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JUSTIÇA CEGA

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argarida, duqueza de Mântua, sendo
governadora deste Reino, perdoou
uma morte, e o facinoroso cometeu
depois outra; pela qual sendo outra vez
preso, e sentenciado, e tornando a meter
intercessores para o perdão, respondeu a
Mantuana
— Da primeira morte dará êle conta a
Deus ; da segunda eu.
E mandou fazer justiça.

A indulgência nímia, em lugar de arran-


car os pecados, os semeia. Senhor da vida
do criminoso é o príncipe soberano, para
lhe poder perdoar a morte; porém não é
senhor das vidas e honras dos inocentes,
para as expor ao perigo. ^E quem não vê
que a mão que abrir a jaula de uma fera,
será culpada nas rapinas e sanguinolências
que suas garras obrarem ? O perdão do se-
200 ANTOLOGIA

gundo homicídio já excedia o modo e fide-


lidade que deve guardar com as leis, quem,
por ofício, é defensor e executor delas.

Ninguém julgou mais pessoas à morte no


principio de seu governo que el-rei D. Pe-
dro I, chamado por isso o Cru; e ninguém
julgou menos que ele no discurso do mais
reinado.
O Lourenço, militando con-
conde de S.

tra Castela, lançoubando que nenhum sol-


dado tomasse das hortas e vinhas cousa
alguma, sob pena de morte. Tomou um sol-
dado uma couve, e logo o pendurou, e nin-
guém furtou mais.
Outro soldado, indignado contra o seu
tenente, esperando-o em uma encruzilhada,
o derrubou, de um cravinaço (1). Mandou o
conde que não enterrassem senão ambos
juntos. Esteve o cadáver esperando até co-
lherem o homicida, e, pagando com a vida,
foram ambos a enterrar, deixando fora tão

(1) Cravinaço, ou clavinaço = tiro de clavina


(cravina, carabina).
!

BERNARDES 201

vivo o escarmento, que ninguém ousou mais


a perder o respeito aos seus cabos.
A justiça punitiva e distributiva sustenta
firmemente, como em dois seguríssimos po-
ios, todo o peso de uma
monarquia. E é o
que dizia Demócrito que não havia mais
:

que dois deuses —


o Prémio, e o Castigo.
Toda a mais multidão deles, que venerava
a gentilidade, lhe parecia escusada.

* *

Queixou-se a el-rei D. Pedro I de Portu-


gal um ministro de justiça de que, indo a
fazer uma citação a certo fidalgo, este lhe
dera uma punhada e lhe arrancara alguns
cabelos da barba.
O rei, entregando a vara a um correge-
dor que estava presente, lhe disse, com
grande fogo de zelo :

— I
Acode-me, corregedor, que me deram
uma punhada e me arrancaram as barbas

Foi logo o corregedor, prendeu o delin-


quente, e foi degolado.

Se o rei não tomar por afronta sua a


202 ANTOLOGIA

que se faz a seus ministros, também os mi-


nistros não tomarão o serviço dei- rei por
honra sua. Entram em graves perigos ani
mosamente, fiando -se do arnês e escudo do
nome rial. Se este os não defender, escusa-
rão entrar ;e sirva-se por si mesmo quem
se contenta com ser honrado em si mesmo.

(Nova Floresta, Justiça)

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