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FAMA

Faculdade Amadeus

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K79 Cesar, Augusto


Filosofia e Cidadania/ Autor Augusto Cesar
– Aracaju: FAMA, 2024. E-book
66 p.

ISBN - 978-65-89619-17-8

1.Filosofia. 2. Cidadania. 3. Cultura. 4. EaD. 5. Faculdade Amadeus. I. Cesar, Augusto.


II. Título

CDD: 370.114
CDU: 17/47 (7.0)

Direitos autorais 2021 - Direitos para essa edição cedidos à FAMA.


Grafia atualizada conforme o "Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990", em vigor no Brasil desde 2009.
É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por
qualquer meio. A violação dos direitos de autor (lei nº 9.610/98) é
crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.
FILOSOFIA E CIDADANIA

Augusto Cesar

ARACAJU
2024
SUMÁRIO
TEMA 1 – O NASCIMENTO DA FILOSOFIA (HÁ UM PONTO DE PARTIDA?) 5
1. APRESENTAÇÃO 5
2. O CONHECIMENTO FILOSÓFICO 5
3. A VERDADE E A LÓGICA 8
4. A AUTENTICIDADE DO PENSAMENTO 11
5. OS PENSADORES DO COMEÇO E A CONSOLIDAÇÃO DO ENSINO DA FILOSOFIA 12

TEMA 2 – A FILOSOFIA NO MUNDO DO HOJE (O QUE FAÇO COM ISSO?) 21


1. APRESENTAÇÃO 21
2. DESCENTRALIZAÇÃO DO SUJEITO 21
3. O ESTATUTO DA RAZÃO 23
4. A CRISE DA RAZÃO MODERNA 25
5. A SOCIEDADE DE COMUNICAÇÃO GENERALIZADA 28
6. A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA RAZÃO 30

TEMA 3 – A POLÍTICA COMO EXPRESSÃO DA CIDADANIA


(QUEM É ESSE SER FILOSÓFICO?) 36
1. APRESENTAÇÃO 36
2. A POLITICA COMO QUESTÃO FILOSÓFICA 36
3. A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA COMO FATO POLÍTICO 36
4. A QUESTÃO DO PODER COMO OBJETO DA POLÍTICA 41
5. A PREOCUPAÇÃO SOCIAL COMO PREOCUPAÇÃO POLÍTICA 44
6. O TRABALHADOR COMO ALVO DAS PREOCUPAÇÕES SOCIAIS 44
7. RETROCESSOS E AVANÇOS DO DIÁLOGO POLÍTICO 47

TEMA 4 – A CIDADANIA COMO CONDIÇÃO ÉTICA (COM QUEM EU FILOSOFO?) 51


1. APRESENTAÇÃO 51
2. A REQUISIÇÃO DA ÉTICA 51
3. AS REGRAS MORAIS, A EDUCAÇÃO E O APRENDIZADO 53
4. O CONTEMPORÂNEO E SUAS CRISES 56
5. O ETHOS MUNDIAL 58
6. A CIDADANIA E AS CAMADAS DA VIDA AUTÊNTICA 60

REFERÊNCIAS 64
5
TEMA 1 – O NASCIMENTO DA FILOSOFIA
(HÁ UM PONTO DE PARTIDA?)

1. APRESENTAÇÃO

A filosofia é um tipo de conhecimento que começa a ser elaborado en-


tre os povos gregos e num período muito distante das condições atuais com
as quais construímos o conhecimento e vivenciamos as grandes descobertas
da ciência. O intuito inicial destes filósofos que realizaram a sua elaboração
foi de compreender como se pode ter uma interpretação “real da realidade”
aproximando-se desta por parâmetros que conduzam o investigador a encon-
trar a verdade acerca daquilo que ele investiga.
Através destas primeiras considerações vocês podem vislumbrar que
não falaremos apenas de questões históricas quando nos remetemos ao nasci-
mento da Filosofia, mas como ela possui esta relação com uma cultura especí-
fica que se universaliza e chega até a nossa formação universitária.
Diante dessa história longa e que já teríamos perdido de vista vamos
resgatar os gregos da antiguidade e entender o que eles nos deixaram como
legado. Diante da pergunta, há um ponto de partida? Aventuramo-nos a tratar
neste capítulo inicial do livro de Filosofia e Cidadania os principais elementos
que demarcam o surgimento deste conhecimento.

2. O CONHECIMENTO FILOSÓFICO

No contexto da Grécia antiga, século V a.C. a Filosofia passa a ser algo


extremamente inovador, pois com tal interesse se inaugura um modo de pen-
sar que determinou a nossa compreensão da realidade, trazendo tantas per-
cepções e ensinamentos que em lugar de se esgotar naquela cultura e naquele
jeito de compreender, conseguiu se renovar e avançar por tantos milênios na
história da humanidade. Sim, quando falamos de filosofia estamos falando de
uma forma muito antiga de conhecer o real, o mundo e suas complexidades.
Essa forma com a qual ela passa a ser elaborada chama a atenção de
grupos de pensadores, chamados na história da filosofia de os primeiros pen-
sadores, alguns os definem como pensadores originários, porque são pensa-
dores da origem de todo o conhecimento racional que temos. Ao filosofarem,
estes pensadores originários, se distinguem de outros pensadores e de ou-
tros estudiosos que estavam no mesmo lugar geográfico e de elaboração de

FILOSOFIA E CIDADANIA
6 ideias. É preciso especificar os elementos que estão relacionados na compre-
ensão do que seja o conhecimento filosófico.
Mas a definição de filosofia não é assunto simples de ser descrito e
consolidado. Já naquele tempo e até hoje é mais fácil falar da filosofia por
aquilo que ela não é, pelo que não pode ser taxado com o timbre de filosófico.
Daí, haver sempre uma necessidade de distingui-la de outras formas de saber.
Maura Iglesias nos auxilia no intento de compreender essa problemática com
a seguinte consideração:
(...) para dizer e entender o que é a filosofia. É preciso já estar dentro
dela. “O que é a física” não é uma questão física, “o que é a química”
não é uma questão química, mas “o que é a filosofia” já é uma questão
filosófica – e talvez uma das características da questão filosófica seja
o fato de suas respostas, ou tentativas de resposta, jamais esgotarem
a questão, que permanece assim com força de questão, a convidar
outras respostas e outras abordagens possíveis.
E já que os filósofos não vão mesmo entrar num acordo, deixemos
de lado o problema da definição. Entremos de uma vez na filosofia
(...) (AZEVEDO, 2019, p.13)
A filosofia se distingue do mito e da sabedoria, pois se reveste de um
elemento racional predominante, mas não se confunde com essa racionalida-
de, conforme será explicado nos próximos capítulos. Do mesmo modo, se
distingue da mera opinião, que em lugar de construir unidade, na estruturação
das ideias, recai na dispersão. A opinião, o que os gregos chama de doxa,
compreende o falatório tão comum na esfera pública, mas fica como simples
relato acerca de algo, muito relacionada ao gosto de cada um. Podemos dizer
que são tantas opiniões que não há como conciliá-las.
Há preocupações dentro da filosofia que não repercutem, por exemplo,
no senso comum, pois este possui uma resposta muito pautada nas impressões
e nas percepções mais imediatas, nas generalizações que englobam e devoram
as peculiaridades do pensamento analítico, daquele modelo de reflexão tão
importante para o filosofar. Nunca se aventurando a analisar a realidade pela
sistematicidade da razão, mas por respostas rápidas e também ligadas ao gosto.
Há sempre um mistério que envolve esses tipos de conhecimento, o
senso comum e a opinião, primando muito por certas capacidades, mas nun-
ca descrevendo sistematicamente o que pode acontecer. O crivo da lógica
não é reivindicado para estar presente em tais demonstrações, apenas um
certo ar de resolução e um gosto por acreditar nas mesmas. Embora o senso
comum traga uma resposta se processa certa desordem intelectual naquilo
que é posto. Pois sempre há de existir um entrave. Corre-se muito para uma
concordância ao modo da adesão, com bases mais políticas e morais que in-
telectivas. Recaindo num respeito aos resultados pautado pela tradição e não
aos critérios peculiares que estruturam a análise.

FILOSOFIA E CIDADANIA
7

Escola de Atenas, 1509-1510. obra do pintor renascentista Raffaello Sanzio (1483-1520)

A razão, que em grego se diz lógos passa a ser um parâmetro para


entendermos a filosofia, sua sistematicidade, seus interesses em analisar a
realidade. No decorrer dos tempos são várias as significações que se pode
dar a palavra lógos, palavra que se traduz como discurso, estendendo-se a
um âmbito linguístico, de colocação da palavra, mas também se traduz num
âmbito matemático, numérico enquanto medida, “métron”, uma métrica, na
perspectiva geométrica das formas ou enquanto cálculo racional, enquanto
contagem. De certo modo a Filosofia sempre esteve interligada à matemática,
à abstração, à busca de formas puras e intelectivas da racionalidade humana,
O logos em suas múltiplas manifestações. Geralmente quando falamos em co-
nhecimento dizemos que esse conhecimento é marcadamente científico, mas
ela se diferencia porque a ciência se estrutura numa razão progressiva.
Se a Filosofia é um conhecimento, muito facilmente dizemos, hoje, que
conhecimento é uma representação com sentido da realidade. Mais uma vez é
preciso segurar essa significação de conhecimento para entender o que ocor-
ria naquele momento. Estudiosos da metodologia científica tais como Pedro
Demo explicitam as diferentes formas de conhecimento no nosso contexto
atual, imagine em relação a conhecimentos que já perdemos até os referen-
ciais. Em meio a toda carga de conhecimento que se acumulou e que parece
ter a mesma forma fica a advertência: (...) a construção de conhecimento é o
diferencial maior dos países em termos de oportunidade de desenvolvimento
(...) (DEMO, ) Estes autores que se debruçam sobre a variedade de produção
de conhecimento na atualidade explicitam que esse conhecimento com o qual
lidamos já foi proposto de maneiras tão diferentes que precisamos especificar
para buscar a melhor forma de acessar o seu reconhecimento e não apenas
conhecer pela obrigação de guardar uma informação.

FILOSOFIA E CIDADANIA
8 A metodologia científica que aprendemos no processo de formação
numa universidade serve como uma “propedêutica construtiva” para que pos-
samos aprender com uma perspectiva criativa. É justamente neste lugar que
o conhecimento da Filosofia e seus temas nos serve de ponto de apoio para
a reflexão crítica e para romper com limitações existenciais com as quais as
pessoas mais próximas já se encontram inseridas.
A filosofia chegou aos nossos dias muito marcada pela compreensão
de sua generalidade. Ela se interessa por questões essenciais, consideradas
mais gerais, porém ela não se perde numa compreensão geral, ou por gene-
ralidades. Muito facilmente hoje falamos que algo é filosófico ou sem filoso-
fia quando nos referimos a situações outras que não aquelas que realmente
caracterizam a filosofia. Ela diz respeito a sutilezas, o que chamamos como
espírito humano, porque procura penetrar na razão dos fatos estruturando um
olhar racional sobre a realidade.
Quando surge esta forma de conhecimento que é a filosofia logo se
percebe que esse conhecimento se organiza compondo um conjunto de dis-
cussões e de interesses, o que chamamos de sistematizações e além disso, por
análises detalhadas de fatos, acontecimentos e reflexões. Esse conhecimento
se diferencia da sabedoria milenar de povos e grupos sociais que resguarda-
ram reflexões e afirmações preciosas para suas gerações. Preceitos importan-
tes para que se sentissem parte daquele grupo social, mas também elos de
ligação entre teorias e conjuntos de pensamentos que cada vez mais tornam-
-se o obeto de análise dos filósofos que vieram em seguida. Um estudioso da
filosofia corre para encontrar a verdade daquela teoria e depois corre para a
partir dos seus preceitos superá-la e atingir um redimensionamento do pensa-
mento, uma inovação das suas consequências,

3. A VERDADE E A LÓGICA

Entre os gregos da antiguidade o que diferencia a Filosofia de outros


tipos de conhecimento que existiam, inclusive do conhecimento sofístico, era
a sua relação com a verdade. Essa busca pela verdade que é representada des-
de os primeiros escritos de Platão, relacionada ao diálogo socrático e à cos-
mologia dos pensadores da Physis, é algo que apesar das distâncias históricas
os vincula, enquanto filósofos, num mesmo intuito. A referência à compreen-
são grega da verdade restringe, mas requisita outras culturas que entrelaçam
tradições através do mesmo intuito, ainda que encaminhadas dor direções
diferentes. Conforme cita Marilena Chauí quando abrange três concepções,
a grega, através da palavra Aletheia , para o grego antigo a alétheia é o que
não se vela. É o des-velamento. “se refere ao que as coisas são” a realida-
de. Na concepção latina, verdade se diz véritas, “à exatidão de um relato”,
ao enunciado que define algo, que o certifica. E ainda destaca a concepção
hebraica, “significa confiança”. Há uma reconstrução advinda dos significa-
dos que foram se estruturando na língua, os mistérios que habitam as línguas
abrem possibilidades de expressões e falas, presentes na linguagem. Há uma

FILOSOFIA E CIDADANIA
questão histórica que une e amplia a concepção de verdade, que é a história
do próprio Ocidente.
9
“Para a atitude crítica ou filosófica, a verdade nasce da decisão e da
deliberação de encontrá-la, da consciência da ignorância, do espanto,
da admiração e do desejo de saber. Nessa busca, a Filosofia é her-
deira de três grandes concepções da verdade: a do ver-perceber, a
do falar-dizer e a do crer-confiar. (CHAUÍ, 2018, p.98)
A verdade que compreendemos habitualmente nos escritos da forma-
ção acadêmica, busca uma concordância, seja entre pensamento e fatos, seja
na elaboração de representações que expliquem de maneira mais adequada
o caos que muitas vezes se constitui no mundo. A verdade abre clareiras em
meio às tantas coisas que precisamos compreender, mas ela mesma já é a
clareira, porque nos situa, nas buscas existenciais e inquietações intelectuais.
Quando há uma concordância se estabelece a unidade tão indicada por tantas
teorias de diferentes pensadores. Desde os antigos a verdade é o elemento
essencial para que o mundo se torne inteligível.
O modo como historicamente o pensamento filosófico se deteve na
busca pela verdade estende à filosofia a peculiaridade de consolidar um co-
nhecimento que se estabeleceu pelo Ocidente, pelos povos que seguiram o
modelo de racionalidade ocidental. A Filosofia é a base a partir da qual outras
formas de conhecimento se estruturam, a exemplo da ciência. Desse modo, se
ela não pode ser confundida com a ciência, podemos dizer que elas se vincu-
lam pela base filosófica que a ciência moderna possui. Compreendemos esse
vínculo dizendo que toda ciência tem na sua base uma questão filosófica que
só a filosofia pode se apropriar em prol de construir novos significados. Toda
ciência quando entra em crise ela busca essa base, ambas possuem uma dife-
rença que não é estanque, a filosofia se dirige em busca de universalidades,
a ciência se especializa em busca de demarcar cada vez mais seu objeto de
análise. Ambas se ampliam em vista de sentidos diferentes.
Epistemologicamente ambas, Filosofia e Ciência, interligam-se, pois
essa relação serviu de suporte e de referência para elaboração do conheci-
mento racional que se estende até os nossos dias, embora seja um conheci-
mento já bem diferente daquele primeiro, com questões, interesses, aborda-
gens completamente distintas, como foi dito.
O maior símbolo de expressão desse legado epistemológico que a Filo-
sofia nos apresenta é o nosso interesse por aplicar uma lógica nas coisas com
as quais lidamos, ou então, para identificar a lógica naquilo que é apresentado.
Ainda hoje recorremos à filosofia para compreender a realidade, para sairmos
da imposição das verdades midiáticas ou da limitação histórica na qual nos
inserimos e observarmos neste modo de conhecer a realidade uma capacida-
de incrível de se renovar a partir daquela base inicial. Há uma atualidade na
filosofia que nos surpreende cada vez que buscamos trazer esse conhecimento
para a nossa realidade. Há uma peculiaridade nos escritos filosóficos que não
os torna antigos, ou melhor, não os torna antiquados. Em função disso, com-
preende-se que por mais atual que seja um filósofo de hoje ele não perde de
vista a necessidade de resgatar elementos desta base de conhecimento, ainda

FILOSOFIA E CIDADANIA
10 que as consequências da sua teoria sejam totalmente novas e inusitadas. Há
uma relação bem interessante entre o que é antigo e o que é novo na filosofia.
E que surpreende sempre qualquer pesquisador. Não é que sejam as mesmas
coisas, mas a filosofia muito mais do que um jogo de busca pelo mais atual se
revela como uma base sempre grávida de possibilidades para os investigado-
res que se organizaram no decorrer de todo esse tempo histórico.

Acrópole de atenas grécia com o templo parthenon

Essa lógica é estruturada por conceitos , por isso a filosofia de Descar-


tes, de Marx, de Heidegger, todo e qualquer pensador ao elaborar um pen-
samento novo necessita de palavras que consigam dar suporte ao que está
sendo exposto. Não significa dizer também que as palavras são cápsulas nas
quais os pensamentos se manifestam, dizemos que a palavra, o conceito, é
justamente o que passa a distinguir tantas e diferentes filosofias, Deleuze vai
chamar de a “paciência do conceito”.
Todo conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de
seus componentes. É por isso que , de Platão a Bergson, encontra-
mos a ideia de que o conceito é a questão de articulação, corte e
superposição. É um todo, porque totaliza seus componentes, mas
de um modo fragmentário. É apenas sob essa condição que pode
sair do caos mental, que não cessa de espreitá-lo, de aderir a ele,
para absorvê-lo. (...) Todo conceito remete a um problema, a pro-
blemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados
ou compreendidos na medida de sua solução (...) (DELEUZE, 2020,
pp.27-28)

FILOSOFIA E CIDADANIA
Os conceitos servem para que possamos dar nomes às ideias, ou para
que possamos dar vida à problematizações com as quais nossa existência já
11
lida. A advertência para com o estudante que chega agora num curso superior
e que nunca leu nada da filosofia é, perceba que do que vamos falar, você de
certo modo, já tem uma ideia, ainda que vaga e sem nomeação da problemáti-
ca que ela sugere. Isso porque a Filosofia está tão entranhada na nossa cultura,
que embora não sejamos filósofos, já conhecemos, de alguma forma, um pou-
co do que seja filosofar, já conhecemos suas questões, porque são questões
inerentes ao cotidiano das pessoas. Já lidamos com o elemento central a partir
do qual surge toda a filosofia, a vida humana e seus desdobramentos.

4. A AUTENTICIDADE DO PENSAMENTO

Durante todo este tempo, conforme as observações já feitas, a filosofia


virou história, tornou-se relato de construção de conhecimento, virou estudo
para aprofundamento, um assunto de interesse de acadêmicos, igual vocês
passam a identificar nestes primeiros semestres de curso. É um conhecimento
propedêutico para que o estudante se torne um profissional com certas com-
preensões da realidade. E com certeza a filosofia tem muito a ver com tua área
de conhecimento, mas ela também tem muito a ver com a pessoa que você
é, com os conflitos com os quais você já viveu, com as situações com as quais
você já parou para pensar.
Essa busca filosófica tem como pano de fundo a busca pelo humano,
pela sua existência e pelas suas possibilidades. A existência humana é um mar-
co na elaboração de todo e qualquer conhecimento. Há uma pessoalidade
bem interessante que faz com que transitemos da filosofia para a figura do
filósofo - Aquele que se ocupa da realidade para olhar com clareza, desejoso
por conhecê-la. Pitágoras de Samos, pensador do período pré-socrático nos
ilustra com a situação vivenciada num estádio, em que alguns vão para lutar,
outros para negociar, mas há aqueles que vão aos estádios pelo prazer de ver
os espetáculos. Sendo a vida esse espetáculo, o filósofo é o seu expectador
por excelência. Aquele que se ocupada da filosofia é aquele que entende que
a temporalidade não é mera sequência de fatos, mas uma esteira na qual se es-
tende a necessidade de desvendar os segredos que saltam na cotidianidade.
Os antigos chamam a filosofia de ontologia. De estudo acerca do ser. A
questão do ser é a questão que faz com que a filosofia se origine, atravessa
todo o pensamento ocidental e toda a história da filosofia, o ser é a essência,
mas a essência pode ser dita a partir dos elementos fundamentais que estru-
turam a vida particular de cada um. Embora seja um tema que se resolva de
várias maneiras no decorrer da história, vamos chamar essa essência de funda-
mento, ora, o fundamento que nos caracteriza é a existência.
De certo modo falamos de uma existência como essência, ou seja, funda-
mento daquilo que somos. Das curiosidades que temos, das questões que tra-
zemos à tona quando exploramos o mundo e suas miríades de acontecimentos.

FILOSOFIA E CIDADANIA
12 “A existência humana, em todos os seus aspectos, humildes e ele-
vados, certos e errados, está na questão do ser. Sentimos no mais
íntimo de nós que somos toados para a busca. Partimos então para
a existência no mundo, buscamos cá fora, orientados a partir de
dentro. (BUZZI, 2019, p. 18)
Há um elemento interior, subjetivo, que nos joga na questão do ser.
Até porque o entrelaçamento entre mundo e nós é costurado pelas linhas da
existência. A re-velação das coisas, o que já temos como certo e aquilo ao qual
nos arriscamos buscar. A filosofia é sempre uma “amizade”, nunca uma posse.
A infinidade da experiencia humana como caracterização do pensar e as evo-
luções do pensamento que sempre traz algo novo, ainda que daquilo muito
velho, constituem essa trama existencial que nos faz remeter à Filosofia. Não é
à toa que ela tem sobrevivido e buscado sempre dar suporte para as questões
novas e devastadoras que surgem nos novos tempos.
A existência não é um mero peso que se estende sobre a vida das pessoas,
ela é um ponto de apoio a partir do qual se remete toda e qualquer filosofia. O
diálogo socrático escrito por Platão é resgatado até pelos autores contemporâ-
neos que encontram no “logos” do “diálogo”, na dialética, a forma de resgatar
esse elemento fundamental. Podemos chamar, a partir dessa perspectiva exis-
tencial, de metafísica, a ciência do existente humano, dos primeiros princípios,
de uma condição transcendente. Caracterizadora do conhecimento filosófico. E
que caracteriza o filósofo na sua ação sobre o mundo que o cerca.

5. OS PENSADORES DO COMEÇO
E A CONSOLIDAÇÃO DO ENSINO
DA FILOSOFIA

Quando direcionamos nosso interesse para o início, para o momento


de seu surgimento e para os elementos que historicamente estão presentes
nesse surgimento, a Filosofia é algo que surge entre um grupo de pensado-
res chamados pré-socráticos. Ela nasce em cidades pequenas na extensão do
território grego e a primeira que se tem registo é na cidade de Mileto, um
investigador e sábio chamado Tales que lidava com conhecimentos da mate-
mática e da natureza nomeia pela primeira vez a necessidade de se investigar
a realidade a partir dos seus princípios, para desvendar os segredos da sua
origem, arché. Quando ele começa a investigar desse modo obtém um conhe-
cimento que surpreende e envolve outros grupos de curiosos, pensadores,
que se encontravam, conversavam e aprofundavam formas de obtenção de
uma compreensão que circunscrevesse a origem de todas as coisas.
Os primeiros pensadores eram conhecedores que se interessavam pela
origem de todas as coisas, questão que antes era respondida com os “mitos da
criação”. Neste momento as narrativas míticas não servem para este propósito.
A busca pela origem já se encontrava com as diversas explicações mitológicas,

FILOSOFIA E CIDADANIA
pois quando lemos sobre os mitos há sempre uma ação inicial que fez com que
a realidade se estabelecesse daquele modo, está presente a figura do herói,
13
aquele que altera a realidade, ainda que seja castigado pelo seu ato, mas dig-
no de feitos notáveis. Assim se estrutura o mito. A compreensão da realidade
ultrapassa a base e se consolida no mágico, em algo além. Mas as explicações,
e o tipo de investigação elaborada pelos mitos não davam conta do que Tales
de Mileto, Pitágoras de Samos, Heráclito de Éfeso, entre outros, estavam por
elaborar.
Estes pensadores não convergiam para os mesmos elementos para
explicar a origem e o princípio e, consequentemente, encontravam estratégias
lógicas bem distintas, o que os unia era a explicação da realidade através da
compreensão dos princípios e das origens. Contudo para cada pensador havia
uma diferente significação para a Physis. O interesse por tal base de pensa-
mento se estende e repercute em novas formas de observar e em situar novos
elementos que são obtidos na identificação desse princípio, da arché.
Nasce uma cosmologia, uma Filosofia da Physis. A filosofia, em seu nas-
cimento, em seu momento primordial, lida com a natureza e a natureza como
essência do humano. Ambas interligadas e indicando o mesmo ponto de ori-
gem, a Physis. Estruturando um novo modelo de reflexão em prol de encontrar
a arché, a origem de todas as coisas expressa na physis. Destacamos alguns
dentre os vários pré-socráticos.

- Tales dizia que o princípio era a água, ou o úmido;


- Heráclito afirmou que era o fogo;
- Anaximandro considerava que era o ilimitado sem qualidades definidas;
- Anaxímenes, que era o ar ou o frio;
- Leucipo e Demócrito disseram que eram os átomos.

Estes pensadores envolveram muitas outras pessoas na construção das


suas investigações que passaram a ser cada vez mais divulgadas e difundidas,
dentro das suas limitações históricas. Mas havia nestas teorias e na lógica que
eles utilizavam tamanho sentido que se constitui como um pensamento inau-
gural. Destas teorias e a partir do local no qual esse pensador exercia suas
funções de mestre, várias escolas de pensamento foram fundadas. Seguem
algumas que podem ser destacadas:

Filósofos da Escola Jônica: Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto,


Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso;
Filósofos da Escola Itálica: Pitágoras de Samos, Filolau de Crotona, e
Árquitas de Tarento;
Filósofos da Escola da Pluralidade: Empédocles de Agrigento,
Anaxágoras de Clazômena, Leucipo de Abdera e Demócrito de
Abdera.
Filósofos de Escola Eleata: Parmênides de Eléia e Zenão de Eléia;

FILOSOFIA E CIDADANIA
14 Estes pensadores escreveram pouco, sua linguagem era muito peculiar
pela capacidade de condensar os pensamentos em poucas palavras, diferen-
temente de hoje em que, quanto mais detalhado for o pensamento, melhor a
compreensão dos elementos estudados. O que se sabe é que muito do que
pensaram foi transcrito ou referenciado por pensadores bem pósteros, mo-
delo de estudo que chamados de doxografia, pois se refere à legitimidade
de um escrito, mas já transcrito por um outro indivíduo. Os estudos acerca
de tais escritos buscam saber da originalidade do pensamento ali presente
ou da ordem das ideais que são sequenciadas para chegar a compor um livro.
O escrito na íntegra foi perdido, como boa parte dos escritos de períodos
remotos da antiguidade, mas restaram trechos ou referências importantes de
autores mais próximos. As lacunas não abafaram as notícias e informações a
respeito destes personagens, pensadores e inauguradores de uma filosofia.
Eles inauguram a história da filosofia e por isso vão possuir uma interpretação
que será definitiva. Os escritos compõem relíquias históricas, mas bastante
fragmentados em vista de diversos fatores, o fato de que naquele momento
histórico se escrevia muito pouco.
Historicamente eles ficam conhecidos como pensadores, em sua espe-
cificidade, pois reuniram os fundamentos para se compreender a realidade
por aquele novo ângulo de abordagem. Daí saírem da mera definição de pré-
-socráticos, para pensadores originários, para que não sejam restritos a serem
os antecessores de Sócrates, mas aos que se preocuparam com uma investi-
gação nova, original. São os responsáveis pelo estudo da origem da realidade,
primeiros pensadores que inauguraram a filosofia como um pensamento cos-
mogônico e não mais mitológicos.
Esta nova forma de compreender a realidade é de grande importância
para a filosofia que segue para as formulações teóricas de Sócrates e Platão,
que não mais se interessam pelo cosmos e pela origem das coisas, mas passam
a se interessar pela vida humana, pela essência que caracteriza o real. A partir
dessas preocupações surgem boa parte das filosofias da antiguidade grega
que serão, estilísticas do “bem viver”, da busca contínua pela felicidade, pela
arte de conviver e decidir acerca dos destinos e interesses da cidade. É um
pensamento que busca atingir as questões universais e não se deter em parti-
cularidades. Que compreende que a realidade pode ser analisada de maneira
lógica e não ao simples sabor das impressões.
A filosofia é sempre devedora de tantas sabedorias que já existiram e já
circularam por toda a região do seu nascimento. Tais sistemas de pensamento
como o de Platão ou Sócrates surgem de interesses relacionados a uma cultura
que assimila, mas também envolve todo o conteúdo em critérios, racionaliza
os saberes dispersos que eram trocados em situações específicas, como as
escolas de ensinamento, as instituições públicas voltadas para o exercício da
cidadania, as tradições e muitas outras fontes culturais de obtenção do conhe-
cimento.
Entre os gregos atenienses, a instituição que iniciou a veiculação da Fi-
losofia como estudo dentro de determinados parâmetros formais e com uma
tradição que se sucedeu ao seu mentor, foi a Academia, inaugurada por Pla-

FILOSOFIA E CIDADANIA
tão, no jardim de Akademos, nos arredores da Pólis, num espaço que aco-
lheu o como primeiro centro de estudos do pensamento filosófico platônico.
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Sabemos que uma instituição na antiguidade, inevitavelmente, possui várias
distinções para com as instituições atuais de ensino, mas lá se aprendia filo-
sofia, havia uma forma de ingresso específica que já demarcava as exigências
para o tipo de conhecimento, consolidada uma metodologia e textos a partir
os quais se poderia aprender e difundir o pensamento filosófico. Entre outras
instituições de ensino figurava como distinta com suas atividades didáticas
voltadas para a especulação filosófica, buscando chegar à verdade através da
maiêutica ensinada por Sócrates.
Era uma escola que não privilegiava interesses lucrativos na difusão do
aprendizado, distinguindo-se dos cursos ofertados pelos sofistas, diferencian-
do-se também com as técnicas que estes ensinavam, comprometidas com efi-
cácia de argumentação no âmbito político, enquanto disputa de interesses.
Além do que Platão mantinha uma desconfiança acentuada com a política pre-
dominante no seu espaço social, levando em consideração o corrido com seu
mestre Sócrates.
O aprendizado obtido pelos debates figura como um tratamento que
se deve estender à palavra e à elaboração das concepções de realidade. Há
um tratamento para com o pensamento que diz respeito à fundamentação em
princípios claros, em conceitos bem estruturados e seguros para que o alvo a
ser analisado não escape. A inspiração socrática em maior ou menor grau, con-
forme os textos da maturidade de Platão, permanece como ponto de partida.
Enquanto perquiridor de consciências não há como abrir mão da crítica e do
primado da verdade. Não apenas um exercício de pensamento e não apenas
um debate, a busca de atingir a essência daquilo que é posto como alvo do
conhecimento. Malato (2009) assevera que:
Na alegoria da caverna, o filósofo afasta-se inicialmente do convívio
dos homens para procurar a luz. Também Platão, que regressa da
Sicília e funda nos arredores de Atenas uma escola, é a ilustração
desse filósofo que tendo conhecido a luz volta ao local das som-
bras, aquele em que tem de convencer os outros homens, iludidos
pela aparência das coisas.
Em obras como a República, através do mito da caverna, Platão apre-
senta como se dá a ação daquele espírito devidamente educado e daquele
que não recebeu, ou não passou por tal processo de aprendizado. A contem-
plação das coisas sublimes, aquilo que diz respeito às formas perfeitas, não é
acessado apenas com um ato de curiosidade, mas por um esforço em compre-
ender as formas perfeitas, a ideia.
A teoria das ideias se constitui como base para este conhecimento. A
constatação de que existe um belo em si, um bem em si e o grande em si,
conduz o estudioso para algo inusitado no seu modo de compreender a reali-
dade. O que separa Platão do seu mestre Sócrates, a autonomia de uma teo-
ria autenticamente sua, paradoxalmente o vincula a ele pelo aprendizado da
filosofia. Assim, analogamente, A imortalidade da alma, tão importante para
os princípios da teoria das ideias, também se configura na perpetuação de

FILOSOFIA E CIDADANIA
16 Sócrates como filósofo e mentor das teorias que buscava circunscrever. É do
diálogo socrático que Platão propõe o seu pensar autêntico. E aquele modelo
posto pelo grande mestre se dirige a outras gerações de filósofos. Há de se
preparar no exercício da razão para que estes elementos sejam devidamente
compreendidos, adverte o mestre aos seus discípulos.

Antiga ilustração da morte de Sócrates, após a tábua de David, publicada no Magasin


Pittoresque, Paris, 1840

Sócrates visava a própria alma do interlocutor, fazê-lo compreender o


quão envolvido em ilusões, libertando-se, através da constatação da sua igno-
rância e da identificação de princípios inerentes a assertivas que guiam a nossa
razão é o propósito maior do esforço deste pensador. O assunto em discussão
era apenas um pretexto, um ponto de partida para o diálogo. Sócrates dialo-
ga com todos, reconhece a autoridade de quem encontra, mas retira-o deste
lugar, faz perceber que tal autoridade conquistada apenas por determinações
de uma tradição ou pela astúcia retórica não satisfaz o pensamento que busca
a essência do conhecimento. A gravidade deste ensinamento o conduz à mor-
te, embora pensemos a cultura grega como um cenário supostamente rico em
termos de pensamento e virtuosismo.
Demolir falsas ideias não é tarefa simples, daí a necessidade de uma edu-
cação, de uma instância pedagógica. O exercício de pensar não se esgotava no
reconhecimento da própria ignorância, conduzia o indivíduo, por mais que este
não acreditasse inicialmente a alcançar a verdade. Sócrates chama de maiêuti-
ca, a condição do indivíduo gestar ideias verdadeiras, através da propriedade
do diálogo. Através de um método e de uma pedagogia filosófica. Recuperando
a saúde da alma que se configura como o conhecimento de si mesmo.
Entre os gregos vai existir uma compreensão de que a unidade nacio-
nal, a consolidação do Estado, o verdadeiro espírito de cidadania é gestado
no processo educacional, mas com Platão temos uma unidade cultural regida

FILOSOFIA E CIDADANIA
pela razão, pela atitude crítica e pela desconfiança para com procedimentos
padronizados. E quando se dá ênfase nestes elementos comuns não os limita-
17
mos apenas à informação, ao conjunto de estudos, ao aprendizado no sentido
mais acadêmico, falamos da formação da pessoa.
O conhecimento ensinado na academia visa conduzir o efebo, o estu-
dante, a atingir a plenitude de consciência pelo esforço do pensamento pelos
percalços da razão. A filosofia de Platão mantém historicamente a liberdade
que ultrapassa as exigências da ideologia da época, percebendo-se inaugural
pela sua popularidade e pelas questões que são utilizadas como requisitos
para o estudo da Filosofia.
Quando descreve a conversação de seu mestre, Platão, implanta um
estilo para a filosofia, demarcando uma ética para resolução de problemas
filosóficos. Inevitavelmente a separação entre theoria e práxis, tão comum nos
nossos tempos não representa algo parecido com aqueles tempos. Na teoria
das ideias se estabelece um princípio e isso faz o estudioso se dirigir para
a verdade que está em consonância com ele, é o método dos geômetras,
o elemento matemático com o qual seu saber reforça-se por trabalhar com
consequências lógicas. Hipóteses interligadas que fazem o conhecimento bus-
car o incondicionado, intuito maior de obtenção da verdade. Há um absoluto,
campo possível de ser alcançado pela razão através do trato com as ideias que
são arquétipos perfeitos das formas imperfeitas com as quais nos deparamos
no mundo. As ideias são reais, perfeitas, imperecíveis, eternizando-se como
paradigmas na compreensão de tudo o que existe.
Com Platão temos a compreensão de que as questões humanas passam
a ter uma diferenciação das questões cosmogônicas. Essa separação está pre-
sente na compreensão da “ideia” como elemento determinante para que o
mundo verdadeiro seja acessado. Interessante pensar que a dualidade sobre
a razão tanto parte do elemento fundamental do diálogo, mas também recai
num elemento em que intelecto e mundo se distinguem e se separam para
uma melhor compreensão da realidade. O predomínio da compreensão racio-
nal se sobrepõe na construção do conhecimento ocidental de forma a repro-
duzir dualismos na sequência de teorias e pensamentos, da antiguidade até a
modernidade. O dualismo iniciado com o pensamento platônico se estrutura
em vários outros períodos de diferentes maneiras.
A consolidação do pensamento antigo se estende aos autores con-
temporâneos que irão retornar aos antigos não apenas por uma curiosidade
acerca dos elementos que foram analisados naquele momento, mas por uma
profunda necessidade de encontrar aspectos nunca explorados, por vezes,
esquecidos pelo estabelecimento de padrões morais dos historiadores da
modernidade. A necessidade também de romper com os cânones da moder-
nidade do ideal de racionalidade e encontrar algumas saídas metodológicas
para o pensamento atual. Dentre estes pensadores que se interessam pro-
fundamente pela antiguidade Nietzsche e Heidegger. O primeiro, Nietzsche,
por buscar inversões de perspectivas no pensamento ocidental, invertendo o
pensamento platônico, saindo de uma condição que ele chama de apolínea e
adentrar uma nova condição, dionisíaca. Constituindo a contemporaneidade

FILOSOFIA E CIDADANIA
18 num espaço de abertura para o conhecimento da vida, sem estigmas e en-
quadramentos racionalistas. O segundo autor, Martin Heidegger, vai buscar
entre os pensadores da antiguidade um “passo de volta” ao pensamento que
foi abandonado pela tradição no decorrer da história, propondo através da
leitura dos antigos um encontro com a condição originária, com a originarie-
dade do pensar, conduzindo-nos para um novo olhar, uma autenticidade que
desconfia do império dos modismos ou do estabelecimento da técnica como
único modo de desenvolvimento. É neste sentido que essa experiencia inicial
não pode ser desprezada da atenção do pesquisador atento que percebe a
contemporaneidade buscá-lo. E, na verdade, o sentido da filosofia, identifi-
cado neste momento inicial é o de conduzir o indivíduo a pensar como quem
se cura, pensando palavras como quem pensa em remédios para as doenças
instituídas pelo tempo.

Indicação de Leitura Complementar


CORNFORD, F. M. Antes e depois de Sócrates. São Paulo: Martins
Fontes, 2020.
O autor é um estudioso do pensamento antigo, reunindo nesta
obra diversas palestras proferidas em Cambridge no início do
século XX, considerações históricas e reflexões importantes
sobre a filosofia. A figura central do livro, o pensador Sócrates,
é referenciado especialmente pelo modo como este demarca
para os historiadores da filosofia um novo modo de conceber o
pensamento. A observação sobre a figura de Sócrates e o modo
como se constrói um legado para o pensamento grego, torna-o
uma das figuras mais destacadas da antiguidade. A genialidade
com que novas investidas são encaminhadas fazem com que o
interesse pela cosmologia pouco a pouco se dirija a refletir sobre
o humano e suas contradições. Daí o autor abordar aspectos
importantes da transição, uma revolução que conduz a filosofia a
se constituir como estudo da alma humana.
A obra também aborda com bastante entusiasmo a ciência que
era produzida pelos Jônicos e demais pensadores. Observações
sobre as mudanças de mentalidade, destacando a especificidade
de pensadores como Demócrito. Discute temas como a educação.
O modo como a educação demarca diferenças entre a forma com
que os sofistas abordam os problemas da sociedade e a filosofia
em sua contestação pela moralidade esclarecida e pelos princípios
fundamentais do pensamento.

FILOSOFIA E CIDADANIA
19
Cornford ainda destaca a referência a discípulos como
Platão e Aristóteles demostrando como ao tempo em
que estes absorvem a teoria do mestre mais autônomos
se tornam na construção do seu pensamento e da
propriedade do seu sistema teórico. A postura socrática
influencia não apenas num novo modo de filosofar, mas as
diversas incursões realizadas por pensadores posteriores,
estendendo-se até os dias atuais.

BURNET, John. A aurora da filosofia grega. Rio de


Janeiro: Editora PUC-Rio, 2017

A obra de Burnet visa aprofundar as características


peculiares da filosofia antiga, enfatizando aspectos
do pensamento grego no que diz respeito a busca por
uma unidade racional apreensível através do intelecto.
Tendo como foco de observação o universo, conforme
as investigações dos primeiros pensadores, mas
estendendo-se às múltiplas questões que caracterizam
aquele contexto. Neste sentido aprofunda, mas apresenta
um cenário passível de ser experimentado por uma leitura
interessada no surgimento da filosofia.
As aspirações daqueles primeiros pensadores construíram
um momento em que cada vez menos a narrativa mítica
fez sentido em vista das novas exigências. O autor trata
do salto enigmático, passagem de um pensamento
mítico para uma nova consciência, com abertura para
tantas elaborações e modelos de pensamento que se
encaminham para a formação da tradição Ocidental. Uma
aventura intelectual que deu origem a história da filosofia.
A importância que tantos outros autores deram à
aurora da filosofia encabeçaram reflexões advindas de
Hegel, Nietzsche, Heidegger, entre outros. A ênfase na
apreensão dos fragmentos dos primeiros pensadores e
as diversas traduções e interpretações que se seguiram
desde Herman Diels e Walther Kranz, mostram as
possíveis relações daquele conhecimento com o nosso, o
que torna a obra de Burnet uma referência para diversos
outros estudiosos.

FILOSOFIA E CIDADANIA
20 Para Refletir
Retomar a origem do pensamento filosófico constitui, de certo
modo, a busca em compreender a base a partir da qual se consti-
tuiu o pensamento ocidental. Leva-nos a enveredar em tantas evo-
luções, compreendendo que há um legado a ser apropriado, em
meio a tantas novas invenções, em meio a tantas novas descober-
tas. O passado não refreia o presente, ao contrário, potencializa-o.
Ressaltamos que alguns pontos são importantes para pensarmos
o surgimento da filosofia. Desse modo, para refletirmos acerca
dessa base filosófica elaboramos os seguintes questionamentos:
• Como podemos encontrar e mapear as diversas influências que
os gregos receberam de outros povos para chegar à elaboração
do pensamento filosófico?
• Em que situações a Filosofia estabelece relações com outras
áreas do conhecimento?

FILOSOFIA E CIDADANIA
21
TEMA 2 – A FILOSOFIA NO MUNDO DO
HOJE (O QUE FAÇO COM ISSO?)

1. APRESENTAÇÃO
A filosofia não é um conhecimento que se fixa e se restringe ao passado,
pois se encontra cada vez mais reavivada na atualidade, reivindicada quando
nos deparamos com tantos entraves e situações paradoxais. Não precisa mui-
to para que vocês percebam como este tempo no qual nos encontramos é
tão revestido de situações problemáticas e experiências que não haviam sido
levadas em consideração ainda pelo pensamento e pela reflexão. Daí essa rei-
vindicação da Filosofia nos nossos tempos.
Diante dos impasses da vida contemporânea convidamos a reflexão filo-
sófica para nos fazer compreender um pouco mais acerca da realidade. Diante
da pergunta, o que faço com esse conhecimento? Nos aventuramos a tratar
neste capítulo uma análise do lugar da filosofia e das aberturas que ela oferece
para esse período considerado um tempo de desenraizamento.

2. DESCENTRALIZAÇÃO DO SUJEITO
A filosofia atual se consolida com a “descentralização do sujeito” do
conhecimento e uma necessidade de rever o lugar de racionalidade no qual
todas as certezas foram estabelecidas. Quando estas bases se tornam abala-
das, ou seja, quando há uma revisão das formas de pensar e do lugar central
na qual a racionalidade foi posta “o sujeito do conhecimento” entra em cri-
se, porque perde a centralidade na qual esteve durante toda a modernidade.
Aliás, a contemporaneidade se inicia quando se abandona o paradigma da
centralidade da razão em nossas vidas. Porque a contemporaneidade entende
que existem outros parâmetros importantes para elaboração do pensamento
verdadeiro, que não apenas a racionalidade ao modo tradicional. Podemos até
dizer que há uma percepção de que a verdade não pode mais ser absoluta ou
se estabelecer num princípio.
Cabe muito mais na contemporaneidade um pensamento fraco, con-
forme propõe Gianni Vattimo, um pensamento que entende de tal modo o
momento histórico no qual se encontra que abrange todas as questões, mas
não se fecha numa única interpretação, possui como traço a abertura e as
possibilidades plásticas de ressignificação

FILOSOFIA E CIDADANIA
22

Cidade de Tóquio durante a noite Fonte: banco de imagem

A descentralização se dá justamente pela compreensão de que esse sujeito


não se restringe a uma condição identitária, como do mesmo modo não é livre
dos parâmetros lógicos da contradição. Aliás, são as várias contradições ainda
presentes neste cenário que requisitam uma nova lógica e uma outra forma de
pensar os conceitos e a estruturação de sistemas filosóficos que estejam mais
próximos do cotidiano incerto e opressor das populações. Perde-se, inclusive,
a obrigatoriedade de se encontrar uma causa eficiente que defina este sujeito
e o caracterize.
O criador do conhecimento e a criatura, o próprio conhecimento, são
o alvo principal de uma nova forma de compreender a realidade. Se vocês
quiserem dizer que há na contemporaneidade uma crise na compreensão do
humano, podemos considerar que sim. Este humano que no decorrer da his-
tória foi chamado pelo artigo masculino e como “animal racional”, passa a ser
colocado em novas bases e diante de exigências completamente novas, o que
leva à crise do sujeito e à descentralização da razão.
Desse modo, vocês podem constatar que a contemporaneidade é um
momento da história em que os elementos lógicos da racionalidade são revistos
em função da condição fragmentária e caleidoscópica do próprio mundo. Há
uma travessia que sai de uma espécie de solipsismo do pensamento e se dirige
para o mundo, o que os contemporâneos chamam de “mundo da vida”. Em-
bora essa passagem pareça ser algo simples e até natural numa perspectiva
histórica, estamos falando de um acontecimento que muda os rumos da pró-
pria história, uma mudança nos processos de criação do conhecimento e na
instauração de um novo sujeito. Com essas alterações se estabelecem novos
modos de viver, novos interesses por fenômenos, situações, estilos de vida, de
arte. Requerendo à reflexão humana à construir uma nova filosofia, a ponto
desta precisar revisar as consequências históricas e analíticas das filosofias que
lhe antecederam e que estiveram sob o paradigma da razão.

FILOSOFIA E CIDADANIA
3. O ESTATUTO DA RAZÃO 23

Sempre que se fala sobre a contemporaneidade não podemos perder


de vista que o período anterior, a modernidade, tem como característica o
“coroamento da razão”. A modernidade é exaltada porque se constitui como
uma saída dos elementos teológicos colocados pela Idade Média no decorrer
de todo um processo libertário de exigências religiosas às quais o povo em
geral tinha que se submeter, mas também os pensadores e os intelectuais que
viviam sendo convocados a desfazer publicamente a validade dos seus expe-
rimentos ou descobertas, escrevendo seus textos e se refugiando em algum
outro lugar para não ter que pagar, inclusive com a própria vida.
Antes da modernidade a sociedade era estruturada no sistema feudal,
ou seja, havia uma rigidez nos padrões e um fechamento para a inovação que
restringia a vida à simples sequência das expectativas sociais e comunitárias.
Não existia nem mesmo a liberdade de assumir iniciativas e arcar com seus
investimentos. Prevalecia um condicionamento da vida social estabelecido por
figuras historicamente privilegiadas, marcadas por sistemas políticos, também
centrados na religiosidade e na religião como instituição central, mas com be-
nefícios e forte poder de influência. Diante deste contexto pouco inspirador
para o gênio criativo, alguns autores se referem aos tempos modernos como a
saída do obscurantismo dos parâmetros medievais, uma conquista grandiosa
e grandiloquente, porque incentivou uma produção muito intensa de escritos
sobre ciência e sobre filosofia, sobre o conhecimento de um modo geral.

Ilustração antiga do fogo na estação ferroviária de Toulon, França. Criado por Blanchard e
Cosson-Smeeton, publicado em L 'Illustration, Journal Universel, Paris, 1868

FILOSOFIA E CIDADANIA
24 A modernidade, enquanto momento histórico se constitui centrada
num processo de organização, classificação e ordenamento da compreensão
da vida, porque ela é formuladora de parâmetros, instigando processos extre-
mamente otimistas em relação ao poderio e a presença da razão na vida dos
indivíduos. A razão, esta preciosidade que distingue os humanos, torna-se o
elemento definitivo a partir do qual se estruturam diversas formas de conhe-
cimento, a ciência, por exemplo, mas também ações significativas do mundo
político, a consolidação de instituições como o Estado. E a organização da vida
pública através do estabelecimento de leis, como elementos laicos de ordena-
mento da vida comum.
A razão , a partir da modernidade, constitui-se como o centro a partir
do qual se organiza a compreensão de realidade do mundo, a consciência
humana, a própria cognição, e inevitavelmente, a centralidade do “sujeito pen-
sante”. Estamos falando de um período em que o Teocentrismo é substituído
pelo Antropocentrismo. E o marco que define a Filosofia é o que professa
Descartes quando se arroga do poder que possui a razão, a frase “penso, logo
existo” é recepcionada como a verdade na qual todos os humanos se reconhe-
cem, em vista do poder da razão.
Só para exemplificar as mudanças que foram estabelecidas pelo adven-
to da modernidade podemos caracterizar essas mudanças com uma ilustra-
ção que diferencie um e outro momento, é como se antes da modernidade o
mundo se constituísse como uma feira, pensem comigo: barracas espalhadas,
lugares não necessariamente simétricos, pessoas circulando, gente gritando
oferecendo seu produto, gente pechinchando, produtos sendo furtados sutil-
mente por larápios, necessidade de circular para conseguir o melhor preço...
Com o advento da modernidade é como se o mundo se tornasse um grande
supermercado, vamos recorrer à metáfora: sessões que separam produtos em
vista da sua funcionalidade, prateleiras com produtos devidamente selecio-
nados, preços expostos bem demarcados, sessões com a organização des-
tes produtos, sistemas de trocas, regras, agentes específicos para orientar o
cliente, propagandas anunciando a promoção de alguns produtos indicando
sua localização, caixas, filas, organização... Inevitavelmente, na passagem da
Idade Média para a modernidade, o mundo mudou. O que se pode aprender
com essa metáfora é que a modernidade foi extremamente importante para
consolidação do modelo de racionalidade como elemento definitivo para esta-
belecimento de critérios e padrões.
Trazendo essa metáfora para uma linguagem filosófica, ocorre que, a
modernidade é marcada pelas pesquisas científicas, pelo desenvolvimento das
grandes cidades, pelo desenvolvimento da sociedade de consumo e embora
tais mudanças apontem para um contínuo progresso, isto chega a uma espécie
de exaustão. No decorrer de todo o seu desenvolvimento relações de poder,
formas de exploração, simulacros com intenções pouco gentis, anexaram-se
ao cotidiano da vida. Daí a retomada dessas bases filosóficas para reavaliar e
impetrar um novo modelo de sociedade, concomitante a um novo modelo de
pensamento. Inaugura-se nesta reflexão e nesta crise, a contemporaneidade.

FILOSOFIA E CIDADANIA
4. A CRISE DA RAZÃO MODERNA 25

Alguns autores vão ser extremamente importantes para o estabelecimento


do pensamento contemporâneo, porque estes, através de suas teorias foram
os responsáveis por identificar outras forças que agiam sobre aquele sujeito
moderno. Não podemos perder de vista que todo o processo de construção da
modernidade se estendeu à industrialização e os modos como os trabalhado-
res passaram a se submeter a esta lógica, por conta do salário que recebiam.
A observação que se segue a este fato é relativa à denúncia de que embora a
modernidade tenha estabelecido uma nova ordem sobre a realidade, em lugar
de libertar esta ordem estava sufocando o humano em estruturas e práticas
tecnocráticas. Uma lógica de dominação que advém do sistema capitalista, uma
submissão que reduzia o humano a um processo evolutivo e científico, como se
esta, sendo a última forma de falar acerca desse humano, houvesse restringin-
do-o. Dessa forma as denúncias encabeçadas pelos pensadores.
A crise do modelo de racionalidade se encontra na obra de Karl Marx,
extremamente importante para a contemporaneidade em vista da análise
detalhada das estruturas econômicas e das formas de exploração que se es-
tabelece sobre a classe trabalhadora, atraindo a atenção para as formas de
opressão que se naturalizavam em sentido histórico. A denúncia acerca dos
processos ideológicos que buscam desfazer as contradições e embates ineren-
tes à vida social, a forma como não se leva em consideração as necessidades
materiais de existência, consolidam formas de hipostasiar a própria condição
do humano, reforçando a própria dominação sobre si.
A filosofia marxista constitui um pensamento que analisa o humano a
partir das relações de produção e da luta de classes que se trava entre bur-
guesia e proletariado. Para seu autor, as instituições sociais estão inseridas
nesse contexto que marca a sociedade capitalista, construindo uma ideologia
dominante que apazigua as relações, fazendo com que se construa a ilusão
de que ambos, burguesia e proletariado, lutam pela mesma causa, mantêm
os mesmos interesses de desenvolvimento e conquista de bem-estar. Aque-
les que dominam os meios de produção, na medida em que preparam mão-
-de-obra qualificada, para atender as necessidades do mercado, reproduzem
esta ideologia dominante, coisificando o trabalhador, em meio às mercadorias.
O poder da ideologia na ação e nas formas de explicação da realidade
chama a atenção de Marx para explicar que ela é um conjunto de ideias que,
ao tentar explicar e justificar a realidade, não a esclarece de modo verdadei-
ro, mas mascarado, camuflado, mantendo intacta a base da qual parte seu
discurso emblemático. Isso, com a finalidade de ludibriar a consciência do es-
pectador e reafirmar os objetivos ocultos que se sobrepõem à ação daquele
que sobrevive e se percebe na aceitação passiva dessas ideias. Marx destaca
o aspecto negativo da ideologia, porque em meio às sutilezas ela manipula
verdades e domina a consciência de grupos humanos, levando-os naturalizar a
exploração do seu trabalho, por exemplo. A este poder da ideologia devemos
considerar que:

FILOSOFIA E CIDADANIA
26 “(...) temos a ilusão de que estamos pensando e agindo com nossa
própria cabeça e por nossa própria vontade, racional e livremente, de
acordo com nosso entendimento e nossa liberdade, porque desco-
nhecemos um poder invisível que nos força a pensar como pensamos
e agir como agimos. (CHAUÍ, 2018, p.99)
A ideologia nos lança numa esfera espectral de pensamentos e senti-
mentos que não correspondem à nossa própria realidade, fruto de interesses
outros que se agregam à vida cotidiana do trabalhador, num processo em que
a submissão se justifica como um encaminhamento para a melhora.
Significa dizer que para pensar a humanidade é necessário pensar as es-
truturas econômicas, políticas, sociais e históricas como fundamento de toda
a conduta, ou seja, o humano é resultado da ação desses elementos. Dentro
dessa perspectiva interessa entender o papel do Estado, enquanto gerador
de ideologias, manipulador de ideias, dominador de corpos e mentes. Pois, à
medida em que institui ideias que garantam o domínio de uma classe, a bur-
guesia, explora as efetivas condições materiais de sobrevivência, reduzindo a
dignidade da classe trabalhadora.
Assim sendo, ao invés de o Estado garantir o bem comum, reforça atra-
vés de mecanismos a exploração a divisão de classes na sociedade, permitindo
aos ricos se tornarem cada vez mais ricos, e aos pobres se distanciarem dos
bens promovidos pela vida social. Por isso, é que para Marx, o Estado se trans-
forma também num instrumento de repressão e dominação.
A crise do modelo de racionalidade se encontra na obra de Freud, no
conjunto de saberes aprofundados pela psicanálise com a descoberta do in-
consciente e de todos os elementos relacionados, forças que abrangem a
compreensão da consciência como algo de uma maneira totalmente inusitada.
Há um impacto epistemológico extremamente significativo com a formulação
dessa nova ciência, mas há um impacto social tão forte quanto, com a compre-
ensão de que o inconsciente tanto diz respeito ao plano individual, quanto ao
plano social. Joel Birman reforça que a psicanálise formula um descentramento
com o conjunto de saberes que ela estrutura o que estende um diálogo muito
interessante com a filosofia.

Sigmund-Freud em 1891 Karl Marx (1818-1883)

FILOSOFIA E CIDADANIA
A descentralização provocada pelo pai da psicanálise traz à tona ele-
mentos que precisam ser revistos na tradição intelectual e acadêmica, mas
27
também em novas formas de convivência. Inevitavelmente a aproximação para
com a filosofia se dá especialmente por um afastamento específico que a psi-
canálise opera com seu conjunto de saberes da submissão ao âmbito científi-
co. Na tentativa de enquadramento epistemológico a psicanálise considera a
medicina parte do poder normativo que envolvia conjuntamente outras insti-
tuições do campo da ciência, primando pelo disciplinamento de corpos e de
posturas. Interrelacionando saber e poder como formas de estabelecer um
critério normativo e consequentemente racional para o encaminhamento de
tratamentos e obtenção de cura dos sintomas patológicos. Hoje em dia cada
vez mais se evidencia o quanto a psicanálise e a prática médica estão em luga-
res distintos, ainda que possam manter o mesmo intuito terapêutico.
Através das descobertas de Freud se inaugura uma nova subjetividade o
alvo dos pressupostos e pesquisas do pensamento psicanalítico que se esten-
de. Há um novo horizonte de percepção do humano que se mostra incompleto
não por ser apenas um pecador, mas por possuir instâncias psíquicas que o
fazem perceber sua incompletude e buscar compreender a dimensão desta.
Uma falta que busca ser preenchida em diversas situações pontuadas teorica-
mente, mas observadas na clínica e nas instâncias do imaginário e da fantasia.
O plano simbólico é extremamente importante para percebermos o humano
que não mais se retém à definição da razão. Não é mais o simbólico enquanto
representação ou espelhamento da natureza, é uma ordem bem mais primiti-
va, primordial. Através das suas descobertas, Freud:
(...) mostrou que os seres humanos têm a ilusão de que tudo quanto
pensam, fazem, sentem e desejam, tudo quanto dizem ou calam
estaria sob o controle de nossa consciência porque desconhecemos
a existência de uma força invisível, de um poder – que é psíquico
e social – que atua sobre nossa consciência sem que ela o saiba.
(CHAUÍ, 2018, p.99)
O inconsciente, essa descoberta que altera completamente os rumos da
contemporaneidade vai de encontro aos dualismos da racionalidade tradicio-
nal porque demostra o descentramento do modelo de consciência. É um sujei-
to dividido, marcado pela ruptura. Ligado fundamentalmente à palavra como
recurso terapêutico e não como decreto, lei e normatização. As funções da
linguagem se alteram, assim como se altera as perspectivas metodológicas uti-
lizadas em várias outras ciências, é que tal descoberta não se restringe apenas
à psicanálise. Através da psicanálise se constitui uma cadeia de significantes
, reconduzindo-nos a perceber que não há um mistério no âmbito geral, mas
fundamentalmente no âmbito particular que precisa ser compreendido por
instâncias outras de compreensão, na esfera do simbólico e da interpretação.
Influenciando novos modelos para reestruturação da vida social e das tensões
sociais que provocam sintomas patológicos. A sociedade é sempre o pano de
fundo das questões que sugere para aprofundamento, pois através dela se mantém
um “mal-estar”, uma condição outra que necessita ser estudada para que a vida
em comunidade não se restrinja a ser algo plausível e detalhado, mas nunca
alcançado, uma espécie de fracasso que só se realiza num plano ideal.

FILOSOFIA E CIDADANIA
28 5. A SOCIEDADE DE COMUNICAÇÃO
GENERALIZADA
O início da contemporaneidade é uma questão que gera diversas con-
siderações desde a demarcação histórica de um período que começa com
a Revolução Francesa até os dias atuais, às considerações econômicas que
destacam as mudanças no sistema capitalista do final do século XIX, como o
elemento definitivo para o início de tal período. Como o período já nasce em
meio à polêmica, esta estende-se pelos diversos desdobramentos da contem-
poraneidade até o momento em que estamos agora.
Em meio a estes marcos definitórios há o surgimento de um modelo novo
de sociedade, chamado sociedade de massa ou mass mídia, ou melhor, “socie-
dade de comunicação generalizada”, que nesta abordagem é tomada como
elemento definitivo para a compreensão da contemporaneidade. O século XX,
especialmente pela metade deste século constatamos nele o surgimento da
sociedade da imagem, regida pelo espetáculo e pelos diversos simulacros que
se adequam à vida comum das pessoas, suscitando movimentos, incitando a
reflexão e convidando os desavisados para adentrarem um novo tempo.
“As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se
em um fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não
pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente
apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo
à parte , objeto de mera contemplação.” (DEBORD, 2019, p.06)
Uma nova história, que se sucede em suas diversas passagens, reco-
nhecemos, por exemplo, a absorção da inteligência artificial na atualidade,
as polêmicas que esse fenômeno tem nos colocado, para entendermos que a
sociedade da comunicação generalizada é a aquela na qual fixamos a instabi-
lidade e a fixidez do nosso “modo de ser contemporâneo” através de tecno-
logia, mas também através da crítica à tecnocracia. Algo tão interessante que
quanto mais avançamos no futuro, mais entendemos acerca do que a filosofia
contemporânea adverte e expõe nas suas reflexões analíticas.
Há conquistas contínuas e riscos iminentes, como o de abrir espaço para
discursos e governos autoritários, como as tecnocracias do século passado,
que avançaram sobre diversos territórios, inclusive sobre o Brasil, construin-
do uma ditadura amparada na tortura e na aniquilação de discursos que não
reproduzissem suas aspirações absolutas de poder. Quando se espera que a
experiência traumática destas vivências amplie os diálogos, vem um novo mo-
delo de sociedade que nos coloca em reflexão, é esta, verdadeiramente, uma
sociedade transparente?
Surge uma sociedade fragmentada, marcada pelo abandono de formas
tradicionais, mas ao mesmo tempo sem muitas possibilidades de superação

FILOSOFIA E CIDADANIA
deste modelo que ela própria critica. Gianni Vattimo é um destes autores que
observa as novas formas do contemporâneo reforçando que:
29
“A intensificação das possibilidades de informação sobre a realidade
nos seus mais variados aspectos, torna cada vez menos concebível a
ideia de uma realidade” (VATTIMO, 2019,p. 18)
Este caminho peculiar trilhado pela sociedade contemporânea e seu
modelo tão aficionado à informação massiva até de detalhes e modos de ser
que figuram apenas como idiossincrasias, tem repercussões sobre o embate
com o pertencimento às aparências. Os limites entre realidade e aparências
não apenas se estreitaram, mas criaram formas de ver o mundo.
A questão da imagem se amplia alçando comportamentos marcados
pelo “narcisismo contemporâneo”, ocasionado em especial por este modo de
acesso ao real. Motivado pelo processo de personalização na qual a socieda-
de contemporânea se estabelece em vista do atendimento às necessidades
individuais e aos interesses de consumo. Há neste fenômeno uma deserção
generalizada de valores comuns, de interesses sociais. Pode-se observar uma
despolitização dos interesses e das lutas em comum. Do mesmo modo uma
dessindicalização, abandono dos elementos ligados a conquistas dos traba-
lhadores.
De um modo geral as formas de relacionamento são desvitalizadas.
Cada vez mais o sistema tecnocrático e toda tecnociência exalta sistemas com
aparência humana voltados unicamente para satisfação pessoal, para o prazer,
para o destaque dos seus possuidores, exaltando o caráter mercadológico.
Há apenas uma sensibilização epidérmica na qual as coisas são experimenta-
das, mas não vivenciadas, o que prevalece é a superficialidade como modo de
desvinculamento e como forma de proteção. Há uma proteção de si, da inten-
sidade, como se a própria vida fosse, ela mesma, um programa controlado e
mantido sob controle dos riscos.
Observamos uma relação muito peculiar entre a instrumentalização da
razão e o consumo, expressa no narcisismo contemporâneo. Destaca-se um
sentido voltado para o que podemos chamar de capitalismo hedonista que
oscila entre capitalismo libidinal devido ao caráter de sedução com que tudo é
apresentado e consumido desenfreadamente dentro deste sistema, que Lipo-
vetsky chama de “sexdução”, uma espécie de abdução pelo caráter sedutor
das coisas. O indivíduo se encontra num presente eterno, meio que inaugural,
sem considerar o passado como fonte importante de informações e experi-
ências, sem considerar o futuro na perspectiva da mudança e das revoluções
necessárias para algo ser alcançado, O narcisismo contemporâneo ressalta o
indivíduo preso a sua imagem, parecendo libertar-se, enquanto não encontra
outra saída a não ser a exaltação da própria imagem, muito presente no texto
do próprio mito, Donaldo Schuler traduz o texto de Ovídeo que relata quando
o jovem Narciso aproxima-se da fonte para aplacar sua sede:

FILOSOFIA E CIDADANIA
30 Bebendo, prende-o a imagem da
formosura vista, ama esperança
sem corpo, reputa corpo o que é
sombra. Extasiado face a si
mesmo, imóvel, ao mesmo vulto
preso, como se fora estátua
talhada em mármore pário.

(...) Ignorante, deseja-se e, aprovando,


Aprova-se a si mesmo.
(...) Ignora o que vê, mas o que vê
o inflama.
O mesmo erro os olhos ilude e
excita.
Por que persegues, crédulo,
Frustrado, simulacros fugidios?
O que queres não há. Do que
Amas, retira-te e o terás perdido.
Esta sombra que assombra é tua
imagem refletida.

Há o surgimento e a exaltação do indivíduo inédito, que marca sua


presença pela diferença, mas que ao mesmo tempo é aquele que procura
ser imitado por todos, para se sentirem também diferentes, ainda que haja
o reconhecimento da própria imitação. São sucessivas cópias, que a original
se perdeu. Neste sentido, cada um alça ser a própria e mais perfeita “cópia
original”. Um novo desdobramento ligado a esta condição narcísica. Ao tempo
em que parece ser um atendimento ao pedido do outro, há verdadeiramente
uma desafeição generalizada que tanto se estende ao coletivo como também
ao indivíduo.

6. A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA RAZÃO
Se a contemporaneidade é marcada pela desconstrução, precisamos
saber acerca do que ela está a se referir quando reforça tal desdobramento.
Pois é a partir destes elementos que podemos falar de uma crise da razão. Ela
se estende à visão que se tem da realidade, desdobrando-se como uma crise
da visão. O grande exercício do pensamento contemporâneo é justamente de
se desenvolver um novo olhar, ou de conseguir desprender o olhar de uma
compreensão homogênea e estigmatizante. A crise também se estendo para
os modelos prontos, para as formas acabadas.

FILOSOFIA E CIDADANIA
A crise da razão diz respeito a insatisfação com o modelo de sociedade,
primordialmente à insuficiência de uma tomada de consciência mais ampla da
31
condição humana. Critica o modo como se constrói conhecimento, pois se fa-
lamos de uma crise da razão referimo-nos fundamentalmente ao modo como
se constitui a ciência no contexto da sociedade atual. Motivando o exercí-
cio de desconstrução no âmbito epistemológico, mas também institucional. A
desconstrução e a reformulação do pensamento contemporâneo não podem
ser confundidas com o abandono do conhecimento, com a desqualificação
da sua necessidade. É algo que não autoriza crendices e teses absurdas de
ganharem ênfase, ainda que se destaquem nos espaços midiáticos sob o selo
da renovação.
Há uma questão com os modelos de ciência que se estenderam até
a contemporaneidade, todos eles desaguam na tecnociência, como se esta
fosse a própria culminância maior de sua elaboração. Contudo, os modelos
continuam de algum modo a reivindicar, no lugar que ocupam, o seu reconhe-
cimento como um conhecimento neutro, imparcial e objetivo, por excelência.
É na tecnociência que se faz presente a “razão instrumentalizada”, em vista
dos resultados que esta pretende apresentar, há uma sugestão de onipotência
com a qual a tecnociência se estende aos mais variados âmbitos. Constitui-se
implicitamente por uma lógica de poder, através do quadro referencial para o
qual se estabelece a visão da realidade sugerida.

Mineração floresta tropical. Fonte: banco de imagens

FILOSOFIA E CIDADANIA
32 A razão instrumentalizada tem um desdobramento bem específico no
campo da tecnociência. Quando este humano é restituído, por vezes enqua-
drado. para uma perspectiva naturalista, ele é retirado do seu campo de totali-
dade. É nesta perspectiva que se constrói uma imagem que serve de ilustração
do poder desse campo de conhecimento, que não é apenas uma representa-
ção, mas que também configura um simulacro. Institui-se uma representação
auto-referencial que de certo modo perde a própria imagem do humano, man-
tendo-se apenas enquanto “imagem da própria imagem”, fazendo-nos per-
ceber a própria anulação da realidade, em lugar de uma oferta incontestável
dessa realidade. Tal situação pode ser identificada nas situações mais cotidia-
nas. Certa vez alguém passando na frente de um hospital viu estendida sobre
a grade da instituição uma faixa com uma afirmação que funcionava como uma
reivindicação, dizia, vamos “Humanizar o Pronto Socorro”. Cada um de nós
entende bem o que quer dizer a frase da faixa, já tivemos experiencia com os
atendimentos em locais como este. A pergunta que sobressai é, porque este
lugar, ainda que mantido e habitado por humanos, ainda que com todo apara-
to tecnológico e com procedimentos técnicos realizados pelos seus agentes,
não é humanizado. Em diversos outros setores da vida do trabalho essa rei-
vindicação, por uma humanização, continua a fazer todo o sentido, quando
se reconhece que nestes espaços a razão foi instrumentalizada a ponto de se
perder o traço característico que nos define, a humanidade. Para entender o
estabelecimento do modelo de razão instrumental, Heidegger apresenta o
modelo:
A riqueza da terra desabriga-se agora como reserva de carvão, o
solo como espaço de depósito de minerais (...) O campo é agora
uma indústria de alimentação motorizada. O ar é posto para o
fornecimento de nitrogênio, o solo, para o fornecimento de mi-
nério, para o fornecimento de urânio, este, para a produção de
energia atômica. (...) (HEIDEGGER, 1997, p. 57)

Essa erosão do princípio de realidade é algo com o qual nos deparamos


e não temos uma resposta ou uma saída imediata para estabelecer como sa-
ída da crise. Daí a importância da filosofia nos nossos tempos, reflexões que
funcionam como faróis trazendo luz em meio a tantos simulacros, em meio a
tantos modismos e obscurantismos.
A emancipação se caracteriza essencialmente como uma forma de agir
criticamente sobre as relações estabelecidas atualmente. A ideia de crítica é
importante para falarmos na necessidade de perceber e não fugir das tensões
inerentes ao nosso tempo. Há uma condição terapêutica que percebe que não
é apenas desfazer, mas encontrar novas formas de habitar. A emancipação é
um desenraizamento, uma forma de entender que sobrevivemos sim, sem um
solo contaminado por vivências já calcificadas. Emancipar-se da submissão ao
modelo funcional da razão instrumental, emancipar-se em relação aos anti-
gos modelos de política e democracia. De um modelo civilizatório pautado na
violência e na colonização dos grupos minoritários. Emancipar-se da barbárie
presente nas novas formas de violência e no esvaziamento do humano. Eman-
cipar-se de processos de reificiação e objetificação do humano submetendo-o
unicamente à lógica do consumo.

FILOSOFIA E CIDADANIA
No desenraizamento há uma libertação das diferenças, enlaces que se
constroem ou se desfazem, sem precisarem se justificar, pelo simples desejo
33
de experimentar, de criar inovações. Vattimo adverte que “ não é necessaria-
mente o abandono de toda e qualquer regra, a manifestação bruta do ime-
diato” 17 É um modo de tomar a palavra no conjunto do debate público, nas
esferas democráticas, na busca por inserção na vida e na vigência das leis que
defendem e reconhecem o surgimento dos grupos socialmente organizados,
suas pautas e sua presença em meio ao caldo cultural. E neste movimento que
oscila e por vezes se vê frágil e faltoso, a possibilidade que temos de nos ver-
mos como humanos e desse modo agirmos como tal.
Em relação aos sistemas de controle político vão destacar o risco de se jus-
tificar a barbárie como forma de naturalizar o mal. A instrumentalização da razão
se fez presente no jogo das guerras que marcaram o século XX. A guerra revela
um modelo de racionalidade incompatível com nosso processo civilizatório. Em
lugar de progresso o que se reivindica para a história é a emancipação e não a
submissão aos sistemas de controle. Pois a história não é um curso unitário, cons-
truímos uma historiografia que transforma o sentido dinâmico da história em algo
estático porque constrói nexos causais, sistemas de correlação, encenando uma
representação que na verdade encobre, muito mais do que mostra.
Uma história emancipatória é aquela que identifica os sistemas de con-
trole, os expõe e os ultrapassa através das iniciativas sociais. Ingênuo pensar
que há um ponto a partir do qual pode se construir o discurso acerca de feitos
e acontecimentos. São vários os pontos que se percebem na sua fragilidade, a
mesma, sem um se sobrepor. Insurge sempre um elemento etnográfico, quan-
do qualquer escrita é ensaiada, mesmo a escrita do nosso presente. O ideal da
Europa é mais um dentre outros, ocorre o mesmo com o ideal estaduniden-
se. E isso é estabelecido especialmente pelo advento da comunicação. Pelas
possibilidades de realizar várias transmissões, de observar por vários ângulos
e termos vários diálogos incrementando a plurivocidade dos nossos tempos.
Quebrando visões estereotipadas, derrubando heróis e reconstruindo outros,
conforme os nossos interesses coletivos e sociais.
A contemporaneidade é marcada pelo advento crescente de novas tec-
nologias. Estas constituem um importante instrumento para consolidação do
mundo globalizado no qual nos encontramos, seja no que diz respeito à infor-
mação, seja no que diz respeito à comunicação. Elas constituem e compõem
uma realidade incontornável que envolvem neste processo de expansão, pois
se percebe que o conhecimento requer dos seus promotores a habilidade em
se comunicar e estar continuamente informado. Quebra-se um antigo paradig-
ma de que o filósofo seria um pensador ensimesmado, fechado no seu campo
de reflexão. Há uma ampliação do campo de visão de quem busca o conhe-
cimento, este insere o conhecedor curioso num caleidoscópio de percepções
e compreensões. Desde autores mais otimistas que exaltam as características
da realidade virtual até autores mais críticos que observam a expansão do
império da técnica , as novas tecnologias surtem como um tema importante
pelo seu poder de integração interconectando o local ao global, reconfigu-
rando as geopolíticas e a capacidade criativa das reflexões acerca do mundo
contemporâneo.

FILOSOFIA E CIDADANIA
34 Indicação de Leitura Complementar
LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo
contemporâneo. São Paulo: Manole, 2003.

A sociedade atual se reveste de formas e modos de tratamento


que nos levam a questionar alguns estatutos inerentes às relações e
aos enlaces sociais. Nesta sociedade, o individualismo se estrutura
na sua mais apurada forma que é o narcisismo contemporâneo.
Expresso por um desejo contínuo de satisfazer seu hedonismo
pelo personalismo, pelo estabelecimento de serviços e aquisição
de objetos de consumo marcados por uma lógica de sedução
incontestável.
O abandono das causas sociais, a perda do vínculo ao coletivo, a
deserção das questões políticas agrava o quadro em que a violência
e a intolerância se constituem como única forma de encarar os
embates, as contradições e a adversidade. Daí, a sociedade
narcísica ser uma sociedade da morte, fechada para as diferenças
e absorta no encanto das imagens que se propagam através dos
diversos meios de comunicação. Incitando uma reflexão profunda
acerca da nossa relação com a tecnologia e com os sistemas de
simulação. Afeitos ao individualismo, à globalização e à estética
capitalista.

HOBSBAWM, Erick. Tempos fraturados: cultura e sociedade nos


século XX. São Paulo: Companhia das letras, 2019.

A obra é constituída de textos reunidos, entregues para publicação


um pouco antes da morte do autor. As abordagens dão sentido
a uma série de percepções relacionadas à política e à sociedade
do século XX, imersas em suas contradições e no estabelecimento
de uma lógica de exploração, renovada pelos requintes de uma
sociedade midiática.
Hobsbawm retoma aspectos e elementos presentes no cenário
contemporâneo desde a revolução francesa até os dias atuais,
analisando pelo detalhe as diretrizes mais fundamentais dos
desdobramentos históricos. São análises críticas que se estendem
à retomada da crítica do capitalismo e seus desdobramentos no
modelo de sociedade de consumo, consequências de uma cultura
burguesa revista com grande brilhantismo.

FILOSOFIA E CIDADANIA
Para Refletir 35
Diversas questões da contemporaneidade dizem respeito ao modo
como compreendemos este momento histórico marcado pelo pre-
domínio de imagens e de situações que não podem ser considera-
das reais. Uma sociedade que promove o hedonismo em suas mais
variadas manifestações e vivências. Como se a vida se transformas-
se num grande parque de diversões.
Ressaltamos que alguns pontos são importantes para pensarmos a
atualidade da filosofia. Desse modo, para refletirmos acerca desse
lugar filosófico elaboramos os seguintes questionamentos:
• Como podemos nos considerar verdadeiramente informados
nesta sociedade em que a informação cada vez mais nos falta?
• Como é possível construir um certo olhar crítico sobre a nossa re-
lação com a tecnologia, com o consumismo e com as sutis formas
de dominação?

FILOSOFIA E CIDADANIA
36
TEMA 3 – A POLÍTICA COMO EXPRESSÃO
DA CIDADANIA (QUEM É ESSE
SER FILOSÓFICO?)

1. APRESENTAÇÃO

A filosofia tem algumas dimensões práticas que requisitam um olhar


atento sobre a ação, afinal esta não pode ser desvinculada do pensamento,
desde os primeiros pensadores que a política é um problema de ordem filo-
sófica, a politeia, como chamavam os antigos pensadores que entendiam ser
este conhecimento necessário para se conduzir de uma maneira ajustada os
destinos da coletividade, a vida em sociedade e a formulação das leis, tão im-
portante para conquista de direitos e reconhecimento social.
Não precisa muito para que vocês percebam como a política se encontra
presente nos nossos dias de forma intensa, seja nas notícias veiculadas nos
jornais, seja no afã de transformação da sociedade. Vivemos um tempo em
que não podemos renunciar a ações e ao envolvimento com os grupos invisi-
bilizados pela política institucional. Daí, a presença concreta da reflexão filosó-
fica, que não se esgota na observância e na beleza de construção de um belo
discurso, ato atribuído a grandes oradores que movimentam as multidões,
mas fundamentalmente nos modelos sociais de política que nos garantam a
vida cidadã.
Diante das diversas pautas políticas reivindicadas no nosso tempo pro-
pomos tratar a política não como uma ação de profissionais, envolvidos nos
trâmites do processo eleitoral, mas como reflexão que nos garanta participação
ativa em meio às situações habituais com as quais nos deparamos. Diante da
pergunta, quem é esse ser filosófico? Respondemos que somos nós, estudantes,
profissionais das mais diversas áreas da sociedade, todos que se dedicam a
viver em solidariedade.

2. A POLITICA COMO QUESTÃO FILOSÓFICA

A sociabilidade é o elemento predominante na ação política, pois nos


unimos politicamente em função de interesses que nos interligam. Ainda que
marcada pelos conflitos, no intuito de definir como esses interesses serão re-
queridos, mantemos entre nós a percepção de que juntos somos mais fortes
do que individualizados. Há uma relação que acompanha a política no que se
refere a natureza humana, essa natureza social, somos pensados enquanto
esse ser social que inevitavelmente se aglomera para expressar seus interesses,

FILOSOFIA E CIDADANIA
para se defender das adversidades. A visão sobre a natureza humana oscila
muito entre os pensadores que a definiram como boa, ou como uma natureza
37
má. Em ambas a situações estes pensadores destacam o lugar primordial da
política para que o equilíbrio social se estabeleça.
A política existe para que os conflitos que nos movem não sejam resol-
vidos pela ação da força, pela ação guerreira, que em lugar de nos fazer parar
para conversar, incitaria a violência de uns para com os outros. Realizamos po-
lítica para através do diálogo forte e elaborado possamos chegar a um ponto
de convergência. Isso não significa dizer que iremos pensar do mesmo modo,
mas que diante daquela situação tomamos a mesma decisão.
Um e outro, seres sociais, abriram mão em troca de uma negociação,
em troca de um bem. A política funciona como um “bem comum”, como uma
ação que interliga indivíduos nas suas diferenças. Nenhum partido, nenhuma
associação, nenhum grêmio estudantil funciona com pessoas que pensam do
mesmo modo e creditam a solução dos problemas à mesma medida a ser
tomada, porém, estas pessoas, por estarem na vivência política estabelecem
critérios em prol de se chegar num ponto de concordância. Numa consciência
comum. André Comte-Sponville define toda essa situação do seguinte modo:

A política supõe a discordância, o conflito, a contradição. Quando


todo mundo está de acordo ( por exemplo para dizer o que é me-
lhor a saúde que a doença, ou que a felicidade é preferível à infelici-
dade...) , não é política. E, quando cada um fica no seu canto ou só
trata dos seus assuntos pessoais, também não é política. A política
nos reúne nos opondo: ela nos opõe sobre a melhor maneira de nos
reunir. Isso não tem fim. Engana-se quem anuncia o fim da política:
seria o fim da humanidade (...) (COMTE-SPONVILLE, 2020, p. 30)

Engana-se quem, em nome de uma vida pacífica, abre mão da política,


para que seus problemas sejam solucionados de forma branda e eficaz. Não
fazer política também é uma forma de fazer política, só que ao revés. É uma
forma de deixar para o outro que decida acerca daquilo que você mesmo deveria
decidir. Do mesmo modo que votar em branco não é apenas ”não votar em
ninguém”, é muito mais deixar com que os outros ajam na sua esfera de liber-
dade decidindo os rumos de uma eleição. Você até pode não fazer política e
não querer votar, mas isso não te retira do campo de forças no qual se move a
política. Retroagir a uma espécie de vivência infantil em que as escolhas nunca
são suas, não resolve o problema de ter uma vida mais pacífica, ou um bom
candidato eleito para a próxima votação.” O apoliticismo é ao mesmo tempo
um erro e uma culpa”, diz Sponville para nos situar quanto a certa resistência
pela política.
A política diferencia-se da moral porque esta última é sempre uma ação
que visa o bem, com a política o bem gerado é sempre indicado para quem ele
irá servir. Agimos politicamente por interesses e não por altruísmo, por uma
motivação generosa, mas por uma motivação solidária. A solidariedade dife-
rencia-se da generosidade na perspectiva de que, a solidariedade é a simples
ação conjunta, politicamente organizada em prol de interesses, mas também

FILOSOFIA E CIDADANIA
38 dentro do rol de conflitos que falávamos a pouco. Na política temos uma pá-
tria, temos um território, há uma pauta e um grupo representado. O equilíbrio
da ação política é a promoção da cidadania e o bem-estar para o cidadão.
Entendemos que não é apenas um ato de generosidade acabar com a miséria
e com a exclusão, mas um embate de forças que se colocam em nome de uma
legitimidade.

Manifestação pública. Fonte: banco de imagens

Quando nos defendemos coletivamente estamos agindo de maneira so-


lidária e não de maneira generosa. “Ser solidário é defender os interesses do
outro, sem dúvida, mas porque eles também são – direta ou indiretamente
– os meus.” Desde que a política foi desvinculada da moral, pelo início da mo-
dernidade, entendemos que sua ação, por mais eficaz que seja, não é um ato
de generosidade para com o outro, mas a compreensão de ideais, de metas,
de interesses pelos quais o indivíduo luta e se esforça para vê-los concretizar
na vida em geral das pessoas.
Através da política assumimos um protagonismo especial para com a
vida e para com os outros. Entendemos que este ser que pensa, esse indivíduo
que se esforça por ler e compreender teorias tão importantes, este estudante
que se esforça por concluir o seu curso acadêmico, o faz por si, mas por acredi-
tar na reforma das estruturas sociais das quais ele próprio faz parte. Por acre-
ditar em ideais de vida, que não estão presentes ainda, mas que através da sua
ação podem se concretizar e materializar. Transformando-nos, abrimos espaço
para outros, não é assim que funciona a instauração da jurisprudência. A ini-
ciativa dos que nos antecederam, ainda que fossem iniciativas muito pessoais,
que em determinados momentos, remotos, nem parecesse algo possível, é
aquilo que nos abriu um novo caminho, uma nova forma de nos instalarmos no
nosso presente. A política parte dessa relação com o outro, relação que não é
marcada pela generosidade, mas pela solidariedade.

FILOSOFIA E CIDADANIA
3. A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA 39
COMO FATO POLÍTICO

A política é a ação do humano sobre a sua vida social. Percebe-se que


não há como se falar do humano sem levar em consideração um jogo de forças
que o faz estruturar a própria vida social. A este jogo que faz observarmos
as formas de poder, chamamos política. É como uma segunda natureza, uma
condição que abarca toda a vida e que não pode ser deixada de lado diante
de uma reflexão sobre a vida, atenta e direcionada.
A Filosofia, além de ser um tipo de conhecimento, enquanto tal, é um
produto social e cultural, dizemos habitualmente que é a área do conhecimento
que abrange as mais importantes questões sobre a dimensão humana, os fun-
damentos de sua ação, as bases da vida política, e as perspectivas e contradi-
ções do conhecimento, superando o senso comum e o conhecimento estreito.
Há questões universais que nos fazem entender determinadas ações e fatos
sociais que moveram populações e que instauraram certo modo de ser em
cada sociedade. Por mais que possamos falar do capitalismo como um sistema
econômico, há uma política, formas históricas que o caracterizaram e o fazem
chegar neste momento no qual nos encontramos, em que parece ser esse
sistema insuperável.

Oração fúnebre de Péricles na


antiga nota de 50 dracmas da
Grécia (1955). Famoso discurso
histórico de Péricles no final
do primeiro ano da Guerra do
Peloponeso.
Fonte: Banco de Imagem

As bases da Filosofia na Grécia, as formas de sua revitalização histórica


conforme as diversas interpretações e a instauração de instituições políticas
gestadas lá na antiguidade e que se consolidam cada vez mais atualmente nos
lança no debate e na investigação sobre as bases culturais do pensamento, de
maneira mais específica acerca das bases do pensamento brasileiro, construí-
do sob o estigma da colonização portuguesa e seus fundamentos reacionários
e anti-modernistas. Pensar o universal requisita aproximar-se do local para que
possamos visualizar a íntima relação que ambos gozam para dar suporte ao
pensamento, para dar suporte às formas de transformação da sociedade.

FILOSOFIA E CIDADANIA
40 A ação dos seres humanos na sociedade é um tema que surge como
uma questão central no mundo constituído, tornando-se uma preocupação
da filosofia a partir do século IV a.C.. Platão e Aristóteles debruçam-se sobre
a tarefa de justificar racionalmente a existência social do humano. E como o
pensamento antigo encontra na cidadania uma inserção necessária para que
os indivíduos conquistem sua plenitude existencial, as obras sobre a política
envolvem reflexões sobre estratégias, mas sobre os diversos setores da socie-
dade, sua organização e sua estruturação. A lição que fica dos gregos é de que
a política está intimamente ligada à construção do espaço público, muito mais
do que as urnas, a democracia é representada pelo comício, pela propaganda
eleitoral, pelo corpo-a-corpo dos políticos, dialogando com seu eleitorado.
Nos dias atuais autores como Zygmunt Bauman se preocupam com
uma espécie de liquefação do Estado-nação, pois as questões públicas não
estão sendo absorvidas pelo Estado, ficando a sociedade de fora daquela
proteção oferecida e que dá sentido mesmo ao Estado. É um mundo crivado
por “auto-estradas da informação”, mas à mercê de outras forças que não
aquelas advindas do governo.

A desigualdade social é o habitat e o campo de pastagem natural


da arte de “levar vantagem” - ainda que ao mesmo tempo seu
produto sumário. O jogo de levar vantagem implica e insinua que
o caminho para reparar o dano perpetrado até aqui pela desigual-
dade é mais desigualdade. Sua atração repousa sobre a promessa
de tornar a desigualdade dos jogadores, de banimento, em algo
ativo; ou, antes, de tornar o banimento social conjuntamente sofri-
do da desigualdade num ativo individualmente desfrutado – pela
medição de seu próprio sucesso segundo o fracasso do outro (...)
(BAUMAN, 2020, pp. 68-69)

Há uma complexidade com a qual necessitamos lidar, críticas diversas


acerca de grande margem de excluídos, mas ao mesmo tempo à percepção
de que há um valor inerente ao Estado que faz com que não o dispensemos,
como se houvesse sido superado. A reformulação do Estado é uma ação que
envolve os cidadãos de um modo em geral e as instituições gestadas nas suas
instâncias de poder.
O controle político global com o qual nos deparamos incita pensar uma
condição negativa para o processo de globalização. A rapacidade de forças
exercida, por exemplo, pelo mercado nos faz entender que o preço e o enqua-
dramento evadem o modelo de cidadania que temos frente nosso olhar críti-
co. Talvez uma experiência que não precisemos ter em nome de uma simples
mudança. Os parâmetros de uma revolução em prol do humano ainda estão
sendo gestados no diálogo político.

FILOSOFIA E CIDADANIA
4. A QUESTÃO DO PODER COMO 41
OBJETO DA POLÍTICA

O poder toma formas outras neste contexto atual de sociedade de co-


municação generalizada, talvez sua mais forte versão, enquanto poder invi-
sível. Aquela figura que tínhamos do governante, do estadista, cercado de
aparatos de segurança e assinando decretos cada vez mais sucumbe a uma
configuração mais articulada, menos vista e disperso, seguindo a ordem dos
simulacros ou da fragmentação do contexto histórico. Noberto Bobbio fala
que quanto mais oculto, mais forte é o poder neste contexto no qual nos en-
contramos.
De certo modo, até mesmo os líderes nomeados lidam com esse mode-
lo que passou a existir conforme a sociedade atual sendo regida pelos proces-
sos midiáticos. Talvez isso seja mais observado nos noticiários que expõem as
articulações nas quais determinado governo, empresa ou ainda, determinado
político esteve inserido por anos, envolvendo e corrompendo aquela imagem
que foi construída do que seria o esperado. As manifestações atuais de poder
colocam qualquer romance policial em cheque, porque são articulações muito
sutis e até improváveis, misturando a realidade com algo tão inusitado que
mais parece ficção.

Manifestantes protestam no Lincoln Memorial em Washington, DC, pela morte de


George Floyd. Fonte: Alex Brandon/AP Photo
O
segredo sempre fez parte das estratégias de governo, mas não é disso que
estamos a falar. Especialmente em vista da opinião pública e das formas de
elaboração dos furos de reportagem, o poder cada vez mais estrutura-se num
outro espaço, ainda que estes tradicionais em que são mostrados feitos, con-
decorações e alusões sejam veiculados. É um jogo de perversão em que algo

FILOSOFIA E CIDADANIA
42 se mostra, mas sempre oculta mais do que mostra. Desconstruindo em alguns
momentos os limites entre o privado e o público. O grande risco dessa ten-
dência é a afronta ao ideal democrático que deve estar presente em todo o
governo. Diz Bobbio:

Como ideal de governo visível, a democracia sempre foi contra-


posta a toda forma de autocracia, a todas as formas de governo
em que o sumo poder é exercido de modo a ser subtraído o mais
possível aos olhos do súdito. (...) O poder invisível pode assumir
formas que numa primeira aproximação podem ser distintas com
respeito à diferente relação que cada uma delas tem para com o
poder público visível. (BOBBIO, 1999, p. 208)

Há, inevitavelmente, um abalo no modelo de democracia, mas figura


também como o espetáculo que passa a ser acompanhando diuturnamente, o
exame analítico dos detalhes e a incitação com que cada pessoalidade se apro-
prie daquilo que lhe convém. O “fato político” esfacela-se como se fosse um
diamante dividido, também para o enriquecimento de grupos de comunicação.
Há os interesses especulativos entre nações que indiretamente sempre
tentam forçar, muitas vezes colocando a internacionalização do capital como
parâmetro para a conquista de mercado ou para a submissão ideológica de re-
produtores de comportamento. Práticas imperialistas que desde o surgimento
prometem, aliciam e fantasiam um ideal de transformação por vias outras, que
não o social.
No conjunto desses interesses e embates, a democracia parece soçobrar,
porque o que preocupa é estabelecer critérios verdadeiros para o estabeleci-
mento do embate democrático, que é uma construção política e não midiática.
Das grandes diferenças que separam o processo democrático do auto-
crático a visibilidade da democracia distingue-se sempre do ocultamento das
autocracias. Já discutimos acerca da questão da transparência, das facilidades
que essa estrutura social possui para perverter em lugar de verdadeiramente
mostrar. Que o ocultamento não se sobreponha à transparência de fatos e de ar-
gumentações. Que a política não se torne uma sucessão de caixas em que nunca
chegamos naquela que é a procurada. Mistificando-se apenas como simulacro.
O insucesso de uma democracia é algo possível e muito provável desde
que os princípios sociais e a constituição não sejam o ponto de partida, mas
também o ponto de chegada a partir do qual se realizam os feitos de um povo.
O exercício da governabilidade é algo que interrelaciona o representante a seu
povo e não apenas às estruturas de poder. Deve-se estar atento para que o
povo seja participante do processo de instauração das políticas, para o processo
de obtenção de conquistas. O povo não pode se reduzir a mero expectador.
Esse estilo de poder não surge do nada, de um espaço etéreo do qual
se estabeleça a sua presença, a sua consolidação. Ele tem relação direta com
as diretrizes do modelo de globalização que temos presenciado, que vem di-
luindo os laços coletivos que envolviam trabalhadoras e trabalhadores e que

FILOSOFIA E CIDADANIA
provocou grande impacto negativo no fortalecimento dos sindicatos, diluindo
qualquer consciência acerca das formas coletivas de reivindicação. Vende a
43
iniciativa individual como chave do sucesso, mas entende, sub-repticiamente,
que isolado o trabalhador é mais submisso e vulnerável às exigências da ex-
ploração. A política institucionaliza-se em prol de uma setorização das ações,
em nome da funcionalidade, são várias as formas de fragmentação em que a
própria unidade política, a reivindicação coletiva não faz presença. A visão de
conjunto soçobra como desnecessária ou dispendiosa, funciona uma lógica de
mercado como parâmetro de organização da própria sociedade. Milton Santos
faz o seguinte comentário acerca dessa condição:

“A vida assim realizada por meio dessas técnicas é, pois, cada vez
menos subordinada ao aleatório e cada vez mais exige dos homens
comportamentos previsíveis. Essa previsibilidade de comportamento
assegura, de alguma maneira, uma visão mais racional do mundo e
também dos lugares e conduz a uma organização sociotécnica do
trabalho, do território e do fenômeno do poder. Daí o desencanta-
mento progressivo do mundo.” (SANTOS, 2009, p.46)

No caso do Brasil, de certo modo, referimo-nos a dificuldades históricas


que sempre estiveram presentes no cenário brasileiro referentes a competên-
cias e atribuições não bem definidas de órgãos estatais, do mesmo modo a
dificuldade que passa a existir de repasse de financiamentos, muitas situações
desarticuladas por crises fiscais, até mesmo a ausência de um planejamento
do programa nacional e a falta de articulação nas políticas sociais, implican-
do numa fragilidade de gestão que torna esse espaço de mercado alvo da
políticas de dominação internacionais, o sobrevém de forma desarticuladora
sobre as políticas sociais, como se o mérito de ação fosse de cada uma, que
conseguiu articular sua pauta de reivindicações, sem levar em consideração o
contexto árido no qual elas, em suas especificidades são implantadas.
Desarticulam-se, habitualmente, os agentes institucionais, mas também
o Estado, no que diz respeito a alcançar esses grupos. Na maioria das vezes
mantendo os recursos centralizados, impedidos de ampliar-se na horizontali-
dade das necessidades que se mostram vigentes. O que incrementa o debate
acerca da política social no Brasil. Diversos problemas históricos e questões
sociais alvo do olhar da militância por uma cidadania plena para cada pessoa,
A reflexão acerca da cidadania se estende aos nossos dias ainda num embate
acirrado para com as políticas neoliberais, com o neoconservadorismo e o lu-
gar social que é obliterado por determinadas perspectivas.
A política social depara-se com duas formas peculiares na estruturação
da política a tradição conservadora com suas justificativas ideológicas, políti-
cas e culturais, a partir da qual se pregava a caridade e o atendimento pontual
aos mais necessitados. Centrada numa uma lógica burguesa, investida em
atender a demandas , mas mantendo os muros hegemônicos da dimensão
econômica sobre a dimensão social, resgatando eleitos que cabem dentro de
um modelo assistencialista e não mais revolucionário.

FILOSOFIA E CIDADANIA
44 5. A PREOCUPAÇÃO SOCIAL COMO
PREOCUPAÇÃO POLÍTICA

Nos dias atuais cada vez mais pensamos na relação necessária entre
cidadania, implantação de políticas públicas, seguridade social e participação
do Estado na vida dos cidadãos. Desde muito tempo se percebe a neces-
sidade de estabelecer redimensionamentos para a política social em nosso
território nacional, na tentativa de sanar os limites que se estendem ao Estado
de chegar a certos espaços sociais, mas também às barreiras que fazem com
que estes agentes não cheguem a apresentar suas pautas num contexto de
planejamento de políticas. Percebemos, no mais das vezes, como as políticas
sociais restringem-se a espaços segregados compondo cada qual o seu méri-
to, isoladas no seu virtuosismo particular. Há impasses em que nem o Estado
alcança esses grupos e nem esses grupos constituem representatividade para
apresentação de suas pautas. E pior ainda, com o isolamento, os recursos per-
maneceram concentrados e centralizados, presos a trâmites burocráticos e
medidas administrativas. Um olhar sobre a política social nos faz sempre aten-
tar para os impedimentos estruturais nos quais a política se estabelece, mas
sem uma preocupação com a cidadania.

6. O TRABALHADOR COMO ALVO


DAS PREOCUPAÇÕES SOCIAIS

O século XX é marcado por tensões que se estendem até os dias atu-


ais, daí a necessidade de se estabelecer articulações políticas alternativas e
até não institucionais. Destaca-se esse período pela renovação que houve no
cenário brasileiro em ter uma nova constituição, aclamada por todos como
uma constituição cidadã, tanto pelas várias mãos que estiveram presentes na
constituição do seu texto, também por resguardar novos direitos para aque-
les menos favorecidos.
Estava instaurada a participação popular no cenário das políticas do ter-
ritório nacional. Após a constituição, instaura-se uma confiança que não previa
qualquer retrocesso na socialização da política. A participação social torna-se
importante para imprimir transparência nas ações e na recomposição da or-
dem social, conduzindo os indivíduos a compreenderem os processos decisó-
rios. Hoje confirma-se que através da participação social temos a evidência da
expressividade que compõe as necessidades populares.

FILOSOFIA E CIDADANIA
45

Fachada do Palácio do Planalto. Fonte: shutterstock

A liberdade de embate e de avaliação de decisões abre no cenário po-


lítico a consciência de que os defensores de pautas sociais não podem se dei-
xar constranger pelo particularismo e pelo corporativismo característico do
sistema político brasileiro. O modelo de política participativa requer a des-
centralização, o que não se confunde com a diminuição da responsabilidade
requerida pelo Estado, ao contrário, pois a descentralização não abre espaço
aos desejos neoliberais de instauração de um Estado mínimo.
No caso brasileiro ainda questionamos diversos segmentos e compor-
tamentos habituais que expressem a nossa verdadeira vocação democrática.
Para que possamos ter maiores certezas das possibilidades de exercício da
atuação engajada, da nossa verdadeira vocação por vivências democráticas,
afastando-nos verdadeiramente de qualquer sutil inspiração a regimes totali-
tários ou práticas fascistas.
Ainda que se fale em novos espaços de atuação e novos protagonis-
mos a estrutura produtiva e o mercado de trabalho brasileiro mantém laços
e traços fortes de uma cultura marcada pela dominação e exploração. Repro-
duzindo certa lógica e submetendo-se à mesma. Há ideiais democráticos que
estão longe de se concretizarem nesta estrutura e que são alvo da atenção
de sindicatos e organizações não governamentais que fiscalizam as formas
de trabalho e a subversão dos direitos humanos em estruturas marcadas pela
carência e pelo engajamento na vida produtiva.
A consciência política, que habitualmente advém das lutas populares
e dos movimentos que se organizam no entorno, busca fazer valer a refor-
mulação de leis e as práticas de amparo ao trabalhador. Coisa que começou
a contecer no Brasil na década de 80, não muito longe com a retomada da
democracia e reescrita da constituição.
Fato que está imerso em oscilações diversas quando o tema é o mundo
do trabalho. Ricardo Antunes observa as metamorfoses pelas quais o mundo

FILOSOFIA E CIDADANIA
46 do trabalho vem passando e o surgimento de certas situações de crise nesta
esfera que vem se desdobrando desde o século passado para este atual:

(...) há ramos que foram inteiramente eliminados, profissões que


simplesmente desapareceram com o avanço tecnológico, ou que
foram brutalmente desqualificados, que estão fora do mercado de
trabalho e que fazem parte desse contingente que hoje faz parte do
desemprego estrutural, que está fora do processo produtivo efeti-
vo. Então o avanço tecnológico tanto qualifica quanto desqualifica.
E muitas vezes a qualificação é falsa (...) (ANTUNES, 1996, p. 84)

Dizemos que as conquistas dos trabalhadores ainda são pequenas face


o tamanho do embate com os empresários e donos dos meios de produção,
motivo pelo qual não se pode apagar seu ponto de origem junto aos movi-
mentos sociais e à luta de trabalhadoras e trabalhadores que em alguns mo-
mentos entregaram seu tempo e sua existência em prol de uma causa maior,
reconhecendo os interesses coletivos como os mais legítimos e válidos. De-
marcando o quão importante é a posse de direitos, de qualidade de vida e de
bem-estar, fundamentais ao equilíbrio bio-psico-social.
Enquanto sociedade mantemos a necessidade de questionar os trâmi-
tes ardilosos das leis trabalhistas, aquilo que fere a dignidade da pessoa e con-
comitante propor novas diretrizes para o sistema capitalista. O que requer cer-
ta permanência da ação política, da percepção do quão política é nossa ação
cotidiana em relação ao que consumimos, em relação às causas que apoiamos,
seja nas votações virtuais, seja na participação presencial em momentos de
reivindicação, seja na conscientização das pessoas que se encontram ao nosso
redor. Há uma mediação fundamental exercida pelo cidadão, exercida pela
opinião pública, sem a qual não haveria democracia. Porque política não é
tarefa de especialistas, muito menos quando o modelo de política dia respeito
às pautas sociais.
Não podemos perder de vista a mediação entre a classe trabalhadora
e o Estado e do mesmo modo não perder de vista a mediação entre o Estado
e o Mercado. Este último consolidado também como corpo político com in-
teresses que necessitam ser vigiados pelos cidadãos, também trabalhadores.
Em função dos impactos causados na existência das pessoas, muitos destes
impactos reparados apenas após anos de sofrimento e reivindicações. Esta-
mos falando de empresas que subvertem diretrizes técnicas e exploram em
nome do lucro desenfreado, perdendo de vista o respeito por pessoas e até
pelo meio ambiente. Não é raro assistirmos as reportagens televisivas que
apresentam verdadeiras catástrofes, já anunciadas pelos órgãos de fiscaliza-
ção técnica, mas não levados em consideração pelos responsáveis em nome
de uma exigência de mercado.

FILOSOFIA E CIDADANIA
47

Manifestação pelas vidas negras ocorreu no Centro de Porto Alegre. Foto: Alina Souza

A busca em estender direitos para grupos organizados também se di-


rige àqueles que ficaram segregados, muitas vezes em subgrupos que ainda
não estruturaram pautas de reivindicação. Quando falamos da assistência so-
cial falamos de áreas que dizem respeito ao trabalho, à habitação, a questões
de gênero, à promoção de saúde, entre outros. Espaços historicamente se-
gregados, circunscritos às imposições para obter sua própria sobrevivência.
Desde as revoluções industriais observamos que as conquistas só conseguem
ser efetivadas através da reivindicação e da organização de classe, da conso-
lidação do sindicato. Através das iniciativas sindicais o trabalhador formal é
retirado da invisibilidade por mecanismos de reivindicação implantados em
vista de motivos políticos, mas também sociais e históricos.
As questões sociais envolvem um diálogo que englobe tanto o corpo
social quanto os representantes políticos, no compartilhamento do poder, no
empoderamento. Entendendo que estas forças devem ser inter-unificadas em
prol do exercício da cidadania, em prol do reparo de problemas estruturais
e históricos que envolveram nossa cultura. Uma unidade que se constrói em
meio aos paradoxos das pautas e discursos, sem os quais não há como se falar
em democracia.

7. RETROCESSOS E AVANÇOS
DO DIÁLOGO POLÍTICO

Para complexificar o cenário político temos visto nos últimos tempos,


no âmbito mundial e local, formas de neoconservadorismo que se revestem
de compreensões fundamentalistas da realidade, podendo recair em formas
inéditas de violação de direitos já conquistados que são trazidos à pauta da
discussão política em nome desta lógica, com limites sinuosos, expressões sutis,

FILOSOFIA E CIDADANIA
48 mas bem situadas de formas de intolerância: xenofobias, racismos, machis-
mos, eurocentrismos, entre outras. Uma lógica de demarcação de retrocessos
mistificada e que tende a escamotear suas raízes.
A mistificação diz respeito ao estabelecimento de certos riscos sociais,
como por exemplo, o apelo à ordem, visto compreender a pluralidade como a
instauração de um caos. Há o argumento pautado na própria crise pela qual este
momento histórico passa e que serve de palanque para reivindicações e prolife-
ração de convicções de caráter moralizador. Incorporando elementos econômicos
do neoliberalismo e se atualizando em novas formas, sutis, de exclusão. Entrevendo
em seus resultados o desenvolvimento, o progresso a evolução ligados a uma
única lógica. Conforme Barroco, quando trata da ofensiva neoconservadora:

(...) o apelo à ordem é duplamente conservador: primeiro, por evi-


denciar um dos valores fundamentais do (neo)conservadorismo; se-
gundo, porque sua forma de objetificação é moralista, ou seja, mo-
raliza as expressões da questão social, ao tratá-las como resultantes
de “problemas” de ordem moral. Esse apelo moralista é facilitado
pela reificação das relações sociais e pelo irracionalismo, contribuin-
do para o ocultamento de suas determinações socioeconômicas e
para sua naturalização. (BARROCO, 2015, p.625)

A moralização da questão social tem como pauta o estabelecimento


de medidas de controle social e ao fundo uma compreensão que enquadra
verticalmente a sociedade e os ganhos sociais. A família, os valores sociais, re-
vestidos de uma nova eficiência, como meta de uma nova política, mas que só
deixa como rastro, antigos processos de estabelecimento do poder. Quando
recorre à militarização ou a ações ofensivas que provoquem efeitos semelhan-
tes é com vistas na punição e nunca numa ressocialização.
Há uma violência implícita, expressa ou travestida que age através da
repressão contra a própria violência anunciada no cotidiano, atacando-se “o
inimigo” com as próprias armas do “inimigo”. Uma lógica perversa de repro-
dução do mesmo fenômeno que se estar a combater, chegando a apelar para
a caricatura construída do inimigo que serve para alimentar a pauta política,
através deste artifício se estruturam as bancadas de representantes, por ve-
zes, religiosos, que constroem cruzadas para convencer que os problemas so-
ciais surgiram por um desajuste que precisa ser devidamente ajustado.
Elegendo, na política, heróis e vilões, construindo uma visão do Estado
como uma arma eficiente de resolução, para não cair na permissividade da
própria horizontalidade de oportunidades. Em tempos midiáticos o neocon-
servadorismo vira moda, adquire uma adesão significativa dos jovens que re-
querem tal eficiência do Estado. Assume um discurso empobrecido de crítica,
mas vigente de tal forma que se apropria do senso comum e reproduz fórmu-
las prontas desde os nossos antepassados colonizadores. Pressionando as ati-
vidades assistenciais às dinâmicas policialescas para que se cumpram tarefas.
As soluções ganham notoriedade pelo seu caráter pragmático que possa com-
por números e estatísticas a fim de consolidar seus interesses por eficiência.

FILOSOFIA E CIDADANIA
Indicação de Leitura Complementar 49
CORTELLA, Mário Sergio; JANINE RIBEIRO, Renato. Política: para
não ser idiota. Campinas: Papirus , 2010.

A brincadeira com o título do livro remete a uma situação vivida pelos


gregos, aquele que não se preocupasse com a coisa pública e ficasse
fechado unicamente no seu universo privado seria chamado, o idiota.
Diz respeito a um comportamento de afastamento e indiferença,
coisa que não pode haver com o político. Então, a obra, composta
por diálogos, trata de uma reflexão acerca do lugar na política na
sociedade, quebrando mitos e mistificações de que o fazer político
é sempre revestido de vícios. Há uma exaltação à questão da vida
pública e o bem comum, análises acerca de temas como a liberdade,
ao tempo em que traça uma reflexão acerca desta.
Este livro apresenta um debate sobre os rumos da política na
sociedade. São abordados temas como a participação na vida
pública, o embate entre liberdade pessoal e bem comum, os vieses
de escolhas e constrangimentos, o descaso dos mais jovens em
relação à democracia, a importância da ecocidadania. Além dessas
questões, são apontadas ações indispensáveis como o trabalho
com política na escola, o papel da educação nesse campo, como
desenvolver habilidades de solução de conflitos e de construção
de consensos. Afinal “política” não é coisa de idiota, de pessoas
indiferentes e sem sensibilidade.
Mario Sergio Cortella e Renato Janine Ribeiro dialogam acerca do
tema tornando-o muito próximo a nossa realidade, pensando a
política dentro da perspectiva da participação cidadã e não como
ofício de políticos profissionais, ou como expressão de poder
de famílias abastadas, conforme o fenômeno do coronelismo da
região nordeste do Brasil. Trata-se de um assulnto bem importante
para as nossas vidas que suscita o filosofar e as reflexões advindas
da ética e da democracia.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro.


São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Há uma mitologia que envolve o Brasil no que diz respeito ao modo


de ser do seu povo, misturando classes e situações históricas como
se todas surgissem do mesmo fundo de passividade e cordialidade.
Lilia Schwarcz retoma dados estatísticos para apresentar a realidade
autoritária do Brasil na sua forma mais comum, pouco tematizada

FILOSOFIA E CIDADANIA
50 porque ocultada numa herança por vezes exaltada como sinônimo
de força, por vezes esquecida.
Esse imaginário dolorido reforça as ilusões de uma tolerância,
de uma abertura e de uma passividade que facilmente é negada
seja pelos ímpetos conservadores que espreitam a política
nacional, seja pela herança histórica de uma ditadura que trouxe
à tona os subterrâneos de uma cultura autoritária e extremamente
preconceituosa.
A autora se estende aos comportamentos coloniais que se
revestem de comportamentos racistas e excludentes, reforçando
um racismo estrutural enraizado no autoritarismo, retomando
a urgência das pautas relacionadas à justiça social e à busca de
uma cidadania igualitária. Daí também a necessidade de destacar
figuras históricas que reforçaram e suas estratégias de manutenção
de uma lógica de exclusão. Um povo que não conhece ou mascara
a sua história jamais consegue se enxergar.

Para Refletir
Em meio à reflexão acerca da política podemos pensar a necessi-
dade de que o diálogo sempre seja levado em consideração para
a visualização de possibilidades e que possamos pensar a partir de
tais possibilidades a construção de uma sociedade mais plural. Não
há como pensarmos a construção dessa pluralidade sem apresença
da política. Sem o debate político como motriz para o estabele-
cimento de transformações. Desse modo, para refletirmos acerca
das questões política elaboramos os seguintes questionamentos:
• Como olhar para o local e identificar nossas potencialidades?
• Como identificar os sistemas de dominação que ainda fazem par-
te deste novo modelo de sociedade?

FILOSOFIA E CIDADANIA
51
TEMA 4 – A CIDADANIA COMO CONDIÇÃO
ÉTICA (COM QUEM EU FILOSOFO?)

1. APRESENTAÇÃO

A última dimensão da filosofia que destacamos nesta disciplina é a ética


e o motivo dela ter ficado por último diz respeito à forma como é requisita-
da para o estabelecimento de relações saudáveis, honestas e compartilhadas.
Para o estabelecimento de uma vida cidadã. A ética diz respeito à cidadania de
tal modo que a configura em diversos aspectos. As relações, quando regidas
pela ética não geram os conflitos habituais, porque elas se estruturam sempre
numa abertura para o outro, para o estabelecimento da política, para uma
compreensão mais inclusiva da vida social contemporânea e para o respeito às
tradições e seus feitos. É um reconhecimento e não uma submissão. O sentido
da ética é sempre voltado para uma transcendência e para uma visualização do
humano em suas potencialidades.
A cidadania advém das formas de solidariedade que se estabelecem na
dimensão política e do estabelecimento da ética como base a partir da qual se
estruturam as relações entre estes seres políticos. Apontando para os ideais
ainda não alcançados, mas que se apresentam ao olhar daqueles reformado-
res, daqueles que transcenderam os limites históricos do seu contexto social.
Diante da necessidade de se estabelecer a cidadania como uma práti-
ca da vida cotidiana requisitamos a ética com o intuito de refletir acerca de
uma reeducação da sociedade , situando o elemento básico inerente ao “bem
comum”, na relação com o outro e no reconhecimento do fortalecimento de
ideais humanitários. Diante da pergunta, com quem posso filosofar? Respon-
demos que com todos que se abrem para uma interlocução marcada pela res-
ponsabilidade com o outro e com a reforma das estruturas sociais que já so-
çobraram diante do novo e da renovação das relações. Com todos que ainda
não conhecem, mas perguntam acerca da liberdade, da gentileza espontânea
e das formas de doação do tempo para compor um projeto coletivo. A cidada-
nia começa com o estabelecimento de pautas políticas, mas se desdobra nas
relações mais imediatas, direcionadas pela consciência social.

2. A REQUISIÇÃO DA ÉTICA

Podemos dizer que a filosofia é a busca não apenas da verdade, mas


também do bem que essa verdade possa ofertar, enquanto compreensão do
real. Percebam que não está implicado nenhum utilitarismo, mas uma conse-

FILOSOFIA E CIDADANIA
52 quência que vincula Filosofia e Ética. Há uma relação muito peculiar entre a
verdade e o bem, no intuito de enfatizarmos que este último, “o bem”, garan-
te à verdade sua importância, implicando desse modo na realização da vida
social, afinal de contas diz respeito a todos, a verdade descoberta. Esta rela-
ção ambivalente em que a verdade e “o bem”, que advém dela, se estabelece
pelos mais variados períodos da história, constituindo diferentes maneiras de
refletir acerca da moralidade vigente e das maneiras com as quais se estabe-
lece a vida coletiva.
A ética, do mesmo modo que a política, requer uma concretização na
vida prática, são desdobramentos da reflexão filosófica consolidando uma uni-
versalidade que sustenta um princípio norteador. A política no que diz respeito
às relações de poder e a ética, no que diz respeito à moral.

Fluxo didático. Fonte: Elaboração própria

O nascimento da ética está intimamente ligado a questões ontológicas


que definem o humano como um ser social, um ser-com-os-outros, dotado de
um sentido essencial, conforme o estabelecimento da sua existência. Com-
preendida como um artifício que necessita de bases, pois não há um sentido
predeterminado, mas um trabalho, um exercício diário, podemos até dizer que
é um “artesanato no plano da existência”. Ela é esse artesanato e quando re-
gida pela ética apresenta uma beleza peculiar, nós, os artesãos, responsáveis
pelas formas e intenção das nossas ações. Assim, através da sociabilidade e
das relações interpessoais apresentamos na sua concretude a beleza inerente
à vida, ao bem viver.
Ontologicamente o estudo da ética nos conduz à essência do ser humano.
Dimensão que não pode ser perdida de vista em prol da fundamentação de
princípios determinantes para significarmos ou ressignificarmos a nossa ação
sobre a realidade e sobre as pessoas que compõe essa realidade. Compõe-se
um universo simbólico que nos caracteriza, alvo das nossas especulações acerca
da relação entre Filosofia e Cidadania. Através da inserção no espaço social,
da reflexão do nosso papel incitando a mobilidade das nossas disposições,
nos embates e na lida com as adversidades.

FILOSOFIA E CIDADANIA
3. AS REGRAS MORAIS, A EDUCAÇÃO E 53
O APRENDIZADO

A questão da cidadania implica num caráter dinâmico de compreensão e


de inserção na vida social, agindo em nome das diretrizes do corpo social, da
comunidade, dos grupos que participamos, mas não deixando de manter-se
crítico em relação aos processos e as diretrizes institucionais que controlam de
forma mais direta nossas ações. A moralidade não implica numa obediência
cega e indistinta das diretrizes de poder, dos comportamentos vigentes e re-
forçados socialmente, desse modo, ela prima mais por uma libertação do que
por uma simples submissão. Cada vez que agimos moralmente, estamos mais
ligados às realizações da vida. A cidadania é um ensinamento que não implica
apenas no aprendizado de regras, mas na contínua reflexão do indivíduo acer-
ca do local, do todo e suas partes.

A reflexão ético-social do século XX trouxe, além disso, uma outra


observação importante: na massificação atual, a maioria hoje talvez
já não se comporte mais eticamente, pois não vive imoral, mas
amoralmente. Os meios de comunicação de massa, as ideologias,
os aparatos econômicos e do Estado, já não permitem mais a exis-
tência de sujeitos livres, de cidadãos conscientes e participantes, de
consciências com capacidade julgadora. (VALLS, p. 47)

A ética é a instância a partir da qual recorremos para uma renovação


de consciência do corpo social. Mas esse processo não é tão simples, implica
numa educação. Um aprendizado que visa a integralidade das possibilidades,
uma educação que nos conduza ao processo de integração social. Um vínculo
com a educação em seu sentido amplo, mas também em seu sentido formal.
Em todos os tempos, desde o seu nascimento a Filosofia e a Ética aspi-
ram uma Paidéia, desde um aprendizado do pensar, de educar a vontade, para
a vida plena e feliz, para os ideais de realização. Ao tempo em que a origem
grega do conceito de Paidéia, entendida como a busca do sentido de uma
teoria libertadora da educação e do agir do homem em sociedade, perma-
nece como um ideal para a Filosofia. Em sua constituição histórica, a Filosofia
constrói de diversas maneiras e em diferentes tradições sistêmicas esta pro-
blemática fundamental. A educação ética e política é o traço fundamental da
essência da verdadeira Paidéia.
Para os gregos, a educação assume o papel de ação consciente, é a ma-
nifestação do esforço constante do pensamento grego para conseguirem uma
expressão normativa da forma do homem. Na pólis séc. IV a.C., o conceito
de “Paidéia” supera a vinculação limitada à instrução da criança. Trata-se de
uma reflexão sobre a formação do homem para a vida racional na sociedade.
Aplica-se desde cedo à vida adulta, à formação, à sociedade e ao universo
espiritual da condição humana. A construção histórica deste mundo da cultura
atinge o seu apogeu quando se chega à ideia consciente de educação.

FILOSOFIA E CIDADANIA
54 No início deste livro fez-se destaque ao modo como a concepção de
educação grega foi assimilada pelo mundo ocidental. É de lá que vem seu mo-
delo mais significativo ainda quando buscamos compreender essa sociedade e
de certo modo, ainda quando buscamos sua reformulação. Quando buscamos
estudar o início da filosofia é para identificar, nas mudanças, os elementos
implementados desde o modelo de pensamento dos gregos aos traços mais
marcantes que chegaram até nós.
O resgate da cidadania aponta de certo modo para uma tomada de
consciência que creditamos a uma formação plena dos seres humanos para a
vida na sociedade. Uma formação cidadã que extraia da ética os imperativos
e diretrizes de sua convivência. Cumprimos habitualmente com rituais que
nos fazem perceber a dimensão simbólica na qual construímos nosso modo de
ser, ritos que fazem parte da esfera subjetiva que caracteriza nosso universo
interior, mas que também caracterizam toda a produção artística e intelectual
com a qual lidamos por anos na composição da história humana.

Ação de limpa nas praias contou com a participação de vários voluntários. Foto: Lucas Rodrigues
Palma/G1

A civilidade do grupo exige a atualização destes referenciais extrema-


mente importantes para a coesão, à interação pacífica e harmônica. Os ritos
que alçaram esta permanência histórica tornaram-se regras e normas morais. E
neste movimento de estabelecer e posteriormente superar está presente a ín-
tima relação entre moral e ética. Enquanto a ética possui um sentido universal,
não prescreve o tipo de ação que o indivíduo deve assumir e busca ser a base
para as grandes transformações da sociedade, a moral cumpre com outro ex-
pediente, ambas intimamente relacionadas para tornar o indivíduo mais livre,
consciente das suas ações.

FILOSOFIA E CIDADANIA
A moral diz respeito a regras que se cristalizaram ou que passam a ser
reconhecidas como verdadeiras. Tem a função de consolidar as expectativas
55
acerca dos outros, daqueles que dividem nosso espaço e ouvem o discurso
que compartilhamos. A convivência é elemento de estruturação da nossa exis-
tência. A moral em alguns momentos direciona-se à necessidade de reco-
nhecimento dos fins da ação, é teleológica. Dentre as formas de moralidade
que se desdobram neste movimento temos o utilitarismo (que se volta para a
aplicabilidade), o hedonismo (que se voltada para o prazer), o eudemonismo (
que se volta para o bem) e a axiologia (que se volta para os valores).
Outra forma de manifestação da moral é quando ela se volta para o dever.
Uma moral deontológica. Tal qual o estoicismo (implicando numa abnegação
para através da indiferença construir sua maior fonte de paz e tranquilidade).
Formamos tradições no decorrer do tempo, ou escolas de pensamento
centrados numa ética. A relação de pertencimento que emana do pensar, im-
plica num fazer, ou melhor num bem-viver que é proferido por tais instâncias
de pensamento, estimuladas e empreendidas por grupos de pensadores que
se sucedem. Regras que já até nos antecedem e se encontram nos nossos ci-
clos desde o nas cimento, outras que são incorporadas, adquiridas, conforme
nossa tomada de consciência. Avançando para estruturação da nossa identida-
de e das possibilidades de convivência que elas implicam.
Desde crianças, através de situações muito simples e que parecem ser
unicamente lúdicas, como através dos contos de fadas, as regras morais são
estendidas para o aprendizado. Histórias como a do Pinóquio que a cada men-
tira, o nariz cresce. Os contos de fada de Hans Christian Andersen, como a
pequena sereia, um ser das águas que quer se transformar em humano e se
dispõe a realizar todos os sacrifícios em nome desse desejo que a realiza. Os
contos de fadas mantém um conteúdo moral que é avaliado internamente por
aquele que os ouve, divisando lados e o preço que devemos pagar por nossas
ações. É uma preparação para a vida adulta. Momento em que precisaremos
demarcar limites, conforme as consequências boas ou más que possam advir.
É uma forma sutil de sair de uma consciência inocente para uma consciência
racional.

‘O que devo fazer?’ E não: ‘O que os outros devem fazer?’ É o que


distingue a moral do moralismo. “A moral”, dizia Alain, ‘nunca é para
o vizinho’: quem se preocupa com os deveres do vizinho não é moral,
é moralizador.(...) Na moral, não há nada além do sentimento de
dignidade. É respeitar a humanidade em você e no outro. O que
não é isento de recusas. O que não é isento de combates. Trata-
-se de recusar, ou em todo caso de superar, sua própria violência,
seu próprio egoísmo, sua própria baixeza. (COMTE-SPONVILLE,
2020, p. 20-24)

A consciência direciona o caminho que se deve seguir para alcançar o bem.


Chamamos de consciência moral, expressa de certo modo pela capacidade ou in-
tuição que associada ao julgamento das coisas nos conduz ao certo. Esse humano

FILOSOFIA E CIDADANIA
56 , sendo mais consciente age conforme seus valores morais evitando sentimentos
de remorso e comoção. Consideramos que este sentimento de consciência está li-
gado a aspectos considerados superiores, por isso chamamos a consciência moral
de voz interior, estendendo a cada humano os princípios que o norteia. A consci-
ência moral também dirige-se à política, quando pensamos no interesse do bem
comum enquanto fonte das ações e das percepções do indivíduo.
E por que a racionalidade precisa estar impressa nas nossas ações? Per-
cebemos que logo cedo, no seio familiar já estamos sendo educados para o
mundo, o que se chama de educação do sentimento, as virtudes ensinadas às
crianças, as noções advindas acerca do que é o bem e do que seja o mal. Os
sentimentos que se constituem se desdobram em ímpetos instintivos e em
uma intuição acerca do que se deve ou não fazer. Neste momento o indivíduo
já começa a se perceber sujeito moral. E começa a ficar atento em relação a
ferir ou não a sua consciência moral. Pois podemos até agir conforme outros
interesses, conforme interesses egoístas, por exemplo, mas nos questionamos
se isso vai nos deixar de consciência tranquila ou não.

4. O CONTEMPORÂNEO E SUAS CRISES

A filosofia é um tipo de pensamento que lida com transformações, des-


se modo, as mudanças com as quais estivemos envolvidos durante as passa-
gens dos períodos históricos foram fruto de pensamentos que deram suporte
para estas mesmas transformações. Podemos até dizer que é a mudança de
pensamento que promove a transformação da realidade na qual nos encontra-
mos. Neste sentido, temos um elemento de reflexão bem situado, filosófico e
de tomada de consciência.
A reflexão serve para projetar algo que ainda não se encontra presente
e para esclarecer acerca das possibilidades, que mesmo entranhadas, são pos-
sibilidades vigentes. Todavia essas transformações são gestadas em torno do
modelo de sociedade
que passa a ser propos-
ta, algo que implica num
cuidado muito grande
para com o corpo social.
É neste momento que
se firma a questão ética
e sua grande diferença
acerca da moral. En-
quanto esta última visa
a manutenção de regras
a serem seguidas, a éti-
ca visa a transformação
social de uma maneira
reflexiva e bastante con- Professor Marco Aurélio Louzada em meio ao lixo depositado no
sistente. manguezal. Foto: Clara Borba/Orla Sem Lixo

FILOSOFIA E CIDADANIA
No estabelecimento a contemporaneidade as transformações que foram
sugeridas e o abandono das certezas deixadas pela modernidade não foram
57
deixadas facilmente. Tanto pelo risco das incertezas, quanto pela astucia dos
conservadores que foram contra as transformações. Para que tais transfor-
mações não fossem estabelecidas por força de uma mera imposição ou pelo
advento de uma aleatoridade, a contemporaneidade recorreu à ética para que
esta mantivesse uma justificativa válida acerca do seu advento.
A contemporaneidade desfralda a perfeição com a qual a modernidade
havia se pautado. Aponta as estruturas de poder presentes e que se acentu-
avam nos seus dispositivos de opressão e de exploração. Desde toda a bu-
rocracia que foi produzida em nome da organização de setores, ao pesadelo
dos sistemas totalitários que ensejavam um modelo estranho de sociedade.
Desfralda-se assim os critérios de desenvolvimento e evolução. Desfazendo
expectativas ingênuas acerca das ideias de progresso da humanidade ou de
neutralidade do conhecimento científico. Desde as crises que se acentuam
estendendo-se de questões ambientais a instauração de novas formas de
identidade social.

A riqueza da terra desabriga-se agora como reserva de carvão, o


solo como espaço de depósito de minerais (...) O campo é agora
uma indústria de alimentação motorizada. O ar é posto para o
fornecimento de nitrogênio, o solo, para o fornecimento de mi-
nério, para o fornecimento de urânio, este, para a produção de
energia atômica. (...) (HEIDEGGER, 1997, p. 57)

O caráter plural e fragmentado da contemporaneidade exige uma ética


que compreenda e abarque essas novas dimensões. Afinal nos encontramos
em meio os encurtamentos de distâncias, cada vez mais nos limites da frontei-
ra do outro, a predominância da mídia no cotidiano e com o estabelecimento
de informações que circulam globalmente. As relações do humano com os
sistemas de comunicação faz descrever esse novo humano a partir das várias
visões de mundo, uma multiplçicação que a cada momento se ultrapssa o es-
perado, novas performances, estilos, necessidades e estéticas que represen-
tem o cenário contempornaeo. Instauram-se hibridismos e interrelações que
requisitam uma nova moralidade.
É inevitável a alteração de valores, uma alteração dos cânones que vão
servir de suporte para instauração de novos modelos na ética. Prevalece na
contemporaneidade o contingente, as experiências passam a ser exaltadas e
não elementos de abstração, centrados unicamente na razão e na compreen-
são cognitiva do fato.
Cada vez mais a ética, enquanto reflexão acerca dos modelos de morali-
dade, reforça esse desdobramento a partir de uma visualização dos elementos
políticos que acompanham as várias formas da moral, um olhar a partir das
interposições e das relações culturais, em que até mesmo na reflexão ética
prevalece a pluralidade e a plurivocidade de afirmações acerca da realidade,
vinculando-se a valores e comportamentos.

FILOSOFIA E CIDADANIA
58 Há uma relação direta com erosão do próprio princípio de realidade,
mas o foco maior é na composição desse novo modelo de humano e das pos-
síveis relações que este estabeleça para com os seus e para com os outros.
Daí essa racionalidade advinda da reflexão ética começa cada vez mais a se
misturar com as comunidades culturais, étnicas, sexuais, entre outras. Há uma
busca de transcendência na imanência.

Ora, o filósofo, que tem por dever de ofício acrescentar ao vivido


a reflexão, que incorpora o nível dessa subjetividade operante e
que postula a inserção crítica na realidade, não pode deixar de
considerar a polissemia da relação homem/história e tem de
incorporar no pensamento e na ação a vivência refletida das dico-
tomias que configuram a existência histórica em todos os planos
(...) O equilíbrio consiste em considerar que a história tem auto-
nomia na medida em que o indivíduo encontra um passado e um
presente, uma sociedade constituída e relações em que se inserir,
determinações independentes que pesam sobre ele. Ao mesmo
tempo, tais determinações são vividas, isto é, não tem um sentido
único e não são coisas opacas. (ARANTES, 2006, pp. 20-21)

A tradição diz respeito ao espaço no qual assentamos os ícones e sím-


bolos representativos da construção da nossa identidade, nela se perpetuam
os bens culturais, demonstrando às gerações o valor da vida, a materialidade
da sua estruturação, do mesmo modo que também aponta para o espírito
das coisas, que prevalece e perdura, como vínculo de unidade, mantendo-se
aos membros dos grupos ainda que estes estejam distantes do seu núcleo
comunitário. Os bens culturais, estabelecidos na tradição dirigem-se a estes
dois sentidos implicando em cada um dele uma transcendência. Elemento que
deve estar no encaminhamento do olhar que reúne engloba e inclui.

5. O ETHOS MUNDIAL

Diz respeito à necessidade de uma ética mundial voltada para um con-


senso mínimo. No cenário contemporâneo n podemos perder de vista a cri-
se social , a crise ecológica e a problemática que avança sobre o mundo do
trabalho e das formas de produção. Diante da necessidade de elaborar uma
plataforma comum em prol de um entendimento da realidade pela perspecti-
va do humano que habita esse espaço coletivo. Através da ética visa-se uma
referência para a totalidade, para a dimensão ontológica que nos caracteriza
enquanto nos valemos dos consensos como forma de resolução dos proble-
mas. Boff propõe uma racionalidade cordial que se dirige ao cuidado essencial,
comum a todos e com vias a beneficiar a todos.
Cada vez mais a experiencia de estarmos conectados pela tecnologia e
pela profusão de notícias que são veiculadas cotidianamente nos faz entender
que concomitante ao território que habitamos estamos vivendo numa única.

FILOSOFIA E CIDADANIA
A partir deste entendimento, a problemática se dirige para a construção de
um consenso pautado na solidariedade no intuito de uma convergência para
59
a diversidade.
Daí o resgate do termo “Ethos”, como um habitar o cuidado, como
corresponsabilidade, interligando injustiça social a injustiça ecológica, por
diversos fatores. Compreendendo de maneira ampla a geografia humana
no sentido de entender que os problemas sociais também repercutem num
abandono para com o mundo e os espaços habitados por estes indivídu-
os. Do mesmo modo que se entende que a injustiça ecológica implica num
sofrimento para as pessoas que habitam determinadas regiões. Isso é tão
frequente que recorremos a uma exemplificação muita próxima do nosso
espaço de circulação, aqui no nordeste brasileiro.
A cidade de Maceió vem vivenciando um caso de crime ambiental que
envolve não apenas danos materiais, mas danos na dimensão da vida e do re-
conhecimento da cidadania a pessoas que além de requererem seus direitos,
pedem de algum modo a responsabilizazçao por danos e o respeito pela sua
condição cidadã. O crime envolve um processo de subsidência do solo, em
função da extração da salgema, fato recorrente por um longo tempo. Em que
as análises técnicas só foram trazidas a público em função da necessidade de
retirar mais de cinquenta e sete mil moradores de quatro bairros vizinhos. Foram
14 mil imóveis desocupados. Famílias deslocadas, prédios históricos condena-
dos, praças e espaços públicos desertificados, uma micro-cidade fantasma em
meio à própria cidade. Direitos não reconhecidos, indenizações minimizadas,
comunidade local isolada, suicídios, choro e muitos discursos de lamentação
acerca da necessidade de abandonar sua casa em função de um crime ambiental
executado por uma empresa no afã da exploração e da obtenção de lucro.
Chegamos num momento da história em que a ONU reconhece o meio
ambiente como direito humano. Boff vem na esteira de pensadores e ativistas
que entendem a preocupação com o planeta como um princípio ético e como
elemento de consolidação de uma vida cidadã. Compeeendendo que o dese-
quilíbrio ecológico atinge a terra enquanto esta é um sistema, integrador de
sistemas. Daí a recorrência a questão do Ethos e a reivindicação de uma ética.
“Por ethos entendemos o conjunto de inspirações dos valores e dos princípios
que orientarão as relações humanas para com a natureza”
A ética se estabelece a partir de uma mudança de paradigmas. Uma ação
que se constitua coma prática libertadora, acrescentando um novo momento a
história da própria sociedade, ao nosso processo civilizador. Uma nova ótica que
advém da capacidade de compreender o mundo. Resta o trabalho com as cons-
ciências, com o reconhecimento, com a repetição de boas práticas sugeridas por
um novo modelo de moralidade. Há uma necessidade urgente de instituições e
de políticas que tenham no centro da sua logística, a preocupação com a terra.
Porque através de uma nova consciência advém uma cidadania planetária. Há
um novo patamar para a história anunciado desde o advento da contempora-
neidade, dessa abertura é que surge o entendimento da terra como totalidade,
reintegrando humanidade e terra nos mesmo discurso, pois constituem um todo
orgânico e sistêmico. Quando a terra é ameaçada, a humanidade sofre.

FILOSOFIA E CIDADANIA
60 Através do reconhecimento da singularidades das culturas abre-se a
cada momento a necessidade de intensificação dos diálogos. Através desses
entre-lugares o eleo sistêmico e universal do qual partimos no contemporâ-
neo. Todos os sistemas foram desfraldados, a fragmentação nos lançou numa
condição niilista a partir da qual o excesso se auto-destrói. Mas através de uma
ética planetária recuperamos uma universalidade nova, ainda que tão antiga.
Ouvimos novos discursos, ainda que silenciados no decorrer da história. O
passo de volta não configura um retrocesso, uma revisita romântica ao passa-
do, mas re-descoberta. Descobrir o que ficou oculto e até esquecido.

(...) cabe ao logos humano (razão) definir o que é bom e habitável


para todos. Para cumprir bem essa missão , o logos deve saber
auscultar a natureza. Ela não é muda. Está cheia de mensagens e
de apelos. Os gregos vão mais longe. Afirmam que o logos humano
não está fora e acima da natureza (physis) ; é parte dela, um órgão
da própria natureza que capacita captar o que é bom ou ruim para
a morada humana. Portanto, a natureza entendida como energia
originária (physis), não se intimiza com o logos, mas se expressa
por meio dele e com ele. (BOFF, 2015, p.31)

O ultrapassamento do modelo de racionalidade instrumental dotou a


natureza sob a ótica do contemporâneo de subjetividade e até de espirituali-
dade. De maneira orgânica e enquanto metáfora para a vida social a natureza
é dotada de convivências e formas de adaptação, não é preciso ir muito longe
para o reconhecimento e a identificação. E nos apresenta o grande ensina-
mento centrado na regeneração. Todo o desgaste da vida social, implica numa
regeneração. O reconhecimento e as desculpas a povos colonizados, a amplia-
ção dos sistemas públicos de saúde e de atendimento aos menos favorecidos
e excluídos. Resgate de toda atomização pela qual nos inserimos através da
tecnicização e do desenraizamento. O consenso social é de grande importân-
cia para a legitimação de um projeto ético, que nos salva do reducionismo
antropocêntrico e amplia a própria visão do humano.

6. A CIDADANIA E AS CAMADAS
DA VIDA AUTÊNTICA

Como vimos no decorrer de todas as questões apresentadas, a cidadania


é um caminho natural para o qual caminha a filosofia. Daí seu nascimento em
meio à construção da democracia e a preocupação com a educação das crianças,
preocupação com a educação para o pensar. Para se falar em cidadania enten-
demos que se a política era uma prática que advinha dos moradores da pólis,
entre os gregos antigos, a vida nas cidades implica na cidadania. É a vivência
política, a busca por resoluções, o interesse em participar e se envolver em
questões que não são da sua esfera particular, mas da vivência pública.

FILOSOFIA E CIDADANIA
Através do estudo do nascimento da filosofia percebemos que todo
pensamento implica numa ação, toda ética implica numa moral. A interrelação
61
entre o modo de compreender a realidade e a ação prática, cotidiana a serviço
do bem viver é extremamente integradora no sentido de formar um humano
sob a perspectiva do holismo. Sob a perspectiva de totalidade sempre incitada
pelos filósofos no decorrer da história.

Grupo de amigos. Fonte: Banco de Imagem

Compreender como a filosofia surge implica em entender o momento


no qual nos encontramos. Paradoxalmente o início e o momento atual insti-
tuem uma circularidade benéfica a encontrarmos saídas para as atuais aporias,
para as dificuldades geradas pela utilização de um modelo de racionalidade
instrumental, que perdeu de vista a questão humana, adentrando uma preocu-
pação maior com sistemas produtivos e formas de enriquecimento. O cenário
contemporâneo é fruto de diversas investidas filosóficas para abrir diretrizes
diferentes daquelas que foram demarcadas sob o signo do progresso e da
evolução.
A ação que advém das questões filosóficas repercutem em pautas, em
projetos, em elaboração de novos discursos que incrementam as funções atri-
buídas ao Estado, mas também as vivências que devem ser compartilhadas pe-
los membros da sociedade organizada. A política não é expressão unicamente
do poder, mas da inclusão social. O reconhecimento do outro não é somente
um exotismo antropológico, a defesa de lugares não é apenas um investimen-
to turístico. Diz respeito à construção da cidadania em seu sentido mais pleno.
É neste momento em que se percebe a Ética como um remédio para as
crises nas quais nos encontramos atualmente. Levando-nos a retomar novos

FILOSOFIA E CIDADANIA
62 processos educacionais, novos conteúdos, novas diretrizes metodológicas que
funcionam mais do que o aprofundamento dos velhos sistemas de pensamento.
A ética aproxima-se cada vez mais de uma compreensão da vida na terra sob
a ótica de uma interconexão planetária que nos faz reconhecer, em vista do
encurtamento de distâncias, que nos encontramos no mesmo espaço. Não é
algo apenas quantitativo no sentido de uma métrica, mas algo qualitativo no
sentido de um ethos, de uma morada.
A cidadania necessita ser vista nesse sentido amplo, englobando as
regras cotidianas de civilidade e etiqueta, mas também o espírito inquieto e
revolucionário que restitui a cada humano sua autenticidade. Mantendo vigília
sobre as formas sutis de exclusão ainda presentes no nosso contexto e veicu-
lando as formas inovadoras de inclusão, pautadas pela ciência e pela aplicação
consciente da tecnologia, voltada para favorecer a condição humana, indife-
rente da origem ou classe social. Permanecem sob nosso olhar os desafios
inerentes à inclusão social e a instauração de uma sociedade justa. Através
do processo formativo se instauram as primeiras compreensões acerca da im-
portância da nossa profissão, acerca dos elementos necessário para a cons-
trução do bem-estar civil como sinônimo de saúde e de obtenção de direitos.
Configura-se a cidadania como um caminho inerente à conscientização e ao
estabelecimento de laços que passam a nos caracterizar em nossa dimensão
humana e humanizadora.

Indicação de Leitura Complementar


SCHWARCZ, Lilia M.; BOTELHO, André. Cidadania: um projeto
em construção. São Paulo: ClaroEnigma, 2013. (Coleção agenda
brasileira)

O tema da justiça inevitavelmente acompanha a compreensão da


cidadania. Questões como o combate à desigualdade, o reconhe-
cimento da diversidade, o combate às formas de intolerância, ao
racismo, fazem parte da agenda que constitui a própria cidadania.
Muito distante de ser um tema estático, o debate sobre a cidada-
nia se avoluma a cada momento seja por força das reflexões que
abrem novos espaços de pensamento e intervenção, Seja em vista
das novas terminologias que trazem um conjunto de situações que
passam a ser tipificadas, expostas ao público.
Os autores buscam compreender a cidadã desde sua origem,
quando se estabelece o solodemocrático da política, até os dias
atuais, voltados para uma consciência social consolidade com um
histórico de lutas e pautas reivindicatórias. A cidadania não é um
termo que perde força com a sequencia das repetições, ao contrá-
rio, estabelece-se como marco a partir do qual se estruturam as
análises do contemporâneo e da vida em sociedade.

FILOSOFIA E CIDADANIA
63
Implica em respostas urgentes para situações que não são des-
lindadas e que em alguns momentos se naturalizam diante dos
nosso olhar. O caso brasileiro é
Permeado da avanços e recuos. De leis significativas, mas ine-
ficazes frente as desigualdades históricas e a vulnerabilidade
crescente. Acrescenta-se a isso o poder midiático de manipula-
ção das massas e de ocultamento da responsabilização por par-
te de empresas e líderes políticos. É o que faz os autores elabo-
rarem uma obra que busca tratar de frente o tema da cidadania.

CHAUÍ, Marilena. Sobre a violência. São Paulo: Autentica,


2017.

A obra da professora Marilena Chauí se estende pela análise


detida de pensadores como Marx e Espinosa, mas também pela
análise da situação do Brasil e das formas de elaboração de um
modelo democrático que contemple a cidadania. Nesta obra,
ela analisa a violência dentro dos seus aspectos estruturais e sua
relação com o autoritarismo da cultura e da política brasileira.
Compreender as formas como a violência se opera constitui
algo significativo para diversas situações pelas quais historica-
mente vimos passar. Presentes não somente na história, mas
no cotidiano da vida das pessoas, nas relações marcadas pela
intolerância e pelo individualismo crescente.
Quando aborda o tema da violência há uma reflexão sobre o
modelo de democracia que o Brasil vem construindo, os ele-
mentos presentes na formação das classes sociais e modo
como estas assumiram configurações próprias. Em vários mo-
mentos retoma preceitos do pensamento de Karl Marx para
nos fazer entender o caráter estrutural da violência, entender
que é uma construção social e não algo inerente a uma nature-
za. E que a partir de tal entendimento as várias diretrizes pelas
quais se pode guiar um modelo de educação.

Para Refletir
• Por que a cidadania constitui o mais eficaz remédio contra a
violência estrutural?
• Quais são as formas de visualizamos a cidadania de maneira
mais ampla dentro das novas demandas sociais?

FILOSOFIA E CIDADANIA
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