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CA PITULO X III

O PENSAMENTO FILOSÓFICO NO BRASIL

É incontestável que jamais o pensamento filosófico teve no


Brasil consideração ou prestigio igual ao de outras actividades
do espírito. A Filosofia sempre foi relegada a segundo ou
terceiro plano, entendida como coisa de somenos, ou extra­
vagância de lunáticos ou ociosos. A opinião pública parece
que sempre formou da Filosofia conceito pejorativo, entenden­
do-a, talvez, como o teria feito certo americano céptico, para
quem «a Filosofia é uma coisa com a qual ou sem a qual o
mundo continua tal e qual».
N a obra de M achado de Assis aparece um filósofo louco,
Quincas Borba, que teria legado a um seu enfermeiro e herdeiro
universal, Rubião, os resultados de suas desvairadas especula­
ções. Assim o entendiam os amigos de Rubião, rico desocu­
pado, perdulário e generoso, cuja vida e espírito eram interpre­
tados como fruto da sabedoria elaborada pelo falecido benfeitor.
Já disse eu que vejo na Filosofia de Quincas Borba a
discreta e mordaz crítica de M achado ao evolucionismo spence-
riano. Porém, o que agora eu quis salientar foi o julgamento
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que da vida incompreensível de Rubião fizeram seus explora­


dores e comensais.
O filósofo tem sido olhado no Brasil como um ser estra­
nho e meio marginal. Algo como um louco manso que, falto
de trabalho sério, se entrega a ocupações vadias como colec­
cionar selos ou borboletas.
Esse menosprezo da especulação teria origem, segundo
alguns, na espécie de gente que veio colonizar o Novo Mundo:
homens rudes ou pragmáticos, para quem a única coisa impor­
tante era ganhar a vida e, se possível, enriquecer. Outros acham
que nossa pobreza em matéria de Filosofia se deve à pouca
idade do país, lembrando que, nos Estados Unidos, país desen-
volvidíssimo, a situação não seria melhor do que a nossa. Tais
outros põem o desdém pela Filosofia à conta de uma incapaci­
dade radical do homem brasileiro para a especulação. É o
caso de Tobias Barreto, que, depois de observar que «não há
domínio algum de actividade intelectual em que o espírito bra­
sileiro se mostre tão acanhado, tão frívolo e infecundo, como
no domínio filosófico», acrescenta que «o Brasil não tem cabeça
filosófica» 0).
Menos severo é o juízo dos contemporâneos que têm
cuidado do assunto. Ultimamente já se fala a sério do pensa­
mento filosófico brasileiro, observando-se que, se não temos tido
filósofos, no sentido próprio, isto é, elaboradores de sistemas
originais, não nos escassearam filosofantes, ou seja, estudiosos
da especialidade, que procuraram digerir o que lá fora vai
sendo elaborado, digestão essa que inclui notas pessoais de
alteração, desdobramento ou de aplicação à nossa realidade.(*)

(*) Questões Vigentes de Filosofia e de Direito, Recife, 1888,


ps. 237, 240.
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Alceu Amoroso Lima, num ensaio já antigo, apontou como


uma das constantes da cultura brasileira o que ele chamou «lei
da repercussão». Todos os movimentos de idéias no Brasil têm
sido repercussão de similares europeus, com distância de trinta
anos no tempo. Isso, em todos os domínios da actividade inte­
lectual ou artística.
Na mesma linha se situa Luís Washington Vita, quando
escreve:
«De facto, cumprindo seu destino e sua vocação, o pensa­
mento brasileiro, mais que criativo, é assimilativo das idéias
alheias, e, ao invés de abrir rumos novos, limita-se a assimilar
e a incorporar o que vem de fora. Daí a história da Filosofia
no Brasil ser, em geral, uma história da penetração do pensa­
mento alheio nos recessos de nossa vida especulativa, ser, em
suma, a narrativa do grau de compreensão, da nossa capacidade
de assimilação nas diferentes épocas e do nosso quociente de
sensibilidade espiritual (*)».
Não penso que seja a falta de originalidade a maior carên­
cia nossa no que diz ao filosofar. A originalidade por si nada
significa. Principalmente em Filosofia. Aqui, como nas outras
coisas, e mais que nas outras coisas, só interessa a verdade.
Tactearam os gregos, andando por caminhos e descaminhos,
até que Aristóteles acertou o trilho. Daí por diante só se poderia
aperfeiçoar e aprofundar. Os desvios foram funestos e não raro
funestíssimos.
Por outro lado, dada a complexidade da matéria e sua
universalidade, a Filosofia tem de ser obra de muitos ao longo
do tempo. É estultice desprezar o pensamento alheio só porque
é alheio. Vaidade tola supor que se vai edificar desde as

(s) Escòrço da Filosofia no Brasil, Coimbra, 1964, p. 9.


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bases, como pretenderam tantos. O bserva M aritain que o pro­


gresso na Filosofia é m uito diferente do progresso nas ciências
experimentais. Aqui às vezes tem de haver substituição; lá,
aprofundamento. A Física, ou a Q uím ica, ou a Biologia não
raro progridem realmente quando substituem um a concepção
ou teoria por outra; a Filosofia m uitas vezes regride grave­
mente quando inova.
A menos que por ela se entenda um a especulação vã, um
mero exercício da inteligência auto-suficiente, alim entando-se de
si mesma, ou simples jogos florais, em que interesse o brilho
e a graça, ou a nebulosa abstrusidade. Para muitas pessoas, a
Filosofia nada tem com a realidade. Esta é exclusivo objecto
do que chamam ciência, entendendo-se como tal só as matemá­
ticas e as ciências experimentais. O real seria opaco à indagação
filosófica, do que resulta o completo descompromisso do filoso­
far com a coisa-em-si.
Não é esta a nossa posição. Atribuímos grandíssima im por­
tância à Filosofia. De facto é ela, e só ela, que pode desvendar
a face oculta do que nos rodeia e fornecer uma explicação cabal
do homem, do universo, de Deus.
Embora só trabalhe com a razão, ela tudo investiga e vai
até onde possa alcançar a inteligência hum ana, disciplinada e
perscrutadora. Nenhum domínio lhe é estranho: ocupa-se m ate­
rialmente de tudo, porém na perspectiva que lhe é própria, ou
seja, os primeiros princípios e os últimos fins. E la não se detém
na periferia nem sequer nas boas razões explicativas dos fenó­
menos: vai mais além, vai até o último porquê, até o últim o
como, até o último para quê. Scientia rerum per altíssimas cau­
sas: «ciência de todas as coisas, vistas nas suas últim as causas».
Grave e tragicamente enganados andam os que desdenham
da Filosofia, supondo-a uma espécie de «hobby». M uito m ais
sério e danoso é um erro filosófico do que um erro de cálculo
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de m ateriais. Este produzirá o desm oronam ento de um edifício;


aquele faz ruir im périos e civilizações. P or outro lado. a F iloso­
fia é inelutável, inseparável do espírito hum ano. D e ta l m odo,
que qualquer afirm ação ou negação, qualquer conceito ou ju lg a­
mento, qualquer posição ou regra de vida assenta num a M eta­
física. Boa ou má, certa ou errada. P or isso, diz A ristóteles:
«Se a Filosofia é necessária, filosofem os; se é desnecessária, filo­
sofemos, p ara prová-lo».
Logo, sem pre se filosofou no B rasil, em bora com filosofia
difusa nas letras, nos ensaios, nos com pêndios e tratad o s de
D ireito, nas reflexões m orais, de um M atías A ires ou de um
M arquês de M aricá, nas discussões políticas, em to d a form a de
doutrinação ou de debate de idéias.
Agora, é certo que actividade filosófica sistem ática e conti­
nuada, ex-professo, quase nunca se praticou no B rasil. A té bem
pouco tem po só nos sem inários se estudava, p ara servir de
esteio aos estudos teológicos. D epois que se fundaram as F acul­
dades de Filosofia, a p artir de 1934 (se exceptuarm os o esforço
isolado dos beneditinos paulistas), a disciplina, além de pouco
procurada, tem sido posta m ais na pau ta da erudição, da histó­
ria dos diversos sistem as e da doutrina dos grandes nom es
do que na da elaboração e rigor do pensam ento.
E quando há form ação, não raro se trata de deform ação,
porque ou se inocula ceptícism o e relativism o, ou algum profes­
sor mais prestigioso e m ais «na m oda» inculca hegelianism o,
sobretudo na versão m arxista.
V erdade é que nessas Faculdades têm leccionado professo
res de boa orientação, mas às vézes seu ensino vai de p ar com
o de outros docentes contrastantes, do que resulta, p ara os alu­
nos, confusão, insegurança ou m ero eruditism o periférico.
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* *

Isto posto, vejamos por alto as diversas correntes que têm


influído no pensamento brasileiro ao longo da nossa existência
histórica.
Nos dois primeiros séculos predominou o ensino jesuítico,
dado nos colégios, notadamente o da Bahia, onde se m inistrava
iniciação filosófica. Um homem como o Padre A ntônio V ieira,
por exemplo, lá recebeu as prim eiras noções de Filosofía, lá
fez os primeiros exercícios de dialéctica, lá começou, enfim, a
disciplinar seu pensamento.
A orientação era a da Escolástica, conforme preceituavam
as Constitutiones Societaíis Iesus, no capítulo X IV da quarta
parte: «In Theologia legetur Vetus et Novum Testamentum et
doctrina scholastica divi Thom ae... In lógica et philosophia
naturali et morali, et metaphysica doctrina A ristotelis sequenda
est» Não seria tomismo puro, nem aristotelismo puro, porque
outras idéias já tinham invadido o am biente cultural europeu,
especialmente o Humanismo, enquanto, paralelam ente, a Esco­
lástica entrava em decadência, tendendo para disputas mais
verbais que doutrinárias e indagativas das essências, o que no
Brasil talvez se agravasse, dada a conhecida facúndia tropical.
Supresso o ensino jesuítico pelo decreto pom balino de 1759,
foi dada outra organização e orientação às escolas, de acordo
com a reforma então levada a cabo.
Vinte anos antes, em 1739, começara a funcionar no Rio
o Seminário de São José, «em benefício da m ocidade e do
Estado e com isenção da jurisdição paroquial». A í se leccionou
Latim, Filosofia, Teologia, Liturgia e Cantochão. N ão tenho
notícia das directrizes de tal ensino.
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Neste século X V III terá tido repercussão no Brasil o


Iluminismo, claram ente esposado, segundo W ashington V ita, por
M atías Aires, no seu Problema de Arquitectura Civil, que não
conheço. M atías A ires teve form ação toda europeia, já que
com 11 anos veio para Portugal, onde cursou o Colégio de Santo
An tão e recebeu mais tarde grau de M estre em A rtes na U niver­
sidade de Coimbra. Daí foi para Bayonne, onde estudou D ireito,
Física e M atem ática.
Como observa Cabral de M oneada, o Ilum inism o português
foi «essencialmente Reformismo e Pedagogismo. O seu espírito
era, não revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso, como
o francês, mas essencialmente progressista, reform ista, naciona­
lista e humanista» (*).
De M atías A ires é conhecido e clássico o livro Reflexões
sobre a Vaidade dos Homens, cujas licenças de publicação são
de 1752. Alguns aproxim am de La R ochefoucauld nosso autor,
porque enxerga vaidade em todos os actos hum anos, enquanto
o francês neles encontrava am or-próprio e interesse. N ota-se em
M atías um certo pessimismo, talvez jansenista, mas sua visão
da vida é religiosa, com o se evidencia deste passo (que, aliás,
documenta também seu pessimismo):
«A falta de religião e de bons costum es faz cair o homem
no estado total de perversidade. A falta de religião consiste em
se não tem er a Deus; a falta de costum es resulta de se não tem er
os homens. E verdadeiram ente quem não tem er a lei de Deus
nem as leis dos homens, que princípio lhe fica por onde haja de
obrar bem? A nossa natureza propende p ara o mal: por isso foi
preciso preservar-lhe um certo m odo de viver. Vivem os por
regras. N o exercício do mal acham os um a espécie de doçura
e de naturalidade; as virtudes praticam -se por ensino. O vício

(*) Apud Vita, Escorço, p. 81.


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sabe-se, a virtude aprende-se. M iserável condição do homem!


O que devia saber ignora, e o que devia ignorar sabe; para o
que nos é útil necessitamos de estudo, e para o que nos é per­
nicioso não; para o bem necessitamos de lem brança, e para o
mal, de esquecimento» (4). Como quer que seja, M atías Aires
não teve influência notável nos homens de seu tempo, nem nos
pósteros, mais preocupados com as riquezas da terra ou com os
ideais libertários do que com o moralismo pessimista das Refle­
xões.
Nos primeiros tempos do Brasil independente e m onár­
quico dominou, como Filosofía, o Eclectismo de V ictor Cousin
(1792-1867), aqui adoptado e divulgado por Frei Francisco de
Mont’Alverne (1784-1858).
Como se sabe. Cousin reduziu a quatro todos os siste­
mas filosóficos anteriores — sensualismo, idealismo, cepticismo e
misticismo—, acrescentando ser cada um verdadeiro no que
afirma e falso no que nega. Daí porque nenhum pode ser
tomado integralmente; antes, cumpre seleccionar neles o que
contenham de verdade e fundir num todo o resultado da triagem,
suposto, mais, que o erro é uma verdade incom pleta. Deu pres­
tígio a Cousin, além de sua reacção contra o sensualism o de
Condillac e o materialismo dos enciclopedistas, a eloqüência
de que era dotado.
O mesmo aconteceu com o descípulo da outra banda do
Atlântico. Mont’Alveme foi o mais fam oso orador sacro de seu
tempo e, embora na prim eira fase tivesse tentado conciliar
Locke, Descartes, Condillac e Leibniz, aderiu entusiasm ado ao
Eclectismo. De Cousin disse: «Um destes gênios, nascidos para

(4) Reflexões sobre a Vaidade dos Homens ou Discursos Morais


sobre os Efeitos da Vaidade, Lisboa, 1752, ps. 97-98.
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revelar os prodígios da razão hum ana, se levantou como um


Deus, no meio do caos, em que se cruzavam e com batiam todos
os elementos filosóficos; em pregando a extensão de sua vasta e
sublime compreensão, reconstruiu a Filosofia, apresentando as
verdades de que o espírito hum ano esteve sem pre de posse (*)».
M ont’Alverne ensinou Filosofia em S. Paulo e no Rio, no
Seminário de S. José, onde teve como adm irado discípulo a
Domingos José Gonçalves de M agalhães (1811-1882), mais
conhecido como introdutor do R om antism o no Brasil.
Este últim o foi professor de Filosofia no Colégio Pedro Π ,
de onde saiu para a carreira diplom ática. N ão ficou no Eclec-
tism o de Cousin: deixou-se levar tam bém pelo O ntologism o e o
Idealismo. D aí as incoerências de seu pensam ento. Leonel
Franca estranha, com razão, a atitude idealista num brasileiro;
mas alega textos que não deixam lugar à dúvida, com o este:
«Só existe realm ente o que é espírito... tudo o m ais existe feno­
menalmente, não em si, não para si, mas p ara quem o pensou e
o faz aparecer a quem pode ver os seus pensam entos (·)».
Este idealism o ainda por cim a se transfunde em ontolo-
logismo quando, páginas adiante, explica o au to r que a reali­
dade extram ental é nada mais que pensam entos divinos: «Todo
este imenso universo sensível que nos parece substancial­
mente existir entre nós e D eus só existe intelectualm ente em
Deus, como pensam entos seus, sem outra existência fo ra da
inteligência mesmo de Deus que o pensou; nada tem existência
m aterial fora de Deus (T)».

(*) Compêndio de Filosofia, Rio, 1859, p. 104.


(e) Factos do Espirito Humano, Paris, 1858, p. 325, ap. Leonel
Franca, Noções de História da Filosofia, 5.“ ed.. Rio, s/d , p. 241.
(T) Factos, p. 351, ap. Id., ibid., p. 242.
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Estes dois, e Eduardo Ferreira França (1809-1857), médico


baiano, despertaram o gosto pela Filosofía e, mais ou menos
influídos pelo Eclectismo, fizeram que este se tomasse, no dizer
de Clóvis Beviláqua, a doutrina mais simpática à alma brasileira.

Na segunda metade do século X IX ganha terreno na


Europa vigorosa reacção contra o idealismo, que no fundo é a
filosofia do movimento romântico. Ao apriorismo e às espe­
culações de Fichte e Hegel se contrapõe o valor da experiência
como único critério de certeza, ao mesmo passo que, enfati-
zando-se as ciências particulares, se levanta a barreira da des­
confiança e do agnosticismo contra toda indagação que trans­
cende o sensorial, pejorativamente chamada metafísica.
É a atitude positivista, que, além de método e modo-de-
•pensar, se tomou filosofia sistemática com Augusto Comte
(1798-1857).
Na França mesmo o comtismo se bifurcou entre ortodoxos
e dissidentes, aceitando os primeiros toda a obra do mestre,
recusando os segundos o aspecto político-religioso, consubstan­
ciado na Política Positiva, na Síntese Subjectiva e no Catecismo
Positivista. Lafitte, por um lado, Littré e Taine, por outro,
chefiam as duas posições.
De acordo com a referida <dei da repercussão», também
no Brasil ecoaram as novidades e as dissidências, formando-se
duas correntes comtistas.
Porém, prevaleceu, e muito, como movimento, a ortodoxa,
chefiada por Miguel Lemos e Teixeira Mendes.
Datam da década de 60 as primeiras notícias e adesões.
Mas só em 1876 é que Benjamim Constant fundou a Sociedade
Positivista. Sua condição de militar e professor da Escola Poli­
técnica e da Escola de Guerra facilitou-lhe o proselitismo entre
as classes armadas e os matemáticos. Além disso, foi ele pr°*
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pugnador da ideia republicana, o que ajuda a explicar a influên­


cia que teve o Positivismo na instalação do novo regime.
Como atitude espiritual e como método restrito e restritivo
de trabalho intelectual, teve o Positivismo enorme influência no
pensamento brasileiro, sobretudo no domínio jurídico e nas
concepções científicas. Porém, como movimento organizado
e «ortodoxo», cingiu-se a um grupo extremamente activo e faná­
tico, reunido em torno de Miguel Lemos (1854-1916) e Teixeira
Mendes (1855-1927). Fundaram eles a Igreja Positivista e o
Apostolado Positivista, que editou muitos livros, dos indicados
por Comte para formar o saber universal, inclusive (por mais
estranho que pareça) os Comentários sobre o Sermão da Mon­
tanha, de Santo Agostinho, e o Tratado do Amor de Deus, de
São Bernardo.
No Templo da Humanidade, Rua Benjamim Constant, 30,
Rio, se celebraram (e ainda se celebram) os actos litúrgicos dessa
estranha religião sem Deus, que, não obstante, logrou regular
número de fiéis, divididos entre positivistas completos e prosé­
litos.
Sobre os dois chefes escreveu Washington Vita interessante
perfil, de que destacamos este trecho:
«Miguel Lemos, iniciado, numa solenidade impressionante,
no Positivismo por Lafitte, vigário visível de Comte e papa
da Religião da Humanidade, jurou sobre o túmulo do Mestre
fidelidade eterna, e cumpriu o compromisso com ânimo admirá­
vel. Quando se retirou da vida activa, entregou o facho da fé
positivista a Teixeira Mendes, que, aos quinze anos de idade,
recusou-se altivamente a receber o título de bacharel, para não
se ver obrigado a jurar fidelidade ao imperador e à religião
oficial do Estado. Expulso juntamente com Miguel Lemos da
Escola Politécnica do Rio de Janeiro, matricula-se na Facul­
dade de Medicina, não para exercer a profissão, mas com o
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único propósito de adquirir a instrução enciclopédica reco­


mendada por Comte.
«Assim sendo não se exagerou quando Teixeira Mendes
foi apontado como o único indivíduo, no mundo, que realizou
plenamente, em todos os actos, de sua vida pública ou privada,
o complicado e austero códico ético-jurídico do Positivismo,
encamando perfeitamente o tipo ideal do homem sonhado por
Comte. Até seu casamento foi celebrado segundo o ritual posi­
tivista, talvez o primeiro sacramento da Religião da H um ani­
dade levado a efeito no continente americano. Em sua casa não
havia escravos, e muito menos empregadas domésticas, e quando
algum convidado trazia «babás», estas estavam obrigadas a
tomar assento à mesa do anfitrião. Nada de café, nem bebidas
alcoólicas, nem cigarros (*)».
Na mesma linha ideológica e metodológica do Positivismo,
mas com coloração diferente, repercutiu também no Brasil o
monismo materialista e o evolucionismo. Seu principal arauto
foi Tobias Barreto (1839-1889), que veio a ter grande influência
a partir de sua ascenção à cátedra da Faculdade de D ireito de
Recife.
Além da Filosofia, dedicou-se ao Direito, à crítica e à poesia.
Estudou alemão, coisa raríssima naquele tempo, o que contri­
buiu, nele para fartar-se de adm irar a Alemanha, nos outros
para o admirarem sob mais este aspecto.
Sílvio Romero (1851-1914), seu companheiro, sequaz e
apologista caloroso, elevou-o às culminâncias, compondo ou
regendo um coro que encheu o país durante algum tempo.
Tobias foi chefe da chamada «Escola do Recife», que m ar­
cou época, e fez discípulos. Lia pela cartilha de H aeckel, e por

(®) Escorço, ps. 60-61.


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aí explicou todas as coisas: Deus, o homem, o universo, o


Direito.
De temperamento era um agitado, um complexado, explo­
sivo, de convivência difícil.
Não obstante sua pregação m aterialista, doente e à beira
da morte, reconciliou-se com a Igreja, assistido que foi por um
padre católico.
«Esquisitão de algum talento» cham ou-lhe Lafaiete R odri­
gues Pereira no livro que escreveu contra Sílvio Romero, em
defesa do Machado de Assis (1Vindiciae, R io, 1899). Leonel
Franca julga-o com severidade, mas com justeza, tendo antes
salientado que «Nenhum dos trabalhos filosóficos de Tobias
é um livro, no sentido rigoroso da palavra; falta-lhes unidade
de plano e concatenação de idéias. São críticas avulsas, artigos,
teses, opúsculos coleccionados em volumes. Ânimo im pulsivo e
batalhador, polemista arrebatado, Tobias não era homem para
escolher um assunto, estudá-lo com serenidade e desenvolvê-lo
larga e profundamente. Deixava-se dom inar e arrastar p d as
circunstâncias e ia produzindo o que elas lhe pareciam exigir.
Ê nesta obra fragmentária que im porta respigar as idéias capi­
tais do filósofo (*)».
Quem não conhecesse a probidade do grande e saudoso
jesuíta poderia increpá-lo de sectário. M as outros, ideologica­
mente distantes de Franca, apontam essas e outras deficiências
no chefe da «escola teuto-sergipana», como dizia, com chiste,
Carlos de Laet. Hermes Lima, no livro que lhe dedicou (Tobias
Barreto, S. Paulo, 1939), chama a atenção para as más conse­
qüências de seu complexo de inferioridade, de sua vaidade de
autodidacta e de sua falta de ordem na vida.
Cruz Costa, homem desligado de qualquer sistem a ou

(·) Noções, p. 271.


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escola, mas simpático ao Positivismo, não acom panha o antigo


coro de louvaminheiros. Para eie, «Tobias Barreto não foi um
pensador. Foi, como outros letrados que temos tido, um comen­
tador do pensamento europeu e, especialmente, do pensamento
alemão. Sua acção foi renovadora no seu tempo, mas ficou redu­
zida apenas ao seu tempo e não ultrapassou a existência daque­
les que com ele conviveram (“ )».
Na fase final de suas lucubrações, Tobias inclina-se já
para o esplritualismo, como se vê desta passagem:
«O pendor materialístico do tempo, a que corresponde o
gosto pelas explicações mecânicas, tem levado muitos espíritos
ao extremo das afirmações e negações categóricas, porém sem
base nos factos. Felizmente, já há mais de um exemplo de
sobriedade científica por parte de naturalistas, outrora inebria­
dos de seu próprio vinho, mas hoje convencidos de que a
ciência tem limites, além dos quais ainda existe alguma coisa,
que ela não pode sujeitar aos seus processos de observação e
esclarecimento. O primeiro, o mais valioso sinal desta mudança,
foi dado por Du Bois Raymond (“ ).»
Sílvio Romero, amigo e entusiasta de Tobias Barreto, em
Filosofia descreveu uma trajectória que vai do eclectismo de Jouf-
froy ao evolucionismo spenceriano, passando por Comte. R eal­
mente nunca se fixou: exaltava e depois criticava quem exaltara,
e ao próprio Spencer adere, por fim, com cautela. «Se tivesse
de tomar um chefe entre os modernos, disse ele, elegeria H.
Spencer, nas linhas gerais do seu pensar (12).

(10) Contribuição à História das Idéias no Brasil, 2.a ed., Civiliza­


ção Brasileira, 1967, ps. 293-294.
(u) Obras Completas, ed. do Estado de Sergipe, vol. IX, Ques­
tões Vigentes, ps. 44-45.
(12) Ensaios de Filosofia do Direito, 1895, prefácio, p. IX.
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Foi um incansável pesquisador de coisas brasileiras, mas em


m atéria de idéias gerais distinguiu-se por extrema versatilidade.
Talvez a constante de seu cam biante pensamento tenha sido
a aversão àquilo que os positivistas chamam de «metafísica»,
ou seja, as especulações transcendentes aos dados da experiên­
cia e da verificação externa.
Seu espírito irrequieto e apaixonado, sua fome de pesquisa
horizontal, leitor que foi de toda a literatura brasileira disponí­
vel e, ainda, coleccionador de folclore, — não lhe perm itiram o
repouso para a meditação, necessária ao filósofo e até ao
filosofante. Gostava de novidades, e talvez tivesse sofrido, em
Filosofia, daquela posição que ele mesmo se atribui nas letras:
«Eu não sou clássico e nem rom ântico e nem parnasiano; não
estou com a velha nem com a nova geração... quero estar com
a novíssima, com aquela que ainda há de vir (13)».
Olhando-o com simpatia, mas reconhecendo-lhe a contra­
ditória agitação interior, vê nele Cruz Costa um como retrato
do Brasil: «Acabamos sempre confundindo-o com o Brasil.
É que ele se parece muito com as coisas brasileiras — é um
tum ultuar de contrastes, de esperanças e de desilusões, um
misto de simplicidade e de complicação, de erros trem endos e
de boa vontade de acertar. Sílvio Rom ero reflecte, ao nosso
ver, a ingenuidade, um tanto complicada das nossas elites inte­
lectuais. O que lhe dá grandeza é o seu infatigável esforço
de compreensão do Brasil; não é a sua filosofia (w)».

Deter-nos-emos um pouco mais num pensador que tem sido


considerado o mais original do Brasil, embora sua filosofia
muito deva a antecessores, principalmente Spinoza e Schopen-

(ls) História da Literatura Brasileira, 2.· ed.. Rio, 1902, II, p. 809.
(M) Op. cit., p. 299.
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hauer. Trata-se de Farias Brito, nascido no Ceará em 1862,


e falecido no Rio, catedrático de Lógica no Colégio Pedro II,
em 1917. Apesar da vida agitada e itinerante, foi exem plar­
mente fiel à vocação de seu espírito, dedicando-se toda a vida
à Filosofia. Leu e criticou os principais filósofos dos últim os
séculos, combateu vigorosamente o m aterialism o dom inante e
tentou uma síntese sua, em que, infelizmente, não se forrou de
incongruências intrínsecas e de erros.
Foi também o mais fecundo dos filósofos brasileiros, tendo
ele mesmo dividido a sua obra em dois grupos: 1. Finalidade do
Mundo, em que se incluem A Filosofia como Acíividade Perma­
nente do Espírito (Fortaleza, 1895), A Filosofia Moderna (For­
taleza, 1899) e Evolução e Relatividade (Belém, 1905);
2. Ensaios sobre a Filosofia do Espírito, que compreende
A Verdade como Regra das Acções (também do Pará, 1905),
A Base Física do Espírito (Rio, 1912) e O M undo Interior (Rio,
1914). ,
Além de denunciar e combater o Positivismo e o evolucio­
nismo materialista, clamou pela urgente necessidade de uma
conversão geral dos espíritos. Form ado em D ireito em Pernam ­
buco, terá recebido influências da chamada «Escola do Recife»,
mas a das reagiu, e descreveu uma longa trajectória, crítica e
construtiva, de que talvez não tenha chegado a term o, como
aconteceu com Bergson, nos últimos tempos de sua vida e, prin­
cipalmente, na morte.
Aliás, considerando-se a presença e a acção de Farias
Brito na vida intelectual brasileira, não se pode fugir a uma
aproximação com o filósofo de Deux Sources de la Morale et
de la Religion: ele foi o Bergson brasileiro, por ter ser­
vido a muitos de ponte, por ter conduzido mais de um,
entre os quais Jackson de Figueiredo, à concepção espiritua­
lista e católica do mundo, que não era a sua.
201

Para Farias Brito, cabe àiFilosofia, como «actividade per­


m anente do espírito humano», regenerar o mundo pela inces­
sante procura da verdade e pela aceitação da «verdade como
regra das acções». D aí já se vê que é moral a finalidade suprema
do filosofar: «a m oral é o fim da Filosofia», «o ideal que me
im pulsionou é a ordem m oral» (A Base Física, p. 72).
H á nele um sopro heraclítico, uma angustiosa aflição com
o espectáculo do mundo, em contínuo vir-a-ser, que para nós
melancólicam ente se resolve na morte. Urge então buscar na
Filosofia solução para essa angústia: «Tudo passa, tudo se
aniquila. Pois bem: eu quero saber se do que passa e se
aniquila algum a coisa fica, que não há de passar nem aniqui­
lar-se: quero estudar essa ciência incomparável de que falava
Sócrates; quero ensinar aos que padecem como é que se pode
esperar com serenidade o desenlace da m orte; quero dirigir,
aos pequenos e humildes, palavras de conforto; quero levantar
contra os tiranos a espada da justiça; quero, em um a palavra,
m ostrar para todos que antes e acim a de tudo existe a lei m oral,
e que é somente para quem se põe fora desta mesma lei que a
vida term ina.» (A Filosofia como Actividade, ps. 21-22).
Farias distingue a filosofia pré-científica, que é a própria
actividade do espirito a elaborar o conhecimento; a ciência, que
é o conhecimento sistem atizado e especializado; e a filosofia
supercientífica, «interpretação do sentido real e racional da exis­
tência; interpretação pelas prim eiras causas e pelos prim eiros
princípios; o que, em últim a análise, se resolve num a totaliza-
ção da experiência, ou mais precisamente, num a solução do
problem a do universo; concepção que corresponde, exactam ente
e com o máximo rigor, ao que se cham a metafísica.» (A Base
Física, p. 64).
A existência universal tem, para Farias, dois aspectos: um,
objectivo, que é a realidade exterior, «o m undo da natureza e
202

dos corpos», e outro subjectivo, que é a consciência, o espírito.


A realidade objectiva é contínuo vir-a-ser; a realidade subjectiva
é sentir e pensar: «coisa que não entre em nenhuma destas duas
categorias fundamentais não existe, nem pode ser conhecida».
(Mundo Interior, p. 479).
Prosseguindo em suas especulações, busca Farias, para
além dos fenómenos, a «coisa-em-si», que descobre ser o espírito.
E acaba por identificar a matéria com o espírito: «tudo isto que
se chama matéria não é senão a aparência externa, a manifes­
tação e o desenvolvimento, ou a eterna fenomenalidade do
espírito, uma como sombra que o espírito projecta no vácuo.»
(Ibid., p. 415).
Farias tem uma Teodiceia à primeira vista lúcida e segura,
pois vê em Deus espírito criador, inteligência suprema, princípio
de todas as coisas, a tudo presente, ser pleno, conhecimento
perfeito. «Negar a Deus é negar a razão no mundo.» (Filosofia
Moderna, p. 16). Com tal entusiasmo fala de Deus, que se diria
um platónico ou um aristotélico-tomista. M as é engano. Farias
Brito é panteista: «Há, pois, a luz, há a natureza e há a cons­
ciência. São os três momentos da natureza divina. A luz é
Deus em sua essência; a natureza é Deus representado; a cons­
ciência é Deus percebido.» (Ibid., p. 267).
Tem, portanto, toda a razão Leonel Franca ao capitular a
filosofia do pensador cearense como «pampsiquismo panteista».
Na ordem prática, entende Farias que «as duas manifesta­
ções fundamentais do espírito humano na m archa geral da
sociedade são a Política e a Filosofia. A Política dá em resul­
tado o Direito; a Filosofia dá em resultado a M oral.» (A Filoso­
fia conto actividade, p. 33).
A regra da moral é a verdade, ou, mais concretamente, a
convicção, porque, ao fim e ao cabo. Farias cai no relativismo
moral: «O homem tem sobre todos os outros seres este privilégio
203

excepcional: que é éle próprio quem formula as leis a que deve


obedecer». (A Verdade como Regra, p. 9) Ou: «forma subjec­
tiva: procede sempre e tem todas as relações da vida de con­
form idade com o que pensas que é verdade, isto é, de conformi­
dade com as tuas convicções.» {Ibid., p. 25).
O Direito é a norm a de conduta estabelecida e coactivamente
exigida pelo poder público, já que a tendência do homem é
para o mal.
As religiões actuais, segundo Farias, estão mortas. Urge,
pois, criar outra, nova, que não será senão a própria moral
organizada. «E isto quer dizer: é a sociedade organizada pela
lei moral, é a sociedade governada pela razão». {Mundo Interior,
p. 102).
N ão sendo, pois, espiritualista ortodoxo, menos ainda cris­
tão, serviu, no entanto. Farias Brito a muitos de caminho para
o encontro do Cristianismo.

Justam ente neste ponto é a hora de falar num a corrente de


pensamento, que já tem mais de cem anos de continuidade, que
reatou, em muito melhores termos, um a tradição interrompida,
mas que nem sempre tem merecido a devida atenção dos histo­
riadores do pensamento brasileiro, — apesar das boas ou exce­
lentes coisas já produzidas.
Refiro-me ao renascimento da Filosofia Tomista, geral-
mente conhecido por neotomismo, uma vez que os seus fautores
e continuadores actualizaram, fiéis ao sistema, as indagações e
conclusões provocadas pelos problemas das modernas ciências
experimentais e matemáticas.
O movimento começou na Itália, com Liberatore (1810-1892),
que em 1850 deu à estampa um curso completo de Filosofia.
Acompanharam-no Taparelli d’Azeglio, Sanseverino, Cornoldi,
Zigliara, na Itália: Kleutgen (1811-1883), na Alemanha; De
204

Broglie, D’Hulst, Domet de Vorges e Farges, na França; menos


rigoroso, Balmes, na Espanha. M as foi a encíclica Aeterrú Patris,
de Leão X III (1879), que deu o grande impulso à restauração
tomista, insistindo no verdadeiro progresso da Filosofia, que se
faz por aprofundamento e não por substituição: «Vetera novis
augere et perficere», como diz, no documento, o famoso pon­
tífice.
No Brasil, antes da encíclica, já em 1866 o paraibano José
Soriano de Sousa (1833-1895) publicava em Recife os Princípios
Sociais e Políticos de Santo Tomás de Aquino. Além de outros
trabalhos de menor tomo, deu à estampa em 1871, editado em
Paris e distribuído pela Livraria Académica de Pernambuco,
um alentado compêndio de 544 recheadas páginas — Lições de
Filosofia Elementar, Racional e Moral.
Não se lhe vá buscar originalidade; mas ninguém pode
negar que o jurista paraibano assimilou bem as aulas que rece­
beu na Universidade de Lovaina, na Bélgica, e as m uitas leituras
que fez nos melhores tratadistas e divulgadores, dando-nos um
compêndio claro, metódico e, sobretudo, bem escrito, em boa
língua. Apesar de passado um século, ainda se lê com gosto e
proveito o livro de Soriano, hoje raríssimo.
Algum tempo depois, o Visconde de Saboia, Vicente Cân­
dido Figueira de Sabóia (1835-1909), professor da Faculdade
de Medicina do Rio, publica A Vida Psíquica do Homem (Rio,
1903), em que refuta o materialismo corrente, e afirm a que só
uma concepção integral e correcta do homem pode explicar devi­
damente os fenómenos mentais, em todos os seus aspectos e
extensão.
Em 1908, pioneira, é fundada a Faculdade de Filosofia de
S. Bento, em S. Paulo. Mandou-se vir da Bélgica o doutor por
Lovaina Carlos Sentroul, que já se distinguirá por uma tese
sobre o objecto da Metafísica, segundo K ant e segundo A ristó-
205

teles. Foi ela traduzida para o alemão e premiada, em 1906,


pela Kantgesellschaft.
Sentroul ensinou muitos anos no Brasil, e publicou, em
português, um Tratado de Lógica.
Interrom pidos os cursos em 1917, retom am em 1922, agora
já com outro belga, que se radicou no Brasil, Leonardo van
Acker. Este ainda vive e actúa, sendo autor do melhor trabalho
sobre Lógica escrito em nossa língua: Introdução à Filosofia.
Lógica (S. Paulo, 1932).
Em 1921 ocorre um facto, que veio a ter importantes con­
seqüências e larga repercussão: Jackson de Figueiredo, recém
convertido ao catolicismo, funda no Rio o Centro D. Vital,
destinado a ser foco de irradiação do tomismo e da doutrina
católica.
Funcionou regularmente durante mais de quarenta anos,
publicando um a revista, «A Ordem», e ministrando cursos diver­
sos, além de conferências semanais. Surgiram réplicas em
S. Paulo e em M inas, de m odo que por todo o período de sua
vida activa, directa ou indirectamente teve o Centro papel nos
estudos e nos escritos filosóficos aristotélico-tomistas.
Na direcção, a Jakson sucedeu Alceu Am oroso Lima, con­
vertido em 1928, e a este, em seus impedimentos, Gustavo
Corção.
Muitos têm sido os cultores da Filosofia neotomista, alguns
dos quais se destacaram, seja pela profundidade na assimilação
do sistema, seja pela aplicação dos princípios e dos métodos a
novos aspectos da realidade. Um recente e isento historiador
do pensamento brasileiro, Antônio Paim, reconhece e proclam a
a importância do movimento. Veja-se-lhe este tópico:
«O esplritualismo de Farias Brito conduziu à estruturação
da corrente neo-tomista, provavelmente a que abriga em seu seio
maior número de pensadores. Partidários de Jacques M aritain
206

e divulgadores de sua obra ocupam a maioria das cadeiras nos


cursos de Filosofia, tanto das Universidades Católicas como das
federais. Alimentam significativo movimento editorial e, embora
pareçam divididos no plano político, formam uma corrente
filosófica única. A persistência do positivismo e a hegemonia
neotomista sobre o ensino da disciplina constituem a nota domi­
nante de nosso acanhado universo filosófico (15)».
Para lembrar alguns nomes, no passado e no presente,
mencionaríamos: Ludgero Jaspers, Castro Nery, A. B. Alves
da Silva, Alexandre Correia, Antônio Alves de Siqueira, Leonel
Franca, Saboia de Medeiros, Nélson Romero, Francisco Xavier
Roser, Pedro Cerruti, Sebastião Tauzin, Armando Cámara, Aldo
Obino, Geraldo Pinheiro Machado, Orlando Vilela, Lúcio dos
Santos, Peixoto Fortuna, João Camilo de Oliveira Torres,
Eduardo Prado de Mendonça, Ubaldo Puppi, Luís Castagnola,
José van den Besselaar, Irineu Pena, Gustavo Corção, Alfredo
Lage, Maurílio Teixeira Leite Penido.
Quero, desta lista feita ao acaso da memória e inclusiva de
vários centros nacionais (Rio, S. Paulo, Belo Horizonte, Curitiba,
Porto Alegre), destacar algumas figuras.
Leonel Franca aliou a erudição à profundidade e à pureza
da linguagem. Foi, depois do bosquejo de Sílvio Romero, o
primeiro sistematizador da história da Filosofia no Brasil, e
deixou dois trabalhos com muita contribuição pessoal — A Crise
do Mundo Moderno, em que argutamente analisa as conse­
qüências, nos nossos dias, da grande ruptura do século X VIII,
e O Problema de Deus, obra póstuma.

(ls) História das Idéias Filosóficas no Brasil, S. Paulo, 1967,


ps. 252-3.
207

Antônio Alves de Siqueira é autor do melhor tratado


sobre Filosofia da Educação, baseada nos princípios de Aristó­
teles, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.
Ludgero Jaspers tem um bom compêndio de Filosofia e tra­
duziu toda a Summa contra Gentiles, do Doutor Angélico.
Ubaldo Puppi, do Paraná, com Itinerário para a Verdade
(1955), Prius Natura (1960) e A Intuição Intelectual e a Exis­
tência (1966) sagrou-se pensador seguro, arejado e rigoroso.
Gustavo Corção, depois que trocou a Física e a Matemática
pelas especulações filosóficas e teológicas, tem-nos dado impor­
tantes trabalhos, de que talvez se deva sublinhar As Fronteiras
da Técnica, onde situa no verdadeiro lugar a Técnica e a Polí­
tica, sobretudo a partir da distinção aristotélica entre agir e
fazer; e Dois Amores, Duas Cidades, longa, segura e percuciente
análise da civilização moderna, onde mostra a decadência do
pensamento límpido e voltado para o ser, desde o século XIV
aos nossos dias, com as sucessivamente trágicas conseqüências
que vem acarretando.
Alfredo Lage, uma das nossas melhores cabeças filosóficas,
deu-nos um excelente ensaio estético, A Revolução da Arte
Moderna (1969), em que, à luz dos princípios tomistas, analisa
as diversas experiências e realizações artísticas do Romantismo
para cá; e recentemente publicou um suculento estudo sobre
a falência do pensamento liberal, sob o título de A Recusa de
Ser (1971), que deveria ser lido por quantos pretendem chegar
às raízes da actual crise de cultura.
Maurílio Teixeira Leite Penido é um pensador universal­
mente conhecido. Formado na Europa e por muito tempo pro­
fessor na Universidade de Friburgo, na Suíça, dedicou-se prin­
cipalmente à Teologia, mas granjeou a primeira linha dos Filó­
sofos tomistas com o arcabouço filosófico de Le rôle de Vanalogie
en Théologie Dogmatique, com La méthode intuitive de M.
208

Bergson e com Dieu dans le bergsonisme. Logo depois da


Guerra de 39 foi para o Brasil, onde ensinou vinte e cinco
anos, na Faculdade Nacional de Filosofía e no Seminário de
São José, no Rio.
*
* *

Como já se viu pela citação de Antônio Paim, com a qual


estou de acordo, o pensamento actual brasileiro está dominado
pelo neotomismo, pela mentalidade positivista e, acrescento eu,
por um marxismo difuso, que tem suas origens mais remotas,
parece, no ensino de Leónidas Resende (1889-1950) na Facul­
dade de Direito do Rio (então integrada na Universidade do
Brasil). Leónidas transitou do positivismo ao marxismo, ou
melhor, incluiu teses marxistas num esquema e estilo de pensa­
mento comtista.
Outros depois estudaram e adoptaram sobretudo a visão
marxista da História — aliás fácil de assimilar e supostamente
aplicável a todas as culturas — com seu componente hegeliano
do «processo». Mas pouquíssimos são os que realmente conhe­
cem o pensamento de Marx, na sua variada e complexa totali­
dade.
Outra não é a opinião de Antônio Paim: «No Brasil, o
estudioso do fenómeno depara-se com uma situação deveras
curiosa: o marxismo jamais despertou qualquer movimento
teórico de envergadura, nem antes nem depois da form ação do
partido político que pretende encarná-lo. Nunca houve uma
difusão sistemática dessa doutrina, não havendo sequer uma
tradução portuguesa de O Capitai Observa-se, na verdade,
um grande desinteresse pela teoria, entre aqueles que se dizem
marxistas, a par de uma defesa intransigente das posições poli-
209

ticas trazidas à luz sob esse rótulo. A maioria dos chamados


engajados não sabe nem mesmo precisar o conteúdo de certos
conceitos que emprega (10)».
Fora dessas dominantes — positivismo, marxismo, neoto-
mismo — existem pensadores singulares, que ou não se filiam a
escolas, ou adoptam isolados posições desta ou daquela corrente.
É o caso de Euríalo Canabrava (1903), que parece ter-se última­
mente inclinado para o empirismo lógico, depois de muita irre-
quietude erudita. É o caso do exietencialismo de Vicente Fer­
reira da Silva (1916-1963) e, outrora, de Roland Corbisier.
Miguel Reale poderia ser considerado partidário da «Filosofia do
Valor», que tom a como eixo o homem e como fundamento da
Ética a relação de «um eu» com «outro eu». Renato Cirell
Czema, ligado a Reale, pode ser classificado como idealista.
Outros seriam de difícil classificação, porque têm sido histo­
riadores e críticos do pensamento brasileiro. Tal é o caso de
Luís Washington Vita, talvez fenomenologista, mas que, em todo
caso, diz que, «em última instância, o que im porta na Filo­
sofia é a verdade (17)». Poderíamos também dizê-lo culturalista,
posição em que, acrescentando, humanista, eu enquadraria um
Djacir Meneses, sublinhanho ainda o nítido suporte hegeliano
de seu inquieto pensamento, creio que próxim o de um grande
desaguadouro, descoberto e definido por Santo Agostinho, logo
no começo das Confissões: «fecisti nos ad te [Domine], et
inquietum est cor nostrum, donee requiescat in te (l8)».

(10) Ibid., p. 222.


(” ) Escorço, p. 14.
(«) Conf., 1, 1.
14
210
*
♦ *

Aí está, creio, um balanço, sumário e maçudo, de nosso


pensamento filosófico, que, se por um lado, am plamente
documenta e ilustra a chamada «dei da repercussão», form ulada
por Alceu Amoroso Lima, demonstra, por outro, nos melhores
casos, um fácil poder de assimilação da inteligência brasileira.
Acompanhamos o velho mundo no bom e no mau, demons·
trando assim estarmos integrados na civilização ocidental, no
que ela tem de positivo e de negativo, nas suas palpitações
de vida e nos seus sinais de agonia ou de esperança.

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