É incontestável que jamais o pensamento filosófico teve no
Brasil consideração ou prestigio igual ao de outras actividades do espírito. A Filosofia sempre foi relegada a segundo ou terceiro plano, entendida como coisa de somenos, ou extra vagância de lunáticos ou ociosos. A opinião pública parece que sempre formou da Filosofia conceito pejorativo, entenden do-a, talvez, como o teria feito certo americano céptico, para quem «a Filosofia é uma coisa com a qual ou sem a qual o mundo continua tal e qual». N a obra de M achado de Assis aparece um filósofo louco, Quincas Borba, que teria legado a um seu enfermeiro e herdeiro universal, Rubião, os resultados de suas desvairadas especula ções. Assim o entendiam os amigos de Rubião, rico desocu pado, perdulário e generoso, cuja vida e espírito eram interpre tados como fruto da sabedoria elaborada pelo falecido benfeitor. Já disse eu que vejo na Filosofia de Quincas Borba a discreta e mordaz crítica de M achado ao evolucionismo spence- riano. Porém, o que agora eu quis salientar foi o julgamento 186
que da vida incompreensível de Rubião fizeram seus explora
dores e comensais. O filósofo tem sido olhado no Brasil como um ser estra nho e meio marginal. Algo como um louco manso que, falto de trabalho sério, se entrega a ocupações vadias como colec cionar selos ou borboletas. Esse menosprezo da especulação teria origem, segundo alguns, na espécie de gente que veio colonizar o Novo Mundo: homens rudes ou pragmáticos, para quem a única coisa impor tante era ganhar a vida e, se possível, enriquecer. Outros acham que nossa pobreza em matéria de Filosofia se deve à pouca idade do país, lembrando que, nos Estados Unidos, país desen- volvidíssimo, a situação não seria melhor do que a nossa. Tais outros põem o desdém pela Filosofia à conta de uma incapaci dade radical do homem brasileiro para a especulação. É o caso de Tobias Barreto, que, depois de observar que «não há domínio algum de actividade intelectual em que o espírito bra sileiro se mostre tão acanhado, tão frívolo e infecundo, como no domínio filosófico», acrescenta que «o Brasil não tem cabeça filosófica» 0). Menos severo é o juízo dos contemporâneos que têm cuidado do assunto. Ultimamente já se fala a sério do pensa mento filosófico brasileiro, observando-se que, se não temos tido filósofos, no sentido próprio, isto é, elaboradores de sistemas originais, não nos escassearam filosofantes, ou seja, estudiosos da especialidade, que procuraram digerir o que lá fora vai sendo elaborado, digestão essa que inclui notas pessoais de alteração, desdobramento ou de aplicação à nossa realidade.(*)
(*) Questões Vigentes de Filosofia e de Direito, Recife, 1888,
ps. 237, 240. 187
Alceu Amoroso Lima, num ensaio já antigo, apontou como
uma das constantes da cultura brasileira o que ele chamou «lei da repercussão». Todos os movimentos de idéias no Brasil têm sido repercussão de similares europeus, com distância de trinta anos no tempo. Isso, em todos os domínios da actividade inte lectual ou artística. Na mesma linha se situa Luís Washington Vita, quando escreve: «De facto, cumprindo seu destino e sua vocação, o pensa mento brasileiro, mais que criativo, é assimilativo das idéias alheias, e, ao invés de abrir rumos novos, limita-se a assimilar e a incorporar o que vem de fora. Daí a história da Filosofia no Brasil ser, em geral, uma história da penetração do pensa mento alheio nos recessos de nossa vida especulativa, ser, em suma, a narrativa do grau de compreensão, da nossa capacidade de assimilação nas diferentes épocas e do nosso quociente de sensibilidade espiritual (*)». Não penso que seja a falta de originalidade a maior carên cia nossa no que diz ao filosofar. A originalidade por si nada significa. Principalmente em Filosofia. Aqui, como nas outras coisas, e mais que nas outras coisas, só interessa a verdade. Tactearam os gregos, andando por caminhos e descaminhos, até que Aristóteles acertou o trilho. Daí por diante só se poderia aperfeiçoar e aprofundar. Os desvios foram funestos e não raro funestíssimos. Por outro lado, dada a complexidade da matéria e sua universalidade, a Filosofia tem de ser obra de muitos ao longo do tempo. É estultice desprezar o pensamento alheio só porque é alheio. Vaidade tola supor que se vai edificar desde as
(s) Escòrço da Filosofia no Brasil, Coimbra, 1964, p. 9.
188
bases, como pretenderam tantos. O bserva M aritain que o pro
gresso na Filosofia é m uito diferente do progresso nas ciências experimentais. Aqui às vezes tem de haver substituição; lá, aprofundamento. A Física, ou a Q uím ica, ou a Biologia não raro progridem realmente quando substituem um a concepção ou teoria por outra; a Filosofia m uitas vezes regride grave mente quando inova. A menos que por ela se entenda um a especulação vã, um mero exercício da inteligência auto-suficiente, alim entando-se de si mesma, ou simples jogos florais, em que interesse o brilho e a graça, ou a nebulosa abstrusidade. Para muitas pessoas, a Filosofia nada tem com a realidade. Esta é exclusivo objecto do que chamam ciência, entendendo-se como tal só as matemá ticas e as ciências experimentais. O real seria opaco à indagação filosófica, do que resulta o completo descompromisso do filoso far com a coisa-em-si. Não é esta a nossa posição. Atribuímos grandíssima im por tância à Filosofia. De facto é ela, e só ela, que pode desvendar a face oculta do que nos rodeia e fornecer uma explicação cabal do homem, do universo, de Deus. Embora só trabalhe com a razão, ela tudo investiga e vai até onde possa alcançar a inteligência hum ana, disciplinada e perscrutadora. Nenhum domínio lhe é estranho: ocupa-se m ate rialmente de tudo, porém na perspectiva que lhe é própria, ou seja, os primeiros princípios e os últimos fins. E la não se detém na periferia nem sequer nas boas razões explicativas dos fenó menos: vai mais além, vai até o último porquê, até o últim o como, até o último para quê. Scientia rerum per altíssimas cau sas: «ciência de todas as coisas, vistas nas suas últim as causas». Grave e tragicamente enganados andam os que desdenham da Filosofia, supondo-a uma espécie de «hobby». M uito m ais sério e danoso é um erro filosófico do que um erro de cálculo 189
de m ateriais. Este produzirá o desm oronam ento de um edifício;
aquele faz ruir im périos e civilizações. P or outro lado. a F iloso fia é inelutável, inseparável do espírito hum ano. D e ta l m odo, que qualquer afirm ação ou negação, qualquer conceito ou ju lg a mento, qualquer posição ou regra de vida assenta num a M eta física. Boa ou má, certa ou errada. P or isso, diz A ristóteles: «Se a Filosofia é necessária, filosofem os; se é desnecessária, filo sofemos, p ara prová-lo». Logo, sem pre se filosofou no B rasil, em bora com filosofia difusa nas letras, nos ensaios, nos com pêndios e tratad o s de D ireito, nas reflexões m orais, de um M atías A ires ou de um M arquês de M aricá, nas discussões políticas, em to d a form a de doutrinação ou de debate de idéias. Agora, é certo que actividade filosófica sistem ática e conti nuada, ex-professo, quase nunca se praticou no B rasil. A té bem pouco tem po só nos sem inários se estudava, p ara servir de esteio aos estudos teológicos. D epois que se fundaram as F acul dades de Filosofia, a p artir de 1934 (se exceptuarm os o esforço isolado dos beneditinos paulistas), a disciplina, além de pouco procurada, tem sido posta m ais na pau ta da erudição, da histó ria dos diversos sistem as e da doutrina dos grandes nom es do que na da elaboração e rigor do pensam ento. E quando há form ação, não raro se trata de deform ação, porque ou se inocula ceptícism o e relativism o, ou algum profes sor mais prestigioso e m ais «na m oda» inculca hegelianism o, sobretudo na versão m arxista. V erdade é que nessas Faculdades têm leccionado professo res de boa orientação, mas às vézes seu ensino vai de p ar com o de outros docentes contrastantes, do que resulta, p ara os alu nos, confusão, insegurança ou m ero eruditism o periférico. 190
♦ * *
Isto posto, vejamos por alto as diversas correntes que têm
influído no pensamento brasileiro ao longo da nossa existência histórica. Nos dois primeiros séculos predominou o ensino jesuítico, dado nos colégios, notadamente o da Bahia, onde se m inistrava iniciação filosófica. Um homem como o Padre A ntônio V ieira, por exemplo, lá recebeu as prim eiras noções de Filosofía, lá fez os primeiros exercícios de dialéctica, lá começou, enfim, a disciplinar seu pensamento. A orientação era a da Escolástica, conforme preceituavam as Constitutiones Societaíis Iesus, no capítulo X IV da quarta parte: «In Theologia legetur Vetus et Novum Testamentum et doctrina scholastica divi Thom ae... In lógica et philosophia naturali et morali, et metaphysica doctrina A ristotelis sequenda est» Não seria tomismo puro, nem aristotelismo puro, porque outras idéias já tinham invadido o am biente cultural europeu, especialmente o Humanismo, enquanto, paralelam ente, a Esco lástica entrava em decadência, tendendo para disputas mais verbais que doutrinárias e indagativas das essências, o que no Brasil talvez se agravasse, dada a conhecida facúndia tropical. Supresso o ensino jesuítico pelo decreto pom balino de 1759, foi dada outra organização e orientação às escolas, de acordo com a reforma então levada a cabo. Vinte anos antes, em 1739, começara a funcionar no Rio o Seminário de São José, «em benefício da m ocidade e do Estado e com isenção da jurisdição paroquial». A í se leccionou Latim, Filosofia, Teologia, Liturgia e Cantochão. N ão tenho notícia das directrizes de tal ensino. 191
Neste século X V III terá tido repercussão no Brasil o
Iluminismo, claram ente esposado, segundo W ashington V ita, por M atías Aires, no seu Problema de Arquitectura Civil, que não conheço. M atías A ires teve form ação toda europeia, já que com 11 anos veio para Portugal, onde cursou o Colégio de Santo An tão e recebeu mais tarde grau de M estre em A rtes na U niver sidade de Coimbra. Daí foi para Bayonne, onde estudou D ireito, Física e M atem ática. Como observa Cabral de M oneada, o Ilum inism o português foi «essencialmente Reformismo e Pedagogismo. O seu espírito era, não revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso, como o francês, mas essencialmente progressista, reform ista, naciona lista e humanista» (*). De M atías A ires é conhecido e clássico o livro Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, cujas licenças de publicação são de 1752. Alguns aproxim am de La R ochefoucauld nosso autor, porque enxerga vaidade em todos os actos hum anos, enquanto o francês neles encontrava am or-próprio e interesse. N ota-se em M atías um certo pessimismo, talvez jansenista, mas sua visão da vida é religiosa, com o se evidencia deste passo (que, aliás, documenta também seu pessimismo): «A falta de religião e de bons costum es faz cair o homem no estado total de perversidade. A falta de religião consiste em se não tem er a Deus; a falta de costum es resulta de se não tem er os homens. E verdadeiram ente quem não tem er a lei de Deus nem as leis dos homens, que princípio lhe fica por onde haja de obrar bem? A nossa natureza propende p ara o mal: por isso foi preciso preservar-lhe um certo m odo de viver. Vivem os por regras. N o exercício do mal acham os um a espécie de doçura e de naturalidade; as virtudes praticam -se por ensino. O vício
(*) Apud Vita, Escorço, p. 81.
192
sabe-se, a virtude aprende-se. M iserável condição do homem!
O que devia saber ignora, e o que devia ignorar sabe; para o que nos é útil necessitamos de estudo, e para o que nos é per nicioso não; para o bem necessitamos de lem brança, e para o mal, de esquecimento» (4). Como quer que seja, M atías Aires não teve influência notável nos homens de seu tempo, nem nos pósteros, mais preocupados com as riquezas da terra ou com os ideais libertários do que com o moralismo pessimista das Refle xões. Nos primeiros tempos do Brasil independente e m onár quico dominou, como Filosofía, o Eclectismo de V ictor Cousin (1792-1867), aqui adoptado e divulgado por Frei Francisco de Mont’Alverne (1784-1858). Como se sabe. Cousin reduziu a quatro todos os siste mas filosóficos anteriores — sensualismo, idealismo, cepticismo e misticismo—, acrescentando ser cada um verdadeiro no que afirma e falso no que nega. Daí porque nenhum pode ser tomado integralmente; antes, cumpre seleccionar neles o que contenham de verdade e fundir num todo o resultado da triagem, suposto, mais, que o erro é uma verdade incom pleta. Deu pres tígio a Cousin, além de sua reacção contra o sensualism o de Condillac e o materialismo dos enciclopedistas, a eloqüência de que era dotado. O mesmo aconteceu com o descípulo da outra banda do Atlântico. Mont’Alveme foi o mais fam oso orador sacro de seu tempo e, embora na prim eira fase tivesse tentado conciliar Locke, Descartes, Condillac e Leibniz, aderiu entusiasm ado ao Eclectismo. De Cousin disse: «Um destes gênios, nascidos para
(4) Reflexões sobre a Vaidade dos Homens ou Discursos Morais
sobre os Efeitos da Vaidade, Lisboa, 1752, ps. 97-98. 193
revelar os prodígios da razão hum ana, se levantou como um
Deus, no meio do caos, em que se cruzavam e com batiam todos os elementos filosóficos; em pregando a extensão de sua vasta e sublime compreensão, reconstruiu a Filosofia, apresentando as verdades de que o espírito hum ano esteve sem pre de posse (*)». M ont’Alverne ensinou Filosofia em S. Paulo e no Rio, no Seminário de S. José, onde teve como adm irado discípulo a Domingos José Gonçalves de M agalhães (1811-1882), mais conhecido como introdutor do R om antism o no Brasil. Este últim o foi professor de Filosofia no Colégio Pedro Π , de onde saiu para a carreira diplom ática. N ão ficou no Eclec- tism o de Cousin: deixou-se levar tam bém pelo O ntologism o e o Idealismo. D aí as incoerências de seu pensam ento. Leonel Franca estranha, com razão, a atitude idealista num brasileiro; mas alega textos que não deixam lugar à dúvida, com o este: «Só existe realm ente o que é espírito... tudo o m ais existe feno menalmente, não em si, não para si, mas p ara quem o pensou e o faz aparecer a quem pode ver os seus pensam entos (·)». Este idealism o ainda por cim a se transfunde em ontolo- logismo quando, páginas adiante, explica o au to r que a reali dade extram ental é nada mais que pensam entos divinos: «Todo este imenso universo sensível que nos parece substancial mente existir entre nós e D eus só existe intelectualm ente em Deus, como pensam entos seus, sem outra existência fo ra da inteligência mesmo de Deus que o pensou; nada tem existência m aterial fora de Deus (T)».
(*) Compêndio de Filosofia, Rio, 1859, p. 104.
(e) Factos do Espirito Humano, Paris, 1858, p. 325, ap. Leonel Franca, Noções de História da Filosofia, 5.“ ed.. Rio, s/d , p. 241. (T) Factos, p. 351, ap. Id., ibid., p. 242. 13 194
Estes dois, e Eduardo Ferreira França (1809-1857), médico
baiano, despertaram o gosto pela Filosofía e, mais ou menos influídos pelo Eclectismo, fizeram que este se tomasse, no dizer de Clóvis Beviláqua, a doutrina mais simpática à alma brasileira.
Na segunda metade do século X IX ganha terreno na
Europa vigorosa reacção contra o idealismo, que no fundo é a filosofia do movimento romântico. Ao apriorismo e às espe culações de Fichte e Hegel se contrapõe o valor da experiência como único critério de certeza, ao mesmo passo que, enfati- zando-se as ciências particulares, se levanta a barreira da des confiança e do agnosticismo contra toda indagação que trans cende o sensorial, pejorativamente chamada metafísica. É a atitude positivista, que, além de método e modo-de- •pensar, se tomou filosofia sistemática com Augusto Comte (1798-1857). Na França mesmo o comtismo se bifurcou entre ortodoxos e dissidentes, aceitando os primeiros toda a obra do mestre, recusando os segundos o aspecto político-religioso, consubstan ciado na Política Positiva, na Síntese Subjectiva e no Catecismo Positivista. Lafitte, por um lado, Littré e Taine, por outro, chefiam as duas posições. De acordo com a referida <dei da repercussão», também no Brasil ecoaram as novidades e as dissidências, formando-se duas correntes comtistas. Porém, prevaleceu, e muito, como movimento, a ortodoxa, chefiada por Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Datam da década de 60 as primeiras notícias e adesões. Mas só em 1876 é que Benjamim Constant fundou a Sociedade Positivista. Sua condição de militar e professor da Escola Poli técnica e da Escola de Guerra facilitou-lhe o proselitismo entre as classes armadas e os matemáticos. Além disso, foi ele pr°* 195
pugnador da ideia republicana, o que ajuda a explicar a influên
cia que teve o Positivismo na instalação do novo regime. Como atitude espiritual e como método restrito e restritivo de trabalho intelectual, teve o Positivismo enorme influência no pensamento brasileiro, sobretudo no domínio jurídico e nas concepções científicas. Porém, como movimento organizado e «ortodoxo», cingiu-se a um grupo extremamente activo e faná tico, reunido em torno de Miguel Lemos (1854-1916) e Teixeira Mendes (1855-1927). Fundaram eles a Igreja Positivista e o Apostolado Positivista, que editou muitos livros, dos indicados por Comte para formar o saber universal, inclusive (por mais estranho que pareça) os Comentários sobre o Sermão da Mon tanha, de Santo Agostinho, e o Tratado do Amor de Deus, de São Bernardo. No Templo da Humanidade, Rua Benjamim Constant, 30, Rio, se celebraram (e ainda se celebram) os actos litúrgicos dessa estranha religião sem Deus, que, não obstante, logrou regular número de fiéis, divididos entre positivistas completos e prosé litos. Sobre os dois chefes escreveu Washington Vita interessante perfil, de que destacamos este trecho: «Miguel Lemos, iniciado, numa solenidade impressionante, no Positivismo por Lafitte, vigário visível de Comte e papa da Religião da Humanidade, jurou sobre o túmulo do Mestre fidelidade eterna, e cumpriu o compromisso com ânimo admirá vel. Quando se retirou da vida activa, entregou o facho da fé positivista a Teixeira Mendes, que, aos quinze anos de idade, recusou-se altivamente a receber o título de bacharel, para não se ver obrigado a jurar fidelidade ao imperador e à religião oficial do Estado. Expulso juntamente com Miguel Lemos da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, matricula-se na Facul dade de Medicina, não para exercer a profissão, mas com o 196
único propósito de adquirir a instrução enciclopédica reco
mendada por Comte. «Assim sendo não se exagerou quando Teixeira Mendes foi apontado como o único indivíduo, no mundo, que realizou plenamente, em todos os actos, de sua vida pública ou privada, o complicado e austero códico ético-jurídico do Positivismo, encamando perfeitamente o tipo ideal do homem sonhado por Comte. Até seu casamento foi celebrado segundo o ritual posi tivista, talvez o primeiro sacramento da Religião da H um ani dade levado a efeito no continente americano. Em sua casa não havia escravos, e muito menos empregadas domésticas, e quando algum convidado trazia «babás», estas estavam obrigadas a tomar assento à mesa do anfitrião. Nada de café, nem bebidas alcoólicas, nem cigarros (*)». Na mesma linha ideológica e metodológica do Positivismo, mas com coloração diferente, repercutiu também no Brasil o monismo materialista e o evolucionismo. Seu principal arauto foi Tobias Barreto (1839-1889), que veio a ter grande influência a partir de sua ascenção à cátedra da Faculdade de D ireito de Recife. Além da Filosofia, dedicou-se ao Direito, à crítica e à poesia. Estudou alemão, coisa raríssima naquele tempo, o que contri buiu, nele para fartar-se de adm irar a Alemanha, nos outros para o admirarem sob mais este aspecto. Sílvio Romero (1851-1914), seu companheiro, sequaz e apologista caloroso, elevou-o às culminâncias, compondo ou regendo um coro que encheu o país durante algum tempo. Tobias foi chefe da chamada «Escola do Recife», que m ar cou época, e fez discípulos. Lia pela cartilha de H aeckel, e por
(®) Escorço, ps. 60-61.
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aí explicou todas as coisas: Deus, o homem, o universo, o
Direito. De temperamento era um agitado, um complexado, explo sivo, de convivência difícil. Não obstante sua pregação m aterialista, doente e à beira da morte, reconciliou-se com a Igreja, assistido que foi por um padre católico. «Esquisitão de algum talento» cham ou-lhe Lafaiete R odri gues Pereira no livro que escreveu contra Sílvio Romero, em defesa do Machado de Assis (1Vindiciae, R io, 1899). Leonel Franca julga-o com severidade, mas com justeza, tendo antes salientado que «Nenhum dos trabalhos filosóficos de Tobias é um livro, no sentido rigoroso da palavra; falta-lhes unidade de plano e concatenação de idéias. São críticas avulsas, artigos, teses, opúsculos coleccionados em volumes. Ânimo im pulsivo e batalhador, polemista arrebatado, Tobias não era homem para escolher um assunto, estudá-lo com serenidade e desenvolvê-lo larga e profundamente. Deixava-se dom inar e arrastar p d as circunstâncias e ia produzindo o que elas lhe pareciam exigir. Ê nesta obra fragmentária que im porta respigar as idéias capi tais do filósofo (*)». Quem não conhecesse a probidade do grande e saudoso jesuíta poderia increpá-lo de sectário. M as outros, ideologica mente distantes de Franca, apontam essas e outras deficiências no chefe da «escola teuto-sergipana», como dizia, com chiste, Carlos de Laet. Hermes Lima, no livro que lhe dedicou (Tobias Barreto, S. Paulo, 1939), chama a atenção para as más conse qüências de seu complexo de inferioridade, de sua vaidade de autodidacta e de sua falta de ordem na vida. Cruz Costa, homem desligado de qualquer sistem a ou
(·) Noções, p. 271.
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escola, mas simpático ao Positivismo, não acom panha o antigo
coro de louvaminheiros. Para eie, «Tobias Barreto não foi um pensador. Foi, como outros letrados que temos tido, um comen tador do pensamento europeu e, especialmente, do pensamento alemão. Sua acção foi renovadora no seu tempo, mas ficou redu zida apenas ao seu tempo e não ultrapassou a existência daque les que com ele conviveram (“ )». Na fase final de suas lucubrações, Tobias inclina-se já para o esplritualismo, como se vê desta passagem: «O pendor materialístico do tempo, a que corresponde o gosto pelas explicações mecânicas, tem levado muitos espíritos ao extremo das afirmações e negações categóricas, porém sem base nos factos. Felizmente, já há mais de um exemplo de sobriedade científica por parte de naturalistas, outrora inebria dos de seu próprio vinho, mas hoje convencidos de que a ciência tem limites, além dos quais ainda existe alguma coisa, que ela não pode sujeitar aos seus processos de observação e esclarecimento. O primeiro, o mais valioso sinal desta mudança, foi dado por Du Bois Raymond (“ ).» Sílvio Romero, amigo e entusiasta de Tobias Barreto, em Filosofia descreveu uma trajectória que vai do eclectismo de Jouf- froy ao evolucionismo spenceriano, passando por Comte. R eal mente nunca se fixou: exaltava e depois criticava quem exaltara, e ao próprio Spencer adere, por fim, com cautela. «Se tivesse de tomar um chefe entre os modernos, disse ele, elegeria H. Spencer, nas linhas gerais do seu pensar (12).
(10) Contribuição à História das Idéias no Brasil, 2.a ed., Civiliza
ção Brasileira, 1967, ps. 293-294. (u) Obras Completas, ed. do Estado de Sergipe, vol. IX, Ques tões Vigentes, ps. 44-45. (12) Ensaios de Filosofia do Direito, 1895, prefácio, p. IX. 199
Foi um incansável pesquisador de coisas brasileiras, mas em
m atéria de idéias gerais distinguiu-se por extrema versatilidade. Talvez a constante de seu cam biante pensamento tenha sido a aversão àquilo que os positivistas chamam de «metafísica», ou seja, as especulações transcendentes aos dados da experiên cia e da verificação externa. Seu espírito irrequieto e apaixonado, sua fome de pesquisa horizontal, leitor que foi de toda a literatura brasileira disponí vel e, ainda, coleccionador de folclore, — não lhe perm itiram o repouso para a meditação, necessária ao filósofo e até ao filosofante. Gostava de novidades, e talvez tivesse sofrido, em Filosofia, daquela posição que ele mesmo se atribui nas letras: «Eu não sou clássico e nem rom ântico e nem parnasiano; não estou com a velha nem com a nova geração... quero estar com a novíssima, com aquela que ainda há de vir (13)». Olhando-o com simpatia, mas reconhecendo-lhe a contra ditória agitação interior, vê nele Cruz Costa um como retrato do Brasil: «Acabamos sempre confundindo-o com o Brasil. É que ele se parece muito com as coisas brasileiras — é um tum ultuar de contrastes, de esperanças e de desilusões, um misto de simplicidade e de complicação, de erros trem endos e de boa vontade de acertar. Sílvio Rom ero reflecte, ao nosso ver, a ingenuidade, um tanto complicada das nossas elites inte lectuais. O que lhe dá grandeza é o seu infatigável esforço de compreensão do Brasil; não é a sua filosofia (w)».
Deter-nos-emos um pouco mais num pensador que tem sido
considerado o mais original do Brasil, embora sua filosofia muito deva a antecessores, principalmente Spinoza e Schopen-
(ls) História da Literatura Brasileira, 2.· ed.. Rio, 1902, II, p. 809. (M) Op. cit., p. 299. 200
hauer. Trata-se de Farias Brito, nascido no Ceará em 1862,
e falecido no Rio, catedrático de Lógica no Colégio Pedro II, em 1917. Apesar da vida agitada e itinerante, foi exem plar mente fiel à vocação de seu espírito, dedicando-se toda a vida à Filosofia. Leu e criticou os principais filósofos dos últim os séculos, combateu vigorosamente o m aterialism o dom inante e tentou uma síntese sua, em que, infelizmente, não se forrou de incongruências intrínsecas e de erros. Foi também o mais fecundo dos filósofos brasileiros, tendo ele mesmo dividido a sua obra em dois grupos: 1. Finalidade do Mundo, em que se incluem A Filosofia como Acíividade Perma nente do Espírito (Fortaleza, 1895), A Filosofia Moderna (For taleza, 1899) e Evolução e Relatividade (Belém, 1905); 2. Ensaios sobre a Filosofia do Espírito, que compreende A Verdade como Regra das Acções (também do Pará, 1905), A Base Física do Espírito (Rio, 1912) e O M undo Interior (Rio, 1914). , Além de denunciar e combater o Positivismo e o evolucio nismo materialista, clamou pela urgente necessidade de uma conversão geral dos espíritos. Form ado em D ireito em Pernam buco, terá recebido influências da chamada «Escola do Recife», mas a das reagiu, e descreveu uma longa trajectória, crítica e construtiva, de que talvez não tenha chegado a term o, como aconteceu com Bergson, nos últimos tempos de sua vida e, prin cipalmente, na morte. Aliás, considerando-se a presença e a acção de Farias Brito na vida intelectual brasileira, não se pode fugir a uma aproximação com o filósofo de Deux Sources de la Morale et de la Religion: ele foi o Bergson brasileiro, por ter ser vido a muitos de ponte, por ter conduzido mais de um, entre os quais Jackson de Figueiredo, à concepção espiritua lista e católica do mundo, que não era a sua. 201
Para Farias Brito, cabe àiFilosofia, como «actividade per
m anente do espírito humano», regenerar o mundo pela inces sante procura da verdade e pela aceitação da «verdade como regra das acções». D aí já se vê que é moral a finalidade suprema do filosofar: «a m oral é o fim da Filosofia», «o ideal que me im pulsionou é a ordem m oral» (A Base Física, p. 72). H á nele um sopro heraclítico, uma angustiosa aflição com o espectáculo do mundo, em contínuo vir-a-ser, que para nós melancólicam ente se resolve na morte. Urge então buscar na Filosofia solução para essa angústia: «Tudo passa, tudo se aniquila. Pois bem: eu quero saber se do que passa e se aniquila algum a coisa fica, que não há de passar nem aniqui lar-se: quero estudar essa ciência incomparável de que falava Sócrates; quero ensinar aos que padecem como é que se pode esperar com serenidade o desenlace da m orte; quero dirigir, aos pequenos e humildes, palavras de conforto; quero levantar contra os tiranos a espada da justiça; quero, em um a palavra, m ostrar para todos que antes e acim a de tudo existe a lei m oral, e que é somente para quem se põe fora desta mesma lei que a vida term ina.» (A Filosofia como Actividade, ps. 21-22). Farias distingue a filosofia pré-científica, que é a própria actividade do espirito a elaborar o conhecimento; a ciência, que é o conhecimento sistem atizado e especializado; e a filosofia supercientífica, «interpretação do sentido real e racional da exis tência; interpretação pelas prim eiras causas e pelos prim eiros princípios; o que, em últim a análise, se resolve num a totaliza- ção da experiência, ou mais precisamente, num a solução do problem a do universo; concepção que corresponde, exactam ente e com o máximo rigor, ao que se cham a metafísica.» (A Base Física, p. 64). A existência universal tem, para Farias, dois aspectos: um, objectivo, que é a realidade exterior, «o m undo da natureza e 202
dos corpos», e outro subjectivo, que é a consciência, o espírito.
A realidade objectiva é contínuo vir-a-ser; a realidade subjectiva é sentir e pensar: «coisa que não entre em nenhuma destas duas categorias fundamentais não existe, nem pode ser conhecida». (Mundo Interior, p. 479). Prosseguindo em suas especulações, busca Farias, para além dos fenómenos, a «coisa-em-si», que descobre ser o espírito. E acaba por identificar a matéria com o espírito: «tudo isto que se chama matéria não é senão a aparência externa, a manifes tação e o desenvolvimento, ou a eterna fenomenalidade do espírito, uma como sombra que o espírito projecta no vácuo.» (Ibid., p. 415). Farias tem uma Teodiceia à primeira vista lúcida e segura, pois vê em Deus espírito criador, inteligência suprema, princípio de todas as coisas, a tudo presente, ser pleno, conhecimento perfeito. «Negar a Deus é negar a razão no mundo.» (Filosofia Moderna, p. 16). Com tal entusiasmo fala de Deus, que se diria um platónico ou um aristotélico-tomista. M as é engano. Farias Brito é panteista: «Há, pois, a luz, há a natureza e há a cons ciência. São os três momentos da natureza divina. A luz é Deus em sua essência; a natureza é Deus representado; a cons ciência é Deus percebido.» (Ibid., p. 267). Tem, portanto, toda a razão Leonel Franca ao capitular a filosofia do pensador cearense como «pampsiquismo panteista». Na ordem prática, entende Farias que «as duas manifesta ções fundamentais do espírito humano na m archa geral da sociedade são a Política e a Filosofia. A Política dá em resul tado o Direito; a Filosofia dá em resultado a M oral.» (A Filoso fia conto actividade, p. 33). A regra da moral é a verdade, ou, mais concretamente, a convicção, porque, ao fim e ao cabo. Farias cai no relativismo moral: «O homem tem sobre todos os outros seres este privilégio 203
excepcional: que é éle próprio quem formula as leis a que deve
obedecer». (A Verdade como Regra, p. 9) Ou: «forma subjec tiva: procede sempre e tem todas as relações da vida de con form idade com o que pensas que é verdade, isto é, de conformi dade com as tuas convicções.» {Ibid., p. 25). O Direito é a norm a de conduta estabelecida e coactivamente exigida pelo poder público, já que a tendência do homem é para o mal. As religiões actuais, segundo Farias, estão mortas. Urge, pois, criar outra, nova, que não será senão a própria moral organizada. «E isto quer dizer: é a sociedade organizada pela lei moral, é a sociedade governada pela razão». {Mundo Interior, p. 102). N ão sendo, pois, espiritualista ortodoxo, menos ainda cris tão, serviu, no entanto. Farias Brito a muitos de caminho para o encontro do Cristianismo.
Justam ente neste ponto é a hora de falar num a corrente de
pensamento, que já tem mais de cem anos de continuidade, que reatou, em muito melhores termos, um a tradição interrompida, mas que nem sempre tem merecido a devida atenção dos histo riadores do pensamento brasileiro, — apesar das boas ou exce lentes coisas já produzidas. Refiro-me ao renascimento da Filosofia Tomista, geral- mente conhecido por neotomismo, uma vez que os seus fautores e continuadores actualizaram, fiéis ao sistema, as indagações e conclusões provocadas pelos problemas das modernas ciências experimentais e matemáticas. O movimento começou na Itália, com Liberatore (1810-1892), que em 1850 deu à estampa um curso completo de Filosofia. Acompanharam-no Taparelli d’Azeglio, Sanseverino, Cornoldi, Zigliara, na Itália: Kleutgen (1811-1883), na Alemanha; De 204
Broglie, D’Hulst, Domet de Vorges e Farges, na França; menos
rigoroso, Balmes, na Espanha. M as foi a encíclica Aeterrú Patris, de Leão X III (1879), que deu o grande impulso à restauração tomista, insistindo no verdadeiro progresso da Filosofia, que se faz por aprofundamento e não por substituição: «Vetera novis augere et perficere», como diz, no documento, o famoso pon tífice. No Brasil, antes da encíclica, já em 1866 o paraibano José Soriano de Sousa (1833-1895) publicava em Recife os Princípios Sociais e Políticos de Santo Tomás de Aquino. Além de outros trabalhos de menor tomo, deu à estampa em 1871, editado em Paris e distribuído pela Livraria Académica de Pernambuco, um alentado compêndio de 544 recheadas páginas — Lições de Filosofia Elementar, Racional e Moral. Não se lhe vá buscar originalidade; mas ninguém pode negar que o jurista paraibano assimilou bem as aulas que rece beu na Universidade de Lovaina, na Bélgica, e as m uitas leituras que fez nos melhores tratadistas e divulgadores, dando-nos um compêndio claro, metódico e, sobretudo, bem escrito, em boa língua. Apesar de passado um século, ainda se lê com gosto e proveito o livro de Soriano, hoje raríssimo. Algum tempo depois, o Visconde de Saboia, Vicente Cân dido Figueira de Sabóia (1835-1909), professor da Faculdade de Medicina do Rio, publica A Vida Psíquica do Homem (Rio, 1903), em que refuta o materialismo corrente, e afirm a que só uma concepção integral e correcta do homem pode explicar devi damente os fenómenos mentais, em todos os seus aspectos e extensão. Em 1908, pioneira, é fundada a Faculdade de Filosofia de S. Bento, em S. Paulo. Mandou-se vir da Bélgica o doutor por Lovaina Carlos Sentroul, que já se distinguirá por uma tese sobre o objecto da Metafísica, segundo K ant e segundo A ristó- 205
teles. Foi ela traduzida para o alemão e premiada, em 1906,
pela Kantgesellschaft. Sentroul ensinou muitos anos no Brasil, e publicou, em português, um Tratado de Lógica. Interrom pidos os cursos em 1917, retom am em 1922, agora já com outro belga, que se radicou no Brasil, Leonardo van Acker. Este ainda vive e actúa, sendo autor do melhor trabalho sobre Lógica escrito em nossa língua: Introdução à Filosofia. Lógica (S. Paulo, 1932). Em 1921 ocorre um facto, que veio a ter importantes con seqüências e larga repercussão: Jackson de Figueiredo, recém convertido ao catolicismo, funda no Rio o Centro D. Vital, destinado a ser foco de irradiação do tomismo e da doutrina católica. Funcionou regularmente durante mais de quarenta anos, publicando um a revista, «A Ordem», e ministrando cursos diver sos, além de conferências semanais. Surgiram réplicas em S. Paulo e em M inas, de m odo que por todo o período de sua vida activa, directa ou indirectamente teve o Centro papel nos estudos e nos escritos filosóficos aristotélico-tomistas. Na direcção, a Jakson sucedeu Alceu Am oroso Lima, con vertido em 1928, e a este, em seus impedimentos, Gustavo Corção. Muitos têm sido os cultores da Filosofia neotomista, alguns dos quais se destacaram, seja pela profundidade na assimilação do sistema, seja pela aplicação dos princípios e dos métodos a novos aspectos da realidade. Um recente e isento historiador do pensamento brasileiro, Antônio Paim, reconhece e proclam a a importância do movimento. Veja-se-lhe este tópico: «O esplritualismo de Farias Brito conduziu à estruturação da corrente neo-tomista, provavelmente a que abriga em seu seio maior número de pensadores. Partidários de Jacques M aritain 206
e divulgadores de sua obra ocupam a maioria das cadeiras nos
cursos de Filosofia, tanto das Universidades Católicas como das federais. Alimentam significativo movimento editorial e, embora pareçam divididos no plano político, formam uma corrente filosófica única. A persistência do positivismo e a hegemonia neotomista sobre o ensino da disciplina constituem a nota domi nante de nosso acanhado universo filosófico (15)». Para lembrar alguns nomes, no passado e no presente, mencionaríamos: Ludgero Jaspers, Castro Nery, A. B. Alves da Silva, Alexandre Correia, Antônio Alves de Siqueira, Leonel Franca, Saboia de Medeiros, Nélson Romero, Francisco Xavier Roser, Pedro Cerruti, Sebastião Tauzin, Armando Cámara, Aldo Obino, Geraldo Pinheiro Machado, Orlando Vilela, Lúcio dos Santos, Peixoto Fortuna, João Camilo de Oliveira Torres, Eduardo Prado de Mendonça, Ubaldo Puppi, Luís Castagnola, José van den Besselaar, Irineu Pena, Gustavo Corção, Alfredo Lage, Maurílio Teixeira Leite Penido. Quero, desta lista feita ao acaso da memória e inclusiva de vários centros nacionais (Rio, S. Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre), destacar algumas figuras. Leonel Franca aliou a erudição à profundidade e à pureza da linguagem. Foi, depois do bosquejo de Sílvio Romero, o primeiro sistematizador da história da Filosofia no Brasil, e deixou dois trabalhos com muita contribuição pessoal — A Crise do Mundo Moderno, em que argutamente analisa as conse qüências, nos nossos dias, da grande ruptura do século X VIII, e O Problema de Deus, obra póstuma.
(ls) História das Idéias Filosóficas no Brasil, S. Paulo, 1967,
ps. 252-3. 207
Antônio Alves de Siqueira é autor do melhor tratado
sobre Filosofia da Educação, baseada nos princípios de Aristó teles, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Ludgero Jaspers tem um bom compêndio de Filosofia e tra duziu toda a Summa contra Gentiles, do Doutor Angélico. Ubaldo Puppi, do Paraná, com Itinerário para a Verdade (1955), Prius Natura (1960) e A Intuição Intelectual e a Exis tência (1966) sagrou-se pensador seguro, arejado e rigoroso. Gustavo Corção, depois que trocou a Física e a Matemática pelas especulações filosóficas e teológicas, tem-nos dado impor tantes trabalhos, de que talvez se deva sublinhar As Fronteiras da Técnica, onde situa no verdadeiro lugar a Técnica e a Polí tica, sobretudo a partir da distinção aristotélica entre agir e fazer; e Dois Amores, Duas Cidades, longa, segura e percuciente análise da civilização moderna, onde mostra a decadência do pensamento límpido e voltado para o ser, desde o século XIV aos nossos dias, com as sucessivamente trágicas conseqüências que vem acarretando. Alfredo Lage, uma das nossas melhores cabeças filosóficas, deu-nos um excelente ensaio estético, A Revolução da Arte Moderna (1969), em que, à luz dos princípios tomistas, analisa as diversas experiências e realizações artísticas do Romantismo para cá; e recentemente publicou um suculento estudo sobre a falência do pensamento liberal, sob o título de A Recusa de Ser (1971), que deveria ser lido por quantos pretendem chegar às raízes da actual crise de cultura. Maurílio Teixeira Leite Penido é um pensador universal mente conhecido. Formado na Europa e por muito tempo pro fessor na Universidade de Friburgo, na Suíça, dedicou-se prin cipalmente à Teologia, mas granjeou a primeira linha dos Filó sofos tomistas com o arcabouço filosófico de Le rôle de Vanalogie en Théologie Dogmatique, com La méthode intuitive de M. 208
Bergson e com Dieu dans le bergsonisme. Logo depois da
Guerra de 39 foi para o Brasil, onde ensinou vinte e cinco anos, na Faculdade Nacional de Filosofía e no Seminário de São José, no Rio. * * *
Como já se viu pela citação de Antônio Paim, com a qual
estou de acordo, o pensamento actual brasileiro está dominado pelo neotomismo, pela mentalidade positivista e, acrescento eu, por um marxismo difuso, que tem suas origens mais remotas, parece, no ensino de Leónidas Resende (1889-1950) na Facul dade de Direito do Rio (então integrada na Universidade do Brasil). Leónidas transitou do positivismo ao marxismo, ou melhor, incluiu teses marxistas num esquema e estilo de pensa mento comtista. Outros depois estudaram e adoptaram sobretudo a visão marxista da História — aliás fácil de assimilar e supostamente aplicável a todas as culturas — com seu componente hegeliano do «processo». Mas pouquíssimos são os que realmente conhe cem o pensamento de Marx, na sua variada e complexa totali dade. Outra não é a opinião de Antônio Paim: «No Brasil, o estudioso do fenómeno depara-se com uma situação deveras curiosa: o marxismo jamais despertou qualquer movimento teórico de envergadura, nem antes nem depois da form ação do partido político que pretende encarná-lo. Nunca houve uma difusão sistemática dessa doutrina, não havendo sequer uma tradução portuguesa de O Capitai Observa-se, na verdade, um grande desinteresse pela teoria, entre aqueles que se dizem marxistas, a par de uma defesa intransigente das posições poli- 209
ticas trazidas à luz sob esse rótulo. A maioria dos chamados
engajados não sabe nem mesmo precisar o conteúdo de certos conceitos que emprega (10)». Fora dessas dominantes — positivismo, marxismo, neoto- mismo — existem pensadores singulares, que ou não se filiam a escolas, ou adoptam isolados posições desta ou daquela corrente. É o caso de Euríalo Canabrava (1903), que parece ter-se última mente inclinado para o empirismo lógico, depois de muita irre- quietude erudita. É o caso do exietencialismo de Vicente Fer reira da Silva (1916-1963) e, outrora, de Roland Corbisier. Miguel Reale poderia ser considerado partidário da «Filosofia do Valor», que tom a como eixo o homem e como fundamento da Ética a relação de «um eu» com «outro eu». Renato Cirell Czema, ligado a Reale, pode ser classificado como idealista. Outros seriam de difícil classificação, porque têm sido histo riadores e críticos do pensamento brasileiro. Tal é o caso de Luís Washington Vita, talvez fenomenologista, mas que, em todo caso, diz que, «em última instância, o que im porta na Filo sofia é a verdade (17)». Poderíamos também dizê-lo culturalista, posição em que, acrescentando, humanista, eu enquadraria um Djacir Meneses, sublinhanho ainda o nítido suporte hegeliano de seu inquieto pensamento, creio que próxim o de um grande desaguadouro, descoberto e definido por Santo Agostinho, logo no começo das Confissões: «fecisti nos ad te [Domine], et inquietum est cor nostrum, donee requiescat in te (l8)».
Aí está, creio, um balanço, sumário e maçudo, de nosso
pensamento filosófico, que, se por um lado, am plamente documenta e ilustra a chamada «dei da repercussão», form ulada por Alceu Amoroso Lima, demonstra, por outro, nos melhores casos, um fácil poder de assimilação da inteligência brasileira. Acompanhamos o velho mundo no bom e no mau, demons· trando assim estarmos integrados na civilização ocidental, no que ela tem de positivo e de negativo, nas suas palpitações de vida e nos seus sinais de agonia ou de esperança.