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Ao se terminar a leitura do Manual dos Inquisidores, a primeira reação é
de perplexidade e de espanto: como é possível tanta desumanidade dentro
do cristianismo e em nome do cristianismo? Os sonhos originais da
proposta cristã são de ilimitada generosidade: Deus é pai com
características de mãe; todos são filhos e filhas de Deus; o Verbo ilumina
cada pessoa que vem a este mundo; a redenção resgata toda, a
humanidade; e o arco-íris da benevolência divina cobre todas as cabeças
e o universo inteiro. Como se passa deste sonho para o pesadelo da
Inquisição?
Não vale chorar nem rir. Importa compreender. É o que tentaremos
sucintamente.

1. A pretensão da verdade absoluta leva à intolerância

Para entender o comportamento da Igreja através da Inquisição,


entre outros elementos importantes, faz-se mister considerar a auto-
consciência que a própria Igreja fez e, em setores de direção, ainda faz de
si mesma. Como ela constrói religiosamente a realidade? Como se
representa a história humana?
A leitura comum, que se encontra nos catecismos clássicos, é a
seguinte: a humanidade foi criada na graça de Deus. A criação era um
livro aberto que falava do Criador. Porém em Adão e em Eva ela decaiu.
Perdeu os dons sobrenaturais (a graça) e mutilou os dons naturais
(obscureceu a inteligência e enfraqueceu a vontade). As frases da criação
se decompuseram em palavras soltas e sem nexo. Os seres humanos não
conseguiam mais ler a vontade de Deus no alfabeto natural (revelação
natural). Deus se compadeceu e nos entregou um outro livro, escrito por
judeus e cristãos, as Escrituras sagradas, que contêm o alfabeto
sobrenatural (revelação sobrenatural). Mediante ele, podemos refazer as
frases da criação e assim ter acesso às verdades divinas sobre o ser
humano e o universo. Nas Escrituras, como num depósito (depositum
fidei), estão todas as verdades necessárias para a salvação.
Mas o livro pode ser lido de mil maneiras. Qual é a leitura correta?
Deus, novamente, se apiedou da humanidade e criou o Magistério: o Papa

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e os bispos. Eles são os representantes de Deus e os vigários de Cristo. A
missão do Magistério é guardar fielmente, defender ciosamente e
interpretar autenticamente o depósito das verdades salvíficas.
Mas eles não são humanos, sujeitos a erros? Deus novamente se
apiedou da fragilidade humana e concedeu ao Papa e aos bispos reunidos
um privilégio único. Em questões que interessam a todos concernentes à
fé e à moral, visando à salvação eterna, seus pronunciamentos gozam de
infalibilidade. Eles não podem errar e por isso, na história, nunca
erraram.
Eis o que reza a doutrina, uma verdadeira metafísica religiosa, quer
dizer, uma interpretação da história a partir dessa determinada ótica
religiosa.
As pessoas agora podem ficar tranquilas e gozar de plena segurança.
Basta ouvir o que o Magistério ensina, vivê-lo coerentemente e já estão
em conformidade com a vontade de Deus. O efeito é promissor: nada
menos que a vida eterna.
O Magistério, portanto, é portador exclusivo de uma verdade
absoluta. A verdade não é objeto de uma busca. Mas de uma posse
agradecida. Por mil formas esta verdade é distribuída por parte do
Magistério cada vez com graus diferentes de certeza, mas sempre sob a
assistência divina no horizonte da infalibilidade: pronunciamentos,
admoestações, encíclicas, declarações dos sínodos e dos concílios,
proclamação de dogmas de fé etc.
Face à verdade absoluta, não cabem dúvidas e indagações da razão
ou do coração. Tudo já está respondido pela instância suprema e divina.
Qualquer experiência ou dado que conflita com as verdades reveladas só
pode significar um equívoco ou um erro. A Igreja detém o monopólio dos
meios que abrem o caminho para a eternidade.
Sendo as coisas assim só existe um perigo fundamental: a
heterodoxia, a heresia e o herege. Em outras palavras, a grande oposição
se dá entre o dogma e a heresia, Para essa compreensão, erro gravíssimo
é radical não é tanto a injustiça, o_assassinato, a espoliação de povos e a
opressão de classe, o genocídio e o ecocídio. Esses são atos e atitudes
morais perversos mas corrigíveis; o caminho da eternidade continua
aberto pelo arrependimento e o perdão; a fé não é negada, nem as
verdades absolutas questionadas. Erro radical é a heresia ou a suspeição
de heresia. Aqui se negam as verdades necessárias e se fecha o caminho
para a eternidade. A perda é total. O mal, absoluto. O herege é o arqui-
inimigo da fé. O ser perigosíssimo. Se o perigo é máximo, máximas

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devem ser a vigilância e a repressão.
Por isso, nessa visão, o portador da verdade é intolerante. Deve ser
intolerante e não tem outra opção. Caso contrário a verdade não é
absoluta. Só os que não possuem a verdade podem ser tolerantes.
Consentir a dúvida. Permitir a busca. Aceitar a verdade de outros
caminhos espirituais. O fiel, este é condenado à intolerância.
Os inimigos da verdade e da reta doutrina (ortodoxia), os hereges
verdadeiros ou presumidos devem ser perseguidos lá onde estiverem e
exterminados. Deve-se esquadrinhar suas mentes, identificar os acenos
do coração, desmascarar ideias que possam levar à heresia. Contra o mal
absoluto - a heresia - valem todos os instrumentos e todas as armas. Pois
se trata de salvaguardar o bem absoluto - a salvação eterna, apropriada
pela adesão irrestrita à verdade absoluta como vem proposta, explicada e
difundida pela Igreja. Fora da Igreja não há salvação, porque fora dela
não existe revelação divina e por isso verdade absoluta. Podem existir
verdades fragmentadas, não sicut opportet ad salutem consquendam
(“como devem ser para se conseguir a salvação”, como repetem os
textos dos concílios), mas incapazes de abrir caminho pelo matagal das
confusões humanas e aceder a destinação eterna. Por isso a Igreja é
imprescindível.

2. Uma lógica férrea e irretorquível

Ao instaurar a Inquisição, a Igreja produz e habita esse discurso


totalitário e intolerante. Quem quiser entender o presente Manual dos
Inquisidores deverá imbuir-se dessa mentalidade e visão das coisas. Só
assim fará justiça a seus autores. Então tudo aparece lógico e coerente. O
inquisidor é extremamente fiel e imbuído da melhor das intenções. A
arquitetônica de sua argumentação é irretorquível. É obra de mestre.
Assim como quem quiser entender a repressão e a tortura dos
regimes militares latino-americanos deverá entender a leitura da
sociedade feita a partir da ideologia da segurança nacional e repassada às
mentes dos torturadores e de seus mandantes. Da mesma forma as
câmaras de gás e a limpeza genética perpetradas pelo nazifascismo. Ou,
num nível maior, a cultura ocidental, que foi incapaz de acolher a
diferença e alteridade e que por isso, historicamente, cometeu toda sorte
de genocídios e exclusões, ainda hoje, no processo de sua mundialização.

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Em todos esses antifenômenos há uma lógica irretorquível. Em nome
dela se excluem outros, eventualmente até são mortos.
Uma vez aceito o sistema de ideias, tudo flui de forma férrea e
coerente. É a verdade intrasistêmica. Evidentemente, cabe analisar o
sistema. A boa intenção dos torturadores certamente não é boa, pois
produz a morte. O sistema é sacrificialista, pois exige mais e mais vítimas
para se manter. Como pode, como pretende, ter o aval divino? Mas isso
já é outra questão, não mais analítica, mas ética e teológica.

3. Os autores do Manual dos Inquisidores

Trata-se de dois dominicanos, um do século XIV e outro do século


XVI, peritos em jurisprudência e teologia: Nicolau Eymerich e Francisco
Peña. A importância deles reside no fato de ambos procederem a uma
grandiosa codificação das práticas e das justificativas (teologias e
ideologias) acerca do controle das doutrinas na Igreja que culminaram na
instituição da Inquisição.
Sabemos que desde cedo a Igreja se viu às voltas com doutrinas
divergentes daquelas comumente estabelecidas pela tradição. O problema
dos hereges perpassa toda a história da Igreja. O herege é aquele que se
recusa a repetir o discurso da consciência coletiva. Ele cria novos
discursos a partir de novas visões da realidade religiosa. Por isso está
mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução e o
passado.
Com efeito, refletindo bem, a verdade, por mais absoluta que se
apresente, não pode se fundir numa única fórmula. Uma coisa é a verdade
nela mesma. Outra coisa são as suas várias formulações históricas. A
verdade, como se vê nas várias culturas, permite várias linguagens. E as
várias linguagens comunicam novas significações. Por isso a definição da
verdade não pode cair sob o domínio da posse exclusiva de alguém,
detentor de algum código. Mesmo participando da verdade e, de certa
forma, possuindo-a, o ser humano pode buscá-la sempre de novo e sob
mil formas.
Mas eis que emerge o conflito. Como sobrevivem aqueles que
buscam a verdade no meio daqueles que presumem havê-la encontrado?
Pergunta-se: buscar a verdade não significa que ela ainda não foi
encontrada? E se não a encontramos, estamos no erro e então não
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estamos em risco de perdição eterna? A consequência é previsível: o
rompimento da comunhão entre um e outro. E aí começam os processos
de exclusão.
Nos primeiros séculos, os portadores de pensamento divergente
eram punidos com a excomunhão, vale dizer, eram excluídos da
comunidade eclesial. Portanto, era uma questão meramente intraeclesial.
Mas, quando o cristianismo se transformou em religião oficial do
Império, a questão virou política. O cristianismo era considerado o fator
principal de coesão e união política. Então, qualquer doutrina divergente
colocava em risco a unidade política. Os representantes das novas
doutrinas eram tidos por hereges. A punição era a excomunhão, o
confisco dos bens, o banimento e mesmo a condenação à morte.
A perseguição aos divergentes já ocorreu nos séculos IV e V com a
crise do donatismo (os rigoristas no norte da África que não concediam o
perdão aos que fraquejaram nas perseguições e não reconheciam os
sacramentos administrados por eles). O controle e a repressão das novas
doutrinas ganharam força no final do século XII e início do século XIII
com a eclosão do movimento popular dos cátaros e valdenses no sul da
França. Eram movimentos rigoristas, de volta ao espírito simples dos
Atos dos Apóstolos, com a pregação itinerante do evangelho na
linguagem do povo, levada a efeito, em sua grande maioria, por leigos.
A Inquisição propriamente surgiu quando em 1232 o imperador
Frederico II lançou editos de perseguição aos hereges em todo o Império
pelo receio de divisões internas. O Papa Gregório IX, temendo as
ambições político-religiosas do imperador, reivindicou para si essa tarefa
e instituiu inquisidores papais. Estes foram recrutados entre os membros
da ordem dos dominicanos (a partir de 1233), seja por sua rigorosa
formação teológica (eram tomistas), seja também pelo fato de serem
mendicantes e por isso presumivelmente desapegados de interesses
mundanos.
A partir de então se foi criando uma prática de controle severo das
doutrinas, legitimadas com sucessivos documentos pontifícios como a
bula de Inocêncio IV (Ad extirpanda) de 1252, que permitia a tortura nos
acusados para quebrar-lhes a resistência. Até que em 1542 o Papa Paulo
III estatuiu a Sagrada Congregação da Inquisição Romana e Universal ou
Santo Oficio como corte suprema de resolução de todas as questões
ligadas à fé e à moral.
O mérito de Nicolau Eymerich foi elaborar o Directorium
inquisitorum (Diretório dos inquisidores), um verdadeiro tratado

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sistemático em três partes: (1) o que é a fé cristã e seu enraizamento;(2) a
perversidade da heresia e dos hereges; (3) a prática do ofício de
inquisidor que importa perpetuar.
Trata-se de um manual de “como fazer”', extremamente prático e
direto,baseado em toda a documentação anterior e na própria prática
inquisitorial do autor Nicolau Eymerich. Pouca coisa do seu manual é
obra de reflexão pessoal. Tudo é remetido a textos bíblicos, pontifícios,
conciliares, imperiais. A astúcia teológica (e os inquisidores eram mestres
nisso) vem sempre justificada pelos teólogos mais eminentes. Em casos
controversos,expõe todas as teses correntes com seus prós e contras e
suas convergências e divergências. Numa palavra: nele encontra-se tudo,
como ele mesmo reconhece, o que é necessário para o bom exercício da
Inquisição.
Sua importância é tão grande que, depois da Bíblia (o Livro dos
Salmos é de 1457), foi um dos primeiros textos a serem impressos, em
1503,em Barcelona. E quando o Vaticano quis reanimar a Inquisição para
fazer frente a Reforma protestante mandou reeditar o livro como manual
para todos os inquisidores, primeiro em Roma, em 1578,1585 e 1587, e
depois em Veneza, em 1595 e 1607.
Quem são os autores?
Nicolau Eymerich nasceu em 1320 em Gerona, no reino de
Catalunha e Aragão. Fez-se dominicano, com excelente formação
jurídica e teológica. Em 1357 já é inquisidor-geral do reino até 1392, com
duas interrupções mais ou menos longas. Pelo excesso de zelo
inquisitorial, foi exilado dos territórios de Catalunha e Aragão. Mas foi
compensado em 1371 com o convite para ser o capelão do Papa Gregório
IX (o criador da Inquisição) quando ainda estava no exílio em Avinhão e
depois em Roma. Em 1376, ainda em Avinhão, escreveu o Manual que o
tornou famoso. Morreu em Gerona em 1399.
Devido ao surgimento de novas heresias no século XVI, fazia-se
urgente atualizar o manual de Nicolau Eymerich. Foi quando o
comissário geral da Inquisição romana, Thoma Zobbio, em nome do
Senado da Inquisição Romana, solicitou a outro dominicano, o canonista
espanhol Francisco Peña transcrever e completar o manual de Eymerich
com todos os textos, disposições, regulamentos e instruções aparecidos
depois de sua morte, em 1399. Peña redigiu uma obra minuciosa de 744
páginas de texto com 240 outras de apêndices, publicada em 1585.
Não obstante as inquisições locais com suas singularidades e
privilégios, o autor fortalece “o direito comum inquisitorial” como norma

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geral a ser seguida, o quanto possível, por todos os inquisidores em todas
as partes. Sabemos que havia duas Inquisições oficiais, a romana e a
espanhola. Peña consegue uma síntese processual e doutrinária tal que se
transformou em referência necessária e comum para as duas e para todos
os inquisidores.
A obra de Peña é uma transcrição e complementação de Eymerich.
Por isso, segue-lhe o mesmo esquema em três partes, referidas acima.
Não seria viável nem legível publicar tudo. Ascenderia a quase mil
páginas. Nesta edição, se aproveitou apenas a terceira parte, que trata dos
procedimentos do inquisidor. Como o leitor irá perceber, somos
informados, de saída, o que é a heresia, quem são os hereges e, depois
sim, quem é o inquisidor e como trabalha.
A obra é retilínea e severa. Não se perde em relatos circunstanciais
para não perder o rigor da argumentação. A prática da Inquisição está aí
com toda a sua inclemência. O autor possui um sentido prático
formidável. No final da obra, faz um inventário das 22 rubricas mais
recorrentes que o inquisidor pode consultar rapidamente como se fosse
um fichário. Aí estão as respostas claras para serem aplicadas sem
qualquer titubeio.

4. Como funciona a lógica inquisitorial

Vejamos rapidamente como funciona a lógica inquisitorial. Como já


consideramos, a centralidade está na verdade absoluta revelada para
nossa salvação, a ser sempre defendida a todo preço.
Herética, segundo o manual, é “toda proposição que se oponha: (a) a
tudo o que esteja expressamente contido nas Escrituras; (b) a tudo que
decorra necessariamente do sentido das Escrituras; (c) ao conteúdo das
palavras de Cristo, transmitidas aos apóstolos, que, por sua vez, as
transmitiram à Igreja; (d) a tudo o que tenha sido objeto de uma definição
em algum dos concílios ecumênicos; (e) a tudo o que a Igreja tenha
proposto à fé dos fiéis; (f) a tudo o que tenha sido proclamado, por
unanimidade, pelos Padres da Igreja, no que diz respeito à reputação da
heresia; (g) a tudo o que decorra, necessariamente, dos princípios
estabelecidos nos itens c, d, e, f” (parte I, A, 2).
Como se depreende, nenhum desvio da doutrina era permitido.
A Bíblia e a doutrina tradicional somente podiam ser apresentadas
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como verdade divina e Palavra de Deus, sob a condição de tudo nelas ser
verdadeiro. A concessão de algum erro, em alguma frase da Bíblia, ou em
algum ensinamento da Igreja, seria fatal. Destruiria a base da afirmação
de que a Igreja seria a portadora da verdade absoluta que se encontra na
Bíblia e na tradição. Ela tem que afirmar como verdade, indistintamente,
tudo, que o Sol gira ao redor da Terra e a burra de Balaão falou de
verdade. Assim, no século XIV, a Inquisição condenou o médico e
filósofo Pietro d'Abano e seu conterrâneo Cecco d'Ascoli porque
afirmavam a existência dos antípodas. Partiam da acepção de que a Terra
era uma esfera redonda; portanto, os que viviam do outro lado dela eram
antípodas. Os inquisidores argumentavam: segundo a Bíblia, a Terra não
é uma bola redonda, mas uma chapa redonda e chata. E a Bíblia, porque é
Palavra de Deus, não pode ensinar erros. Aceitar a Terra como uma
esfera seria assumir a visão pagã e admitir que a Bíblia está errada e a
Igreja não é infalível. Ambos foram condenados à fogueira, não por
terem proferido uma heresia ou negado alguma verdade de fé, mas
porque afirmavam uma verdade física do mundo que, indiretamente,
entrava em conflito com a visão cosmológica da Bíblia.
Como se depreende, praticamente tudo cai sob a suspeita de heresia.
Portanto, todos são condenados à repetição do discurso oficial. É o
império da monotonia do status quo. O congelamento da história. Todos
se tornam suspeitos. Razão por que a Inquisição vem sendo considerada
uma instituição perene e os bispos, junto com o poder pastoral,devem
exercer, em sintonia com o inquisidor, o poder inquisitorial de
“investigar, interrogar, convocar, prender, torturar e sentenciar”.
Por que o rigor da detectação da heresia? Pelas consequências
funestas que ela comporta. Os autores, quase obsessivamente, elencam as
perniciosas: “por causa da heresia, a verdade católica se enfraquece e se
apaga nos corações, os corpos e os bens materiais se acabam, surgem
tumultos e insurreições, há perturbação da paz e da ordem pública, de
maneira que todo povo, toda nação que deixa eclodir em seu interior a
heresia, que a alimenta, que não a elimina logo, corrompe-se, caminha
para a subversão e pode até desaparecer; a história dos antigos prova isso,
e o presente também, mostrando-nos o exemplo de prósperas regiões e
reinos em franco desenvolvimento atingidos por grandes calamidades por
causa da heresia” (parte I, A, I).
Em razão desses malefícios se entende a severidade na repressão do
pensamento divergente e da mais leve suspeita, perseguição dos
seguidores dos hereges, de quem os hospeda ou de qualquer forma os

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Favoreça. Como se percebe, persiste a visão antiga (a partir do século
IV): a heresia é tida como um crime político de lesa-majestade.
Consoante o Manual, em primeiro lugar, o inquisidor se apresenta
com poder apostólico, investido da autoridade papal; outras vezes se
apresenta como “um enviado especial de Deus” (parte II, A, I). Em
seguida mobiliza todas as forcas eclesiais. Num determinado domingo na
catedral, todos são obrigados a ouvir o sermão geral proferido pelo
inquisidor. Aí ouve que “se alguém souber que alguém disse ou fez algo
contra a fé, que alguém admite tal ou tal erro,é obrigado a revelar ao
inquisidor”, sob pena de excomunhão. Os delatores são animados a
delatar, pois a delação os faz obedientes à fé divina (parte II, B, 6).
Mobiliza também todas as autoridades civis para que prestem
juramento, sob pena de excomunhão, caso não dêem “assistência em tudo
ao inquisidor, aplicando todas as leis canônicas contra os hereges, seus
defensores, filhos e netos” (parte II, A, 2):
Começa aí o trabalho de recepção das denúncias a partir das
delações ou da apresentação espontânea dos que se consideram em erro
de doutrina. Há três tipos de processo: por acusação, por denúncia
(delação), por investigação. A mais longa e complicada cabe aos
interrogatórios dos hereges e das testemunhas.
Curiosíssimos são os “dez truques dos hereges para responder sem
confessar” e os “dez truques do inquisidor para neutralizar os truques dos
hereges”'. A malícia da mente do inquisidor é completa. A astúcia,
refinadíssima. Como faziam os interrogadores militares da repressão
política, deve-se, diz o Manual, dar a impressão de que se sabe de tudo:
“Confessa logo, porque, como estás vendo, sei de tudo” (parte II, E, 23,
4).
Os acusados são submetidos a todo tipo de pressão, são induzidos à
confusão, os amigos são obrigados a pressioná-los, até a dormir com eles
na cela, para obrigá-los a falar. Mas “colocam-se as testemunhas, além do
escrivão inquisitorial, num bom lugar, na escuta, com a cumplicidade da
escuridão” (parte II, E, 23, 9). E então são apanhados em confissão e
condenados. Tudo sem maiores escrúpulos éticos. E, quando surgem,
vale a acribia da sofística teológica para justificar o que, no bom senso,é
injustificável.
Por exemplo: o inquisidor não deve prometer perdoar o acusado de
heresia caso este confesse. O inquisidor sabe que não pode prometer
perdão, porque a heresia não conhece perdão. Perguntam-se os autores do
Manual: “Isto não é simplesmente uma desonestidade?” A resposta é

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rabulística: “reduzindo, mesmo numa proporção mínima, a pena
atribuída a um delito (e é raríssimo que o culpado não tenha cometido
vários delitos), o inquisidor que tiver prometido 'perdoar' terá mantido
sua palavra” (parte II, E, 23,10). Portanto, não é desonestidade. O
inquisidor mantém a boa consciência, porque, como se explica pouco
antes no Manual, “tudo o que se fizer para a conversão de hereges é
perdão; e as penitências são perdão e remédio” (parte II, E, 23, 8).
Outro exemplo clamoroso é o processo contra mortos denunciados
de heresia. Para isso “não há limite de tempo”, diz o Manual. O morto é
processado. Se condenado, lança-se o anátema sobre sua memória: “os
filhos dos hereges serão declarados infames e inaptos a qualquer cargo
público ou privilégio” (parte III, 22). E a efígie do condenado já falecido
é queimada publicamente. Outras vezes, como os próprios autores do
Manual contam, exumavam-se os cadáveres e abriam-se os processos
contra eles. Sob o Papa Clemente VI (1342-1352),por exemplo, em
Béziers, foi exumado, por ordem deste papa beneditino, o cadáver de frei
Pedro João, dos franciscanos menores. Acusado publicamente de herege,
o frade já morto foi condenado, quebraram-lhe os ossos e os queimaram
(parte I, 12). Os autores justificam: “Trata-se de uma sentença
perfeitamente de acordo com o Direito, se bem que acabe,
lamentavelmente, punindo quem não cometeu crime nenhum” (os filhos
dos hereges).
Mas continuam com escrúpulos e perguntam-se a si mesmos:
“Como proceder contra um morto? Uma questão difícil, porque será que
se pode abrir um processo contra quem, por definição, não pode
comparecer? Não seria melhor falar claramente de 'condenação da
memória de Fulano' do que 'processo'? Sim,em direito civil. Mas
evidente que não, em se tratando de um delito de lesa-majestade divina”
(parte III,22).
Em vários lugares do Manual os autores concedem que são mais
rigorosos que qualquer outro tribunal humano. Mas justificam: tratam dos
crimes mais hediondos e terríveis, aqueles que ameaçam a salvação
eterna que são as heresias.
Lugar à parte ocupa o capítulo das torturas. Há precauções, pois os
autores têm consciência dos abusos; nem o inquisidor sozinho deve
torturar; precisa da permissão do bispo local. Mas praticamente todos os
suspeitos e acusados passavam por vários tipos de tortura. “Tortura-se o
acusado que vacilar nas respostas”; “o suspeito que só tem uma
testemunha contra ele é torturado” (parte III, F, 28), e por aí vai. A regra

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básica é esta: “É bom lembrar, antes de proceder à tortura, de que sua
finalidade é menos provar um fato do que obrigar o suspeito a confessar
a culpa que cala…; a tortura serve apenas como paliativo na falta de
provas” (parte III, F, 28, 7). Por isso, para a Inquisição não há pessoas
não-torturáveis. “Este é um direito que não conta nas questões de heresia:
nenhuma das pessoas isentas de tortura a propósito de qualquer delito não
o será, tratando-se de heresia”, embora, de fato, se prevejam exceções a
membros da alta hierarquia e da nobreza superior. Nem escapam os
velhos e as crianças: “Pode-se torturá-los, mas com uma certa
moderação; devem apanhar com pauladas ou, então, com chicotadas”
(parte II, H).
A confissão é tudo na Inquisição, não as provas, contrariamente ao
senso do direito universal, pois, sabemos, a confissão pode ser extorquida
sob coação. Os autores do Manual dos Inquisidores, num outro lugar,
esclarecem: “Diante do tribunal da Inquisição basta a confissão do réu
para condená-lo. O crime de heresia é concebido no cérebro e fica
escondido na alma: portanto,é evidente que nada prova mais do que a
confissão do réu. Eymerich tem razão (glosa do compilador e atualizador
Peña) quando fala da total inutilidade da defesa” (parte II, G, 31).
Com efeito,a defesa tem uma função meramente nominal, diria até
perversa, pois não trata de defender o réu, mas de agilizar a sua
condenação. O Manual ensina que ''o papel do advogado é fazer o réu
confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime
cometido" (parte II, G, 31).O estatuto do defensor não é assegurado,
como em qualquer legislação de Hamurabi (século XV a.C.) a Stalin ou
Hitler. O lugar do defensor é no capítulo sobre “obstáculos à rapidez de
um processo”. Os autores começam o capítulo acerca da “admissão de
um defensor” com esta sentença: “O fato de dar direito de defesa ao réu
também é motivo de lentidão no processo e de atraso na proclamação da
sentença; essa concessão algumas vezes é necessária (no sentido de
agilizar a sentença, porque o acusado não confessa: aclaração minha),
outras não” (quando confessa: parte II, F, 31).
Ademais, o inquisidor deve ter o campo totalmente aberto à sua
ação. Por isso “pode punir quem coloque entraves ao exercício da
Inquisição; deve excomungar qualquer leigo que publicamente ou não
discuta questões teológicas; ‘procederá' (abrirá processo) contra qualquer
advogado ou escrivão que der assistência a um herege” (parte III, 18).
Como, em condições dessas, haver lugar para um advogado de defesa?
O medo da heresia era tanto que implicava violação das comezinhas

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regras do sentido do direito universal e também a estupidificação dos
leigos, que jamais podiam se ocupar com a teologia. A fé devia ser aceita,
jamais pensada. A reflexão religiosa era monopólio exclusivo da
hierarquia. Quem pensasse a fé, e pensar a fé significa discutir questões
teológicas, era já suspeito de heresia, portanto, objeto da repressão. Não
pensavam assim os agentes da repressão militar em regi-me de segurança
nacional: quem discutir publicamente política é já suspeito de subversão
e, logo, de sequestro, de tortura e de cárcere? Mudem os sinais, mas não a
lógica de um sistema totalitário e por isso repressivo de toda e qualquer
diferença.
As punições variavam consoante o grau de adesão do acusado às
doutrinas consideradas heréticas ou suspeitas de heresia, que vão desde a
simples abjuração, expiação canônica, pagamento de multas,
expropriação dos bens, excomunhão, prisões e a fogueira pelo braço
secular. Os leitores verão a severidade das penas e também os processos
psicológicos para demover os hereges convictos de suas doutrinas. Vão
dos flagelos das prisões escuras, das torturas, das humilhações, tudo para
“acordar a inteligência” e desdizer o que diz (parte II,H). Se este método
não funcionar, então se utiliza a bondade, a presença da esposa e dos
filhos. Se nada adiantar, será entregue ao braço secular e irá para o auto-
de-fé. O Manual é claro ao subordinar o bem individual ao bem da Igreja:
“É preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da
condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem
comum e aterrorizar os outros (ut alii terreantur); ora, o bem comum
deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade
visando ao bem de um indivíduo” (parte II, 22, 10).
Efetivamente, o mundo da Inquisição é marcado de medos, sermões
aterradores dos inquisidores, delações, suspeitas, vinditas, perseguições e
sobretudo autos-de-fé macabros, com condenados à fogueira in conspectu
omnium. Que sobrou aqui do cristianismo como boa e alvissareira notícia
de libertação, de fraternidade e sororidade universais, de amor ilimitado?

5. O que tornou possível a Inquisição e a continuação de


seu espírito

A Inquisição foi possível na Igreja romano-católica com processos


de exclusão, torturas e condenações porque nas relações internas dela
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existem violências. A Inquisição é ponto de cristalização de uma
violência anterior. A violência interna da Igreja romano-católica se dá na
forma como o poder sagrado é distribuído. Ele sofre uma profunda
dissimetria. Um pequeno grupo (é menos que 0,3% de toda a Igreja), a
hierarquia (papa, bispos e padres), detém todos os meios de produção
simbólica de forma excludente. Os demais não participam, não devem
nem podem participar. São dependentes e meros beneficiários desses
portadores exclusivos de poder.
Não cabe aqui detalhar essa questão, feita por nós em outras obras
(Igreja, carisma e poder; E a Igreja se fez povo; Leigos e ministérios).
Basta a indicação de algumas pistas.
Inicialmente o cristianismo era uma comunidade fraternal e sororal.
A comunidade inteira se sentia herdeira de Jesus e portadora de seu
poder. Este poder se diversificava em vários serviços e ministérios,
consoante as necessidades da comunidade. Mais que ministérios
institucionalizados e institucionais, havia ministros, pessoas geralmente
com características carismáticas. A autoridade era moral, portanto,
autoridade no sentido originário da palavra (aquilo que faz crescer os
outros e que reforça e não tira o poder dos outros) e quase nada jurídica,
embora essa dimensão estivesse também presente como em todas as
comunidades que buscam certa ordem e funcionamento de sua vida
interna. Mas o jurídico de forma alguma era hegemônico e era vivido
dentro do espírito evangélico do poder como serviço desinteressado à
comunidade. A Igreja se definia como comunidade dos seguidores de
Jesus; a rede de comunicações formava o novo povo de Deus, em
solidariedade com os demais povos.
Com a transformação do cristianismo em religião do Império
(séculos IV e V), novas responsabilidades tiveram que ser assumidas
pelos cristãos (eram menos que 1/6 dos habitantes). Estes sentiram a
necessidade de organizar-se e institucionalizar certas funções. Foi então
que o aspecto jurídico ganhou corpo, assimilando a da tradição jurídica
romana, que sempre foi fascinante. Surgiu o corpo clerical, distinto do
corpo laical. Emergiu um corpo de peritos do sagrado que acumulou toda
a responsabilidade pelo espaço da fé: produziu o discurso, o ethose o rito.
E articulou o poder religioso com o poder político dominante. O que se
criou foi considerado oficial. Lentamente se impôs à produção mais
espontânea das expressões da fé, das celebrações e dos costumes cristãos,
feitos pelos fiéis, homens e mulheres, no quotidiano de suas vidas.
O conceito dominante de Igreja agora é de hierarquia, o grupo dos

21
consagrados pelo sacramento da ordem e que detém o poder sagrado na
comunidade. De tal forma que a Igreja ficou sendo simplesmente
sinônimo de hierarquia, presente ainda hoje na compreensão comum.
Quando se diz: que pensa a Igreja, que diz ela sobre a família, o
socialismo e o mercado mundial, se pensa: que diz o Papa, que ensinam
os bispos acerca dessas questões?
A partir do século X, se configurou de forma severa a divisão na
Igreja entre o corpo clerical e o corpo laical. A primeira codificação
jurídica da Igreja, o Código de Graciano (século XII), consagra
definitivamente essa visão como direito divino. E isso veio pelos séculos
afora. Não admira que, na crise do pensamento cristão em confronto com
a modernidade, o Papa Gregório XVI (1831-1846) tenha reafirmado para
toda a Igreja: “Ninguém pode desconhecer que a Igreja é uma sociedade
desigual, na qual Deus destinou a uns como governantes, a outros como
servidores. Estes são os leigos, aqueles são os clérigos.” Pio X, em 1904,
o repete de forma quase grosseira: “Somente o colégio dos pastores tem o
direito e a autoridade de dirigir e governar. A massa não tem direito
algum, a não ser o de deixar-se governar qual rebanho obediente que
segue seu Pastor.”
Por mais que a teologia posterior e o Concílio Vaticano II (1962-
1965) tenham enfatizado a natureza comunitária da Igreja, prevalece
ainda na doutrina e na mente do Magistério e dos fiéis (e em textos
importantes do próprio Vaticano II) a noção de que Igreja é
fundamentalmente a Hierarquia. O direito canônico de 1983 reafirma de
novo que é de instituição divina a existência entre os fiéis dos que são
clérigos e os outros também denominados leigos (cânon 207).
Ora, essa divisão traz desigualdades. E as desigualdades são sempre
odiosas, porque implicam relações tensas e, de certa forma, injustas. Por
que o leigo, por mais inteligente e sábio que seja na sociedade civil, na
sua vida profissional de reconhecido cientista, notável escritor, notório
jurista, deva crer, pelo fato de ser leigo, que no interior da Igreja-
comunidade pouco ou nada vale, que tenha que estar sempre e
inapelavelmente submetido a um grupo que alega um poder recebido de
cima e por isso infenso a qualquer crítica e correção?
Essa divisão entre os clérigos que tudo têm e os leigos despojados
de tudo criou incontáveis polêmicas, rebeliões e rupturas do corpo
eclesial, primeiramente entre Igreja grega ortodoxa e Igreja romano-
católica, depois as Igrejas da Reforma com suas sequelas até os dias de
hoje, e em seguida o enfrentamento cada vez mais rígido e tenso entre os

22
cristãos e os portadores de poder sagrado, na medida em que
universalmente cresce o espírito de participação, de corresponsabilidade,
de maturidade e autonomia de cada pessoa humana com seus direitos e
deveres pessoais e sociais.
Para fazer frente a essa crise, já há séculos, os clérigos criaram um
discurso de legitimação. Dogmatizaram-no. Atribuíram origem divina ao
seu poder. Elaboraram uma visão do mundo, da revelação de Deus, em
que eles constituem o pivô de todas as questões. Eles são decisivos para a
salvação da humanidade. A leitura da história que referimos no início
destas reflexões constitui a peça de legitimação do corpo clerical e de
seus poderes. É um discurso ideológico,porque todo discurso ideológico é
um discurso do interesse real ou escuso do ator à custa do interesse dos
outros. Este discurso é apresentado como intocável e inquestionável
porque de origem divina. Todos os professantes da fé cristã devem
aceitá-lo humildemente e jamais colocá-lo sob qualquer dúvida. Na
verdade, trata-se de um discurso humano, demasiadamente humano,
legitimador dos direitos, privilégios e interesses históricos dos detentores
de poder na Igreja.
Hoje ele já se fez um discurso inconsciente, tal é o nível de
imposição e internalização da maioria dos cristãos e nos próprios
portadores de poder.
A característica desse sistema de poder é o autoritarismo.
Autoritário é um sistema quando os portadores de poder não necessitam
do reconhecimento livre e espontâneo dos membros da comunidade para
se constituir e exercer. Por isso temos a ver com um sistema de
dominação. Quando há aceitação livre e espontânea de uma pessoa ou
instituição de direção por parte dos membros da comunidade, então
estamos diante da legítima autoridade. Separada desse reconhecimento, a
autoridade decai para autoritarismo. É o que vigorou e vigora na Igreja
romano-católica já há séculos.
Para se entender no nível estrutural um fenômeno como este da
dominação clerical, não se deve partir daquilo que os clérigos pensam e
dizem de si mesmos (a origem divina de seu poder etc), mas daquilo que
eles efetivamente fazem no seu processo real de vida eclesial. O que eles
fazem é manifesto: conservam em suas mãos, de forma corporativo-
privada, os meios de produção simbólica, controlam sua distribuição,
hierarquizam as formas de participação subordinada (mas em nenhum
caso em termos de decisão; esta é reservada somente aos clérigos. As
mulheres, que constituem mais da metade da Igreja e são mães ou irmãs

23
da outra metade, vêm excluídas, e os leigos, atrelados), limitam as formas
de consumo religioso-simbólico. Fundamentalmente se dá esse dualismo,
reforçado enormemente sob o Pontificado de João Paulo II: de um lado
está o ordenado, homem, celibatário que pode produzir, celebrar, fazer o
discurso oficial, decidir; do outro está o não-ordenado que assiste e é
convidado a se associar ao projeto e à visão do ordenado, devendo
sempre obedecer. Dessa forma, toda a capacidade de criar, de produzir,
de decidir dos não-ordenados, dos leigos, deixa de ser aproveitada, ou o é
de forma atrelada. O corpo eclesial aparece depauperado, formalizado,
marcadamente machista, enrijecido e mandonista. A dimensão da anima,
pela exclusão das mulheres e pelo recalque da dimensão feminina nos
homens de poder, subtrai ao corpo clerical de qualquer irradiação
benfazeja e humanizadora. O excesso de poder mostra dimensões
necrófilas em quase tudo o que pensa, diz e faz. Não há um interesse real
e ousado pelos problemas dos homens e das mulheres, mas uma
preocupação quase neurótica pelos interesses da Igreja-hierarquia, de sua
identidade, de sua preservação, de sua imagem.
A leitura doutrinária da revelação de verdades absolutas mascara o
real conflito subjacente à Igreja: o poder de uns sobre outros. Alguns
detêm o poder de decidir sobre a verdade, dar-lhe uma formulação única,
de definir qual é o caminho necessário para a eternidade. Decretam que a
sua verdade é absoluta. E a impõem aos outros. Por isso o discurso do
outro é um discurso impossível. Deve ser silenciado, perseguido,
estrangulado. Daí se entende o rigor da Inquisição. O que está em jogo,
realmente, é o poder do corpo clerical, que não tolera nenhum
concorrente ou nenhum confronto. Ele quer se manter como o único. É
ele que se entende como absoluto e terminal. Não a verdade e a
revelação, pois estas, por serem realidades divinas, são sempre abertas e
passíveis de novas achegas e novas leituras, sem jamais esgotar sua
riqueza interior.
O espírito que fez surgir a Inquisição perdura na Igreja romano-
católica, pois persiste a predominância do corpo clerical sobre toda a
comunidade e a visão piramidal de Igreja, centrada no poder sagrado.
Enquanto perdurar esse tipo de prática com a sua correspondente teologia
(ideologia), haverá sempre condições psicológicas, espirituais e materiais
para a ativação do espírito inquisitorial e dos instrumentos de sua
implementação (controle, repressão, silenciamento, condenações etc.).
Ele continua na mentalidade e nos métodos da atual Congregação
para a Doutrina da Fé. As modificações históricas, ao nível estrutural, são

24
praticamente nulas. Evidentemente, não se condena mais à morte física,
mas claramente não se evita a morte psicológica. Pressiona os acusados
até o limite da suportabilidade psicológica. São desmoralizados, faz-se
perder a confiança em sua pessoa e palavra; por isso se proíbe que sejam
convidados para conferências, assessorias e retiros espirituais; muitos são
transferidos para outros países, são forçados a tomar “anos sabáticos”
eufemisticamente, quer dizer, devem deixar as cátedras; pressionam-se as
editoras a não publicar seus escritos e proíbem-se as livrarias religiosas
de expor e de vender seus escritos. Praticamente a maioria das vítimas da
ex-Inquisição, para poderem sobreviver humanamente, se vê obrigada a
abandonar suas atividades ministeriais e teológicas. Mas sejamos
sensatos: porém, mais vale um herege vivo e feliz em sua fé, que um
teólogo ortodoxo infeliz, castrado e recastrado pelo ex-Santo Ofício.
Ainda perdura o processo de delação, a negação ao acesso às atas
dos processos, a inexistência de um advogado e a impossibilidade de
apelação. A mesma instância acusa, julga e pune. Isso é uma
perversidade jurídica em qualquer Estado de direito, pagão, ateu ou
cristão. Não há a salvaguarda suficiente do direito de defesa.
As punições impostas são ainda compreendidas como benevolência
e misericórdia da Igreja. Após a punição que o autor, desta introdução
recebeu da ex-Inquisição em 1984 (deposição como editor da Editora
Vozes, deposição de redator da Revista Eclesiástica Brasileira, proibição
de dar aulas, de falar publicamente, de dar entrevistas, de publicar
qualquer texto e por fim a imposição de um “silêncio obsequioso” por
tempo indeterminado, portanto punições nada banais para um intelectual
cujo único instrumento e arma é a palavra falada e escrita), o atual
Pontífice, através de seu Secretário de Estado, Cardeal Agostino Casaroli,
me escreveu com data de 29 de julho de 1985:
“Aquilo que, efetivamente, é requerido ao Rev. Padre, ou seja, ater-
se a algumas limitações, entre as quais o obsequiosum silentium, visa
como finalidade ajudá-lo a ter um período de pausa para repensar diante
de Deus problemas que são de grande importância para um teólogo e para
refletir nas suas responsabilidades diante dos irmãos de fé”(cf. Roma
locuta: documentos sobre o livro Igreja: Carisma e Poder, CDDH,
Petrópolis 1985, p.152).
A subjetividade das pessoas que sentem, que desenvolveram um
sentido de justiça e de equidade dentro da Igreja, que militam, com riscos
pessoais, até de ameaça de morte, na defesa e promoção dos direitos
humanos pisoteados nas sociedades autoritárias do Terceiro Mundo, nada

25
conta. Conta a objetividade da doutrina (fruto da subjetividade coletiva
do corpo clerical que a impõe como objetiva aos outros), que deve ser
salvaguardada a preço do escândalo dos mais simples, daqueles que
sofrem a contradição de uma Igreja que se compromete na observância
dos direitos humanos na sociedade e não consegue fazer valê-los nas
relações internas dela mesma.
Não cabe refutar a lógica do sistema. Mas questionar o sistema
mesmo. Dispensamo-nos desta tarefa, pois transcende o sentido da
introdução deste Manual dos Inquisidores. Mas não será difícil o próprio
leitor fazê-lo, pois:

a) A Inquisição contradiz o bom senso das pessoas. Como se pode,


em nome da verdade e ainda mais da verdade religiosa, perseguir,
torturar, matar tanto e de forma tão obsessiva? Importa enfatizar que,
mediante a Inquisição, a Igreja hierárquica introduziu os sacrifícios
humanos. O auge do sacrificialismo furibundo da Inquisição no século
XVI na Europa corresponde aos sacrifícios humanos perpetrados pelos
colonizadores espanhóis chegados ao nosso Continente contra as culturas
originárias dos astecas, maias, incas, chibchas e outras. Quando Hernán
Cortez penetrou em 1519 no planato de Anahuac no México, havia no
Império asteca 25.200.000 habitantes. Menos de 80 anos, em 1595, só
restaram 1.375.000 habitantes. A dizimação global, por guerras, doenças,
excesso de trabalho-escravo na encomiendas, desestruturação cultural,
nos dois primeiros séculos da colonizacão-invasão, foi da ordem de 25
por 1. Quem oferecia mais sacrifícios humanos: os astecas, que faziam
sacrifícios rituais ao deus Sol para que sempre voltasse a nascer e assim
garantisse a vida para todos os povos e para o universo,ou os espanhóis,
que sacrificavam ao deus Mamona para serem ricos e fidalgos na
Espanha? E sobre isso os bispos reunidos no Concílio de Trento (1545-
1563), contemporâneo a todos esses fatos, não dizem sequer uma palavra.
Estavam ocupados com questões internas da Instituição em confronto
com a Reforma de Lutero.
A verdade possui, em si, uma dimensão de libertação e
humanização. Na Inquisição ela é afogada. Repugna à inteligência
assumir uma pretensa verdade à forca do terror.

b) A Inquisição contradiz o sentido da verdade religiosa, da verdade


simplesmente e a natureza da religião. A verdade é como o sol. Ele
ilumina a todos e a todos se dá. Pode dizer a montanha à planta que está
ao seu pé: por que sou mais alta e sou a primeira a ser bafeja-da pelo sol,
26
você, plantazinha ao meu pé, não tem direito de receber sol nenhum? E a
luz que tens não é luz e não vem do sol? Seria absurdo o discurso da
montanha. E seria menos absurdo o discurso da teologia (ideologia) da
verdade absoluta que subjaz aos órgãos de controle e repressão das
doutrinas na Igreja romano-católica que nega verdade às outras religiões
e a outras confissões cristãs?
Todos estamos em algum nível da verdade. Como também todos
estamos a caminho de uma verdade mais plena. A verdade não está
apenas nas frases verdadeiras. Ela está fundamentalmente na vida, na
profundidade do coração, nas relações entre as pessoas, no curso da
história. Ela pode ser expressa de mil formas, num poema, numa música,
numa catedral, numa parábola e num discurso.
Na história, nossas formulações exprimem a verdade absoluta que
está em todos, mas não logram exprimir todo o absoluto da Verdade. No
dito fica sempre o não-dito. E todo ponto de vista é sempre a vista de um
ponto. Por isso haverá sempre possibilidade de se dizer a verdade e a fé
em doutrinas expressas em marcos inteligíveis de uma outra cultura, de
uma outra tradição espiritual e, por que não dizê-lo também, no código de
uma outra classe social. A Inquisição é contra a natureza da religião. Esta
trabalha o sagrado que está na profundidade de cada pessoa, na história e
no cosmos. O efeito da prática religiosa é a potenciação do sentido da
vida, do sentimento de salvação, da formulação de uma esperança contra
toda esperança e do apreço e salvaguarda da vida e do menor sinal de
vida. Uma religião que produz morte e exige sacrifícios humanos
desnatura a religião e se transforma num aparelho de controle social.

c) A Inquisição nada tem a ver com Cristo, nem com o seu


Evangelho. Se tem a ver, é contra eles. O próprio Cristo foi vítima da
inquisição judaica de seu tempo. Como em seu nome instaurar uma
inquisição? Não esqueçamos que o Grande Inquisidor de Dostoievski
acabou condenando Jesus Cristo. Nem tem a ver com a Igreja em sua
compreensão maior, teológica e sacramental. Pois a Igreja como
comunidade dos professantes procura manter viva a memória de Jesus, do
seu sonho, da irradiação do seu Espírito, na profunda alegria de sermos
todos filhos e filhas de Deus e por isso irmãos e irmãs de toda humana
criatura e de cada ser do universo. A Inquisição tem a ver sim com a
patologia como distorção dessa convicção, e com o pecado como negação
prática dessa proposta, carregada de promessa e de utopia. Mas sejamos
realistas: quem é são pode ficar doente. E quem está na graça pode pecar.

27
A “Santa” Inquisição é expressão de um componente neurótico-
obsessivo do corpo clerical e cristaliza a dimensão de pecado que existe
nas relações internas da Igreja. Pois, a própria Igreja-comunidade-de-fiéis
se confessa santa e pecadora. Se assim é então aqui é o pecado
institucional que ganha a cena e a ocupa durante séculos. Seu espírito
vaga assustador até os dias de hoje. E devemos nos precaver contra ele.
Antes, ajudar a própria instituição eclesial a ser fiel à sua utopia
originária e a ser um lugar de exercício de liberdade e de experimentação
da graça humanitária de Deus. E isso se fará na medida em que os
professantes da fé romano-católica se reapropriarem daquilo de que
foram historicamente despojados: sua capacidade de experimentar o
sonho de Jesus, de dizê-lo de forma criativa e responsável no interior da
comunidade, de confrontá-lo solidariamente com outras experiências do
evangelho de Deus na história e articulá-lo com o curso do mundo, onde
se revela também e principalmente o desígnio de benquerença e de amor
de Deus.
A comunidade cristã viveu séculos sem a Inquisição. Isto significa
que não precisou dela para viver e sobreviver. Portanto, ela é supérflua.
Sua existência mantém o mesmo escândalo, denota uma patologia e
concretiza um pecado. Nunca teve direito a existir. Não deve mais existir.
Por amor a Deus, por fidelidade a Jesus Cristo e por respeito às opiniões
religiosas diferentes nas sociedades humanas.

LEONARDO BOFF
Prof.de Ética e Teologia na UERJ

Rio de Janeiro, Sexta-feira Santa da Paixão de 1993.

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29
30
A. A HERESIA

1. A noção de heresia

O que se deve entender por “heresia”? Se consultarmos a etimologia,


segundo Santo Isidoro e outros, veremos que esta palavra tem triplo
significado.
Em primeiro lugar, e segundo Isidoro e Pápias, “heresia” vem do
verbo “eleger” (eligo). Neste sentido, “heresia” equivale a elesis;
“heresia” viria, então, de “eleição”, como “seita” vem de “seção”. Neste
caso, dizer “eleitor” é o mesmo que dizer “herético” (electivus,
haereticus). E, com razão, pois o herético, ficando entre uma verdadeira e
uma falsa doutrina, nega a verdadeira e “escolhe” como verdadeira uma
doutrina falsa e perversa. Portanto, é evidente que o herético “elege”.
Hugo propõe outro significado, derivado de verbo “aderir”. Herético
significaria, então, “aquele que adere” (haereticus, adhaesivus). Herético
é, efetivamente, quem adere com convicção e obstinação a uma falsa
doutrina considerada como verdadeira. Portanto, é lógico que o herético
“adere”.
Isidoro propõe ainda um outro sentido: a palavra heresia vem do
verbo erciscor, sinônimo de divido. Neste caso, a palavra haereticus
remeteria à ideia de ercissivus (divisivus). Herético seria quem se afasta
(erciscitur) da vida comum. E, na verdade, o herético, ao escolher uma
falsa doutrina, e, ao aderir obstinadamente a uma doutrina rejeitada por
aqueles com quem convivia antes, isola-se e afasta-se, espiritualmente, da
sua comunidade, de onde será imediatamente separado através da
excomunhão. Depois, entregue à autoridade secular, afasta-se para
sempre da comunidade dos vivos. Portanto, é claro que existe separação
quando existe heresia, e a conclusão de tudo o que se disse antes é que o

31
conceito de heresia envolve os três conceitos de: eleição, adesão e
separação.

XVI. Na realidade, a palavra heresia vem do verbo grego αιρσμαι (eleger,


optar). Os autores latinos propuseram inúmeras etimologias, entre elas as
que Eymerich cita. Na acepção primitiva, o conceito de heresia não tinha
nada de desonroso: “heréticos”' eram simplesmente todos os que
pertenciam a uma escola filosófica. Mas, hoje, esta palavra é condenável
e indigna porque designa todos aqueles que acreditam ou ensinam coisas
contrárias à fé de Cristo e de sua Igreja. Mas, se alguém nos objetar que,
no sentido grego do termo, escolher a verdade católica é também uma
“heresia”, já que escolher uma doutrina é também escolher uma “seita”,
responderemos, juntamente com Tertuliano, que existe “separação” na
“eleição” da fé católica, pois não nos cabe escolher, neste caso, de acordo
com o nosso livre-arbítrio, mas “seguir” o que Deus determinou para nós.
Existem heresia e seita, quando a compreensão ou interpretação do
Evangelho está em desacordo com a compreensão e a interpretação
tradicionalmente defendidas pela Igreja Católica.
E as consequências da heresia? Blasfêmias, sacrilégios, agressões
aos próprios fundamentos da Igreja, transgressão das decisões e leis
sagradas, injustiças, calúnias e crueldade de que os católicos são vítimas.
Por causa da heresia, a verdade católica se enfraquece e se apaga nos
corações; os corpos e os bens materiais se acabam, surgem tumultos e
insurreições, há perturbação da paz e da ordem pública. De maneira que
todo povo, toda nação que deixa eclodir em seu interior a heresia, que a
alimenta, que não a elimina logo, corrompe-se, caminha para a
subversão, e pode até desaparecer. A História dos antigos prova isso. E o
presente também, mostrando-nos o exemplo de prósperas regiões e reinos
em franco desenvolvimento atingidos por grandes calamidades por causa
da heresia.

2. Proposição ou artigos heréticos

O que é heresia? Ou, em outras palavras, quando é que se pode dizer


que um artigo ou proposição são heréticos?
Responderemos, concordando com Santo Tomás (S.T. I., q.3.2, art.

32
4 e 2.2, q. II, art. 2), que existem três causas ou três razões capazes de
determinar o caráter herético de um artigo ou de uma proposição. Uma
proposição é herética:

a) Se é contrária a qualquer artigo de fé, como, por exemplo, o dogma da


Santíssima Trindade ou da Encarnação do Filho, ou a outros artigos
parecidos que constituam a base da nossa fé católica e o essencial da
nossa crença;

b) Se é contrária a qualquer verdade que a Igreja tenha declarado de fé:


por exemplo, que o Espírito Santo não procede do Pai e do Filho como de
dois princípios, ou que a usura não é um pecado;

c) Se é contrária ao conteúdo dos livros canônicos: por exemplo, que


Deus não criou o céu e a terra, ou Cristo não mandou seus discípulos
pregarem, ao contrário do que dizem o Gênese e o Evangelho segundo
São Marcos, livros que a Igreja considera canônicos. É necessário crer,
efetivamente, em tudo o que está escrito nos livros canônicos1.

Nas três situações, há uma oposição clara, seja em relação ao símbolo da


fé2, aos decretos da Igreja ou às Escrituras Sagradas. Portanto, existe
heresia nas três situações.

XVI. Segundo a opinião de Torquemada e outros doutores, deve-se


definir e desenvolver a doutrina eymerichiana através de sete critérios de
heresia: herética é toda proposição que se oponha:

a) A tudo o que esteja expressamente contido nas Escrituras;

b) A tudo que decorra necessariamente do sentido das Escrituras;

c) Ao conteúdo das palavras de Cristo, transmitidas aos apóstolos, que,


por sua vez, transmitiram-nas à Igreja;

d) A tudo o que tenha sido objeto de uma definição em algum dos


Concílios ecumênicos;
e) A tudo o que a Igreja tenha proposto à fé dos fiéis;

1 Na tradição católica, o conjunto dos livros canônicos constitui a Bíblia (Antigo e Novo Testamentos).
22 Quer dizer, o Credo.
33
f) A tudo o que tenha sido proclamado, por unanimidade, pelos Padres da
Igreja, no que diz respeito à reputação da heresia;
g) A tudo o que decorra, necessariamente, dos princípios estabelecidos
nos itens c, d, e e f.

Além disso, o inquisidor deve considerar as oito regras abaixo, pois


graças a elas poderá determinar, a contrário, o caráter herético de uma
afirmação:

1.A verdade católica é a que está contida, explícita ou implicitamente,


nas Escrituras. Cabe à Igreja explicar os conteúdos implícitos, já que ela
é o próprio fundamento da verdade.
2. É de fé tudo o que ensinam os doutores e os Padres da Igreja
solenemente reunidos em concílio.
3. É de fé o que a Santa Sé ou o Sumo Pontífice definem como tal.
4. É de fé a interpretação unânime de uma passagem das Escrituras, ou de
uma opinião (em matéria de fé) pelo conjunto dos Padres, pois, como
disse São Jerônimo, não são os Padres que ensinam, mas o próprio Deus
através das palavras deles.
5. É de fé o que pertence à tradição apostólica (por exemplo, a conceição
virginal de Maria, a obrigação de batizar as crianças).
6. É de fé qualquer dogma proclamado por um concílio, confirmado pelo
Papa e proposto por ele aos fiéis.
7. É de fé qualquer conclusão teológica estabelecida pela Igreja (concílio
ou Santa Sé) ou proposta pelos teólogos. Por exemplo: a presença de duas
vontades em Cristo, decorrentes da passagem de Mateus, 26 (“não se faça
como eu quero, mas como tu queres”).
8. É de fé tudo o que os teólogos escolásticos sempre, e por unanimidade,
ensinaram.

3. O erro e a heresia

34
Juridicamente, a noção de erro e heresia tem o mesmo sentido?
O conceito de erro é mais amplo, pois, se toda heresia é um erro,
nem todo erro é herético. E se todo herege está errado, nem todos aqueles
que cometem erro sã o necessariamente hereges.
Mas, no dom ínio da f é, heresia e erro sã o absolutamente
sinônimos.

35
B. OS HEREGES

4. Acepções jurídicas do
qualificativo herético

Aplicar-se-á, do ponto de vista jurídico, o adjetivo herético em oito


situações bem definidas. São heréticos:

a) Os excomungados;

b) Os simoníacos3;
c) Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que ela
recebeu de Deus;

d) Quem cometer erros na interpretação das Sagradas Escrituras;


e) Quem criar uma nova seita ou aderir a uma seita já existente;

f) Quem não aceitar a doutrina romana no que se refere aos sacramentos;


g) Quem tiver opinião diferente da Igreja de Roma sobre um ou vários
artigos de fé;

h) Quem duvidar da fé cristã.

3 Fala-se em “simonia” quando se comercializam, de alguma forma, os sacramentos ou o sagrado


em geral. Na origem da palavra, o episódio relatado nos Atos dos Apóstolos de Simão o Mago,
propondo ao apóstolo Pedro “vender-lhe” o Espírito Santo (At, 8, 18-24).
36
5.O herege em sentido estrito

A quem deve ser aplicado, adequada e verdadeiramente, o adjetivo


herético, do ponto de vista estritamente jurídico e teológico?
Para responder a esta pergunta, deve-se deixar claro que são
necessárias duas condições para que alguém possa ser qualificado, com
toda a propriedade, como herético. A primeira diz respeito à inteligência
(na medida em que cabe a ela selecionar e organizar): se o erro está no
intelecto, no tocante à fé. A outra diz respeito à vontade (na medida em
que cabe a ela completar e concluir): se ela se apega com teimosia ao erro
intelectual. A reunião destas duas condições define perfeitamente o
herege, assim como a fé no intelecto e a perseverança na vontade definem
o verdadeiro católico. Consequentemente, não mereceria, propriamente, o
adjetivo herético quem não reunisse essas duas condições. Esta é a
opinião de Santo Tomás e outros teólogos e canonistas.
No que diz respeito ao erro intelectual, Santo Tomás, ao lado de
outros teólogos, explica que é preciso destacar dois tipos e três espécies
de verdades de fé:

1. Os artigos fundamentais da religião cristã e os princípios primeiros da


teologia pertencem diretamente ao domínio da fé e devem ser tomados
como verdadeiros por qualquer católico.
2. As verdades cuja negação ou modificação leve à negação ou à
corrupção dos artigos fundamentais pertencem, indiretamente, ao
domínio da fé. Estas verdades secundárias compreendem:
a) O conteúdo integral dos livros canônicos -chamados Bíblia-
revelados pelo Espírito Santo. A negação ou a corrupção do conjunto
destes livros, ou de uma parte deles, levaria à negação ou à corrupção
dos artigos da fé, uma vez que os artigos da fé estão contidos na
Bíblia! Efetivamente,quem não acreditasse no seu conteúdo estaria
negando, indiretamente, os artigos. Porque se achasse que eles não
tivessem sido inspirados pelo Espírito Santo,ou que o Espírito Santo
não tivesse dito a verdade numa determinada parte, estaria
pretendendo dizer com isto que Ele poderia não ter dito a verdade no
restante!

37
b) A totalidade do que a Igreja divina decretou como de fé, seja em
um dos quatro Concílios4, seja nas constituições ou decretos posteriores:
a Igreja decreta como de fé o que está estabelecido nos livros canônicos.

Consequentemente, os fiéis devem crer: a) nos artigos de fé, b) em


tudo o que está contido nos livros canônicos, e c) em tudo o que a Igreja
decretou como de fé.

Portanto, considera-se herege quem discordar com pertinácia de


quaisquer das verdades citadas anteriormente. Efetivamente, sabemos que
alguns hereges se opõem aos artigos de fé, outros aos livros canônicos,
outros, ainda,às definições da Igreja.

No que diz respeito à pertinácia no erro, devem-se também


considerar dois casos:

a) Fala-se em pertinácia manifesta, no caso de uma pessoa, que, chamada


a comparecer por nosso senhor, o Papa — ou por seu inquisidor delegado
por ele, ou por seu próprio bispo — e, acuado por provas ou por
argumentos suficientemente convincentes a fazê-lo admitir que aquilo
que ele acredita se opõe aos artigos de fé, à Sagrada Escritura ou aos
decretos, continua assim mesmo persistindo no erro;

b) Com mais razão ainda, fala-se em pertinácia no erro, a propósito de


quem, convencido do erro, como já foi dito no caso anterior, não quer
nem abjurar os erros, nem corrigi-los.

Conclui-se que herege é quem se apega intransigentemente ao erro,


pertinácia essa cuja expressão é a recusa de abjurar.

XVI. A pertinácia é parecida com a perseverança: tanto uma como a


outra evidenciam um apego. Mas, fala-se em “pertinácia” quando se trata
de apego ao mal, e em ''perseverança” quando se trata de apego ao bem.

4 Nicéia, Constantinopla, Éfeso, Calcedônia.


38
6. Hereges manifestos e disfarçados

O que se entende por hereges manifestos e disfarçados? O Papa


Inocêncio III, ao responder à pergunta do Capítulo da catedral de
Toulouse, definiu os hereges manifestos da seguinte maneira: “Entende-
se por hereges manifestos os que pregam publicamente contra a fé
católica, os que seguem ou defendem o ensinamento dos primeiros, e os
que, demonstrando convicção da heresia diante de seus bispos,
confessaram seus próprios erros e foram condenados como hereges.”
Para nós, hereges disfarçados são aqueles cujas palavras e
comportamento não manifestam seu apego intransigente à heresia.

7. Hereges afirmativos ou negativos

Chamam-se hereges afirmativos os que estão intelectualmente errados


quanto à fé e que manifestam, tanto através da palavra como através da
ação, o apego da sua vontade ao erro mental.
Hereges negativos são aqueles que, convencidos de alguma heresia
por testemunhas dignas de fé diante do juiz, não querem ou não podem se
desapegar dela e, sem confessarem o crime, continuam firmes em suas
negações, confessando em palavras a fé católica e proclamando sua
rejeição à perversidade herética. Estes, independentemente de suas
razões, devem ser considerados hereges, enquanto continuarem negando.
Porque todo aquele que não confessa o erro de que tem convicção é um
impenitente com toda evidência.

XVI. Se Eymerich fala de “palavra” e de “ação”, é, evidentemente, para


dizer que, além da palavra, o comportamento exterior manifesta,
claramente, sentimentos internos, em se tratando da fé. E isto é uma
questão muito séria, porque resulta no seguinte: deve-se punir como
herege quem pratica atos “heréticos”?
Há duas respostas:

39
a) Serão considerados hereges os que praticarem atos propriamente
heréticos. Por exemplo: solicitar o “consolamento” 5, adorar os demônios,
comungar com os hereges, e, de acordo com os seus ritos etc.
b) Serão legitimamente considerados hereges — é a opinião unânime dos
teólogos e canonistas — os que visitam os hereges, ou os que os
sustentam, ajudam ou acompanham. As suspeitas são, neste caso,
suficientemente fortes para justificar por si mesmas processos por
heresia.

Comumente, a prática dos tribunais em relação a esses hereges é a


seguinte:
Quem, praticando tais atos, comparece espontaneamente diante do
inquisidor e declara que não sabia que era herege, e que tinha sempre
guardado a fé no fundo do coração,é obrigado a abjurar sob forte suspeita
de heresia, recebendo uma pena bem pesada.
Quem confessa voluntariamente os seus atos, e admite,sem
contestação, que conhece a natureza e o significado deles,é obrigado a
abjurar como formalmente herege ou apóstata,e receberá uma pena ainda
mais pesada. As penas serão de um rigor extremo, se o depoente
confessar que não praticou seus atos por medo, e sim voluntariamente.
Quem não comparece espontaneamente e confessa que praticou atos
heréticos, sempre negando sua adesão intelectual à heresia, será sobre a
realidade da adesão mental do acusado à verdadeira fé. Depois da tortura,
se se mantiver na posição inicial, será também obrigado a abjurar sob
forte suspeita de heresia: é possível, neste caso, que tenha praticado atos
condenáveis por medo, e não voluntariamente. Se, ao contrário, depois de
torturado, confessar suas crenças heréticas, será obrigado a abjurar como
herege formal ou apóstata (se resolver retornar ao seio da Igreja). Este
receberá as penas mais pesadas6.
Entretanto, na aplicação das penas,levar-se-ão muito em conta as
circunstâncias que habitualmente agravam ou atenuam o delito:a questão
do medo, a idade do réu, sua instrução, condição (leigo,sacerdote,
praticante) etc.

5 Através do “consolamento”, o fiel cátaro tornava-se “perfeito”. Os perfeitos professavam


integralmente a doutrina cátara e impunham-se uma norma de vida, sob todos os pontos de vista,
em conformidade com a doutrina.
6 Artifício para mostrar de uma maneira muito clara como eram reduzidas as chances de se sair
completamente ileso no Tribunal da Inquisição. Mas Peña precipitou-se: seria preciso esperar
ainda (cf. p. 148 “Veredictos e sentenças”) para se ter uma visão clara do real desfecho dos
processos.
40
De acordo com os decretos pontifícios, condena-se à prisão
perpétua quem, mesmo não se apresentando voluntariamente, confessa
ações heréticas e erros, e deseja retornar ao seio da Igreja.
Finalmente, consideram-se apenas como suspeitos de heresia os
que tenham praticado esses atos tanto por dinheiro, como para obedecer
aos impulsos da carne ou para ceder às pressões de conhecidos e amigos.
Uma pergunta que se faz a respeito dos “hereges negativos”: pode-
se considerar herege negativo quem, estando convencido de ter tido, no
passado, uma linguagem ou um comportamento heréticos, declara que
esqueceu tudo? A pergunta é fundamental, pois, dependendo de como é
respondido, decide-se, ou não, entregar o suspeito, e afinal de contas, a
sua própria vida, ao braço secular.
Está comprovado que a memória guarda sempre inalteradas as
lembranças de fatos particularmente marcantes, ou particularmente
chocantes. Quem, como os luteranos, tivesse profanado locais sagrados,
pregado ideias heréticas, destruído imagens, poderia, se fosse acusado
tempos depois, de heresia negativa, afirmar que esqueceu tudo?
Respondam, vamos! Seria “processado”. E, eu defenderia a mesma
posição em relação a todos que afirmassem que esqueceram fatos menos
marcantes, porque a marca que a prática dos hereges deixa na memória
nunca se apaga. Daríamos o benefício do esquecimento a quem quisesse
se livrar do embaraço, sob pretexto de não mais se lembrar de ter sido
circuncidado?

8. Principais causas da heresia

Existe heresia, se houver oposição a um ou a vários artigos da fé; a esta


ou àquela passagem dos livros canônicos; a uma constituição ou a um
cânone da Igreja Católica. Por exemplo: seria herege, no primeiro caso,
quem não acreditasse que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho; no
segundo caso, quem acreditasse na eternidade do mundo; no terceiro
caso, quem afirmasse que Cristo e os apóstolos não têm nada em
comum7.

7 Alusão clara aos místicos e fraticelli que criticavam insistentemente a riqueza da Igreja e
pregavam a pobreza absoluta de Cristo e seus apóstolos. O argumento incontestável que a Igreja
devolvia: Judas era o “tesoureiro” dos Doze. É, e tinham algumas moedas. . .
41
9. Hereges condenados pelo
Direito Canônico

Alguns hereges foram condenados nos Decretos e outros, nas Decretais.


Outros, ainda, nas extravagantes8.
Estes são os hereges cuja condenação aparece nos Decretos: Simão
o Mago e os simoníacos; Basílides e os basilidianos; Nicolau o Diácono e
os nicolaítas; os gnósticos; Carpócrates e os carpocratianos; Cerinto e os
cerintianos; os nazarenos; os ofitas; Valentim e os valentianos; Apeles e
os apelitas; os arcônticos; os adamianos; os cainitas; os setianos; os
melquisedequianos; os angélicos; os apostólicos; Cerdon e os
cerdonianos; Marcião o Estóico e os marcionitas; os artotiritas; os
aquaristas; Severo e os severianos; Taciano e os tacianianos; os
alogianos; os catafrígios; os cátaros; Paulo de Samósata e os paulinianos;
Hermógenes e os hermogenianos; Manés e os maniqueus; os
antropomorfitas; Hierarco e os hierarquitas; Novaciano, sacerdote da
cidade de Roma, e os novacianos; os montanistas; Hebião e os
hebionitas; Fotino Bispo e os fotinianos; Aério e os aerianos; Aécio e os
aecianos, de onde descendem os eunomianos, discípulos do dialético
Eunômio, ele próprio discípulo de Aécio; Orígenes e os origenistas;
Noeto e os noetianos; Sabélio e os sabelianos; Ario, sacerdote de
Alexandria, e os arianos; Macedônio Bispo e os macedonianos;
Apolinário e os apolinaristas; os antidicomaritas; os metangismonitas;
Patrício e seus discípulos; Coluto e os colutianos; Florindo e os
florindianos; Donato e os donatistas; o bispo Bonoso e os bonosianos ou
bonosíacos; os circunceliões; Prisciliano e os priscilianistas; Lúcifer,
bispo da Sardena, e os luciferianos; o monge Joviniano e os jovinianistas;
Helvídio e os helvidianos; Pa-terno e os paternianos; os chamados
“árabes”, porque são da Arábia; Tertuliano, Padre africano e os
tertulianistas; tessaresdecatitas; os nictagos; Pelágio e os pelagianos;
Nestório, bispo de Constantinopla, e os nestorianos; Sabátio; Celéstio;
Eustáquio; Juliano Celanense; Celestino; Maximino Máximo “unicus”;
Lampécio; Êutiques, abade constantinopolitano, e os eutiquianos; os
acéfalos; Teodósio Gaiano, bispo de Alexandria, e os gaianitas; os

8 Raimundo de Penhaforte compila as “Decretais”, instaura-se a prática de “colecionar” os textos


pontifícios. Mas, curiosamente, Bulas vagueiam durante muito tempo “fora das coleções”: São
Bulas errantes, daí o nome, extravagantes. Sua autenticidade era ainda discutida no século XVI.
42
agonoítas; os triteístas.
Encontra-se nas Decretais a condenação dos cátaros, patarinos,
pobres de Lião, passaginos, josefitas, arnaldistas e esperonitas.
Miguel de Césenne, que foi superior da Ordem dos Franciscanos,
foi expressamente condenado em Quia vir reprobus,“extravagante” do
Papa João XXII.

XVI. Trata-se, é claro, da listagem dos hereges nominalmente


condenados, e não dos hereges condenados in genere, como constata num
grande número de cânones.

10. Hereges citados no Direito Civil

Alguns hereges, citados no Direito Civil, não são mencionados nos


Decretos nem nas Decretais. Nem tampouco nas extravagantes. São os
pneumatômacos, os papianitas, os pepuzitas, os borboritas, os
messalianos; os euquitas ou entusiastas, os audianos, os hidroparastatas,
os tascodrogitas, os batraquitas ou braquitas, os marcelianos, os
encratitas, os apotacitas e sacóforos.

XVI. Pneumatômacos ou macedonianos, é a mesma coisa.


“Pneumatômacos”, escreve João Damasceno a respeito dos
macedonianos, “porque lutam contra o espírito.” Os macedonianos,
efetivamente, pregavam que só o Pai e o Filho são Deus, mas o Espírito
Santo, não.
Os papianitas são os que, juntamente com o bispo Pápias,
companheiro de São Policarpo e discípulo de João Evangelista,
acreditavam que, mil anos depois de sua morte, Cristo restabeleceria o
reino judeu com os eleitos.
Os pepuzitas,que Agostinho chama de “pepuzianos”, confundem-
se com os quintilianos, artotiritas e priscilianos. São chamados de
pepuzitas por causa do nome da cidade de Pepuza, onde viveu Montano,
além de Prisca e Maximila, as duas mulheres a quem Montano ordenou
sacerdotisas. São bastante conhecidas suas horríveis e sórdidas heresias,
sabendo-se que esses hereges consagravam leite — em vez de vinho —
durante a missa.

43
Borboritas é um outro nome atribuído aos maniqueus.
Os messalianos ou massalianos nada mais são do que os euquitas
ou entusiastas, como explicam claramente os cânones do primeiro
Concílio de Constantinopla. Santo Agostinho menciona-os no seu
Catálogo de Heresias. A heresia consistia em pregar que era preciso rezar
sempre, sem cessar, e que a oração resolvia tudo.
Os audianos, ou odianos, confundem-se com os antropomorfitas,
chamados também de vadianos, do nome de um certo Áudio, ou Audeu,
contemporâneo de Ario, que, tomando erroneamente o sentido de uma
frase da Bíblia — “façamos o homem à nossa imagem e semelhança”—,
pregava que a divindade tinha forma humana. Os audianos pregavam
também que os bispos ricos iam para o inferno, e outras heresias.
Os hidroparastatas são nada menos que os aquaristas. Como se
sabe, só consagravam a água dentro do cálice.
Os tascodrogitas são da família dos frigastos e dos montanhistas:
aceitam o Antigo e o Novo Testamentos, mas veneram outros profetas,
particularmente o herege Montano e as duas prostitutas Prisca (ou
Priscila) e Maximila.
Quem eram os batraquitas, que alguns chamam braquitas? Ignoro.
Este termo é certamente o apelido — significativo naquele tempo — de
um grupo de hereges.
De acordo com Santo Agostinho, os marcelinianos teriam sido os
discípulos de uma certa Marcelina, ela própria pertencente à seita dos
carpocratianos, que venerava e incensava junto às imagens de Jesus, São
Paulo, Homero e Pitágoras.
João Damasceno fala dos apotáticos (ou seja, secretos, escolhidos),
que abominavam as pessoas casadas e a quem possuía qualquer bem
material. Sacóforos, será esta uma leitura correta do nome? Já encontrei
sacróforos, sacófaros e sacópatos. Seriam maniqueus, a se acreditar em
Bernardo de Luxemburgo. Pedro Godefroi leva em conta essas diferentes
leituras e pergunta se não se trata, na realidade, dos síforos, mencionados
nas definições dos dogmas da Igreja. Acreditase que não batizavam “em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”: neste caso, esses sacóforos
ou síforos não eram outros senão os bonosianos.

44
11. Hereges condenados pelos
Legados do Papa, na Cúria romana
Ou em outros lugares

Quais são os hereges mais famosos condenados pelos legados do Papa,


dentro ou fora da Cúria romana?
Primeiramente, no tempo do Papa Clemente V, dois frades
franciscanos, Pedro de Castillon e Nicho, foram condenados como
hereges contumazes em Avinhão, local que sediava, então, a Cúria
romana, pelo cardeal Albo, delegado para assuntos religiosos. Os dois
franciscanos foram mandados para a fogueira.
Mais tarde, o mesmo cardeal condenou, durante o pontificado de
Inocêncio VI, entregando-os ao braço secular, que os enviou à fogueira,
dois outros franciscanos: frei Maurício e frei João de Narbona.
E durante o pontificado de Urbano, em Viterbo, que sediava então a
Cúria romana, foram condenados, entregues ao braço secular e
queimados nove outros frades da ordem de São Francisco. Uns eram
minoritas, outros eram fraticelli. Seus nomes figuram nos autos dos
processos.
No nosso tempo, houve várias condenações fora da Cúria romana. É
o caso de Segarelli, o famoso herege de Parma, na Itália, que, durante o
pontificado de Bonifácio VIII, foi condenado pelo bispo de Parma e por
frei Manfredo, inquisidor dominicano, e mandado à fogueira. Lembremos
que, durante o pontificado de Clemente V, Dolcino de Novara, herege
famoso, também foi condenado e queimado com a esposa Margarida9.
O bispo e o inquisidor de Marselha condenaram e mandaram
queimar como hereges contumazes quatro frades franciscanos cujos
nomes, que não consegui registrar, figuram nos autos do processo. Isto,
durante o pontificado de João XXII. Depois deles, quantos mendicantes
não foram condenados em Narbona, Béziers e em outros lugares, por
terem afirmado que os quatro queimados de Marselha eram mártires de
Cristo? Outro exemplo: durante o pontificado de Clemente VI, em
Béziers, exumaram, por ordem do Papa, o cadáver do frei Pedro João, da

9 Na verdade, “a tal Margarida foi cortada em pedaços diante dos olhos de Dolcino; este, por sua
vez, também foi cortado em pedaços. Os ossos e os membros dos torturados foram atirados à
fogueira, juntamente com alguns de seus seguidores”. (Bernard Gui, Praclica, trad. Mollat, vol. II,
p. 107).
45
Ordem dos Frades Menores10: foi acusado publicamente de herege.
Depois, quebraram seus ossos e os queimaram.
Na Catalunha também queimaram begardos: Durant de Badauh, de
Gerona; Pedro Olier, de Maiorca; Bonanat, de Barcelona; Guilherme
Gilberto, de Valença; frei Arnaldo Montaner, franciscano, de Puigcerd
à…
Em todo lugar, muitos hereges foram condenados e entregues ao
braço secular, principalmente nas regiões de Carcassona, Toulouse, Seu
d’Urgell e Castres.

12. Os heresiarcas

Assim como a palavra “patriarca” significa o “príncipe dos pais” (de


archos, que significa príncipe), a palavra “heresiarca” significa “príncipe
dos hereges” (de archos e haeresis). O heresiarca é um príncipe de
hereges ou de heresias. Os heresiarcas não se limitam a se enganar e a se
apegar a seus erros: são eles que os formulam, inventam e também os
apregoam.

XVI. Deve-se chamar de heresiarcas apenas os criadores de heresias, ou


também quem as difunde, desenterra velhos erros, para apregoá-los
novamente ou retomá-los escondido? Deve-se estender o sentido da
palavra “heresiarca” a estes últimos também, pois, se nos limitarmos ao
sentido restrito do termo, deveríamos concluir que não existem mais
heresiarcas, ou existem poucos, no mundo atual, visto que hoje não
existem novas heresias, e sim uma retomada de antigas heresias. A
questão é importante, porque as disposições jurídicas não são as mesmas
para julgar os hereges e os heresiarcas.
Deve-se, por exemplo, entregar o heresiarca ao braço secular, sem
contemplação, até quem desejar se converter? Sim, respondem Simancas,
Rojas11 e outros, alegando que, merecendo a morte várias vezes, tendo em
vista a quantidade de seus crimes, os heresiarcas não saberiam se

10 A propósito dos processos de cadáveres e suas motivações teológico-econômicas, cf. as respostas


às perguntas 19 e 22, última parte do Manual.
11 Teóricos da Inquisição, na Espanha-
46
beneficiar das leis pontificais editadas em proveito dos hereges
arrependidos. Em Direito Civil, as circunstâncias agravantes
acompanham a perpetração de um crime, determinando a escolha da pena
máxima (por exemplo, quando o adultério vem acompanhado de incesto).
A mesma coisa em Direito Inquisitorial, no que diz respeito ao tipo de
sentença aplicável ao heresiarca. Não se deve livrar o heresiarca do
último suplício, mesmo se estiver sinceramente arrependido. Mas a Igreja
é clemente, e não previu que todos os heresiarcas deveriam ser enviados,
indistintamente, à fogueira: prevê a prisão perpétua para o heresiarca que
quiser se converter e se retratar.
Deve-se tomar mil precauções quando se lida com heresiarcas. Se
se convertem, então, todo cuidado é pouco. Sua conversão é apenas um
artifício para fugir da tortura. Se voltam ao seio da Igreja, ser-lhes-ão
aplicados os castigos mais duros e mais longos. Vão precisar, antes de
serem admitidos, de dar provas claras de arrependimento, conversão e
humildade. Eu, pessoalmente, acho que não se deveria receber aqueles
que, depois de várias discussões e exortações, capazes por si mesmas de
convertê-los, só se retratassem pouco antes de serem entregues ao braço
secular. Não é o amor pela verdade que os impulsiona a pedir
misericórdia, mas, realmente, o medo de morrer. Concordo com a opinião
de Simancas, quando afirma que em nenhum caso se deve perdoar os
heresiarcas que levaram ou fizeram levar à heresia reis, príncipes e
rainhas, ou seus herdeiros, pois, além de cometerem um crime de heresia,
cometeram um crime de lesa-majestade. Todo aquele que tenta perverter
ou corromper príncipes trama contra todo o reino, pois, conforme são os
príncipes, serão, no futuro, os cidadãos.

13. Hereges impenitentes,


penitentes e relapsos

Chamam-se hereges pertinazes e impenitentes aqueles que, interpelados


pelos juízes, convencidos de erro contra a fé, intimados a confessar e a
abjurar, mesmo assim não querem aceitar e preferem se agarrar
obstinadamente aos seus erros. Estes devem ser entregues ao braço
secular para serem executados.
Chamam-se hereges penitentes os que, depois de aderirem

47
intelectual e afetivamente à heresia, caíram em si,tiveram piedade de si
próprios, ouviram a voz da sabedoria e, abjurando dos seus erros e
procedimento,aceitaram as penas aplicadas pelo bispo ou pelo inquisidor.
Denominam-se hereges relapsos os que, abjurando da heresia e
tornando-se por isto penitentes, reincidem na heresia. Estes, a partir do
momento em que a recaída fica plena e claramente estabelecida, são
entregues ao braço secular para serem executados, sem novo julgamento.
Entretanto, se se arrependem e confessam a fé católica, a Igreja lhes
concede os sacramentos da penitência e da Eucaristia.
Há três tipos de relapsos:

a) Quem já foi considerado um grave suspeito de heresia sem que se


tenha podido provar claramente o seu crime e que, depois de se retratar,
reincidiu na heresia;
b) Quem, sendo culpado de um tipo de heresia e depois de se retratar de
toda e qualquer heresia, reincide numa outra heresia;
c) Quem, depois de abjurar, dá proteção a hereges, acompanha-os, ajuda-
os de alguma maneira ou pede-lhes ajuda.

XVI. Os autores se perguntam sobre o tipo de execução que se deve


aplicar aos relapsos. Devem morrer pela espada ou na fogueira?

1. A opinião geral, confirmada pela prática generalizada em todo o


mundo cristão, é que devem morrer na fogueira,de acordo com a
lei: “Que os patarinos e todos os hereges,quaisquer que sejam os
seus nomes,sejam condenados à morte. Serão queimados vivos em
praça pública, entregues em praça pública ao julgamento das
chamas12.” É de fundamental importância prender a língua deles
ou amordaçá-los antes de acender o fogo, porque, se têm
possibilidade de falar, podem ferir, com suas blasfêmias, a
devoção de quem assiste à execução.

2. Devem-se separar dois tipos de hereges penitentes: quem se


apresenta voluntariamente para abjurar, quem abjura durante o
tempo do perdão13 sem terem sido convocados nominalmente pelo
inquisidor, e quem abjura depois de ter sido preso, ou,
simplesmente, citado uma ou várias vezes pelo inquisidor. Quem
12 Determinação do imperador Frederico e dos Papas Inocêncio IV, Alexandre IV e Clemente IV. Na
verdade, a prática veio antes da pró pria codificação.
13 Sobre o tempo do perdão, cf. p. 100
48
se apresenta espontaneamente durante o tempo do perdão, será
tratado com indulgência; e se o erro for oculto, o castigo que lhe
será aplicado não será em praça pública; mas a abjuração, sim. Os
demais penitentes serão tratados com mais rigor. E cabe apenas ao
inquisidor, de acordo com os cânones do Concílio de Narbona,
aplicar a pena. O Concílio de Narbona determina também que os
hereges penitentes sejam proibidos de entrar em religião 14 e
exercer o sacerdócio, exceto com permissão expressa do Papa ou
do seu legado. O inquisidor destituirá ou degradará o penitente
que, depois de abjurar, estiver numa ordem religiosa ou exercendo
o sacerdócio. Finalmente, depois da absolvição canônica
concedida pelo inquisidor, o penitente deverá solicitar do seu
pároco a absolvição sacramental, de acordo com as instruções
madrilenhas de 1561.

Os relapsos serão tratados com maior profundidade no final deste


capítulo.

14. Os blasfemadores

Sobre os blasfemadores deve-se, primeiramente, fazer a pergunta da


jurisdição inquisitorial: estes casos são da competência do Tribunal da
Inquisição? Em caso afirmativo, os blasfemadores devem ser condenados
como hereges ou como suspeitos de heresia?

1. Quanto a este primeiro ponto, há dois tipos de blasfemadores. Os


que não se opõem aos dogmas, mas que, atormentados pela
ingratidão, maldizem o Senhor, ou a Virgem Maria, ou se
descuidam de lhes dar graças. São blasfemadores comuns com
quem o inquisidor não precisa se preocupar; deve abandoná-los à
punição de seus próprios juízes.

2. Outros dirigem ataques diretos contra os artigos da fé. Dizem, por


exemplo, que Deus não pode fazer com que chova ou faca sol: por
isso, divergem frontalmente do dogma da onipotência de Deus,

14 Ou seja: pertencer a uma ordem religiosa.


49
que aparece logo no primeiro artigo do Credo. Ou desrespeitam a
Virgem Maria, tratando-a como prostituta, o que é uma agressão
direta ao dogma da maternidade virginal de Maria. Os que
proferem essas blasfêmias não são blasfemadores comuns, mas
hereges: serão considerados hereges ou suspeitos de heresia pelo
inquisidor e julgados como tais. Uma vez nas mãos da Inquisição,
se continuarem sustentando a legitimidade de suas injúrias, serão
tratados como hereges e como tais entregues ao braco secular. Se,
ao contrário, se retratam e aceitam o castigo imposto pelo
inquisidor, não serão considerados hereges e terão direito ao
perdão.

A suspeita de heresia será maior ou menor dependendo se o


blasfemador profere injúrias a toda hora ou somente em certas ocasiões
(jogando, por exemplo). Mas o inquisidor deve se dedicar a estudar de
perto esta questão. Os blasfemadores dizem frequentemente que são
muito católicos do fundo do coração... se sua boca pronuncia heresias, é
porque só blasfemam sob o efeito da raiva. A raiva e a perturbação não
poderiam justificar tudo! Por exemplo: a perturbação provocada pelo
medo da tortura ou da morte é bem maior que o medo provocado pela
perda de um florim ou de um monte de dinheiro. Ora, quem cultua
Maomé, ou um ídolo, um demônio, por medo de ser torturado, passar
fome ou ser morto se reagir, não o fazem sem cometer um pecado de foro
íntimo (Santo Agostinho não disse “que é melhor morrer de fome do que
se alimentar de idolatria”?); e, externamente, também caem na idolatria e
na apostasia, portanto na heresia! Se esta perturbação e este medo de
morrer não justificam a heresia, nem a adoração de ídolos e diabos —
pois isto é uma agressão direta ao primeiro artigo da fé, por que o medo
de perder um dinheiro ou a raiva por tê-lo perdido, ou outras coisas tão
banais, deveriam justificar a heresia de quem lança injúrias contra o
mesmo artigo? Seria um absurdo! Não é mais perturbador se encontrar a
dois passos da morte que no limiar de uma desgraça? Não é mais triste
perder a vida do que dinheiro? E a perturbação que provoca no espírito o
inesperado da morte não é maior do que aquele que o jogo traz? Se
ninguém é perdoado de crime de heresia em nenhum desses casos, por
que seria diferente no outro?
Vamos voltar a Santo Agostinho e ver o que ele diz.
Noé, diz ele, embriagando-se depois do dilúvio, não pecou nem
total nem parcialmente. Ele não conhecia nem o vinho nem o seu poder:

50
como é que ele podia se prevenir? Mas Ló, embebedado por sua filha
mais velha, e dormindo com ela, pecou parcialmente,não de todo: ele
conhecia o vinho, seu poder, e podia ter se prevenido. Pecou quando se
embebedou. Mas ele nunca tinha passado pela experiência da bebedeira e
não sabia que ela o levaria à luxúria! Portanto, é parcialmente perdoado
pelo incesto. Mas, quando embebedado pela segunda filha,dorme com
ela, não merece perdão, porque conhecia os efeitos do vinho e a ligação
entre embriaguez e luxúria: devia, então, tomar cuidado com ela! Neste
segundo caso, se comporta como um verdadeiro incestuoso. Entretanto,
não se pode perdoar Ló nem pela primeira nem pela segunda bebedeira,
porque ele sabia o que era o vinho e não tomou cuidado. Não se pode
desculpá-lo muito pelo segundo incesto, porque sabia o que devia fazer
depois da primeira vez.
O blasfemador sabe quanta raiva o jogo e outras coisas podem
provocar, e quantas injúrias heréticas podem desencadear. Que se cuide,
se quer evitar a justiça da Inquisição!

XVI. A prática inquisitorial coincide até hoje com o relato eymerichiano:


a Inquisição se julga competente para julgar qualquer blasfemador que
tenha parentesco ou ligação com a heresia.
Rojas faz até uma lista de blasfêmias heréticas. Deve-se também
chamar atenção para o fato de que a blasfêmia é mais ou é menos grave
de acordo com as virtudes do blasfemador, a própria formulação da
blasfêmia, as circunstâncias em que é proferida etc.
Quanto à pena, é bom lembrar que o Levítico (c. 24) condena o
blasfemador à morte, seja ele cidadão ou estrangeiro. O Direito Civil
também prevê a pena de morte para os blasfemadores. Na Espanha, Las
Siete Partidas (partida 7, título 28) e as leis municipais prevêem a
repressão da blasfêmia15. No Direito Canônico, a pena do blasfemador é
aplicada em público, e, se for leigo, é, além disso, condenado a pagar
multa. Finalmente, Júlio III e Pio V estenderam aos clérigos as punições
aplicadas aos blasfemadores.
É uma solução para este problema, em certas regiões.
Se a blasfêmia for grave, e o blasfemador uma pessoa do povo,
será amordaçado, enfiam-lhe a mitra da difamação16 na cabeça e o
deixam nu da cintura para cima para servir de espetáculo à multidão.

15 13Assinalemos, a título de curiosidade, que essas leis municipais de repressão à blasfêmia


voltaram a ser aplicadas, na Espanha, logo depois da Guerra Civil…
16 Falaremos adiante exaustivamente (c/. p. 165) das roupas especiais que os arrependidos da
Inquisição devem vestir.
51
É chicoteado em praça pública e depois exilado. Se o blasfemador é um
nobre ou alguém importante, é conduzido, sem mitra, e enclausurado,
durante algum tempo, num convento e condenado ao pagamento de uma
alta soma em dinheiro. É forçado a abjurar. Se a blasfêmia não for muito
grave, o problema fica a critério do julgamento do inquisidor. No entanto,
convém proceder assim: o inquisidor condenará o blasfemador a ir à
igreja, num dia de festa, e durante a missa, com a cabeça descoberta, nu
da cintura para cima, descalço, com uma corda no pescoço e uma vela na
mão. No final da missa, lê-se a sentença de condenação, que atribuirá
sempre uma pena de jejum e o pagamento de uma multa.

15. Os videntes e adivinhos

Devem-se considerar os mágicos, adivinhos e videntes como hereges, e


como tais, dependentes da jurisdição inquisitorial? Este é o primeiro
ponto da questão.
Se fosse para responder afirmativamente, dever-se-ia definir, ainda,
se seriam considerados hereges ou, simplesmente, suspeitos de heresia.
Como no caso dos blasfemadores, devem-se considerar dois tipos de
adivinhos e videntes:

a. Adivinhos e videntes comuns (os que praticam apenas a


quiromancia, ou seja, os que prevêem, pela observação das linhas
da mão, os efeitos naturais e as circunstâncias da vida humana; ou,
ainda, os que mostram ou descobrem algo que está presente, mas
oculto, através da comparação do comprimento de dois fios de
palha, e outros mais. Suas atividades não são da competência da
Inquisição).
b. Adivinhos ou videntes heréticos (aqueles que, para predizer o
futuro, ou para penetrar no íntimo das pessoas, prestam um culto
de adoração ou veneração17 ao diabo, batizam as crianças de novo
etc.). Trata-se, evidentemente, de hereges e devem ser
considerados como tais pela Inquisição.

17 Em Teologia, faz-se uma distinção entre o culto de latria, que se faz apenas e tão somente à
divindade, e o culto de dulia, que se faz aos santos. Latria: adoração. Dulia: veneração.
52
Incluem-se nesta categoria de adivinhos e videntes heretizantes
aqueles de quem se sabe — através deles próprios ou de terceiros, ou
porque foram apanhados em flagrante — que misturam práticas
heretizantes às suas profecias e predições.
Batizar imagens, rebatizar crianças, ungir-se com os santos óleos,
encher de fumaça a cabeça dos cadáveres, e assim por diante: todas são
práticas heretizantes. Os que se dedicam a isso devem ser considerados
hereges. E, como tais, só serão perdoados pelos juízes se se
arrependerem, abjurarem e aceitarem as penas que lhes forem impostas.
Caso contrário, serão entregues como hereges impenitentes ao braco
secular para passarem pelo suplício do fogo.
Quando não se tem certeza absoluta da existência destes tipos de
prática (seja porque o adivinho suspeito não confessa, seja porque não
admite que pecou), mas se têm indícios, deve-se examiná-los. E se se
justificar uma forte suspeita de heresia, deve-se ver o tipo de abjuração
prevista em casos de suspeita grave; deve-se pedir uma abjuração de
suspeita leve, quando os indícios se revelarem frágeis.
Se os indícios não são evidentes e se a única prova clara for a boca
do povo, deve-se apenas aplicar uma pena canônica a quem é alvo desses
comentários.
Em caso de dúvida sobre o caráter heretizante das práticas utilizadas
por um adivinho (por exemplo: se o adivinho se volta para o oriente, ou
se pronuncia palavras estranhas ou incompreensíveis), o inquisidor não
fará nada: deixará para os juízes18 a tarefa de castigar esse adivinho de
acordo com a prática canônica.

XVI. São heretizantes:

a) todos os sortilégios que incluem ações ou palavras heréticas (exemplo:


negação do mandamento de amar a Deus, crítica ou utilização indevida
dos sacramentos da Igreja);
b) todos os sortilégios em que se utilizam os sacramentais 19. E isto é bem
claro: os sacramentais não seriam usados, caso se ignorasse o seu valor
sagrado e se, por causa disso , não se excluísse algum resultado maléfico
decorrente de sua má utilização. O inquisidor interrogará, então, o
suspeito sobre este assunto, torturando-o se ele fingir ignorar o valor dos
sacramentais. Se não obtiver a confissão, exigirá uma abjuração por
18 Seculares, evidentemente.
19 Palavras ou objetos sacramentais são aqueles que se utilizam seja na “confecção” do sacramento,
seja na celebração de um rito, ou, simplesmente, na preparação de um culto. A água benta, por
exemplo, é sacramental. E a água benta entra na fórmula de muitos sortilégios!
53
suspeita grave.
O sortilégio é claramente herético quando implica uma invocação ao
diabo.
Há heresia — e, consequentemente, necessidade de intervenção do
inquisidor — em todos esses sortilégios utilizados comumente para
encontrar objetos desaparecidos, e onde entram velas bentas ou água
benta, ou ainda enunciação de versículos das Escrituras, do Credo ou do
Pai Nosso etc. Isso advém do próprio fato de que, se se tratasse de
adivinhação, pura e simplesmente, não seria preciso recorrer ao sagrado.
c) Finalmente, são heréticas todas as práticas que implicam, em si
mesmas, ações heréticas, como o batismo de imagens ou a invocação e o
culto de diabos e ídolos.

Se Eymerich mostra as penas que convém aplicar aos adivinhos e


outros mágicos, o inquisidor deverá considerar bastante o tipo de suspeita
e de infâmia para aplicar a abjuração ou a pena canônica. Os castigos são
proporcionais ao tipo de acusado, indo do anátema e da perda das
dignidades ao chicote, ao exílio e à prisão num mosteiro. Os acusados de
práticas mágicas heretizantes serão apresentados em público, com uma
mitra na cabeça e presos aos degraus de sua igreja. Depois, serão
expulsos da diocese.

16. Os Demonólatras Ou Invocadores


Do Diabo

Quem invoca o diabo deve ser considerado — e julgado — como


“mágico”, herege ou suspeito de heresia?
A questão é complexa e deve-se elencar as respostas de acordo
com os diferentes tipos de invocação.
Deve-se distinguir três tipos de invocação ao diabo , se se toma co-
mo base o livro intitulado A tábua de Salomão, onde os demônios
invocados juram dizer a verdade (exatamente como prestamos juramento
em cima dos Evangelhos, e os judeus em cima das Tábuas da Lei que
Deus entregou a Moisés), livro que ousa afirmar o poder de Lúcifer e dos

54
outros diabos, e que contém orações abomináveis reveladas pelo próprio
Lúcifer e por outros demônios. Três maneiras - e sempre as mesmas! - de
invocar o diabo aparecem também no livro atribuído ao necromante
Honório, intitulado Tesouro da necromancia. Peguei estes livros de
necromantes que eu próprio capturei. Li e mandei queimá-los em público.
Encontra-se, aliás, esta tripla invocação na confissão de vários
invocadores do diabo; e minha prática de inquisidor, e a de muitos outros
colegas, dá testemunho disto:
a) Nestes livros - e em muitos outros, como mostra a prática inquisitorial
- ocorre que alguns deles, ao invocar os demônios, prestam-lhes um
verdadeiro culto de latria, ou seja, oferecem-lhes sacrifícios, os adoram,
dirigem-lhes preces execráveis, se entregam aos demônios, prestam-lhes
votos de obediência, prometem-lhes fazer qualquer coisa para se ligar a
eles jurando por esse ou aquele demônio, chamando-o através de
invocações; cantam em seu louvor, fazem-lhes genuflexões, prosternam-
se, fazem votos de castidade em sua honra, jejuam, flagelam-se, vestem-
se de preto ou de branco para lhes render cultos, pedem sua ajuda através
de sinais, escrevendo letras ou pronunciando nomes; acendem
candelabros, os incensam, queimam âmbar em seu louvor, aloés e outras
substâncias do gênero; sacrificam-lhes aves e outros animais, oferecem-
lhes seu próprio sangue; jogam sal no fogo, oferecem sacrifícios de toda
espécie. Todas essas práticas, e mil outras que os demônios inspiram e
exigem, implicam atos de latria: parece, efetivamente, que todas estas
práticas estavam previstas no Antigo e no Novo Testamentos apenas para
o culto de Deus, e não para o culto dos demônios. Esta é, portanto, a
primeira maneira de invocar os demônios. É assim que os sacerdotes de
Baal invocavam o seu deus: oferecendo-lhe o seu próprio sangue e o
sangue dos animais, como está escrito no Livro dos Reis (4,18)!
b) Outros invocam o demônio prestando-lhe um culto de veneração:
misturam, por exemplo, nomes de demônios com nomes de beatos em
preces execráveis, considerando até mesmo os espíritos impuros como
mediadores entre o homem e Deus, Deus a quem imploram, com os
candelabros acesos, que venha interceder por eles! É assim, por exemplo,
que os maometanos invocam Deus: através da mediação de Maomé. E os
begardos através da mediação de frei Pedro João e outros hereges
condenados pela Igreja.

55
c) Outros, finalmente, se entregam a práticas bastante estranhas para
invocar os demônios, e não se poderia dizer ao certo se são cultos de
latria ou de dulia. Por exemplo: há quem invoque o demônio riscando um
círculo no chão, colocando no meio uma criança; colocam diante dela um
espelho ou uma espada, uma vasilha, um objeto brilhante. O necromante
então, com o livro nas mãos, lê as invocações ao demônio. Esta é uma
maneira, dentre as inúmeras que a prática inquisitorial ensina. Este tipo
de invocação foi o mesmo de que se utilizou Saul ao se servir da pitonisa
para invocar o espírito pitônico; na realidade, não existem indícios, na
invocação de Saul, nem do culto de dulia nem do culto de latria.

De acordo com esses três tipos de invocação, deve-se dar três


respostas à pergunta inicial:

1. Quem invoca o demônio prestando-lhe culto de latria, e


confessa isso ou está juridicamente convicto disso, não será
considerado nem adivinho nem mágico, e sim herege.
Consequentemente, se se arrepende, terá que abjurar e irá para a
prisão. Se não se arrepender — ou se diz que se arrepende mas não
quer fazer penitência nem abjurar, ou se abjura mas reincide
depois nessas práticas — será entregue ao braço secular como um
herege impenitente.
2. Quem invoca o demônio, sem, entretanto, prestar-lhe culto de
latria, mas de hiperdulia ou de dulia, como foi explicado
anteriormente, e que confessa ou está juridicamente convicto
disso, não será considerado adivinho, e sim herege, e se se
arrepender depois de abjurar, ficará preso para toda a vida como
herege penitente. Se não se arrepender, será surrado até a morte
como um herege impenitente. A mesma coisa para quem abjura e
depois reincide. Este tipo de invocadores deve ser considerado dos
três pontos de vista, como os outros hereges.
3. Quem invoca os demônios utilizando práticas cujo caráter
látrico ou dúlico não é claro, será, entretanto, considerado herege e
tratado como tal, por causa da gravidade da invocação. Invocar
tem, efetivamente, na Sagrada Escritura, o sentido de praticar um
ato de latria: não se pode, portanto, invocar o diabo e cultuar a
Deus. O inquisidor deve examinar com bastante atenção a
finalidade deste terceiro tipo de invocação, pois, se o invocador
espera do diabo qualquer coisa que ultrapasse os limites e os
56
poderes da própria natureza do invocado (conhecer o futuro,
ressuscitar os mortos, prorrogar a vida, levar alguém ao pecado
etc.), estará confessando sua própria heresia, já que estará tratando
o diabo como uma divindade.
Pertence, finalmente, ao capítulo da demonolatria a suspeita de
heresia que pesa sobre quem ministra filtros do amor a uma mulher: na
verdade, frequentemente esses filtros são preparados por demonólatras
que chegam até a fazer votos de castidade em honra ao diabo.

XVI. Esta questão dos filtros do amor é da maior importância e da maior


atualidade, porque hoje em dia se ministra uma quantidade enorme desses
filtros. Aqueles que se deixam envolver em complicações amorosas
frequentemente oferecem aos parceiros poções de amor (que os gregos
chamavam de “filtros”) para excitá-los: quem é governado pelo desejo,
pensa que assim poderá manipular a castidade da pessoa desejada. Deve-
se destacar, de antemão, que não se encontra nada, na composição dessas
poções, que seja capaz de forçar ao amor o livre-arbítrio de um homem.
Segundo a opinião dos médicos, esses filtros não provocam o desejo, e
sim, às vezes, a loucura. Ovídio não diz outra coisa: “As beberagens,
muito brancas, não servem para as moças. Os filtros prejudicam o espírito
e levam à loucura” (Arte de Amar, 2). Mas o inquisidor deverá tentar
saber se os sacramentos — a hóstia consagrada ou o sangue de Cristo —
ou os sacramentais — como os “ágnus-dei” ou as relíquias dos mártires
— não foram misturados ao filtro. Também é muito frequente que os
amantes, impulsionados pela força do desejo, peçam ao demônio que
dobre a vontade da pessoa amada para que realizem os desejos da carne.
A opinião corrente é que, na maioria dos casos, esta invocação não é
propriamente herética, porque o diabo é invocado para fazer justamente o
que ele tem que fazer: provocar a tentação. Entretanto, deve-se examinar
com bastante cuidado em que termos foi feita a invocação. Se for feita
em termos imperativos (como: eu te ordeno, eu te obrigo, eu te determino
etc.) ou suplicantes (como: eu te suplico, eu te peço etc.): não existe
heresia manifesta se não se tiver utilizado a fórmula imperativa, havendo-
a se se tiverem utilizado termos depreciativos, pois a prece implica
adoração.
Não se deve prender os demônios em garrafas, se se deseja escapar
do braço secular. Santo Agostinho, Luís Vives e ainda outros se
manifestaram muito claramente a esse respeito. Não se lê: “Não
prenderás o demônio num anel, num espelho, numa garrafa, nem em
57
lugar nenhum para arrancar-lhe uma resposta do teu agrado”, pois os
poderosíssimos espíritos do mal não poderiam ser forçados por nenhum
pacto com o homem a entrar em garrafas nem ficar lá?
Obriga-se menos ainda através de sinais, palavras, pois como disse
Jó (41): “Não existe na terra poder comparável ao deles.” Então, se os
víssemos entrar em receptáculos deste tipo por causa, aparentemente, de
alguns sinais ou de algumas palavras, seria porque Deus é que os obrigou
ou os anjos bons, ou então, os demônios mais poderosos ainda. A menos
que, como eu acho, os demônios não se precipitassem aí dentro
espontaneamente, fingindo que foram obrigados, para enganar os que
pensam que têm algum poder sobre eles.
Gerson tratou exaustivamente desta questão das garrafas e filtros:
portanto, servem de referência os vinte e oito artigos condenados pela
Universidade de Paris em 1398 para processar as pessoas que se dedicam
a essas práticas heréticas. Pois, ainda que não devam ser consideradas de
fé católica, as proposições das grandes universidades teológicas —
Sorbonne, Salamanca e Bolonha, principalmente — serão criteriosamente
utilizadas pelos inquisidores, de acordo com a determinação de Suas
Santidades os Papas Sisto IV, Leão X e Adriano VI, em suas bulas
Nuntiatum est vobis, Alias ad petitionem, Dudum uti nobis.

17. Os Cristãos que aderiram ao


judaísmo, os judeus convertidos e
depois rejudaizantes

Deve-se considerar como hereges, e julgá-los como tais, os cristãos que


aderiram ao judaísmo ou que se reconverteram a ele, e aqueles que
ajudaram, acolheram ou que facilitaram esta mudança?
Vamos analisar esta questão para que se possa avaliar
criteriosamente estas três situações.
Em primeiro lugar: os cristãos que aderem ao judaísmo e os judeus
que, convertidos ao cristianismo, retornam, depois de algum tempo, à
execrável seita judaica , são hereges e devem ser vistos como tais. Tanto
uns quanto outros renegaram a fé cristã assumida através do batismo. Se
58
querem renunciar ao rito judaico sem renunciar ao judaísmo nem fazer
penitência, serão perseguidos como hereges impenitentes pelos bispos e
inquisidores, que os entregarão para serem queimados.
Em segundo lugar: os cristãos que ajudaram, aconselharam etc, um
cristão convertido ou reconvertido ao judaísmo serão considerados como
protetores da heresia e julgados como tais, pois são hereges tanto os que
aderem ao judaísmo como os que se reconvertem a ele.
Em terceiro lugar: de acordo com os termos da bula Turbato corde
de nosso senhor o Papa Nicolau IV, os bispos e inquisidores considerarão
como cúmplices da heresia os judeus que tiverem facilitado de alguma
forma qualquer o retorno ao judaísmo de um dos seus ou a adesão de um
cristão ao judaísmo.
Considera-se que uma pessoa aderiu ou voltou ao rito judaico, se ela
observar as cerimônias, solenidades e festas, em suma, se fizer tudo o que
os judeus fazem normalmente. Mas há um rito que marca para o judeu
convertido ao cristianismo e rejudaizado sua adesão ao judaísmo. É o
seguinte:
Quem deseja voltar de novo a ser judeu é interrogado por um dos
judeus presentes segundo a seguinte fórmula: você quer fazer teuila? (que
significa: você quer se banhar na água para voltar a ser judeu?). O
postulante responde: Sim. Então, o judeu que preside diz: Baal tessura
(que significa: saia da água do pecado). Tiram-lhe, então, completamente
a roupa e colocam-no dentro d'água — às vezes quente. Os judeus, então,
esfregam-lhe todo o corpo com areia, principalmente a testa, o peito e as
mãos, ou seja, os lugares que durante o batismo cristão receberam o santo
crisma. Depois, as unhas das mãos e dos pés do aspirante a judeu são
cortadas bem curtas, até sangrar; raspam-lhe a cabeça e mergulham-na
nas águas de um rio. Mandam-lhe mergulhar a cabeça três vezes e, depois
de cada imersão, os judeus presentes entoam a seguinte oração: Bendito
sejas tu, ó Deus, Pai dos séculos, que nos ordenou para que nos
purificássemos através desta água e deste banho (banho, que se chama
teuila em hebraico). Depois o judeu reconvertido sai da água, recebe
novas roupas e abraça todos os judeus presentes. Recebe, então, um novo
nome, geralmente o que tinha antes de se tornar cristão.
Depois da cerimônia, o rejudaizante promete professar a lei de
Moisés, respeitá-la e viver de acordo com ela; nega o batismo de Cristo e
declara que nunca mais vai respeitar à fé cristã. Recebe, então, uma carta
que prova a sua fidelidade, graças à qual recebe, a partir de agora e onde
quer que esteja, a acolhida e a proteção dos demais judeus. A partir de

59
então, o rejudaizante passará a viver como um judeu, com os judeus,
retornando à sua própria escola e à sinagoga.
É através de um rito parecido que se admite no judaísmo o cristão
judaizante. No entanto, neste caso, os judeus fazem a circuncisão do
postulante. Enquanto as crianças judias são circuncidadas em toda a
volta, os cristãos judaizantes — adultos ou crianças — são circuncidados
apenas na parte superior do prepúcio: os judeus assim procedem para que
haja uma diferença bem clara entre uns e outros.
XVI. Na realidade, é como apóstatas que serão considerados tanto os
cristãos convertidos ao judaísmo, como os judeus convertidos e
rejudaizantes. O crime de apostasia e heresia é claro — e, por isso,
passível da intervenção do inquisidor — independentemente das
circunstâncias da adesão ou do retorno ao judaísmo. O judeu rejudaizante
recebeu o batismo sob ameaça de morte ou era criança? O crime de
rejudaização continua absoluto20. Entretanto, a criança rejudaizante será
tratada com menos rigor.
Os judeus culpados de terem facilitado, de alguma forma, a adesão
ao judaísmo serão condenados às seguinte penas: proibição de conviver
com os cristãos, multa, prisão e surra. Porém, a um crime particularmente
grave corresponderá uma pena mais dura, podendo chegar até a entrega
do culpado ao braço secular: cabe ao juiz decidir. Esta é a opinião mais
comum entre os inquisidores a respeito deste assunto.
Além disso, deve-se chamar a atenção para o fato de que, de
acordo com o que estabelece o rei Felipe II (Leyes de Castilla, 1.2,c.8:
Judios ymoros), o judeu que se converte ao cristianismo deve mudar de
nome. Deve ser veementemente aconselhado a tomar um nome do
martirológico cristão, senão despertará sempre nos outros suspeitas sobre
as suas origens.
Finalmente, embora todos os manuscritos do Directorium que
consultei tenham esse texto sobre a discriminação entre a circuncisão
ritual judia comum e o rito da circuncisão praticada nos cristãos
judaizantes, ouvi dos rabinos mais eruditos e judeus convertidos que pude
consultar sobre esse assunto, em Roma, que esta discriminação jamais
ocorreu na tradição judaica. Meus interlocutores acrescentam que de
maneira nenhuma poderiam considerar como um dos seus alguém cujo
prepúcio não tivesse sido circuncidado.
20 Alusão bastante clara à “escolha” proposta, no século XV, á comunidade judaica, na Espanha. Mas
há o mito de uma igreja e de uma Inquisição que protegiam os judeus dos maus-tratos (c/. por
exemplo, G. e J. Testas, L' Inquisition, Paris, Presses Universitaires de France, p. 59). Veremos um
pouco mais adiante o que é realmente este regime de favores.

60
18. Os cristãos que aderiram à seita
dos sarracenos

A situação dos cristãos que aderiram ao islamismo ou dos sarracenos, que


depois de se converterem ao cristianismo, retornam ao islamismo, e dos
sarracenos que, de uma maneira ou de outra, facilitaram essa passagem, é
absolutamente idêntica à situação dos judeus e rejudaizantes examinada
no item anterior: idêntica a gravidade do fato, idênticas as penas.

19. Jurisdição da Inquisição no que diz respeito aos


infiéis e a todos aqueles que se opõem à fé cristã

De uma maneira geral, consideram-se como hereges — e passíveis, como


tais, dos rigores da Inquisição — judeus e infiéis, demonólatras,
semeadores de heresias e culpados de qualquer crime contra a fé cristã?
Para responder de um modo exato a esta pergunta,deve se lembrar que o
Antigo Testamento contém todas as verdades que os judeus consideram
de fé e que dizem respeitar. São verdades de ordem moral ou
legal,judiciária ou litúrgica, profética ou simbólica. Podem ser
classificadas em duas grandes categorias:

a) As que são específicas dos judeus — e, por isso mesmo, diferenciais


— e em virtude das quais eles são diferentes de nós e nós os
identificamos como judeus e , para dizer a verdade, como infiéis. Os
judeus que transgredissem essas verdades diferenciais, embora hereges na
sua perfídia, não 0 seriam na perspectiva da fé cristã, pois, negando essas
verdades, se uniriam a nós, na realidade. Portanto, cabe a n os cristãos
não pôr entraves, neste caso, à sua heresia e desobediência, mas, ao
contrário , esclarecê-los bastante e encorajá-los neste tipo de infidelidade.

b) Outras verdades do Antigo Testamento são comuns a nós e a eles. De


acordo com elas, os judeus não são diferentes de nós e não devemos
considerá-los nem vê-los como judeus. (Por exemplo: a fé em um único

61
Deus e a fé em um Deus criador de todas as coisas. Os judeus que negam
essas verdades devem ser considerados hereges, e tratados como tais aos
olhos de sua própria teologia.)

Mas, justamente por concordarem conosco neste tipo de verdades,


atacam frontalmente a lei cristã os que as negam! Devem ser, portanto,
obrigados pelos juízes da fé cristã — bispos e inquisidores — a respeitar
essas verdades, que são suas também, e a segui-las escrupulosamente! E
quem cometer este tipo de crime será condenado pelo bispo e pelo
inquisidor como herege contra a sua própria religião. O quê! As crianças
judias ou judeus adultos, batizados sob ameaça de confisco, castigos
corporais e outras coerções, inclusive a pena de morte, são obrigados a
seguir o que prometeram durante o batismo! Então, não se tem que
perseguir e castigar os judeus que, acreditando livremente nas verdades
que nos são comuns, a nós e a eles, se afastaram da sua própria crença?
Então, não seriam culpados, já que, como diz Santo Tomás (2.2, q. 10,
art. 5 e 6), receberam os símbolos da fé cristã? E a história antiga e
moderna não ensina que eles transgrediram o preceito da adoração de um
só Deus, entregando-se à idolatria e à demonolatria, sacrificando no altar
dos ídolos, venerando os demônios, invocando-os, exigindo-lhes
respostas e obtendo-as21, dando seguidamente aos cristãos o exemplo
mais sinistro? Por causa de todos estes crimes, os judeus não poderão
escapar ao julgamento do bispo e do inquisidor, nem a seus justos
castigos.
Mas dirão que isto não diz respeito aos infiéis propriamente ditos e
que a questão sobre os crimes decorrentes da mais absoluta infidelidade é
inteiramente da jurisdição papal (portanto, da Inquisição)? Achamos que
o Papa, vigário de Jesus Cristo, não tem poder apenas sobre os cristãos,
mas também sobre todos os infiéis. O poder universal de Cristo é
reafirmado claramente no salmo 71 (“Ó Deus, concede ao Rei tua
equidade, ao filho do Rei, tua justiça”). Cristo não teria sido um bom
pater familias se não tivesse legado ao seu vigário na terra o seu poder
absoluto sobre os homens. Ele não deu a Pedro e a seus sucessores o
poder de ligar e desligar, e não lhe ordenou que apascentasse as ovelhas?
Ora, todos os homens, sejam fiéis ou infiéis, são ovelhas de Cristo, pelo
simples fato de terem sido criados, apesar de nem todas as ovelhas serem
do rebanho da Igreja. Resulta disto tudo, necessariamente, que o Papa, de
direito e de fato, estende o seu poder sobre todos os homens.

21 E obtendo-as. Para colocar, urgentemente, no dossiê de estética da confissão!


62
Em virtude desse poder, não vejo por que o Papa deveria se abster
de punir o gentio que se opõe às leis da natureza, porque não conhece
outra! A prova? Deus puniu os sodomitas que pecavam contra as leis da
natureza (Gn 19)! Ora, os julgamentos de Deus são exemplos para nós!
Então, por que o Papa não procederia, se tivesse os meios, como Deus
procede? Efetivamente, está de acordo com as leis naturais adorar um só
Deus criador, e não criaturas.
O Papa deve julgar também os judeus, caso se oponham às suas
próprias leis. Não se tolera a sobrevivência do rito judaico porque
constitui um argumento em favor da fé cristã? Os judeus podem,então,
abandoná-lo para abraçar o cristianismo, mas não podem, de maneira
alguma,modificá-lo, pois se assim procedessem estariam profanando um
testemunho válido da fé cristã. Assim, cabe ao Papa e aos inquisidores
julgar qualquer distorção do rito judaico, se os “prelados” judeus se
mostrarem omissos. Os judeus acusados de cometer heresia contra a
própria fé serão, então, condenados. São estas as razões que levaram os
Papas Gregório XI e Inocêncio III a mandar para a fogueira livros
judaicos que continham várias heresias e erros contra o judaísmo e a
castigar quem as divulgasse e ensinasse.
O poder do Papa sobre os cristãos é indiscutível. Ele pode punir
quando houver infração às leis do Evangelho. Pode adiar a aplicação das
penas justas e merecidas, seja porque não tenha a possibilidade física ou
jurídica de mandar aplicá-las, seja porque sua aplicação implica um risco
ou se preste a escândalo: no entanto, o seu poder jurídico continua
intacto. E que ninguém venha nos dizer que não devemos julgar o que
nos é estranho, ou que não podemos obrigar os infiéis a crer, nem através
de processos nem através das excomunhões, porque só Deus chama por
sua graça exclusivamente: quem pretende tirar desta maneira nossos
poderes jurídicos, se engana. Tomás de Aquino não afirma que, se a
Igreja n ão pode aplicar penas espirituais aos infiéis, pode aplicar-lhes
penas temporais? Ele não diz que cabe à Igreja, se ela achar válido, isolar
os infiéis, proibindo-os de qualquer contato com os cristãos? Tomás
afirma ainda (2.2, q . 10, a. 8): “Existem infiéis que nunca receberam o
dom da fé, como os pagãos e os judeus. Estes não devem, de maneira
alguma, ser obrigados a tornarem-se cristãos: devem decidir de acordo
com a sua vontade. Mas devem ser afastados da Igreja — se houver a
possibilidade de isolá-los — para que não sirvam de obstáculo à fé com
suas blasfêmias, falsos argumentos, e até com verdadeiras perseguições.
Por isso os seguidores de Cristo frequentemente vão à guerra contra os

63
infiéis; não fazem isso para obrigá-los a crer (pois, mesmo vencidos e
prisioneiros, conservariam sua liberdade de crer ou não crer), mas para
que não sirvam de obstáculo à verdadeira fé.”
Mas há um outro tipo de infiel: os que já receberam o dom da
fé,beneficiaram-se com isso(como os hereges e os apóstatas). Quanto a
estes, a Igreja deve puni-los fisicamente e obrigá-los a manter“o que
prometeram e conservar o dom que receberam”.
Muitos inimigos da verdade atacam-na de diversas maneiras,
tentando provar, por exemplo, que cabe aos senhores temporais, e não
aos prelados e inquisidores, julgar e condenar judeus, muçulmanos e
outros delinquentes em matéria de fé. Estes inimigos da verdade alegam,
para se beneficiar,dois tipos de argumentos: canônicos e do Direito Civil.
Os argumentos tirados do Direito Canônico são refutados por argumentos
canônicos. Quanto aos argumentos jurídicos ou do Direito Civil, alegados
por quem pretende esvaziar a Inquisição de seus poderes,aqui vão eles:

a) Referem-se, em primeiro lugar, ao Direito Romano,segundo o qual, os


judeus devem ser julgados de acordo com o Direito Romano comum, o
que significa dizer que não seriam necessários tribunais de exceção
reservados para a sua seita.

Deve-se responder a este argumento que isso não constitui, de forma


nenhuma, uma gentileza do Direito Romano aos judeus: este dispositivo
significa apenas que o Direito Romano ignorava o Sinédrio e que
pretendia tirar os judeus da jurisdição do seu próprio tribunal.

b) O poder civil proíbe os judeus de pôr em evidência suas próprias festas


rituais, seja através de evocações injuriosas aos mistérios da fé cristã, seja
através de disfarces sacrílegos. Cabe, portanto, ao poder civil investigar
essas práticas e reprimi-las.

Sem dúvida! Mas cabe ao inquisidor, e não ao poder civil, afastar os


infiéis da comunidade cristã, persegui-los e julgá-los previamente.

c) Ressalta-se que este ou aquele príncipe condena judeus à morte:


portanto, isso não é uma tarefa da Igreja, mas do poder civil.

O fato de serem condenados à morte pelos príncipes não exclui a


Igreja de fazer o mesmo, se achar válido, depois do processo. Por outro
lado,a Igreja deve intervir para condenar onde, justamente, reis e
príncipes tenham a audácia de proteger os judeus. Sem a Igreja, sob o
pretexto de que cabe ao poder civil condenar, esses hereges seriam, na

64
verdade, protegidos.

d) Os especialistas em Direito Civil lembram o princípio de que


“ninguém deve provocar tumulto nas províncias sob o pretexto de fazer
investigações sobre heresia: cabe, portanto, ao governo se ocupar disto”.
E concluem: se os judeus atacam a religião, é problema dos judeus e do
poder civil, ninguém deve se envolver.

Este argumento não significa nada. Entende-se, por este princípio do


Direito Civil, que o inquisidor não deve se envolver com as questões
civis durante as investigações (que são, efetivamente, da competência do
poder civil); ele não quer dizer que cabe ao poder civil definir quando e
como o inquisidor deve instaurar processos. É possível que este princípio
seja interpretado no sentido mencionado anteriormente, em uma ou outra
região: mas as leis daí decorrentes devem ser consideradas como
obstáculos ao exercício da Inquisição, e, consequentemente, devem ser
anuladas.

e) Finalmente, os especialistas em Direito Civil dizem que, a rigor, cabe


ao poder civil e ao bispo, juntos, e não ao inquisidor, julgar o delito
canônico. Se é cometido por judeus ou por cristãos, continua a ser um
delito: a questão é, portanto, da competência do poder civil também, e
não exclusivamente do bispo.

Voltemos aos textos conciliares e pontifícios: cabe aos bispos e


inquisidores, juntos, convocar, julgar e condenar. E aos civis, executar as
sentenças da Inquisição, principalmente, quando a punição implica
derramamento de sangue.
Não existe nada pior do que este tipo de argumento. Vejam, por
exemplo, o que aconteceu, durante o pontificado de Urbano V, com o
autor deste Manual.
Ele e o bispo de Barcelona tiveram que enfrentar os inimigos da
verdade. O bispo e o inquisidor mantinham preso um judeu de Barcelona
chamado Astruch de Biena. Este judeu tinha sido acusado — e confessara
— de demonolatria: invocava o diabo, rendia-lhe um culto, exigia-lhe
respostas e as obtinha.22 O judeu afirmava que não reconhecia a
autoridade do bispo e do inquisidor, só a do poder civil. Foi preso e
colocado sob a guarda do bispo de Lérida. O caso foi levado à Cúria
romana, ao Papa Gregório XI. As duas partes foram ouvidas, e o Papa

22 Ainda! cf.p. 62, nota 21.


65
ordenou aos dois cardeais que comunicassem ao bispo de Lérida para
entregar, num prazo determinado, o judeu Astruch ao bispo e ao
inquisidor de Barcelona. Os cardeais desincumbiram-se da missão e
mandaram o bispo de Lérida entregar, em dezesseis dias, o judeu ao
bispo e ao inquisidor de Barcelona. Depois de colocarem as mãos no
judeu, estes obrigaram-no a abjurar publicamente no dia de Ano-Novo
(festa da circuncisão do Senhor), na catedral de Barcelona, e, após a
abjuração, condenaram-no à prisão perpétua.

XVI. Foi em 1230 que Gregório IX mandou queimar o Talmude, depois


de saber que esse livro estava cheio de afirmações heréticas e ultrajantes
aos olhos da religião cristã. A sentença do pontificado foi executada pela
chancelaria da Universidade de Paris. Inocêncio IV, sucessor de Gregório
IX, confirmou a sentença e estendeu-a a todos os livros com estilo e
conteúdo semelhantes ao Talmude. O livro está incluído, em muitos
lugares, no Índice dos livros proibidos.

20. Excomungados pertinazes, que


ficam um ano sob excomunhão

Precisamos, agora, examinar a seguinte questão: deve-se considerar como


herege ou suspeito de heresia — e neste caso, levá-lo ante o Tribunal da
Inquisição — quem ficou excomungado durante um ano?
Lembremos, em primeiro lugar, que a sentença de excomunhão é
uma pena espiritual que a Igreja aplica como punição ao pecado mortal
da contumácia e da desobediência ao Direito e ao juiz. Pode haver
contumácia em matéria de fé ou em outra questão qualquer, e,
consequentemente, expulsão da Igreja por contumácia em matéria de fé
ou em qualquer outra matéria. Existe contumácia contra a fé nos três
casos abaixo:

a) Citado para comparecer a fim de dar o testemunho de sua própria fé,


alguém não comparece. Não será excomungado de pleno direito, mas por
decisão do juiz.

b) Quem, direta ou indiretamente, colocou obstáculos ao trabalho da

66
Inquisição ou contribuiu para criar-lhe dificuldades, é atingido de pleno
direito pelo aguilhão da excomunhão.

c)Também é expulso de pleno direito quem acredita, favorece ou defende


os hereges.

Nos três casos, essas pessoas são julgadas como hereges se passam
um ano inteiro sob a pena de expulsão. Quem favorece, obedece ou
acolhe hereges talvez não seja ele próprio um herege; mas foi citado e,
por medo, não compareceu. Talvez tenha dificultado o trabalho da
Inquisição ou protegido os hereges por amor ao dinheiro? Apesar disto,
será julgado como herege. E com razão: quem fica durante um ano inteiro
sob o peso da excomunhão pode não ser realmente herege, mas a Igreja,
que julga o foro externo, pode com legitimidade considerá-lo herege.
Vejamos, agora, como se condenam os hereges, para vermos, a
seguir, como se devem condenar as pessoas excomungadas.
O herege abjura seus erros e aceita expiá-los de acordo com a
decisão do bispo e do inquisidor; ou não abjura. Se abjura, é condenado à
prisão perpétua, e esta será a sua expiação. Se não abjura, é entregue
como impenitente ao braço secular para ser executado. A mesma coisa
para quem foi excomungado há um ano, independentemente do motivo
que o levou à excomunhão:se se retrata,fica livre da excomunhão e é
condenado à prisão perpétua; em caso de não se retratar, é entregue ao
braco secular para ser castigado até a morte como herege.
Nos demais casos, há excomunhão por contumácia, mas por uma
outra razão diferente da fé.
É o caso de alguém que foi citado a comparecer e responder por
alguns artigos, que não são de fé católica, e não comparece; ou de alguém
que não devolve isto ou aquilo a uma determinada pessoa, num espaço de
tempo preestabelecido, e de outros mais. Há numerosos casos que
merecem a excomunhão, ao arbítrio do juiz, ou de pleno direito (como
por exemplo, quando se levanta a mão para um representante do clero).
Quem ficou durante um ano sob excomunhão desse tipo, não será julgado
como herege, mas como suspeito de heresia. Todos os autores estão de
acordo que todas as pessoas excomungadas devem ser citadas pelo
Tribunal da Inquisição, depois de um ano inteiro nesta situação.
E como proceder contra eles? Na falta de uma legislação
específica, o autor deste Manual convocou, juntamente com o bispo de
Gerona em 1368, um conselho formal de juristas e especialistas em

67
religião. Este conselho teve o seguinte procedimento, que foi incluído nos
autos da Cúria gerondina.
A pessoa que foi excomungada há um ano ou mais é considerada
suspeita de heresia por contumácia. O suspeito deverá ser intimado a dar
um testemunho de fé, para que se possa avaliar se caminha na luz ou se
se perdeu nas trevas. O bispo, o inquisidor, ou seus representantes, é que
se encarregam de intimá-lo, expedindo uma ordem para que se apresente
num espaço de tempo determinado; ultrapassado esse prazo, se não se
apresentar, é excomungado. Se não comparecer, o seu caso se complica, e
a suspeita de heresia torna-se, então, séria. Depois de um ano da
intimação, se o suspeito não se apresenta, será condenado como herege,
porque a suspeita tornou-se, a essa altura, violenta23. Se retorna para a
Igreja disposto a fazer expiação, será perdoado e condenado à prisão
perpétua, como herege penitente. Se for impenitente, será considerado
como tal, e entregue ao braço secular para receber a pena capital. Se
comparece durante aquele ano, deve retratar-se como suspeito grave de
heresia. Depois, será interrogado sobre os artigos da fé ou sobre assuntos
que o fizeram ser citado e intimado da primeira vez. Responderá como
católico ou não. Em caso afirmativo, alguém lhe dirá: “Meu querido
filho, falas como um bom católico porque queres acreditar no que a Igreja
determina. Mas te contradizes na prática, porque resistes por contumácia.
Queremos enxergar claramente a tua fé. Queremos saber se caminhas na
luz ou nas trevas: por isso te citamos.” Depois, terá um prazo de três ou
quatro meses — de acordo com a condição e a posição social do suspeito
— para provar, na prática, se está seguro de sua fé católica. Será intimado
novamente, no fim desse prazo, e, conforme se apresente ou continue
contumaz, responda abjurando ou não, será perdoado; condenado a uma
pena provisória; preso para o resto da vida como herege arrependido; ou
entregue ao braço secular para ir para a fogueira.

23 Em Direito Inquisitorial, a distinção dos três tipos de suspeita (fraca, forte ou veemente e violenta)
é da maior importância. Constitui o eixo em torno do qual se organizam, no final do Manual, as
diferentes formas de sentença. Além disso, deve-se destacar que, por causa da intervenção dos
decretos de excomunhão, as suspeitas se agravam e o menor delito pode engendrar, no final do
processo, o maior nível de suspeita, e, consequentemente, legitimar a prisão perpétua ou a entrega
ao braço secular. Cf infra, p. 56, sob o título “Os suspeitos de heresia”.
68
21. Os cismáticos

Os cismáticos, sendo hereges, estão sob a jurisdição do inquisidor. No


entanto, deve-se estabelecer uma distinção entre cisma e heresia. Cisma
supõe divisão, e heresia, erro. Chamam-se cismáticos aqueles que se
separaram da Igreja. Quem está afastado da Igreja apenas por
desobediência não é propriamente herege, e não deve ser visto como tal,
se não aderiu racional e voluntariamente ao erro de que essa
desobediência se reveste, e, além do mais, se parece que não se afastou
da Igreja nos artigos de fé, na doutrina dos sacramentos e na da
autoridade, e se se recusou a obedecer à Igreja apenas por maldade,
orgulho, avareza etc. Entretanto, se este tipo de gente não é herege,
demonstra uma perigosa inclinação para a heresia: se já está afastado da
Igreja na obediência, não está longe de se afastar dela também na crença.
Outras pessoas se afastam da Igreja tanto na obediência quanto na
crença. É o caso, por exemplo, de quem se recusa a acreditar que o
Espírito Santo vem do Pai e do Filho24. Tais pessoas devem ser
consideradas hereges, porque estão enganadas naquilo em que devem
crer. Portanto, serão tratadas como hereges.

XVI. Torquemada e Palacio Rubio tratam exaustivamente da questão do


cisma. Peço que dêem uma especial atenção ao caso de um prebendado
da Igreja que caiu no cisma e depois voltou ao seio da Igreja: terá ele de
volta a prebenda? Claro que não: a Igreja pode perdoar-lhe, mas não
chegar ao ponto de sustentá-lo.

22.Os apóstatas

Faremos uma distinção de três tipos de apostasia, antes de determinar


quando o apóstata deve ser considerado e julgado como herege pelo
Tribunal da Inquisição:

24 Os fiéis da Igreja ortodoxa.


69
a) o clérigo que se laiciza;
b) o monge que abandona o convento;
c) o cristão que nega uma verdade de fé.

Nos dois primeiros casos, não existe, propriamente, oposição à fé, e,


consequentemente, é impossível o inquisidor interferir. No entanto, estes
dois tipos de apostasia serão, logicamente, objeto de uma sentença de
excomunhão: quem se laiciza ou deixa o convento, se tiver a audácia de
ficar um ano inteiro sob efeito da excomunhão, será, logicamente,
também considerado suspeito de heresia, e, em vista disto, se verá na
obrigação de enfrentar o julgamento do bispo e do inquisidor, que
poderão trabalhar em separado ou em conjunto.
Quanto ao terceiro caso, é evidente que este tipo de apostasia
elimina totalmente a pessoa da Igreja e, também, da fé católica.
Esse tipo de apóstata deve ser tratado como herege e infiel, e, como
tal, deve ser processado.
Se for impenitente, deverá ser entregue ao braço secular. Se se
arrepender, há de abjurar e será considerado como um herege penitente.
Quem caiu na apostasia por medo de morrer, mas no íntimo
permaneceu fiel, não é propriamente herege. Mas a Igreja tem que julgar
o foro externo, considerando-os, portanto, hereges. Como tais, têm que
ser julgados, e, se abjurarem, serão perdoados e condenados à prisão
perpétua, como hereges penitentes. O medo que tiveram da morte não foi
acaso maior do que a inimizade constante da fé de Cristo? Não é melhor
morrer do que ser apóstata, “morrer de fome do que se alimentar de
idolatria”, como disse Santo Agostinho?

XVI. Nos dois primeiros casos de apostasia, a suspeita de heresia é muito


forte, se quem se laicizou ou deixou o convento se envolveu com mulher:
neste caso, existe heresia de fato, porque há uma oposição formal quanto
ao conteúdo da doutrina dos sacramentos. Deve, então, o inquisidor
interferir e castigar, não necessitando aguardar que se passe um ano após
a data da promulgação do decreto de excomunhão.
Segundo a opinião do próprio Santo Tomás (2.2, q. 12, art. 1), existe
uma diferença de grau entre a apostasia e a infidelidade.
Finalmente, a propósito da prisão perpétua — neste caso, a
apostasia foi consequência do medo de morrer —, a autoridade pontifícia
já tinha previsto a penitência perpétua. Parece que foi mais indicado
transformar esta punição em prisão perpétua, e não pensar em pena de

70
morte, pois, como diz o Senhor, “Não queremos que o pecador morra,
mas que se converta” (Ez 18).

23.Os seguidores de hereges

Não vamos classificar todos os seguidores de hereges sob o título de


“hereges”. Em primeiro lugar, é preciso fazer uma distinção entre quem
acredita nos erros deles e os outros.
Quem acredita nos erros e nas heresias deles são excomungados e
vistos como hereges. Não é preciso nem esperar a confissão. Na maioria
dos casos, deduz-se, perfeitamente, seja pelas palavras, seja pelo
comportamento deles, que caíram em heresia.
Mas há também quem diga espontaneamente que acredita nos erros
de um determinado herege, defendendo suas heresias e prestando-lhe
solidariedade: a prática confirma as suas palavras, na medida em que se
comportam na frente do herege como se o adorassem. Reverenciam-no.
Recebem do herege “consolamento” — para utilizar um termo deles —
ou a comunhão, e outras coisas mais, de acordo com seus ritos. Ouvem
seus sermões.
Há outro tipo de seguidores de quem não se pode afirmar,com toda
a certeza,se aderiram às crenças dos hereges, mas estamos certos de que
não é à toa que seguem suas ideias, ordens e obras. São pessoas
vacilantes no seu compromisso; ouvem os sermões dos hereges; entregam
a correspondência; ajudam-nos; recebem livros deles — e cuidam de não
lançá-los no fogo — ; dão-lhes esmolas; fazem-lhes visitas. Ações essas
que não têm relação direta com os ritos heréticos...Estes não serão
considerados como verdadeiros “seguidores” dos hereges, nem serão
tratados como hereges. No entanto, é preciso estar muito atento à
importância das provas e, de acordo com elas, serão tratados como
fracamente suspeitos de heresia ou gravemente, e deve-se exigir deles
expiação ou abjuração,conforme o caso.
O procedimento a ser adotado já é conhecido. Em caso de suspeita
grave acompanhada de contumácia, aplica-se o mesmo procedimento
reservado aos excomungados contumazes, chegando-se à prisão perpétua,
se se obtiver a abjuração, e à pena capital, em caso contrário.
71
XVI. É legítimo torturar esses suspeitos para fazê-los confessar e, depois,
abjurar.

24. Quem dá asilo, hospeda e


acolhe os hereges

Façamos uma distinção entre os que acolheram hereges uma ou duas


vezes e os que os acolhem habitualmente.
Os primeiros podem estar inocentes. Podem não saber com quem
estão lidando. Mas também podem estar perfeitamente informados, e,
neste caso, são culpados. Culpados, desde que conheçam as heresias de
seus hóspedes. Culpados, porque sabem que a Igreja persegue seus
hóspedes; culpados, porque lhes dão acolhida justamente para que não
caiam nas mãos da Igreja.
Estes “hospedeiros” serão excomungados. São hereges, se
acreditam no que seus hóspedes acreditam. Eles diriam que são fiéis?
Pode-se contra-argumentar que, nesse caso, estavam perfeitamente
informados como proceder quanto a seus hóspedes.
Em caso contrário, se a acolhida é costumeira etc.,serão suspeitos de
heresia e deverão ser processados: terão que abjurar ou, então, concordar
com a punição.

XVI. Os hóspedes dos hereges, se estão excomungados há um ano, serão


exilados para sempre, tendo os seus bens confiscados.
Os inquisidores não chegaram a um acordo sobre o que fazer com
os parentes próximos dos “hospedeiros”. Deve-se bani-los também? Não
existe uma legislação clara a respeito. Se os “hospedeiros” são judeus, ou
outro tipo de infiel, serão processados sem maiores investigações e
condenados às penas previstas habitualmente: prisão perpétua, entrega ao
braço secular, confisco dos bens.

72
25. Os protetores de hereges

O que fazer com os protetores de hereges? Será que eles também são
hereges?
Vamos fazer uma distinção entre dois tipos de hereges:

a) primeiro, existem os que protegem o erro dos hereges: estes são bem
mais culpados que os simples “seguidores” de hereges, merecendo, a bem
da verdade, ser tratados como heresiarcas;
b) há aqueles que não protegem os erros (as heresias), mas as pessoas.
Por exemplo, quem despende energia e fortunas para que um
determinado herege não caia nas mãos do inquisidor. Este será
excomungado. Quem não for herege, mas forte ou fracamente suspeito da
heresia para a qual dá proteção aos adeptos, será obrigado a abjurar.

XVI. A lei da Inquisição prevê a demolição total da casa que tenha


servido de abrigo a hereges, o exílio do proprietário e, ainda, a interdição
de reconstruir e o confisco dos bens. É preciso entender que a ideia de
proteger hereges se aplica a casos bastante diferentes.
Pode-se defender os hereges com ou sem armas. Avisar o herege
gritando ou assobiando para que fuja quando está sendo procurado, isto é
defendê-lo. Pode-se defendê-lo durante e fora do julgamento. Em suma,
quem se opõe, de qualquer maneira, ao exercício da Santíssima
Inquisição deve ser considerado, de pleno direito, como um defensor de
hereges. Também será considerado como tal quem, estando inocente,
desvia as investigações para si, a fim de facilitar a fuga ou a liberdade de
um herege.

26. Os benfeitores dos hereges

Os benfeitores dos hereges (senhores, governantes, magistrados)


podem selo através de suas ações ou pela sua omissão.

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Por omissão: não se curvando às ordens baixadas pelos bispos e
inquisidores para prender os hereges, e, quem seja adepto ou lhes dê
acolhida, negligenciando em mantê-los presos, não os conduzindo ao
local indicado pela autoridade inquisitorial etc.
Pelas suas ações: soltando os presos sem ordem expressa do bispo
ou do inquisidor, impedindo direta ou indiretamente a instauração do
processo ou a execução da sentença.
Quem procede assim é excomungado ipso facto e suspeito de
heresia. Depois de um ano, se continuar a insistir, será “processado” e
condenado como herege.
Quanto ao indivíduo particular, não se aplica o termo benfeitor da
heresia a quem não prende os hereges ou não os coloca sob a guarda das
autoridades, pois o particular não é obrigado a isso. O termo aplica-se,
em contrapartida, a quem se arrisca, por sua própria vontade, a soltar os
prisioneiros da Inquisição ou facilitar sua fuga; a quem ajuda os fugitivos
para que não sejam presos de novo, ou a quem dificulta sua captura; a
quem ousa colocar dificuldades, de uma maneira ou de outra, ao bom
andamento de um processo, e na execução de uma sentença. Todos serão
excomungados de pleno direito. Podem pegar penas bem pesadas,
chegando a serem entregues ao poder civil.

XVI. O inquisidor deve cercar-se de mil precauções antes de punir um


magistrado benfeitor de hereges. Efetivamente, o magistrado bem poderia
jogar o povo contra o inquisidor. Se tiver que passar por esse tipo de
problema, é melhor submetê-lo ao Papa para que ele decida.
Quanto à denúncia e à prisão de hereges, qualquer pessoa, particular
ou não, é obrigada a denunciá-los, sob pena de excomunhão. No entanto,
se você é a única que sabe que seu marido come carne às sextas-feiras, e
é a única que sabe que ele vai lhe bater se o denunciar à Inquisição, e se
você não o denuncia, não vou considerá-la como “benfeitora”. Mas isso
não muda em nada o ódio que nós, os inquisidores, sentimos dos hereges.
Com este caso, quisemos, simplesmente, mostrar que é necessário
ponderar as razões que levam à omissão de uma obrigatoriedade geral,
que é denunciar o herege, seja quem for. Além disso, fica fácil pegar os
benfeitores dos hereges com a ajuda das seguintes indicações:

1. Quem visita frequentemente o herege na prisão, fica cochichando


com ele, e lhe leva comida, é suspeito de ser seu benfeitor ou
discípulo;
2. Quem se lamenta muito pela captura ou morte de um herege deve
74
ter sido seu amigo ou é alguém bem próximo a ele: a quem o
“chorão” vai convencer de que ignorava os segredos do morto?
3. Quem declara que um determinado herege foi condenado
injustamente, já que foi acusado de heresia e confessou, demonstra
que apoia a seita do condenado e desaprova a Igreja que a
condena;
4. Quem faz cara feia para os perseguidores de hereges ou para quem
prega contra eles com sucesso é um deles. Do contrário, não teria
tanto azedume no coração — e, consequentemente, no rosto — ao
entrar em contato com quem odeia o que ele ama;
5. Quem for surpreendido roubando os ossos queimados dos hereges
para transformá-los em relíquias, indiscutivelmente venera-os
como se fossem santos. Somente hereges veneram outros hereges
como santos.

27. Quem se opõe à Inquisição

Quem se opõe diretamente ao exercício da Inquisição?


Quem ousa libertar os prisioneiros da Inquisição, por conta própria,
quem rasga as sentenças ou agride as testemunhas, o poder civil, quem se
investe como o único juiz em matéria de heresia e que,
consequentemente, tem a pretensão de ser o único habilitado a ouvir
acusações e “instaurar processo” na matéria; finalmente, quem colabora,
ajuda ou facilita, de alguma maneira, tais iniciativas e atitudes.
Todos, ainda que extremamente culpados, não poderiam ser
considerados, de imediato, como hereges (exceto se aparecessem em
outro lugar como tais); no entanto, são atingidos de pleno direito pelo
dardo da excomunhão. Transcorrido um ano da pena, serão então, ipso
facto, julgados como hereges.
Quem se opõe, indiretamente, ao exercício da Inquisição?
Quem proíbe o porte de arma a qualquer pessoa que não seja do
poder civil, pois estará proibindo, implicitamente, os inquisidores e
seus colaboradores de andarem armados. E quem estabelece que
somente o poder civil pode efetuar prisões.

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Estes são menos culpados que os outros. Entretanto, deve-se
excomungá-los, assim como a quem colabora com esse tipo de restrições
ou as apoia. Decorrido um ano da excomunhão, devem ser julgados como
os outros.
Então, tanto uns quanto outros se desejarem se retratar, terão que
abjurar seus erros como hereges e, tal como os demais, serão
naturalmente perdoados. Do contrário, serão entregues, como
impenitentes, ao braco secular.
Ficando ou não excomungados durante um ano inteiro, todos,
entretanto, serão julgados como benfeitores de hereges, em vista dos
privilégios atribuídos nesta matéria, aos inquisidores, pelo Papa Clemente
IV.

XVI. Além das formas de opor-se à Inquisição enumeradas aqui por


Eymerich, devem-se incluir nesta categoria aqueles que proferem
ameaças contra a instituição.
O que deve ser feito, quando se depara com alguém que se opõe,
de fato, ao exercício da Inquisição, mas que afirma não estar ligado a
nenhuma forma específica de heresia? Neste caso, o inquisidor deve
assumir a obrigação de descobrir, até com a ajuda da tortura, se preciso
for, se há realmente cumplicidade entre o opositor e o herege (ou a
heresia); pedirá ao suspeito uma abjuração completa de todas as suas
heresias, solicitando, a seguir, se se revelar necessário para a elucidação
do caso, a abjuração específica das heresias professadas por todos aqueles
que protegeu para se opor ao exercício da Inquisição.
Nos tempos atuais, Suas Santidades Pio V e Júlio III decretaram
penas bastante rigorosas contra os oponentes e juízes civis que ousem
legislar em matéria de heresia. A Constituição de Sua Santidade Júlio III,
Licet a diversis, excomunga qualquer pessoa, pública ou particular, que
ouse legislar em matéria de heresia, sem ter primeiro a autorização dos
inquisidores. E Sua Santidade Pio V, na Constituição Si de protegendis,
prevê para qualquer pessoa que se opuser de qualquer forma à pessoa do
inquisidor, ou aos seus bens, à Inquisição enquanto instituição, e à
execução das suas sentenças, as seguintes penas: perda de todos os bens,
cargos e honrarias, por crime de lesa-majestade; destituição — se o
culpado for um sacerdote — e entrega ao braço lar. O texto pontifício
prevê, ainda, que todo aquele que interceder em favor de um oponente
será considerado um protetor de heresias e condenado às mesmas penas.

76
28. Os suspeitos de heresia

O que se deve entender por “suspeito de heresia”?


Existem três tipos de suspeita: fraca, forte ou veemente, grave ou
violenta.
A fraca suspeita é aquela que pode ser derrubada com argumentos
fáceis, durante a defesa, ou quando se basear em hipóteses destituídas de
fundamento. Por exemplo, é apenas fracamente suspeito de heresia quem
se reunir escondido ou tiver um comportamento diferente das demais
pessoas. É considerado suspeito, porque são os hereges que agem
habitualmente assim.
Fala-se em forte suspeita quando só se chegar a alguma conclusão
através de uma boa defesa ou quando se tomarem como base indícios,
argumentos ou hipóteses sólidas. Por exemplo, é fortemente suspeito
quem esconder hereges ou frequentar a casa deles etc. É indiscutível que
quem age assim facilita a perversidade herética.
Fala-se em suspeita grave ou violenta, quando esta se basear em
hipóteses sérias e convincentes. Por exemplo, é gravemente suspeito
quem dedicar culto aos hereges, prestar-lhes reverência, pedir-lhes o
“consolamento” ou a comunhão e praticar atos semelhantes aos ritos dos
hereges.
Como agir em relação a esses suspeitos?
Quem for fracamente suspeito não é herege, nem deve ser
considerado como tal. No entanto, paga as punições canônicas e é
obrigado a abjurar. Por causa da Bula Excommunicamus, esse tipo de
suspeito é atingido pelo anátema (entretanto, deve-se considerar, antes de
decidir sobre a aplicação da pena, a posição social do suspeito e se já
cumpriu alguma expiação); enquanto for anátema e não cumprir
plenamente a expiação, será isolado dos demais cidadãos. Depois de um
ano de excomunhão, é condenado como herege. Exigir-se-á a abjuração
tanto do que é fracamente suspeito quanto do fortemente suspeito. Se,
depois de abjurar, o fracamente suspeito reincide, seu perjúrio será
levado em conta, mas sem considerá-lo relapso, caso não venha a recair
numa suspeita mais grave.
O fortemente suspeito não deve ser considerado herege. Mas como
agir em relação a ele? Deve-se exigir que abjure todas as suas heresias,
principalmente aquelas em que aparece como forte suspeito. Assim, se

77
reincidir nessas heresias ou em outras (como voltar a procurar hereges,
visitá-los etc., sem chegar, a, necessariamente, venerá-los), não vai poder
fugir das penas previstas para os relapsos. Depois dessa abjuração geral,
o suspeito será considerado relapso, se recair numa heresia de que jamais
tenha sido suspeito ou acusado; e se, novamente, prestar ajuda a hereges
ou lhes der acolhida. Estes três grandes tipos de suspeita desdobram-se
em muitos outros.
O fortemente suspeito que não quiser abjurar diante do juiz da
Inquisição, será entregue ao braço secular, que, por sua vez, o enviará à
fogueira.
Por fim, o violentamente suspeito: deverá ser considerado herege,
passando pelas mesmas punições dos demais. O violentamente suspeito
confessa o crime ou não. Se confessar e abjurar, terá sua vida poupada,
sendo perdoado, mas condenado. Do contrário, será entregue ao braco
secular. Se, convicto do crime que cometeu, não quiser abjurar, será
entregue ao braço secular como herege impenitente. A suspeita grave por
si só é o bastante para condenar, não se admitindo nenhum tipo de defesa
nesse caso.

XVI. Esse capítulo e o próximo são fundamentais. A tal ponto, que o


inquisidor que ignorasse o seu conteúdo estaria ignorando tudo a respeito
do seu próprio papel de investigador (inquisitor) e juiz.
Uma observação: ainda que Eymerich esteja correto sobre os
fundamentos e os resultados dos processos de suspeita grave, admite-se,
formalmente, a presença da defesa.

29. Os dez casos de forte ou


veemente suspeita

O Direito fala expressamente em dez casos de forte ou veemente


suspeita. São eles:

1. Quem, chamado a comparecer para responder sobre questões de


fé, recusa-se a se apresentar e permanece contumaz durante todo o

78
período que lhe foi determinado para comparecer, será
considerado como fortemente suspeito.
2. Quem impede, direta ou indiretamente, de uma maneira ou de
outra, o exercício da Inquisição, será fortemente suspeito.
Efetivamente, o culpado do delito será, por todas estas razões,
excomungado da Igreja e, se continuar contumaz por um ano, de
fortemente suspeito acabará se tornando violentamente suspeito,
sendo condenado como herege. Deve-se observar, entretanto, que
só se pode falar em suspeita violenta, quando se puder
fundamentar, com legitimidade, uma forte suspeita. Portanto, o
culpado do delito em questão será considerado fortemente suspeito
enquanto não tiver decorrido um ano inteiro da excomunhão.
3. Ajudar, aconselhar, facilitar voluntariamente quem, direta ou
indiretamente, atrapalha o exercício da Inquisição, constitui uma
forte suspeita de heresia. Efetivamente, este tipo de atitude é
passível de excomunhão da Igreja, e por isso a situação de quem é
atingido por ela não é nada diferente do caso examinado
anteriormente.
4. Quem ensinar a mentir e a usar evasivas a um herege ou
simpatizante chamado a comparecer diante do inquisidor, é um
forte suspeito de heresia.
5. Qualquer pessoa que tiver sido excomungada da Igreja causa fidei
durante um ano inteiro é uma forte suspeita de heresia,
independentemente da natureza particular do delito: se atrapalhou
o exercício da Inquisição ou se, citado a comparecer, continuou
contumaz; se ensinou a mentir ou dissimular a verdade a uma
pessoa intimada a comparecer; se mandou soltar os prisioneiros da
Inquisição; se fez oposição ao que é útil à fé ou se favoreceu os
hereges defendendo-os e escondendo-os etc. Este tipo de pessoa
será ipso iure condenado como um forte suspeito de heresia. Isso
tudo é resultante, evidentemente, dos casos examinados nos
parágrafos anteriores. No entanto, vamos ainda acrescentar dois
outros argumentos:
a. Em matéria de fé, só existe excomunhão quando existe
contumácia. Ora, a contumácia em matéria de fé fundamenta,
por si mesma, uma forte suspeita de heresia. Portanto:
b. A suspeita violenta nasce da suspeita forte ou veemente e a
supõe, assim como o superlativo supõe o comparativo. Se
quem for excomungado por um crime que não diga respeito
diretamente à fé, e tiver ficado nessa situação durante um ano,
79
poderá ser citado pelo inquisidor para responder por causa de
uma fraca suspeita, não se deveria considerar como fortemente
suspeito quem for excomungado causa fidei, por contumácia,
sem precisar esperar que fique um ano inteiro nessa situação? E
isso, porque deverá, como sabemos, ser considerado como
herege ao final de um ano da excomunhão.
6. Quem favorecer ou der acolhida a hereges é um forte suspeito de
heresia, de acordo com o que foi estabelecido anteriormente.
7. Quem for tido como herege por causa de sua intimidade com os
hereges reconhecidos é um forte suspeito. Vamos citar um caso
que foi decidido nos tribunais. Um decano que andava sempre com
hereges conhecidos recebeu as seguintes punições canônicas: para
pagar por esta intimidade, teve que abjurar publicamente; e, para
se redimir do escândalo, perdeu todos os privilégios.
8. Quem recebe hereges — sabendo quem são eles —, acompanha-
os, visita-os, faz amizade com eles, doa-lhes os bens ou aceita seus
donativos, é um forte suspeito de heresia, porque não poderá ter a
pretensão de criticar os seus erros. É verdade: quem recai numa
heresia de que já fora considerado um forte suspeito e abjurou é
relapso. Se, neste caso, se fala em "recaída”, é legítimo falar de
forte suspeita de “queda”, antes da abjuração.
9. Quem, durante o processo, se contradiz, nega o que afirmou antes,
presta falso testemunho, é um forte suspeito de heresia. É o caso
de um certo Guilherme que confessou ter ficado tentado, além de
tentar seu irmão, a cometer heresia. Abjurou, depois, e disse que
só ele, Guilherme, era herege. O irmão, não. Então, a punição que
iria para o irmão foi reservada para Guilherme, pois, como disse
Sua Santidade, o Papa, “este tal Guilherme mentiu diante de Deus
inocentando o irmão, depois de dizer que sabia que ele era
herege”.
10. O décimo caso não foi tirado do Direito comum, e sim do Direito
privado. É o seguinte: quem diz ou faz qualquer coisa contra a fé
uma única vez (semel) é fracamente suspeito de heresia; quem diz
ou faz alguma coisa contra a fé duas ou três vezes é um forte
suspeito; mais de três vezes, já é uma suspeita veementíssima. Isto
foi estabelecido no Concílio de Tarragona, que reuniu, por volta de
1230, em torno do arcebispo de Tarragona e de Raimundo de
Penhaforte, penitenciário do Papa, os bispos e inquisidores da
arquidiocese.

80
XVI. Não será possível moderar um pouco o alcance dessas normas de
suspeita veemente? De acordo com elas, todo mundo deve expulsar de
casa o irmão, o pai, o filho ou o cônjuge herético… Podem-se fazer
algumas ressalvas, mas sem deixar de levar em consideração que a
consanguinidade não pode justificar tudo. O filho que não denunciar o
próprio pai herético, dando-lhe guarida em sua casa, ou a mesma coisa,
em relação a marido e mulher etc., todos serão punidos com um pouco
menos de rigor. A menos que o irmão, o filho ou o pai do herege não
pratiquem a heresia junto com ele: neste caso, a suspeita será tão forte
tanto para quem acolhe como para quem aceita a acolhida. Além disso, a
clemência do inquisidor será proporcional à proximidade dos laços de
parentesco.
E o que fazer quando quem acolhe ou protege o herege é o amigo,
às vezes até íntimo, ou o amante? Alguns teóricos do Direito Canônico
defendem que os laços de amizade devem ser considerados como iguais
aos laços de sangue, e que, consequentemente, o amigo do herege deve-
se beneficiar de uma certa indulgência. Estes mesmos teóricos defendem
que essa clemência deve ser estendida ao amante do herege, alegando,
para fundamentar este ponto de vista, a “irracionalidade” da força do
amor. Que seja! Mas os defensores desta teoria devem examinar, então,
com o maior cuidado, o mérito dessa amizade e desse amor, pois o que
seria aceitável numa amizade íntima poderia não sê-lo em outro tipo de
amizade, e não é qualquer amor que poderia justificar um gesto de
clemência.
A lista dos dez casos de suspeita forte proposta por Eymerich é,
indiscutivelmente, bem elaborada e abrange um número infinito de casos.
No entanto, deixa muitos outros de fora, sendo que alguns devem ser
especialmente destacados. Deve-se mencionar no rol das fortes ou
veementes suspeitas: quem não denúncia os hereges; quem guarda em
casa livros proibidos; os bígamos (a bigamia não é, de fato, uma negação
da doutrina do sacramento do matrimônio?); os padres que, durante a
confissão, induzem os(as) fiéis a cometerem o pecado da carne e outros
pecados; os religiosos que, estabelecendo-se, sem permissão de seus
superiores, nas regiões do Ultramar, abandonam o dogma tanto nos
sermões quanto na prática. Deve-se ainda considerar entre os fortemente
suspeitos quem praticar atos que tenham uma relação clara com a heresia
(e este parágrafo também diz respeito, evidentemente, a quem casar com
um herege, tiver amigos hereges etc.).

81
30. Os difamados de heresia

Chamam-se difamados de heresia aqueles que a opinião pública —


principalmente as pessoas simples — considera como pregadores,
benfeitores e partidários de heresias.
Estes recebem penas canônicas. No caso da difamação, serão
consideradas não apenas as denúncias de testemunhas corajosas e
honestas, mas também as denúncias de testemunhas sórdidas e indignas
(hereges, traidores, criminosos etc.); aliás, está previsto que todos os
testemunhos serão considerados. Quer dizer, então, que se deve agir de
forma diferente, dependendo se a difamação partiu de pessoas honestas
ou de pessoas indignas e heréticas? Evidentemente que não, no que diz
respeito às penas e à condenação. Mas, então, a fama de heresia seria
mais grave que a própria heresia? Não, no que diz respeito à pena: claro
que é mais grave ser acusado de heresia do que ter a fama. E, já que se
consideram as acusações das pessoas de bem, por que dar muito crédito
aos outros? Claro. E onde estão as provas? Os textos pontifícios não
fazem nenhuma distinção entre o valor das acusações de uns e de outros,
ou se a acusação parte dos amigos do acusado, ou de seus inimigos. A
acusação vale por si mesma em qualquer situação: basta que uma pessoa
seja publicamente apontada, para receber uma pena canônica, ou ser
expulsa da Igreja, se recusá-la. Se a excomunhão durar um ano, será
condenada como herege.

XVI. Quando houver difamação, abre-se processo, em caso de se ter duas


testemunhas de acusação ou delação25. Entretanto, o inquisidor não deve
se precipitar, tendo a sabedoria de colocar no dossiê qualquer indício
capaz de provar a veracidade das delações.
É fundamentalmente importante, na época atual, considerar se a
difamação se baseia no fato de que o acusado tenha passado algum tempo
em alguma região infestada de hereges. É por isso que o Sínodo de
Salzburgo ordena que os párocos examinem atentamente a vida, os
hábitos, as convicções de quem vem de regiões heréticas, e que avisem
ao bispo se descobrirem algo de suspeito.
Deve-se ainda acrescentar que o Concílio de Toulouse proibiu a
qualquer pessoa que tenha fama de herege de ter assento entre os
25 É uma constante fundamental para se entender os estragos provocados pelo Tribunal da Inquisição.
Dois depoimentos são suficientes para condenar. Eymerich e Peña vão falar exaustivamente dessa
questão no último capítulo do Manual (questão 29 e seguintes).
82
conselheiros e magistrados ou assumir qualquer cargo público.

31. Os relapsos

Os relapsos (os que “re-caíram”: re-lapsi) são aqueles que reincidiram na


heresia ou na proteção à heresia.
Relapso em heresia é quem é flagrado em plena atuação ou cujos
atos denunciam com muita clareza sua recaída. Pode-se falar com toda
propriedade em “evidência”, se o relapso confessar o crime ou se for
regularmente denunciado.
Relapso na proteção à heresia é quem reincide nas práticas que
foram explicadas na parte dedicada aos diferentes tipos de proteção,
guarida etc. a hereges.
Devem-se destacar quatro situações distintas de reincidência na
heresia:

1. É relapso quem recair numa heresia da qual já tivesse abjurado na


primeira vez que foi preso. Exemplo: alguém que negasse que Cristo
fosse o filho da Virgem Maria seria preso e abjuraria. Depois disso,
reincidiria na mesma heresia e seria preso novamente. Tratar-se-ia de um
relapso e, como tal, deveria ser condenado.
2. É relapso quem, estando solto, fosse fortemente suspeito de qualquer
heresia ou erro, abjurasse e fosse preso, depois de ter recaído na mesma
heresia ou erro.
3. É relapso quem, depois de abjurar como suspeito de heresia, não
apenas em um artigo, mas em todos, se agarra numa heresia qualquer.
Exemplo: alguém, suspeito de heresia, é acusado de não acreditar na
Ressurreição de Cristo. Abjura deste e dos outros erros também. Tempos
depois, duvida que Cristo tenha subido aos céus: é um relapso.
4. Alguém abjura de uma heresia que todos conheciam através de um
processo anterior. Constata-se depois que já tinha abjurado como
fortemente suspeito e que já tinha recaído em heresia antes de abjurar. Se,
depois, favorecer os hereges de alguma forma e mantiver contato com
eles, tratar-se-á de um relapso.

Todos eles, solicitando ou não o perdão sacramental, serão


entregues ao braço secular, sem nenhum tipo de processo. Se não
83
demonstrarem arrependimento, serão enviados como hereges
impenitentes; se se arrependerem, não lhes serão negados os sacramentos
da confissão e da eucaristia.
Resta agora o caso dos relapsos na proteção aos hereges. Foi o
Concílio de Tarragona que falou em relapsos. Porém, os textos canônicos
não são suficientemente explícitos na gradação das responsabilidades e
punições.
Quem deve morrer, quem deve escapar com vida? Se nos
restringirmos às Bulas Ad abolendam e Excotnmunicamus, todos os
reincidentes têm que ser entregues ao braço secular sem processo
nenhum. Mas, nessas duas Bulas, a gravidade desses casos não é
detalhada. Acho, portanto, que o melhor, em caso de dúvida, é deixar a
decisão ao Papa.

XVI. De acordo com a Bula Cum quorundan hominum, do Papa


Paulo IV, datada de 1555, será considerado entregue ao braço secular —
a partir da primeira queda, quem acreditar ou ensinar qualquer uma das
heresias mencionadas na Bula, e cujo teor é o seguinte:

a. Não acreditar na verdadeira divindade de Jesus Cristo;


b. Negar que Cristo tenha sido concebido, materialmente, no ventre
da bem-aventurada sempre Virgem Maria por obra do Espírito
Santo, e defender que Ele tenha sido concebido pelo sêmen de
José;
c. Negar que Cristo tenha sofrido uma morte atroz na cruz para nos
redimir do pecado e nos reconciliar com o Pai;
d. Negar a maternidade divina da Virgem Maria ou que a Mãe de
Deus tenha sido sempre virgem: antes, durante e depois do parto.

Mais tarde, em 1558,através da Bula Cum ex apostolatus officio, o Papa


Paulo IV acrescenta a essa lista de heresias um outro caso específico: é
relapso, desde a primeira vez, qualquer magistrado, eclesiástico ou civil,
que for cismático ou herege, ou que ajudar tanto um lado como o outro.

84
85
86
A. ANTES DO PROCESSO
— AUTORIDADE DO
INQUISIDOR
l. Instruções ao inquisidor que toma
posse do cargo

Vamos examinar, primeiramente, o que deverá fazer um inquisidor


recém-nomeado pelo Papa, ou por um representante seu, para um
determinado estado ou país. O inquisidor recém-nomeado pelo Papa, ou
por alguém que responda em seu nome, seja para um estado seja para um
país, deverá proceder da seguinte maneira:

a. Em primeiro lugar, apresentar-se-á ao rei ou ao governante do


estado ou país para o qual a Santa Sé o enviou, na qualidade de
inquisidor, apresentando-lhe suas credenciais. A seguir, suplicante,
pedirá a ele que o considere seu servidor, e que, se for preciso, lhe
dê conselhos, lhe preste ajuda e o socorra. O inquisidor lembra,
ainda, que o próprio príncipe ou governante terá que fazer o
mesmo, se quiser ser considerado como um fiel e evitar várias
sanções jurídicas previstas nos textos pontifícios.
b. Depois, o inquisidor deverá solicitar salvo-condutos para si
próprio, para seu comissário, o escrivão e para a sua escolta,
pedindo que sejam enviados a todos os servidores do rei, que
deverão obedecer ao inquisidor quando este mandar prender os
hereges, seus segui- dores, quem os esconda, proteja, defenda,
quem for acusado de heresia; pede-lhes que façam tudo o que

87
estiver ao seu alcance e conforme suas funções, para eliminar a
perversidade herética e exaltar a fé católica, todas as vezes que
forem requisitados pelo inquisidor ou por seus prepostos. Além
disso, na medida do possível, o inquisidor receberá, das mãos do
governante ou rei, um documento, que, se não for literalmente
assim, o será, pelo menos, na essência:
“N., pela graça de Deus, Rei de tal Reino, a todos os seus súditos e
a cada um dos seus oficiais, saudação e estima!
Nosso querido irmão N., dominicano, inquisidor, foi
especialmente enviado para o nosso país e nossas colônias, pela
Santa Sé Apostólica, para servir a Deus e ao seu culto, exaltar a fé
católica, eliminar de nossa terra o hediondo crime da heresia, caso
esteja crescendo e se enraizando entre nós. Ele está se dirigindo
para os territórios que administrais. Nós, enquanto príncipe
católico, consciente de ter recebido das mãos do Altíssimo muitos
benefícios e honras, desejamos acima de qualquer coisa agradar
em tudo e por tudo a Deus, o Criador, particularmente no que diz
respeito ao culto. Desejamos, portanto, ajudar bastante o
inquisidor, como um enviado especial de Deus, e esperamos
cooperar sempre com ele. Assim, estamos falando com cada um de
vós, e ordenamos a cada um, sob pena de serdes punidos, que
ajudeis o inquisidor todas as vezes que, para cumprir a sua missão,
ele precise se dirigir a vossas terras ou peça a ajuda do braço
secular. Ordenamos que recebais bem o inquisidor, que prendais
ou mandeis prender quem o inquisidor apontar como suspeito de
heresia, como difamados de heresia ou, como hereges, os leveis,
sob vossa guarda, para onde o inquisidor mandar; apliqueis as
devidas punições de acordo com o julgamento e os costumes.
Ordenamos que auxilieis o inquisidor todas as vezes que ele
solicitar, independentemente dos motivos. E, para que ele possa
cumprir a sua função com toda a segurança e liberdade, através do
presente documento, nós colocamos, a ele, seu administrador, seu
escrivão, sua escolta e seus bens, sob a proteção da nossa
clemência real. Ordenamo-vos que observeis de modo inviolável
essa proteção real ao inquisidor, às pessoas próximas a ele, aos
seus bens; cuidai para que essas pessoas e seus bens não sofram
nenhum dano. Garanti com segurança o deslocamento e o trânsito
deles, toda vez que o inquisidor solicitar. Dado em tal lugar, sob
nosso selo, no dia tal do mês tal do ano tal.”

88
c. Depois de obter esse documento, o inquisidor deve procurar o
arcebispo ou o bispo metropolitano, ou os arcebispos e bispos dos
locais para onde for enviado, e lhes apresentar seu mandato
apostólico. Fará o mesmo com cada bispo ou vigário-geral, antes
de começar o exercício da sua missão na diocese deles. Pois, se
começar antes de apresentar suas credenciais, poderá sofrer
entraves na sua missão tanto da parte dos bispos quanto do poder
secular: ambos poderiam interromper suas atividades se não
apresentasse as credenciais.

Portanto, depois de apresentar os documentos pontifícios ao bispo


interessado, o inquisidor deve também apresentar-lhe a carta real. A
seguir, deve apresentá-la às autoridades civis e aos membros da diocese,
ordenando-lhes prender ou mandar prender quem for denunciado como
herege ou simpatizante. Ordena também que obedeçam às ordens do
inquisidor ou seu substituto, de acordo com o papel e as funções de cada
um.

d. Depois de tudo isso, o inquisidor, se o desejar, poderá exigir que


as autoridades civis façam o juramento de defender a Igreja da
perversidade herética e de proteger o inquisidor durante o
exercício das suas funções. Ele os intimará a comparecer na sua
presença através de uma carta cujo modelo é o seguinte:
“Frei N., dominicano, inquisidor da perversidade herética, no
reino de N., delegado da Santa Sé Apostólica, aos veneráveis
vigários, magistrados e conselheiros da cidade tal, saudação e
rápida obediência às minhas ordens, que são ordens
apostólicas! Porque temos uma questão em comum para
tratar, nós, na função de inquisidor, e vós, nas vossas funções
próprias. Em virtude de estarmos investidos, neste local, da
autoridade de nosso senhor o Papa, pedimos e exigimos de
cada um de vós — habilitados, como nós, a mandar e
ordenar, e embora não se duvide, em nenhum momento, do
vosso entusiasmo pela causa da fé — que, deixando todos os
vossos afazeres, vos apresenteis, pessoalmente, a nós, no dia
tal, a tal hora, em tal local do convento dos dominicanos de
tal lugar. Dado em tal local, dia etc.”
Se comparecerem, o inquisidor lhes mandará prestar juramento de
defender a Igreja contra os hereges, em conformidade com a autoridade e

89
a função que têm. O escrivão lerá para eles, numa linguagem bem clara,
os decretos pontifícios que lhes digam respeito. Em seguida, para melhor
obrigá-los, o inquisidor, na presença de testemunhas sérias,
principalmente membros da Igreja, lhes mandará cumprir o que foi
determinado através de um documento cujo teor é o seguinte:
“Frei N., dominicano, inquisidor da perversidade herética no reino
de N., delegado da Santa Sé Apostólica, aos veneráveis vigários,
magistrados e conselheiros da cidade tal, saudação e rápida
obediência às minhas ordens, que são ordens apostólicas!
Considerando que nenhum verdadeiro católico deve-se afastar das
leis da sacrossanta Igreja Romana, particularmente no que tange à
fé, na qual se reconhecem os fundamentos da Santa Madre Igreja,
estabelecidos por Nosso Senhor Jesus Cristo, e sobre os quais ela
está solidamente assentada;
Considerando que todo católico deve cumprir e promover, com todo
o empenho, essas santas leis, Nós, Frei N, dominicano, da província
N., delegado especial da Santa Sé Apostólica, em nome da
autoridade apostólica de que somos investidos e que exercemos
neste local, e, em virtude da nossa própria função, exigimos que
todos vós, veneráveis jurados, magistrados, conselheiros etc., do
lugar tal, particularmente os que nomeamos através dessa carta,
jureis, publicamente, sobre o divino Evangelho obedecer às leis do
imperador Frederico e aos estatutos pontifícios promulgados que
digam respeito à salvaguarda da fé, segundo a forma e a maneira
que estão estabelecidas nas leis eclesiásticas. Se não levardes isto a
sério ou se recusardes obediência às ordens da Igreja e às nossas
ordens, sereis punidos com o anátema, destituídos e privados de
vossos cargos públicos, de acordo com as leis canônicas e
apostólicas. Dado em tal local etc.”

Após a leitura deste documento, se as autoridades concordarem e se


declararem prontas para o juramento, las o farão, no local, ou
publicamente, seja numa igreja ou num outro lugar previamente
combinado. Prestarão juramento de joelhos, com a mão sobre os quatro
livros do Evangelho e pronunciarão as seguintes palavras:

“Nós, Fulano de tal, vigário (magistrado, conselheiro etc.) da cidade


N., diante do pedido do venerável senhor inquisidor, Frei N.,
dominicano,fiel seguidor da Santa Igreja de Deus, e,obedecendo-

90
lhe, prometemos e juramos pelos quatro Evangelhos que estão
diante de nós, e sobre os quais colocamos nossa mão, que
acreditamos e faremos outras pessoas acreditarem na fé de Nosso
Senhor Jesus Cristo e da Santa Igreja Romana; que a seguiremos e
faremos outras pessoas a seguirem, e que a defenderemos com todas
as nossas forcas. Juramos perseguir,prender ou mandar prender,
sempre que pudermos, todo herege, protetor, defensor ou seguidor
dos hereges. Apontaremos e denunciaremos à Igreja e aos
inquisidores qualquer pessoa que se saiba que pertence aos grupos
citados, especialmente se formos expressamente solicitados. Não
iremos conferir o cargo de magistrado ou conselheiro — ou
qualquer outro cargo — a nenhuma dessas pessoas corruptas, a
nenhum suspeito, a nenhuma pessoa com fama herege, a ninguém
que se encontre, por decisão do inquisidor, proibido de ocupar
qualquer cargo público. Juramos não aceitar nenhum deles na nossa
família ou na nossa comunidade, muito menos no nosso trabalho e
no nosso Conselho. E, se soubermos que um dos nossos for herege,
ou simpatizante, juramos afastá-lo imediatamente do nosso meio.
Finalmente, prometemos obedecer nisto,e em tudo mais que
envolva a questão da heresia, a Deus, à Igreja Romana e aos
inquisidores, com todas as nossas forças, e fazer tudo o que depende
de nós. Que Deus nos ajude, jurando com a mão sobre os sagrados
Evangelhos.”

XVI. O modelo eymerichiano está completamente dentro das


determinações do Concílio de Béziers. Os inquisidores atuais
modificaram uma ou outra palavra em função das heresias modernas
(luteranismo, calvinismo etc.), mas tomaram bastante cuidado para não
alterar em nada o espírito das decisões do Concílio de Béziers.

2. Como exigir das autoridades civis


que prestem juramento sob pena
de excomunhão

91
Se, depois de tomarem conhecimento dos termos do juramento que lhes
foi solicitado, os interessados (magistrados, cônsules etc.) pedirem um
prazo para refletirem1, e, se depois de deliberarem, se recusarem a
prestar juramento, serão convocados pelo inquisidor, no final de um
prazo bem pequeno (três ou quatro dias) através de uma carta cujo
modelo é o seguinte:

“Frei N., dominicano etc.


Considerando que cabe a todos que nasceram para a verdadeira vida
através das águas do batismo e, particularmente, às autoridades
civis, príncipes, nobres, conselheiros etc., ajudar, de acordo com a
sua função, a Igreja Católica a eliminar a heresia e que lhes cabe
prestar juramento, se receberem ordens do bispo ou do inquisidor, se
quiserem evitar sofrer as mais diversas e graves punições previstas
nestes casos;
Considerando que estamos aqui, na cidade N.,para defender a fé
e a extirpação na heresia, o que não poderemos fazer sem a ajuda do
braço secular;
Em nome da autoridade apostólica de que somos investidos
neste lugar, exigimos de todos os que forem citados aqui, e vos
exortamos, em virtude da santa obediência, e com o risco de
sofrerdes as punições previstas na lei, ordenamos que vos
apresenteis dentro de três dias, a contar de hoje, cada dia valendo por
uma intimação, pessoalmente, num determinado local, diante de nós,
a fim de prestardes juramento, com a mão sobre os sagrados
Evangelhos, e prometerdes dar assistência em tudo ao inquisidor,
aplicando todas as leis canônicas contra os hereges, seus defensores,
filhos e netos.
Se não comparecerdes no prazo, sereis excomungados do seio
da Igreja como rebeldes, contumazes e desobedientes às nossas
ordens, que são as ordens do Papa. E sabei que se discordardes, de
alguma maneira, desta punição, vamos impor-vos outras mais
pesadas ainda. Dado em tal local, tal data, sob nosso selo.”

Se comparecerem, prestarão juramento, como foi explicado


anteriormente. Do contrário, serão excomungados e a pena será
anunciada publicamente na catedral.

Se se decidirem a prestar juramento depois da publicação da


sentença de excomunhão, prestar ão juramento na forma prevista
92
anteriormente, sendo, depois, absolvidos. Entretanto, receberão uma
punição exemplar, arbitrada pelo inquisidor. Por exemplo, serão
obrigados a ficar nos degraus do altar, nas grandes festas e, durante a
missa principal, com as cabeças descobertas, descalços, segurando uma
vela cujo tamanho poderá variar e que oferecerão ao celebrante no final
da missa.

XVI. Deve-se castigar, com rigor, o pecado de desobediência ao


inquisidor. No entanto, quando se tratar de conselheiros e pessoas
importantes, é melhor impor-lhes penas menos duras. Por exemplo, a
doação de uma grande soma em dinheiro para a construção de um local
para o culto, ou para outros fins, de tal maneira que o crime não fique
impune e que as outras pessoas aprendam a ter medo. Porém, o inquisidor
terá muito cuidado antes de punir: vai precisar constantemente dos
poderes civis, cuja amizade e simpatia serão indispensáveis. Portanto,
que os inquisidores consultem logo os grandes inquisidores e que se
deixe, de preferência, a cargo do inquisidor-geral, e até mesmo do Papa, a
responsabilidade de resolver esses casos.
Por outro lado, como o inquisidor fará para ser obedecido nas
cidades independentes, onde os conselheiros e príncipes não reconhecem
nenhuma autoridade superior à sua? Em contrapartida, as penitências
previstas por Eymerich serão aplicadas, sem inconveniente, aos
magistrados dos locais em que as autoridades superiores defendem a fé
com zelo e ardor.

3. A excomunhão e o interdito

Se, depois de receberem intimação, as autoridades civis prestarem


juramento, serão absolvidas da excomunhão e oficialmente reintegradas
em suas funções e postos. A excomunhão das autoridades libera as
pessoas de qualquer elo de obediência: com a excomunhão suspensa,
recuperam a obediência de seus comandados.
Mas se as autoridades ficarem dois ou três meses sob o efeito da
excomunhão, por falta de comparecimento, o processo será mais
rigoroso: os excomungados serão denunciados nas igrejas catedrais, e

93
isto, lançando-se velas acesas26 pelo chão, e com os sinos tocando várias
vezes por semana ou por dia.
Se resolverem prestar juramento, serão absolvidos da excomunhão,
mas vão receber punições ainda mais rigorosas. No final de dois ou três
meses, se continuarem resistindo, o processo ficará ainda mais
complicado, e a excomunhão será ampliada aos parentes mais próximos e
a todos aqueles que tiverem relacionamento com eles. Se depois de tudo
isso prestarem juramento, serão absolvidos, mas condenados a uma
punição mais dura. Caso contrário, o procedimento tornar-se-á ainda mais
complicado, decretando-se o interdito27 — por exemplo — das terras e
cidades governadas pelos recalcitrantes. O interdito será, finalmente,
suspenso, se prestarem juramento.
Mas, a esta altura, se não se manifestarem, nem mesmo com o
interdito, serão considerados protetores de hereges e suspeitos de heresia;
perderão todas as honrarias e serão afastados, para sempre, de qualquer
função e honraria, de tal maneira que qualquer ato público que praticarem
no futuro será por todos considerado nulo.

XVI. Quem sofrer este tipo de condenação não poderá exercer a


medicina. Se voltassem para a Igreja, também não poderiam exercer
nenhuma função pública — nem eles, nem tampouco seus filhos e netos;
seriam proibidos de vestir roupas caras e usar qualquer ornamento de
ouro ou prata. Não terão magistraturas nem administrações; não
pertencerão ao Conselho nem à família dos poderosos; não poderão
exercer a medicina e o direito; não poderão exercer nenhuma função
pública nem praticar nenhum ato público; não poderão usar joias, roupas
de seda ou coisa parecida: nada de cintos dourados, correias douradas ou
prateadas, sapatos feitos sob medida ou pintados. E, onde for possível,
serão expulsos da cidade e confinados durante algum tempo em outro
local.

26 Sinal de luto, que se usa sempre, em algumas regiões católicas, durante as missas fúnebres.
27 Decretar o interdito equivale a privar a cidade ou regi ão penalizada de qualquer atividade
sacramental (batismos, funerais, casamentos etc.), e, considerando as relações existentes entre a
vida sacramental e a vida profana, a tornar sem efeito qualquer ato jurídico e qualquer transação
em que haja normalmente a intervenção do tabelião. O interdito anula o elo de fidelidade e
bloqueia, por isso mesmo, não apenas a vida política da cidade, mas também a atividade
econômica. Do ponto de vista canônico e jurídico, uma região interditada é uma região morta.
94
4. Poder inquisitorial depois do
interdito

A cidade, então, indicará novos conselheiros e magistrados, que prestarão


juramento antes de assumirem os novos cargos. Mas, se a população
continuar simpática aos recalcitrantes, o inquisidor tomará todas as
medidas para isolar a cidade interditada das outras cidades, chegando até,
se for preciso, a privá-la da sede episcopal. No entanto, seria bom que o
inquisidor deixasse ao Papa a iniciativa desta última punição.

XVI. Isto é infinitamente melhor: é sempre melhor adiar e consultar


o chefe do que se precipitar e provocar um tumulto.
Na Espanha, quem cometesse esse tipo de crime seria perseguido
pelo inquisidor; seria preso e castigado pela autoridade real.

5. Instituição do comissário
inquisitorial

Obtido ou não o juramento de que tratamos anteriormente, o inquisidor


deverá nomear um comissário inquisitorial em cada bispado. Deverá ter
mais ou menos quarenta anos e pertencer ao clero secular ou regular.
Deve ser um homem cuidadoso, prudente, exemplar na erudição e na
conduta, com muito entusiasmo pela fé.
Seus poderes? Receber todas as denúncias, informações e
acusações de quem e contra quem quer que seja (dentro dos limites da
diocese); “proceder contra” quem achasse que fosse oportuno; citar tanto
os criminosos quanto as testemunhas; prender; manter preso; ouvir
depoimentos e confissões, examiná-los, convocar para depor; torturar —
junto com o bispo — para obter confissões; prender, convocar
especialistas e fazer tudo o que, de uma maneira geral, o inquisidor
poderia fazer se estivesse fisicamente presente. No entanto, de acordo
com o costume, o inquisidor se reservará , em qualquer situação, e em
95
cada situação, a aplicação da sentença definitiva. Neste caso,
especificamente, o inquisidor poderá, se quiser, delegar seus poderes ao
interventor; mas é melhor que reserve para si, pessoalmente, os relapsos e
contumazes, pois, geralmente, o inquisidor é muito mais temido que o
comissário, e o inquisidor conhece muito mais o assunto que o seu
auxiliar.
Se achar válido, o inquisidor poderá nomear também dois outros
comissários, ou um vigário-geral inquisitorial, para uma província
eclesiástica inteira. Os poderes do vigário-geral inquisitorial serão os
mesmos que se delegam ao comissário inquisitorial da diocese.

96
B. ABERTURA PÚBLICA E
SOLENE DOS TRABALHOS
DA INQUISIÇÃO

6. O sermão geral

Depois de tudo isso, com os comissários inquisitoriais tendo ou n ã o


tendo sido nomeados, o inquisidor determina, de acordo com o costume
do lugar onde instalou sua sede e delegação apostólica, a data do sermão
geral. Este sermão não deverá ser feito em dia de grande festividade para
não atrapalhar o funcionamento normal das atividades da paróquia, e sim
num domingo qualquer, exceto na época da Quaresma e do Advento28. Os
párocos de todas as paróquias do lugar deverão receber a tempo uma
carta cujo teor é o seguinte:

“Frei fulano de tal, dominicano, a Sicrano, pároco da paróquia tal, na


cidade tal, saudação e rápida obediência às minhas ordens
apostólicas. De acordo com o que nos cabe fazer como inquisidor,
queremos falar de algumas questões que dizem respeito à fé, ao
conjunto do clero e dos fiéis. Eis por que, em nome da autoridade do
Papa de que somos investidos neste local, pedimos, exigimos e
ordenamos que anuncieis ao povo, no próximo domingo (dia tal, mês
tal), durante a missa principal, e em alto e bom som, que terão de
comparecer, no domingo seguinte (dia tal, mês tal), à igreja catedral,
28 As grandes cerimônias litúrgicas são proibidas durante esses dois períodos de penitência.
Também é proibido celebrar acontecimentos festivos durante essas épocas. Deve-se, então,
concluir que o procedimento da Inquisição é encarado como uma festividade? Muito
provavelmente. O que vem a seguir nos convence, perfeitamente, disto.
97
no horário de sempre da missa principal, a fim de ver e ouvir coisas
que dizem respeito à ortodoxia da fé. Avisareis ao povo que, nesse
domingo, vamos suprimir qualquer outro sermão, e que
concederemos, em nome da autoridade apostólica, quarenta dias de
indulgência a todos aqueles que assistam a nosso sermão. Dado no
local tal etc.”

Se o inquisidor achar oportuno, lembrará, além disso, essas mesmas


ordens aos párocos, através de um bilhete (cédula), que fará chegar na
véspera do domingo em que deve ser feito o anúncio do sermão geral. O
bilhete dirá mais ou menos o seguinte:

“Lembramo-vos que decidimos, de amanhã a oito dias, fazer um


sermão geral na catedral, e pedimos e ordenamos que aviseis o povo
para que venha ouvi-lo. Neste dia, todos os outros sermões serão
suspensos e vamos conceder quarenta dias de indulgência a quem
comparecer.”

O inquisidor dará um aviso igual a todas as comunidades religiosas, a fim


de que não preparem nenhum sermão para esse domingo. E
independentemente dos grupos religiosos a que pertençam as
comunidades da cidade, o inquisidor as obrigará a enviar, no mínimo,
dois ou quatro de seus membros ao sermão geral.
No dia marcado, o inquisidor fará um sermão inteiramente dedicado
à fé, ao seu significado e à sua defesa, exortando o povo a extirpar a
heresia. O sermão terminará com a solicitação das denúncias:

“Se alguém souber que alguém disse ou fez algo contra a fé, que
alguém admite tal ou tal erro, é obrigado a revelar ao inquisidor.”

O inquisidor acrescentará, ainda, que sabe perfeitamente que lhe contarão


tudo, mas é obrigado a enfatizar essa advertência para os fiéis, a fim de
que não critiquem os delatores, ao contrário, os considerem bastante
obedientes à fé divina.
No final do sermão, o inquisidor mandará ler, alto e bom som e em
língua vulgar — podendo ser seu escrivão, um clérigo ou religioso, que
sentará no ambão, ao lado dele — a seguinte carta:

98
7. Ordem de delação a ser lida
durante o sermão geral

“Nós,Frei fulano de tal, inquisidor especialmente delegado pela Santa Sé


Apostólica para a região de...etc., tomando conhecimento de que as
serpentes da heresia querem espalhar o seu veneno nesta área; que os
hereges querem dizimar a população daqui como as raposas devastaram
as videiras do Senhor dos Exércitos; que blasfemam contra o Deus dos
Deuses e o Senhor dos Senhores;
Nós, cujas entranhas estremecem de medo e repugnância em saber
que o veneno da heresia já possa ter envenenado bastante a população;

Com a autoridade do Papa de que somos investidos;em virtude da


santa obediência e sob pena da excomunhão,ordenamos e estabelecemos,
através de três prescrições e de maneira categórica,a todos e a cada um,
leigos, membros do clero secular e regular, de qualquer função,hierarquia
ou honraria, que vivam nos limites desta cidade — ou desta região — e
num raio de quatro milhas além dos muros, que, dentro do prazo de seis
dias, a contar de hoje, sendo que cada segundo dia marca o fim de uma
intimação, que nos digam se sabem, souberam ou ouviram dizer que uma
determinada pessoa é herege, conhecida como herege, suspeita de
heresia, ou que se manifesta contra este ou aquele artigo de fé, os
sacramentos, se não vive igual a todo mundo, se evita o contato com os
fiéis ou se invoca os demônios e lhes presta algum culto.
Quem — Deus nos livre! —, neglicenciando sua própria salvação, n
ão se curvar às nossas ordens de delação, saiba que está ligada pelo
vínculo da excomunhão, e que esta excomunhão o liga a partir de agora, e
que só ser á desligado por nosso senhor o Papa ou por nós.”

99
8. O que o inquisidor deve fazer
depois do sermão geral

Após a leitura desta ameaça, numa linguagem bem prosaica, o inquisidor


terá que fazer três coisas:

a. Primeiro, explicar o sentido desta ameaça e simplificá-lo para que


seja mais bem entendido. Deve resumi-la assim:

“Esta sentença — dirá ele — compreende três pontos. O primeiro


é de ordem geral: se souberdes que alguém é herege, suspeito de
heresia ou conhecido como herege, deveis denunciá-lo a nós.
O segundo é específico: se souberdes que alguém ensina
qualquer coisa errada, deveis nos dizer.
O terceiro é singular: deveis denunciar a nós quem
souberdes que tem livros heréticos ou invoca os demônios.”
b. O inquisidor lembra, a seguir, que todos aqueles que assistiram ao
sermão ganharão quarenta dias de indulgência. E acrescenta:
“Quem me ajudar a cumprir minha tarefa ganhará três anos de
indulgência. Por exemplo, o escrivão que acabou de vos ler as
prescrições, ganhou três anos de indulgência. Quem me denunciar
um herege ou um suspeito ganhará o mesmo. Portanto, sede
eficientes e lucrai indulgências.”
c. Terceiro, o inquisidor determinará a época do perdão nos seguintes
termos:
“E nós, em nome da autoridade apostólica de que somos
investidos, atribuiremos uma graça especial a todos os hereges,
simpatizantes, protetores, suspeitos, benfeitores, conhecidos como
hereges etc., que vivam nos limites da diocese e que, dentro de um
mês a contar de hoje, se apresentarem espontaneamente a nós, sem
esperar que sejam denunciados, acusados ou capturados. Durante
esse mês de graças, teremos muita misericórdia com aqueles que
venham a nós espontaneamente para confessar suas culpas e pedir
perdão. Mas quem, em vez de se apresentar espontaneamente,
esperar para que seja acusado, denunciado, citado ou capturado, ou
deixar passar a época do perdão, não vai se beneficiar de tanta

100
misericórdia! Suplico, portanto, a todos que se apresentem
espontaneamente, durante a época do perdão!”
Depois de fazer tudo isso, o inquisidor pode mandar pendurar o
texto das prescrições, nas portas da catedral, para que todo mundo possa
ler.
Em seguida, quando o inquisidor tiver determinado esses dois
períodos (um para os delatores e outro — a época do perdão — para os
hereges, conhecidos como hereges etc.), deve evitar se deslocar,
permanecendo em casa para que delatores e arrependidos possam
encontrá-lo com facilidade.

9. Quem se entregar
espontaneamente

Quem, durante a época do perdão, se entregar voluntariamente,


admitindo ter acreditado em alguma heresia, ajudado hereges etc., não
será acusado, denunciado nem citado para comparecer: confessa
espontaneamente. O inquisidor atenuará o seu rigor. Porém, estar á atento
à forma pela qual vã o querer apagar suas culpas. Se quiserem se auto-
acusar no foro confessional, declarando que desejam ser ouvidos durante
a confissão sacramental, o inquisidor não deverá permiti-lo nem ouvir a
confissão deles: ele não é juiz do foro íntimo e confessional, mas do foro
externo e jurídico. Os inquisidores devem, portanto, evitar de lhes
ministrar o sacramento da confissão, pois, do contrário, estarão
contradizendo a sua pró pria profissão e desrespeitando o próprio
sacramento. Mesmo o inquisidor estaria pecando contra o sacramento, se
ouvisse essas confissões. Pois, se ouve uma confissão sacramental e
tomar conhecimento de que alguém foi herege de tanto a tanto, e que
arrastou tantas pessoas, ficará muito embaraçado, se, depois de agir pela
via jurídica, viesse a inquirir sobre fatos de que tivesse tomado
conhecimento através da confissão sacramental: a pessoa o acusaria, na
mesma hora, de revelar 0 segredo da confissão. Que escândalo contra a
Inquisição! A experiência ensina que hereges e suspeitos, temerosos de
ser capturados pela Inquisição, apresentam-se voluntariamente e pedem
para ser ouvidos na confissão, pensando que vão fugir do processo e da
101
punição. Portanto, não devem ser ouvidos, mas confessar seus crimes ao
inquisidor na instância jurídica.
Com o crime bem definido, o inquisidor verá, primeiro, se o
depoente já tinha sido acusado de alguma coisa ou se já tinha sido objeto
de delação ou acusação em outro lugar. Se houver necessidade, far-se-á o
registro na Justiça — junto com o escrivão e as testemunhas da confissão,
agindo-se em absoluta conformidade com os preceitos jurídicos, mas,
com um pouco menos de rigor, pois não se poderá esquecer que o
interessado se apresentou sem ser citado.
Em caso contrário, o interrogatório deve girar em torno da natureza
do crime (artigo de fé em questão, tipo de ajuda dada aos hereges etc.); e,
se ficar provado que a heresia era apenas de ordem subjetiva, e que o
depoente jamais contaminou alguém com seus erros, não haverá
confissão jurídica. Neste caso, o depoente será absolvido secretamente, e
o inquisidor lhe aplicará uma pena exemplar, pedindo-lhe para continuar
com a sua fé inabalável. Mas se os acontecimentos não se passarem
totalmente em segredo, e se houver contaminação, então, haverá registro
cartorial da confissão: investigar-se-ão pessoas que estiverem sabendo ou
que tiverem sido contaminadas e proceder-se-á à aplicação das penas
previstas segundo a natureza do delito, mas com a moderação que merece
toda pessoa que se apresenta espontaneamente.

XVI. O inquisidor determina, de acordo com a sua vontade, a duração do


tempo do perdão. Normalmente, dura um mês, no máximo, quarenta dias.
E, salvo instruções pontificais contrárias, a época do perdão, que
beneficia uma cidade ou uma diocese, não é prorrogável.
Eymerich fala de clemência em relação a quem confessar durante o
tempo do perdão: no entanto, a pessoa será castigada. O inquisidor, ao
considerar o tipo de pessoa e a gravidade dos delitos, aplicará uma multa
ou mandará dar um donativo etc. Além disso, deve-se estar prevenido
contra os relapsos que, chorando, vêm confessar durante o tempo do
perdão: porém, muitos estudiosos têm opinião contrária. Quanto aos
outros — os hereges que deixam passar o tempo do perdão — serão
condenados à prisão perpétua… a menos que fossem tão numerosos, que
seu encarceramento suscitasse problemas insolúveis. O Concílio de
Narbona (Atas, c.9) previu essa eventualidade:
“Os hereges que deixarem passar a época do perdão deverão ir
para a prisão perpétua, de acordo com o Direito Canônico. Mas
soube que são tão numerosos, que faltariam prisões, e cimento,

102
se fosse preciso encarcerá-los. Portanto, aconselhamos diferir
os encarceramentos, quando for possível, e colocar na prisão,
por enquanto, só os mais perigosos.”

Eymerich parece atribuir ao inquisidor a possibilidade de ouvir, no


confessionário, o “voluntário” cujos crimes não sejam conhecidos
publicamente. É preferível não concordar com ele neste ponto, pois,
procedendo assim, o inquisidor poderia, mais tarde,defrontar-se com
dificuldades e riscos de escândalo, como o próprio Eymerich acabou de
lembrar. O inquisidor só tem que fazer o seu papel de juiz, de acordo com
as disposições do Papa Clemente III (Cum sicut).

10. Como receber as denúncias

Os delatores serão ouvidos na Justiça dentro do prazo previsto. Se forem


tão numerosos, a ponto de se revelar impossível ouvir na Justiça todos os
depoimentos, o inquisidor mandará que escrevam num caderninho
preparado para isso - um por diocese - as suas denúncias e o nome de
quem denuncia, o seu próprio nome, os nomes das testemunhas e a
indicação da cidade ou aldeia em que vivem. Este caderninho será bem
guardado pelo inquisidor, para não perdê-lo e não causar prejuízo - como
se pode imaginar - aos delatores. O inquisidor escreve também do próprio
punho, no caderninho - como numa agenda -, todas as denúncias, com os
nomes dos delatores e delatados, nomes das testemunhas para ir a
interrogatório, como o exemplo que se segue abaixo.

11. Agenda das delações

Diocese tal. — Fulano de tal, nascido em …, domiciliado em …,


profissão… denunciou Fulano de tal, domiciliado em …, rua ou local
…, exercendo a profissão de …, afirmou (por exemplo) que, na

103
Eucaristia, não existe verdadeiramente o corpo de Cristo.
Perguntar: Fulano de tal, domiciliado em …, rua ou local …,
profissão …, e Fulano de tal.
Diocese tal. - Como no modelo anterior.

12. Depois do tempo do perdão

Depois do tempo do perdão, o inquisidor consulta a agenda, analisa as


denúncias, detecta as que são pouco convincentes e destaca os crimes
mais graves e perigosos para a fé. Começa a investigação, por onde a
gravidade for mais clara, citando quem denunciou os fatos.
Obriga-o a jurar dizer a verdade. Se o depoimento não parecer
provável, o inquisidor fará um adiamento, mas sem modificar em nada o
conteúdo do seu caderninho, pois o que não se descobre hoje pode se
descobrir amanhã.
Se houver probabilidade, deve-se começar o processo segundo as
três formas de abertura de processo inquisitorial.

104
C. INVESTIGAÇÃO E
ABERTURA DOS PROCESSOS

O processo pode começar pela acusação. Neste caso, a acusação deve ser
precedida por um registro.
Pode começar pela denúncia. Neste caso, a própria denúncia deve
ser precedida de uma caridosa exortação.
Finalmente, pode começar pela investigação, que deve preceder
informações precisas.
O inquisidor pergunta ao delator se quer ser o acusador no caso ou
apenas se limitar a fazer a denúncia. Se quiser ser o acusador, saberá
através do inquisidor que ficará inscrito na lei de talião. Se, depois de
informado, continuar se mantendo na condição de acusador e desejar que
se proceda pela acusação, será feita a sua vontade, e o processo se
desenrolará a partir da acusação. Se, depois de informado, o delator não
quiser mais assumir o papel de acusador e declarar que se contenta em ser
delator (como acontece com mais frequência), e se, além disso, não
quiser figurar no processo (é também o que acontece com mais
frequência), então, procede-se de acordo com o que estava previsto
anteriormente, ou seja, pela denúncia. Se não quiser nem acusar nem
denunciar, sob a alegação de que o teor da sua denúncia é de domínio
público, o inquisidor deverá investigar esses boatos, e o processo
começará da maneira prevista logo abaixo. E agora, como prometi, as três
formas de abertura de um processo.

.
13 Abertura de um processo por
acusação

105
Existe processo por acusação se, na frente do inquisidor, alguém acusar
outra pessoa de heresia, manifestar sua vontade de provar sua acusação e
declarar que aceita a lei de talião, segundo a qual o acusador aceita, se
perder, pagar a pena que o acusado pagaria, se ficasse provada a culpa
deste último.
Este não é o melhor método na prática da Inquisição; é arriscado e
bastante discutível. Mas, se o acusador insiste, o inquisidor aceita e
registra a acusação. Depois disto, o inquisidor não “procederá” sozinho,
mas na instância civil, fazendo-se assistir por um escrivão público e dois
religiosos ou, pelo menos, duas pessoas idôneas.
E se dá início ao processo. O escrivão registrará o seguinte:

“In nomine Domini, Amém. No ano tal, dia tal, do mês tal, em
presença do abaixo-assinado, Escrivão de…, e das seguintes
testemunhas: Fulano, de tal lugar, diocese tal, compareceu
pessoalmente a tal lugar, diante do venerável frei Fulano de tal,
dominicano, doutor em teologia, inquisidor em todo o território de
tal senhor, a quem apresentou um documento de acusação cujo teor
(o escrivão fará a transcrição integral do documento, acrescentando):
lavrado em tal data, no local abaixo citado, diante das testemunhas
abaixo citadas, e na presença do próprio abaixo-assinado, Escrivão
Público do lugar tal, e dos escreventes do Santo Ofício da Inquisição,
ou do Senhor Inquisidor.”

XVI. A lei de talião caiu atualmente em desuso 29. A razão alegada com
mais frequência, pelos doutores, contra a sua aplicação, é evidente: se se
aplica esta lei ao acusador que perde, não se encontrarão mais delatores e,
consequentemente, os crimes continuarão impunes, para grande prejuízo
do Estado (Reipublicae30). Na situação extrema em que o acusador quiser
se submeter totalmente à lei de talião, e se se revelar, no decorrer do
processo, incapaz de provar suas palavras, acho que não seria necessário
aplicar-lhe a pena correspondente à gravidade do teor da acusação. De
qualquer maneira, não se deve entregar o acusador que perde ao braço
secular, porque, em quaisquer das circunstâncias, o acusador é menos
perigoso que o herege.

29 Caiu em desuso, mas não foi anulada. Aliás, é sabido que não existe anulação na legislação do
Santo Ofício.
30 Parece-me indispensável chamar a atenção para o fato de que Peña fala bastante de República e
não de christianitas ou populus christianus.
106
Atualmente, o papel do acusador é atribuído a um fascínio chamado
de “Fiscal”: é ele quem assume a acusação. Depois da investigação,
formula as acusações em termos precisos e claros, como por exemplo:

“Eu, Agostinho, fiscal da Santa Inquisição, acuso, diante do senhor


Reverendo Inquisidor, o citado Martinho Lutero, de ter abandonado
a fé católica e aderido à horrível heresia maniqueísta e a outras
heresias, sendo batizado no catolicismo e considerado por todos
como católico. Acuso-o de pregar, escrever, criar e afirmar vários
dogmas heréticos, falsos, escandalosos e bastante suspeitos de serem
compatíveis com as heresias acima citadas.”

Este é o estilo dos termos da acusação utilizados, normalmente, nos dias


atuais. Os autos de acusação serão suficientemente explícitos de modo
que o acusado saiba de que exatamente é acusado para que possa
defender-se. No entanto, não aparecerá nada que lhe permita imaginar
quem o denunciou..., e, isto, por razões óbvias, que explicaremos mais
adiante, quando voltarmos às circunstâncias em que se deve informar o
culpado ou enganá-lo.

14. Abertura de um processo por


denúncia

Um delator denuncia alguém de heresia ou de protecionismo à heresia e


declara que faz isso para não se arriscar à excomunhão, que atinge os que
sabem e calam.
O inquisidor manda colocar por escrito os termos exatos da
denúncia, e “procede”, desta vez, de acordo com as suas atribuições e não
como solicitante de uma das partes.
Este é o procedimento habitual. O processo começa na presença de
um escrivão e duas testemunhas , religiosos ou fiéis confiáveis. O delator
jura sobre os quatro Evangelhos e começa a depor: onde soube os fatos;
se soube de primeira m ão, ou não; quem os revelou. O inquisidor fará o
interrogatório para tornar o depoimento o mais completo possível, e tudo
será registrado nos autos lavrados pelo escrivão. Depois, pergunta-se ao

107
delator se faz a denúncia impelido pela maldade, ódio, ressentimento ou,
ainda, por ordem de terceiros. O delator, a seguir, jura guardar segredo
sobre tudo o que contou ao inquisidor e sobre o que este lhe disse. Tudo
fica registrado nos autos do escrivão. Os autos de delação deverão ser
datados.

15. Abertura de um processo por


investigação

Se não existir confissão espontânea, nem tampouco acusação ou delação,


e sim boatos, numa determinada cidade ou região, de que alguém disse
ou fez alguma coisa contra a fé ou em favor dos hereges, neste caso, o
inquisidor deverá investigar, não na instância de uma das partes, mas
segundo suas próprias atribuições.
É uma maneira muito comum de “processar”. E, se os boatos
chegarem aos ouvidos do inquisidor pela boca de pessoas honestas e
bem-comportadas, o processo começará, sempre, diante do escrivão e de
duas testemunhas, pela lavratura dos autos, em que se transcreve o teor
desses boatos.

XVI. No contexto da Inquisição, “investigação” deve ser entendida como


a investigação canônica efetuada por um juiz capaz e imparcial a respeito
de uma ação criminal manifesta.
Atualmente, deve-se distinguir a investigação geral (inquisitio
generalis) da investigação especial (inquisitio specialis).
Investigação geral é quando o inquisidor visita uma província ou
região e baixa decretos de busca a hereges em geral. A investigação geral
não pressupõe, necessariamente, que um crime de heresia tenha sido
denunciado, previamente.
Investigação ou inquisição especial é o direito de proceder à
condenação ou punição de pessoas conhecidas como hereges e
nominalmente denunciadas. Este tipo de inquisição supõe que houve,
efetivamente, delito.

108
No entanto, em se tratando de heresia, é válido proceder-se a uma
investigação especial, mesmo que não tenha havido delito. Mas, neste
caso, o inquisidor deverá ter um cuidado, uma ponderação e uma reserva
redobrados, para não correr o risco de lesar inutilmente a honra de quem
é investigado.

109
D. O PROCESSO
PROPRIAMENTE DITO

Acabamos de ver como se instaura um processo numa causa de heresia.


Agora, é preciso ver como o processo se desenvolve.
Vamos esclarecer logo que, nas questões de fé, o procedimento
deve ser sumário, simples, sem complicações e tumultos, nem ostentação
de advogados e juízes. Não se pode mostrar os autos de acusação ao
acusado nem discuti-los. Não se admitem pedidos de adiamento, nem
coisas do gênero. E, já que distinguimos três maneiras de abrir um
processo, vamos retomá-las agora, examinando o desenrolar de cada
uma.

16. O processo por acusação

No processo por acusação, o inquisidor manda o acusador dar os nomes


das testemunhas: estas ser ão citadas e interrogadas sob juramento. Se
ficar claro que não acrescentam nada à acusação, o inquisidor deverá
aconselhar o acusador a desistir. Se ficar claro que os depoimentos das
testemunhas acrescentam algo à acusação, o inquisidor deverá aconselhar
o acusador a contentar-se em ser o delator, para que o inquisidor possa
“proceder” segundo suas atribuições e não enquanto solicitante de uma
das partes, e para que o acusador n ão se exponha a gravíssimos riscos.
Se ficar evidenciado que as testemunhas confirmam plenamente a
acusação e se o acusador tiver muito empenho em acusar, e n ão apenas
em denunciar, o inquisidor deverá investigar exaustivamente as
testemunhas, em presença do escrivão e de duas delas, fazendo-lhes,
primeiramente, jurar, sobre os quatro Evangelhos, dizer a verdade.

110
Se, então, ficar claro que os crimes de que o réu é acusado são de tal
gravidade que o inquisidor não pode deixar passar, e se for preciso ser
justo com o acusador, então o inquisidor procederá à investigação das
testemunhas da seguinte maneira:

17. Exame das testemunhas

Pergunta-se à testemunha, depois de tê-la feito prestar juramento, se


conhece o réu; como o conheceu (Viu-o? Falou com ele? Muitas vezes?
etc. A testemunha mencionará, eventualmente, seus laços de parentesco
ou de amizade com o réu etc.); desde quanto tempo (Muito? Pouco
tempo?); o que se comenta a respeito dele, particularmente no que
concerne à fé (e, também, no plano moral). No tocante à fé: comentam se
ele fez ou disse, em qualquer lugar, alguma coisa contra a fé católica?
Acham que é membro de alguma seita? Dizem que ajuda ou simpatiza
com hereges? Ou, ao contrário, consideram-no um bom católico? À
pergunta: qual a “fama” dele?, a testemunha responde que é “o que se
diz, normalmente”.
Pergunta-se à testemunha se viu ou ouviu o acusado fazer ou dizer
alguma coisa contra a fé; onde viu e ouviu isso; quem estava presente;
quantas vezes aconteceu; de que maneira dizia ou fazia; pergunta-se à
testemunha se, na sua opinião, o acusado agia por brincadeira ou se
falava como se estivesse declamando, zombando, se agia com seriedade
ou se falava com ponderação; perguntarão o que o fez pensar que ele era
assim (Falava rindo? Insistia, mesmo que outras pessoas pedissem para
ele parar?) etc.
O inquisidor prestará bastante atenção às respostas das testemunhas
à última pergunta, porque frequentemente as pessoas afirmam coisas
contra a fé, repetindo o que outra pessoa disse, para rir ou para fazer rir;
deve-se, obviamente, separar isto das palavras que se dizem numa
discussão ou em tom incisivo.
Pergunta-se, finalmente, à testemunha se não está depondo por
ressentimentos ou ódio. Por fim, mandam-lhe guardar segredo de tudo.
Depois, o escrivão data o depoimento, colocando o nome da teste- munha
e o seu próprio nome.
111
Todas as testemunhas serão investigadas da mesma maneira. Se,
juntando todos esses elementos, se constata a existência de heresia,
suspeita grave ou cumplicidade, e se há o temor de que o acusado possa
escapar, o inquisidor manda prendê-lo. Se não houver risco de fuga, o
inquisidor mandará citá-lo e fará o interrogatório da seguinte maneira,
diante do escrivão e testemunhas da Inquisição, após mandar-lhe prestar
juramento sobre os quatro Evangelhos.

XVI. Observem que Eymerich dá uma definição precisa da fama. O que


não quer dizer que se deva esperar que a testemunha a conheça também:
basta que haja uma grande convergência entre a resposta da testemunha e
a que Eymerich propõe.
O que dizer dos hereges “de brincadeira”? De acordo com alguns
especialistas, deveriam ser menos severos com quem tiver proferido
heresias para “fazer o bem”. Mas não se pode ser muito condescendente!
E há vários exemplos de pessoas que dão importância — por brincadeira!
— a opiniões idiotas que devem ser punidas. Igual a esses celibatários
que dizem para quem quiser ouvir que terão uma mulher na outra vida
porque não tiveram nenhuma nesta. Pelo menos, deve-se infligir-lhes
uma boa multa que reverta em benefício de um local para o culto!
Palavras gratuitas contra Deus contra os santos e não poderiam ficar
impunes; principalmente se pronunciadas publicamente ou se são
religiosos que as proferem diante de leigos! Em todos esses casos, esse
tipo de brincadeira é um indício que deve ser aprofundado, pois muitos
hereges dirão, evidentemente, que disseram ou fizeram isto ou aquilo só
para “fazer zombaria”. O inquisidor dará uma punição porque é um
pecado contra o Espírito Santo empregar as palavras das Escrituras ou as
coisas da fé para divertir o público ou proferir obscenidades!
No entanto, não se deverá punir quem tiver proferido heresias em
sonhos e não se deverá levar em consideração, heresias pronunciadas por
uma criança ou por um velho senil.
Também deverá ser observado, a propósito das suspeitas, que não
poder á haver prisão, se n ão houver provas suficientes. Cabe ao
Inquisidor e a seu Conselho, e somente a eles, decidir se é oportuno
enviar uma simples citação para comparecer ou uma citação de verdade,
ou seja, um mandado de prisão (citatio realis, hoc esr, personalis
captura).

112
18. Como interrogar o acusado

“Fulano de tal, residente em …, tendo sido denunciado e tendo


jurado sobre o livro dos quatro Evangelhos, que tocou com sua mão,
dizer toda a verdade tanto sobre si mesmo quanto sobre os outros,
foi interrogado como se segue.”

O inquisidor interrogará o acusado sobre o seu local de nascimento e de


origem. Sobre seus familiares (Estão vivos? Morreram?). Perguntará
onde foi criado, e por quem, onde viveu. Tomará informações sobre suas
mudanças de domicílio: deixou o local onde passou sua infância? Foi
para lugares infestados de heresia, e por quê?
De acordo com as respostas, o inquisidor orientará suas próprias
perguntas para parecer que voltou naturalmente à pergunta. Pergunta-lhe
se, num determinado lugar, não ouviu falar de um certo assunto (do qual,
sem que ele saiba,é acusado): por exemplo, não ouviu falar da pobreza do
Cristo, dos apóstolos ou da visão beatífica31?
Se disser sim, será pressionado com perguntas, registrando-se as
respostas; perguntarão se ele próprio falou isso e qual a sua opinião sobre
o assunto. Assim, o inquisidor prudente (prudens inquisitor) vai cercando
cada vez mais a questão fundamental da acusação, até chegar à verdade.
Concluída a confissão, lavram-se os autos.
Se o inquisidor, através das testemunhas, percebe que o acusado está
completamente consciente de sua culpa; que se traiu através da própria
confissão; ou que nega, embora consciente de sua culpa, ou da fonte
suspeita,manda prendê-lo e o trancafia no seu próprio cárcere, se o tiver,
para que não fuja. Se não dispuser de cárcere privado, mandará prendê-lo
no palácio episcopal ou na cadeia civil, se julgar oportuno. Mas é sempre
melhor utilizar as prisões da cúria eclesiástica,pois o bispo é o juiz
ordinário,e sem ele o inquisidor não poderá condenar, definitivamente,
por heresia, nem recorrer a métodos para fazê-lo confessar, ou seja,à
tortura.
Com o acusado na cadeia, o inquisidor irá interrogá-lo e ouvi-lo,
com bastante frequência, sobre tudo aquilo que ele nega, que já foi
provado ou que é bastante provável. O inquisidor vai insistindo nesta
direção até que o acusado deixe escapar algo de novo; nesse caso, as
informações obtidas serão reunidas pelo escrivão e testemunhas
31 Retorno a temas centrais das heresias dos séculos XII e XIV.
113
inquisitoriais, juntando-se nos autos o que foi negado ou as confissões
anteriores.

XVI. A ordem das perguntas deve ser deixada ao arbítrio de cada


inquisidor, que modificará o interrogatório de acordo com cada caso.
Depois das perguntas de ordem geral citadas por Eymerich, e pelas quais,
evidentemente, convém começar, é bom que o inquisidor pergunte ao
acusado se sabe por que foi preso; se suspeita de alguém — e, neste caso,
quem — que o tenha denunciado; de acordo com as respostas obtidas, o
inquisidor verá como cercar cada vez mais a verdade. O inquisidor dirá
ao acusado que se mostrará misericordioso com ele, se confessar com
clareza e rapidez. É bom que essa promessa de misericórdia seja feita por
três vezes durante os dez primeiros dias de detenção. O interrogatório
pode legalmente ultrapassar o teor da acusação: pode-se pedir, por
exemplo, ao acusado, para recitar as orações mais comuns; pode-se
perguntar sobre a doutrina cristã; pode-se perguntar, finalmente, onde,
quando e a quais padres confessou seus pecados.
Porém, o inquisidor tem que ser prudente: deve tomar cuidado para
não se tornar irritante, porque não fará outra coisa senão despertar raiva
no acusado. Por outro lado, deve também tomar cuidado para não deixar
encoberto nada que possa interessar ao corpo de delito e, se o acusado
começar a confissão, não se deve interrompê-lo sob qualquer pretexto. O
escrivão anotará tudo e o acusado deverá assinar o depoimento, se souber
escrever (caso contrário, colocará nos autos um sinal específico), antes de
voltar para a prisão.
Durante o interrogatório, é bom que o acusado se sente numa
cadeira mais baixa, mais simples que a cadeia do inquisidor. O
interrogatório será conduzido de maneira a evitar induzir o acusado para
o que se quer, indicando-lhe, deste modo, como fugir das perguntas
críticas. O melhor método é o seguinte: partir do geral para o particular,
do especial para o singular. Em Direito Civil, os juristas dizem: “Não
pergunte a ninguém: matou alguém?, e sim: o que você fez?”. Em se
tratando de heresia, o procedimento é o mesmo: é bom que o acusado
ignore a especificidade do que o acusam. Deve-se chegar a isso através
de uma retrospectiva constante, perguntando sobre os motivos da pró-pria
acusação, a fim de levar o acusado a confessar ou a se lembrar do seu
crime, se é que o esqueceu. Induzir o acusado ao motivo da acusação, a
fim de que possa escapar às armadilhas do interrogatório, constitui, em
termos inquisitoriais, um delito muitíssimo grave: o inquisidor que fosse

114
culpado disso pegaria a pena especialmente prevista pelo Concílio de
Viena para tais casos (Atas, I, parágrafo Verum quia de haereticis).
O inquisidor ouvirá, com bastante frequência, o preso, como disse
Eymerich. E isso, apesar da promessa de misericórdia de que já se falou
anteriormente. Concluindo, os interrogatórios terão a frequência que o
inquisidor quiser, mas respeitando-se sempre o princípio de silenciar
sobre tudo o que for capaz de dar pista dos delatores ao acusado.

19. O processo por delação

No caso de um processo por delação, faz-se a citação das testemunhas


apontadas pelo delator, principalmente aquelas que parecem saber muito.
Se parecer, como no caso anterior, que a situação é grave, procede-se aos
interrogatórios conforme descrito anteriormente.

20. O processo por investigação

Nos casos de processo por investigação, o inquisidor mandará citar


algumas testemunhas entre as pessoas boas e honestas. Caberá a elas
confirmar a existência de boatos no seio da população. As perguntas que
serão feitas às testemunhas serão do seguinte tipo: se a pessoa citada
como testemunha conhece Fulano, que mora em tal lugar; desde quando;
o que dizem a respeito dele; como a testemunha soube da existência de
boatos; desde quando existem esses boatos; de onde partiram etc.
Se, aparentemente, existirem, de fato, esses boatos, o inquisidor
deverá citar outras testemunhas, escolhendo-as entre as pessoas próximas
e familiares de quem for o alvo dos comentários. O inquisidor deverá
escolher testemunhas de quem não se possa esperar, logicamente, que
jurem em favor do acusado. Serão investigadas não sobre os boatos, e
sim sobre os fatos, diante do escrivão e das testemunhas inquisitoriais. O
inquisidor procederá com as testemunhas como procedeu nos casos
anteriores. Depois de ouvi-las, deverá interrogar o acusado, como está

115
previsto no processo por acusação.

XVI. Bastam duas testemunhas para provar a existência de boatos.


Devem ser íntegras e maiores de idade. Dois depoimentos divergentes
quanto aos fatos serão suficientes para provar a existência de boatos:
pode-se “proceder”.

116
E. OS INTERROGATÓRIOS

Para afastar qualquer suspeita de irregularidade e para que, realmente, se


consiga restabelecer a verdade, cinco pessoas devem estar presentes aos
interrogatórios dos delatores e testemunhas: o juiz inquisitorial, a
testemunha ou o acusado, e duas testemunhas inquisitoriais.
O primeiro é o inquisidor, ou seu substituto. Cabe a ele interrogar
testemunhas e acusados, formular as perguntas e mandar transcrevê-las.
Deve ser astuto e prudente ao ouvir as testemunhas e os acusados,
principalmente os acusados de heresias atuais — beguinos e valdenses —
que se tornaram mestres na arte de esconder a verdade.
O segundo a ser interrogado é a testemunha ou o acusado, que
deverá, antes de qualquer coisa, jurar dizer a verdade, senão seu
depoimento não terá validade. Não deve violar seu juramento e sim
restringir-se à pura verdade, sem aumentá-la por ódio nem ressentimento,
nem diminuí-la por piedade.
Deve sempre responder fielmente à pergunta que for feita,
considerando os critérios do juiz mais que qualquer outra coisa. Não deve
buscar evasivas nem se dispersar, respondendo com a maior clareza. O
inquisidor prestará muita atenção à maneira de responder do acusado ou
testemunha. Se constatar que o interrogado está respondendo com cautela
e malícia, preparará armadilhas, forçando-o, assim, a responder
adequadamente e com clareza.
O terceiro — o escrivão — é designado pelo inquisidor e deve
encarregar-se da redação dos autos do processo. Registra sob as ordens
do juiz os depoimentos das testemunhas, as confissões e o que Os
acusados negam etc.
As duas testemunhas inquisitoriais deverão ser duas pessoas
íntegras ou dois clérigos. Deverão ver todos os autos do processo. Porém,
se o juiz inquisitorial não puder dispor sempre delas, garantirá, pelo
menos, a sua presença quando perguntar ao acusado se mantém a
confissão e as negativas.

117
XVI. A frase habitual para prestar juramento diante do Tribunal da
Inquisição é a seguinte:

“Juro por Deus e a Cruz, e pelos Santos Evangelhos, que toco com
minha mão, dizer a verdade. Que Deus me ajude se mantiver meu
juramento e que me castigue se eu quebrá-lo.”

21. Observações que precedem o


interrogatório dos hereges

Todo inquisidor deve levar em consideração, quando estiver prestes a


interrogar um acusado, as três recomendações seguintes:

1. Deve fazer uma adaptação de suas perguntas ao grau de instrução, à


seita e à posição do acusado. A malícia é a melhor arma do inquisidor:
deve utilizar a parte doutrinária deste Manual para convencer o acusado
de que aderiu a uma heresia.
2. Os acusados que se mostrarem coerentes em suas argumentações serão
facilmente convencidos da heresia se enfrentarem teólogos ou juristas
experientes.
3. É dificílimo avaliar quem, diante do inquisidor,não confessa os seus
erros,antes os dissimula (valdenses e beguinos, por exemplo). O
inquisidor tem que ser muito malicioso e sagaz para acompanhá-los em
seus argumentos e levá-los a confessar. São pessoas maliciosas nas
respostas, porque não têm outra preocupação a não ser esquivar-se das
perguntas para não ficarem cercados no final, e serem convencidos de
que erraram.

XVI. Acrescentem à malícia mais malícia ainda. Mostrem sagacidade.


Vejam um exemplo das consequências nefastas da falta de sagacidade.
Uma prostituta conseguiu resistir dias e dias com respostas
evasivas a vários doutores ilustres que a interrogavam diante do Tribunal
da Inquisição, até que foi solta. Mas, logo depois, foi surpreendida
juntando os ossos de um herege queimado durante esse tempo, para
venerá-los como relíquias de um mártir!

118
Portanto, atenção a todas as precauções que foram expostas, para
evitar que pessoas nocivas, soltas injustamente, perseverem em erros e,
deste modo, possam corromper os outros.

22. Os dez truques dos hereges para


responder sem confessar

Os hereges sofisticam as perguntas — para esquivar-se delas — de dez


maneiras:

1. A primeira consiste em responder de maneira ambígua. —


Perguntados sobre o verdadeiro corpo de Cristo, respondem sobre
o seu corpo místico. Assim, se lhes perguntardes: “Crês que isto
seja o corpo de Cristo?”, responderão: “Sim, creio que isto é o
corpo de Cristo” (entendendo-se por isto uma pedra que estão
vendo ou o seu próprio corpo, no sentido de que todos os corpos
são de Cristo, porque pertencem a Deus, que é Cristo). Se lhes
perguntardes: “Crês que o batismo é um sacramento necessário à
salvação?”, responderão: “Creio (entendendo por isto que eles têm
uma crença, mas não a mesma vossa, e sim a deles; e não a
propósito do que foi perguntado, mas outras coisas). Se
perguntardes ao acusado: “Crês que Cristo nasceu de uma
virgem?, ele responderá: “Seguramente” (subentendendo-se que se
agarra, seguramente,à traição). Perguntai-lhe: “Crês em uma única
Santa Igreja Católica?”, e ele responderá: “Creio em uma Santa
Igreja”(subentendendo-se a comunidade dos seus cúmplices —
que chama “igreja” — e não a nossa Igreja). Mudam sempre o
sentido da pergunta e da resposta.

2. O segundo truque consiste em responder acrescentando uma


condição. — Se perguntardes ao acusado: “Crês que o casamento é
um sacramento?” Ele responderá: “Se Deus quiser, creio!”
(subentendendo-se que Deus não quer que ele acredite). Se
perguntardes: “Crês na ressurreição da carne?”, ouvirão como
119
resposta: “Claro, se agradar a Deus” (subentendendo-se que Deus
não quer que ele acredite).
3. O terceiro truque consiste em inverter a pergunta. — Se
perguntardes: “Crês que o Espírito Santo procede do Pai e do
Filho?”, tereis como resposta: “E vós, em que acreditais?” Nós lhe
diremos: “Acreditamos que o Espírito Santo procede do Pai e do
Filho.” Então, responderá: “Também acredito” (subentendendo-se:
acredito que creiais nisso, mas eu não acredito). Se perguntardes:
“Acreditas que a usura seja um pecado?”, responderá: “Em que
julgais que devemos acreditar?” Então direis: “Acreditamos que
todo católico deve acreditar que a usura é um pecado.” Ele, então,
responderá: “Também acredito” (subentendendo-se: acredito que
estais dizendo isso).
4. O quarto truque consiste em se fingir de surpreso. — Perguntais:
“Crês que Deus é o criador de todas as coisas?”, e ele responderá
com espanto, quase com indignação: “Mas em que outra coisa eu
acreditaria? Não devo acreditar nisso?” (subentendendo-se que ele
não deve acreditar nisso). Perguntareis: “Acreditas que o filho de
Deus se tenha encarnado no ventre virginal de Maria?”, e ele
responde espantado: “Meu Deus, por que me fazeis esta pergunta?
Então, acham que sou judeu? Sou cristão! Sabei que acredito em
tudo o que um bom cristão deve acreditar” (subentendendo-se que
o bom cristão não deve crer nessas coisas).
5. O quinto truque consiste em mudar as palavras da pergunta. —
Perguntareis: “Crês que é pecado prestar juramento durante um
julgamento?”, e ele responderá: “Acho que quem diz a verdade
não comete pecado.” Portanto, responde sobre a verdade e não
sobre o juramento, único objetivo da pergunta. E se perguntardes:
“Crês que é pecado prestar juramento?”, ouvireis como resposta:
“Acho que é um grande pecado jurar em vão.”
6. O sexto truque consiste numa clara deturpação das palavras. —
Perguntais: “Crês que depois de morrer Cristo tenha descido aos
infernos?”, e ele responde: “Senhor Inquisidor, que tema de
meditação, a morte de Cristo! E eu, pobre pecador, quase não
penso nela…” E assim esquiva-se da pergunta e começa a falar de
sua pobreza e da pobreza do Cristo. Perguntai-lhe: “Crês que
Cristo ainda estava vivo quando foi traspassado pela lança?”, e ele
responde: “Ouvi dizer que houve, no passado, uma grande
controvérsia em torno desse assunto, exatamente como hoje, no

120
que diz respeito à visão beatífica. Complicais tudo com vossas
perguntas! Dizei uma vez por todas, pelo amor de Deus, em que se
deve acreditar a propósito das almas dos bem-aventurados, pois
não quero me afastar da fé.” E assim desvia-se da pergunta que lhe
foi feita. Perguntais: “Acreditas que Cristo não possuía nada,
individualmente, nem em comum com outras pessoas?”, e ele
responderá dirigindo-se às pessoas que estiverem lá, levando-as a
interferir, a fim de desviar, por algum tempo, a pergunta.
7. O sétimo truque consiste numa auto-justificação. — Perguntais
sobre um artigo de fé, e ele responderá: “Mas, Senhor Inquisidor,
sou um homem simples e sem instrução, mas sirvo a Deus na
minha simplicidade. Não sei nada sobre essas questões nem sobre
suas sutilezas! Não me façais perguntas sobre essas coisas, porque
abalariam a minha fé e me induziriam em erro.” Ou então irá
responder-vos num outro tom: “Senhor, penso, de bom grado, em
Deus, também, de bom grado, pensaria em suas obras admiráveis,
nos artigos de fé e na Trindade. Mas acontece então que duvido da
fé e corro um risco…, então, por favor, não me façais pensar
nessas sutilezas das quais nem quero ouvir falar… Não me façais
correr riscos! Por nada neste mundo, quero correr o risco de me
enganar!”
8. O oitavo truque consiste em fingir uma súbita debilidade física! —
Perguntado insistentemente sobre a fé, o acusado percebe que não
vai conseguir evitar todas as armadilhas do interrogatório; sentindo
que acabará confessando a sua heresia, exclama, de repente:
“Tenho dor de cabeça, não aguento mais. Por favor, deixai-me
descansar um pouco; pelo amor de Deus.” Ou então: “Estou me
sentindo mal… Perdoai, pelo amor de Deus, mas preciso me
deitar!” Vós o deixais, e ele se deita durante algum tempo. Tempo
esse que será utilizado para refletir sobre o que deverá dizer para
desviá-los ainda, quando recomeçar o interrogatório. Os acusados
fazem isso principalmente quando percebem que vão ser
torturados: dizem que estão doentes, que vão morrer, se forem
torturados, e as mulheres alegam a menstruação.
9. O nono truque consiste em simular idiotice ou demência. —
Fingem que são loucos — como fez o rei Davi diante de Acaz —
para não serem humilhados. Riem enquanto respondem às
perguntas, misturando várias palavras inconvenientes, engraçadas
e absurdas. Assim, acabam encobrindo os seus erros. Fazem isso

121
frequentemente, quando sentem que vão ser torturados ou que vão
ser entregues à autoridade secular. Tudo isso, para escapar à
tortura e à morte. Vi isso mil vezes: os acusados fingem que são
completamente loucos ou que têm somente alguns momentos de
lucidez.
10. O décimo truque consiste em se dar ares de santidade. Os hereges
são diferentes do comum dos mortais tanto nos costumes, quanto
nas vestimentas e na maneira de falar. Andam, quase sempre,
descalços ou com simples sandálias, vestindo-se pobremente. Uns
se vestem de branco, outros de marrom; alguns usam um manto,
outros usam túnica longa e larga; não usam cinto, e sim uma corda
na cintura. Alguns usam um capuz, outros cabelos longos: depende
da seita de cada um. Alguns andam com a cabeça baixa, olhando
para o chão, outros andam olhando para o céu. Falam muito em
humildade e têm a aparência de santos, como túmulos pintados de
branco e dourado abrigando cadáveres. Porque, por dentro, são
cheios de orgulho, luxúria, gula, inveja e vaidade: quem conhece
sabe disso. Com seu ar de santos, contagiam várias pessoas
esquivando-se, assim, do julgamento da Inquisição.

Estes são os dez truques de que se valem os hereges para se


proteger. Há ainda outros, que se vão descobrindo na prática inquisitorial.

XVI. A questão de se fingir de louco merece uma atenção especial. E se


se tratasse, por acaso, de um louco de verdade? Para ficar com a
consciência tranquila, tortura-se o louco, tanto o verdadeiro como o falso.
Se não for louco, dificilmente poderá continuar a sua comédia sentindo
dor. Se houver dúvidas, e se não se puder saber se se trata mesmo de um
louco, de toda maneira, deve-se torturar, pois não há por que temer que o
acusado morra durante a tortura (cum nullum hic mortis periculum
timeatur). Mas se o herege continuar blasfemando como um louco
durante a tortura, e mesmo quando for conduzido para a execução, não
haverá como suspendê-la para fazê-lo arrepender-se, de modo a que perca
a vida, sem perder também a alma? Parece-me que sim. Mas é preciso
lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à
morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e
intimidar o povo (ut alii terreantur). Ora, o bem comum deve estar acima
de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando o bem de um
indivíduo.

122
E o que fazer quando o acusado for mesmo louco? Ficará preso
enquanto não recobrar a razão: não se pode mandar um louco para a
morte, mas também não se pode deixá-lo impune. Quanto aos bens do
louco, vão para as mãos de um procurador ou dos herdeiros: porque a
loucura, após o crime, pode retardar o castigo físico, mas não livra da
perda dos bens.

23. Os dez truques do inquisidor para


neutralizar os truques dos hereges

Quando o inquisidor enfrenta um herege esperto, audacioso, malicioso,


que se esquiva das perguntas e desconversa, deve agir da mesma maneira
e usar de malícia, a fim de forçar o herege a revelar os erros,
convertendo-os em verdade, para que o inquisidor possa dizer como o
Apóstolo: “Homem astuto que sou, conquistei-vos pela fraude” (2 Cor
12,16).
Os truques do inquisidor são dez. Ele utilizará os que quiser, de
acordo com a situação e as necessidades.

1. O primeiro consiste em desfazer as dúvidas, os artifícios etc., que


puder perceber nas respostas do herege. O inquisidor lhe
perguntará a qual Igreja se refere quando diz “Igreja”. Se o herege
mencionar o Papa, o inquisidor perguntará de que Papa ele está
falando, e onde vive esse “Papa”. O inquisidor verá como
esclarecer as dúvidas.

2. Trata-se de um suspeito que acabou de ser capturado e não quer


confessar (e isso, pode-se saber facilmente tanto através dos
carcereiros como através das testemunhas e emissários enviados ao
preso)? Pedirão, através de terceiros, que diga a verdade ao
inquisidor,porque, segundo eles, o inquisidor é um homem
honesto. E quando o réu estiver na frente do inquisidor e este
perceber que o outro não quer mesmo confessar, falará com ele
calmamente, com tranquilidade, fazendo-lhe compreender que já
sabe de tudo. Usará este tipo de linguagem: “Vês, tenho pena de ti.
Abusaram da tua simplicidade, e vais perder a alma por causa da
burrice de outra pessoa. É claro que tens um pouco de culpa! Mas
123
quem te desencaminhou tem ainda mais! Não te responsabilizes
pelo pecado dos outros, não queiras ser professor onde foste
aluno... Dize a verdade. Estás vendo que sei de tudo, mas dize tu
mesmo, para que tua reputação seja preservada e não fiques
malfalado... Assim, eu poderia soltar-te imediatamente! Poderia
perdoar-te, e voltarias logo para casa. Dize-me: quem te induziu
em erro (a ti, que não fazias nenhum mal a ninguém!)? Dize-me,
onde te doutrinaram…”
Esta é a linguagem que se deve usar com ele. Com calma, sem
irritação, e considerando sempre o acusado como culpado, mas só
perguntando sobre as circunstâncias do delito.

3. O herege não quer confessar, mas o inquisidor está convencido das


suas culpas com base nos depoimentos. Neste caso, o inquisidor
deve ler ou mandar ler os depoimentos das testemunhas, omitindo
seus nomes, de forma a que o herege se sinta confundido pelos
depoimentos, sem saber quem depôs contra ele. Ou, então,
mandará confrontar as testemunhas e o réu para “colher”a verdade,
aproveitando-se para confundi-lo. Procederá assim, principalmente
se o réu declarar que pode ser acareado com seus delatores.

4. O herege — ou réu — não quer confessar. O inquisidor sabe que


os depoimentos das testemunhas não são suficientes como provas,
mas não faltam indícios de que é culpado. Neste caso, o inquisidor
deporá contra ele. O acusado nega? O inquisidor apanhará o seu
dossiê, começará a folheá-lo atentamente, dizendo, depois: “Claro
que estás mentindo, eu é que tenho razão! E então? Dize a verdade
sobre o teu problema” (o truque consiste em fazê-lo ouvir que o
dossiê realmente o incrimina e que ele aparece como uma pessoa
verdadeiramente culpada de heresia). Ou, então, o inquisidor
segura um papel; quando o réu começar a negar, o inquisidor,
espantado, dirá: “Como podes negar: ainda não está bastante
claro?" E começará a ler o papel, mudando o que acha melhor.
Depois, dirá: “Eu é quem dizia a verdade! Confessa logo, porque,
como estás vendo, sei de tudo!” Porém, o inquisidor, ao proceder
assim, deve tomar cuidado para não se deter muito nos detalhes,
para que o herege não perceba que o inquisidor, na verdade, ignora
os fatos! Deve-se prender às generalidades, dizendo, por exemplo:
“Sabemos onde estavas, com quem, quando, e o que dizias!” E
deve juntar tudo o de que tem certeza.

5. Se o herege continuar negando, o inquisidor deve fingir que vai se


ausentar por muito tempo, dizendo mais ou menos assim: “Vê,
tenho pena de ti...Queria realmente que confessasses para que eu

124
pudesse resolver o teu problema, e não o deixar preso. Porque és
muito frágil,e podes ficar doente! Preciso ir aonde o dever me
chama e não sei quando poderei voltar. Não queres confessar,e,
assim, me obrigas a manter-te preso até o meu retorno... Tenho
pena (disciplicentia), sabes, porque não sei quando vou voltar!” O
inquisidor voltará a interrogá-lo depois de falar essas palavras, e
pode ser que consiga, então, que ele confesse.

6. Se o acusado continuar negando, e o inquisidor achar que ele


omite seus erros — embora não haja provas —, intensificará os
interrogatórios modificando as perguntas. Obterá, deste modo, ou
a confissão ou, então, respostas discrepantes. Se obtiver respostas
discrepantes, perguntará ao acusado por que, de repente, responde
de um jeito, e depois, de outro: pressiona-o a dizer a verdade,
explicando-lhe que, se não ceder, terá que ser torturado.
Se confessar, tudo bem. Senão, isso bastará, juntamente com os
outros indícios, para levá-lo à tortura e, deste modo, arrancar-lhe a
confissão.
No entanto, esse tipo de interrogatório — privilegiando as
respostas discrepantes — deve ser reservado, de preferência, para
os acusados que se revelarem claramente teimosos, porque é fácil,
efetivamente, mudar as respostas quando se é perguntado muitas
vezes sobre vários assuntos ao mesmo tempo; e sempre os mesmos
assuntos, e em ocasiões diferentes.
7. Se o inquisidor perceber que o herege não quer, absolutamente,
dizer a verdade, não lhe fará promessas, tomando a precaução de
não liberá-lo sob fiança, porque as promessas não se revelariam
úteis para fazê-lo confessar. Soltar um herege sob fiança só tem
uma consequência: permitir que se corrompa mais, apenas
retardando, afinal de contas, o desfecho do problema.
8. O herege continua negando? O inquisidor falará com ele
delicadamente, tratando-o com benevolência ao comer e ao beber.
Colocará junto com o herege alguns fiéis íntegros, que,
frequentemente, conversarão com ele sobre vários assuntos. Estes
fiéis irão convencê-lo a abrir-se com eles, a contar-lhes tudo, em
confiança; darão conselhos para ele confessar a verdade e farão
promessas de que o inquisidor lhe perdoará, e que eles é que serão
os seus advogados diante do juiz. No final, se for necessário, o
próprio inquisidor irá com esses fiéis até a presença do herege e
ele mesmo fará a promessa de perdoar-lhe — e lhe perdoará,
efetivamente, pois tudo o que se fizer para a conversão de hereges,
é perdão; e as penitências são perdão e remédio. E, se o réu pedir
perdão e confessar, deve-se responder que farão por ele ainda mais

125
do que pede. A coisa se passará da seguinte maneira: com palavras
vagas e generosas, de modo a obter a confissão completa e a
conversão do herege, a quem farão, então, a gentileza de ministrar
o sacramento da penitência.
9. Se o herege teima em negar, o inquisidor mandará para junto dele
um de seus antigos cúmplices que se tiver convertido e for bem
aceito pelo réu. O inquisidor providenciará tudo para que
conversem. O convertido poderá contar que é ainda um herege,
que só abjurou por medo e que foi por isso que contou tudo ao
inquisidor. Quando o réu tiver adquirido confiança, o convertido
fará tudo para prolongar a conversa até o anoitecer. Dirá, então,
que é muito tarde para ir embora e pedirá permissão ao réu para
passar a noite na prisão com ele. Vão conversar, ainda, durante a
noite, e falarão, obviamente, do que fizeram juntos. Colocam-se as
testemunhas, além do escrivão inquisitorial, num bom lugar, na
escuta -com a cumplicidade da escuridão.
10. Se o réu começa a confessar, o inquisidor não deverá interromper a
confissão sob nenhum pretexto. Sabemos que a interrupção da
confissão quase sempre é fatal: quem estiver confessando, se for
interrompido de repente, cairá no mutismo.
Estes são os dez truques que os inquisidores dispõem para
arrancar, com elegância (gratiose), a verdade da boca dos hereges, sem
recurso à tortura.
XVI. Um comentário se impõe: não se há de objetar que malícia é
sempre proibido? Deve-se fazer uma distinção entre mentira e mentira,
malícia e malícia! A malícia cuja única finalidade é enganar deve ser
sempre proibida e não tem nada a ver com a prática do Direito; mas a
mentira que se prega judicialmente, em benefício do Direito, do bem
comum e da razão, é absolutamente louvável. Quanto mais, a mentira que
se preza para detectar a heresia, erradicar os vícios e converter os
pecadores. Lembremo-nos do julgamento de Salomão!
Eymerich fala, no terceiro truque, de “acareação entre as
testemunhas e o acusado”. Na verdade, este tipo de procedimento será
evitado sempre, nas causas da Inquisição, por razões óbvias.
a. Se houver acareação, não haverá mais sigilo; e já se falou bastante
da quantidade de precauções que a lei toma para proteger o sigilo
da acusação e tudo o mais que disser respeito à instrução do
processo.
b. Se a acareação não der resultado, as testemunhas correm um risco
muito maior. Sem proibir por completo esta prática, a Inquisição
126
madrilenha, na Instrução de 1561 (cap. 72), adverte contra ela,
chamando, aliás, a atenção para a sua frequente inutilidade.
Concluindo, só se deve recorrer à acareação em situações de ex-
trema gravidade e, principalmente, nos casos que serão analisados mais
adiante, a propósito da décima segunda maneira de se concluir um
processo.
No oitavo truque, o inquisidor é convidado a “perdoar”. Isto não é
simplesmente uma desonestidade? E, se o inquisidor promete perdoar,
como poderá deixar de manter a palavra? Esta é uma questão que os
doutores da Igreja analisaram e que estão longe de ter um consenso
unânime para resolvê-la. Quanto a mim, sustento que: a) o inquisidor não
deve prometer nada que não possa cumprir, pois é pecado; b) reduzindo,
mesmo numa proporção mínima, a pena atribuída a um delito (e é
raríssimo que o culpado não tenha cometido vários delitos), o inquisidor
que tiver prometido “perdoar”, terá mantido sua palavra; c) a
consequência destes dois princípios é que, em nenhuma circunstância,
poder-se-á prometer o perdão a um relapso.
Finalmente, os doutores da Igreja acham que a confissão obtida em
decorrência de uma promessa de perdão não tem nenhuma validade:
deverá ser ratificada. Efetivamente, muitos réus, com medo dos rigores
da prisão ou dos castigos, passariam logo para este tipo de confissão
benevolente, o que seria grave. Além disso, é preciso considerar que
quem fizesse a confissão nestas condições na realidade estaria querendo
muito mais abreviar o interrogatório e esconder alguma coisa do que
confessar.

127
F. INDÍCIOS EXTERIORES
PELOS QUAIS SE
RECONHECEM OS HEREGES

Os inquisidores devem ser capazes de reconhecer as particularidades


rituais, de vestuário etc., dos diferentes grupos de hereges.

XVI. Se os indícios exteriores da heresia mudaram muito desde os


tempos de Eymerich, não é menos verdade que sempre se pode detectar a
heresia através de alguns indícios exteriores (a heresia que absolutamente
não se enquadrasse nesta regra escaparia, por definição, ao controle do
inquisidor, interessando, apenas, ao Tribunal Divino). Por indícios
exteriores, entendemos palavras e fatos. Mas, visto que é materialmente
impossível listar todos eles, vamos estabelecer algumas regras gerais:

1. É herege quem disser coisas que se oponham às verdades


essenciais da fé.
2. Também é herege:
a. Quem praticar ações que justifiquem uma forte suspeita
(circuncidar-se, passar para o islamismo…);
b. Quem for citado pelo inquisidor para comparecer, e não
comparecer, recebendo a excomunhão por um ano inteiro;
c. Quem não cumprir a pena canônica, se foi condenado pelo
inquisidor;
d. Quem recair numa determinada heresia da qual abjurou ou
em qualquer outra, desde que tenha abjurado;
e. Quem, doente ou saudável — pouco importa —, tiver

128
solicitado o “consolamento”.
Deve-se acrescentar a esses casos de ordem geral: quem
sacrificar aos ídolos, adorar ou venerar os demônios, venerar o trovão, se
relacionar com hereges, judeus, sarracenos etc.; quem evitar o contato
com fiéis, for menos à missa do que o normal, não receber a eucaristia
nem se confessar nos períodos estabelecidos pela Igreja; quem, podendo
fazê-lo, não faz jejum nem observa a abstinência nos dias e períodos
determinados… etc.
A lista dos indícios exteriores de heresia seria longa. Zombar dos
religiosos e das instituições eclesiásticas, em geral, é um indício de
heresia. Marco Antônio Colonna Marsilio, arcebispo de Salerno, por
exemplo, chamou diante do Tribunal da Inquisição, algumas pessoas que
achavam dever ilustrar as Bulas de excomunhão com figuras obscenas.
Este tipo de atitude é da alçada, evidentemente, do Tribunal do Santo
Ofício.
Mas vamos resumir isto tudo numa palavra: existe indício
exterior de heresia toda vez que houver atitude ou palavra em desacordo
com os hábitos comuns dos católicos32.

24. Por quais indícios reconhecer


um pseudo-apóstolo33

Os pseudo-apóstolos são reconhecidos através das seguintes


características:

32 Observa-se uma curiosa mudança: a edição romana transforma completamente em provas de


heresia o que o inquisidor do século XIV considerava como indícios de forte ou violenta suspeita.
33 A seita dos pseudo-apóstolos foi fundada em 1260 por Gerardo Segarelli, da cidade de Parma. Os
pseudo-apóstolos foram condenados em 1286 pelo Papa Honório IV (Olim felicis recordationis), e
novamente, em 1290, pelo Papa Nicolau IV (Dudum felicis recordaiionis). Gerardo Segarelli foi
condenado e mandado para a fogueira durante o pontificado de Bonifácio VIII.
129
Vestem uma longa túnica, toda branca, com uma túnica branca por
cima. Na cintura, não usam um cinto de couro, e sim uma corda. Têm os
cabelos longos e andam com a cabeça descoberta. Calcam sandálias ou
andam descalços. Vão de um lugar para o outro e comem nas praças
públicas, em mesas postas para eles. Na hora de sentar-se, benzem-se e
dão graças cantando. Após essas refeições públicas, não levam os restos:
deixam tudo sobre a mesa, e vão pelas ruas cantando e gritando: “Fazei
penitência, pois o Reino de Deus está próximo.” As vezes, cantam a
Salve-Rainha. Têm a pretensão de viver da caridade alheia como os
apóstolos. Não obedecem a ninguém: chamam a si mesmos de
“apóstolos”.

25. Por quais indícios reconhecer um


maniqueu34

Os maniqueus jamais prestam juramento. Têm três quaresmas por ano (de
S. Bento ao Natal; do primeiro domingo da Quaresma até a Páscoa; de
Pentecostes à festa de S. Pedro e S. Paulo). Chamam de Semana Santa a
última semana de cada uma destas três Quaresmas. Durante essas três
Semanas Santas, alimentam-se de pão e água; o restante das Quaresmas,
jejuam à base de pão e água, durante três dias por semana. Jamais comem
carne; nem a tocam. Não comem queijo, ovos, nem nada que nasça da
carne, seja por reprodução ou coito. Não matam nenhum animal que ande
ou voe, porque acreditam que nos animais capazes de voar ou andar se
encontram as almas de quem morreu sem entrar na seita. Não dormem
jamais com mulheres. Têm a pretensão de viver como os apóstolos.

26.Os valdenses

34 ’Trata-se, na realidade, dos cátaros, cuja história é bastante conhecida para que se precise
completar — e corrigir! — as poucas linhas que Eymerich lhes dedica.
130
Os valdenses, ou pobres de Lião, ou ainda, “enchinelados”, recebem este
nome por causa do seu fundador, um lionês chamado Valdo. Chamam-
nos “enchinelados" porque os mais perfeitos entre eles usam uma espécie
de emblema em cima do calçado (chinelos) através dos quais são
reconhecidos. Nunca prestam juramento. Dizem-se imitadores dos
apóstolos. Ignoram as decretais e as leis do soberano pontífice. Não
conhecem outra oração senão o Pai-Nosso. Recusam qualquer
julgamento humano. Comem carne todo dia. Entregam-se totalmente aos
prazeres da carne. Às segundas e quartas-feiras, fazem jejum, mas sem se
absterem de comer carne. Declaram que é melhor passar por qualquer
indignidade do que ficar tentado interiormente. Escolhem um líder e
prestam-lhe obediência: só obedecem a ele. Quando se sentam à mesa,
benzem-se assim: “Abençoe esta mesa Aquele que abençoou os cinco
pães de cevada e os dois peixes para os seus discípulos no deserto.” E, ao
se levantarem da mesa, dizem estas palavras do Apocalipse: “Louvor,
luz, sabedoria, ação de graças, virtude e poder ao nosso Deus pelos
séculos dos séculos, Amém.” Dizem isto com as mãos e o olhar voltados
para os céus.

27. Os beguinos, ou fraticelli35

São reconhecidos por isto:


Pretendem seguir a Regra terceira de São Francisco. Vestem-se de
burel e, às vezes, usam um manto. Colocam um capuz, que esconde
quase todo o rosto. São pálidos, embora, geralmente, sejam muito gordos.
Comem e bebem com muito aparato. Adoram os banquetes. Não evitam a
companhia das mulheres: ao contrário, buscam-na! Como saudação e
para responder aos cumprimentos, dizem: “Bendito seja Jesus Cristo”
(ou: “Bendito seja o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo”). Dizem a
mesma coisa quando entram em casa. Na igreja, ao invés de se
ajoelharem e juntarem as mãos como todo mundo, ficam em pé. Se
sentarem, é no chão e de frente para a parede. Não elevam os olhos para o
céu. Uns vivem da caridade pública nas ruas, outros vivem em suas casas.
Atraem muitas prostitutas para a sua confraria e vivem com elas. Durante
35 Discípulos de Pierre-Jean Olieu, de Sérignan (Hérault)
131
a noite, lêem para elas, em segredo, passagens do comentário ao
Apocalipse de Pedro João (condenado pela Igreja) e outros opúsculos:
tudo isto em língua vulgar. Trata-se de hereges bastante traiçoeiros, que
se opuseram muito — e se opõem ainda — à Igreja.

28. Os rejudaizantes

Os judeus oficialmente convertidos, mas que na realidade continuam fiéis


ao judaísmo, são reconhecidos da seguinte maneira:
Vão raramente à igreja, frequentam a comunidade judia. Fazem
amizade com judeus e evitam o contato com cristãos. Nas festas judias,
comem com os judeus. Não comem carne de porco. Às sextas-feiras,
comem carne. Guardam o sábado. E, escondidamente, trabalham em suas
casas nos dias de festa.

XVI. Estes são os indícios através dos quais se reconhece quem descende
do judaísmo, principalmente nas regiões onde se permite que os judeus
convivam com os cristãos, e onde — Roma, por exemplo — acontece
frequentemente de judeus se converterem ao catolicismo. O inquisidor
“procederá contra” qualquer cristão que manifeste, por um dos indícios
apontados, uma simpatia, de fato, pela seita judaica.
É preciso, ainda, acrescentar um outro indício àqueles apontados por
Eymerich: a mudança de nome. Os judeus que se converteram ao
catolicismo e depois voltaram a ser judeus, abandonam o nome cristão
que receberam no batismo, reassumindo o seu antigo nome.
Vamos lembrar também que, no Placitum, datado do ano 653 e
mencionado no Fuero Juzgo, os convertidos de Toledo se obrigam a
fazer justiça — pelo fogo ou pelo apedrejamento — a todo aquele cujos
atos (não comer carne de porco, casar com judias ou com quem tiver um
ancestral judeu — até o sexto grau) puderem justificadamente fazer crer
que só se converteram no nome.
Sobre a questão da comida, Simancas afirma que o fato de não
comer carne de porco ou não beber vinho são indícios suficientemente
claros de que pertencem ao judaísmo ou ao islamismo. Não vamos
exagerar! Os estômagos não suportam todas as comidas, nem todas as
bebidas. E tais indícios, por si sós, não poderiam ser conclusivos. Sem
contar que qualquer judeu convertido, que jamais tenha experimentado

132
certas carnes, pudesse facilmente habituar-se a um outro tipo de comida!
Por outro lado, haveria uma suspeita gravíssima se o filho ou os
descendentes do convertido continuassem a se abster de certas carnes:
por que se absteriam, senão por respeito e reverência a essa satânica seita
judaica?
Devem-se fazer considerações semelhantes a propósito dos cristãos
que vêm de outras seitas fora do judaísmo e do islamismo.

29. Os necromantes

Os mágicos heretizantes, necromantes ou invocadores do diabo — é tudo


a mesma coisa — têm indícios exteriores comuns.
Em geral, devido ao efeito das visões, das aparições e das conversas
com os espíritos do mal, têm uma expressão maliciosa e o olhar
dissimulado. Põem-se a adivinhar o futuro, mesmo as coisas que
dependem somente da vontade de Deus ou dos homens. A maioria faz
alquimia ou astrologia. Se levarem ao inquisidor alguém acusado de
necromancia, e se o inquisidor perceber que é astrólogo, alquimista ou
adivinho, terá um indício certo: todos os adivinhos são, manifesta ou
secretamente, adoradores do diabo. Os astrólogos também, e os
alquimistas idem, pois quando não conseguem os seus fins, pedem
conselho ao diabo, suplicando-lhe e invocando-o. E, se suplicam,
veneram, evidentemente.

XVI. Observem que Eymerich fala de “mágicos heréticos”, e não de


mágicos, em geral. E, com razão, porque é preciso distinguir duas
categorias de magia: a magia matemática e a magia natural ou elementar.
Na realidade, as duas são naturais e podem ser praticadas sem recorrer ao
diabo: a magia matemática, por meio das regras aritméticas e
geométricas, e a elementar, por outros meios, dos quais falarei mais
adiante.
A magia natural consiste em produzir efeitos maravilhosos pela
fabricação ou mistura de certas coisas. Alguns exemplos: produz-se por
magia natural uma mistura que queima dentro d'água e incendeia em
contato com os raios do sol; ou então apaga-se com um óleo o material
133
que entrou em combustão através de um certo método.
Pela magia matemática, ou seja, pela aplicação dos princípios da
geometria e da aritmética, fabricam-se objetos maravilhosos. Basta
lembrar o caso de Arquitas, que, construiu uma pomba que voava (o
grande filósofo Boécio é testemunha); o caso de Giorgio Capobianco
Vicentino, que, pelo mesmo processo, construiu um barquinho de prata
que se deslocava sozinho: os remadores remavam; ao mesmo tempo, uma
mulher tocava lira na popa, e, na proa, um cão ladrava. O segredo deste
automatismo (deixo aos curiosos o cuidado de aprofundar os detalhes)? A
utilização sábia da força das águas.
Nada de reprovável no exercício destes dois tipos de magia. Mas
deles nasce um terceiro outro tipo: a bruxaria (venefica) ou magia
maléfica, que se utiliza fartamente de encantações e invocações de
espíritos impuros. Há, na sua origem, uma curiosidade perversa. Alguém
se entusiasma pelos prodígios do automatismo e, incapaz de realizá-los,
invoca o demônio, suplicando que venha em sua ajuda para que também
possa praticar essas maravilhas. É sobre estas pessoas que Eymerich está
falando, quando diz “mágicos heréticos”. Trata-se, na verdade, de
partidários desse tipo de magia, que os gregos chamavam de γοητείαν ου
κασώγιαν, através da qual realizavam-se (a acreditar-se no testemunho
dos poetas gregos) encantações, envenenamentos, etc., com a ajuda do
diabo.
O que se deve entender por essa “companhia do diabo” de que fala
Eymerich? Segundo suas próprias confissões, esses mágicos utilizam as
coisas sagradas para as encantações. Erigem altares aos demônios,
acendem velas e lhes dirigem orações. Portanto, Eymerich está certo ao
considerá-los hereges. Juntamente com Simancas, gostaria de lembrar
que o invocador do demônio que reincidir nesta prática, depois abjurar, é
relapso, e sofre a pena prevista para tais casos. A menos que, depois de
abjurar, faça a invocação para praticar o mal (por exemplo, para
conseguir submeter a vontade de uma mulher aos próprios desejos e fazê-
la sucumbir ao pecado): neste caso, não existe heresia, porque o demônio
é invocado para que faça o que corresponde à sua própria natureza:
tentar. Concluindo: existe heresia, se, na invocação, o invocado (o
demônio) é tratado com o Criador; caso contrário, falaremos de pecado, e
não de heresia. Isto é o que está de acordo, ponto por ponto, com o que
foi dito anteriormente.
E os alquimistas? O julgamento de Eymerich sobre eles não causa
espanto a ninguém. Os exemplos de cumplicidade entre heresia,

134
invocação de demônios e alquimia são muito numerosos para que se
precise insistir nisto. Basta lembrar o caso de Arnaldo de Villanova, de
quem se tem certeza de que era alquimista, e, além de um grande médico,
um grande herege e demonólatra.
Já sei que vão criticar duramente o julgamento que Eymerich faz
dos alquimistas. Mas essas críticas serão bastante injustas, porque são
inúmeros os argumentos para concluir que os alquimistas são impostores.
Não faltam autores que, sem temer contradizer-se nos argumentos,
defendem a alquimia. Mas é bem mais inteligente, mais prudente, ouvir a
opinião de quem a considera inútil, e, mais ainda, prejudicial para a
sociedade. De qualquer maneira, esperando saber um dia, com toda a
segurança, se é possível ou não produzir, por alquimia, o ouro, a prata ou
pedras preciosas (o que, na realidade, não interessa ao inquisidor
diretamente), o inquisidor estará muito atento às condições de quem
praticar a alquimia: será mais flexível com o alquimista rico do que com
o alquimista pobre. O rico não correrá o risco de se arruinar praticando a
alquimia e pode tranquilamente não chegar a invocar o diabo se fracassar:
e o fracasso é certo. Não se poderia dizer o mesmo do alquimista pobre.
Já estou vendo os protestos que esta opinião vai provocar entre os
“mestres” dessa arte. Direi simplesmente que façam uma consulta à
“extravagante” Spondent quas non exhibent divitias pauperes
alchimistae, do Papa João XXII, onde estão previstas as penas mais
graves para os alquimistas que vendem, como se fosse ouro verdadeiro, o
ouro alquímico — ou a prata, as moedas — que falsificaram.

135
G. OBSTÁCULOS À RAPIDEZ
DE UM PROCESSO

Devem-se analisar, agora, as causas da demora dos processos e do atraso


na promulgação das sentenças. São cinco: 1) o grande número de
testemunhas; 2) a participação da defesa; 3) a destituição do inquisidor;
4) a apelação; 5) a fuga do acusado.

30. O número excessivo de


testemunhas

O grande número de testemunhas é a primeira causa da demora


inútil do processo inquisitorial e do atraso na proclamação da
sentença. Muitas testemunhas, às vezes, é necessário, mas, às vezes,
é inútil.
É inútil quando o réu, reconhecido por três, quatro ou cinco
testemunhas idôneas, faz a confissão de acordo com os termos da
delação, e isto, independentemente de admitir ou não que
confessou36. Neste caso, não há necessidade de se ouvir a defesa,
nem interrogar outras testemunhas. É só declarar a sentença e aplicar
a pena.
O denunciado não reconhece totalmente o seu crime; é
confundido por algumas testemunhas (duas a cinco) e não confessa
nem total nem parcialmente, dando muito mais a impressão de teimosia
36 Passagem absolutamente clara, se lembrarmos que o acusado não sabe por que foi denunciado nem
de que é acusado. Portanto, o acusado pode perfeitamente ignorar que confessou.
136
e malícia do que de obediência e arrependimento: neste caso, ainda que,
na verdade, poucas testemunhas sejam suficientes, outras serão ouvidas,
porque será mais difícil se opor a dez, quinze ou vinte testemunhas do
que a apenas três ou quatro. Para fazer o réu reconhecer o seu crime, o
inquisidor agirá com o máximo de malícia ao ouvir os vários
depoimentos de fiéis fervorosos.

XVI. Bastam duas testemunhas. Esta é a lei da Inquisição. Entretanto,


tenho que transmitir de acordo com o texto do Manual. A intenção clara
de Eymerich é encorajar uma prática criteriosa nos casos em que o réu
continuar negando.

31. Admissão de um defensor

O fato de dar o direito de defesa ao réu também é motivo de lentidão no


processo e de atraso na proclamação da sentença. Essa concessão
algumas vezes é necessária, outras não.
Quando o réu confessa o crime - sendo ou não reconhecido por
testemunhas - para quem o denunciou e a confissão corresponde às
denúncias, não vale a pena oferecer-lhe um defensor para atuar contra as
testemunhas. Na verdade, a confissão tem mais credibilidade do que o
depoimento das testemunhas.
Quando nega o crime; quando há testemunhas a seu favor; ou
quando pede para ser defendido, ainda que se ache que seja inocente ou
teimoso, pecador inveterado ou cheio de maldade, ele pode se defender:
ser-lhe-á concedida uma defesa jurídica.
Será designado um advogado honesto, com experiência em Direito
Civil e Canônico, e bastante fervoroso. Será nomeado, também, um
procurador. Os nomes tanto de um quanto de outro não aparecem nos
autos do processo. Os nomes dos delatores, como se sabe, não podem
aparecer, para evitar represálias por parte de pessoas que pudessem
apoiar os réus (se, aparentemente, não houver nenhum perigo, o
inquisidor registrará todos os nomes nos autos do processo).
O que se entende aqui por “poder” é, principalmente, o poder do
dinheiro e da maldade. É fácil adivinhar o que poderia acontecer às
testemunhas e ao procurador se seus nomes aparecessem publicamente,
nas situações em que os cúmplices do réu fossem sacrílegos ou
137
depravados que não tivessem nada a perder; ou quando o réu fosse uma
pessoa poderosa - soldado, rico, comerciante- que tivesse alguma coisa a
perder... mais que a sua própria pessoa. São coisas que o inquisidor vive
diariamente.
Portanto, antes de pensar na publicação dos nomes dos delatores, é
preciso atentar bastante para a condição pessoal do acusado: levar em
conta a sua maldade; considerar se é um pobre-diabo (simplex pauper) ou
uma pessoa rica; se pertence a um grupo de bandidos ou de pessoas
honestas; etc.
Que o acusado de heresia não vá pensando que pode facilmente
recusar as testemunhas, porque jamais se recusam as testemunhas no
procedimento inquisitorial, exceto em caso de inimigos mortais.
Qualquer pessoa pode testemunhar em favor da lei. Qualquer pessoa,
mesmo as pessoas indignas, os criminosos comuns e seus cúmplices, os
infiéis, os excomungados, todos os culpados de qualquer crime. Só se
recusa o testemunho de um inimigo mortal, quer dizer, de quem já
atentou contra a vida do acusado, jurou-lhe de morte ou já o feriu. Nestes
casos, efetivamente - e somente nestes casos -, deve-se presumir que a
testemunha, que já tentou tirar a vida física do acusado ferindo-o,
continua com o mesmo projeto, ao impor ao seu inimigo o crime de
heresia.
Outros tipos de inimizade, mesmo graves, enfraquecem um pouco o
depoimento, realmente, e não mereceriam, talvez, um valor absoluto: mas
um testemunho de um inimigo, juntando-se outros pequenos indícios,
além de outros depoimentos, pode ser absolutamente decisivo.
O ordinário faz uma investigação suplementar quando o réu quiser
recusar uma testemunha de acusação sob o pretexto de que é ou foi seu
inimigo mortal. Cabe ao ordinário, ou ao inquisidor, estabelecer a
verdade ou a mentira dessa inimizade e determinar a sua gravidade.

XVI. Confissão prova mais do que depoimento? Nos outros tribunais, só


a confissão não prova suficientemente o crime (no entanto, num caso de
homicídio, basta a confissão do criminoso, se houver o cadáver da
vítima). Diante do Tribunal da Inquisição, basta a confissão do réu para
condená-lo. O crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido
na alma: portanto, é evidente que nada prova mais do que a confissão do
réu. Eymerich tem absoluta razão quando fala da total inutilidade da
defesa.

138
Se houver um advogado, ele tem que ser muito fervoroso, diz
Eymerich. Será excluído da Igreja, e a fortiori, do Tribunal da Inquisição,
todo advogado herege, suspeito de heresia ou com fama de herege. Deve-
se ter a garantia de que o advogado é de boa família, de antiquíssimas
raízes cristãs37. Se o réu confessar,não há necessidade de um advogado
para defendê-lo. Se não quiser confessar, receberá ordens de fazê-lo por
três vezes. Depois, se continuar negando, o inquisidor lhe atribuirá,
automaticamente, um advogado juramentado no seu tribunal. O réu
comunicar-se-á com ele na presença do inquisidor. Quanto ao advogado,
prestará juramento — embora já seja juramentado — ao inquisidor de
defender bem o réu e guardar segredo sobre tudo o que vir e ouvir. O
papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de
pedir a pena para o crime cometido.
Eymerich explica que também um procurador é nomeado. Nas
Instruções de 1561, o Senado inquisitorial madrilenho constata que, a
nível da Inquisição, o papel do procurador tornou-se insignificante e
sugere que não se proceda mais, salvo em situações excepcionais, através
de nomeação sua. Os advogados inquisitoriais encarregam-se também das
procurações.
Por outro lado, será nomeado sempre um curador para todo réu com
menos de vinte e cinco anos. O menor será assistido para que fale ou
silencie o que, certamente, contaria ou calaria,se fosse mais velho e,
portanto, capaz de agir em seu próprio interesse 38. O curador não seria
uma autoridade do Santo Ofício: mas pode ser advogado do réu, e sempre
terá que ser uma pessoa íntegra, séria, leal e de boa conduta.
Lembremos, mais uma vez, a propósito do registro dos nomes dos
delatores e da defesa nos autos, que o problema não se coloca mais nos
dias de hoje. Mas temos que destacar que, até o momento, todos os que
escreveram sobre isso, seguiram, criteriosamente, a doutrina de
Eymerich.

37 É dos cristianos viejos que o editor romano ouviu falar. É impressionante como a interpretação
romana, que tem uma abrangência universal, não se refira nunca — só de passagem — a essa
distinção espanhola entre cristiano viejo e um simples fiel. Peña não propõe, na edição de
Eymerich, a menor explicação para essa discriminação tipicamente peninsular.
38 Em seu próprio interesse “espiritual”, certamente, uma vez que o curador pode ser o advogado, e
que acabamos de ver em que consiste o papel do advogado nos processos da Inquisição.
139
Para terminar, os Concílios de Narbona e Béziers acrescentam os
conspiradores à lista das testemunhas que não podem ser aceitas.

Seis maneiras de esconder do réu os nomes dos seus delatores.


Como evitar a recusa por inimizade mortal

O bispo e o inquisidor levam muito a sério cada uma das seis maneiras de
apresentar os autos de acusação sem revelar os nomes dos acusadores ou
delatores. São elas:

1. Providencia-se para o réu uma cópia dos autos de acusação


completamente falsificada, de tal maneira que se atribua ao
primeiro delator as denúncias do sexto, ao antepenúltimo, as do
terceiro etc. Assim, o réu não vai saber quem depôs uma coisa,
quem o acusou de outra.

É um método que não parece favorecer muito ao réu, mas que traz,
realmente, um prejuízo ao delator. Além disso, o réu não vai saber quem
depõe a seu favor, contra ele nem o que depõe: corre o risco de juntar
todo mundo na mesma inimizade e considerar todos como inimigos.

2. Na cópia mostrada ao réu, misturam-se aos nomes dos verdadeiros


delatores nomes escolhidos ao acaso de pessoas que nunca
testemunharam contra ele. O réu pode, então, protestar e se
levantar contra todos eles, sem no entanto saber, de fato, quem
depôs contra ele.

É um método tão ou mais perigoso que o anterior, pois a cólera do


réu pode voltar-se contra quem depôs a seu favor ou contra ele, ou seja,
os extremos.

3. Ao final do interrogatório, antes de dar ao réu uma cópia dos autos


da acusação, perguntarão se tem inimigos mortais, que, sem
nenhum temor a Deus, não hesitariam em acusá-lo do crime de
heresia. Surpreso, sem esperar, sem saber que já depuseram contra
ele, responde que não conhece esses inimigos ou, caso admita que
os tenha,não cita justamente os que o denunciaram.

Trata-se de um bom método, bastante meticuloso. Sem pedir para

140
ser defendido e sem conhecer seus delatores, o réu responde sem reservas
e sem risco aos delatores. Entretanto, admitamos, este método prejudica o
réu.
4. No final do interrogatório, antes de dar um defensor ao réu, este
será questionado sobre as testemunhas cujos depoimentos foram os
mais graves. Isto, nos seguintes termos: “Conheces Fulano de tal?”
O réu responderá sim ou não. Se disser não, não poderá depois
mandar o defensor recusar esta testemunha, alegando que é seu
inimigo mortal: não acabou de afirmar, sob juramento, que não a
conhece? Se responder afirmativamente, perguntarão se nunca viu
ou ouviu o delator dizer ou fazer qualquer coisa contra a fé. Em
caso afirmativo, perguntarão se é seu amigo ou inimigo, e ele vai
responder que é seu amigo. A partir de então, não poderá mais
recusar o delator, alegando que é seu inimigo mortal. Mas, se
responder com a negativa, perguntarão a mesma coisa, se é seu
amigo ou inimigo. Dirá que é seu amigo, porque, senão, como é
que poderia saber o que o delator disse ou deixou de dizer, fez ou
deixou de fazer? E a defesa não poderá recusar esse depoimento.
Procede-se da mesma maneira com cada testemunha.

Este método é ainda mais sutil e malicioso que o anterior. É por isso
que é utilizado contra os réus particularmente maliciosos.

5. Dá-se ao réu uma cópia dos autos, sem os nomes. O réu, vendo os
argumentos da acusação, tenta descobrir quem o denunciou;
propõe nomes de pessoas que considera como inimigos mortais e
dá os motivos dessa inimizade. Depois, o inquisidor observa se o
réu acertou. Em caso positivo, considera e avalia as causas da
inimizade. Se julgá-las insuficientes, não as leva em consideração.
Caso contrário,interrogará sigilosamente as testemunhas e, se não
apresentarem provas plausíveis, não as aceitará.

Tal procedimento terá lugar na presença de especialistas. É o mais


comum.

6. Dá-se a cópia dos autos sem os nomes das testemunhas de defesa


nem dos delatores. Designa-se um advogado para fazer a defesa. O
réu alega que tem muitos inimigos mortais; cita os nomes dessas
pessoas e explica os motivos da inimizade. O inquisidor e o bispo
mandarão ler, em sessão secreta, os depoimentos do réu e suas
141
acusações ao conjunto de testemunhas, que terão jurado não deixar
transpirar nada dessa sessão, sob pena de serem excomungados.
Lá, na presença de teólogos e juristas, vão ponderar a intensidade
dessas inimizades. O delator que aparecer como inimigo mortal do
réu será recusado. Se a questão não for de morte, a delação e os
depoimentos contam. Para esse conselho secreto serão escolhidas
três pessoas, sendo que pelo menos duas serão do clero paroquial e
a terceira poderá ser um devoto leigo que conheça o delator e
possa, portanto, testemunhar sobre a existência ou não desta
inimizade. Os depoimentos destas três pessoas serão da maior
importância para a escolha da sentença.

É o procedimento que eu mesmo quase sempre adotei e não me


lembro de ter me decepcionado; ao contrário, graças a ele, sempre pude
chegar a estabelecer a verdade dos fatos.

XVI. Uma regra de bom senso deve sempre determinar a escolha de cada
um desses truques: a preservação do delator. Ela é de fundamental
importância, na medida em que, sem isso, seria malvisto quem ousasse
testemunhar contra hereges ou denunciá-los. Por outro lado, vê-se logo
quão lastimável seria para a sustentação da fé no seio do povo. Foi
levando em conta tudo isto que a primeira instrução de Sevilha previu,
explícita e expressamente, que, quando fosse preciso mostrar os
depoimentos das testemunhas, jamais se deveriam mostrar os originais, e
sim uma cópia, em que seriam supressos todos os detalhes que
permitissem, o mínimo que fosse, identificar as testemunhas ou os
delatores. Nessas cópias não seria feita nenhuma menção, por exemplo,
quanto ao dia e hora em que o crime foi cometido, nem quanto a qualquer
circunstância capaz de, na opinião do inquisidor, informar o réu. Na
verdade, decisões parecidas já tinham sido tomadas no passado, no
Concílio de Béziers.

32. Recusa do inquisidor

A recusa do juiz inquisitorial (inquisidor ou bispo) pelo réu pode ser


justa, injusta ou inócua. É justa quando o inquisidor nega ao réu a
142
presença de um defensor ou a assistência de um advogado. Neste caso,
como nos demais, o inquisidor irá considerar o motivo da recusa. Se
constata que transgrediu o Direito e a Justiça em prejuízo do réu
(recusando-lhe,por exemplo,o direito de defesa),resolverá o problema de
uma das seguintes maneiras:

1. Quando perceber que o réu se dispõe a recusá-lo,se apressará em


delegar seus poderes a outra pessoa,antes de ser recusado. Desta
forma,a recusa tornar-se-á nula e sem efeito.

2. Se aceitar a recusa e se houver uma razão para isso, o inquisidor


irá retomar o processo do ponto em que estava quando cometeu o
erro sobre o qual o réu fundamenta a sua recusa, dizendo: “Retomo
o processo no ponto em que Fulano de tal pediu a presença de um
defensor (por exemplo). Aceito o seu pedido,aceito a presença da
defesa. Concedo-lhe como advogado e como procurador Fulano e
Fulano, solicitados por ele para representá-lo.” Uma vez eliminada
a razão da recusa, não é mais possível recusar.

Porém, nos casos em que o réu recusar o inquisidor sob o pretexto


de que este é seu inimigo (porque já “processou” alguém de sua família,
por exemplo), não haverá propriamente uma recusa. O problema será
submetido ao julgamento de dois juízes (um escolhido pelo réu, outro,
pelo inquisidor), que irão examinar a veracidade dessa “inimizade”. Aos
dois juízes se juntará um terceiro. Terão oito dias para deliberar;
ultrapassado este prazo, o veredicto será considerado nulo e sem efeito, e
o juiz inquisitorial irá se declarar competente. Porém, se declararem,
dentro do prazo, que o juiz inquisitorial deve ser recusado,ele o será e
ficará impossibilitado de delegar seus poderes. Neste caso, o bispo e o
inquisidor não poderão pronunciar nenhuma sentença e deverão recorrer
ao Papa; a menos que o inquisidor pense que pode continuar assumindo
suas funções, junto com o bispo, apesar da recusa.

XVI. Entende-se por “recusa” a rejeição tomada, canonicamente, ao juiz,


em razão de uma grave suspeita contra ele.
Por outro lado, entende-se por “apelação” a anulação de uma
sentença considerada injusta, decretada por um. juiz, através da
solicitação de um juiz de uma instância superior. Muitos estudiosos
acham que o inquisidor não pode ser recusado, uma vez que só são

143
escolhidos para o cargo de inquisidor, homens de respeito, justos e de
uma sabedoria exemplar. No entanto, outros estudiosos aceitam o
princípio da possibilidade da recusa: é neste ponto de vista que se baseia
o Senado inquisitorial de Madri, incluindo-o no Capítulo 32 das
Instituições de 1561. Desde já, concordamos com Eymerich que se pode
recusar o inquisidor: o Tribunal da Inquisição só sairia engrandecido e
mais respeitado. Mas vamos examinar, agora, quais poderiam ser as
razões legítimas da recusa e como se “procederá” quando as condições
forem preenchidas. É simples: de acordo com os especialistas, só a
conspiração e a inimizade mortal podem justificar a recusa.
Não aprovo nem desaprovo os dois métodos propostos por
Eymerich para resolver a questão da recusa, pois me parece que eles
interessam mais ao procedimento da apelação que o da recusa. O método
dos dois juízes não me parece bom: só serve para prolongar as coisas e a
levar o réu a recusar sempre. É ao Senado Supremo que se deve remeter o
pedido de recusa. Ele é que tem competência, que nega ou aceita.
Vamos esclarecer que,ao contrário do que parece dizer Eymerich no
parágrafo 2 — a propósito dos advogados e procuradores —, o inquisidor
é totalmente livre para indicar qualquer pessoa como advogado e
procurador, e não apenas quem o réu solicitar.
Para concluir, o prazo de oito dias para analisar cada caso só pode
ser dado a título de exemplo: não convém instituir juridicamente sobre a
duração desse prazo.

33. Apelação ao Papa

Em alguns casos, o réu pode apelar para o Papa. A apelação será ou não
considerada de acordo com as circunstâncias e as motivações.
A apelação será justa, se o inquisidor infringir a lei durante o
processo (recusa de designar a defesa, aplicação de tortura sem avisar o
bispo). Nessas situações o réu só tem uma coisa a fazer: apelar para o
Papa. O inquisidor, sem temores, sem a menor preocupação, mandará o
réu providenciar uma cópia da apelação. O inquisidor não deve ter pressa,
não deve se precipitar: tem dois dias inteiros para acusar o recebimento
da apelação. Depois, tem ainda trinta dias para fazer o julgamento

144
apostólico. E, ainda que possa — se for entendido na matéria — fazer
logo o julgamento apostólico, independentemente do teor, irá trabalhar
razoavelmente, esperando 10, 15, 20 ou 25 dias antes de apresentar uma
solução. O inquisidor tem ainda o direito de prorrogar o prazo da
resposta. Durante todo esse tempo, irá analisar bastante os termos da
apelação. Se chegar à conclusão de que é justificada, anula as razões da
mesma, retoma o processo a partir do erro que justificou a apelação e
prossegue normalmente, pois, uma vez eliminada a causa da apelação,
esta última perde a validade.
O inquisidor deve, entretanto, ficar vigilante quanto ao tipo de
prejuízos de que o acusam. Se são passíveis de reparação (ausência de
defesa, intenção de torturar sem o aval do bispo), o inquisidor procederá
como acabamos de mostrar. Mas existem prejuízos irreparáveis. Por
exemplo, o réu já foi realmente torturado e apela depois. Ou então, já se
queimaram os livros etc. Nestes casos, o inquisidor não poderá retomar o
processo a partir de onde parou para receber a apelação.
Portanto, o inquisidor deve utilizar o prazo previsto para a resposta
à apelação (trinta dias). Para dar uma prova de boa vontade, citará o réu
dali a quinze ou vinte dias para comunicar-lhe a resposta apostólica.
Prorrogará o prazo, em caso de necessidade, dizendo, por exemplo, que
teve de se ocupar de outros processos, precisando temporariamente adiar
a resolução do problema.
O inquisidor não vai citar o réu para dar uma resposta “afirmativa”
ou “negativa”, pois deve se dar a liberdade de avaliar, durante o prazo
exigido, se dará uma resposta favorável ou não: o réu será citado para
comparecer a um local, dia e hora determinados para receber a resposta,
sem qualquer informação. O inquisidor esperto e experiente, que tiver
tomado a decisão de prender o réu enquanto estivesse esperando a
resposta da apelação, terá o cuidado de citá-lo levando em consideração a
sua condição de preso.
O inquisidor não tem que modificar em nada a situação do réu
entre o dia em que este entrou com a apelação e a data da resposta.
Durante todo esse tempo, ele permanecerá na mesma situação em que
estava antes da apelação: na prisão, se estava preso, solto, se estava em
liberdade. Não poderá ser torturado durante esse período.
Se se tratar de um réu que apela a todo momento, a propósito de
tudo e nada (porque o prenderam, porque se recusam a libertá-lo sob
fiança etc.), o inquisidor resolverá o problema, dando-lhe, em dois ou três
dias, uma resposta negativa, quer dizer, a não aceitação.

145
O teor de uma resposta positiva à apelação é o seguinte: o
inquisidor argumenta que agiu em conformidade com a lei. A seguir
contesta, uma a uma, as acusações contidas no texto da apelação.
Concluindo-se que o inquisidor não transgrediu o Direito nem deu
pretexto à apelação; e sim que o réu recorreu a ela por temer a Justiça.
Por isso, a apelação não tem validade. Entretanto, em respeito à Santa Sé
Apostólica, que é a destinatária da apelação,o inquisidor dirá que aceita a
apelação e que a remeterá, juntamente com todo o dossiê, ao nosso
senhor o Papa. Cita, então, o réu, para que compareça, sob forte guarda, à
Cúria romana, diante de nosso senhor o Papa39.
Se, nesse período, tiver que julgar outras questões que envolvam o
mesmo réu, o inquisidor as resolverá, normalmente, porque a apelação
não pode bloquear um outro trâmite concernente ao mesmo réu.

XVI. Uma resposta apostólica positiva jamais deve ser considerada como
uma sentença definitiva, pois inocentaria o réu. A apelação não foi criada
para proteger a injustiça (non ad defensionem iniquitatis fuit institutum)!
De acordo com as instruções do Senado inquisitorial de Madri, datadas
de 1561, não é preciso retardar a tortura por causa da apelação, caso os
indícios a justifiquem suficientemente.

34. Ser rápido

Eu, frei Nicolau Eymerich, dominicano, inquisidor de Aragão, que sofri


durante anos mil sofrimentos, gastei muito dinheiro, tive muitos
aborrecimentos para obter, na Cúria romana, a condenação de hereges;
eu, conhecedor dos métodos dessa Cúria, aconselho a todos os
inquisidores que não levem pessoalmente os casos até ela, a menos que
tenham meios capazes de fazer com que eles se resolvam rapidamente.
Devem enviar o dossiê completo e evitar comparecer. Se forem obrigados
a isso, nas suas respostas, atenham-se estritamente ao conteúdo do dossiê:
assim, vão evitar muitos aborrecimentos e despesas. Aconselho-os a não
irem à Cúria, porque a Igreja perde muito quando os inquisidores se
ausentam de suas áreas, e não têm nada a ganhar indo a Roma. Quando o
inquisidor se ausenta da área que lhe foi confiada, as heresias e erros que
combatia nascem de novo. Os bispos, ocupados com outras questões
39 Uma simples fórmula.
146
espirituais e temporais, não têm tempo para continuar o combate. Os
comissários inquisitoriais hesitam em assumir as tarefas, os perigos, as
despesas que o titular enfrenta, e, além disso, não despertam o mesmo
respeito e temor que os titulares. Quanto aos hereges, aproveitam essas
ausências e a demora, tornam-se impiedosos e, sabendo que a apelação
pode resultar na ausência do inquisidor, recorrem a ela sempre que são
apanhados a fim de ganhar tempo e favorecer a heresia. Os demais
inquisidores, sabendo da sobrecarga de seus colegas, esforçam-se menos,
com medo de também terem de viajar à Cúria romana, enfrentando
despesas consideráveis e passando as mesmas decepções; sua dedicação
em favor da fé e contra a heresia diminui e acabam negligenciando suas
atribuições, para grande prejuízo da Igreja de Deus.

XVI. Hoje, não há mais necessidade de se ir à Cúria romana. O Senado


inquisitorial, o inquisidor-geral ou o núncio apostólico — de acordo com
o país — ocupam-se em resolver todos esses tediosos problemas da
apelação.

35. Fuga do acusado

O responsável por este último impedimento na instância comum durante


um processo inquisitorial pode ser o próprio réu ou uma outra pessoa.

XVI. O fugitivo torna-se, por causa da fuga, um banido e, por isso, pode
ser condenado à morte, não apenas pelo juiz, mas por qualquer pessoa.
Isto pode ser explicado facilmente: o banido infringiu as leis do Papa ou
as leis do imperador, ou ambas, ao mesmo tempo. Decorre daí um
verdadeiro estado de guerra. E, por qualquer motivo mais forte, o herege
fugitivo e banido poderá ser legitimamente despojado de seus bens por
um cristão.

Isto posto, é mais prudente deixar, na prática, a tarefa da espoliação para


as autoridades da Igreja ou do Estado (satis esse tutum, ut hoc fiat
auctoritate ecclesiae vel principis).

147
H. VEREDICTOS E
SENTENÇAS — CONCLUSÃO
DOS PROCESSOS

XVI. Esta parte do Manual é de fundamental importância. É admirável


que Eymerich tenha conseguido reunir em um determinado número de
capítulos as diversas formas possíveis de conclusão dos processos de
heresia. Ignoro em que autor Eymerich se inspirou diretamente nesta
parte do Manual. Constato, por outro lado,que o au-tor utilizou a
jurisprudência instituída nos Concílios de Toulouse, Béziers e Narbona, e
nas ideias de Gui Foucoi, com quem concorda completamente. Não
conheço nenhum autor, antes de Eymerich, que tenha conseguido um
trabalho parecido de compilação. E, inversamente,constato que toda esta
parte sobre as treze maneiras de concluir um processo foi copiada, às
vezes literalmente, por autores que vieram depois de Eymerich. Cito
Jacob Sprenger, e seu Malleus Maleficarum, que transcreveu todo este
texto na terceira parte (questões 23-24) do seu livro, e lembro o nome de
Tabiensis, que se limita a resumi-lo, no seu Repertorium inquisitorum.
Mais próximo de nós, o reverendo Hubert Locato segue fielmente
Eymerich, na sua obra De formulis is Sancto Inquisitionis Offício
agendis. Estou trazendo tudo isto a bem da verdade. Muitos estudiosos
não se sentem obrigados a declarar os autores em que se baseiam ou de
que se utilizam: seria melhor que não se omitissem. E quanto ao que nos
interessa, a referência explícita a Eymerich só daria mais solidez e peso
às suas próprias argumentações.

148
Introdução

Falamos sobre a abertura dos processos da Inquisição e dos próprios


processos. Resta-nos, agora, falar dos veredictos e sentenças.
Vamos chamar esta parte de conclusão dos processos, assinalando
que todo processo da Inquisição termina sempre de uma das treze
maneiras abaixo. Depois da análise dos autos de acusação e de suas
justificativas, e considerando a opinião dos especialistas, vai aparecer:

1. Que o réu deve ser absolvido e declarado completamente isento de


qualquer heresia;
2. Ou, então, que foi apenas “caluniado de heresia”, em sentido geral;
3. Ou que deve ser submetido a interrogatórios e torturas;
4. Que é fracamente suspeito de heresia;
5. Que é fortemente suspeito de heresia;
6. Que é gravemente suspeito de heresia;
7. Que é difamado e suspeito;
8. Que confessou, e fez penitência, e não era relapso;
9. Que confessou e se purificou, mas é relapso;
10. Que confessou, não se purificou, e não é propriamente relapso;
11. Que confessou e não se purificou, mas é relapso;
12. Que não confessou, mas foi reconhecido como herege por
testemunhas idôneas, juridicamente falando;
13. Que foi reconhecido como herege, mas fugiu ou se recusou a
comparecer à justiça.

Esses treze tipos de veredicto também são válidos para quem


acolhe, defende, protege ou favorece a heresia ou os hereges.

Primeiro veredicto: a absolvição

Primeiro tipo de final de processo: o réu, depois de responder a um


processo comum, e depois de as opiniões de especialistas serem ouvidas,
fica totalmente livre de qualquer crime de heresia. É o caso do réu que
não foi identificado como herege nem pela própria confissão nem pelo
testemunho dos fatos, nem tampouco pelos legítimos depoimentos das
testemunhas e que, além disso, não aparece como suspeito nem apontado
do crime de que o acusam.

149
Em casos como este, procede-se da seguinte maneira: o inquisidor
ou o bispo (ou ambos, embora não tenham que atuar juntos quando se
trata de absolvição) entrega ao réu uma sentença de absolvição com o
seguinte teor:

"Nós, frei Fulano de tal, da Ordem dos Pregadores, inquisidor


etc.:visto que tu, Fulano de tal, residente em…, diocese de…, foste
alvo de uma acusação de heresia cujo teor é o seguinte (etc.);
Visto que tais fatos, apesar da sua natureza, exigiam
necessariamente nossa atenção e vigilância;
Investigamos tudo de que te acusavam para sabermos a
verdade e, por essa razão, recebemos e analisamos testemunhas,
concedemos-te a assistência de um defensor, fizemos tudo que era
preciso fazer segundo as disposições canônicas;
Visto que examinamos todo esse material, solicitando a
opinião de juristas e teólogos;
Tomando assento no nosso Tribunal, em conformidade com a
nossa função de juiz, com o olhar fixo apenas em Deus e interessado
apenas na verdade, com os Sagrados Evangelhos diante de nós, a
fim de que nosso julgamento emane da face de Deus e para que
nossos olhos vejam a verdade,
Pronunciamos nossa sentença definitiva da seguinte maneira:
Invocando o nome do Cristo,
Não encontrando — em tudo o que vimos e ouvimos, no que
foi proposto nesta causa — nada que tenha legitimamente provado
por que foste ‘denunciado’, dizemos, declaramos e sentenciamos
que não há e não houve nada contra ti que possa considerar-te
herege ou suspeito de heresia.
Eis a razão por que te liberamos, através desta sentença do
julgamento inquisitorial.
Dado em tal lugar etc.”

O inquisidor tomará cuidado para não declarar em sua sentença de


absolvição que o acusado é inocente ou isento, e sim esclarecer bastante
que nada foi legitimamente provado contra ele; desta forma, se, mais
tarde, trazido novamente diante do Tribunal, for indiciado por causa de
qualquer crime, possa ser condenado sem problemas, apesar da sentença
de absolvição.

150
XVI. Lendo com bastante atenção os considerandos, poderia parecer que
Eymerich imaginou que os motivos da acusação e todos os detalhes
tenham que figurar no texto da sentença de absolvição. Não creio que
esteja em muita conformidade com o Direito: visto que não houve provas
e que, em resumo, o réu foi solto, parece-me mais conveniente não
explicitar os motivos da acusação e ler em público a sentença de
absolvição, mesmo que o beneficiário esteja vivo ou morto. Esta é a
prática que, na minha opinião, está contida nas Instruções madrilenhas de
1561.
A certa altura, Eymerich solicita que, na sentença, se tome bastante
cuidado para não declarar o absolvido “inocente” ou “isento”, em
conformidade com o que prevê o próprio Eymerich, a propósito do
décimo segundo veredicto. A sentença definitiva irá declarar inocente e
isento o réu que estiver solto e que houver sido vítima da animosidade
das testemunhas (que, arrependidas, seriam expressamente acusadas de
falso testemunho. Porém, deve-se registrar que é difícil acreditar, na
prática, em uma tal reviravolta por parte das testemunhas).

Segundo veredicto: a expiação ou purgação canônica

Aqui, fica definido como se deve concluir o processo de alguém que, na


sua cidade ou região, tem fama de herege, mas de quem não se pôde
provar suficientemente o delito, nem através da confissão, nem de provas
materiais ou dos depoimentos das testemunhas. Um caso como esse só
pode ser calúnia.
Nestas situações, não se pode pronunciar uma sentença definitiva,
nem de absolvição, nem tampouco de condenação. Por isso, o inquisidor
e o bispo, juntos, irão lavrar uma sentença nos seguintes termos:

“Nós, Fulano de tal, pela misericórdia divina, bispo de …, e, Nós,


Fulano de tal, dominicano, inquisidor etc.
Considerando que a conclusão do processo que abrimos
contra ti, Fulano de tal etc., que foste denunciado como herege, e
particularmente etc., que não conseguimos obter a tua confissão, e
que não pudemos indiciar-te no crime de que te acusam, nem de
outros crimes, mas que, ao que parece, foste realmente ‘difamado’
como herege aos olhos dos bons como dos maus, na cidade tal, na
diocese tal;
Nós te aplicaremos, como manda a lei, uma pena canônica

151
como expiação da tua infâmia.
Nós te intimamos a comparecer, pessoalmente, para fazeres
a expiação, em tal dia, do mês tal, a tal hora. Os “co-expiadores” que
te acompanharem devem ter uma integridade na vida e na fé
notórias, devem conhecer os teus hábitos e a tua vida,e,sobretudo, o
teu passado. Notificamos que, se fraquejares durante o cumprimento
da pena, serás indiciado como herege, de acordo com o que está
estabelecido nos cânones.”

Aqui, cabe explicar que a expiação é feita diante de sete, dez, vinte
ou trinta (menos, em alguns casos, mais em outros) “co-expiadores” que
serão do mesmo nível do acusado: religioso, se ele for religioso; padre, se
for padre; soldado, se for soldado etc. Todos devem ser capazes de dar
testemunho sobre a fé atual e pregressa do acusado.
Se o “difamado” não puder cumprir a expiação, será excomungado.
E, se ficar um ano nesta situação, será condenado como herege.
Se quiser cumprir a expiação, mas não conseguir juntar o número de
co-expiadores prescrito pelo inquisidor, será ipso facto considerado como
herege e condenado como tal.
No entanto, em alguns casos, os “co-expiadores” podem ser de
posição inferior à do acusado: por exemplo, para um bispo “caluniado”,
os “co-expiadores” poderão ser abades ou, simplesmente, padres; se o
“caluniado” é um rei, os “co-expiadores” poderão ser nobres, cavaleiros
etc.

A purgação canônica

No dia marcado para a purgação canônica do acusado, este deverá


comparecer pessoalmente junto com os seus “co-expiadores” diante do
bispo ou inquisidor. O acusado colocará a mão sobre os Evangelhos e
dirá: “Juro sobre os Sagrados Evangelhos que nunca aderi nem acreditei
nesta heresia (dizendo o nome da heresia de que o acusam). Juro que
nunca a divulguei, não vou aderir a ela nem tampouco acreditar nela.”
Portanto, vai jurar não ter nada a ver com as razões da sua difamação.

152
A seguir, os “co-expiadores” dirão, um a um, com a mão sobre os
Evangelhos: “Juro sobre os Sagrados Evangelhos que acredito em tudo
que Fulano de tal acabou de jurar.”
Nesse momento, a purgação canônica é cumprida.
A purgação canônica deve ser levada a efeito no local em que surgiu
a calúnia. Deve ser repetida em todas as regiões ou países em que essa
pessoa andou ou ainda é alvo de comentários.
Todo caluniado que sofre “purgação”, se cair, mais tarde, na heresia
que expiou, será considerado relapso, e, como tal, será entregue ao braco
secular40.

XVI. Quem sofre uma purgação canônica torna-se, por causa disso,
inapto para qualquer cargo ou privilégio eclesiástico? De acordo com
alguns especialistas, sim. Outros acham que a purgação não tira os
privilégios, mas simplesmente impossibilita as promoções.

Terceiro veredicto: o interrogatório41

Interroga-se o réu que não confessou e de quem não se tiver provas de


que é herege, durante o decorrer do processo. Se o réu não disser nada
quando torturado, será considerado inocente. O réu indiciado que não
confessar durante o interrogatório, ou que não confessar, apesar da
evidência dos fatos e de depoimentos idôneos; a pessoa sobre a qual não
pesarem indícios suficientemente claros para que se possa exigir a
abjuração, mas que vacila nas respostas, deve ir para a tortura.
Igualmente, a pessoa contra quem houver indícios suficientes para se
exigir a abjuração. O veredicto da tortura é assim:

“Nós, inquisidor etc., considerando o processo que


instauramos contra ti, considerando que vacilas nas respostas e
que há contra ti indícios suficientes para levar-te à tortura; para
que a verdade saia da tua própria boca e para que não ofendas
muito os ouvidos dos juízes, declaramos, julgamos e
decidimos que tal dia, a tal hora, será levado à tortura.”

40 O que demonstra que, apesar de todas essas precauções teóricas, o simples boato tinha, no passado,
o significado não somente de forte suspeita, mas também de evidente heresia. Lembre-se da
definição proposta anteriormente quanto à noção de “prova evidente”.
41 O tema da tortura será fartamente comentado na terceira parte do Manual, pergunta 28, p. 208.
153
Instrução bastante detalhada sobre o interrogatório
Se o réu vacilar nas respostas e se, além disso, houver indícios contra ele,
as duas coisas entrarão na sentença, como mostramos acima。Se apenas
houver vacilação nas respostas, mas nenhum indício, ou indícios sem
vacilação nas respostas, isto será levado em conta quando da redação da
sentença.
O inquisidor não deve se mostrar muito apressado em aplicar a
tortura, pois só se recorre a ela quando não houver outras provas: cabe ao
inquisidor tentar levantá-las. Mas, se não achá-las e se considerar que há
possibilidade de o réu ser culpado, e se achar também que ele não vai
confessar por medo, trará até ele seus familiares e amigos, para que o
convençam a confessar. O desconforto da prisão, a reflexão, as frequentes
exortações de gente honesta muitas vezes levam o réu a confessar.
Mas, se não se conseguir nada, e se o inquisidor junto com o bispo
acharem mesmo que o réu lhes esconde a verdade, então, devem mandar
torturá-lo moderadamente e sem derramamento de sangue, lembrando
sempre que a tortura é enganadora e ineficaz (scientes quod quaestiones
sunt fallaces et inefficaces). Existem pessoas com o espírito tão fraco,
que confessam tudo com o mínimo de tortura, mesmo se não cometeram
nada. Outras, são tão obstinadas que não abrem a boca,
independentemente das torturas que sofrerem. Há pessoas que já foram
torturadas; estas suportam mais que as outras a tortura, porque contraem
os membros, endurecendo-os; porém, outras pessoas saem enfraquecidas
das torturas anteriores e ficam incapazes de suportar outras. Existem os
enfeitiçados que, sob o efeito de bruxarias utilizadas durante a tortura,
ficam quase insensíveis: preferem morrer a confessar.
Uma vez declarada a sentença, os assistentes do inquisidor partem
para a execução. Durante a preparação da execução, o bispo e o
inquisidor, eles próprios, ou um fiel fervoroso, irão pressionar o réu para
que confesse espontaneamente. Se o réu não confessar, ordenarão aos
carrascos para que tirem as suas roupas — o que farão imediatamente,
sem brincadeiras, como se tivessem tomados de emoção. Enquanto é
despido pelos carrascos, pedirão a ele que confesse. Se continuar a
resistir, será levado num canto, completamente nu, por esses fiéis
idôneos, que lhe suplicarão cada vez mais. Começam a dizer-lhe, ao
mesmo tempo que suplicam, que, se confessar, terá sua vida poupada, se
jurar que nunca mais vai cometer tais crimes. Muitos confessarão a
verdade, se não estiverem torturados pelo medo de morrer.

154
Passei por essa experiência muitas vezes; outros vão confessar, se lhe
prometerem salvar a vida. Então, o inquisidor e o bispo devem prometer,
porque poderão manter a sua palavra (exceto se se tratar de um relapso, e
quando não se prometer nada).
Se não se conseguir nada através desses meios, e se as promessas se
revelarem ineficazes, executa-se a sentença e tortura-se o réu da forma
tradicional, sem buscar novos artifícios nem inventar os mais rebuscados:
mais fracos ou mais violentos; de acordo com a gravidade do crime.
Durante a tortura, primeiramente, interroga-se o réu sobre os pontos
menos graves, depois, sobre os mais graves, porque vai confessar mais
facilmente as faltas pequenas do que as graves. O escrivão, enquanto
isso, tomará nota das torturas, das perguntas e respostas. Se,depois de ter
sido convenientemente (decenter) torturado, não confessar, vão lhe
mostrar os instrumentos de um outro tipo de tortura, dizendo-lhe que vai
passar por todos eles, se não confessar.
Se mesmo assim não se conseguir nada, continua-se com a tortura
no dia seguinte, e no outro, se for preciso (porém, não se “recomeçam” as
torturas, pois só se pode fazer isto se se dispõe de novos indícios contra o
réu. Em outras palavras, é proibido “recomeçar”, mas não “continuar”).
Quando o réu, submetido a todo tipo de tortura, continua sem
confessar, param de brutalizá-lo e o soltam. Se pedir a definição da
sentença, não se pode recusar. Será lavrada nos seguintes termos: — que
depois do exame meticuloso de seu dossiê, não se encontrou nada que
pudesse provar com legitimidade o crime de que o acusaram,
prosseguindo nos termos previstos para sentença de absolvição.
A pessoa que confessa sob tortura tem as suas palavras registradas
pelo escrivão. Depois da sessão, será conduzido para um local onde não
exista nenhum sinal de tortura. Lerão a confissão feita sob tortura e
continuarão o interrogatório até obterem de sua boca toda a verdade. Se o
réu não confirmar a confissão ou se negar ter confessado sob tortura, e se
ainda não passou por todas as sessões previstas, continua-se a torturá-lo
— sem “recomeçar”.Mas,se já passou por todas as torturas, será liberado.
E, se fizer questão de receber a sentença,lha darão como no caso
precedente.
Se, ao contrário, mantiver a confissão feita sob tortura, reconhecer o
seu crime e solicitar o perdão da Igreja, considera-se que admitiu a
heresia e se arrependeu. Será, então, condenado às penas reservadas aos
que assumem e se arrependem, de que trata o oitavo tipo de sentença. Se
mantiver, depois da tortura, a confissão, mas não solicitar o

155
perdão, e se não for relapso, será entregue ao braço secular para ser
executado (como no décimo tipo de veredicto).
Se for relapso, será condenado da maneira exposta no décimo
primeiro tipo de veredicto.

XVI. Temos que observar que o inquisidor não deve se mostrar


apressado em voltar às torturas, porque os indícios que determinam essa
volta são arbitrários, por definição. Por isso, os inquisidores devem evitar
apelar para eles a toda hora.
O que dizer desses enfeitiçados, que são insensíveis à dor, citados
por Eymerich? Não se julgue que Eymerich fala deles para não dizer
nada. Paulo Grilland, que foi um juiz severíssimo em questões criminais,
no seu Tratado sobre o interrogatório e a tortura, fala deles também.
Hipólito Marsiliano faz a mesma coisa. Através de bruxarias, esses
enfeitiçados, geralmente, utilizam palavras e orações extraídas dos
Salmos de Davi ou de outras passagens das Escrituras Sagradas,
transcritas através de processos supersticiosos, em pedaços de
pergaminho virgem,que eles chamam de papel virgem, misturando, às
vezes, nomes de anjos desconhecidos. Vimos alguns desses pedaços de
pergaminho, no ano passado, “retirados” de um pobre-diabo (vili homini)
quando era conduzido à prisão. No papel havia círculos estranhos e
figuras tiradas de superstições. Escondem tudo numa parte secreta do
corpo para se tornarem insensíveis à tortura. O que fazer contra essas
fraudes e encantações? Não sei. Mas seria bom despir completamente a
pessoa que é levada para a tortura.42
Uma questão que merece particular atenção é quanto à existência ou
não de categorias de pessoas não torturáveis, em decorrência de algum
privilégio. Efetivamente, funciona, do ponto de vista jurídico, e com uma
certa frequência, a ideia de que certas pessoas não podem ser torturadas
— soldados, cavaleiros, pessoas importantes — devendo-se limitar a
aterrorizá-los — mostrando-lhes os instrumentos de tortura e ameaçando-
os de utilizá-los. Mas este é um direito que não conta nas questões de
heresia: nenhuma das pessoas isentas de tortura a propósito de qualquer
delito não o será, tratando-se de heresia. É o caso de se perguntar, em
contrapartida, se se podem torturar as crianças e os velhos por causa da
sua fragilidade. Pode-se torturá-los, mas com uma certa moderação;
devem apanhar com pauladas ou, então, com chicotadas. E o que fazer se

42 Lindo eufemismo para não falar da exploração dessas “partes secretas” do corpo. Porque, na
verdade, Eymerich foi suficientemente explícito quanto à nudez da pessoa que é levada à tortura.
156
o réu em questão é uma mulher grávida? Esta não é torturada nem
aterrorizada, para evitar que dê à luz ou aborte. Deve-se tentar arrancar-
lhe a confissão através de outros meios, antes de dar à luz. Depois do
parto, não haverá mais nenhum obstáculo à tortura.
O valor da confissão é absoluto quando obtido sob ameaça de
tortura ou através da apresentação dos instrumentos de tortura. Nesse
caso, considera-se que o réu confessou espontaneamente, tendo em vista
que não foi torturado. A mesma coisa, se a confissão é obtida quando o
réu já está despido e amarrado para ser torturado. Se confessar durante a
tortura, deve, depois, confirmar a confissão, já que esta foi obtida através
do sofrimento e do terror.
Dizem que se podem “recomeçar” as torturas, quando sob o seu
efeito conseguiram-se novos indícios: deve-se assinalar que tudo o que o
réu disser sob tortura pode ser considerado como um novo indício, e, em
tais casos, é absolutamente correto “recomeçar” a tortura. E com muito
mais razão, quando a confissão é obtida por outros meios. Entretanto, não
se deve abusar dessa possibilidade de “recomeçar” as torturas, para evitar
que o torturado morra em decorrência disso. Além disso, muitos réus
ficam, depois das primeiras sessões de tortura, num tal estado de
fragilidade e enfermidade, que devemos nos perguntar, sinceramente, se
seriam capazes de suportar o restante, sem riscos para o corpo e para a
alma: os juízes devem-se lembrar, então, de que não são carrascos e que a
tortura é enganosa, como já foi dito anteriormente.
É preciso considerar, agora, em que situação se podem “repetir”as
torturas. Talvez seja uma questão bastante tola, e que não desperte grande
interesse. Vamos destacar três regras:

Primeira: o réu foi pouco torturado. Neste caso, podem-se “repetir” as


torturas, até que o réu seja suficientemente torturado. Depois, o escrivão
faz o registro, enquanto os juízes mandam parar a primeira tortura,
decidindo que vão mandar recomeçar as torturas. Não se trata,
propriamente, de uma “repetição”, mas muito mais de uma
“continuidade”. Só existirá uma verdadeira “repetição”, se se
“recomeça”a torturar um réu que já passou, sem confessar, por todos os
tipos de tortura previstos.
Segunda: os especialistas acham que não se devem “repetir” as torturas
só pelo fato de se terem obtido novos indícios. Deve-se concordar com a
opinião dos especialistas que acham o contrário, pois é isso que se faz na

157
prática. No entanto, devemos nos lembrar que acontece, com frequência,
de os réus confessarem qualquer coisa, logo nas primeiras sessões de
tortura. Portanto, o inquisidor tem que ser bastante perspicaz, levando em
conta o grau de esperteza do réu.
Terceira:o réu confessa sob tortura. Depois, levado a confirmar a
confissão, desdiz tudo. Em tais situações, “recomeça-se” toda a série de
torturas, porque a confissão obtida durante a série anterior constitui,
justamente, o novo indício que se precisa.

Mas tudo isso deve ser feito sem crueldade! Não somos carrascos:
mais adiante, vou mostrar quantas vezes podem-se “recomeçar” as
torturas.
Finalmente, quando se pode dizer que alguém foi “suficientemente
torturado"? Quando parecer aos juízes e especialistas que o réu passou,
sem confessar, por torturas de uma gravidade comparável à gravidade dos
indícios. Entenderão, portanto, que expiou suficientemente os indícios
através da tortura (ut ergo intelligatur quando per torturam indicia sint
purgata).
Como o réu confirma a confissão efetuada sob tortura? O escrivão
pergunta-lhe depois da tortura: “Lembras-te do que confessaste ontem ou
anteontem sob tortura? Então, repete tudo agora com total liberdade.” E
registra a resposta. Se o réu não confirmar, é porque se lembrou e, então,
é novamente submetido à tortura.
Mas quantas vezes se pode recomeçar toda uma série de torturas por
causa da não confirmação da confissão? Os estudiosos não são unânimes
a esse respeito. Alguns acham que se pode recomeçar a série inteira — e,
completá-la, é claro — por três vezes ou mais. Acho que haveria excesso
de crueldade, e que não se deveria ultrapassar as duas séries completas de
torturas. Pode-se aplicar uma terceira série,se o réu tivesse sido torturado
com uma certa timidez, nas duas séries anteriores. Depois de tudo isso, se
não se obtiver confirmação da confissão — ou nenhuma confissão —,
solta-se o réu, como explicou brilhantemente Eymerich43.

43 Corno vamos ver, na Parte III, o editor romano é partidário da manutenção da série tradicional de
cinco tipos de tortura, que constitui cinco etapas na progressão da gravidade da tortura. O suspeito
tem direito a um tipo de tortura diário. Pensando no pior — ou no melhor, nunca se sabe! — só no
final de quinze dias de tortura, o réu que não confessou será considerado “suficientemente
torturado”, podendo ser libertado.
158
Quarto veredicto: abjuração por suspeita leve

A abjuração de levi44 deve ser feita pela pessoa contra quem o Tribunal
só encontrou leves indícios de heresia. Esta deverá abjurar publicamente,
na catedral, se for publicamente suspeita. Do contrário, pode abjurar no
palácio episcopal ou no capítulo do convento dos dominicanos, onde
reside o inquisidor, ou então na casa do bispo ou do inquisidor.
Se a suspeita é pública, o procedimento é o seguinte:
O inquisidor avisará, com tempo suficiente, a todas as igrejas do
local, que em tal domingo vai pronunciar um sermão, em tal igreja, e que
todos são obrigados a comparecer. Será construído um patíbulo, no meio
da nave, de frente para o altar, no qual ficará o acusado, de pé, para que
todos o vejam, com a cabeça descoberta, sob forte proteção. O sermão
girará em torno da heresia que o acusado deve abjurar, e o inquisidor
contará que aquele que está no patíbulo encontra-se sob suspeita disso e
daquilo e deve, portanto, expiar tais suspeitas abjurando de levi. Depois,
coloca-se o Livro dos Quatro Evangelhos diante do abjurante: este o toca
com a mão e abjura.
Se, por exemplo, é suspeito de não acreditar na pobreza absoluta de
Cristo e seus apóstolos, irá dizer: “Juro que acredito de todo o coração, e
minha boca proclama, que o Senhor Jesus Cristo e seus apóstolos, quando
andavam pela terra, possuíam bens em comum. Que o digam as
Escrituras. E que tinham o direito de distribuir esses bens, vendê-los e
doá-los.45” O abjurante promete nunca mais aderir a nenhuma heresia e,
se o fizer, dispõe-se a sofrer todos os castigos que lhe forem impostos.
Termina assim: “Que Deus e os Santos Evangelhos me ajudem!”
A abjuração será feita em língua vulgar para que todos a
compreendam. A Inquisição se pronunciará, depois, da seguinte maneira:

“Meu filho, acabas de expiar, pela abjuração, a suspeita que pesava


legitimamente sobre ti. Cuidado para não repeti-la no futuro: serias,
então, relapso e mesmo que te entregassem ao braço secular, por
seres apenas levemente suspeito, iriam aplicar-te uma condenação
extremamente grave. Toma cuidado também porque, de hoje em
diante, por qualquer coisa, serás considerado gravemente suspeito,
sendo forçado a abjurar, por causa disso. Se reincidires, dando
ainda pretexto a suspeitas, serás visto como relapso e entregue ao
braco secular para seres executado.”

44 Leia-se: por leve suspeita.


45 Cf. anteriormente, pág. 129, nota 7.
159
O procedimento é igual, se o réu tiver que abjurar no palácio
episcopal.
Depois o inquisidor decreta e lê a sentença, esclarecendo bem o
nome e a condição da pessoa, explicando que abjurou de levi, e não de
vehementi (o esquecimento dessa explicação pode prejudicar bastante o
acusado). Logo depois, atribui dez ou vinte dias de indulgência para
todos que ouviram o sermão e a abjuração e explica que quem colaborou
no presente caso de abjuração ganhou três anos de indulgência.

XVI. A pessoa que, depois de abjurar de vehementi, cair de novo em


heresia, será considerada relapsa e entregue ao braco secular; quem só
tiver abjurado de levi, não será considerado relapso.
Pode-se exigir a abjuração simples ou solene, de acordo com o
procedimento previsto por Eymerich, a partir da idade de dez anos e meio
para os meninos, e de nove anos e meio para as meninas, ou seja, desde a
idade em que meninos e meninas são considerados juridicamente
responsáveis por um delito. Esta é a opinião de muitos inquisidores. Eu,
pessoalmente, concordo com o que prevê o Concílio de Toulouse de
1229, retomando o Concílio de Valladolid, 1388: o limite será de doze
anos para as meninas, e de quatorze, para os meninos46.
De acordo com o que foi estabelecido no Concílio de Narbona, a
sentença de abjuração de levi, contendo os motivos da acusação e os
castigos impostos, será afixada publicamente para que ninguém deixe de
tomar ciência. Se a pessoa sabe escrever, deverá assinar do próprio punho
o texto da abjuração.
Devo esclarecer que aqueles que, depois de abjurar, forem
condenados pela Inquisição a trabalhos forcados (quos ad poenas
triremiun condemnarunt), serão levados para as prisões comuns, através
da guarda-civil, orientada detalhadamente quanto ao teor da sentença
inquisitorial.
Por fim, observe-se que não se trata aqui de penas, mas de punições:
não se pode aplicar uma pena contra quem é levemente suspeito, mas
apenas punições, como um remédio salutar, que serão arbitrariamente
determinadas de acordo com a condição do suspeito e a gravidade da
suspeita.

46 A responsabilidade jurídica, está provado, corresponde à entrada na puberdade.


160
Quinto veredicto: abjuração de suspeita grave

Deve abjurar de uma suspeita grave aquele contra quem o Tribunal, não
tendo nada para provar de concreto, seja através de depoimentos ou da
análise dos fatos, tem, em contrapartida, fortes indícios que levem a uma
grave suspeita.
Tal suspeito deverá abjurar da heresia de que é acusado e por isso
será tratado como relapso, caso recaia no erro, ou seja, será executado
pela autoridade secular. Vai abjurar em público ou sigilosamente – como
na situação anterior – diante de muitas ou poucas pessoas, conforme a
extensão e a importância da suspeita.
Se abjurar em público, numa grande igreja ou na catedral, far-se-á o
anúncio em tempo hábil, como no caso anterior, acrescentando que só
haverá o sermão do inquisidor, e que os que o ouvirem ganharão as
indulgências de praxe. Na véspera do tal dia, erguerão o cadafalso no
meio da igreja, onde será colocada uma cadeira para a pessoa que vai
abjurar. No dia, o inquisidor faz o sermão, e depois o escrivão, ou outra
pessoa, lê a ata em que figuram os motivos da gravidade da suspeita.
Depois, o inquisidor diz: “É por isto que nos pareces gravemente
suspeito. Precisas abjurar essa heresia e expiá-la.”Após o que, colocam-
se diante do abjurante os Quatro Evangelhos e ele os toca com a mão. Se
souber ler, dão-lhe o texto da abjuração para ele ler diante de todos. Se
não souber ler, um escrivão, ou um sacerdote, lê o texto devagar,
enquanto o abjurante o vai repetindo.

Modelo de abjuração de heresia em caso de suspeita grave

“Eu, Fulano de tal, residente em…, diocese de…, chamado


pessoalmente diante do vosso Tribunal, tendo comparecido a vossa
presença, Senhor Bispo de…, e Frei Fulano de tal, dominicano:
Juro, sobre os Sagrados Evangelhos, com minha mão sobre eles,
acreditar sinceramente e confessar tudo o que a santa fé católica e
apostólica ensina, reconhece e professa. Juro, também, acreditar com
sinceridade e confessar (escreve-se aqui o artigo de fé católico
diretamente oposto à heresia de que a pessoa é gravemente suspeita).
Juro, também, e declaro que nunca disse ou fiz, digo ou faço, nem
direi ou farei jamais (escrevem-se aqui os motivos da suspeita)
nenhuma dessas coisas que vos levam a me tomarem por um grave
suspeito de heresia. E, se eu – Deus me livre – quebrar o juramento,
futuramente, submeto-me livremente, a partir de agora, aos castigos
reservados, de pleno direito, aos relapsos. Declaro-me pronto a
161
aceitar as punições merecidas em virtude das ações que me levaram
a ser indiciado, hoje, como gravemente suspeito de heresia.
Juro e me comprometo a envidar todos os meus esforços para
cumprir a pena. Que Deus e os Sagrados Evangelhos me ajudem!”

Tudo isso será dito em língua vulgar (exceto se a abjuração acontecer


apenas na presença de eclesiásticos).

Depois de abjurar

Após a abjuração, o inquisidor se dirige ao abjurante nestes termos:

“Meu filho, com a abjuração que acabas de fazer, expiaste a suspeita


que pesava sobre ti. Mas gostaria que te tornasses mais sério no
futuro. Cuidado com o que fizeres daqui por diante, porque, se
soubermos que reincidiste na heresia abjurada, serás entregue sem
misericórdia ao braço secular para seres executado. Afasta-te, de hoje
em diante, de quem puder fazer-te reincidir na heresia.”

O escrivão não esquecerá de registrar, abaixo dos autos, que Fulano de tal
abjurou uma grave suspeita, de tal modo que, caso reincida, possa ser
executado como relapso. Depois, o inquisidor anuncia a sentença e aplica
a pena.
Resta ao inquisidor cumprir três coisas, após o pronunciamento da
sentença:

1. Define com clareza a penitência imposta e explica que, se o


abjurante não quiser se submeter a ela, será considerado um
relapso, sendo condenado como relapso impenitente.
2. Concede os dez ou vinte dias de indulgência normalmente
atribuídos aos infiéis.
3. Esclarece que todo aquele que denunciou o abjurante, colaborou
para prendê-lo e tomou parte no julgamento (lendo as sentenças),
ganhou três anos de indulgência. Conclui, lembrando que todo
delator ganha três anos de indulgência, garantindo, além do mais, a
salvação eterna.
No entanto, no que diz respeito à punição, os que são levemente
e/ou gravemente suspeitos, não serão mandados para o isolamento nem
para a prisão perpétuos: trata-se de uma pena reservada para quem é
162
realmente herege ou herege confesso. Serão mandados para a prisão
durante um certo tempo, após o que, serão libertados. Tais suspeitos não
usarão a vestimenta de penitência ou “sambenito”, porque esta roupa
designa os hereges confessos; ora, os suspeitos não foram reconhecidos
como hereges. Por outro lado, serão obrigados a se colocar nos degraus
da igreja ou do altar, aos domingos, durante a missa, em determinados
momentos, com um círio aceso de determinado tamanho.

Sexto veredicto: abjuração de suspeita violenta

Deve abjurar de suspeita violenta aquele contra quem o Tribunal não


consegue provar nada de concreto, seja através dos depoimentos, seja
através da análise dos fatos, mas encontrando-se indícios gravíssimos que
levam a uma suspeita violenta. É o caso, por exemplo, de uma pessoa que
ficou, durante um ano ou mais, marcada pelo peso da excomunhão, em
virtude de contumácia. Esta pessoa pode perfeitamente não ser herege.
Mas deve ser condenada em decorrência da suspeita violenta, que não se
pôde fundamentar com nenhuma prova (contra quam non est probatio
admittenda). O herege que não abjurar e não quiser fazer a expiação, será
entregue ao braço secular para ser executado: da mesma maneira, quem
for violentamente suspeito, e não quiser abjurar e voltar ao seio da Igreja,
nem fazer a expiação de acordo com as disposições do bispo e do
inquisidor, será entregue ao braço secular para ser executado. Se abjurar e
aceitar fazer a expiação, será condenado à prisão perpétua.
Como nos casos anteriores, em se tratando de abjuração, seguem-
se todas as instruções que servirem (um único sermão, promessas de
indulgência etc.). Enquanto isso, o inquisidor providenciará uma roupa
que tenha dois pedaços de tecido, um na frente, outro atrás, parecida com
o escapulário dos frades e freiras, mas sem capuz, sobre os quais irão
costurar duas cruzes de pano vermelho – uma na frente, outra atrás – de
três palmos de comprimento e dois de largura. Prepara-se o patíbulo e a
cadeira para que o abjurante seja visto por todo mundo.

No dia marcado, procede-se como de hábito: sermão do inquisidor,


leitura das suspeitas violentas. A seguir, o inquisidor, ou bispo, declara:

“Meu filho, estas são as violentas suspeitas que pesam sobre ti. Por
causa delas, deves ser condenado como herege. Presta bem atenção

163
ao que vou dizer: se quiseres te afastar dessa heresia, abjurar
publicamente e suportar com paciência a punição que a Igreja, e eu
próprio, em nome do Vigário de Cristo, te imporemos, ser-te-á
permitida a absolvição de teus pecados. Aplicaremos um castigo que
possas suportar e te libertaremos do peso da excomunhão que te
mantém prisioneiro; poderás te salvar e ter direito à glória eterna. Se
não abjurares, não quiseres aceitar a punição, nós te entregaremos,
agora, ao braço secular, e perderás o corpo e a alma. O que preferes:
abjurar e salvar a alma ou não abjurar e ser condenado?”

Se responder: “Não quero abjurar”, deve ser entregue ao braço


secular de acordo com o que prevê o décimo veredicto. Se disser: “Sim,
quero abjurar”, apresentam-lhe os Sagrados Evangelhos, e ele abjura.
Nos termos da abjuração, o abjurante jura não ter nunca participado
de nenhuma heresia, prometendo, sob juramento, jamais o fazer no
futuro; mas constata-se, por outro lado, que está sob suspeita violenta.
Jura denunciar os hereges que conhecer, aceitar o castigo que lhe for
aplicado e, por fim, pede a ajuda de Deus e dos Quatro Evangelhos.
Declara estar consciente de que, em caso de reincidência, será
imediatamente entregue, sem qualquer processo, ao braço secular e
executado de pronto.
O escrivão terá o cuidado de observar que Fulano de tal abjurou em
virtude de suspeita violenta, para ser logo executado, em caso de
reincidência. A abjuração é feita em língua vulgar, exceto se a pessoa for
um padre ou se a abjuração se fizer somente diante de eclesiásticos: em
tal situação, será feita em latim.
Ao final da abjuração, diz o inquisidor:

“Meu caríssimo filho, acabas de abjurar as heresias de que eras


violentamente suspeito. Assim, estás de acordo com a vontade da
Igreja, e isso é bom. Mas toma cuidado para não reincidires,
futuramente, nem seres alvo de suspeitas de qualquer heresia, pois,
sabes e não duvides em nenhum momento disso, já que tu mesmo
acabaste de prometer que serás entregue, sem qualquer misericórdia,
ao braço secular, para seres executado.”

Depois disso, o inquisidor absolve o suspeito da excomunhão, caso tenha


sido excomungado. Lê-se, então, a sentença da penitência.
O suspeito carregará o saco bento durante um ou dois anos. Estará
vestido assim na porta da Igreja, ou nos degraus do altar, durante as

164
missas de determinadas festas. Será punido com prisão perpétua, ou por
um período, de acordo com o teor da suspeita. O inquisidor lembrará que
poderá, se quiser, diminuir ou aumentar a pena. Depois, pedirá que tenha
paciência, prometendo-lhe aliviar o castigo, caso se submeta. Ameaça-o
de entregá-lo, como relapso, ao braço secular, para ser executado, se
protestar. Por fim, concede as indulgências habituais: dez ou vinte dias
aos assistentes, três anos para os delatores e colaboradores.

XVI. As origens do saco bento remontam ao Antigo Testamento.


Realmente, está no Primeiro Livro dos Reis (21, 27) que Acab foi
condenado a se vestir de saco (cilício) por ter-se apoderado da vinha de
Nabot.
Vestir-se de saco era, na lei antiga, sinal de penitência: portanto,
usar o saco bento convém, perfeitamente, ao estado de punição. E
realmente, desde o início, a Inquisição delegada utilizou o sambenito:
este foi mencionado desde o Concílio de Tarragona, em 1229, o mesmo
que foi assistido por São Raimundo de Penhaforte, e aparece em algumas
cartas de São Domingos de que trata o capítulo 20 da obra de Camilus
Gampegius. O Concílio de Tarragona prevê que o sambenito deve ser
ornado com duas cruzes pintadas de uma cor diferente do saco, uma do
lado direito, outra do esquerdo; além disso, determina que o réu deve
levar consigo a sentença de reconciliação episcopal. O Concílio de
Béziers estabeleceu, de uma vez por todas, a cor e o local das cruzes, e
definiu que, se o herege for condenado, usará uma terceira cruz “sobre o
capuz ou sobre o capelo”. Para os hereges que quebrarem o juramento, o
Concílio de Béziers prevê, ainda, um segundo braço transversal, de um
palmo, mais ou menos sobre as duas cruzes. Os que vão ao ultramar 47,
usarão suas cruzes até chegarem ao porto; no desembarque, poderão tirá-
las, mas deverão recolocá-las, assim que retornarem. Nos eventuais
desembarques em ilhas, não poderão tirá-las. Por que usar as três cruzes
na frente e atrás (como estabelece Béziers), e não à direita e à esquerda
(como estabelecem os Concílios de Tarragona e Toulouse)? Acho que é
para que todos identificassem o herege, indo ... ou vindo. Porque, na
verdade, na origem, as duas cruzes eram levadas no peito, à direita e à
esquerda, como disse São Domingos: “Usam um hábito parecido com o
dos religiosos, tanto no modelo quanto na cor, no qual se costuram duas
pequenas cruzes idênticas, na altura de cada mamilo (in directo utriusque
papillae).”
47 Chama-se “passagem ultramar” a peregrinação à Terra Santa que, em alguns casos, os apenados da
Inquisição deveriam fazer.
165
Fala-se exaustivamente do sambenito nas Instruções de Ávila para a
Inquisição espanhola (1498), e nas Instruções madrilenhas de 1561. O
saco bento é chamado de abitello, na Itália, e, na Espanha, às vezes, é
chamado de samarreta, e, às vezes, de san benito (quase saccus bene-
dictus).
Eymerich fala de uma “leitura pública” dos erros. Ouvi dizer,
muitas vezes, que é inconcebível ler em público os motivos da acusação,
porque supõe-se que daria a muita gente, que os ouvisse, a ideia de fazer
a mesma coisa. Argumento inútil! Qual é a boa ação que os criminosos
não perverteriam? É claro que ensinar e amedrontar o povo com a
proclamação das sentenças, a imposição de sambenitos etc., é uma boa
ação. Concordo com Foucoi: “Nada mais glorioso para a santa fé do que
humilhar publicamente a heresia!”
Dirão também que a exortação que vem depois da leitura dos delitos
é inútil, pois tudo já se fez para a conversão do réu antes de o conduzirem
ao cadafalso. Realmente, ela caiu em desuso. Porém, já que Eymerich
refere-se a ela, não há nada que se oponha à manutenção dessa prática.
O réu jura denunciar os hereges que conhecer. Esta é uma solução
que não se encontra nas sentenças de suspeitos de levi e de vehementi.
Mas seria desejável introduzi-la, pois, como não pedir ao suspeito que se
comprometa com a denúncia, se todo cristão, como já foi visto, deve
fazê-lo?
Finalmente, a propósito de assistir à missa aos domingos, o Concílio
de Béziers já previa esta obrigação. “Todos os domingos e festas, entre a
Epístola e o Evangelho, os condenados dirigir-se-ão descalços, vestidos
unicamente com a roupa de penitência, e com varas na mão, até o
celebrante, que os chicoteará, perguntando-lhes, depois, que crime estão
expiando.” Trata-se de um velho castigo, tirado, provavelmente, do
quarto grau de penitência, de São João Clímaco.

Sétimo veredicto: expiação canônica e abjuração

A expiação canônica e a abjuração serão exigidas do réu levemente


suspeito e de quem foi apontado como herege. É o caso daquele contra
quem não se pode provar nada de concreto no processo – a título de
exemplo – mas cuja amizade com hereges é bastante conhecida. Esta
pessoa deve abjurar por causa da leve suspeita e expiar a calúnia.
Começa-se pela expiação pública. Os preparativos são os mesmos
que para as outras sentenças (sermão, patíbulo, leitura, indulgências).
166
Depois, dar-se-á procedimento à expiação canônica com a colaboração de
“co-expiadores” de mesma condição social,como previsto anteriormente.
A seguir, passa-se à abjuração, onde a inocência do réu é declarada, além
da fundamentação da suspeita. O acusado jura denunciar quem lhe
parecer ter qualquer ligação com a heresia – ou com os hereges – de que
é suspeito. Aceita as punições que lhe forem aplicadas e pede a ajuda do
céu para suportá-las e cumpri-las.
Declara também que sabe, que, se for novamente apontado como
herege ou suspeito de heresia será considerado relapso e entregue ao
braço secular para ser executado. O escrivão fará o registro de quem
abjurou de levi ou de vehementi, porque isso é importante para o
processo, futuramente.
A expiação e a abjuração se dão em língua vulgar, exceto se se
tratar de religiosos abjurando diante de religiosos. A seguir, como de
hábito, o inquisidor exorta o acusado à prudência. Depois, aplica a
penitência, a critério seu, porque não existem penas previstas,
especificamente. Finalmente, passa-se ao anúncio das indulgências
habituais.

Oitavo veredicto: abjuração de um herege penitente

Trata-se do réu reconhecido como herege, penitente e não relapso.


É a situação do herege que foi denunciado, confessa, deseja voltar à
Igreja, e abjura; e de quem não se encontram vestígios de processo, nem
de suspeita anterior e, consequentemente, de abjuração anterior. Tal
pessoa não será entregue ao braco secular para ser executada, mas será
admitida na confissão sacramental. Depois de abjurar, será condenada à
prisão perpétua. Então, o inquisidor tem que estar seguro se está lidando
com um verdadeiro convertido ou com um lobo se fingindo de cordeiro.
Para esse tipo de abjuração, o bispo e o inquisidor tomarão as
medidas de sempre: definição de uma data, um único sermão,
indulgências para os fiéis,obrigatoriedade para todas as comunidades
religiosas do local de mandar para a cerimônia dois, três ou quatro
representantes para o sermão inquisitorial. Prepara-se o patíbulo e a roupa
branca com as duas cruzes vermelhas. No dia, o réu sobe ao
patíbulo,cercado de todos os dignitários eclesiásticos. O inquisidor
pronunciará o sermão, ouvido pelo abjurante com a cabeça descoberta. O
sermão versará sobre a ou as heresias praticada ou praticadas pelo réu.
Em seguida, o inquisidor dirá, apontando para o réu: “Aquele que
167
estais vendo lá em cima admitiu todos esses erros. E já sabereis de que
maneira.”
Neste momento, o escrivão lê a ata contendo os erros do acusado.
Depois da leitura, se o inquisidor perceber, através de alguns
indícios, que o réu realmente se converteu, pergunta-lhe: “Está mesmo de
acordo com a verdade?” Se o réu responder que sim, o inquisidor
continuará: “Queres continuar nessas heresias e te condenares
eternamente, e até mesmo perder o próprio corpo, ou queres abjurá-las e
ter a possibilidade de salvar a alma e escapar da morte?” Se responder
que não quer permanecer no erro, e sim abjurá-los, o inquisidor
acrescenta: “Respondeste com sabedoria.”
Mas, se o inquisidor desconfiar que, perguntando sobre a fidelidade
do texto da ata, o réu responderá que esta não está de acordo, e se puser a
discutir e a negar, escandalizando os fiéis, evitará, então, a consulta, e
sem perguntar nada, pedirá, apenas, para abjurar esta ou aquela heresia.
Se quiser abjurar, põe-se de joelhos, mostram-lhes os Evangelhos e lhe
mandam ler a abjuração em voz alta – se souber ler; caso contrário, o
escrivão lê, frase por frase, e o réu vai repetindo. O texto inclui, como se
sabe, a obrigatoriedade de denunciar os hereges, quem anda com eles e
lhes presta ajuda; a aceitação da punição; e, evidentemente, a negação do
conteúdo doutrinário das heresias a que aderiu.
O escrivão faz o registro minucioso, para que se saiba, em caso de
posterior delação, que essa pessoa tem que ser executada direto.
Depois de tudo, o inquisidor cumprimenta o réu por ter escolhido a
abjuração, advertindo-o e lembrando-lhe de que ao menor delito em
matéria de fé, mandará o braço secular executá-lo, sem misericórdia:
“Cuidado, só anda com bons católicos, assegura-te se esses com quem
andas ou andarás também não são suspeitos de heresia.”
Em seguida, o inquisidor o liberta dos entraves da excomunhão: o
réu ajoelha-se e o inquisidor o absolve.
Logo depois, o inquisidor lhe diz: “Meu filho, vê como a Igreja se
mostra misericordiosa contigo. És um de seus filhos. Porém, para que
sejas mais cuidadoso no futuro, e que Deus te perdoe na proporção dos
teus pecados, te imporemos uma penitência. Menor do que merecerias,
mas bem de acordo com as tuas capacidades físicas. Não fiques com
medo se te parecer muito dura, porque, se perseverares no bem, o bispo e
eu teremos misericórdia contigo.”
O inquisidor, então, mandará o escrivão ler a sentença. Esta
conterá todos os considerandos; esclarece que o réu só salvou a vida por

168
causa da misericórdia do bispo e do inquisidor (solam tibi vitam de
misericordia relinquentes). O réu é condenado:

a. A usar a roupa dos apenados perpétuos. Se ao vesti-la, ela rasgar,


mandarão fazer outra; não deve odiá-la, e sim amá-la;
b. A colocar-se, por determinado tempo, e, em certas festas, na porta
de uma igreja, para ser visto pelos fiéis, da manhã ao meio-dia, e à
tarde, até que o sol se ponha. Irá também para a porta das igrejas
importantes, principalmente durante as festas mais concorridas:
Natal, Páscoa, Pentecostes, Ascensão;
c. À prisão perpétua, para ser atormentado, para todo o sempre, pelo
pão do sofrimento e a água da amargura.

O inquisidor e o bispo poderão aumentar ou abreviar, mais tarde, a


penitência, de acordo com as suas conveniências.
O inquisidor finaliza com estas palavras: “Meu filho, não fiques
atemorizado, pois te asseguro que, se suportares pacientemente, serei
misericordioso. Não duvides, não te desesperes, tem confiança!”
A seguir, pede-se a execução imediata da sentença. O réu veste
logo o seu saco bento. Colocam-no no ponto mais alto dos degraus da
igreja para que todos o vejam, quando estiverem saindo. Está cercado de
todo o clero. Na hora da refeição, será levado para a prisão pelos oficiais
do inquisidor.
Enquanto o réu é conduzido para a porta da igreja, o inquisidor
distribui as indulgências de praxe – aos fiéis, delatores e colaboradores da
Inquisição – prometendo os três anos habituais a qualquer novo delator.
Além disso, deve-se observar que se pode amenizar as penas de um
herege que tenha confessado logo, ou que só tenha caído por pouco
tempo em heresia. Hereges deste tipo poderão ser condenados à prisão
perpétua, entendendo-se por “prisão” a cidade em que moram; para
vergonha deles e exemplo para os demais, serão obrigados a usar o
sambenito pelo resto da vida48.
Não se chegará a tanto, muito pelo contrário, com os demais
hereges citados neste tipo de veredicto. Não serão postos em liberdade
nem deixarão que fiquem com suas mulheres49, porque estas são fracas e
deixam-se facilmente perverter. Só os católicos extremamente devotos
48 Sabemos que o objetivo desta medida “liberal” era entregar à sanha e ao sarcasmo da população os
apenados da Santa Inquisição.
49 Trata-se, aqui, do “direito de visita”: a Inquisição permitiu, depois de muito tempo, o acesso da
esposa à cela do marido herege para que fosse preservada, apesar da prisão, a regra geral de
coabitação. Mais adiante, trataremos deste assunto no Manual.
169
terão acesso a esses prisioneiros.

XVI. “Está mesmo de acordo com a verdade?”, pergunta o inquisidor ao


abjurante. Melhor ainda é não fazer esta pergunta, porque há um grande
risco de a resposta escandalizar as pessoas! Será que não vai procurar
negar, desconversar, desculpar-se? E o público, será que não acabará
duvidando da justiça do Tribunal da Inquisição? Tudo deve ser feito,
então, para que o réu não possa se declarar inocente ou se desculpar, para
não se dar ao público o menor motivo para acreditar que a condenação é
injusta!

Nono veredicto: o penitente relapso

Será condenado como relapso o réu de que se sabe que confessou e –


depois de abjurar – fez realmente penitência e reincidiu. Trata-se de um
relapso. É aquele que abjurou, judicialmente, arrependeu-se, voltando,
depois, para a heresia; depois de tudo, arrepende-se, assume novamente a
verdade católica e pede para ser reintegrado na unidade da Igreja.
Os culpados desse tipo de delito não terão negados os sacramentos
da penitência e da eucaristia, se os solicitarem com humildade. Mas,
independentemente do arrependimento, serão entregues ao braço secular
para passar pelo último castigo: as abjurações anteriores não lhe foram
impostas porque foram considerados hereges ou fortemente suspeitos de
heresia?
Só escapará do braço secular quem, antes de reincidir, abjurou para
purgar uma suspeita leve.
Proceder-se-á, assim, com esse tipo de acusado:
Se o Conselho de especialistas – que será consultado – determinar que
alguém é relapso, o bispo e o inquisidor enviarão até essa pessoa – que
estará presa – dois ou três homens idôneos, íntegros, devotos e, de
preferência, escolhidos entre aqueles que possam despertar a simpatia do
relapso (devem ser escolhidos na sua família ou entre os seus amigos).
Irão até o prisioneiro. Conversarão com ele – escolhendo o momento
mais oportuno – sobre a vaidade do mundo, a miséria da vida terrena, a
alegria e a glória do paraíso. Depois, como porta-vozes do bispo e do
inquisidor, lhe dirão que não escapará à morte física, devendo, então,
pensar na salvação da alma; deve-se preparar para confessar e receber o
sacramento da eucaristia. Estarão com ele frequentemente, encorajando-o
a fazer penitência, ser paciente, entregar-se à fé católica e solicitar, com
170
humildade, o sacramento da eucaristia.
Depois,quando tiver recebido os dois sacramentos, ser-lhe-á
permitido viver ainda dois ou três dias, durante os quais os visitantes
estarão junto com ele, encorajando-o a fazer penitência e arrepender-se.
Terminado o prazo, o bispo e o inquisidor chamarão o juiz
ordinário ou a autoridade secular do local, para estar tal dia (exceto em
dia de festa), em tal hora, em tal lugar ou em tal praça, a fim de receber
um relapso que lhe será entregue. Ao mesmo tempo lhe ordenarão avisar,
na véspera ou na manhã do próprio dia, a população e anunciar que, em
tal dia e local, o inquisidor pronunciará um sermão geral e que este
último, juntamente com o bispo, estarão condenando um relapso,
entregando-o ao braço secular.
É evidente que, se o relapso for um religioso, deverá ser
previamente destituído, perdendo qualquer cargo ou privilégio.
No dia da destituição – se houver – e da entrega ao braço secular, o
inquisidor pronunciará o sermão para os fiéis, de preferência numa praça
– fora da igreja. O réu ficará sobre o cadafalso construído para esse fim, e
as autoridades civis assistirão à condenação.
O escrivão inquisitorial lerá, a seguir, a sentença na qual o réu será
lembrado de que obteve o consolo dos sacramentos. E a seguir:
“Porém, a Igreja de Deus não pode fazer mais nada por ti; já se
mostrou misericordiosa, e tu abusaste. Por isso, nós, bispo e inquisidor de
… declaramos que realmente reincidiste na heresia e, ainda que tenhas
confessado, é na qualidade de relapso que te afastamos da esfera
eclesiástica e te entregamos ao braço secular.”
Depois disso, o inquisidor distribui as indulgências, como de
hábito, e a Cúria secular procede como tem que proceder.
O bispo e o inquisidor farão todo o possível para levar o relapso a
arrepender-se. Devem facilitar, através de todos os meios, o seu retorno à
fé católica. Impenitente ou penitente, esse tipo de réu será executado, isto
é certo! Então, deve-se tomar bastante em consideração a sua salvação
eterna. Deste modo, o inquisidor deve lembrar-se de que o olhar do juiz
atemoriza muito mais do que provoca arrependimento, e que suas
palavras despertam mais facilmente o desespero que a paciência.
Portanto, o inquisidor não tem que mandar o réu comparecer diante dele
nem durante o período em que está preso, nem enquanto aguarda o último
castigo. Tem que enviar ao condenado homens dignos, de preferência
religiosos, amigos seus,se for possível,que o acompanhem até a morte,
que o consolem,rezem junto com ele, não o deixando enquanto ele não

171
entregar a alma ao Criador.
Estes homens, estes religiosos, deverão ter muito cuidado para não
fazer nada, não dizer nada que leve o réu a dar cabo da própria vida:
também incorreriam numa irregularidade.
Finalmente, observe-se bem que esta sentença de entregar ao braço
secular é, normalmente, pronunciada numa praça, e não na igreja, exceto
domingos e dias de festa. É normal: a sentença leva à morte (ducit ad
mortem) e, por isso, é mais honesto (honestus) pronunciá-la fora da igreja
e durante a semana, pois o templo e o domingo são o lugar e o tempo
consagrados ao Senhor.

Décimo veredicto: condenação de um herege impenitente e não relapso

Trata-se de alguém que foi denunciado e confessa tudo, mas que não se
considera culpado de heresia, e não abjura. É um herege impenitente, e
não um relapso. É aquele que confessa sua crença em mandamentos
heréticos, e que, informado pelo bispo e pelo inquisidor sobre o caráter
herético de suas crenças, não quer acreditar no que dizem, e continua a
defender, diante deles, suas próprias convicções heréticas: recusa-se a
abjurá-las, negá-las e rejeitá-las. Se não se conseguir saber se, no
passado, já abjurou outra heresia ou erro, trata-se de um herege
impenitente, e não de um relapso.
Este tipo de gente que é denunciada é mandada para uma prisão
inviolável,com algemas nos pés, bem trancafiados, para que não possam
fugir e contagiar outros fiéis. Não poderão receber visitas nem falar com
ninguém, só com os guardas, que serão homens de uma grande
idoneidade, acima de qualquer suspeita em matéria de fé, homens
impossíveis de enganar. Com frequência, o bispo e o inquisidor,
separadamente ou juntos, mandarão que o preso compareça diante deles,
dando-lhe ensinamentos sobre a verdadeira fé, e mostrando-lhe,
baseando-se em provas das Santas Escrituras, o caráter errôneo e herético
de suas convicções. Se conseguirem convencê-lo de seus erros, muito
bem. Caso contrário,perguntem-lhe sobre o que baseia suas convicções;
considerem os seus motivos e as “autoridades” a que se refere, e abalem
os fundamentos dos seus erros.
Se, apesar de tudo, não quiser confessar a fé católica, designam-se
dez ou doze especialistas bastante doutos, escolhidos, preferentemente,
entre os membros das diversas famílias religiosas, de um lado; de outro,
entre o clero secular; e de outro ainda, entre os juristas leigos: esses

172
especialistas – juntos – farão comparecer à sua presença com frequência
o impenitente e, juntos, lhe passarão ensinamentos sobre a verdade
católica, alegando a autoridade da Bíblia e outros livros “autênticos”,
para provar-lhe que sua crença é contrária às Escrituras e à autoridade da
Igreja, destruindo, assim, as próprias bases da sua crença.
Se o réu se recusar, ainda, a se converter, não se terá pressa em
entregá-lo ao braço secular, mesmo se o herege pedir para ser entregue:
porque,com frequência, este tipo de herege pede a fogueira, convencido
de que, se for condenado à fogueira, morrerá como mártir e subirá logo
aos céus. Trata-se de hereges fervorosíssimos, profundamente convictos
da sua verdade. Então, não se deve ter pressa com eles. Não se trata, é
claro, de ceder à sua insensata vontade. Ao contrário, serão trancafiados
durante seis meses ou um ano, numa prisão horrível e escura, pois o
flagelo da cadeia e as humilhações constantes costumam acordar a
inteligência.
Se o bispo mais o inquisidor constatarem que o réu não se curva aos
seus argumentos nem aos argumentos dos especialistas e que os rigores
da prisão não o abalam o suficiente, devem tentar a delicadeza,
transferindo o réu para uma prisão menos desconfortável (tomando
cuidado, no entanto, para não deixá-lo fugir). Dirão a ele que se
mostrarão misericordiosos, se abjurar. E se o fizer, que Deus seja
louvado! Senão, ao final de alguns dias de regime privilegiado, trazem os
seus filhos diante dele-se os tiver,e principalmente, se forem pequenos
(praesertim parvulos) – ou sua esposa – ou outros familiares para
tentarem fazê-lo refletir.
Porém, se o inquisidor mais o bispo nada conseguirem, nem com
rigidez nem com delicadezas, quando passar um período de tempo
razoável, irão se dispor a entregá-lo ao braço secular.
Avisarão o juiz provincial ou o responsável do poder secular para
comparecer com seus oficiais (seus familiares), em determinado dia,
exceto feriado, a tal hora, perto de tal igreja, para levar um herege
impenitente. Através de carta publicada, eles mandarão avisar que em tal
dia o inquisidor fará uma pregação sobre a fé, na igreja tal, e entregará,
oficialmente, um herege ao braço secular: que tais disposições sejam
anunciadas em toda parte para que os fiéis possam ganhar as indulgências
de praxe.
No dia marcado, tudo estará preparado como se fosse para as
sentenças descritas anteriormente, mas desta vez estarão presentes o
bispo, as autoridades eclesiásticas e civis. Se o herege for um religioso ou

173
um padre secular, apresentar-se-á sobre o cadafalso paramentado com as
vestes litúrgicas, como se fosse celebrar a missa.
O sermão será pronunciado como sempre. Depois, o inquisidor
perguntará: “Queres te arrepender?” Se, sob a inspiração divina, o herege
responder que sim, será aceito na penitência como herege que reconhece
a sua heresia, como um herege confesso, mas não relapso; procede-se,
então, como no oitavo veredicto – a menos que se trate de uma falsa
conversão! Ele abjura. Mas, uma vez que esta abjuração será,certamente,
ditada pelo medo, e não pela convicção, o réu receberá a prisão perpétua.
Se for padre, primeiro será degradado.
O bispo aproxima-se dele, com os dignitários da diocese,
paramentado das vestes pontificais. “Despoja-o” de qualquer cargo e
privilégio e o degrada,despojando-o dos paramentos próprios à sua
condição, começando pelos últimos e terminando pelos primeiros. Na
medida em que o despoja, diz palavras opostas àquelas que o bispo
pronuncia quando confere aos padres determinados poderes. Terminado o
despojamento, o réu é condenado à prisão perpétua, procedendo-se como
no oitavo caso.
Se não quer ser torturado nem abjurar – o que, nessa fase, acontece
na maior parte dos casos – o bispo o degradará, após o que será entregue
às autoridades civis. O herege é excomungado e impedido do sacramento
da penitência. A sentença termina assim:

“Porque não quiseste, e não queres abandonar os teus erros,


preferindo a condenação e a morte eternas à abjuração e ao retorno
ao seio da Igreja e à salvação da alma, nós te excomungamos e te
afastamos do rebanho do Senhor e te proibimos de qualquer
participação na Igreja, nesta Igreja que tudo fez para te converter, e
que não dispõe de nenhum outro meio para fazê-lo. Nós, bispo e
inquisidor, na qualidade de juízes no que compete à fé, com assento
neste Tribunal...etc.
Hoje, no horário e no local que te foram determinados para
ouvires nossa sentença definitiva, condenamos-te e decretamos,
judicialmente, que és realmente um herege impenitente e, como tal,
te entregamos e abandonamos ao braco secular.
E, da mesma maneira que, através desta sentença, te excluímos
da esfera eclesiástica, e te entregamos ao braço secular e aos seus
poderes, da mesma forma pedimos a esta Cúria Secular para não
chegar, na sua própria sentença, ao derramamento de teu sangue e à

174
pena de morte.”
Lida a sentença, o inquisidor distribuirá, em nome de Nosso
Senhor, o Papa, as indulgências de praxe.
E,enquanto a Cúria Secular executa o seu trabalho (suum officium
exequetur), poderão se associar a ela alguns fiéis idôneos, que pedirão,
ainda, ao herege que abjure seus erros.
E, se, depois de ter sido entregue à Cúria Secular, ou mesmo
enquanto o conduzirem à fogueira, ou quando já estiver em cima da
madeira para ser queimado, o herege disser que deseja abjurar, acho que,
por misericórdia, poder-se-ia considerá-lo como herege penitente e
prendê-lo para o resto da vida, se bem que isto não esteja muito de acordo
com o Direito, e que não se deva acreditar muito numa tal conversão.
E, de fato, vejam o que aconteceu na Catalunha, na cidade de
Barcelona, onde entregaram à autoridade secular três hereges
impenitentes, mas não relapsos. Um deles, que era padre, quando já
estava bem queimado de um lado, se pôs a gritar que o desamarrassem,
pois queria abjurar, e se arrependia. Desamarraram-no. Fizeram bem?
Fizeram mal? Não sei. Mas aqui está o que sei: acusado quatorze anos
mais tarde, constatou-se que praticara esse tempo todo a heresia e que
tinha pervertido outras pessoas. Não quis converter-se e, impenitente,
além de relapso, foi novamente entregue ao braco secular e queimado.

XVI. O Concílio de Toulouse prevê para os encarcerados e os que


pegarem prisão perpétua o acesso da esposa ao marido condenado, ou o
inverso, para não transgredir a lei da coabitação. O acesso de um ao outro
também está previsto nos casos em que os dois cônjuges estão na cadeia.
Quanto ao sustento material desses condenados …, eles próprios se
sustentarão, se possuírem bens, isso dependendo da boa vontade do
bispo. Se não possuírem bens, o bispo irá sustentá-los.
Nenhuma exceção está prevista para quem recebeu a prisão
perpétua. O marido não será libertado por causa da mulher, mesmo se ela
for jovem, nem a mulher por causa do marido, nem quem quer que seja,
por causa das crianças ou dos pais, mesmo se são indispensáveis, em
virtude de serem muito jovens ou muito velhos.
A propósito da degradação, alguém poderia perguntar: por que
degradar um sacerdote condenado à prisão? De qualquer maneira, não
poderia exercer seu ministério. Pois bem! Degrada-se porque a prisão
equivale, juridicamente — e quanto aos efeitos —, a uma pena de morte e
a uma morte efetiva. Deve-se degradar quem é condenado aos trabalhos

175
forçados? Sim, e pelas mesmas razões.
Eymerich acha que se poderia, ainda, aceitar o impenitente que, a
dois passos da fogueira, dissesse que deseja abjurar. É infinitamente mais
prudente sustentar a opinião contrária, mesmo se o impenitente gritasse
mil vezes e a sua conversão, pois, juridicamente, essa conversão é
inadmissível, e a experiência mostra que esse tipo de conversão jamais é
sincera. Aliás, o próprio Eymerich vai voltar ainda a esse assunto, no
décimo segundo veredicto.
Finalmente, por que esse pedido à Cúria Secular para evitar o
derramamento de sangue e a pena de morte? Para que esta recomendação,
em total desacordo com o conjunto de textos e com as advertências
explícitas feitas ao herege impenitente que “corre o risco de perder a
alma e o corpo”? Simplesmente, para que o inquisidor não caia numa
irregularidade, caso não livre a Cúria Inquisitorial da própria execução da
pena capital.

Décimo primeiro veredicto: condenação de um herege impenitente


relapso

O herege impenitente e relapso — arrependendo-se, no fina1, ou não —


deve ser entregue ao braço secular.
Pegando uma cadeia muito dura, antes de ser entregue, colocam-lhe
pesadas algemas nos pé, e acorrentam-no para não deixá-lo fugir e
contagiar outras pessoas. Ninguém tem acesso a ele, só os guardas,
homens dignos e insuspeitos, difíceis de serem induzidos em erro pelo
preso.
O bispo e o inquisidor chamam-no com frequência à sua presença,
tentando por todos os meios — discussões, textos etc., como no caso
anterior — convencê-lo de seus erros. Enviam-lhe, ainda, religiosos de
diversas Ordens, que tanto juntos, como em separado, tentarão quebrar
suas convicções. Se vier a se converter, será informado — se possível,
através de religiosos — da parte do bispo e do inquisidor, que não
escapará com vida, cabendo-lhe, portanto, preparar-se para a confissão e
para receber a eucaristia, a fim de morrer bem (efetivamente, não lhe
recusarão os sacramentos, se pedi-los com humildade). Arrependendo-se
ou não, será levado ao braço secular.
Recebendo os sacramentos, se se arrependeu (ou, sem recebê-los,
caso não se tenha arrependido), no dia marcado, o bispo e o inquisidor
farão a entrega do preso ao braço secular. As autoridades civis e a
176
população serão avisadas, como no décimo caso. De acordo com estes, as
autoridades civis e religiosas assistirão à cerimônia de condenação, que
irá se desenrolar como nas situações precedentes. Se for preciso, degrada-
se previamente o relapso. Arrependido ou não, o relapso deve morrer. Se
se arrepender, morrerá como está previsto no nono veredicto (onde se
trata do herege penitente, mas relapso); senão, morrerá como réu
impenitente e relapso.
Depois da leitura da sentença definitiva, o inquisidor concederá as
indulgências de sempre. Depois, como nos casos anteriores, homens de
grande idoneidade vão, ainda, pressionar o condenado — enquanto é
conduzido à fogueira — a desistir dos seus erros. Mas, mesmo que se
arrependa in extremis, não será admitido no âmbito da Igreja. Nesses
casos, acho que, apesar de tudo, não se deveria recusar-lhe os
sacramentos da Igreja, se ele solicitá-los com humildade. Mas a
misericórdia da Igreja só vai até aí.

Décimo segundo veredicto: condenação do herege convencido de heresia


que nunca confessou

Vamos examinar agora o caso do herege contra quem se reuniram, no


decorrer da investigação e do processo, provas absolutamente
esmagadoras (evidência dos fatos, depoimentos parecidos de
testemunhas, flagrante delito de pregação ou ministração de um
“sacramento” herético), mas que nunca confessou. Mesmo que não tenha
nunca confessado, não deixará de ser considerado um herege impenitente.
Vejamos como proceder com ele.
Antes de entregá-lo, trancafiam-no numa prisão bem dura. Deixam-
no algemado e acorrentado, e tal como na situação anterior, pressionam-
no constantemente a confessar e abjurar. Se confessar, será tratado como
está previsto no oitavo caso. Se não confessar, será submetido ao
procedimento canônico e secular previsto no décimo caso.
Porém, na segunda situação, é bom insistir junto aos delatores para
que considerem as graves consequências da sua delação. Se tiverem —
ou um deles tiver — denunciado um fato de que não têm absoluta
certeza, serão pressionados a admiti-lo. Se ficar patenteado que houve
falso testemunho, o delator será condenado à prisão perpétua (e o réu,
então, libertado), e proceder-se-á para lhe notificar esta sentença com o
mesmo aparato da leitura das sentenças de condenação dos hereges.
Quanto ao réu que persiste negando, se, in extremis, disser que se
177
arrepende e quiser confessar, mesmo se já está ardendo em chamas,
escapará com vida, indo para a prisão perpétua.

XVI. O pensamento eymerichiano sobre a culpabilidade do herege que


não confessa está, ponto por ponto, de acordo com os Concílios de
Béziers e Narbona. Lembrando, efetivamente, tudo o que foi dito antes
sobre os sinais que denunciam, com toda a segurança, a adesão à heresia.
É, aliás, absolutamente lógico que o réu acusado de heresia pela
autoridade eclesiástica recuse esta mesma autoridade rejeitando o seu
veredicto e pretendendo não ter nada a abjurar. Tal desobediência já é
uma confissão de heresia.
A hipótese de “falso testemunho” coloca, evidentemente, um
problema — já levantado anteriormente: a possibilidade ou não de
acarear testemunhas e acusado. Sabemos quantas dificuldades isto
implica, considerando-se, principalmente, que o réu deve ignorar os
motivos da acusação. Algumas regras impõem-se em se tratando de
acareação:
a. A acareação deve ser sempre evitada (mesmo no caso previsto por
Eymerich), se não pode ser feita com uma certeza absoluta de
sucesso, e sem nenhum risco. O inquisidor a conduzirá de tal
maneira que a testemunha não perceba que a condenação depende
do seu depoimento, mas sendo o réu reconhecido como herege, a
testemunha pense que deve testemunhar uma última vez para que o
réu não se sinta de maneira nenhuma condenado injustamente.
Lembremo-nos sempre de que não haveria delação — e já
podemos imaginar as consequências disso — se a acareação se
tornasse uma prática corrente.
b. Pode-se proceder facilmente à acareação, quando as testemunhas
forem, na realidade, cúmplices do réu, acusados como ele e do
mesmo crime. Neste caso, apela-se para uma outra coisa menos
para uma verdadeira acareação entre o réu e as testemunhas!
c. Pode-se proceder facilmente à acareação, quando o acusado e as
testemunhas forem pessoas que zombem da sua reputação, como,
por exemplo, prostitutas, “traidores reles” e pessoas desse tipo
(vilissimae meretrices vilissimi homines qui humeris onera
deferunt).
d. Em todos esses casos, os inquisidores espanhóis agirão bem em
não fazer nenhuma acareação sem avisar o Senado inquisitorial. O
restante da cristandade não fará nunca uma acareação sem avisar
178
os cardeais inquisidores gerais.

O responsável pelo falso testemunho “será condenado à prisão


perpétua”. Observem que Eymerich exclui a lei de talião, de acordo com
a qual o responsável pelo falso testemunho, em situações do gênero,
deveria receber a pena de morte.
Por fim, Eymerich diz: “Quanto ao réu que persiste negando, se, in
extremis, disser que se arrependeu e quiser confessar, mesmo se já estiver
ardendo em chamas, escapará com vida e irá para a prisão perpétua.”
Perguntarão, então, com toda a razão: não é melhor confessar o que não
se cometeu e salvar a vida do que não confessar o que não se cometeu e ir
para a fogueira? A pergunta se coloca,a bem da verdade, neste décimo
segundo tipo de veredicto, porque se trata de condenar à fogueira quem
não confessa — e talvez não tenha feito nada — e que ficaria preso o
resto da vida, mas não seria queimado,se confessasse o que não fez.
Suponhamos que alguém seja indiciado por um daqueles crimes
mais negros e mais terríveis, aquelas coisas que a gente não aguenta nem
ouvir falar, como, por exemplo, o delito de lesa-majestade, adultério etc.
Suponhamos que a pessoa não os tenha cometido, mas para evitar a
morte, a tortura ou qualquer risco do gênero, se auto-incrimina,
confessando que fez o que não fez. Mesmo se confessasse isso fora do
julgamento e sem estar sob juramento, não se poderia, logicamente,
desculpá-lo por ter cometido um pecado mortal, ao infligir-se uma grande
infâmia. Porém, o crime de heresia não é o maior, o mais grave dentre os
crimes mais terríveis? Portanto, ninguém deve se declarar herege,se auto-
infligir uma tão terrível difamação para escapar da morte. Não é um
pecado mortal difamar o próximo? Com muito mais razão,difamar-se a si
próprio! Portanto, mesmo que seja difícil levar um inocente à fogueira,
não se pode admitir que o réu confesse para escapar da morte. Caberá ao
confessor e aos teólogos que o acompanham na hora da morte consolá-lo
e recuperá-lo na sua verdade: não confesses o que não fizeste, dirão eles,
e não esqueças de que, se suportares a injustiça e o suplício com
paciência, receberás a coroa do martírio.

Décimo terceiro veredicto: condenação por contumácia de um herege em


fuga

O décimo terceiro veredicto diz respeito ao réu contumaz, ou fugitivo, e


indiciado como herege.
179
Deve-se considerar três situações:

a. O réu foi preso e indiciado como herege tanto através de


depoimentos como pela evidência dos fatos e pela sua própria
confissão. Mas fugiu ou, citado para se apresentar, não
compareceu.
b. O réu foi denunciado. Considerado levemente suspeito,foi citado
para se apresentar e testemunhar sua fé. Não compareceu e, por
isso, foi excomungado: ficou excomungado e considerado
contumaz, durante um ano.
c. O réu atrapalhou, de alguma forma, o trabalho do inquisidor
(favorecendo os hereges, aconselhando-os, escondendo-os etc.) e
fugiu. Atingido, ipso facto, pelo dardo da excomunhão,ficou
excomungado e considerado contumaz, durante um ano.

Nas três situações, o réu será condenado como herege impenitente.


E, em cada um desses casos, indiferentemente, se procederá da
seguinte maneira:
O bispo e o inquisidor convocam o acusado para ir, num dia
marcado, à catedral do lugar em que reside, para ouvir a sentença
definitiva. Para que não fique sem saber, a convocação episcopo-
inquisitorial será afixada nas portas da catedral.
Se, na data marcada, se apresenta diante da população, aceita
abjurar, abjura, se arrepende com humildade e pede misericórdia — e se
não é relapso — será admitido no seio da Igreja. Se confessou antes ou
se, anteriormente, foi desmascarado por testemunhas, irá abjurar,
recebendo uma punição como herege impenitente. O procedimento será
como o previsto no oitavo caso. Mas, se for violentamente suspeito
(citado para se apresentar para dar testemunho de fé, continuou se
recusando, e, por isso, ficou excomungado durante um ano inteiro) e se
arrepender, deverá abjurar, sendo considerado como herege
violentamente suspeito e penitente, como está previsto no quarto caso. Se
comparecer e não quiser abjurar, será declarado herege impenitente,
sendo entregue ao braço secular, como está previsto no décimo caso.
Se não se apresentar, será formalmente declarado herege
impenitente sendo entregue ao braco secular, como se estivesse
presente50.
50 Penhaforte lembra, como sabemos, que esse fugitivo se encontra, do ponto de vista jurídico, em
estado de guerra contra o rei e o Papa, e que, consequentemente, poderá ser executado por
qualquer pessoa.
180
XVI. Em caso de condenação por contumácia, é interessante fazer uma
imagem da pessoa, afixando-se o nome e a condição do condenado, e
entregá-la ao braço secular para ser queimada, exatamente como se faria
se o acusado estivesse presente. Não saberia dizer de quando data este
admirável costume de queimar os contumazes em suas efígies. Trata-se,
certamente, de uma prática posterior à época de Eymerich, senão, ele
falaria disso no Manual. Não há muitos indícios dessa prática na obra de
outros especialistas anteriores à Eymerich que trataram do procedimento
inquisitorial. Prática bastante louvável, cujo efeito aterrorizante sobre o
povo é evidente, e que voltará a ser tratada quando se examinar a questão
dos processos contra cadáveres.
Chamamos a atenção, mesmo assim, para o fato de que se o
acusado aparecer após a destruição de sua efígie pelo fogo, e se não for
relapso, será julgado.

181
182
183
184
A. A INQUISIÇÃO — O
INQUISIDOR — OS
COMISSÁRIOS
INQUISITORIAIS

1.Como deve ser o inquisidor?

O inquisidor deve ser honesto no seu trabalho, de uma prudência ex-


trema,de uma firmeza perseverante, de uma erudição católica perfeita e
cheia de virtudes.

XVI. Todos os inquisidores devem ser doutores em Teologia, Direito


Canônico e Direito Civil. Entretanto, na Itália, os inquisidores são
escolhidos entre os teólogos e, que eu saiba, não tratam as questões da fé
com menos competência que outros inquisidores. Nas cidades onde
houver dois inquisidores, é bom que um seja teólogo e o outro canonista.

2. Que idade deve ter o inquisidor?

De acordo com as disposições Clementinas, o inquisidor deve ter, pelo


menos, quarenta anos, ao ser nomeado.

XVI. Simancas defende que, em virtude de um decreto pontifício, na


185
Espanha pode-se ser nomeado inquisidor a partir dos trinta anos. É uma
prática, na Espanha, que reconheço e respeito, mas nunca vi o decreto de
que fala Simancas. Em todo lugar, respeita-se a norma dos quarenta anos.

3. Qual a origem da autoridade


do inquisidor?

O Papa, porque é ele quem, de viva voz e através de uma Bula, lhe
confere a sua autoridade. Às vezes, o Papa delega o seu poder de nomear
os inquisidores a um cardeal representante, bem como aos superiores e
padres provinciais dos dominicanos, e frades franciscanos.

XVI. Foram os Papas Inocêncio IV (Licet ex omnibus) e Alexandre IV


(Olim praesentiens) que deram esse poder aos superiores e padres
provinciais dessas duas Ordens. Atualmente, na Itália, são os cardeais
inquisidores que nomeiam os inquisidores. Na Espanha, são nomeados
pelo presidente do Senado inquisitorial.

4. O inquisidor é juiz ordinário ou juiz delegado?

É juiz delegado, porque não tem poder sobre as pessoas, os delitos, as


causas; só sobre o que lhe foi delegado por nosso senhor o Papa.

XVI. Seu poder delegado não se estende sobre todas as causas —


contrariamente ao poder do bispo — mas sobre todas as pessoas, fora
aquelas exceções que veremos mais adiante.

186
5. Morrendo o Papa que nomeou o
inquisidor, este perde a sua
autoridade delegada?

Claro que não. Ela fica incólume, mesmo para os processos que nem
foram abertos.

6. Quem pode destituir o


inquisidor?

O Papa. E, também, o superior ou provincial da Ordem atuando sob as


determinações da autoridade apostólica.

XVI. Atualmente, são os cardeais inquisidores gerais que transferem,


promovem e, eventualmente, destituem os inquisidores.

7. O superior ou o prior da Ordem


a que pertence o inquisidor podem
obrigá-lo a adiar a execução do seu
oficio?

Antigamente, podiam. Porém, não têm mais esse poder, depois dos
privilégios concedidos diretamente aos inquisidores pelos Papas
Alexandre IV, Clemente IV e Urbano IV.

187
8. Os inquisidores devem prestar contas aos
superiores de suas Ordens a respeito de suas
atividades referentes ao Santo Ofício?

Não. Os inquisidores são religiosos, evidentemente, mas também


representantes de nosso senhor o Papa. Como religiosos, devem
obediência e submissão a seus superiores e ao Papa, entendendo-se por
isto que devem se adaptar às suas próprias regras e respeitar seus desejos
etc. Como inquisidores, são representantes do Papa, e de mais ninguém.
Não têm, portanto, que prestar contas, a não ser o Papa, no que tange à
representação que têm.
O que significa que não é ao provincial ou ao superior da Ordem
que se vai apelar em caso de irregularidade de um inquisidor no exercício
de sua função, mas ao Papa.
Porém, poderá caber ao provincial ou ao superior a destituição de
um inquisidor: não pode fazer por sua vontade, mas somente depois de
solicitar a opinião da Inquisição.
A destituição impõe-se, em certos casos, em decorrência, por
exemplo, de incapacidade, doença grave, extrema velhice ou, o que é
bem pior, da ignorância do inquisidor.

XVI. Convém agrupar em três os motivos da destituição. O inquisidor


pode ser destituído por incapacidade, negligência e iniquidade.
Em caso de iniquidade (entendendo-se por isto a corrupção por
dinheiro, vantagens, acumulação de bens móveis ou imóveis), cabe,
atualmente, aos cardeais inquisidores gerais destituir o inquisidor culpado
e condenar-lhe a uma pena. Na Espanha, esse poder de destituir e
condenar está nas mãos do presidente da Inquisição (chamado o “Grande
Inquisidor”). Mas é da competência do Papa, enquanto detentor da
autoridade delegada, poder destituir diretamente, sem ter que respeitar as
instâncias inferiores.
Porém, concordando com Santo Tomás (2.2.q.70,art.2. ad arg.3),
lembremos que é sempre melhor evitar punir os inquisidores, porque,
com a punição, é a instituição inquisitorial que é atingida: logo ela não
será mais respeitada e temida pela plebe ignara (populo stulto).

188
9. O inquisidor pode ser ajudado
pelo vigário ou pelo comissário
inquisitorial?
Sim, pois, enquanto representante pontifício, pode subdelegar seus
poderes. Cabe ao inquisidor, e não a seus superiores hierárquicos, a
escolha e a nomeação do comissário.

XVI. Discutiu-se, por muito tempo, a possibilidade de “subdelegar”.


Atualmente, a questão já está resolvida. Pio III defende esse direito (Cum
iam dudum) e Clemente VII faz a mesma coisa (Cum sicut). Se o
inquisidor desejar, pode ser ajudado por vários comissários inquisitoriais.
O comissário inquisitorial deve ser cuidadoso, culto, um cristão-velho51,
devoto e preparado para se encarregar das questões da Inquisição. Poderá
ser escolhido, de preferência, entre o clero regular ou secular ou, então,
no capítulo da catedral da cidade onde o Tribunal da Inquisição está
sediado.

10. O inquisidor pode nomear


um escrivão para ajudá-lo?

Não. Seria um privilégio que não teria fundamento em nenhum texto


jurídico. O inquisidor far-se-á assistir pelos escrivães públicos das
dioceses, cidades ou jurisdições onde exercer sua autoridade. Em caso de
impossibilidade ou recusa, solicitará ao Papa que nomeie dois ou três
escrivães, de acordo com as necessidades, para que o trabalho do Santo
Ofício não fique emperrado.

XVI. Hoje é tudo completamente diferente. Efetivamente, em virtude da


Bula Pastoralis officii cura, do Papa Pio IV (Roma, 1561), os
inquisidores e comissários podem nomear — para ajudá-lo — para o
cargo de escrivão, três ou quatro religiosos, ou padres seculares, de
acordo com as necessidades.

51 Cf.. supra , p. 139, nota 12.


189
B. A EXCOMUNHÃO DO
INQUISIDOR E SEUS
COMISSÁRIOS

11. Os inquisidores podem ser


excomungados por um delegado da
Santa Sé?

Não. O Papa Urbano IV decretou que nenhum delegado apostólico pode


excomungar, “suspender a divinis”, nem “interditar” um inquisidor ou
seus escrivães sem ter uma ordem apostólica expressa para isso.

XVI. Este grande privilégio — cuja finalidade clara é impedir que se


interfira na prática do Santo Ofício — foi atribuído por Urbano IV, em
1261, que retomou uma disposição sobre esse mesmo assunto, decretada
em 1259, em Anagni, pelo Papa Alexandre IV.

12. O inquisidor pode solicitar —


sem correr o risco de ser
excomungado — ajuda, assistência e
apoio, das autoridades temporais, no
que diz respeito à sua função?

190
Sem dúvida! Alexandre IV (Quaesitivis, Anagni, 1249) decretou, aliás,
que apesar da dissolução do elo jurídico entre o senhor e o súdito —
consequência imediata da excomunhão do senhor — este é obrigado a
exercer sua autoridade contra os hereges, e todos os que o sigam, escutem
e ajudem.

XVI. Trata-se de um maravilhoso privilégio! O inquisidor pode


“comungar” com o “excomungado” sem ser, por sua vez, excomungado.
Além disso, qualquer ato jurídico cometido pelo senhor excomungado é,
ipso iure, nulo e sem efeito: e, no entanto, no caso em questão, este ato
juridicamente nulo é lícito!

13. O inquisidor e seus comissários que


incorressem em excomunhão ou
irregularidade poderiam reciprocamente se
absolver e se livrar da excomunhão?

Sim, em consequência de um privilégio dado pelo Papa Urbano IV


(1261).

14. Quais são, em se tratando do inquisidor,


os casos de excomunhão especialmente
reservados ao Papa?

São três: a) quando os inquisidores não perseguem quem deveriam


perseguir de acordo com a sua consciência, independentemente das
motivações da sua omissão (amor, ódio…); b) quando, sob qualquer
pretexto, no exercício de suas funções, extorquem dinheiro; c) quando,
por ocasião do julgamento de um sacerdote, mandam entregar ao fisco

191
bens pertencentes à Igreja.
Nestas três situações, os inquisidores perdem todos os privilégios
(exceto,é claro, em articulo mortis).

XVI. Aqui, faz-se uma restrição à abrangência do que foi dito na resposta
anterior. Mas é bom lembrar que os textos pontifícios, falando dessas três
situações, esclarecem que o inquisidor é excomungado se estiver
absolutamente consciente do delito que cometeu. Se agisse por
ignorância ou de boa-fé, não receberia o castigo da excomunhão!

192
C. PODER DO INQUISIDOR

15. O inquisidor pode perseguir o


Papa se este for suspeito de heresia?

Não, porque o inquisidor é apenas um delegado. O juiz competente, neste


caso, seria o Concílio Geral ou o Consistório dos Cardeais.

XVI. É preciso saber, primeiro, se o Papa pode ser herege! É a opinião,


na verdade, da maioria dos teólogos e canonistas. Mas não faltam
teólogos que defendam a opinião contrária, que me parece mais racional,
e, talvez, também, mais de acordo com a doutrina dos fundadores da
Igreja e do próprio Evangelho, onde se lê que Cristo reza para que a fé do
Papa52 não esmoreça.

16. O inquisidor pode perseguir os


delegados e núncios?

Não. João XXII proíbe expressamente. Mas podem denunciar à Santa Sé


os seus delitos contra a fé. A mesma coisa em relação aos bispos.

52 Evangelho fala, evidentemente, da fé de Pedro.


193
XVI. Pio V dá o direito (Romanus Pontifex, Roma, 1563) aos cardeais
inquisidores superiores de perseguir os bispos e prelados culpados de
heresia.

17.Contra quem mais pode


“proceder” o inquisidor?

O inquisidor “procede” de pleno direito contra os religiosos isentos e


padres, mas não “procede” contra um outro inquisidor.
XVI. Não se deve ser muito rígido na perseguição de religiosos e padres,
pois o processo de um padre pode ser sempre interpretado como um
processo contra todo o clero. Então, o inquisidor deve lembrar-se de que
os leigos não suportam os privilégios dos eclesiásticos, e que nada os
alegra mais do que os pecados dos padres e a sua punição. Porém, em
contrapartida, o inquisidor não pode esquecer-se de que o padre culpado
de um delito contra a fé é mais culpado que o leigo, e que,
consequentemente, merece uma punição mais exemplar.

18. O inquisidor pode perseguir a


todos, indistintamente, do rei ao
último dos leigos?

Evidentemente que sim. Perseguirá qualquer leigo, independente de


posição ou condição, seja herege, suspeito ou simplesmente, difamado.
Isto está colocado explicitamente na Bula Prae cunctis, de Urbano IV.
Eu aconselharia, porém, aos inquisidores, não perseguir
publicamente os reis ou pessoas da realeza: é mais inteligente e prudente
passar o caso para nosso senhor o Papa, e proceder, depois, como ele
determinar.

194
O inquisidor pode punir quem coloque entraves ao exercício da
Inquisição. Deve excomungar qualquer leigo, que publicamente ou não
discuta questões teológicas. “Procederá” contra qualquer advogado ou
escrivão que der assistência a um herege.

XVI. Muito cuidado também quando se for perseguir gente importante,


poderosos, personagens ilustres ou um grande número de hereges. Em
todos esses casos, o inquisidor deve atentar para o escândalo ou o perigo
que o procedimento inquisitorial pode causar.
Entende-se por “personalidades da realeza” não apenas príncipes,
duques, marqueses etc., mas também membros do Conselho Real,
senadores, ricos barões, magistrados das cidades, governantes, cônsules,
o podestà etc. O inquisidor que se precavenha, antes de começar a
perseguir personalidades deste porte, principalmente se são poderosas
(porque irão entravar o trabalho do Santo Ofício), e o inquisidor, pobre e
fraco.
Por fim, aconselho o inquisidor a enfrentar, sem medo, a opinião
pública, em lugares de muita concentração de hereges, mas sob a
condição de que seja um excelente teólogo.

19. O inquisidor pode perseguir


uma pessoa que tenha,
conscientemente, enterrado um
herege, um difamado ou um protetor
de hereges num cemitério
cristão?

Sim. Deve fazê-lo conforme o que Alexandre III estabeleceu no Concílio


de Latrão, e Alexandre IV ratificou:
“Será excomungado quem ousar dar uma sepultura cristã a um
herege ou a algum partidário da heresia. E ficará mais tempo
excomungado, se demorar muito, em público e com as suas próprias
mãos, a desenterrar o corpo do condenado.”

195
XVI. Por que privar de sepultura cristã os hereges e seus seguidores? Por
várias razões. Primeiro, porque todos eles morreram excomungados, ou
seja, em pecado mortal. Segundo, como escreveu Santo Agostinho, deve-
se recusar a sepultura cristã a todos aqueles pelos quais é proibido rezar:
é o caso dos hereges.
Se, depois da morte, aparecer alguém dizendo que Fulano era
herege ou excomungado, exuma-se o corpo e cremam-se os ossos,
tomando bastante cuidado para não cremar junto os ossos de católicos
honestos. A seguir, faz-se a consagração do local profanado pela
presença do cadáver de um herege.
Além dos hereges formais, também são privados de sepultura cristã
os seguidores de qualquer heresia e quem protegê-la ou ajudá-la. Com
muito mais razão, é privado de sepultura cristã, o herege ou suspeito, que
preso, em virtude de seus erros, suicida-se no cativeiro, uma vez que
teria, claramente, morrido como um impenitente, e por consequência, em
estado de pecado mortal.
Quem dá sepultura cristã a herege é atingido pela excomunhão e
deve desenterrar o corpo. É justo: dar sepultura a um herege equivale a
proclamar a si mesmo suspeito de heresia. Exige-se, então, de quem
cometer tal delito uma abjuração formal e outra abjuração canônica a
menos que o culpado esteja em condições de alegar uma forte razão que
justifique o delito.
Contudo, pode-se enterrar um herege (ou simpatizante), mas fora
do cemitério consagrado, quando o herege morrer num local, ou em
circunstâncias que torne impossível apelar para as autoridades
inquisitoriais e aguardar suas providências. Neste caso, precisamente,faz-
se o enterro para que o corpo do herege não se decomponha, e quem o
enterrou não será suspeito de heresia.
Evidente que serão considerados suspeitos de heresia quem
celebrar cerimônias fúnebres para um herege e quem recuperar e guardar
ossos, cinzas ou roupas de um herege. Este tipo de prática equivale, na
verdade, a considerar como santos aqueles que a Igreja condena.

20. O inquisidor pode “proceder” contra


quem, chamado a dar testemunho de fé,
recusa-se a prestar juramento?

196
Pode, porque Alexandre III estabeleceu que aquele que se recusar a
prestar juramento é considerado herege. Aliás, esta recusa é prática
comum entre os valdenses, que achavam que jurar era um pecado mortal.

21.O inquisidor pode “proceder”


contra quem, denunciado ao
Tribunal da Inquisição, se
transferisse para fora da região
abrangida pela jurisdição do tribunal
requerente? E contra quem,
residente, naquele momento, na sua
circunscrição, cometesse um delito
de heresia numa outra região?

Pode, em virtude do que foi estabelecido pelos Papas Clemente IV e


Alexandre IV.

22. O inquisidor pode “proceder” contra


os mortos que, antes ou depois do
falecimento, forem denunciados como
hereges?

Pode, de acordo com o que foi estabelecido por nossos senhores os Papas
Urbano IV e Alexandre IV.

197
XVI. Em Direito Civil, considera-se, geralmente, que, com a morte do
culpado, cessa qualquer possibilidade de perseguição por causa de um
delito. Mas este princípio geral não vale em caso de lesa-majestade
divina ou humana: é um princípio adotado, por unanimidade, pelos
especialistas e confirmado pelo Concílio de Béziers. Ora, há delito de
lesa-majestade divina quando houver heresia. Logo…
Mas, após quanto tempo da morte do herege, o inquisidor poderá
ainda julgar?
Façamos a distinção das duas causas de perseguição de um herege
que morreu:
a. Condena-se ele para confiscar-lhe os bens — ou, mais
exatamente, para declarar que seus bens foram confiscados ipso
facto —, tirá-los de terceiros que os detenham ou atribuí-los ao
Santo Ofício da Inquisição.
b. Quando se quer lançar o anátema à memória do morto, declarando
que era herege, merecendo, por isso, as punições previstas.
Consequências dessa condenação são a exumação e a cremação do
cadáver ou o traslado do corpo para fora do cemitério consagrado.
No primeiro caso — condenação visando confisco — não se pode
mais perseguir judicialmente o cadáver, depois de cinco anos do
falecimento. É a opinião de alguns especialistas. Mas, na verdade,
persegue-se até quarenta anos depois do falecimento. E os herdeiros,
mesmo se forem católicos e cuidarem com a maior boa vontade dos bens
do herege, serão despojados em proveito do fisco eclesiástico ou civil,
conforme as leis e a localidade.
No segundo caso — anátema à memória do morto — não há limite
de tempo. E, se a condenação da memória do falecido ocorrer além de
quarenta anos depois de sua morte, seus herdeiros ficarão, logicamente,
com os seus bens, mas sofrerão punições especialmente previstas para os
filhos dos hereges: serão declarados infames e inaptos a qualquer cargo
público ou privilégio. Trata-se de uma sentença perfeitamente de acordo
com o Direito, se bem que acabe, lamentavelmente, punindo quem não
cometeu nenhum crime.
Como “proceder” contra um morto? Uma questão difícil, porque,
será que se pode abrir um processo contra quem, por definição, não pode
ser citado para comparecer? Não seria melhor falar claramente de
“condenação da memória de Fulano” do que de “processo”? Sim, em
Direito Civil. Mas, evidente que não, em se tratando de um delito de lesa-

198
majestade divina.
Se os indícios forem suficientes, haverá um processo. O fiscal
solicita intervenção do inquisidor, valendo-se das denúncias feitas contra
o acusado morto e pede que sejam aplicadas as penas previstas
(confisco,degradação etc.). Os herdeiros, e todos que tiverem um
interesse direto em opor-se à condenação do morto,serão avisados assim
que o processo for aberto, para poderem defender a sua memória. Se os
herdeiros ou quem tiver direito não comparecerem no prazo determinado,
o inquisidor designará um defensor, que agirá como o previsto nos casos
de processo inquisitorial ordinário: defenderá a causa do morto, guardará
segredo de tudo o que disser respeito ao processo, comunicando-se,
apenas, com os legistas do Santo Ofício. De acordo com as Instruções de
Ávila (1498), o procedimento contra o morto será rápido: tanto a
absolvição quanto a condenação serão rápidas. E isto é explicável:se a
causa se eternizasse, os filhos e, principalmente, as filhas do morto não
poderiam dispor dos seus bens enquanto duras-se o processo, e, nesta
situação, as filhas não encontrariam casamento. No entanto, se após a
absolvição de um morto,se descobrem novos indícios de culpa, reabre-se
o processo; desta vez, decide-se levar em conta tanto os antigos como os
novos indícios.
Se o acusado morrer durante o processo, este continua
normalmente, e chamam-se os filhos ou descendentes mais próximos do
morto para assumir a defesa: haverá pagamento, se for preciso pagar, e
condenação do morto, se for preciso condenar53.
Em casos de processo póstumo, recorre-se à prática das efígies; a
efígie do morto não será exposta publicamente, se o falecido for
absolvido; mas ela será entregue ao braço secular e queimada (depois da
proclamação pública dos erros do morto e da sentença), caso o morto seja
condenado. Também se entregará à autoridade secular a efígie do
acusado que tiver se suicidado durante o processo, já que o suicídio
constitui a confissão de culpa mais evidente.
Finalmente, de acordo com o que foi estabelecido pelo Concílio de
Toulouse, em 1229 (do qual Eymerich, curiosamente, nem fala),a casa do
herege condenado e queimado será demolida (tenha sido ele condenado
em vida ou depois de morto), nivelando-se a terra, para que não fique
nenhum vestígio. Não era na sua casa que os hereges se reuniam e faziam
conciliábulos contra a fé? A sentença de demolição vale para a moradia e

53 Porém, saberemos mais adiante (resposta à pergunta 65) que o depoimento da defesa feito pelas
pessoas próximas ao morto, em caso de processo póstumo, tem um valor apenas relativo.
199
locais de reunião dos hereges e implica a interdição de reconstruir no
mesmo local, futuramente, bem como a apropriação, pelo fisco
eclesiástico, de todas as terras, ruínas e fundações (omnes lapides, rudera
et coementa inde amota ad fiscum nostrum pertinere). O Concílio de
Béziers retoma essas resoluções do Concílio de Toulouse, que serão
ratificadas, logo depois, pelo Papa Inocêncio IV, na Bula Ad
extirpandam, na qual está prevista, além disso, a demolição das casas
vizinhas ao herege. Conforme a tradição inquisitorial, cobre-se a terra
nivelada com sal, para que se torne estéril para sempre. Depois constrói-
se uma estela gravando-se em cima o nome do dono da casa demolida, a
sentença de demolição e a data de execução (em que reinado, durante
qual pontificado). Pode-se ver uma estela igual, na importante cidade de
Valladolid, onde, em 1559, Agostinho Cazzala, mesmo convertendo-se e
confessando, foi entregue ao braço secular como dogmático, tendo sua
casa demolida.

23. De uma maneira geral, contra


quem o inquisidor pode
“proceder”?

Já dissemos que pode proceder contra os blasfemadores, lançadores da


sorte, necromantes, excomungados, apóstatas, cismáticos, neófitos que
retornaram aos erros anteriores, judeus, infiéis que vivem no meio dos
cristãos, invocadores do diabo. Digamos que, de uma maneira geral, o
inquisidor “procede” contra todos os suspeitos de heresia, os difamados
de heresia, hereges, seus seguidores, quem lhes dá guarida ou ajuda e
quem emperra o trabalho do Santo Ofício, retardando, direta ou
indiretamente, sua ação.

XVI. Digamos, de uma maneira mais curta e mais clara, que o inquisidor
pode “proceder” contra todos, exceto alguns casos (Papa, legados,
bispos), decorrentes da própria natureza da autoridade delegada do
inquisidor.

200
D. OS PROCESSOS
24. O inquisidor e o bispo podem
“proceder” um sem o outro?

Inquisidor e bispo podem, separadamente, citar, capturar e prender. Cada


um é livre de julgar quando é oportuno encarcerar os seus prisioneiros.
Por outro lado, é em conjunto que cabe a eles: a) transferir os
condenados para uma prisão particularmente rígida, b) submetê-los à
tortura, c) promulgar as sentenças.
Em caso de desacordo entre eles, é bom apelar para nosso senhor o
Papa.

XVI. Na Espanha, em caso de desacordo, O bispo e o inquisidor deverão


recorrer ao Senado Inquisitorial de Madri.

25. O inquisidor pode dispor de


uma guarda armada?

Sim, dispõe de guardas cujas funções são as seguintes: proteger a pessoa


do inquisidor e das autoridades da Inquisição; perseguir e capturar
hereges etc. Mas cabe ao inquisidor cuidar para que esses guardas não
exorbitem de suas funções.

201
XVI. Este privilégio de utilizar uma força armada foi concedido aos
inquisidores por Clemente V, no Concílio de Viena, por volta de 1310, e
ratificado por João XXII, em 1321. Os colaboradores da Inquisição têm o
direito de andar armados dia e noite, apesar de todas as leis civis ou
municipais contrárias a essa disposição: a não revogação da lei contrária
a esse privilégio será considerada, de pleno direito, como um entrave ao
exercício da Inquisição e a autoridade capaz de revogar, recusando-se a
fazê-lo, é passível, em virtude disto, de perseguições inquisitoriais.
Acho, pessoalmente, que o porte de arma não deveria ser reservado
apenas à categoria dos colaboradores da Inquisição, que os italianos
chamam de Crocresignati e os espanhóis, de Familiares (cujo papel é
escoltar o inquisidor, denunciar os hereges e capturá-los com mandato
inquisitorial), mas deveria ser estendido a todos que, por uma razão ou
por outra, têm que colaborar com a Inquisição (advogados, escrivães,
especialistas guardas etc.), porque todos são malvistos pelos infiéis,
blasfemadores e demais pecadores. Portanto, é justo que todos eles, e os
que os servem, andem armados, principalmente em regiões onde a
heresia grassa.
Deveria também beneficiar-se do porte de arma quem, mesmo sem
colaborar direta, ou indiretamente, com a Inquisição, escreve contra a
heresia. Trata-se dos defensores da fé, que atraem, em razão disto, grande
número de inimizades. Seria, portanto, esperado, que o Papa, na sua
bondade, atribuísse, também a eles, o direito de andar armados.
Considerando o privilégio do porte de arma e os riscos de abuso que
isto implica, seria prudente que nenhum convertido fosse admitido entre
os Crocresignati ou Familiares. Os cristãos-velhos são suficientemente
numerosos para que não se faça necessário escolher os guardas
inquisitoriais entre os neófitos e convertidos.

202
E. A PRISÃO INQUISITORIAL

26. O inquisidor pode ter a sua


própria prisão?

Pode. O inquisidor dispõe de uma prisão própria, na qual mantém detidos


os presos que ainda não foram julgados. Ele pode colocar algemas ou
correntes nesses prisioneiros.
A prisão na qual os presos devem cumprir a pena — depois do
processo — será comum ao inquisidor e ao bispo. É uma prisão
horrorosa, porque foi concebida muito mais para o suplício dos
condenados do que para sua simples detenção. É nesta prisão que deverão
ocorrer as sessões de tortura.

XVI. Particularmente sobre este ponto (prisão dupla: para a detenção e


para o cumprimento da pena), o Direito Inquisitorial é diferente do
Direito Civil. Atualmente, não existem duas prisões, mas uma só,
propriedade comum do bispo e do inquisidor. É uma prática razoável,
porque não serve para nada construir duas prisões, se uma só basta.
Porém, a distinção jurídica entre “guarda” e “pena” deve ser mantida.
Assim, se é verdade que as sessões de tortura só podem ocorrer com a
permissão do inquisidor e do bispo (a tortura já é um tipo de pena), só o
inquisidor tem o poder de transferir para uma masmorra particularmente
sombria, bem vigiada e lúgubre, o preso cujo comportamento justificasse
uma vigilância redobrada (e, neste caso, estamos falando da vigilância),
seja porque, de alguma maneira, manifestou intenção de fugir, seja
porque perverte outros presos. Entretanto, o inquisidor terá uma atenção
redobrada com esse tipo de decisão de transferir para prisões
particularmente rigorosas: não é preciso que a prisão seja tão terrível, tão
nefasta, que o preso acabe morrendo, porque, se isto acontecesse, o

203
inquisidor estaria incorrendo numa irregularidade. De juiz da fé, ele se
transformaria num carrasco. O inquisidor deve sempre lembrar-se das
disposições do Concílio de Béziers: “Que se construam, próximo a cada
sede episcopal — e, se for possível, em cada cidade —, celas individuais
sem luz, nas quais os hereges condenados ficarão trancados, de tal modo
que não possam contaminar-se mutuamente nem perverter outras pessoas.
Mas evitem que os condenados morram em decorrência do excesso de
rigor das prisões.”

27. O inquisidor e o bispo podem


ter uma prisão comum para a
guarda e para cumprir pena? Em
caso afirmativo, qual das duas cabe
à guarda?

Cada um pode ter a sua própria prisão, e cada um pode transformar sua
própria prisão em prisão comum aos dois.

a. Em certos lugares, como Toulouse e Carcassona, os inquisidores


dispõem de prisões chamadas “paredes”, porque as celas ficam ao
longo das paredes das casas comuns ao inquisidor e ao bispo.

b. Em outros lugares, os bispos dispõem de uma prisão, onde ficam


detidos não apenas os suspeitos e condenados, antes e durante o
processo, respectivamente, mas também, os condenados, depois da
condenação. A prisão episcopal, neste caso, é também prisão
inquisitorial, visto que, como já foi dito antes, o bispo não poderia
manter os condenados presos sem a permissão do inquisidor.

No que diz respeito à guarda, convém que os emparedados – para


retomar a palavra sugerida mais acima – sejam colocados sob a guarda de
dois vigias discretos, espertos e muito devotos, um mantido pelo bispo,
outro, pelo inquisidor. Cada um terá um auxiliar, dispondo cada um de
duas chaves. Os vigias prestarão juramento, na presença do bispo e do
inquisidor, de executar fielmente a sua missão e não permitir a ninguém
ter acesso aos presos, ocupando-se deles conforme as ordens do bispo e

204
do inquisidor. Se se tratar de uma prisão episcopal, os guardas também
prestarão juramento na presença do inquisidor.
Longa e enfadonha a questão da vigilância. Questão puramente
verbal, no fim de contas, pois de onde o inquisidor tiraria o que pagar aos
guardas? Não me alongarei muito nisso, então, porque ficaria sempre sem
solução o problema do salário dos guardas, tal é a deficiência do salário
dos inquisidores.

XVI. Vamos distinguir estes assuntos: o cárcere do condenado, a prisão,


a guarda do preso. A respeito destes 6 pontos, é preciso adaptar a
doutrina eymerichiana à prática moderna:

a. O cárcere de um condenado. — O inquisidor deverá avisar seus


superiores antes de encarcerar uma pessoa, se se tratar de alguém
importante (religioso, nobre, escritor) e normalmente considerado
como um devoto. Na Espanha, o inquisidor deve submeter ao
Senado Inquisitorial, antes de proceder à prisão de uma pessoa
ilustre, de acordo com as Instruções de 1561. Os condenados e
pessoas denunciadas não são submetidos ao mesmo regime: de
acordo com o delito e a condição do acusado, o regime
penitenciário será mais brando ou mais duro, as celas mais
desconfortáveis e escuras ou, ao contrário, mais alegres e amenas
(Laetiora et amoieniora). Bem mais atrás explicamos em que
situações a própria casa do acusado, ou sua cidade, podem ser
consideradas prisões. Não se juntam homens e mulheres
presidiários. A promiscuidade está excluída tanto da prisão
preventiva quanto da prisão ordinária. Mas esta regra não vale para
os casais: conforme o que se estabeleceu no Concílio de Béziers,
marido e mulher condenados à mesma pena serão emparedados
juntos ou separados. Mas, neste último caso, poderão ter acesso
um ao outro, para que seja respeitada a lei da coabitação. Tal
possibilidade de acesso deve ser mantida em caso de prisão de um
dos dois cônjuges.

Deve-se evitar, em geral, prender numa mesma cela duas ou mais


pessoas (a menos que o inquisidor tenha suas razões para facilitar esses
agrupamentos), pois os criminosos não falam de outra coisa,com seus
companheiros de prisão, senão dos meios de esconder a verdade,
fugir,adiar os interrogatórios etc. Os efeitos dessa coabitação são tão
nefastos, que basta pouco tempo para que entrem em ação, já que

205
desgraças comuns fazem nascer, em pouco tempo, grandes amizades
entre os presos, que passam, logo, a pensar juntos os meios de escapar à
triste sorte que os espera. O inquisidor visita os presos duas vezes por
mês, interessando-se em saber como estão sendo tratados. Pode ser útil
multiplicar essas visitas até quatro ou cinco vezes por mês, e até mais,
principalmente quando o preso suporta mal a vergonha e a grande prova,
que é a cadeia. Este tipo de preso será várias vezes visitado pelo
inquisidor, que lhe permitirá receber a visita de outras pessoas, que vão
consolá-lo e dizer-lhe que, se confessar espontaneamente, terá a sua
situação logo resolvida. Muitos presos que mal conseguem suportar a
presença do juiz se acalmam e se pacificam quando outras pessoas fazem
esse tipo de proposta. O inquisidor deve ter cuidado, quando visitar os
detentos, para falar com eles apenas sobre a acusação e o processo, e
mais nada. Existem culpados inflexíveis, que aproveitariam qualquer
pretexto para caluniar, depois, o inquisidor. Este deve fazer-se
acompanhar do seu escrivão ou de um outro membro da sua equipe
quando for visitar os presos: será mais prudente.
Não se deve transferir à toa os presos de um lugar para outro, de
uma prisão para outra. Mas, se for absolutamente necessário, deve-se ter
cuidado para manter juntos, na nova cela, os transferidos, e não juntá-los
com outros presos, porque a experiência mostra que, durante esses
deslocamentos, ensina-se para um segmento da cadeia o que se aprendeu
em outro. É necessário que o que se diz numa prisão ou num setor não
seja ouvido em outro: quem já tiver confessado desmente tudo depois de
uma transferência de cadeia. Porém, não vou me estender nessas medidas
de segurança que todo inquisidor sabe de cor e salteado.
Os presos não têm direito de assistir à missa celebrada dentro da
cadeia. Não existe suspeita de heresia, não é bastante provável que os
presos sejam hereges? Não foram excomungados? A pura simonia é
menos grave que a heresia e o simoníaco não pode celebrar a missa.
Portanto, os acusados de heresia não podem querer assistir aos santos
mistérios. Além do mais, os presos, principalmente se forem muitos,
aproveitarão a missa para combinar, através de sinais e outros meios,
como esconder a verdade, dissimular um indício ou confundir uma
testemunha.
Enfim, não é usual dar permissão aos presos, que estejam sob
prisão preventiva, de assistir ao preceito dominical. O inquisidor proíbe,
normalmente, apenas os suspeitos que os depoimentos e denúncias
comprometem. Quem o inquisidor mantiver preso poderá ser, deste ponto

206
de vista, legitimamente considerado culpado. E não venham nos dizer
que os presos ficariam mais predispostos e confessariam com mais
facilidade, se lhes permitissem assistir à missa! Se forem inocentes — e,
portanto, verdadeiros devotos — confessarão bem mais rapidamente,
para não ficarem ainda mais tempo privados da graça e das orações da
missa dominical. A atitude de cada um face a tal privação pode ser um
indício significativo de que o inquisidor competente saberá muito bem
explorar.

b. A prisão de um apenado. — O essencial do aprisionamento dos


condenados já foi colocado na parte do Manual dedicada aos
veredictos. Ainda que não se construam mais, atualmente,
“paredes”, como antigamente, para os condenados à prisão
perpétua, é absolutamente necessário dispor de uma construção
especial para esse tipo de prisioneiro: do contrário, dificilmente se
poderá ver como os apenados serão tratados, como está previsto
nos capítulos 79 e 80 das Instruções madrilenhas de 1561, que
dispunham sobre as obrigações dos inquisidores em relação aos
emparedados: proteção, alimentação e controle do comportamento
dos emparedados reconciliados com a Igreja. No tocante a este
assunto,é melhor seguir as determinações do Concílio de Narbona,
que obrigava os vigários a se responsabilizarem pelos apenados à
prisão perpétua de suas próprias paróquias, e a submeter ao
inquisidor qualquer irregularidade ou negligência no
comportamento dos apenados.

Quanto à comutação da pena de prisão perpétua, quero lembrar


que, em conformidade com o Direito Civil, pode ser decidida pelo
inquisidor juntamente com o ordinário local. No entanto, na Espanha, só
o Inquisidor Geral tem esse poder. No final de quanto tempo a pena de
prisão perpétua pode ser comutada? Não há um princípio geral, e cada
inquisidor tem a liberdade de decidir, mas o preso que suportar sua sorte
com humildade, beneficia-se, frequentemente, de uma redução da pena,
ao final de três ou oito anos de prisão.

207
F. O INTERROGATÓRIO – A
TORTURA

28. O inquisidor e o bispo podem


expor qualquer pessoa a
interrogatórios e torturas? Em
caso afirmativo, em que
condições?

Eles podem torturar, em conformidade com as decretais de Clemente V


(Concílio de Viena), sob a condição de que decidam isto juntos.
Não existem regras muito claras para determinar em que situações
se pode proceder à tortura. Na falta de jurisprudência a respeito, aqui vão
sete regras.

1. Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas, afirmando ora uma


coisa, ora outra, sempre negando os argumentos mais fortes da
acusação. Nestes casos, presume-se que esconde a verdade e que,
pressionado pelo interrogatório, entra em contradição. Se negar
uma vez, depois confessar e se arrepender, não será visto como
“vacilante” e sim como herege penitente, sendo condenado.

2. O suspeito que só tem uma testemunha contra ele é torturado.


Realmente, um boato e um depoimento constituem, juntos, uma
semi-prova, o que não causará espanto a quem sabe que um único
depoimento já vale como um indício. Dir-se-ia testis unus, testis
nullus? Isto vale para a condenação, mas não para a presunção.
Portanto, uma única acusação é o suficiente. Entretanto,
convenhamos, o depoimento de uma única pessoa não tem a
mesma força que um julgamento civil.

208
3. O suspeito contra quem se conseguiu reunir um ou vários indícios
graves deve ser torturado. Suspeita e indícios são suficientes.
Quanto aos padres, basta a suspeita (porém, só os padres
caluniados são torturados). Neste caso, as condições em que tal
ocorre são em grande número.

4. Vai para a tortura quem tiver um único depoimento contra si em


matéria de heresia e contra quem, além disso, houver indícios
veementes ou violentos.

5. Será torturado aquele contra quem pesarem vários indícios


veementes ou violentos, mesmo se não se dispuser de nenhuma
testemunha de acusação.

6. Com muito mais razão, será torturado, à semelhança do caso


anterior, quem tiver, além de tudo, contra si, o depoimento de uma
testemunha.

7. Quem tiver apenas uma difamação, ou uma única testemunha, ou


ainda, um único indício, não será torturado: cada uma dessas
condições, isoladamente, não basta para justificar a tortura.

XVI. Em toda a obra de Eymerich, não existe questão mais complicada


que esta, nenhuma outra tem que ser explicada com tanta exatidão.
Vamos empenhar-nos, portanto, em comentá-la, pois poderiam restar
algumas dúvidas e os especialistas não encontrariam no Manual o que
esperam encontrar. Portanto, vamos explicar bem. Toda essa questão
envolve dois temas: primeiro, o inquisidor, entrando em acordo com o
bispo, pode mandar torturar. Segundo, em que situações pode-se ou deve-
se torturar. Vamos logo assinalando que, no começo, os inquisidores não
torturavam, com medo de cometerem alguma irregularidade. Mandavam
aplicar a tortura através de juízes leigos (Inocêncio IV). Mas soube-se
logo que, nos tribunais leigos, nem sempre se procedia com o sigilo
absoluto exigido nas questões inquisitoriais. E constatou-se que toda
questão inquisitorial envolve, por definição, o domínio da fé. Por isso, só
os inquisidores devem conduzi-la. Na maioria das vezes, não se levam
esses casos até o fim sem recorrer à tortura. Pareceu, então, mais
prudente confiar aos inquisidores e bispos a tarefa de torturar, ficando
assim determinado nos documentos posteriores em que se baseia
Eymerich, como, por exemplo, em Urbano IV (ut negotium), segundo o

209
qual o bispo e o inquisidor podem se livrar mutuamente das
irregularidades que cometeram através da aplicação da tortura.
No que diz respeito aos casos em que se aplica a tortura, Eymerich
é bastante claro para que se precise entrar em outros detalhes. É bom
lembrar, antes de proceder à tortura, de que sua finalidade é menos de
provar um fato do que obrigar o suspeito a confessar a culpa que cala. Se
é possível provar o fato de outra maneira, sem torturar, não se tortura,
pois justamente a tortura serve apenas como paliativo, na falta de provas.
Deste modo, pode-se qualificar de sanguinários todos esses juízes
inquisidores de hoje, que recorrem tão facilmente à tortura, sem tentar,
através de outros meios, completar a investigação. Tais juízes se
enganam precipitando-se assim.
Em decorrência de tudo o que foi dito antes, não se deve recorrer à
tortura nos delitos manifestos, mas somente nos delitos ocultos, que são
mais difíceis de comprovar.
Os indícios devem apoiar-se em provas e serem graves, porque não
se deve torturar com base em indícios de um pequeno crime.
Se essas premissas forem observadas, pode-se torturar, como
explica accuratissime Eymerich, quando fala do terceiro tipo de
veredicto.
Na nossa perspectiva, existem cinco tipos de torturas, constituindo-
se em cinco graus diferentes. Não vou descrevê-los porque são
conhecidos por todo mundo (cuique sunt obvii et patentes) e porque toda
a descrição minuciosa se encontra nas obras de Paul Grilland (Traité la
torture, q.4, n. 11), Jules Clair (Pratique criminelle, sub fin., q.64) e
ainda outros54. A lei não diz que tipo de tortura deve-se aplicar. Portanto,
a escolha é deixada ao arbítrio do juiz, que escolherá umas ou outras, de
acordo com a posição social do réu, o tipo de indícios, e outras coisas
mais. Porém, o inquisidor não deve empenhar-se em descobrir novas
torturas. Restringe-se àquelas que, na sua sabedoria, os juízes sempre
admitiram, como explica de uma maneira bonita e clara (pulchre et clare)
Antonio Gómez: em sua obra, lê-se, por exemplo, que, atualmente, a
tortura através de cordas é aplicada, com muita frequência, em toda parte
(hodie ubique frequens), não sendo preciso abandoná-la.
Não faltaram, no entanto, juízes que se puseram a imaginar vários
tipos de torturas. Marsílio fala de quatorze suplícios e afirma que
encontrou ainda outros, o que leva Paul Grilland a elogiá-lo. Quanto a

54 Cinco graus: pau, cordas, cavalete, polé, brasas. Bem depois, a tortura da água, dos borzeguins ....
e é dar asas à imaginação.
210
mim, se quiserem a minha opinião, direi que esse tipo de erudição me
parece depender bastante do trabalho de carrascos mais do que de juristas
e teólogos que somos. Então, não vou falar disto. Isto posto, louvo o
hábito de torturar os acusados, principalmente nos dias atuais, em que os
infiéis se mostram mais cínicos que nunca. Muitos são tão
audaciosos,que cometem propositadamente todo tipo de delito com a
esperança de vencer as torturas, e vencem-nas, efetivamente à base de
sortilégios – como dizia Eymerich – sem falar naqueles que estão
totalmente enfeitiçados. Porém, sou contra também esses juízes
sanguinários que, na busca de uma glória vã – e que glória, meu Deus! –
impõem torturas diferentes, violando,assim, o Direito, a decência, e os
réus mais desprovidos (misellis reis), a tal ponto, que morrem durante a
tortura, ou saem de lá com os membros fraturados, doentes para sempre.
O inquisidor deve ter sempre em mente esta frase do legislador: o
acusado deve ser torturado de tal forma que saia saudável para ser
libertado ou para ser executado.
Depois de toda essa explicação, voltemos agora àqueles que, pelo
direito, não poderiam de forma alguma ser torturados.
Se, por outros crimes e diante de outros tribunais, a regra é nunca
torturar certas categorias de pessoas (por exemplo, letrados, soldados,
autoridades e seus filhos, crianças e velhos), para o terrível crime de
heresia não existe privilégio de exceção, não existe exceção: todos podem
ser torturados (omnes torqueri possunt). O motivo? O interesse da fé: é
preciso banir a heresia dos povos, é preciso desenraizá-la, impedir que
cresça. E que ninguém se espante com o rigor: para o crime de lesa-
majestade não existe isenção nem privilégio. Por que haveria para o
crime de lesa-majestade divina? Porém, os sacerdotes e monges serão
torturados com menos rigor, em respeito ao seu ministério e para não
incorrer na excomunhão, reservada a quem colocar a mão em cima deles.
A menos que fortíssimas suspeitas justifiquem torturas mais violentas...
Padres e religiosos não serão torturados por leigos,e sim por um
sacerdote ou religioso, a menos que se encontre religioso ou padre que
saiba torturar. Esta é a opinião de Simancas, e eu me alegraria se ela
pudesse ser observada. Mas, na verdade, comumente, padres e religiosos
são torturados por leigos. Para saber mais sobre tortura de religiosos,
deve-se consultar Prática do direito criminal, capítulo 17, de Bernardino
Díaz, onde tudo é explicado à exaustão, e da maneira mais bela. Deve-se
consultá-lo para agir com sabedoria.
Para explicar o que diz respeito à isenção de tortura, é preciso

211
observar que, embora não haja, nesta questão, privilégios relacionados à
importância da pessoa e à sua posição, há exceções à regra geral baseadas
na idade e no estado dos acusados: não se torturam crianças, velhos e
mulheres grávidas. Quanto à idade, os menores de vinte e cinco anos
serão torturados, mas não as crianças de menos de quatorze anos. Elas
serão aterrorizadas e chicoteadas, mas não torturadas. O mesmo para os
velhos. Por fim, quero assinalar que há países em que a prática da tortura
é totalmente proibida. É o caso do reino super-católico de Catalunha-
Aragão, de onde eu sou – mas, às vezes, neste reino, autorizavam torturar
os acusados no Tribunal da Inquisição. Porém, esta imunidade é bastante
nefasta, trabalhando,com frequência, em prejuízo da fé.
Depois de retomar tudo isso, que constituiu a fundamentação de
tudo que virá a seguir, iremos analisar, com Eymerich, a questão dos
indícios e motivos da tortura.
Não existe contradição entre o primeiro princípio – submissão à
tortura por parte do acusado que “vacila” – e a sétima – não torturar, se
não se dispuser de nenhum indício? Parece que apenas a “vacilação”, a
mentira, a palidez, o embaraço ou o tremor não constituem indícios que
justifiquem a tortura, mas levantam, unicamente, uma certa suspeita.
Porém, o acusado não é muito estúpido (omnino stupidus), nem é
totalmente desprovido de memória: ora, ele “vacila” e se contradiz,
quando é interrogado sobre fatos precisos, que aconteceram num período
bem definido e geralmente curto...Neste caso, a “vacilação” poderia ser
considerada como um indício suficiente para justificar a tortura. Trata-se,
porém, de uma questão que não tem a unanimidade dos especialistas.
Acham, na verdade, que a vergonha, o medo, a raiva, a dor etc. fariam
qualquer pessoa “vacilar”, e lembram que, sob o efeito do medo, homens
ilustres perdem a razão. Concluindo:este primeiro princípio só deveria ter
validade, quando se lida com pessoas acostumadas a mentir, curtidas no
crime.
Em contrapartida, não há ambiguidade possível na interpretação do
segundo princípio. Vamos ilustrá-lo com um exemplo. Um seguidor da
heresia de Lutero foi visto por uma única testemunha, quando destruía
imagens de santos, profanando-as, quebrando-as etc. No mesmo
momento, esse crime espalhou-se. Há, neste caso:a) uma testemunha e b)
um boato. Foi o suficiente para que o luterano, mesmo negando os fatos,
fosse levado à tortura. Os inquisidores observam, à luz da obra de
Eymerich e do exemplo citado, que um único depoimento basta para
aplicar a tortura, como demonstra claramente o meu comentário a

212
respeito do sétimo princípio.
Não é preciso comentar o terceiro princípio, cujo sentido é
evidente. É uma velha prática só torturar os sacerdotes em caso de
calúnia (leia-se: difamação). Porém, concordo com outros autores
modernos, como Simancas, que se deve abandonar essa restrição que
favorece muito injustamente os sacerdotes.
O quarto princípio decorre diretamente do segundo. Lembremos
que um só testemunho basta para justificar a tortura, sem precisar de
indícios fortes ou graves. O conteúdo dos depoimentos basta. No entanto,
se o depoimento atingir alguém importante ou cuja fidelidade não é
questionada por ninguém, será mais prudente tomar precauções e esperar
que indícios graves venham reforçar o valor do depoimento.
A propósito do último princípio, deve-se chamar a atenção para
algumas exceções: a) Só a difamação já justifica a tortura, se os boatos se
espalharem com muita força, se atingirem pessoas de bem, familiares ou
amigos do suspeito. A difamação agravada pela fuga do atingido constitui
uma confissão material. Neste caso, ele pode ser torturado; b) Já mostrei,
anteriormente, em que situações um único depoimento é suficiente para
justificar a tortura; c) Em que situações um só indício seria suficiente
para justificar a tortura? É uma questão bastante controvertida. Porém, é
evidente que não denunciar um herege, inclinar-se à passagem de um
herege, guardar as cinzas de um herege que foi queimado, tudo isso são
graves indícios que justificam a tortura. Acrescente-se a isso o fato de
receber cartas heréticas, invocar o diabo etc. Por fim, deveria ser
torturado quem, seriamente ou por brincadeira, confessasse, fora do
processo, práticas heréticas e também quem fosse encontrado com livros
heréticos. Em todos esses casos, não se deve esquecer de que as
confissões obtidas sob tortura devem ser ratificadas, depois, na presença
do escrivão inquisitorial.

213
G. AS TESTEMUNHAS

29. O inquisidor pode obrigar as


testemunhas a depor sob
juramento e interrogá-las várias
vezes?

Claro, porque cabe ao inquisidor investigar a heresia e não pode fazê-lo


sem ter os meios de interrogar as testemunhas. Nas causas eclesiásticas,
as testemunhas prestam depoimento sob juramento, e a recusa em fazê-lo
constitui, por si só, uma grave suspeita de heresia. Gui Foucoi prevê,
particularmente, a possibilidade de interrogar várias vezes as
testemunhas, nas suas Consultationes ad inquisitores.

XVI. No procedimento inquisitorial, ninguém (independentemente do


cargo, condição social, autoridade) escapa da obrigação de testemunhar
sob juramento. Nada de privilégios ou exceções a este princípio
universal. Não testemunhar já é favorecer a heresia, já é – ipso facto – ser
suspeito de heresia. Porém, quem não denunciar o cônjuge, um membro
da família ou um amigo não será perseguido como benfeitor da heresia,
mas como contumaz, pois desobedeceu à ordem inquisitorial. Fora este
tipo de circunstância, não testemunhar corresponde a declarar-se inimigo
da fé da Igreja.
Os depoimentos devem ser claros, límpidos, sem ambiguidades.
Efetivamente, em matéria de fé, o acréscimo ou a omissão de uma
palavra numa frase pode ser suficiente para modificar completamente o
sentido de uma declaração (um dogma pode transformar-se em heresia, e
vice-versa). Em caso de dúvida, considera-se a leitura da declaração (se
for escrita) que inocenta, não a que acusa. Porém, se a frase que se presta
à confusão é atribuída a alguém de um desses países onde grassa a
heresia – um inglês, um alemão –, normalmente se fica com a leitura que
214
acusa, e não com a que inocenta. Haverá clemência com os pobres
coitados que utilizam normalmente frases suspeitas sem saber (“basta
acreditar” …, “A intenção é o que conta”…).

30. O inquisidor pode fazer o


interrogatório apenas na presença
do seu escrivão?

Não. Além do escrivão, duas outras pessoas devem assistir aos


interrogatórios (religiosos ou leigos).

XVI. Atualmente, o inquisidor só é assistido, durante os interrogatórios,


por seus escrivães. Esta prática simplificada é aceita pela Santa
Inquisição romana.

31. O inquisidor pode aceitar as


denúncias e os depoimentos dos
excomungados ou dos cúmplices do
acusado?

Pode. Excomungados e cúmplices são testemunhas válidas no


procedimento inquisitorial.

XVI. Para que o crime de heresia não tenha nenhuma chance de ficar
impune, ninguém, independente do crime que tiver cometido, deve ter
seu depoimento anulado. Não pode haver nenhuma ambiguidade a
respeito. Só uma questão se coloca: se dois depoimentos prestados por
215
duas testemunhas dignas de credibilidade bastam para condenar um
herege, dar-se-á o mesmo valor a dois depoimentos prestados por duas
testemunhas excomungadas, caluniadas etc.? Grande pergunta, que os
especialistas debatem há muito tempo! Na prática, admite-se em qualquer
lugar, que, se duas testemunhas menos idôneas bastam para justificar a
tortura, não bastam para levar um suspeito à condenação. Portanto,
ninguém poderá ser entregue à autoridade secular ou considerado
reincidente, somente baseando-se em dois testemunhos deste tipo.
Porém, mais de dois depoimentos de excomungados e cúmplices,
acrescidos de alguns indícios, são suficientes para justificar uma
condenação.
Concluindo: para a tortura, bastam dois depoimentos,
independentemente da condição das testemunhas. Para a condenação, a
rigor, deverá bastar um depoimento normal reforçado pelo depoimento de
um excomungado. Neste caso, será mais seguro exigirem-se dois
depoimentos de duas testemunhas dignas de fé.
Os cúmplices – ou testemunhas eventuais – chamados para depor
devem prestar juramento como testemunhas normais. Mas o cúmplice
chamado a depor deve prestar juramento? Lógico, porque quando presta
o depoimento ele o faz na qualidade de testemunha, e não de acusado. E é
como testemunha que é ouvido. Entretanto, o cúmplice condição, pode-se
torturá-lo para arrancar-lhe a verdade, mas não se pode fazê-lo, se
testemunha espontaneamente.
Respondendo a esta pergunta, o conceito de “cumplicidade” deve
ser tomado num sentido bem amplo.

32. Os perjuros podem testemunhar


diante do Tribunal da Inquisição?

Sim, imaginando-se que irão depor para o bem da ortodoxia.

216
33. Os difamados e criminosos
podem testemunhar? E os servos
podem testemunhar contra seus
senhores?

Sim. O crime de heresia é de uma tal gravidade, que mesmo os


criminosos e difamados podem testemunhar. Por esta mesma razão, os
ser-vos podem testemunhar contra seus senhores.

XVI. Os depoimentos dos servos serão utilizados com uma certa reserva,
porque, geralmente, são extremamente hostis aos seus senhores. Por
outro lado, é lícito torturar um servo que se mostrasse reticente em
denunciar o seu senhor.

34. O inquisidor poderá admitir o


testemunho de um inimigo mortal
do réu?

Não. O testemunho de um inimigo mortal deve ser recusado.


Eventualmente, cabe ao inquisidor investigar sobre o tipo ou o grau de
inimizade existente entre a testemunha e o réu.

XVI. Esta é a única exceção ao princípio geral sobre a validade universal


dos testemunhos, tal como foi estabelecida pelos Concílios de Béziers e
Narbona. Os casos de inimizade mortal são inúmeros e variados. Sua
origem é a seguinte: violência, ameaças de morte contra si e contra
familiares, injúrias particularmente graves, violação da mulher, irmã ou
filha e atentado à propriedade.

217
35. Um herege pode testemunhar
contra ou a favor de um fiel?

Não. Nunca foi previsto que o herege pudesse testemunhar contra ou a


favor de um fiel.

XVI. Não sei como Eymerich pôde defender tal ponto de vista, depois de
dizer, expressamente, que todos têm o direito e o dever de testemunhar
em matéria de fé! Trata-se de uma opinião que não tem o menor
fundamento, e não sei de onde Eymerich a tirou. Concordando com os
especialistas, não vou considerar esta afirmação, e acho que ela só é
válida para negar a importância de um testemunho de defesa vindo de um
herege.

36. Um herege pode, legitimamente,


testemunhar contra um outro
herege?

Pode testemunhar contra, mas não a favor. Já foi dito antes que, em
matéria de fé, excomungados e cúmplices podem ser citados como
testemunhas.

XVI. Pode parecer injustificado, à primeira vista, não admitir o


testemunho de um herege a favor de outro herege. Mas é absolutamente
falso. Há motivos para se acreditar que um herege presta depoimento em
favor de outro herege apenas para deixar impune o crime de heresia, e
não para ajudar o acusado. Portanto, justifica-se recusar qualquer
testemunho de defesa em casos como este.

218
37. O inquisidor poderá aceitar
depoimentos — contra ou a favor —
da mulher, do filho ou de
parentes do acusado de heresia?
Poderá aceitar testemunhos contra, mas não a favor. É evidente que
nenhum depoimento de acusação é tão convincente como o desse tipo de
testemunha (est enim testimonium eorum magis efficax ad probandum).

XVI. Entende-se por “parentes” do acusado apenas o cônjuge, os filhos e


os parentes mais próximos (porque todos têm interesse em escapar da
vergonha que lhes atingirá, caso o réu seja condenado), mas também
todos aqueles que, de alguma maneira, compartilham do pão e do vinho
do acusado: criados, servos, colonos, libertos, empregados, mercenários.
Nenhum deles pode testemunhar a favor do acusado. Porém, poder-se-ia
abrir uma exceção e admitir o testemunho de defesa de um criado, sob a
condição de que seja corroborado por vários outros depoimentos vindos
de pessoas que não tivessem com o réu nenhum daqueles laços
mencionados.

38. Dois depoimentos de


credibilidade bastariam para
condenar, ou precisaria mais?

Na verdade, os depoimentos de duas testemunhas dignas de fé bastam


para provar a culpa e, consequentemente, para justificar uma condenação.
Porém, em matéria de heresia, é desejável que os fatos sejam provados
através de vá rios depoimentos. Quanto aos depoimentos eventuais,
servem para deduzir a presunção, mas não as provas. Como o réu não
pode saber quem o denunciou, cabe ao inquisidor informar-se sobre a
eventual existência de inimizade mortal entre o delator e o denunciado,
além de verificar os motivos da denúncia: realmente, é da sua
competência compensar em atenção a impossibilidade de defesa do
acusado.
219
Dois depoimentos criam uma convicção, o que não significa que
justifiquem uma condenação. De acordo com o crime, o inquisidor
aplicará a punição, a abjuração ou a tortura. Na verdade, não seria muito
prudente condenar um homem de boa reputação — e até de má reputação
— baseando-se, apenas, em dois depoimentos.

XVI. Gui Foucoi foi o primeiro, que eu saiba (Consultationes ad


inquisitores haereíicae pravitatis, pergunta 15, c. 18), a estabelecer o
princípio de que duas testemunhas dignas de fé bastam para fundamentar
uma certeza. Todos os especialistas aprovaram, depois, este princípio,
ponto por ponto, de acordo com a norma vulgar e comum do Direito
humano e divino, segundo a qual in ore duorum vel trium stat omne
verbum55 As duas testemunhas devem ser íntegras, incontestáveis e
maiores de idade. Se Eymerich parece, de repente, hesitar e achar este
princípio muito duro, é porque — e os que se baseiam nele têm as
mesmas reservas — sabe que, se o nome das testemunhas permanecer
secreto, o acusado ficará quase que impossibilitado de se defender, e que
o risco do processo é a acusação do maior crime que existe: o crime de
lesa-majestade divina. Mas ficou estabelecido que duas testemunhas
bastam, de pleno direito! Resumindo: seria bastante prudente deixar ao
arbítrio do bispo ou do inquisidor a tarefa de determinar, em cada caso, se
dois depoimentos são ou não suficientes, considerando a condição do
acusado e das testemunhas.

39. Somente depoimentos


divergentes, acrescidos de uma má
reputação, podem ser suficientes
para justificar a condenação de
alguém como herege?

55 Numa tradução livre: dois ou três depoimentos são irrefutáveis.


220
Não. Nem somente os depoimentos particulares, nem aqueles a que se
pudesse juntar uma má reputação bastariam para fundamentar uma
condenação. Porque, especificamente para esse tipo de delito, não se deve
condenar com base na simples presunção. Por outro lado, baseado em tais
depoimentos, o inquisidor pode impor ao acusado a punição canônica ou
a abjuração. Mas cabe ao inquisidor decidir sobre a importância desse
tipo de depoimento, quando, divergindo em alguns detalhes, convergem
no essencial.

XVI. Nada é muito simples nesta pergunta. Comecemos, então, vendo o


que são os depoimentos “particulares”.
Há “particularidade” quando há divergência no depoimento. Mas a
divergência pode ser “impeditiva” (quando o depoimento de um
contradiz completamente o do outro; neste caso, um anula o outro),
“cumulativa" (quando os depoimentos coincidem completamente: um
viu, o outro ouviu, a propósito da mesma ação) e “diversificativa”
(quando os depoimentos coincidem no essencial mas divergem nos
detalhes). Nos dois últimos casos, há, na realidade, uma acumulação de
fatos fundamentalmente semelhantes. Logo,o axioma eymerichiano
deveria ser corrigido, ao que parece. Ora, Eymerich apenas retoma Gui
Foucoi. E por quê? A testemunha “particular” é, por definição, uma
testemunha isolada, sozinha. Sua palavra equivale à do acusado.
Então,como proceder? O acusado que só tiver uma testemunha contra si
— íntegra, maior de idade e digna de fé — não será condenado,mas
torturado. Se não confessar nada, depois de ser bastante torturado,
será,então,absolvido.

40. O inquisidor pode mandar


torturar testemunhas para obrigá-las
a contar a verdade ou, ao
contrário, pode puni-las porque
prestaram um falso testemunho?

Resposta afirmativa para as duas perguntas. Embora eu não tenha


encontrado nada de explícito a propósito nas instruções aos inquisidores,
221
trata-se de poderes que se admitem em Direito comum. Não testemunhar,
bem como prestar um falso testemunho, equivale a colocar obstáculos ao
exercício do trabalho da Inquisição.

XVI. Observamos que, se para torturar o acusado, precisa-se do


consentimento do bispo e do inquisidor, apenas este último — ou apenas
o bispo — pode tomar a iniciativa de torturar a testemunha.
Leão X concedeu, através de um breve datado de 14 de dezembro
de 1518, à Inquisição espanhola o poder de entregar à autoridade secular
quem prestar falso testemunho particularmente grave. Penas duríssimas,
chegando até a entrega da testemunha ao braço secular, também estão
previstas para a testemunha cujo falso testemunho objetive inocentar o
culpado. Porém, os filhos e descendentes dos culpados de falso
testemunho não serão infamados, como acontece aos descendentes dos
condenados pelo delito da heresia: a heresia é sempre mais grave que o
falso testemunho.

41. O inquisidor é obrigado a tornar


público os nomes das testemunhas,
delatores e acusados?

Devemos reconhecer que os sumos pontífices não são unânimes quanto a


isto. Uns decretaram que esses nomes não poderiam ser divulgados
independentemente da situação. Outros previram alguns casos em que
esses nomes seriam tornados públicos. Porém, Bonifácio VIII
regulamentou definitivamente esta questão:

“Ordenamos e decretamos — diz Bonifácio VIII — que, se ao


considerar 0 poder das pessoas acusadas 0 inquisidor e o bispo
julgarem que, por causa da divulgação dos nomes dos delatores
ou testemunhas, estes poder ão correr grandes riscos, não dar
ão publicidade aos seus nomes. Mas, se não houver nenhum
risco específico, esses nomes serão divulgados, como
nas demais jurisdições.”

222
No entanto, o inquisidor deve tomar cuidado com os múltiplos sentidos
do conceito de “poder”. Deve levar em conta o risco representado pelo
poder da família, do dinheiro ou da maldade. Verá, então, quão raros os
casos em que poderá divulgar os nomes dos delatores. Falo por
experiência! É bem mais perigoso divulgar os nomes dos delatores de um
pobre-diabo (alicui pauperi), cujos cúmplices e amigos não passam de
rebeldes e homicidas, que só têm a pele a perder, do que divulgar os
nomes dos delatores de uma pessoa generosa ou rica.
Em todo caso, a divulgação dos nomes coloca o delator e seus
familiares sob risco de morte ou de sérios atos de maldade (roubo etc.).

XVI. Na instância inquisitorial, atualmente, não se divulgam mais os


nomes das testemunhas e delatores, por razões óbvias, já enumeradas por
Eymerich. Com essa prática, a Inquisição enquadrou-se perfeitamente no
que foi estabelecido pelos Papas Inocêncio IV (Cum negotium fidei) e
Urbano IV (Praecunctis). Os Concílios de Béziers e Narbona, por sua
vez, retomaram essa prática do sigilo, acrescentando a proibição formal
de se revelarem as circunstâncias, tanto do depoimento quanto do delito:
através das circunstâncias do depoimento, o acusado poderia descobrir,
por dedução, a identidade do seu acusador.
A Inquisição Espanhola proíbe também a divulgação dos nomes
(Disposições de Sevilha, 1484).
Isto é desprezar o que foi estabelecido pelo Papa Bonifácio VIII?
Claro que não. Bonifácio VIII previu que pudesse haver divulgação de
nomes desde que não houvesse risco para os delatores. Ora, todos hoje
concordam que esse risco sempre existe. Pio IV, aliás, anulou as
disposições de Bonifácio VIII (Cum sicut), esclarecendo que a proibição
de divulgar se estende aos prenomes e sobrenomes.
Evidentemente que não se pode ceder, de modo algum, aos
pedidos, à insistência de um acusado que quisesse saber os nomes de seus
delatores para se defender melhor: se o acusado apelasse e se
fundamentasse a apelação nesta questão específica, não seria atendido. A
única exceção a este princípio geral: uma vez provada a culpa do acusado
— e só então — se ele solicitar, poderá tomar conhecimento do teor dos
depoimentos de seus delatores, dos quais, previamente, será eliminada
qualquer indicação de lugar e tempo, bem como qualquer nome que
pudesse permitir ao acusado descobrir quemo delatou (Disposições da
Inquisição espanhola, Sevilla,1484). Parece, portanto, claramente, que,
em última instância, a Inquisição decide com toda a autonomia sobre essa

223
questão da divulgação e do sigilo. As Instruções madrilenhas de 1561
previam que, no texto do depoimento lido para o acusado, só figurariam,
como indicações específicas, o ano e o mês do depoimento, o local e a
data do delito. Isto é suficiente para dar ao acusado a possibilidade de se
defender. Mas trata-se de uma indicação extrema, e não de uma
obrigatoriedade.

224
H. OS PERITOS —
OS ADVOGADOS

42. O inquisidor pode solicitar a


assistência de alguns peritos e
precisar de seus conhecimentos?

Sim. O inquisidor pode solicitar os conhecimentos dos teólogos,


canonistas e legistas. O inquisidor submeterá a eles o conjunto das peças
do processo, para que conheçam os nomes das testemunhas, delatores e
acusado. Porém, o bispo e o inquisidor podem, se acharem necessário,
consultá-los extra-oficialmente, e não revelar-lhes os nomes das
testemunhas, sempre lembrando que seriam excomungados se violassem
a lei do sigilo. O inquisidor, juntamente com o bispo, são obrigados,
também, a respeitar a lei do sigilo que impõem aos outros.

225
I. CONSTITUIÇÕES E
ESTATUTOS INQUISITORIAL

43. Em matéria de Inquisição,


constituições apostólicas mais
modernas acabam com privilégios,
indultos, constituições ou
disposições apostólicas mais antigas?

Não. Exceto, é claro, nos pontos expressamente modificados nas


constituições mais modernas.

44. O inquisidor, em conjunto com


o bispo, tem o poder de interpretar
as disposições pontifícias contra os
hereges e assemelhados, quando os
documentos oferecerem alguma
ambiguidade? Em caso afirmativo, o
inquisidor terá o poder de
interpretar sozinho, sem a ajuda do
bispo?
226
Sim. Foram os nossos senhores os Papas Inocêncio IV e Alexandre IV
que deram aos bispos e inquisidores este poder de interpretar. Aliás,
Alexandre IV conferiu ao inquisidor o poder de interpretar sozinho.

XVI. Não sei em que documento pontifício Eymerich se baseia para


declarar esse poder de interpretação concedido unicamente ao inquisidor.
Parece-me absolutamente mais prudente reservar esse poder ao inquisidor
e ao bispo, conjuntamente.

227
J. OS SUSPEITOS —
OS DIFAMADOS

45. Os suspeitos de heresia são


obrigados a abjurar?

Sim, sempre.

46. Deve-se aplicar a purgação


canônica a qualquer difamado de
heresia?

Sim, sem exceção.

228
K. OS HEREGES PENITENTES

47. O inquisidor pode libertar um


herege sob fiança?

Claro que não. Quem foi preso por heresia, confessa os fatos ou não os
confessa. Se confessar, mas não se considerar culpado, é impenitente, e,
como tal, deve ser entregue ao braço secular para ser executado. Se se
confessar culpado, é um herege penitente, sendo assim condenado à
prisão perpétua: portanto, não se pode libertá-lo sob fiança. Se não
confessar, deve ser entregue ao braço secular como impenitente para ser
executado.

XVI. As razões de Eymerich são absolutamente pertinentes. Mas, se se


quer salvaguardar, mesmo assim, o princípio da possibilidade de libertar
sob fiança um herege impenitente, deve-se ter em mente algumas regras:

a. Não se liberta sob fiança o penitente que foi condenado a penas


corporais, porque então este deveria infligi-las a si mesmo, o que é
absurdo, se nos lembrarmos do princípio geral que declara que
ninguém é senhor de seus próprios membros.
b. Só se liberta sob fiança em pagamento de uma certa soma em
dinheiro (independente de a sentença ter previsto ou não uma pena
monetária, além da condenação à prisão perpétua).
c. Como consequência direta da regra anterior, serão excluídos de
qualquer possibilidade de libertação sob fiança, os servos e outros
camponeses, que, por definição, não poderiam pagar nada.
Pode-se concluir que, entendendo-se por fiança uma soma de dinheiro

229
cujo montante é determinado pelo inquisidor, deveriam poder beneficiar-
se da liberdade sob fiança todos os hereges penitentes — à exceção dos
servos e camponeses — que não tivessem sido condenados a castigos
corporais. Mas seria uma prática aceita pela Inquisição? Duvido. E, aliás,
seria justo deixar apodrecer na prisão os hereges penitentes pobres, e
somente eles, sob pretexto de sua impossibilidade de pagar a fiança?
Por outro lado, muitos inquisidores que tratam com hereges
penitentes ilustres, nem mesmo os colocam na prisão, mas obrigam-nos a
residir numa casa ou até num castelo. Há casos em que o herege é
proibido de se afastar da cidade e das suas proximidades.

48. Um condenado à prisão


perpétua pode beneficiar-se de uma
comutação da pena?

Sim. O inquisidor juntamente com o bispo podem transformar a prisão


perpétua em pena temporal.

XVI. Na Espanha, os inquisidores são obrigados a recorrer ao Senado


Inquisitorial.

230
49. O inquisidor e o bispo poderiam
considerar como impenitente e
relapso o condenado a uma pena
de prisão e a certos castigos que
não se submetesse aos castigos ou
fugisse da prisão? Em caso
afirmativo, podem “proceder”
contra ele?

Sim, podem, porque evidentemente é da sua competência controlar se o


condenado satisfaz a todos os elementos da sentença. Eles têm o poder de
abreviar as penas, têm também o poder de aumentá-las. A fuga equivale à
impenitência, assim como o não-cumprimento de uma parte da sentença;
os presos culpados de um desses delitos seriam condenados como
impenitentes.

231
L. OS IMPENITENTES —
OS RELAPSOS

50. Os hereges impenitentes devem


ser entregues ao braço secular pelo
bispo e inquisidor, logo após sua
captura?

Sim, a menos que o réu impenitente ou relapso, logo após a captura,


implore o perdão do seu bispo e aceite abjurar em público e cumprir a
punição que lhe for imposta. Se o capturado é um padre, será
previamente degradado e despojado de qualquer função ou outro
privilégio eclesiástico. Porém, em Direito, a palavra “logo” não deve ser
tomada no sentido estritamente gramatical: pode-se manter o herege
impenitente detido durante dias, até meses, tendo em vista solicitar-lhe,
conjurá-lo a que se arrependa e retorne ao seio da Igreja.

51. O herege penitente e relapso


deve ser entregue ao braço secular
para passar pelo último suplício?

232
Sim, e sem poder beneficiar-se de um novo processo.

XVI. A Igreja não perdoa o penitente relapso por uma razão muito clara:
reincidir é confessar que não houve conversão sincera, no passado. O
crime reiterado (geminatus actus pravus) é particularmente grave, dizem
os juristas. É, portanto, absolutamente justo que a Igreja considere os
relapsos como inúteis, sempre infectados de heresia e, por isso, dignos de
ser definitivamente expulsos e entregues ao braço secular.
O que fazer do relapso que, arrependendo-se, entrega-se
espontaneamente? É uma questão que já analisei anteriormente.

52. Podem-se ministrar os


sacramentos ao relapso que os
solicitar com humildade, antes de
ser entregue ao braço secular?

Não se pode recusar a penitência nem a eucaristia.

XVI. Santo Tomás — e demais teólogos como ele — esclarecem que não
se deve ministrar, de jeito nenhum, o sacramento da extrema-unção ao
condenado56.

56 Santo Tomás, como todos os teólogos, tem muito humor: o sacramento da extrema-unção tem
efeitos somaticamente terapêuticos, se podemos ousar exprimir-nos assim (Epístola de Tiago 5,
14-15); “Há algum enfermo? Mandem, então, chamar os presbíteros da Igreja, que façam oração
sobre ele, ungindo-o com o óleo em nome do Senhor. A oração salvará o enfermo e o Senhor o
levantará.” Primeiramente, o relapso passa bem, foi torturado: então, para que ungi-lo? Em
segundo lugar, suponhamos que lhe dêem a extrema-unção e que, imediatamente, “O Senhor o
levante”. Seria preciso perseguir o Senhor por ter colocado embaraços ao exercício do Santo
Ofício da Inquisição. E, a partir dai, sabemos onde isso vai dar…
233
M. MULTAS E
CONDENAÇÕES
PECUNIÁRIAS

53. Além das penas ordinárias, o


inquisidor pode aplicar penas
pecuniárias?
Sim, com a condição de que sejam destinadas a cobrir as despesas da
Santa Inquisição, ou a qualquer outra causa pia. O inquisidor pode
também aplicar peregrinações, orações e esmolas.
A Bula Nolentes excomunga o inquisidor que, sob o manto dos
interesses da Inquisição, faça a extorsão de certos bens: mas não proíbe a
aplicação das penas pecuniárias em benefício da Inquisição.
Concordando com Gui Foucoi, proponho que a importância obtida
vá diretamente para as mãos do inquisidor e não caia em poder dos bispos
de mão fechada e bolsos recheados (praelatorum tenaces manus et
marsupia constipata).

XVI. Esse dinheiro será empregado na construção de igrejas, em escolas


para os pobres, para cobrir as despesas de pobres donzelas que corram o
risco de prostituir-se para fugir da miséria e, principalmente, para o
trabalho da Inquisição, pois não existe causa mais nobre e instituição
mais útil ao Estado que a Inquisição. O inquisidor deve dispor de bastante
dinheiro, porque precisa gastar muito em operações policiais e na
manutenção de prisioneiros. As infrações pagas virão de hereges
penitentes que retornaram ao seio da Igreja, e não dos impenitentes ou
relapsos, pois os seus bens foram confiscados. Os inquisidores também
234
condenarão a pagar importâncias em dinheiro quem falar como herege,
seja brincando, seja quando está com raiva, ou por fanfarronada e por
pura ignorância, porque não se podem deixá-los totalmente impunes.
Exigem-se também somas de dinheiro dos penitentes particularmente
avarentos, tirando-se, assim, o de que mais gostam.
Não está definido se os clérigos penitentes podem ser condenados
a pagar uma multa, para que não diminua o patrimônio da Igreja.
Foi Alexandre IV, que, no seu monitum Super extirpationem, deu
aos inquisidores o poder de exigir dinheiro. Os inquisidores devem
moderar o seu entusiasmo ao aplicar esse tipo de pena, pois nada pode ser
mais nefasto do que a acusação pública de avareza e cupidez.

54. O inquisidor pode condenar


quem acabou de julgar a pagar as
custas do Tribunal?

Evidentemente, todas as vezes que seu próprio salário não lhe permita
cobrir as despesas com a Justiça, ou seja, sempre. Na verdade, ninguém é
obrigado a “militar” à sua própria custa (nemo cogitur suis stibendiis
militare). Os inquisidores não são juízes delegados? Vamos relembrar o
que Raimundo de Penhaforte escreveu sobre o assunto:

“Os juízes devem receber alguma coisa das partes? Respondo


que os juízes ordinários — os bispos — não têm nada a pedir às
partes. Cabe a eles solicitar a renda necessária para viverem com
dignidade, e para o exercício da sua função. Portanto, os bispos,
na qualidade de juízes ordinários, sustentam eles próprios as
despesas do seu Tribunal. Mas o juiz (delegado ou não) deve
poder aceitar o pagamento de alguns honorários, se lhes forem
voluntariamente oferecidos por outras pessoas, que não as
partes. Quanto de honorários? Difícil de determinar. Não aceitar
nada é desumano. Aceitar muito é desprezível. Pegar
tudo,avareza. O juiz delegado deverá exigir o reembolso dessas
despesas, principalmente se for pobre e tiver que se deslocar
para instruir o processo.”

235
XVI. Condenar a pagar as custas deve ser entendido em sentido amplo.
Por isso, cabe ao acusado cobrir, além das despesas do Tribunal
propriamente dito, as despesas com escolta e segurança — se foi preciso
conduzi-lo, sob proteção, do local da captura até a cadeia — e as
despesas com a sua própria subsistência na prisão etc. A Inquisição
espanhola determinou (Madri, 1561) que se retire dos bens expropriados
do acusado uma quantidade suficiente de ouro para cobrir todos os gastos
com captura e prisão; se o acusado não dispuser da quantidade de ouro
necessária, a Inquisição vende uma parte de seus bens até consegui-la.
Não conheço outra Inquisição, a não ser a espanhola, que tenha editado
disposições tão sábias, o que é lamentável.
Mas e o salário propriamente dito, quem deve pagar ao inquisidor?
Os inquisidores espanhóis são pagos pelo Tesouro Público. Na
Itália, e em outros lugares, onde os inquisidores são mais pobres, o
Tesouro deveria pagar também. Não se paga aos gramáticos, médicos,
professores e todos que exercem profissões liberais? Mas o Estado não
paga os inquisidores que o servem melhor que todos os demais! O Egito
idólatra pagava os sacerdotes idólatras com dinheiro público. E as
repúblicas cristãs não querem pagar os defensores da fé, para que a
religião se mantenha intacta, e a fé, incorruptível!
Se o Estado não cobre as necessidades da Inquisição, cabe ao bispo
fazê-lo.
Falou-se também sobre os “honorários” do inquisidor. Embora o
Direito Canônico não proíba aos juízes delegados de aceitar os
honorários, ou víveres, seria mais prudente que os inquisidores não
aceitassem nada dos acusados — o que seria suspeitíssimo! — da sua
família nem dos amigos destes. Devem seguir o exemplo de Catão, que
dizem — se é verdade o que escreve Isidoro de Sevilha
(Etimologias,20,3) — que não aceitava presentes nem oferendas de
ninguém, quando era mandado para as providências. A Inquisição
espanhola prevê a excomunhão para todo ministro seu que aceite
honorários ou presentes, e para toda pessoa que, tomando conhecimento
desse tipo de transgressão, não avise as autoridades inquisitoriais
(Instruções inquisitoriais, 1484). Trata-se de disposições de grande
sabedoria, item por item de acordo com o que diz o Êxodo (c. 23): “Os
presentes cegam os bons e pervertem os justos.”

236
55. O inquisidor deve dar
conhecimento ao bispo quando o
culpado for condenado a pagar as
custas?

Não. Bento XI dispensa os inquisidores de dar conhecimento a quem


quer que seja, mesmo à Santa Sé.

XVI. Se a autoridade do inquisidor é, em seu próprio campo, superior à


do bispo, seria absurdo, efetivamente, que o juiz delegado tivesse que dar
conhecimento ao ordinário.

56. O bispo pode — como o


inquisidor — condenar a pagar as
custas ou pode tirar para si uma
parte dos bens atribuídos à
Inquisição?

Não. Bento XI proíbe expressamente.

57. De onde o inquisidor tira o


dinheiro necessário às suas próprias
despesas e aos salá rios dos escrivães
e outros funcionários da Inquisição?

237
Questão odiosa, e, no entanto, de grande interesse para o bem da Igreja e
da fé. Questão odiosa sobre a qual se debruçaram Urbano V e Gregório
XI, e que foi longa e diferentemente estudada por um Consistório.
Questão odiosa, que ainda não recebeu uma resposta unânime.
Alguns acham que cabe ao bispo cobrir todas as despesas do
inquisidor. Os partidários desta opinião alegam que cabe aos bispos
semear a fé e acabar com a heresia em suas dioceses: cabe-lhes preservar
sua Igreja bem como o povo de errar, cabendo-lhes, portanto, cobrir as
necessidades da Inquisição. Esta parece que é a opinião de Bento XI e
Urbano V, opinião com a qual, pelo menos em palavras, todos
concordam. Mas, quando se trata de aplicar este princípio, raros são
aqueles cujos atos a ele correspondem!
Outros acham que cabe aos senhores cobrir as necessidades do
inquisidor. Os senhores não se beneficiam do confisco dos bens dos
hereges condenados pelos inquisidores? É justo, portanto, que os
inconvenientes sejam assumidos por aqueles que tiram vantagens. Este é
o raciocínio deles. É uma posição defensável quando os hereges são
muitos. Mas, hoje, a heresia foi eliminada de todo lugar, de tal maneira
que restam poucos hereges endurecidos, e os relapsos são raros, e
raríssimos os relapsos ricos (beguinos, fraticelli, valdenses não são muito
ricos!). O resultado é que, atualmente, os senhores não levam muita coisa
nos confiscos e, consequentemente, não querem mais cobrir as despesas
da Inquisição.
Por fim, há outros que acham que os inquisidores devem tirar a sua
subsistência das próprias condenações que aplicam. Seria justo,
indiscutivelmente, mas isto prejudicaria o Santo Ofício: vamos afastar
esta hipótese e buscar outra solução.
Há ainda quem proponha outras soluções, talvez até melhores, mas
dificilmente exequíveis, por isso, foram abandonadas.
Concluímos constatando que se administra muito mal essa questão
dos salários e dos gastos do inquisidor, que é, no entanto, fundamental
para a Igreja de Deus.

XVI. É, efetivamente, uma questão fundamental esta que Eymerich


levanta. Trata-se, na verdade, de proteger, ajudar a causa mais nobre,
maior e de maior devoção: trata-se de proteger, consolidar e implantar,
em todo o universo, esta instituição do Direito divino, que é o Santo
Ofício da Inquisição. Quantas cidades da Europa não estariam hoje,
miseravelmente mergulhadas na confusão, se os seus magistrados não

238
tivessem,no passado, ajudado a Inquisição a combater a heresia e sufocá-
la,assim que ela se instalou? Esta é, por excelência, a tarefa do inquisidor,
e é absolutamente normal que Eymerich se interrogue aqui sobre os
meios que os inquisidores dispõem para cumprir a sua missão.
Sobre o assunto, a doutrina pontifícia, dispondo que os bispos têm
que cobrir as necessidades dos inquisidores, parece-me particularmente
clara, a ponto de, na minha opinião, os bispos que não a respeitarem
cometerem pecado grave.
Por outro lado, não vejo quem são esses peritos que asseguram que
cabe aos senhores cobrir as necessidades do inquisidor. Porém, constatei
que o autor do Repertorium concorda com a ideia, já que transcreve, sob
o título “salário” toda essa parte do Manual de Eymerich. Trata-se de
uma opinião, item por item, verdadeira, independentemente do que os
príncipes possam ou não possam tirar dos confiscos. Trata-se de
salvaguardar a fé, e como escreveu corretamente Adriano VI ao duque
Frederico de Saxe, a propósito de Lutero, a primeira obrigação do
príncipe é promover a fé e defendê-la, pois nada garante melhor a
integridade e a continuidade dos reinados do que a defesa da fé e o
estabelecimento da religião. Nicolau I, em carta ao imperador Miguel,
dizia também que a degradação da fé e a expansão da heresia levam à
ruína das nações.
Mas é a minha vez de propor uma solução para este problema, o
que me parece bastante viável: bastaria reservar para a Inquisição, em
todas as cidades em que se estabeleça, uma fundação, um benefício (um
canonicato honorário, por exemplo), ou outras coisas, cujas rendas ou
usufrutos revertessem para o inquisidor, que os administraria para seu
próprio sustento e para a manutenção do Tribunal. Poder-se-ia, também,
retirar sobre esse ou aquele benefício ou fundação rendimentos anuais
que se destinassem a esse mesmo fim. Parece-me que isto é facílimo de
fazer, mas as pessoas poderiam ter ainda outras ideias: espero que as
divulguem.

239
N. O CONFISCO

58. O inquisidor e o bispo deverão


considerar confiscados ipso facto
os bens dos leigos hereges
penitentes e não relapsos?

Depende. Quem se arrepende antes da sentença que o levou a ser


entregue ao braço secular fica com os seus bens. Ao contrário,
confiscam-se, ipso iure, os bens de quem só se arrepender depois da
sentença de condenação. Os bens destes últimos tornam-se propriedade
das autoridades civis, a menos que, por generosidade, estas não os
queiram.
Nos países em que a Igreja detenha também a autoridade temporal,
torna-se pública a qualidade dos bens tomados 57, para que, através de
nenhum meio, possam tornar a ser propriedade do condenado. Nos
demais países, as autoridades civis são obrigadas pelo inquisidor a
proceder da mesna maneira, sob pena de censura eclesiástica. Os bens
confiscados não poderiam tornar-se propriedade do condenado (exceto se
este, ao arrepender-se sinceramente, despertasse comiseração): é preciso
que a pena temporal chegue até onde a disciplina eclesiástica não chega.
Quem se arrepender antes de ser entregue como impenitente ao
braço secular escapa com vida, como já sabe, por pura misericórdia.
Também por pura misericórdia fica com os seus bens. Na medida em que
abjura, efetivamente, não perde os seus bens para o fisco.
Mas é uma questão difícil, cuja análise cabe mais aos senhores
temporais do que aos inquisidores, porque são os senhores que
57 Leia-se: faz-se um leilão, sendo que o confiscado, evidentemente, não poderá oferecer nenhum
lance.
240
confiscam, e não a Inquisição. Pareceu-me útil, apesar de tudo, examiná-
la rapidamente.

XVI. Antes da Inquisição delegata, a sentença de confisco era


pronunciada pelas autoridades eclesiásticas, onde estas detinham também
o poder temporal. Em alguns lugares, pelas autoridades civis. Mas,
atualmente, é sempre a autoridade inquisitorial que pronuncia este tipo de
sentença, o que está de acordo com a lei: se a autoridade inquisitorial
julga, cabe a ela pronunciar a sentença.
É fácil tirar quatro conclusões de toda essa questão:
a. O herege não relapso e penitente fica com os seus bens.
b. O herege que se arrepende depois da sentença de entrega ao braco
secular perde os bens. Admite-se que, ao se arrepender, não os
recupere mais, salvo disposições contrárias da autoridade
temporal.
c. O herege que se arrepende antes da sentença de entrega ao braco
secular fica com os bens.
d. Os bens dos hereges leigos pertencem à autoridade temporal.

É necessário examinar mais detidamente estas conclusões à luz das


discussões dos especialistas sobre a questão do confisco.
Vamos dizendo logo, a propósito das três primeiras conclusões: se
o herege se arrepende ou não, se o faz antes ou depois da sentença, ipso
facto vel ipso iure, perde os seus bens. Esta é a posição do Direito
moderno. O Direito de antigamente, sobre o qual se baseia Eymerich,
está caduco. E, nesta questão, não cabe considerar se o herege errou
durante pouco ou muito tempo. Discordo totalmente de Eymerich quando
defende que se deve devolver os bens do herege que se arrepende, depois
de ter sido entregue ao braço secular. O quê! Um homem desses, culpado
de uma tal infâmia, ganharia duas gracas — a vida e a posse de seus
bens? Um herege desses seria indigno de tanta bondade58.
Cabe, ainda, levantar outra questão: o herege que não foi
denunciado nem convocado é obrigado, conscientemente e sob pena de
pecado mortal, a doar seus bens para o fisco (bona sua omnia offerre
fisco)? Muitos estudiosos acham que o herege é obrigado, em
consciência, no foro interno. Mas a opinião contrária, de quem defende
58 Deve-se esclarecer que foi o único momento, a propósito dessa questão fundamental do confisco,
em que a edição romana não fala de “desuso”, mas realmente, de Direito de antigamente,
“caduco”, em proveito do Direito moderno. O leitor certamente observou, ao longo do trabalho,
uma certa ambiguidade do Direito Inquisitorial, não na prática da multa e do confisco, mas na
justificativa desta prática.
241
que ninguém é obrigado a se autocastigar, parece mais razoável, sem
contar que, se esta obrigação específica fosse reconhecida no Direito e na
Teologia, estaria em desacordo com o Direito natural, segundo o qual
ninguém pode ser ao mesmo tempo juiz e uma das partes.
Mas voltemos ao essencial (o próprio confisco) e vejamos o que
prevê o Código. Antigamente, estava estabelecido que os bens
expropriados ao herege tornavam-se propriedade de seus filhos ou
familiares mais próximos em linha direta, caso fossem católicos. Na
ausência de descendentes diretos ou colaterais próximos, os bens
tornavam-se propriedade do fisco. Porém, muitos séculos mais tarde, as
leis estipuladas pelo imperador Frederico I, em 1220, determinavam que
“todos os hereges de ambos os sexos eram infamados e despojados de
seus bens, os quais não poderiam mais retornar à mão deles, nem, de
nenhuma forma, beneficiar seus descendentes”, porque é muito mais
grave ofender a majestade divina do que a majestade soberana. E tudo
isto está de acordo com o Direito Civil. Porém, dirão que o crime de
heresia é de natureza puramente eclesiástica? Lembramos que está
definido que as leis eclesiásticas editadas a respeito são resguardadas
sempre e em qualquer lugar. O confisco dos bens figura entre as penas
estabelecidas pela lei eclesiástica. Portanto, todo mundo é obrigado a
aplicá-la sob pena de ser acusado de desobediência à Santíssima Igreja
Romana.
Aqui estão as disposições do Papa em matéria de bens confiscados.
Inocêncio III decreta, em 1199 e 1200, o confisco dos bens dos
hereges – em conformidade com o que já preestabeleciam as leis civis –
em proveito do fisco eclesiástico, em terras da Igreja, e em proveito do
fisco civil, em terras do Império. Esclarece que será desta maneira,
independentemente da existência de descendentes católicos dos
confiscados. Tais disposições foram retomadas em 1225 pelo Concílio de
Latrão, durante ainda o pontificado de Inocêncio III.
Na Constituição Ad extirpandam de 1252, Inocêncio IV confirma
as disposições precedentes sobre confisco e “decreta” que os bens
confiscados sejam atribuídos em partes iguais: a) à cidade onde ocorreu a
condenação; b) à Inquisição local; c) a um depósito comum ao inquisidor
e bispo, para o funcionamento do Tribunal da Inquisição.
Alexandre IV retomou, por sua vez, na Constituição Ad
extirpandam, promulgada em 1259, as disposições do seu predecessor,
Inocêncio IV. Porém, em 1260, na Constituição Discretioni vestrae,
Alexandre IV autorizava os frades franciscanos da província romana a

242
colocar à venda os bens confiscados em proveito da Igreja romana.
Clemente IV, sucessor de Alexandre IV, retomou as disposições de
Inocêncio IV e Alexandre IV: divisão dos bens confiscados em três partes
etc.
Bonifácio VIII, em 1295 (Cum secundum leges), decreta que os
bens dos hereges condenados seriam confiscados de pleno direito; proíbe
os senhores de tomarem posse deles antes que os juízes eclesiásticos
pronunciem a sentença.
Clemente V, em sua Constituição de 1306, durante o Concílio de
Viena, “decreta” que se tome cuidado para não entregar ao fisco os bens
da Igreja, sob pretexto de que confiscaram os bens de um clérigo herege.
Estes são os documentos mais importantes sobre o assunto. São
claros, e não vejo por que motivo poderiam ser desrespeitados.
Mas para que um terço para o fisco civil? Só uma questão de
justiça, quando as autoridades civis colaborarem com a destruição da
heresia e com a manutenção do Tribunal: um terço poderia, então,
reverter para eles, e mais ainda, se o Papa determinar, ou, pelo menos,
tolerar. Veja-se o caso da Espanha: os bens dos hereges tornam-se
propriedade do fisco e é justo, não apenas porque nosso rei, muitíssimo
católico, chegou a constituir, no seio da Cúria real, um Senado formado
de homens de notório saber, que estudam todos os casos de heresia
existentes no país, mas também porque ele cobre, e com que
generosidade, as necessidades de todos os inquisidores delegados e seus
colaboradores. É, portanto, justo que ganhe uma parte dos bens
confiscados aos hereges.
Por outro lado, não vejo por que seria preciso pagar um terço dos
bens confiscados às autoridades civis, se estas negligenciam totalmente
subvencionar as necessidades da Inquisição. É o que acontece,
atualmente, em quase todo lugar. É justo, de acordo com o Direito
natural, que não receba nenhum benefício da sentença, todo aquele que,
em alguma medida, tenha participado da perseguição. Neste caso, os bens
confiscados deverão reverter integralmente em proveito da Inquisição.
Este é o meu ponto de vista. Mas admito também que esses bens
confiscados possam ser destinados a outras boas causas, a exemplo dos
reis Fernando e Isabel, que destinaram a maior parte dos bens
confiscados aos hereges ao financiamento da guerra contra os mouros de
Granada, e do próprio Papa, que autorizou os franciscanos da província
romana a venderem os bens confiscados em proveito da Fábrica da Igreja
romana. Resumindo, cabe ao Papa – reclame ou não esse direito – dispor

243
como melhor lhe parecer da metade dos bens confiscados em proveito da
Câmara apostólica. Lembramos que o Papa tem, além disso, o poder não
somente de punir os simples leigos culpados de heresia, mas também o de
expropriar os príncipes.
Finalmente, será em seu próprio proveito que o bispo irá confiscar
os bens dos hereges, onde não houver ainda Tribunal inquisitorial,
existindo, então, a possibilidade de revertê-los para o fisco da Cúria
Romana.

59. Em caso de confisco, deve-se


abrir uma exceção para o dote da
esposa católica do herege
condenado?

O Papa Inocêncio IV decretou que o dote da esposa não deve ser


confiscado. A menos que, acho eu, a esposa tenha tomado conhecimento,
antes do casamento, de que o marido era um herege.

60. Os bens dos clérigos heréticos


impenitentes ou relapsos entregues
ao braço secular serão ipso facto
confiscados em proveito da Igreja
ou do bispo?

Realmente! Serão confiscados em proveito da Cúria de onde eram


prebendados.

XVI. Também são confiscados os bens obtidos através de privilégios,


eventuais cargos paroquiais ou no exercício de uma atividade.

244
O. NAO-HABILITADOS

61. O inquisidor, em conformidade


com o bispo ou seu vigário, tem
poder de expropriar – ou de
declarar expropriados – os hereges,
seus seguidores, quem lhes dá asilo
ou favorece, filhos e netos, de todas
as dignidades, honrarias, benefícios
eclesiásticos e todas as funções
públicas?

Sim, conforme o que foi estabelecido e corroborado pela autoridade


pontifícia. Mas é evidente que essa expropriação visa unicamente os
hereges inveterados, e não os penitentes.

62, Seguidores, defensores dos


hereges e descendentes, até a 2ª
geração, devem ser expropriados de
qualquer benefício eclesiástico ou
função pública, pelo inquisidor ou
bispo, ou são expropriados ipso facto?

245
São expropriados ipso facto, conforme foi estabelecido pelo Papa
Alexandre IV.

XVI. Muitos são os que acham injusta a punição dos filhos por causa dos
delitos dos pais. Esquecem que a pena de expropriação dos filhos pode
impedir muitos pais de cair em heresia: o amor paterno é tão bonito, tão
nobre, que, muitas vezes, os pais temem muito mais pelos filhos do que
por eles próprios.
Mas uma outra questão – e não das menores – se coloca: de que
filhos se trata? Quais são os filhos ipso facto banidos para sempre de
qualquer emprego ou benefício? Porque há os filhos legítimos e os
naturais, os bastardos, adulterinos, incestuosos. Respondo com uma
palavra: quaisquer ilegítimos são inaptos. Todos os juristas são unânimes
quanto a esse assunto e por uma razão muito clara: se o oposto é verdade,
é melhor ser filho ilegítimo do que legítimo, o que é um absurdo. Por
outro lado, deve-se questionar sobre um outro aspecto do problema: a
não-habilitação atingiria todos os filhos do herege ou apenas os que
fossem concebidos depois do delito da heresia? Os estudiosos defendem
que as crianças concebidas antes do delito do pai escapariam à não-
habilitação, mas a maioria acha que todos os descendentes são inaptos.
Esta última opinião parece-me mais correta, razoável e conforme as
considerações avocadas anteriormente a respeito do amor paterno e do
papel desse sentimento na manutenção dos pais na verdade católica. Os
pais amam igualmente todos os filhos, sendo,portanto,justo que o seu
pecado tenha sobre todos eles as mesmas consequências.

63. A não-habilitação é transmitida


somente pela linha paterna ou pela
paterna e materna?

Transmite-se aos filhos pela linha paterna e materna; aos netos, somente
pela linha paterna, de acordo com o que foi estabelecido pelos Papas
Alexandre IV e Urbano IV.

246
64. Os vassalos são dispensados de
qualquer obrigação com o senhor
que tivesse claramente caído em
heresia?

Sem dúvida. Realmente, está escrito: está dispensado de qualquer dever


de fidelidade, de qualquer dependência, todo aquele cujo senhor tenha
manifestamente caído em “heresia”.

XVI. O herege estando ipso facto destituído de todos os seus direitos, é


evidente que não tem mais nenhum meio de obrigar juridicamente os seus
subordinados, vassalos ou seguidores. Porém, resta examinar mais
detidamente as principais consequências dessa ruptura do elo de
fidelidade:

a. Não se é obrigado a restituir o que o herege emprestou. Os bens do


herege, por definição, pertencem ao fisco.
b. A esposa católica não é mais obrigada a restituir o seu dote para o
marido herege,e vice-versa, porque, em virtude da heresia do
marido, a mulher é liberada desta obrigação, e vice-versa. Porém
os dois cônjuges não têm o direito de copular com outras pessoas,
pois o elo do casamento não foi rompido.
c. Os guardas dos exércitos, castelos, aldeias e cidades não são
obrigados a restituí-los ao senhor herege, nem a guardá-los em seu
nome.
d. O vassalo, mesmo obrigado pelo juramento religioso à
vassalagem, está livre do juramento ipso facto em razão da heresia
do senhor.
e. Os servos, os libertos e os criados estão também ipso facto livres
de qualquer elo e obrigação em relação ao senhor herege. Mas
alguns estudiosos acham que os servos não são libertos, tornando-
se propriedade do fisco bem como os outros bens do herege. Mas
devo clarear um pouco esta questão: se os servos são cristãos,
considero-os libertos por causa da heresia do senhor, em
conformidade com as Instruções de Sevilha, 1483, capítulo 24,
onde se pode ler:

247
“O rei e a rainha, num ato de humanidade e clemência,
decidiram libertar todos os servos dos hereges que se
declararam cristãos. Os demais, os não-católicos, tornaram-se,
naturalmente, propriedade do fisco.”

O senhor herético e penitente que teve os bens confiscados e os


servos católicos libertados não recuperaria estes últimos, caso, por
misericórdia, retomasse a posse de seus bens, porque o liberto não pode,
de maneira nenhuma, voltar à servidão. E o que aconteceria com os
servos catecúmenos de um senhor culpado de heresia? Na minha opinião,
deveriam ser libertos, porque os catecúmenos já são membros do corpo
de Cristo devido à sua devoção e ligação com a Igreja. Falta examinar a
questão dos servos infiéis que denunciassem a heresia dos senhores:
tornar-se-iam propriedade do fisco ou seriam libertos como prêmio pela
denúncia? Se o motivo da denúncia foi louvável, deveriam ser libertos,
porque a libertação os predisporia, particularmente, a converterem-se à fé
católica.
Lembremos, para concluir, que o herege arrependido e,
consequentemente, admitido novamente no seio da Igreja, não recupera,
por causa disto, direitos, funções, bens etc., perdidos ipso facto em razão
de sua condenação.

65. O inquisidor pode obrigar os


herdeiros de um herege que
morreu, um protetor ou defensor
da heresia, a suportar os castigos e
penitências que o morto deveria
sofrer em decorrência do crime que
cometeu?

Depende. Se o réu morre antes de o inquisidor pronunciar a pena, este


não pode impô-la aos herdeiros do acusado.
Em se tratando de uma pena pronunciada, mas não cumprida,
dizendo respeito diretamente ao acusado defunto (orações, jejuns,
248
peregrinações etc.), os herdeiros não devem pagá-la.
Se a pena não disser respeito diretamente à pessoa, devendo ser
cumprida em bens materiais (construção de um hospital, por exemplo), os
herdeiros são obrigados a cumpri-la.
Se os bens do acusado, morto depois da sentença, e antes de
cumprir a pena, forem confiscados, permanecem nesta condição, e os
herdeiros, obrigados a cumprir a pena, não serão excluídos do direito da
sucessão. Tudo isto está de acordo com as Disposições dos Papas Urbano
IV e Alexandre IV.

66. Acusaram o falecido Fulano de


tal de ter solicitado, em artigo de
morte, o “consolamento” ou a
imposição das mãos dos hereges. Os
filhos e herdeiros do morto querem
testemunhar e provar que o
defunto não estava em perfeito
juízo quando solicitou o
“consolamento”: o inquisidor
poderá admitir esse depoimento?

Se o morto era, em vida, difamado ou suspeito, se se sabe que,


efetivamente, estava de posse de todas as suas faculdades quando
solicitou o “consolamento”, esse tipo de depoimento será recusado. Nos
outros casos, o inquisidor poderá admitir testemunhas de defesa; porém,
esposa, filhos ou herdeiros do morto não serão admitidos para
testemunhar. Apenas serão aceitos os depoimentos dos fiéis sinceros e
devotos.

XVI. É claro que tais conclusões devem ser aplicadas literalmente a


propósito das heresias de hoje, embora Eymerich só pense nos cátaros.
Pedir, em artigo de morte, assistência, conforto, ou os “sacramentos” dos

249
muçulmanos e judeus, é um sinal evidente de heresia. Atualmente,
também o fato de solicitar a assistência, ajuda, conforto dos luteranos,
calvinistas ou outros hereges contemporâneos.
Entretanto, o inquisidor deve tomar cuidado ao condenar um morto
por causa deste tipo de delito. As consequências da condenação são
graves! O inquisidor não deve esquecer que muitas vezes a razão fica
mais fraca na hora da morte. Deve, então, considerar a possibilidade de
um delírio, a idade do moribundo etc. E não deve deixar de solicitar o
veredicto dos médicos e especialistas na matéria.

250
P. EXCOMUNHÃO

67. Os hereges e aqueles que, de


alguma forma, seguem-nos e
protegem-nos serão excomungados
de acordo com a lei? E, se se
arrependerem, poderão se ver livres
da excomunhão através do
inquisidor?

Sim, se foram excomungados de acordo com a lei, o inquisidor tem o


poder de livrá-los da excomunhão, em caso de arrependimento.

251
Q. INDULGÊNCIAS
68, O inquisidor pode distribuir
indulgências ao povo e ao clero
convocados para os
sermões?

Sim, pode conceder à assistência vinte ou quarenta dias de indulgência,


toda vez que achar oportuno, conforme os poderes delegados aos
inquisidores pelos Papas Clemente IV, Alexandre IV e Urbano IV.

XVI. Posteriormente, outros Papas deram aos inquisidores o poder de


conferir outras indulgências. As novas se juntam às antigas, de tal
maneira que, somando as indulgências concedidas pelos diversos
soberanos pontífices, o inquisidor pode dar até quinze anos de
indulgência? Os estudiosos acham que sim. Na verdade, os Papas
ratificaram as antigas indulgências, sem aumentar nada. O que é uma
pena: realmente, seria bom que, em benefício da fé, Sua Santidade as
ampliasse para que pudesse incentivar bastante os fiéis a colaborar com o
inquisidor.

69, O inquisidor tem o poder de


conceder indulgências a seus pares
religiosos e a seu escrivão?

252
Não. O inquisidor não tem este poder. Porém, seus representantes e
escrivães ganham do Papa três anos de indulgência quando estão
exercendo a função, e todos os seus pecados são perdoados através da
indulgência plenária, quando morrem no exercício de suas funções.
Ganham também uma indulgência do Papa todos aqueles que, de uma
forma ou de outra, de perto ou de longe, colaboraram com a Inquisição
(Urbano IV, Gregório IX e Clemente IV).

XVI. Embora, nos documentos pontifícios a que se refere Eymerich, não


se encontre menção explícita a quem escreve contra a heresia, parece
evidente que devem receber as mesmas indulgências recebidas por quem
colabora com a Inquisição, perseguindo a heresia. Seria justo que Sua
Santidade se dignasse a dar-lhes explicitamente este benefício.

70. O inquisidor ganha em vida ou


só na hora da morte a indulgência
plenária?

Sim. Foi o que estabeleceram os Papas Clemente IV, Alexandre IV e


Urbano IV que estenderam aos inquisidores o benefício da indulgência
plenária, concedido em vida e na hora da morte, a todos que lutam pela
conquista da Terra Santa.

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