelo qual se escolheu a
lição de Arruda Alvim para ilustrar a afirmação. Discorre o autor que “a alta finalidade
pública do processo civil, que consiste na verificação dos fatos ocorridos, como
pressupostos da aplicação adequada da lei ao caso concreto (‘justa composição da lide’,
no dizer de Carnelutti), não pode, é óbvio, prescindir da colaboração ética das partes.
Caso contrário, o juiz teria de lutar, em verdade, contra os próprios litigantes que, por
sua vez, lutariam violentamente entre si ao arrepio da mais elementar ética”.10
Modernamente, a obrigação de agir com lealdade e boa-fé no iter do processo
vem sendo considerado um verdadeiro dever processual. Se para Salvatore Satta e
Enrico Redenti dita imposição carecia de autêntico conteúdo jurídico, Crisanto
Mandrioli procura rechaçar aquela concepção, tecendo os seguintes argumentos: “(...)
da un lato il comportamento leale e probo è assunto dalla norma a contenuto di un
preciso dovere, mentre dall'altro lato il modo col quale, in concreto, la parte rispetta o
viola tale dovere è assunto, in altre norme, a criterio di diverse valutazioni o addirittura
a fondamento di sanzioni”.11
Em igual sentido está a doutrina de Enrique Tarigo, para quem “la discusión
acerca de si estos principios de buena fe y de lealtad procesal, si el deber de veracidade
y el de moralidade en el processo eran realmente normas jurídicas exigibles o, por el
contrario, apenas aspiraciones o recomendaciones éticas, aparece hoy superada por el
establecimiento de los mismos a texto expreso en el Código General del Proceso”.12
A menção acima aos arts. 14 e 17 do Código de Processo Civil ampara idêntica
conclusão no que tange ao direito processual pátrio, ou seja, no ordenamento brasileiro,
os deveres de lealdade e boa-fé não se consubstanciam numa simples imposição de
cunho moral, mas na exigência coercível e sancionável de o litigante pautar sua conduta
no curso da marcha processual ciente dos deveres e das vedações expostas na legislação.

10
ARRUDA ALVIM, José Manoel. Código de Processo Civil comentado, vol. II. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1975. p. 121. Na doutrina estrangeira: “Un processo sin deberes puede igualmente evolucionar
en base a cargas y obligaciones aun cuando lo haga de manera poco ética, ya que la existencia de un
litigante artero no obsta a la dictación de la sentencia. Insisto en que los deberes jurídicos procesales
buscan, más allá del desarrollo del proceso, que este se desenvuelva de una manera eticamente correcta”.
MUÑOZ, Francesco Carretta. Deberes procesales de las partes en el proceso civil chileno: Referencia a la
buena fe procesal y al deber de coherencia. Revista de Derecho Valdivia [on line], vol. 21, n. 1, p. 101-
127, jul. 2008.
11
MANDRIOLI, Crisanto. Diritto processuale civile, v. I. 19. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 2007.
p. 354.
12
TARIGO, Enrique E. Lecciones de derecho procesal civil, v. I. 5. ed. Montevideo: Fundación de
Cultura Universitaria, 2005. p. 69.
Outrossim, fora de dúvida que a atenção ao princípio da lealdade processual não
deve ser dada exclusivamente pela parte e pelo seu advogado, os terceiros intervenientes
e, de um modo geral, todos aqueles que atuam no processo, ainda que marginalmente,
devem conformar suas condutas aos deveres elencados na norma em destaque.
A dificuldade que se põe é a de saber se o dever de agir nos moldes aqui relatados
também alcança o julgador. Não obstante o silêncio da lei, inegável que também se deve
esperar do juiz uma condução do processo em plena atenção aos postulados de ética,
probidade e retidão. As regras retiradas dos arts. 445, incisos I, II e III, e 446, incisos I e
II, ambos do diploma processual civil,13 permitem esse raciocínio, pois não seria crível
que a lei exigisse uma conduta ética das partes diretamente fiscalizadas e não do
fiscalizador.14
A exigência de dolo ou fraude para que nasça o dever de indenizar por parte do
julgador não é um sinal de que este poderá agir descurado da lealdade e da boa-fé.15
Pelo contrário, o status de agente político (servidor público em sentido lato) impõe tal
obrigação com maior vigor. De nada restaria reclamar das partes e de todos aqueles que
de qualquer forma participam do processo uma conduta reta, quando o próprio juiz (o
diretor do processo e seu fiscalizador) pudesse agir sem similar cuidado e atenção.16
Forçoso concluir que sobredito dever abraça o órgão julgador de igual ou maior
maneira, impedindo que o seu atuar deixe de estar pautado na lealdade e boa-fé.
Acredita-se que assim pretendeu o legislador, tanto é que o art. 35 do Código de
Processo Civil aduz que “as sanções impostas às partes em consequência de má-fé serão
contadas como custas e reverterão em benefício da parte contrária; as impostas aos
serventuários pertencerão ao Estado”.
Pela literalidade da disposição legal, os serventuários da Justiça – o que de forma
ampla inclui o juiz – podem sofrer sanções impostas em consequência da má-fé

13
Art. 445, CPC. O juiz exerce o poder de polícia, competindo-lhe: I - manter a ordem e o decoro na
audiência; II - ordenar que se retirem da sala da audiência os que se comportarem inconvenientemente; III
- requisitar, quando necessário, a força policial.
Art. 446, CPC. Compete ao juiz em especial: I - dirigir os trabalhos da audiência; (...) III - exortar os
advogados e o órgão do Ministério Público a que discutam a causa com elevação e urbanidade.
14
“Además, el juez, independiente de la postura política que se tenga sobre los poderes que a éste le
corresponde asumir en el proceso, es inegable que está llamado a ejercer de oficio o a requerimento de
parte una función fiscalizadora del cumplimiento de los deberes”. MUÑOZ, Francesco Carretta. Deberes
procesales de las partes en el proceso civil chileno: Referencia a la buena fe procesal y al deber de
coherencia. Revista de Derecho Valdivia [on line], vol. 21, n. 1, p. 101-127, jul. 2008.
15
Art. 133, CPC. Responderá por perdas e danos o juiz, quando: I - no exercício de suas funções,
proceder com dolo ou fraude; (...).
16
“Note, ainda, que os destinatários da norma são todos aqueles que de qualquer forma participam do
processo, o que inclui, obviamente, não apenas as partes, mas também o órgão jurisdicional”. DIDIER
JR., Fredie. Curso de direito processual civil, vol. 1. 14. ed. Salvador: JusPodvm, 2012. p. 74.
processual. Age com má-fé, consoante já ponderado, aquele que viola não só as
diretrizes impostas no art. 17 do código processual, mas igualmente quem infringe os
deveres de lealdade e boa-fé.
A doutrina estrangeira está concorde que o magistrado também deve atuar com
probidade e boa-fé. Lozano-Higuero, citado por Iván Hunter Ampuero, conceitua o
princípio de probidade como “conjunto de reglas, standards o criterios de conducta, de
carácter ético, social y deontológico, a que deben adaptar su comportamento los sujetos
procesales (partes, professionales causídicos, juez, secretario, personal auxiliar y
secretarial, peritos, testigos, etc.) en el curso del proceso y todo acto procesalmente
relevante”.17
O Novo Código de Processo Civil, no seu introito, quando cuida das normas
fundamentais do processo civil, impõe a seguinte obrigação: Art. 5º, NCPC. Aquele que
de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
A interpretação que pretenda excluir o julgador de tal imposição não parece ser a
melhor, assim como não agrega benefício algum à moderna concepção de processo e de
atuação estatal.
Outro preceito do Novo Código pode ser invocado para confirmar a exigência de
lealdade e boa-fé também para nortear a atividade do julgador. Trata o art. 323 do
NCPC a respeito da interpretação do pedido. Conforme consta no parágrafo único, “a
interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da
boa-fé” (sem grifos no original).
Despiciendo afirmar que o normativo tem como principal destino o julgador, uma
vez que a interpretação do pedido é pressuposto lógico para seu acolhimento ou
rejeição. Entrementes, não seria admissível julgamento sem anterior interpretação
daquilo que se pretende em juízo. Sendo assim, curial compreender que o agir
interpretativo do órgão judicante esteja embebedado da diretriz da boa-fé.18
Ainda que os sinais ressaltados não fossem suficientes, ao tratar dos elementos,
requisitos e efeitos do decisum, o Novo Código de Processo Civil, no § 3º, do art. 499,
determina que “a decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos
os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé”.

17
Apud. AMPUERO, Iván Hunter. No hay buena fe sin interés: La buena fe procesal y los deberes de
veracidad, completitud y colaboración. Revista de Derecho. Valdivia [on line], vol. 21, n. 2, p. 151-182,
dec 2008.
18
Nessa senda, nota-se clara a inspiração do dispositivo nas disposições que regulamentam, no direito
material, a saber, o art. 113 do Código Civil, que é o que viabiliza a função de cânone interpretativo da
boa-fé objetiva. Também o citado artigo é destinado ao magistrado.
Tanto o direito processual do futuro quanto o atual acenam para o entendimento
de que o julgador também estaria sujeito aos deveres de lealdade e boa-fé, de modo que
a sua conduta na condução e decisão do feito não pode encontrar qualquer desvio do
caminho indicado pelo legislador.19
Outra interpretação restritiva e que, portanto, deve ser afastada é que encara o
dever de agir com boa-fé no processo apenas pelo ângulo subjetivo. A exigência de boa-
fé também deve ser visualizada pelo seu aspecto objetivo, que ganhou elevado destaque
graças à doutrina civilista alemã.20 21
A origem contemporânea do princípio da boa-fé objetiva nos remete ao BGB.22
Foi a doutrina alemã quem primeiro trouxe, traduzida nos dizeres lealdade e confiança,
o impositivo de comportamento ético aos contratantes. A partir deste marco legal, as
demais codificações europeias incorporaram o princípio, sendo a experiência francesa o
paradigma utilizado para o nosso ordenamento.
No Brasil, o princípio da boa-fé objetiva surgiu com o advento do Código de
Defesa do Consumidor, em 1990.23 Todavia, apenas a partir de 2002 a doutrina pátria
iniciou um debate mais aprofundado sobre o caráter objetivo da boa-fé e suas

19
“(...) verifica-se que o dever de lealdade é não só daquele que pleiteia no processo (autor) como daquele
a quem é pedido algo (réu), mas também de terceiros, pessoas estranhas à lide que, por qualquer razão,
acabam participando do feito, isto é, advogados, procuradores, membros do Ministério Público,
magistrados, oficiais de justiça, testemunhas, peritos, intérpretes, escrivães, auxiliares da justiça,
autoridades coatoras (em caso de mandado de segurança), entre outros”. CARPENA, Márcio Louzada. Da
(des)lealdade no processo civil. Revista Genesis. Curitiba, Genesis, v. 35, p. 146-166, jan/mar. 2005.
20
Cf. AMPUERO, Iván Hunter. No hay buena fe sin interés: La buena fe procesal y los deberes de
veracidad, completitud y colaboración. Revista de Derecho. Valdivia [on line], vol. 21, n. 2, p. 151-182,
dec 2008.
21
“O inciso II do art. 14 do CPC brasileiro não está relacionado à boa-fé subjetiva, à intenção do sujeito
processual: trata-se de norma que impõe condutas em conformidade com a boa-fé objetivamente
considerada, independente da existência de boas ou más intenções”. DIDIER JR., Fredie. Curso de direito
processual civil, vol. 1. 14. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012. p. 70. De modo idêntico: NOGUEIRA, Pedro
Henrique Pedrosa. Notas sobre preclusão e venire contra factum proprium. Revista de Processo. São
Paulo, Revista dos Tribunais, v. 168, p. 331, fev. 2009.
22
“Pouco depois da entrada em vigor do Código Civil alemão, em 1900, assistiu-se a um proliferar de
aplicações judiciais da boa fé objectiva. Entre outras, surgiram figuras como a exceptio doli, a
inalegabilidade de nulidades formais, a supressio, a adaptação às circunstâncias e a interpretação
contratual complementadora. Os tribunais, sem outro apoio aparente que não o das referências vagas e
inconclusivas dedicadas, pela nova lei civil, à boa fé, colocaram-se, muitas vezes, em oposição à
doutrina”. MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina,
1997. p. 314. No mesmo sentido: PINTO, José Emilio Nunes. A cláusula compromissória à luz do
Código Civil. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 4, p. 34-47, jan-
mar. 2005.
23
Muito embora o marco legislativo da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico pátrio tenha sido o
Código de Defesa do Consumidor, sua função de controle só ganhou destaque na doutrina e na
jurisprudência após o advento do Código Civil de 2002, que elencou a boa-fé em toda sua plenitude
funcional, com função de limite ao exercício de direitos subjetivos, no art. 187.
funcionalidades, notadamente quanto à função de limite ao exercício de posições
jurídicas, no qual a boa-fé objetiva atua como balizamento ao abuso do direito.24
O art. 14 do Código de Processo Civil impõe às partes – inclusive ao juízo – o
dever de proceder com lealdade e boa-fé.25 O sentido da norma, aqui, não destoa da boa-
fé objetiva prevista no Código Civil. Ao contrário: reitera seu espírito, dentro do
processo. Muito, também, em razão do emprego da expressão proceder, que confere ao
dispositivo uma inarredável referência a um dever de comportamento.
Assim, não cabe ao inciso II, do art. 14, do diploma processual, outra
interpretação, senão a de que o exercício de direitos no âmbito do processo deve ser
exercido também em conformidade com padrões de comportamento ético. A boa-fé
processual, portanto, também é objetiva.26

2.1 O dever de coerência como reflexo da boa-fé objetiva processual

Como já visto, é tranquila na doutrina a noção de boa-fé objetiva processual,


endereçada a todos os participantes do processo, inclusive ao juízo. Na legislação pátria,
o art. 14, inciso II, do Código de Processo Civil é cláusula geral que viabiliza,
plenamente, esta conotação objetiva do princípio da boa-fé.27 Muito embora o

24
“É somente em um segundo momento, diante do extraordinário desenvolvimento da boa-fé objetiva
nestas situações de tipo negocial, que sua expansão vem se impor, progressivamente, sobre outras
espécies de relações jurídicas como critério de controle de legitimidade do exercício da autonomia
privada em geral. Passa-se mesmo a admitir a incidência da boa-fé objetiva no direito público, onde a
atuação dos órgãos administrativos vinha historicamente controlada por mecanismos próprios, como o
princípio da moralidade administrativa ou a repressão ao desvio de finalidade”. SCHREIBER, Anderson.
O princípio da boa-fé no direito de família. In. Princípios do direito civil contemporâneo. MORAES,
Maria Celina Bodin de (coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 440.
25
Convém destacar que a acepção de boa-fé, neste caso, remete o destinatário da norma diretamente à
boa-fé objetiva, em razão da locução proceder, a denotar padrão de comportamento, em sentido objetivo.
Verifica-se aí similitude com o sentido do art. 422 do Código Civil. É assente no direito civil, a noção de
que o art. 422 prevê padrões de comportamento para os contratantes. Há a previsão de um contingente
ético mínimo de procedimento na relação obrigacional.
26
“O princípio da boa-fé objetiva processual é expressamente referido no art. 14, II do CPC, segundo o
qual são deveres ‘de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo (...) proceder com
lealdade e boa-fé’. Trata-se de uma norma de conduta, em razão da qual se impõe àqueles que participam
de uma relação jurídica ‘um agir pautado pela lealdade’”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA,
José Miguel Garcia. Processo civil moderno, vol. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 58.
27
“O princípio da boa-fé extrai-se de uma cláusula geral processual. A opção por uma cláusula geral de
boa-fé é a mais correta. É que a infinidade de situações que podem surgir ao longo do processo torna
pouco eficaz qualquer enumeração legal exaustiva das hipóteses de comportamento desleal. Daí ser
correta a opção legislativa brasileira por uma norma geral que impõe o comportamento de acordo com a
boa-fé. Em verdade, não seria necessária qualquer enumeração das condutas desleais: o inciso II do art.
14 do CPC é bastante, exatamente por tratar-se de uma cláusula geral”. DIDIER JR., Fredie. Curso de
direito processual civil, vol. 1. 14. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012. p. 71. No mesmo sentido:
NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Notas sobre preclusão e venire contra factum proprium. Revista
de Processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 168, p. 331, fev. 2009 .
dispositivo contenha, nos outros incisos, situações específicas (a exemplos dos incisos I
e III), o inciso II, ao prever o dever de proceder com lealdade e boa-fé, denota vagueza
semântica proposital do legislador, com o objetivo de conferir à norma um maior grau
de abstração.
Apesar desta vagueza semântica – que se mostra evidente do cotejo com os
demais incisos do art. 14, do mesmo diploma – as diretrizes postas no preceptivo são
bastante claras, sendo estreme de dúvidas a natureza objetiva da boa-fé processual.
Nessa senda, enquanto cláusula geral de boa-fé objetiva processual, o art. 14, II, importa
para a seara processual toda amplitude funcional do princípio da boa-fé objetiva no
direito material.28 Assim, concebendo a boa-fé processual também pelo viés objetivo,
além dos deveres processuais básicos, outros poderão derivar, de modo que,
efetivamente, tal máxima seja respeitada. Como consequência desse reconhecimento,
Francesco Carretta Muñoz defende que “impuesta la creación de una herramienta
adecuada para el efectivo resguardo de la buena fe, se originan deberes al interior del
proceso”.29
Significa dizer, portanto, que o princípio da boa-fé objetiva processual atua
exatamente com as mesmas funcionalidades vistas no direito material, a saber: (i)
função interpretativa; (ii) função integrativa; (iii) função de controle.30 Corroboram esta
conclusão conceitos já fixados na legislação, e noções futuras já estabilizadas no Novo
Código de Processo Civil - NCPC.
Notadamente quanto à função interpretativa, importante destacar que o NCPC
bem incorporou este aspecto, ao colocar de maneira expressa o princípio da boa-fé
como parâmetro interpretativo do pedido. É providência legislativa de clara inspiração
no art. 113 do Código Civil, que posiciona a boa-fé como parâmetro interpretativo dos
negócios jurídicos, conforme já mencionado.

28
“O preceito contido no art. 14 do CPC é uma manifestação do princípio geral de boa-fé objetiva, de que
já se disse constituir, mais do que um princípio, o verdadeiro oxigênio sem o qual a vida do Direito seria
impossível”. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 1. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. p. 103.
29
MUÑOZ, Francesco Carretta. Deberes procesales de las partes en el proceso civil chileno: Referencia a
la buena fe procesal y al deber de coherencia. Revista de Derecho Valdivia [on line], vol. 21, n. 1, p. 101-
127, jul. 2008.
30
“A profícua sistematização da boa-fé requer a sua divisão em três setores operativos aptos a expor a sua
multifuncionalidade: a) função interpretativa; b) função integrativa; c) função de controle. No código
civil, a boa-fé na esfera dos negócios jurídicos poderá ser vislumbrada em cada uma das referidas
acepções”. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil, vol. 3. 2. ed.
Salvador: Jus Podivm, 2012. p. 170.
Quanto à boa-fé em sua função integrativa, esta atua como fonte de deveres
anexos, prevendo a obrigatoriedade de um padrão de comportamento de lealdade entre
as partes, objetivamente considerado. Esta posição já está bem consolidada na doutrina,
à luz do próprio conteúdo do art. 14, inciso II, do Código de Processo Civil em vigor.
No que diz respeito aos deveres anexos (também chamados acessórios, laterais)31
criados pela boa-fé objetiva processual e anteriormente mencionados por Francesco
Carretta Muñoz, seguro dizer que, na seara processual, estes se direcionam às partes e
também ao juízo.
O comportamento leal entre as partes impõe aos litigantes o dever de exercer seu
direito de ação de modo honesto, de modo ético. Pretende estabelecer um patamar moral
mínimo no exercício dessa garantia constitucional. O conteúdo semântico de lealdade
está intrinsecamente conectado com o conceito de alteridade. Ou seja: a lealdade é algo
verificado em oposição ao outro.
É dizer, portanto, que o conteúdo do dever de lealdade é o respeito à expectativa
alheia de que haverá um proceder honesto, probo, ético. Assim, para além de um dever
anexo de pautar sua conduta de modo ético, como um fim em si mesmo, há também a
obrigatoriedade de se proceder com probidade como meio para se respeitar, no outro,
esta expectativa.
Arruda Alvim já pontuou que a “(...) a lealdade é um paradigma ético, que
informa a atividade, no sentido do litigante agir de frente, sem chicanices, sem
providências inesperadas, mesmo que tais providências sejam legítimas”.32 No mesmo
sentido, muito embora tratando do contraditório, Iván Hunter Ampuero defende a
redução dos espaços processuais onde ainda é lícito a uma das partes surpreender a
outra com fatos novos e impedir a possibilidade desta de rebatê-los e discuti-los, assim

31
“Dentre os deveres que integram a relação obrigacional, cabe aqui mencionar os deveres laterais ou
instrumentais, e que podem ser sintetizados em três categorias, muito embora passíveis de
desdobramentos: os deveres acessórios de proteção, os de esclarecimento e os de lealdade”. PINTO, José
Emilio Nunes. A cláusula compromissória à luz do Código Civil. Revista de Arbitragem e Mediação. São
Paulo: Revista dos Tribunais, v. 4, p. 34-47, jan-mar. 2005.
32
ARRUDA ALVIM, José Manoel. Código de Processo Civil comentado, vol. II. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1975. p. 133. [sem grifos no original]. Na doutrina alienígena: “Esto nos dice que dentro del
desarrollo del proceso es inevitable la chicana, y como es repudiada en el escenario humano, de igual
forma debe rechazarse en el proceso”. MUÑOZ, Francesco Carretta. Deberes procesales de las partes en
el proceso civil chileno: Referencia a la buena fe procesal y al deber de coherencia. Revista de Derecho
Valdivia [on line], vol. 21, n. 1, p. 101-127, jul. 2008.
como apresentar novas provas para impedir a eficácia daqueles fatos acrescidos ao
longo do processo.33
A boa-fé objetiva processual é também direcionada ao juízo. Nesse específico,
tem seu conteúdo informado pela atividade jurisdicional enquanto dever.34 O dever de
prestar jurisdição, portanto, é qualificado pelo dever de lealdade no vínculo estabelecido
entre o juízo e cada uma das partes. Nesse desiderato, o dever de prestar jurisdição deve
ser, além de célere e efetivo, respeitador da boa-fé objetiva processual verificada no
vínculo jurídico entre o juízo e as partes.
Nesse sentido, Larenz esclarece que “sempre que exista um vínculo jurídico, as
pessoas envolvidas estão obrigadas a não frustrar a confiança razoável um do outro,
devendo comportar-se como se pode esperar de uma pessoa de boa-fé”.35
É seguro dizer, com fundamento nestas premissas, que os deveres de lealdade e
boa-fé direcionados ao juízo se traduzem em um dever de coerência nos atos
jurisdicionais decisórios. Tal dever encontra ratio não apenas nos deveres de lealdade e
boa-fé, mas nas noções de segurança jurídica e de tutela jurídica da confiança legítima
do jurisdicionado, no contexto de uma mínima estabilidade do Poder Judiciário,
enquanto instituição dotada de agentes políticos.36
Sobre o princípio da segurança jurídica, vale dizer que este é muitas vezes
empregado de forma alegórica. Em conceituação do aludido princípio, Luiz Guilherme
Marinoni relaciona como conteúdo a previsibilidade e a estabilidade dos atos
jurisdicionais.37

33
AMPUERO, Iván Hunter. No hay buena fe sin interés: La buena fe procesal y los deberes de veracidad,
completitud y colaboración. Revista de Derecho. Valdivia [on line], vol. 21, n. 2, dec 2008, p. 151-182.
34
“It is part of the duty of the judge to give a decision on every matter that comes before him. It has been
said that a judge has the obligation to reach a decision”. AARNIO, Aulis. The Rational as Reasonable.
Dordrecht: Reidel Publishing Company, 1986. p. 3. No mesmo sentido: “El juez en su misión de resolver
la contenda sometida a su conocimiento y hacer progresar el litigio sólo adquiere deberes” (...). “El juez,
si bien en el proceso no ejerce cargas, sí deberes”. MUÑOZ, Francesco Carretta. Deberes procesales de
las partes en el proceso civil chileno: Referencia a la buena fe procesal y al deber de coherencia. Revista
de Derecho Valdivia [on line], vol. 21, n. 1, p. 101-127, jul. 2008.
35
LARENZ, Karl. Derecho civil – parte general. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1978. p.
300.
36
“O fato de o homem poder viver segundo regras preestabelecidas e por ele conhecidas pode ser
considerado uma conquista da civilização. A simples circunstância de os padrões de avaliação de sua
conduta serem conhecidos, independentemente do juízo de valor que a respeito destes padrões de
avaliação se possa fazer, satisfaz e tranquiliza. Pode-se dizer que uma das mais relevantes funções do
direito é a de, justamente, gerar previsibilidade”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e
evolução do direito. In. Direito jurisprudencial. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). 2.ª tiragem.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 14.
37
“Não obstante, para que a idéia de segurança jurídica não se perca em uma extrema generalidade,
convém discriminar dois elementos imprescindíveis à sua caracterização. Para que o cidadão possa
esperar um comportamento ou se postar de determinado modo, é necessário que haja univocidade na
Resta examinar a função de controle da boa-fé objetiva processual. Aqui, cabe
distinção em relação ao que se vê no direito material. A função de controle da boa-fé
objetiva originária, oriunda do direito civil, emprega a boa-fé como limite ao exercício
de direitos subjetivos. A diferença, aqui, é que a atividade judicante não é direito do
juízo, seja singular, seja colegiado. A atividade judicante é dever, correlato ao direito do
jurisdicionado de obter uma sentença de mérito rápida e eficaz, uma vez preenchidas as
condições da ação. Desta feita, o princípio da boa-fé objetiva processual, na função-
controle, atua não como um limite ao exercício de um direito subjetivo, mas como uma
qualificação, uma adjetivação do dever de prestar jurisdição. Trata-se, portanto, de um
sobredever ou de um dever secundário, de uma norma metajurídica: incide sobre o
dever de prestar jurisdição, limitando ainda mais o espectro de discricionariedade do
juízo e vinculando-o ao seu comportamento pretérito.38
A operabilidade desta relação metajurídica se verifica por meio da aplicação das
figuras inspiradas na função de limite da boa-fé objetiva, a exemplo da vedação ao
comportamento contraditório, da tutela jurídica da confiança, da teoria dos atos próprios
e do tu quoque.
Esta construção é corroborada, também, pelas noções de segurança jurídica nas
relações processuais, pela necessidade de estabilidade e de confiabilidade na prestação
jurisdicional enquanto serviço público. O juízo, nesse desiderato, não está distante do
gestor público, notadamente no que toca à obrigatoriedade de respeitar a expectativa de
coerência do destinatário da prestação jurisdicional.

qualificação das situações jurídicas. Além disso, há que se garantir-lhe previsibilidade em relação às
conseqüências das suas ações. O cidadão deve saber, na medida do possível, não apenas os efeitos que as
suas ações poderão produzir, mas também como os terceiros poderão reagir diante delas. Note-se,
contudo, que a previsibilidade das consequências oriundas da prática de conduta ou ato pressupõe
univocidade em relação à qualificação das situações jurídicas, o que torna esses elementos
indissociavelmente ligados. Em outra perspectiva, a segurança jurídica reflete a necessidade de a ordem
jurídica ser estável. Esta deve ter um mínimo de continuidade. E isso se aplica tanto à legislação quanto à
produção judicial, embora ainda não haja, na prática dos tribunais brasileiros, qualquer preocupação com
a estabilidade das decisões”. MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos
jurisdicionais, em www.marinoni.adv.br/artigos.php., visualizado em 28/10/2014.
38
Em texto que aborda a separação de poderes e a força horizontal do precedente, Richard W. Murphy
defende que o Congresso, valendo-se do seu poder normativo, não pode ampliar o poder discricionário
dos juízes ao ponto de transformá-los em legisladores. (Separation of power and the horizontal force of
precedente. Notre Dame Law Review. 78 Notre Dame L. Rev. 1075 (2003), disponível em:
http://scholarship.law.nd.edu/ndlr/vol78/iss4/4, acessado em 01/10/2014). Abordando a restrição de
poder: “O sistema do stare decisis, ao mesmo tempo em que restringe o poder dos Juízes, concede a eles
ainda maior controle sobre a interpretação e aplicação das leis”. FINE, Toni M. O uso do precedente e o
papel do princípio do stare decisis norte-americano. Revista dos Tribunais. São Paulo, Revista dos
Tribunais, v. 782, p. 90-96, dez. 2000.
Vale lembrar, por oportuno, que a tutela jurídica da confiança na relação do
particular com a administração pública é corrente já bastante difundida nos tribunais
pátrios. Convergem, nesse aspecto, e com muito acerto, as noções de segurança jurídica,
de boa-fé e de tutela jurídica da confiança.39 São temas limítrofes, uma vez que se
fundam na expectativa de coerência do Estado.40 Neste caso, do Estado-juiz.
Nessa linha de raciocínio, ladeado a todos os deveres processuais do juízo,
intrínsecos à atividade judicante, se encontra também um dever anexo de coerência,
informado tanto pelo conceito da obrigação de proceder com lealdade,41 endereçada ao
juízo, quanto pelos limites impostos ao dever da atividade judicante pela boa-fé objetiva
processual em sua função de controle, viabilizando a aplicação das figuras arrimadas na
referida função.42

2.2. O livre convencimento motivado na concepção moderna

Considerada uma importante conquista do direito processual, a adoção pelos


sistemas jurisdicionais de influência ocidental, como critério decisório, da persuasão
racional vem perdendo, na atualidade, grande parte do seu charme.
Forçoso concluir que a inclusão nos diplomas do princípio do livre convencimento
motivado (sinônimo de persuasão racional), revelou-se uma vitória do racionalismo, já

39
No mesmo sentido, Luiz Guilherme Marinoni: “Deixe-se claro que, por direito coerente, entende-se
também e principalmente direito judicial coerente. É absurdo desejar legislação clara e coerente e não
prestar atenção ao local em que a coerência é mais importante. O direito produzido pelos juízes, quando
fragmentado, constitu sinal aberto à insegurança jurídica e obstáculo ao desenvolvimento do homem na
sociedade. Coerência do direito e segurança jurídica, assim, são aspectos que se completam. Porém, a
coerência do direito e a segurança jurídica não convivem num sistema em que o Estado pode produzir
normas jurídicas desiguais para situações iguais. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios.
3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 491-492.
40
Para Alejandro Borda, o dever de coerência “constituye una regla de derecho derivada del principio de
la buena fe, que sanciona como inadmisible toda pretensión lícita pero objetivamente contradictoria con
respecto al proprio comportamiento anterior efectuado por el mismo sujeto” (La teoria de los actos
proprios. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1993. p. 56).
41
“(...) en virtude del factor ético del proceso se producen en la especie una serie de deberes particulares,
como el de mantener una conducta coherente”. MUÑOZ, Francesco Carretta. Deberes procesales de las
partes en el proceso civil chileno: Referencia a la buena fe procesal y al deber de coherencia. Revista de
Derecho Valdivia [on line], vol. 21, n. 1, p. 101-127, jul. 2008.
42
Teresa Arruda Alvim Wambier, com apoio na doutrina cunhada no ambiente do commom law, defende
que o respeito ao precedente – por consequência o dever de coerência do juízo – encontra fundamento no
princípio da isonomia (Precedentes e evolução do direito. In. Direito jurisprudencial. WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim (coord.). 2.ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 15).
que as demais opções, íntima convicção e prova legal, trabalhavam, respectivamente,
com o arbítrio do julgador43 e com a automação da função decisória.
Conquanto a escolha tenha sido recepcionada como um avanço científico,44 não se
pode deixar de mencionar que o próprio princípio alcunhado de racional findou, nos
dias atuais, deveras deturpado e desgastado. Hoje, ele se depara com inúmeros
opositores, que o acusam de ser o problema fulcral e mais nefasto do sistema
processual.45
Não que a advertência sobre tal possibilidade tenha deixado de ser produzida
pelos clássicos, até porque ressoa claro que um poder desenfreado trafega rente àquilo
que podemos chamar de arbítrio. Já dizia Elio Fazzalari que “l’impianto logico fin qui
spiegato costituisce l’indispensabile struttura del ‘prudente apprezzamento’ del giudice
quanto alla valutazione della prova (art. 116 c.p.c.; nel linguaggio giuridico spagnolo si
parla efficacemente di ‘sana critica’) ed alla conseguente ricostruzione del fato. Del
resto, anche allorchè si parla di ‘libero convincimento’ del giudice in ordine alla prova
ed al fato di certo si presuppone e si exige l’impiego da parte del giudice degli strumenti
e delle proposizioni verificate di cui si è detto: senza il quale il convencimento sarebbe
abbandonato all’arbitrio ed al capriccio; addirittura non potrebbe formarsi”.46
Ocorre que a prática diária, somada ao crescimento assustador no volume de
processos no primeiro e segundo graus, culminou num desprezo quase que completo da
fase instrutória e do acertamento dos fatos, bem como da sua fiscalização (motivação da
decisão).

43
A justificação da decisão já esteve exclusivamente calcada na autoridade do julgador. Nessa época, a
decisão valia independentemente do seu conteúdo, bastando que fosse proferida por sujeito investido de
poder. Nesse sentido: “El Derecho romano consideraba que la principal fuente del Derecho era la
autoridad de los juristas y no las razones o fundamentos: stat pro ratione auctoritas. Lo mismo puede
decirse del Derecho canónico temprano – si cautus sit iudex, nullam causam exprimet”. BERGHOLTZ,
Gunnar. Ratio et autorictas: algunas reflexiones sobre la significación de las decisiones razonadas. Doxa.
Cuadernos de Filosofía del Derecho. Alicante, Universid de Alicante, v. 8, p. 75-85, 1990.
44
Rui Portanova afirma que o art. 131 do CPC (o responsável pela adoção do livre convencimento
motivado no direito processual civil), insere o sistema brasileiro “no que existe de mais moderno e
democrático no mundo do processo civil”. (Princípios do processo civil. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2008. p. 245).
45
Sem criticar diretamente o princípio da persuasão racional, uma vez que analisado pelo viés da
relatividade das provas tal princípio não sofreu nenhum abalo, Lenio Streck reclama uma superação do
positivismo através da superação do (i) primado epistemológico do sujeito e do (ii) solipsismo teórico da
filosofia da consciência, sendo de notar que aqui, neste específico ponto, as advertências do texto
coincidem com as do autor, ou melhor, o presente estudo têm na obra do professor gaúcho seu principal
sustentáculo. Cf., do mesmo autor: Hermenêutica jurídica e(m) crise – uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 11. ed. Livraria do Advogado Editora, 2013; O que é isto – decido conforme a
minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013; Verdade e consenso. 5. ed.
São Paulo: Saraiva, 2014.
46
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 8. ed. Milão: CEDAM, 1996. p. 387.
A verdade, que infelizmente há de ser reconhecida aqui, é a de que os maiores
críticos da persuasão racional aparentam estar com a razão. E um sistema de análise
das alegações e das provas, que almejava ser racional o suficiente para produzir
decisões justas e sindicáveis, desaguou num mar de subjetivismos, passando a forjar
decisões fruto de arbítrios judiciais, aos sabores das paixões de momento.47
Afirma-se, portanto, que o princípio do livre convencimento motivado
transformou-se numa capa protetora a encobrir desmandos, desleixos e descuidos. Toda
decisão é tida como insuspeita desde que proferida “fundamentadamente”,48 muito
embora na fundamentação estejam contidas incongruências, equívocos e, o que é mais
comum, incoerências.49
O ato decisório não pode transigir com o rigor lógico-argumentativo, menos ainda
com a existência de um controle real e efetivo. Para Elio Fazzalari “è richiesto al
giudice, nel compito in discorso (ma altrettanto è a dirsi in ordine a tutti gli addendi del
giudizio sulla situazione sostanziale pregressa), estremo rigore, logico e argomentativo,
atto a convincere chiunque, a cominciare dai litigante, dell’oggetività del risultato, ed a
inserirsi autorevolmente nel moto della giurisprudenza”.50

47
“(...) passou-se a entender que o juiz teria a liberdade de decidir ‘conforme sua convicção pessoal’, a
respeito do sentido da regra jurídica aplicável ao caso concreto.
Evidentemente, esta liberdade, se levada às últimas consequências, pode fazer cair num vazio,
transformar-se num nada, a intenção racionalmente manifestada, em dois relevantes momentos históricos
(refere-se a autora à retomada do direito romano pelos estudos de Bolonha e pela Revolução Francesa),
no sentido de criar condições para controlar a arbitrariedade, gerando previsibilidade, como resultado do
funcionamento de um sistema tendente à coerência e à harmonia”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim.
Precedentes e evolução do direito. In. Direito jurisprudencial. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim
(coord.). 2.ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 27.
48
Em texto publicado no Conjur, Lenio Streck faz duras críticas à concepção adotada pela doutrina
moderna a respeito do livre convencimento motivado: “Eis o álibi teórico-retórico: com a livre
apreciação, não há erro; não há autoritarismo; há, tão-somente, um engano na ‘escolha’... De qualquer
sorte, enquanto delegados, promotores e advogados (lato sensu – as carreiras são tantas) ficam se
digladiando, o solipsismo judicial corre frouxo (diria assim que, enquanto Nucci concedia a entrevista,
centenas de prisões foram decretadas de ofício e centenas de processos foram decididos por livre
convicção!)”. (Como assim “cada um analisa de acordo com o seu convencimento”?,
http://www.conjur.com.br/2013-abr-15/lenio-streck-assim-cada-analisa-acordo-convencimentoacessado,
acessado em 25, de outubro de 2014).
49
Afirma Aulis Aarnio que “la interpretación que presentam los jueces no puede ser meramente azarosa o
estar basada en la irracionalidad, tiene que basarse siempre en el Derecho y sólo en él. Así, en el sistema
del Estado de Derecho la certeza jurídica se realiza v.g., por medio de (1) la división de poderes, (2) la
igualdad formal entre los ciudadanos, (3) la separación entre el Derecho y la moral y (4) el modelo
formalista de razonamiento jurídico (el silogismo)”. AARNIO, Aulis. La tesis de la única respuesta
correcta y el principio regulativo del razonamiento jurídico. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho.
Alicante, Universid de Alicante, v. 8, p. 23-38, 1990.
50
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 8. ed. Milão: CEDAM, 1996. p. 405. Assim
também: “Il tema della valutazione delle prove è tema di imensa delicatezza, di fronte al quale l’operatore
giuridico deve in gran parte dismettere i panni del tecnico giuridico ed assumere quelli del logico. È
necessario procedere quindi con estrema cautela, esplicitando le scelte che via via si verranno effettuando
Eduardo Couture, explicando o conceito de sana crítica, pondera: “El juez que
debe decidir con arreglo a la sana crítica, no es libre de razonar a voluntad,
discrecionalmente, arbitrariamente. Esta manera de actuar no sería sana crítica, sino
libre convicción. La sana crítica es la unión de la lógica y de la experiência, sin
excessivas abstracciones de orden intelectual, pero también sin olvidar esos preceptos
que los filósofos llaman de higiene mental, tendientes a asegurar el más certeiro y eficaz
razonamiento”.51
O principio da persuasão racional, portanto, não pode ser visualizado como uma
outorga de poder irrestrito ao julgador, um super-poder.52 Conforme defendeu Lenio
Streck, “não há democracia onde haja poder ilimitado”.53 O juiz não é o isolado ator
principal da trama processual; funciona, sem dúvida, como uma peça essencial, porém o
seu sucesso dependerá sempre do desempenho do seu papel em consonância com a
Constituição e com as suas importantíssimas atribuições funcionais.54
Para Aulis Aarnio, “in accordance with the generally accepted ideology of law
based on Western democracy, not every use of legal power is acceptable. We assume
that the decision-maker does not reach decisions on impulse, at random or so that the
pattern of decisions falters in unexpected ways. The decision-maker is expected to
adhere as far as possible to legal certainty”.55
O princípio do livre convencimento motivado, cujo significado ultrapassou com
folga a ideia de relatividade das provas, é utilizado como “licença para matar” do
julgador. Como a sua decisão é fruto do seu convencimento individual,56 apenas

nel corso dell’esposizione”. PISANI, Andrea Proto. Lezioni di diritto processuale civile. 5. ed. Napoli:
Jovene, 2006. p. 415.
51
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed. Montevideo: Editorial B de F,
2002. p. 222.
52
Há, na doutrina, inclusive, quem defenda que o princípio do livre convencimento não se limita à análise
das provas pelo juiz, pois “além do ato probante, o juiz é livre para se convencer quanto ao direito e
justiça da solução a ser dada no caso concreto”. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 7. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p. 245.
53
STRECK, Lenio. Como assim “cada um analisa de acordo com o seu convencimento”?,
http://www.conjur.com.br/2013-abr-15/lenio-streck-assim-cada-analisa-acordo-convencimentoacessado,
acessado em 25, de outubro de 2014. Cf., tb. ECHANDÍA, Devis. Teoría general del proceso. 3. ed.
Buenos Aires: Editorial Universidad, 2004. p. 64.
54
Segundo Michele Taruffo, caso o princípio da motivação seja considerado apenas uma obrigação
formal imposta ao juiz de motivar as suas decisões, o objetivo do constituinte com a fixação da norma
não seria nem de longe alcançado. Portanto, deve-se encarar dita imposição num sentido mais substancial
de fixação dos requisitos mínimos necessários para que se possa dizer que uma decisão está efetivamente
motivada, isto é, motivada adequadamente. (La motivación de la sentencia civil. Madrid: Editorial Trotta,
2011. p. 29).
55
AARNIO, Aulis. The Rational as Reasonable. Dordrecht: Reidel Publishing Company, 1986. p. 3.
56
“Ningún juez puede ampararse en su conciencia para adoptar una solución no ajustada al Derecho”.
ROIG, Rafael de Así. Imparcialidad, igualdad y obediencia en la actividad judicial. Doxa. Cuadernos de
devendo tais motivos estar expostos no corpo do decisum,57 a consequência da adoção
do princípio foi uma personificação da Justiça na pessoa do juiz.58
Adverte Aulis Aarnio que uma das formas de justificar a decisão é apoiando-se na
posição de autoridade do julgador ou, como é mais conhecido, o argumento de
autoridade. Nessa hipótese, como visto, o conteúdo da decisão reduz-se a uma posição
de menor importância, pois o julgador justifica a sua decisão fazendo apenas referência
a sua autoridade, ou seja, a decisão é correta porque é a interpretação de uma lei válida
pelo tribunal.59
Como assevera o autor mencionado, na modernidade, a responsabilidade do juiz
converteu-se na responsabilidade de justificar suas decisões. A base para o uso do poder
por parte do juiz reside no grau de aceitação de suas decisões e não na posição formal
de poder que ele possa ocupar.
Advirta-se, todavia, que não basta a decisão estar fundamentada, o dever do julgador
apenas se completa quando a sua manifestação estiver adequadamente fundamentada, que
significa (i) explicitação das razões, (ii) determinação dos fatos da causa e (iii) manutenção da
coerência do Judiciário.

Filosofía del Derecho. Alicante, Universid de Alicante, v. 15-16, p. 913-928, 1994, p. 925. No mesmo
sentido: “Essa resposta (decisão) não pode – sob pena de ferimento do ‘princípio democrático’ – depender
da consciência do juiz, do livre convencimento, da busca da ‘verdade real’, para falar apenas nesses
artifícios que escondem a subjetividade ‘assujeitadora’ do julgador (ou do intérprete em geral, uma vez
que a problemática aqui discutida vale, a toda evidência, igualmente para a doutrina)”. STRECK, Lenio.
O que é isto – decido conforme a minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2013. p. 107.
57
Elucidativa a seguinte passagem: “A maior e mais importante limitação ao livre convencimento é a
necessidade de motivação das decisões. Aqui é que a doutrina e a jurisprudência devem exigir mais e
mais do julgador. Já que o subjetivismo do julgador é algo até desejável para que a decisão atenda aos
avanços democráticos que sepultaram a prova legal, é necessário contar com outros mecanismos de
controle do juiz”. PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2008. p. 246-247. [sem grifos no original].
58
“Da soggiungere che l’interpretazione in senso proprio, ancorché compiuta dal singolo giudice (come
dal singolo giurista), diviene opera collettiva perché è sottoposta alla ricezione, alla convalida oppure al
rifiuto degli altri interpreti, della giurisprudenza in genere”. FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto
processuale. 8. ed. Milão: CEDAM, 1996. p. 406. Georges Abboud aduz que a fidelidade ao precedente
nos sistema de common law reside na “concepção do Judiciário como uma fonte impessoal e racional de
julgamentos”. (Súmula vinculante versus precedentes: notas para evitar alguns enganos. Revista de
Processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 165, p. 218-230, nov. 2008).
59
Cf. AARNIO, Aulis. The Rational as Reasonable. Dordrecht: Reidel Publishing Company, 1986. p. 5-
6; BERGHOLTZ, Gunnar. Ratio et autorictas: algunas reflexiones sobre la significación de las decisiones
razonadas. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Alicante, Universid de Alicante, v. 8, p. 75-85,
1990. Georges Abboud, em texto cujo escopo é distinguir o precedente da súmula vinculante, defende que
o fundamento deste é, justamente, o argumento de autoridade: “Por sua vez, a súmula vinculante possui
sua força em razão da autoridade que a promulga, a prescrição legislativa que o STF formula passa a valer
após sua publicação com força de lei (geral-abstrata e para o futuro) independentemente dos casos que a
embasaram como também não a acompanham os fundamentos dos acórdãos que a originaram” (Súmula
vinculante versus precedentes: notas para evitar alguns enganos. Revista de Processo. São Paulo, Revista
dos Tribunais, v. 165, p. 218-230, nov. 2008).
Entretanto, o juiz, pessoa física, não responde mais a ninguém, julga
individualmente e como se todo o Poder Judiciário estivesse nele concentrado.60 Não
tem “pares”, não tem “norte”, não tem, por derradeira consequência, “nenhum limite”.
Tudo se completa e se justifica, bastando que a sua decisão esteja “fundamentada”, mas
nem precisa ser tão bem “fundamentada” assim. O descontentamento da parte só
encontra cobro no eventual recurso que esta poderá utilizar, desde que a recorribilidade
não encontre limitador de ordem sistemática, como sói acontecer nos recursos de estrito
direito e nalgumas inovações legislativas.61 Porém, o tribunal, juiz que é – considerando
as autorizações que permitem o relator decidir monocraticamente e a ausência de
discussões efetivas nas “quase raras” decisões colegiadas62 –, também está sujeito
alegoricamente ao livre convencimento motivado.
Porém, sobreditos fundamentos não são, e nem podem ser, simplesmente aqueles
que satisfazem, individualmente, a pessoa do juiz. Ao questionamento de Lenio Streck:
“Que segurança tem o jurisdicionado quando sabe que a decisão é dada conforme a
consciência individual do decisor?”, apenas uma resposta pode ser ventilada:
“nenhuma”.63

60
“Todavia, nesse momento, aparece, como um sintoma, algo que está recrudescido no imaginário
gnosiológico dos juristas: a ideia de que a ‘liberdade de decisão do juiz’ está ligada a uma ideia de
responsabilidade subjetiva dos julgamentos que profere. Algo como dizer que o-juiz-constrói-sua-
decisão-a-partir-de-uma-simbiose-de-razões-e-sentimentos que são apenas seus (vale dizer, um juiz
solipsista — um Selbstsüchtiger). Ora, dizer que o juiz decide conforme sua consciência retira o caráter
institucional e político que reveste as decisões do Poder Judiciário”. STRECK, Lenio. O “decido
conforme a consciência” dá segurança a alguém?, http://www.conjur.com.br/2014-mai-15/senso-
incomum-decido-conforme-consciencia-seguranca-alguem, acessado em 25 de outubro de 2014.
61
Vide Art. 518, § 1º, do CPC. Logo, o temor pela restrição legislativa no conhecimento da apelação é
plenamente justificado, uma vez que o recurso é a única ferramenta eficaz que a parte tem para contrastar
uma decisão sem a adequada fundamentação. Cf. BERGHOLTZ, Gunnar. Ratio et autorictas: algunas
reflexiones sobre la significación de las decisiones razonadas. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho.
Alicante, Universid de Alicante, v. 8, p. 75-85, 1990.
62
Importante enfatizar outra crítica muito comum na Justiça Nacional, i.e., a de que a mudança na
composição dos órgãos colegiados afeta a sua jurisprudência. Não podemos perder de vista que a
jurisprudência não pertence ao relator A ou B, ao órgão colegiado C ou D, ela pertence ao Poder
Judiciário como órgão de responsabilidade política e compromisso social, motivo pelo qual não pode
cambiar suas respostas injustificadamente. No direito americano, Frederick Schauer adverte que “[u]nder
the doctrine of stare decisis, a court is expected to decide issues in the same way that it has decided them
in the past, even if the membership of the court has changed, or even if the same members have changed
their minds”. (Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Harvard University Press:
Cambridge, 2009. p. 37). Muito embora seja desejável que a mudança na composição do órgão colegiado
não afete significativamente a sua ‘jurisprudência’, Thomas R. Lee adverte que “[o]ne statistical study
has suggested, for example, that the Courts that have disproportionately altered precedent have been
characterized by significant changes in membership”. (Stare decisis in historical perspective: From the
founding era to the Rehnquist Court. Vanderbilt Law Review. v. 52, p. 647-753).
63
STRECK, Lenio. O “decido conforme a consciência” dá segurança a alguém?,
http://www.conjur.com.br/2014-mai-15/senso-incomum-decido-conforme-consciencia-seguranca-alguem,
acessado em 25 de outubro de 2014.
Ora, não se deve esperar também do julgador a lealdade e a boa-fé? A boa-fé, no
seu aspecto objetivo, não reclama o dever de coerência? Este dever não se
consubstancia na não frustração da confiança e da desejada previsibilidade do sistema
judiciário? Se as respostas forem positivas – como pensamos que são –, não existe
verdadeiramente um “livre” convencimento motivado, pelo menos não na concepção
tradicional.64
A não vinculação do juiz às suas anteriores decisões, a não vinculação do juiz às
decisões do juízo e a não vinculação do juiz às decisões do próprio Poder Judiciário
revelam uma dose de arbítrio65 tão forte que nem o princípio do livre convencimento
motivado consegue turvar.66
E o sistema assim vai caminhando, a espera de uma nova Revolução Francesa.67

64
Benjamin N. Cardozo, citado por Teresa Arruda Alvim Wambier, afirma que: “The judge, even when
he is free, is still not wholly free. He is not a Knight-errant roaming at will in pursuit of his own ideal of
beauty or of goodness. He is to draw his inspiration from consecrated principle. He is not to yield to
spasmodic sentimento, to vague and unregulated benevolence. He is to exercise a discretion informed by
tradition, methodized by analogy, disciplined by the system and subordinated to the primordial necessity
of order in the social life” (Precedentes e evolução do direito. In. Direito jurisprudencial. WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim (coord.). 2.ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 29). De igual
maneira: “(...) la práctica de dar razones apoya la opinión de que la legislación, los precedentes y otras
fuentes constriñen no sólo las razones dadas para una decisión, es decir, su justificación, sino también los
descubrimientos del juez”. BERGHOLTZ, Gunnar. Ratio et autorictas: algunas reflexiones sobre la
significación de las decisiones razonadas. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Alicante, Universid
de Alicante, v. 8, p. 75-85, 1990. Lenio Streck faz advertência precisa: “O perigo de tal afirmação — a de
que o juiz decide conforme a sua consciência (ou segundo uma instância
de fundamentum inconcussum como o ens creatum) — reside na possibilidade de o juiz valer-se, por
exemplo, de argumentos metajurídicos criados ad hoc para legitimar sua decisão, que segundo ‘sua
consciência’ deveria apontar em certa direção (e que talvez pudesse ser diferente dependendo do juiz ou
do humor do mesmo juiz naquele dia) para mitigar as consequências indesejáveis de sua decisão. Ou o
juiz valer do conhecimento empírico ‘da realidade ao seu redor’...”. (O “decido conforme a consciência”
dá segurança a alguém?, http://www.conjur.com.br/2014-mai-15/senso-incomum-decido-conforme-
consciencia-seguranca-alguem, acessado em 25 de outubro de 2014).
65
Cf. STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme a minha consciência? 4. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2013. p. 107.
66
Explicando a teoria do stare decisis, Thomas R. Lee adverte que “[u]nder this view, public respect
depends on a perception that the Court's decisions are governed by the rule of law, and not by the vagaries
of the political process”. (Stare decisis in historical perspective: From the founding era to the Rehnquist
Court. Vanderbilt Law Review. v. 52, p. 647-753).
67
Foi a Revolução Francesa que pretendeu reduzir a margem de liberdade decisória do Poder Judiciário,
naquela época, contaminado que estava, pela relação promiscua com o clero e a nobreza. Sobre o tema:
MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013; MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. In. Direito jurisprudencial.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). 2.ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012;
ATAÍDE JÚNIOR, Jadelmiro Rodrigues de. Precedentes vinculantes e a irretroatividade do direito no
sistema processual brasileiro. Curitiba: Juruá, 2012. Cf. ainda: TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo
Regime e a Revolução. São Paulo: Martins Fontes, 2009; VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa
1789-1799. São Paulo: Editora Unesp, 2012; GALLO, Max. Revolução Francesa, v. 1 e 2. Porto Alegre:
L&PM, 2012.
2.3. A vinculação do juízo e do juiz às suas decisões e às decisões do juízo

Dá-se conta, na atualidade, principalmente após a divulgação do projeto do novo


diploma processual, da expressa vedação no direito pátrio da decisão-surpresa.
Na expressão alemã Verbot der Überraschungsentscheidungen, ou na italiana
sentença de terceira via, a decisão-surpresa pode ser aqui conceituada como aquela que
provém de uma não discussão a respeito dos fatos e/ou da regra jurídica que a
norteou(aram). Por ela fustigar o princípio do contraditório, já que uma ou ambas as
partes não puderam influir – pela falta de oportunidade – no resultado do ato decisório,
o NCPC tem a pretensão de proscrevê-la do sistema.68
A proposta da presente pesquisa é também proibir (ou, pelo menos, criar
mecanismos defensivos contra) outro tipo de decisão-surpresa, aquela que surpreende
não porque invoca tema que não foi objeto de discussão (não submetido ao
contraditório), mas a que revela, sem nenhuma justificativa plausível, uma guinada
brusca na jurisprudência ou em anterior decisão do juiz ou do juízo onde o julgador
exerce atribuição.
O escopo do direito de criar uma previsibilidade nos comportamentos sociais,69 e
para os comportamentos sociais, não se compatibiliza com a imprevisibilidade das
decisões judiciais, cujos exemplos são abundantes no atual momento. E a
imprevisibilidade torna-se ainda mais claudicante quando, mesmo após um
pronunciamento anterior, o julgador ao apreciar caso idêntico ou semelhante decide
totalmente diferente daquele seu posicionamento proferido no passado.70

68
“A utilização pelo juiz, apenas quando do julgamento, de elementos estranhos ao que se debateu no
processo – pouco importa trate-se de elementos de fato ou de direito, matéria de ordem pública que seja –
produz o que a doutrina e os tribunais, especialmente os europeus, chamam de ‘decisão-surpresa’,
‘decisão solitária’ ou, ainda, “sentença de terceira via’”. MALLET, Estevão. Notas sobre o problema da
chamada ‘decisão-surpresa’. Revista de Processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 233, p. 43-64, jul.
2014. Cf. tb. DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil, vol. 5. 6. ed. Salvador: JusPodvm,
2014. p. 167.
69
Cf. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983. Cf.
tb. FINE, Toni M. O uso do precedente e o papel do princípio do stare decisis norte-americano. Revista
dos Tribunais. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 782, p. 90-96, dez. 2000.
70
Também é corolário de um sistema imparcial outorgar “a mesma justiça a todos, independentemente de
quem forem as partes do caso e de quem está julgando”. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de
Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 191. No direito pátrio, Alexandre Morais da Rosa, com apoio
na doutrina de Duncan Kennedy, menciona a figura do julgador bipolar: “No enleio entre posições
ideológicas, muitas vezes por deficiência teórica, decide de maneira conservadora e no caso seguinte de
forma liberal, sem que tenha um mínimo de coerência. Daí que não se sabe o que esperar dele. Sua
bipolaridade decorre do fato de que não pertence — ou não sabe que pertence — a um grupo ideológico
definido e passa a vida decidindo como bem lhe aprouver. Não raro acredita, ainda (e precisamos ter
cuidado com esses sujeitos) que decisão vem de sentire, tão bem criticado por Lenio Streck. No Brasil
poderia ser chamado julgador Maria-vai-com-as-outras. Que espécie de lugar de fala essa atitude
Premissa salutar a defendida por Aulis Aarnio de que “in other words, courts have
to behave so that the citizens are able to plan their own activity on a rational basis. In
many cases legal decisions are the only proper reason for the future planning. Rational
planning, in turn, is a necessary condition for the continuity of society. It is one
requirement for the cohesion of society. If there is no scope for predictability, society
will dissolve into anarchy, which in turn is at odds a just and legal foundation”.71
Já que a segurança jurídica é “garantida” constitucionalmente, o direito deve,
acima de tudo, frutificar num ambiente marcado pelos ideais de determinação, de
previsibilidade e de estabilidade normativa e decisória.72 Cabe, assim, ao órgão
encarregado de aplicá-lo, fazê-lo de modo uniforme, até porque tal exigência implica no
atendimento de outro importante princípio constitucional, o da isonomia.73
A ideia de proibição do venire contra factum proprium do juízo, parte da
consideração crucial de que o Poder Judiciário, apesar de representando pelos seus
órgãos, não pode perder a sua unidade.74 Sendo assim, razões de elevada ordem impõem
uma uniformidade na aplicação do direito, de modo a conectar um juiz ao outro, assim
como ao tribunal perante o qual diretamente presta sua jurisdição, aos outros similares

conforma? Como age um juiz que sempre é levado pela maré, ainda mais em tempos de torrente
incontrolada do poder punitivo? Que sentença um juiz Maria-vai-com-as-outras coloca no mundo?”.
Princípio não é ‘aspirina’ e juiz não pode ser bipolar: deve existir coerência,
http://www.conjur.com.br/2014-out-11/diario-classe-principio-nao-aspirina-juiz-nao-bipolar-haver-
coerencia#_ftnref6, visualizado em 28/10/2014.
71
AARNIO, Aulis. The Rational as Reasonable. Dordrecht: Reidel Publishing Company, 1986. p. 4.
72
Esgota o tema, ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2011.
73
“Una corte che, sulla stessa questione, cambiasse ogni giorno opinione, avrebbe ben scarsa
autorevolezza e violerebbe qualunque principio di uguaglianza dei cittadini di fronte alla legge”.
TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile.
Milão, Giuffrè, anno LXI, n. 3, settembre 2007. p. 719. Defende Toni Fine que uma das premissas básicas
da doutrina do precedente “é a justiça que resulta quando casos semelhantes são decididos de forma
similar”. (O uso do precedente e o papel do princípio do stare decisis norte-americano. Revista dos
Tribunais. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 782, p. 90-96, dez. 2000). Cf. tb. MACCORMICK, Neil.
Retórica e o Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 191.
74
Adverte Lenio Streck, com argúcia, que “(...) quando vamos ao judiciário não devemos querer que a
resposta do juiz seja a resposta que ele, pessoalmente, tenha sobre o caso. Exatamente porque ele não
deve (embora na prática, isso seja praxe) dizer-o-direito-a- partir-de-sua-subjetividade — com o que o
direito desaparece por baixo desse conjunto de opiniões pessoais — é que a Constituição estabelece a
imperiosidade da fundamentação”. (“Salvo pela lei, morto pela moral”: como devem decidir os juízes?,
http://www.conjur.com.br/2014-out-16/senso-incomum-salvo-lei-morto-moral-decidir-juizes, visualizado
em 28/10/2014). Noutros termos: “A doutrina do stare decisis repousa no princípio de que um Tribunal é
uma instituição requisitada a aplicar um corpo de leis, e não um mero grupo de Juízes proferindo decisões
isoladas nos casos a eles submetidos. Assim sendo, as regras de direito não devem mudar caso a caso ou
de Juiz a Juiz. Tal doutrina também manifesta o reconhecimento de que aqueles que se encontram
engajados em transações baseadas nas regras de direito que estão prevalecendo podem confiar em tal
estabilidade. Em suma, o stare decisis promove um imparcial, previsível e consistente desenvolvimento
dos princípios legais; fomenta confiança nas decisões judiciais; e contribui para a real integridade do
processo judicial”. FINE, Toni M. O uso do precedente e o papel do princípio do stare decisis norte-
americano. Revista dos Tribunais. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 782, p. 90-96, dez. 2000.
e, de igual modo e com maior razão, aos hierarquicamente superiores.75 A vinculação
ideal, a dotar o Poder Judiciário da necessária unidade, é aquela vertical (a decisão-guia
provém de um órgão hierarquicamente àquele que proferirá a decisão-guiada) e
horizontal (quando o órgão da decisão-guia e da decisão-guiada estão no mesmo
patamar hierárquico).76
Essa cadeia de coerência, uma vez que obriga o juiz a decidir no mesmo prumo
de anterior decisão sua,77 de outro colega que exerceu ou exerce a judicatura no mesmo
juízo e, inclusive, de outro que ocupe vara com idênticas atribuições, reduzem as
margens de aplicação do arbítrio78 ou do subjetivismo,79 assim como constrangem o
sistema à previsibilidade e estabilidade desejadas.80 Por essa razão, a presente pesquisa
defende uma vinculação do juízo e do juiz às suas decisões e às decisões do juízo,81 que,
em grandes linhas, significa tão-somente que o julgador não pode descurar do fato de

75
Importante consideração faz Aulis Aarnio sobre o conceito de certeza jurídica. Para o autor sueco, a
certeza jurídica, além da eliminação da arbitrariedade, possui outros dois aspectos: (a) a decisão tem que
ser conforme o direito; (b) estar em concordância com outras normas sociais não jurídicas (normas
morais, por exemplo) (The Rational as Reasonable. Dordrecht: Reidel Publishing Company, 1986. p. 4).
76
Cf. SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Harvard
University Press: Cambridge, 2009. p. 36-37.
77
No precedente horizontal está incluído aquilo que a doutrina define como autoprecedente, isto é, “dai
precedenti emanati dalla stessa corte che decide il caso sucessivo”. TARUFFO, Michele. Precedente e
giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milão, Giuffrè, anno LXI, n. 3,
settembre 2007. p. 719.
78
Elucidativa a seguinte passagem de Alexander Hamilton: “To avoid an arbitrary discretion in the courts
it is indispensable that they should be bound down by strict rules and precedents which serve to define
and point out their duty in every particular case that comes before them”. Apud. LEE, Thomas R. Stare
decisis in historical perspective: From the founding era to the Rehnquist Court. Vanderbilt Law Review. v.
52, p. 647-753.
79
“Como a interpretação normativa envolve valorações, e se sujeita a ponderações, a
incompreensibilidade e a instabilidade normativa também são visíveis na atividade do Poder Judiciário.
São perceptíveis não apenas diferentes interpretações provenientes de diferentes órgãos julgadores.
Reconhecem-se, igualmente, interpretações diversas de um mesmo órgão julgador. Tome-se, como
exemplo, o Supremo Tribunal Federal, em cujo âmbito decisório podem ser encontrados vários casos
reveladores de uma mudança de jurisprudência”. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. São Paulo:
Malheiros, 2011. p. 51.
80
“Cuanto más alto es el grado de certeza jurídica, tanto mayor es la confianza de la gente en las
funciones del orden jurídico. Así, los tribunales tienen una responsabilidade social especial en maximizar
la certeza jurídica. Solamente entonces es aceptable su función”. AARNIO, Aulis. La tesis de la única
respuesta correcta y el principio regulativo del razonamiento jurídico. Doxa. Cuadernos de Filosofía del
Derecho. Alicante, Universid de Alicante, v. 8, p. 23-38, 1990. Cf. FINE, Toni M. O uso do precedente e
o papel do princípio do stare decisis norte-americano. Revista dos Tribunais. São Paulo, Revista dos
Tribunais, v. 782, p. 90-96, dez. 2000.
81
“The core principle of decision-making according to precedente is that courts should follow previous
decisions – that they should give the same answers to legal questions that higher or earlier courts have
given in the past”. SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning.
Harvard University Press: Cambridge, 2009. p. 37.
que ele representa um todo incindível (o Poder Judiciário)82, possuidor de presente,
porém mais importante que isso, de passado e futuro.83
Contudo, bom frisar, a menção à “jurisprudência” (aos casos já julgados e
supostamente balizadores das novas decisões) como critério de fundamentação e
justificação, não pode se dar de forma desgovernada e aleatória, isto é, com mero intuito
ou recurso retórico.84 Uma das críticas feitas por Michele Taruffo ao sistema processual
italiano, que se aplica como uma luva ao nosso, é a de que a ideia de jurisprudência é
mais quantitativa do que qualitativa, sendo esta uma das principais diferenças entre os
sistemas da common law e civil law. Enquanto naquele o precedente é uma decisão
relativa a um caso particular, por isso de fácil visualização; neste, quando se fala em
jurisprudência, pensa-se em muitas decisões sobre o assunto, algumas delas, inclusive,
contraditórias.85
Para Taruffo, o manejo nesses moldes da técnica da jurisprudência “implica varie
conseguenze, tra cui la difficoltà – spesso difficilmente superabile – di stabilire quale sai
la decisione che davvero è rilivante (se ve n’è una) oppure di decidere quante decisione
occorrono perché si possa dire che esiste una giurisprudenza relativa ad un determinata
interpretazione di una norma”.86
Na prática, portanto, o julgador para justificar opções casuísticas e fundamentar
decisões muitas vezes contrárias às anteriormente proferidas, vale-se da menção à
“jurisprudência” (decisões de outros juízos), sem o rigor técnico necessário.

82
Conforme adverte William Blackstone, mencionado por Thomas Lee, “[b]ecause the law in that case
being solemnly declared and determined, what before was uncertain, and perhaps indifferent, is now
become a permanent rule, which it is not in the breast of any subsequent judge to alter or vary from,
according to his own private sentiments: but according to the known laws and customs of the land”.
(Stare decisis in historical perspective: From the founding era to the Rehnquist Court. Vanderbilt Law
Review. v. 52, p. 647-753).
83
É comum a doutrina americana retirar do “Article III” de sua Constituição o fundamento para a teoria
do stare decisis. (Cf. LEE, Thomas R. Stare decisis in historical perspective: From the founding era to the
Rehnquist Court. Vanderbilt Law Review. v. 52, p. 647-753). Todavia, não há nada expresso e claro nesse
sentido naquela parte do texto constitucional. A conclusão a que chegamos (os autores e Paulo Bernardo
Lindoso e Lima) é que os doutrinadores talvez extraíssem do judicial power uma noção fisiológica do
Poder Judiciário, de modo a justificar, por si só, a vinculação do Poder Judiciário às suas próprias
decisões.
84
“(...) dove la regola è piuttosto l’impiego casuale, confuso, disordinato e tutto sommato irrazionale, di
gruppi di sentenze scelte senza nessun critério, più o meno numerose a seconda della pazienza del copista
oppure, atualmente, della rapidità del computer”. TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza.
Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milão, Giuffrè, anno LXI, n. 3, settembre 2007. p. 717.
85
“Quando si parla del precedente si fa solitamente riferimento ad una decisione relativa ad un caso
particolare, mentre quando si parla della giurisprudenza si fa solitamente riferimento ad una pluralità,
spesso assai ampia, di decisioni relative a vari e diversi casi concreti”. TARUFFO, Michele. Precedente e
giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milão, Giuffrè, anno LXI, n. 3,
settembre 2007. p. 709.
86
TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile.
Milão, Giuffrè, anno LXI, n. 3, settembre 2007. p. 709.
Confundem-se, quase sempre, a ratio decidendi (a regra de direito que constitui o
fundamento direto da decisão sobre os fatos do caso sob análise) com o obiter dictum
(todas as informações e argumentações que se encontram na motivação da decisão, mas
que não constituem parte integrante do fundamento jurídico da decisão), e tudo pode ser
encarado como um precedente sem, de fato, sê-lo. Sendo útil, qualquer passagem de
uma decisão interlocutória, sentença ou acórdão, acaba utilizada como “precedente” e
preenchido estará o requisito para que tal excerto seja acrescido à nova decisão,87 muito
embora no primeiro decisum a “passagem transposta” estivesse sustentando conclusão
diametralmente oposta, uma vez que não se trata propriamente da ratio decidendi.
Todavia, a mudança jurisprudencial não deve ser encarada como um mal, na
medida em que mais das vezes ela representa a própria evolução do direito. O aspecto
negativo consiste na sua mudança abrupta, injustificada, relacionada mais de perto com
casuísmos, contingências e deformações sistêmicas.88
Há – isso sim – sempre uma necessidade de o julgador justificar a não adoção da
mesma baliza utilizada numa decisão anterior, ou seja, da não manutenção da
“coerência jurisprudencial”, seja porque os casos não são idênticos e as diferenças
reclamam a distinção, seja porque a decisão anterior, por não ser a melhor, merece ser
suplantada, i.e., substituída por outra mais adequada. De uma forma ou de outra, o dever
de coerência estabelece que esta (a coerência)89 apenas poderá ser quebrada quando o
julgador indicar, de maneira precisa, as razões adequadas que justifiquem a não
continuidade da cadeia.90

87
“(...) nella pratica giudiziaria ci si comporta non di rado nello stesso modo, richiamando qualunque
parte della sentenza che pare utile invocare come precedente”. TARUFFO, Michele. Precedente e
giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milão, Giuffrè, anno LXI, n. 3,
settembre 2007. p. 709. No mesmo sentido: LIMA, Paulo Bernardo Lindoso e. A segurança dos
conceitos. Revista Visão Jurídica. Edição n. 99, p. 58-62, 2014.
88
“Fidelidade ao Estado de Direito requer que se evite qualquer variação frívola no padrão decisório de
um juiz ou corte para outro”. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2008. p. 191.
89
“La variedad de posibles modos de empleo se corresponde con la variedad de significados del
predicado ‘coherente’. Parece que sólo se está de acuerdo en que la ‘coherencia’ es más amplia que el
principio de no contradicción o consistencia”. GÜNTHER, Klaus. Un concepto normativo de coherencia
para una teoría de la argumentación jurídica. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Alicante,
Universid de Alicante, v. 17-18, p. 271-302, 1995, p. 274.
90
Cf. a crítica que Michele Taruffo lança sobre a Corte de Cassação italiana: “(...) il problema non
dipende dalla circostanza che una corte suprema muti orientamento e non segua passivamente i propri
precedenti: il problema sorge quando queste variazioni sono troppo frequenti, arbitrarie, casuali e prive di
seria giustificazione, come non di rado accade nella giurisprudenza della nostra Corte di cassazione”.
TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile.
Milão, Giuffrè, anno LXI, n. 3, settembre 2007. p. 720. De maneira idêntica: “(...) una vez que se ha dado
una solución esta debe ser adoptada en todos los casos iguales, salvo que exista una razón com apoyo
jurídico, para proceder de forma contraria”. ROIG, Rafael de Así. Imparcialidad, igualdad y obediencia
Vale dizer, também, que a proposta do presente trabalho não afeta uma importante
e significativa garantia que serve à imparcialidade do Poder Judiciário: a independência
funcional do juiz. O dever de decidir em conformidade com anteriores decisões já
proferidas não retira poder, ou parcela deste, apenas conforma e limita o seu efetivo
exercício.91 Como já afirmou Aulis Aarnio, a “independencia de los tribunales no
significa que ellos estén completamente fuera del control democrático”.92
A independência funcional deve ser visualizada, primordialmente, como a
impossibilidade de o juiz receber instruções ou ordens dos órgãos superiores, mas não
como desprendimento ao dever de coerência, que consiste na obrigação de o julgador
não frustrar, sem justificativa plausível, as expectativas que foram criadas em razão da
atuação precedente do Poder Judiciário, total e unitariamente considerado. Como afirma
Rafael de Así Roig, embora os acórdãos dos tribunais superiores neguem valor
vinculante aos seus julgamentos anteriores, se são analisados os valores e princípios
constitucionais e o processo real da decisão judicial, constatar-se-á que essa vinculação
existe.
Humberto Ávila critica a esquizofrenia jurisprudencial com certa dose de
sarcasmo: “A mudança de jurisprudência, além de tornar-se cada vez mais recorrente,
também assume contornos ainda mais intensos, chegando-se, em alguns casos, ao ponto
de se falar em jurisprudência ‘ziguezague’ (‘Zick-Zack-Rechtsprechung)”.93
Cita Michele Taruffo que o exponencial número de decisões a respeito de um
mesmo tema, como se passa nos países de civil law, já que o precedente não é
verdadeiramente reverenciado, se apresenta como fonte inesgotável de incoerência.
Sustenta, portanto, que “il numero incontrollato delle decisioni favorisce una ulteriore
degenerazione, ossia il frequente verificarsi di incoerenze, e spesso di evidenti

en la actividad judicial. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Alicante, Universid de Alicante, v.
15-16, p. 913-928, 1994. De igual modo: SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new
introduction to legal reasoning. Harvard University Press: Cambridge, 2009. p. 57-60.
91
“En relación con el Poder judicial, y concretamente con su actuación, este sentido de la igualdad,
impede establecer diferencias de trato entre los ciudadanos; impone resolver de forma idêntica casos
idênticos. La reflexión anterior sobre la seguridad incide en este punto. Así, un enunciado normativo
general que sirve de justificación a una determinada decisión, deberá utilizarse en todas las restantes
decisiones que versen sobre casos idênticos”. ROIG, Rafael de Así. Imparcialidad, igualdad y obediencia
en la actividad judicial. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Alicante, Universid de Alicante, v.
15-16, p. 913-928, 1994. Conclui, Toni Fine, que a doutrina do stare decisis “remove a discrição judicial
no que se refere ao seu respectivo processo decisório”. (O uso do precedente e o papel do princípio do
stare decisis norte-americano. Revista dos Tribunais. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 782, p. 90-96,
dez. 2000).
92
AARNIO, Aulis. La tesis de la única respuesta correcta y el principio regulativo del razonamiento
jurídico. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. Alicante, Universid de Alicante, v. 8, p. 23-38,
1990.
93
ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 53.
contraddizioni, e di repentini mutamenti di indirizzo, nell’àmbito della medesima
giurisprudenza dalla Cassazione”.94
Após afirmar que muitas vezes a jurisprudência italiana apresenta-se incoerente e
contraditória, Michele Taruffo se põe a questionar se existe ou não jurisprudência
conforme, se existe uma jurisprudência prevalente, se a jurisprudência é incerta ou se
inclusive tem-se uma situação de caos jurisprudencial.95
Merece, portanto, total acolhida a seguinte passagem de Rafael de Así Roig: “En
este sentido, pueden alegarse razones de peso, tales como el control de la actividad
judicial y la tutela judicial efectiva, que justifican el valor vinculante. La relevancia de
la actuación judicial en un Estado de Derecho exige un control exhaustivo de su
actuación y del sometimiento al Derecho. Está justificado apartar o Poder judicial del
control al que se ven sometidos los restantes poderes públicos en el sentido de
exigírseles que los tratamentos diferenciados se justifiquen, no sólo en sí mismos sino
en relación con los casos similares? ¿Es posible que exista una tutela judicial efectiva de
los derechos sin que los ciudadanos sepan que los tribunales van a resolver casos
idénticos de manera idéntica, salvo causa suficientemente justificada?”96
Ao jurisdicionado resta, portanto, esperar do juiz – porque é o que se espera, no
plano macro, do Poder Judiciário –, uma atuação coerente, que não malogre as suas fiéis
expectativas. A proibição de comportamento contraditório do Poder Judiciário não é
outra coisa que a necessidade de proteção da confiança do consumidor dos seus
serviços, o tão esquecido jurisdicionado.

3. A VIOLAÇÃO AO DEVER DE COERÊNCIA: A NOÇÃO DE CONTRADIÇÃO INTERNA E

EXTERNA E OS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

Já é assente na doutrina e na jurisprudência o cabimento do recurso de embargos


de declaração para combater a contradição interna em determinado provimento
jurisdicional que tenha cunho decisório. Quanto a isto, não há grandes problemas. O

94
TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile.
Milão, Giuffrè, anno LXI, n. 3, settembre 2007. p. 709.
95
“Dall’altro lato, spesso si scopre che la giurisprudenza è incoerente e contraddittoria: si tratterà allora di
stabilire se vi è o non vi è giurisprudenza conforme, se vi è una giurisprudenza prevalente, se la
giurisprudenza è incerta, o se addirittura vi è una situazione di caos giurisprudenziale”. TARUFFO,
Michele. Precedente e giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milão, Giuffrè,
anno LXI, n. 3, settembre 2007. p. 709.
96
ROIG, Rafael de Así. Imparcialidad, igualdad y obediencia en la actividad judicial. Doxa. Cuadernos
de Filosofía del Derecho. Alicante, Universid de Alicante, v. 15-16, p. 913-928, 1994.
mesmo não se pode dizer quanto à contradição externa. A existência da noção de
contradição externa revela uma enorme lacuna no ordenamento e o reconhecimento da
banalização da violação do dever de coerência do juízo. A distinção foi criada por
ocasião da tentativa de se empregar o cabimento dos embargos de declaração para fins
de reformar a decisão contraditória. A jurisprudência rechaça tal providência, em
uníssono.97
Seguro dizer, portanto, que a gênese desta discussão entre contradição externa e
interna é justamente a constatação de que existem decisões contraditórias quando
reciprocamente consideradas, e o sistema carece de um instrumento próprio de controle
do dever de coerência do juízo.
O argumento que fundamenta a vedação aos embargos de declaração para
remediar a contradição externa é o de que a providência pedida traspassa o objeto das
suas hipóteses de cabimento. E de fato ultrapassa: o teor da norma é claro e não dá
margens a esta interpretação elastecida. Os embargos de declaração se prestam para
combater apenas e tão somente a contradição interna, dentro de uma mesma decisão – e
não aquela verificada do cotejo de duas decisões distintas.
Nesse desiderato, à luz desta vedação e tendo em conta as considerações já feitas,
pode-se dizer que a decisão prolatada em contradição externa importa necessariamente
em decisão contraditória, consistindo em violação ao dever de coerência do juízo,
configurando violação ao princípio do nemo potest venire contra factum proprium.
Também é fácil a constatação da ausência de uma solução bem delineada para este
tipo de situação. Não é demais, inclusive, dizer que o sistema processual pátrio estimula
a falta de coerência do juízo com suas próprias decisões e a vedação dos embargos,
muito embora correta do ponto de vista da técnica processual, a reitera em um viés
prático. Em suma, a jurisprudência recebeu o problema de braços abertos, sem dar pistas
para a solução. Apenas e tão somente nega ao jurisdicionado o controle do dever de
coerência do juízo, pela via dos aclaratórios, em postura que contribui muito para a

97
Neste sentido, os seguintes precedentes do STJ: REsp: 1250367 RJ 2011/0093362-1, Rel. Min.
ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 15/08/2013, T2; EDcl no AgRg no AREsp: 293479 SP
2013/0013695-0, Rel. Min. CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 14/05/2013, T2, Data de Publicação:
DJe 21/05/2013; EDcl no AgRg no REsp: 1366679 RJ 2012/0268470-9, Rel. Min. MAURO
CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 19/09/2013, T2, Data de Publicação: DJe 27/09/2013;
AgRg no AREsp: 393988 ES 2013/0304552-0, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de
Julgamento: 24/06/2014, T4, Data de Publicação: DJe 01/08/2014.
construção de um cenário em que o livre convencimento motivado afigura-se como
pretexto para decisões, na prática, sem fundamento.98
Entretanto, o óbice ao emprego dos embargos de declaração para controle da
violação ao dever de coerência do juízo, manifesto na contradição externa não significa,
em hipótese alguma, que esta deva se perpetuar. É consenso (eis que a jurisprudência
nada mais é que o consenso) que há o problema, e este pode ser solucionado por meio
da cláusula geral de boa-fé objetiva processual.
O controle desta decisão pode ser feito por meio da cláusula geral do art. 14,
inciso II, do Código de Processo Civil, eis que esta viola frontalmente a boa-fé objetiva
processual prevista na obrigatoriedade de comportamento endereçada também ao juízo.
Assim, a solução que se afigura cabível, como controle do dever de coerência do juízo,
é a reforma de decisão em contradição externa pela violação art. 14, inciso II, do
diploma processual, bem como pelo princípio da isonomia (art. 5º, CF/88), por meio de
um recurso que provoque a reforma da decisão, e não o seu aclaramento ou integração.
A violação ao dever de coerência caracteriza, portanto, error in judicando, eis que
retromarcha em sentido oposto às expectativas legítimas já inspiradas no jurisdicionado.
Para ilustrar, basta pensar em um uma parede, construída tijolo a tijolo pelos atos
praticados pelas partes e pelo juízo. Não pode, o juízo, após edificar este bloco de
confiança, destruí-lo em decisão contraditória, claramente violadora do dever de
coerência.99
Encontrar uma ferramenta que sirva de ataque à violação ao dever de coerência do
juízo é o que faremos no próximo tópico.

4. O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA COMO FERRAMENTA DE CONTROLE DO DEVER DE


COERÊNCIA DO JUÍZO: NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM

O venire, como doravante será chamado, teve origem no direito privado e com
alguma rapidez se espraiou também para a seara do direito público. Hoje, é figura fácil

98
O argumento de que o juiz é livre para decidir e de que o sistema não deseja, porém admite e convive,
com decisões contraditórias, pelas razões até aqui expostas, não pode prevalecer, sob pena de violação
frontal da Constituição.
99
Benjamin N. Cardozo, citado por Thomas R. Lee, utiliza metáfora similar: “[t]he labor of judges would
be increased almost to the breaking point if every past decision could be reopened in every case, and one
could not lay one’s own course of bricks on the secure foundation of the courses laid by others who had
gone before him”. (Stare decisis in historical perspective: From the founding era to the Rehnquist Court.
Vanderbilt Law Review. v. 52, p. 647-753).
em temas de direito administrativo, comumente associado à noção de segurança
jurídica100 na relação da Administração Pública com o particular.
É possível, apenas com a base legal do art. 14, II, do CPC, cláusula geral de boa-
fé objetiva processual, admitir justificação legal ao venire direcionado ao juízo. Há
ainda, lateralmente a isto, a outro fundamento: aquele calcado na ideia do juízo
enquanto agente do estado. Enquanto agente administrativo, o juiz está proibido de
frustrar a confiança e a expectativa do particular. Pode-se afirmar, portanto, que há mais
de uma fundamentação para um dever de coerência do juízo. Além do dever anexo de
coerência, há o limite ao exercício do poder de jurisdição, oriundo da tutela da
confiança.
O que informa, especificamente, a vedação ao comportamento contraditório do
juízo é a função de controle da boa-fé objetiva processual. Esta funcionalidade do
princípio coloca a boa-fé objetiva como adjetivação, como limite ao dever de prestar
jurisdição. Com arrimo nesta funcionalidade é que se desenvolveu a doutrina da
vedação ao comportamento contraditório. Com este dever, há um afunilamento da
margem de discricionariedade do juízo. A cláusula geral de boa-fé objetiva processual
impõe ao juízo um dever de lealdade para com as partes. Assim, além de todas as
amarras legais, aquele se vincula também às suas próprias decisões pretéritas.
Nessa senda, a doutrina101 coloca como pressupostos para a caracterização do
comportamento contraditório: uma conduta inicial capaz de gerar em outrem legítimas
expectativas na conservação do sentido objetivo desta conduta e um comportamento
contraditório com este sentido objetivo (e, por isto mesmo, violador da confiança).
Ora, numa relação processual, os atos jurisdicionais sempre irão inspirar a
confiança e a expectativa do jurisdicionado, eis que o juízo é agente político pelo qual
se manifesta o aparato estatal. Não há como negar ao jurisdicionado a expectativa de
conformação objetiva no ato jurisdicional.
Cabe aqui o parêntese para os atos jurisdicionais exarados em cognição sumária,
circunstância que denota precariedade. Mesmo nesta hipótese, quando mantido o
contexto fático-probatório, subsiste o dever de coerência do juízo.

100
“A proteção da confiança do administrado por meio da exigência de atuação leal e coerente do Estado
ocorre, ainda, a partir da teoria dos atos próprios (venire contra factum proprium), que é aplicável,
modernamente, ao Direito Administrativo.” OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito
administrativo. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. p. 164
101
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório - Tutela da confiança e venire
contra factum proprium. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
Saliente-se que não se pretende (e nem seria possível) que a vedação ao venire
derrogue as prerrogativas do juízo e altere a dinâmica processual. Não é este o objetivo.
Ao contrário, a aplicação da vedação ao comportamento contraditório reitera o espírito
da cláusula geral de boa-fé objetiva.
A atividade judicante tem como objetivo caminhar rumo a uma sentença de
mérito, mas a prática demonstra que, no curso da instrução processual, várias são
questões que reclamam decisões interlocutórias do juízo. Sem muito esforço, pode-se
elencar como exemplo os problemas em matéria de prova, ou mesmo no juízo de
admissibilidade.
Os exemplos são muitos: o que dizer do juízo que defere a uma das partes dilação
probatória, e depois nega este mesmo direito à outra parte? O que dizer do juízo que
anuncia o julgamento antecipado da lide, o que presume a satisfação quanto às provas
das alegações do autor, para posteriormente julgar improcedente o pedido por falta de
provas?102
As situações narradas não são obra de criatividade, se verificam no dia-a-dia dos
tribunais. Todas tem em comum o preenchimento dos requisitos para a aplicação da
tutela jurídica da confiança, eis que violam a confiança legítima do jurisdicionado,
descumprindo a cláusula geral de boa-fé objetiva processual.
Porém, há de ser reclamada a coerência também quando são contrastadas duas
decisões do Poder Judiciário que apreciam situações similares. A necessária dimensão
de igualdade deve estar presente quando são considerados atos judiciais proferidos em
processos diferentes. Tanto lá quanto cá a existência de pronunciamentos diferentes e,
portanto, contraditórios fustiga a constitucional exigência de isonomia e segurança
jurídica. Importante ressalvar, assim, que se encontra devidamente alocada, e sepultada,
no passado a concepção de segurança jurídica apenas pelo viés da imutabilidade.103

102
A jurisprudência chilena já considerou como violadora da boa-fé a conduta da parte que no curso do
processo alegou o desconhecimento da qualidade de filha à beneficiária dos alimentos, uma vez que em
outras inumeráveis ocasiões anteriores havia afirmado justamente o contrário. Noutro caso, asseverou o
tribunal de apelação chileno que “la conducta del apelante que va contra sus comportamentos pretéritos,
lo cual no puede aceptarse sin contravenir gravemente al principio de la buena fe”. Cf. MUÑOZ,
Francesco Carretta. Deberes procesales de las partes en el proceso civil chileno: Referencia a la buena fe
procesal y al deber de coherencia. Revista de Derecho. Valdivia [on line], vol. 21, n. 1, p. 101-127, jul.
2008, nota de rodapé n. 80.
103
A coisa julgada e a preclusão, por serem institutos que olham principalmente para o passado, já não
mais representam aquilo que se almeja quando invocamos a ideia de segurança jurídica. Estabilidade,
previsibilidade e proteção da confiança passam a focar o futuro, aquilo que está porvir. Só a partir da
valorização desses atributos poderemos deixar de considerar o ato de demandar um verdadeiro exercício
de loteria judiciária, em que ganhar ou perder passa a ser apenas uma questão de sorte.
De forma singela, a decisão contraditória, por afrontar o diretamente o próprio
sistema judicial, contém inarredável erro de julgamento, passível de ataque pela via
recursal adequada. Assim, tratando-se de decisão final, caberá à parte lesada valer-se do
recurso de apelação, cujo escopo será impor ao Poder Judiciário uma autovinculação.
No estrangeiro, Rafael Roig defende algo idêntico: “Aunque se afirme que el
juzgador no tiene la obligación de justificar su cambio de criterio, pero si de motivar su
decisión, hay que ser consciente de que en ocasiones cuando se hace esto último
también se hace lo primero. Pero además, lo relevante es que la decisión puede ser
recorrida por violación del principio de igualdad, y en estos casos, el juzgador deberá
dar razones que justifiquen el cambio de critério (es decir, la no violación del principio
de igualdad por ese cambio)”.104
A não atenção ao dever de coerência – corolário da boa-fé objetiva, da segurança
jurídica e da lógica da igualdade –, inaugura hipótese clara de cabimento do recurso de
apelação, firme no error in judicando praticado pelo “juízo”, porquanto descurada a
exigência de autovinculação.
Se para caracterizar o ordenamento jurídico como sistema a doutrina exige a
coerência entre suas normas,105 considerando que as decisões judiciais nada mais são
que normas do caso concreto, a concepção de sistema jurídico não pode dispensar a
coerência entre as decisões judicias.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa partiu da identificação da problemática contida na prolação


de decisões contraditórias pelo juízo, consideradas num sentido singular, ou mesmo em
feitos diferentes. Tal conduta vulnera as noções de segurança jurídica, de isonomia e de

Tratando a preclusão como técnica em prol da segurança jurídica e da boa-fé objetiva: NOGUEIRA,
Pedro Henrique Pedrosa. Notas sobre preclusão e venire contra factum proprium. Revista de Processo.
São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 168, p. 331, fev. 2009 .
104
ROIG, Rafael de Así. Imparcialidad, igualdad y obediencia en la actividad judicial. Doxa. Cuadernos
de Filosofía del Derecho. Alicante, Universid de Alicante, v. 15-16, p. 913-928, 1994. V. ainda: “Si se
trata de determinar si una decisión judicial, es contraria al principio de igualdad o puede ser tachada de
arbitraria (y transgredir la exigencia de seguridad jurídica), el Tribunal podrá por un lado analizar si se ha
producido un trato desigual en relación con casos anteriores, y en el caso de que esto sea así, si el criterio
es o no arbitrário. Caso de que no lo sea, no se habrá violado el principio de igualdad, pero tampoco se
habrá transgredido el respeto al precedente porque en realidade no estamos ante un caso idéntico a ningún
otro: han cambiado las circunstancias”.
105
“La coerenza (consistency) esige qualcosa di meno della coesione: consiste semplicemente nella
mancanza di antinomie, conflitti logici, incompatibilità, tra norme”. GUASTINI, Riccardo. Lezione di
teoria del diritto e dello Stato. Torino: G. Giappichelli Editore, 2006. p. 26. Em sentido mais genérico:
LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito, v. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 251.
lealdade do juízo para com o jurisdicionado. Nessa conjuntura, investigou-se a
aplicabilidade do princípio da boa-fé objetiva às relações processuais, como este se
harmoniza com o livre convencimento motivado e de que forma a boa-fé objetiva
poderia atuar como forma de controle do comportamento contraditório do juízo.
Delimitada a problemática, foram estabelecidas algumas premissas. Inicialmente,
a constatação de que o art. 14, inciso II, do Código de Processo Civil consiste em uma
cláusula geral de boa-fé objetiva processual, importando para a relação estabelecida no
processo as funcionalidades verificadas na boa-fé objetiva nas relações de direito
material.
Assim, verificou-se que o juízo tem um dever de lealdade para com as partes, não
podendo frustrar a confiança legitimamente gerada nas decisões judiciais pretéritas,
configurando-se um verdadeiro dever de coerência, fundamentado na ideia de lealdade
processual na relação entre o juízo e as partes, informada também pela garantia de
segurança jurídica.
Este dever de lealdade do juízo para com as partes, aliado às noções de segurança
jurídica e de tutela da confiança do jurisdicionado, convergem em um dever de
coerência do juízo, manifesto na obrigatoriedade de respeito às condutas precedentes.
Nesse desiderato, investigou-se também a influência deste dever de coerência no
conceito de livre convencimento motivado, constatando que este princípio subverteu-se
em verdadeiro pretexto do juízo para a prolação de decisões nos mais diversos sentidos,
violando o sobredito dever de coerência.
Concluiu-se, portanto, que o dever de coerência do juízo propõe verdadeiro
obstáculo à frustração da confiança legítima do jurisdicionado, atuando como limitador
ao exercício da jurisdição e afunilando o grau de discricionariedade do juízo, albergado
pelo princípio do livre convencimento motivado.
Em resumo, podem-se estabelecer algumas conclusões. Inicialmente, a
constatação de que há uma crise palpável verificada em uma miríade de decisões
contraditórias, que violam as expectativas legítimas do jurisdicionado, de segurança
jurídica e de estabilidade nas prestações jurisdicionais. O presente estudo teve como
objeto desconstruir esta crise, segmentando a problemática a um paradigma individual,
para demonstrar que o sistema pode privilegiar a estabilidade, a previsibilidade e o
precedente judicial sem ter que recorrer a reformas legislativas.
Assim, de todas as conclusões oriundas desta pesquisa, escancarou-se o fato de
que o sistema processual pátrio já está plenamente aparelhado com as ferramentas
adequadas para coibir a prestação jurisdicional incoerente e errática. Em uma sociedade
plúrima, líquida, com demandas de massa, não há mais espaço para enxergar a decisão
como um fim em si mesmo. Urge, portanto, um retorno às raízes, uma retomada da
essência da prestação jurisdicional com sua precípua função social de pacificação dos
conflitos, prestigiando um personagem processual importante, mas pouco lembrado: o
jurisdicionado.

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