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HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA

Primeira unidade: os Pensadores originários

A filosofia nasce grega. Este pequeno povo do mediterrâneo oriental, que nunca
constituiu um grande império, lançou as bases da civilização ocidental através de um modo
de pensar completamente original que veio a se chamar filosofia. Este modo de pensar se
distingue tanto da religião e suas tradições como do senso comum.
Se a filosofia nasceu grega, se somente este povo até então teve a intuição de
procurar uma explicação para as coisas deste modo, evidentemente houveram condições
históricas e espirituais para que isso ocorresse. Evidentemente isto é um fenômeno
extremamente complexo e muito estudado e para o qual os historiadores já tem algumas
conclusões. A organização social e política dos gregos, entre os séculos VII e VI a.C.,
sofreu profundas transformações que a tornaram algo completamente diferente em
relação a todos os povos da antigüidade e isso permitiu que se questionasse aquilo que até
então era domínio da religião e das tradições. Foi neste ambiente que alguns homens se
destacaram e foram por seus contemporâneos chamados “sábios” (sóphoi) e como tal
lançaram as bases do que posteriormente se chamou philo – sophía, amor à sabedoria.
Os pensadores originários, em quase toda a literatura filosófica, são chamados “pré –
socráticos” e por serem assim denominados, sempre foram encarados como uma espécie de
preparação para os grandes sistemas da chamada “filosofia clássica” que surge com
Sócrates, Platão e Aristóteles.
Esta perspectiva traz implícito um preconceito de que, como toda preparação, como
tudo aquilo que vem antes, uma vez chegado o principal, pode ser dispensado. Os pré –
socráticos foram muitas vezes entendidos como pensadores “ingênuos”, já que não
conseguiram uma formulação e uma resolução dos grandes problemas que a filosofia
começava a se colocar. Isso é um crasso engano. Pelo contrário, o que estes pensadores
dizem já é de pleno direito, filosofia, e de certo modo, até mais filosofia que os clássicos,
já que são eles os criadores da filosofia, ao estabelecer a pergunta pelo fundamento de
todas as coisas, ao cunhar os termos principais, ao elaborar esta nova linguagem, distinta
tanto do senso comum, como da religião e dos mitos. São eles os que colocaram a base do
grande edifício, continuamente construído e reconstruído, que é o pensamento, a
especulação, a reflexão.
Os pensadores originários pertencem a um período da história grega de intensas
modificações econômicas, políticas, sociais e culturais. Os gregos, de um povo pequeno e
insignificante, voltado para si, se transforma em um povo de navegadores, comerciantes e
colonizadores, levando a sua língua e a sua cultura por toda a bacia do mediterrâneo, bem
como sofrendo o influxo das antigas civilizações ali existentes. Isto tudo fez com que o
tradicional modo de organização política e social dos gregos, a CIDADE – ESTADO = Pólis,
baseada, ainda no poder aristocrático, sofresse profundas modificações, em que
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geralmente os pensadores originários estavam envolvidos, pois quase todos desenvolveram


ao longo de suas vidas, intensa atividade política. Alguns chegaram mesmo a escrever
constituições para suas cidades, pois para a mentalidade grega, de que tudo é regido por
uma ORDEM, esta perpassa não só o mundo natural, mas também a comunidade dos homens
e cada homem, ou seja, o mundo, o Estado e o indivíduo, já que tudo é regido por LEIS =
NÓMOI. Assim, para os gregos de um modo geral e para os nossos pensadores de modo
particular, não se separava a especulação do fundamento do mundo, da discussão da
organização da cidade e do comportamento individual.
Existe um problema insuperável no estudo desses pensadores originários, aos quais
nós devemos a filosofia, que é o problema das fontes, pois quase todos os seus escritos se
perderam e o que nos chegou em muitos casos são coleções de frases, às quais os
estudiosos denominam FRAGMENTOS, e que têm origem em certas tradições de discípulos
e comentadores, que não são assim tão confiáveis, pois viveram muito tempo depois. Muitos
destes pensadores nada escreveram, pois a filosofia, em sua origem, tinha um aspecto
dialogal, (dialetiké = diálogo, conversa), polêmico, (pólemos = discussão, guerra, conflito) e
crítico (krínein = separar, dividir, para se procurar o centro, a raiz, o “miolo” ), de forma
que para eles pensar/investigar era antes de tudo um exercício da PALAVRA = LÓGOS.
Às escassas fontes sobre os pensadores originários se acrescenta um outro
problema, que é a questão da INTERPRETAÇÃO dos textos (interpretar = hermenéuein),
pois os que vieram depois muitas vezes entenderam estes textos em função de seus
próprios problemas, de modo que sempre cabe a pergunta: o que eles queriam realmente
dizer quando disseram/escreveram isso ou aquilo?
Por sua vez, o problema da interpretação nos leva ao problema da história da
filosofia, pois desde seus primeiros tempos a filosofia não só é histórica, isto é, reflete os
problemas de sua própria época como é história, no sentido que já é uma TRADIÇÃO
INTERPRETATIVA, que pode não refletir e até esconder a originalidade deste ou daquele
autor. Aristóteles de certo modo já é o primeiro historiador da filosofia, pois no seu livro
A da Metafísica, já traz como que um resumo e um comentário das principais posições que
precedem as suas.
Se um pensador se sucede a outro, podemos pensar que a filosofia tenha um caráter
como que “evolutivo”... Mas as coisas não são bem assim. É muito difícil dizer que um
pensador supere a outro; às vezes temos casos em que um dá uma solução melhor para um
problema do que outro, mas nem por isso podemos dizer que este seja “melhor” do que
aquele, pois nunca se esgota completamente a fonte da qual jorraram idéias novas.
Nos pensadores originários aquilo que veio ser os diferentes “campos” da especulação
filosófica quais sejam: ontológica, metafísica, ética, lógica, política, retórica, etc. não
estavam delimitados. Isto acontece de Aristóteles em diante. Não se deve portanto
procurara nos escritos dos pré – socráticos uma “pré - lógica”, uma “ pré – metafísica”, uma
“pré – ética”... Igualmente não podemos enxergar nestes pensadores certos conceitos e
posições que surgiram séculos depois, classificando este ou aquele de “materialista,
“idealista”, “espiritualista”, etc. etc. Isto quer dizer que nós não podemos interpretá-lo
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segundo nossos critérios de pensar do cristianismo nem segundo os princípios da ciência


moderna. Muito embora algumas de suas afirmações nos pareçam próximas de certas
posições do cristianismo ou das ciências, eles nunca tiveram a intenção ou iluminação para
tal. Eles não foram percursores de algumas descobertas como a teoria atômica da matéria
ou da teoria da evolução...
Entre os pensadores originários não havia uma rígida oposição de escolas e doutrinas,
devido ao caráter dialético das origens da filosofia e ao fato que estes pensadores
viajavam muito e estavam em contato uns com outros. A filosofia por sinal é a primeira
expressão de um saber universal, que ultrapassa os particularismos das cidades, das leis e
costumes, da geografia, etc. Há casos em que o saber filosófico era algo reservado a um
círculo de iluminados, entre os pitagóricos. Há casos em que era um saber oferecido a
todos que pudessem pagar por ele, como os sofistas. Em geral, estes pensadores não eram
chefes de partidos ou seitas, embora houvesse caráter político e mesmo religioso em seus
escritos.
Estes pensadores das origens escreveram de um modo completamente diferente do
modo atualmente se escreve filosofia. Seus escritos nos parecem hoje mais próximos da
poesia do que de uma explicação racional – científica. Isto não nos deve causar
desconfiança: mais que uma questão de estilo é típico do modo de expressão do século VI –
V a.C. entre os gregos. A poesia é o modo próprio de falar das coisas divinas, portanto, ela é
a maneira mais adequada de exprimir esta nova forma de saber que é a filosofia. Na pólis
tratava-se com igual consideração o sábio, o poeta e o legislador, já que todos eram os que
expressavam na palavra a ordem das coisas.
Mas qual seria a preocupação fundamental de todos estes pensadores? Haveria um
quê comum a todas as suas especulações? Ora, todos procuravam o fundamento último de
todas as coisas, ou para usar as palavras gregas, o Arché da Physis. Arché normalmente se
traduz por comando, domínio e em filosofia tem o sentido de origem, fundamento, base.
Physis, por sua vez, tem uma tradução bem mais difícil. Normalmente se traduz por
NATUREZA, no sentido de mundo físico, conjunto de fenômenos naturais. Porém o que os
gregos do século VI a . C. exprimiam por Physis era muito mais do que a partir do século
XVII passou a designar a física. Para as gregos esta palavra expressa a TOTALIDADE DO
ENTE MANIFESTO, tudo o que se dá, que se apresenta... Assim é Physis o nascer, o
crescer, o atingir a plenitude e o fenecer de todo ente, plantas e animais, o homem, a
cidade, as divindades... Perguntar-se pelo Arché da Physis é perguntar pelo princípio do
qual tudo que se principia, pelo fundamento de todo fundado, pela origem de tudo que
simplesmente se dá diante dos olhos do homem que se pergunta: - por que há o ser e não o
nada?... começa-se a filosofar quando surge este ESPANTAR-SE (taumátzein) do homem
que se admira da maravilhosa e terrível força que preside o surgimento de todas as coisas.
O homem sabe-se imerso neste fluxo constante, mas ao mesmo tempo distingue-se dele ao
perguntar-se por sua origem.
A Physis é divina e é mais que todas as divindades. Os gregos nunca chegaram a
pensar um Ser pessoal que fosse o princípio e origem de todas as coisas e ao mesmo tempo
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completamente distinto de todas elas, como fizeram os judeus mais ou menos na mesma
época, ou seja, o conceito de Deus como o têm a religião judaica e cristã não foi conhecido
pelos gregos. A Physis é divina sem ser uma divindade. Assim, quase todos os pensadores
originários pretenderam escrever um “tratado” das coisas divinas, aos quais denominavam
Peri Phýseos = sobre a física, ou sobre a natureza. Portanto, é mais do que adequado
chamar os escritos dos pensadores originários de Theo-logía, discurso sobre coisas
divinas, sem que isto expresse o que hoje entendemos por teologia.

Tales de Mileto (c. 620-550 a.C.)

A filosofia não nasce na Grécia continental, mas na costa da Ásia Menor, na região da
Jônia, na cidade de Mileto, próspera colônia dos atenienses onde o clima de liberdade
política e intelectual permitiu o florescimento das primeiras expressões do pensamento
filosófico.
Tales é considerado tradicionalmente como o primeiro filósofo, além de
conhecimento matemático, a quem devemos o teorema de Tales, bem como desenvolveu
intensa e importante atividade política em sua cidade. Que se saiba, não deixou nenhum
escrito, mas foi o primeiro a afirmar que Arché, o princípio que rege todas as coisas, seria
a água. Os que vieram depois dele, dizem que ele teria chegado a esta conclusão observando
que o alimento de todas as coisas é úmido, bem como a semente de todas as coisas tem um
caráter úmido. A terra por sua vez, flutuaria sobre a água que assim a sustentaria. Esta
idéia não é distante dos mitos da origem do mundo, que na mitologia grega confere à
divindade chamada “Oceano” a origem do cosmo, porém, Tales, ao dizer que a água é o
princípio de todas as coisas, apela para a observação e a razão.
Tales também teria dito que “tudo está cheio de deuses”, o que pode ser
interpretado no sentido de que tudo está impregnado pela água, princípio primeiro e divino
e como tal anima todas as coisas, permanecendo sempre o mesmo, ainda quando as coisas se
desfazem, e como tal, é imortal.

Anaximandro (c. 610-540 a.C.)

Anaximandro fora discípulo de Tales e também exercera importante atividade


política em sua cidade natal de Mileto e escreveu um tratado em forma poética com o nome
Perí Phýseos ou “sobre a natureza”, do qual nos chegou uma única frase: “De onde as coisas
tiram o seu nascimento, aí se cumpre a sua dissolução segundo a necessidade; de fato,
reciprocamente pagam a pena e a culpa da injustiça, segundo a ordem do tempo” .
Segundo testemunhos posteriores, Anaximandro teria afirmado que a Arché, o
princípio que rege todas as coisas, seria o Ápeiron, que traduzido literalmente quer dizer
“infinito” ou “indeterminado”. Ápeiron significa desprovido de péras, isto é, de limites,
seja no sentido de extensão, como em quantidade ou atributos. Para Anaximandro, se o
princípio é o que faz todas as coisas serem, não podeira ter começo nem fim, ou seja, seria
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ingênito e imperecível, sempre eterno. O Ápeiron tudo envolveria e tudo cincundaria,


regendo e governando todas as coisas. Anaximandro chamava o princípio de “Divino”, pois
possui os atributos da divindade: a imortalidade e a incorruptibilidade, e era portanto
“eterno e sempre jovem” .
Segundo Anaximandro, o Ápeiron permitiria a existência de infinitos mundos co -
existentes, do qual o nosso seria apenas um deles. O mundo teria surgido de uma separação
dos contrários, que primitivamente estariam todos unidos e indiferenciados no Ápeiron. Os
contrários lutariam para se impor um sobre os outros em cada ciclo, o que criaria assim uma
“injustiça”, que deveria ser separada ao final de cada ciclo pela dissolução de todas as
coisas no Ápeiron; isto explicaria e justificaria a existência de infinitos mundos co –
existindo, pois cada um estaria cumprindo um ciclo de criação e destruição em diferentes
estágios.
Anaximandro representava a terra segundo princípios geométricos, segundo os quais
ela teria a forma de um cilindro achatado, sustentado no espaço por um equilíbrio de
forças, no qual cada ponto estaria a igual distância do centro.
A partir deste modelo cósmico – matemático Anaximandro também idealizou o
equilíbrio político que deve presidir a Pólis: cada cidadão deve estar a igual distância do
centro, isto é do comando e dele participando, para que se mantenha o equilíbrio de forças
que mantém a cidade estável.

Anaxímenes (c. 580-520 a.C.)

Anaxímenes teria sido discípulo de Anaximandro e como seu mestre, escreveu um


poema com o título Perí Phýseos. Para ele a Arché, o princípio que rege todas as coisas
seria o AR, pois este possui todos os atributos que Anaximandro dava ao Ápeiron. O ar,
como o Ápeiron, seria infinito em grandeza e quantidade, prestando-se a infinitas
variações, através da condensação e da rarefação. Toda coisa viva precisa de ar, sem o qual
ela morre; em grego, a se diz Pneuma, que é a mesma palavra para designar o princípio
vital, a alma. Portanto, ter ar significa ter alma ou pneuma, isto é, estar vivo. Assim como
ar sustenta os seres vivos, ele sustenta envolve e governa todo o cosmo. O ar é invisível e
uniforme, mas pela ação do frio e do quente, do seco e do úmido torna-se visível e como tal
dotado de movimento. O ar, ao refazer-se, teria originado o fogo, e ao condensar-se,
originou a água e a terra e pela composição destes elementos, surgiram todas as coisas.

Heráclito de Éfeso (c. 550-480 a.C.)

Heráclito foi apelidado “o obscuro” devido o caráter difícil de seus escritos e de sua
personalidade. Também escreveu um poema de nome Perí Phýseos, em forma de aforismas,
ou seja, sentenças livres de conteúdo denso e difícil interpretação. Heráclito depositou seu
escrito no templo da deusa Artémis de Éfeso, e dele nos chegou algumas dezenas de
frases.
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Heráclito nota é o dinamismo, o fluxo universal de todas as coisas: tudo é dotado de


eterno movimento, o que faz com que as coisas nunca sejam as mesmas, nada permanece
imóvel e imutável, tudo está em transformação, donde a frase que resume todo o seu
pensamento: “Panta rhei” isto é, TUDO FLUI...
O devir ou vir –a – ser, ou seja, a constante mudança de todas as coisas é fruto de
um contínuo e perpétuo conflito de contrários que se alternam no domínio de um sobre o
outro: quente e frio, alto e baixo, seco e úmido, leve e pesado... Em cada situação é possível
perceber a presença da luta entre os rivais para se estabelecer sobre o outro. Tudo é
portanto uma guerra, donde esta outra afirmação sua: “a guerra é a mãe de todas as
coisas e de todas a rainha” .
Os contrários, em sua luta, chegam em um ponto de equilíbrio, em que um não tem
como suplantar o outro. Nesta precária e provisória pacificação, estabelece-se a Diké, ou
justiça. Este ponto de equilíbrio na luta da multiplicidade dos contrários, Heráclito o
denomina Lógos, que ele identifica com o fogo e chama de divino. Assim, o fogo, que
estabelece a síntese dos contrários é a Árché ou princípio, que explica a unidade da Physis.
O fogo é o elemento fundamental de todas as coisas e tudo não é mais do que
transformações dele. O fogo está em contínuo movimento, vive da morte na combustão,
transformando-se em fumaça (ar), liberando vapor (água), e originando a cinza (terra). O
fogo é a expressão do Lógos Divino que preside todas as transformações e estabelece a
harmonia no cosmo. A alma, que torna vivos os seres também teria um caráter ígneo, já que
da respiração sai ar quente. O fogo como a alma dos seres vivos, não tem extensão, isto é,
não ocupa lugar no espaço.
Este princípio divino ou Lógos, Heráclito identifica com a inteligência que governa
todas as coisas e ao homem caberia procurar compreender a exprimir a verdade do Lógos.

O Pitagorismo

É impossível separar a figura e a doutrina de Pitágoras da de seus discípulos, bem


como de todo o ambiente lendário e secreto que envolveu este grupo, que permaneceu no
limite entre a especulação filosófica e a religião.
A intuição fundamental do pitagorismo é a descoberta de que uma série de
realidades e fenômenos naturais são traduzíveis por relações numéricas representáveis de
modo matemático. Um dos lugares em que isto é evidente é na música, em que as harmonias
são proporções perfeitas, o que os levou a cultivar a música como modo de purificação
espiritual. Portanto, para os pitagóricos, o número é o princípio de todas as coisas. O cosmo
é portanto harmonia e número. Todos os números por sua vez, são divisíveis em pares ou
ímpares, a exceção do um, que gera tanto um como o outro. As coisas portanto seriam
resultado da combinação de números pares e ímpares. Como os números expressam as
relações geométricas, era-lhes natural pensar que números fossem a real expressão das
coisas. O domínio do número significa o domínio da racionalidade, da verdade e da ordem.
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O pitagorismo foi uma expressão do orfismo, isto é, dos cultos de purificação


espiritual que se tornaram comuns entre os gregos a partir do século VI a.C. e se
caracteriza de um modo geral pela idéia de que o homem é um ser divino, um Dáimon, um
espírito, que foi condenado pelas divindades a estar prisioneiro em um corpo neste mundo
em contínuo devir, por uma ofensa feita às divindades e, para se libertar do ciclo das
reencarnações, o homem deve se purificar através de certas práticas ascéticas, pela
música e pela dança, de modo a tornar o corpo dócil à alma e permitir que esta volte ao seu
anterior estado divino. Estas práticas eram ensinadas em rituais de iniciação, secretos, a
que poucos tinham acesso. Como se verá posteriormente, estas idéias tiveram profunda
influência sobre Platão e através dele, sobre toda a cultura ocidental.

Parmênides de Eléia (c. 525-450 a.C.)

Das costas da Ásia Menor a especulação filosófica se desloca para a região da Magna
Grécia, hoje sul da Itália e Sicília, região igualmente rica e próspera, onde na cidade de
Eléia surge uma escola que terá a mais formidável intuição da história da filosofia e que
determinará o seu destino. A idéia de que a Arché ou princípio coincide com o Ontos, ou
ser.
Mas o que é o ser? Ora, o ser é tudo aquilo que é! O homem é, a pedra é, a árvore é...
Mas o que faz com que as coisas sejam o que são?! Ora, o ser, entendido em sentido mais
amplo possível. Tudo que existe são entes. O que é um ente? É o ser “sendo” isso ou aquilo.
Em grego, ser se diz Ontos e ente, Ón. No latim, respectivamente Esse e Ens, donde na
nossa língua, ser e ente. O ser é portanto o que faz o ente ser. Se o ser faz com que todas
as coisas sejam o que são, intuíram os eleatas que só o ser é! Portanto, o que é a Phýsis?
Ela é a totalidade do ente manifesto. Como o ser é o que faz os entes serem, então a
Arché, o princípio é o ser... portanto, só o ser é, e como tal pertence-lhe a imutabilidade, a
eternidade, a unidade. Assim, tudo aquilo que é mutável, perecível e múltiplo não é! Ora,
isso quer dizer que tudo o que os nossos sentidos atestam, isto é, a multiplicidade dos
entes em seu constante devir ou vir-a-ser não passa de ilusão! Esta são as linhas gerais do
eleatismo, cujo representante mais importante é Parmênides.
Parmênides foi iniciado nos princípios do pitagorismo e como seus antecessores
escreveu um poema de nome Perí Phýseos, no qual ele fala das três vias ou caminhos:
- Via da verdade bem redonda
- Via das opiniões dos mortais, em que não há certeza veraz
- Via das aparências ou dos fenômenos
1)Via da verdade ou do Ser: “estí gar einaí, méden ho ouk estí “

O Ser é, e não pode não ser e por isso o Ser pode e deve ser afirmado. O Não – Ser
não é e não pode ser de modo algum. O Não – Ser deve ser negado. O Ser é o puro positivo
(afirmativo), absolutamente privado de qualquer negatividade. O Não – Ser é o absoluto
contraditório deste absoluto positivo.
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O que Parmênides quer dizer com tais afirmações? Lembremo-nos que para ele a
Arché, ou seja, o princípio que governa todas as coisas, é o Ser. Isto quer dizer que só o
princípio é que é em sentido estrito. Só ele é a verdade e todo o resto não passa de ilusão e
aparência. Portanto o princípio, deve e precisa ser sempre afirmado. Por sua vez, o Não –
Ser é o que apresenta a mudança e a ilusão e como tal, para que permaneçamos na verdade,
é necessário que o Não – Ser seja sempre negado, para que não caiamos no erro, na
contradição e na ilusão.
Em grego, verdade se diz Alétheia; Léthes quer dizer esquecimento, velamento,
ocultação. A – Létheia, por sua vez quer dizer não – esquecimento, desvelamento,
manifestação. O Ser, que por sua vez é a verdade, é portanto lembrança, desvelamento,
manifestação, presença. Como então o Ser pode se dar sem estar em devir, isto é, em
mudança e portanto no erro? Ora, enquanto pensamento! Daí a segunda grande afirmação
de Parmênides, a partir da qual nasce a ontologia ou doutrina do Ser:

“tó gar noein estín te kaí einai” : pois o mesmo é pensar e ser.

O Ser se dá como pensamento. Enquanto pensadas, as coisas estão isentas de


qualquer mudança e erro. Os sentidos, estes nos mostram as coisas em constante devir. No
entanto, o pensamento apresenta tão somente a Ser e portanto a verdade. Portanto, em
Parmênides vale a equação: Arché = Óntos = Alétheia ou traduzindo: princípio = Ser =
verdade...
O Não – Ser é o que não pode ser pensado e portanto expresso, porque é
contraditório, ou seja, admite a mudança, o devir, a mistura do Ser e do Não – Ser, tal
como nos mostram os sentidos. O Não – Ser é indivisível.
De certo modo, a afirmação de que o Ser é, e não pode não ser e que o Não – Ser não
é e não pode ser, marca igualmente o início da lógica, pelo princípio da não – contradição,
que diz a mesma coisa com outras palavras: uma coisa não pode Ser e Não – Ser ao mesmo
tempo.
Se só o Ser é, então ele é ingênito, isto é, desprovido de origem, pois se ele tivesse
princípio ou origem, houve uma ocasião em que ele não era, o que é contraditório. Se ele não
tem origem, é porque ele é eterno, pois se ele tivesse surgido no passado, agora ele não
seria mais, e se ele tivesse futuro, ainda agora ele não seria. O Ser é imóvel/imutável,
desprovido de movimento e mudança. Note-se que para os gregos e na linguagem filosófica
em geral, movimento não quer dizer só o deslocar-se de um corpo no espaço, mas toda e
qualquer mudança que acontece nas coisas: uma fruta que de verde se torna vermelha é
movimento; um menino que se torna homem e depois velho é movimento: o dia que se torna
noite é movimento. Portanto, entenda-se como sinônimos: movimento, mudança, devir, vir – a
– ser!
O Ser é dito também perfeito ou acabado. Perfeito, do latim, per-factum, ou seja,
totalmente feito, nada pode ser-lhe tirado ou acrescentado. Se ao Ser pudesse ser
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acrescentado ou tirado algo, ele não seria ainda, ou já teria deixado de ser. Por isso o Ser é
dito perfeito.
O Ser é igualmente Uno e Indivisível. Se ele fosse divisível, ele teria partes e
portanto seria múltiplo, o que é contraditório com a idéia da sua absoluta unidade, pois toda
multiplicidade é ilusão e contradição. Os gregos não conseguiam entender a multiplicidade
como algo positivo.
Parmênides diz também que o Ser é redondo ou esferiforme. Com isso ele compara o
Ser à perfeição do círculo ou da esfera, no qual todos os pontos estão a igual distância do
centro, como na perfeição do Ser.

2) Via do Não – Ser ou do erro:

O que nossos sentidos atestam é o devir, o movimento, o gerar-se e o corromper-se


de todas as coisas. O caminho dos sentidos é o caminho do Não – Ser. A ele, não podemos
prender a atenção, pois devemos permanecer fiéis à verdade do Lógos que diz que só o Ser
é, sem atentar para as contradições dos sentidos, que admitem a co – existência do Ser e
do Não – Ser, o que é a raiz do erro da opinião dos mortais.

3) Via das aparências:

O eleatismo apresenta um problema da difícil solução: por um lado, só o Ser é, e por


outro, o Não – Ser não é. Como então conferir alguma plausibilidade aos fenômenos nos
quais todos estamos imersos? De algum modo eles precisam ser “salvos” ... Será que de
alguma forma eles participam da verdade do Ser? Parmênides parece admitir esta
possibilidade, desde que não se conceda a mistura do Ser e do Não – Ser. Mas como então
duas coisas contraditórias, o dia e a noite, por exemplo, poderiam se harmonizar?
Parmênides propõe que elas na verdade são uma unidade, os sentidos é que as apresentam
como contraditórias, pois ambas são Ser e nenhuma das duas é o Nada ou o Não – Ser. Esta
solução que nosso pensador aponta no entanto não nos é completamente conhecida, pois
quase toda a segunda parte de seu poema, onde ela é apresentada, foi perdida.

Empédocles de Agrigento (c. 480 – 420 a.C.)

Os pensadores posteriores a Parmênides se esforçarão para encontrar uma


conciliação entre a imobilidade e unidade do Ser e a mobilidade e multiplicidade dos
fenômenos atestados pelos sentidos. Empédocles, da cidade de Agrigento, na Sicília, será
um deles. Além de filósofo, foi também místico, médico e político.
Empédocles propõe, para superar a postura eleata, de que não há movimento, a idéia
de que o que não há mudança, mas mistura e composição. Tudo é formado pela composição e
mistura de substâncias ingênitas e indestrutíveis. Estas substâncias seriam o fogo, a terra,
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a água e o ar. Estas seriam as “raízes de todas as coisas” e Empédocles as chamava


“divinas”.
A diferença entre Empédocles e os jônios está em que aqueles propunham a
transformação de um elemento nos outros, enquanto Empédocles propõe que eles seriam
sempre os mesmos, permanecendo inalteráveis, mas entrariam em composição uns com os
outros em diferentes proporções. Estes quatro elementos entrariam em combinações
mecânicas entre si, formando as coisas. Empédocles supera o monismo, isto é, a origem das
coisas a partir de um único princípio, pelo pluralismo, ou seja, o princípio das coisas é
estruturalmente múltiplo.
O que levaria os elementos a unir-se ou separar-se seriam duas forças antagônicas:
éris e éros, o ódio e o amor, ou outra tradução, a discórdia e a amizade, entendidos não
como sentimentos humanos, mas como forças cósmicas, de caráter divino, que causariam a
união e separação dos elementos. Éros e Éris seriam co - eternos aos quatro elementos.
Para evitar que as duas forças se anulassem mutuamente, Empédocles propõe que
haveriam ciclos de dominação, ora de um, ora de outro, durante o qual se organizaria o
cosmos. Quando predominasse éros, os elementos tenderiam a se agrupar, até se tornarem
indistintos, formando uma esfera compacta. Quando éris predominasse, os elementos
estariam completamente separados. Nestes dois extremos, não haveria cosmos, pois este
surge exatamente da mistura e da composição dos elementos e das forças, nos períodos de
passagem do amor ao ódio e do ódio ao amor. O amor, ao predominar, recolhe os elementos
na esfera e não há cosmos. Neste momento, o ódio insere-se na esfera, separando os
elementos, gerando um novo ciclo cósmico. O ódio por sua vez, ao prevalecer, separa os
elementos e dissolve o cosmo. O amor então começa a recolher e compor os elementos,
dando origem a outro ciclo cósmico e assim indefinidamente.
Empédocles tem uma interessante teoria do conhecimento: as coisas emitiriam
emanações delas mesmas, através de seus poros, que atingiriam nossos orgãos sensoriais ,
que por sua vez, compostos dos mesmos elementos, os reconheceria por semelhança: fogo
reconhece fogo, água reconhece água, etc.

O Atomismo: Leucipo (c. 480 – 420 a.C.) e Demócrito (c. 460 – 380 a.C.)

É impossível separar a doutrina de Leucipo da de Demócrito, pois além do primeiro


ter sido o mestre do segundo, dele não nos chegou nada e o segundo absorveu toda a
doutrina do segundo. Também os atomistas procuraram preservar o princípio da imobilidade
do Ser, sem negar a multiplicidade dos fenômenos.
Para os eleatas:
- o Ser é uno
- o Ser é imóvel
- o Ser não se gera nem destrói
- no Ser não há mudança nem mistura
Para os atomistas:
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- O Ser não é uno, mas composto de uma infinidade de corpúsculos invisíveis em pequenez e
volume, estes sim, unos e indivisíveis, os átomos: a – tomos = não divisível.
- Estes corpúsculos estão em contínuo movimento no vazio.
- Os corpúsculos, reunindo-se, geram as coisas e separando-se, as destroem.
- Os corpúsculos estão em constante interação, dando origem às coisas.
Para os atomistas, ocorre destruição quando o vazio se insinua no meio sólido. Os
átomos por usa vez, diferem uns dos outros pela sua forma geométrica. Os átomos, apesar
de múltiplos, guardam, individualmente as características do Ser – Uno de Parmênides: são
imutáveis, indestrutíveis, eternos.
A multiplicidade de dá então ao nível dos fenômenos e não a nível dos átomos, que
permanecem individualmente sempre os mesmo, ao mesmo tempo que, sendo muitos e
entrando em constante composição, explicam a multiplicidade dos fenômenos.
Um átomo diferencia-se de outro não só por sua forma geométrica (figura), como por
sua ordem e posição em relação aos outros. O átomo é indivisível porque é invisível (os
gregos entendiam que o que é visível é sempre passível de divisão), porém poderiam se
“vistos” pelo intelecto, já que possuíam uma figura semelhante às formas visíveis. Dos
átomos derivam não só a multiplicidade das coisas, como suas afecções, qualidades e
quantidades pelos átomos que entram na sua composição.
Diferentemente de Empédocles, não haveria nenhuma outra força fazendo com que
os átomos se juntem ou se separem, mas todas as suas composições derivariam do
movimento intríseco de que os átomos são dotados. Este movimento, a princípio anárquico e
desordenado, diferencia-se gradualmente em um movimento em aspiral, de forma que os
átomos vão se agrupando pela sua semelhança e se agregando, concentrando-se os mais
pesados no centro e os mais leves nas beiras, como o movimento da bateia do garimpeiro.
Como há infinitos átomos, há uma quantidade infinita de mundos, num processo de
formação e destruição contínua. A causa da formação das coisas e dos mundos seria o
próprio movimento, sem haver nenhuma finalidade neste movimento.
Também o homem é constituído de átomos e sua “animação” seria resultado da
composição de átomos leves, lisos e esféricos, de natureza ígnea, isto é, semelhantes ao
fogo, que se propagariam por todo o corpo, vivificando-o por serem leves, tenderiam
constantemente a sair do corpo, sendo continuamente reintegrados ao corpo pela
respiração. Se a respiração cessa, os átomos ígneos escapam e sobrevém a morte.
O conhecimento acontece pela emanação dos átomos a partir das coisas, que assim
entram em contato com os sentidos: átomos que saem das coisas impressionam os átomos
semelhantes nos sentidos, produzindo-se as sensações por semelhança.

Anaxágoras de Clazômenas (c. 500 – 430 a.C.)

Anaxágoras, como Empédocles, tenta manter firme o princípio eleata da


imutabilidade do Ser, ao mesmo tempo em que procura dar conta dos fenômenos. Foi o
primeiro a levar a filosofia para Atenas, onde viveu sob a proteção de Péricles por mais de
12

30 anos. Quando da morte deste, foi processado por impiedade (desrespeito às divindades)
e expulso da cidade.
Para Anaxágoras, haveriam “sementes” (spermata) de todas as coisas, em quantidade
e qualidade infinitas. Estas sementes não teriam limite em sua grandeza. Uma vez divididas,
guardariam sempre as suas características e propriedades. Os autores posteriores
chamaram estas sementes de Homeomerias, aquilo que dividido permanece sempre o
mesmo. As homeomerias estariam, a princípio, todas juntas, numa mistura em que uma
seria indistingüível da outra. A Divina Inteligência (Nous) teria posto as homeomerias em
movimento, surgindo daí as diferentes coisas. Toda e cada coisa não seria mais do que uma
mistura , em que predominaria um tipo de semente em uma determinada coisa, e outra
semente em outra. Assim, em cada coisa haveria a presença de todas as outra, o que
explicaria o crescimento dos seres: estes ao alimentarem-se, retirariam do alimento a
“semente” necessária para o seu crescimento, daí TUDO ESTAR EM TUDO E TUDO
PODER NASCER DE TUDO. Cada coisa contém, em diferentes proporções, todas as
outras.
Considerando-se a totalidade das homeomeiras, o seu somatório seria sempre o
mesmo, salvando-se assim o princípio eleata da imutabilidade e unidade do Ser.
A Divina Inteligência (Nous), por sua vez seria ilimitada, independente e não
misturada com nada. Seria a mais sutil e pura de todas as coisas, com pleno conhecimento
de tudo e possuidora de imensa força, a tudo dominando, movendo e ordenando e dando
origem ao cosmos por composição, separação e divisão.
O Nous não seria uma natureza espiritual, pois ainda no se tinha chegado à
compreensão deste tipo de realidade, mas seria uma outra força da natureza, capaz de se
misturar com tudo sem necessariamente entrar na composição.
13

A Sofística

Contexto político - econômico:

As guerras grego - pérsicas: lançam os gregos na onda dos grandes acontecimentos


dos impérios orientais, tirando-os de seu particularismo e dando-lhes uma visão do mundo
mais ampla.
A hegemonia ateniense: Como Atenas centralizava á aliança das cidades gregas
contra a Pérsia, e como possuía uma admirável frota naval, a cidade enriquece
enormemente, atraindo novas idéias. A figura de Péricles: promove a vida cultural da
cidade, representando o limite entre a autocracia e a democracia.
A guerra entre Atenas e Esparta: que durou 30 anos ( 434 - 404 a. C) levou ao
esgotamento e empobrecimento das cidades gregas.
A hegemonia espartana: o fato das cidades democráticas e mercantilistas terem
perdido a guerra para Esparta, levou os gregos a repensarem seus modelos políticos e
sociais.
Ao nível filosófico, todas essas mudanças levam ao questionamento das relações e
valores políticos tradicionais. É a crise da Areté aristocrática - não é mais o fato de
pertencer a uma família da nobreza o que lhe abre portas para vida política. Ocorre um
deslocamento do polo de interesses: não se especula mais sobre os fundamentos da Physis,
mas sobre os fundamentos da organização das cidades, da pólis.
Questionam-se principalmente as relações humanas na pólis, não tanto o que seja o
homem, mas suas relações e o que preside essas relações, ou seja, no jogo político, o lugar
do discurso, da palavra (logos), que determina todas essas relações. Doravante, é o jogo
das palavras, através da retórica o que passa a ser a maior e principal preocupação dos
gregos, na sua busca da sabedoria (sophía).
Todo povo tem seu corpo de leis e costumes (mores em latim, nómos no grego) que são
tradicionais e geralmente não são escritas e que regem seu comportamento individual e
político. Ora, os gregos deste período foram os primeiros a discutir, questionar e procurar
fixar suas leis segundo um modelo que não brotava da tradição, mas da discussão e do
consenso. No entanto, para se estabelecer leis é necessário estabelecer-se o Ethos isto é
os princípios sobre os quais as leis devem ser feitas e os cidadãos nela educados. É assim
que surge a discussão da Ética ou princípios da ordem individual e social e da Paidéia, isto
é, de como os cidadãos devem ser formados e educados. A crise da noção de virtude
( Areté) aristocrática, frente o avanço da democracia, faz com que se repense todos os
princípios da educação do cidadão.
A Sofística surge neste momento como um grande movimento educador, que se
propunha a ensinar um saber que capacitava para a vida pública. A rigor a Sofística não é
uma escola filosófica, mas uma postura frente ao saber. Os Sóphoi isto é, os sábios,
gabavam-se de possuir um saber polivalente, que habilitava a quem os ouvisse e fossem seus
discípulos, a também se tornar capaz de discutir e ganhar no jogo retórico, qualquer
14

disputa. Originalmente o termo sofista tinha um sentido altamente positivo: significava o


sábio, o especialista no saber, o possuidor do saber. O que destingue os sofistas dos
pensadores originários é que os primeiros organizaram as primeiras escolas no sentido
moderno da palavra, isto é ofereciam seu saber em troca de remuneração; tinham alunos e
não discípulos.
A nação extremamente negativa que temos hoje dos sofistas e da sofística esta
influenciada pelos seus críticos, como Sócrates, Platão e Xenofontes. Assim, durante
séculos, a única idéia que se tinha da sofística era essa. A partir do final do século XIX, se
descobriu, ou melhor se redimensionou a profunda originalidade da sofística e sua
importância fundamental dentro do processo de formação do pensamento antigo. Hoje
podemos tranqüilamente estabelecer que sem a sofística, não teriam acontecido as grandes
sínteses de Platão e Aristóteles.
Por que então a crítica de Platão e Xenofontes? Descobre-se aí um forte componente
de preconceito de classe: Tanto um como o outro eram de classe e postura aristocrática, o
partido que era o mais atingido pelos questionadores sofistas. Para eles era inadmissível
que se pusesse o saber, os princípios da bíos theoretiké (a vida teorética, a busca do
saber) como uma relação comercial de compra e venda. Como membros da classe
aristocrática, viviam das rendas de suas propriedades e poderiam se dedicar ao estudo e
mesmo ensiná-lo sem se preocupar com remuneração.
Os sofistas foram fundadores do processo educativo no ocidente, pois foram os
primeiros a colocar o saber aberto a todos (pelo menos os que pudessem pagar por ele), por
cima dos preconceitos de classe, de cidadania, de partido, etc.
Se compararmos as diferentes posturas dos pensadores originários, verificamos que
elas conduzem a um impasse. A uma mesma pergunta: - Qual é o princípio que comanda a
manifestação da totalidade dos entes? - O que é o Ser em sua totalidade? As respostas
são contraditórias entre si: Há um ou vários princípios? Tudo é móvel ou nada se move? Se
as coisas se movem, qual a origem deste movimento, desta mudança, deste vir - a - ser?
Tudo depende de uma ordem cuja origem é uma inteligência, ou tudo é fruto de um
movimento mecânico interno às suas próprias forças. Assim, de certo modo a filosofia da
busca do princípio ordenador se esgota nas diferentes e contraditórias respostas que
apresenta. Por outro lado, os problemas da organização da cidade e suas leis colocavam
questões que a filosofia de Physis não tinha como resolver.
Mas sobre o que discorriam os sofistas? Sobre tudo o que fosse objeto de
questionamento e discussão: a ética, enquanto princípio ordenador das leis, a política
enquanto conquista do poder, a linguagem enquanto instrumento para tal, e religião
tradicional, o processo educativo, os mitos, as tradições, leis, costumes e também os
problemas levantados pelos filósofos da Physis...
No período dos filósofos primordiais, filosofia e poesia estiveram bem próximas e
estes pensadores escreviam suas idéias não muito diferentes de como os poetas
expressavam as suas. No período da sofística será uma nova forma literária que andará
próxima da filosofia. Trata-se do teatro grego: as figuras de Ésquilo, Sófocles e
15

Eurípedes expressam, em suas obras teatrais muito do que os sofistas expressavam em


seus ensinos, pela discussão, de maneira totalmente nova, da questão moral e do
comportamento humano, frente aos deuses, aos homens, e aquilo que na época, era a
inevitabilidade do destino (moira).
O Método: o método da sofística é indutivo, isto é, parte do particular para o
universal, enquanto que o método dos pensadores primordiais era dedutivo, isto é, parte
teria da observação de princípios universais e sua aplicação nos casos particulares.
O método tinha fins imediatos e práticos: a aplicação na vida política e social
contemporânea era o principal objetivo, ao contrário da sabedoria dos filósofos
primordiais, que tinha uma função especulativa e teórica.
Os sofistas cobram em dinheiro e com isso o ensino torna-se uma profissão; o saber
não é mais resultado de um discipulado ou de uma herança familiar, ou da iniciação em
alguma seita mística, mas resultado de um aprendizado. O saber que o sofista oferecia era
posto a serviço de qualquer pessoa em qualquer cidade. Com isto se rompia o particularismo
das cidades gregas, criando o ideal de uma civilização pan-helênica, ou seja, que rompesse
as diferenças e os ódios que separavam as cidades.
Os sofistas foram grandes contestadores da ordem e do saber estabelecidos, pois
forneciam os argumentos para se questionar a ordem social, política e religiosa tradicional,
e não formavam escolas de pensamento ou um corpo definido de doutrinas. Cada sofista
tinha seu próprio corpo de idéias. A única coisa que tinham em comum era ao nível dos
mesmos questionamentos: a cidade, o homem, a ordem social, política, etc.
Houve é claro sofistas e sofistas... A primeira geração (+ ou - 450-400 a. C.) conheceu
grandes nomes: Protágores, Górgias e Hípias, quase todos contemporâneos de Sócrates. As
gerações seguintes degeneraram numa mera disputa verbal e pseudo - lógica, que só servia
para aprofundar as crises de valores e os rumos da sociedade. Estes foram
contemporâneos de Platão e Aristóteles ( + 0u - 400 - 337 a. C). De certo modo, a Sofística
se esgota com a conquista da Grécia por Alexandre da Macedônia ( 337 a. C) pois com ele
desaparece a cidade - estado tradicional, que era também a base dos questionamentos
sofistas.
Muito pouco nos chegou dos próprios sofistas. Por sinal era parte da sua postura não
deixar por escrito suas ideias e doutrinas, não só para não permitir que elas fossem
copiadas, mas pela própria natureza do ensino, essencialmente verbal. A maior parte do que
nos chegou sobre eles nos veio de seus maiores críticos, principalmente Platão, que dedica
vários Diálogos a eles.

Protágoras

A sua famosa frase: "O homem é a medida de todas as coisas: das que são pelo que
são e das que não são porque não são" é a expressão mais acabada de todo o movimento
sofístico. Protágoras introduz o relativismo na filosofia: nega a possibilidade de princípios
16

absolutos que pretendam estabelecer a verdade ou verdades absolutas, tanto do ser,


quanto do não - ser.
Para ele, o critério para estabelecimento da verdade é o julgamento pelo homem
individual. As coisas são o que me parecem ser. Cada indivíduo sente, percebe e organiza o
mundo de acordo com as suas convicções.
Segundo Protágoras, a cada princípio é possível estabelecer uma hipótese contrária,
com igual valor de convencimento, o que faz com que, de certo modo, as razões venham a se
anular. É o que se chama Antilogia. Neste sentido, uma parte importante do ensino sofista
era tornar mais forte o argumento mais fraco, através da crítica e da discussão.
Para Protágoras, a virtude ou excelência ( Areté) mais importante é a Astúcia (
eubolia). A virtude é o procurar destacar-se e ser vitorioso nas disputas. Por sua vez,
mesmo que não haja verdades absolutas, haverão sempre coisas que nas diversas situações
serão mais úteis, mais convincentes, mais oportunas e é por estas que circunstancialmente
cabe defender.
A ética de Protágoras não é uma escolha entre o verdadeiro e o falso, mas entre o que
é útil e o que é prejudicial ( e mesmo isso pode variar segundo as circunstâncias). O que faz
algo bom ou mal é a sua utilidade ( mesmo o prazer não é sempre útil, se ele for prejudicial
à saúde por exemplo). O que é útil ao público é o que é útil ao bem da cidade.
Quanto aos deuses, Protágoras argumenta, como é típico de suas posturas, que não é
possível se chegar a uma conclusão a respeito de sua existência ou não, pois podemos
elencar argumentos pró e contra sua existência. Isto na prática é o agnosticismo teológico
isto é, os deuses, se existem não podem ser conhecidos pelos homens, pois são de natureza
completamente diferente dos homens e como o homem só conhece o que é humano, não
poderia conhecer os deuses.

Górgias:

Tese básica de Górgias: Não existe o Ser; a rigor nada existe. Mesmo que existisse o
Ser, ele não seria compreensível e se fosse compreensível, não seria comunicável de pessoa
a pessoa. Com isto desaparece o critério de verdade, pois do inexistente, do incognoscível e
do inexprimível, não há possibilidade de juízo.
1-A rigor nada existe: O Ser não é; O Ser é não - ser. Para justificar sua tese Górgias diz:
do ser já foi dito que é uno e que é múltiplo; que é ingênito e que é gerado; que é móvel e
que é imóvel. Assim, o ser se existisse, não seria nem uno nem múltiplo, nem gerado, nem
ingênito, nem móvel, nem imóvel. Por isso as investigações dos filósofos da physis se anulam
e o objeto que eles investigam, o ser, não pode ser daí, o ser é não - ser.
2- Parmênides colocara que ser e pensar são o mesmo. Porém nos é evidente que podemos
pensar coisas inexistentes. Logo Ser e não - Ser são igualmente pensáveis.
3- A palavra nunca pode exprimir exatamente o que uma coisa é. Palavras são sons. Como
elas podem pretende exprimir formas, cores, movimentos? Igualmente, como uma mesma
17

realidade pensada poderia estar presente em vários indivíduos em si diferentes? E mesmo


que pudesse, o que garante que esteja em seus pensamentos do mesmo jeito?
Górgias propõe então o refúgio na Doxa, isto é, na opinião. É verdadeiro o que me
parece verdadeiro. Cria uma ética da situação; o que em certo tempo e lugar é tido como
certo e verdadeiro é o que deve ser praticado e ensinado. Górgias não ensina o que é e
como alcançar a virtude, mas tão somente elencava as virtudes e cada um escolhesse a que
melhor lhe convinha. Para Górgias a palavra torna-se a arte da persuasão: aquele que possui
esta arte consegue discorrer sobre qualquer assunto e convencer o ouvinte de sua opinião.
O que Górgios se diz capaz é de ensinar a arte de persuasão. No uso da palavra (retórica)
Górgias valorizou principalmente a moção dos sentimentos, que ele descobriu na poesia e
principalmente no teatro.

Hípias

Este preocupa-se não com a antilogia (Protágoras) ou a retórica (Górgias), mas com a
polimatia, ou seja, um saber enciclopédico, capaz de discorrer sobre qualquer assunto e
para consegui-lo, Hípias ensinava técnicas a memorização.
Hípias ensinava que os homens são iguais por natureza e não por lei. O que os une é o
fato de todos terem a mesma natureza humana. As leis, ao contrário de tornar os homens
iguais, os divide e os opõe e esta natureza comum é destruída. Assim, ele é o primeiro a
pregar um ideal cosmopolita e igualitário, o que para os gregos era algo novo e
revolucionário.

Antifonte

Leva ao radicalismo a postura de Hípias da oposição entre lei e natureza. Só na


natureza há uma autêntica forma de viver. A natureza é a verdade, as leis positivas pura
opinião. Neste sentido pode-se transgredir as leis humanas para se seguir a lei da natureza.
Antifonte propunha a igualdade fundamental não só dos gregos entre si, mas dos gregos e
dos bárbaros (qualquer um que não fosse grego). Propõe a superação do fechamento da
pólis sobre si mesma.
No entanto, única natureza comum a todos os homens é a natureza sensível: todo
homem procura o útil e o prazer e foge do prejudicial e do doloroso. A lei impõe sacrifícios
e dores e portanto não é algo natural. A natureza também permite que haja homens mais
fortes e outros fracos, logo é natural que aqueles dominem sobre estes. Assim, o
"igualitarismo" de Antifonte deixa aberto o caminho para o domínio do mais forte e esta
será a postura dos chamados "sofistas políticos".
18

Pródico

Mestre na arte de fazer discursos, seu método consiste na sinonímia, isto é, sobre a
distinção dos vários sinônimos e a precisa determinação das nuances de significado entre as
palavras. Assim a linguagem se torna o instrumento de incontáveis jogos de semelhanças e
diferenças que permite dizer (ou não dizer...) todas as coisas. Isto era extremamente útil
nos tribunais e assembléias, pois pela distinção do significado das palavras, "confundia-se"
o adversário e ganhava-se a causa.
É de Pródico o chamado "mito de Herácles na encruzilhada" em que um jovem se
pergunta qual o caminho seguir na vida. A virtude revela-se como a busca do útil, que traz a
felicidade e o prazer duradouros e não a felicidade e prazer transitórios. Deve-se buscar,
pelo autodomínio e a reflexão o prazer mais intenso e duradouro.
Pródico explica a origem na crença nos deuses, como uma espécie de divinização das
coisas úteis: a terra, a chuva, a alegria, pois é divino aquilo que mais vale.
19

PLATÃO

Biografia:

Platão nasceu em Atenas, em 427 a.C.; seu verdadeiro nome era Arístocles e Platão é
um apelido, pois “platos” em grego quer dizer “largo”, pelo fato dele ter um tórax muito
largo e porte atlético. Tanto por parte de pai como de mãe era de família nobre.
Foi discípulos do heraclitiano Crátilo, mas também conheceu as idéias de Parmênides,
Empédocles, Anaxágoras e dos atomistas. Conheceu Sócrates por volta de 407 a.C. e
freqüentou suas lições por cerca de 10 anos, visando aprimorar sua formação política. Entre
404 e 403 a.C. dois parentes seus, Cármines e Crítias participaram do governo oligárquico
de Atenas, tendo Platão por esta ocasião se decepcionado com a vida política.
Em 399 a.C. Sócrates é condenado à morte quando então estava no poder o partido
democrático. Para evitar perseguições, Platão, junto com um grupo de socráticos, vai viver
na cidade de Megara, onde desfrutam das lições do famoso geômetra Euclides. Teria
também estado em Cirene, no norte da África, onde entrou em contato com o matemático
Teodoro e depois foi para o sul da Itália, onde tomou lições com os pitagóricos Filolau e
Eurico em 388 a.C.
Nesta ocasião, conhece Dionísio, governante da cidade de Siracusa, em quem
pretende aplicar suas idéias educativas do rei – filósofo, desenvolvidas em seu diálogo de
nome “Górgias”. Os dois acabam se desentendendo e Dionísio expulsa Platão de Siracusa e o
faz embarcar para a cidade de Égina. Como Égina e Atenas estavam em guerra, Platão é
preso e vendido como escravo, mas é logo resgatado por um amigo, Anicérides de Cirene.
Retorna a Atenas onde funda sua escola, a Academia, num ginásio dedicado ao herói
ateniense Academo (daí o nome “academia”). Nesta ocasião teria escrito o diálogo Mênon.
Angaria muito discípulos e sua escola se torna famosa.
Em 367 a.C. Dionísio e Platão se reconciliam e novamente aquele convida Platão a
voltar a Siracusa para formá-lo filosoficamente. No entanto Dionísio mantém Platão quase
prisioneiro, que foge e volta a Atenas. Em 361 a.C. Díon, sobrinho de Dionísio, convence
Platão a ir Siracusa uma terceira vez, mas acontece uma nova briga e Platão volta para
Atenas em 360 a.C. e lá permanece até a morte em 347 a.C. com a avançada idade de 80
anos.

A Obra de Platão

Os escritos de Platão nos chegaram quase todos: 36 diálogos, que foram reunidos em
nove tetralogias (grupos de quatro), sem seguir uma ordem cronológica, o que dificulta o
estudo de Platão, pois é impossível traçar um desenvolvimento claro de suas idéias, ao longo
dos mais de 40 anos que duraram sua produção literária.
20

Outro fator que dificulta o estudo de Platão é a existência de uma obra esotérica
(isto é, só para os de dentro da academia, e que era passado oralmente) e uma obra
exotérica (isto é, para “os de fora”, obras dedicadas a publicação, mas que não contém os
principais pontos de sua doutrina filosófica). Da doutrina esotérica não nos chegou nada; da
doutrina exotérica, praticamente tudo, os famosos “Diálogos”. Assim, embora o conteúdo
dos “Diálogos” seja riquíssimo, os elementos mais importantes do pensamento platônico não
estão lá expostos de modo explícito. Platão preferia o ensino oral ao escrito, pois para ele o
saber está na palavra viva. O escrito não alimenta o saber, serve apenas para trazer à
memória o que já sabemos. O escrito é sem alma, não tem como se defender dos críticos. O
discurso é sempre vivo, enquanto o escrito é como uma imagem da realidade. Isto faz com
que as suas principais doutrinas não tenham sido escritas!

A Influência do Pensamento Platônico

As redescobertas de Platão ao longo da história foram várias, trazendo novas luzes e


desenvolvimentos em sua doutrina. Já na antigüidade, aconteceram três grandes épocas do
estudo de Platão, das quais a mais importante aconteceu entre os séculos III e IV depois
de Cristo e produziu grandes pensadores como Proclo e Plotino, que influenciarão
enormemente os Padres da Igreja, principalmente Santo Agostinho. Esta “versão
neoplatônica” de Platão será a dominante até o século XIII d.C.
No século XV e XVI, na renascença, a partir da cidade de Florença, há a tradução do
grego para o latim das obras integrais de Platão, o que produziu nova efervescência no
interesse e conhecimento deste filósofo.
No final do século XIX e no século XX, com a ajuda de novos métodos de estudo, foi
possível retomar o pensamento original de Platão, purificando-o de vários adendos que lhe
foram colocados ao longo da história e principalmente compreendendo que o platonismo
deve ser compreendido muito mais a partir das chamadas “doutrinas não – escritas” que do
material escrito dos “Diálogos”.

A Forma Literária do Diálogo

Outros, antes e depois de Platão usaram esta forma literária, mas nenhum com o
brilho e o estilo de Platão. Os diálogos representam conversas idealizadas entre o herói,
isto é, Sócrates, e algum ou vários debatedores ou opositores. Assim Platão coloca na boca
de Sócrates, diversas ideias, que este jamais teve.

Os Problemas da Interpretação do Pensamento Platônico:

1-A unidade e o sistema – tratando-se de uma obra vasta heterogênea, fica difícil
estabelecer a unidade do corpo de doutrinas de Platão. Por outro lado não há um sistema
filosófico em Platão, mas diversas questões de caráter ético, político, ontológico,
21

gnoseológico, etc. e cada diálogo acentua mais um aspecto do que outro. Não é raro
encontrar contradições entre o conteúdo dos diálogos e uma mesma doutrina sofre mais de
uma versão.
2-A influência Socrática – Sócrates e Platão conviveram cerca de 10 anos, mas todos os
diálogos de Platão foram escritos depois da morte daquele. Que doutrina é originalmente
de um e que doutrina é originalmente de outro é algo difícil de determinar. Platão ouviu de
Sócrates principalmente o método de filosofar: a ironia, o “não saber”, a maiêutica, e
confutação....
3-A ordem dos escritos – algo que facilitaria muito o estudo de Platão seria a
determinação da ordem cronológica em que os diálogosforam escritos, pois isto permitiria
acompanhar o desenvolvimento e amadurecimento do pensamento platônico. Assim, após
vários estudos comparativos é possível chegar a este esquema:
-Diálogos da juventude – os chamados diálogos socráticos curtos.
-primeiros escritos – Górgias, Mênon, Crátilo, Protágoras.
-Diálogos da fase média – Banquete, Fedon, República, Fedro.
-Diálogos da fase madura – Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, Timeu, Filebo, Crítias,
As Leis.
4-A relação entre mito e logos em Platão – para transmitir certos conceitos filosóficos
complexos, como a doutrina da reminiscência ou da metempsicose, freqüentemente Platão
se utiliza de mitos, para os quais é difícil determinar que nível de veracidade Platão
pretende lhes dar. Em alguns casos, eles são como que “imagens de compreensão”,
“metáforas”, para perpassar certos conceitos que uma compreensão imediata é difícil se
não impossível.
5-As tendências do pensamento platônico – é possível separar, ainda que de modo
artificial, três grandes tendências na obra de Platão. Uma de caráter ontológico e
gnoseológico, a mais original e base para as demais. Uma de caráter místico e religioso, que
teve grande desenvolvimento na época do neoplatonismo (Séc. IV e V a.C.) e a partir daí,
todo o cristianismo. Uma de caráter ético e político, mais estudada modernamente, para a
compreensão das origens da política entre os gregos.

A METAFÍSICA DE PLATÃO

Platão é o primeiro a fazer uma exploração e demonstração racional (e não


religiosa...) da existência de uma realidade supra-sensível e transcendente, ou em termos
mais simples uma realidade espiritual, invisível. Sócrates chegara à intuição da alma como
uma substância espiritual. Platão vai mais longe, propondo a existência de uma realidade
espiritual, alcançável somente pela inteligência, daí o termo “mundo inteligível” em oposição
ao “mundo sensível”.
22

Lembremo-nos que a solução de Platão pretende ser síntese e a resposta a todos os


questionamentos levantados pelos filósofos da “physis” e pelos sofistas, cuja pergunta
básica era: - por que as coisas nascem e se corrompem? Por que elas são do jeito que são?
Dos filósofos da “physis” Anaxágoras foi o que mais se aproximou da afirmação de
uma realidade espiritual e transcendente que seria a origem e fundamento das coisas, a que
ele chamava “Inteligência” (Nous). Para Platão, Anaxágoras não chegou à solução do
problema, pois não conseguiu articular a causa com o Bem, isto é, se o princípio organiza o
mundo, deveria explicar também porque o organiza da melhor maneira, isto é, em vista de
um bem. Igualmente Anaxágoras dava muita importância causal aos elementos materiais.
Sócrates provou que a escolha racional da inteligência deve coincidir com a escolha
do justo e do melhor: a alma deve escolher o Bem. Isto é entendido por Platão como a
proposição da existência, ao lado do mundo sensível, material, de um mundo inteligível ou
espiritual, composto das formas perfeitas, alcançáveis unicamente pela razão, da qual o
mundo material/ sensível era uma cópia. Este é o conceito principal de todo o platonismo.
Mas por onde principiar a investigação do inteligível? Ora, a realidade inteligível só
pode ser alcançada pelo pensamento: somente o pensamento - e não os sentidos – é que
pode chegar à verdade última das coisas. Assim, o mundo ou realidade inteligível/ espiritual
guarda a IDÉIA perfeita de cada coisa, que os sentidos reconhecem no meio da
multiplicidade dos seres materiais. As primeiras e mais importantes idéias, base para todas
as demais, são as idéias do belo, do bom, do verdadeiro e do justo. Estas são imediatamente
reconhecíveis em todas as coisas. Assim as coisas sensíveis que são múltiplas e variadas e
estão em constante mudança existem e permanecem por participar da realidade una e
imutável e perfeita que há no mundo/ realidade inteligível/ imaterial. Por ex. há milhões de
seres humanos, mas todos eles não são mais do que a participação de uma única idéia de
homem, que existe de modo puramente espiritual no “mundo das idéias” e isto o nosso
pensamento pode alcançar e reconhecer. Mas haveria idéias não só das coisas, mas também
das qualidades, dos números, dos entes geométricos, etc. Com isso, o mundo sensível, o
físico, não pode mais ser considerado como a causa verdadeira da realidade, mas tão
somente o meio e o instrumento para a realização da causa verdadeira, que é espiritual.

A Metafísica Platônica se baseia em três Pontos:

A)a doutrina das idéias: de cada coisa particular existe um gênero ou essência que existe
em si e por si, como realidade espiritual, embora o acesso a esta realidade não seja fácil
nem imediatamente comunicável.
B)a teoria dos primeiros princípios que explicaria a origem, desenvolvimento e inter-
relacionamento das idéias. Destes princípios Platão não fez uma formulação escrita
completa.
C)a doutrina do Demiurgo – o artífice e Pai do Universo, que organizou o cosmo sensível a
partir do modelo inteligível. Segundo Platão, é impossível falar a todos a respeito dele. O
Demiurgo é a noção mais próxima do Deus judaico – cristão.
23

Significados dos Termos Idéia/ “Eidos”

Para nós, hoje, idéia quer dizer um conceito, um pensamento, uma representação
mental, que se dá ao nível psicológico ou do conhecimento. Para Platão, a idéia é o objeto
específico do pensamento, aquilo para o qual a alma, o pensamento está voltado, aquilo que
faz o pensamento ser pensamento. A rigor a idéia é aquilo que realmente é e existe, como
uma realidade em si mesma, a natureza específica de cada coisa, sua essência, que se dá
como puro inteligível. Para os gregos até Platão, a palavra idéia descrevia tão somente a
forma visível das coisas, a sua forma exterior, que se capta com os olhos. Como se nota,
Platão produz uma inversão do sentido original da palavra: o que até aquele momento
designava a forma exterior das coisas, passa a designar a sua realidade interior, íntima,
transcendente, objeto do puro pensamento e não mais da visão imediata.
As idéias de Platão são o originário qualitativo e imaterial das coisas, são realidades
de caráter não físico, mas meta – físico. Assim Platão postula, ao lado da visão das coisas
materiais (uma visão corpórea) uma visão das coisas espirituais, uma visão da mente, da
alma, que capta as formas puras e inteligíveis das coisas. O que importa não é a visão em si
ou a coisa vista, mas a forma espiritual, o Ser.

Características das Idéias Platônicas:

1 – A inteligibilidade: exprime uma característica fundamental das idéias, que as


contrapõe ao sensível, como uma esfera de realidade subsistente acima do sensível e que
por isso só pode ser captada por uma inteligência que saiba se libertar das impressões dos
sentidos.
2 – A Incorporeidade: a idéia pertence a uma dimensão completamente distinta do mundo
corpóreo, sensível, material.
3 – A Idéia é o Ser em sentido pleno: isto é, só elas são verdadeiramente, só elas são a
realidade em sua totalidade.
4 – A Imutabilidade: as idéias ao contrário das coisas sensíveis, não sofrem mudança ou
usando o termo tradicional, não se geram nem se corrompem; não sofrem portanto o efeito
do tempo e podem ser ditas eternas.
5 – A Ipsieidade: as idéias são em si e por si, não podem ser ora de um jeito, ora de outro,
são sempre as mesmas. Daí, do latim “se – ipso” = ser o mesmo.
6 – A Unidade: cada idéia é uma unidade que unifica a multiplicidade das coisas que dela
participam.
A idéia, que é incorpórea, pode ser dita também forma inteligível, ou seja, meta –
sensível, meta – física (meta em grego quer dizer “além de” ), torna-se um ser determinado
(isto é acabado/ pronto) que age como causa determinante das coisas sensíveis. Ela é um
ser delimitado (uno, igual) que age como causa limitante das coisas sensíveis, como a causa
verdadeira e real do mundo sensível.
24

O “Ser” das idéias é um tipo de ser puramente inteligível e incorpóreo, que não nasce
nem perece, que é por si e em si em sentido pleno e somente este Ser pode ser dito
verdadeiro e portanto, cognoscível. O mundo sensível em que o Ser está misturado à
mudança pode ser objeto apenas de opiniões (doxa). Somente do inteligível se pode dizer
que há ciência (epistéme) e sabedoria (sophia).
As idéias, não devem estar sujeitas ao vir – a – ser, à mudança, mas devem ter como
ser próprio delas aquele ser que permanece sempre o mesmo. O vir – a – ser das coisas
sensíveis se explica por sua composição material e toda a estabilidade e permanência que
possuem, tomam emprestado ao ser das idéias. Assim como que há uma explicação para as
posturas antagônicas de Heráclito e Parmênides. A observação de Heráclito de que tudo
está em perpétua mudança se refere ao mundo sensível. A observação de Parmênides de
que nada muda se refere ao mundo inteligível. Com isto suplanta-se o relativismo de
Heráclito que proclama o fluxo perene e radical de todas as coisas e dos sofistas, que
faziam as coisas depender da observação particular de cada sujeito.
As idéias tem uma realidade que não é arrastada pelo vir – a – ser das coisas, que não
é relativa ao sujeito que observa, implicando uma firmeza e estabilidade estruturais. Se
não fosse assim, todo o nosso conhecimento e avaliações morais estariam carentes de
significado e nosso falar não teria sentido algum.
O verdadeiro conhecimento consiste em unificar a multiplicidade numa visão
sinóptica, capaz de reunir a multiplicidade sensorial na unidade da idéia da qual o sensível
depende. O filósofo é aquele que é capaz de saber ver o conjunto e o que capta a unidade
na multiplicidade.

O Dualismo Platônico

As idéias são transcendentes e não dependem do sensível, mas o sensível só existe


porque as idéias existem. São as idéias que agem como causa do sensível. Como as idéias
transcendem (isto é, estão acima e além) do sensível elas representam uma dimensão
diversa do sensível, que por sua vez o fundamenta, sem ser determinado por ele, num plano
novo e superior à própria realidade sensível.
O mundo inteligível é a dimensão incorpórea e meta empírica do Ser, transcendente
ao mundo sensível, não no sentido de uma separação e sim no sentido da causa meta –
empírica: é esta causa meta – sensível que torna possível o sensível, sem se opor
necessariamente a ele. Por isso é que se pode falar de maneira metafórica e simbólica e
quase mítica de “mundo das idéias”, de “meta – ouranos” ( o que está acima do céu) muito
embora não seja um “lugar”, bem como de meta - físico isto é, além da realidade física,
sensível, material. O mundo inteligível ou mundo das idéias é por nós captado pela parte de
nós que detém o governo da alma, ou seja, a inteligência (nous), a alma.
Platão usa várias metáforas para descrever a relação que há entre o mundo sensível
e o mundo inteligível, em diferentes obras. Nenhuma delas esgota ou explica totalmente a
relação que há entre as duas realidades.
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a)O sensível é “mímesis”, isto é, imitação do inteligível. O sensível “imita” o inteligível sem
nunca conseguir igualá-lo, já que está em perpétua mudança, enquanto o inteligível é sempre
igual a si mesmo.
b)O sensível é “metéxis”, isto é, participação do inteligível. É pelo inteligível que o sensível
realiza a sua essência própria, para ter parte com a idéia e é só assim que o sensível pode
ser conhecido.
c)O sensível é “Koinonía”, isto é, comunhão com o inteligível. Tudo que o sensível tem de
ser e de inteligibilidade o recebe do inteligível por comunhão com ele.
d)O sensível é “parousía”, isto é, presença do inteligível, na medida em que a causa está na
coisa causada, em que o princípio está na coisa principiada, a condição na coisa condicionada.
Esta participação do sensível no inteligível é feita pela inteligência ordenadora, isto
é, o Demiurgo, o artífice que molda a matéria segundo o modelo das idéias.

A COSMOLOGIA DE PLATÃO

A cosmologia é a parte da filosofia que pretende explicar a organização do cosmos,


isto é, do mundo enquanto realidade física. Isto em Platão é discutido principalmente no
diálogo chamado “Timeu”. Lembremo-nos que para Platão o real não é o mundo físico,
sensível, material, mas o “real verdadeiro” é exatamente o que não se vê, isto é o inteligível.
Para Platão, o real tem uma estrutura hierárquica em que para a existência do nível inferior
há uma dependência ontológica do nível superior, mas o nível superior independe do nível
inferior.
O mundo inteligível possui três níveis; Em primeiro lugar está a idéia do Uno/ Bem,
princípio supremo, mas que precisa interagir com a Díade, princípio de diferenciação para
que o nível ontológico inferior aconteça. Assim pela ação da Daíde sobre o Uno surgem as
idéias Supremas, modelos e arquetipos de todas as coisas, o segundo nível do inteligível. As
idéias por sua vez fazem surgir o plano dos números e entes matemáticos, o terceiro
nível do inteligível. O mundo sensível por sua vez precisa do modelo dos números e entes
matemáticos para que o Demiurgo aja sobre a matéria e assim produza o mundo sensível.
O mundo inteligível é o mundo Ser enquanto tal, imperecível, eterno, sempre igual a si
mesmo. O mundo sensível é o mundo do vir – a – ser que possui o ser em sentido parcial e
derivado, sujeito à mudança, à geração e à corrupção. Embora não constitua um “mundo” ou
realidade, pode-se falar do “não – ser”, como aquilo que é contraditório ou diverso, que não
pode ser pensado se não como contradição.
Se por um lado, a dependência do nível inferior é necessária, não quer dizer que ela
seja suficiente, pois se por um lado o nível ontológico superior explica a ordem e a unidade
do nível inferior, não explica sua diferença interna, isto é seus aspectos de multiplicidade e
pluralidade. Assim, em todos os níveis, além do princípio de unidade, há necessidade de ação
de um princípio de diferenciação, que é a determinação da díade.
Por exemplo: o ponto representa o uno ao nível do universo matemático; dele todos
outros entes geométricos dependem. Mas ele por si mesmo não pode criá-los. Torna-se
26

necessária a ação da díade como princípio da diferenciação sobre o ponto, segundo as idéias
de “curto” e “longo” produzindo-se a linha, que se torna assim um novo princípio de unidade.
Da ação da díade, sobre a linha segundo as idéias de “largo” e “estreito” produz-se o plano,
que se torna um novo princípio da unidade. Da ação da díade segundo as idéias de “alto” e
“baixo” produz-se o sólido, base para a formação das figuras geométricas. Da combinação
de números e linhas surgem os entes matemáticos: triângulos, retângulos, circunferência,
etc. Da combinação das idéias de números, linhas, planos, surgem os entes matemáticos
“sólidos”: esfera, cone, pirâmide, etc.
Daí a importância dos seres matemáticos e da matemática de um modo geral no
sistema de Platão, porque eles são os intermediários entre os dois diferentes gêneros de
ser: o ser eterno, sempre igual a si mesmo, imutável, etc. e o ser que sofre mudança,
geração e corrupção, o vir – a – ser ou devir, do mundo sensível. Os entes matemáticos,
combinando-se com outras idéias e moldados pelo Demiurgo na matéria indiferenciada é
que produz o mundo sensível.
Para Platão, tudo o que está sujeito ao processo de geração e corrupção, isto é, ao
devir, ou vir – a – ser, como é o mundo sensível exige uma causa (Aitía) porque toda coisa
gerada precisa de algo que a gere. Esta causa é o Demiurgo ou Artífice do Universo, ou, em
termos metafísicos é a causa eficiente, ou seja, o que “faz”. Assim como o barro precisa do
oleiro para que se produza o vaso, a matéria precisa de Demiurgo para que o mundo sensível
aconteça. Assim como o oleiro produz o vaso segundo o modelo que está em sua mente, o
Demiurgo produz o universo a partir do modelo que é o mundo inteligível, pela combinação
das diversas idéias. Assim, toda beleza, harmonia e ordem que há no mundo sensível deriva
do modelo tirado do mundo inteligível. O mundo é belo porque Demiurgo, ao construí-lo,
seguiu o modelo eterno e imutável. O mundo em sua totalidade é a mais bela de todas as
realidades criadas e o Demiurgo o melhor de todos os artífices, pois ele realiza a mais
perfeita das idéias, a do Bem/ Uno ao nível mais ínfimo de ser, a matéria.
O mundo inteligível é o mundo do Ser enquanto tal, imperecível, eterno, sempre igual a
si mesmo. O mundo sensível é o mundo do vir - a - ser que possui o ser em sentido parcial e
derivado, sujeito à mudança, à geração e à corrupção. Embora não constitua um "mundo" ou
realidade, pode-se falar do "não- ser", como aquilo que é contraditório ou diverso, que não
pode ser pensado se não como contradição.
Se por um lado, a dependência do nível inferior é necessária, não quer dizer que ela
seja suficiente, pois se por um lado o nível ontológico superior explica a ordem e a unidade
do nível inferior, não explica sua diferença interna, isto é seus aspectos de multiplicidade e
pluralidade. Assim, em todos os níveis, além do princípio de unidade, há necessidade de ação
de um princípio de diferenciação, que é a determinação da díade.
Por exemplo: o ponto representa o uno ao nível do universo matemático; dele todos
outros entes geométricos dependem. Mas ele por si mesmo não pode criá-los. Torna-se
necessária a ação da díade como princípio da diferenciação sobre o ponto, segundo as idéias
de "curto" e "longo" produzindo-se a linha, que se torna assim um novo princípio de
unidade. Da ação da díade, sobre a linha segundo as idéias de "largo" e "estreito" produz-se
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o plano, que se torna um novo princípio da unidade. Da ação da díade segundo as idéias de
"alto" e "baixo" produz-se o sólido, base para a formação das figuras geométricas. Da
combinação de números e linhas surgem os entes matemáticos: triângulos, retângulos,
circunferência, etc. Da combinação das idéias de números, linhas, planos, surgem os entes
matemáticos "sólidos": esfera, cone, pirâmide, etc.
Daí a importância dos seres matemáticos e da matemática de um modo geral no
sistema de Platão, porque eles são os intermediários entre os dois diferentes gêneros de
ser: o ser eterno, sempre igual a si mesmo, imutável, etc. e o ser que sofre mudança,
geração e corrupção, o vir - a - ser ou devir, do mundo sensível. Os entes matemáticos,
combinando-se com outras idéias e moldados pelo Demiurgo na matéria indiferenciada é que
produz o mundo sensível.
Para Platão, tudo o que está sujeito ao processo de geração e corrupção, isto é, ao
devir, ou vir - a - ser, como é o mundo sensível exige uma causa ( Aitía) porque toda coisa
gerada precisa de algo que a gere. Esta Causa é o Demiurgo ou Artífice do Universo, ou,
em termos metafísicos é a causa eficiente, ou seja, o que " faz". Assim como o barro
precisa do oleiro para que se produza o vaso, a matéria precisa do Demiurgo para que o
mundo sensível aconteça. Assim como o oleiro produz o vaso segundo o modelo que esta em
sua mente, o Demiurgo produz o universo a partir do modelo que é o mundo inteligível, pela
combinação das diversas idéias. Assim, toda beleza, harmonia e ordem que há no mundo
sensível deriva do modelo tirado do mundo inteligível. O mundo é belo porque o Demiurgo,
ao construí-lo, seguiu o modelo eterno e imutável. O mundo em sua totalidade é a mais bela
de todas as realidades criadas e o Demiurgo o melhor de todos os artífices, pois ele realiza
a mais perfeita das idéias, a do Bem/ Uno ao nível mais ínfimo de ser, a matéria.
Ao nível inteligível a determinação do Uno/ Bem sobre a Díade indiferenciada é
suficiente para produzir as idéias e os entes matemáticos, mas ao nível do sensível, a Díade
é representada pela matéria indiferenciada e o Demiurgo representou o Uno/ Bem, que
assim "imprime" na matéria indiferenciada as "marcas", o "selo" derivado das idéias. Esta
impressão se dá sempre segundo princípios numéricos e geométricos. O que o princípio
material recebe não são as Idéias eternas diretamente, mas como que "imagens" mediadas
pelos seres matemáticos.

O princípio material:

As Idéias não estão num "espaço" e o mundo das idéias não é um "lugar", mas para que
as coisas sensíveis venham a existir é necessário que elas se dêem num espaço
( Chora) e num determinado lugar ( tópos) do espaço. Cada coisa sensível tem seu "lugar" ou
"sede" e só as coisas sensíveis, que são geradas, ocupam lugar no espaço. As idéias não
estão no espaço.
Além da espacialidade, o princípio material tem a característica de ser o receptáculo
da forma inteligível ( assim como o barro pode adquirir as mais diversas formas, ele mesmo
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não tendo uma forma definida) e por isso a matéria quenão tem forma alguma e é dita "
indiferenciada" : para acolher toda e qualquer forma, a matéria não pode ter forma alguma.
Segundo Platão, este princípio material "primitivo" e indiferenciado antes de receber
a determinação pelo Demiurgo era uma espécie de "massa", ou "caldo" em constante
processo de agitação e movimento, trazendo em si os traços dos quatro elementos
primordiais ( ar, água, terra, fogo). O princípio material seria como que um feixe de forças,
agitações, movimentos desordenados e caóticos.
Assim, pode se dizer que o princípio material é a Díade indeterminada ao nível do
sensível. Neste estado material, ela se torna pouco moldável pelo Uno/ Bem isto é, pelo
inteligível e o racional, que não consegue submetê-la totalmente, dando origem às falhas,
desordens e descomedimentos próprios do mundo sensível.

Como Demiurgo age sobre princípio material:

O Demiurgo enquanto é "Bom" em sumo grau, opera atuando o Uno/ Bem na matéria,
colocando ordem no seio da desordem. O Demiurgo atualiza a unidade na multiplicidade, por
meio da medida e proporção e das relações numéricas e geométricas. Ordenar o universo é
basicamente produzir ou introduzir relações numéricas no princípio material. A atividade de
Demiurgo consiste em levar as coisas que estão em condições de desordenadas a uma
medida, a uma ordem, a uma proporção.

A Teoria do Conhecimento e a Doutrina da alma

A palavra chave para descrever o conhecimento segundo Platão é ANAMNESE


(anamnésis), que pode ser traduzido por recordação ou reminiscência. Conhecer é
basicamente lembrar-se. Mas ainda assim se a verdade é o inteligível, o "mundo das idéias",
como o homem tem acesso a ele? No que o conhecimento sensível se diferencia do
conhecimento inteligível? Platão também precisava responder a certos sofistas que
negavam a possibilidade de um sofistas conhecimento certo e seguro, que deveríamos nos
contentar com as opiniões e aparências...
Para isso Platão diz que conhecimento é anamnese, isto é, uma forma de recordação,
um vir - a - tona daquilo que sempre existiu no interior da alma. Ele se inspira nas doutrinas
órfico- pitagóricas, que diziam que a alma é imortal, órfico renasce várias vezes, só o corpo
é mortal. A alma, por ser eterna, já tinha visto e conhecia toda a realidade. Assim a alma
pode reconhecer e reaprender, porque ela já possui em si mesma a verdade, que está
substancialmente presente nela desde sempre. A alma permanece no Ser.
Por isso o personagem Sócrates, nos diálogos de Platão, pode falar e realizar a
"experiência maiêutica", de fazer um escravo ignorante demonstrar, se lhe são feitas as
perguntas adequadas, complexos problemas de geometria. Da existência da verdade na alma
Platão deduz a imortalidade e eternidade da mesma, pois a alma aprendeu, antes de sua
29

vida atual, as verdades que agora estão veladas. Assim a teoria do conhecimento de Platão
recebeu influências não só órfico-pitagóricas, como também da maiêutica socrática e a
doutrina da anamnese tem como conseqüência a doutrina da metempsicose (transmigração
das almas ou reencarnação).
Uma prova para Platão da doutrina de anamnese é a existência dos conceitos
matemáticos: a experiência sensível do que seja o maior ou menor, o que seja um círculo, um
quadrado, esfera é capaz de produzir em nós uma noção muito mais perfeita de cada um
destes entes, de forma que os conceitos ideais a que a alma chega, são muito superiores
aos que lhes vem pelos sentidos, o que demonstra que de algum modo a alma já possuía
estes conhecimentos perfeitos. Os sentidos só nos dão conhecimentos imperfeitos.
Conhecimentos perfeitos a alma o que os retira de si mesma, interiorizando-se, pois que os
possui originalmente. Não só os conhecimentos matemáticos, mas também os éticos e
estéticos: o que é belo, bom e verdadeiro, o justo, o santo, a alma não retira estes
conhecimentos da experiência sensível, mas é capaz de reconhecê-los, o que indica que já
os possui.
A reminiscência supõe uma espécie de "impressão" na alma das idéias de todas as
coisas, uma espécie de "visão" metafísica originária da verdade, do mundo ideal/ inteligível.
A alma porém, ao ligar-se ao corpo esquece, mas não totalmente, os conteúdos que
contemplou no mundo das idéias.
Na alma possuiríamos uma intuição originária do verdadeiro. O conhecimento por sua
vez é proporcional ao ser. O ser que esta no mundo ideal é cognoscível. O sensível por sua
vez por trazer em si a "mistura" do ser e do não- ser, do que é e do que não é, só pode ser
objeto de opinião ( Doxa). O conhecimento do ser ( e portanto da realidade supra sensível)
é sempre ciência ( epistéme). A opinião por sua vez, divide-se em uma imaginação e crença.
Ao nível do inteligível a ciência se divide em conhecimento mediano e intelecção pura ou
sabedoria ( sophía). Os homens comuns estão presos à imaginação e à crença.
O destino da alma Platão e descreveu em termos míticos, que ele auriu dos órfico -
pitagoricos. Em linhas gerais, todos os mitos para explicar a origem e destino da alma tem
em comum as seguintes idéias: o homem está sobre a terra como que de passagem e sua
vida terrena é como uma provação. A verdadeira vida está no além, no Hades ( o "céu" dos
gregos). Após a morte a alma é julgada segundo os critérios da justiça e da injustiça, da
temperança e da devassidão, da virtude e do vício. Se a alma viveu mais na justiça, na
temperança e na virtude, ela irá para a "ilha dos bem- aventurados", caso contrário irá para
o tártaro. Se viveu parte uma coisa, parte outra será temporariamente punida.

A Metempsicose:

A doutrina platônica da reencarnação das almas assume duas formas e dois


significados: as almas que viveram uma vida excessivamente ligada ao corpo, às paixões, aos
amores e seus prazeres não conseguem, após a morte, ficar longe daquilo que é corpóreo,
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pois isto se lhes tornou natural. Daí procuram ligar- se logo a corpos e não só de homens,
mas também de animais, na proporção da virtude ou do vício em que viveram.
As almas teriam sido criadas em número limitado, de modo que, se todas recebessem
um prêmio ou castigo eternos, chegaria o momento em que não haveria mais almas sobre a
terra. Por isso em certos textos de Platão postula-se que o prêmio ou castigo não seriam
eternos, mas que durariam um tempo, mil anos, ao final dos quais as almas voltariam e
encarnar-se sobre a terra, de modo que sempre haveria almas indo e vindo do paraíso ou do
tártaro e a terra estaria sempre habitada.
O homem não é livre para escolher entre viver e não viver, mas é livre para escolher
como viver, segundo a virtude ou o vício. No entanto esta escolha depende da capacidade
de cultivar o conhecimento e a ciência, que é o que dirige a vida para o bem e para o mal.
Daí a importância da filosofia, para que a alma se cultive e se encaminhe para a libertação
do ciclo de reencarnações e ascenda ao paraíso.
Originalmente as almas estariam junto aos deuses, levando uma vida divina e bem-
aventurada. O fato de serem lançadas à terra e ligadas a um corpo significa que teriam
cometido uma ofensa ou uma revolta contra estas divindades superiores, recebendo assim
este castigo e devendo purgar esta culpa.
Os matemáticos conseguem chegar ao conhecimento mediano ( dianóia), mas só os
filósofos conseguem chegar a intelecção pura (noésis). Há portanto uma dialética
ascendente no processo do conhecimento. A medida que nos livramos dos sentidos e das
coisas sensíveis, somos conduzirão à contemplação de realidades ideais cada vez mais
superiores, e de idéia em idéia, chega-se a Idéia Suprema, o Bem/ Uno.

A Imortalidade da alma e a Metempsicose:

Se a alma humana é capaz de conhecer as coisas imutáveis e eternas é porque ela


mesma deve ter uma natureza imutável e eterna. O corpo é afim a realidades sensíveis e
visíveis, ao que se percebe ( o empírico) e ao mutável. Isto é sempre passível de erro e
como tal, transitório e mortal como corpo. A alma é afim a realidades invisíveis, inteligíveis
e imutáveis, pode chegar a contemplação das idéias puras, que não são sujeitas a erro, que
são portanto perenes e eternas como a alma.
É próprio das coisas divinas o comandar e das coisas materiais o ser comandado. Daí a
alma, por ter natureza eterna dever comandar o corpo. A alma tem como marca inicial a
vida e a idéia de vida ( como a própria palavra diz, a alma "anima"). Em uma idéia não pode
coexistir coisas contrárias. Logo a idéia de vida ( e de alma portanto) é incompatível com a
idéia de morte. Quando sobrevêm a morte, o corpo morre, mas a alma retira-se dele para
outro lugar.
A alma pode tornar-se má, mas não pode ser destruída. O mal na alma é o vício, mas
ele, por maior que seja, não pode destruir a alma. O bem que a alma é, é sempre superior ao
mal que nela pode estar. Mesmo o mal que está no corpo ( a doença, por exemplo) não pode
destruir a alma, pois o mal do corpo é alheio à alma.
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A alma é o princípio de movimento e este como tal nunca pode cessar. As almas são
geradas pelo Demiurgo, tendo portanto um nascimento, mas não estão sujeitas à morte,
como tudo que procede do Demiurgo: o mundo também é eterno.
A existência e a imortalidade da alma só tem sentido se admite um ser, uma realidade
supra- sensível, espiritual, tal qual é o "mundo das idéias". Isto significa em última analise
que a alma pertence a dimensão do inteligível, do meta- empírico, do incorruptível e esta é a
natureza última do homem.

O Destino da Alma

O destino da alma só se define após sua separação do corpo. Platão expõe


metaforicamente o significado ao nível filosófico que a alma, na sua busca do conhecimento,
pode chegar a uma contemplação do Ser, isto é a Idéia do Bem/ Uno e permanecer da
verdade, isto é, no mundo supra- sensível. Um relaxamento nesta busca da ascensão e
contemplação do Bem leva a que a alma caia novamente presa das realidades sensíveis e
mortais, ao corporal.
Assim, a vida do homem sobre a terra se originaria de uma espécie de queda da alma
( que pode ser entendida de modo aproseológico, moral e religioso). A vida do homem sobre
a terra será tanto melhor, quanto mais ele conseguir se lembrar das realidades eternas da
qual a alma participava no mundo supra- sensível e tão menos perfeita, quanto menos se
lembrar e quanto mais se ligar ao que é sensível e corpóreo. Sua libertação e ascensão
exigira mais ou menos encarnações, conforme sua maior ou menor ligação com as idéias
eternas ou as coisas sensíveis. As que por três gerações tivessem cultivado a filosofia
escapariam ao ciclo das reencarnações.
Evidentemente que todas estas idéias e doutrinas a respeito da alma estão carregadas
de contradições e incoerências, não só porque Platão nunca chegou a uma doutrina
definitiva a este respeito, como ele apresentou várias "visões" e "soluções" em diferentes
obras ao longo de sua vida. Igualmente é inseparável de sua doutrina sobre a alma o
conteúdo místico- religioso, que ele recebeu dos órficos e dos pitagóricos. Muitos destes
mitos sobre a alma e seu destino podem ser parte da doutrina de Platão ou ser parte da
doutrina destas antigas religiões. Mesmo ao longo da história elas receberam as mais
diversas interpretações. Quando o cristianismo passou a usar conteúdo do platonismo para
explicar racionalmente a fé, precisou reformular completamente a doutrina sobre a alma
para torná-la compatível com os dogmas cristãos da ressurreição entre outros. Muito do
platonismo e dos cultos órficos e mistéricos sobreviveram dentro de seitas cristãs, como
os gnósticos, ou misturados com crenças populares ou mesmo pretensamete
intelectualizadas, com elementos pretensamente "científicos" que viriam a comprovar as
idéias da reencarnação, como é o caso do Kardecismo. Convenhamos também que mesmo
estas idéias de Platão não são originárias dele, embora sejam fundamentais no conjunto de
sua filosofia.
32

A Ética de Platão

A palavra ética vem do grego, "éthos" e significa costume, como no latim, moral, vem
do "mores", que igualmente significa costume. A ética é a reflexão racional sobre os
fundamentos do comportamento individual e social do homem, isto é, os costumes e leis,
escritos ou não, que reagem nossas relações uns com os outros e com a "cidade", isto é, a
comunidade política.
A ética está entre as principais preocupações de Platão que desenvolveu amplamente
em alguns de seus diálogos: Fédon, República, Górgias, Leis... e é marcadamente dualista,
devido as relações entre a alma ( psyché) e o corpo ( somma), pois se fundamente sobre a
metafísica das relações entre o mundo sensível e o inteligível, o material e o espiritual. Aos
princípios metafísicos vem somar o componente religioso, dos cultos órficos e mistéricos,
acentuando a oposição estrutural entre as duas partes que compõe o ser humano, o corpo e
a alma. A união entre o corpo e a alma para Platão não é natural, mas, pelo contrário é anti-
natural. O corpo é entendido como túmulo ou cárcere da alma. Enquanto temos e estamos no
corpo, estamos mortos, pois o que nós somos em última instância é a nossa alma. A alma
enquanto está ligada ao corpo, está como que encerrada num túmulo: a morte é a libertação
da alma.
O corpo para Platão é a fonte de todo mal: dos amores insanos, das paixões,
inimizades, discórdias, ignorância, desregramentos, vícios e loucuras. A salvação da alma é
fugir o mais possível de tudo o que for corporal. Por isso, a filosofia é antes de tudo uma
busca, uma procura da morte! A verdadeira filosofia é um exercício de morrer, pois ao
morrer, a alma é libertada e pode realizar sua essência última no mundo inteligível, que é
viver na contemplação das realidades eternas e do Bem- Uno. Mas isto não é uma apologia
do suicídio! Não adianta morrer, se a alma não estiver cultivada! O filósofo, continuará
neste mundo e nesta vida, num esforço de cultivo de sua alma e mortificando seu corpo,
pois se assim não fizer, não poderá escapar ao ciclo da reencarnações. Se morrermos
"apressadamente" sem termos cultivado nossa alma, de nada adianta... A vida neste mundo é
fazer morrer o que é corporal e cultivar a alma, para que quando a alma se separar do
corpo, não queira mais ficar ligada a ele e busque logo o mundo inteligível. O filósofo de
cultivar a fuga do mundo ( sensível) e isto significa buscar e cultivar tudo o que é virtuoso
e procurar assemelhar-se ao que é divino.

A Tábua de valores:

Sócrates já colocara que a felicidade do homem é o cultivo da alma e que os


verdadeiros valores são a virtude e o conhecimento. Os valores mais prezados pela cultura
grega eram os relacionados com a vida militar: a beleza e o vigor físico, a coragem e a
bravura, a habilidade no manuseio de armas e dos cavalos, enfim o que torna o homem
nobre, honrado e respeitado entre os seus iguais. Platão, colocando na boca de Sócrates,
estabeleceu uma hierarquia de valores, paralela ao seu sistema metafísico.
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- Acima de tudo estariam os seus valores " religiosos", que para Platão não era
nenhuma religião em particular, mas a busca e o cultivo das Idéias, principalmente a do
Bem/ Uno.
- Seguem-se os valores chamados "espirituais", que para Platão é tudo aquilo
relacionado ao conhecimento, a busca da ciência e da sabedoria: o cultivo das letras, da
musica, da matemática, da geometria, etc...
- Mais abaixo estão os valores ditos "vitais", ou seja os que conservam e promovem a
vida, pois enquanto a alma esteja ligada ao corpo, este deve ser o mais saudável possível,
daí o cultivo da medicina, da ginástica, etc.
- Ao nível mais inferior esta aquilo que de certo é exterior ao homem e como que lhe
adere de modo transitório e são os valores ligados à busca da honra, da distinção e da
riqueza.
Para Sócrates e para alguns sofistas, a busca do prazer não era em si um mal, desde
de que com regramento e mesmo adiantamento, pois um prazer desfrutado com inteligência
pode ser muito mais intenso e satisfatório que um buscado de modo apressado e
indisciplinado. No entanto Platão diz que o prazer é a antítese do bem, pois sujeita a alma
ao sensível e com isso escraviza-a. Daí ele propor a ascese no lugar do hedonismo ( busca do
prazer). O desprezo do corpo leva ao desprezo do prazer e de todas as suas satisfações.

A composição da alma:

A alma para Platão possuía uma estrutura tripartite e cada uma delas buscava sua
satisfação segundo sua natureza.
- A parte concupiscível da alma busca a satisfação na posse de coisas materiais.
- A parte irascível da alma busca a satisfação na posse de coisas relacionadas à honra!
- A parte racional da alma busca a satisfação na posse do conhecimento e da
sabedoria.
O que é buscado pelas partes irascível e concupiscível não pode ser retido na alma e
portanto não lhe é co- natural. Ao contrário, o que nos vem pelo conhecimento e pela
sabedoria é retido e não pode ser mais tirado. Platão propõe uma vida “mista” as partes
inferiores da alma tem seu valor e função enquanto se ordenam para o bem de parte
superior, racional- "mista" em que os prazeres podem ser lhe permitidos, desde que
condicionados pela parte racional da alma.

A Purificação da alma

Sócrates falava do "cuidado da alma". Platão em "purificação da alma", a partir do


termo grego "catarsis", espécie de purgação ou purificação da alma usados nos ritos
iniciáticos do orfismo, através de cantos, danças, transes, etc. Para Platão a purificação da
alma é a busca do conhecimento, das coisas inteligíveis: pelo esforço da pesquisa e ascensão
no conhecimento, a alma se cura, se purifica e se eleva. A conversão ao Ser é a iniciação ao
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Bem supremo. Ninguém erra senão por ignorância: saber é conhecer, saber á possuir a
virtude, a moralidade.

A Amizade ( philía) e o Amor ( eros)

Platão desenvolve este tema em duas obras: o Banquete ( também chamado Simpósio)
e no Lísis. A philia é o amor em que está ausente a paixão e eros é o amor apaixonado e
ardente, o delírio amoroso.
A amizade surge não em relação ao que nos é semelhante ou dessemelhante mas é algo
intermediário, é o gosto por aquilo que não é bom, nem mau. Mas o que é intermediário, o
que é ao mesmo tempo bom e mau. O que se busca na amizade não é o amigo em si, mas algo
posterior. A amizade está em função de um "primeiro amigo" ( próton phílon), que é o Bem/
Uno. É sempre ele que buscamos na amizade, mesmo que de certo modo não percebamos. A
amizade que liga os homens entre si só é autêntica se revela-se um meio para alcançar o
Bem/ Uno.
A busca e a fascinação pela beleza é o primeiro passo da amizade platônica, pois o belo
é o primeiro sinal do Bem. Começamos por amar as corpos belos, para depois buscar a
beleza por si mesma. Amamos o belo que há no outro, antes de amá-lo por ele mesmo.
O amor por si mesmo não é belo nem bom, mas é sede de beleza e bondade e é
descrito como filho da pobreza/ carência e da vontade de aquisição e posse, tendo esta
dupla natureza. O amor se relaciona com a filosofia ( philos sophía): a sabedoria ( sophía) só
a divindade possui, aos homens só é possível a amizade, o amor à sabedoria, pois igualmente
o homem nunca é plenamente sábio ou ignorante.
O que os homens chamam de amor não é mais do que uma parte do amor, que é o
desejo do belo, do bem, da sabedoria, da felicidade, da imortalidade, do absoluto. O amor
físico é o primeiro passo na busca da imortalidade, pois os corpos ao se unirem, originarão
outros corpos. Mas os amantes devem ser fecundos na alma, na arte do cultivo das
virtudes, da justiça, das leis e da ciência. A busca beleza é a lembrança das realidades
eternas que um dia a alma contemplou.

A Política no Pensamento de Platão:

Na Carta VII de Platão, ele revela que a política foi a paixão de toda sua vida. Ele
desenvolve esta temática nos diálogos Górgias, República, Político e Leis. Seu ideal é a
formação do rei- filósofo ou filósofo- rei, aquele que guiado pela sabedoria, procuraria
moldar o bem na vida política. A filosofia é a chave para a atividade política. Sua
experiência com Dionísio da Siracura mostrou-nos o quanto ele foi tenaz nesta idéia:
somente após três fracassos, desistiu de aplicar na prática, ou com pelo menos neste
personagem, sua idéia de educar o rei- filósofo. Platão tem a atividade política no mais alto
grau porque a verdadeira política tem por fim o bem do homem, o cuidado da sua alma. A
falsa política tem como fim tão somente o bem do corpo, pela busca do bem- estar material.
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Devemos notar que a política nas cidades gregas era completamente diferente da
política dos estados modernos, que por sinal tem por fim exatamente proporcionar o bem-
estar de seus cidadãos. Entre os gregos o indivíduo não contava, o que importava era o bem
e a sobrevivência da cidade, para a qual todos deveriam se esforçar. Platão acha que para
reformar a cidade e a política seria necessário começar pela reforma da vida doméstica, o
que incluía as relações familiares e econômicas.

A Política no diálogo " A República" (Politéa)

É o mais longo e famoso diálogo de Platão, composto de 10 capítulos nos quais trata de
diversos assuntos, mas principalmente da construção da cidade ideal e da forma de governo
ideal.
- A relação entre a ética e a política - para Platão o homem só se explica
moralmente, se em primeiro lugar se o explica politicamente: assim a ética se submete à
política e formar o estado é formar o homem e vice- versa.
Esta obra de Platão serviu ao longo da história para calorosos debates, pois mesmo
que suas idéias nunca tenham sido postas em prática, foi a primeira reflexão sobre a
natureza do estado da nossa civilização. A posse comum dos bens por todos, uma das
proposições da República, foi vista por muitos como uma antecipação da proposta
comunista, que tanto influenciou este século. É claro que não se pode cair em reducionismos
e exageros, ao comparar-se o mundo do século IV a. C. com nosso mundo hoje. Um pensador
contemporâneo, Karl Popper, é critico da República, por achá-lo a primeira obra a propor
uma "sociedade fechada", isto é, onde tudo é controlado pelo estado e, como tal, o mais
remoto antepassado das diferentes formas de totalitarismo, como nazismo e comunismo.
Platão não foi profeta e não pode ser responsabilizado pelas loucuras do nosso tempo.
O que ele acreditava era que o estado era uma projeção ampliada da alma e portanto a
política seria a criação de uma "cidade interior" na qual tudo estivesse em ordem e
harmonia.
- A crítica à sofística - o inicio da República é uma discussão entre Sócrates e um
sofista, sobre o que é a justiça; Para o sofista, a justiça é o poder do mais forte; para
Sócrates é dar a cada um o que lhe é de direito e a cada um segundo as suas capacidades.
Deste ponto vão surgindo os outros temas.
- A origem do Estado - a organização social, o Estado surge da necessidade ( ananké)
pois nenhum homem basta-se a si mesmo e consegue suprir todas as suas carências.
- Necessidades de sobrevivência- daí precisar-se de agricultores, pastores, artesãos e
comerciantes, e estas são atividades fáceis de se aprender, que não necessitam de
educação especial.
- Necessidades de defesa- que é a atividade dos guerreiros. Já estes precisam de uma
educação e treinamento específico.
- Necessidades de governo- e aqui Platão propõe a formação do filósofos- estadistas,
que receberiam uma educação especial, totalmente voltada para a condução do estado.
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Identificando as principais necessidades da sociedade humana, Platão percebe que em


geral os homens podem ser divididos, segundo o seu caráter, em três categorias:
- homens de ferro- estes formariam na cidade ideal as classes dos camponeses,
artesãos, e comerciantes e a eles seria permitida uma posse limitada dos bens.
- homens de prata- formariam as classes dos guerreiros. Não teriam a posse de bens e
seriam sustentados pelos primeiros.
- Homens de ouro- formariam a classe do guardiões, condutores da sociedade, zelando
para que os homens de ferro não criem amor pela riqueza e os homens de prata amor pelo
luxo e ócio.
Igualmente, a cada classe de homens, seria cultivada uma virtude de modo especial:
- A sabedoria e o bom conselho seriam as virtudes próprias dos guardiões.
- A fortaleza e a coragem seriam as virtudes próprias dos guerreiros, para que
mantivessem a constância e a serenidade, mas também a bravura e a obediência.
- A temperança seria a virtude própria dos obreiros, que deveriam trabalhar em ordem
e com disciplina, dominando os impulsos e paixões.
- A justiça é a virtude que deveria estar presente em todas as classes, na medida em
que cada um deve fazer o que por natureza lhe cabe.

A Educação dos guardiões:

Os guardiões deveriam viver em comunidade, tendo tudo em comum: a habitação, a


mesa, as mulheres, os filhos e as responsabilidades de criação e educação da prole.
Contrariamente ao particularismo da sociedade grega, Platão propõe que também as
mulheres deveriam receber educação para tornarem-se guardiãs.
Outro elemento da cidade ideal seria a eugenia, isto é, a seleção dos nascimentos. Os
homens só poderiam gerar filhos entre os 30 e os 50 anos e as mulheres entre os 20 e os
40 anos, consideradas as idades de maior vigor físico e mental. Os filhos que nascessem
com defeitos seriam abandonados. As crianças chamariam todos os homens adultos de pai e
as mulheres adultas de mãe e os que tivessem mais ou menos sua idade de irmão ou irmã.
Platão propõe isso porque percebe que as predileções dos pais pelos filhos próprios cria
discriminações e privilégios. Assim todos seriam pais e mães de todos. O guardião não teria
uma família particular, nada teria de "seu", pois para Platão a condição primeira para o bom
governante é o completo despojamento de todo bem particular, seja a família, seja os bens
materiais.
Isto seria criar uma sociedade guiada por filósofos, em que estes seriam os
condutores e regentes do Estado. Com isso o divino, o absoluto seria a medida suprema, o
fundamento do Estado, pois o filósofo ao contemplar as coisas divinas, procura imitá-las e
moldá-las no Estado: ele colocaria a idéia do Bem/ Uno no meio da comunidade do homem e
assim o divino penetraria todos os aspectos da sociedade.
A educação dos guardiões começaria aos 7 anos. Até então ficariam com suas mães.
Dos 7 aos 12 receberiam uma educação baseada na ginástica, na música e nas letras. Estes
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conhecimentos produzem os efeitos do bem, mas não o conhecimento do bem. Servem para
transmitir ordem, disciplina, harmonia, etc.
Dos 12 aos 20 anos o jovem receberia uma educação baseada na aritmética, geometria
e astronomia, através de jogos e problemas. Dos 20 aos 30 anos além destas matérias os
jovens deveriam realizar a articulação destas diferentes disciplinas, para se descobrir
quais os que realmente tem caráter para o comando, através da dialética: por cinco anos
deveria se desenvolver a capacidade de ver o conjunto, de entender as coisas por inteiro e
o todo.
Dos 35 aos 50 anos seriam enviados a realidade empírica, para o exercício das
diferentes formas de comando. Somente depois de 50 anos estava terminada a formação
do guardião que poderia então desenvolver a atividade política propriamente dita,
prestando seu serviço para o bem de todos, pois para Platão o poder político é antes de
tudo um Serviço.

As diferentes formas de governo:

Depois de discutir os princípios da educação dos filósofos governantes, Platão


apresenta uma discussão sobre as diferentes formas de governo:
- A timocracia- o governo baseado no reconhecimento da honra- governo dos mais
honrados.
- A oligarquia- governo baseado na posse das riquezas- governo dos mais ricos.
- Democracia- governo baseado na demagogia: as massas escolhem os seus líderes
- Tirania- é a degeneração de toda forma de governo.
- Aristocracia- ou governo dos melhores, dos que foram educados segundo a virtude e
o domínio da razão sobre as paixões. Este seria o governo ideal.

O Pensamento Político de Platão no diálogo " O Político":

Platão percebera, anos após escrever “A República” que a aplicação histórica das
idéias da "República" era impossível e se propõe a realizar uma forma de governo a partir
das existentes, melhorando-as.
No diálogo " O Político", Platão busca a definição do que seja o homem de estado ( o
estadista) e qual é a sua arte específica. Ele deve responder a um problema: O homem de
estado está acima da lei ou é a lei que é soberana? Platão responde que, como não há
homens de estado que fossem a encarnação da lei e da justiça, deve-se dar a primazia à lei
escrita em lugar do homem de estado. Como as leis são compostas em constituições, Platão
divide as constituições em sete modelos:
- Se um homem governa com justiça temos a monarquia, mas se governa com injustiça
temos um mau governo, a oligarquia.
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- Se alguns homens governam com justiça, temos a aristocracia, mas se governam em


interesse próprio temos a tirania.
- Se todo o povo governa com justiça, temos a democracia, mas se governam com
anarquia, temos a demagogia.
- A sétima constituição seria a Constituição ideal, da qual as outras são imitações.
Assim, a monarquia se respeita as leis é o melhor e mais forte governo, mas se não
respeitas, torna-se o pior de todos. Por sua vez a democracia é a forma mais fraca de
governo, mas o que possui menos entraves à liberdade.
Na "República", a ciência do político, do estadista, deve coincidir com o conhecimento
do supremo Bem e das Idéias. No "Político" a ciência do político é definida como a justa
medida ou justo meio. O político deve possuir:
- A arte retórica, que é a capacidade de persuadir, bem como o discernimento para
saber se convém ou não persuadir.
- A arte da guerra- pois ele deve decidir se convém ou não fazer guerra.
- A arte de aplicar as leis- pois o político é que decide ou não estabelecer leis em
cada situação.
Os homens podem ser mansos e temperantes ou audazes e fortes e a arte do político
deve saber harmonizar em si e nos outros os diferentes temperamentos.

O Pensamento Político de Platão no diálogo " As Leis":

Esta é a última e mais complexa obra de Platão, escrita na velhice e supõe para sua
composição uma enorme soma de conhecimentos. " As Leis" são um exemplo de como a
tarefa de escrever constituições deveria ser feita e neste sentido é bem mais realista que
a República. Platão mantém seu ideal de que a constituição deveria eliminar tudo que
levasse à diferença entre os cidadãos, principalmente ao nível de posse de bens, pondo tudo
o que fosse possível em comum.
As Leis seriam uma imitação da constituição perfeita e seria mista, tentando unir as
vantagens da monarquia e da democracia, em que autoridade seria harmonizada com
liberdade e assim se teria a justa medida. A liberdade seria sempre uma liberdade
proporcional à condição social do indivíduo. Os gregos viam a desigualdade entre os homens
como algo natural. Assim, a liberdade só é possível entre os iguais, entre os desiguais ela é
arbítrio e injustiça.
O Bem/ Uno deve ser a medida de todas as coisas e as coisas só se tornam boas na
medida em que definidas e ordenadas, realizando a unidade no seio da multiplicidade.
Assim, a comunidade de homens e mulheres, filhos e bens é uma forma de realizar a
unidade entre os homens. Nada no Estado deveria ser próprio ( meu, teu, seu) pois isso é o
princípio da desordem e da multiplicidade.
A essência do justo e da justiça consiste em instaurar a unidade no meio da
multiplicidade e a Sabedoria é a arte sobre a qual a unificação se fundamenta. Não só a
cidade realiza seu bem na unidade, mas também cada homem pode realizar seu próprio bem,
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unificando harmonicamente as diferentes partes da sua alma, bem como a sua atividade.
Para isso, cada homem não deve realizar mais do que uma atividade e não várias: isto leva a
multiplicidade e ao vício.
A capacidade de produzir a "mistura", a unidade na sua multiplicidade, no "tecido" que
é a sociedade política é a medida perfeita que o político deve procurar.
Deus é a medida de todas as coisas, pois Ele é capaz de desdobrar um em muitos e
unificar muitos em um.

Aristóteles (384/383-322 a.C.)

Biografia

Nasceu em Estagira, na Macedônia, em 384 ou 383 a.C. e falava o dialeto jônico, o


mesmo falado em Atenas. Seu pai chamava-se Nicômaco e era médico, tendo servido à
corte Macedônia.
Aos 18 anos, seguiu para Atenas (366/5 a.C.) para aperfeiçoar sua formação,
entrando logo na Academia de Platão, onde permaneceu por 20 anos, até a morte deste.
Neste período fora professor de retórica bem como ativo participante nas discussões da
Academia. Aristóteles deixa a Academia, quando, com a morte de Platão, sua direção fora
assumida por Euspesipo, sobrinho de Platão, com quem, parece, Aristóteles não se dava.
Segue então para a Ásia Menor, e estabelece-se em Assos, onde funda uma escola,
alo permanecendo três anos. Segue então para Mitilene, onde faz diversos estudos sobre
ciências naturais. Em 343/2 a.C. torna-se o preceptor de Alexandre, tendo permanecido na
Macedônia até 336 a.C.
Em 335/4 a.C. retorna a Atenas e aluga um prédio próximo ao templo consagrado a
Apolo Lício, onde funda sua escola, que por isso tem o nome de Liceu. Como Aristóteles
dava aulas passeando pelo pátio interno da escola, seus alunos eram chamados
“peripatéticos”. O período até 323 a.C. é o que assiste sua produção intelectual mais
importante.
Em 323 a.C., com a morte de Alexandre Magno, desencadeia-se em Atenas uma
perseguição aos seus simpatizantes e Aristóteles foge para a Calcídia, morrendo pouco
depois em 322 a.C. substitui-o, na direção de Liceu, Teofrastro.
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Escritos

Seus escritos dividem-se em dois grupos, os chamados exotéricos, sob a forma de


diálogos, dirigidos ao público, e os esotéricos, destinados aos seus discípulos. Do primeiro
grupo, todos se perderam, mas são conhecidos os títulos de alguns deles: o grilo, ou Da
Retórica, Protrético, Sobre a Filosofia, Sobre as Idéias, Sobre o Bem, Eudemo, ou Sobre a
Alma. De sua obra esotérica quase tudo nos chegou e citam-se as:

- Obras Lógicas (órganon): Categorias, Sobre a Interpretação, Primeiro Analíticos,


Segundo Analíticos, Tópicos, Refutações Sofísticas.
- Obras de Filosofia Natural: Física, Do céu, Da Geração e da Corrupção, Meteorológica.
- Obras de Psicologia: Sobre a Alma e a “Parva Naturália”.
- Obras de Metafísica: A Metafísica, em 14 livros.
- Obras de Moral: Ética a Nicômaco, Grande Ética, Ética a Eudemo.
- Obras de Política: A Política
- Obras de Literatura: Poética e Retórica e a perdida Comédia.
- Obras de Ciências Naturais: História dos animais, As Partes dos Animais, A Geração dos
Animais, O Movimento dos Animais.
Andrônico de Rodes, décimo sucessor de Aristóteles no Liceu, no começo do século I
a.C. foi quem fez a edição das obras de Aristóteles e lhes deu muitos dos nomes que elas
tem hoje.

Evolução do Pensamento de Aristóteles

Aristóteles passou de discípulo da teoria das idéias de Platão a seu crítico, ao longo
de uma evolução intelectual, pouco conhecida por nós. Suas obras não eram destinadas à
edição, mas antes apontamentos dos cursos que dava e por isso é difícil saber como se deu
esta “evolução” no pensamento de Aristóteles, pois a sua crítica ao platonismo se dá
exatamente sobre as famosas “doutrinas não escritas” de Platão, do que sobre os diálogos.
Aristóteles continua a crença nas realidades puramente espirituais, como Platão, mas
de uma maneira completamente distinta deste, negando a doutrina do Demiurgo e a idéia do
Bem, substituindo-a pelo Motor Imóvel.
Por outro lado, Platão não se interessava pelos problemas físicos e a estrutura do
mundo sensível, ao contrário de Aristóteles para quem o inteligível é imanente ao sensível,
embora concorde com Platão que o sensível não se explica sem o inteligível e para tal cria os
conceitos do Motor Imóvel, As Esferas Celestes, A Doutrina da Alma, etc.
O Mundo Supra – Sensível para Aristóteles é o mundo da Inteligência (Enteléchia). A
Inteligência suprema é o Bem. Os fenômenos são explicados de uma maneira mais coerente,
pela participação em graus cada vez maiores do ser, das formas imanentes aos objetos.
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Ao contrário de Platão, Aristóteles não tem uma dimensão místico-religiosa e não


possui uma doutrina sobre o destino da alma, pelo menos em suas obras conhecidas. Platão
interessou-se muito pelas matemáticas e desprezava as ciências empíricas e Aristóteles
tinha uma postura contrária.
Aristóteles, além de filósofo, foi cientista e suas obras permaneceram válidas até o
século XVI. Ele igualmente não tinha a veia poética e literária de Platão e seus escritos e
métodos são bem diferentes do mestre, ainda que Aristóteles tenha sido o primeiro
teorizador da literatura. Aristóteles era um professor, Platão o homem da palavra viva, do
diálogo.

A Metafísica

- Ciências Teoréticas: Metafísica, Física, Psicologia, Matemática.


- Ciências Práticas: Ética e Política.
- Ciências “poiéticas” ou produtivas: as diversas “artes”.
O termo “Metafísica” foi criado por Andrônico e quer dizer tão somente “os livros
que vem depois da Física”. Aristóteles denominava estes escritos “Filosofia Primeira” ou
“Teologia”, no sentido de “Tratado das coisas divinas”. Ela trata das realidades que estão
além da física e com isso, o termo “metafísica” não é de todo inadequado.
- Indaga sobre as causas e princípios primeiros e supremos, que era a preocupação dos Pré
– Socráticos.
- Indaga sobre o Ser enquanto Ser, que era a preocupação de Parmênides.
- Indaga pela forma ou idéia, por Deus e pelas substâncias supra sensíveis, que eram as
preocupações de Platão.
Afirma Aristóteles que se não houvesse a substância supra-sensível, a realidade
primeira seria física, que trata das coisas sensíveis. Por isso a Metafísica é a ciência mais
elevada, pois seu cultivo não está ligado a nenhuma necessidade material, fim prático ou
empírico: ele é livre por natureza.
A Metafísica nasce do espanto, da admiração “Taumátzein”, do homem frente às
coisas, ao seu desejo de saber os porquês últimos. A finalidade da Metafísica é saciar a
exigência humana do puro conhecimento. Só Deus tem esta ciência no seu sumo grau. O
homem a possui de modo aproximado e imperfeito, mas é ela que lhe permite a máxima
felicidade, pela busca do conhecimento das coisas divinas.

A Doutrina das Quatro Causas

Para Aristóteles o número de causas deve ser finito. A causa é o que funda, o que
condiciona, o que estrutura as coisas. A causa formal nos dá a forma ou essência das
coisas. A causa material, aquilo de que elas são feitas. Estas duas juntas servem para
explicar as coisas estaticamente. A causa eficiente ou motora nos diz como e quem fez
esta coisa. A causa final nos dá a finalidade para a qual a coisa foi feita. Estas duas últimas
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servem para explicar a coisa dinamicamente, sua origem e fim. As causas respondem
respectivamente a quatro perguntas:
- O que é? Ou seja, qual é a forma ou essência.
- De que é feito? Ou seja, a matéria que a compõe.
- Quem fez? Ou seja, de onde provém, quem fez, quem é o autor.
- Para que serve? Ou seja, o fim das ações, aquilo para o qual algo tende, a função do que é
feito, aquilo que faz o bem de cada coisa.

O Ser e Seus significados

Parmênides reconhecia um único sentido ao Ser: aquilo que permanecia sempre igual a
si mesmo. Do sentido unívoco do Ser se deriva a sua unidade: O Ser é Uno. Já Platão
entendeu o Ser como um gênero transcendente, a idéia, que seria sempre una e da qual a
multiplicidade dos seres sensíveis participaria.
Aristóteles propõe:
a) Não há um único sentido para o Ser, mas diversos. Por isso o seu sentido não ser unívoco,
mas polívoco.
b) O Ser não depende do gênero, como a Idéia de Platão, mas é um conceito mais amplo que
o de gênero ou espécie.
c) O Ser tem diversos significados, mas todos eles se referem a uma única realidade, a algo
que é uno, e isto é a Substância ou ousía. Todos os demais significados do Ser se referem
a Ousía. O Ser enquanto Ser será sempre a Ousía ou Substância.

Os Sentidos do Ser

a) Enquanto Substância e Acidente: o Ser pode ser dito em sentido acidental, quando não
exprime a essência da coisa, mas algo que lhe ocorre como um puro acontecer. Oposto ao
ser no sentido acidental é o Ser em sentido essencial, ou Ser por si e neste sentido ele
pode ser dito idêntico à substância ou Ousía.
b) Enquanto Verdadeiro e falso: este é o sentido do ser enquanto resultado de um Juízo,
é seu sentido Lógico. Se afirmarmos algo de alguma coisa e isso é verdadeiro, dizemos que
ela tem ser, isto é, é verdadeiro. De modo oposto, se dizemos algo de alguma coisa e isso
não é verdadeiro, dizemos que é falso, ou Não – Ser. Este significado só existe na razão,
que é quem realiza os juízos.
c) Enquanto Potência e Ato: o Ser em potência é o Ser que pode vir a ser: há a
potencialidade para realizar algo que não está realizado agora. O Ser em ato é o Ser
realizado, pronto, perfeito, acabado, pelo menos sob o aspecto em que está sendo tomado.
Por isso o Ser no sentido de ato e potência pode estar em potência em relação a um
aspecto e em ato em relação a outro aspecto.
d) Enquanto as diferentes figuras das categorias: as categorias são diferentes formas das
coisas apresentarem-se. O Ser pode ser predicado das diferentes categorias, mas sempre
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tendo como referência a substância. As figuras das categorias oferecem os significados


primeiros e fundamentais do Ser. São os significados nos quais originalmente se divide o
Ser, as supremas divisões do Ser ou gêneros do Ser e são elas: a substância, a qualidade, a
quantidade, a relação, a ação ou agir, a paixão ou o padecer, o onde ou lugar, o quando ou o
tempo.
O acidente em sentido próprio e o ser acidental só podem apoiar-se sobre uma das
categorias, mas se distingue delas enquanto a categoria é necessária e o acidente ou
afecção é ocasional ou fortuito, tendo lugar segundo uma das categorias. As categorias não
estão no mesmo plano, pois entre a substância e as demais categorias há uma diferença
radical. Todos os significados do Ser pressupõem o Ser das categorias e o Ser das
categorias depende estruturalmente do Ser da primeira categoria, que é a Substância ou
Ousía.

A Substância

A substância pode ser entendida de três maneiras: como a Forma, como a Matéria,
como o composto de Matéria e forma.
Deve-se entender a Forma, não só como a forma exterior ou figura das coisas, mas
como sua natureza ou essência íntima. A Matéria, como entra na composição das coisas
sensíveis, pode ser chamada de substância das coisas, mas de modo analógico. No entanto,
não existe matéria sem forma, ou seja, uma matéria indeterminada, muito embora possa
haver formas sem matéria. O composto hileomórfico (composto de matéria e forma)
também pode ser chamado de substância das coisas, principalmente em relação aos entes
concretos ou sensíveis.

Características da substância

- A substância não se insere ou não se predica de outra coisa, mas pelo contrário, é dela
que se predicam todos os demais modos do Ser.
- A substância só pode ser chamada substância em um ente que pode subsistir por si mesmo
ou separadamente (a folha da árvore).
- Só pode ser chamada substância algo determinado. Um atributo geral, o universal e o
abstrato não pode ser substância.
- A Substância deve ser algo intrinsecamente unitário, e não um agregado de partes ou uma
multiplicidade qualquer.
- Só pode ser substância o que é ato ou em ato.

A Matéria
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- Não subsiste por si, pois toda matéria para ser, precisa estar informada, isto é, ter
recebido uma forma.
- Não é algo determinado, pois só é determinado o que possui uma forma.
- Não é unitária, pois a unidade deriva da forma.
- Não é em ato, mas sempre em potência.
- Só possui a primeira característica da substância, ou seja, ela não se predica de outra
coisa.
A Forma e o Composto Hileomórfico por sua vez, possuem, embora não de maneira
idêntica, todas as características da substancialidade.

A Forma

- Não deve o seu ser a outra coisa e não se predica de outra coisa.
- Ela pode ser separada da matéria, já que é ela que dá forma à matéria, bem como há
substâncias que são puras formas, não tendo necessidade de matéria.
- Ela é algo determinado, e mais do que isto, é o determinante, pois é ela que faz as coisas
serem o que são.
- Ela é o princípio de unidade por excelência: é ela que dá a unidade à coisa. A forma é o
princípio da unidade das coisas e a matéria o princípio de sua multiplicidade. Os indivíduos
são diferentes entre si por causa de sua matéria e não de sua forma.
- Ela é em ato por excelência. É a forma que dá o ato, tanto que forma e ato podem ser
entendidos como sinônimos.

O Composto Hileomórfico

- É o substrato de inerência ou predicação de todos os predicativos acidentais.


- Subsiste por si mesmo, independentemente e de modo pleno.
- É algo determinado e concreto.
- É uma unidade, pois possui suas partes materiais atualizadas pela forma.
Do ponto de vista da experiência sensível (empírico), o composto hileomórfico (o
indivíduo concreto) parece ser a substância por excelência, mas não do ponto de vista do
conhecimento ou metafísico, pois sendo a forma o princípio, a causa, a razão do ser, o
composto é secundário à forma, já que ele é principiado, causado e fundado pela forma.
Assim, a forma é a substância por excelência: substância e forma podem ser entendidas
como sinônimos. Além disso, se o composto é que fosse a substância por excelência, como
explicaríamos Deus, que é pura forma e ato, isento de qualquer matéria ou potência?

Resumindo:

- O Ser, em seu significado mais forte, a substância.


45

- A Substância é, num sentido impróprio, a matéria; num sentido mais próprio, o composto
hileomórfico, e, por excelência, a forma.
- Assim, o Ser é, pois, a Matéria. O Ser é, em seu sentido mais elevado, o Composto. E o
Ser é, em sentido mais forte, a Forma.
O conceito de Substância (ousía) de Aristóteles é totalmente diferente da Idéia de
Platão: enquanto esta só existe de modo pleno transcendentemente, isto é, além e acima de
toda realidade sensível, como uma forma universal, da qual os indivíduos particulares são
cópias imperfeitas, a Substância aristotélica só se realiza imanentemente, isto é, a partir
dos entes sensíveis. O universal ou o gênero para Aristóteles não tem uma existência
separada como as idéias platônicas, mas é tão somente um termo comum abstrato, que
existe somente enquanto pensado, pela e na mente humana. Assim, enquanto estrutura
ontológica, a substância não é o universal, mas enquanto pensado e abstraído pelo intelecto
humano, a substância é idêntica ao universal.

Ato e Potência

A matéria é sempre potencialidade ou capacidade de receber ou assumir uma forma.


A forma por sua vez é a configuração do ato ou atuação da capacidade.
O composto de matéria e forma será sempre predominantemente ato. Considerado
em sua forma acabada, perfeita, o composto será sempre ato ou enteléchia. Se o
considerarmos a partir de sua matéria, ele será um misto de potência e ato, pois ainda não
veio a ser totalmente, está passando da potência ao ato.
Quanto mais materialidade tem um ente, mais potencialidade ele possui. Por isso, os
seres espirituais são formas puras, ato puro, isentos de qualquer materialidade ou
potencialidade.
O ato, que Aristóteles também chama de enteléchia, se refere à realização plena da
essência ou ousía. Todas as formas das substâncias sensíveis são mistura de potência e ato.
Só o motor imóvel e as inteligências que movem as esferas celestes são ato puro ou
simplesmente enteléchia.
O ato tem absoluta prioridade e superioridade sobre a potência; só se conhece a
potência de algo, referindo-se ao ato do qual esta coisa é potência. O ato é forma e fim da
potencialidade.
Com a doutrina da potência e ato Aristóteles resolve o problema da absoluta
imobilidade do Ser de Parmênides, pois para Aristóteles o movimento, o vir – a - ser ou
devir, não assinala a passagem do não ser ao ser, mas do ser em potência ao ser em ato,
passagem do Ser ao Ser: o Ser não muda!

O Motor Imóvel e as Substâncias Supra – Sensíveis

Para Aristóteles existem três gêneros de substância: duas sensíveis e uma


puramente inteligível ou espiritual.
46

1 – Substâncias sensíveis que nascem e perecem (que se geram e se corrompem): são as


compostas pelos quatro elementos (água, ar, fogo e terra) e que formam este nosso mundo,
chamado por Aristóteles Mundo Sub – Lunar, o mais baixo das esferas celestes, sujeito a
todo tipo de mudanças.
Na cosmologia aristotélica o universo é concebido como um sistema de esferas
concêntricas, tendo a terra por centro e, girando em torno dela, a lua, o sol e os cinco
planetas conhecidos na época e a abóbada celeste ou céu das estrelas fixas.
2 – A substância sensível incorruptível ou éter: esta é a matéria que compõem o céu, os
planetas e as estrelas. Ela é chamada por Aristóteles Éter ou Quintessência, sofre
movimento ou deslocamento (movimento circular uniforma, o movimento mais perfeito
segundo a física aristotélica), mas nenhuma outra alteração, aumento ou diminuição,
geração ou corrupção.
3 – a substância Supra – Sensível: é imóvel e eterna, transcendente a todo sensível. Ela
forma o motor imóvel e as inteligências motoras que movem as esferas que constituem o
céu.As duas primeiras substâncias são constituídas de matéria e forma. A última é pura
forma. Das duas primeiras substâncias é estudado pela metafísica ou teologia.

Como se determina a existência da substância Supra – Sensível

Se todas as substâncias fossem corruptíveis, não existiria nada incorruptível. No


entanto o tempo e o movimento são incorruptíveis, pois o tempo não se gerou, isto é, é
eterno: se houvesse um “antes” ou um “depois” do tempo, ele não seria ainda, ou já teria
deixado de ser e, mesmo “antes” e “depois” já é tempo... Portanto, sempre há tempo, antes
ou depois de um suposto início ou término do tempo. O movimento por sua vez é uma
determinação do tempo e por isso a eternidade do tempo torna necessária a eternidade do
movimento.
Mas como pode subsistir um movimento e um tempo eternos? Isto só é possível se
subsistir um Princípio Primeiro que seja a causa do movimento. Ora, este princípio deve ser
eterno, pois se eterno é o movimento, eterna deve ser a sua causa. Este princípio por sua
vez deve ser imóvel, pois só algo imóvel poderia ser a causa última e absoluta do móvel. Mas
sabemos que tudo o que se move deve seu movimento a outra coisa móvel. No entanto, não
podemos regredir ao infinito na seqüência dos moventes móveis. Deve existir um motor
absolutamente primeiro e absolutamente imóvel, do qual depende o movimento de todo o
universo. Este motor deve ser igualmente desprovido de qualquer materialidade, já que
sempre é princípio de movimento, de vir – a – ser, e de qualquer potencialidade, pois esta
igualmente implica movimento. Logo, o motor imóvel é ato puro. Assim chegamos à
demonstração da necessidade da existência deste motor imóvel.
Mas como, a partir da nossa experiência, se encontra algo que mova alguma coisa,
sem ele mesmo ser movido? Ora, o Desejo e a Inteligência! O objeto do desejo é o belo e o
bom. Estes atraem a vontade do homem sem ser movidos. Igualmente o verdadeiro atrai a
47

inteligência sem ser atraído por ela. Assim o inteligível atrai e move a inteligência sem ele
mesmo se mover.
Assim é que o motor imóvel move o universo sem Ele mesmo se mover, agindo como
um objeto de desejo e amor, que atrai o amante sem Ele mesmo padecer qualquer atração
pelo que Ele é atraído. Ele permanece impassível e esta é a condição necessária para que
Ele seja motor imóvel: se Ele fosse afetado em algum grau pelos demais entes do universo,
significaria uma alteração e uma carência n`Ele, uma necessidade.
A causalidade com que o motor imóvel move o universo é uma causalidade do tipo
final e não eficiente, isto é, não foi motor imóvel que “criou” o universo como causa
eficiente, o universo sempre existiu e existirá. O universo, embora viva sob o influxo do
motor imóvel, não teve começo nem terá fim. Se o universo tivesse tido começo, houve um
momento em que ele foi pura matéria e pura potência. Mas isso entra em contradição com o
princípio que o ato e a forma tem primazia sobre a potência e a matéria. O universo, como o
motor imóvel são coeternos. Eles sempre existiram, o motor imóvel sempre moveu o
universo e ambos sempre foram o que são.

A Natureza do motor imóvel

De todas as atividades humanas, a mais perfeita e salutar é a atividade


contemplativa, o exercício do puro pensamento, isto é, especular e contemplar a realidade
última das coisas. Esta atividade, embora nos dê grande prazer, nós a podemos exercer por
pouco tempo, pois temos que cuidar da nossa sobrevivência. Se esta é a mais perfeita
atividade, o motor imóvel deve exercê-la em sumo grau e perfeitamente. O que o motor
imóvel pensa? Ora, no que há de mais excelente para ser pensado, isto é, Ele mesmo! O
motor imóvel pensa e contempla a si mesmo. Ele é pensamento de pensamento, noésis –
noéseos na terminologia de Aristóteles.
O motor imóvel, sendo puro ato e pura forma, privado de qualquer potência ou
matéria, não tem grandeza, não tem partes, não é composto, é absolutamente simples, uno,
impassível, não sofre nenhuma alteração ou paixão, permanece completamente inalterado
sempre igual a si mesmo.

Como o motor imóvel move o universo

O motor imóvel move diretamente somente o primeiro móvel, o céu das estrelas
fixas. Porém entre o céu e a terra existem outras esferas concêntricas, encerradas umas
dentro das outras. Duas possibilidades se colocam para explicar o movimento do universo:
ou o movimento se transmite mecanicamente de uma esfera a outra, ou cada esfera seria
movida por uma substância suprassensível, semelhante ao motor imóvel.
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Era necessária a postulação de várias esferas e diferentes movimentos e moventes


porque os planetas não tem um movimento uniforme entre si. Daí a necessidade de se
introduzir uma multiplicidade de motores, cada uma movendo, à guisa de causa eficiente,
das esferas. Aristóteles postulou a existência de 47 a 55 esferas. O motor imóvel move
diretamente só a primeira esfera e indiretamente as demais. Assim, o “deus” de
Aristóteles não é um Deus único, já que admite e até postula como necessária a existência
de outras substâncias suprassensíveis também com caráter divino. O motor imóvel é a
garantia da unidade do universo e do seu governo. As inteligências se organizam
hierarquicamente e não está claro como elas se relacionam entre si e com o motor imóvel.
O deus de Aristóteles, mesmo tendo perfeito conhecimento da existência do
universo, não se ocupa com o seu andamento do mundo e muito menos com o destino de cada
ser humano ou do conjunto da humanidade. Se Ele se “ocupasse” com algo, isto seria n`Ele
uma privação e como tal uma negação do que lhe é mais próprio. Assim no deus de
Aristóteles não cabe uma noção de “Divina Providência”. Igualmente Aristóteles não parece
ter elaborado “escatologia”, uma doutrina sobre o destino da alma, ao contrário de Platão.
O deus de Aristóteles - como já dissemos - não criou o mundo ou as almas individuais. Ele é
objeto de desejo e amor, mas Ele mesmo não deseja nem ama, pois a noção grega do Divino
não admite que ela possa ser afetada por qualquer coisa; se o fosse, isto nela seria uma
imperfeição e uma carência, uma diminuição na perfeição do seu Ser...
A Física de Aristóteles

A Segunda ciência teorética ou filosofia segundo tem por objetivo a realidade


sensível, caracterizada pelo movimento, isto é, pelo vir – a – ser ou devir, pela geração e
corrupção, enquanto que a metafísica ou filosofia primeira tem como objeto a ser
suprassensível, pois se existem dois gêneros de substâncias, diferentes devem ser as
ciências que delas tratam.
Não podemos compreender a física aristotélica a partir da física de Galileu e
Newton, que é baseada na mensuração e na quantidade, enquanto a física aristotélica é
baseada na observação e na qualidade. Igualmente a física de Aristóteles pode ser chamada
de ciência no sentido moderno, que é algo que surgiu a partir do século XVI, dois mil anos
depois de Aristóteles. Os pensadores antigos jamais pensaram a partir do método
científico. A ciência aristotélica é uma metafísica do sensível, daí ela não poder se
identificar totalmente com a cosmologia ou filosofia da natureza. Em Aristóteles não há
uma nítida separação entre metafísica e física porque para ela estas duas ciências se
intercomunicam e seus métodos são idênticos.

O movimento

É o que caracteriza essencialmente o ser sensível. O movimento passou a ser um


problema filosófico quando os eleatas o negaram. As diferentes soluções para explicar o
movimento (Empédocles, Anaxágoras, Demócrito...) não satisfizeram. Os eleatas
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identificaram o movimento ao Não – Ser. Aquilo que passa de um estado a outro, antes não
era, e agora é, ou agora é e vem a deixar de ser. Se só o Ser é, no sentido eleata, todo
movimento é Não – Ser...
Aristóteles resolve a questão da seguinte maneira:
1- O Ser pode ser compreendido através de seus diversos significados e um deles é o ser –
como – potência e o ser – como – ato. O ser em potência não é um ser relativo, mas um ser
real e que pode efetivamente passar da potência ao ato. O movimento portanto não é
passagem do não – ser ao ser, mas passagem do ser (em potência) ao ser (em ato).
Segundo as figuras das categorias, pode ou não haver movimento. A relação não o
admite. Ação e passividade já são por si movimento e não pode haver movimento de
movimento. O tempo “quando” também já é uma determinação do tempo. O movimento ou
mudança ocorre então: na substância (por geração e corrupção); na qualidade (por
alteração), a quantidade (por aumento ou diminuição) e o lugar (por translação). Aristóteles
chama de geração a matéria assumir uma forma e corrupção, a matéria perder esta forma.
Só os compostos de matéria e forma podem mudar, porque a matéria implica potencialidade.
Portanto, a matéria e a potencialidade são a raiz de todo movimento.
Matéria e forma são causas intrínsecas do devir. Causa extrínseca ou externa é o
agente ou causa eficiente: só ocorre a mudança se a causa eficiente estiver presente.
Precisa haver um motor ou movente em ato para que ocorra a passagem da potência ao ato.
A causa final também indica o sentido positivo do devir, que é a realização da forma.

O Espaço

Os conceitos de espaço, vazio e tempo ligam-se ao conceito de movimento. Os


objetos, as coisas, não estão no não ser, no nada, mas num onde, num lugar existente. O
lugar é algo, é a parte do espaço para o qual ou a partir do qual se verifica a mudança ou
movimento.
Cada elemento tende para um lugar natural: o fogo e o ar tendem para cima, a terra e
a água para baixo. Leve e pesado, cima e baixo são determinações naturais e não algo
relativo a nós. O lugar é recipiente imóvel. O recipiente é o lugar móvel. O lugar é o
primeiro limite imóvel do continente. O lugar é um todo imóvel. Para Aristóteles não é
pensável um lugar “fora” do universo, nem um lugar no qual “esteja” o universo.
O movimento do céu é circularidade sobre si mesmo, não havendo lugar para uma
translação. Num lugar está tudo o que se move, tendendo para o seu lugar natural. O que
não se move não está num lugar. Por isso o motor móvel e as inteligências motoras não tem
necessidade de um lugar.
Para Aristóteles não há vazio (lugar onde não há nada ou lugar onde não há nenhum
corpo). Um ligar onde não há nada é uma contradição com a definição de lugar, como sendo o
primeiro limite imóvel do continente.

O Tempo
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O tempo só pode ser compreendido levando – se em consideração o movimento e a


alma. O tempo não é movimento e mudança, mas implica movimento e mudança. Quando nada
muda em nossa alma, parece que o tempo não passou. Dado que o tempo implica o
movimento, o tempo pode ser dito uma afecção ou propriedade do movimento. Por sua vez, o
movimento é sempre movimento num espaço contínuo, logo contínuo deve ser igualmente o
tempo, pois toda quantidade de tempo transcorrido é proporcional ao movimento. O tempo
é portanto a medida do movimento segundo o antes e o depois.
Esta definição de tempo supõe necessariamente a alma como percipiente do
movimento e portanto do tempo. Aristóteles é o primeiro a propor uma concepção
espiritualista de tempo.
Para se medir o tempo, deve-se buscar uma unidade de medida e esta é encontrada
no movimento que é uniforme e perfeito, o movimento circular uniforme. Assim, a unidade
de medida é o movimento das esferas e corpos celestes. O motor imóvel e as inteligências,
assim como estão fora do espaço, também estão fora do tempo.

O Infinito

Aristóteles nega a existência de um infinito em ato. O infinito só existe como


potência ou em potência. Infinito é o número, porque sempre se pode acrescentar mais um
ao número anterior e nunca se chegar a um limite. Infinito também é o espaço, porque
divisível ao infinito, já que o resultado de uma divisão é sempre uma grandeza. Infinito, já
que igualmente o tempo, que não existe todo atualmente, mas transcorre e cresce sem fim.
Aristóteles não chegou à idéia de que a substância suprassensível pudesse ser
infinita, pois o infinito se liga à idéia de quantidade, que só existe para as coisas sensíveis,
portanto o motor móvel não pode ser dito infinito. Ademais, os gregos entendiam a
infinitude como uma imperfeição. Portanto, o motor imóvel é, de algum modo, finito.

A Quintessência

A cosmologia aristotélica distingue a realidade sensível segundo duas dimensões: o


mundo sublunar, caracterizado por toda sorte de mudanças, geração e corrupção e o mundo
celeste, que não sofre geração e corrupção, mas só movimento local. A matéria que
compõem o mundo sublunar é formada pelos quatro elementos e a que compõe o mundo
celeste é formada pelo éter ou quintessência, que só sofre movimento circular. Esta
doutrina permanecerá até o final da idade média.

A Psicologia de Aristóteles (doutrina da alma)


51

O Conceito de alma

A doutrina aristotélica sobre a alma está principalmente no tratado sobre a alma (De
Anima). A alma é o que caracteriza essencialmente os seres vivos e o que os distingue dos
seres inanimados. A alma é um princípio que comunica a vida. Neste sentido, os corpos não
são vivos, mas possuem a vida. Como tudo o que existe neste mundo é composto de matéria
e forma, sendo a matéria potencial e a forma atual, assim a alma é a forma dos corpos vivos
e o corpo da sua matéria. Os corpos vivos têm vida, mas eles não são a vida.
O conceito de alma de Aristóteles distingue-se tanto do conceito dos pré –
socráticos, que a identificavam com um dos princípios físicos, como do conceito platônico,
em que a alma está artificial e forçosamente unida ao corpo, enquanto que Aristóteles
ensina uma união substancial e necessária entre a alma e o corpo, pois é ela que estrutura o
ser vivo enquanto tal e lhe dá unidade.
Apesar de Aristóteles conceber a alma como estruturalmente ligada ao corpo, ele
igualmente percebe sua capacidade de chegar a conceitos e realidades puramente
espirituais e divinas, o que aponta, pelo menos para a parte intelectiva da alma humana, uma
sobrevida após a morte do corpo.
A Tripartição da alma

Platão faz uma tripartição da alma tendo por base o comportamento moral do homem,
distinguindo uma alma concupiscível, uma irascível e uma intelectiva. A tripartição da alma
em Aristóteles tem por base as funções essenciais do ser vivo, e essas são: a) de caráter
vegetativo, como nascimento, nutrição e crescimento; b) de caráter sensitivo – motor, com
a sensação e o movimento e c) de caráter intelectivo, como conhecimento, deliberação e
escolha. Assim fala Aristóteles em três faculdades da alma: vegetativa, sensitiva e
intelectiva ou racional. As plantas possuem só a primeira; os animais, a primeira e a
segunda; e o homem, as três. Muito embora se fale em “partes” da alma, o termo mais
adequado é sempre “faculdades”.

A Alma vegetativa

É o princípio mais elementar da vida, responsável pela geração, nutrição e o


crescimento. A operação mais elementar dos seres vivos é a produção de outro ser igual a
si e é a maneira deles permanecerem no eterno, perpetuando-se pela geração.

A Alma sensitiva

É a que permite as sensações, apetites e movimento. A sensação é definida por


Aristóteles como uma potência para receber os estímulos externos, que ao receber os
52

estímulos, passa da potência ao ato. Os sentidos por sua vez recebem as formas sensíveis
sem a matéria.
Os sentidos próprios são os cinco sentidos, cada um com a capacidade de receber o
estímulo que lhe é específico (cor, som, gosto, etc.). Os sentidos comuns são percebidos por
mais de um sentido e nos transmitem as sensações de movimento, repouso, figura,
grandeza, etc. Os sentidos específicos em geral nunca falham, mas o que é apreendido
pelos sentidos comuns pode ser fonte de enganos.
Da sensação deriva a fantasia ou representação sensível, que acontece na imaginação,
parte da alma sensitiva que produz uma imagem da coisa. Esta imagem ou fantasia ou
representação sensível é a matéria para o conhecimento intelectual ou racional. A imagem
ou fantasia por sua vez, pode ser guardada na memória, onde é conservada e pode ser
evocada, também esta uma parte da alma sensitiva.
Além da sensação, a alma sensitiva é responsável pelo apetite e o movimento. O
apetite é desejo, ardor e vontade e todos os animais os têm, pois possuem no mínimo o
sentido do tato, que nos dá basicamente as sensações de dor e prazer. O desejo é assim o
apetite do aprazível. O movimento surge nos seres vivos como a capacidade de buscar,
alcançar e realizar seus apetites e necessidades.

A Alma Racional

O pensamento e as operações a ele relacionadas são irredutíveis à vida sensível,


donde a necessidade de uma faculdade capaz do puro pensamento e da vontade como fruto
de uma deliberação racional.
O ato intelectivo é a recepção ou assimilação de formas inteligíveis, porém sem o
concurso de nada que seja material ou corpóreo. O intelecto é, pois, potência de pensar e
para passar ao ato, precisa ser informado, ou seja, receber as formas inteligíveis, pois ele
mesmo é vazio, melhor dizendo, puramente potencial em relação ao conhecimento. As
formas puras estão contidas em potência nas imagens ou fantasias. Torna-se necessário
que estas formas passem da potência ao ato. Aristóteles então distingue dois intelectos: o
intelecto potencial (também chamado ativo) e o intelecto atual (também chamado possível
ou passivo).
Cabe ao intelecto ativo ou agente retirar, ou usando o termo aristotélico, abstrair da
representação sensível ou fantasia, o seu conteúdo puramente formal e inteligível,
produzindo assim o conceito, que é assim transferido ao intelecto passivo, que é assim
informado e passa a armazenar as formas puramente inteligíveis.
Para Aristóteles, só o intelecto “vem de fora e só ele é divino”, significando que ele é
irredutível ao corpo e nele se dá a dimensão meta – empírica, supra – sensível e espiritual.
Ele é o divino em nós. Ele não explica como o intelecto pode “vir de fora”, qual sua relação
com nossa individualidade, com nosso comportamento e responsabilidade moral e como
sobreviveria ao corpo.
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A Ética de Aristóteles

Ética significa o estudo dos costumes (éthoi) e das leis (nómoi) que regem a conduta
individual, social e política do homem e como tal é, juntamente com a política, uma ciência
prática, isto é, não tem fim em si mesmo, mas está ordenada a uma finalidade prática.
Aristóteles escreveu três obras éticas. A primeira e mais importante delas é chamada
Ética a Nicômaco, pois a dedicou a seu filho, que tinha este nome e é muitas vezes chamada
simplesmente Nicomaquéia. A segunda se chama Ética Eudemo, também chamada Eudêmica
e por fim a grande Ética, que permaneceu inconclusa.
Na perspectiva aristotélica e grega de um modo geral, a ética se subordina à política,
ou seja, o indivíduo se subordina à sociedade, à Polis. A política cumpre segundo Aristóteles
uma função arquitetônica, isto é, ela deve determinar a organização das diferentes
“ciências” que regem a vida da cidade, no caso as ciências poiéticas, ou do “fazer”, ou, como
diríamos hoje, as diferentes profissões ou atividades. Mesmo que ao longo da evolução do
pensamento de Aristóteles haja uma gradativa relativização do lugar do Estado frente ao
indivíduo é um fim em si mesmo e que a sociedade política se ordena para o seu bem.
O homem, como qualquer coisa, tende para o seu fim, que se configura como um bem.
Pensamos nos bens sempre em função de um bem maior, porém não podemos ir
infinitamente na busca dos bens: assim torna-se necessário que no caso do homem todos os
bens aos quais ele busca estejam ordenados a um bem último e supremo. Este é a felicidade
(eudaimonía).

O que é a Felicidade?

Para muitos, ela está no prazer e no gozo. Para Aristóteles isto seria reduzir os
homens a escravos ou animais. Para outros, mais ocultos e evoluídos, a felicidade está na
honra que se alcança na vida política e militar. Mas se assim fosse, a felicidade seria ainda
algo exterior ao homem, pois dependeria do reconhecimento público da bondade e da
virtude do sujeito. Logo, a bondade e a virtude são superiores à honra.
Para outros ainda, a felicidade está no acúmulo e gozo de riquezas, na vida dedicada
ao comércio. No entanto Aristóteles acha que esta atividade à contrária à natureza última
do homem, pois o lucro e a riqueza são sempre meios e não fins em si mesmos e isto não é
plausível. A busca de prazeres ou honra poderia ser um fim em si mesmos, mas nunca a
busca das riquezas.
A felicidade consiste na busca do bem, não num bem universal e transcendente, como
a idéia do bem de Platão, mas num bem imanente ao homem, realizável e atuável pelo e para
o homem. O conceito de bem, como o conceito de ser e Aristóteles tem diferentes
sentidos. Assim, o bem do homem consiste em realizar a obra que lhe é peculiar, na obra
que só ele possa realizar.
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Esta obra não pode ser o simples viver, pois isto é próprio dos seres vegetativos.
Também não pode consistir no sentir, nos prazeres, pois isto é próprio dos animais. A obra
peculiar do homem é a razão, ou a atividade da alma segundo a razão e a virtude. Como há
muitas virtudes, deve-se buscar a melhor e mais perfeita delas.
Nota-se assim uma continuidade entre Sócrates, Platão e Aristóteles, no que supõe a
alma como a parte essencial do homem e deste, a sua parte racional ou intelecto.
Igualmente como em Sócrates e Platão, os valores verdadeiros não poderiam, para
Aristóteles, ser os bens exteriores (riquezas) ou corporais (prazeres), mas os bens
relacionados com a parte mais nobre da alma, os bens espirituais e assim, conclui
Aristóteles, que a felicidade consiste numa atividade própria da alma: a “cura” ou cuidado
da alma é a vida que leva à felicidade.
Aristóteles considera que para realizar esta felicidade é necessário ser dotado de
certos bens exteriores e meios de fortuna, o que implica também a participação de certo
grau de satisfação ou prazer, que vem como uma espécie de coroação da vida virtuosa.
Igualmente as desventuras, independentemente de qualquer opção podem comprometer a
felicidade.

As virtudes e as partes da alma

Se a felicidade é uma virtude da alma segundo a virtude ou excelência, o que venha a


ser a virtude depende do que seja alma. Ora, a alma possui duas partes irracionais (a
vegetativa e a sensitiva) e uma racional (a intelectiva) e é de se supor que também estas
tenham as suas virtudes próprias e visem seu próprio bem. Mas só pode se dizer virtude
propriamente humana aquelas que em que entra a atividade da razão. Ora, a parte sensitiva
não participa da razão, mas a sensitiva sim e ela pode mesmo se por ao que a razão propõe,
produzindo-se um vício. A parte sensitiva, que também pode ser dita apetitiva ou irascível,
participa da razão quando lhe é obediente e dócil. Quando este domínio da razão se dá
sobre as tendências e impulsos, temos as virtudes éticas. No entanto, também a parte
puramente racional tem suas virtudes, que Aristóteles denomina virtudes dianoéticas.

As virtudes éticas

As virtudes éticas derivam do hábito. Somos, por natureza, potencialmente capazes


da virtude; nós as atualizamos pelo hábito, o exercício de praticá-los e isto então
permanece em nós como um hábito. As virtudes éticas se aprendem, assim como se
aprendem as diferentes artes e ofícios.
Mas o que é a virtude? Nunca há virtude se há excesso ou falta. A virtude implica a
justa proporção, ou seja, ela é a via do meio entre dois excessos. Mas sobre o que devemos
procurar a justa medida ou o meio termo? Sobre sentimentos, ações e paixões. A virtude
ética é a mediana entre dois vícios, dos quais um é por falta e o outro por excesso. Isto é
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algo tipicamente grego: nada em excesso! A via média! O meio é o melhor! O limite é a
perfeição! Mediana não é sinônimo de mediocridade, mas ao contrário é o cume, o ponto
mais elevado a partir do valor. As principais virtudes éticas para os gregos são: a coragem,
meio termo entre covardia e a temeridade; a temperança, meio termo entre a
insensibilidade e a dissolução; a liberdade, meio termo entre a avareza e o esbanjamento.
As virtudes éticas, segundo a ética a eudemo são doze (cf. pg. 415-416 livro texto).
A virtude ética é a justa medida que a razão impõe a sentimentos, ações e atitudes
que, sem o controle da razão, tenderiam para um outro excesso.
De todas as virtudes éticas, a justiça (diké) é a mais importante, pois ela é a
submissão e respeito à lei do Estado e na lei do Estado, para os gregos, se concentra toda a
vida moral grega. “Na justiça estão todas as virtudes. A justiça é a justa medida com a qual
repartimos os bens, as vantagens e os ganhos ou seus opostos: os males, as desvantagens e
os prejuízos”.

As virtudes dianoéticas

Estão acima das virtudes éticas e relacionadas com a parte mais elevada da alma,
isto é, a racional, a dianóica (Nous, Noésis = conhecimento). Duas são as funções da alma
racional:
a) A que conhece as coisas contingentes e variáveis, ou razão prática, cuja principal virtude
é a prudência (phrónesis).
b) A que conhece as coisas necessárias e imutáveis, ou razão teorética, cuja principal
virtude é a sapiência (sophía).
A Prudência: consiste em saber dirigir retamente a vida, deliberar sobre o que é bem e o
que é o mal em cada situação. Consiste em deliberar/discernir sobre os verdadeiros fins,
embora não seja ela que dite os fins. A determinação dos fins cabe às virtudes éticas. Esta
é a virtude que faz a ligação, a articulação entre todas as virtudes éticas e as unifica. Se a
virtude é o agir conforme a reta razão, e só o sábio possui a reta razão é a prudência que
nos indica os meios para alcançar as virtudes e os fins que elas almejam.
A Sapiência: consiste na captação intuitiva dos princípios primeiros e das coisas divinas,
através do intelecto. Esta virtude procura as coisas que estão acima do homem e por isso
mesmo coincide com as virtudes teoréticas, principalmente a Metafísica.

A felicidade perfeita (Eudaimonia)


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1 – A felicidade é uma atividade conforme a virtude: a atividade do intelecto conforme a


sua virtude. O intelecto é o que existe de mais elevado, logo, a atividade do intelecto é a
atividade perfeita e auto – suficiente, pela contemplação intelectiva (Theorein).
2 – A felicidade também é viver segundo as virtudes éticas, dando-nos uma felicidade
humana; a felicidade da vida contemplativa leva para uma vida além do humano, Divina. A
atividade contemplativa é um assimilar-se ao Divino. Contemplar o verdadeiro como Deus
mesmo se contempla, isto é a suprema racionalidade.

A Amizade (Philía)

A felicidade e a amizade estão estruturalmente ligadas em Aristóteles, através da


virtude.
Três são as coisas que o homem ama e por elas estabelece a amizade: o útil, o
aprazível e o bom, originando cada uma delas um tipo de amizade. As duas primeiras formas
de amizade são imperfeitas, pois a amizade existe em função de algo extrínseco à própria
amizade. A terceira forma é a perfeita, porque um ama o outro pelo aquilo que ele é, ou
seja, por sua bondade intrínseca, pela mútua admiração da virtude.
“ A amizade verdadeira é o laço que une o homem virtuoso ao homem virtuoso por causa da
virtude”.
A virtude é aquilo pelo qual um homem atua plenamente a sua natureza e seu valor de
homem. “A virtude e o virtuoso são a medida de todas as coisas” (Ath. Nic. I 4,1166 a 12-13).
Em Aristóteles não há ainda a noção de amizade como dom gratuito de si, mas, ao
contrário na amizade há uma busca de si mesmo, um certo “egoísmo”, pois amar a parte
superior da alma é querer para si o máximo de bens espirituais.
Para Aristóteles, a amizade é essencial para se alcançar a felicidade, pois ela é um
Bem superior da qual depende a felicidade verdadeira. Ao contrário de algumas escolas
filosóficas, Aristóteles não admite que os homens pudessem ser felizes sozinhos, pois pela
sua natureza, ele é um animal estruturalmente social: os homens tem necessidade uns dos
outros exatamente para poder gozar os bens. Um homem só não conseguiria gozar bem
algum.

O Lugar do prazer na ética de Aristóteles

Para Aristóteles o prazer não tem o sentido pejorativo de uma mudança de estado ou
movimento, o que para os gregos significava uma diminuição ou carência, mas o prazer seria
uma atividade em todo o tempo perfeita, isto é, ela acompanha e permanece junto ao ato,
quando esta termina. O prazer acompanha toda a atividade, seja ela sensível, prática ou
teorética e não só acompanha a atividade mas a aperfeiçoa.
Quando agimos, fazemos algo passar da potência ao ato, isto é, realizamos algo
naquilo que lhe é próprio e o prazer acompanha esta realização. A vida, enquanto realização
57

de uma atividade e de uma positividade é acompanhada de um prazer. O prazer é então a


perfeição que acompanha as atividades próprias do viver. Assim como só há atividades
convenientes ou inconvenientes, há prazeres convenientes e inconvenientes e o conveniente
é aquilo que o homem virtuoso realiza no momento oportuno! Os prazeres superiores são os
relacionados com as atividades teorético – contemplativas e os inferiores com as atividades
vegetativas e sensitivas.

O Ato Moral

Aristóteles, ao contrário de Sócrates e Platão, percebeu a diferença entre o


conhecer o Bem e o atuá-lo ou realizá-lo, é fazer do bem a matéria das próprias ações.
Aristóteles foi o primeiro a perceber o dinamismo psíquico do ato moral.
Ele distingue em primeiro lugar as ações voluntárias das involuntárias: as primeiras
tem como princípio o agente. As segundas tem como princípio um outro (ações forçadas) ou
as realizadas por ignorância. Também as ações ditadas pelo ímpeto, pela ira ou o desejo,
bem como as realizadas pelas crianças ou animais ele também chama de voluntárias, pois
tem sua origem no sujeito que as cumpre. Mas as ações propriamente voluntárias são
sempre fruto de uma escolha (proáiresis), coisa essencialmente própria da virtude e mais
apta que as ações para julgar os costumes. No caso, a criança e o animal não são capazes de
escolha, pois esta é sempre fruto de um raciocínio e reflexão.
O homem, ao raciocinar e refletir, realiza uma deliberação (boulésis). A deliberação
estabelece quais e quantas são as ações e os meios necessários para se alcançar certos
fins, a série de coisas a se realizar para se chegar ao fim, ou então para descartar estas
ações, por serem irrealizáveis.
A vontade diz respeito só aos fins; a escolha diz respeito aos meios. Não é a escolha
que torna a ação boa ou má, mas a vontade, pois é esta que determina os fins. O princípio da
moralidade da ação é a volição do fim, que pode ser:
a) Tendência infalível ao Bem – se a escolha não for reta, não seria voluntária, mas
resultado do ignorância, erro ou equívoco.
b) Tendência ao que parece Bem – isto tornaria a verdade um bem indeterminável, pois a
cada um bem pode parecer de um modo. Aristóteles procura resolver este problema
colocado o virtuoso como aquele capaz de determinar o Bem pelo seu próprio
comportamento.
Aristóteles não discute a questão do livre – arbítrio, que é uma problemática
tipicamente cristã, deslocada para a subjetividade na filosofia moderna.

A Política de Aristóteles

A política de Aristóteles está na obra de igual título, com oito livros, divididos em
capítulos e parágrafos, que se apresentam como a síntese do seu pensamento político.
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Como Platão, Aristóteles crê na superioridade do bem do Estado sobre o do indivíduo


e define o homem como animal essencialmente político, isto é, não pode viver isolado,
necessitando relacionar-se com seus semelhantes para sobreviver. Igualmente a distinção
entre o homem e a mulher deve-se não só às necessidades reprodutivas, mas igualmente à
divisão do trabalho. O núcleo familiar para Aristóteles existe por natureza. Em seguida à
vida familiar, existe a vida aldeã, que também é resultado da necessidade de preencher as
necessidades de sobrevivência. O estado surge para levar à plenitude a vida moral, através
de leis e tribunais. O Estado leva o homem a sair do seu egoísmo. O Estado, embora seja o
último a surgir cronologicamente, é o primeiro na ordem ontológica, pois é ele que leva à
plenitude a vida do homem, é o todo que precede as partes (a família, a aldeia) e que lhes dá
sentido. Contrariamente à sofística, que via o Estado como fruto de uma convenção
artificial, para Aristóteles ele é uma instituição natural. Os gregos não faziam diferença
entre o corpo político e o corpo social.

A Família

A família, como núcleo orgânico do qual se compõe o Estado, é constituída por quatro
elementos: a) as relações entre marido e mulher; b) as relações entre pais e filhos; c) as
relações entre o senhor e os escravos e d) a arte de obter as coisas úteis, as riquezas, que
Aristóteles denomina cremarística.
Para Aristóteles, o artesão e o escravo são instrumentos que precedem e
condicionam os outros instrumentos e servem à produção de determinados bens em geral.
Ele é um ferrenho defensor da naturalidade da escravidão. Ele a justifica de modo que, no
homem deve dominar a alma e o intelecto sobre o corpo, mas naqueles homens em que isto
não acontece, estes foram destinados para serem dominados. Igualmente esta é a razão
pela qual a mulher deve obedecer, pois que no homem a razão domina sobre o sentimento e
na mulher não. Para ele, foram destinados a obedecer todos os robustos de corpo e frágeis
de intelecto.
Estas posturas de Aristóteles não são isentas de contradições: se o homem é por
natureza corpo e alma racional, esta permanece nele, apesar de sua condição social.
Aristóteles justificava a escravidão pela guerra, pois o escravo era basicamente o
prisioneiro de guerra ou seu descendente, e como perdera a guerra, estava justificada sua
inferioridade. No entanto, como justificar este fato, no caso de uma guerra injusta, ou de
prisioneiros de elevada estirpe, ou instruídos? Estas questões colocavam-se só na relação
entre gregos e xxx , pois entre gregos e bárbaros haveria a natural superioridade dos
primeiros. Os bárbaros são naturalmente inferiores aos gregos e como tal, sujeitos à
escravidão.

A obtenção de riquezas
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Aristóteles fala de três modos de obtê-las: a) de modo imediato e natural, pela caça,
pastoreio e agricultura; b) de modo intermediário, pela troca dos bens e c) de modo não
natural, pelo comércio mediado por dinheiro, que Aristóteles condena por estimular o
acúmulo indiscriminado de riquezas, fonte de todos os desequilíbrios na vida do Estado. Só
seria lícito o que se obtém para se satisfazer as reais necessidades e estas são limitadas
pela natureza. Igualmente ele condena a usura e o investimento.

O Cidadão

Só é cidadão o que participa diretamente do governo da coisa público em todos os


momentos, (fazer as leis, aplicá-las e administrar a justiça), não bastando ser livre ou
proprietário. Colonos, membros de uma cidade conquistada, artesãos e agricultores livres
não poderiam tomar parte na vida política, além é claro do estrangeiro, da mulher e do
escravo. Para Aristóteles só é realmente livre aquele que não precisa preocupar-se com sua
sobrevivência, pois só assim poderia dedicar-se completamente à coisa pública. Com isso, o
número de cidadãos seria sempre limitado.

O Estado

O Estado torna-se atual por ter uma constituição. Está é o que estrutura e dá ordem
à Cidade, estabelecendo o funcionamento de todos os encargos, e sobretudo, da autoridade
soberana.
O poder soberano pode ser exercido: a) por um só homem e se ele age no interesse
comum, temos a monarquia, mas se age no interesse privado temos a tirania; b) por poucos
homens, e se estes agem no interesse comum, temos a aristocracia, mas se agem no
interesse privado, temos a oligarquia; c) por todos os homens, e se eles agem no interesse
comum, temos a politéia, mas se agem no interesse privado, temos a democracia. Quando se
visa o bem comum e os governantes são excelentes e virtuosos, tanto a monarquia, como a
aristocracia como a politéia são boas. Aristóteles diz que o governo de um só é sempre o
melhor, mas como é raro tê-lo, é melhor confiar num número grande de homens bons,
devendo-se preferir a politéia. Esta é a via – média entre a oligarquia e a democracia, pois
deve-se confiar numa multidão suficientemente numerosa, mas não muito, para dela tirar os
que servirão ao exército e à justiça. Estes encontram-se igualmente no estrato médio da
sociedade.

O Estado Ideal

Aristóteles enumera as condições ideais que deveriam dar lugar a um Estado feliz.
a) A população não deve ser demasiado exígua nem muito numerosa, mas na justa medida.
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b) Também o território deveria ter características análogas.


c) As qualidades ideais dos cidadãos deveriam reunir as características dos povos nórdigos
e os povos orientais, tais como eram os próprios gregos.
d) Certas funções na cidade são essenciais: os que cultivam a terra, os artesãos, os
guerreiros, os conselheiros e os sacerdotes. Os cidadãos serão primeiro guerreiros, depois
conselheiros enfim sacerdotes. Todos serão abastados, dado que os camponeses, artesãos
e comerciantes proveriam suas necessidades.
e) Por fim, a felicidade do Estado dependeria da virtude de cada cidadão, o que é função de
sua educação. Esta deve ser igual para todos os cidadãos, que devem aprender a obedecer,
quando jovens e a comandar, quando maduros. A educação deveria ser fornecida pelo
Estado e não pelos indivíduos. Esta começa com a educação do corpo, que se desenvolve
antes da razão, procedendo-se à educação dos impulsos, dos instintos e dos apetites,
concluindo-se com a educação da alma racional.

A Poética de Aristóteles

É uma das obras mais vivas do filósofo; se de todos seus escritos, nos tivesse
chegado só este, isto já seria suficiente para fazer dele um dos maiores pensadores
analíticos. O termo Poética (poietiké) refere-se tanto às artes úteis como às belas artes,
em oposição às artes da vida e a ciência. A poética pertence ao gênero da imitação, que é co
– extensivo às belas artes, sejam aquelas que imitam pela cor e pela forma, como as que
imitam pela voz: a poesia “latu sensu”, bem como a música e a dança.

A imitação (mímesis)

A imitação possui meios, objetos e modos.


Os meios são o ritmo, a linguagem e o som musical, que juntam a sucessão no tempo
ou movimento e a extensão espacial.
- o ritmo nos dá a dança.
- a linguagem nos dá as imitações em prosa.
- o ritmo e a linguagem nos dão a elegia e a poesia épica.
- o ritmo e o som musical nos dá a música instrumental.
- O ritmo, a linguagem e o som musical nos dão a poesia lírica, a tragédia e a comédia.
Para Platão a arte visa copiar a realidade com uma fidelidade literal e produzir a
ilusão que a cópia assim feita é a realidade, o que para ele é condenável. A arte nunca
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retrata as coisas elas mesmas, isto é, as idéias, as coisas sensíveis. A arte é a imitação do
sensível.
Aristóteles não combate diretamente esta opinião, mas deixa claro que o que a arte
imita são os caracteres, as emoções e as ações, ou seja, o mundo do espírito humano. A arte
imita o humano. De todas as artes, a música é a menos imitativa, pois não reproduz nada. No
entanto, para Aristóteles ela seria a mais imitativa, pois é a mais expressiva.
Todas as artes imitam a ação, mas o drama ou tragédia a reproduz de uma maneira
completa. A poesia é mais filosófica e séria que a história, pois a primeira exprime o
universal, enquanto a história expressa acontecimentos particulares. A poesia não deve
visar a reprodução de uma coisa individual, mas dar um novo corpo a uma verdade universal.
Os objetos da imitação se prendem aos tipos de homens que se imita: os que estão
abaixo do nível comum, os que são ao seu nível e os que estão acima do nível comum, o que se
reflete assim três gêneros respectivamente: a comédia, a tragédia e a epopéia.
- A comédia visa o defeito particular e produz o ridículo.\
- A tragédia descreve os caracteres bons, mas não tão superiores a nós a ponto de
perderem nossa simpatia. Neste ponto Aristóteles está influenciado pela tendência de
fazer da poesia uma crítica moralizante, mas não tão fortemente como era em Platão.
Os modos das imitações dividem a poesia em imitações narrativas e dramáticas, que é
o que distingue a epopéia da tragédia ou drama, que é uma ação imitando a ação.
A origem da poesia e do drama em particular se deve a dois instintos primitivos do
homem: a) o instinto da imitação e b) o instinto de sentir prazer nas imitações feitas pelos
outros. Estes dois instintos nos estimulam a conhecer qual é a origem de todo o progresso
mental. O prazer consiste em reconhecer o que a obra de arte quer representar. Outro
aspecto deste prazer é alegria sensível que nos dão as coisas como a cor, a melodia e o
ritmo. Os homens começaram estão a imitar as ações nobres ou as ações vis, originando
assim a tragédia e a comédia. Posteriormente foram incluídas as partes faladas, os coros e
os interlúdios.
A tragédia se distingue da epopéia por esta ser escrita em um só tipo de métrica, no
caso, o verso heróico e por não ter um limite de tempo, ao contrário da tragédia que deve
ter uma unidade de tempo, para propiciar uma unidade na ação. As suas partes são
diferentes, além da tragédia usar a melodia e o ritmo.
A tragédia é portanto a imitação duma ação boa, completa nela mesma,
compreensível, numa linguagem ornada de acessórios agradáveis, numa forma dramática e
não narrativa, com incidentes provocando a piedade e o terror, visando produzir a purgação
de tais emoções, fazendo-se o uso da melodia somente nas partes corais.
A ação representada deve: a) ser completa, deve ter um começo, um meio e um fim;
b) ter limites (dimensões) bem determinadas, para poder ser gravada na memória, pois
caso contrário despertará a fadiga.

A Catársis (purgação)
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Esta palavra chave tem tido as mais diversas interpretações: a) uma metáfora tirada
da purificação ritual, de modo que a tragédia teria uma função moral; b) uma metáfora
tirada da medicina, visando a purgação dos humores corporais, de modo que a tragédia teria
uma função não moral, mas “terapêutica”. O fim imediato da tragédia é produzir a piedade
e o terror. A piedade o espectador experimenta pelo herói e o terror, ele experimenta por
si mesmo, como uma vaga apreensão da sorte obscura que aguarda a cada um de nós.
Para Platão, exatamente por produzir o terror e a piedade é que a tragédia era
perniciosa, pois deixaria as pessoas mais emotivas e mais fracas, ao que Aristóteles
argumenta que o objetivo final da tragédia não é nos tornar mais emotivos, mas nos purgar
do que há de excessivo em nossa emoções.
Na política Aristóteles fala de certos gêneros de música chamados “orgiásticos ou
entusiasmáticos” que tem por objetivo produzir a catarse, pois todos temos necessidade de
nos purgar de certas emoções. As melodias catárticas se distinguem das melodias éticas,
que têm por fim a “instrução”, isto é, a melhora do caráter. Assim, o fim para o qual tende a
tragédia é uma espécie de prazer, mas um prazer distinto do relaxamento e do
entreterimento, mas a liberação da piedade e do terror.
O sentido da “purgação” das emoções significa sua expulsão, não no que elas teriam
de inferior, mas no que elas tem de excessivo. Outra interpretação da função da tragédia
seria a de propiciar, nas pessoas que não experimentam em suas vidas, a piedade e o terror,
a altura e o abismo destes sentimentos humanos e propiciar o conhecimento de si mesmo. A
purgação teria uma função essencial naquelas naturezas que tendem a se tornar oprimidas
pelo lado sombrio da vida. Aristóteles não se agrada de “finais felizes”. Suas tragédias
prediletas são Edipo – rei e Medéia...

Elementos da tragédia

- Relativos ao objeto representado: intriga, caráter, pensamento.


- Relativos aos meios de representação: dicção (linguagem e ritmo) e melodia.
- Relativos à maneira da representação: espetáculo (desempenho dos atores).
De todos os elementos, a intriga é o mais importante, subordinando-se-lhe o caráter,
pois este só aparece em função do primeiro. O caráter é empregado no sentido de
“revelação” do caráter e pensamento expresso na linguagem, que é o que contribui para o
sucesso da intriga. A melodia tem um papel acessório, embora agradável, bem como o
espetáculo, pelo seu efeito técnico. O efeito trágico não está ligado ao fato de a peça ser
representada ou não, mas deve ser-lhe intrínseco. A função do poeta trágico não é a de
escrever a coisa como se passou, mas o que poderia ter acontecido, já que a tragédia
exprime coisas mais universais que a história.
A tragédia é uma imitação de uma ação completa; os incidentes produzem seu efeito
máximo, quando se dão de modo inesperado. Isto acontece de duas maneiras: a) pelas
reviravoltas da fortuna; b) pelo reconhecimento, sendo estes os elementos mais
importantes da intriga complexa; c) o sofrimento, com mortes e torturas passadas e, cena.
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Deve-se evitar duas coisas: a) o homem bom se torna mal; b) o homem mau que se torna
bom. A primeira situação é odiosa e a segunda é a menos trágica que pode existir.
Aristóteles desconhece a situação de “redenção”.
O sentimento de piedade surge devido ao mal imerecido e o terror pelo mal que
poderia ter acontecido a nós. Os verdadeiros heróis trágicos não se distinguem nem pela
virtude nem pela justiça, como os que caem na desgraça não por perversidade, mas por erro
de julgamento. Situações que produzem terror ou piedade: quando a trama é feita entre
amigos e parentes, com ignorância da amizade ou parentesco. A descoberta produz-se em
meio a um incidente que pareça verossímil.
Aristóteles divide os poetas em duas classes: a poesia exige da parte daquele que a
pratica um talento especial ou senão uma certa loucura. No primeiro caso o poeta pode
adotar com facilidade a posição desejada. No segundo, ele pode, pela emoção, ficar fora de
si.
As quatro características do caráter: a) o herói deve ser virtuoso, mas não muito; b)
suas ações devem ser apropriadas; c) deve haver semelhança como o original da lenda; d0
devem ser conseqüentes com ele mesmo, apesar de suas incoerências.
As características do pensamento (linguagem): dicção, combinação de clareza e
dignidade, mistura de linguagem coloquial e formas fora do uso comum e sobretudo,
metáforas. A metáfora implica a percepção intuitiva de coisas entre si dessemelhantes.
Comparação entre a poesia épica e a tragédia: a) elas diferem em duração pois a
forma narrativa permite descrever um grande número de incidentes simultâneos. Já a
tragédia exige de um só olhar, se possa entender toda a história. b) pela métrica: na
epopéia o verso é pesado e grave. c) a epopéia deixa um campo maior para o inverossímil e o
maravilhoso; tragédia deve ser mais realista d) para Aristóteles contrariamente a opinião
vigente a tragédia é superior a epopéia, pois a tragédia é mais rica pelo uso da música e do
espetáculo; ela é mais viva mesmo à leitura, é mais concentrada, tem uma maior unidade de
ação, produz melhor o efeito específico da poesia que são o terror e a piedade.
Na poética haveria um capítulo sobre a comédia e uma exposição mais completa sobre
a catarsis. A comédia seria apresentada como a purgação de nossa tendência a rir. A poesia
lírica é apenas mencionada e é provável que Aristóteles a considerasse como pertencente à
teoria da música.
A poética não contém uma teoria estética, mas reúne as idéias mais fecundas sobre a
arte que qualquer outro autor. A poética marca o fim de duas idéias: a) a tendência de
confundir julgamentos estéticos com juízos morais; b) a tendência a considerar a arte como
simples reprodução da realidade. Aristóteles reconhece implicitamente, na beleza um bem
independente dos interesses materiais e morais.
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IVª Unidade – As Escolas Helenísticas (séc. IV – I a.C)

O Helenismo
Alexandre Magno, em um período de cerca de dez anos (334-323 a.C) submeteu toda
a Grécia ao seu domínio, bem como o império persa, criando o maior império que existiu na
antigüidade. Do ponto de vista do modo de vida tradicional grego, isto significou uma
grande mudança, pois o surgimento dos reinos helenísticos, que sucederam ao império de
Alexandre, levou ao fim a mais importante instituição grega, que era a pólis, a cidade –
estado, que perde daí em diante sua autonomia política, absorvida nos novos impérios, pois
os novos monarcas reuniram em suas mãos todo o poder, retirando dos corpos
representativos sua a autonomia.
Isto teve grande repercussão na filosofia, pois desde os pré – socráticos, até Platão
e Aristóteles, era a existência da cidade – estado o valor fundamental que animava a vida
espiritual dos gregos. As grandes obras de Platão e Aristóteles, respectivamente a
República e a Política praticamente perdiam o sentido de ser, já que não existia mais a
realidade que elas tratavam, a pólis.
Até então, identificavam-se duas coisas: ser homem era ser cidadão, membro ativo
de um corpo vivo que era a cidade. Agora, no período helenístico, ser homem era ser súdito.
Ele é tão somente um expectador diante das decisões da coisa pública, que são tomadas
sem sua colaboração. As antigas virtudes cívicas do bom soldado e do bom orador não tem
mais sentido, já que a coisa pública passa a ser assunto do funcionário e do mercenário, que
trabalham por dinheiro e não pelo sentimento de honra, ligado ao exercício das armas e da
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política. Diante desta situação, o “homem nobre” se desinteressa da coisa pública e a


política é tratada com indiferença e mesmo aversão. Substituindo o particularismo das
cidade – estado, o império dá origem ao cosmopolitismo, os homens são habitantes do
mundo: sua cidade é o mundo.
Outro fator importante neste período, é que o homem se descobre como indivíduo,
no sentido de que ele está só e deve cuidar do seu próprio destino. Na Grécia clássica, o
homem era educado e se via como membro de uma coletividade, que dava sentido à sua vida.
Agora o modelo humano é o aventureiro, aquele que consegue fama e fortuna pelo seu
esforço e pela armações do destino. Isto degenera evidentemente no individualismo e no
egoísmo, com conseqüências também na filosofia, pois rompe-se o laço ente a ética e a
política. A ética de Sócrates, Platão e Aristóteles alcança sua plenitude na vida política.
Agora a ética funda tão somente o sentido das ações individuais.
A conquista do oriente pelos gregos levou a uma superação do preconceito que eles
nutriam pelos “bárbaros”, de que estes eram incapazes de cultura e liberdade. Em pouco
tempo, a língua e a cultura grega foram absorvidas por estes povos que passaram a um nível
de desenvolvimento material e cultural igual aos gregos. Dois outros preconceitos são
atenuados neste período: a mulher ganha mais autonomia e recebe alguma educação e os
escravos, na condição de “libertos”, passam a conviver com os homens livres e também
adquirem cultura e fortuna. Fala-se que a verdadeira escravidão é a da alma, pela
ignorância.
A cultura helenística não é exatamente grega nem exatamente oriental, mas um
hibridismo que inclui e funde várias crenças, valores e costumes. Os centros desta cultura
são as grandes cidades do império, que em pouco tempo ofuscam o brilho de Atenas e das
outras cidades da Grécia continental. Alexandria é a capital do mundo cultural, com sua
grandiosa biblioteca e museu, que atrai sábios dos quatro cantos do mundo. Até o nascente
império romano se dobra de fascínio cultural de Alexandria, pois Roma não chegará a
superar o esplendor cultural da cidade conquistada por eles em 30 a.C. e que pode ser
considerada a data da passagem do período helenístico ao imperial.
A cultura grega, tornando-se helenística, perde seu vigor, bem como a filosofia
perde em profundidade. Por outro lado, será enorme o prestígio e a difusão das escolas
filosóficas, bem como o número de seus adeptos. Todos os homens dotados de alguns
recursos e com alguma inteligência passam a freqüentar as palestras dos filósofos, pois
numa época de crise espiritual, todos procuram respostas para os problemas da vida. A(s)
filosofia(s) se transforma(m) em religião laica: mesmo não fazendo referência às
divindades diretamente, elas estão impregnadas de valores éticos.
Este período da filosofia vai esquecer completamente a grande conquista de Platão e
Aristóteles, qual seja, a dimensão transcendente, metafísica e espiritual e se contentará
com categorias imanentistas, naturalistas e materialistas, algumas recuperadas dos pré -
socráticos (de modo especial Empédocles, Anáxagoras e os atomistas). Igualmente são as
doutrinas morais que são o centro de sua especulação, muito mais que a física, a lógica ou a
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metafísica. A virtude mais importante a ser cultivada não é mais a sabedoria, a sophía, mas
a prudência, a phrónesis.
A filosofia deste período é uma “arte de viver”, uma sabedoria prática, que retoma
algumas intuições do pai da filosofia, Sócrates. Epicuro, por exemplo, tira de Sócrates a
idéia de que a filosofia é uma “medicina da alma”, um remédio para os males da existência.
Os céticos tomarão de Sócrates o valor da dúvida e do não – saber, para justificar sua
recusa de qualquer saber que se pretenda dpgmático. E todos por sua vez verão, como
Sócrates, a filosofia como arte de bem viver e bem morrer. As “obras primas” dos
filósofos deste período não serão tanto seus escritos, mas seu modo de vida: homens que
viveram de pleno acordo e coerência com as doutrinas que pregaram, como Sócrates, que
morreu por suas idéias.
Este ideal de vida é marcado pela noção de autonomia. Cada homem deve viver
extraindo os recursos unicamente de si mesmo: ele deve bastar-se a si mesmo. Não se
podia depender dos bens, dos amigos ou da política, pois as reviravoltas do destino eram
constantes. De uma hora para outra, alguém rico e independente podia ver-se reduzido à
escravidão. Todas as escolas vão procurar fazer o homem indiferente aos caprichos do
destino, a tyké.
Para ficar indiferente aos caprichos do destino, torna-se necessário tornar-se
indiferente frente a todos os desejos, paixões e sonhos. A felicidade está na ataraxía, na
paz de espírito, através da renúncia, da indiferença e da insensibilidade. Para conseguí-la,
os filósofos pregam uma vida simples, sem luxo ou sofisticações, numa vida campestre,
voltada para a natureza e a solidão. O lema de Epicuro era: “vive escondido” e isto é a
antítese do período clássico, que via na atividade política a maior realização do homem.
Comum a todas as escolas helenísticas é o ideal do sábio, o qual é exaltado até
tornar-se um mito. Ele é o portador de todas as virtudes e como tal o modelo do homem
feliz, alguém que se torna semelhante aos deuses. Armado desta sabedoria divina, o sábio
não tem nada a temer sobre a terra, nem mesmo a morte. Igualmente nada se tem a temer
ou a dizer sobre a vida depois da morte. Eles não se perguntam pela imortalidade da alma,
pois a única felicidade possível está nesta terra. O fato de terem vivido em absoluta
concordância com seus ideais, fêz com que os fundadores e alguns representantes destas
escolas, fossem admirados por seus contemporâneos e por muitas gerações, pois afinal
estas escolas estiveram vivas por cerca de cinco séculos.

Diógenes e o desenvolvimento do Cinismo

O fundador da escola cínica foi Antístenes, mas foi Diógenes de Sinope (não
confundir com Diógenes Laércio), o representante mais típico e símbolo deste movimento,
pois ele, com suas atitudes radicais, até hoje impressiona, das quais a mais típica talvez
seja esta: Diógenes caminhava, em pleno dia, com uma lanterna na mão, pronunciando a
frase: “procuro o homem”, que com provocadora ironia queria significar exatamente isto:
procuro o homem que viva segundo a sua mais autêntica essência, para além de toda
67

exterioridade, convenções e regras impostas pela sociedade, independente do capricho do


destino e da sorte, que reencontre sua natureza genuína, viva em conformidade com ela e
seja feliz. Diógenes quis demonstrar que basta os homens darem-se conta das efetivas
exigências da sua natureza.
Para Diógenes, a felicidade está na harmonia da alma, só que, diferentemente de
Sócrates, o alimento da alma não é o conhecimento e a cultura, mas as necessidades
elementares do ser animal. O modo concreto de viver é anteposto a qualquer doutrina ou
procedimento especulativo, o que fazia com que ele tivesse atitudes em completa
contradição com o que todos faziam, como entrar num teatro quando todos estavam saindo.
O cinismo de Diógenes foi a mais “anti – cultural” das filosofias que a Grécia conheceu.
Nem a contracultura e os hippies dos anos 60 conseguiu ser tão radical.
É o animal que indica ao cínico o modo de viver: um viver sem metas ou pelo menos
sem as metas que a sociedade propõe como necessárias, sem morada fixa e comodidades
oferecidas pelo progresso. Para tanto Diógenes servia-se tão somente de um manto que
usava para se cobrir e para dormir e de um bornal, onde guardava os alimentos. Servia-se
de qualquer lugar para comer, dormir, conversar ou fazer outras necessidades fisiológicas.
Diz-se que morava em um barril que havia o mercado. Não se trata de um comportamento
animal pura e simplesmente, mas de um comportamento animal interpretado pela razão
humana, pois daí se depreende como são supérfulas todas as convenções sociais. Mas a
postura cínica desconhece um abismo que existe entre o comportamento animal e o humano:
O homem escolhe, é dotado de liberdade, o que torna o comportamento humano único.
Diógenes nota isso e dizia: “nada devemos antepor à liberdade”. Para ele, liberdade e
natureza coincidem.
Diógenes proclamou como as mais bela e importante coisa entre os homens, a
liberdade de palavra – parresía. O cínico diz o que pensa a todos, até mesmo do modo mais
cáustico, sem nenhum preconceito , trata-se de quem for. Junto com a liberdade de
palavra, Diógenes proclamou a liberdade de ações – anaídeia, às vezes praticada até o
abuso e o escândalo, para demonstrar a convencionalidade, a não naturalidade de certos
usos e costumes. Para tanto fazia referência à doutrina de Anaxágoras, de que “tudo está
em tudo” para justificar o fato de comer qualquer coisa e viver na sujeira.
O método que pode conduzir à liberdade e à virtude e, portanto, à felicidade,
resumia-se, para Diógenes, nos dois conceitos essenciais de “exercício” – áskesis e fadiga –
pónos. Dizia ele que o exercício é duplo, espiritual e físico. Na prática constante do
exercício físico, formam-se pensamentos que tornam mais ágil a atuação da virtude. A boa
condição física e a força são os elementos fundamentais para a saúde da alma e do corpo.
Como prova, mostrava que tanto os grandes artistas como os humildes artesãos ganharam
sua notável habilidade pelo exercício assíduo. O exercício é o artífice de qualquer sucesso.
O desprezo do prazer é fundamental na vida do cínico, pois o prazer torna débil o
físico e o espírito e destrói a liberdade, tornando o homem escravo das coisas e dos outros
homens, impossibilitando a realização da autarquia e da apatia, as supremas aspirações do
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sábio, bem como a libertação das paixões. O ideal supremo é bastar-se a si mesmo e não ter
necessidade de nada, pois é próprio dos deuses não ter necessidade de nada.
Diógenes louvava os que chegavam ao ponto de se casar e não se casarem, os que se
preparavam para empreender uma viagem marítima e a ela renunciavam, os que estavam
para se dedicar à vida política e não se dedicavam, os que queriam constituir família e não o
faziam, os que ganhavam a graça dos poderosos e em seguida afastavam-se deles. Há maior
grandeza na renúncia a um bem do que na sua posse e desfrute. Conta-se que certa vez
Diógenes tomava sol e aproximando-se dele Alexandre, o grande, lhe disse: “pede-me o que
quizeres”, a que ele respondeu: “deixa-me o meu sol”. Assim Diógenes criticava a inutilidade
do poder de Alexandre e afirmava que a felicidade vem do interior do homem. Os cínicos
não aceitavam a instituição do matrimônio: as mulheres e os filhos deveriam ser comuns.
Aceitavam no entanto o pacto entre um homem e uma mulher. O cínico não tem necessidade
de uma cidade nem de um Estado. Embora reconhecesse a utilidade da comunidade
ordenada, afirmavam que a única constituição reta é a que rege o universo e proclamava-se
“cidadão do mundo”.
Diógenes sustentava que o sábio não tem necessidade nem dos auxílios divinos, nem
dos prêmios depois da morte. Mesmo acreditando na existência da Divindade, dizia que não
precisávamos buscá-la, pois tudo está cheio da sua presença. Com base nestas convicções,
Diógenes precisava pedir a outros o que precisava e chegava a mendigar, mas com orgulho e
altivez, pois achava que o que lhe davam eram uma justa restituição e dizia: “tudo pertence
aos deuses; os sábios são amigos dos deuses; os bens dos amigos são comuns. Por isso os
sábios possuem todas as coisas”.
Diógenes era chamado “o cão” e vangloriava-se do apelido e dizia: “balanço
festivamente a cauda para quem me dá alguma coisa, uivo contra quem não me dá nada,
mordo os inescrupulosos”.
“A vida basta a si mesma”. Eis a mensagem que os homens da era helenística
aprenderam de Diógenes e, de vários modos repensaram e aprofundaram. Mesmo na era
imperial, essa mensagem continuou a atrair os espíritos e teve uma vida longa. A denúncia
cínica das três grandes ilusões que futilmente agitam os homens, vale dizer, a busca do
prazer, o apego à riqueza, o desejo de poder serão reafirmadoras pelos estóicos, céticos e
epicuristas e tornar-se-ão um lugar comum repetido pelos séculos. A exaltação da
autarquia e da apatia, entendidas como condições essenciais da sabedoria e portanto, da
felicidade, tornar-se - à até mesmo o motivo condutor do pensamento helenístico.
A menor vitalidade que o cinismo demonstrou com relação às demais escolas é devida
ao seu extremismo e portanto, ao seu desequilíbrio de fundo e à sua objetiva pobreza
espiritual. O seu extremismo nada poupa da contestação e por sua vez, não propõe nenhum
valor alternativo positivo. Ao reduzir o homem à animalidade, nega-lhe sua característica
mais própria: a espiritualidade, com o mundo da ciência e da cultura, não conseguindo
justificar-se.
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O Epicurismo

Epicuro: Vida e obra

Epicuro nasceu na ilha de Samos em 341 a.C., de pai ateniense que para lá emigrara
como colono. Aos 18 anos veio para Atenas para o serviço militar, embora já antes tenha
tido contato com a filosofia através de um discípulo de Platão. Mas a influência principal
sobre Epicuro veio com Nausífanes, discípulo dos Atomistas. Ensinou filosofia em Mitilene e
Lâmpsaco e entre 307/306 a.C. estabeleceu-se em Atenas onde fundou sua escola, que
ficou conhecida como “o jardim”.
Epicuro foi escritor muito fecundo, conta-se que era autor de mais de 300 volumes
mas pouco chegou até nós: três cartas, uma coleção de sentenças, as “máximas capitais”
conservadas por Diógenes Laércio e uma segunda antologia de máximas, as “Sentenças
Vaticanas” e vários outras fragmentos recolhidos em diversos autores. A primeira edição
completa de suas obras foi feita em 1887, na edição Ulsener, depois acrescida, dos achados
feitos em Herculano.

O rompimento de Epicuro com as idéias de Platão e Aristóteles


Mesmo antes de estabelecer-se em Atenas, Epicuro já havia reunido um grupo de
seguidores em Mitilene. Ao ir para a capital cultural dos gregos, ele queria dizer que tinha
algo novo a dizer, em relação às escolas de Platão e Aristóteles, que continuavam ativas
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através de discípulos e continuadores. A aversão de Epicuro pelas idéias de Platão talvez


datassem desde sua juventude em Atenas, pois não tinha a menor simpatia por nada daquilo
que Platão propusera: a dimensão metafísica apoiada em um mundo imaterial, a dimensão
mística baseada no supra sensível e a política, que tentava manter viva as idéias da pólis,
agora marchando para uma destruição inexorável. Ele também rejeitou Aristóteles porque
as obras que dele conheceu foram as do seu tempo como discípulo de Platão, de forma que
não tomou contato com suas idéias mais próprias.
Lembremo-nos que Platão faz derivar a verdade e o ser das realidades supra
sensíveis, alcançáveis tão somente pelo raciocínio, o estudo das ciências matemáticas e pela
dialética, para chegar-se então à visão espiritual da idéia suprema, o Bem. Epicuro tem uma
postura oposta: é a sensação o mais sólido critério de verdade, e só ela “capta o ser”,
rejeitando os raciocínios e a dialética, por sempre caírem no vazio. As sensações são o
significado natural das coisas, como se fossem seus sons e vozes e são algo tão
imediatamente claro, que não precisam de demonstrações.
Rejeitando a dimensão espiritual e eliminando o mundo supra – sensível, Epicuro
retoma temas que foram desenvolvidos pelos pré – socráticos, de forma que com ele pode-
se falar de uma interpretação “materialista” da verdade, já que conhece, ao mesmo tempo
que não aceita, a realidade espiritual como explicação última das coisas. Os pré – socráticos
não podem ser ditos materialistas porque sequer conheceram a distinção entre material e
espiritual que aparece somente com Platão. No entanto, com Epicuro temos a clara negação
do supra – sensível, do incorpóreo e do imaterial.
Para exprimir sua visão materialista, ele retoma as teses dos atomistas, a mais
“materialista” das escolas pré – socráticas, embora negue este empréstimo, salta aos olhos
esta dependência. É hoje notada também o parentesco dele com os eleatas, pois repete
algumas de suas teses: nada deriva de nada; nada se dissolve no nada; o ser é todo e
homogêneo. De Sócrates, Epicuro guarda a idéia da filosofia como uma “medicina da alma”,
embora conceba a alma diferentemente de Sócrates, como homogênea ao corpo. Da escola
cirenaica, Epicuro adota a doutrina do prazer, embora radicalmente repensada e dos
cínicos, a eliminação das necessidades supérfulas, induzidas pela sociedade, reduzindo-as
ao indispensável à sobrevivência, bem como a recusa a participar da vida política. Epicuro
procurará também fundamentar sua ética não só na antropologia, mas também numa física,
pois o homem é parte do cosmo e do ser.
Epicuro quando afirma a necessidade da ontologia como fundamento da ética, inverte
a hierarquia platônico – aristotélica e declara a ética superior à física (à ontologia) e por
sua vez, superior à ciência, está a sabedoria prática, a phrónesis. O problema da vida
torna-se para Epicuro, o problema por excelência, e portanto o que a filosofia deve
dedicar-se acima de tudo, pois a validez da doutrina será imediatamente verificada pela
experiência vivida, muito mais do que por uma fundamentação teórica.
A ética de Epicuro é algo completamente novo na filosofia, desde suas origens,
porque ela não tem, como todos os que vieram antes dele, o referencial da cidade – estado
grega. Depois das conquista de Alexandria, o grande, o mundo não era mais o mesmo e
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Epicuro percebe isto muito bem: é impossível ressuscitar aquele passado. O ponto de
referência passa a ser o homem individual, o homem privado e não mais o homem como
cidadão, ou seja, fora de uma convivência numa comunidade política, por ele condenada
como uma ocupação inútil e propondo como ideal o viver na obscuridade.
Epicuro tem aversão a toda a cultura tradicional, seja a ciência, a poesia ou a
retórica, pois todas elas estão de certo modo ligados aos valores da cidade – estado, agora
em crise. O que não significa uma anti cultura, como foi a postura dos cínicos, pois como
vimos, Epicuro escreveu mais de 300 volumes... Enquanto Sócrates ensinava nas praças e
Platão e Aristóteles em ginásios, Epicuro ensinava num jardim (diríamos hoje uma chácara)
nos subúrbios de Atenas, longe do tumulto da vida política e próximo do silêncio do campo.
Daí os epicuristas serem chamados “os do jardim”.
As posturas fundamentais dos “discípulos do jardim”, podem ser resumidas em cinco:
1) a realidade é perfeitamente penetrável e conhecível pela inteligência humana; 2) nas
dimensões do real há espaço para a felicidade do homem; 3) a felicidade é ausência de dor
e de perturbação, é paz de espírito; 4) para alcançar essa felicidade e essa paz o homem só
precisa de si mesmo; 5) não lhe servem, portanto, a cidade, as instituições, a nobreza, as
riquezas, nem mesmo os deuses: o homem deve bastar-se a si mesmo.
Esta mensagem torna todos os homens iguais, o que fez que “o jardim” abrisse suas
portas para todos: nobres e não nobres, livres e não livres, homens e mulheres e mesmo
prostitutas procurando mudar de vida. Não foi um movimento de moda, mas o apelo a um
modo de vida completamente novo. Epicuro comportava-se e vivia quase como um profeta ou
santo em seu jardim, a casa de onde os discípulos faziam uma intensa “propaganda
missionária”. Ainda no seu tempo de vida, suas idéias já tinham alcançado longínquas
regiões. Sua filosofia foi a que mais perdurou na antigüidade, por sua fé no real e no
conhecimento, na conquista da felicidade, vencendo a ânsia pelo sobrenatural. Ela só se
extinguirá com o fim do próprio mundo antigo. A doutrina do jardim divide-se em canônica,
física e ética.

A canônica epicurista
A escola de Epicuro ignorou completamente a grande aquisição que fora a lógica de
Aristóteles, reduzindo a lógica a uma espécie de crítica do conhecimento, princípios muito
elementares que serviam de introdução à sua física, não passando portanto de uma
metodologia. Epicuro, no seu cânon, afirmava que os critérios da verdade são três: as
sensações (aísthesis), as antecipações (prolépsis) e os sentimentos (pathé).
Como critério fundamental ele punha a sensação, para a qual ele reivindicava uma
certeza objetiva, considerada o principal critério para o julgamento. As sensações são
sempre e inteiramente verdadeiras, sem exceção. A certeza de um só dos sentidos já é
suficiente para nos dar a certeza de todos.
A sensação é uma afecção e portanto passiva, não se produz por si, mas deve ser
produzida por alguma coisa da qual é o efeito; e, se é produzida por alguma coisa, deve ser
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também correspondente a ela. É necessário que subsista o objeto que a produz e que este
corresponda à sensação que produz.
A sensação é objetiva e verdadeira porque é produzida, garantida pela estrutura
atômica da realidade, pois de todas as coisas emanam complexos de átomos que constituem
imagens das coisas e as sensações são produzidos pela penetração de tais imagens em nós.
O engano que nossos sentidos sofrem se deve à distância do objeto e da imagem por ele
emanada. O erro não é da sensação mas do julgamento.
A sensação é a - racional (anterior a qualquer julgamento), desprovida de memória,
não se auto – produz, mas é produzida por outro; ela não tem condições de tirar de si nem
de se dar o que quer que seja, mas é objetiva, ou seja, não surge da atividade do sujeito. A
sensação é irrefutável porque não se lhe pode opor nada: nem outra sensação igual, porque
tem o mesmo valor; nem uma sensação diferente, porque se refere a um objeto diferente;
nem a razão, porque esta depende da sensação e não o contrário.
Como segundo critério da verdade, Epicuro punha as antecipações ou pré – noções
ou prolépses, que são as representações mentais das coisas, o correspondente sensitivo do
conceito, uma idéia geral impressa em nós, memória daquilo que nos é mostrado de fora; são
imagens das coisas nascidas das percepções e formadas através da repetição das mesmas
percepções e a sua conservação na memória. São chamadas antecipações porque podem ser
chamadas a qualquer momento, pois estão na mente como um selo das sensações passadas, o
que nos permite reconhecê-las antecipadamente, sem precisarmos tê-las novamente diante
de nós e percebê-las agora. Elas precedem e condicionam qualquer forma de reflexão, de
raciocínio e atividade racional. É a estreita ligação da antecipação com a sensação que lhe
garante a veracidade, pois também elas são produzidas pela ação das coisas sobre a alma.
Além disso, os nomes que constituem a nossa linguagem referem-se a essas prolepses e
isto é algo natural. Os nomes são expressões por meios fonéticos das nossas percepções e
afecções.
O terceiro critério de verdade para Epicuro eram as afecções ou sentimentos de
prazer e dor, chamados também de “sentidos internos”, que possuem uma importância
particular, pois permitem discriminar o verdadeiro do falso, o ser do não ser, o critério
fundamental para discriminar o valor do contravalor, o bem do mal e portanto constituem o
critério da escolha ou não escolha, ou seja, a regra do nosso agir.
Sensações, antecipações e sentimentos tem seu valor de verdade na evidência
imediata e se acolhemos o verdadeiro não podemos errar. O raciocínio, sendo algo não
imediato, dá origem à opinião e com ela a possibilidade do erro. São verdadeiras as opiniões
que : a) recebem atestado comprobatório da experiência e da evidência e b) não recebem
atestado contrário, ou seja, desmentido da experiência e da evidência e são falsas as
opiniões que: a) recebem atestado contrário, ou seja, são desmentidas pela experiência e
pela evidência e b) não recebem atestado comprobatório, não recebem confirmação da
experiência e da evidência. A evidência é aquela do fenômeno, tal como aparece aos
sentidos e não tal como aparece à razão.
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A Física epicurista
A grande “Epístola a Heródoto” e os fragmentos até agora descobertos do grande
tratado “Sobre a natureza”, nos permitem descobrir o seguinte da física de Epicuro: “Nada
nasce do não - ser”, porque, do contrário, qualquer coisa poderia absurdamente gerar-se de
qualquer coisa sem necessidade de qualquer semente geradora; e “nada se dissolve no
nada”, porque, do contrário, neste momento, tudo já teria perecido e nada mais seria. E
dado que nada nasce e nada perece, então o todo, isto é, a realidade na sua totalidade, foi
sempre tal como é agora, e será assim sempre; com efeito, além do todo, não há nada no
qual este possa transformar-se, nem há nada do qual este possa ser transformado.
Aqui é reafirmado o ponto de partida dos eleatas, tal como foi assumido pelos
atomistas: o “todo” é a totalidade da realidade e é determinado por dois elementos
essenciais: os corpos e o vazio. A existência dos corpos é provada pelos sentidos e a
existência do vazio é inferida pela existência do movimento, pois este acontece pelo
deslocamento dos corpos no espaço vazio. Além dos corpos e do vazio, nada mais é pensável
que seja por si existente e que não seja afecção dos corpos. Esta postura de não distinguir
diferentes planos de significação para o ser é um repúdio às idéias de Platão e Aristóteles.
A realidade, tal como é concebida por Epicuro é infinita, em primeiro lugar infinita
como totalidade. Assim, infinitos devem ser os princípios constitutivos; infinitos devem ser
os corpos e infinita a extensão do vazio; se fosse finita a extensão dos corpos, eles se
dispersariam no vazio infinito e se fosse finito o vazio, ele não poderia conter os infinitos
corpos. Retoma-se assim a noção de infinito já levantada pelos jônios e adotada pelos
eleatas.
- Os átomos – alguns corpos são compostos, outros, ao contrário são simples e indivisíveis.
Somente estes últimos são originais, compactos e indivisíveis. Se os corpos fossem
divisíveis ao infinito, eles se dissolveriam no nada e isso não é admissível. O princípio de que
nada nasce e nada perece é válido para os corpos simples ou átomos. Já os corpos
compostos, estes se geram e se corrompem. Deve-se portanto distinguir as características
dos corpos enquanto compostos e os corpos simples ou átomos.
As características estruturais do átomo são a forma ou figura, o peso e a
grandeza. Os atomistas antigos indicavam como características estruturais dos átomos a
figura, a ordem (a disposição espacial do átomo em relação aos outros) e a posição. As
formas diferentes dos átomos são necessárias para explicar as diferentes qualidades
fenomênicas das coisas que nos aparecem. A grandeza dos átomos (o peso) é necessária
para explicar o movimento dos átomos.
Os átomos, para poderem gerar todas as diferenças que encontramos na realidade,
devem ter figuras muito diferentes e numerosas, mas não infinitas, sendo finito o número
dos átomos para cada uma das formas existentes. Este é outro ponto no qual Epicuro
afasta-se dos antigos atomistas, que sustentavam infinitas formas ou figuras dos átomos.
- A doutrina dos mínimos – a grandeza dos átomos tem um limite. Se eles pudessem ter
toda espécie de grandeza eles se tornariam visíveis, bem como se eles pudessem diminuir
em grandeza ao infinito, se dissolveriam no nada. Tanto um princípio como o outro são
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incompatíveis com a definição do átomo. Sendo os átomos maiores ou menores eles podem
ter partes que por definição não são separáveis, mas lógica e idealmente distinguíveis.
Assim, também a grandeza das partes não pode diminuir ao infinito, devendo ter um limite,
que Epicuro chama de mínimo e se torna a unidade de medida. Epicuro fala dos mínimos
não só referindo-se aos átomos, mas também ao espaço (o vazio), ao tempo, ao movimento
etc. Os mínimos para cada uma destas situações constitui a unidade de medida analógica.
- Características do vazio – o vazio possui características antitéticas às dos corpos. Ele é
o espaço que acolhe os corpos e permite-lhes moverem-se, reunirem-se e separarem-se. É
dito vazio em oposição aos corpos que são plenos. O vazio é também chamado de “natureza
intangível”, ao contrário dos corpos, que são tangíveis, isto é, podem ser sentidos. O vazio
também não tem capacidade de agir ou padecer, pois estas são características da
corporalidade.
Falar de seres incorpóreos, como as idéias de Platão, a Inteligência Divina de
Anaxágoras ou as almas, para Epicuro é absurdo, pois todo ser é homogêneo e corpóreo. Só
o vazio é incorpóreo.
- O movimento – as qualidades até agora examinadas são estáticas. Os átomos têm
também um caráter dinâmico: estão sempre em contínuo movimento, e que Epicuro chamava
de movimento de queda para baixo. No infinito não existe acima ou embaixo. Para falar
deste movimento, Epicuro faz referência às nossas sensações. No entanto, se os átomos
são invisíveis, como podemos deles ter sensações !

- A declinação (clínamen) dos átomos: para resolver as dificuldades acima levantadas,


Epicuro levantou a teoria da declinação, segundo a qual os átomos podem desviar a qualquer
momento do tempo, em qualquer ponto do espaço, uma distância mínima da linha reta e
assim encontrar outros átomos, do que resulta que destes choques, não só se formam os
compostos de átomos, como também um movimento para cima pelo choque e retrocesso.
A noção de declinação (clínamen) foi introduzida para abrir espaço, no universo
atomisticamente concebido, à liberdade, à vida moral e á possibilidade de realização do
ideal do sábio. Os atomistas, ao contrário, preferiam acreditar que tudo acontece por
necessidade, em vez de tirar os corpos indivisíveis do seu movimento natural. É claro que
esta invenção abre graves contradições no sistema da física de Epicuro, pois este é um
movimento sem causa, gerando-se do não – ser. Ao mesmo tempo que o clénamen não é
liberdade, pois nele não há finalidade e inteligência.
- o universo e os mundos infinitos – ao contrário de Platão e Aristóteles e retomando
noções dos atomistas e outros pré – socráticos, Epicuro sustenta a existência de infinitos
mundos: alguns iguais e análogos ao nosso, outros dessemelhantes. Como os átomos são
infinitos, infinitas são as combinações de que eles são capazes. Assim nada se opõe a que
existam infinitos mundos, que podem nascer e se dissolver, alguns mais rapidamente, outros
mais lentamente. Assim, num mesmo tempo, coexistem infinitos mundos na infinidade do
espaço. Ao mesmo tempo, o mundo não muda, pois a totalidade dos elementos que o compõe
permanece a mesma.
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O nascimento de novos mundos pode ter lugar, seja no espaço que separa um mundo
do outro, chamado por Epicuro “intermundo”, seja no interior de cada mundo, quanto este
esteja em vias de dissolução. Depois de ter alcançado o ponto culminante do crescimento e
do equilíbrio, começa a perder átomos e, portanto, dissolve-se, e os átomos dos quais era
composto passam a gerar novos mundos.
No universo de Epicuro, a negação não só de toda finalidade, mas também de toda
racionalidade, é levada ao extremo, além do limite a que chegaram os atomistas. Epicuro
quer desmentir sobretudo a teoria platônica do Demiurgo construtor do mundo. No
universo de Epicuro há tão somente o casual e o fortuito, que são o irracional. Epicuro é o
filósofo que “pôs o mundo por acaso”.
- A explicação dos fenômenos celestes – na sua explicação da realidade, Epicuro quer
demonstrar que o todo depende nem de um Deus ou de deuses, mas unicamente do acaso e
da necessidade. Isto visa livrar o homem de todos os temores. Procura explicar os
fenômenos celestes com uma multiplicidade de causas, sem fazer nenhuma interpretação
metafísica, como fez por exemplo Aristóteles. Pelo contrário, as múltiplas explicações que
dá aos problemas físicos, servem-lhe tão somente para corroborar a sua tese de que eles
não são produzidos por nenhuma natureza inteligente ou seres divinos. Não havia, por assim
dizer, um interesse “científico” nas especulações de Epicuro, pois para ele, tais
especulações não tem nenhuma aplicação no problema prático da vida, que é o que lhe
interessa.
- A Alma – a alma, como todas as outras coisas, é um agregado de átomos, ígneos,
aeriformes e ventosos, os quais constituem a parte irracional da alma e por átomos
“diferentes” aos quais não dá um nome específico, que constituem a parte racional da alma.
Esta por sua vez, como todos os demais agregados de átomos, não é eterna, mas mortal e
isso é uma conseqüência dos princípios materialistas do sistema de Epicuro. Perceba-se que,
mesmo negando o caráter espiritual de alma, defendido por Platão e Aristóteles, ele aceita
a divisão deles da alma numa parte irracional e outra racional, esta constituída por átomos
que ele não sabe como qualificar, e que seria responsável pelo pensamento e demais
atividades superiores. Para explicar o psiquismo, deveria-se discutir as características
destes “átomos diferenciados”. Outra coisa: para Epicuro, a alma possui sensação enquanto
está ligada ao corpo. Morto o corpo, os átomos que constituem a alma dispersam-se e
desaparece toda sensibilidade, sentimento, pensamento e consciência. No entanto, a
unidade da consciência, que constitui a pessoa, não se explica nem com a agregação nem
com a desagregação dos átomos que constituem a alma. A grande descoberta de Sócrates,
da alma como sede da inteligência e da individualidade, é desprezada e esquecida por
Epicuro, que não percebe um dos dados mais importantes da história da humanidade.
- O conhecimento – a sensação e o processo do conhecimento são explicados por Epicuro,
a partir do atomismo, como emanações das coisas. De tudo o que há, surgem imagens ou
“simulacros” que reproduzem os seus traços e, penetrando em nós, produzem as sensações
e o pensamento. As percepções sensíveis são sempre verdadeiras porque procedendo das
coisas, oferecem a realidade delas mesmas. Os sonhos e os delírios seriam estas imagens
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decompondo-se e recompondo-se, e não algo produzido pela nossa própria mente. Epicuro
não sabe explicar o pensamento autônomo de qualquer sensação, mas diz que esta é a causa
do erro nos nosso julgamento. Igualmente Epicuro não sabe como explicar a sede da
liberdade e da vontade.
- Os deuses e o divino – neste universo de átomos, do vazio, do movimento em queda
livre, sem uma dimensão espiritual, não há espaço para a Divindade e seres divinos. Um dos
objetivos de Epicuro é libertar os homens do temor dos deuses. No entanto, e de modo
paradoxal, Epicuro não nega a existência do Divino e dos deuses, mas do modo como eles
eram comumente entendidos, ou seja, acreditar que eles se ocupem e se preocupam com os
homens e com os seus afazeres públicos ou privados. Igualmente nega que os deuses sejam
os autores e organizadores do cosmo e dos corpos celestes, bem como não se identificavam
com estes corpos celestes. Em que se baseia então a “teologia” de Epicuro? Para ele, temos
um conhecimento “evidente” dos deuses. Esta evidência resulta do fato de todos os
homens em todos os tempos creram nos deuses. Esta crença não seria algo fantasioso, mas
da mesma natureza do conhecimento que temos das coisas: os deuses, como as, coisas,
emitem “representações” deles mesmos que se fazem sentir em nossas almas. É o que
Epicuro chama a “premonição do divino”. Assim a realidade, na sua infinitude é governada
por uma lei de equilíbrio ou compensação, que pressupõe a existência de seres divinos.
Assim como infinita é a multidão dos homens, infinito deve ser o número dos deuses
imortais e estes deuses tem figuras (corpos) iguais aos homens, porque a figura humana é a
mais bela existente na natureza. Mas se os deuses tem corpo, são constituídos de átomos e
como tais, devem se compor e se dissolver. Como então podem ser imortais? Epicuro fala
então de um “quase corpo”, de que seriam formados os deuses, de átomos que não se
dissolveriam. Ora, assim como Epicuro, dentro do seu materialismo, tem dificuldade para
explicar a alma racional, igualmente o tem para explicar a natureza dos deuses.
A concepção dos deuses de Epicuro é excêntrica em relação a todo o pensamento do
helenismo. A fé popular admitia os deuses para explicar as dificuldades da vida, enquanto
os filósofos admitiam a divindade para explicar o cosmo e a realidade. Epicuro rejeita estas
duas motivações, mas mantém algumas crenças do pensamento teológico antigo: o
antropormofismo. Por sua vez guarda de Aristóteles a convicção da impassibilidade dos
seres divinos. Ora, os deuses de Epicuro são os ideais de sua ética: vivem sem preocupações
e perturbações, dedicam-se a sábias conversações, em plena amizade e respeito mútuo.
Trata-se de uma projeção ideal da própria escola de Epicuro, do seu “Jardim”. A honra que
se devia aos deuses significava honrar o ideal de vida que emanava daquela escola, que
Epicuro pregava aos homens e que constituía a marca da sua própria existência.

A Ética epicurista
A filosofia moral, a partir de Sócrates, como vimos, fixou perfeitamente o estatuto
da ética. Esta deve estabelecer a essência do homem, a sua areté peculiar, o seu bem
específico e, portanto, o modo de viver para alcançar esse bem que o torna feliz. Epicuro
participa desta concepção de ética, mas se separa da tradição clássica (Sócrates – Platão –
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Aristóteles) na determinação da essência do homem e portanto, do fundamento da ética.


Assim como a natureza em geral é constituída por átomos materiais e agregados de átomos,
assim também a natureza do homem é constituída por agrupados de átomos: o agregado de
átomos da alma e o agregado de átomos do corpo. Se material é a constituição do homem,
material deverá ser o seu bem específico. O que nos diz o que é esta natureza são os
sentimentos fundamentais do prazer e da dor. Todo ser vivo instintivamente busca o
prazer e foge da dor. Portanto, princípio e fim do agir humano deve ser o prazer,
porque esse é o verdadeiro bem natural: aquilo que, quando possuído, torna-o feliz.
Sócrates, Platão e Aristóteles colocam a essência do homem na alma, por isso
identificaram o bem humano com os bens da alma e do espírito e negaram que o prazer do
corpo pudesse ser um verdadeiro bem, no máximo algo que acompanha as atividades da
alma. Ao contrário, para Epicuro o prazer enquanto prazer é o valor, o bem, o fim e
portanto, a sua posição é inegavelmente hedonista.
Epicuro afirma não só o prazer em si, como o chamado prazer catastemático, isto é,
o estado que é ausência de dor e de perturbação e este como sendo o mais desejável,
pois não se acompanha de nenhuma dor, como certos prazeres, mas é algo duradouro e a
libertação de qualquer coisa incômoda, ao ponto que qualquer supressão da dor pode ser
chamada prazer. A ausência de prazer ou dor não é um estado intermediário, mas é já um
prazer e o prazer supremo. A ausência da dor, vale dizer, o prazer catastemático, é,
pois, o limite supremo que alcança o prazer, além do qual não se pode estender
ulteriormente mais nada porque na ausência de dor o prazer alcançou a sua completeza
e perfeição.
Epicuro também argumenta que os males da alma são superiores (mais intensos) que
os males do corpo, pois o corpo só sofre pela mal atual, enquanto a alma sofre pelo mal
presente, passado e futuro. Com efeito e igualmente pode se dizer que o corpo só goza do
que é presente, enquanto a alma, pela recordação goza do prazer provado, e por
expectativa, do prazer futuro. Por esse motivo, os prazeres da alma são superiores aos do
corpo. O prazer da quietude só pode ser prazer positivo se se refere à dimensão
psicológica do homem.
Pode Epicuro distinguir um prazer do corpo de um prazer da alma, já que em seu
materialismo, tanto o corpo como a alma são agregados de átomos? No entanto, na sua
física ele já distingüira que as características do agregado “alma” são diferentes das do
agregado “corpo” e portanto uma distinção entre as duas formas de prazer parecer
correta. Ela já notara que para além do estímulo dos sentidos, que causam o prazer do
corpo, as ressonâncias interiores e os movimentos do psiquismo que a eles se acompanham ,
produzem um gozo e uma felicidade muito mais duradouros. Ora, o sensismo materialista de
base de Epicuro nos levaria a crer que os prazeres do corpo fossem os mais intensos, mas
ele postula que os prazeres da alma são superiores aos do corpo não só do ponto de vista
quantitativo quando do ponto de vista qualitativo. Ora, se não é o prazer do corpo, mas o da
alma o superior, então seria preciso concluir que neste ser particular que é o homem, há um
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componente que o diferencia do ser puramente material, físico e atômico. Mesmo negando,
implicitamente Epicuro deixa aberta a instância do espírito.
O prazer para Epicuro não é o prazer dos dissolutos, pois os meios para conseguir
certos prazeres trazem muito mais tormentos que prazeres. Igualmente diz que se o
prazer dissoluto fosse a suprema felicidade, ele deveria nos libertar dos temores do
destino, da morte e da doença, o que não acontece. Não se trata portanto de viver de festa
em festa, de orgia em orgia, mas da busca da ausência de dor no corpo e de perturbações
na alma. O não sofrimento do corpo (aponía) é o prazer catastemático, estável, em
quietude, enquanto a não perturbação da alma é o prazer da alma, que se liga ao anterior.
Esses prazeres e só esses, garantem o viver feliz. Porém outra conclusão se impõe: a
função de direção da vida moral não é exercida pelo prazer como tal, mas pela razão, pelo
raciocínio, pelo cálculo aplicado aos prazeres para estabelecer não só os que produzem
mais prazer, como os que comportam menos dores, pois há prazeres úteis e prazeres
danosos. O cálculo das utilidades, o juízo que dissipa os erros e faz a justa avaliação dos
prazeres é a phrónesis ou sabedoria prática: não é possível viver prazeirosamente a não ser
vivendo sabiamente e de maneira justa. A phrónesis ou sabedoria prática é a virtude
suprema, que diferentemente da sophía, que é a sabedoria contemplativa, está ligada à
vida prática.
Epicuro distingue três grandes classes de prazeres: a) prazeres necessários e
naturais; b) prazeres naturais, mas não necessários; c) prazeres não naturais e não
necessários. Devemos nos satisfazer sempre do primeiros tipo, usar com moderação os
segundos e nunca ceder aos terceiros. Aqui Epicuro manifesta uma tomada de posição quase
ascética diante da variada multiplicidade dos prazeres. Frente os prazeres naturais e
necessários, ele coloca unicamente aqueles ligados à conservação da vida do indivíduo,
tirando a dor do corpo: comer quando se tem fome beber quando se tem sede e repousar
quando se está cansado. Ele exclui desse grupo o prazer do amor: o sexo só deve ser
praticado quando não traga nenhum prejuízo.
Entre os prazeres do segundo grupo, ele põe todos os desejos e prazeres que
constituem, por assim dizer, as variações supérfulas dos prazeres naturais: comer bem,
beber bebidas refinadas, vestir-se com elegância, etc. Os prazeres do terceiro grupo,
Epicuro os denomina “vãos”, pois oriundos das vãs opiniões dos homens: os prazeres ligados
aos desejo de riqueza, poder, honras e semelhantes.
Mesmo os prazeres do primeiro grupo, eles tem um preciso limite, que consiste na
eliminação da dor; alcançando isso, o prazer não cresce indefinidamente. Os desejos e
prazeres do segundo grupo já não têm este limite. Como eles não tiram a dor corporal, mas
são tão somente variação do prazer, se usufruídos com exagero, podem causar um notável
dano. Há uma alegria na moderação do uso dos prazeres, disponível a todos que queiram
seguir a natureza e contentar-se com pouco. A natureza fez as coisas necessárias fáceis e
encontráveis e as não necessárias, difíceis de encontrar. Limitemos pois, os nossos desejos,
reduzamo-los àqueles essenciais e teremos riqueza e felicidade copiosa, porque para nos
dar aqueles prazeres, bastamos a nós mesmos e neste bastar-se a si mesmo (autarquia)
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estão as maiores riquezas e a felicidade. A maior de todas as riquezas é o não ter


necessidade de nada e de ninguém, no sentido de depender do favor dos poderosos.
Quem quer que ponha no prazer o bem supremo e a felicidade, é atormentado por
três coisas: a) a pressão do tempo que devora e leva consigo o prazer; b) a ameaça da dor
que pode sempre chegar; c) a emboscada da morte. Epicuro procurou elevar em torno do
prazer certas barreiras que o protegessem destas fatalidades, pois sua tônica está no
prazer catastemático (ausência de dor) muito mais que no prazer cinético (desfrute do
prazer).
Como o prazer consiste na ausência de dor, dela pode desfrutar tanto um deus como
um mortal. A duração do tempo não aumenta nem diminui a ausência da dor: o prazer
aumenta até a satisfação da necessidade, alcançando o seu limite, além do qual não pode
mais crescer. Enquanto o prazer catastemático durar, não pode ser maior ou menor: é pleno
e absoluto, sendo portanto infinito.
Como no entanto precaver-se das dores, já que, enquanto mortais, nunca estamos
delas protegidos? Nosso filósofo tem a este respeito estas afirmações: “não dura
ininterruptamente a dor da carne; o seu cume dura um tempo brevíssimo; e o que desse
ultrapassa o prazer, não se prolonga por muitos dias na nossa carne. As longas
enfermidades trazem, posteriormente à carne, mais prazer do que dor”.
Em suma: se é leve, o mal físico é sempre suportável e não é nunca tal, a ponto de
ofuscar a alegria da alma. Se é agudo, passa logo. Se é agudíssimo, conduz logo à morte, a
qual, em todo caso, é um estado de absoluta insensibilidade.
E a morte, o que prega Epicuro a seu respeito? A morte é um mal para quem nutre
falsas opiniões sobre ela. Dado que o homem é um composto alma e um composto corpo, a
morte não é mais do que a dissolução desses compostos. Nessa dissolução os átomos
dissipam-se por toda a parte, a consciência e a sensibilidade cessam totalmente e assim
sobram do homem apenas restos que se dissolvem, ou seja, nada. A morte não é
amedontradora porque quando ela chegar, nós não sentimos mais nada, nem seu “depois” ,
porque de nós nada resta, pela dissolução do corpo e da alma.
Quanto às virtudes, elas são a técnica de viver prazeirosamente e de maneira feliz e
permanecem como qualidade que distingue o homem. Somente que para Epicuro, elas ajudam
na justa avaliação e no cálculo razoável dos prazeres. Assim, embora Epicuro coloque como
bem supremo da vida, o prazer, há necessidade de conhecimento e reflexão para se
conseguir esta ciência prática e laboriosa do prazer. Também na tradição socrática,
Epicuro identifica o mal com a ignorância.
Quanto à vida política, Epicuro guarda posturas individualistas, em oposição ao que
ensinava Aristóteles e Platão, que fazem a felicidade depender do bem da cidade. A
falência histórica da cidade – estado e das instituições a ela ligadas, levou à perda da
credibilidade não só desta forma de organização política, como também a que lhe sucedeu,
os reinos helenísticos, por demais instáveis para despertar interesse nos filósofos. Isto
tudo levou Epicuro a pregar a não naturalidade da vida política, bem como o seu risco, pois
ela é fonte de dores e perturbações que podem tirar a ataraxia e consequentemente a
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felicidade. Os prazeres advindos da vida política são ilusórios: poder, fama e riqueza não
são prazeres nem naturais, nem necessários. A vida política dissipa e desvia o homem, que
deve viver separado das multidões, se quer ser feliz. O lema de Epicuro era: “vive
escondido”, retirando-se em si mesmo e buscando a tranqüilidade, a paz da alma e a
ataraxia que é o bem supremo. Direito, lei e justiça têm sentido e valor unicamente quando
estão ligados a algo útil. A justiça deixa de ser algo absoluto, como queira Platão, mas algo
relativo, pois o estado e a lei nascem de simples contrato, tendo em vista da utilidade,
sendo meio de tutela dos valores vitais, criando condições favoráveis, mas nunca
suficientes, para a vida moral.
Enquanto a filosofia de Platão visava criar homens políticos, que deveriam
redimensionar a cidade – estado, a filosofia de Epicuro ao contrário, visava criar homens
que se tornassem tão somente indivíduos, que aprendessem a cuidar tão somente de si
mesmos. A única ligação que Epicuro admitia era a amizade, por ser livre e eletiva,
surgindo entre os que sentem, pensam e vivem do modo idêntico. Na amizade nada é
imposto de fora e de modo não natural e portanto, nada viola a intimidade do indivíduo. O
epicurista vê o amigo quase como um outro eu.
A amizade no platonismo era um meio que ajudava a construir a cidade – estado. Para
Epicuro ela é um fim em si mesmo, muito embora não fuja da lei da utilidade, sendo neste
sentido também um meio para realizar o indivíduo, pois nada na ética epicurista foge da
necessidade do prazer e do útil. Ainda assim ela é algo desejável por si mesma. Em suma:
primeiro busca-se a amizade para conseguir determinadas vantagens alheias a ela. Depois,
uma vez nascida, torna-se ela um prazer ou uma fonte de prazer. Por isso ele reconhece que
de todas as coisas que a sabedoria oferece, o maior bem é a amizade. De fato, estes
princípios praticados pelos epicuristas, fizeram do “Jardim” um lugar procurado por
pessoas de grande nobreza, de estirpe e de caráter e mesmo mulheres eram admitidas
nestes círculos, algo novo na sociedade grega. A condição para o cultivo desta amizade é a
sabedoria prática que reconhece como iguais os membros desta sociedade de sábios.
Epicuro forneceu aos homens o que ficou conhecido como quádruplo remédio: 1) são
vãos os temores dos deuses e do além; 2) é absurdo o temor da morte; 3) o prazer quando
buscado corretamente está à disposição de todos; 4) o mal ou é de breve duração ou é
facilmente suportável. O homem que saiba aplicar esse quádruplo remédio adquire a paz de
espírito e a felicidade, que nada nem ninguém pode corromper. Tendo-se tornado senhor de
si, o sábio nada mais tem a temer e o comprovou pela sua própria vida: entre as dores que o
levavam à morte, escreveu a um amigo um último adeus, proclamando a vida doce e feliz.
Aos homens de seu tempo, privados daquilo que havia tornado a sociedade grega
segura e atormentados pelo medo e insegurança, Epicuro lança este caminho para a
felicidade, que consistia neste desafio à sorte e a à fatalidade, pois a felicidade pode vir
de dentro de nós, independentemente de como as coisas estão fora de nós. O verdadeiro
bem é a vida e para mantê-la, basta pouquíssimo e isto está à disposição de todos: tudo
mais é vaidade. A vida é para Epicuro o verdadeiro absoluto, quase uma religião.
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Epicuro foi uma das vozes mais autênticas da antigüidade. Seu pensamento e sua vida
tornaram-se um paradigma. O sucesso de sua filosofia estendeu-se por cinco séculos. A
cidade de Alexandria tornou-se a pátria dos epicurista. Esta escola buscou o equilíbrio
espiritual que é o maior ideal da eudaimonía grega; buscou a harmonia e perfeição que se
expressou nas estátuas de Praxisteles e Lisipo, as mais belas que nos chegaram. Epicuro
ensinou não só com sua vida, como por sua morte: aceitou-a serenamente, em meio a dores
atrozes, ainda assim louvava a vida.
Os pontos centrais do pensamento de Epicuro tornaram-se dogmas a serem
apreendidos e defendidos, quase como verdades de religião. Enquanto o Estoicismo e o
ceticismo experimentaram várias fases, o epicurismo teve somente um ciclo doutrinário,
permanecendo imutável.
Na segunda metade do século I a.C. o “Jardim” de Atenas já estava morto, mas o
discurso epicurista já se tinha difundido em toda a parte, no oriente e no ocidente. Em
Roma, o epicurismo encontrou uma segunda pátria, sobretudo através do poeta Lucrécio,
que soube cantar as máximas epicuristas com a mais elevada e comovida poesia. O seu “De
rerum natura” é considerado o maior poema filosófico de todos os tempos.

O Estoicismo

Zenão (334-262 a.C.)


Zenão nasceu na ilha de Chipre, de origem semita, tendo-se transferido para Atenas
aos 22 anos, para aperfeiçoar seu conhecimento filosófico. Na então capital da cultura
helênica, não foram as grandes escolas que passou a freqüentar, mas as dos chamados
“socráticos menores”, Crates, discípulos de Diógenes, entre outros. Deste, adquiriu o
exemplo prático do que seria a “vida filosófica”, segundo o modelo da escola cínica e alguns
princípios herdados do sacratismo: a) o verdadeiro homem é o “homem interior” (isto é, a
alma); b) não são os bens exteriores que trazem a felicidade, mas os interiores; c) os fatos,
as circunstâncias, em geral, tudo que é externo não pode impedir os valores da alma de
serem atuados e portanto, de se alcançar a felicidade; d) os homens podem matar nosso
corpo, mas não podem fazer-nos mal, porque não podem tocar nossa alma; e) para se
alcançar esta meta, é necessário o cultivo do conhecimento, para se alcançar verdadeiro
saber. Outra escola que Zenão freqüentou foi a de Estílpon, que era famoso então.
Representava a chamada escola megárica, que exaltava o momento lógico – dialético do
pensamento de Sócrates e que muito influenciou as posturas de Zenão.
As fontes históricas referem que Zenão também foi discípulo dos platônicos
Xenócrates e Pólemon. Embora tendo recebido um forte influxo de Platão, rejeitou o
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principal deste, ou seja, a proposição de realidades puramente espirituais e não menos que
Epicuro, adotou posturas nitidamente materialistas. As idéias, para Zenão, são simples
conceitos da nossa mente e não realidades subexistentes em si, como queria Platão.
Igualmente Zenão negou a existência de uma alma espiritual ou as “inteligências imateriais”,
como o Demiurgo de Platão ou o Motor Imóvel de Aristóteles. A natureza da alma para ele,
é material, pois só assim se explica a influência que ela exerce sobre o corpo e vice-versa.
A alma é pneuma e fogo: sobrevive por certo período à morte do nosso corpo, mas depois
se dissolveria no todo.
Corpóreo também é o Deus de Zenão, o qual coincide com o princípio ativo do
universo e é imamente ao próprio universo. Deus é um “fogo eterno”. Corpórea é também a
inteligência, a ciência, as virtudes: qualquer coisa, sem distinção se é ser, é corpo. Zenão
não se limitou a ouvir os filósofos da sua época, mas leu e meditou os livros dos filósofos
antigos, de modo particular Heráclito, de quem herdou a idéia do fogo, que é physis, lógos
e deus. Este fogo dirige o curso de todas as coisas.
Estas posturas de Heráclito foram repensadas por Zenão, pois não era mais possível
pensar-se a physis como fizeram os pré – socráticos, depois das aquisições de Sócrates,
Platão e Aristóteles. Zenão, como Epicuro, negou o espiritual, o imaterial, o supra – sensível
e determinou a physis em sentido materialista, corpóreo e sensista. Porém, ao contrário de
Epicuro que retira suas idéias do atomismo mecanicista, Zenão retira as suas de Heráclito,
com conseqüências de caráter vitalista, organicista e panteísta. Que tudo seja vivo, que a
matéria seja instrísecamente dotada de vida, que tudo seja organismo vivo, que tudo seja
Deus e que Deus seja coincidente com o cosmo, são teses implícitas nos pré – socráticos,
mas que só com os estóicos tornam-se explícitas e temáticas. Se se nega a dimensão
espiritual, Deus, se admitido como existente, deve ser imanentizado e identificado com o
cosmo e com a natureza. Os estóicos são os primeiros panteístas, os primeiros a
identificar Deus e natureza.
Algo que influenciou profundamente Zenão, foi a fundação do “Jardim”, a escola de
Epicuro, o que trouxe uma verdadeira revolução intelectual em Atenas. Em relação à nova
escola, Zenão nutriu sentimentos contraditórios. Tinha em comum com Epicuro o desejo de
fazer da filosofia uma “arte de viver”, o que era imperfeitamente realizado pelas demais
escolas. No entanto, as soluções propostas por Epicuro serão ferrenhamente rejeitadas por
Zenão, de modo especial a redução do mundo e do homem a mero amontoado de átomos e a
identificação do bem moral com o prazer. No entanto, isto impulsionou Zenão no rumo de
fundar sua própria escola. Sua visão de mundo levava-o a propor não os átomos, mas o lógos
para explicar todas as coisas, sem no entanto apelar para a metafísica de Platão e
Aristóteles. Igualmente, rejeitando o individualismo epicurista, Zenão prega o interesse
pelo outro e o empenho social e a felicidade não como busca do prazer, mas como empenho
pela paz espiritual.
Zenão não era cidadão ateniense e como tal, não tinha direito de adquirir um edifício.
Por este motivo dava suas aulas num pórtico. Daí sua escola se chamar “o pórtico”. Pórtico
em grego se diz stoá, daí a expressão estóicos. No pórtico de Zenão, à diferença do
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jardim de Epicuro, foi admitida a discussão crítica em torno dos dogmas do fundador da
escola e por este motivo, eles foram submetidas a aprofundamentos, revisões e
repensamentos. Enquanto a filosofia de Epicuro não sofreu modificações ao longo de cinco
séculos, a de Zenão sofreu notáveis inovações e consideráveis evoluções.
Os estudiosos já esclareceram suficientemente que na história do “Pórtico” é
necessário distinguir três períodos: 1) o período do “antigo pórtico”, no qual a filosofia do
pórtico é gradativamente desenvolvida e sistematizada, por obra dos seus três principais
representantes: Zenão, Cleanto e sobretudo Crísipo, que escreveu mais de 700 obras e
fixou a doutrina desta primeira fase da escola, que por sua vez se estende do final do
século IV ao final do século III a.C.; 2) o período chamado de “médio pórtico”, se
desenvolve entre os séculos II e I a.C. e se caracteriza por infiltrações ecléticas na
doutrina original; 3) o período do “pórtico romano” ou “novo pórtico”, que se situa já na era
cristã, na qual a doutrina torna-se essencialmente meditação moral e assume fortes tons
religiosos.
As distinções entre estes três períodos, comporta a necessidade de examiná-los
separadamente, pois cada um deles revela características peculiares, que se desenvolveram
ao longo dos quinhentos anos que durou a escola. O pensamento dos primeiros
representantes é dificilmente delimitável, pois foi toda absorvida na obra de Crísipo, que a
recheou com habilidades refinadas de dialética, bem como, se Crísipo não tivesse existido,
o pórtico teria desaparecido depois de Cleanto. Quanto aos pensadores do médio pórtico,
Panécio e Possidônio, os testemunhos precisos são escassos, embora os dois sejam bem
diferenciáveis. Quanto aos período romano, possuímos obras completas, numerosas e muito
ricas, como as de Marco Aurélio, o imperador – filósofo e Epicteto, o escravo filósofo.
Zenão e o Pórtico aceitam a tripartição da filosofia, estabelecida pela academia de
Platão (lógica – física – ética), e também adotada por Epicuro. O todo da filosofia é
comparado por Zenão a um pomar, em que a lógica corresponde ao muro que delimita o seu
âmbito e serve, ao mesmo tempo, de baluarte de defesa; a física representa as árvores,
aquilo sem o qual não existiria o pomar e por fim os frutos, o fim para o qual existe todo o
conjunto, que representa a ética. Essa imagem exprime bem tanto a premazia da ética e a
sua privilegiada posição, como a imprescindibilidade das outras partes da filosofia.
Os estóicos, diferentemente das outras escolas, souberam indicar, pelo princípio do
Lógos, o fundamento que solidamente liga as três partes: o Lógos é o princípio de verdade
na lógica, o princípio criador do cosmo na física e princípio normativo imanente na ética e,
escolheram não o termo nous, isto é, inteligência ou pensamento, como Xenofontes,
Parmênides, Anaxágoras, Platão e Aristóteles, mas Lógos, derivado de Heráclito, pois este
expressaria uma polivalência de significados, resumindo o momento subjetivo e o objetivo, o
antropólogo e o cosmológico, o gnoseológico e o ontológico e portanto podendo servir de
denominador comum entre sujeito e objeto.
Pohlenz, o maior estudioso da filosofia estóica, esclarece o significado que davam ao
Lógos: “para os gregos, a essência do Lógos não se esgota no conhecer e no falar. Não se
pode só dizer o que uma coisa é, mas o também que uma coisa deve ser. O lógos não termina
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no conhecimento, mas contém ainda um impulso para o agir. Somente partindo desta função
podemos compreender por que o lógos tornou-se o conceito fundamental da filosofia de
Zenão e teve um significado que o Nous nunca pôde alcançar. Para Zenão, o lógos não
representa somente a razão pensante e cognoscente, mas também o princípio espiritual que
dá forma a todo o universo, racionalmente e com base num plano rigoroso, e fixa para cada
criatura singular sua destinação. Para Zenão, como para Heráclito, o lógos reina tanto no
cosmo, como no homem e fornece-nos a chave para captar não só o significado do mundo,
mas também da nossa existência espiritual, e para conhecer o nosso destino efetivo. Deste
modo ele indicava também a via para se chegar a uma compreensão do devir cósmico, de
modo a satisfazer em igual medida o pensamento racional de Zenão e o seu sentimento
religioso”.
Fica assim esclarecido o que dissemos acima, a saber, que o lógos constitui o princípio
unitário que com os seus três valores distintos, gera as três partes da filosofia: o lógos
como princípio de verdade, com suas leis do pensar, do conhecer e do falar, constitui o
objeto específico da lógica; o lógos como princípio ontológico do cosmo, constitui o objeto
da física, entendida no sentido original, pré – socrático; e enfim, o lógos como princípio
finalizador, ou seja, como princípio que determina o sentido de todas as coisas e portanto,
também o fim e o dever ser do homem, constitui o objeto da ética.

A lógica estóica
À lógica estóica cabe o lugar metodológico e didático e portanto deve ser tratada em
primeiro lugar. Os estóicos muito mais que os epicuristas estão firmemente convencidos de
que o homem tem a possibilidade de alcançar a certeza e a verdade absolutas e que a paz
de espírito só pode vir do acesso e da posse plena delas: e a lógica, no seu momento
culminante, é a elaboração e fundação do critério da verdade e da certeza absolutas. O
estóico não só sente que está na verdade, como também se proclama capaz de demonstrá-la
aos outros. São os filósofos mais dogmáticos da era helenística. Em polêmica com os
céticos, que defendem postura oposta, desenvolveram ainda mais a sua lógica, ao contrário
dos epicuristas que apresentaram pouco interesse por esta disciplina. Ainda assim, os
estudos levados a cabo desde o século XIX, avaliaram negativamente os resultados destas
escolas, em tudo inferiores às descobertas de Platão e Aristóteles.
Em tempos mais recentes têm-se notado o quanto a lógica estóica é diferente da
Aristotélica, chegando mesmo a tomar direções opostas, com elementos das escolas
socráticas menores, de modo particular a megárica. A lógica aristotélica é toda dependente
da noção de substância, da qual dependem todas as outras e donde se deriva a essência, a
qual pode existir separada do pensamento. Zenão, por sua vez, dividia a lógica em dialética
e retórica, enquanto reconhecia só duas possibilidades para o discurso: a de proceder por
argumentos e a de desenvolver-se de maneira oratória.
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Para os estóicos, a alma é originalmente, como uma “tabula rasa”, e por ação da
experiência, adquire pouco a pouco os seus conhecimentos. A sensação e a representação
sensorial são o momento inicial, o ingresso da alma no conhecimento. A representação é o
critério da verdade, pois a sensação é uma impressão provocada pelos objetos sobre os
órgãos sensoriais e esta impressão se transmite à alma através dos sentidos e nela se
exprime, gerando assim a representação (phantasma). Zenão e Cleanto estenderam a
impressão como verdadeira marca material na alma, enquanto Crísipo fala de um alteração
qualitativa. O critério da verdade como dissemos não é a sensação, como era para os
epicuristas, mas a representação cataléptica ou compreensiva, pois implica um assentir,
um consentir e um aprovar provenientes do lógos que está na nossa alma. A impressão não
depende de nós, já que depende da ação de objetos sobre os nossos sentidos e nós não
somos livres para acolhê-los ou evitá-los, mas somos livres para tomar posição diante das
impressões a representações que se formam em nós, dando-lhes o assenso do nosso lógos,
ou recusando-lhes esse assenso. Só quando damos o nosso assentimento acontece a
apreensão. A representação que recebeu o nosso assentimento torna-se representação
compreensiva ou cataléptica e só esta é critério e garantia de verdade.
Os estóicos estão bem longe de pensar que o lógos tenha, com relação à sensação
uma autonomia ou uma função reguladora, bem como de achar que a representação seja uma
espécie de síntese ou um tipo de mensuração que o espírito opera sobre os dados
sensoriais. A liberdade de assenso é o ato de dizer sim à evidência objetiva e o ato de
rejeitar é dizer não à não – evidência.
A convicção dos estóicos é que, na realidade, quando estamos efetivamente diante de
algum objeto, produzem-se em nós uma impressão e uma representação dotadas de tal
força e evidência, que, naturalmente, nos levam ao assenso e portanto à representação
compreensiva, e se damos assenso a uma representação, estamos realmente diante de um
objeto real e isso se deve a uma modificação material e corpórea da nossa alma.
O conhecimento não se esgota no âmbito da sensação e da recordação de
representações sensíveis, mas implica a capacidade de pensar e raciocinar, ou seja, formar
representações intelectivas ou conceitos, de conectar essas representações e proceder a
inferências de diversos modos. Os epicuristas preocuparam-se sobretudo com reportar as
“opiniões” à experiência e, para estabelecer a validade de uma opinião, não indicavam outro
critério que não fosse a simples “confirmação” e o “não desmentido” pelas sensações e
experiências, não reconhecendo a importância e a fecundidade da autonomia própria do
pensar e do raciocinar e consequentemente não elaboram uma teoria das formas do pensar
e do raciocinar, ou seja, uma verdadeira lógica. Ao contrário, os estóicos reconheceram ao
pensamento a autonomia e, portanto, puderam elaborar uma verdadeira lógica, por eles
denominada “dialética”.
Tudo o que é concebido pelo intelecto é concebido de dois modos: ou por um contato
e por uma imediata evidência ou por uma passagem (ou inferência) de coisas evidentes e
esta última acontece de três modos: ou por via de semelhança, ou por via de composição ou
por via de analogia. Por contato e imediata evidência, concebemos no intelecto o branco e o
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preto, o doce e o amargo, etc. Por passagem ou inferência, a partir de coisas evidentes,
concebem-se as noções ou por via da semelhança (da imagem de uma coisa à coisa) ou por
via de composição (da composição da imagem de um homem e um cavalo chego ao centauro).
Por analogia concebemos as noções de dois modos: por aumento ou diminuição (por aumento:
de homens comuns, chego à noção de um gigante e por diminuição a de um pigmeu).
Se primeiro não temos as sensações, não podemos ter representações intelectivas e
conceitos. Da sensação passa-se à intelecção, em primeiro lugar, com uma operação
imediata. Por exemplo: deste branco que vejo à noção geral de branco; desta cor à noção
de cor. Em segundo lugar, por passagem mediada, ou seja, operando por via da associação,
combinação ou divisão sobre as noções obtidas por imediata evidência e, assim,
transformando-as de várias maneiras. Os estóicos, como os epicuristas, admitiam a
existência de prolepses, concebendo-as como natural concepção dos universais, pelo qual a
criança, já a partir dos sete anos, é capaz de chegar de modo natural.
Aquelas prolepses e noções que se encontram em todos os homens são conceitos ou
noções universais. Os estóicos falaram até de noções ou prolepses congênitas na natureza
humana, a propósito de alguns critérios morais, efeito do lógos universal no lógos do
homem.
Qual a natureza dos “universais”, ou seja, daquilo que o pensamento pensa, reúne e
separa de vários modos? Os epicuristas só admitiam as coisas que são corpóreas e
individuais e as palavras que são igualmente corpóreas e individuais e sustentava que as
palavras se referem imediatamente às coisas. Epicuro suprimia o problema do universal. Os
estóicos deram-se conta de que aquela eram uma solução simplista e admitiam, além das
coisas existentes e das palavras significantes, também um terceiro termo, ou seja, os
conteúdos de pensamento, que afirmaram ser simples lékta, meras “coisas expressas” ou
“enunciados” e tais coisas seriam “incorpóreas”. Isto se aplica levando-se em conta o
seguinte: o ser é sempre e tão somente corpo e como tal, individual. Os conteúdos do
pensamento predicam-se de muitos indivíduos e, portanto, não são indivíduos e não podem
ser corpos e, assim, realidade. Consequentemente eles são não corpóreos, não no
significado espiritual e portanto positivo, mas no sentido negativo de falta da
característica que é típica da realidade e do ser, que, para os estóicos, só é a corporeidade.
A posição dos estóicos é conceitualista e nominalista, enquanto reconhece o universal como
algo que depende do nosso pensar e falar, mas recusa-lhe uma existência real ou um
fundamento na realidade.
No contexto do materialismo estóico, a concepção da relação causa/ efeito é
particular e não possui uma exata correspondência em todo o pensamento antecedente. Só
a causa é realidade, é ser, é “corpo”; o efeito é, ao contrário, mero acidente, desprovido de
realidade corpórea e portanto, “incorpóreo”. Os efeitos são considerados simples
“predicados” e portanto “incorpóreos” e “exprimíveis”. Por exemplo a faca é corpo e a
carne é corpo, mas o ser cortado, que é efeito, não é corpo. O fogo é corpo e a madeira é
corpo. O ser queimado é efeito, é incorpóreo. Os estóicos reconhecem ser realidade só a
substância/ substrato e a qualidade, que são corpos. O resto são simples “modos” e “modos
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relativos”. Ora, os efeitos não são substâncias nem qualidades (a qualidade é concebida
como algo que penetra na substância, logo são um “evento” exterior, uma modalidade
acidental, privada de verdadeira realidade e de ser, isto é, “incorpóreo”.
O “predicado” é definido como “o que é conjugado a uma ou mais coisas”. Ora, se e
conjugado a “mais coisas” não é individual e, portanto tem uma universalidade e por essa
razão é contada entre os exprimíveis (lékta), que são universais.
Quanto à dialética, os estóicos a definiram de maneira socrática: é a ciência do
discutir retamente sobre argumentos através de pergunta e resposta. Ora, o discutir tem a
ver com palavras e com noções, com coisas significativas e com significados. Por
conseqüência, a dialética ocupa-se destas duas coisas. A dialética estóica divide-se
portanto em duas grande seções: uma diz respeito à linguagem e à sua estrutura, a outra às
formas do pensamento. No estudo da linguagem os estóicos lançaram as premissas para o
estudo científico da gramática. A teoria da declinação, com a determinação dos casos foi
sua mais significativa descoberta. Na sua dialética sobre a linguagem, eles não se limitavam
a tratar das partes do discurso, da sua estrutura e das questões de estilo. Eles incluíram
as questões sobre a definição, o gênero, a espécie. A rejeição estóica a uma estrutura ideal
do real, os leva a um certo nominalismo, a considerar esses problemas prioritariamente
como problemas de palavras e de linguagem.
Na outra seção da dialética, os estóicos ocuparam-se das formas do pensamento.
Esta segunda seção ocupava-se dos “predicados”, que segundos os estóicos são os verbos.
São estes chamados “exprimíveis elípticos” ou “incompletos”. Por ex.: escreve, fala, corre.
As razões porque os estóicos deslocaram seu interesse do sujeito ao predicado,
privilegiando – o, deve ser buscado na sua ontologia. Segundo seu materialismo, o sujeito de
um juízo deve ser entendido como um indivíduo e não como outro conceito. O juízo é sempre
singular: João escreve; João fala; João corre. A lógica dos estóicos busca estabelecer não
os laços que unem entre si conceitos, mas os laços que unem entre si eventos e os verbos
exprimem “eventos” e por isso são “incorpóreos”.
A proposição ou juízo é um “exprimível completo” ou seja, um exprimível que tem
sentido determinado e completo, enquanto liga o predicado a um sujeito. Como para
Aristóteles, para os estóicos o verdadeiro e falso são ligados estruturalmente ao juízo.
Paradoxalmente, eles têm a seguinte doutrina: a verdade é corpo; o verdadeiro é, ao invés
incorpóreo; o verdadeiro é um juízo, o juízo é enunciável, portanto incorpóreo. Por outro
lado, a verdade parece ser a ciência que afirma todos os verdadeiros, mas a ciência não é
senão um modo de ser da parte principal de razão; como a razão é corpo, a verdade é, no
seu gênero, corpórea.
No estudo dos raciocínios, os estóicos privilegiaram os silogismos hipotéticos e
disjuntivos, porque esses são os mais idôneos para ligar eventos, e não conceitos. Crísipo
individuou cinco esquemas fundamentais de dedução, que são evidentes por si e não tem
necessidade de ulterior demonstração: 1) Se A é, também B é; mas A é, portanto também B
é. 2) Se A é, também B é. Mas B não é; portanto tampouco A é. 3) A e B não podem ser ao
mesmo tempo; mas A é; logo B não é. 4) Ou A é, ou B é; mas A é logo B não é. 5) Ou A ou B
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é; mas B não é; logo A é. Esses tipos de silogismos hipotéticos foram considerados mais
“modernos” e mais fecundos do que os aristotélicos. No entanto, a sua dialética, é
demasiada ligada aos fatos para ser fecunda. Ela não é capaz de sair do fato bruto nem
mediante a idéia (que ela nega), nem mediante a lei que liga os fenômenos (descoberta da
ciência moderna), mas deve contentar-se com o repetir indefinidamente o dado factual.
Quanto à retórica, os estóicos a concebem como modo fundamental do falar e como
tal faz parte da lógica e atribuíram-lhe um valor subordinado à dialética. Com isso, de
instrumento de convencimento político, tão exaltado pelos sofistas e por Platão, a retórica
torna-se a arte do falar com elegância, modo sistemático de dizer a verdade. Isto se
explica pela nova condição histórica. Com o fim da cidade – estado, não restava à retórica
outro papel senão ser “a forma bela do verdadeiro”.
Concluindo, qual foi a incidência da lógica estóica sobre a realidade, tal como a
conceberam e sobre o seu sistema filosófico, em particular a ética? A incidência foi
mínima, devido principalmente à evolução da escola, que tenderá a desinteressar – se pela
lógica, para cair numa espécie de “intuicionismo”. A dialética estóica não capta o ser e a
ciência das coisas, mas só os “incorpóreos”, entendidos como irreais, passando pela
superfície das coisas e só captando os “ocidentes” delas. Mesmo quando busca os “eventos”
e os “fatos”, acaba caindo em meras tautologias.
A representação cataléptica, que é o conhecimento sensível, é a única forma de
conhecimento que nos faz captar a realidade para os estóicos e ela é um contato íntimo e
imediato com as coisas corpóreas e é, ela mesma, corpórea. O pensamento e a razão, na
doutrina estóica, não captam o ser, apenas o tocam. Com o tempo e o desenvolvimento da
escola, houve um “desprezo pelo incorpóreo” que levou ao abandono da lógica discursiva em
benefício dos desenvolvimentos da atividade moral e religiosa. Com isso, a física, como já
acontecera no epicurismo, se sobrepõe à lógica e a ética por sua vez sobrepõe – se à lógica
e à física, como uma nova intuição emocional dos valores.

A física estóica
A física para os estóicos, como para os epicuristas, não é como para Platão e
Aristóteles, uma doutrina sobre um setor da realidade, mas uma doutrina sobre a physis,
em sentido pré – socrático, de uma explicação sobre a totalidade da realidade, os princípios
e leis que constituem o seu fundamento. Há profundas analogias entre a física dos
epicuristas e dos estóicos, bem como contrastes radicais, pois que dão soluções opostas
para os mesmos problemas. Neste sentido pode-se falar de um corpo a corpo entre estas
duas filosofias.
Epicuro repropôs o pluralismo atomista; os estóicos, ao contrário, o monismo. Os
epicuristas sustentam uma total falta de finalismo; os estóicos sustentam uma teologia.
Epicuro afirma o mecanicismo: os estóicos, o vitalismo. Epicuro defendeu a infinidade dos
mundos; os estóicos a existência de um único mundo e finito. Epicuro sustentou a existência
do átomo e a impossibilidade da divisão ao infinito da matéria e os estóicos a doutrina do
contínuo dinâmico e a possibilidade de divisão ao infinito. Epicuro fêz do vazio um princípio;
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os estóicos negam que no mundo exista o vazio. Epicuro negou a penetrabilidade dos corpos;
os estóicos afirmam a penetrabilidade dos corpos. Epicuro pôs os deuses totalmente fora
do mundo e sem qualquer relação com ele; os estóicos identificam Deus como o princípio
constitutivo do mundo e com o próprio mundo. Epicuro negou qualquer providência; os
estóicos fazem da providência um dogma fundamental; Epicuro negou o destino; os estóicos
fazem do destino a outra face da providência.
Tais oposições brotam de duas opostas visões de mundo: as mais opostas que
possamos imaginar num espaço deixado à comum negação da transcendência. As físicas
epicurista e estóica são duas formas do materialismo antigo, que negam os êxitos da
descoberta do mundo espiritual feitos por Platão.
O materialismo do pórtico é um monismo panteísta, diferente das posturas de
alguns pré – socráticos, pois é constituído depois das distinções entre os conceitos de
corpóreo e incorpóreo, matéria e espírito, imanência e transcendência. Os estóicos, como
os epicuristas, negam a existência de qualquer realidade puramente espiritual. Platão
considerava real somente o que era capaz de exercer e/ou sofrer uma ação e os estóicos,
como os epicuristas, diziam que esta capacidade só pertence ao que é corpóreo e material.
O ser, portanto, enquanto tal é materialidade e corporeidade. Corpo é Deus, corpo é alma,
corpo é o bem, corpo é o saber, corpos são os vícios e corpos são as virtudes.
Corpo para os estóicos é um conceito complexo. Para eles corpo é matéria e qualidade
(forma) unidas entre si de tal maneira que uma é estruturalmente inseparável da outra e
vice-versa. A qualidade – forma é a causa ou o princípio ativo, enquanto a matéria é o
princípio passivo. A primeira é sempre imanente à segunda e em nenhum caso pode ser
separada dela e existir independentemente.
A matéria é finita e substância comum de toda coisa existente; divisível e sujeita a
toda forma de mutação, prestando-se à composição de toda espécie de figura, mas nunca se
apresenta senão juntamente e inseparavelmente ligada a alguma qualidade/forma, que lhe
confere um espírito e vigor eterno que a move segundo a razão, causa de toda mutação no
universo. Esta natureza movente é a alma que dá vida ao mundo sensível e imprime-lhe a
beleza da qual ele depende. Este princípio que penetra toda matéria informa-a e a plasma,
move-a e agita-a inteiramente, assume diferentes nomes: mente, alma, natureza e mesmo
Deus, demiurgo criador de todas as coisas.
A penetração de Deus (que é corpóreo) em toda a matéria e em toda a realidade (que
também é corpórea) é possível no estoicismo em virtude do dogma da comissão total dos
corpos. Por esta doutrina, as partes dos corpos podem interpretar-se e unir-se
intimamente, formando novos corpos. Este materialismo, diferentemente do mecanicismo
epicurista, é hileomórfico, pois exige a matéria sempre unida à qualidade/ forma, de modo
inseparável. Existe uma única matéria, a qual traz em si o princípio da vida e da
racionalidade, que faz germinar da matéria todas as coisas. Princípio ativo e princípio
passivo, matéria e razão, mente, Deus não são duas entidades separadas. São lógica e
conceitualmente distinguíveis, mas ontologicamente inseparáveis. São portanto uma única
matéria e uno é o princípio ativo, uno é o cosmo que abarca em si tudo. Isto é inseparável da
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matéria e dado que não há matéria sem forma, Deus está em tudo e Deus é tudo. Deus
coincide com o cosmo. Nisto consiste o panteísmo estóico.
Cosmo tem, para os estóicos, um tríplice significado: primeiro, Deus mesmo, cuja
qualidade é idêntica à de toda substância do universo; ele é, por isso, incorruptível e
ingênito, criador da ordem universal, que, com determinados períodos de tempo, absorve
em si toda a substância do universo e, por sua vez, a gera de si.
Quanto ao incorpóreo, os estóicos os resumem no lugar, no tempo, no infinito e no
vazio. O lugar é entendido como o que é ocupado inteiramente por um corpo, é incapaz de
agir ou de sofrer uma ação, é o resultado, o efeito do simples “estar – aí” de um corpo. O
tempo é o intervalo ou dimensão do movimento. Como tal, ele não tem capacidade de agir ou
de sofrer uma ação, é o efeito do mover-se dos corpos. Ele é incorpóreo pela ulterior razão
de que é infinito (enquanto passado ou futuro) e nenhum corpo, para os estóicos, pode ser
infinito. O vazio, concebido como “ausência de corpo”, é posto fora do cosmo e é
igualmente infinito, pois comporta a ausência de limites. Estas noções do “incorpóreo”
criam inumeráveis aporias, pois como foi dito que só o corpóreo é ser, alguns estóicos
criaram um gênero mais universal que o ser, para incluir estes incorpóreos, a que eles
chamavam “algo”. Esta hipótese cheia de contradições, nunca foi plenamente entendida ou
esclarecida.

Conceito estóico de Deus e do Divino


Para os estóicos, a physis implica a matéria, mas também o princípio intrínseco
agente que é, que dá e que se torna forma de todas as coisas, o princípio que faz tudo
nascer, crescer e ser. A physis estóica resume em si seja os significados materialistas,
seja os epicuristas e portanto ela só pode verdadeiramente significar Deus, concebendo-o
de maneira imanentista e panteísta.
O Deus que é physis é também lógos, princípio de inteligência, racionalmente e
espiritualidade e desde que toda realidade é corpórea, este princípio só pode ser imanente
à matéria. Desse modo os estóicos podem identificar o seu théos – physis – lógos, com o
“fogo artífice”, com o heraclitiano “raio que tudo governa”, ou também com o pneuma,
“sopro ardente”, ou seja, ar dotado de calor. O fogo é o princípio que tudo penetra e
transforma e o calor o princípio para qualquer nascimento, crescimento e processo vital.
Essa concepção panteísta/ materialista de Deus não exclui o politeísmo! Para os
estóicos, como para os gregos em geral, as concepções de um Deus uno e múltiplas
divindades não se excluem. O Deus é o lógos, o fogo, o princípio ativo supremo, a totalidade
do cosmos. Os deuses múltiplos são os astros, ou seja, partes privilegiadas do cosmo e que
são concebidos como seres vivos e inteligentes. Deve-se notar que só o lógos é
verdadeiramente Deus eterno; os outros são deuses de longa vida, que nascem e morrem
junto com as evoluções cíclicas do cosmo, pois este, como se verá, é devorado pelo fogo e
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regenerado. Com isso toda a mitologia dos cultos tradicionais podia ser alegoricamente
interpretada e considerada como expressão poética de realidades físicas.
O Deus estóico, na medida em que se identifica com a natureza, não pode ser
pessoal, como o Deus judaico – cristão. Consequentemente, a oração não tem sentido e o
homem, para realizar a sua vida não tem nenhuma necessidade de ajuda de Deus. No
entanto, na evolução do estoicismo, o lado religioso se acentuará, passando de um
cosmoteísmo, a um teísmo, como nos atesta o “Hino a Zeus”, de Cleanto.

O finalismo, a providência e o destino


Contra o mecanicismo dos epicuristas, os estóicos defendem uma concepção finalista.
Para eles todas as coisas, sem exceção, são produzidas pelo imanente princípio divino que é
o lógos, a inteligência e a razão em tudo rigorosa e racional. Tudo é como a razão quer que
seja, tudo é bom, o conjunto de todas as coisas é perfeito. Tudo o que existe tem o seu
significado exato e é feito do melhor modo possível. As coisas individuais, mesmo sendo
consideradas imperfeitas em si, tem sua perfeição no conjunto do todo.
Logicamente, em conseqüência da afirmação do finalismo, também a questão da
providência (pronóia) emerge como algo muito importante no sistema filosófico estóico. Ela
não é a “divina providência” do cristianismo, mas exprime o fato de que todas as coisas
foram feitas pelo lógos como se deve e como é melhor que sejam. É uma providência
imanente, para a ordem deste mundo, sem nenhum fim transcendente, espiritual, já que
esta ordem é negada. Toda a natureza é dotada de uma faculdade artística e é, ela mesma,
um artista. Sua tarefa é prover e predispor tudo o que pode ser de utilidade e de proveito.
Como a providência é imanente e física, não é de se admirar que ela proveja mais a
espécie que ao indivíduo e que portanto, não se ocupe com os homens individuais, com suas
mazelas e necessidades, pois só a concepção da divindade e da providência como uma
Pessoa, como no Cristianismo, poderia permitir esta providência pessoal.
Essa providência imanente dos estóicos, revela-se por outro lado como o
cumprimento de um destino, de uma necessidade inelutável, uma série irresistível de
causas em que a ordem natural e necessária de todas as coisas se cumpre pela ação do lógos
imanente, onde tudo acontece, mesmo o evento mais insignificante, como o cumprimento de
um desígnio. Isto é o destino, a eimarmene, a série concatenada de causas e efeitos da
qual tem origem todas as coisas. O destino é a fonte da qual têm origem todas as coisas, é
existente desde sempre. Sobre tais bases, é claro que os estóicos deveriam defender a
arte da adivinhação: se tudo é determinado e pré – determinado, com oportuna arte o
futuro pode ser de algum modo previsto.
No contexto dessa concepção fatalista, não há espaço para a liberdade humana. Se
todo acontecimento é rigidamente determinado, para quê qualquer empenho moral, já que o
êxito da ação já está decidido? Com isso não há também qualquer responsabilidade, pois não
é de nossa ação individual, mas de uma série de causas que todas as coisas dependem. Não
há como admitir a noção de destino dos estóicos e ao mesmo tempo salvar a liberdade
humana.
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A liberdade do sábio está em conformar o próprio querer ao do destino. Um querer


com o destino, o que ele quer. Esta é a “liberdade”, uma racional aceitação do destino, que é
racionalidade. Se o destino é o lógos, logo, querer o que quer o destino é querer o que quer
o lógos. Liberdade é levar a vida em total sintonia com o lógos.
Esse ponto da sabedoria estóica causou grande impressão, porque ensinava que, em
certo sentido era possível libertar-se do destino por via oposta à que fora indicada por
Epicuro. Inútil, como pretendia Epicuro, rir do destino, porque ele logo nos agarra de
maneira implacável. Há, porém, um modo de libertar-se do destino, compreendendo-lhe as
razões, as leis internas e consequentemente, sintonizando-se com elas. E assim, em vez de
força que nos dobra e abate, o destino torna-se a força que nos conduz e guia, com
absoluta certeza ao fim que nos foi assinalado.

O lugar do homem no cosmo


O mundo e as coisas do mundo nascem da única matéria, qualificada e informada pelo
lógos imanente, uno, mas capaz de diferenciar-se nas infinitas coisas. O lógos é a semente
de todas as coisas, uma semente que contém muitas sementes (os lógos spermatikoì dos
gregos, que os latinos traduzirão por rationes seminales). Assim, na cosmologia estóica, do
original lógos/fogo formam-se os quatro elementos: o elemento fogo, o elemento ar, que,
aquecido pelo fogo, é chamado pneuma ou espírito; em seguida forma-se o elemento líquido
e o sólido, e todo o cosmo e as coisas do cosmo, por obra do próprio fogo e do pneuma que
circula em todas as coisas. Grande importância deram os estóicos ao conceito de tónos ou
tensão do fogo, ou melhor, do pneuma, que seria uma força propulsora que vai do centro
aos extremos limites e depois retorna ao centro, assegurando assim a unidade às coisas
particulares e ao todo.
O pneuma estende-se pelo universo com intensidade e pureza diferentes e, portanto,
gera várias coisas com uma precisa graduação hierárquica, mesmo permanecendo uno.
Nascem assim as coisas inorgânicas, nas quais o pneuma age e se manifesta como háxis,
como uma força que garante às coisas coesão e duração; nascem depois os organismos
vegetais, nos quais o pneuma age se manifesta como capacidade de nutrição, de
crescimento e de reprodução e portanto como physis; nascem enfim, os animais, nos quais o
pneuma se manifesta como psyché, vale dizer, como princípio de vida em sentido pleno e
portanto, manifesta-se como sensação e instinto e no homem, como razão, lógos.
O universo teria uma forma esférica: na periferia estão os astros, feitos de fogo e
que seriam seres animados, vivos e divinos. No centro está a terra que é como o foco do
divino edifício do universo. O universo, contrariamente ao que sustentava Epicuro, é finito,
mas circundado pelo vazio infinito.
Plantas e animais da terra existem em função do homem: para o homem tudo fora
criado. O universo é o sistema constituído pelos deuses e pelos homens e pela coisas
criadas por eles. Esta concepção antropocêntrica professada pelos estóicos e algo novo na
mentalidade grega; esta idéia de que o homem constitui o único fim da formação do mundo
e que tudo foi criado para ele está mais de acordo com a mentalidade judaica. Há quem
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defenda que Zenão, que era de origem semítica, tivesse levado esta noção, bem como a de
providência deste povo. Seja como for, só com os estóicos esta concepção se impôs.

A conflagração universal e o eterno retorno


Como os pré – socráticos, os estóicos consideravam o mundo gerado e portanto
passível de destruição. Assim como existe um fogo que cria, existe também um fogo que
consome, carboniza e destrói e chegaria o momento em que haveria um fatídico
“cumprimento dos tempos”, uma conflagração universal, ou seja, uma combustão do cosmo, a
que davam o nome de ekpirosis, que seria também uma espécie de purificação universal, em
que tudo retornaria a ser tão simplesmente fogo. Após isso haveria um novo nascimento do
cosmo, a que davam o nome de palingênesis e tudo se reconstituiria exatamente como antes
e a isto davam o nome de apokatástasis. O cosmo renasce e repete-se continuamente, não
só na sua estrutura geral, mas também nos acontecimentos particulares. É o eterno
retorno: renascerá cada homem sobre a terra e será tal como foi na vida precedente, até
nós mínimos pormenores, pois idêntico é o lógos / fogo, idêntica a semente, idênticas as
razões seminais, as leis do seu desenvolvimento, as conexões das causas pelas quais as
razões seminais se desenvolvem em geral e em particular. Percebamos, que se o lógos
organiza o mundo para ser o mais perfeito e mais belo possível, ele só pode reproduzi-lo
idêntico ao que sempre foi e isto se repetindo ao inifinito.

O homem
O homem ocupa, no sistema estóico uma posição proeminente porque ele participa do
lógos divino mais do qualquer outro ser vivente, pois, além do corpo, possui a sua alma que é
um fragmento da alma cósmica. O homem é portanto um fragmento de Deus. É certo, que
como já vimos, a alma não é uma substância espiritual, mas corporal, porém um corpo
privilegiado, o pneuma, que é um fogo. A alma penetraria todo o organismo, vivificando-o. O
fato da alma ser também um corpo não é problema para que ela penetre o corpo, já que os
estóicos admitem a interpretação dos corpos. Ao penetrar todo o organismo, ela preside às
funções essenciais e os estóicos dividem a alma em oito partes: uma central, chamada
hegemônica, que coincide essencialmente com a razão, cinco partes que constituem os
cinco sentidos, além da parte que preside a fala e a que preside a geração (reprodução).
Além das oito partes, elas distinguiam numa mesma parte, diferentes funções. O
hegemônico por exemplo teria a capacidade de perceber, assentir, desejar, raciocinar. A
morte é a separação da alma do corpo, separação puramente física, em que a alma
sobreviveria ainda algum tempo, antes de dissolver-se.
Assim, o destino da alma para os estóicos está numa solução intermediária entre a de
Platão e a de Epicuro: a alma sobreviveria à morte do corpo, mas não para sempre. O
término último da alma seria o momento da conflagração universal, mas haviam opiniões
discordantes entre o tempo intermediário entre a morte e a conflagração. Para Cleanto
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todas as almas sobreviveriam até a conflagração universal. Outros como Crísipo achavam
que só a alma dos sábios teriam este privilégio: as almas “débeis”, dos incultos,
permaneceriam pouco tempo; as dos sábios, até a conflagração. O lugar destinado às almas
parece situar-se sob a lua. Elas mantêm suas faculdades cognitivas e teriam uma função nas
advinhações e nos sonhos. De certo modo, pode-se falar de uma imortalidade da alma, pois
no processo de palingênesis, cada alma, assim como cada coisa, reconstitui-se, e a
existência de cada alma e cada homem recomeça ao infinito. Note-se que o renascimento e
a sobrevivência da alma, como sábio ou como homem inculto não é o resultado de
recompensa ou castigo pela vida moral. A virtude e o vício são premiados já aqui na terra.
Para eles, a vida terrena era a única e verdadeira vida e a felicidade alcançável na terra a
única e verdadeira felicidade.

A Ética dos estóicos


A parte mais significativa da filosofia estóica não foi sua física, mas sua ética, de
todo a mais elaborada das escolas helenísticas, tendo sido ensinada e praticada por mais de
meio milênio, como iluminadora do sentido da vida, consoladora dos males do homem e
libertadora de ilusões.
Para os estóicos, como para os epicuristas o fim do viver é a aquisição da felicidade
e à ética cabe determinar no que ela consiste e quais os meios para alcançá-la. Este é o
principal fim da filosofia. Também para os estóicos a felicidade é o “viver conforme a
natureza”, entendo-se natureza tanto a physis universal como a physis específica do
homem. Embora enquanto “lema”, este seja idêntico ao dos epicuristas, repugna aos
estóicos admitir que o fim último do homem seja tão somente conseguir prazer e fugir da
dor, no que ele não se distinguiria dos animais. Se o específico do homem é o ser dotado de
razão, razão esta que existe para muito mais do que o cálculo do prazer, pois é uma
participação na razão divina. Assim o fim último do homem é atuar a sua razão e daí se
deduzem todas as normas da conduta moral.
Os estóicos notam que o que caracteriza todo ser vivo é a tendência a conservar-se a
si mesmo, apropriar-se do seu próprio ser, evitando tudo que ameace a sua sobrevivência.
Eles dão a este “instinto” o nome de oikeiosis. É dele que se deduz os princípios éticos.
Nas plantas e animais este instinto é inconsciente, mas no homem será viver “reconciliando-
se” com o próprio ser racional, conservando-o e atuando-o plenamente. Assim o prazer e a
dor não são os primeiros motores do agir humano, mas eles vêm como a conseqüência do
cumprimento ou não daquilo que a natureza humana é, isto é, conservação de si, evitando as
coisas que prejudiquem e buscando as que são úteis. Viver retamente segundo a razão é o
viver segundo a natureza e vice-versa.
Resumindo: em virtude do princípio da oikéiosis, todas as coisas tendem a apropriar-
se do próprio ser e amá-lo, tendem a conservá-lo e incrementá-lo, conciliando-se com as
coisas que o favorecem e tornando-se inimigos das que prejudicam. O homem, mais que
resguardar o seu ser animal, visa incrementar a sua essência ou natureza específica, que é
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a sua racionalidade, escolhendo o que a favorece e fugindo do que a prejudica. O fim último
do homem é portanto o incremento da sua racionalidade.
Os estóicos contrapõem, ao princípio epicurista da busca do prazer e da fuga da dor,
um princípio mais radical e fundamental, pois o que é bem e mal não pode basear-se em algo
tão fugidio como o prazer e a dor. Portanto é bem o que conserva e incrementa o nosso ser
e mal, o que o danifica e o diminui. Como o homem é animalidade e racionalidade, no
processo avaliativo do que é o bem ou o mal, não são as mesmas coisas o que fornece a
conservação e o incremento da vida animal e o que favorece a conservação e incremento da
vida da razão.
Na classificação hierárquica dos bens, os estóicos tenderão a considerar verdadeiros
e autênticos bens exclusivamente os que incrementam a razão e verdadeiros e autênticos
males exclusivamente os que se opõem à natureza racional do homem. Só os primeiros
podem ser chamados bens morais e tornam o homem virtuoso e portanto feliz e mal o que é
vicioso, resumindo-se tudo nesta famosa frase: “bem é só a virtude e mal é só o vício”.
Como então considerar o que traz benefício para o corpo e o seu contrário? No
fundo, os estóicos tendem a considerar estas coisas nem bens, nem males. As coisas
relativas ao corpo, quer o prejudiquem, quer o ajudem são considerados indiferentes (em
grego, adiáphora) ou moralmente indiferentes. Assim a vida, a saúde, a beleza, a riqueza
etc. tem o mesmo valor da morte, doença, feiúra ou pobreza. Assim os entes podem ser
bons, maus e indiferentes. Bons são a justiça, a inteligência, a temperança, a fortaleza, os
males são a estupidez, a devassidão, a injustiça, a baixeza; indiferentes são a vida, a morte,
a celebridade, a humildade, a dor, o prazer, a riqueza, a pobreza, a enfermidade, a saúde,
etc.
Com estas noções, a moral estóica queria proteger seus adeptos das conseqüências
dos perigos, inseguranças e adversidades provenientes das convulsões políticas e sociais, da
penúria e da doença, pois tudo isto era negado, pois classificado entre os “indiferentes”. Os
bens e males derivam tão somente do interior do homem e nunca do exterior. Assim a
felicidade poderia ser sempre alcançada, independentemente e indiferentemente aos
acontecimentos externos.
No entanto esta “indiferença” é atenuada pela doutrina dos “preferíveis”, pois é
positivo tudo que incrementa, garante e conserva a vida (saúde, força, vigor etc.) e que os
estóicos chamavam valor ou estima (em grego, axía), enquanto o oposto negativo chamavam
falta de valor e de estima (apaxía). Portanto os “intermédios”, situados entre os bens e os
males deixam de ser totalmente indiferentes e tornam-se, do ponto de vista físico, valores
e desvalores. Portanto, para nossa natureza animal os primeiros tornam-se objeto de
preferência e os segundos de aversão. Assim há os “indiferentes preferíveis” e os
“indiferentes não preferíveis” ou rejeitáveis.
Resumindo: 1) são bens verdadeiros só os bens morais, isto é, os que conservam e
incrementam a racionalidade e o lógos e vice-versa, são males só os males morais, isto é, os
que diminuem a razão e o lógos; 2) esses bens são valores em sentido absoluto e o mesmo
se diga dos males morais, que são desvalores em sentido absoluto; 3) os “indiferentes”, se
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estão todos no mesmo plano do ponto de vista moral, não estão do ponto de vista físico,
pois incrementam ou prejudicam a vida; 4) existirão portanto coisas que mesmo sendo
moralmente indiferentes, serão do ponto de vista físico, valores ou desvalores ou serão
completamente neutras; 6) os bens morais têm valor absoluto e por isso diante deles não
tem sentido a classificação de “preferidos”, estando acima de qualquer relação com outros
valores.
Nos estóicos, como nos gregos em geral, a virtude humana (areté) é a perfeição do
que é peculiar e característico do ser humano e dado que a característica do ser humano é
a razão, a virtude é a perfeição da razão. Portanto, “viver segundo a natureza” coincide
com o “viver segundo a razão” e “viver segundo a virtude” e a virtude é a vida bem
aventurada ou felicidade. Os estóicos combatiam tanto a tese epicurista que subordinava a
virtude ao prazer, como a concepção escatológica, que ligava a virtude a um prêmio
ultraterreno. A virtude é em si mesma um bem, um prêmio, a felicidade e deve ser buscada,
amada e cultivada em si e por si. O estóico cultiva o ideal da autarchéia: não ter
necessidade de prazeres, pois estes não aperfeiçoam a sua natureza, são apenas fenômenos
que acompanham certas situações, sobre as quais não temos nenhum poder e não ter
necessidade de uma recompensa futura, pois a perfeição já é possuída com a virtude e
ninguém pode arrancá-la de si. Com esta virtude, o homem chega ao vértice absoluto, sente-
se igual aos deuses. Com esta virtude o estóico sentia-se protegido contra todos os males e
adversidades de sua época.
Na ética estóica é evidente o componente intelectualista, nascida com Sócrates,
pois coloca o lógos como o princípio ontológico regulador de todas as coisas. Como tal, a
virtude pode ser considerada uma ciência ou conhecimento dos bens e dos males e o vício,
uma ignorância dos bens e dos males. Eles, como Sócrates, não fizeram uma nítida distinção
entre conhecimento e vontade, como faculdades espirituais independentes e o papel de
cada uma na vida moral.
Como Platão, os estóicos fixaram em número de quatro as virtudes cardeais: a
prudência, a temperança, a fortaleza e a justiça. Todas as demais virtudes, que foram
meticulosamente distintas, foram subordinadas a estas. No entanto, todas são reduzidas a
uma única virtude, a ciência. Assim se explica a célebre frase dos estóicos, segundo a qual
“quem possui uma virtude, possui todas”, pois elas não só se acompanham umas às outras,
mas são todas emanações particulares da suprema virtude, a ciência do bem e do mal, isto
é, a phrónesis ou prudência.
Os estóicos tiraram deste princípio conseqüências revolucionárias, de certo modo
impensáveis para Platão e Aristóteles: a igualdade fundamental entre todos os homens:
homens ou mulheres, escravos ou livres, pobres e ricos, pois se a natureza humana é capaz
de sabedoria, esta pode ser ensinada a todos, no sentido de criar uma multidão de sábios,
ensinando a filosofia a todos os que pudessem compreendê-la, pois a virtude não está
vedada a ninguém.
Os estóicos não se limitaram a considerações gerais sobre a essência da virtude e do
vício, mas impulsionados pelo seu acentuado interesse ético, chegaram a um atento exame
97

de conduta moral, das ações que a constituem e dos diferentes valores morais que as ações
humanas podem ter, criando conceitos novos e originais. Quem possui a virtude, ou seja, o
lógos, harmonizado de modo perfeito, só poder realizar ações perfeitas, vale dizer, ações
que correspondem totalmente às instâncias do lógos perfeito: toda ação leva consigo a
carga de perfeição da fonte da qual derivam, presentes até nos traços do rosto e nos
sonhos. A virtude, quando possuída, manifesta-se em todas as ações e comportamentos e
até no inconsciente. Daí os estóicos falarem da “ação perfeita”, ou “ação reta”, ou “ação
virtuosa”, a que denominam katórthoma, como a ação que radica a virtude, pois inspirada e
sustentada por um lógos perfeito. Por isso não se pode julgar a retidão da ação, pelo fim
que visa, mas pelo seu ponto de partida ou intenção, pela disposição espiritual interior.
Igualmente não se pode julgar se uma ação é reta ou não pelos seus traços intrínsecos ou
exteriores, pois um sábio e um tolo podem realizar a mesma ação exteriormente boa, mas
só o primeiro realizou uma reta ação pois a realizou segundo a razão, o lógos. Em
conseqüência, nenhum tolo realiza ações retas, pois para realizá-las, primeiro deve tornar-
se sábio e igualmente a massa é incapaz de retas ações, pois não é sábia.
No seu conjunto, as ações humanas podem ser divididas com nítida distinção entre
ações retas ou virtuosas e ações viciosas ou erros, mas entre as primeiras e as segundas há
uma ampla faixa de ações intermédias, dotadas de um valor relativo ou de um desvalor
relativo e são ações que dizem respeito ao componente natural e físico do homem. Quando
estas ações são realizadas segundo a natureza ou de modo racionalmente correto, são
chamadas ações convenientes ou deveres. Neste sentido, também as ações dos animais
são ditas convenientes porque são conforme a sua natureza. Igualmente as ações do homem
comum, que não é sábio, mas que cumpre o que dele se espera, entram nesta categoria, por
exemplo, honrar os pais, os irmãos, a pátria, ter boas relações com os amigos, cumprir bem
a própria profissão. Por fim, há ações que trazem o sinal do desvalor e são inconvenientes,
como a não realização destes comportamentos acima. Por fim há as ações indiferentes nem
boas, nem más.
Resumindo: 1) entre as ações perfeitas e virtuosas e as ações racionais, há a esfera
das ações médias, entre as quais surgem as convenientes ou deveres, que são ações
dotadas de valor relativo, em contraste com as ações virtuosas, dotadas de valor absoluto.
2) Sempre no âmbito das ações médias distinguir as ações opostas às convenientes ou
deveres, ou seja, as ações inconvenientes. 3) Destas serão ulteriormente distintas as
ações absolutamente indiferentes, isto é, totalmente neutras. 4) Os deveres tornam-se
deveres ou convenientes perfeitos se lhes é acrescentada a sabedoria e neste caso os
deveres perfeitos coincidirão com as ações retas ou katorthómata. 5) O espaço no qual
situam-se os deveres é portanto o intermédio e o seu valor é sempre relativo.
No que se refere às leis humanas, longe de serem convenções, para os estóicos elas
são a expressão de uma lei eterna e indestrutível, provenientes do lógos eterno. O sábio,
ao sentir e obedecer estas lei como boas, segundo uma disposição interior, realiza a
perfeita ação moral. Ao tolo, incapaz de perceber a bondade intrínseca da lei, ao obedecê-
la, evitará para si muitas culpas. Neste sentido, as leis são especialmente úteis aos homens
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comuns, incapazes de perceber a bondade da lei, mas obedecendo-a, realizam o bem comum.
O sábio não precisaria da lei, pois pela sua disposição interior, ele já é a encarnação da lei.
Assim é que os estóicos elaboraram o conceito de dever (kathékon), tão importante para o
desenvolvimento espiritual do ocidente.
Para Epicuro, a lei e a justiça eram expressão de acordos transitórios estabelecidos
entre os homens para garantir a segurança da vida, para fins estritamente utilitários. Para
os estóicos, diferentemente, com a sua intuição de um lógos imanente, foi possível
compreender o problema da lei numa perspectiva metapolítica e universalista: A lei
humana não é senão a expressão de uma lei natural e eterna, que nasce do próprio
lógos e plasma todas as coisas. O lógos, em virtude da sua racionalidade, estabelece o
que é o bem e o que é o mal e impõe obrigações e proibições. Neste sentido os estóicos são
os criadores do jusnaturalismo: a lei divina do próprio lógos divino que rege o universo e o
direito é um “dado de natureza” e o direito positivo humano (as leis) é a explicitação desse
fundamental direito natural. Lei (nómos) e natureza (physis) não mais se opõem, mas são
expressões das instâncias da physis.
Também o individualismo e o egoísmo com que Epicuro interpreta a natureza humana
são contestados pelos estóicos, pois o instinto de preservação, comum a todos os homens,
os levam imediatamente a dirigir-se aos filhos, aos parentes e mesmo a todos os seus
semelhantes. A natureza, impondo ser amada, impõe que amemos a quem geramos e quem
nos gerou e é a natureza que nos impulsiona a unir-nos aos outros e beneficiá-los.
De ser que vive fechado na sua individualidade, como queria Epicuro, o homem volta a
ser um “animal comunitário”, não exatamente o “animal político” que falava Aristóteles, que
visava antes de tudo o âmbito da pólis, mas uma comunhão com todos os homens, criando
assim um ideal cosmopolita, que não se confunde com o Estado, realidade ainda em processo
de formação, mas realmente com uma “comunidade”, que incluiria os sábios e mesmo os
deuses, para além de todas as divisões entre os homens. Os estóicos, mais do que qualquer
filosofia da antigüidade, rejeitou os ideais de nobreza de sangue e superioridade de raça,
bem como a escravidão: todos os povos e todos os homens são capazes de alcançar a
virtude e nenhum homem é por natureza escravo (como sustentou Aristóteles). O homem
verdadeiramente livre é o sábio e o verdadeiramente escravo, o tolo. O lógos estabeleceu,
pelo menos no nível do pensamento, a fundamental igualdade entre os homens.

As paixões e a apatia
Assim como para Epicuro, a dor e as falsas opiniões sobre os bens e os males eram o
que fundamentalmente podia perturbar o homem; igualmente para os estóicos, as paixões,
com suas causas e efeitos, são a fonte de toda infelicidade. Tratava-se de explicar como a
vida moral é cegada e a razão arrastada por motivos irracionais presentes em nós. A
solução de Sócrates foi associar a paixão a um erro de discernimento. Platão supõe que
estas forças não – lógicas são expressão da parte concupiscível da alma, rebelde à parte
racional. Já os estóicos, procurando explicar tudo a partir do lógos e da razão, vão levantar
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duas posições: a) é possível dizer que as paixões nascem por causa e em conseqüência de um
juízo errôneo; ou b) é possível até mesmo identificar a paixão com o próprio juízo errôneo.
Como as paixões são a mais grave ameaça à paz de espírito e à felicidade, é
necessário poder dominá-las inteiramente e em todos os casos com a razão. Zenão explicou
a paixão do seguinte modo: em conseqüência de uma determinada representação, por
exemplo, a da riqueza, manifesta-se me nós uma tendência que, se não controlada por um
lógos reto e forte, que a julgue como coisa indiferente (algo que não é bom nem mal e útil
tão somente na medida que é requerido pelas necessidades da vida), mas pelo contrário, é
justificada por um lógos fraco, que supervaloriza a riqueza, torna-se uma falsa opinião da
qual surge um movimento irracional na alma, contrário ao reto lógos, que faz surgir a
paixão: a cobiça e a avareza.
Zenão não identificou as paixões com os juízos, mas com as contradições, ampliações,
exaltações e depressões dos juízos, admitindo uma força não – lógica, capaz de
desenvolver-se, se a razão deixar o espaço livre. Já Crísipo faz a paixão coincidir com o
próprio juízo. Os estóicos distinguiam quatro espécies fundamentais de paixões: desejo,
medo, dor e prazer e uma série de sub – espécies subordinadas a estas quatro. O desejo
depende de uma falsa opinião, de um falso juízo sobre um mal futuro; a dor depende de
uma falsa opinião, de um falso juízo sobre um presumível bem presente. Ao desejo estão
ligadas as paixões como a ira, desprezo, irritação, ressentimento, rancor, cólera, avidez,
cobiça, ambição etc. Ao prazer, os gozos desenfreados e a má vontade; ao medo as
exitações, angústias, temores, terrores etc.; à dor ligam-se a inveja, ciúme, compaixão, etc.
Como as paixões são erros do lógos, não tem sentido para os estóicos moderá-las ou
circunscrevê-las, mas elas devem ser destruídas, extirpadas completamente! O sábio não
poder sequer deixar brotar as paixões no seu coração, mas as aniquilará no seu nascedouro.
Esta é a célebre apathéia dos estóicos, a apatia, a anulação e ausência de qualquer paixão,
que é sempre e somente perturbação da alma. A felicidade á a apatia, a impassibilidade.
Para os epicuristas a paz interior é proporcionada pela ausência de dor e
perturbação, que produz o prazer catastemático. Para os estóicos, as paixões são reduzidas
a erros da razão. Ambos, de certo modo, desconhecem ou negam aspectos fundamentais da
vida humana, pois a doença e a morte assinalam o fracasso da ética epicurista da aponia e a
maciça e sempre presença em nós do irracional assinala o fracasso da ética estóica da
apatia.

O ideal do sábio
Os estóicos foram os que melhor caracterizaram o homem perfeito, o sábio, como
alguém que vive em total sintonia com o lógos. Ele é o paradigma ideal no qual cada um deve
se inspirar. O sábio está revestido de todas as virtudes: ele não erra nunca, porque não
possui opiniões, mas ciência. O sábio faz bem tudo o que deve fazer, porque o faz com a
reta razão e o justo espírito. O sábio é grande, robusto, altivo e forte. Ademais, é rico,
nobre e belo: rico ainda que mendigo, nobre mesmo que servo e belo embora fisicamente
feio, porque possui a sua riqueza, nobreza e beleza no lógos. O sábio é livre porque quer
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tudo o que é necessário, suportando e querendo tudo que é querido pelo destino. O sábio
basta-se a si mesmo, porque no lógos possui tudo o que necessita. Pode ser feliz mesmo em
meio a tormentos, porque o lógos esvazia a dor. O verdadeiro absoluto da era helenística é
o ideal moral, encarnado na pessoa do sábio.
Nesta visão, no entanto, o ideal do sábio não admite qualquer via intermediária: ou se
é sábio ou se é tolo e entre os tolos, não há uma graduação hierárquica, as suas culpas são
sempre graves. No entanto, esta apatia de que se cinge o estóico é petrificante e
inumana: nela não há lugar para a piedade, a compaixão, a misericórdia, o perdão, pois estas
são paixões que o sábio estóico deve extirpar e a ajuda que dará aos homens é “asséptica”,
longe de qualquer simpatia, pois o lógos encontra-se longe do calor do sentimento e mover-
se-á entre os seus semelhantes com uma atitude de total distanciamento, quer na vida
pública, quer na família, quer nos relacionamentos diversos. O estóico não se entusiasma
com a vida, ao contrário do epicurista, que dela procura extrair o máximo prazer. Esta
indiferença frente à vida levou os estóicos a admitir o suicídio, caso o sábio encontrar-se
em condições excepcionalmente adversas ao exercício da virtude. A admissão do suicídio
inscreve-se nesta visão pessimista da vida, em que a pessoa eliminando e reprimindo todo
sentimento e paixão, perde quase totalmente a original e instintiva alegria de viver.
O estoicismo, depois de Crísipo, perdeu seu rigor e eficácia. Foi Panécio (185 – 98
a.C.) que nos últimos 30 anos do século II a.C. renovou seu antigo esplendor restituindo-lhe
a vitalidade, mas à custa da mudança do seu patrimônio doutrinal. Panécio abandonará o
dogma da conflagração universal (ekpirósis) e o Deus estóico tornava-se mais um regente
que artífice do universo, bem como negou a apatia e incentivou a participação política
incentivado pela realidade cívica que viu na nascente potência romana.
Outra figura importante do estoicismo neste período foi Possidônio (130 – 54 a.C.)
discípulo de Panécio. Dotado de uma vastíssima cultura, não fez acréscimos significativos na
doutrina de seu mestre, mas foi o responsável pela introdução da filosofia nos ambientes
romanos bem como procurou pôr a doutrina estóica em dia com o progresso da ciência.
Embora pouco estudado, foi considerado a mente mais universal que o mundo grego
conheceu depois de Aristóteles.
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O Ceticismo

Pirro de Élida (365/60 – 275/70 a.C.)


Pirro nasceu em Élida e tomou contato com a filosofia através de Fédon, discípulo de
Sócrates. No início viveu pobremente e exerceu, para viver, a pintura, passando depois à
filosofia, conhecendo as escolas de Megara e os atomistas. Pirro tomou parte na expedição
de Alexandre o grande (334-324 a.C), acontecimento que incindiu bastante sobre seu
espírito e em 324/3 a.C voltou a Élida, onde começou a ensinar filosofia e obteve sucesso.
Morreu entre 275/70 a.C, não tendo escrito nada, porém seu discípulo Tímon, fixou por
escrito as doutrinas pirronianas que serviram de base para a propagação de suas idéias.

Nascimento do movimento cético


Mesmo antes de Epicuro e Zenão fundarem suas escolas, Pirro já começara a difundir
o seu novo discurso, dando origem a uma corrente de pensamento destinada a criar uma
nova atitude espiritual que marcará para sempre a história intelectual do ocidente.
Durante sua vida, Pirro não chegou a fundar uma escola ou a acolher discípulos e
escreveu livros, mas quis retomar o exemplo de Sócrates, convencido de que através da
palavra e do testemunho de vida, poderia comunicar uma autêntica mensagem de sabedoria
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filosófica, tanto que seus seguidores, mais do que discípulos , foram admiradores e
imitadores, buscando no mestre uma vida feliz sem se prender a uma verdade e a uma
tábua de valores. O ideal de sabedoria e de sábio do ceticismo é o oposto do ideal de
Epicuro e dos estóicos: para estes, o sábio é alguém carregado de dogmas e certezas, que
podem ser ensinadas e a vida feliz só pode brotar da meta e da construção de uma tábua de
valores. Por isso prega o contrário: a sabedoria é a renúncia ao ser e à verdade, declarando
tudo vã aparência.
Esta postura tão original e na contramão da mentalidade grega, só pode ser explicada
levando-se em conta três fatores: a) o momento histórico no qual amadureceu o
pensamento de Pirro, de modo particular as conquistas de Alexandre e a derrocada da
cidade - estado grega; b) o encontro com o oriente, que revelou um tipo de sabedoria
totalmente desconhecido pelos gregos; c) os mestres e as correntes filosóficas gregas das
quais Pirro extraiu os instrumentos conceituais para a elaboração e formulação do seu
pensamento.
Como já foi dito, a conquista do oriente por Alexandre e a formação dos impérios
helenísticos, com a conseqüente derrocada da cidade – estado grega, levou a uma profunda
ruptura da identificação do homem com o cidadão, a equiparação entre os gregos e os
bárbaros, o cosmopolitismo, o individualismo, a difusão da cultura grega e a assimilação por
esta de outras culturas do oriente. Pirro pôde participar pessoalmente deste processo, ao
engajar-se na grande expedição de Alexandre, razão pela qual o ceticismo foi o que mais
sofreu o violento impacto das novas realidades e configurou-se numa filosofia de ruptura,
pois vive-se a perda das verdades garantidas até então e ainda não se consegue encontrar
outras.
Entre as várias experiências pelas quais Pirro passou, seguindo Alexandre e que o
influenciaram de diversos modos, uma foi de grande importância: o encontro com os
gimnosofistas, espécies de sábios da Índia, que levavam uma vida monástica, voltada à
superação das necessidades humanas, ao exercício da renúncia das coisas e a conquista da
impassibilidade, em tudo muito semelhante aos ideais da filosofia cínica. De modo especial a
imolação de Calano, um sábio indú que voluntariamente se faz queimar vivo, demonstrou a
Pirro a idéia que veio a se tornar comum no período helenístico, que o sábio pode ser feliz
mesmo em meio aos maiores tormentos e da irrealidade de tudo que parece real.
Os fatos até agora narrados influenciaram nosso filósofo ao nível da intuição
emocional; porém os instrumentos conceituais dessa intuição vieram a Pirro de algumas
escolas gregas, de modo particular a atomista e a megárica. A influência do atomismo lhe
chegou por Anaxarco, que foi seu companheiro na expedição de Alexandre, pois os
atomistas já apresentaram algumas posturas que vieram a ser fundamentais no ceticismo,
como a crítica aos sentidos e do conhecimento sensível. Do atomismo e do megarismo Pirro
pôde extrair uma série de conceitos e deduções que postos a serviço da nova intuição do
sentido da vida e das coisas, emocionalmente colhida e amadurecida durante a expedição de
Alexandre, geraram o seu ceticismo.
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A radicalidade de Pirro está em não só rejeitar a dimensão metafísica da realidade, o


mundo espiritual, que foi a descoberta de Platão e Aristóteles, como também a rejeição da
dimensão física que fora intentada pelos pré – socráticos, os epicuristas e os estóicos.
Segue-se daí que não existem valores e nada é por natureza feio ou belo, bom ou mau, justo
ou injusto, pois tudo se equivale indiferentemente. Pirro rejeita qualquer forma de
ontologia. Do ser, só temos acesso às aparências, logo é impossível qualquer juízo sobre ele.
Não o ser que domina, mas o puro aparecer. Pirro suprime o problema do ser e da
substância pela raiz: afirma o absoluto domínio das aparências, que “cada coisa é e não é”,
rejeitando o princípio da não contradição, esboçado por Parmênides e formulado por
Aristóteles e toda a ontologia constituída até então.
Os sofistas, que negaram o ser e a verdade, deslocaram para o homem a sua
confiança. Protágoras proclamou como critério e medida o homem e seu lógos, Górgias, que
negou o valor ao lógos, proclamou como critério a palavra. Mas Pirro não tem mais
confiança nem sequer no homem e portanto no lógos e na palavra, porque sente sua
nulidade.
Se o ser não é mais o critério e se critério não pode ser sequer o homem, onde
buscar o critério? A resposta de Pirro é: - em parte alguma! O critério é a renúncia ao
critério, ou melhor, a renúncia a ambos os tipos de critério, o que terá uma série de
conseqüências e fará emergir, no limite, um critério completamente diferente.
Para Pirro, se alguém deseja ser feliz, deve considerar essas três coisas: 1) em
primeiro lugar, qual é a natureza das coisas; 2) em segundo lugar, de que modo devemos nos
dispor diante delas; 3) em terceiro lugar, o que resultará aos que se encontram nessa
disposição. Ora, quanto às coisas, estas são igualmente indiferentes, imensuráveis e
indiscrimináveis e, por isso, nem as nossas sensações, nem as nossas opiniões podem ser
verdadeiras ou falsas. Quanto ao modo de nos dispor diante delas, não devemos lhes dar
confiança, é preciso ser sem opinião, sem inclinação, sem agitação, afirmando que cada coisa
que é, não é mais do que a que não é, que vale tanto uma como a outra ou que ambas nada
valem. O resultado desta posição é em primeiro lugar a afasia e depois a ataraxía.
Dos três fundamentos do pirronismo fixados acima, o mais difícil de interpretar é o
primeiro, que também é o mais importante. Quer Pirro dizer que as coisas em si mesmas
são indiferentes, imensuráveis e indiscerníveis ou são tais não em si mesmas, mas só para
nós? A indiferença das coisas é subjetiva ou objetiva? A grande maioria dos intérpretes
acreditou que Pirro quis dizer, simplesmente, que nós homens não temos instrumentos
adequados (sentidos e razão) para alcançar e captar as diferenças, as medidas e as
determinações das coisas. Na realidade, o texto aparece afirmar o contrário: são as
próprias coisas que são indiferentes, imensuráveis e indiscriminadas e justamente em
conseqüência disso, sentidos e opiniões não podem dizer nem o verdadeiro, nem o falso das
coisas. São as coisas, que sendo como se disse que são, tornam os sentidos e a razão
incapazes de verdade e de falsidade. Essa é uma conseqüência necessária, que brota da
negação do ser, do eidos e da substância, é a posição que resulta da rejeição da ontologia
platônica e aristotélica.
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Os valores éticos e, em geral, todos os valores, assim como todas as coisas, não tem
uma estatura ontológica, justamente porque nada existe na verdade. Em lugar do ser, põe-
se como determinante a convenção, o hábito, o costume. Ao ser, substitui-se pelo aparecer
ou a aparência que se torna assim o dominante. Esta aparência ou fenômeno para os céticos
posteriores foi entendido como aparência de uma coisa que existe além do aparecer, como
uma “coisa em si” e desta dedução foram tiradas conseqüências que não estavam
presentes nas proposições de Pirro. Não se deve, pois, confundir o fenômeno com a pura
aparência. O fenômeno manifesta alguma coisa, remete para algo além do fenômeno, a um
não – manifesto. Ele supõe a oposição do que aparece e do que não aparece, do imediato e
do não imediato, do evidente e do escondido, como algo que remete para além, a um outro
lado, dimensão ou realidade. Esta noção não é original de Pirro; é muito mais próxima de
Platão, para quem o sensível manifesto é expressão de um inteligível oculto, de um ser
escondido, mas passível de ser desvelado e oferecer-se em última análise ao pensamento.
Porém isso parece ter tido a intenção oposta, não distinguir o aparente e o escondido, mas
pelo contrário a afirmação da aparência e tão somente da aparência como o único possível,
na sua fragilidade e fugacidade. Mas Pirro não chegou a dissolver tudo na aparência pura e
universal, pois se tudo se dissolve na pura aparência, sem deixar qualquer resíduo, isto não
me levaria à dúvida, mas à certeza: tudo se dissolve na pura aparência! Ora, esta é uma
afirmação dogmática que é a negação do princípio universal do ceticismo, que é a dúvida.

A abstenção do juízo (epoché) e a indiferença (ataraxía)


Se as coisas são indiferentes, imensuráveis e indiscerníveis e se, por conseqüência,
sentido e razão não podem dizer nem verdade nem falsidade, a única atitude correta que o
homem pode ter é a de não conceder nenhuma confiança nem aos sentidos, nem à razão,
mas permanecer adoxástos, vale dizer, sem opinião, ou seja, abster-se do juízo, pois o
opinar é sempre julgar, e consequentemente, permanecer sem qualquer inclinação e
permanecer sem agitação, ou seja, não deixar-se abalar por qualquer coisa, vale dizer,
ficar indiferente.
Essa abstenção do juízo é expressa com o termo epoché, que parece ter surgido nos
céticos posteriores a Pirro, muito embora ele já usasse o termo “abstenção do juízo”. A
posição de Pirro é esta: “é precido não ter opinião, afirmando de cada coisa que é, não mais
do que não é, ou que é e que não é, ou ainda que nem é nem não é. Os que se põe nesta
disposição conseguirão em primeiro lugar a afasia”. Aquilo que no plano teórico se expressa
pela ausência de juízo, no plano prático é a indiferença pelas coisas. Pirro deixava todas as
coisas seguirem o seu curso natural e não tomava qualquer precaução, mas mostrava-se
indiferente diante de qualquer perigo que lhe ocorresse e absolutamente nada concedia ao
arbítrio dos sentidos. Eram seus amigos, a acompanhá-lo, a salvá-lo dos perigos.
Várias vezes na Metafísica, Aristóteles reafirma que quem nega o supremo princípio
do ser, para ser coerente com tal negação, deveria calar e não exprimir absolutamente
nada. Não sabemos se Aristóteles visava Pirro com esta afirmação, já que os dois são
contemporâneos, mas tal é precisamente a conclusão que ele tira, ao proclamar a afasia,
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que não é o não falar em absoluto, mas o não falar, o calar sobre a natureza e o ser das
coisas, o não julgar, o dizer “é” ou “não é” sobre o que quer que seja. A afasia será pois
uma atitude típica de todo ceticismo. O afastamento das coisas, que alcança o momento
culminante na afasia, comporta a ataraxía, vale dizer, a falta de perturbação, a paz
interior, a vida feliz, o fim da sabedoria cética é a conquista da apatia, no sentido de
insensibilidade. A pessoa não se perturba porque nem sequer sente. Trata-se de uma
reforma da própria sensibilidade, uma mudança no modo de receber as impressões.
Habitualmente não nos detemos nas impressões como simples aparências, mas nós as
consideramos e as interpretamos e deixamos que elas produzam efeitos em nós. Mas se as
considerarmos elas mesmos como pura sensação, nos desvencilhamos do universo de
significados erigido por nós pelo nosso juízo e como tal, elas se tornam mudas, sem
expectativas e sem memória. Então prazer e dor, afecções de todo o gênero, são sentidos
menos intensamente, perdem aquela concentração que lhes dá o espírito, enfraquecem e
diluem, numa arte mental de reduzir a dor, como faziam os sábios indús que tanto
impressionaram Pirro. Alguém que sente diversamente dos outros homens, que traz uma
insensibilidade ao que se costumava sentir e portanto uma sensibilidade nova, não era algo
conhecido; trata-se de uma forma de vida completamente nova na Grécia de então, algo
que era mais que uma doutrina, mas um princípio de ação (ou inação) que despertou estima e
admiração, um outro modelo de sábio.

Plotino e o Neoplatonismo

Plotino (205-270 d.C)


Plotino tinha 28 anos quando se tornou discípulo de Amônio Sacas e logo se destacou
pela sua capacidade, que absorveu não só a sabedoria do mestre, com quem conviveu por 11
anos, como teve experiência direta da filosofia dos persas e dos indus, como nos conta
Porfírio na sua “Vida de Plotino”, pois os gimnosofistas e os magos do oriente eram então
reconhecidos como uma das principais fontes do saber. Toda a formação de Plotino se deu
em Alexandria.
Em 243 d.C o imperador romano Gordiano decidiu empreender uma expedição ao
oriente e Plotino resolveu acompanhá-la, para entrar mais em contato com a sabedoria
oriental. A expedição foi um fracasso e Plotino quase perde a vida. Com muita dificuldade
chega a Antioquia e daí decide seguir para Roma em 244.
Por um decênio (244-253 d.C) ele ensinou, adotando o estilo de seu mestre Amônio
Sacas, dando àqueles que o freqüentavam amplo espaço para a discussão e a pesquisa direta
e, procurando manter-se fiel ao mestre, não escreveu nada. Foi só a partir de 254 d.C que
Plotino começou a escrever. Quando Porfírio chegou a Roma em 263, ele já havia composto
10

21 tratados. Compôs outros 24 entre 264 e 268 e os 9 restantes até sua morte em 270.
Conta-se que escrevia de um só jeito, de maneira contínua e muito regular, como se
estivesse copiando um livro e assim interminavelmente. Seu ato de compor era como se
conversasse por escrito em vez de falar. Foi Porfírio que organizou e emendou os diversos
tratados e como Plotino não os tinha escrito numa ordem sistemática rígida, Porfírio os
reuniu por temas e influenciado pelo misticismo dos números dos pitagóricos, divide os 54
tratados em seis grupos de nove cada um. Nasceram assim as Enéadas (enéa em grego é
nove), que juntamente com os diálogos de Platão e os escritos de Aristóteles, contém a
mais alta mensagem filosófica da antigüidade e uma das mais notáveis de todos os tempos.
A escola de Plotino não se assemelhava a nenhuma das anteriores. Ele conquistou tal
respeito junto à classe nobre, que muitos confiavam-lhe os filhos para educar e os bens
para administrar, como um verdadeiro guardião do sagrado e do divino. Acorriam a ele
também políticos com o propósito de resolver desavenças, pois confiavam nele como um
árbitro infalível. Até o imperador de então o freqüentava e chegara a cogitar a criação de
uma “cidade dos filósofos”. O projeto entretanto fracassou.
No entanto, ao contrário de Platão, Plotino não alimentava propósitos políticos de
qualquer espécie, não queria uma reforma da sociedade, mas tão somente construir um
oásis de paz, uma cidade feita para filósofos, feita para quem desejava viver a vida numa
comunidade que tornasse possível alcançar o fim supremo, ou seja, a união com o Divino.
A qualquer um era permitido freqüentar suas reuniões, sejam ouvintes ocasionais e
curiosos, sejam seguidores e discípulos fiéis, entre eles algumas mulheres, todos dedicados
à vida filosófica; contudo, bem poucos tinham acesso aos escritos do mestre e só o faziam
depois de terem demonstrado possuir determinados requisitos intelectuais e morais.
Plotino aspirava com sua escola ensinar os homens a libertar-se da vida deste mundo para
reunir-se ao Divino e poder contemplá-lo até o ápice de uma união estática transcendente.
A finalidade da nova escola era religiosa e mística. Suas últimas palavras foram: “Procura
reunir o divino que está em ti ao divino que está no universo”.

A retomada de Platão e do mundo espiritual


Plotino pressupõe os cerca de oito séculos de especulação precedentes e só pode ser
compreendido levando-se em conta as mudanças do pensamento antigo neste período.
Certos elementos do pitagorismo, bem como a doutrina dos princípios supremos da Mônada
e da Díade, constituem um componente importante na formação de Plotino. A Parmênides
ele deve a identidade entre ser e pensamento e a sua concepção própria de Espírito. De
Platão ele deve quase tudo, principalmente os elementos místico – teológicos e metafísicos,
de modo especial os diálogos: Fedon, Fedro, Banquete, Timeu os livros centrais da
República, aspectos do Sofista, Parmênides, Filebo e a IIª carta. Já as doutrinas de
Aristóteles são muitas vezes criticadas, como sua explicação do Motor Imóvel, a natureza
da alma, a doutrina das categorias. Do Estoicismo ele critica sua concepção materialista de
Deus e da alma, mas aceita a doutrina da simpatia universal, bem como conceitos morais,
orientando-os numa direção espiritualista e mística.
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A filosofia de Plotino seria impensável fora do ambiente cultural de Alexandria, tal


como se formou entre os séculos I e II d.C.: a influência hebraica, através de Fílon, o
pitagorismo e a escola platônica de Amônio Sacas. No entanto, mesmo sob tantas
influências, seu pensamento não é um ecletismo ou sincretismo, mas ele consegue dar um
sentido novo, original e completo a todo o material que lhe chegou.
Para se compreender Plotino é necessário ter-se em conta todo o esforço do médio
platonismo, que veio a colocar em crise o materialismo das escolas helenísticas,
recuperando a dimensão espiritual da realidade. Aquilo que Plotino parece falar de modo
infundado, estava bastante aceito e justificado pelos seus predecessores, considerando
aquilo como verdade estabelecida. Foi graças aos esforços dos médio – platônicos e
neopitagóricos que foi possível a Plotino subir às alturas que chegou, ainda que não se
considerasse mais que um intérprete de Platão. Ele não cita nenhum autor contemporâneo,
nem mesmo Amônio Sacas, a quem deve tanto quanto Platão devia a Sócrates.
Quanto à influência das doutrinas indus e persas sobre Plotino, muito tem-se
discutido, mas hoje tende-se a minimizá-la, já que todo contato foi indireto e mesmo a
doutrina da emanação, tão importante em Plotino, é bem diferente das elaborações da
filosofia indu. Quanto à influência de Fílon de Alexandria, esta é mais notável, como a
concepção de Deus, das atividades divinas criadoras do cosmo sensível, bem como a
concepção da união mística com Deus.
Plotino igualmente travou relações com cristãos, mas rejeita terminantemente
certos princípios fundamentais do cristianismo, como a idéia de que Deus possa se fazer
homem e a ressurreição. Plotino, ao contrário, quer que o homem se faça Deus e para tanto
bastariam as forças do próprio homem. A união mística com Deus não acontece para ele
como fruto de uma graça sobrenatural, mas a partir das energias espirituais próprias do
homem, no seu retorno ao absoluto.
O pensamento plotiniano gira em torno de seis eixos:
1) A tese fundamental reside na nítida distinção entre o mundo sensível e o mundo
inteligível, entre o ser corpóreo e o incorpóreo.
2) O segundo eixo reside na determinação do incorpóreo em função do esquema triádico, ou
seja, em função da teoria das três hipóstases, que são o Uno, o Nous ou Espírito e a
psyché ou alma.
3) O terceiro eixo consiste na determinação exata da relação que une as três hipóstases, a
saber, do processo segundo o qual a segunda deriva da primeira e a terceira da segunda. O
grau mais elevado produz o mais baixo sem se diminuir e se empobrecer. Esta doutrina é
chamada emanação, embora o termo mais adequado deva ser processão.
4) Estritamente unida à doutrina da processão das hipóstases está a doutrina segundo a
qual a matéria sensível não constitui por si mesma um princípio subsistente, mas procede da
última das hipóstases. Por conseguinte, o mundo sensível é inteiramente “deduzido” do
supra – sensível.
5) Como nenhum outro dos metafísicos gregos, Plotino preocupa-se em fundar a unidade de
toda a realidade: O Uno está em tudo e tudo está no Uno; cada um dos lugares
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inferiores está no superior e é produzido e sustentado por ele. Com isso, as hipóstases
supra – sensíveis são unificadas e o mundo sensível é envolvido pelo incorpóreo, até chegar
a esta paradoxal afirmação: não é a alma que está no corpo, mas é o corpo que está na alma,
não é o supra – sensível que está no sensível, mas o contrário.
6) Neste contexto ontológico no qual tudo procede do Princípio, nada é estranho ao
Princípio, já que nada lhe é contraposto, sendo igualmente possível um retorno ao Princípio,
uma reunificação plena e total com o Princípio, em que o homem pode realizar-se mesmo
quando ainda está nesta vida, pela união mística, no êxtase. O homem pode desprender-se
do mundo exterior e reentrar em si mesmo, tomar posse do seu eu verdadeiro, que é a
alma, já que a alma deriva do Espírito e o Espírito do Uno e assim a alma pode retornar ao
Uno. Esse princípio revoluciona a escala tradicional de valores, transformando a ética em
ascese espiritual, pondo a felicidade, o fim último do homem, na união extática com o
Divino.
Toda esta construção acaba por não ter uma adequada fundamentação e justificação,
pois Plotino não demonstra, mas apenas afirma os eixos que haviam sido estabelecidos pelos
dois séculos anteriores. Quanto ao primeiro eixo, de que há substâncias incorpóreas, isto é
assumido sem discussão por Plotino, já que em sua época, isto era tido como algo
inquestionável. Quanto ao segundo eixo, sobre a existência de hipóstases (a existência de
uma hierarquia no plano do incorpóreo) é igualmente assumido sem discussão. O que é
problemático é quantas são estas hipóstases (contra os gnósticos por exemplo que
multiplicam os “éons” em até trinta), pois precisa afirmar que estas são três: O Uno, que
está acima do ser e da essência, o Espírito que é a unidade do ser e pensamento e a alma.
O terceiro eixo, as relações entre as hipóstases, é o mais longamente discutido,
principalmente o segundo princípio, de como as hipóstases vão procedendo uma da outra e
da última procede o mundo sensível.
De um modo geral, todo o pensamento de Plotino só se torna inteligível, se for
situado no clima espiritual do seu tempo, em que os valores religiosos voltaram a estar em
voga e Plotino não faz mais do que dar a este clima um fundamento especulativo adequado.
Note-se que esta é também uma época em que o cristianismo e outras religiões orientais
experimentam grande difusão do império romano.

O método de Plotino
É chamado “dialético”, no seu sentido platônico e não aristotélico ou estóico, o qual
certo modo, visa libertar o homem dos laços com o mundo sensível, fazendo-o subir ao
mundo inteligível, e este uma vez alcançado o mundo inteligível, podem eleva-se de degrau
em degrau à realidade suprema, ao Princípio, à Causa última.
As fases da dialética são duas: a primeira consiste em passar do sensível ao
inteligível e a segunda consiste em subir, de degrau em degrau, no mundo inteligível, até
chegar a tocar o ápice do inteligível. Fala-se em duas fases, mas depois distingue-se uma
terceira, na medida em que dentro do âmbito do inteligível, há o caminho no mundo do
Espírito e o momento em que se chega ao termo da viagem, à sua conclusão no êxtase.
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Para cumprir este itinerário, é necessário determinar que tipo de homem é capaz de
cumprí-lo. Segundo Plotino, tais homens são de três espécies: os que tem natureza de
músico, os que tem natureza de amantes e os que tem natureza de filósofo. Trata-se de
homens que aspiram ao imaterial e são capazes de se separar do sensível. Ao que tem
natureza de músico, é necessário ensinar-lhe a passar dos sons sensíveis e da beleza
sensível, à beleza espiritual, que é superior, ensinando-o as razões da filosofia. Ao que tem
natureza de amante, deve-se ensinar-lhe a passar além das belezas corporais, para a beleza
das coisas incorpóreas e assim subir ao mundo do espírito. O homem de natureza filosófica
já cumpriu esta separação e está pronto para o caminho ulterior.
A dialética consiste em exprimir-se com razão, sobre cada coisa, o que ela é, como é
diferente as outras e o que elas têm em comum entre si; sobre o que é o ser e quantos são
os seres; o que é o bem e seu contrário. O que é o eterno e o que não é, em tudo
precedendo segundo a ciência e não segundo a opinião, alcançando o domínio do inteligível, a
“planície da verdade” de que falava Platão, determinando a essência de cada objeto até
alcançar os gêneros supremos. Após ter percorrido todo o campo do inteligível, fazer o
caminho inverso, e com muita tranqüilidade, gozar e apreciar cada um dos elementos vistos
em seu real significado.
Esta ciência não depende do mundo exterior e não parte da sensação, mas do
Espírito, pela mediação da alma. Os princípios são dados pelo próprio Espírito e são
evidentes, desde que se saiba acolhê-las juntamente com a alma, a qual depende do
Espírito. A dialética tira desses princípios todas as conseqüências, entrelaçando-os e
separando-os até captar a trama de relações que constitui o mundo do Espírito, e o próprio
Espírito.
Esta dialética não é um puro método de pesquisa, um puro instrumento, mas é
também um processo de elevação moral, é uma subida, uma conversão. A dialética não pode
existir sem a virtude, principalmente as virtudes superiores, que não dependem do corpo,
mas que se identificam com o Divino. A dialética plotiniana desemboca na mística.

O Sistema do Plotino

I – A primeira hipóstase: O Uno


Plotino empreende uma reforma radical na metafísica de Platão e Aristóteles. O
princípio último do real, para Aristóteles, era a essência (ousía) e a inteligência do Motor
Imóvel; para Plotino, ao contrário, o princípio é ainda ulterior, é o Uno, o qual está para
além do ser e da essência, para além da inteligência; é o Uno que transcende a própria ousía
e o próprio Nous. Plotino retoma e leva às últimas conseqüências o núcleo central das
“doutrinas não escritas” de Platão.
O Uno é o fundamento e o princípio absoluto de todo ser, pois cada coisa é o que é
em virtude da unidade e se esta se quebra, a coisa deixa de subsistir. Negada a unidade, o
próprio ser da coisa é negado. Todos os entes físicos recebem a sua unidade da alma, que é
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justamente uma atividade plasmadora, formadora e coordenadora de todas as coisas


sensíveis e neste sentido, é a causa e fundamento da sua unidade. A alma confere a
unidade, mas não coincide com a unidade. A alma tem um grau de unidade por obra do outro,
do Nous, do Espírito e do Ser. Por sua vez, o Ser e o Espírito, apesar de gozarem de um
grau de unidade superior ao da alma, não são o Uno, porque implicam multiplicidade (a
totalidade das realidades inteligíveis), bem como o Espírito implica o pensante e o pensado,
uma dualidade. A raiz da unidade é portanto algo que transcende o próprio Nous, algo livre
de qualquer pluralidade: é o Uno em si.
Para resumir: ao buscar o fundamento das coisas, que é a unidade, somos obrigados a
subir do mundo físico à alma (que é a hipóstase mais baixa) e logo, da alma (que tem mas
não é unidade) ao Espírito (que tem uma unidade mais elevada do que a alma, mas é múltiplo
também ele) a um princípio ulterior, absolutamente simples, o Uno, que é a hipóstase
primeira, o Princípio imprincipiado, o Absoluto.
A característica fundamental do Uno é a infinitude. Ora, na filosofia grega anterior,
a infinitude denotava imperfeição, incompletitude, enquanto a finitude estava associada
com o perfeito. Mas o infinito de Plotino não é concebido segundo categorias espaço –
tempo – matéria, mas segundo a dimensão do imaterial. É um infinito que não pode ser
quantificado, não é extensão real (não é corpo), mas potência ilimitadamente produtora.
Potência esta, não no sentido aristotélico, como algo que possui matéria, mas como
atividade, energia espiritual infinita e criadora, pois o Uno é criador de si mesmo e de
todas as coisas.
A potência, por conseguinte, coincide com a força ativa, com a atividade, com a
energia, com o ato puro, com o ato metafísico primeiro e supremo. Compreender o Uno como
potência infinita significa compreendê-lo como energia espiritual infinita e criadora. As
conseqüências da postulação de uma “infinito imaterial” são os seguintes: Em primeiro lugar,
o uno não poderá ser compreendido como Idéia, no sentido platônico, porque a forma, a
essência, implicam para Platão finitude e limitação. Não pode ser compreendido como a
ousía aristotélica, pois esta é imóvel e separada, finita e determinada. Deste modo, o ser
da idéia ou da ousía era um ser finito e por isso Plotino coloca o Uno acima do ser e acima
do pensamento. Esta é uma nova concepção da transcendência, com vagos antecedentes na
cultura grega mas ancorado em Fílon de Alexandria. Aqui o princípio supremo não somente
transcende o mundo físico, mas também a toda forma de finitude, como haviam concebido
Platão e Aristóteles.
Por conseguinte, Plotino tende a dar ao Uno determinações prevalentemente
negativas, até por fim declará-lo inefável (o que não pode ser dito por palavras), pois
qualquer coisa que se diga, sempre se exprimiria como “alguma coisa”. Mas o Uno é dito além
do Todo, além do Espírito e como tal, o termo que melhor lhe cabe é o de inominado, pois
não sabemos dizer nada a seu respeito.
Características positivas do Uno – O Uno, referindo-se ao Princípio, não significa um uno
particular, uma unidade determinada, mas o Uno – em - si, a causa e a razão de todas as
outras coisas. O Uno significa o Absolutamente simples, que é razão do ser complexo e do
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múltiplo. Simplicidade aqui não denota carência, mas ao contrário, potência e riqueza
infinita, potência de todas as coisas, no sentido de que por si mesmo, ele as leva ao ser e no
ser as mantém.
O outro termo que Plotino usa para designar o Princípio absoluto é Ágaton, isto é,
Bem, que igualmente não é um bem particular, mas o Bem-em-si, ou, se assim o quisermos,
não é algo que tem o bem, mas que é o próprio Bem. O Princípio não é bem para si, no
sentido de que não pode ser bem para proveito próprio, já que não tem necessidade de
nada, mas é o bem para todas as outras coisas que dele têm necessidade. É um Bem
absolutamente transcendente.
Quando Plotino diz que o Uno está acima do ser, do pensamento e da vida, não é no
sentido de que é um não – ser, não –pensamento, sem vida, mas um princípio do qual derivam
o ser, o pensamento e a vida e que certamente é superior a esses seus produtos. Em
resumo, o Uno subsiste não ao modo do ser das idéias e das essências, pois estas são um
ser principiado e múltiplo. O pensamento do Uno transcende a nossa possibilidade de
determiná-lo e de compreendê-lo, tanto que Ele não tem consciência de si, da mesma
maneira que o Espírito, bem como se nega que o Uno seja inconsciente Ele tem de si mesmo
um único e simples ato intuitivo dirigido ao seu conteúdo.
O Absoluto plotiniano tem um pensamento que é meta – pensamento, tem uma
intuição que é meta-intuição, tem uma vida que é meta – vida, também tem uma volição que é
meta – volição.
O Uno como atividade livre autoprodutora – o Uno é a razão de ser de tudo que vem
depois dele, e é tal justamente por ser aquele que é. Assim se coloca a pergunta: Por que o
Uno é o que é? Desde logo deve-se excluir que Ele seja por acaso ou por acidente,
existem as coisas do mundo sensível, sujeitas à circunstância do devir. Nem ainda Ele pode
existir por uma livre escolha, porque Ele está para além da possibilidade das escolhas. Nem
se pode dizer que Ele exista por necessidade, porque a necessidade é posterior a Ele e Ele
é a lei da necessidade para as outras coisas. Igualmente não se pode falar d’Ele como de um
Ser, uma essência, uma natureza e explicar sua atividade em função de sua natureza, pois
como sabemos, Ele transcende o ser, a essência e a atividade e é dito tal só em sentido
analógico. Ser e operar coincidem no Absoluto: o primeiro Princípio se auto – coloca, cria a
si mesmo, é atividade auto – produtora.
Nele a vontade corresponde ao seu ato e portanto ao seu ser. Ele é vontade de ser o
que é, é liberdade total e absoluta. Ele quer ser o que é, porque é o que há de mais elevado,
é o valor supremo.
A processão de todas as coisas do Uno – Por que e como do Uno derivam as outras
coisas? Por que o Uno, satisfeito consigo mesmo, não permaneceu em si mesmo? Para
responder ao problema, Plotino se vale, repetidamente, de imagens esplêndidas, mas que
podem permanecer ambíguas, se não forem explicitadas conceitualmente. A mais célebre é
a da luz. A derivação das coisas do Uno é representada como o irradiar-se de uma luz,
desde uma fonte luminosa, na forma de círculos sucessivos que pouco a pouco diminuem de
luminosidade enquanto a própria fonte permanece sem empobrecer-se, mesmo no seu
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difundir-se em torno de si. O primeiro círculo luminoso depois da fonte de luz é o Nous ou
Espírito, ou seja, a segunda hipóstase; o círculo sucessivo é a Alma, ou seja, a terceira
hipóstase. O círculo que vem depois assinala o momento do apagar-se da luz e simboliza a
matéria, que tem necessidade de uma irradiação de fora. Outras imagens que Plotino usa
são a do fogo que difunde o calor, a substância perfumada que espalha o odor e o ser vivo,
que ao atingir a maturidade, procria.
Foi a partir dessas imagens que os intérpretes falaram de um imanatismo, ou mesmo
panteísmo ou monismo em Plotino. Na realidade o assunto é mais complexo do que estas
fórmulas podem sugerir e depois de haver determinado a interpretação de todo o sistema
plotiniano, será possível compreender em todas as suas múltiplas valências, o que
verdadeiramente significa a “processão a partir do Uno” plotiniana. O que pode se extrair
das imagens é o seguinte: o Princípio permanece e permanecendo, gera no sentido de que o
gerar não o empobrece, não o diminui, não o condiciona. O que é gerado é inferior ao que o
gerou e não serve ao que o gera; o que é gerado tem necessidade daquele que o gera, e não
o contrário.
Plotino distingue dois tipos de atividade do Uno: a) atividade do ser e b) a atividade
que deriva desde o ser: e primeira é, por assim dizer, imanente ao ser, ao posso que a
segunda sai do ser e se dirige para fora. Em outros termos, a atividade do ser coincide com
a realidade singular, enquanto a atividade que deriva desde o ser se dirige a outro. Ora,
aplicando essa distinção ao Uno, deve-se falar: a) de uma atividade que deriva desde o Uno
é a que faz ser, o mantém e o faz permanecer; b) ao invés, a atividade que deveria desde o
Uno é a que faz com que o Uno “derive” ou melhor, “proceda” outra realidade. É claro que
atividade desde o Uno depende estruturalmente da atividade do Uno.
Todas as coisas procedem do uno porque o Uno é o que é, ou seja, infinita força que
transborda; mas vimos também que a atividade do Uno consiste justamente em querer ser o
que é, ou seja, na liberdade de ser o que é, de modo que a atividade que procede desde o
Uno (ou seja, a pretensa “emanação”) constitui uma necessidade de certo modo submetida à
vontade, ou seja, uma necessidade em certo sentido submetida à vontade, ou seja, uma
necessidade posta por um ato livre, ou melhor dizendo como conseqüência de um ato livre: a
vontade do Uno de ser sua própria natureza é a causa direta da emanação desde a sua
natureza e que portanto, em certo sentido, a criação é livre, nem mais nem menos de quanto
o seja o próprio Uno. A criação (a processão) é uma necessidade que se segue a um ato de
liberdade.

II – A segunda hipóstase: o Nous ou o Espírito ou Inteligência


A geração das hipóstases implica uma atividade ulterior, sem a qual elas não
poderiam subsistir. Trata-se da atividade do “voltar-se” para o princípio do qual cada uma
das hipóstases deriva, para “olhá-lo” e para “contemplá-lo”, numa “atividade contemplativa”.
A segunda hipóstase, ao ser gerado pelo Uno, é ainda indeterminada e informe, e por isso
deve “olhar” e “contemplar” o Uno, para então gerar o mundo das formas, bem como
contemplar-se a si mesma, ao ser fecundada pela contemplação do Uno.
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Este produto indeterminado e informe do Uno (antes que se volte para contemplar o
Uno), é chamado por Plotino “alteridade inteligível”, “matéria inteligível” e também
“primeiro movimento”, ou seja, movimento inteligível. Essa matéria, esse movimento
inteligível, não é senão o pensamento indefinido, que se determina exatamente voltando-se
para o Uno.
Assim como em Pitágoras e em Platão, o produto do Uno é a Díade indefinida, a qual,
reunindo-se com o Uno, gera as Idéias. Isto significa que: a) o que o Uno produz não é mais
o Uno, mas a Díade, já que o pensamento pressupõe o objeto do pensamento, o que implica
uma dualidade; b) essa dualidade indeterminada se determina ulteriormente voltando-se
para o Uno, gerando deste modo o mundo das idéias e tornando-se, como veremos, Espírito.
O Espírito não é simplesmente a potência que procede do Uno, mas que esta potência, para
ser Espírito, deve “voltar-se” para o Uno e contemplá-lo sem ser ainda Espírito, mas sim
causa e condição que o faz ser. Plotino destingue dois momentos: a) o “voltar-se” da
potência ao Uno, o qual fecunda, enche e plenifica a potência e, b) o “refletir-se” dessa
potência sobre si mesma já fecundada. Estes dois momentos, distingüíveis logicamente, mas
não cronologicamente, espelham as duas faces do Espírito. a) No primeiro momento, nasce a
substância, a essência, o ser (ou seja, o conteúdo do pensamento); b) no segundo momento,
nasce o pensamento, verdadeira e propriamente dito. Essa duplicidade de momentos explica
igualmente o nascimento do múltiplo: não somente a dualidade pensamento – pensado, mas
também a própria multiplicidade do conteúdo (a multiplicidade das idéias).
O nascimento da segunda hipóstase é o nascimento de um múltiplo, ou dito de outra
maneira, de um Uno – muitos, não só no sentido de que o Espírito é Inteligência e
Inteligível, mas ainda no sentido de que o inteligível é multiplicidade, ainda que unificada. O
Espírito não pensa o Uno, mas pensa a si mesmo como pleno e fecundado pelo Uno. O mútiplo
só nasce no interior da segunda hipóstase, no sentido de que o Espírito não vê o Uno como
múltiplo, mas vê-se a si mesmo como múltiplo.
O Espírito como Ser, Pensamento e Vida – O Uno é a potência de todas as coisas; o
Espírito por sua vez é “todas as coisas”. Mas o que significa isto? O Espírito plotiniano é a
união indivisível de Ser e Pensamento, de Inteligível e de Inteligência. O Espírito, para
Plotino, é o Ser puro de Platão, o Ser que é plenamente, o Pensamento do pensamento do
qual falava Aristóteles. No entanto, diferentemente de Aristóteles, que via o lugar das
formas na inteligência humana, Plotino reivindica para elas uma estrutura transcendente,
fazendo da Inteligência (Espírito) a “morada” dos seres ideais. As Idéias acabam sendo
não somente o conteúdo do Pensamento, mas elas mesmas pensamento, no sentido de que
cada uma e todas as idéias não somente estão no Espírito, mas elas mesmas são Espírito:
cada idéia singular não é diversa do Espírito mas é, cada uma, Espírito. E o Espírito na sua
totalidade é a totalidade das formas (idéias). Naturalmente o Espírito é também vida, é o
“vivente perfeito”, o “vivente em si”, é “vida infinita”, vida esta não necessariamente ligada
à dimensão física. A vida da segunda hipóstase é vida na dimensão do imaterial, é vida
espiritual, fora da temporalidade.
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O Espírito como “cosmos inteligível” – Plotino transforma o “mundo das idéias” de Platão
em “cosmos inteligível”. As idéias, de meros inteligíveis, se transformam em Inteligência,
algo que é ao mesmo tempo inteligível e inteligência, uma “substância pensante”, na qual
coincidem pensante e pensado. As Idéias tornam-se “forças” ou “potências inteligentes” e
portanto vivem, são “Espíritos” ou “Intelectos”. Em suma, como as Idéias são a
multiplicidade dos seres inteligíveis, na qual se determina o Ser no interior do próprio Ser,
assim elas são por isso a multiplicidade de Espíritos ou Intelectos, no qual se determina o
Espírito no interior de si mesmo.
Ligada a esta concepção é a relação subsistente entre as Idéias, entre cada Idéia e
a totalidade das idéias e vice – versa. Platão já afirmara esta relação, mas Plotino vai além,
ao postular que cada Idéia é, em certo sentido, todas as outras Idéias. Já que o Espírito é
inteligência, não só de uma coisa, mas de todas as coisas e coincide com elas, é necessário
que cada uma das suas “partes” seja também conhecimento de todas as coisas. Neste
sentido, o Espírito é “uno - muitos” vale dizer: unidade multíplice e multiplicidade una. Isto
decorre de dois traços essenciais do Espírito: a sua imaterialidade ou incorporeidade e a
sua infinitude, no sentido da inesgotabilidade da sua potência.
Enquanto incorpóreos, o Ser e o Espírito não podem ser entendidos como “muitos”,
como se fossem “divididos” nas várias idéias, ou como se fossem fracionados em partes
fisicamente separadas umas das outras, como acontece nas partes em que são divididos os
corpos, que são múltiplos e ocupam múltiplos espaços. As muitas idéias que constituem o
Ser e o Espírito são tais em razão da alteridade inteligível, uma diferenciação puramente
espiritual, do Ser e no Ser, ainda que o Ser seja unidade, o que faz com que as Idéias
resultem numa multiplicidade simples e uma e numa unidade múltipla.
Por sua vez, se o Espírito é infinito, pois é fecundado pela infinita potência do Uno,
ele possui cada coisa singular e vice-versa; em cada coisa devem estar todas as coisas.
Também o caráter de eternidade do Espírito e das Idéias, acaba tendo em novo conteúdo.
Em vez de ser um “presente imóvel”, uma atemporalidade estática, é concebido
dinamicamente, pois como o Espírito é inesgotável na sua potência, ele possui já, agora, o
que foi e o que será, porque “tudo está em tudo” e já que o Espírito é todas as coisas, ele
não tem necessidade de mais nada e é inesgotável.
Para Platão, as Idéias eram a causa verdadeira, a razão e o porquê das coisas
sensíveis, mas ele tinha dificuldade de explicar como se dava esta participação e o porquê
desta participação. Para Plotino, o como e o porquê se dá no Espírito, pois no Espírito estão
todas as coisas. As Idéias não têm uma causa, mas são a causa do próprio ser e portanto a
causa de tudo mais.
Na medida em que o Espírito encerra em si todas as coisas, há Idéias de todas as
coisas e não somente das espécies, mas de todas as diferenças possíveis com as quais a
espécie pode apresentar-se. Portanto, não há somente uma idéia de homem, mas tantas
Idéias de homem quantas são as diferentes conformações dos homens, quantas são as
diferenças individuais entre eles e isto vale para os animais e para todas as outras coisas.
Assim alguns estudiosos chegaram à conclusão de que Plotino admitia a existência de Idéias
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de todas as coisas individuais, mas isto não é exato, uma vez que ele não chegou à noção de
indivíduo como singularidade irrepetível.
Esta noção torna-se mais complexa pelo fato de Plotino admitir a repetição cíclica do
mundo, de modo que um mesmo indivíduo é muitas vezes um outro que não ele.
Platão estabelecera os números ideais como princípios dos quais derivam as Idéias.
A mesma doutrina reaparece em Plotino, aprofundada e tornada mais clara. Os números
ideais derivam do próprio Uno. A Díade, que é ilimitada, recebe o limite do Uno os números
ideais nascem justamente desta delimitação da Díade por parte do Uno. Esses números
ideais são ulteriormente caracterizados por Plotino como a força que divide o ser e faz
nascer a multiplicidade no ser, a regra segundo a qual nascem do ser os múltiplos seres; e
neste sentido, como fundamento e raiz dos seres (para entender, pense no código de
barras e seus números: as barras representam a Idéia e os números, os números ideais;
cada código, ao ser “lido”, nos mostra uma coisa. Se a máquina de leitura fosse capaz de
“criar” a coisa, ela faria a analogia perfeita entre a coisa, sua representação, seu código –
idéia e seu número ideal, pois ela faria o papel do Espírito, que contém tudo em si – não
coloquem isto na prova! É só uma tentativa de explicação!).
Do que foi dito até agora explica porque Plotino denomina o Espírito de “cosmos
inteligível”, mundo da ordem e da harmonia espiritual, portanto, mundo da beleza. Para
Plotino, a beleza coincide com a forma: uma coisa é bela segundo o quanto possui de forma.
O Espírito, que é o mundo das formas e das idéias, perfeitamente ordenado na sua
totalidade, é a suprema e absoluta beleza.
- As categorias do mundo inteligível – a distinção entre o mundo corpóreo e o mundo
incorpóreo é uma das colunas mestras do sistema plotiniano. Mas levando adiante esta
distinção, ele afirma que o sistema aristotélico das categorias não vale para o incorpóreo, o
que o leva a estabelecer dois sistemas de categorias, cada um para uma esfera de
realidade. Como o Uno é absolutamente simples, para ele não vale nenhum sistema
categorial. As categorias do incorpóreo valem para as outras duas hipóstases, em particular
para o Espírito e são elas: a) o ser ou ousía, b) a estabilidade ou estase, c) o movimento, d)
o idêntico, e) o diverso ou diferente.
Tudo no mundo do Espírito é ousía. Além disso, o pensar do Espírito implica
movimento (espiritual, não físico). O pensar do Espírito implica do mesmo modo estabilidade
ou estase, devida aos seus conteúdos. Além disso, o Espírito é identidade de si consigo
mesmo, assim como é diferença entre pensante e pensado. Estas distinções são concebidas
na dinâmica do “uno – muitos” e do “tudo em tudo”. Esta doutrina das categorias, embora
não seja central no pensamento plotiniano, constitui um avanço essencial na história da
ontologia.

III – A terceira hipóstase: a Alma


O Espírito é potência infinita e como tal como que “transborda” de si mesmo e gera
outra realidade, hierarquicamente inferior, que é a Alma. Para explicar a processão do
Espírito a partir do Uno, Plotino distingue dois momentos: a) uma atividade que o Espírito
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dirige a si mesmo, uma atividade do Espírito e b) uma atividade a partir do Espírito, que
provém do Espírito e sai dele. Esta atividade deriva da primeira, pois ao voltar-se para si
mesmo, o Espírito produz alguma coisa diferente de si.
O resultado da atividade que procede do Espírito não é ainda a Alma. É necessário
que, assim como o Espírito se dirige ao Uno para ser ele mesmo, que a Alma, ao ser
produzida pelo Espírito, de forma indeterminada, se volte para ele para ganhar a sua
determinação.
Voltando-se para o Espírito e contemplando-o, a Alma, através do próprio Espírito,
como que vê o Uno/Bem e torna-se conforme o Bem e entra na posse do Bem. O
fundamento primeiro da realidade da alma reside nesse seu estar ligada ao Uno por meio do
Espírito.
Características da alma – A característica essencial do Espírito consiste no pensar
(Nous significa Inteligência ou Pensamento). Daí sua dualidade (já que o pensamento e
sempre pensamento do Ser) e multiplicidade (pois o Ser é uma multiplicidade de Idéias).
Esta dualidade e multiplicidade coincidem com a unidade (o Espírito é o Uno que é muitos).
O Uno para poder pensar, deve fazer-se Espírito. A Alma igualmente pensa, ao menos na
medida em que mira e contempla o Princípio que a gerou, isto é, o Espírito. Mas a essência
da alma não está no pensar (que é a atividade própria do Espírito), mas em produzir e dar a
vida a todas as outras coisas que existem, ou seja, as coisas sensíveis, em ordená-las e
governá-las. Quando a Alma olha o que vem antes dela, a Alma pensa; enquanto olha a si
mesma, ela se conserva; enquanto olha o que vem depois dela, ordena, dirige e comanda esta
realidade. A Alma é a causa produtora original o princípio criador e vivificador de todas as
coisas. A Alma é princípio do movimento e é ela mesma, movimento. Assim pode-se dizer que
o Uno devia tornar-se Espírito para poder pensar, bem como tornar-se Alma para gerar
todas as coisas no mundo visível. A Alma constitui o momento extremo no processo de
expansão da infinita potência do Uno, o momento no qual o incorpóreo gera o corpóreo,
manifestando-se na dimensão do visível.
Não podemos esquecer que as hipóstases que sucedem ao Uno são, num certo
sentido, o próprio Uno, na medida em que este é a fonte e a potência de tudo. Mas noutro
sentido, não são o Uno, mas diferenciações da potência do Uno, nas quais o novo que surge
não destrói o antigo, mas flui exatamente da permanência do antigo.
- A posição intermediária da alma – a Alma, na expressão de Plotino, é a “última
Divindade”, ou seja, é a última das realidades inteligíveis e é a realidade mais próxima e que
produz o sensível. Ela ocupa um grau intermediário entre os seres, estando no último grau
do reino do Espírito e confinando com o ser sensível, dá algo de si mesma a esse nosso
mundo e recebe algo dele. A Alma tem assim uma dupla face, orientadas numa e noutra
direção. A alma não é no entanto um misto de corpóreo e incorpóreo. A alma é puramente
imaterial, espiritual, mas ao produzir o corporal, acontece-lhe ter certo “comércio” com
ele, assumindo certas características do corpóreo, sem no entanto tornar-se corpórea. A
alma, que originalmente é una e indivisível, torna-se divisível nos corpos, sem com isso estar
dividida em partes, pois ela está toda inteira em cada um dos corpos. Neste sentido pode-
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se dizer que a Alma é divisa e indivisa, una e múltipla, enquanto princípio que produz, rege e
governa o mundo sensível. Com a sua unidade múltipla e divisa, ela dá origem à vida de todas
as coisas, e com a sua unidade indivisível, as reúne e as governa. A Alma está toda em todas
as partes e em todas as partes é idêntica. A Alma é assim uno e muitos, ou seja, unidade e
pluralidade, enquanto o Princípio primeiro é exclusivamente Uno, o Espírito é Uno e muitos e
os corpos são exclusivamente muitos.
- A pluralidade da alma – no Espírito, cada Idéia é todo o Espírito e vice – versa. Por isso
no mundo do Espírito e do Ser não há hierarquia, ao passo que na esfera da Alma surge uma
multiplicidade hierárquica. Plotino parece admitir: a) em primeiro lugar, a Alma suprema, a
Alma universal na sua inteireza e pureza. Essa é a Alma considerada como pura hipóstase do
mundo inteligível, em estreita união com o Espírito do qual procede e fora das relações com
o mundo sensível. b) A Alma do Todo, que é a alma do mundo e do universo sensível, que põe,
rege e governa o universo. Esta tem uma relação com o corpóreo, mas não desce ao nível do
corpóreo. É o corpo que a ela se prende, sendo por ela irradiado, enquanto ela fica na
esfera superior, sem ser afetada de modo algum pelo corpo. c) Finalmente, há as almas
particulares, que não criam mas animam os corpos singulares: as almas das estrelas, as
almas dos homens, as almas dos seres vivos, e de modo especial estas últimas, “descem”
nos corpos e têm relações mais estreitas com eles do que a Alma do universo. Da primeira
Alma derivam as outras, ou seja, a Alma do universo e as almas singulares, e diferenciam-se
por sua maior ou menor proximidade com os corpos, ou no que vai ser dito mais adiante,
maior ou menor grau de contemplação: quanto menor a contemplação do Espírito, mais
próximas as almas estão dos corpos.
- A alma, a physis e o lógos – a atividade da alma desenvolve-se em duas direções
opostas: de um lado, ela tende à contemplação do Espírito; de outro, ela tem em vista
produzir alguma coisa diferente de si e criar o mundo sensível. Das três almas, a que
produz propriamente o mundo sensível é a alma do universo, uma vez que a Alma suprema
que é a alma que contém todas as almas), fica perenemente no mundo inteligível, junto ao
Espírito, enquanto as almas particulares encontram os corpos já produzidos pela Alma do
universo e se limitam a animar e reger esses corpos. Para Plotino é a parte inferior da alma
do universo, que ele denomina “orla” ou “fímbria externa”, que produz o mundo físico, a
physis, a natureza, e para Plotino este é o momento em que o mundo incorpóreo e
inteligível se reflete na matéria e que representa o limite externo no qual terminam os
seres verdadeiros. A natureza, o mundo físico é uma “imagem” do pensamento, um
“reflexo” deste na matéria.
A “natureza” assim concebida não é mera atividade produtora irracional, mas é
atividade produtora acompanhada de razão e derivada da razão. A physis para Plotino é
“forma racional”, é lógos ou forma racional que produz outro lógos, isto é, outra forma
racional. A simples forma ou eidos, está incluída na matéria e está desvitalizada e não é
mais capaz de produzir outra coisa. Em resumo, a physis ou natureza é o lógos que fornece
as formas à matéria sensível. A physis é dotada de uma atividade contemplativa que
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permite que ela seja criadora. Ela é visão de formas e produtora de formas na matéria.
Também a natureza, como todas as realidades inteligíveis, contemplando, produz.

IV – A processão do sensível a partir do inteligível


Com a Alma terminou a série de hipóstases do mundo incorpóreo e inteligível, depois
da Alma e abaixo dela estende-se o mundo do corpóreo e do sensível, ou seja, o universo
físico.
Como e por que existe o universo físico? Por que a realidade não termina com o
mundo do incorpóreo e existe também um outro mundo? Como surgiu o sensível, quais são as
suas características estruturais, sua significação e valor? Estes são os problemas da
metafísica plotiniana, principalmente pelo processo dedutivo adotado pelo filósofo, ao qual
é paralelo um problema ainda mais de fundo: Por que o Uno não permaneceu Uno e por que
do Uno derivaram também os muitos? Como do Uno incorpóreo derivou, além do múltiplo
incorpóreo, também o múltiplo corpóreo? As respostas de Plotino a estas questões, embora
bem elaboradas, não deixam de conter pontos obscuros.
- A matéria do mundo sensível- característico do mundo corpóreo é a matéria sensível,
isto porque no mundo incorpóreo há uma matéria inteligível, como uma potência
indeterminada, derivada do Uno, que dá origem à segunda hipóstase, o Espirito, ao Ser
fecundado pelo Uno. A potência que deriva do Uno é, portanto como uma matéria indefinida
que se define somente voltando-se para o Uno, algo semelhante acontece em relação à alma:
o resultado da atividade do Espirito não é imediatamente a Alma; para ser Alma, deve
voltar-se para o Espírito, em face do qual é como a matéria diante da forma, o
indeterminado diante do determinado.
Já a matéria sensível é o oposto da matéria inteligível. A característica de todo tipo
de matéria é o ser indefinida, indeterminada, ilimitada. A matéria sensível é uma imagem da
inteligível e enquanto imagem ou cópia, afaste-se do ser original e é portanto mais
indeterminada e entregue ao negativo e ao mal. Assim também a matéria deriva das causas
que a precedem e por conseguinte, do inteligível e não é algo que se contraponha ao
inteligível desde a eternidade, como em Platão. Nosso problema é portanto descobrir de
que modo a matéria deriva do inteligível e porquê ela não consegue constituir uma
hipóstases com as anteriores.
A matéria surgiria da fase extrema do processo criativo do Uno, no momento em que
esta força criativa se enfraquece, até esgotar-se completamente. A matéria sensível é um
esgotamento, privado da potência do Uno e do próprio Uno ou, em outros termos, privação
do Bem e portanto, ela torna-se um mal, mas mal no sentido de privação de bem. Assim é
que Plotino define a matéria como não-ser, no sentido de “outro ser”, diferente do ser
inteligível. A matéria não é nada do que é próprio do mundo do Ser, do Espírito e da própria
Alma e em geral, do inteligível. Várias imagens são usadas para caracterizá-la, ela nasce da
carência de tudo o que se chama ser. O ser que se mostra na sua imagem é, na verdade, não
– ser ou é um jogo fugidio, como uma imagem de uma imagem. As coisas que entram na
matéria e dela saem são simples cópias de ser.
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Esta falta de espessura ontológica da matéria se deve a que ela é produzida pela
Alma (não a Alma suprema, fixada na Contemplação), mas pela fímbria última da Alma do
Universo, quando ela se volta mais para si do que para o Espírito. Quando a Alma se quer a
si mesma, faz produzir o que vem depois dela, um simulocro de si mesma, o não – ser,
indeterminado, sem razão e privado completamente de inteligência.
Assim a matéria, produto dessa atividade que é contemplação enfraquecida, não tem
mais força de voltar-se para o que a gerou e, por sua vez, contemplar, tanto assim que
compete à Alma sustentá-la, por assim dizer e portanto ordená-la, informá-la e de alguma
maneira, mantê-la suspensa no ser.
- O desenho racional do mundo – o mundo sensível é constituído, em sua totalidade, de
matéria e forma. Mas, diferentemente da matéria inteligível, que é força ou potência que
busca perenemente a sua forma, a possui e nela se atua, a matéria sensível não é
capacidade positiva de receber a forma, mas somente possibilidade inerte de refleti-la,
sem ser verdadeiramente informada e vivificada. A matéria sensível é incapaz de constituir
com a forma uma verdadeira unidade, de maneira que a forma não penetra verdadeiramente
na matéria, mas superficialmente, aparentemente, como o reflexo num espelho. A matéria
se não recebesse este reflexo da forma, permaneceria invisível, como o ar é invisível em
relação à luz.
Assim a Alma cria o mundo físico por uma dupla atividade: a) em primeiro lugar, ela
põe a matéria, que é como que a externalidade do círculo de luz que se apaga e torna-se
obscuridade; b) depois dá forma a esta matéria, como que esculpindo as trevas e
recuperando-as para a luz. Estas duas operações não são distintas cronologicamente, mas
só logicamente. A primeira ação da Alma deriva do extremo enfraquecer-se da
contemplação e a segunda, do último esforço por assim dizer, da contemplação.
As Idéias que constituíam, como sabemos, o Ser e o Espírito, são pensados e
contempladas pela Alma como formas e depois descem ao mundo físico, como determinação
racional, como lógos ou desenho racional do mundo. Se a alma é quem imprime nos quatro
elementos a forma do cosmo, a Inteligência é que tornou-se para a Alma a doadora das
formas racionais. O que a Inteligência doa à alma é vizinho da verdade; ao invés, o que o
corpo recebe da alma é já sombra e figura. O universo está mantido nos vínculos das
formas do começo ao fim: em primeiro lugar, a matéria pelas formas dos elementos; depois
sobre estas formas, outras e mais outras, de modo que se torna difícil encontrar a matéria
oculta sob tantas formas. Mas sendo a matéria de certo modo ínfima, o nosso mundo é todo
forma e todas as coisas são formas, pois o modelo já era forma.
- A origem do tempo – a passagem do mundo inteligível ao mundo sensível comporta a
passagem do ser ao vir-a-ser, vale dizer, da eternidade à temporalidade. O tempo nasce
conjuntamente com a produção desse nosso universo; a temporalidade coincide com a
atividade com a qual a alma produz o mundo físico, ou seja, como a atividade que produz
alguma coisa diferente do Espírito e do Ser, que estão na dimensão do eterno. A
eternidade é para Plotino, vida sem mudança. A vida do Espírito é vida eterna justamente
porque é presença da totalidade do Ser, que sempre é tudo no todo. A Alma ao transferir à
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matéria a visão do Espírito, cria um mundo sensível feito segundo a imagem do inteligível,
mas se move e põe na sucessão do antes e do depois o que lá, ao invés, estava junto e
simultâneo. O mundo está estruturalmente no tempo, assim como está na Alma e para a
Alma.
Como a característica típica da alma é a vida, é vida na dimensão da temporalidade,
diferentemente da vida do Espírito, que existe na dimensão da eternidade. A vida temporal
cria em momentos sucessivos, está sempre voltada para os momentos que virão e está
carregada de momentos já transcorridos. O tempo é uma imagem do eterno. Três
conseqüências advêm desta concepção do vir-a-ser, do tempo: a) em primeiro lugar o vir-a-
ser perde o caráter dramático e catastrófico, pois nascer e morrer é apenas parte do jogo
móvel da Alma, no qual tudo se conserva e nada parece; b) em segundo lugar, o próprio
universo físico não perecerá, pois não nasceu do nada num determinado momento. A geração
do mundo é eterna, pois a Alma eternamente se temporaliza, querendo eternamente fazer
viver no universo o que ela contemplou no Espírito; c) em terceiro lugar, sendo a Alma o que
gera e sustenta o mundo em todas as suas partes, e sendo ela em sua essência, vida, tudo é
vivo, mesmo o que não tem aparência de vida; Em suma, nada há que não vivo.
- A origem do espaço – como o tempo depende da atividade da alma, assim a própria
corporeidade (e consequentemente a espacialidade) dependem da forma, da atividade da
forma sobre a matéria. A matéria, como vimos acima, não é massa, não é extensão, e
portanto não é corporeidade. O corpo nasce da união da forma com a matéria e é o
resultado da qualidade unida à matéria. A corporeidade enquanto tal é forma que se gera no
corpo concreto pela união com a matéria. O corpo é uma criação da forma.
- A positividade do mundo corpóreo – esta concepção da gênese e da estrutura do mundo
físico pode dar origem a duas avaliações contrapostas do mesmo mundo. Como o mundo tem
a ver com a matéria que é privação do Bem, pode-se dizer que o mundo nasceu sob o
signo do mal. Ao invés, se sublinharmos a matéria como sombra da forma derivada da
Alma e portanto do Espírito e em última análise do próprio Uno, deve-se concluir que o
mundo nasceu sob o signo do Bem. A alma não somente produz o cosmo, mas como que o
abraça e recolhe no seu próprio seio. Se não houvesse o mundo físico, a Alma não teria o
que fazer com a sua grandeza, sendo o que ela é. O Universo é tão grande quanto o é a Alma
e assinala seus limites lá onde a Alma está para mantê-lo.
Assim, num certo sentido, o Demiurgo é a Alma, pois ela é a verdadeira causa
produtora do mundo. A Alma produz não somente enquanto vida e geradora de vida, mas
enquanto possui em si as formas que derivam das Idéias do Espírito. Neste sentido, o
Espírito também é Demiurgo e em última instância, o próprio Uno entra em questão, pois o
cosmo físico é também realização da potência do Uno.
O mundo físico não é, para Plotino, um mal nascido, mas é uma cópia que imita o
modelo, que é o Espírito e julgado como cópia, vem a ser a mais bela imagem possível do
original. O mundo sensível existe para o Espírito e olha para o alto e em certo sentido olha
para o Uno e o próprio mundo está no Uno, já que o mundo está na Alma, a Alma está no
Espírito e o Espírito está no Uno, que tudo encerra em si.
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A espiritualização do cosmo é levada por Plotino ao extremo de negar existência


própria à matéria: a matéria é reduzida à atividade da Alma, o corpo é reduzido à forma e o
mundo é um jogo móvel de formas que se movem como num espelho que reflete o Espírito e
este, o Uno.

V – Origem, natureza e destino do homem em Plotino


Segundo Plotino, retomando Platão, o homem não nasce no momento em que surge o
mundo corpóreo, mas pré - existe a ele, em estado de alma pura, vivendo no mundo do Ser e
do Espírito, participando da vida espiritual do todo, sem as contradições da vida terrena.
As almas humanas estariam na origem, associados à Alma universal associadas a ela no
governo do mundo. Neste estado a alma humana conhece de modo intuitivo e imediato a
totalidade das coisas que estão no Espírito e por meio dele, o próprio Bem/Uno, bem como
tem plena consciência de si.
Por que então as almas dos homens descem aos corpos? Platão explicava este fato
como uma necessidade ontológica e o resultado de “culpabilidade”. Plotino tenta conciliar
estas duas teses opostas. A razão desta descida das almas particulares aos corpos
individuais deve ser buscada na lei que regula a processão de todas as coisas do Uno. Assim
a alma universal deve desenvolver todas as suas possibilidades, produzindo também todos
os viventes particulares, através das almas particulares, entre os quais o homem. Isto deve
acontecer obrigatoriamente, para que a infinita potencialidade do Uno alcance seu pleno
desenvolvimento. Assim as almas particulares, para se distinguir do puro Espírito, tiveram
que assumir a função que lhes é peculiar, que consiste em ordenar, reger e governar as
coisas sensíveis. Isto quer dizer que a descida da alma aos corpos não é voluntária e neste
sentido não é um “castigo”, mas um enriquecimento, já que a alma, ao assumir o corpo,
contribui para que uma parte do universo se realize e por outro lado, a alma, por ter
passado pela experiência do mal (isto é, estar limitada pelo que é corpóreo), lhe permite
adquirir uma consciência mais clara do bem.
Como então falar de culpa e castigo na ligação da alma ao corpo? Num primeiro
sentido, a culpa é a própria descida, pois esta é inevitável e o castigo é a própria
experiência dolorosa da descida aos corpos, já que, no desejo de assumir uma
individualidade, a condição é a ligação aos corpos. Num segundo sentido, a culpa consiste no
fato de, ao assumir o corpo, a alma começa a cuidar demais dele, esquecendo sua origem
divina. Não é o primeiro sentido que constitui a culpa, mas o segundo: este é o mal na alma,
pois leva-a a esquecer-se de si e do Bem/Uno e torna-se digna de castigos.
Em vários pontos das Enéadas, Plotino afirma que em nós existem como “três
homens”, no sentido de espírito, alma e corpo, que ele chama respectivamente terceiro,
segundo e primeiro lugar. Esta tripartição também pode ser compreendida como “três
almas” ou “três potências”: a primeira alma ou primeiro homem é a alma com sua ligação
com o Espírito, a segunda alma ou segundo homem corresponde ao pensamento discursivo,
que está no meio termo entre o inteligível e o sensível e a terceira alma ou terceiro homem
é a que vivifica o corpo terreno. O que coincide com o nosso “eu” é o homem intermediário,
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capaz de tender ora para o melhor (o Espírito) ora para o pior (o sensível). Para Plotino o
homem só é compreensível na dinâmica desses três momentos. É certo que o homem é uma
alma que serve a um corpo, mas se a alma, governando o corpo, permanecesse superior a ele
e, mesmo ligada ao corpo, estaria sempre ligada ao Espírito. Decidimos nosso destino
segundo deixemos predominar a parte sensível ou superamos o sensível, mantendo-nos
próximos à parte superior.
- Atividades e funções da alma – as atividades elementares da vida vegetativa e
sensitiva são garantidas pela Alma do Universo, pois é ela que cria o mundo. Às almas
individuais cabe a tarefa de reger os corpos individuais. No entanto, a alma, sendo de
natureza espiritual e portanto impassível, não tem como ser afetada pelos corpos (ela age
sobre o corpo, mas este não age sobre ela). Como pode ocorrer a sensação, já que esta tem
início no corpo? Plotino distingue dois tipos de sensação: a sensação exterior, que é a
afecção que os corpos produzem sobre o corpo e a sensação interior, que é um ato da
alma pelo qual ela toma conhecimento e julga as afecções conforme o resíduo de formas
inteligíveis que elas contém. Assim, em última instância, o “sentir” da alma é um
“contemplar” o inteligível ainda presente nos corpos. Isto é possível porque segundo
Plotino, o mundo sensível é criado segundo o modelo das idéas contempladas pela Alma do
universo.
Para Plotino, a alma só sente, se a alma inferior estiver conectada com a alma
superior, que é a que tem a percepção dos inteligíveis e os reconhece por reminniscência. A
alma inferior capta os resquícios do inteligível nos corpos e a alma superior os reconhece no
que guarda do puro inteligível.
De modo análogo Plotino atribui à alma também a faculdade da imaginação e da
memória. Não é o corpo por si, nem o corpo considerado na sua união com a alma que é capaz
de recordar, mas só a alma; o corpo é ao contrário, um impedimento e um obstáculo para a
recordação e, portanto, é causa do esquecimento. Memória e recordação têm uma relação
estrutural com a temporalidade, com o “vir antes e depois” do corpóreo. O Uno e o Espírito
não tem memória, pois neles tudo é um eterno presente. A alma possui memória porque nela,
por sua ligação com o corpo, há um “antes e depois”, resultado do tempo.
A reminiscência (ou anamnese) é diversa da memória, pois aquela é o resultado do
contato perene da alma com as realidades superiores do Espírito. Quando a alma volta-se
para o mundo do Espírito, esquece-se das realidades corporais e quando está no mundo
sensível, esquece-se das realidades espirituais. A mais elevada atividade da alma consiste
portanto em captar as Idéias e o Espírito e por fim de captar o Uno e unir-se a Ele.
Igualmente são atividades da alma os sentimentos, paixões, desejos, sensações,
percepções e memória. O corpo só sofre as ações da alma. Esta por sua vez só age, e não
sofre o efeito de nada. A alma não sofre as paixões do corpo, mas tão somente toma
conhecimento delas e pode se interessar por elas.
- A liberdade humana – a mais alta atividade da alma consiste na liberdade. Ela é um
reflexo da liberdade de que goza o Uno, pois Ele quer-se constantemente, já que é o Bem
absoluto. Nele, o querem o Bem coincide com a própria liberdade.
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A liberdade para Plotino não consiste em nenhuma atividade prática, em um agir


exterior, mas na contemplação e no limite, no êxtase. A alma é livre quando tende, sem
obstáculo ao bem, através do Espírito, que a conduz então ao Bem que é o sumamente
desejável. A liberdade do homem portanto, é sempre e somente a liberdade da alma, que
quer e busca alcançar o Bem.
- Os destinos da alma – mas o que significa, para a nossa alma, querer e alcançar o bem?
Plotino depende em certo grau das concepções órfico – pitagóricas, bem como acentua a
separação do corpóreo e a busca do imaterial como fim a se alcançar. Plotino, que já é
contemporâneo do cristianismo, rejeita o dogma cristão da ressurreição da carne, que ele
considera uma forma de materialismo.
Não resta para Plotino outra alternativa que a metempsicose, que ele retoma e
reafirma de Platão, admitindo a reencarnação da alma humana não só em outros corpos
humanos, mas nos corpos dos animais e das plantas, já que para ele a alma é o princípio da
vida, de toda forma de vida. No entanto, Plotino, melhor do que Platão, reafirma que o
destino último das almas que viveram no mundo de forma mais perfeita, consiste em
reunificar-se com o Bem/Uno. No entanto, há algo em Plotino que é novidade em relação à
tradição anterior: a possibilidade de separar-se do sensível e do corpóreo, bem como
realizar a união com o Bem/Uno, nesta vida, pela experiência místico – estática. Isto é o
cumprimento de uma intuição, presente na ética de Aristóteles e das escolas helenísticas,
de que a felicidade deve ser possível já nesta vida, mas de modo radical, destacando-se de
tudo o que é material, alcançando, ainda que por breve tempo, a união com o absoluto. Mas
só com um firme apoio na transcendência é possível o que havia buscado, sem sucesso a
filosofia helenística, na dimensão da imanência.
- A reforma da tábua de valores – a tábua da valores de Platão colocava o Bem/Uno em
primeiro lugar, a alma em segundo, o corpo em terceiro e os bens exteriores em quarto. Os
valores inferiores eram considerados tais na medida em que propiciavam os valores
superiores. Para Plotino, é a dimensão místico – religiosa que deve ser buscada antes de
tudo e as demais perdem qualquer significado e mesmo os valores da alma só o são na
medida que propiciam a assimilação a Deus. A vida do sábio deve aproximar-se da vida dos
deuses.
Quais são os caminhos para se alcançar os valores supremos e o Absoluto? Plotino
redimensiona a doutrina das virtudes. Para Platão as virtudes mais importantes eram as que
se relacionavam com a vida civil (justiça, prudência, temperança, fortaleza). Para Plotino
estas virtudes são como limites para se chegar ao Bem, uma condição para se chegar a Ele.
Mas o ideal é assimilação ao Bem, que só pode ser alcançada com outras virtudes. A virtude
se torna uma purificação, que nos livra das paixões e que nos permite unir-nos ao Espírito,
pelo desapego ao sensível e às partes inferiores da alma, de modo a reentrar totalmente
em si mesma, em viver em absoluta pureza, a vida dos deuses.
Não só pela virtude, mas como Platão, são também vias de acesso ao Divino a erótica
e a dialética. A erótica plotiniana é a busca da beleza, seja nas formas sensíveis, seja na
beleza em si mesma. O belo é sempre forma e como tal, co – natural à alma e portanto
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capaz de levar a alma, a reconduzi-la à sua origem divina. A “fixação” que o amante
encontra no corpo belo é uma recordação metafísica de sua origem espiritual. Como para
Platão, há uma “escala da beleza” em que se parte do belo corpóreo, à beleza dos
comportamentos morais, às obras de virtude e à beleza da própria alma purificada, que
então se torna a Idéia mesma da beleza, realizando e identificando-se com aquele que é a
fonte de toda beleza: o belo absoluto (o Espírito) e o princípio do belo (o Uno).
- A reunificação com o Uno – o caminho de retorno ao Uno é um percorrer em sentido
contrário a “processão” metafísica a partir do mundo. Se as coisas se diferenciavam pela
constituição de uma alteridade, o retorno ao Uno consiste em retirar toda diferença e
alteridade.
O Uno não tem alteridade, só o que vem depois dele a tem. O Uno está sempre
presente a nós, mas nós só o contemplamos quando eliminamos em nós a alteridade.
Despojar-se da alteridade significa reentrar em si mesmo, na própria alma, desapegar-se
do corpóreo e de tudo o que lhe é inerente, desapegar-se da parte afetiva da alma, tornar a
alma impassível pela virtude filosófica, pois enquanto houver paixão na alma, ela não
encontrará o Bem. Ela deve dissipar as aparências, as imagens, as fantasias. A purificação é
deixar a alma só diante de si mesma, sem olhar para mais nada que não seja ela mesma. A
alma deve despojar-se também da palavra, do discurso e da razão discussiva, até do
conhecimento reflexo do ser. A alma deve ficar privada de formas, se pretende que nada
haja nela que sirva de obstáculo à plenitude e à iluminação primordial, à contemplação do
Uno. A frase que descreve este processo é a seguinte: “despoja-te de tudo”. As filosofias
helenísticas ensinavam a despojar-se das coisas exteriores, mas nenhuma filosofia fez
afirmação tão radical.
Pode-se objetar que com este caminho Plotino chega a reduzir a zero não só o mundo
exterior, como também o eu e como tal, o próprio homem e por conseqüência, a sua
felicidade acaba por ser a felicidade do perder-se no nada. Mas para Plotino o oposto é que
é o verdadeiro: despojar-se de todas as coisas não significa empobrecer-se ou anular-se,
mas significa fazer-se maior, enchendo-se do Divino, do todo, tornando-se infinito.
Despojar-se de tudo significa o retorno da alma a si mesma, encontrando o vínculo
metafísico que a une ao Ser e ao Espírito (a segunda hipóstase), chegando ao próprio Uno (a
primeira hipóstase). A alma perde-se de si mesma agarrando-se às coisas e ganha a si
mesma despojando-se delas. Assim, longe do conduzir a uma perda no nada, o despojar-se
das coisas leva a alma à plenitude do Ser, ao Absoluto.
- O êxtase – esse tocar o Uno é o êxtase. Ele não é uma ciência, nem um conhecimento
racional ou intelectual. É um contemplar que implica um contato íntimo, sem distinção
reflexa de sujeito e objeto. Com o contemplado; é uma co – presença, uma união, uma
unificação total com ele, como o sentimento que envolve os amantes e os faz querer
perder-se um ao outro. O êxtase não é um “transe”, um estado de inconsciência, irracional
ou subracional, mas um estado de hiperconsciência em que a alma se vê toda em Deus, se vê
plena pelo Uno e é, na medida do possível, a Ele assimilada. É estar acima do pensamento, da
razão e da consciência. Arrebatada e inspirada, se entre tranqüilamente na solidão e num
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estado que não sofre mais abalos, nem se afasta mais do ser do Uno, nem gira mais em
torno de si, mas permanece estática, transformado na própria imobilidade.
Parece que Plotino teve várias vezes a experiência pessoal do êxtase.
Diferentemente dos místicos cristãos, que o alcançam como uma graça, como um dom
gratuito de Deus, Plotino entende o êxtase como algo que os homens podem alcançar pela
sua força natural, como sendo um esforço pessoal. Nada é mais estranho a Plotino que a
noção de graça.

VI – Originalidade da Metafísica de Plotino


A metafísica plotiniana é mais comumente designada como uma forma de
“emanatismo”. No entanto, o que este termo significa? Ora, três coisas parecem
caracterizar o emanatismo: 1) todas as coisas devem fluir da substância do primeiro
Princípio e esse fluxo deve ser um fluxo da própria substância do Princípio; 2) neste fluir
da substância do Princípio, tem lugar uma despotencialização gradual e sucessiva da própria
substância: o Princípio permanece inexourível, mas o fluxo, à medida que se afasta do
Princípio, perde sua força; c) Esse fluir do Princípio é um processo que não é redutível a um
ato livre da vontade, nem a uma atividade da razão, mas tem as características da
necessidade física.
Embora Plotino fale da “emanação”, sua doutrina parece negar este conceito, pois: a)
as hipóstases subseqüentes ao Uno não são um fluxo da substância do Uno; b) Elas não são
substância despotencializada do Uno; c) Elas não derivam do Uno por mera necessidade
natural.
Zeller, estudioso do pensamento grego, propôs falar da doutrina de Plotino como um
“panteísmo dinâmico”, em que: a) do Uno não flui sua substância, mas sua potência b) de seu
fluxo não há perda de sua substância, mas de sua potência; c) esse processo não é livre,
mas brota necessariamente da natureza do Uno; d) o mundo não goza de nenhuma
autonomia, mas é simples manifestação do divino. A fórmula de Zeller também foi
rejeitada, pois o termo “panteísmo dinâmico” é ambíguo: há uma grande diferença entre
dizer “tudo é Deus” e “tudo é potência de Deus”, pois na primeira, o mundo é idêntico a
Deus e na segunda o mundo é efeito de Deus (e portanto distinto dele).
Ora, a doutrina de Plotino afirma que o Uno é transcendente em dois níveis: a) em
relação ao mundo corpóreo; b) em relação ao próprio mundo incorpóreo, a Alma e o Espírito,
e quando se afirma que “todas as coisas estão em Deus”, não se quer dizer que coincidam
com a substância de Deus, mas que dele derivam e dependem. Igualmente não é possível
afirmar que a processão das hipóstases seja efeito de uma ação natural.
Igualmente a metafísica de Plotino não é um criacionismo, pois: a) ele não admite que
a processão das coisas do Uno possa ser fruto de livre escolha e decisão, mas ocorre por
“necessidade”; b) não tem sentido, para Plotino, uma criação “a partir do nada” como no
criacionismo e c) o Deus de Plotino é o Bem/Uno, não é o Amor Providente que se dá como
graça. Assim, a metafísica de Plotino não se encaixa em nenhuma dessas classificações: é
um sistema “sui generis”.
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Plotino procura responder duas perguntas: “Por que há o Uno” e “Por que e como do
Uno deriva a multiplicidade”. Ora, a causa e a razão do Uno é a liberdade, ele é atividade
livre e auto produtora, liberdade auto criadora. Ele é o que quer ser e o é do modo mais
elevado, positivo e absoluto: O porquê do Uno é a liberdade.
Quando a derivação da multiplicidade através do Uno, Plotino distingue duas
atividades: a) a primeira que permanece no Uno e b) a que procede para fora do Uno: a
primeira acontece por liberdade, a segunda por necessidade, mas uma necessidade querida
e consecutiva a um ato de liberdade. O Uno põe livremente a si mesmo e fazendo-o, produz
necessariamente outras coisas, que só podem derivar dele. Ora, o surgimento das
hipóstases e do mundo físico, ocorre somente se há atividade contemplativa: criar é
contemplar, efeito do contemplar, assim como alguém que ao contemplar algo belo, o
retratasse, para conservá-lo. A contemplação é assim a verdadeira hipóstase criadora, um
verdadeiro Demiurgo. Para o nosso filósofo, natureza, ação e práxis são também
contemplação e produto de contemplação. O ato de contemplar produz a coisa contemplada.
Igualmente, a alma, ao contemplar, quer e realiza o bem, pela práxis, que se torna assim
também efeito da contemplação. A verdadeira ação criadora não é a práxis mas as theoría:
a alma possui uma riqueza interior que auto contemplada, é fonte de inimaginável atividade
criadora. A atividade espiritual do “ver”, transforma-se em criação. E a contemplação é
silêncio. Toda a realidade é contemplação e silêncio e o retorno da alma ao Uno por meio do
êxtase não é mais do que contemplação, eliminação da alteridade, simplificação que elimina
o que é múltiplo e corporal, até fundir-se o sujeito contemplante e o objeto contemplado.
Eis a vida dos deuses e dos homens divinos e bem aventurados: separação das coisas daqui
de baixo, “fuga do só para o Só”. Eis uma das mais complexas criações do pensamento
humano, que apenas resvalamos no nosso estudo.
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Seminário Maior Arquidiocesano Nossa Senhora de Fátima

Curso de Filosofia

Disciplina: História da Filosofia I (Filosofia Antiga)

Primeira Unidade: Os Pensadores Originários : Tales


Anaximandro
Anaxímenes
Heráclito
Pitágoras
Parmênides
Empédocles
Leucipo e Demócrito
Anaxágoras

Segunda Unidade: A Sofística: Protágoras


Gorgias
Hípias
Antifonte
Pródico

Terceira Unidade: Sócrates

Quarta Unidade: Platão

Quinta Unidade: Aristóteles

Sexta Unidade: As escolas Helenísticas: O Ceticismo


O Epicurismo
O Estoicismo
Sétima Unidade: O Neoplatonismo

Professor: Pe. Ulysses Reis de Carvalho

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