nas tribulações. Porque quem bem es- pera bem sofre, e quem levanta o espí- rito aos bens eternos sabe portar-se bem nas misérias temporais. j Sabeis que cousa é a Esperança? Uma
engenhosa máquina com que o espírito se
guinda desde o mundo para a eternidade; e assim não lhe carrega o peso dos males que cá em baixo leva, porque tanto furta à aflição do trabalho que padece, quanto se le- vanta à contemplação do descanso que es- pera.
Raiando o sol, absorve-se o orvalho da
fria noite; e aparecendo a esperança, en- xugam-se as lágrimas do ânimo desconso- lado. Por isso Susana pôs no Céu os olhos, quando cheios de lágrimas, porque do Céu esperava o remédio da aflição presente e a 2Ô8 ANTOLOGIA
remuneração de seus castos procedimen-
tos.
Da esmeralda (símbolo da Esperança) es-
crevem os naturais que tem virtude de desterrar os medos nocturnos e recrear o espírito. E Plínio diz que restaura a vista ofuscada com outro objecto desagradável. Esmeralda dissera eu ser aquela pedra pre- ciosa a que Salomão comparou a Espe- rança; porque recreia a vista da alma, avo- cando-^ da consideração dos presentes males para a dos bens futuros. Do peixe asquino diz Santo Ambrósio que, sobrevindo tempestade, se pega fortemente a alguma rocha ou penedo; com que a vio- lência das turbulentas ondas o não pode dali arrancar e envolver entre seus escar- céus altivos e furiosas ressacas. Já que as tribulações são tempestades, e a esperança do eterno é rocha imóvel, abrace-se a alma com esta rocha e vencerá estas tempestades. A César, ao embarcar-se, resvalando-lhe o pé, caiuem terra; e, para amo ver o mau agouro que os seus podiam daqui formar, acudiu com presteza, dizendo: — Teneo te : ó Terra mater, teneo te; Pego de ti, ó terra minha mãe, pego de ti, e tomo posse. BERNARDES 269
Com mais razão pode, e deve, qualquer
fiel, quando cai em algum infortúnio, levan- tar a esperança, dizendo: — Pego de ti, ó Céu, pego de ti, oh Jerusalém Celestial, nossa mãe, e tomo posse. Pegar-se à terra quando nos acontecem trabalhos, é de infiéis e gentios, que não teem que esperar íora dela; pegar-se ao Céu é de Cristãos, que sabem que o pa- decer é sinal de salvar, e que este agouro é lícito e louvável. O Apóstolo S. Paulo o louva naqueles fiéis que sofreram com equanimidade a rapina de seus bens tem- porais, na confiança de que lhes fica- vam intactos os eternos.
Certo mendigo havia que, quando já tinha
a sacola cheia de esmolas, dizia: — Agora sim, que confio. Esta sacola estaria cheia, mas esta alma estava vazia; ajuntara pão, mas não ajuntara virtudes; enchia o ventre, mas jejuava o espírito. O verdadeiro cristão, quando mais lhe 270 ANTOLOGIA
falta, mais deve confiar; porque na falta das
criaturas é certo o auxílio do Criador; e quem tem consigo a Deus, g que (1) lhe pode faltar? Não é a esperança em Deus como a es- perança no mundo: esta, por sentença divi- na, traz consigo maldição; aquela, pelo con- trário, traz consigo benção: Beati omnes.qui expectant eum. Aquela é sonho de acorda- dos; estoutra é realidade certíssima.
Conta-se, por apólogo, que um lavrador
achou, uma manhã, os seus bois mui alegres e brincadores. — Olá! (disse êle), ^que teem vocês, que estão contentes? — Sonhámos (responderam) que esta ma- nhã íamos a uns pastos mui pingues, onde todo o dia andávamos à vontade. — Pois eu (tornou o lavrador) sonhei que vocês iam lavrar-me tantas geiras. E, dizendo isto, os meteu no timão do arado. Quem no mundo espera descanso durável, ou verdadeiro, sonha, e brevemente se acha
(l)=;que cousa? BERNARDES 271
desenganado, trocando-se-lhe os pastos pin-
gues em duríssimo jugo, e o que imaginava gozo e repouso em dor e trabalho. Porém, quem constitui a sua esperança em bens eternos e na consolação e auxílio divino não se engana. Os seus sonhos são verdade de fé, pois as Escrituras afirmam que a tribu- lação bem levada gera boa prova, e a boa prova legítima esperança, com a qual nin- guém fica envergonhado.
Também é eficaz lenitivo dos trabalhos e
penalidades o considerar que passam bre- vemente: Momenianeum, et leve tribulatio-
nis nostrce, disse S. Paulo, ajuntando sabia-
mente o da nossa tribulação com o leve momentâneo porque a brevidade da dela; duração contrapesa o grave da pena: já quando os ombros começam a aíiigir-se com a carga, a mudança que lha tira deles, é o que disse Cícero, e mais brevemente S. Bernardo: Transit hora, transiu et pcena: Passa a hora, e passa também a pena. Quem deu asas ao tempo deu também asas ao trabalho; aquelas penas, voando, levaram consigo estoutras, cessando. Com isto consolava o capitão Eneas aos seus companheiros, aflitos com os trabalhos .
272 ANTOLOGIA
de navegação tão longa; e outro poeta, es-
panhol, disse discretamente:
Passan se rios de males
Ya sin puente, ya sin barco; Mas no a;/ mal en esta vida, Que no se le tope nado.
Livre-nos Deus de rios onde não há ponte,
nem barco, nem vau; livre-nos Deus de ma- les onde não há fazer pé, porque a espe- rança se afoga; e de trabalhos que não teem mais fim que novo princípio, quais são os de um condenado. Os outros, ainda que du- rem toda a vida, como a vida passa por momentos, por momentos também vão pas- sando. Esta consideração fazia a mãe de S. Gregório Nazianzeno, e êle por isso a louva: Que nada reputava por grave pena, uma vez que havia de acabar com a vida. Neste mundo faz Deus dos ímpios vara, com que castiga os justos; mas depois chama os justos para o Reino, e lança a vara no fogo . .