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21/10/2020 Como lidar com a incerteza – de "saber tudo" para "entender um pouco" | Ultimatoonline | Editora Ultimato

Como lidar com a incerteza – de "saber tudo" para


"entender um pouco"

Por Alister McGrath

A década de 1960 agora parece um sonho


distante – um momento desbotado na história
cultural imbuído de um otimismo e idealismo
generalizados, cuja resiliência intelectual na
época foi dada por uma crença de que as
grandes questões da vida poderiam ser
resolvidas de forma definitiva e inequívoca pelo
Positivismo Lógico direto e sem bobagens de A.
J. Ayer, ou as totalizações da ideologia
marxista.

Eu pensava que estava à beira de uma nova


era de clareza e certeza, mas na verdade, era
simplesmente uma época de novos e breves
dogmas da moda que eram tão efêmeros
quanto aqueles que foram substituídos.

Eu ansiava por uma verdade simples naquela


época, resistindo a qualquer reconhecimento de complexidade. Eu estava buscando um relato objetivo e
universal do nosso mundo, independente do lugar e do tempo, acreditando que as ciências naturais e a razão
humana, individual ou colaborativa, eram capazes de trazer essa verdade racional segura e convincente.

De fato, por um tempo eu acreditei que tinha encontrado, antes de gradualmente perceber, em um processo
de desilusão, não apenas que eu tinha falhado em encontrar este Nirvana racional, mas que ele nem mesmo
estava lá para ser encontrado.

E a filosofia, que, alguns sugerem, oferece respostas completas e confiáveis para as grandes perguntas da
vida? Apesar dos bem-vindos momentos de transparência racional, nosso mundo parece frustrantemente
resistente ao domínio intelectual total. Embora a filosofia nos ofereça uma gama impressionante e envolvente
de possibilidades intelectuais, não há evidências persuasivas de que tenha resolvido decisivamente qualquer
uma das grandes questões da vida.

Podemos certamente tomar e defender posições comprometidas sobre essas questões, mas estas devem ser
vistas como opiniões e julgamentos, e não como conhecimento seguro.

A história cultural da filosofia revela como o raciocínio humano tem sido moldado por seus contextos históricos
e culturais, sugerindo que suas soluções podem ser transitórias e locais, em vez de permanentes e universais.
Até recentemente, a filosofia europeia tem sido fortemente etnocêntrica e monopolista, tratando filosofias
chinesas e indianas com uma condescendência arrogante.

Rompendo com a ambição universal da já passada “Era da Razão” ocidental, é agora amplamente admitido
que precisamos falar de “filosofia comparada”, reconhecendo como métodos filosóficos e suposições
(incluindo as do Iluminismo) são moldados por seus contextos culturais e históricos.

Embora a filosofia nos ofereça uma gama impressionante e envolvente de possibilidades intelectuais, não há
evidências persuasivas de que tenha resolvido decisivamente qualquer uma das grandes questões da vida.

Felizmente, muitos filósofos estão agora atentos a essas percepções mutáveis da relação entre filosofia e
seus contextos culturais instáveis e não fixos. Mary Midgley, uma das mais interessantes desse grupo de
filósofos historicamente e culturalmente iluminados, claramente apreciava os pontos fortes e os limites do
empreendimento filosófico à luz de tal atenção cultural e histórica.
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Nós filosofamos em meio a um mundo em mudança, e nossas filosofias nunca podem ser consideradas
definitivas ou finais. Filosofar, na verdade, não é uma questão de resolver um conjunto fixo de quebra-
cabeças. Em vez disso, envolve encontrar as muitas maneiras particulares de pensar que serão as mais úteis
à medida que tentamos explorar este mundo em constante mudança. Porque o mundo – incluindo a vida
humana – muda constantemente; pensamentos filosóficos nunca são definitivos. Seu objetivo é sempre nos
ajudar a superar a dificuldade atual.

Dada a vulnerabilidade de nossas respostas vacilantes e frágeis às perguntas últimas da vida, como lidar com
essa incerteza? Afinal, não somos máquinas de calcular lógicas, mas criaturas que perceberam a importância
da intuição e das emoções em nos ajudar a tomar decisões sobre nossas identidades, aspirações e
verdadeiro significado.

>>> Como Lidar com a Dúvida <<<

Os algoritmos mecânicos racionais do Iluminismo – tão brilhantemente parodiados no Guia do Mochileiro das
Galáxias, de Douglas Adams – podem oferecer apenas respostas lógicas ou matemáticas inadequadas (e
muitas vezes incompreensíveis) para o que são questões fundamentalmente existenciais, mas são muitas
vezes colocadas como se fossem questões lógicas ou científicas.

A fé religiosa, vista pelos racionalistas dogmáticos como uma violação da razão humana, é melhor vista como
ilustrando o dilema racional que todos nós enfrentamos na tentativa de entender as coisas. A fé é uma
rejeição da ilusão racionalista de que podemos ter conhecimento claro e seguro das respostas às perguntas
definitivas sobre nosso significado, valor e propósito.

Talvez fosse possível acreditar que essas grandes perguntas poderiam ser definitivamente respondidas por
um apelo a provas convincentes ou esmagadoras; no entanto, a discussão seguiu em frente, e devemos
deixar tais ilusões para trás.

Podemos dar respostas que acreditamos ser justificadas e avalizadas, mas não podemos provar que são
certas e confiáveis, mesmo que acreditemos que são. A fé é uma disposição, até mesmo uma determinação,
de lidar com este mundo apenas “meio” iluminado, acreditando com nossas mentes e confiando em nossos
corações que podemos encontrar boas respostas para nossas perguntas, enquanto tentadoramente sabemos
que não podemos provar que elas são verdadeiras.

A fé é uma rejeição da ilusão racionalista de que podemos ter conhecimento claro e seguro das respostas às
perguntas definitivas sobre nosso significado, valor e propósito.

Há, de fato, uma única faculdade humana chamada razão; no entanto, ela dá origem a múltiplas
racionalidades. Há muitas maneiras pelas quais os seres humanos podem ser racionais, uma das quais é a
abordagem monopolista associada à Era da Razão; outra é a distinta racionalidade da fé cristã.

Os primeiros escritores cristãos reafirmavam constantemente que sua fé era logikos: racional, no sentido de
corresponder a uma profunda compreensão das verdades fundamentais sobre nossa situação dentro de uma
ordem maior das coisas. Mas essas verdades profundas são melhor entendidas como sabedoria e não como
conhecimento, na medida em que nos permitem viver significativamente em um mundo complexo, lidando
com o sofrimento humano, vulnerabilidade, trauma e fracasso.

A sabedoria, no entanto, não é um conjunto de ideias abstratas, mas algo que é melhor compreendido através
de exemplares – seres humanos vivos que são vistos como personificação dessas ideias, e são capazes de
expressá-las na prática. Aprendemos o que significa ser bom, fiel e carinhoso através de encontros com
pessoas que exemplificam essas qualidades e evocam tanto admiração de nossa parte quanto um desejo de
emulá-las.

O cristianismo fala da personificação da sabedoria e da bondade em Jesus Cristo, usando a linguagem da


“encarnação” para expressar a crença central de que Cristo se manifesta e corporifica a sabedoria divina,
enquanto, no entanto, enfrente rejeição, sofrimento e crucificação.

Cristo exemplifica, encarna e torna possível a capacidade cristã de lidar com a falta de sentido, incoerência,
incerteza e tragédia. Parte do discipulado cristão é o desenvolvimento da “mente de Cristo” (1 Coríntios 2:16),

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21/10/2020 Como lidar com a incerteza – de "saber tudo" para "entender um pouco" | Ultimatoonline | Editora Ultimato

um hábito de pensamento e raciocínio que nos permite cultivar resiliência diante dos enigmas e traumas da
vida.

O cristianismo não oferece apenas uma nova maneira de contemplar nosso mundo, mas uma capacidade
aprimorada de viver dentro dele e de lidar com suas incertezas e complexidades, bem como nossa própria
fragilidade e falhas. Ele nos permite confrontar relatos simplistas e rasos de nossa situação, como o
racionalismo superficial do Iluminismo, ou o otimismo fácil de uma ideologia do “pensamento positivo”, que
busca exorcizar qualquer reconhecimento dos aspectos mais sombrios e perturbadores da natureza humana
ou da criação.

A realidade é complexa e ambivalente; a sabedoria exige que reconheçamos isso em vez de forçá-la a ser
uniformemente simples e positiva. A violência intelectual é incapaz de suprimir essa verdade sombria sobre
nosso mundo, que o cristianismo afirmou e enfrentou, em vez de implausivelmente nega-la.

A sabedoria é uma forma de conhecimento que se abstém de leituras simples e superficiais da realidade,
impulsionadas por uma intolerância à incerteza. Ela exige uma profunda imersão nos paradoxos e problemas
de viver em um mundo resistente a interpretações rápidas e fáceis.

Os “sábios” são aqueles que estão dispostos a adaptar seus padrões de pensamento e vida a este mundo
complexo em vez de tentar forçar o mundo a se conformar com suas ideias preconcebidas. A sabedoria exige
que respeitemos e abracemos ativamente um profundo mistério, algo que transcende os limites da
compreensão humana.

G. K. Chesterton declarou que, reconhecendo algo como misterioso, todo o resto fica lúcido. Como Newton
descobriu ao propor a ideia de gravidade, e os cristãos ao expressar a noção da Trindade, muitas vezes
descobrimos que algo que não entendemos – e talvez nem possamos – nos permite entender todo o resto.
Paradoxalmente, os mistérios têm uma notável capacidade de iluminar.

Nós, de fato, vemos através de um vidro escuro (1 Coríntios 13:12), sendo cativos à nossa capacidade
limitada de contemplar e entender, e à fragilidade das verdades em que baseamos nossas vidas. É por isso
que nos ligamos aos outros por companhia e solidariedade, agarrando-nos a uma visão de realidade e
personificação da sabedoria, que por sua vez nos segura, encorajando-nos a sondar e descobrir suas
profundezas e riquezas.

De alguma forma, as sombras do cosmos parecem mais suaves e suportáveis quando viajamos em
companhia – e em esperança, sabendo que alguém caminhou por essa escuridão antes de nós, abrindo uma
trilha que podemos seguir.

• Alister McGrath é um dos mais influentes pensadores cristãos da atualidade. Bioquímico, com pós-
doutorado em biofísica molecular e doutorado em teologia, é professor de ciência e religião na Universidade
de Oxford. É autor de vários livros, entre eles: C. S. Lewis, Richard Dawkins e o Sentido da Vida, Deus e
Darwin, A Ciência de Deus, Como Lidar com a Dúvida e Teologia Pura e Simples e O Ajuste Fino do Universo.
É presidente do Centro Oxford para Apologética Cristã.

> Este é um trecho editado de “Through a Glass Darkly: Journeys through science, faith and doubt – a memoir” (Ed.
Hodder & Stoughton, lançado em 3 de Setembro de 2020, ainda sem tradução em português) de Alister McGrath,
Professor Andreas Idreos de Ciência e Religião na Universidade de Oxford.

> Reproduzido do site da Associação Brasileira Cristãos na Ciência. Publicado originalmente na Revista Church Times,
em 28 de Agosto de 2020. Original aqui.

> Tradução: Tiago Garros

https://www.ultimato.com.br/conteudo/como-lidar-com-a-incerteza-de-saber-tudo-para-entender-um-pouco 3/3

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