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Ao se terminar a leitura do Manual dos Inquisidores, a primeira reação é
de perplexidade e de espanto: como é possível tanta desumanidade dentro
do cristianismo e em nome do cristianismo? Os sonhos originais da
proposta cristã são de ilimitada generosidade: Deus é pai com
características de mãe; todos são filhos e filhas de Deus; o Verbo ilumina
cada pessoa que vem a este mundo; a redenção resgata toda, a
humanidade; e o arco-íris da benevolência divina cobre todas as cabeças
e o universo inteiro. Como se passa deste sonho para o pesadelo da
Inquisição?
Não vale chorar nem rir. Importa compreender. É o que tentaremos
sucintamente.
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e os bispos. Eles são os representantes de Deus e os vigários de Cristo. A
missão do Magistério é guardar fielmente, defender ciosamente e
interpretar autenticamente o depósito das verdades salvíficas.
Mas eles não são humanos, sujeitos a erros? Deus novamente se
apiedou da fragilidade humana e concedeu ao Papa e aos bispos reunidos
um privilégio único. Em questões que interessam a todos concernentes à
fé e à moral, visando à salvação eterna, seus pronunciamentos gozam de
infalibilidade. Eles não podem errar e por isso, na história, nunca
erraram.
Eis o que reza a doutrina, uma verdadeira metafísica religiosa, quer
dizer, uma interpretação da história a partir dessa determinada ótica
religiosa.
As pessoas agora podem ficar tranquilas e gozar de plena segurança.
Basta ouvir o que o Magistério ensina, vivê-lo coerentemente e já estão
em conformidade com a vontade de Deus. O efeito é promissor: nada
menos que a vida eterna.
O Magistério, portanto, é portador exclusivo de uma verdade
absoluta. A verdade não é objeto de uma busca. Mas de uma posse
agradecida. Por mil formas esta verdade é distribuída por parte do
Magistério cada vez com graus diferentes de certeza, mas sempre sob a
assistência divina no horizonte da infalibilidade: pronunciamentos,
admoestações, encíclicas, declarações dos sínodos e dos concílios,
proclamação de dogmas de fé etc.
Face à verdade absoluta, não cabem dúvidas e indagações da razão
ou do coração. Tudo já está respondido pela instância suprema e divina.
Qualquer experiência ou dado que conflita com as verdades reveladas só
pode significar um equívoco ou um erro. A Igreja detém o monopólio dos
meios que abrem o caminho para a eternidade.
Sendo as coisas assim só existe um perigo fundamental: a
heterodoxia, a heresia e o herege. Em outras palavras, a grande oposição
se dá entre o dogma e a heresia, Para essa compreensão, erro gravíssimo
é radical não é tanto a injustiça, o_assassinato, a espoliação de povos e a
opressão de classe, o genocídio e o ecocídio. Esses são atos e atitudes
morais perversos mas corrigíveis; o caminho da eternidade continua
aberto pelo arrependimento e o perdão; a fé não é negada, nem as
verdades absolutas questionadas. Erro radical é a heresia ou a suspeição
de heresia. Aqui se negam as verdades necessárias e se fecha o caminho
para a eternidade. A perda é total. O mal, absoluto. O herege é o arqui-
inimigo da fé. O ser perigosíssimo. Se o perigo é máximo, máximas
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devem ser a vigilância e a repressão.
Por isso, nessa visão, o portador da verdade é intolerante. Deve ser
intolerante e não tem outra opção. Caso contrário a verdade não é
absoluta. Só os que não possuem a verdade podem ser tolerantes.
Consentir a dúvida. Permitir a busca. Aceitar a verdade de outros
caminhos espirituais. O fiel, este é condenado à intolerância.
Os inimigos da verdade e da reta doutrina (ortodoxia), os hereges
verdadeiros ou presumidos devem ser perseguidos lá onde estiverem e
exterminados. Deve-se esquadrinhar suas mentes, identificar os acenos
do coração, desmascarar ideias que possam levar à heresia. Contra o mal
absoluto - a heresia - valem todos os instrumentos e todas as armas. Pois
se trata de salvaguardar o bem absoluto - a salvação eterna, apropriada
pela adesão irrestrita à verdade absoluta como vem proposta, explicada e
difundida pela Igreja. Fora da Igreja não há salvação, porque fora dela
não existe revelação divina e por isso verdade absoluta. Podem existir
verdades fragmentadas, não sicut opportet ad salutem consquendam
(“como devem ser para se conseguir a salvação”, como repetem os
textos dos concílios), mas incapazes de abrir caminho pelo matagal das
confusões humanas e aceder a destinação eterna. Por isso a Igreja é
imprescindível.
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Em todos esses antifenômenos há uma lógica irretorquível. Em nome
dela se excluem outros, eventualmente até são mortos.
Uma vez aceito o sistema de ideias, tudo flui de forma férrea e
coerente. É a verdade intrasistêmica. Evidentemente, cabe analisar o
sistema. A boa intenção dos torturadores certamente não é boa, pois
produz a morte. O sistema é sacrificialista, pois exige mais e mais vítimas
para se manter. Como pode, como pretende, ter o aval divino? Mas isso
já é outra questão, não mais analítica, mas ética e teológica.
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sistemático em três partes: (1) o que é a fé cristã e seu enraizamento;(2) a
perversidade da heresia e dos hereges; (3) a prática do ofício de
inquisidor que importa perpetuar.
Trata-se de um manual de “como fazer”', extremamente prático e
direto,baseado em toda a documentação anterior e na própria prática
inquisitorial do autor Nicolau Eymerich. Pouca coisa do seu manual é
obra de reflexão pessoal. Tudo é remetido a textos bíblicos, pontifícios,
conciliares, imperiais. A astúcia teológica (e os inquisidores eram mestres
nisso) vem sempre justificada pelos teólogos mais eminentes. Em casos
controversos,expõe todas as teses correntes com seus prós e contras e
suas convergências e divergências. Numa palavra: nele encontra-se tudo,
como ele mesmo reconhece, o que é necessário para o bom exercício da
Inquisição.
Sua importância é tão grande que, depois da Bíblia (o Livro dos
Salmos é de 1457), foi um dos primeiros textos a serem impressos, em
1503,em Barcelona. E quando o Vaticano quis reanimar a Inquisição para
fazer frente a Reforma protestante mandou reeditar o livro como manual
para todos os inquisidores, primeiro em Roma, em 1578,1585 e 1587, e
depois em Veneza, em 1595 e 1607.
Quem são os autores?
Nicolau Eymerich nasceu em 1320 em Gerona, no reino de
Catalunha e Aragão. Fez-se dominicano, com excelente formação
jurídica e teológica. Em 1357 já é inquisidor-geral do reino até 1392, com
duas interrupções mais ou menos longas. Pelo excesso de zelo
inquisitorial, foi exilado dos territórios de Catalunha e Aragão. Mas foi
compensado em 1371 com o convite para ser o capelão do Papa Gregório
IX (o criador da Inquisição) quando ainda estava no exílio em Avinhão e
depois em Roma. Em 1376, ainda em Avinhão, escreveu o Manual que o
tornou famoso. Morreu em Gerona em 1399.
Devido ao surgimento de novas heresias no século XVI, fazia-se
urgente atualizar o manual de Nicolau Eymerich. Foi quando o
comissário geral da Inquisição romana, Thoma Zobbio, em nome do
Senado da Inquisição Romana, solicitou a outro dominicano, o canonista
espanhol Francisco Peña transcrever e completar o manual de Eymerich
com todos os textos, disposições, regulamentos e instruções aparecidos
depois de sua morte, em 1399. Peña redigiu uma obra minuciosa de 744
páginas de texto com 240 outras de apêndices, publicada em 1585.
Não obstante as inquisições locais com suas singularidades e
privilégios, o autor fortalece “o direito comum inquisitorial” como norma
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geral a ser seguida, o quanto possível, por todos os inquisidores em todas
as partes. Sabemos que havia duas Inquisições oficiais, a romana e a
espanhola. Peña consegue uma síntese processual e doutrinária tal que se
transformou em referência necessária e comum para as duas e para todos
os inquisidores.
A obra de Peña é uma transcrição e complementação de Eymerich.
Por isso, segue-lhe o mesmo esquema em três partes, referidas acima.
Não seria viável nem legível publicar tudo. Ascenderia a quase mil
páginas. Nesta edição, se aproveitou apenas a terceira parte, que trata dos
procedimentos do inquisidor. Como o leitor irá perceber, somos
informados, de saída, o que é a heresia, quem são os hereges e, depois
sim, quem é o inquisidor e como trabalha.
A obra é retilínea e severa. Não se perde em relatos circunstanciais
para não perder o rigor da argumentação. A prática da Inquisição está aí
com toda a sua inclemência. O autor possui um sentido prático
formidável. No final da obra, faz um inventário das 22 rubricas mais
recorrentes que o inquisidor pode consultar rapidamente como se fosse
um fichário. Aí estão as respostas claras para serem aplicadas sem
qualquer titubeio.
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Favoreça. Como se percebe, persiste a visão antiga (a partir do século
IV): a heresia é tida como um crime político de lesa-majestade.
Consoante o Manual, em primeiro lugar, o inquisidor se apresenta
com poder apostólico, investido da autoridade papal; outras vezes se
apresenta como “um enviado especial de Deus” (parte II, A, I). Em
seguida mobiliza todas as forcas eclesiais. Num determinado domingo na
catedral, todos são obrigados a ouvir o sermão geral proferido pelo
inquisidor. Aí ouve que “se alguém souber que alguém disse ou fez algo
contra a fé, que alguém admite tal ou tal erro,é obrigado a revelar ao
inquisidor”, sob pena de excomunhão. Os delatores são animados a
delatar, pois a delação os faz obedientes à fé divina (parte II, B, 6).
Mobiliza também todas as autoridades civis para que prestem
juramento, sob pena de excomunhão, caso não dêem “assistência em tudo
ao inquisidor, aplicando todas as leis canônicas contra os hereges, seus
defensores, filhos e netos” (parte II, A, 2):
Começa aí o trabalho de recepção das denúncias a partir das
delações ou da apresentação espontânea dos que se consideram em erro
de doutrina. Há três tipos de processo: por acusação, por denúncia
(delação), por investigação. A mais longa e complicada cabe aos
interrogatórios dos hereges e das testemunhas.
Curiosíssimos são os “dez truques dos hereges para responder sem
confessar” e os “dez truques do inquisidor para neutralizar os truques dos
hereges”'. A malícia da mente do inquisidor é completa. A astúcia,
refinadíssima. Como faziam os interrogadores militares da repressão
política, deve-se, diz o Manual, dar a impressão de que se sabe de tudo:
“Confessa logo, porque, como estás vendo, sei de tudo” (parte II, E, 23,
4).
Os acusados são submetidos a todo tipo de pressão, são induzidos à
confusão, os amigos são obrigados a pressioná-los, até a dormir com eles
na cela, para obrigá-los a falar. Mas “colocam-se as testemunhas, além do
escrivão inquisitorial, num bom lugar, na escuta, com a cumplicidade da
escuridão” (parte II, E, 23, 9). E então são apanhados em confissão e
condenados. Tudo sem maiores escrúpulos éticos. E, quando surgem,
vale a acribia da sofística teológica para justificar o que, no bom senso,é
injustificável.
Por exemplo: o inquisidor não deve prometer perdoar o acusado de
heresia caso este confesse. O inquisidor sabe que não pode prometer
perdão, porque a heresia não conhece perdão. Perguntam-se os autores do
Manual: “Isto não é simplesmente uma desonestidade?” A resposta é
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rabulística: “reduzindo, mesmo numa proporção mínima, a pena
atribuída a um delito (e é raríssimo que o culpado não tenha cometido
vários delitos), o inquisidor que tiver prometido 'perdoar' terá mantido
sua palavra” (parte II, E, 23,10). Portanto, não é desonestidade. O
inquisidor mantém a boa consciência, porque, como se explica pouco
antes no Manual, “tudo o que se fizer para a conversão de hereges é
perdão; e as penitências são perdão e remédio” (parte II, E, 23, 8).
Outro exemplo clamoroso é o processo contra mortos denunciados
de heresia. Para isso “não há limite de tempo”, diz o Manual. O morto é
processado. Se condenado, lança-se o anátema sobre sua memória: “os
filhos dos hereges serão declarados infames e inaptos a qualquer cargo
público ou privilégio” (parte III, 22). E a efígie do condenado já falecido
é queimada publicamente. Outras vezes, como os próprios autores do
Manual contam, exumavam-se os cadáveres e abriam-se os processos
contra eles. Sob o Papa Clemente VI (1342-1352),por exemplo, em
Béziers, foi exumado, por ordem deste papa beneditino, o cadáver de frei
Pedro João, dos franciscanos menores. Acusado publicamente de herege,
o frade já morto foi condenado, quebraram-lhe os ossos e os queimaram
(parte I, 12). Os autores justificam: “Trata-se de uma sentença
perfeitamente de acordo com o Direito, se bem que acabe,
lamentavelmente, punindo quem não cometeu crime nenhum” (os filhos
dos hereges).
Mas continuam com escrúpulos e perguntam-se a si mesmos:
“Como proceder contra um morto? Uma questão difícil, porque será que
se pode abrir um processo contra quem, por definição, não pode
comparecer? Não seria melhor falar claramente de 'condenação da
memória de Fulano' do que 'processo'? Sim,em direito civil. Mas
evidente que não, em se tratando de um delito de lesa-majestade divina”
(parte III,22).
Em vários lugares do Manual os autores concedem que são mais
rigorosos que qualquer outro tribunal humano. Mas justificam: tratam dos
crimes mais hediondos e terríveis, aqueles que ameaçam a salvação
eterna que são as heresias.
Lugar à parte ocupa o capítulo das torturas. Há precauções, pois os
autores têm consciência dos abusos; nem o inquisidor sozinho deve
torturar; precisa da permissão do bispo local. Mas praticamente todos os
suspeitos e acusados passavam por vários tipos de tortura. “Tortura-se o
acusado que vacilar nas respostas”; “o suspeito que só tem uma
testemunha contra ele é torturado” (parte III, F, 28), e por aí vai. A regra
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básica é esta: “É bom lembrar, antes de proceder à tortura, de que sua
finalidade é menos provar um fato do que obrigar o suspeito a confessar
a culpa que cala…; a tortura serve apenas como paliativo na falta de
provas” (parte III, F, 28, 7). Por isso, para a Inquisição não há pessoas
não-torturáveis. “Este é um direito que não conta nas questões de heresia:
nenhuma das pessoas isentas de tortura a propósito de qualquer delito não
o será, tratando-se de heresia”, embora, de fato, se prevejam exceções a
membros da alta hierarquia e da nobreza superior. Nem escapam os
velhos e as crianças: “Pode-se torturá-los, mas com uma certa
moderação; devem apanhar com pauladas ou, então, com chicotadas”
(parte II, H).
A confissão é tudo na Inquisição, não as provas, contrariamente ao
senso do direito universal, pois, sabemos, a confissão pode ser extorquida
sob coação. Os autores do Manual dos Inquisidores, num outro lugar,
esclarecem: “Diante do tribunal da Inquisição basta a confissão do réu
para condená-lo. O crime de heresia é concebido no cérebro e fica
escondido na alma: portanto,é evidente que nada prova mais do que a
confissão do réu. Eymerich tem razão (glosa do compilador e atualizador
Peña) quando fala da total inutilidade da defesa” (parte II, G, 31).
Com efeito,a defesa tem uma função meramente nominal, diria até
perversa, pois não trata de defender o réu, mas de agilizar a sua
condenação. O Manual ensina que ''o papel do advogado é fazer o réu
confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime
cometido" (parte II, G, 31).O estatuto do defensor não é assegurado,
como em qualquer legislação de Hamurabi (século XV a.C.) a Stalin ou
Hitler. O lugar do defensor é no capítulo sobre “obstáculos à rapidez de
um processo”. Os autores começam o capítulo acerca da “admissão de
um defensor” com esta sentença: “O fato de dar direito de defesa ao réu
também é motivo de lentidão no processo e de atraso na proclamação da
sentença; essa concessão algumas vezes é necessária (no sentido de
agilizar a sentença, porque o acusado não confessa: aclaração minha),
outras não” (quando confessa: parte II, F, 31).
Ademais, o inquisidor deve ter o campo totalmente aberto à sua
ação. Por isso “pode punir quem coloque entraves ao exercício da
Inquisição; deve excomungar qualquer leigo que publicamente ou não
discuta questões teológicas; ‘procederá' (abrirá processo) contra qualquer
advogado ou escrivão que der assistência a um herege” (parte III, 18).
Como, em condições dessas, haver lugar para um advogado de defesa?
O medo da heresia era tanto que implicava violação das comezinhas
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regras do sentido do direito universal e também a estupidificação dos
leigos, que jamais podiam se ocupar com a teologia. A fé devia ser aceita,
jamais pensada. A reflexão religiosa era monopólio exclusivo da
hierarquia. Quem pensasse a fé, e pensar a fé significa discutir questões
teológicas, era já suspeito de heresia, portanto, objeto da repressão. Não
pensavam assim os agentes da repressão militar em regi-me de segurança
nacional: quem discutir publicamente política é já suspeito de subversão
e, logo, de sequestro, de tortura e de cárcere? Mudem os sinais, mas não a
lógica de um sistema totalitário e por isso repressivo de toda e qualquer
diferença.
As punições variavam consoante o grau de adesão do acusado às
doutrinas consideradas heréticas ou suspeitas de heresia, que vão desde a
simples abjuração, expiação canônica, pagamento de multas,
expropriação dos bens, excomunhão, prisões e a fogueira pelo braço
secular. Os leitores verão a severidade das penas e também os processos
psicológicos para demover os hereges convictos de suas doutrinas. Vão
dos flagelos das prisões escuras, das torturas, das humilhações, tudo para
“acordar a inteligência” e desdizer o que diz (parte II,H). Se este método
não funcionar, então se utiliza a bondade, a presença da esposa e dos
filhos. Se nada adiantar, será entregue ao braço secular e irá para o auto-
de-fé. O Manual é claro ao subordinar o bem individual ao bem da Igreja:
“É preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da
condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem
comum e aterrorizar os outros (ut alii terreantur); ora, o bem comum
deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade
visando ao bem de um indivíduo” (parte II, 22, 10).
Efetivamente, o mundo da Inquisição é marcado de medos, sermões
aterradores dos inquisidores, delações, suspeitas, vinditas, perseguições e
sobretudo autos-de-fé macabros, com condenados à fogueira in conspectu
omnium. Que sobrou aqui do cristianismo como boa e alvissareira notícia
de libertação, de fraternidade e sororidade universais, de amor ilimitado?
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consagrados pelo sacramento da ordem e que detém o poder sagrado na
comunidade. De tal forma que a Igreja ficou sendo simplesmente
sinônimo de hierarquia, presente ainda hoje na compreensão comum.
Quando se diz: que pensa a Igreja, que diz ela sobre a família, o
socialismo e o mercado mundial, se pensa: que diz o Papa, que ensinam
os bispos acerca dessas questões?
A partir do século X, se configurou de forma severa a divisão na
Igreja entre o corpo clerical e o corpo laical. A primeira codificação
jurídica da Igreja, o Código de Graciano (século XII), consagra
definitivamente essa visão como direito divino. E isso veio pelos séculos
afora. Não admira que, na crise do pensamento cristão em confronto com
a modernidade, o Papa Gregório XVI (1831-1846) tenha reafirmado para
toda a Igreja: “Ninguém pode desconhecer que a Igreja é uma sociedade
desigual, na qual Deus destinou a uns como governantes, a outros como
servidores. Estes são os leigos, aqueles são os clérigos.” Pio X, em 1904,
o repete de forma quase grosseira: “Somente o colégio dos pastores tem o
direito e a autoridade de dirigir e governar. A massa não tem direito
algum, a não ser o de deixar-se governar qual rebanho obediente que
segue seu Pastor.”
Por mais que a teologia posterior e o Concílio Vaticano II (1962-
1965) tenham enfatizado a natureza comunitária da Igreja, prevalece
ainda na doutrina e na mente do Magistério e dos fiéis (e em textos
importantes do próprio Vaticano II) a noção de que Igreja é
fundamentalmente a Hierarquia. O direito canônico de 1983 reafirma de
novo que é de instituição divina a existência entre os fiéis dos que são
clérigos e os outros também denominados leigos (cânon 207).
Ora, essa divisão traz desigualdades. E as desigualdades são sempre
odiosas, porque implicam relações tensas e, de certa forma, injustas. Por
que o leigo, por mais inteligente e sábio que seja na sociedade civil, na
sua vida profissional de reconhecido cientista, notável escritor, notório
jurista, deva crer, pelo fato de ser leigo, que no interior da Igreja-
comunidade pouco ou nada vale, que tenha que estar sempre e
inapelavelmente submetido a um grupo que alega um poder recebido de
cima e por isso infenso a qualquer crítica e correção?
Essa divisão entre os clérigos que tudo têm e os leigos despojados
de tudo criou incontáveis polêmicas, rebeliões e rupturas do corpo
eclesial, primeiramente entre Igreja grega ortodoxa e Igreja romano-
católica, depois as Igrejas da Reforma com suas sequelas até os dias de
hoje, e em seguida o enfrentamento cada vez mais rígido e tenso entre os
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cristãos e os portadores de poder sagrado, na medida em que
universalmente cresce o espírito de participação, de corresponsabilidade,
de maturidade e autonomia de cada pessoa humana com seus direitos e
deveres pessoais e sociais.
Para fazer frente a essa crise, já há séculos, os clérigos criaram um
discurso de legitimação. Dogmatizaram-no. Atribuíram origem divina ao
seu poder. Elaboraram uma visão do mundo, da revelação de Deus, em
que eles constituem o pivô de todas as questões. Eles são decisivos para a
salvação da humanidade. A leitura da história que referimos no início
destas reflexões constitui a peça de legitimação do corpo clerical e de
seus poderes. É um discurso ideológico,porque todo discurso ideológico é
um discurso do interesse real ou escuso do ator à custa do interesse dos
outros. Este discurso é apresentado como intocável e inquestionável
porque de origem divina. Todos os professantes da fé cristã devem
aceitá-lo humildemente e jamais colocá-lo sob qualquer dúvida. Na
verdade, trata-se de um discurso humano, demasiadamente humano,
legitimador dos direitos, privilégios e interesses históricos dos detentores
de poder na Igreja.
Hoje ele já se fez um discurso inconsciente, tal é o nível de
imposição e internalização da maioria dos cristãos e nos próprios
portadores de poder.
A característica desse sistema de poder é o autoritarismo.
Autoritário é um sistema quando os portadores de poder não necessitam
do reconhecimento livre e espontâneo dos membros da comunidade para
se constituir e exercer. Por isso temos a ver com um sistema de
dominação. Quando há aceitação livre e espontânea de uma pessoa ou
instituição de direção por parte dos membros da comunidade, então
estamos diante da legítima autoridade. Separada desse reconhecimento, a
autoridade decai para autoritarismo. É o que vigorou e vigora na Igreja
romano-católica já há séculos.
Para se entender no nível estrutural um fenômeno como este da
dominação clerical, não se deve partir daquilo que os clérigos pensam e
dizem de si mesmos (a origem divina de seu poder etc), mas daquilo que
eles efetivamente fazem no seu processo real de vida eclesial. O que eles
fazem é manifesto: conservam em suas mãos, de forma corporativo-
privada, os meios de produção simbólica, controlam sua distribuição,
hierarquizam as formas de participação subordinada (mas em nenhum
caso em termos de decisão; esta é reservada somente aos clérigos. As
mulheres, que constituem mais da metade da Igreja e são mães ou irmãs
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da outra metade, vêm excluídas, e os leigos, atrelados), limitam as formas
de consumo religioso-simbólico. Fundamentalmente se dá esse dualismo,
reforçado enormemente sob o Pontificado de João Paulo II: de um lado
está o ordenado, homem, celibatário que pode produzir, celebrar, fazer o
discurso oficial, decidir; do outro está o não-ordenado que assiste e é
convidado a se associar ao projeto e à visão do ordenado, devendo
sempre obedecer. Dessa forma, toda a capacidade de criar, de produzir,
de decidir dos não-ordenados, dos leigos, deixa de ser aproveitada, ou o é
de forma atrelada. O corpo eclesial aparece depauperado, formalizado,
marcadamente machista, enrijecido e mandonista. A dimensão da anima,
pela exclusão das mulheres e pelo recalque da dimensão feminina nos
homens de poder, subtrai ao corpo clerical de qualquer irradiação
benfazeja e humanizadora. O excesso de poder mostra dimensões
necrófilas em quase tudo o que pensa, diz e faz. Não há um interesse real
e ousado pelos problemas dos homens e das mulheres, mas uma
preocupação quase neurótica pelos interesses da Igreja-hierarquia, de sua
identidade, de sua preservação, de sua imagem.
A leitura doutrinária da revelação de verdades absolutas mascara o
real conflito subjacente à Igreja: o poder de uns sobre outros. Alguns
detêm o poder de decidir sobre a verdade, dar-lhe uma formulação única,
de definir qual é o caminho necessário para a eternidade. Decretam que a
sua verdade é absoluta. E a impõem aos outros. Por isso o discurso do
outro é um discurso impossível. Deve ser silenciado, perseguido,
estrangulado. Daí se entende o rigor da Inquisição. O que está em jogo,
realmente, é o poder do corpo clerical, que não tolera nenhum
concorrente ou nenhum confronto. Ele quer se manter como o único. É
ele que se entende como absoluto e terminal. Não a verdade e a
revelação, pois estas, por serem realidades divinas, são sempre abertas e
passíveis de novas achegas e novas leituras, sem jamais esgotar sua
riqueza interior.
O espírito que fez surgir a Inquisição perdura na Igreja romano-
católica, pois persiste a predominância do corpo clerical sobre toda a
comunidade e a visão piramidal de Igreja, centrada no poder sagrado.
Enquanto perdurar esse tipo de prática com a sua correspondente teologia
(ideologia), haverá sempre condições psicológicas, espirituais e materiais
para a ativação do espírito inquisitorial e dos instrumentos de sua
implementação (controle, repressão, silenciamento, condenações etc.).
Ele continua na mentalidade e nos métodos da atual Congregação
para a Doutrina da Fé. As modificações históricas, ao nível estrutural, são
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praticamente nulas. Evidentemente, não se condena mais à morte física,
mas claramente não se evita a morte psicológica. Pressiona os acusados
até o limite da suportabilidade psicológica. São desmoralizados, faz-se
perder a confiança em sua pessoa e palavra; por isso se proíbe que sejam
convidados para conferências, assessorias e retiros espirituais; muitos são
transferidos para outros países, são forçados a tomar “anos sabáticos”
eufemisticamente, quer dizer, devem deixar as cátedras; pressionam-se as
editoras a não publicar seus escritos e proíbem-se as livrarias religiosas
de expor e de vender seus escritos. Praticamente a maioria das vítimas da
ex-Inquisição, para poderem sobreviver humanamente, se vê obrigada a
abandonar suas atividades ministeriais e teológicas. Mas sejamos
sensatos: porém, mais vale um herege vivo e feliz em sua fé, que um
teólogo ortodoxo infeliz, castrado e recastrado pelo ex-Santo Ofício.
Ainda perdura o processo de delação, a negação ao acesso às atas
dos processos, a inexistência de um advogado e a impossibilidade de
apelação. A mesma instância acusa, julga e pune. Isso é uma
perversidade jurídica em qualquer Estado de direito, pagão, ateu ou
cristão. Não há a salvaguarda suficiente do direito de defesa.
As punições impostas são ainda compreendidas como benevolência
e misericórdia da Igreja. Após a punição que o autor, desta introdução
recebeu da ex-Inquisição em 1984 (deposição como editor da Editora
Vozes, deposição de redator da Revista Eclesiástica Brasileira, proibição
de dar aulas, de falar publicamente, de dar entrevistas, de publicar
qualquer texto e por fim a imposição de um “silêncio obsequioso” por
tempo indeterminado, portanto punições nada banais para um intelectual
cujo único instrumento e arma é a palavra falada e escrita), o atual
Pontífice, através de seu Secretário de Estado, Cardeal Agostino Casaroli,
me escreveu com data de 29 de julho de 1985:
“Aquilo que, efetivamente, é requerido ao Rev. Padre, ou seja, ater-
se a algumas limitações, entre as quais o obsequiosum silentium, visa
como finalidade ajudá-lo a ter um período de pausa para repensar diante
de Deus problemas que são de grande importância para um teólogo e para
refletir nas suas responsabilidades diante dos irmãos de fé”(cf. Roma
locuta: documentos sobre o livro Igreja: Carisma e Poder, CDDH,
Petrópolis 1985, p.152).
A subjetividade das pessoas que sentem, que desenvolveram um
sentido de justiça e de equidade dentro da Igreja, que militam, com riscos
pessoais, até de ameaça de morte, na defesa e promoção dos direitos
humanos pisoteados nas sociedades autoritárias do Terceiro Mundo, nada
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conta. Conta a objetividade da doutrina (fruto da subjetividade coletiva
do corpo clerical que a impõe como objetiva aos outros), que deve ser
salvaguardada a preço do escândalo dos mais simples, daqueles que
sofrem a contradição de uma Igreja que se compromete na observância
dos direitos humanos na sociedade e não consegue fazer valê-los nas
relações internas dela mesma.
Não cabe refutar a lógica do sistema. Mas questionar o sistema
mesmo. Dispensamo-nos desta tarefa, pois transcende o sentido da
introdução deste Manual dos Inquisidores. Mas não será difícil o próprio
leitor fazê-lo, pois:
27
A “Santa” Inquisição é expressão de um componente neurótico-
obsessivo do corpo clerical e cristaliza a dimensão de pecado que existe
nas relações internas da Igreja. Pois, a própria Igreja-comunidade-de-fiéis
se confessa santa e pecadora. Se assim é então aqui é o pecado
institucional que ganha a cena e a ocupa durante séculos. Seu espírito
vaga assustador até os dias de hoje. E devemos nos precaver contra ele.
Antes, ajudar a própria instituição eclesial a ser fiel à sua utopia
originária e a ser um lugar de exercício de liberdade e de experimentação
da graça humanitária de Deus. E isso se fará na medida em que os
professantes da fé romano-católica se reapropriarem daquilo de que
foram historicamente despojados: sua capacidade de experimentar o
sonho de Jesus, de dizê-lo de forma criativa e responsável no interior da
comunidade, de confrontá-lo solidariamente com outras experiências do
evangelho de Deus na história e articulá-lo com o curso do mundo, onde
se revela também e principalmente o desígnio de benquerença e de amor
de Deus.
A comunidade cristã viveu séculos sem a Inquisição. Isto significa
que não precisou dela para viver e sobreviver. Portanto, ela é supérflua.
Sua existência mantém o mesmo escândalo, denota uma patologia e
concretiza um pecado. Nunca teve direito a existir. Não deve mais existir.
Por amor a Deus, por fidelidade a Jesus Cristo e por respeito às opiniões
religiosas diferentes nas sociedades humanas.
LEONARDO BOFF
Prof.de Ética e Teologia na UERJ
28
29
30
A. A HERESIA
1. A noção de heresia
31
conceito de heresia envolve os três conceitos de: eleição, adesão e
separação.
32
4 e 2.2, q. II, art. 2), que existem três causas ou três razões capazes de
determinar o caráter herético de um artigo ou de uma proposição. Uma
proposição é herética:
1 Na tradição católica, o conjunto dos livros canônicos constitui a Bíblia (Antigo e Novo Testamentos).
22 Quer dizer, o Credo.
33
f) A tudo o que tenha sido proclamado, por unanimidade, pelos Padres da
Igreja, no que diz respeito à reputação da heresia;
g) A tudo o que decorra, necessariamente, dos princípios estabelecidos
nos itens c, d, e e f.
3. O erro e a heresia
34
Juridicamente, a noção de erro e heresia tem o mesmo sentido?
O conceito de erro é mais amplo, pois, se toda heresia é um erro,
nem todo erro é herético. E se todo herege está errado, nem todos aqueles
que cometem erro sã o necessariamente hereges.
Mas, no dom ínio da f é, heresia e erro sã o absolutamente
sinônimos.
35
B. OS HEREGES
4. Acepções jurídicas do
qualificativo herético
a) Os excomungados;
b) Os simoníacos3;
c) Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que ela
recebeu de Deus;
37
b) A totalidade do que a Igreja divina decretou como de fé, seja em
um dos quatro Concílios4, seja nas constituições ou decretos posteriores:
a Igreja decreta como de fé o que está estabelecido nos livros canônicos.
39
a) Serão considerados hereges os que praticarem atos propriamente
heréticos. Por exemplo: solicitar o “consolamento” 5, adorar os demônios,
comungar com os hereges, e, de acordo com os seus ritos etc.
b) Serão legitimamente considerados hereges — é a opinião unânime dos
teólogos e canonistas — os que visitam os hereges, ou os que os
sustentam, ajudam ou acompanham. As suspeitas são, neste caso,
suficientemente fortes para justificar por si mesmas processos por
heresia.
7 Alusão clara aos místicos e fraticelli que criticavam insistentemente a riqueza da Igreja e
pregavam a pobreza absoluta de Cristo e seus apóstolos. O argumento incontestável que a Igreja
devolvia: Judas era o “tesoureiro” dos Doze. É, e tinham algumas moedas. . .
41
9. Hereges condenados pelo
Direito Canônico
43
Borboritas é um outro nome atribuído aos maniqueus.
Os messalianos ou massalianos nada mais são do que os euquitas
ou entusiastas, como explicam claramente os cânones do primeiro
Concílio de Constantinopla. Santo Agostinho menciona-os no seu
Catálogo de Heresias. A heresia consistia em pregar que era preciso rezar
sempre, sem cessar, e que a oração resolvia tudo.
Os audianos, ou odianos, confundem-se com os antropomorfitas,
chamados também de vadianos, do nome de um certo Áudio, ou Audeu,
contemporâneo de Ario, que, tomando erroneamente o sentido de uma
frase da Bíblia — “façamos o homem à nossa imagem e semelhança”—,
pregava que a divindade tinha forma humana. Os audianos pregavam
também que os bispos ricos iam para o inferno, e outras heresias.
Os hidroparastatas são nada menos que os aquaristas. Como se
sabe, só consagravam a água dentro do cálice.
Os tascodrogitas são da família dos frigastos e dos montanhistas:
aceitam o Antigo e o Novo Testamentos, mas veneram outros profetas,
particularmente o herege Montano e as duas prostitutas Prisca (ou
Priscila) e Maximila.
Quem eram os batraquitas, que alguns chamam braquitas? Ignoro.
Este termo é certamente o apelido — significativo naquele tempo — de
um grupo de hereges.
De acordo com Santo Agostinho, os marcelinianos teriam sido os
discípulos de uma certa Marcelina, ela própria pertencente à seita dos
carpocratianos, que venerava e incensava junto às imagens de Jesus, São
Paulo, Homero e Pitágoras.
João Damasceno fala dos apotáticos (ou seja, secretos, escolhidos),
que abominavam as pessoas casadas e a quem possuía qualquer bem
material. Sacóforos, será esta uma leitura correta do nome? Já encontrei
sacróforos, sacófaros e sacópatos. Seriam maniqueus, a se acreditar em
Bernardo de Luxemburgo. Pedro Godefroi leva em conta essas diferentes
leituras e pergunta se não se trata, na realidade, dos síforos, mencionados
nas definições dos dogmas da Igreja. Acreditase que não batizavam “em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”: neste caso, esses sacóforos
ou síforos não eram outros senão os bonosianos.
44
11. Hereges condenados pelos
Legados do Papa, na Cúria romana
Ou em outros lugares
9 Na verdade, “a tal Margarida foi cortada em pedaços diante dos olhos de Dolcino; este, por sua
vez, também foi cortado em pedaços. Os ossos e os membros dos torturados foram atirados à
fogueira, juntamente com alguns de seus seguidores”. (Bernard Gui, Praclica, trad. Mollat, vol. II,
p. 107).
45
Ordem dos Frades Menores10: foi acusado publicamente de herege.
Depois, quebraram seus ossos e os queimaram.
Na Catalunha também queimaram begardos: Durant de Badauh, de
Gerona; Pedro Olier, de Maiorca; Bonanat, de Barcelona; Guilherme
Gilberto, de Valença; frei Arnaldo Montaner, franciscano, de Puigcerd
à…
Em todo lugar, muitos hereges foram condenados e entregues ao
braço secular, principalmente nas regiões de Carcassona, Toulouse, Seu
d’Urgell e Castres.
12. Os heresiarcas
47
intelectual e afetivamente à heresia, caíram em si,tiveram piedade de si
próprios, ouviram a voz da sabedoria e, abjurando dos seus erros e
procedimento,aceitaram as penas aplicadas pelo bispo ou pelo inquisidor.
Denominam-se hereges relapsos os que, abjurando da heresia e
tornando-se por isto penitentes, reincidem na heresia. Estes, a partir do
momento em que a recaída fica plena e claramente estabelecida, são
entregues ao braço secular para serem executados, sem novo julgamento.
Entretanto, se se arrependem e confessam a fé católica, a Igreja lhes
concede os sacramentos da penitência e da Eucaristia.
Há três tipos de relapsos:
14. Os blasfemadores
50
como é que ele podia se prevenir? Mas Ló, embebedado por sua filha
mais velha, e dormindo com ela, pecou parcialmente,não de todo: ele
conhecia o vinho, seu poder, e podia ter se prevenido. Pecou quando se
embebedou. Mas ele nunca tinha passado pela experiência da bebedeira e
não sabia que ela o levaria à luxúria! Portanto, é parcialmente perdoado
pelo incesto. Mas, quando embebedado pela segunda filha,dorme com
ela, não merece perdão, porque conhecia os efeitos do vinho e a ligação
entre embriaguez e luxúria: devia, então, tomar cuidado com ela! Neste
segundo caso, se comporta como um verdadeiro incestuoso. Entretanto,
não se pode perdoar Ló nem pela primeira nem pela segunda bebedeira,
porque ele sabia o que era o vinho e não tomou cuidado. Não se pode
desculpá-lo muito pelo segundo incesto, porque sabia o que devia fazer
depois da primeira vez.
O blasfemador sabe quanta raiva o jogo e outras coisas podem
provocar, e quantas injúrias heréticas podem desencadear. Que se cuide,
se quer evitar a justiça da Inquisição!
17 Em Teologia, faz-se uma distinção entre o culto de latria, que se faz apenas e tão somente à
divindade, e o culto de dulia, que se faz aos santos. Latria: adoração. Dulia: veneração.
52
Incluem-se nesta categoria de adivinhos e videntes heretizantes
aqueles de quem se sabe — através deles próprios ou de terceiros, ou
porque foram apanhados em flagrante — que misturam práticas
heretizantes às suas profecias e predições.
Batizar imagens, rebatizar crianças, ungir-se com os santos óleos,
encher de fumaça a cabeça dos cadáveres, e assim por diante: todas são
práticas heretizantes. Os que se dedicam a isso devem ser considerados
hereges. E, como tais, só serão perdoados pelos juízes se se
arrependerem, abjurarem e aceitarem as penas que lhes forem impostas.
Caso contrário, serão entregues como hereges impenitentes ao braco
secular para passarem pelo suplício do fogo.
Quando não se tem certeza absoluta da existência destes tipos de
prática (seja porque o adivinho suspeito não confessa, seja porque não
admite que pecou), mas se têm indícios, deve-se examiná-los. E se se
justificar uma forte suspeita de heresia, deve-se ver o tipo de abjuração
prevista em casos de suspeita grave; deve-se pedir uma abjuração de
suspeita leve, quando os indícios se revelarem frágeis.
Se os indícios não são evidentes e se a única prova clara for a boca
do povo, deve-se apenas aplicar uma pena canônica a quem é alvo desses
comentários.
Em caso de dúvida sobre o caráter heretizante das práticas utilizadas
por um adivinho (por exemplo: se o adivinho se volta para o oriente, ou
se pronuncia palavras estranhas ou incompreensíveis), o inquisidor não
fará nada: deixará para os juízes18 a tarefa de castigar esse adivinho de
acordo com a prática canônica.
54
outros diabos, e que contém orações abomináveis reveladas pelo próprio
Lúcifer e por outros demônios. Três maneiras - e sempre as mesmas! - de
invocar o diabo aparecem também no livro atribuído ao necromante
Honório, intitulado Tesouro da necromancia. Peguei estes livros de
necromantes que eu próprio capturei. Li e mandei queimá-los em público.
Encontra-se, aliás, esta tripla invocação na confissão de vários
invocadores do diabo; e minha prática de inquisidor, e a de muitos outros
colegas, dá testemunho disto:
a) Nestes livros - e em muitos outros, como mostra a prática inquisitorial
- ocorre que alguns deles, ao invocar os demônios, prestam-lhes um
verdadeiro culto de latria, ou seja, oferecem-lhes sacrifícios, os adoram,
dirigem-lhes preces execráveis, se entregam aos demônios, prestam-lhes
votos de obediência, prometem-lhes fazer qualquer coisa para se ligar a
eles jurando por esse ou aquele demônio, chamando-o através de
invocações; cantam em seu louvor, fazem-lhes genuflexões, prosternam-
se, fazem votos de castidade em sua honra, jejuam, flagelam-se, vestem-
se de preto ou de branco para lhes render cultos, pedem sua ajuda através
de sinais, escrevendo letras ou pronunciando nomes; acendem
candelabros, os incensam, queimam âmbar em seu louvor, aloés e outras
substâncias do gênero; sacrificam-lhes aves e outros animais, oferecem-
lhes seu próprio sangue; jogam sal no fogo, oferecem sacrifícios de toda
espécie. Todas essas práticas, e mil outras que os demônios inspiram e
exigem, implicam atos de latria: parece, efetivamente, que todas estas
práticas estavam previstas no Antigo e no Novo Testamentos apenas para
o culto de Deus, e não para o culto dos demônios. Esta é, portanto, a
primeira maneira de invocar os demônios. É assim que os sacerdotes de
Baal invocavam o seu deus: oferecendo-lhe o seu próprio sangue e o
sangue dos animais, como está escrito no Livro dos Reis (4,18)!
b) Outros invocam o demônio prestando-lhe um culto de veneração:
misturam, por exemplo, nomes de demônios com nomes de beatos em
preces execráveis, considerando até mesmo os espíritos impuros como
mediadores entre o homem e Deus, Deus a quem imploram, com os
candelabros acesos, que venha interceder por eles! É assim, por exemplo,
que os maometanos invocam Deus: através da mediação de Maomé. E os
begardos através da mediação de frei Pedro João e outros hereges
condenados pela Igreja.
55
c) Outros, finalmente, se entregam a práticas bastante estranhas para
invocar os demônios, e não se poderia dizer ao certo se são cultos de
latria ou de dulia. Por exemplo: há quem invoque o demônio riscando um
círculo no chão, colocando no meio uma criança; colocam diante dela um
espelho ou uma espada, uma vasilha, um objeto brilhante. O necromante
então, com o livro nas mãos, lê as invocações ao demônio. Esta é uma
maneira, dentre as inúmeras que a prática inquisitorial ensina. Este tipo
de invocação foi o mesmo de que se utilizou Saul ao se servir da pitonisa
para invocar o espírito pitônico; na realidade, não existem indícios, na
invocação de Saul, nem do culto de dulia nem do culto de latria.
59
então, o rejudaizante passará a viver como um judeu, com os judeus,
retornando à sua própria escola e à sinagoga.
É através de um rito parecido que se admite no judaísmo o cristão
judaizante. No entanto, neste caso, os judeus fazem a circuncisão do
postulante. Enquanto as crianças judias são circuncidadas em toda a
volta, os cristãos judaizantes — adultos ou crianças — são circuncidados
apenas na parte superior do prepúcio: os judeus assim procedem para que
haja uma diferença bem clara entre uns e outros.
XVI. Na realidade, é como apóstatas que serão considerados tanto os
cristãos convertidos ao judaísmo, como os judeus convertidos e
rejudaizantes. O crime de apostasia e heresia é claro — e, por isso,
passível da intervenção do inquisidor — independentemente das
circunstâncias da adesão ou do retorno ao judaísmo. O judeu rejudaizante
recebeu o batismo sob ameaça de morte ou era criança? O crime de
rejudaização continua absoluto20. Entretanto, a criança rejudaizante será
tratada com menos rigor.
Os judeus culpados de terem facilitado, de alguma forma, a adesão
ao judaísmo serão condenados às seguinte penas: proibição de conviver
com os cristãos, multa, prisão e surra. Porém, a um crime particularmente
grave corresponderá uma pena mais dura, podendo chegar até a entrega
do culpado ao braço secular: cabe ao juiz decidir. Esta é a opinião mais
comum entre os inquisidores a respeito deste assunto.
Além disso, deve-se chamar a atenção para o fato de que, de
acordo com o que estabelece o rei Felipe II (Leyes de Castilla, 1.2,c.8:
Judios ymoros), o judeu que se converte ao cristianismo deve mudar de
nome. Deve ser veementemente aconselhado a tomar um nome do
martirológico cristão, senão despertará sempre nos outros suspeitas sobre
as suas origens.
Finalmente, embora todos os manuscritos do Directorium que
consultei tenham esse texto sobre a discriminação entre a circuncisão
ritual judia comum e o rito da circuncisão praticada nos cristãos
judaizantes, ouvi dos rabinos mais eruditos e judeus convertidos que pude
consultar sobre esse assunto, em Roma, que esta discriminação jamais
ocorreu na tradição judaica. Meus interlocutores acrescentam que de
maneira nenhuma poderiam considerar como um dos seus alguém cujo
prepúcio não tivesse sido circuncidado.
20 Alusão bastante clara à “escolha” proposta, no século XV, á comunidade judaica, na Espanha. Mas
há o mito de uma igreja e de uma Inquisição que protegiam os judeus dos maus-tratos (c/. por
exemplo, G. e J. Testas, L' Inquisition, Paris, Presses Universitaires de France, p. 59). Veremos um
pouco mais adiante o que é realmente este regime de favores.
60
18. Os cristãos que aderiram à seita
dos sarracenos
61
Deus e a fé em um Deus criador de todas as coisas. Os judeus que negam
essas verdades devem ser considerados hereges, e tratados como tais aos
olhos de sua própria teologia.)
63
infiéis; não fazem isso para obrigá-los a crer (pois, mesmo vencidos e
prisioneiros, conservariam sua liberdade de crer ou não crer), mas para
que não sirvam de obstáculo à verdadeira fé.”
Mas há um outro tipo de infiel: os que já receberam o dom da
fé,beneficiaram-se com isso(como os hereges e os apóstatas). Quanto a
estes, a Igreja deve puni-los fisicamente e obrigá-los a manter“o que
prometeram e conservar o dom que receberam”.
Muitos inimigos da verdade atacam-na de diversas maneiras,
tentando provar, por exemplo, que cabe aos senhores temporais, e não
aos prelados e inquisidores, julgar e condenar judeus, muçulmanos e
outros delinquentes em matéria de fé. Estes inimigos da verdade alegam,
para se beneficiar,dois tipos de argumentos: canônicos e do Direito Civil.
Os argumentos tirados do Direito Canônico são refutados por argumentos
canônicos. Quanto aos argumentos jurídicos ou do Direito Civil, alegados
por quem pretende esvaziar a Inquisição de seus poderes,aqui vão eles:
64
verdade, protegidos.
66
Inquisição ou contribuiu para criar-lhe dificuldades, é atingido de pleno
direito pelo aguilhão da excomunhão.
Nos três casos, essas pessoas são julgadas como hereges se passam
um ano inteiro sob a pena de expulsão. Quem favorece, obedece ou
acolhe hereges talvez não seja ele próprio um herege; mas foi citado e,
por medo, não compareceu. Talvez tenha dificultado o trabalho da
Inquisição ou protegido os hereges por amor ao dinheiro? Apesar disto,
será julgado como herege. E com razão: quem fica durante um ano inteiro
sob o peso da excomunhão pode não ser realmente herege, mas a Igreja,
que julga o foro externo, pode com legitimidade considerá-lo herege.
Vejamos, agora, como se condenam os hereges, para vermos, a
seguir, como se devem condenar as pessoas excomungadas.
O herege abjura seus erros e aceita expiá-los de acordo com a
decisão do bispo e do inquisidor; ou não abjura. Se abjura, é condenado à
prisão perpétua, e esta será a sua expiação. Se não abjura, é entregue
como impenitente ao braço secular para ser executado. A mesma coisa
para quem foi excomungado há um ano, independentemente do motivo
que o levou à excomunhão:se se retrata,fica livre da excomunhão e é
condenado à prisão perpétua; em caso de não se retratar, é entregue ao
braco secular para ser castigado até a morte como herege.
Nos demais casos, há excomunhão por contumácia, mas por uma
outra razão diferente da fé.
É o caso de alguém que foi citado a comparecer e responder por
alguns artigos, que não são de fé católica, e não comparece; ou de alguém
que não devolve isto ou aquilo a uma determinada pessoa, num espaço de
tempo preestabelecido, e de outros mais. Há numerosos casos que
merecem a excomunhão, ao arbítrio do juiz, ou de pleno direito (como
por exemplo, quando se levanta a mão para um representante do clero).
Quem ficou durante um ano sob excomunhão desse tipo, não será julgado
como herege, mas como suspeito de heresia. Todos os autores estão de
acordo que todas as pessoas excomungadas devem ser citadas pelo
Tribunal da Inquisição, depois de um ano inteiro nesta situação.
E como proceder contra eles? Na falta de uma legislação
específica, o autor deste Manual convocou, juntamente com o bispo de
Gerona em 1368, um conselho formal de juristas e especialistas em
67
religião. Este conselho teve o seguinte procedimento, que foi incluído nos
autos da Cúria gerondina.
A pessoa que foi excomungada há um ano ou mais é considerada
suspeita de heresia por contumácia. O suspeito deverá ser intimado a dar
um testemunho de fé, para que se possa avaliar se caminha na luz ou se
se perdeu nas trevas. O bispo, o inquisidor, ou seus representantes, é que
se encarregam de intimá-lo, expedindo uma ordem para que se apresente
num espaço de tempo determinado; ultrapassado esse prazo, se não se
apresentar, é excomungado. Se não comparecer, o seu caso se complica, e
a suspeita de heresia torna-se, então, séria. Depois de um ano da
intimação, se o suspeito não se apresenta, será condenado como herege,
porque a suspeita tornou-se, a essa altura, violenta23. Se retorna para a
Igreja disposto a fazer expiação, será perdoado e condenado à prisão
perpétua, como herege penitente. Se for impenitente, será considerado
como tal, e entregue ao braço secular para receber a pena capital. Se
comparece durante aquele ano, deve retratar-se como suspeito grave de
heresia. Depois, será interrogado sobre os artigos da fé ou sobre assuntos
que o fizeram ser citado e intimado da primeira vez. Responderá como
católico ou não. Em caso afirmativo, alguém lhe dirá: “Meu querido
filho, falas como um bom católico porque queres acreditar no que a Igreja
determina. Mas te contradizes na prática, porque resistes por contumácia.
Queremos enxergar claramente a tua fé. Queremos saber se caminhas na
luz ou nas trevas: por isso te citamos.” Depois, terá um prazo de três ou
quatro meses — de acordo com a condição e a posição social do suspeito
— para provar, na prática, se está seguro de sua fé católica. Será intimado
novamente, no fim desse prazo, e, conforme se apresente ou continue
contumaz, responda abjurando ou não, será perdoado; condenado a uma
pena provisória; preso para o resto da vida como herege arrependido; ou
entregue ao braço secular para ir para a fogueira.
23 Em Direito Inquisitorial, a distinção dos três tipos de suspeita (fraca, forte ou veemente e violenta)
é da maior importância. Constitui o eixo em torno do qual se organizam, no final do Manual, as
diferentes formas de sentença. Além disso, deve-se destacar que, por causa da intervenção dos
decretos de excomunhão, as suspeitas se agravam e o menor delito pode engendrar, no final do
processo, o maior nível de suspeita, e, consequentemente, legitimar a prisão perpétua ou a entrega
ao braço secular. Cf infra, p. 56, sob o título “Os suspeitos de heresia”.
68
21. Os cismáticos
22.Os apóstatas
70
morte, pois, como diz o Senhor, “Não queremos que o pecador morra,
mas que se converta” (Ez 18).
72
25. Os protetores de hereges
O que fazer com os protetores de hereges? Será que eles também são
hereges?
Vamos fazer uma distinção entre dois tipos de hereges:
a) primeiro, existem os que protegem o erro dos hereges: estes são bem
mais culpados que os simples “seguidores” de hereges, merecendo, a bem
da verdade, ser tratados como heresiarcas;
b) há aqueles que não protegem os erros (as heresias), mas as pessoas.
Por exemplo, quem despende energia e fortunas para que um
determinado herege não caia nas mãos do inquisidor. Este será
excomungado. Quem não for herege, mas forte ou fracamente suspeito da
heresia para a qual dá proteção aos adeptos, será obrigado a abjurar.
73
Por omissão: não se curvando às ordens baixadas pelos bispos e
inquisidores para prender os hereges, e, quem seja adepto ou lhes dê
acolhida, negligenciando em mantê-los presos, não os conduzindo ao
local indicado pela autoridade inquisitorial etc.
Pelas suas ações: soltando os presos sem ordem expressa do bispo
ou do inquisidor, impedindo direta ou indiretamente a instauração do
processo ou a execução da sentença.
Quem procede assim é excomungado ipso facto e suspeito de
heresia. Depois de um ano, se continuar a insistir, será “processado” e
condenado como herege.
Quanto ao indivíduo particular, não se aplica o termo benfeitor da
heresia a quem não prende os hereges ou não os coloca sob a guarda das
autoridades, pois o particular não é obrigado a isso. O termo aplica-se,
em contrapartida, a quem se arrisca, por sua própria vontade, a soltar os
prisioneiros da Inquisição ou facilitar sua fuga; a quem ajuda os fugitivos
para que não sejam presos de novo, ou a quem dificulta sua captura; a
quem ousa colocar dificuldades, de uma maneira ou de outra, ao bom
andamento de um processo, e na execução de uma sentença. Todos serão
excomungados de pleno direito. Podem pegar penas bem pesadas,
chegando a serem entregues ao poder civil.
75
Estes são menos culpados que os outros. Entretanto, deve-se
excomungá-los, assim como a quem colabora com esse tipo de restrições
ou as apoia. Decorrido um ano da excomunhão, devem ser julgados como
os outros.
Então, tanto uns quanto outros se desejarem se retratar, terão que
abjurar seus erros como hereges e, tal como os demais, serão
naturalmente perdoados. Do contrário, serão entregues, como
impenitentes, ao braco secular.
Ficando ou não excomungados durante um ano inteiro, todos,
entretanto, serão julgados como benfeitores de hereges, em vista dos
privilégios atribuídos nesta matéria, aos inquisidores, pelo Papa Clemente
IV.
76
28. Os suspeitos de heresia
77
reincidir nessas heresias ou em outras (como voltar a procurar hereges,
visitá-los etc., sem chegar, a, necessariamente, venerá-los), não vai poder
fugir das penas previstas para os relapsos. Depois dessa abjuração geral,
o suspeito será considerado relapso, se recair numa heresia de que jamais
tenha sido suspeito ou acusado; e se, novamente, prestar ajuda a hereges
ou lhes der acolhida. Estes três grandes tipos de suspeita desdobram-se
em muitos outros.
O fortemente suspeito que não quiser abjurar diante do juiz da
Inquisição, será entregue ao braço secular, que, por sua vez, o enviará à
fogueira.
Por fim, o violentamente suspeito: deverá ser considerado herege,
passando pelas mesmas punições dos demais. O violentamente suspeito
confessa o crime ou não. Se confessar e abjurar, terá sua vida poupada,
sendo perdoado, mas condenado. Do contrário, será entregue ao braco
secular. Se, convicto do crime que cometeu, não quiser abjurar, será
entregue ao braço secular como herege impenitente. A suspeita grave por
si só é o bastante para condenar, não se admitindo nenhum tipo de defesa
nesse caso.
78
período que lhe foi determinado para comparecer, será
considerado como fortemente suspeito.
2. Quem impede, direta ou indiretamente, de uma maneira ou de
outra, o exercício da Inquisição, será fortemente suspeito.
Efetivamente, o culpado do delito será, por todas estas razões,
excomungado da Igreja e, se continuar contumaz por um ano, de
fortemente suspeito acabará se tornando violentamente suspeito,
sendo condenado como herege. Deve-se observar, entretanto, que
só se pode falar em suspeita violenta, quando se puder
fundamentar, com legitimidade, uma forte suspeita. Portanto, o
culpado do delito em questão será considerado fortemente suspeito
enquanto não tiver decorrido um ano inteiro da excomunhão.
3. Ajudar, aconselhar, facilitar voluntariamente quem, direta ou
indiretamente, atrapalha o exercício da Inquisição, constitui uma
forte suspeita de heresia. Efetivamente, este tipo de atitude é
passível de excomunhão da Igreja, e por isso a situação de quem é
atingido por ela não é nada diferente do caso examinado
anteriormente.
4. Quem ensinar a mentir e a usar evasivas a um herege ou
simpatizante chamado a comparecer diante do inquisidor, é um
forte suspeito de heresia.
5. Qualquer pessoa que tiver sido excomungada da Igreja causa fidei
durante um ano inteiro é uma forte suspeita de heresia,
independentemente da natureza particular do delito: se atrapalhou
o exercício da Inquisição ou se, citado a comparecer, continuou
contumaz; se ensinou a mentir ou dissimular a verdade a uma
pessoa intimada a comparecer; se mandou soltar os prisioneiros da
Inquisição; se fez oposição ao que é útil à fé ou se favoreceu os
hereges defendendo-os e escondendo-os etc. Este tipo de pessoa
será ipso iure condenado como um forte suspeito de heresia. Isso
tudo é resultante, evidentemente, dos casos examinados nos
parágrafos anteriores. No entanto, vamos ainda acrescentar dois
outros argumentos:
a. Em matéria de fé, só existe excomunhão quando existe
contumácia. Ora, a contumácia em matéria de fé fundamenta,
por si mesma, uma forte suspeita de heresia. Portanto:
b. A suspeita violenta nasce da suspeita forte ou veemente e a
supõe, assim como o superlativo supõe o comparativo. Se
quem for excomungado por um crime que não diga respeito
diretamente à fé, e tiver ficado nessa situação durante um ano,
79
poderá ser citado pelo inquisidor para responder por causa de
uma fraca suspeita, não se deveria considerar como fortemente
suspeito quem for excomungado causa fidei, por contumácia,
sem precisar esperar que fique um ano inteiro nessa situação? E
isso, porque deverá, como sabemos, ser considerado como
herege ao final de um ano da excomunhão.
6. Quem favorecer ou der acolhida a hereges é um forte suspeito de
heresia, de acordo com o que foi estabelecido anteriormente.
7. Quem for tido como herege por causa de sua intimidade com os
hereges reconhecidos é um forte suspeito. Vamos citar um caso
que foi decidido nos tribunais. Um decano que andava sempre com
hereges conhecidos recebeu as seguintes punições canônicas: para
pagar por esta intimidade, teve que abjurar publicamente; e, para
se redimir do escândalo, perdeu todos os privilégios.
8. Quem recebe hereges — sabendo quem são eles —, acompanha-
os, visita-os, faz amizade com eles, doa-lhes os bens ou aceita seus
donativos, é um forte suspeito de heresia, porque não poderá ter a
pretensão de criticar os seus erros. É verdade: quem recai numa
heresia de que já fora considerado um forte suspeito e abjurou é
relapso. Se, neste caso, se fala em "recaída”, é legítimo falar de
forte suspeita de “queda”, antes da abjuração.
9. Quem, durante o processo, se contradiz, nega o que afirmou antes,
presta falso testemunho, é um forte suspeito de heresia. É o caso
de um certo Guilherme que confessou ter ficado tentado, além de
tentar seu irmão, a cometer heresia. Abjurou, depois, e disse que
só ele, Guilherme, era herege. O irmão, não. Então, a punição que
iria para o irmão foi reservada para Guilherme, pois, como disse
Sua Santidade, o Papa, “este tal Guilherme mentiu diante de Deus
inocentando o irmão, depois de dizer que sabia que ele era
herege”.
10. O décimo caso não foi tirado do Direito comum, e sim do Direito
privado. É o seguinte: quem diz ou faz qualquer coisa contra a fé
uma única vez (semel) é fracamente suspeito de heresia; quem diz
ou faz alguma coisa contra a fé duas ou três vezes é um forte
suspeito; mais de três vezes, já é uma suspeita veementíssima. Isto
foi estabelecido no Concílio de Tarragona, que reuniu, por volta de
1230, em torno do arcebispo de Tarragona e de Raimundo de
Penhaforte, penitenciário do Papa, os bispos e inquisidores da
arquidiocese.
80
XVI. Não será possível moderar um pouco o alcance dessas normas de
suspeita veemente? De acordo com elas, todo mundo deve expulsar de
casa o irmão, o pai, o filho ou o cônjuge herético… Podem-se fazer
algumas ressalvas, mas sem deixar de levar em consideração que a
consanguinidade não pode justificar tudo. O filho que não denunciar o
próprio pai herético, dando-lhe guarida em sua casa, ou a mesma coisa,
em relação a marido e mulher etc., todos serão punidos com um pouco
menos de rigor. A menos que o irmão, o filho ou o pai do herege não
pratiquem a heresia junto com ele: neste caso, a suspeita será tão forte
tanto para quem acolhe como para quem aceita a acolhida. Além disso, a
clemência do inquisidor será proporcional à proximidade dos laços de
parentesco.
E o que fazer quando quem acolhe ou protege o herege é o amigo,
às vezes até íntimo, ou o amante? Alguns teóricos do Direito Canônico
defendem que os laços de amizade devem ser considerados como iguais
aos laços de sangue, e que, consequentemente, o amigo do herege deve-
se beneficiar de uma certa indulgência. Estes mesmos teóricos defendem
que essa clemência deve ser estendida ao amante do herege, alegando,
para fundamentar este ponto de vista, a “irracionalidade” da força do
amor. Que seja! Mas os defensores desta teoria devem examinar, então,
com o maior cuidado, o mérito dessa amizade e desse amor, pois o que
seria aceitável numa amizade íntima poderia não sê-lo em outro tipo de
amizade, e não é qualquer amor que poderia justificar um gesto de
clemência.
A lista dos dez casos de suspeita forte proposta por Eymerich é,
indiscutivelmente, bem elaborada e abrange um número infinito de casos.
No entanto, deixa muitos outros de fora, sendo que alguns devem ser
especialmente destacados. Deve-se mencionar no rol das fortes ou
veementes suspeitas: quem não denúncia os hereges; quem guarda em
casa livros proibidos; os bígamos (a bigamia não é, de fato, uma negação
da doutrina do sacramento do matrimônio?); os padres que, durante a
confissão, induzem os(as) fiéis a cometerem o pecado da carne e outros
pecados; os religiosos que, estabelecendo-se, sem permissão de seus
superiores, nas regiões do Ultramar, abandonam o dogma tanto nos
sermões quanto na prática. Deve-se ainda considerar entre os fortemente
suspeitos quem praticar atos que tenham uma relação clara com a heresia
(e este parágrafo também diz respeito, evidentemente, a quem casar com
um herege, tiver amigos hereges etc.).
81
30. Os difamados de heresia
31. Os relapsos
84
85
86
A. ANTES DO PROCESSO
— AUTORIDADE DO
INQUISIDOR
l. Instruções ao inquisidor que toma
posse do cargo
87
estiver ao seu alcance e conforme suas funções, para eliminar a
perversidade herética e exaltar a fé católica, todas as vezes que
forem requisitados pelo inquisidor ou por seus prepostos. Além
disso, na medida do possível, o inquisidor receberá, das mãos do
governante ou rei, um documento, que, se não for literalmente
assim, o será, pelo menos, na essência:
“N., pela graça de Deus, Rei de tal Reino, a todos os seus súditos e
a cada um dos seus oficiais, saudação e estima!
Nosso querido irmão N., dominicano, inquisidor, foi
especialmente enviado para o nosso país e nossas colônias, pela
Santa Sé Apostólica, para servir a Deus e ao seu culto, exaltar a fé
católica, eliminar de nossa terra o hediondo crime da heresia, caso
esteja crescendo e se enraizando entre nós. Ele está se dirigindo
para os territórios que administrais. Nós, enquanto príncipe
católico, consciente de ter recebido das mãos do Altíssimo muitos
benefícios e honras, desejamos acima de qualquer coisa agradar
em tudo e por tudo a Deus, o Criador, particularmente no que diz
respeito ao culto. Desejamos, portanto, ajudar bastante o
inquisidor, como um enviado especial de Deus, e esperamos
cooperar sempre com ele. Assim, estamos falando com cada um de
vós, e ordenamos a cada um, sob pena de serdes punidos, que
ajudeis o inquisidor todas as vezes que, para cumprir a sua missão,
ele precise se dirigir a vossas terras ou peça a ajuda do braço
secular. Ordenamos que recebais bem o inquisidor, que prendais
ou mandeis prender quem o inquisidor apontar como suspeito de
heresia, como difamados de heresia ou, como hereges, os leveis,
sob vossa guarda, para onde o inquisidor mandar; apliqueis as
devidas punições de acordo com o julgamento e os costumes.
Ordenamos que auxilieis o inquisidor todas as vezes que ele
solicitar, independentemente dos motivos. E, para que ele possa
cumprir a sua função com toda a segurança e liberdade, através do
presente documento, nós colocamos, a ele, seu administrador, seu
escrivão, sua escolta e seus bens, sob a proteção da nossa
clemência real. Ordenamo-vos que observeis de modo inviolável
essa proteção real ao inquisidor, às pessoas próximas a ele, aos
seus bens; cuidai para que essas pessoas e seus bens não sofram
nenhum dano. Garanti com segurança o deslocamento e o trânsito
deles, toda vez que o inquisidor solicitar. Dado em tal lugar, sob
nosso selo, no dia tal do mês tal do ano tal.”
88
c. Depois de obter esse documento, o inquisidor deve procurar o
arcebispo ou o bispo metropolitano, ou os arcebispos e bispos dos
locais para onde for enviado, e lhes apresentar seu mandato
apostólico. Fará o mesmo com cada bispo ou vigário-geral, antes
de começar o exercício da sua missão na diocese deles. Pois, se
começar antes de apresentar suas credenciais, poderá sofrer
entraves na sua missão tanto da parte dos bispos quanto do poder
secular: ambos poderiam interromper suas atividades se não
apresentasse as credenciais.
89
a função que têm. O escrivão lerá para eles, numa linguagem bem clara,
os decretos pontifícios que lhes digam respeito. Em seguida, para melhor
obrigá-los, o inquisidor, na presença de testemunhas sérias,
principalmente membros da Igreja, lhes mandará cumprir o que foi
determinado através de um documento cujo teor é o seguinte:
“Frei N., dominicano, inquisidor da perversidade herética no reino
de N., delegado da Santa Sé Apostólica, aos veneráveis vigários,
magistrados e conselheiros da cidade tal, saudação e rápida
obediência às minhas ordens, que são ordens apostólicas!
Considerando que nenhum verdadeiro católico deve-se afastar das
leis da sacrossanta Igreja Romana, particularmente no que tange à
fé, na qual se reconhecem os fundamentos da Santa Madre Igreja,
estabelecidos por Nosso Senhor Jesus Cristo, e sobre os quais ela
está solidamente assentada;
Considerando que todo católico deve cumprir e promover, com todo
o empenho, essas santas leis, Nós, Frei N, dominicano, da província
N., delegado especial da Santa Sé Apostólica, em nome da
autoridade apostólica de que somos investidos e que exercemos
neste local, e, em virtude da nossa própria função, exigimos que
todos vós, veneráveis jurados, magistrados, conselheiros etc., do
lugar tal, particularmente os que nomeamos através dessa carta,
jureis, publicamente, sobre o divino Evangelho obedecer às leis do
imperador Frederico e aos estatutos pontifícios promulgados que
digam respeito à salvaguarda da fé, segundo a forma e a maneira
que estão estabelecidas nas leis eclesiásticas. Se não levardes isto a
sério ou se recusardes obediência às ordens da Igreja e às nossas
ordens, sereis punidos com o anátema, destituídos e privados de
vossos cargos públicos, de acordo com as leis canônicas e
apostólicas. Dado em tal local etc.”
90
lhe, prometemos e juramos pelos quatro Evangelhos que estão
diante de nós, e sobre os quais colocamos nossa mão, que
acreditamos e faremos outras pessoas acreditarem na fé de Nosso
Senhor Jesus Cristo e da Santa Igreja Romana; que a seguiremos e
faremos outras pessoas a seguirem, e que a defenderemos com todas
as nossas forcas. Juramos perseguir,prender ou mandar prender,
sempre que pudermos, todo herege, protetor, defensor ou seguidor
dos hereges. Apontaremos e denunciaremos à Igreja e aos
inquisidores qualquer pessoa que se saiba que pertence aos grupos
citados, especialmente se formos expressamente solicitados. Não
iremos conferir o cargo de magistrado ou conselheiro — ou
qualquer outro cargo — a nenhuma dessas pessoas corruptas, a
nenhum suspeito, a nenhuma pessoa com fama herege, a ninguém
que se encontre, por decisão do inquisidor, proibido de ocupar
qualquer cargo público. Juramos não aceitar nenhum deles na nossa
família ou na nossa comunidade, muito menos no nosso trabalho e
no nosso Conselho. E, se soubermos que um dos nossos for herege,
ou simpatizante, juramos afastá-lo imediatamente do nosso meio.
Finalmente, prometemos obedecer nisto,e em tudo mais que
envolva a questão da heresia, a Deus, à Igreja Romana e aos
inquisidores, com todas as nossas forças, e fazer tudo o que depende
de nós. Que Deus nos ajude, jurando com a mão sobre os sagrados
Evangelhos.”
91
Se, depois de tomarem conhecimento dos termos do juramento que lhes
foi solicitado, os interessados (magistrados, cônsules etc.) pedirem um
prazo para refletirem1, e, se depois de deliberarem, se recusarem a
prestar juramento, serão convocados pelo inquisidor, no final de um
prazo bem pequeno (três ou quatro dias) através de uma carta cujo
modelo é o seguinte:
3. A excomunhão e o interdito
93
isto, lançando-se velas acesas26 pelo chão, e com os sinos tocando várias
vezes por semana ou por dia.
Se resolverem prestar juramento, serão absolvidos da excomunhão,
mas vão receber punições ainda mais rigorosas. No final de dois ou três
meses, se continuarem resistindo, o processo ficará ainda mais
complicado, e a excomunhão será ampliada aos parentes mais próximos e
a todos aqueles que tiverem relacionamento com eles. Se depois de tudo
isso prestarem juramento, serão absolvidos, mas condenados a uma
punição mais dura. Caso contrário, o procedimento tornar-se-á ainda mais
complicado, decretando-se o interdito27 — por exemplo — das terras e
cidades governadas pelos recalcitrantes. O interdito será, finalmente,
suspenso, se prestarem juramento.
Mas, a esta altura, se não se manifestarem, nem mesmo com o
interdito, serão considerados protetores de hereges e suspeitos de heresia;
perderão todas as honrarias e serão afastados, para sempre, de qualquer
função e honraria, de tal maneira que qualquer ato público que praticarem
no futuro será por todos considerado nulo.
26 Sinal de luto, que se usa sempre, em algumas regiões católicas, durante as missas fúnebres.
27 Decretar o interdito equivale a privar a cidade ou regi ão penalizada de qualquer atividade
sacramental (batismos, funerais, casamentos etc.), e, considerando as relações existentes entre a
vida sacramental e a vida profana, a tornar sem efeito qualquer ato jurídico e qualquer transação
em que haja normalmente a intervenção do tabelião. O interdito anula o elo de fidelidade e
bloqueia, por isso mesmo, não apenas a vida política da cidade, mas também a atividade
econômica. Do ponto de vista canônico e jurídico, uma região interditada é uma região morta.
94
4. Poder inquisitorial depois do
interdito
5. Instituição do comissário
inquisitorial
96
B. ABERTURA PÚBLICA E
SOLENE DOS TRABALHOS
DA INQUISIÇÃO
6. O sermão geral
“Se alguém souber que alguém disse ou fez algo contra a fé, que
alguém admite tal ou tal erro, é obrigado a revelar ao inquisidor.”
98
7. Ordem de delação a ser lida
durante o sermão geral
99
8. O que o inquisidor deve fazer
depois do sermão geral
100
misericórdia! Suplico, portanto, a todos que se apresentem
espontaneamente, durante a época do perdão!”
Depois de fazer tudo isso, o inquisidor pode mandar pendurar o
texto das prescrições, nas portas da catedral, para que todo mundo possa
ler.
Em seguida, quando o inquisidor tiver determinado esses dois
períodos (um para os delatores e outro — a época do perdão — para os
hereges, conhecidos como hereges etc.), deve evitar se deslocar,
permanecendo em casa para que delatores e arrependidos possam
encontrá-lo com facilidade.
9. Quem se entregar
espontaneamente
102
se fosse preciso encarcerá-los. Portanto, aconselhamos diferir
os encarceramentos, quando for possível, e colocar na prisão,
por enquanto, só os mais perigosos.”
103
Eucaristia, não existe verdadeiramente o corpo de Cristo.
Perguntar: Fulano de tal, domiciliado em …, rua ou local …,
profissão …, e Fulano de tal.
Diocese tal. - Como no modelo anterior.
104
C. INVESTIGAÇÃO E
ABERTURA DOS PROCESSOS
O processo pode começar pela acusação. Neste caso, a acusação deve ser
precedida por um registro.
Pode começar pela denúncia. Neste caso, a própria denúncia deve
ser precedida de uma caridosa exortação.
Finalmente, pode começar pela investigação, que deve preceder
informações precisas.
O inquisidor pergunta ao delator se quer ser o acusador no caso ou
apenas se limitar a fazer a denúncia. Se quiser ser o acusador, saberá
através do inquisidor que ficará inscrito na lei de talião. Se, depois de
informado, continuar se mantendo na condição de acusador e desejar que
se proceda pela acusação, será feita a sua vontade, e o processo se
desenrolará a partir da acusação. Se, depois de informado, o delator não
quiser mais assumir o papel de acusador e declarar que se contenta em ser
delator (como acontece com mais frequência), e se, além disso, não
quiser figurar no processo (é também o que acontece com mais
frequência), então, procede-se de acordo com o que estava previsto
anteriormente, ou seja, pela denúncia. Se não quiser nem acusar nem
denunciar, sob a alegação de que o teor da sua denúncia é de domínio
público, o inquisidor deverá investigar esses boatos, e o processo
começará da maneira prevista logo abaixo. E agora, como prometi, as três
formas de abertura de um processo.
.
13 Abertura de um processo por
acusação
105
Existe processo por acusação se, na frente do inquisidor, alguém acusar
outra pessoa de heresia, manifestar sua vontade de provar sua acusação e
declarar que aceita a lei de talião, segundo a qual o acusador aceita, se
perder, pagar a pena que o acusado pagaria, se ficasse provada a culpa
deste último.
Este não é o melhor método na prática da Inquisição; é arriscado e
bastante discutível. Mas, se o acusador insiste, o inquisidor aceita e
registra a acusação. Depois disto, o inquisidor não “procederá” sozinho,
mas na instância civil, fazendo-se assistir por um escrivão público e dois
religiosos ou, pelo menos, duas pessoas idôneas.
E se dá início ao processo. O escrivão registrará o seguinte:
“In nomine Domini, Amém. No ano tal, dia tal, do mês tal, em
presença do abaixo-assinado, Escrivão de…, e das seguintes
testemunhas: Fulano, de tal lugar, diocese tal, compareceu
pessoalmente a tal lugar, diante do venerável frei Fulano de tal,
dominicano, doutor em teologia, inquisidor em todo o território de
tal senhor, a quem apresentou um documento de acusação cujo teor
(o escrivão fará a transcrição integral do documento, acrescentando):
lavrado em tal data, no local abaixo citado, diante das testemunhas
abaixo citadas, e na presença do próprio abaixo-assinado, Escrivão
Público do lugar tal, e dos escreventes do Santo Ofício da Inquisição,
ou do Senhor Inquisidor.”
XVI. A lei de talião caiu atualmente em desuso 29. A razão alegada com
mais frequência, pelos doutores, contra a sua aplicação, é evidente: se se
aplica esta lei ao acusador que perde, não se encontrarão mais delatores e,
consequentemente, os crimes continuarão impunes, para grande prejuízo
do Estado (Reipublicae30). Na situação extrema em que o acusador quiser
se submeter totalmente à lei de talião, e se se revelar, no decorrer do
processo, incapaz de provar suas palavras, acho que não seria necessário
aplicar-lhe a pena correspondente à gravidade do teor da acusação. De
qualquer maneira, não se deve entregar o acusador que perde ao braço
secular, porque, em quaisquer das circunstâncias, o acusador é menos
perigoso que o herege.
29 Caiu em desuso, mas não foi anulada. Aliás, é sabido que não existe anulação na legislação do
Santo Ofício.
30 Parece-me indispensável chamar a atenção para o fato de que Peña fala bastante de República e
não de christianitas ou populus christianus.
106
Atualmente, o papel do acusador é atribuído a um fascínio chamado
de “Fiscal”: é ele quem assume a acusação. Depois da investigação,
formula as acusações em termos precisos e claros, como por exemplo:
107
delator se faz a denúncia impelido pela maldade, ódio, ressentimento ou,
ainda, por ordem de terceiros. O delator, a seguir, jura guardar segredo
sobre tudo o que contou ao inquisidor e sobre o que este lhe disse. Tudo
fica registrado nos autos do escrivão. Os autos de delação deverão ser
datados.
108
No entanto, em se tratando de heresia, é válido proceder-se a uma
investigação especial, mesmo que não tenha havido delito. Mas, neste
caso, o inquisidor deverá ter um cuidado, uma ponderação e uma reserva
redobrados, para não correr o risco de lesar inutilmente a honra de quem
é investigado.
109
D. O PROCESSO
PROPRIAMENTE DITO
110
Se, então, ficar claro que os crimes de que o réu é acusado são de tal
gravidade que o inquisidor não pode deixar passar, e se for preciso ser
justo com o acusador, então o inquisidor procederá à investigação das
testemunhas da seguinte maneira:
112
18. Como interrogar o acusado
114
culpado disso pegaria a pena especialmente prevista pelo Concílio de
Viena para tais casos (Atas, I, parágrafo Verum quia de haereticis).
O inquisidor ouvirá, com bastante frequência, o preso, como disse
Eymerich. E isso, apesar da promessa de misericórdia de que já se falou
anteriormente. Concluindo, os interrogatórios terão a frequência que o
inquisidor quiser, mas respeitando-se sempre o princípio de silenciar
sobre tudo o que for capaz de dar pista dos delatores ao acusado.
115
previsto no processo por acusação.
116
E. OS INTERROGATÓRIOS
117
XVI. A frase habitual para prestar juramento diante do Tribunal da
Inquisição é a seguinte:
“Juro por Deus e a Cruz, e pelos Santos Evangelhos, que toco com
minha mão, dizer a verdade. Que Deus me ajude se mantiver meu
juramento e que me castigue se eu quebrá-lo.”
118
Portanto, atenção a todas as precauções que foram expostas, para
evitar que pessoas nocivas, soltas injustamente, perseverem em erros e,
deste modo, possam corromper os outros.
120
que diz respeito à visão beatífica. Complicais tudo com vossas
perguntas! Dizei uma vez por todas, pelo amor de Deus, em que se
deve acreditar a propósito das almas dos bem-aventurados, pois
não quero me afastar da fé.” E assim desvia-se da pergunta que lhe
foi feita. Perguntais: “Acreditas que Cristo não possuía nada,
individualmente, nem em comum com outras pessoas?”, e ele
responderá dirigindo-se às pessoas que estiverem lá, levando-as a
interferir, a fim de desviar, por algum tempo, a pergunta.
7. O sétimo truque consiste numa auto-justificação. — Perguntais
sobre um artigo de fé, e ele responderá: “Mas, Senhor Inquisidor,
sou um homem simples e sem instrução, mas sirvo a Deus na
minha simplicidade. Não sei nada sobre essas questões nem sobre
suas sutilezas! Não me façais perguntas sobre essas coisas, porque
abalariam a minha fé e me induziriam em erro.” Ou então irá
responder-vos num outro tom: “Senhor, penso, de bom grado, em
Deus, também, de bom grado, pensaria em suas obras admiráveis,
nos artigos de fé e na Trindade. Mas acontece então que duvido da
fé e corro um risco…, então, por favor, não me façais pensar
nessas sutilezas das quais nem quero ouvir falar… Não me façais
correr riscos! Por nada neste mundo, quero correr o risco de me
enganar!”
8. O oitavo truque consiste em fingir uma súbita debilidade física! —
Perguntado insistentemente sobre a fé, o acusado percebe que não
vai conseguir evitar todas as armadilhas do interrogatório; sentindo
que acabará confessando a sua heresia, exclama, de repente:
“Tenho dor de cabeça, não aguento mais. Por favor, deixai-me
descansar um pouco; pelo amor de Deus.” Ou então: “Estou me
sentindo mal… Perdoai, pelo amor de Deus, mas preciso me
deitar!” Vós o deixais, e ele se deita durante algum tempo. Tempo
esse que será utilizado para refletir sobre o que deverá dizer para
desviá-los ainda, quando recomeçar o interrogatório. Os acusados
fazem isso principalmente quando percebem que vão ser
torturados: dizem que estão doentes, que vão morrer, se forem
torturados, e as mulheres alegam a menstruação.
9. O nono truque consiste em simular idiotice ou demência. —
Fingem que são loucos — como fez o rei Davi diante de Acaz —
para não serem humilhados. Riem enquanto respondem às
perguntas, misturando várias palavras inconvenientes, engraçadas
e absurdas. Assim, acabam encobrindo os seus erros. Fazem isso
121
frequentemente, quando sentem que vão ser torturados ou que vão
ser entregues à autoridade secular. Tudo isso, para escapar à
tortura e à morte. Vi isso mil vezes: os acusados fingem que são
completamente loucos ou que têm somente alguns momentos de
lucidez.
10. O décimo truque consiste em se dar ares de santidade. Os hereges
são diferentes do comum dos mortais tanto nos costumes, quanto
nas vestimentas e na maneira de falar. Andam, quase sempre,
descalços ou com simples sandálias, vestindo-se pobremente. Uns
se vestem de branco, outros de marrom; alguns usam um manto,
outros usam túnica longa e larga; não usam cinto, e sim uma corda
na cintura. Alguns usam um capuz, outros cabelos longos: depende
da seita de cada um. Alguns andam com a cabeça baixa, olhando
para o chão, outros andam olhando para o céu. Falam muito em
humildade e têm a aparência de santos, como túmulos pintados de
branco e dourado abrigando cadáveres. Porque, por dentro, são
cheios de orgulho, luxúria, gula, inveja e vaidade: quem conhece
sabe disso. Com seu ar de santos, contagiam várias pessoas
esquivando-se, assim, do julgamento da Inquisição.
122
E o que fazer quando o acusado for mesmo louco? Ficará preso
enquanto não recobrar a razão: não se pode mandar um louco para a
morte, mas também não se pode deixá-lo impune. Quanto aos bens do
louco, vão para as mãos de um procurador ou dos herdeiros: porque a
loucura, após o crime, pode retardar o castigo físico, mas não livra da
perda dos bens.
124
pudesse resolver o teu problema, e não o deixar preso. Porque és
muito frágil,e podes ficar doente! Preciso ir aonde o dever me
chama e não sei quando poderei voltar. Não queres confessar,e,
assim, me obrigas a manter-te preso até o meu retorno... Tenho
pena (disciplicentia), sabes, porque não sei quando vou voltar!” O
inquisidor voltará a interrogá-lo depois de falar essas palavras, e
pode ser que consiga, então, que ele confesse.
125
do que pede. A coisa se passará da seguinte maneira: com palavras
vagas e generosas, de modo a obter a confissão completa e a
conversão do herege, a quem farão, então, a gentileza de ministrar
o sacramento da penitência.
9. Se o herege teima em negar, o inquisidor mandará para junto dele
um de seus antigos cúmplices que se tiver convertido e for bem
aceito pelo réu. O inquisidor providenciará tudo para que
conversem. O convertido poderá contar que é ainda um herege,
que só abjurou por medo e que foi por isso que contou tudo ao
inquisidor. Quando o réu tiver adquirido confiança, o convertido
fará tudo para prolongar a conversa até o anoitecer. Dirá, então,
que é muito tarde para ir embora e pedirá permissão ao réu para
passar a noite na prisão com ele. Vão conversar, ainda, durante a
noite, e falarão, obviamente, do que fizeram juntos. Colocam-se as
testemunhas, além do escrivão inquisitorial, num bom lugar, na
escuta -com a cumplicidade da escuridão.
10. Se o réu começa a confessar, o inquisidor não deverá interromper a
confissão sob nenhum pretexto. Sabemos que a interrupção da
confissão quase sempre é fatal: quem estiver confessando, se for
interrompido de repente, cairá no mutismo.
Estes são os dez truques que os inquisidores dispõem para
arrancar, com elegância (gratiose), a verdade da boca dos hereges, sem
recurso à tortura.
XVI. Um comentário se impõe: não se há de objetar que malícia é
sempre proibido? Deve-se fazer uma distinção entre mentira e mentira,
malícia e malícia! A malícia cuja única finalidade é enganar deve ser
sempre proibida e não tem nada a ver com a prática do Direito; mas a
mentira que se prega judicialmente, em benefício do Direito, do bem
comum e da razão, é absolutamente louvável. Quanto mais, a mentira que
se preza para detectar a heresia, erradicar os vícios e converter os
pecadores. Lembremo-nos do julgamento de Salomão!
Eymerich fala, no terceiro truque, de “acareação entre as
testemunhas e o acusado”. Na verdade, este tipo de procedimento será
evitado sempre, nas causas da Inquisição, por razões óbvias.
a. Se houver acareação, não haverá mais sigilo; e já se falou bastante
da quantidade de precauções que a lei toma para proteger o sigilo
da acusação e tudo o mais que disser respeito à instrução do
processo.
b. Se a acareação não der resultado, as testemunhas correm um risco
muito maior. Sem proibir por completo esta prática, a Inquisição
126
madrilenha, na Instrução de 1561 (cap. 72), adverte contra ela,
chamando, aliás, a atenção para a sua frequente inutilidade.
Concluindo, só se deve recorrer à acareação em situações de ex-
trema gravidade e, principalmente, nos casos que serão analisados mais
adiante, a propósito da décima segunda maneira de se concluir um
processo.
No oitavo truque, o inquisidor é convidado a “perdoar”. Isto não é
simplesmente uma desonestidade? E, se o inquisidor promete perdoar,
como poderá deixar de manter a palavra? Esta é uma questão que os
doutores da Igreja analisaram e que estão longe de ter um consenso
unânime para resolvê-la. Quanto a mim, sustento que: a) o inquisidor não
deve prometer nada que não possa cumprir, pois é pecado; b) reduzindo,
mesmo numa proporção mínima, a pena atribuída a um delito (e é
raríssimo que o culpado não tenha cometido vários delitos), o inquisidor
que tiver prometido “perdoar”, terá mantido sua palavra; c) a
consequência destes dois princípios é que, em nenhuma circunstância,
poder-se-á prometer o perdão a um relapso.
Finalmente, os doutores da Igreja acham que a confissão obtida em
decorrência de uma promessa de perdão não tem nenhuma validade:
deverá ser ratificada. Efetivamente, muitos réus, com medo dos rigores
da prisão ou dos castigos, passariam logo para este tipo de confissão
benevolente, o que seria grave. Além disso, é preciso considerar que
quem fizesse a confissão nestas condições na realidade estaria querendo
muito mais abreviar o interrogatório e esconder alguma coisa do que
confessar.
127
F. INDÍCIOS EXTERIORES
PELOS QUAIS SE
RECONHECEM OS HEREGES
128
solicitado o “consolamento”.
Deve-se acrescentar a esses casos de ordem geral: quem
sacrificar aos ídolos, adorar ou venerar os demônios, venerar o trovão, se
relacionar com hereges, judeus, sarracenos etc.; quem evitar o contato
com fiéis, for menos à missa do que o normal, não receber a eucaristia
nem se confessar nos períodos estabelecidos pela Igreja; quem, podendo
fazê-lo, não faz jejum nem observa a abstinência nos dias e períodos
determinados… etc.
A lista dos indícios exteriores de heresia seria longa. Zombar dos
religiosos e das instituições eclesiásticas, em geral, é um indício de
heresia. Marco Antônio Colonna Marsilio, arcebispo de Salerno, por
exemplo, chamou diante do Tribunal da Inquisição, algumas pessoas que
achavam dever ilustrar as Bulas de excomunhão com figuras obscenas.
Este tipo de atitude é da alçada, evidentemente, do Tribunal do Santo
Ofício.
Mas vamos resumir isto tudo numa palavra: existe indício
exterior de heresia toda vez que houver atitude ou palavra em desacordo
com os hábitos comuns dos católicos32.
Os maniqueus jamais prestam juramento. Têm três quaresmas por ano (de
S. Bento ao Natal; do primeiro domingo da Quaresma até a Páscoa; de
Pentecostes à festa de S. Pedro e S. Paulo). Chamam de Semana Santa a
última semana de cada uma destas três Quaresmas. Durante essas três
Semanas Santas, alimentam-se de pão e água; o restante das Quaresmas,
jejuam à base de pão e água, durante três dias por semana. Jamais comem
carne; nem a tocam. Não comem queijo, ovos, nem nada que nasça da
carne, seja por reprodução ou coito. Não matam nenhum animal que ande
ou voe, porque acreditam que nos animais capazes de voar ou andar se
encontram as almas de quem morreu sem entrar na seita. Não dormem
jamais com mulheres. Têm a pretensão de viver como os apóstolos.
26.Os valdenses
34 ’Trata-se, na realidade, dos cátaros, cuja história é bastante conhecida para que se precise
completar — e corrigir! — as poucas linhas que Eymerich lhes dedica.
130
Os valdenses, ou pobres de Lião, ou ainda, “enchinelados”, recebem este
nome por causa do seu fundador, um lionês chamado Valdo. Chamam-
nos “enchinelados" porque os mais perfeitos entre eles usam uma espécie
de emblema em cima do calçado (chinelos) através dos quais são
reconhecidos. Nunca prestam juramento. Dizem-se imitadores dos
apóstolos. Ignoram as decretais e as leis do soberano pontífice. Não
conhecem outra oração senão o Pai-Nosso. Recusam qualquer
julgamento humano. Comem carne todo dia. Entregam-se totalmente aos
prazeres da carne. Às segundas e quartas-feiras, fazem jejum, mas sem se
absterem de comer carne. Declaram que é melhor passar por qualquer
indignidade do que ficar tentado interiormente. Escolhem um líder e
prestam-lhe obediência: só obedecem a ele. Quando se sentam à mesa,
benzem-se assim: “Abençoe esta mesa Aquele que abençoou os cinco
pães de cevada e os dois peixes para os seus discípulos no deserto.” E, ao
se levantarem da mesa, dizem estas palavras do Apocalipse: “Louvor,
luz, sabedoria, ação de graças, virtude e poder ao nosso Deus pelos
séculos dos séculos, Amém.” Dizem isto com as mãos e o olhar voltados
para os céus.
28. Os rejudaizantes
XVI. Estes são os indícios através dos quais se reconhece quem descende
do judaísmo, principalmente nas regiões onde se permite que os judeus
convivam com os cristãos, e onde — Roma, por exemplo — acontece
frequentemente de judeus se converterem ao catolicismo. O inquisidor
“procederá contra” qualquer cristão que manifeste, por um dos indícios
apontados, uma simpatia, de fato, pela seita judaica.
É preciso, ainda, acrescentar um outro indício àqueles apontados por
Eymerich: a mudança de nome. Os judeus que se converteram ao
catolicismo e depois voltaram a ser judeus, abandonam o nome cristão
que receberam no batismo, reassumindo o seu antigo nome.
Vamos lembrar também que, no Placitum, datado do ano 653 e
mencionado no Fuero Juzgo, os convertidos de Toledo se obrigam a
fazer justiça — pelo fogo ou pelo apedrejamento — a todo aquele cujos
atos (não comer carne de porco, casar com judias ou com quem tiver um
ancestral judeu — até o sexto grau) puderem justificadamente fazer crer
que só se converteram no nome.
Sobre a questão da comida, Simancas afirma que o fato de não
comer carne de porco ou não beber vinho são indícios suficientemente
claros de que pertencem ao judaísmo ou ao islamismo. Não vamos
exagerar! Os estômagos não suportam todas as comidas, nem todas as
bebidas. E tais indícios, por si sós, não poderiam ser conclusivos. Sem
contar que qualquer judeu convertido, que jamais tenha experimentado
132
certas carnes, pudesse facilmente habituar-se a um outro tipo de comida!
Por outro lado, haveria uma suspeita gravíssima se o filho ou os
descendentes do convertido continuassem a se abster de certas carnes:
por que se absteriam, senão por respeito e reverência a essa satânica seita
judaica?
Devem-se fazer considerações semelhantes a propósito dos cristãos
que vêm de outras seitas fora do judaísmo e do islamismo.
29. Os necromantes
134
invocação de demônios e alquimia são muito numerosos para que se
precise insistir nisto. Basta lembrar o caso de Arnaldo de Villanova, de
quem se tem certeza de que era alquimista, e, além de um grande médico,
um grande herege e demonólatra.
Já sei que vão criticar duramente o julgamento que Eymerich faz
dos alquimistas. Mas essas críticas serão bastante injustas, porque são
inúmeros os argumentos para concluir que os alquimistas são impostores.
Não faltam autores que, sem temer contradizer-se nos argumentos,
defendem a alquimia. Mas é bem mais inteligente, mais prudente, ouvir a
opinião de quem a considera inútil, e, mais ainda, prejudicial para a
sociedade. De qualquer maneira, esperando saber um dia, com toda a
segurança, se é possível ou não produzir, por alquimia, o ouro, a prata ou
pedras preciosas (o que, na realidade, não interessa ao inquisidor
diretamente), o inquisidor estará muito atento às condições de quem
praticar a alquimia: será mais flexível com o alquimista rico do que com
o alquimista pobre. O rico não correrá o risco de se arruinar praticando a
alquimia e pode tranquilamente não chegar a invocar o diabo se fracassar:
e o fracasso é certo. Não se poderia dizer o mesmo do alquimista pobre.
Já estou vendo os protestos que esta opinião vai provocar entre os
“mestres” dessa arte. Direi simplesmente que façam uma consulta à
“extravagante” Spondent quas non exhibent divitias pauperes
alchimistae, do Papa João XXII, onde estão previstas as penas mais
graves para os alquimistas que vendem, como se fosse ouro verdadeiro, o
ouro alquímico — ou a prata, as moedas — que falsificaram.
135
G. OBSTÁCULOS À RAPIDEZ
DE UM PROCESSO
138
Se houver um advogado, ele tem que ser muito fervoroso, diz
Eymerich. Será excluído da Igreja, e a fortiori, do Tribunal da Inquisição,
todo advogado herege, suspeito de heresia ou com fama de herege. Deve-
se ter a garantia de que o advogado é de boa família, de antiquíssimas
raízes cristãs37. Se o réu confessar,não há necessidade de um advogado
para defendê-lo. Se não quiser confessar, receberá ordens de fazê-lo por
três vezes. Depois, se continuar negando, o inquisidor lhe atribuirá,
automaticamente, um advogado juramentado no seu tribunal. O réu
comunicar-se-á com ele na presença do inquisidor. Quanto ao advogado,
prestará juramento — embora já seja juramentado — ao inquisidor de
defender bem o réu e guardar segredo sobre tudo o que vir e ouvir. O
papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de
pedir a pena para o crime cometido.
Eymerich explica que também um procurador é nomeado. Nas
Instruções de 1561, o Senado inquisitorial madrilenho constata que, a
nível da Inquisição, o papel do procurador tornou-se insignificante e
sugere que não se proceda mais, salvo em situações excepcionais, através
de nomeação sua. Os advogados inquisitoriais encarregam-se também das
procurações.
Por outro lado, será nomeado sempre um curador para todo réu com
menos de vinte e cinco anos. O menor será assistido para que fale ou
silencie o que, certamente, contaria ou calaria,se fosse mais velho e,
portanto, capaz de agir em seu próprio interesse 38. O curador não seria
uma autoridade do Santo Ofício: mas pode ser advogado do réu, e sempre
terá que ser uma pessoa íntegra, séria, leal e de boa conduta.
Lembremos, mais uma vez, a propósito do registro dos nomes dos
delatores e da defesa nos autos, que o problema não se coloca mais nos
dias de hoje. Mas temos que destacar que, até o momento, todos os que
escreveram sobre isso, seguiram, criteriosamente, a doutrina de
Eymerich.
37 É dos cristianos viejos que o editor romano ouviu falar. É impressionante como a interpretação
romana, que tem uma abrangência universal, não se refira nunca — só de passagem — a essa
distinção espanhola entre cristiano viejo e um simples fiel. Peña não propõe, na edição de
Eymerich, a menor explicação para essa discriminação tipicamente peninsular.
38 Em seu próprio interesse “espiritual”, certamente, uma vez que o curador pode ser o advogado, e
que acabamos de ver em que consiste o papel do advogado nos processos da Inquisição.
139
Para terminar, os Concílios de Narbona e Béziers acrescentam os
conspiradores à lista das testemunhas que não podem ser aceitas.
O bispo e o inquisidor levam muito a sério cada uma das seis maneiras de
apresentar os autos de acusação sem revelar os nomes dos acusadores ou
delatores. São elas:
É um método que não parece favorecer muito ao réu, mas que traz,
realmente, um prejuízo ao delator. Além disso, o réu não vai saber quem
depõe a seu favor, contra ele nem o que depõe: corre o risco de juntar
todo mundo na mesma inimizade e considerar todos como inimigos.
140
ser defendido e sem conhecer seus delatores, o réu responde sem reservas
e sem risco aos delatores. Entretanto, admitamos, este método prejudica o
réu.
4. No final do interrogatório, antes de dar um defensor ao réu, este
será questionado sobre as testemunhas cujos depoimentos foram os
mais graves. Isto, nos seguintes termos: “Conheces Fulano de tal?”
O réu responderá sim ou não. Se disser não, não poderá depois
mandar o defensor recusar esta testemunha, alegando que é seu
inimigo mortal: não acabou de afirmar, sob juramento, que não a
conhece? Se responder afirmativamente, perguntarão se nunca viu
ou ouviu o delator dizer ou fazer qualquer coisa contra a fé. Em
caso afirmativo, perguntarão se é seu amigo ou inimigo, e ele vai
responder que é seu amigo. A partir de então, não poderá mais
recusar o delator, alegando que é seu inimigo mortal. Mas, se
responder com a negativa, perguntarão a mesma coisa, se é seu
amigo ou inimigo. Dirá que é seu amigo, porque, senão, como é
que poderia saber o que o delator disse ou deixou de dizer, fez ou
deixou de fazer? E a defesa não poderá recusar esse depoimento.
Procede-se da mesma maneira com cada testemunha.
Este método é ainda mais sutil e malicioso que o anterior. É por isso
que é utilizado contra os réus particularmente maliciosos.
5. Dá-se ao réu uma cópia dos autos, sem os nomes. O réu, vendo os
argumentos da acusação, tenta descobrir quem o denunciou;
propõe nomes de pessoas que considera como inimigos mortais e
dá os motivos dessa inimizade. Depois, o inquisidor observa se o
réu acertou. Em caso positivo, considera e avalia as causas da
inimizade. Se julgá-las insuficientes, não as leva em consideração.
Caso contrário,interrogará sigilosamente as testemunhas e, se não
apresentarem provas plausíveis, não as aceitará.
XVI. Uma regra de bom senso deve sempre determinar a escolha de cada
um desses truques: a preservação do delator. Ela é de fundamental
importância, na medida em que, sem isso, seria malvisto quem ousasse
testemunhar contra hereges ou denunciá-los. Por outro lado, vê-se logo
quão lastimável seria para a sustentação da fé no seio do povo. Foi
levando em conta tudo isto que a primeira instrução de Sevilha previu,
explícita e expressamente, que, quando fosse preciso mostrar os
depoimentos das testemunhas, jamais se deveriam mostrar os originais, e
sim uma cópia, em que seriam supressos todos os detalhes que
permitissem, o mínimo que fosse, identificar as testemunhas ou os
delatores. Nessas cópias não seria feita nenhuma menção, por exemplo,
quanto ao dia e hora em que o crime foi cometido, nem quanto a qualquer
circunstância capaz de, na opinião do inquisidor, informar o réu. Na
verdade, decisões parecidas já tinham sido tomadas no passado, no
Concílio de Béziers.
143
escolhidos para o cargo de inquisidor, homens de respeito, justos e de
uma sabedoria exemplar. No entanto, outros estudiosos aceitam o
princípio da possibilidade da recusa: é neste ponto de vista que se baseia
o Senado inquisitorial de Madri, incluindo-o no Capítulo 32 das
Instituições de 1561. Desde já, concordamos com Eymerich que se pode
recusar o inquisidor: o Tribunal da Inquisição só sairia engrandecido e
mais respeitado. Mas vamos examinar, agora, quais poderiam ser as
razões legítimas da recusa e como se “procederá” quando as condições
forem preenchidas. É simples: de acordo com os especialistas, só a
conspiração e a inimizade mortal podem justificar a recusa.
Não aprovo nem desaprovo os dois métodos propostos por
Eymerich para resolver a questão da recusa, pois me parece que eles
interessam mais ao procedimento da apelação que o da recusa. O método
dos dois juízes não me parece bom: só serve para prolongar as coisas e a
levar o réu a recusar sempre. É ao Senado Supremo que se deve remeter o
pedido de recusa. Ele é que tem competência, que nega ou aceita.
Vamos esclarecer que,ao contrário do que parece dizer Eymerich no
parágrafo 2 — a propósito dos advogados e procuradores —, o inquisidor
é totalmente livre para indicar qualquer pessoa como advogado e
procurador, e não apenas quem o réu solicitar.
Para concluir, o prazo de oito dias para analisar cada caso só pode
ser dado a título de exemplo: não convém instituir juridicamente sobre a
duração desse prazo.
Em alguns casos, o réu pode apelar para o Papa. A apelação será ou não
considerada de acordo com as circunstâncias e as motivações.
A apelação será justa, se o inquisidor infringir a lei durante o
processo (recusa de designar a defesa, aplicação de tortura sem avisar o
bispo). Nessas situações o réu só tem uma coisa a fazer: apelar para o
Papa. O inquisidor, sem temores, sem a menor preocupação, mandará o
réu providenciar uma cópia da apelação. O inquisidor não deve ter pressa,
não deve se precipitar: tem dois dias inteiros para acusar o recebimento
da apelação. Depois, tem ainda trinta dias para fazer o julgamento
144
apostólico. E, ainda que possa — se for entendido na matéria — fazer
logo o julgamento apostólico, independentemente do teor, irá trabalhar
razoavelmente, esperando 10, 15, 20 ou 25 dias antes de apresentar uma
solução. O inquisidor tem ainda o direito de prorrogar o prazo da
resposta. Durante todo esse tempo, irá analisar bastante os termos da
apelação. Se chegar à conclusão de que é justificada, anula as razões da
mesma, retoma o processo a partir do erro que justificou a apelação e
prossegue normalmente, pois, uma vez eliminada a causa da apelação,
esta última perde a validade.
O inquisidor deve, entretanto, ficar vigilante quanto ao tipo de
prejuízos de que o acusam. Se são passíveis de reparação (ausência de
defesa, intenção de torturar sem o aval do bispo), o inquisidor procederá
como acabamos de mostrar. Mas existem prejuízos irreparáveis. Por
exemplo, o réu já foi realmente torturado e apela depois. Ou então, já se
queimaram os livros etc. Nestes casos, o inquisidor não poderá retomar o
processo a partir de onde parou para receber a apelação.
Portanto, o inquisidor deve utilizar o prazo previsto para a resposta
à apelação (trinta dias). Para dar uma prova de boa vontade, citará o réu
dali a quinze ou vinte dias para comunicar-lhe a resposta apostólica.
Prorrogará o prazo, em caso de necessidade, dizendo, por exemplo, que
teve de se ocupar de outros processos, precisando temporariamente adiar
a resolução do problema.
O inquisidor não vai citar o réu para dar uma resposta “afirmativa”
ou “negativa”, pois deve se dar a liberdade de avaliar, durante o prazo
exigido, se dará uma resposta favorável ou não: o réu será citado para
comparecer a um local, dia e hora determinados para receber a resposta,
sem qualquer informação. O inquisidor esperto e experiente, que tiver
tomado a decisão de prender o réu enquanto estivesse esperando a
resposta da apelação, terá o cuidado de citá-lo levando em consideração a
sua condição de preso.
O inquisidor não tem que modificar em nada a situação do réu
entre o dia em que este entrou com a apelação e a data da resposta.
Durante todo esse tempo, ele permanecerá na mesma situação em que
estava antes da apelação: na prisão, se estava preso, solto, se estava em
liberdade. Não poderá ser torturado durante esse período.
Se se tratar de um réu que apela a todo momento, a propósito de
tudo e nada (porque o prenderam, porque se recusam a libertá-lo sob
fiança etc.), o inquisidor resolverá o problema, dando-lhe, em dois ou três
dias, uma resposta negativa, quer dizer, a não aceitação.
145
O teor de uma resposta positiva à apelação é o seguinte: o
inquisidor argumenta que agiu em conformidade com a lei. A seguir
contesta, uma a uma, as acusações contidas no texto da apelação.
Concluindo-se que o inquisidor não transgrediu o Direito nem deu
pretexto à apelação; e sim que o réu recorreu a ela por temer a Justiça.
Por isso, a apelação não tem validade. Entretanto, em respeito à Santa Sé
Apostólica, que é a destinatária da apelação,o inquisidor dirá que aceita a
apelação e que a remeterá, juntamente com todo o dossiê, ao nosso
senhor o Papa. Cita, então, o réu, para que compareça, sob forte guarda, à
Cúria romana, diante de nosso senhor o Papa39.
Se, nesse período, tiver que julgar outras questões que envolvam o
mesmo réu, o inquisidor as resolverá, normalmente, porque a apelação
não pode bloquear um outro trâmite concernente ao mesmo réu.
XVI. Uma resposta apostólica positiva jamais deve ser considerada como
uma sentença definitiva, pois inocentaria o réu. A apelação não foi criada
para proteger a injustiça (non ad defensionem iniquitatis fuit institutum)!
De acordo com as instruções do Senado inquisitorial de Madri, datadas
de 1561, não é preciso retardar a tortura por causa da apelação, caso os
indícios a justifiquem suficientemente.
XVI. O fugitivo torna-se, por causa da fuga, um banido e, por isso, pode
ser condenado à morte, não apenas pelo juiz, mas por qualquer pessoa.
Isto pode ser explicado facilmente: o banido infringiu as leis do Papa ou
as leis do imperador, ou ambas, ao mesmo tempo. Decorre daí um
verdadeiro estado de guerra. E, por qualquer motivo mais forte, o herege
fugitivo e banido poderá ser legitimamente despojado de seus bens por
um cristão.
147
H. VEREDICTOS E
SENTENÇAS — CONCLUSÃO
DOS PROCESSOS
148
Introdução
149
Em casos como este, procede-se da seguinte maneira: o inquisidor
ou o bispo (ou ambos, embora não tenham que atuar juntos quando se
trata de absolvição) entrega ao réu uma sentença de absolvição com o
seguinte teor:
150
XVI. Lendo com bastante atenção os considerandos, poderia parecer que
Eymerich imaginou que os motivos da acusação e todos os detalhes
tenham que figurar no texto da sentença de absolvição. Não creio que
esteja em muita conformidade com o Direito: visto que não houve provas
e que, em resumo, o réu foi solto, parece-me mais conveniente não
explicitar os motivos da acusação e ler em público a sentença de
absolvição, mesmo que o beneficiário esteja vivo ou morto. Esta é a
prática que, na minha opinião, está contida nas Instruções madrilenhas de
1561.
A certa altura, Eymerich solicita que, na sentença, se tome bastante
cuidado para não declarar o absolvido “inocente” ou “isento”, em
conformidade com o que prevê o próprio Eymerich, a propósito do
décimo segundo veredicto. A sentença definitiva irá declarar inocente e
isento o réu que estiver solto e que houver sido vítima da animosidade
das testemunhas (que, arrependidas, seriam expressamente acusadas de
falso testemunho. Porém, deve-se registrar que é difícil acreditar, na
prática, em uma tal reviravolta por parte das testemunhas).
151
como expiação da tua infâmia.
Nós te intimamos a comparecer, pessoalmente, para fazeres
a expiação, em tal dia, do mês tal, a tal hora. Os “co-expiadores” que
te acompanharem devem ter uma integridade na vida e na fé
notórias, devem conhecer os teus hábitos e a tua vida,e,sobretudo, o
teu passado. Notificamos que, se fraquejares durante o cumprimento
da pena, serás indiciado como herege, de acordo com o que está
estabelecido nos cânones.”
Aqui, cabe explicar que a expiação é feita diante de sete, dez, vinte
ou trinta (menos, em alguns casos, mais em outros) “co-expiadores” que
serão do mesmo nível do acusado: religioso, se ele for religioso; padre, se
for padre; soldado, se for soldado etc. Todos devem ser capazes de dar
testemunho sobre a fé atual e pregressa do acusado.
Se o “difamado” não puder cumprir a expiação, será excomungado.
E, se ficar um ano nesta situação, será condenado como herege.
Se quiser cumprir a expiação, mas não conseguir juntar o número de
co-expiadores prescrito pelo inquisidor, será ipso facto considerado como
herege e condenado como tal.
No entanto, em alguns casos, os “co-expiadores” podem ser de
posição inferior à do acusado: por exemplo, para um bispo “caluniado”,
os “co-expiadores” poderão ser abades ou, simplesmente, padres; se o
“caluniado” é um rei, os “co-expiadores” poderão ser nobres, cavaleiros
etc.
A purgação canônica
152
A seguir, os “co-expiadores” dirão, um a um, com a mão sobre os
Evangelhos: “Juro sobre os Sagrados Evangelhos que acredito em tudo
que Fulano de tal acabou de jurar.”
Nesse momento, a purgação canônica é cumprida.
A purgação canônica deve ser levada a efeito no local em que surgiu
a calúnia. Deve ser repetida em todas as regiões ou países em que essa
pessoa andou ou ainda é alvo de comentários.
Todo caluniado que sofre “purgação”, se cair, mais tarde, na heresia
que expiou, será considerado relapso, e, como tal, será entregue ao braco
secular40.
XVI. Quem sofre uma purgação canônica torna-se, por causa disso,
inapto para qualquer cargo ou privilégio eclesiástico? De acordo com
alguns especialistas, sim. Outros acham que a purgação não tira os
privilégios, mas simplesmente impossibilita as promoções.
40 O que demonstra que, apesar de todas essas precauções teóricas, o simples boato tinha, no passado,
o significado não somente de forte suspeita, mas também de evidente heresia. Lembre-se da
definição proposta anteriormente quanto à noção de “prova evidente”.
41 O tema da tortura será fartamente comentado na terceira parte do Manual, pergunta 28, p. 208.
153
Instrução bastante detalhada sobre o interrogatório
Se o réu vacilar nas respostas e se, além disso, houver indícios contra ele,
as duas coisas entrarão na sentença, como mostramos acima。Se apenas
houver vacilação nas respostas, mas nenhum indício, ou indícios sem
vacilação nas respostas, isto será levado em conta quando da redação da
sentença.
O inquisidor não deve se mostrar muito apressado em aplicar a
tortura, pois só se recorre a ela quando não houver outras provas: cabe ao
inquisidor tentar levantá-las. Mas, se não achá-las e se considerar que há
possibilidade de o réu ser culpado, e se achar também que ele não vai
confessar por medo, trará até ele seus familiares e amigos, para que o
convençam a confessar. O desconforto da prisão, a reflexão, as frequentes
exortações de gente honesta muitas vezes levam o réu a confessar.
Mas, se não se conseguir nada, e se o inquisidor junto com o bispo
acharem mesmo que o réu lhes esconde a verdade, então, devem mandar
torturá-lo moderadamente e sem derramamento de sangue, lembrando
sempre que a tortura é enganadora e ineficaz (scientes quod quaestiones
sunt fallaces et inefficaces). Existem pessoas com o espírito tão fraco,
que confessam tudo com o mínimo de tortura, mesmo se não cometeram
nada. Outras, são tão obstinadas que não abrem a boca,
independentemente das torturas que sofrerem. Há pessoas que já foram
torturadas; estas suportam mais que as outras a tortura, porque contraem
os membros, endurecendo-os; porém, outras pessoas saem enfraquecidas
das torturas anteriores e ficam incapazes de suportar outras. Existem os
enfeitiçados que, sob o efeito de bruxarias utilizadas durante a tortura,
ficam quase insensíveis: preferem morrer a confessar.
Uma vez declarada a sentença, os assistentes do inquisidor partem
para a execução. Durante a preparação da execução, o bispo e o
inquisidor, eles próprios, ou um fiel fervoroso, irão pressionar o réu para
que confesse espontaneamente. Se o réu não confessar, ordenarão aos
carrascos para que tirem as suas roupas — o que farão imediatamente,
sem brincadeiras, como se tivessem tomados de emoção. Enquanto é
despido pelos carrascos, pedirão a ele que confesse. Se continuar a
resistir, será levado num canto, completamente nu, por esses fiéis
idôneos, que lhe suplicarão cada vez mais. Começam a dizer-lhe, ao
mesmo tempo que suplicam, que, se confessar, terá sua vida poupada, se
jurar que nunca mais vai cometer tais crimes. Muitos confessarão a
verdade, se não estiverem torturados pelo medo de morrer.
154
Passei por essa experiência muitas vezes; outros vão confessar, se lhe
prometerem salvar a vida. Então, o inquisidor e o bispo devem prometer,
porque poderão manter a sua palavra (exceto se se tratar de um relapso, e
quando não se prometer nada).
Se não se conseguir nada através desses meios, e se as promessas se
revelarem ineficazes, executa-se a sentença e tortura-se o réu da forma
tradicional, sem buscar novos artifícios nem inventar os mais rebuscados:
mais fracos ou mais violentos; de acordo com a gravidade do crime.
Durante a tortura, primeiramente, interroga-se o réu sobre os pontos
menos graves, depois, sobre os mais graves, porque vai confessar mais
facilmente as faltas pequenas do que as graves. O escrivão, enquanto
isso, tomará nota das torturas, das perguntas e respostas. Se,depois de ter
sido convenientemente (decenter) torturado, não confessar, vão lhe
mostrar os instrumentos de um outro tipo de tortura, dizendo-lhe que vai
passar por todos eles, se não confessar.
Se mesmo assim não se conseguir nada, continua-se com a tortura
no dia seguinte, e no outro, se for preciso (porém, não se “recomeçam” as
torturas, pois só se pode fazer isto se se dispõe de novos indícios contra o
réu. Em outras palavras, é proibido “recomeçar”, mas não “continuar”).
Quando o réu, submetido a todo tipo de tortura, continua sem
confessar, param de brutalizá-lo e o soltam. Se pedir a definição da
sentença, não se pode recusar. Será lavrada nos seguintes termos: — que
depois do exame meticuloso de seu dossiê, não se encontrou nada que
pudesse provar com legitimidade o crime de que o acusaram,
prosseguindo nos termos previstos para sentença de absolvição.
A pessoa que confessa sob tortura tem as suas palavras registradas
pelo escrivão. Depois da sessão, será conduzido para um local onde não
exista nenhum sinal de tortura. Lerão a confissão feita sob tortura e
continuarão o interrogatório até obterem de sua boca toda a verdade. Se o
réu não confirmar a confissão ou se negar ter confessado sob tortura, e se
ainda não passou por todas as sessões previstas, continua-se a torturá-lo
— sem “recomeçar”.Mas,se já passou por todas as torturas, será liberado.
E, se fizer questão de receber a sentença,lha darão como no caso
precedente.
Se, ao contrário, mantiver a confissão feita sob tortura, reconhecer o
seu crime e solicitar o perdão da Igreja, considera-se que admitiu a
heresia e se arrependeu. Será, então, condenado às penas reservadas aos
que assumem e se arrependem, de que trata o oitavo tipo de sentença. Se
mantiver, depois da tortura, a confissão, mas não solicitar o
155
perdão, e se não for relapso, será entregue ao braço secular para ser
executado (como no décimo tipo de veredicto).
Se for relapso, será condenado da maneira exposta no décimo
primeiro tipo de veredicto.
42 Lindo eufemismo para não falar da exploração dessas “partes secretas” do corpo. Porque, na
verdade, Eymerich foi suficientemente explícito quanto à nudez da pessoa que é levada à tortura.
156
o réu em questão é uma mulher grávida? Esta não é torturada nem
aterrorizada, para evitar que dê à luz ou aborte. Deve-se tentar arrancar-
lhe a confissão através de outros meios, antes de dar à luz. Depois do
parto, não haverá mais nenhum obstáculo à tortura.
O valor da confissão é absoluto quando obtido sob ameaça de
tortura ou através da apresentação dos instrumentos de tortura. Nesse
caso, considera-se que o réu confessou espontaneamente, tendo em vista
que não foi torturado. A mesma coisa, se a confissão é obtida quando o
réu já está despido e amarrado para ser torturado. Se confessar durante a
tortura, deve, depois, confirmar a confissão, já que esta foi obtida através
do sofrimento e do terror.
Dizem que se podem “recomeçar” as torturas, quando sob o seu
efeito conseguiram-se novos indícios: deve-se assinalar que tudo o que o
réu disser sob tortura pode ser considerado como um novo indício, e, em
tais casos, é absolutamente correto “recomeçar” a tortura. E com muito
mais razão, quando a confissão é obtida por outros meios. Entretanto, não
se deve abusar dessa possibilidade de “recomeçar” as torturas, para evitar
que o torturado morra em decorrência disso. Além disso, muitos réus
ficam, depois das primeiras sessões de tortura, num tal estado de
fragilidade e enfermidade, que devemos nos perguntar, sinceramente, se
seriam capazes de suportar o restante, sem riscos para o corpo e para a
alma: os juízes devem-se lembrar, então, de que não são carrascos e que a
tortura é enganosa, como já foi dito anteriormente.
É preciso considerar, agora, em que situação se podem “repetir”as
torturas. Talvez seja uma questão bastante tola, e que não desperte grande
interesse. Vamos destacar três regras:
157
prática. No entanto, devemos nos lembrar que acontece, com frequência,
de os réus confessarem qualquer coisa, logo nas primeiras sessões de
tortura. Portanto, o inquisidor tem que ser bastante perspicaz, levando em
conta o grau de esperteza do réu.
Terceira:o réu confessa sob tortura. Depois, levado a confirmar a
confissão, desdiz tudo. Em tais situações, “recomeça-se” toda a série de
torturas, porque a confissão obtida durante a série anterior constitui,
justamente, o novo indício que se precisa.
Mas tudo isso deve ser feito sem crueldade! Não somos carrascos:
mais adiante, vou mostrar quantas vezes podem-se “recomeçar” as
torturas.
Finalmente, quando se pode dizer que alguém foi “suficientemente
torturado"? Quando parecer aos juízes e especialistas que o réu passou,
sem confessar, por torturas de uma gravidade comparável à gravidade dos
indícios. Entenderão, portanto, que expiou suficientemente os indícios
através da tortura (ut ergo intelligatur quando per torturam indicia sint
purgata).
Como o réu confirma a confissão efetuada sob tortura? O escrivão
pergunta-lhe depois da tortura: “Lembras-te do que confessaste ontem ou
anteontem sob tortura? Então, repete tudo agora com total liberdade.” E
registra a resposta. Se o réu não confirmar, é porque se lembrou e, então,
é novamente submetido à tortura.
Mas quantas vezes se pode recomeçar toda uma série de torturas por
causa da não confirmação da confissão? Os estudiosos não são unânimes
a esse respeito. Alguns acham que se pode recomeçar a série inteira — e,
completá-la, é claro — por três vezes ou mais. Acho que haveria excesso
de crueldade, e que não se deveria ultrapassar as duas séries completas de
torturas. Pode-se aplicar uma terceira série,se o réu tivesse sido torturado
com uma certa timidez, nas duas séries anteriores. Depois de tudo isso, se
não se obtiver confirmação da confissão — ou nenhuma confissão —,
solta-se o réu, como explicou brilhantemente Eymerich43.
43 Corno vamos ver, na Parte III, o editor romano é partidário da manutenção da série tradicional de
cinco tipos de tortura, que constitui cinco etapas na progressão da gravidade da tortura. O suspeito
tem direito a um tipo de tortura diário. Pensando no pior — ou no melhor, nunca se sabe! — só no
final de quinze dias de tortura, o réu que não confessou será considerado “suficientemente
torturado”, podendo ser libertado.
158
Quarto veredicto: abjuração por suspeita leve
A abjuração de levi44 deve ser feita pela pessoa contra quem o Tribunal
só encontrou leves indícios de heresia. Esta deverá abjurar publicamente,
na catedral, se for publicamente suspeita. Do contrário, pode abjurar no
palácio episcopal ou no capítulo do convento dos dominicanos, onde
reside o inquisidor, ou então na casa do bispo ou do inquisidor.
Se a suspeita é pública, o procedimento é o seguinte:
O inquisidor avisará, com tempo suficiente, a todas as igrejas do
local, que em tal domingo vai pronunciar um sermão, em tal igreja, e que
todos são obrigados a comparecer. Será construído um patíbulo, no meio
da nave, de frente para o altar, no qual ficará o acusado, de pé, para que
todos o vejam, com a cabeça descoberta, sob forte proteção. O sermão
girará em torno da heresia que o acusado deve abjurar, e o inquisidor
contará que aquele que está no patíbulo encontra-se sob suspeita disso e
daquilo e deve, portanto, expiar tais suspeitas abjurando de levi. Depois,
coloca-se o Livro dos Quatro Evangelhos diante do abjurante: este o toca
com a mão e abjura.
Se, por exemplo, é suspeito de não acreditar na pobreza absoluta de
Cristo e seus apóstolos, irá dizer: “Juro que acredito de todo o coração, e
minha boca proclama, que o Senhor Jesus Cristo e seus apóstolos, quando
andavam pela terra, possuíam bens em comum. Que o digam as
Escrituras. E que tinham o direito de distribuir esses bens, vendê-los e
doá-los.45” O abjurante promete nunca mais aderir a nenhuma heresia e,
se o fizer, dispõe-se a sofrer todos os castigos que lhe forem impostos.
Termina assim: “Que Deus e os Santos Evangelhos me ajudem!”
A abjuração será feita em língua vulgar para que todos a
compreendam. A Inquisição se pronunciará, depois, da seguinte maneira:
Deve abjurar de uma suspeita grave aquele contra quem o Tribunal, não
tendo nada para provar de concreto, seja através de depoimentos ou da
análise dos fatos, tem, em contrapartida, fortes indícios que levem a uma
grave suspeita.
Tal suspeito deverá abjurar da heresia de que é acusado e por isso
será tratado como relapso, caso recaia no erro, ou seja, será executado
pela autoridade secular. Vai abjurar em público ou sigilosamente – como
na situação anterior – diante de muitas ou poucas pessoas, conforme a
extensão e a importância da suspeita.
Se abjurar em público, numa grande igreja ou na catedral, far-se-á o
anúncio em tempo hábil, como no caso anterior, acrescentando que só
haverá o sermão do inquisidor, e que os que o ouvirem ganharão as
indulgências de praxe. Na véspera do tal dia, erguerão o cadafalso no
meio da igreja, onde será colocada uma cadeira para a pessoa que vai
abjurar. No dia, o inquisidor faz o sermão, e depois o escrivão, ou outra
pessoa, lê a ata em que figuram os motivos da gravidade da suspeita.
Depois, o inquisidor diz: “É por isto que nos pareces gravemente
suspeito. Precisas abjurar essa heresia e expiá-la.”Após o que, colocam-
se diante do abjurante os Quatro Evangelhos e ele os toca com a mão. Se
souber ler, dão-lhe o texto da abjuração para ele ler diante de todos. Se
não souber ler, um escrivão, ou um sacerdote, lê o texto devagar,
enquanto o abjurante o vai repetindo.
Depois de abjurar
O escrivão não esquecerá de registrar, abaixo dos autos, que Fulano de tal
abjurou uma grave suspeita, de tal modo que, caso reincida, possa ser
executado como relapso. Depois, o inquisidor anuncia a sentença e aplica
a pena.
Resta ao inquisidor cumprir três coisas, após o pronunciamento da
sentença:
“Meu filho, estas são as violentas suspeitas que pesam sobre ti. Por
causa delas, deves ser condenado como herege. Presta bem atenção
163
ao que vou dizer: se quiseres te afastar dessa heresia, abjurar
publicamente e suportar com paciência a punição que a Igreja, e eu
próprio, em nome do Vigário de Cristo, te imporemos, ser-te-á
permitida a absolvição de teus pecados. Aplicaremos um castigo que
possas suportar e te libertaremos do peso da excomunhão que te
mantém prisioneiro; poderás te salvar e ter direito à glória eterna. Se
não abjurares, não quiseres aceitar a punição, nós te entregaremos,
agora, ao braço secular, e perderás o corpo e a alma. O que preferes:
abjurar e salvar a alma ou não abjurar e ser condenado?”
164
missas de determinadas festas. Será punido com prisão perpétua, ou por
um período, de acordo com o teor da suspeita. O inquisidor lembrará que
poderá, se quiser, diminuir ou aumentar a pena. Depois, pedirá que tenha
paciência, prometendo-lhe aliviar o castigo, caso se submeta. Ameaça-o
de entregá-lo, como relapso, ao braço secular, para ser executado, se
protestar. Por fim, concede as indulgências habituais: dez ou vinte dias
aos assistentes, três anos para os delatores e colaboradores.
168
causa da misericórdia do bispo e do inquisidor (solam tibi vitam de
misericordia relinquentes). O réu é condenado:
171
entregar a alma ao Criador.
Estes homens, estes religiosos, deverão ter muito cuidado para não
fazer nada, não dizer nada que leve o réu a dar cabo da própria vida:
também incorreriam numa irregularidade.
Finalmente, observe-se bem que esta sentença de entregar ao braço
secular é, normalmente, pronunciada numa praça, e não na igreja, exceto
domingos e dias de festa. É normal: a sentença leva à morte (ducit ad
mortem) e, por isso, é mais honesto (honestus) pronunciá-la fora da igreja
e durante a semana, pois o templo e o domingo são o lugar e o tempo
consagrados ao Senhor.
Trata-se de alguém que foi denunciado e confessa tudo, mas que não se
considera culpado de heresia, e não abjura. É um herege impenitente, e
não um relapso. É aquele que confessa sua crença em mandamentos
heréticos, e que, informado pelo bispo e pelo inquisidor sobre o caráter
herético de suas crenças, não quer acreditar no que dizem, e continua a
defender, diante deles, suas próprias convicções heréticas: recusa-se a
abjurá-las, negá-las e rejeitá-las. Se não se conseguir saber se, no
passado, já abjurou outra heresia ou erro, trata-se de um herege
impenitente, e não de um relapso.
Este tipo de gente que é denunciada é mandada para uma prisão
inviolável,com algemas nos pés, bem trancafiados, para que não possam
fugir e contagiar outros fiéis. Não poderão receber visitas nem falar com
ninguém, só com os guardas, que serão homens de uma grande
idoneidade, acima de qualquer suspeita em matéria de fé, homens
impossíveis de enganar. Com frequência, o bispo e o inquisidor,
separadamente ou juntos, mandarão que o preso compareça diante deles,
dando-lhe ensinamentos sobre a verdadeira fé, e mostrando-lhe,
baseando-se em provas das Santas Escrituras, o caráter errôneo e herético
de suas convicções. Se conseguirem convencê-lo de seus erros, muito
bem. Caso contrário,perguntem-lhe sobre o que baseia suas convicções;
considerem os seus motivos e as “autoridades” a que se refere, e abalem
os fundamentos dos seus erros.
Se, apesar de tudo, não quiser confessar a fé católica, designam-se
dez ou doze especialistas bastante doutos, escolhidos, preferentemente,
entre os membros das diversas famílias religiosas, de um lado; de outro,
entre o clero secular; e de outro ainda, entre os juristas leigos: esses
172
especialistas – juntos – farão comparecer à sua presença com frequência
o impenitente e, juntos, lhe passarão ensinamentos sobre a verdade
católica, alegando a autoridade da Bíblia e outros livros “autênticos”,
para provar-lhe que sua crença é contrária às Escrituras e à autoridade da
Igreja, destruindo, assim, as próprias bases da sua crença.
Se o réu se recusar, ainda, a se converter, não se terá pressa em
entregá-lo ao braço secular, mesmo se o herege pedir para ser entregue:
porque,com frequência, este tipo de herege pede a fogueira, convencido
de que, se for condenado à fogueira, morrerá como mártir e subirá logo
aos céus. Trata-se de hereges fervorosíssimos, profundamente convictos
da sua verdade. Então, não se deve ter pressa com eles. Não se trata, é
claro, de ceder à sua insensata vontade. Ao contrário, serão trancafiados
durante seis meses ou um ano, numa prisão horrível e escura, pois o
flagelo da cadeia e as humilhações constantes costumam acordar a
inteligência.
Se o bispo mais o inquisidor constatarem que o réu não se curva aos
seus argumentos nem aos argumentos dos especialistas e que os rigores
da prisão não o abalam o suficiente, devem tentar a delicadeza,
transferindo o réu para uma prisão menos desconfortável (tomando
cuidado, no entanto, para não deixá-lo fugir). Dirão a ele que se
mostrarão misericordiosos, se abjurar. E se o fizer, que Deus seja
louvado! Senão, ao final de alguns dias de regime privilegiado, trazem os
seus filhos diante dele-se os tiver,e principalmente, se forem pequenos
(praesertim parvulos) – ou sua esposa – ou outros familiares para
tentarem fazê-lo refletir.
Porém, se o inquisidor mais o bispo nada conseguirem, nem com
rigidez nem com delicadezas, quando passar um período de tempo
razoável, irão se dispor a entregá-lo ao braço secular.
Avisarão o juiz provincial ou o responsável do poder secular para
comparecer com seus oficiais (seus familiares), em determinado dia,
exceto feriado, a tal hora, perto de tal igreja, para levar um herege
impenitente. Através de carta publicada, eles mandarão avisar que em tal
dia o inquisidor fará uma pregação sobre a fé, na igreja tal, e entregará,
oficialmente, um herege ao braço secular: que tais disposições sejam
anunciadas em toda parte para que os fiéis possam ganhar as indulgências
de praxe.
No dia marcado, tudo estará preparado como se fosse para as
sentenças descritas anteriormente, mas desta vez estarão presentes o
bispo, as autoridades eclesiásticas e civis. Se o herege for um religioso ou
173
um padre secular, apresentar-se-á sobre o cadafalso paramentado com as
vestes litúrgicas, como se fosse celebrar a missa.
O sermão será pronunciado como sempre. Depois, o inquisidor
perguntará: “Queres te arrepender?” Se, sob a inspiração divina, o herege
responder que sim, será aceito na penitência como herege que reconhece
a sua heresia, como um herege confesso, mas não relapso; procede-se,
então, como no oitavo veredicto – a menos que se trate de uma falsa
conversão! Ele abjura. Mas, uma vez que esta abjuração será,certamente,
ditada pelo medo, e não pela convicção, o réu receberá a prisão perpétua.
Se for padre, primeiro será degradado.
O bispo aproxima-se dele, com os dignitários da diocese,
paramentado das vestes pontificais. “Despoja-o” de qualquer cargo e
privilégio e o degrada,despojando-o dos paramentos próprios à sua
condição, começando pelos últimos e terminando pelos primeiros. Na
medida em que o despoja, diz palavras opostas àquelas que o bispo
pronuncia quando confere aos padres determinados poderes. Terminado o
despojamento, o réu é condenado à prisão perpétua, procedendo-se como
no oitavo caso.
Se não quer ser torturado nem abjurar – o que, nessa fase, acontece
na maior parte dos casos – o bispo o degradará, após o que será entregue
às autoridades civis. O herege é excomungado e impedido do sacramento
da penitência. A sentença termina assim:
174
pena de morte.”
Lida a sentença, o inquisidor distribuirá, em nome de Nosso
Senhor, o Papa, as indulgências de praxe.
E,enquanto a Cúria Secular executa o seu trabalho (suum officium
exequetur), poderão se associar a ela alguns fiéis idôneos, que pedirão,
ainda, ao herege que abjure seus erros.
E, se, depois de ter sido entregue à Cúria Secular, ou mesmo
enquanto o conduzirem à fogueira, ou quando já estiver em cima da
madeira para ser queimado, o herege disser que deseja abjurar, acho que,
por misericórdia, poder-se-ia considerá-lo como herege penitente e
prendê-lo para o resto da vida, se bem que isto não esteja muito de acordo
com o Direito, e que não se deva acreditar muito numa tal conversão.
E, de fato, vejam o que aconteceu na Catalunha, na cidade de
Barcelona, onde entregaram à autoridade secular três hereges
impenitentes, mas não relapsos. Um deles, que era padre, quando já
estava bem queimado de um lado, se pôs a gritar que o desamarrassem,
pois queria abjurar, e se arrependia. Desamarraram-no. Fizeram bem?
Fizeram mal? Não sei. Mas aqui está o que sei: acusado quatorze anos
mais tarde, constatou-se que praticara esse tempo todo a heresia e que
tinha pervertido outras pessoas. Não quis converter-se e, impenitente,
além de relapso, foi novamente entregue ao braco secular e queimado.
175
forçados? Sim, e pelas mesmas razões.
Eymerich acha que se poderia, ainda, aceitar o impenitente que, a
dois passos da fogueira, dissesse que deseja abjurar. É infinitamente mais
prudente sustentar a opinião contrária, mesmo se o impenitente gritasse
mil vezes e a sua conversão, pois, juridicamente, essa conversão é
inadmissível, e a experiência mostra que esse tipo de conversão jamais é
sincera. Aliás, o próprio Eymerich vai voltar ainda a esse assunto, no
décimo segundo veredicto.
Finalmente, por que esse pedido à Cúria Secular para evitar o
derramamento de sangue e a pena de morte? Para que esta recomendação,
em total desacordo com o conjunto de textos e com as advertências
explícitas feitas ao herege impenitente que “corre o risco de perder a
alma e o corpo”? Simplesmente, para que o inquisidor não caia numa
irregularidade, caso não livre a Cúria Inquisitorial da própria execução da
pena capital.
181
182
183
184
A. A INQUISIÇÃO — O
INQUISIDOR — OS
COMISSÁRIOS
INQUISITORIAIS
O Papa, porque é ele quem, de viva voz e através de uma Bula, lhe
confere a sua autoridade. Às vezes, o Papa delega o seu poder de nomear
os inquisidores a um cardeal representante, bem como aos superiores e
padres provinciais dos dominicanos, e frades franciscanos.
186
5. Morrendo o Papa que nomeou o
inquisidor, este perde a sua
autoridade delegada?
Claro que não. Ela fica incólume, mesmo para os processos que nem
foram abertos.
Antigamente, podiam. Porém, não têm mais esse poder, depois dos
privilégios concedidos diretamente aos inquisidores pelos Papas
Alexandre IV, Clemente IV e Urbano IV.
187
8. Os inquisidores devem prestar contas aos
superiores de suas Ordens a respeito de suas
atividades referentes ao Santo Ofício?
188
9. O inquisidor pode ser ajudado
pelo vigário ou pelo comissário
inquisitorial?
Sim, pois, enquanto representante pontifício, pode subdelegar seus
poderes. Cabe ao inquisidor, e não a seus superiores hierárquicos, a
escolha e a nomeação do comissário.
190
Sem dúvida! Alexandre IV (Quaesitivis, Anagni, 1249) decretou, aliás,
que apesar da dissolução do elo jurídico entre o senhor e o súdito —
consequência imediata da excomunhão do senhor — este é obrigado a
exercer sua autoridade contra os hereges, e todos os que o sigam, escutem
e ajudem.
191
bens pertencentes à Igreja.
Nestas três situações, os inquisidores perdem todos os privilégios
(exceto,é claro, em articulo mortis).
XVI. Aqui, faz-se uma restrição à abrangência do que foi dito na resposta
anterior. Mas é bom lembrar que os textos pontifícios, falando dessas três
situações, esclarecem que o inquisidor é excomungado se estiver
absolutamente consciente do delito que cometeu. Se agisse por
ignorância ou de boa-fé, não receberia o castigo da excomunhão!
192
C. PODER DO INQUISIDOR
194
O inquisidor pode punir quem coloque entraves ao exercício da
Inquisição. Deve excomungar qualquer leigo, que publicamente ou não
discuta questões teológicas. “Procederá” contra qualquer advogado ou
escrivão que der assistência a um herege.
195
XVI. Por que privar de sepultura cristã os hereges e seus seguidores? Por
várias razões. Primeiro, porque todos eles morreram excomungados, ou
seja, em pecado mortal. Segundo, como escreveu Santo Agostinho, deve-
se recusar a sepultura cristã a todos aqueles pelos quais é proibido rezar:
é o caso dos hereges.
Se, depois da morte, aparecer alguém dizendo que Fulano era
herege ou excomungado, exuma-se o corpo e cremam-se os ossos,
tomando bastante cuidado para não cremar junto os ossos de católicos
honestos. A seguir, faz-se a consagração do local profanado pela
presença do cadáver de um herege.
Além dos hereges formais, também são privados de sepultura cristã
os seguidores de qualquer heresia e quem protegê-la ou ajudá-la. Com
muito mais razão, é privado de sepultura cristã, o herege ou suspeito, que
preso, em virtude de seus erros, suicida-se no cativeiro, uma vez que
teria, claramente, morrido como um impenitente, e por consequência, em
estado de pecado mortal.
Quem dá sepultura cristã a herege é atingido pela excomunhão e
deve desenterrar o corpo. É justo: dar sepultura a um herege equivale a
proclamar a si mesmo suspeito de heresia. Exige-se, então, de quem
cometer tal delito uma abjuração formal e outra abjuração canônica a
menos que o culpado esteja em condições de alegar uma forte razão que
justifique o delito.
Contudo, pode-se enterrar um herege (ou simpatizante), mas fora
do cemitério consagrado, quando o herege morrer num local, ou em
circunstâncias que torne impossível apelar para as autoridades
inquisitoriais e aguardar suas providências. Neste caso, precisamente,faz-
se o enterro para que o corpo do herege não se decomponha, e quem o
enterrou não será suspeito de heresia.
Evidente que serão considerados suspeitos de heresia quem
celebrar cerimônias fúnebres para um herege e quem recuperar e guardar
ossos, cinzas ou roupas de um herege. Este tipo de prática equivale, na
verdade, a considerar como santos aqueles que a Igreja condena.
196
Pode, porque Alexandre III estabeleceu que aquele que se recusar a
prestar juramento é considerado herege. Aliás, esta recusa é prática
comum entre os valdenses, que achavam que jurar era um pecado mortal.
Pode, de acordo com o que foi estabelecido por nossos senhores os Papas
Urbano IV e Alexandre IV.
197
XVI. Em Direito Civil, considera-se, geralmente, que, com a morte do
culpado, cessa qualquer possibilidade de perseguição por causa de um
delito. Mas este princípio geral não vale em caso de lesa-majestade
divina ou humana: é um princípio adotado, por unanimidade, pelos
especialistas e confirmado pelo Concílio de Béziers. Ora, há delito de
lesa-majestade divina quando houver heresia. Logo…
Mas, após quanto tempo da morte do herege, o inquisidor poderá
ainda julgar?
Façamos a distinção das duas causas de perseguição de um herege
que morreu:
a. Condena-se ele para confiscar-lhe os bens — ou, mais
exatamente, para declarar que seus bens foram confiscados ipso
facto —, tirá-los de terceiros que os detenham ou atribuí-los ao
Santo Ofício da Inquisição.
b. Quando se quer lançar o anátema à memória do morto, declarando
que era herege, merecendo, por isso, as punições previstas.
Consequências dessa condenação são a exumação e a cremação do
cadáver ou o traslado do corpo para fora do cemitério consagrado.
No primeiro caso — condenação visando confisco — não se pode
mais perseguir judicialmente o cadáver, depois de cinco anos do
falecimento. É a opinião de alguns especialistas. Mas, na verdade,
persegue-se até quarenta anos depois do falecimento. E os herdeiros,
mesmo se forem católicos e cuidarem com a maior boa vontade dos bens
do herege, serão despojados em proveito do fisco eclesiástico ou civil,
conforme as leis e a localidade.
No segundo caso — anátema à memória do morto — não há limite
de tempo. E, se a condenação da memória do falecido ocorrer além de
quarenta anos depois de sua morte, seus herdeiros ficarão, logicamente,
com os seus bens, mas sofrerão punições especialmente previstas para os
filhos dos hereges: serão declarados infames e inaptos a qualquer cargo
público ou privilégio. Trata-se de uma sentença perfeitamente de acordo
com o Direito, se bem que acabe, lamentavelmente, punindo quem não
cometeu nenhum crime.
Como “proceder” contra um morto? Uma questão difícil, porque,
será que se pode abrir um processo contra quem, por definição, não pode
ser citado para comparecer? Não seria melhor falar claramente de
“condenação da memória de Fulano” do que de “processo”? Sim, em
Direito Civil. Mas, evidente que não, em se tratando de um delito de lesa-
198
majestade divina.
Se os indícios forem suficientes, haverá um processo. O fiscal
solicita intervenção do inquisidor, valendo-se das denúncias feitas contra
o acusado morto e pede que sejam aplicadas as penas previstas
(confisco,degradação etc.). Os herdeiros, e todos que tiverem um
interesse direto em opor-se à condenação do morto,serão avisados assim
que o processo for aberto, para poderem defender a sua memória. Se os
herdeiros ou quem tiver direito não comparecerem no prazo determinado,
o inquisidor designará um defensor, que agirá como o previsto nos casos
de processo inquisitorial ordinário: defenderá a causa do morto, guardará
segredo de tudo o que disser respeito ao processo, comunicando-se,
apenas, com os legistas do Santo Ofício. De acordo com as Instruções de
Ávila (1498), o procedimento contra o morto será rápido: tanto a
absolvição quanto a condenação serão rápidas. E isto é explicável:se a
causa se eternizasse, os filhos e, principalmente, as filhas do morto não
poderiam dispor dos seus bens enquanto duras-se o processo, e, nesta
situação, as filhas não encontrariam casamento. No entanto, se após a
absolvição de um morto,se descobrem novos indícios de culpa, reabre-se
o processo; desta vez, decide-se levar em conta tanto os antigos como os
novos indícios.
Se o acusado morrer durante o processo, este continua
normalmente, e chamam-se os filhos ou descendentes mais próximos do
morto para assumir a defesa: haverá pagamento, se for preciso pagar, e
condenação do morto, se for preciso condenar53.
Em casos de processo póstumo, recorre-se à prática das efígies; a
efígie do morto não será exposta publicamente, se o falecido for
absolvido; mas ela será entregue ao braço secular e queimada (depois da
proclamação pública dos erros do morto e da sentença), caso o morto seja
condenado. Também se entregará à autoridade secular a efígie do
acusado que tiver se suicidado durante o processo, já que o suicídio
constitui a confissão de culpa mais evidente.
Finalmente, de acordo com o que foi estabelecido pelo Concílio de
Toulouse, em 1229 (do qual Eymerich, curiosamente, nem fala),a casa do
herege condenado e queimado será demolida (tenha sido ele condenado
em vida ou depois de morto), nivelando-se a terra, para que não fique
nenhum vestígio. Não era na sua casa que os hereges se reuniam e faziam
conciliábulos contra a fé? A sentença de demolição vale para a moradia e
53 Porém, saberemos mais adiante (resposta à pergunta 65) que o depoimento da defesa feito pelas
pessoas próximas ao morto, em caso de processo póstumo, tem um valor apenas relativo.
199
locais de reunião dos hereges e implica a interdição de reconstruir no
mesmo local, futuramente, bem como a apropriação, pelo fisco
eclesiástico, de todas as terras, ruínas e fundações (omnes lapides, rudera
et coementa inde amota ad fiscum nostrum pertinere). O Concílio de
Béziers retoma essas resoluções do Concílio de Toulouse, que serão
ratificadas, logo depois, pelo Papa Inocêncio IV, na Bula Ad
extirpandam, na qual está prevista, além disso, a demolição das casas
vizinhas ao herege. Conforme a tradição inquisitorial, cobre-se a terra
nivelada com sal, para que se torne estéril para sempre. Depois constrói-
se uma estela gravando-se em cima o nome do dono da casa demolida, a
sentença de demolição e a data de execução (em que reinado, durante
qual pontificado). Pode-se ver uma estela igual, na importante cidade de
Valladolid, onde, em 1559, Agostinho Cazzala, mesmo convertendo-se e
confessando, foi entregue ao braço secular como dogmático, tendo sua
casa demolida.
XVI. Digamos, de uma maneira mais curta e mais clara, que o inquisidor
pode “proceder” contra todos, exceto alguns casos (Papa, legados,
bispos), decorrentes da própria natureza da autoridade delegada do
inquisidor.
200
D. OS PROCESSOS
24. O inquisidor e o bispo podem
“proceder” um sem o outro?
201
XVI. Este privilégio de utilizar uma força armada foi concedido aos
inquisidores por Clemente V, no Concílio de Viena, por volta de 1310, e
ratificado por João XXII, em 1321. Os colaboradores da Inquisição têm o
direito de andar armados dia e noite, apesar de todas as leis civis ou
municipais contrárias a essa disposição: a não revogação da lei contrária
a esse privilégio será considerada, de pleno direito, como um entrave ao
exercício da Inquisição e a autoridade capaz de revogar, recusando-se a
fazê-lo, é passível, em virtude disto, de perseguições inquisitoriais.
Acho, pessoalmente, que o porte de arma não deveria ser reservado
apenas à categoria dos colaboradores da Inquisição, que os italianos
chamam de Crocresignati e os espanhóis, de Familiares (cujo papel é
escoltar o inquisidor, denunciar os hereges e capturá-los com mandato
inquisitorial), mas deveria ser estendido a todos que, por uma razão ou
por outra, têm que colaborar com a Inquisição (advogados, escrivães,
especialistas guardas etc.), porque todos são malvistos pelos infiéis,
blasfemadores e demais pecadores. Portanto, é justo que todos eles, e os
que os servem, andem armados, principalmente em regiões onde a
heresia grassa.
Deveria também beneficiar-se do porte de arma quem, mesmo sem
colaborar direta, ou indiretamente, com a Inquisição, escreve contra a
heresia. Trata-se dos defensores da fé, que atraem, em razão disto, grande
número de inimizades. Seria, portanto, esperado, que o Papa, na sua
bondade, atribuísse, também a eles, o direito de andar armados.
Considerando o privilégio do porte de arma e os riscos de abuso que
isto implica, seria prudente que nenhum convertido fosse admitido entre
os Crocresignati ou Familiares. Os cristãos-velhos são suficientemente
numerosos para que não se faça necessário escolher os guardas
inquisitoriais entre os neófitos e convertidos.
202
E. A PRISÃO INQUISITORIAL
203
inquisidor estaria incorrendo numa irregularidade. De juiz da fé, ele se
transformaria num carrasco. O inquisidor deve sempre lembrar-se das
disposições do Concílio de Béziers: “Que se construam, próximo a cada
sede episcopal — e, se for possível, em cada cidade —, celas individuais
sem luz, nas quais os hereges condenados ficarão trancados, de tal modo
que não possam contaminar-se mutuamente nem perverter outras pessoas.
Mas evitem que os condenados morram em decorrência do excesso de
rigor das prisões.”
Cada um pode ter a sua própria prisão, e cada um pode transformar sua
própria prisão em prisão comum aos dois.
204
do inquisidor. Se se tratar de uma prisão episcopal, os guardas também
prestarão juramento na presença do inquisidor.
Longa e enfadonha a questão da vigilância. Questão puramente
verbal, no fim de contas, pois de onde o inquisidor tiraria o que pagar aos
guardas? Não me alongarei muito nisso, então, porque ficaria sempre sem
solução o problema do salário dos guardas, tal é a deficiência do salário
dos inquisidores.
205
desgraças comuns fazem nascer, em pouco tempo, grandes amizades
entre os presos, que passam, logo, a pensar juntos os meios de escapar à
triste sorte que os espera. O inquisidor visita os presos duas vezes por
mês, interessando-se em saber como estão sendo tratados. Pode ser útil
multiplicar essas visitas até quatro ou cinco vezes por mês, e até mais,
principalmente quando o preso suporta mal a vergonha e a grande prova,
que é a cadeia. Este tipo de preso será várias vezes visitado pelo
inquisidor, que lhe permitirá receber a visita de outras pessoas, que vão
consolá-lo e dizer-lhe que, se confessar espontaneamente, terá a sua
situação logo resolvida. Muitos presos que mal conseguem suportar a
presença do juiz se acalmam e se pacificam quando outras pessoas fazem
esse tipo de proposta. O inquisidor deve ter cuidado, quando visitar os
detentos, para falar com eles apenas sobre a acusação e o processo, e
mais nada. Existem culpados inflexíveis, que aproveitariam qualquer
pretexto para caluniar, depois, o inquisidor. Este deve fazer-se
acompanhar do seu escrivão ou de um outro membro da sua equipe
quando for visitar os presos: será mais prudente.
Não se deve transferir à toa os presos de um lugar para outro, de
uma prisão para outra. Mas, se for absolutamente necessário, deve-se ter
cuidado para manter juntos, na nova cela, os transferidos, e não juntá-los
com outros presos, porque a experiência mostra que, durante esses
deslocamentos, ensina-se para um segmento da cadeia o que se aprendeu
em outro. É necessário que o que se diz numa prisão ou num setor não
seja ouvido em outro: quem já tiver confessado desmente tudo depois de
uma transferência de cadeia. Porém, não vou me estender nessas medidas
de segurança que todo inquisidor sabe de cor e salteado.
Os presos não têm direito de assistir à missa celebrada dentro da
cadeia. Não existe suspeita de heresia, não é bastante provável que os
presos sejam hereges? Não foram excomungados? A pura simonia é
menos grave que a heresia e o simoníaco não pode celebrar a missa.
Portanto, os acusados de heresia não podem querer assistir aos santos
mistérios. Além do mais, os presos, principalmente se forem muitos,
aproveitarão a missa para combinar, através de sinais e outros meios,
como esconder a verdade, dissimular um indício ou confundir uma
testemunha.
Enfim, não é usual dar permissão aos presos, que estejam sob
prisão preventiva, de assistir ao preceito dominical. O inquisidor proíbe,
normalmente, apenas os suspeitos que os depoimentos e denúncias
comprometem. Quem o inquisidor mantiver preso poderá ser, deste ponto
206
de vista, legitimamente considerado culpado. E não venham nos dizer
que os presos ficariam mais predispostos e confessariam com mais
facilidade, se lhes permitissem assistir à missa! Se forem inocentes — e,
portanto, verdadeiros devotos — confessarão bem mais rapidamente,
para não ficarem ainda mais tempo privados da graça e das orações da
missa dominical. A atitude de cada um face a tal privação pode ser um
indício significativo de que o inquisidor competente saberá muito bem
explorar.
207
F. O INTERROGATÓRIO – A
TORTURA
208
3. O suspeito contra quem se conseguiu reunir um ou vários indícios
graves deve ser torturado. Suspeita e indícios são suficientes.
Quanto aos padres, basta a suspeita (porém, só os padres
caluniados são torturados). Neste caso, as condições em que tal
ocorre são em grande número.
209
qual o bispo e o inquisidor podem se livrar mutuamente das
irregularidades que cometeram através da aplicação da tortura.
No que diz respeito aos casos em que se aplica a tortura, Eymerich
é bastante claro para que se precise entrar em outros detalhes. É bom
lembrar, antes de proceder à tortura, de que sua finalidade é menos de
provar um fato do que obrigar o suspeito a confessar a culpa que cala. Se
é possível provar o fato de outra maneira, sem torturar, não se tortura,
pois justamente a tortura serve apenas como paliativo, na falta de provas.
Deste modo, pode-se qualificar de sanguinários todos esses juízes
inquisidores de hoje, que recorrem tão facilmente à tortura, sem tentar,
através de outros meios, completar a investigação. Tais juízes se
enganam precipitando-se assim.
Em decorrência de tudo o que foi dito antes, não se deve recorrer à
tortura nos delitos manifestos, mas somente nos delitos ocultos, que são
mais difíceis de comprovar.
Os indícios devem apoiar-se em provas e serem graves, porque não
se deve torturar com base em indícios de um pequeno crime.
Se essas premissas forem observadas, pode-se torturar, como
explica accuratissime Eymerich, quando fala do terceiro tipo de
veredicto.
Na nossa perspectiva, existem cinco tipos de torturas, constituindo-
se em cinco graus diferentes. Não vou descrevê-los porque são
conhecidos por todo mundo (cuique sunt obvii et patentes) e porque toda
a descrição minuciosa se encontra nas obras de Paul Grilland (Traité la
torture, q.4, n. 11), Jules Clair (Pratique criminelle, sub fin., q.64) e
ainda outros54. A lei não diz que tipo de tortura deve-se aplicar. Portanto,
a escolha é deixada ao arbítrio do juiz, que escolherá umas ou outras, de
acordo com a posição social do réu, o tipo de indícios, e outras coisas
mais. Porém, o inquisidor não deve empenhar-se em descobrir novas
torturas. Restringe-se àquelas que, na sua sabedoria, os juízes sempre
admitiram, como explica de uma maneira bonita e clara (pulchre et clare)
Antonio Gómez: em sua obra, lê-se, por exemplo, que, atualmente, a
tortura através de cordas é aplicada, com muita frequência, em toda parte
(hodie ubique frequens), não sendo preciso abandoná-la.
Não faltaram, no entanto, juízes que se puseram a imaginar vários
tipos de torturas. Marsílio fala de quatorze suplícios e afirma que
encontrou ainda outros, o que leva Paul Grilland a elogiá-lo. Quanto a
54 Cinco graus: pau, cordas, cavalete, polé, brasas. Bem depois, a tortura da água, dos borzeguins ....
e é dar asas à imaginação.
210
mim, se quiserem a minha opinião, direi que esse tipo de erudição me
parece depender bastante do trabalho de carrascos mais do que de juristas
e teólogos que somos. Então, não vou falar disto. Isto posto, louvo o
hábito de torturar os acusados, principalmente nos dias atuais, em que os
infiéis se mostram mais cínicos que nunca. Muitos são tão
audaciosos,que cometem propositadamente todo tipo de delito com a
esperança de vencer as torturas, e vencem-nas, efetivamente à base de
sortilégios – como dizia Eymerich – sem falar naqueles que estão
totalmente enfeitiçados. Porém, sou contra também esses juízes
sanguinários que, na busca de uma glória vã – e que glória, meu Deus! –
impõem torturas diferentes, violando,assim, o Direito, a decência, e os
réus mais desprovidos (misellis reis), a tal ponto, que morrem durante a
tortura, ou saem de lá com os membros fraturados, doentes para sempre.
O inquisidor deve ter sempre em mente esta frase do legislador: o
acusado deve ser torturado de tal forma que saia saudável para ser
libertado ou para ser executado.
Depois de toda essa explicação, voltemos agora àqueles que, pelo
direito, não poderiam de forma alguma ser torturados.
Se, por outros crimes e diante de outros tribunais, a regra é nunca
torturar certas categorias de pessoas (por exemplo, letrados, soldados,
autoridades e seus filhos, crianças e velhos), para o terrível crime de
heresia não existe privilégio de exceção, não existe exceção: todos podem
ser torturados (omnes torqueri possunt). O motivo? O interesse da fé: é
preciso banir a heresia dos povos, é preciso desenraizá-la, impedir que
cresça. E que ninguém se espante com o rigor: para o crime de lesa-
majestade não existe isenção nem privilégio. Por que haveria para o
crime de lesa-majestade divina? Porém, os sacerdotes e monges serão
torturados com menos rigor, em respeito ao seu ministério e para não
incorrer na excomunhão, reservada a quem colocar a mão em cima deles.
A menos que fortíssimas suspeitas justifiquem torturas mais violentas...
Padres e religiosos não serão torturados por leigos,e sim por um
sacerdote ou religioso, a menos que se encontre religioso ou padre que
saiba torturar. Esta é a opinião de Simancas, e eu me alegraria se ela
pudesse ser observada. Mas, na verdade, comumente, padres e religiosos
são torturados por leigos. Para saber mais sobre tortura de religiosos,
deve-se consultar Prática do direito criminal, capítulo 17, de Bernardino
Díaz, onde tudo é explicado à exaustão, e da maneira mais bela. Deve-se
consultá-lo para agir com sabedoria.
Para explicar o que diz respeito à isenção de tortura, é preciso
211
observar que, embora não haja, nesta questão, privilégios relacionados à
importância da pessoa e à sua posição, há exceções à regra geral baseadas
na idade e no estado dos acusados: não se torturam crianças, velhos e
mulheres grávidas. Quanto à idade, os menores de vinte e cinco anos
serão torturados, mas não as crianças de menos de quatorze anos. Elas
serão aterrorizadas e chicoteadas, mas não torturadas. O mesmo para os
velhos. Por fim, quero assinalar que há países em que a prática da tortura
é totalmente proibida. É o caso do reino super-católico de Catalunha-
Aragão, de onde eu sou – mas, às vezes, neste reino, autorizavam torturar
os acusados no Tribunal da Inquisição. Porém, esta imunidade é bastante
nefasta, trabalhando,com frequência, em prejuízo da fé.
Depois de retomar tudo isso, que constituiu a fundamentação de
tudo que virá a seguir, iremos analisar, com Eymerich, a questão dos
indícios e motivos da tortura.
Não existe contradição entre o primeiro princípio – submissão à
tortura por parte do acusado que “vacila” – e a sétima – não torturar, se
não se dispuser de nenhum indício? Parece que apenas a “vacilação”, a
mentira, a palidez, o embaraço ou o tremor não constituem indícios que
justifiquem a tortura, mas levantam, unicamente, uma certa suspeita.
Porém, o acusado não é muito estúpido (omnino stupidus), nem é
totalmente desprovido de memória: ora, ele “vacila” e se contradiz,
quando é interrogado sobre fatos precisos, que aconteceram num período
bem definido e geralmente curto...Neste caso, a “vacilação” poderia ser
considerada como um indício suficiente para justificar a tortura. Trata-se,
porém, de uma questão que não tem a unanimidade dos especialistas.
Acham, na verdade, que a vergonha, o medo, a raiva, a dor etc. fariam
qualquer pessoa “vacilar”, e lembram que, sob o efeito do medo, homens
ilustres perdem a razão. Concluindo:este primeiro princípio só deveria ter
validade, quando se lida com pessoas acostumadas a mentir, curtidas no
crime.
Em contrapartida, não há ambiguidade possível na interpretação do
segundo princípio. Vamos ilustrá-lo com um exemplo. Um seguidor da
heresia de Lutero foi visto por uma única testemunha, quando destruía
imagens de santos, profanando-as, quebrando-as etc. No mesmo
momento, esse crime espalhou-se. Há, neste caso:a) uma testemunha e b)
um boato. Foi o suficiente para que o luterano, mesmo negando os fatos,
fosse levado à tortura. Os inquisidores observam, à luz da obra de
Eymerich e do exemplo citado, que um único depoimento basta para
aplicar a tortura, como demonstra claramente o meu comentário a
212
respeito do sétimo princípio.
Não é preciso comentar o terceiro princípio, cujo sentido é
evidente. É uma velha prática só torturar os sacerdotes em caso de
calúnia (leia-se: difamação). Porém, concordo com outros autores
modernos, como Simancas, que se deve abandonar essa restrição que
favorece muito injustamente os sacerdotes.
O quarto princípio decorre diretamente do segundo. Lembremos
que um só testemunho basta para justificar a tortura, sem precisar de
indícios fortes ou graves. O conteúdo dos depoimentos basta. No entanto,
se o depoimento atingir alguém importante ou cuja fidelidade não é
questionada por ninguém, será mais prudente tomar precauções e esperar
que indícios graves venham reforçar o valor do depoimento.
A propósito do último princípio, deve-se chamar a atenção para
algumas exceções: a) Só a difamação já justifica a tortura, se os boatos se
espalharem com muita força, se atingirem pessoas de bem, familiares ou
amigos do suspeito. A difamação agravada pela fuga do atingido constitui
uma confissão material. Neste caso, ele pode ser torturado; b) Já mostrei,
anteriormente, em que situações um único depoimento é suficiente para
justificar a tortura; c) Em que situações um só indício seria suficiente
para justificar a tortura? É uma questão bastante controvertida. Porém, é
evidente que não denunciar um herege, inclinar-se à passagem de um
herege, guardar as cinzas de um herege que foi queimado, tudo isso são
graves indícios que justificam a tortura. Acrescente-se a isso o fato de
receber cartas heréticas, invocar o diabo etc. Por fim, deveria ser
torturado quem, seriamente ou por brincadeira, confessasse, fora do
processo, práticas heréticas e também quem fosse encontrado com livros
heréticos. Em todos esses casos, não se deve esquecer de que as
confissões obtidas sob tortura devem ser ratificadas, depois, na presença
do escrivão inquisitorial.
213
G. AS TESTEMUNHAS
XVI. Para que o crime de heresia não tenha nenhuma chance de ficar
impune, ninguém, independente do crime que tiver cometido, deve ter
seu depoimento anulado. Não pode haver nenhuma ambiguidade a
respeito. Só uma questão se coloca: se dois depoimentos prestados por
215
duas testemunhas dignas de credibilidade bastam para condenar um
herege, dar-se-á o mesmo valor a dois depoimentos prestados por duas
testemunhas excomungadas, caluniadas etc.? Grande pergunta, que os
especialistas debatem há muito tempo! Na prática, admite-se em qualquer
lugar, que, se duas testemunhas menos idôneas bastam para justificar a
tortura, não bastam para levar um suspeito à condenação. Portanto,
ninguém poderá ser entregue à autoridade secular ou considerado
reincidente, somente baseando-se em dois testemunhos deste tipo.
Porém, mais de dois depoimentos de excomungados e cúmplices,
acrescidos de alguns indícios, são suficientes para justificar uma
condenação.
Concluindo: para a tortura, bastam dois depoimentos,
independentemente da condição das testemunhas. Para a condenação, a
rigor, deverá bastar um depoimento normal reforçado pelo depoimento de
um excomungado. Neste caso, será mais seguro exigirem-se dois
depoimentos de duas testemunhas dignas de fé.
Os cúmplices – ou testemunhas eventuais – chamados para depor
devem prestar juramento como testemunhas normais. Mas o cúmplice
chamado a depor deve prestar juramento? Lógico, porque quando presta
o depoimento ele o faz na qualidade de testemunha, e não de acusado. E é
como testemunha que é ouvido. Entretanto, o cúmplice condição, pode-se
torturá-lo para arrancar-lhe a verdade, mas não se pode fazê-lo, se
testemunha espontaneamente.
Respondendo a esta pergunta, o conceito de “cumplicidade” deve
ser tomado num sentido bem amplo.
216
33. Os difamados e criminosos
podem testemunhar? E os servos
podem testemunhar contra seus
senhores?
XVI. Os depoimentos dos servos serão utilizados com uma certa reserva,
porque, geralmente, são extremamente hostis aos seus senhores. Por
outro lado, é lícito torturar um servo que se mostrasse reticente em
denunciar o seu senhor.
217
35. Um herege pode testemunhar
contra ou a favor de um fiel?
XVI. Não sei como Eymerich pôde defender tal ponto de vista, depois de
dizer, expressamente, que todos têm o direito e o dever de testemunhar
em matéria de fé! Trata-se de uma opinião que não tem o menor
fundamento, e não sei de onde Eymerich a tirou. Concordando com os
especialistas, não vou considerar esta afirmação, e acho que ela só é
válida para negar a importância de um testemunho de defesa vindo de um
herege.
Pode testemunhar contra, mas não a favor. Já foi dito antes que, em
matéria de fé, excomungados e cúmplices podem ser citados como
testemunhas.
218
37. O inquisidor poderá aceitar
depoimentos — contra ou a favor —
da mulher, do filho ou de
parentes do acusado de heresia?
Poderá aceitar testemunhos contra, mas não a favor. É evidente que
nenhum depoimento de acusação é tão convincente como o desse tipo de
testemunha (est enim testimonium eorum magis efficax ad probandum).
222
No entanto, o inquisidor deve tomar cuidado com os múltiplos sentidos
do conceito de “poder”. Deve levar em conta o risco representado pelo
poder da família, do dinheiro ou da maldade. Verá, então, quão raros os
casos em que poderá divulgar os nomes dos delatores. Falo por
experiência! É bem mais perigoso divulgar os nomes dos delatores de um
pobre-diabo (alicui pauperi), cujos cúmplices e amigos não passam de
rebeldes e homicidas, que só têm a pele a perder, do que divulgar os
nomes dos delatores de uma pessoa generosa ou rica.
Em todo caso, a divulgação dos nomes coloca o delator e seus
familiares sob risco de morte ou de sérios atos de maldade (roubo etc.).
223
questão da divulgação e do sigilo. As Instruções madrilenhas de 1561
previam que, no texto do depoimento lido para o acusado, só figurariam,
como indicações específicas, o ano e o mês do depoimento, o local e a
data do delito. Isto é suficiente para dar ao acusado a possibilidade de se
defender. Mas trata-se de uma indicação extrema, e não de uma
obrigatoriedade.
224
H. OS PERITOS —
OS ADVOGADOS
225
I. CONSTITUIÇÕES E
ESTATUTOS INQUISITORIAL
227
J. OS SUSPEITOS —
OS DIFAMADOS
Sim, sempre.
228
K. OS HEREGES PENITENTES
Claro que não. Quem foi preso por heresia, confessa os fatos ou não os
confessa. Se confessar, mas não se considerar culpado, é impenitente, e,
como tal, deve ser entregue ao braço secular para ser executado. Se se
confessar culpado, é um herege penitente, sendo assim condenado à
prisão perpétua: portanto, não se pode libertá-lo sob fiança. Se não
confessar, deve ser entregue ao braço secular como impenitente para ser
executado.
229
cujo montante é determinado pelo inquisidor, deveriam poder beneficiar-
se da liberdade sob fiança todos os hereges penitentes — à exceção dos
servos e camponeses — que não tivessem sido condenados a castigos
corporais. Mas seria uma prática aceita pela Inquisição? Duvido. E, aliás,
seria justo deixar apodrecer na prisão os hereges penitentes pobres, e
somente eles, sob pretexto de sua impossibilidade de pagar a fiança?
Por outro lado, muitos inquisidores que tratam com hereges
penitentes ilustres, nem mesmo os colocam na prisão, mas obrigam-nos a
residir numa casa ou até num castelo. Há casos em que o herege é
proibido de se afastar da cidade e das suas proximidades.
230
49. O inquisidor e o bispo poderiam
considerar como impenitente e
relapso o condenado a uma pena
de prisão e a certos castigos que
não se submetesse aos castigos ou
fugisse da prisão? Em caso
afirmativo, podem “proceder”
contra ele?
231
L. OS IMPENITENTES —
OS RELAPSOS
232
Sim, e sem poder beneficiar-se de um novo processo.
XVI. A Igreja não perdoa o penitente relapso por uma razão muito clara:
reincidir é confessar que não houve conversão sincera, no passado. O
crime reiterado (geminatus actus pravus) é particularmente grave, dizem
os juristas. É, portanto, absolutamente justo que a Igreja considere os
relapsos como inúteis, sempre infectados de heresia e, por isso, dignos de
ser definitivamente expulsos e entregues ao braço secular.
O que fazer do relapso que, arrependendo-se, entrega-se
espontaneamente? É uma questão que já analisei anteriormente.
XVI. Santo Tomás — e demais teólogos como ele — esclarecem que não
se deve ministrar, de jeito nenhum, o sacramento da extrema-unção ao
condenado56.
56 Santo Tomás, como todos os teólogos, tem muito humor: o sacramento da extrema-unção tem
efeitos somaticamente terapêuticos, se podemos ousar exprimir-nos assim (Epístola de Tiago 5,
14-15); “Há algum enfermo? Mandem, então, chamar os presbíteros da Igreja, que façam oração
sobre ele, ungindo-o com o óleo em nome do Senhor. A oração salvará o enfermo e o Senhor o
levantará.” Primeiramente, o relapso passa bem, foi torturado: então, para que ungi-lo? Em
segundo lugar, suponhamos que lhe dêem a extrema-unção e que, imediatamente, “O Senhor o
levante”. Seria preciso perseguir o Senhor por ter colocado embaraços ao exercício do Santo
Ofício da Inquisição. E, a partir dai, sabemos onde isso vai dar…
233
M. MULTAS E
CONDENAÇÕES
PECUNIÁRIAS
Evidentemente, todas as vezes que seu próprio salário não lhe permita
cobrir as despesas com a Justiça, ou seja, sempre. Na verdade, ninguém é
obrigado a “militar” à sua própria custa (nemo cogitur suis stibendiis
militare). Os inquisidores não são juízes delegados? Vamos relembrar o
que Raimundo de Penhaforte escreveu sobre o assunto:
235
XVI. Condenar a pagar as custas deve ser entendido em sentido amplo.
Por isso, cabe ao acusado cobrir, além das despesas do Tribunal
propriamente dito, as despesas com escolta e segurança — se foi preciso
conduzi-lo, sob proteção, do local da captura até a cadeia — e as
despesas com a sua própria subsistência na prisão etc. A Inquisição
espanhola determinou (Madri, 1561) que se retire dos bens expropriados
do acusado uma quantidade suficiente de ouro para cobrir todos os gastos
com captura e prisão; se o acusado não dispuser da quantidade de ouro
necessária, a Inquisição vende uma parte de seus bens até consegui-la.
Não conheço outra Inquisição, a não ser a espanhola, que tenha editado
disposições tão sábias, o que é lamentável.
Mas e o salário propriamente dito, quem deve pagar ao inquisidor?
Os inquisidores espanhóis são pagos pelo Tesouro Público. Na
Itália, e em outros lugares, onde os inquisidores são mais pobres, o
Tesouro deveria pagar também. Não se paga aos gramáticos, médicos,
professores e todos que exercem profissões liberais? Mas o Estado não
paga os inquisidores que o servem melhor que todos os demais! O Egito
idólatra pagava os sacerdotes idólatras com dinheiro público. E as
repúblicas cristãs não querem pagar os defensores da fé, para que a
religião se mantenha intacta, e a fé, incorruptível!
Se o Estado não cobre as necessidades da Inquisição, cabe ao bispo
fazê-lo.
Falou-se também sobre os “honorários” do inquisidor. Embora o
Direito Canônico não proíba aos juízes delegados de aceitar os
honorários, ou víveres, seria mais prudente que os inquisidores não
aceitassem nada dos acusados — o que seria suspeitíssimo! — da sua
família nem dos amigos destes. Devem seguir o exemplo de Catão, que
dizem — se é verdade o que escreve Isidoro de Sevilha
(Etimologias,20,3) — que não aceitava presentes nem oferendas de
ninguém, quando era mandado para as providências. A Inquisição
espanhola prevê a excomunhão para todo ministro seu que aceite
honorários ou presentes, e para toda pessoa que, tomando conhecimento
desse tipo de transgressão, não avise as autoridades inquisitoriais
(Instruções inquisitoriais, 1484). Trata-se de disposições de grande
sabedoria, item por item de acordo com o que diz o Êxodo (c. 23): “Os
presentes cegam os bons e pervertem os justos.”
236
55. O inquisidor deve dar
conhecimento ao bispo quando o
culpado for condenado a pagar as
custas?
237
Questão odiosa, e, no entanto, de grande interesse para o bem da Igreja e
da fé. Questão odiosa sobre a qual se debruçaram Urbano V e Gregório
XI, e que foi longa e diferentemente estudada por um Consistório.
Questão odiosa, que ainda não recebeu uma resposta unânime.
Alguns acham que cabe ao bispo cobrir todas as despesas do
inquisidor. Os partidários desta opinião alegam que cabe aos bispos
semear a fé e acabar com a heresia em suas dioceses: cabe-lhes preservar
sua Igreja bem como o povo de errar, cabendo-lhes, portanto, cobrir as
necessidades da Inquisição. Esta parece que é a opinião de Bento XI e
Urbano V, opinião com a qual, pelo menos em palavras, todos
concordam. Mas, quando se trata de aplicar este princípio, raros são
aqueles cujos atos a ele correspondem!
Outros acham que cabe aos senhores cobrir as necessidades do
inquisidor. Os senhores não se beneficiam do confisco dos bens dos
hereges condenados pelos inquisidores? É justo, portanto, que os
inconvenientes sejam assumidos por aqueles que tiram vantagens. Este é
o raciocínio deles. É uma posição defensável quando os hereges são
muitos. Mas, hoje, a heresia foi eliminada de todo lugar, de tal maneira
que restam poucos hereges endurecidos, e os relapsos são raros, e
raríssimos os relapsos ricos (beguinos, fraticelli, valdenses não são muito
ricos!). O resultado é que, atualmente, os senhores não levam muita coisa
nos confiscos e, consequentemente, não querem mais cobrir as despesas
da Inquisição.
Por fim, há outros que acham que os inquisidores devem tirar a sua
subsistência das próprias condenações que aplicam. Seria justo,
indiscutivelmente, mas isto prejudicaria o Santo Ofício: vamos afastar
esta hipótese e buscar outra solução.
Há ainda quem proponha outras soluções, talvez até melhores, mas
dificilmente exequíveis, por isso, foram abandonadas.
Concluímos constatando que se administra muito mal essa questão
dos salários e dos gastos do inquisidor, que é, no entanto, fundamental
para a Igreja de Deus.
238
tivessem,no passado, ajudado a Inquisição a combater a heresia e sufocá-
la,assim que ela se instalou? Esta é, por excelência, a tarefa do inquisidor,
e é absolutamente normal que Eymerich se interrogue aqui sobre os
meios que os inquisidores dispõem para cumprir a sua missão.
Sobre o assunto, a doutrina pontifícia, dispondo que os bispos têm
que cobrir as necessidades dos inquisidores, parece-me particularmente
clara, a ponto de, na minha opinião, os bispos que não a respeitarem
cometerem pecado grave.
Por outro lado, não vejo quem são esses peritos que asseguram que
cabe aos senhores cobrir as necessidades do inquisidor. Porém, constatei
que o autor do Repertorium concorda com a ideia, já que transcreve, sob
o título “salário” toda essa parte do Manual de Eymerich. Trata-se de
uma opinião, item por item, verdadeira, independentemente do que os
príncipes possam ou não possam tirar dos confiscos. Trata-se de
salvaguardar a fé, e como escreveu corretamente Adriano VI ao duque
Frederico de Saxe, a propósito de Lutero, a primeira obrigação do
príncipe é promover a fé e defendê-la, pois nada garante melhor a
integridade e a continuidade dos reinados do que a defesa da fé e o
estabelecimento da religião. Nicolau I, em carta ao imperador Miguel,
dizia também que a degradação da fé e a expansão da heresia levam à
ruína das nações.
Mas é a minha vez de propor uma solução para este problema, o
que me parece bastante viável: bastaria reservar para a Inquisição, em
todas as cidades em que se estabeleça, uma fundação, um benefício (um
canonicato honorário, por exemplo), ou outras coisas, cujas rendas ou
usufrutos revertessem para o inquisidor, que os administraria para seu
próprio sustento e para a manutenção do Tribunal. Poder-se-ia, também,
retirar sobre esse ou aquele benefício ou fundação rendimentos anuais
que se destinassem a esse mesmo fim. Parece-me que isto é facílimo de
fazer, mas as pessoas poderiam ter ainda outras ideias: espero que as
divulguem.
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N. O CONFISCO
242
colocar à venda os bens confiscados em proveito da Igreja romana.
Clemente IV, sucessor de Alexandre IV, retomou as disposições de
Inocêncio IV e Alexandre IV: divisão dos bens confiscados em três partes
etc.
Bonifácio VIII, em 1295 (Cum secundum leges), decreta que os
bens dos hereges condenados seriam confiscados de pleno direito; proíbe
os senhores de tomarem posse deles antes que os juízes eclesiásticos
pronunciem a sentença.
Clemente V, em sua Constituição de 1306, durante o Concílio de
Viena, “decreta” que se tome cuidado para não entregar ao fisco os bens
da Igreja, sob pretexto de que confiscaram os bens de um clérigo herege.
Estes são os documentos mais importantes sobre o assunto. São
claros, e não vejo por que motivo poderiam ser desrespeitados.
Mas para que um terço para o fisco civil? Só uma questão de
justiça, quando as autoridades civis colaborarem com a destruição da
heresia e com a manutenção do Tribunal: um terço poderia, então,
reverter para eles, e mais ainda, se o Papa determinar, ou, pelo menos,
tolerar. Veja-se o caso da Espanha: os bens dos hereges tornam-se
propriedade do fisco e é justo, não apenas porque nosso rei, muitíssimo
católico, chegou a constituir, no seio da Cúria real, um Senado formado
de homens de notório saber, que estudam todos os casos de heresia
existentes no país, mas também porque ele cobre, e com que
generosidade, as necessidades de todos os inquisidores delegados e seus
colaboradores. É, portanto, justo que ganhe uma parte dos bens
confiscados aos hereges.
Por outro lado, não vejo por que seria preciso pagar um terço dos
bens confiscados às autoridades civis, se estas negligenciam totalmente
subvencionar as necessidades da Inquisição. É o que acontece,
atualmente, em quase todo lugar. É justo, de acordo com o Direito
natural, que não receba nenhum benefício da sentença, todo aquele que,
em alguma medida, tenha participado da perseguição. Neste caso, os bens
confiscados deverão reverter integralmente em proveito da Inquisição.
Este é o meu ponto de vista. Mas admito também que esses bens
confiscados possam ser destinados a outras boas causas, a exemplo dos
reis Fernando e Isabel, que destinaram a maior parte dos bens
confiscados aos hereges ao financiamento da guerra contra os mouros de
Granada, e do próprio Papa, que autorizou os franciscanos da província
romana a venderem os bens confiscados em proveito da Fábrica da Igreja
romana. Resumindo, cabe ao Papa – reclame ou não esse direito – dispor
243
como melhor lhe parecer da metade dos bens confiscados em proveito da
Câmara apostólica. Lembramos que o Papa tem, além disso, o poder não
somente de punir os simples leigos culpados de heresia, mas também o de
expropriar os príncipes.
Finalmente, será em seu próprio proveito que o bispo irá confiscar
os bens dos hereges, onde não houver ainda Tribunal inquisitorial,
existindo, então, a possibilidade de revertê-los para o fisco da Cúria
Romana.
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O. NAO-HABILITADOS
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São expropriados ipso facto, conforme foi estabelecido pelo Papa
Alexandre IV.
XVI. Muitos são os que acham injusta a punição dos filhos por causa dos
delitos dos pais. Esquecem que a pena de expropriação dos filhos pode
impedir muitos pais de cair em heresia: o amor paterno é tão bonito, tão
nobre, que, muitas vezes, os pais temem muito mais pelos filhos do que
por eles próprios.
Mas uma outra questão – e não das menores – se coloca: de que
filhos se trata? Quais são os filhos ipso facto banidos para sempre de
qualquer emprego ou benefício? Porque há os filhos legítimos e os
naturais, os bastardos, adulterinos, incestuosos. Respondo com uma
palavra: quaisquer ilegítimos são inaptos. Todos os juristas são unânimes
quanto a esse assunto e por uma razão muito clara: se o oposto é verdade,
é melhor ser filho ilegítimo do que legítimo, o que é um absurdo. Por
outro lado, deve-se questionar sobre um outro aspecto do problema: a
não-habilitação atingiria todos os filhos do herege ou apenas os que
fossem concebidos depois do delito da heresia? Os estudiosos defendem
que as crianças concebidas antes do delito do pai escapariam à não-
habilitação, mas a maioria acha que todos os descendentes são inaptos.
Esta última opinião parece-me mais correta, razoável e conforme as
considerações avocadas anteriormente a respeito do amor paterno e do
papel desse sentimento na manutenção dos pais na verdade católica. Os
pais amam igualmente todos os filhos, sendo,portanto,justo que o seu
pecado tenha sobre todos eles as mesmas consequências.
Transmite-se aos filhos pela linha paterna e materna; aos netos, somente
pela linha paterna, de acordo com o que foi estabelecido pelos Papas
Alexandre IV e Urbano IV.
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64. Os vassalos são dispensados de
qualquer obrigação com o senhor
que tivesse claramente caído em
heresia?
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“O rei e a rainha, num ato de humanidade e clemência,
decidiram libertar todos os servos dos hereges que se
declararam cristãos. Os demais, os não-católicos, tornaram-se,
naturalmente, propriedade do fisco.”
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muçulmanos e judeus, é um sinal evidente de heresia. Atualmente,
também o fato de solicitar a assistência, ajuda, conforto dos luteranos,
calvinistas ou outros hereges contemporâneos.
Entretanto, o inquisidor deve tomar cuidado ao condenar um morto
por causa deste tipo de delito. As consequências da condenação são
graves! O inquisidor não deve esquecer que muitas vezes a razão fica
mais fraca na hora da morte. Deve, então, considerar a possibilidade de
um delírio, a idade do moribundo etc. E não deve deixar de solicitar o
veredicto dos médicos e especialistas na matéria.
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P. EXCOMUNHÃO
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Q. INDULGÊNCIAS
68, O inquisidor pode distribuir
indulgências ao povo e ao clero
convocados para os
sermões?
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Não. O inquisidor não tem este poder. Porém, seus representantes e
escrivães ganham do Papa três anos de indulgência quando estão
exercendo a função, e todos os seus pecados são perdoados através da
indulgência plenária, quando morrem no exercício de suas funções.
Ganham também uma indulgência do Papa todos aqueles que, de uma
forma ou de outra, de perto ou de longe, colaboraram com a Inquisição
(Urbano IV, Gregório IX e Clemente IV).
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