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filosofia da educação

texto 1

POR UMA DEFINIÇÃO FILOSÓFICA DA


EDUCAÇÃO
contribuições da filosofia para pensar o fazer educativo

Haveria, ainda hoje, sentido em se buscar a filosofia para definir a educação? O que

teria, atualmente, a filosofia a contribuir para a teoria sobre a educação?

Para aqueles que a ela não foram introduzidos, a filosofia passa freqüentemente por ser

um conhecimento abstrato e distante de tudo o que se vive, e o seu ensino uma longa

enumeração de respostas que autores do passado remoto forneceram a questões que não são

mais as nossas, que jamais nos ocorreria interrogar. Em uma palavra, um conhecimento… inútil

e enfadonho, e ainda por cima muito difícil de ser apreendido.

Se hoje essa maneira de ver as coisas se apóia em velhos preconceitos e em um certo

acomodamento mental, isso nem sempre foi assim: no passado, longe de nascer das

resistências que a reflexão pode engendrar face ao imediatismo e à rapidez que nosso estilo de

vida comporta atualmente, ela se constituiu numa reação contra o poder dogmático que em

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nome da filosofia foi exercido pelo Estado, pela tradição ou pelos religiosos. A substituição da

antiga autoridade filosófica pelas referências provenientes do saber científico consolidou-se no

século passado, em função da crescente confiabilidade que esse último alcançou, e foi

finalmente selada, em nossos tempos, pela definitiva adoção da identidade que as «ciências da

educação» passaram a conceder à pedagogia.

Assim, resume Franco Cambi, no século XX o saber pedagógico se emancipou do modelo

metafísico que, desde a antigüidade até pelo menos o século XVII, dominou a educação,

fornecendo definições acabadas sobre sua natureza e seus fins.

…o declínio do modelo metafísico da pedagogia (…) tinha começado


entre os séculos XVII e XVIII, com Locke, aumentando depois com
Rousseau e Kant, com o romantismo e o positivismo, para expandir-se
em nosso século, onde permaneceu como apanágio de posições… como
o idealismo, como o pensamento católico, neoescolástico ou
espiritualístico). A centralidade da especulação filosófica como guia da
pedagogia foi substituída no pensamento contemporâneo pela
centralidade da ciência, e de uma ciência autônoma, cada vez mais
autônoma em relação à filosofia.1

A concepção histórica que Cambi defende para a pedagogia – a concepção científica –

manteve-se largamente dominante na educação a partir da modernidade, sobretudo no que se

refere à definição da prática educacional, que teria sido libertada da dependência das verdades

definidas de uma vez por todas pela metafísica. Antes, o fazer educativo era apenas um espaço

de aplicação das leis e determinações absolutas engendradas pela especulação; com o advento

da ciência, introduz-se uma atitude radicalmente diferente, que enfatiza e valoriza a criação e

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Franco Cambi, História da Pedagogia. São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p. 402.
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experimentação de novos métodos e procedimentos técnicos para o ensino, tanto quanto para

a administração da educação escolarizada.

Na definição cientificista da educação, o fazer educativo é campo de permanente

exploração das ciências humanas – feitas, agora, «ciências da educação». Assim, a influência da

filosofia foi sendo substituída pela autoridade do conhecimento científico, que, à medida que

vai se especializando e complexificando, passa a fornecer tantas definições para a educação

quantos são os ramos da ciência e, em seu interior, as correntes assumidas pelos cientistas.

Para muitos, isso representou a superação definitiva do pensamento filosófico, como

fonte de construção dos sentidos do que é a educação, de suas finalidades, de como e porque

se deve ensinar. E, de fato, para muitos, sem o aval que a crença numa verdade absoluta e

incorruptível lhe outorgava, isso é, sem poder recorrer à autoridade metafísica, que a ciência

havia destronado, a filosofia teria que ter seu papel definitivamente reduzido. De disciplina

específica e soberana, que anunciava as verdades que nada nem ninguém poderia contestar,

tudo a que ela poderia aspirar, de agora por diante, era ao posto de uma reflexão que as

ciências deveriam manter sobre sua própria prática – sobre seu método, sobre sua coerência

interna, sobre a validade de seus argumentos, definições e deduções, em sua contextualização

histórica. A filosofia havia se transformado em apenas um momento do fazer metodológico do

investigador.

Mas, paralelamente a essa redução a que foi submetida pela ciência, que a tornou uma

etapa especializada de seu fazer investigativo, a filosofia se viu – como, por exemplo, no caso da

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política e da educação – objeto do movimento oposto, que a ampliou de uma forma inaudita.

Assim, no início do século, Antonio Gramsci proclamava: «todos são filósofos»!2 No campo da

educação, a concepção gramsciana de filosofia exerceu uma enorme influência, sobretudo a

partir dos anos 1980, vindo somar-se a uma tendência mais antiga, de designar como filosofia

não mais uma atividade conscientemente realizada, mas, genericamente, um «modo de ser» de

um indivíduo ou de um grupo:

Na medida de nossas forças, construímos, então, uma filosofia e a ela


nos acomodamos, tão bem como tão mal, em nossa ânsia e inquietação
de compreender e de pacificar o espírito. Tais filosofias individuais não
se articulam, porém, em sistemas filosóficos. Esses, quando não são
criações pedantes de gabinete, mas expressões reais de filosofia,
representam e caracterizam uma época, um povo ou uma classe de
pessoas. Porque, no sentido realístico de que falamos de filosofia, tal
seja a vida, tal seja a civilização, tal será a filosofia. A filosofia de um
grupo que luta corajosamente para viver, não é a mesma de outro cujas
facilidades transcorrem em uma tranqüila e rica abundância. Conforme
o tipo de experiência de cada um, será a filosofia de cada um.3

Ou, como resumiu o autor dessas palavras, o educador Anísio Teixeira: «conforme o tipo

de experiência de cada um, será a filosofia de cada um»4. Face à decadência dos grandes

sistemas teóricos e das verdades que produziam, a filosofia já pode ser confundida com a

própria «a atividade de pensar»5.

2
Antonio Gramsci, Introdução ao estudo da filosofia e do materialismo histórico. Alguns pontos de referência
preliminares, in Obras escolhidas. Lisboa: Editorial Estampa, 1974, p. 25.
3
Anísio Teixeira, Pequena introdução à filosofia da educação – A Escola Progressiva ou A Transformação da Escola.
6 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 170)
4
Id., ibid., p. 170.
5
Id., ib., p. 168.
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É bem verdade que essa definição mais «democrática» da filosofia rompia com o

elitismo que consistia em reservar o saber a uma pequena elite afastada do cotidiano dos seres

«comuns»; mas, em contrapartida, ao naturalizar a prática filosófica – isso é, ao supor que a

filosofia se realiza sempre e em toda parte, espontâneamente, sem que seja necessária

qualquer decisão deliberada, ao identificar inteiramente a cultura de um povo a uma filosofia –

essa tendência por ocultar o que significou, em sua origem, a invenção da filosofia. Pois a

filosofia não começou como um «pensar» genérico, nem apareceu do movimento irrefletido

pelo qual as sociedades se constróem estabelecendo valores, normas, costumes e finalidades

comuns: sua invenção está historicamente ligada à invenção da democracia, correspondendo ao

projeto de crítica e superação dos dogmas e das dominações, ao projeto de autonomia. Decerto

esta vocação original da filosofia foi muito cedo interrompida, para começar com a escola

platônica, que se opôs firmemente a mais de duzentos anos de tradição democrática; e não há

como negar que a história da filosofia é uma história elitista. Mas também é preciso dizer que

foi como luta contra este elitismo que as mais belas páginas filosóficas foram escritas. Há que se

temer que a naturalização da filosofia leve não só a desperdiçar esse rico patrimônio que é o de

nosso pensamento, mas, o que é ainda pior, a que nossa atualidade rompa definitivamente com

ele, tornando-se cegamente submissa aos novos dogmas e dominações de nossa sociedade.

Definida como atividade plenamente inserida na vida cotidiana de cada um –

pesquisador ou homem comum, a filosofia torna-se o campo das escolhas, dos valores. Mas –

questão que os filósofos nunca deixaram de fazer – em que então a filosofia, a reflexão, se

apoiaria, para fundamentar essa decisão? Como, para a modernidade, a filosofia só é atividade

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especializada se ela se fizer «científica», a resposta mais evidente é: ela deveria se amparar na

crítica racional, na razão científica que se emancipou do dogmatismo metafísico. Considerando

a imensidão do terreno sobre o qual se debruça o «pensar» e o agir humano, como garantir, em

toda parte e sempre, o domínio das regras científicas? É preciso convir que é impossível fazer

caber a realidade humana nos estreitos limites da racionalidade científica. Assim, deduz Anísio

Teixeira, tudo que não decorre das certezas rigorosas da razão, deve ser comparado à arte, à

profecia… à crença:

A filosofia não busca verdade no sentido estritamente científico do


termo, mas valores, sentido, interpretações mais ou menos ricas de vida.
Vai às «causas últimas» para usar a velha expressão, porquanto nos
deve levar à compreensão mais larga, mais profunda e mais cheia de
sentido que for possível obter, do universo, à vista de tudo que o
homem fez e conhece na terra. A filosofia tem, assim, tanto de literário
quanto de científico. Científicas devem ser as suas bases, os seus
postulados, as suas premissas; literárias ou artísticas as suas conclusões,
a sua projeção, as suas profecias, a sua visão. E, nesse sentido, a filosofia
se confunde com a atividade de pensar, no que ela encerra de
perplexidade, de dúvida, de imaginação e de hipotético. Quando o
conhecimento é suscetível de verificação, transforma-se em ciência, e
enquanto permanece como visão, como simples hipótese de valor,
sujeito aos vaivéns da apreciação atual dos homens e do estado
presente de suas instituições, diremos, é filosofia.6

Haveria, pois, uma produção científica da educação que teria por tarefa a identificação

de determinações observáveis, de regularidades verificáveis, de explicações capazes de dotar o

fazer educativo de instrumentos de controle, de predição e de planificação; e haveria, também,

uma produção filosófica da educação, que, mantida e apoiada pela própria racionalidade

científica, estaria presente e atuante nas «ciências da educação». Quanto àquilo que a razão

6
Id., ibid., p. 168.
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não pode afiançar, essa seria uma elaboração filosófica que, não podendo se converter em

ciência, deveria permanecer como intuição, como «visão», como «hipótese de valor».

É que, a partir da modernidade, a educação – como tantos outros domínios da vida

social – esteve inteiramente subjugada pela valorização do saber, ou dos saberes científicos.

Essa confiança na razão foi tão desmesurada que aquilo que se apresentara originalmente como

resposta de ruptura do dogmatismo da metafísica, acabou por se tornar como um novo dogma.

E, tal como ocorrera com a filosofia, ainda que abrindo espaço para muitos inegáveis avanços, a

ciência não tardou a pretender apresentar-se como saber absoluto.

Especialmente no campo das ciências humanas, e muito particularmente na formação

humana, a aspiração a um saber totamente objetivo, a pretensão à certeza, ainda que

disfórmica e conflituosa, sobre o enigma humano, sobre o enigma da educação estão na base

do dogma científico e toda a mistificação em torno dos «métodos» geniais, das «técnicas» todo-

poderosas e das «tecnologias» milagrosas.

Ora, da insistência – anteriormente metafísica e, na modernidade, científica – na

identificação de fontes legítimas para a explicação, o controle e a predição do sentido humano e

social resulta a incapacidade de lidar com o que não pode ser inteiramente determinado,

definido de antemão, resulta também a tendência a querer eliminar totalmente do horizonte de

nossas preocupações o processo pelo qual o homem cria, continuamente, social e

coletivamente, as determinações para seu modo de existência individual e coletiva.

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De modo que se, sob a influência científica, o fazer educacional de fato se «emancipou»

das concepções dogmáticas da filosofia, que o reduziam a mero terreno de aplicação de suas

verdades, foi só para melhor se submetê-lo ao domínio da autoridade científica – que, ela

também, pretendeu estabelecer, antecipadamente, as regras e os procedimentos pelos quais a

educação deveria forçosamente se pautar.

Assim sendo, a natureza indeterminada e indeterminável do fazer educativo, pela qual

ele existe como criação permanente de um sentido sempre singular, e como deliberação

racional e razoável que só a liberdade pode colocar em perspectiva, acabou mais uma vez sendo

ocultada.

A democracia é o projeto de romper o fechamento em nível coletivo. A


filosofia, que cria a subjetividade com capacidade de refletir, é o projeto
de romper com o fechamnto do pensamento… O nascimento da filosofia
e o nascimento da democracia não coincidem, eles co-significam. Ambos
são expressões e encarnações centrais do projeto de autonomia.7

Portanto, sob a perspectiva democrática, isso é, à luz do projeto de autonomia individual

e coletiva, a filosofia não é a atividade espontânea pela qual as sociedades criam seus costumes,

valores, representações e finalidades, mas a forma sistemática e deliberada de interrogar esta

criação. Ela é a busca de definição, em primeiro lugar, do espaço que cabe à deliberação e à

iniciativa humana: individualmente, como decisão que constitui a conduta ética; e,

coletivamente, como política, nessa acepção que, em grande escala, o autor mencionado

compartilhava com Hannah Arendt.

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Cornelius Castoriadis, «O fim da filosofia?» in Encruzilhadas do Labirinto III – O Mundo fragmentado. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 235.
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Do ponto de vista, ainda, da democracia, tampouco a crítica da modernidade ao

pensamento metafísico pode ser avaliada pelo que dela resultou, ou pelo seu «fracasso»: mais

do que um acontecimento meramente intelectual, à modernidade corresponderam conquistas

sociais que a tornaram um momento muito especial de criação social-histórica. Nesse

momento, e após muitos séculos, a definição filosófica da educação voltou a buscar, na

radicalidade de sua tradição de questionamento, seu caráter eminentemente instituinte.

Essa dimensão instituinte do fazer educativo foi proclamada com insistência durante o

período da Revolução Francesa, que redescobriu a direta relação entre este fazer e a instituição

política da sociedade. Decorre daí uma nova definição filosófica da educação, uma definição

política. Aos poucos, porém, em face das exigências de construção de uma sociedade nova e

unificada, a autoridade científica foi retomando o poder que havia sido subtraído ao dogma: a

prática do controle se reinstituiu, pela ambição ampliada de uma definição científica da

educação, que promove as «ciências da educação» em referências absolutas para os métodos e

procedimentos de administração e de realização do fazer educativo. Muito particularmente a

psicologia – no que se refere aos aspectos individuais – e a estatística – no que se refere ao

aspecto coletivo – passam a ser irrestritamente valorizadas no campo educativo.

Não se pode dizer que essas definições especializadas da educação tenham liberado o

fazer educativo de seus enigmas, apenas ajudaram a ocultá-lo.

Sem dúvida, nossos tempos já não desconhecem os efeitos nefastos do mito do

«progresso» técnico-científico, que Jean-Jacques Rousseau começara a denunciar, e os riscos da

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descontrolada ambição de domínio racional da realidade. Como diria Agnes Heller, hoje

sabemos que tudo tem seu preço. Mas nem por isso nos tornamos mais capazes de interferir,

coletivamente, sobre esses processos. Nem por isso nos tornamos mais imunes à sedução do

mito da eficácia das técnicas e da validade universal dos discursos especializados.

Por isso, na área da educação, as diferentes disciplinas dificilmente convergirão para

uma compreensão organizada e harmônica da realidade humana e social – e não é essa a

função da filosofia.

Ao contrário, sem o questionamento de seus limites, essas perspectivas continuarão

disputando o privilégio de fornecer a definição acabada e total para a educação, sob a forma da

resposta mais conveniente para os dilemas que ela coloca. Mas a tentação de fornecer as

explicações acabadas para o humano e a sociedade é um traço comum entre a ciência e a

filosofia da modernidade.

Um dos maiores expoentes da filosofia moderna, Immanuel Kant havia começado a

demonstrar os limites do conhecimento científico, no que se refere ao homem e à sociedade:

sob esse aspecto, sua contribuição para a definição filosófica da educação é inegável, ainda que

pouco explorada. No entanto, ele julgou poder estabelecer não só os fundamentos universais e

absolutos para o entendimento humano, mas também as bases inquestionáveis de um

«conhecimento prático», sucumbindo à tentação de estabelecer parâmetros universais que

reduziriam a educação a uma simples questão de método. Todavia, qualquer «definição» que

parta apenas das determinações que pesam sobre a natureza humana e social, e não,

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igualmente, do questionamento dos limites dessas determinações é nefasta para a educação.

Volta-se, assim, repetidamente, à tradição platônica, e à herança metafísica:

Com Platão começa a torção, e a distorção, platônica que dominou a


história da filosofia ou, pelo menos, a sua principal corrente. O filósofo
deixa de ser um cidadão. Sai da pólis, ou coloca-se acima dela, e diz às
pessoas o que devem fazer, deduzindo isso de [seu próprio
conhecimento]8

Começa com Platão, diz Cornelius Castoriadis, a crença de que se possa encontrar uma

teoria única e válida para todas as questões sobre o humano, uma ontologia unitária, da qual,

em seguida, se tenta derivar o regime político ideal. É essa a «torção e a distorção» que sofrem,

primeiramente, a filosofia e, em seguida, a ciência moderna: a de acreditar que o conhecimento

pode e deve substituir a liberdade humana.

Em fins do século XIX, Friedrich Nietzsche afirmava que só seríamos de fato «modernos»

quando, enterrando de uma vez por todas a tradição platônica, abraçássemos definitivamente o

nihilismo. Não haveria, então, outra opção, para superar o ideal do saber absoluto?

Não são poucos os que, buscando evitar os erros modernos, acabam por ceder ante

outras seduções, como a do subjetivismo e do relativismo das concepções que pretendem que

nada é possível dizer sobre o humano, e que suspeitam das intenções dominadoras de todo

projeto educativo. Dessa forma, alguns críticos pós-modernos renunciam à filosofia como práxis

e à educação como ação deliberada e racional.

8
Idem, p. 236-237.
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Mas, feita compromisso racional e deliberado com o projeto de autonomia, a filosofia

pode definir a educação como prática de formação coletiva de subjetividades reflexivas e

deliberantes de que a democracia carece.

Mas não há método, ou regra, ou receita, que garanta antecipadamente o êxito de uma

empreitada em que se trata, na verdade, de socializar os indivíduos, com base nas instituições

heterônomas da sociedade (e já encarnadas por eles), para a criação de um novo modo de

existência individual e coletiva, em que a autonomia seja possível.

Não há método, ou regra, ou receita eficaz para garantir que se vai desistir para sempre

de toda ambição de controle da educação; ou para garantir que se vá admitir a liberdade, a

rebeldia, o erro, a singularidade do aluno – sua auto-criação concretamente manifestada – não

como um obstáculo, mas como uma condição essencial da construção comum da educação. Não

há método, ou regra, ou receita, que garanta antecipadamente o êxito de uma empreitada em

que se trata de realizar, a cada dia, a descoberta do imponderável da criação, com base em

todas as teorias e métodos e técnicas que, tomados dogmaticamente, acabam por ocultá-la.

Não há método, ou regra, ou receita, que garanta antecipadamente o êxito do fazer educativo.

Eis o que é próprio da definição filosófica da educação: à luz do projeto de autonomia humana,

individual e coletiva, elucidar o enigma do fazer educativo (cf. infra, p. 22).

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filosofia da educação

ANÍSIO TEIXEIRA

Na medida de nossas forças, construímos, então, uma filosofia e a ela nos


acomodamos, tão bem como tão mal, em nossa ânsia e inquietação de compreender e
de pacificar o espírito. Tais filosofias individuais não se articulam, porém, em sistemas
filosóficos. Esses, quando não são criações pedantes de gabinete, mas expressões reais
de filosofia, representam e caracterizam uma época, um povo ou uma classe de
pessoas. Porque, no sentido realístico de que falamos de filosofia, tal seja a vida, tal
seja a civilização, tal será a filosofia. A filosofia de um grupo que luta corajosamente
para viver, não é a mesma de outro cujas facilidades transcorrem em uma tranqüila e
rica abundância. Conforme o tipo de experiência de cada um, será a filosofia de cada
um…

TEIXEIRA, A. Pequena introdução à filosofia da educação –


A Escola Progressiva ou A Transformação da Escola.
6 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 170.

A filosofia se traduz, assim, «em educação, e educação só é digna desse


nome quando está percorrida de uma larga visão filosófica. Filosofia da
educação não é, pois, senão o estudo dos problemas que se referem à
formação dos melhores hábitos mentais e morais em relação às
dificuldades da vida social contemporânea.» [Dewey]. Considerada
assim, a filosofia, como a investigadora dos valores mentais e morais
mais compreensivos, mais harmoniosos e mais ricos que possam existir
na vida social contemporânea, está claro que a filosofia dependerá,
como a educação, do tipo de sociedade que se tiver em vista.

Id., p. 171)

De todos os lados [da educação] lhe batem à porta. De todos os


lados as instituições humanas se abalam e se transformam.
Transforma-se a família, transforma-se a vida econômica,
transforma-se a vida industrial, transforma-se a igreja,
transforma-se o estado, transformam-se todas as instituições,
as mais rígidas e as mais sólidas – e de todas essas
transformações chegam à escola um eco e uma exigência… A
escola tem que dar ouvidos a todos e a todos servir. Será o teste
de sua flexibilidade, da inteligência de sua organização e da
inteligência dos seus servidores. Esses têm de honrar as
responsabilidades que as circunstâncias lhes confiam, e só o
poderão fazer, transformando-se a si mesmos e transformando
a escola.

(Id., p. 173)

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filosofia da educação

CORNELIUS CASTORIADIS

Atravessamos um período de crise prolongada da cultura ocidental.


À crise pertencem também a proclamação – em particular por
Heidegger, mas não só por ele – do “fim da filosofia” e toda a gama
de retóricas desconstrucionistas e pós-modernistas. Pois a filosofia é
um elemento central do projeto greco-ocidental de autonomia
individual e social; o fim da filosofia significaria nem mais nem
menos do que o fim da liberdade. A liberdade não está apenas
ameaçada pelos regimes totalitários ou autoritários. E sim, de
maneira mais escondida, porém não menos forte, pela atrofia do
conflito e da crítica, pela expansão da amnésia e da irrelevância, pela
incapacidade crescente de questionar o presente e as instituições
existentes, quer sejam propriamente políticas ou contenham
concepções do mundo. Nessa crítica, a filosofia sempre teve uma
parte central, ainda que, na maior parte do tempo, sua ação tenha
sido indireta.

CASTORIADIS, C. «O ‘fim da filosofia’?»


in As encruzilhadas do labirinto III: o mundo fragmentado.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. pp. 239-240.

Um filósofo escreve e publica porque crê que tem coisas verdadeiras e


importantes a dizer, mas, também, porque quer ser discutido. Ser
discutido implica a possibilidade de ser criticado e, eventualmente,
refutado. E todos os grandes filósofos do passado – inclusive Kant, Fichte
e Schelling – explicitamente discutiram, criticaram e refutaram – ou
pensaram que refutaram – seus predecessores. Pensavam, com razão, que
pertenciam a um espaço social-histórico público e transtemporal, na ágora
trans-histórica da reflexão, e que sua crítica pública dos outros filósofos
era um fator essencial da manutenção e do alargamento desse espaço
como sendo de liberdade (…).

(…) É por isso que, para um filósofo, não pode haver história da filosofia a
não ser crítica. A crítica pressupõe evidentemente o esforço mais
laborioso e mais desinteressado para compreender a obra crítica. Mas ela
exige também uma vigilância constante quanto às limitações possíveis
desta obra, limitações que resultam do fechamento quase inevitável de
toda obra de pensamento que acompanha a sua ruptura com o
fechamento precedente.

Id., p. 243-244.

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filosofia da educação

IMMANUEL KANT

O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por educação


entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a
disciplina e a instrução com a formação. Conseqüentemente, o
homem é infante, educando e discípulo. (…) A disciplina transforma
a animalidade em humanidade. Um animal é por seu próprio
instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele tomou
por ele antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas, o
homem tem necessidade de sua própria razão. Não tem instinto, e
precisa formar por si mesmo o projeto de sua conduta. Entretanto,
porque ele não tem a capacidade imediata de o realizar, mas vem
ao mundo em estado bruto, outros devem fazê-lo por ele.

KANT, I. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: UNIMEP, 1996. pp. 11-12.

Mas, o homem é tão naturalmente inclinado à liberdade que, depois


que se acostuma a ela por longo tempo, a ela tudo sacrifica. Ora,
este é o motivo preciso, pelo qual é conveniente recorrer cedo à
disciplina; pois, de outro modo, seria muito difícil mudar depois o
homem. Ele seguiria, então, todos os seus caprichos. Do mesmo
modo, pode-se ver que os selvagens jamais se habituam a viver como
os europeus, ainda que permaneçam por muito tempo a seu serviço.
O que neles não deriva, como opinam Rousseau e outros, de uma
nobre tendência à liberdade, mas de uma certa rudeza, uma vez que
o animal ainda não desenvolveu a humanidade em si mesmo numa
certa medida. Assim, é preciso acostumá-lo logo a submeter-se aos
preceitos da razão.

Id., p. 13.

O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela


educação. Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só
pode receber esta educação de outros homens, os quais a
receberam igualmente de outros. Portanto, a falta de disciplina e de
instrução em certos homens os torna mestres muito ruins de seus
educandos. Se um ser de natureza superior tomasse cuidado da
nossa educação, ver-se-ia, então, o que poderíamos nos tornar.
Mas, assim como, por um lado, a educação ensina alguma coisa aos
homens e, por outro lado, não faz mais que desenvolver nele certas
qualidades, não se pode saber até onde nos levariam as nossas
disposições naturais.

Id., p. 15.
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filosofia da educação

HANNAH ARENDT

A filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas


encontrar o lugar onde surge a política. A primeira é:

a) Zoon politikon: como se no homem houvesse algo político que


pertencesse à sua essência – conceito que não procede; o homem é
a-político. A política surge no entre-os-homens; portanto,
totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma
substância política original. A política surge no intra-espaço e se
estabelece como relação. Hobbes compreendeu isso.

b) A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem deve


ter sido criado. Daí só pode haver o homem, e os homens tornam-se
sua repetição mais ou menos bem-sucedida. O homem, criado à
imagem da solidão de Deus, serve de base ao state of nature as a
war of all against all, de Hobbes. É a rebelião de cada um contra
todos os outros, odiados porque existem sem sentido – sem sentido
exclusivamente para o homem criado à imagem da solidão de Deus.

ARENDT, H. O que é política. Rio de Janeiro: Bretrand Brasil, 1998. p. 23 .

Ao se falar de política, em nosso tempo, é preciso começar pelos


preconceitos que todos nós temos contra a política – quando não
somos políticos profissionais (…).Não se precisa deplorar e, em
nenhum caso, deve-se tentar modificar o fato de os preconceitos
desempenharem um papel tão extraordinário no cotidiano – e com
isso, na política. Pois nenhum homem pode viver sem preconceitos,
não apenas porque não teria inteligência ou conhecimento
suficiente para julgar de novo tudo que exigisse um juízo seu no
decorrer de sua vida, mas sim porque tal falta de preconceito
requereria um estado de alerta sobre-humano. Por isso, a política
tem de lidar sempre e em toda parte com o esclarecimento e com a
dispersão de preconceitos, o que não significa tratar-se, no caso de
uma educação para a perda de preconceitos, nem que aqueles que
se esforcem para fazer tal esclarecimento sejam livres de
preconceitos.

Id., p. 28-29.

Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse


espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de esperar

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filosofia da educação

milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim


porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de
fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão
sempre fazendo. (…) A pergunta hoje quase não é: qual é o sentido
da política? É muito mais natural ao sentimento dos povos que por
toda parte se sentem ameaçados pela política e nos quais os
melhores se distanciam da política de maneira consciente que a
pergunta seja: tem a política ainda algum sentido?

Id., p. 44

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