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Nova Águia. Revista de Cultura para o Século XXI, nº8 (2º Semestre, 2011), pp.

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65.

A QUESTÃO DA UNIVERSALIDADE DA FILOSOFIA


Maria Leonor L.O. Xavier
(Universidade de Lisboa)

«A filosofia é uma tradição grega»: tal foi o que afirmei no início de um curso
de introdução à filosofia medieval – latina –, há uns anos atrás, na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa. A minha afirmação causou de imediato uma reacção
misturada de perplexidade e escárnio num dos estudantes presentes, que tinha sido
educado em Inglaterra.
O estudante em causa alimentava a expectativa de encontrar na filosofia um
saber que, na actualidade e como que numa expressão de maturidade, pudesse
desenvolver-se autonomamente como uma ciência, suportada por amplos consensos da
comunidade científica, e, portanto, de valor universal, sem os liames culturais do
passado, que não reteriam hoje senão um interesse histórico, semelhante ao do folclore.
É verdade que a filosofia sempre procurou um alcance universal: fosse através
dos modelos de saber que criou, como ilustra, desde logo, o modelo aristotélico de
ciência; fosse através da busca de uma linguagem universal, como ilustram quer o
conceito medieval de verbo mental quer o intento bem mais recente de formalização de
doutrinas filosóficas, que alentou alguns sectores da filosofia do séc. XX, com base no
desenvolvimento da lógica formal.
Todavia, não é menos verdade, historicamente, que a filosofia nunca logrou esse
almejado alcance universal pelos meios que forjou.

Frustrações da filosofia e lições da história

Nem alguma vez a filosofia realizou os modelos de saber que idealizou. Desde
logo se confrontou Aristóteles com a inviabilidade de fazer caber no seu modelo de
ciência – saber deduzido de premissas universais e necessárias – quer a prudência, a
sabedoria prática que lida com as deliberações e acções individuais, quer as grandes
questões da especulação humana, como saber se há espírito para além da matéria ou se o
mundo existiu desde sempre.
Muitos séculos volvidos sobre a antiguidade clássica de Aristóteles, um outro
vulto incontornável da história do pensamento ocidental, Kant, na madurez da
modernidade, experimentou a frustração de verificar que a metafísica não progrediu, ao
longo dos tempos, como a lógica ou as ciências matemáticas. Daí o seu portentoso
empreendimento de encontrar, através da crítica da razão pura, o fundamento da
impossibilidade da metafísica como ciência: nem a essência das coisas nem a existência
delas podemos nós conhecer pela razão pura, à qual cabe apenas regular o conhecimento
provindo da experiência.
Na esteira de Kant, múltiplas foram as proclamações da morte da metafísica na
filosofia do séc. XX.
A filosofia nunca cumpriu os seus modelos de saber universal. Usando um
aforismo corrente, dizemos que a razão disso não é, porventura, defeito, mas feitio.

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Na verdade, as orientações de fundo, que sustentam as mundividências
filosóficas, não são verdades apodícticas, nem posições consensuais, são apenas
admissões ou suposições plausíveis para uns e implausíveis para outros. Tal é o que
marca a filosofia, na sua base ou raiz, de um carácter inelutavelmente conjectural.
A filosofia também não comprova as suas posições consequentes pelos meios da
experimentação científica, tecnicamente assistida, porque as questões filosóficas, de
largo alcance, não são precisamente formuláveis como problemas tecnicamente
resolúveis.
Por conseguinte, não é possível reunir consensos sincrónicos de uma
comunidade filosófica, em torno quer de princípios quer de posições derivadas da
filosofia, ao contrário da ciência, em que é possível reunir consensos, mesmo que
provisórios, na comunidade científica em torno de hipóteses e de resultados.
É, entretanto, usual encontrar convergências de forma e conteúdo em filosofia,
em escolas, correntes ou tradições. Tanto a escola estóica, na antiguidade, como a
corrente da fenomenologia ou a tradição da filosofia analítica, na actualidade, ilustram
convergências sectoriais em filosofia. Não raramente, porém, tais convergências
sectoriais tendem a reclamar exclusividade, excluindo as outras como não-filosofias.
Não é, pois, senão uma universalidade menor, ou de espécie, aquela que uma
convergência sectorial alcança mediante uma atitude excludente. O universo da espécie
é, por sua vez, aquilo que é propriamente susceptível de definição. Todavia, não é fácil
definir a especificidade de uma escola ou corrente filosófica: se tal for feito a partir de
dentro, por um membro da escola ou corrente, não é seguro que obtenha o consenso dos
demais; e se tal for feito a partir de fora, o mais seguro é que daí resulte uma rotulação
exterior e pouco fidedigna ao espírito da escola.
Acresce que os maiores, entre os grandes filósofos, não são propriamente
membros de escolas, ainda que sejam fundadores, inspiradores e feitores de muitos
seguidores, tal como Platão fundou a Academia e Aristóteles é o inspirador de todos os
peripatéticos da história da filosofia. De facto, sob a égide de grandes figuras, é também
plausível encontrar duradouras linhas de convergência em filosofia. Contudo, tais linhas
pendem da extrema singularidade das filosofias inspiradoras, a que também chamamos
“genialidade” e “originalidade”. A filosofia almeja um saber universal, mas não alcança
larga e persistente audiência senão a partir de casos extremamente singulares.
Também os grandes filósofos, não obstante a sua irredutível singularidade, são
susceptíveis de serem agregados em amplas famílias de pensamento, em nome da
partilha de princípios ou posições de fundo, que aproximam entre si as respectivas
mundividências. No entanto, essas famílias de pensamento necessitam de tempo para se
constituírem; elas formam-se diacronicamente, pelo que a tarefa de as reconhecer é
própria do historiador da filosofia. Trata-se de uma tarefa inteiramente a posteriori, i.e.,
com base na experiência histórico-cultural da filosofia.
De facto, todas as formas de unidade da filosofia, todas as fórmulas de
agregação dos filósofos, sincrónicas ou diacrónicas, são resultantes da história da
filosofia, quer na sua realidade quer na sua interpretação. É certo que a história da
filosofia é o domínio da diversidade irredutível da filosofia – distintamente da história
da ciência, legível do ponto de vista dos erros superados pelo o progresso da ciência –,
mas também, e paradoxalmente, o solo real das convergências precárias da filosofia, ou
das suas formas de unidade apenas prováveis.
Por tudo isto, o valor da universalidade em filosofia fica tão aquém das suas
realizações singulares e históricas quanto a sabedoria de que ela se diz amor.

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Em busca de uma linguagem universal

Uma outra via de realização do valor da universalidade em filosofia é pela busca


de uma linguagem universal.
A linguagem da filosofia era a língua grega enquanto o mundo da filosofia era
grego, até ao fim do período helenístico, perdurando como língua culta da filosofia nas
regiões da bacia do Mediterrâneo oriental sob o domínio do império romano. Mas a
filosofia grega veio a cativar povos de outras línguas, como os próprios romanos, e veio
a cruzar-se com religiões de outras culturas, como o judaísmo e o cristianismo, e, mais
tarde, o islamismo. O acolhimento da filosofia, fora do seu berço grego, noutros povos,
culturas e tradições, trouxe-lhe a possibilidade de dizer-se noutras línguas.
Os filósofos gregos clássicos, como Platão e Aristóteles, haviam já reflectido
sobre a mediação da linguagem no conhecimento da realidade, quando a linguagem em
causa era a própria língua grega. Ambos os filósofos denunciaram limitações nessa
mediação: Platão admitiu que há uma dose de convenção na composição dos nomes,
que os torna menos conformes com as coisas nomeadas; Aristóteles reconheceu que há
mais coisas do que palavras, de modo que estas não podem dar plena conta da
diversidade do real.
Acresce a pluralidade das línguas: como avaliá-la filosoficamente? Será factor
de positivo ou negativo no conhecimento da realidade?
No nosso contexto civilizacional, o mito mais influente sobre a diversidade das
línguas, é o mito judaico-cristão da torre de Babel: em punição do pecado de orgulho do
homem, simbolizado pela construção da torre, Deus confundiu os homens mediante a
pluralização das suas línguas. Esta pluralização obtém, assim, as conotações negativas
de punição e de desentendimento entre os homens. Correlativamente, emerge o ideal de
uma língua única e universal para todos os homens, que resgate o bem perdido em
Babel.
Este mito entrou para a filosofia através dos mentores do cruzamento desta com
a tradição judaico-cristã, entre os quais Agostinho. Este Padre latino da Igreja foi
também um retórico e um filósofo da linguagem, que, não obstante saber já pouco de
grego, lidou com o problema da diversidade das línguas bíblicas na transmissão da
mensagem cristã.
Reflectindo sobre a relação entre as palavras e as coisas, Agostinho admitiu a
necessidade da convenção, a fim de fixar a relação de semelhança entre as palavras e as
coisas, dado que uma relação de semelhança pode dar-se de muitos modos.
Concordantemente, há várias palavras para significar a mesma coisa no âmbito de uma
mesma língua, porque cada palavra não diz senão um aspecto do conhecimento da
coisa, como “ser visível” e “ter cor” dizem propriedades distintas do mesmo universo de
coisas. Talvez não haja, por isso, palavras rigorosamente sinónimas numa mesma
língua. Tal relação de sinonímia pode, no entanto, estabelecer-se entre palavras
correspondentes de línguas distintas, permitindo a tradução e a constituição de
dicionários, o que Agostinho valorizou, juntamente com o conhecimento das línguas,
seja, especialmente, ao serviço da divulgação da Bíblia, seja, em geral, ao serviço da
comunicação entre os homens. Com efeito, estes inventaram a linguagem a fim de
tornarem comunicáveis entre si os seus espíritos invisíveis.
A unificação das línguas, através da tradução, é, porém, um processo
interminavelmente laborioso de redenção do pecado humano que motivara a
pluralização das línguas, em contraste com a graça excepcional, que constituíra o dom
das línguas recebido pelos Apóstolos no dia de Pentecostes. Através da graça, o
cristianismo afirmava, assim, a sua vocação universalista.

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Por sua vez, Agostinho trouxe para primeiro plano, no domínio da filosofia da
linguagem, a ideia de uma linguagem interior da mente: o verbo mental. Este era
concebido como uma linguagem do conhecimento, à imagem do Verbo divino, que
conhece exemplarmente todas as coisas da Criação. Também à imagem do Verbo
divino, que se fez carne em Jesus Cristo, o verbo mental faz-se voz audível na
linguagem verbal significante. Esta é, pois, a expressão sensível do verbo mental.
Concebido à imagem do modelo divino, o verbo mental obtém dois papéis de relevo na
filosofia da linguagem: por um lado, ele é origem da linguagem verbal exterior,
interpondo o factor do conhecimento na relação entre as coisas e as palavras; por outro
lado, ele é a linguagem comum do conhecimento humano, prévia à diversidade das
línguas. Com efeito, a fala, em qualquer língua, não seria eficaz na comunicação, se não
despertasse na mente do ouvinte um conhecimento comum ao falante, i.e., o mesmo
verbo mental. Este habilita-se, assim, a constituir uma linguagem mais universal do que
qualquer língua falada.
O tema da linguagem interior da mente foi reiteradamente glosado na filosofia
posterior, não só medieval (C. Pannacio, Le Discours Intérieur de Platon à Guillaume
d’Ockham, 1999) como também contemporânea, especialmente, na filosofia analítica (J.
Fodor, The Language of Thought, 1975; Psychosemantics, 1987). Neste âmbito,
colocou-se o problema de saber se existe uma linguagem interior da mente com uma
estrutura composicional análoga à da fala. Só, nesse caso, se tratará, em rigor, de uma
linguagem.
Mas, seja ou não seja verdadeiramente uma linguagem nesta acepção, a
linguagem interior não logrou mais do que ser um objecto de reflexão. Se um dos
principais motivos de formulação de tal objecto de reflexão fora a busca de uma
linguagem universal, e mesmo que a linguagem interior possa ser reconhecida como
uma linguagem universal da mente aquém da fala, não é senão através de formas
comportamentais, da fala inclusive, que ela se exterioriza e dá indício de si. Não se
trata, por isso, de uma linguagem de comunicação.
Em sentido inverso ao da busca de uma linguagem universal, filósofos da
linguagem houve que colocaram o problema de saber se uma linguagem, como um
sistema de regras, pode ser privada. Lembro-me de ter estudado este problema da
existência de uma linguagem privada durante parte significativa do período lectivo de
um seminário de pós-graduação que, em tempos idos, tive oportunidade de fazer.
Volvidos alguns anos, apercebi-me da total ociosidade do problema.
Agostinho, antigo retórico em fase de auto-crítica, teve alguma razão em fazer
ver que a linguagem, como sistema de signos, é constitutivamente vocacionada para
tratar de outras coisas que não dela própria, não obstante a reconhecida capacidade
metalinguística da linguagem verbal. Por essa razão, e ainda que marque presença na
história da filosofia da linguagem, Agostinho ensina-nos concomitantemente o
descentramento da linguagem entre os motivos da reflexão filosófica.
Entretanto, a busca de uma linguagem universal teve um outro desenvolvimento
não menos relevante.
Na filosofia clássica grega, Aristóteles criou o instrumento de construção de
todo o saber: a lógica. A lógica silogística de Aristóteles tornou-se a linguagem comum
do saber. O filósofo criou-a na língua grega, mas, de acordo com as vicissitudes da
história das ideias, a lógica passou definitivamente para a latinidade, vindo a enformar a
o estilo da filosofia escolástica (universitária) europeia, ao longo da sua história.
Após a sua concepção aristotélica, a lógica evoluiu com múltiplos outros
contributos, e através da aproximação de outras disciplinas. Se, em contexto escolástico,
a lógica se enriqueceu com a aproximação concorrencial da gramática, nos tempos

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modernos, o progresso da lógica beneficiou da aproximação contaminadora das ciências
matemáticas. A lógica moderna é uma lógica matemática. Da matematização da lógica
decorreu a sua formalização. A lógica matemática é uma lógica formal. Ainda que este
processo comporte a pluralização e a relativização das lógicas, o efeito que maior
impacto e fascínio exerceu na filosofia foi o da formalização.
De facto, a lógica formal contaminou a filosofia com o desejo de formalização.
Este desejo pode ser considerado a forma mais recente da busca de uma linguagem
universal do saber, convertendo-se numa crença filosófica marcante do pensamento do
séc. XX. A crença na formalização das doutrinas filosóficas parece trazer duas
vantagens aliciantes: a possibilidade de corrigir os erros lógicos das filosofias do
passado; e a reviabilização da filosofia como ciência, à semelhança das ciências exactas.
Todavia, estamos na segunda década do séc. XXI e podemos perguntar: ter-se-á
realizado efectivamente algum destes propósitos? Os melhores prognósticos não se
verificaram.
A formalização da filosofia, do passado ou do presente, é um objectivo falhado.
A filosofia é irredutível a uma ciência formal, porque não é só forma (lógica), mas
irredutivelmente conteúdos (teoréticos, éticos, etc.). Muitos conteúdos até podem ser
representados por símbolos e integrados em processos de derivação lógica, mas nem
todos são logicamente dedutíveis, porque há sempre alguns conteúdos mais primitivos
que outros, cuja aceitabilidade não é logicamente decidível. O próprio Aristóteles
admitiu a necessidade de princípios indemonstráveis no seu modelo demonstrativo de
ciência. De modo similar, também nós nos rendemos à existência de conteúdos
irredutíveis à formalização em filosofia.
Por esta razão, não nos tenta a ilusão da lógica matemática como linguagem
universal da filosofia. Permita-se-nos uma comparação: tal como a interessante tentativa
de unificar as línguas eslavas do nordeste da Europa, através de uma língua artificial, o
esperanto, não conseguiu substituir as línguas naturais, assim também a sedutora ideia
de reduzir a filosofia à linguagem formal da lógica não conduziu à superação das
línguas culturais da filosofia.

As línguas culturais da filosofia

A filosofia nunca se expandiu de facto senão por via das línguas cultas, isto é,
culturalmente enraizadas, em que se exprimiu.
Primeiro, foi a língua da cultura grega, que se espalhou por toda a bacia do
Mediterrâneo durante o período helenístico, inclusivamente sob o poder imperial de
Roma. Nem sempre a língua da cultura coincide com a língua do poder. Foi, no entanto,
a partir dessa época de expansão da cultura grega que a filosofia, então já uma herança
cultural e uma tradição de escolas, transmitiu os seus próprios valores à posteridade do
mundo ocidental.
A cultura romana integrou à sua maneira esses valores na língua latina. Para
além dos estóicos e dos atomistas latinos, como sejam, respectivamente, Marco Aurélio
e Lucrécio, dois romanos de épocas diferidas entre si, Cícero e Boécio, contribuíram
decisivamente para verter em latim a linguagem conceptual da filosofia grega. Entre um
e outro, o maior dos Padres latinos, Agostinho, que sabia pouco de grego, escreveu em
latim o seu pensamento filosófico de inspiração neoplatónica e cristã, e tornou-se um
dos principais mestres da filosofia medieval latina.
A filosofia passara definitivamente para o ocidente europeu, latinizado e
cristianizado através da expansão ocidental do império romano. O primeiro

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renascimento medieval, liderado por Carlos Magno, procurou restaurar em Paris o
antigo fulgor cultural e Atenas e Roma. Nos sécs. XII e XIII, o avassalador
renascimento de Aristóteles, em grande medida potenciado pela mediação da cultura
árabe, aristotelizou a filosofia das jovens Universidades europeias. Aí se criou o latim
escolástico, conceptualmente aristotélico, que havia de perdurar, ao longo de muitos
séculos, como língua das elites universitárias europeias. Com efeito, o latim logrou
constituir a língua culta e comum da filosofia europeia até aos fins da modernidade. O
latim trazia os genes da filosofia grega no seu código cultural.
Contudo, durante os séculos em que o latim permanecia língua universitária e
eclesiástica, desenvolveram-se as línguas vernáculas dos povos europeus, muitas delas
de origem latina. A pouco e pouco as novas línguas foram ganhando direito de
cidadania na cultura filosófica. Descartes, no séc. XVII, escreve não só em latim como
também já em francês. Nos sécs. XVIII e XIX, afirma-se no seu maior vigor a filosofia
de língua alemã. O séc. XIX é, aliás, o século da formação de muitas das nações
europeias, marcado pelas lutas de conquista da autonomia política dos respectivos
povos. Ao valor político da nação, une-se o valor cultural da língua que exprime o
espírito de um povo. As línguas nacionais foram ganhando terreno ao latim institucional
na expressão da cultura dos povos, da filosofia inclusive.
A repercussão que o valor das línguas e das culturas nacionais pode ter na
concepção da filosofia é o que dá origem à questão das filosofias nacionais. Trata-se da
questão de saber se as culturas nacionais imprimem diferenças significativas e
valorizáveis na filosofia. Os defensores das filosofias nacionais valorizam obviamente
tais diferenças culturais. A eles se opõem, porém, os defensores do valor universal da
filosofia, mesmo que as realizações da história da filosofia permaneçam muito aquém
da realização de tal valor. Entre uns e outros, vamos tentar o nosso discernimento na
questão.
Cabe salientar, antes de mais, que Portugal, apesar de ser uma das nações mais
antigas da Europa, não formulou senão muito tardiamente na sua história a questão das
filosofias nacionais. Tal aconteceu, já na década de 40 do séc. XX, sobretudo por
iniciativa de Álvaro Ribeiro, que foi também um dos mais vigorosos defensores da
existência de uma filosofia portuguesa (O Problema da Filosofia Portuguesa, 1943).
Tal aconteceu também em tempos de isolamento político e cultural de Portugal
relativamente ao resto da Europa. Ainda que não fosse uma causa oficial, a defesa da
filosofia portuguesa enquadrava-se bem no nacionalismo conservador que caracterizava
ideologicamente o regime político do Portugal de então. Não seria, pois, de esperar que
a revolução do 25 de Abril e a abertura à Europa, que se lhe seguiu, viessem a promover
a causa da filosofia portuguesa.
O argumento mais ponderoso dos que não reconhecem a existência de uma
filosofia portuguesa é o da ausência de uma tradição filosófica em Portugal, incluindo
instituições e figuras ilustres, como se pode encontrar na Alemanha, em Inglaterra ou
em França. Portugal pode ter tido outras prioridades que não a filosofia, ao longo da sua
história: nos séculos medievais, XII e XIII, tempo de formação e afirmação, o reino
apostou sobretudo na conquista e consolidação do seu território, enquanto no centro e
norte da Europa floresciam as primeiras Universidades; depois foi a audácia das
navegações e a descoberta de outras terras e povos; a primeira Universidade só é
instituída em Portugal no séc. XVI, e os seus mestres, em grande parte formados nas
Universidades europeias, já têm de se confrontar com a censura da Inquisição; no séc.
XVIII veio o Marquês de Pombal e acabou com a Inquisição, mas perseguiu os Jesuítas,
que então eram responsáveis por grande parte da rede de ensino em Portugal; etc.
Podíamos continuar a tentar encontrar razões nas vicissitudes da nossa história para a

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indigência filosófica portuguesa. A verdade, porém, é que tais vicissitudes não
impediram uma forte tradição literária e poética, que ninguém põe em causa.
A verdade também é que a questão datada da existência de uma filosofia
portuguesa teve por consequência, a médio prazo, o reconhecimento e o estudo dos
autores portugueses em filosofia, ao longo dos séculos da nossa história. O
levantamento está hoje feito e o património filosófico português não é tão pobre quanto
por ignorância se possa julgar. O povo português não é avesso ao pensamento
especulativo, e seria de estranhar que o fosse, uma vez que a língua portuguesa,
enquanto língua latina, traz no seu código cultural, os genes da filosofia grega.
Atentando bem, o conceito de filosofia nacional é uma abstracção como muitas
outras. Uma filosofia nacional não é constituída senão pelas escolas e os pensadores
notáveis de determinada cultura, e o maior alcance da produção destes protagonistas não
é exprimir a cultura envolvente para auto-contemplação e consumo interno, mas sim
ultrapassar fronteiras e cativar outros para além do seu meio e até do seu tempo. Tal foi
o alcance mais universal dos grandes filósofos do passado que integram a galeria de
figuras ilustres da história da filosofia.
Mas é claro que Platão não escreveu senão como um grego tal como Hegel não
escreveu senão como um alemão. A cultura da língua grega é tão indissociável da
filosofia de Platão quanto a cultura da língua alemã é indissociável da filosofia de
Hegel. A cultura das línguas ou as línguas culturalmente informadas são uma condição
incontornável da produção filosófica em qualquer lugar ou em qualquer tempo. A
filosofia é uma produção culturalmente situada, e é-o inelutavelmente. A questão das
filosofias nacionais teve para nós o mérito de chamar a atenção para esta condição
necessária da filosofia.
Os mais recentes estudos sobre a linguagem confirmam que as línguas são
portadoras de um conhecimento cultural inegável (F. Sharifian, Cultural
Conceptualisations and Language, 2011). A condição cultural das línguas, por um lado,
e por outro, a importância da comunicação na era da globalização colocam hoje de novo
em questão a escolha da língua para a escrita da filosofia. Já não se trata da escolha
entre uma língua erudita tradicional, como o latim, e uma língua vernácula em ascensão;
trata-se, agora, da escolha entre a língua de viagem e da comunicação, da informática e
da divulgação do saber de ponta, que é o inglês, e a língua materna da cultura pátria, por
vezes, já em luta de sobrevivência. Não é este o caso do português, que é uma língua
comum a todo o mundo lusófono.
Há, no entanto, uma forte tendência actual no espaço português, estimulada
pelas instâncias oficiais, para a adopção de outras línguas nas produções científicas dos
autores portugueses. É o critério da internacionalização que mais valoriza os currículos
dos académicos. Há também escolas em filosofia, como a filosofia analítica, que
valorizam o inglês como língua filosófica. Esta valorização é uma escolha, mas não é a
escolha de uma língua culturalmente asséptica para a realização da filosofia como
ciência; é, sim, uma opção cultural. Na verdade, a filosofia analítica é culturalmente
anglo-saxónica; ela pode seduzir muitos espíritos de outras culturas, mas não é
culturalmente neutra.
Há alguns anos, num colóquio de filosofia realizado no Porto, lembro-me de ter
ouvido um investigador português no estrangeiro dizer que a língua portuguesa não
tinha vocabulário para traduzir os termos técnicos da sua área, as ciências da mente. De
imediato, questionei-me: por que é que ele não assume a tarefa de criar esse
vocabulário, a fim de constituir o português técnico necessário às disciplinas da sua
área? A língua portuguesa tem recursos para isso, até recorrendo à sua matriz latina. É
que a língua portuguesa não fazia parte da opção cultural prioritária daquele português.

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Na questão da escolha da língua para a escrita da filosofia, a nossa decisão é
também uma opção cultural, a saber, a aposta no português também como uma língua
filosófica. Tem tudo para o ser. Como língua latina, o português comporta, no seu
código cultural – já o dissemos – os genes da filosofia grega. Como língua comum do
mundo lusófono, o português tornou-se uma língua multicultural, capaz, não só de
resistir à expansão do inglês, como, sobretudo, de integrar os múltiplos contributos
conceptuais das culturas que atravessa, que potenciam uma compreensão mais
abrangente do mundo em que vivemos.

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