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FIDEÍSMO, CIENTIFICISMO E INTELIGÊNCIA HUMILHADA

Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra


e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração (Gênesis
6. 5, ARA)

1. INTRODUÇÃO

O versículo acima é de grande valia para as questões que serão abordadas adiante,
mas antes precisamos compreender um termo no texto citado. O capítulo 6 do livro de
Gênesis marca uma escalada do pecado humano iniciado no Éden. O contexto é de pura
anarquia, violência e depravação, o que leva ao cataclisma pelo dilúvio.
O termo que precisamos compreender é “coração”. Na ótica hebraica, o coração
não é meramente o órgão responsável por bombear o sangue pelo corpo. Seu sentido vai
além, mas não há palavra em nossa língua que dê conta de esclarecer em definitivo o seu
significado. Em hebraico, o termo traduzido como “coração” em Gn 6. 5 é lebh (ou
lebhabh) e significa, segundo Jonas Madureira a “centralidade do pensamento, dos
sentimentos, da vontade e da decisão humanos. Em suma, coração é o centro do nosso
mundo interior”. Além disso, “a antropologia bíblica não pressupõe que o coração seja o
intelecto, mas, sim, que o coração seja o centro de tudo o que o homem é. Isso vale
também para o intelecto”¹.
Diante disso, percebe-se que o versículo ao afirmar que “era continuamente mau
todo desígnio do seu coração”, busca demonstrar que o intelecto, os sentimentos e as
vontades do homem voltam-se para o erro. O homem como um todo está em
desequilíbrio, pendendo sempre entre extremos, e, no que tange ao intelecto, dois desses
extremos são o fideísmo e o cientificismo.

_ _
¹Jonas Madureira. Inteligência Humilhada (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 219-220.
2. FIDEÍSMO E CIENTIFICISMO

Quando se trata de conhecimento ou intelecto, existem duas posições que nós,


enquanto cristãos, devemos evitar: o fideísmo e o cientificismo.

I. Fideísmo: Essa palavra vem do latim fide e significa, simplesmente, “fé”.


Segundo Plantinga “um fideísta é aquele indivíduo que deposita confiança absoluta na fé
a despeito da razão, em questões filosóficas e religiosas, e, dessa forma, pode vir a
desprezar a razão”². Entretanto, o filósofo distingue dois tipos de fideísmo, o moderado,
segundo o qual devemos confiar mais na fé do que na razão em assuntos religiosos, e o
extremado, que despreza e denigre a razão.
O fideísmo que busco tratar aqui é o extremo, que poderia ser melhor traduzido
como “anti-intelectualismo”, presente entre diversos cristãos. Em muitas igrejas não é
incomum ouvirmos frases como “a letra mata” com o propósito de desprezar o estudo
teológico mais aprofundado. Segundo Jonas Madureira um fideísta poderia ser
comparado a um balão, pois está sempre focado em subir aos céus da fé, mas despreza a
realidade terrena, racional que o cerca.

II. Cientificismo: Para compreendermos o cientificismo, precisamos primeiro


entender o ambiente em que ele surge, isto é, o contexto positivista. O positivismo foi
uma corrente filosófica criada pelo francês Augusto Comte a partir do entusiasmo gerado
pelo desenvolvimento científico, econômico, tecnológico e industrial que imperava na
Europa da segunda metade do século XIX. A origem do termo vem do latim positum e
“refere-se àquilo que está posto, situado, que existe na realidade, referindo-se, portanto,
a tudo o que pode ser observado e experimentado”³ (no sentido de experimentação
científica).
Dessa forma, tal corrente filosófica tem como principais características 1) a
excessiva valorização das ciências e dos métodos científicos e a desvalorização de
conhecimentos não experimentáveis como o mítico ou o religioso; 2) a exaltação do ho

²Alvin Plantinga e Nicholas Wolterstorff. Faith and Rationality: Reason and Belief in God (Notre Dame:
University of Notre Dame Press), p. 87.
³FILOSOFIA. [S.l]: Bernoulli, [20--]. v. 7. Coleção Estudos. Disponível em:
https://docero.com.br/doc/5x1e0nc. Acesso em: 23 mai. 2022.
mem e suas capacidades e 3) o otimismo em relação ao desenvolvimento e progresso da
humanidade⁴.
O cientificismo, portanto, é a exaltação da ciência e de seu método como a única
forma de compreender a realidade e mais, é a “crença infundada de que a ciência pode e
deve conhecer tudo”7. No contexto do entusiasmo positivista do século XIX, acreditava-
se que a ciência poderia responder a todas as questões e resolver todos os problemas da
humanidade. Em outras palavras, o cientificismo é crença ou fé absoluta na ciência. A
ciência torna-se um novo dogma.

O triunfalismo com que a ciência era tratada acabou por gerar uma espécie de
dogmatismo científico – gradativamente, a visão cientificista do mundo
arrogou para si a responsabilidade de formar um novo discurso sobre a
natureza, a vida e o universo⁶.

Dessa forma, se o fideísta pode ser comparado a um balão, pois está sempre com
a cabeça “no alto” e despreza a razão e o estudo, o cientificista pode ser comparado a uma
toupeira, pois está sempre “cavando na terra” e despreza qualquer aspecto além da
explicação científica, acreditando que esta pode levar ao fim de todo os problemas e
questionamentos humanos.

⁴Solange Ferreira de Moura [organizador]. Livro didático de Fundamentos das Ciências Sociais. 1ª
Edição (Rio de Janeiro: Editora Universidade Estácio de Sá, 2013), p. 78.
7Marilena Chauí. Convite à filosofia (São Paulo: Editora Ática, 2000), p. 357. Disponível em:
https://home.ufam.edu.br/andersonlfc/Economia_Etica/Convite%20%20Filosofia%20-
%20Marilena%20Chaui.pdf. Acesso em: 23 mai. 2022.
⁶Allan Macedo de Novaes (2008). Imprensa e cientificismo: uma reflexão sobre a imagem da ciência
construída pelo discurso jornalístico. Acta Científica. Ciências Humanas, 1(14), 9–19. Disponível em:
https://revistas.unasp.edu.br/acch/article/view/434. Acesso em: 23 mai. 2022.
3. CONSEQUÊNCIAS

I. Fideísmo

A posição fideísta é equivocada pelo simples fato de que ela toma um elemento
da criação de Deus (razão humana) e a demoniza. Parafraseando Chesterton, a idolatria
não ocorre apenas quando criamos falsos deuses, mas também quando criamos falsos
demônios.
Todavia, importa salientar que apesar de não ser saudável um cristão adotar uma
postura fideísta, não podemos esquecer que o pecado afetou todos os aspectos da
existência, inclusive a nossa razão. Dessa forma, é fato que existem coisas que estão
acima da razão humana e nas quais simplesmente cremos, como a Trindade ou a dupla
natureza de Cristo, de modo que toda tentativa de compreender racionalmente essas
realidades sempre acaba levando ao erro.
Nessa esteira, talvez a maior consequência do fideísmo extremo seja a credulidade
em falsos ensinos. Para fins práticos, quero falar especialmente da relação do fideísta com
o estudo teológico. Cristãos que desprezam a razão, geralmente, utilizam-se de textos fora
do contexto como 1 Co 8. 1 (“O conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica”) ou 2
Co 3. 6 (“a letra mata, mas o Espírito vivifica”) para fugirem de questionamentos e
dúvidas teológicas legítimas. A ideia é que “apenas ler a bíblia” é suficiente, no sentido
de que qualquer outro instrumento externo como comentários bíblicos, manuais de
teologia sistemática e afins não devem ser levados em consideração. Geralmente são
esses irmãos os mais facilmente cooptados por teologias viciadas como a da
prosperidade, a teologia do coach etc.
Além disso, a ironia se dá pelo fato de que a Bíblia que temos em mãos não
surgiu do nada. Foi necessário um grande esforço intelectual de milhares de pessoas ao
longo dos séculos para termos o Livro Sagrado. Indivíduos dos mais diversos países
estudaram hebraico, aramaico, grego, latim, arqueologia, história, geologia e outras
diversas disciplinas para facilitar o acesso à bíblia pelo mundo. Portanto, soa
contraditório o desprezo pelo conhecimento por parte do fideísta quando o texto bíblico
que ele tem em português é fruto do esforço intelectual de outros.
O pastor batista Luiz Sayão, uma das maiores autoridades em hebraico e cultura
judaica no Brasil afirma que “sem conhecimento de filosofia, história, línguas originais,
exegese e teologia propriamente dita não é possível fazer teologia de verdade. É preciso
aproximar a igreja da teologia: nosso povo precisa pensar mais”⁷.

II. Cientificismo

Em seu livro “Visões e ilusões políticas”⁸ o cientista político canadense David


T. Koyzis afirma que as ideologias são formas de idolatria pois se fundamentam no ato
de isolar um elemento criado por Deus, elevando-o acima do resto da criação e fazendo
com que esta orbite em torno desse elemento e o sirva. Por exemplo, o marxismo apropria-
se de uma causa legítima que é a luta contra a desigualdade e torna ela o fim último de
todas as coisas. Ou seja, o Progresso torna-se um deus a ser buscado.
Da mesma forma, o cientificismo é uma forma de idolatria na medida em que
enxerga a ciência como passível de resolver e responder todas as questões humanas.
Nesse sentido, segundo a filósofa Marilena Chauí o ideal cientificista produz tanto
uma ideologia quanto uma mitologia da ciência:

Ideologia da ciência: crença no progresso e na evolução dos


conhecimentos que, um dia, explicarão totalmente a realidade e permitirão
manipulá-la tecnicamente, sem limites para a ação humana.
Mitologia da ciência: crença na ciência como se fosse magia e poderio
ilimitado sobre as coisas e os homens, dando-lhe o lugar que muitos costumam
dar às religiões, isto é, um conjunto doutrinário de verdades intemporais,
absolutas e inquestionáveis⁹.

Porém, o que poderia ocorrer quando a ciência torna-se deus? Para


compreendermos isso, devemos voltar ao século XIX no contexto positivista/cientificista.
A sociedade europeia do citado século poderia ser descrita como “entusiasmada”
ou “eufórica” em razão da cumulação de diversos fatores.

⁷Luiz Alberto Sayão. Agora sim!: teologia na prática do começo ao fim (São Paulo: Hagnos, 2014), p. 19
⁸David T. Koyzis. Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas
(São Paulo: Vida Nova, 2014).
⁹Ibidem, p. 357-358.
Primeiro, foi o período da Segunda Revolução Industrial, marcada pelo
surgimento da energia elétrica, do petróleo, do trem e do navio a vapor etc. Esses fatores
permitiram o aumento e a aceleração da produção industrial, gerando, consequentemente,
riqueza e desenvolvimento como nunca antes visto na história humana. Dessa forma, “a
utilização da ciência, em favor do crescimento econômico, ia aos poucos construindo uma
euforia e uma crença de que a ciência seria capaz de dar todas as respostas e de solucionar
todos os problemas”¹⁰.
Nesse contexto, as bases do cristianismo que vinham sendo atacadas desde o
Iluminismo no século XVII ruíram de vez na Europa, uma vez que a crença na ciência
virou uma espécie de religião secular.
Todavia, a necessidade de matéria-prima para garantir a continuidade da produção
industrial levou diversos países europeus a invadirem e massacrarem povos da África e
da Ásia tendo em vista extraírem os recursos dessas terras. Nesse contexto, Charles
Darwin publicava, em 1859, sua obra “A origem das espécies”. A teoria darwinista tinha
pretensões de explicar aspectos das ciências biológicas somente, porém, a teoria foi
tomada e aplicada às sociedades humanas, tendo em vista justificar a invasão dos países
europeus aos países africanos e asiáticos, baseando-se na ideia de que eles (os europeus)
eram a raça que havia alcançado o topo da cadeia evolutiva. A essa aplicação da teoria de
Darwin às relações entre sociedades nós chamamos “darwinismo social”.
O darwinismo social, nascido no âmbito do cientificismo, entendendo que existem
humanos mais evoluídos que outros, esteve na base do racismo, da eugenia e do nazismo.
A eugenia nazista foi um projeto de “eliminar da sociedade qualquer tipo de pessoa que
apresentasse alguma deficiência mental ou física, bem como aperfeiçoar, geneticamente,
uma geração perfeita de homens e mulheres, adequados à raça ariana”¹¹.
Porém, a euforia da sociedade europeia que tornou a ciência o seu deus só durou
até o início do século XX. Primeiro, porque o Titanic afundou em 1912. “O que isso tem
a ver?”, você pergunta. “Tudo”, eu respondo. O maior navio do mundo à época não era
apenas uma embarcação, era um símbolo. Simbolizava a capacidade ilimitada da ciência
de criar algo que jamais afundaria.

¹⁰Ibidem, p. 68.
¹¹Cláudio Fernandes. Eugenia nazista. História do Mundo, [s. d.]. Disponível em:
https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/eugenia-nazista.htm. Acesso em: 23 mai.
2022.
Dessa forma, quando a “maior embarcação” do mundo afunda, ocorre um
primeiro sinal de que a ciência não tem esse poder de resolver todas as questões humanas
e tornar o mundo perfeito. Logo em seguida, ocorre a Primeira Guerra Mundial em 1914,
a qual deixa milhões de mortos e uma geração imersa em depressão, ficando conhecida
como “Geração Perdida”. Em seguida, ocorre a quebra da Bolsa de Valores de Nova
Iorque em 1929, levando a uma crise econômica mundial e a inúmeros suicídios. Por fim,
ocorre a Segunda Guerra Mundial, com um número de mortos nunca antes visto na
história das guerras, e, assim, findou a euforia.
O que devemos compreender a partir de tudo isso é que a ciência tem e deve ter
limitações. Ela explica como o corpo do ser humano funciona, mas não explica o que é o
homem ou qual o sentido da vida, por exemplo. Essas questões são próprias da religião,
da filosofia, da antropologia etc., de modo que toda tentativa de expandir a ciência para
além de sua esfera de autoridade leva a problemas.

4. INTELIGÊNCIA HUMILHADA

Diante de tudo o que foi exposto, qual é a alternativa para não pendermos para os
extremos do fideísmo e do cientificismo? Qual deve ser a nossa postura enquanto
cristãos?
Penso que o filósofo e teólogo Jonas Madureira pode nos oferecer a resposta. A
partir do estudo de cinco grandes teólogos (Agostinho de Hipona, Anselmo de Cantuária,
João Calvino, Blaise Pascal e Herman Dooyeweerd) ele cunha o conceito de “Inteligência
Humilhada”. Jonas percebeu no estudo da vida e da obra desses intelectuais cristãos que
ao mesmo tempo em que eles tinham uma fé viva em Deus, todos direcionavam sua
atividade intelectual para a glória do Senhor e expansão do reino. Ou seja, eram ao mesmo
tempo crentes e inteligentes.
Segundo ele, nossa inteligência é humilhada porque o conhecimento mais elevado,
isto é, o conhecimento de Deus, só é obtido porque ele mesmo se revelou a nós. A
compreensão de que só sabemos quem Deus é porque ele nos deu sua revelação especial
nos humilha e nos leva à humildade espiritual e, consequentemente, intelectual.
Dessa forma, não precisamos ser fideístas pois Deus nos deu razão para usarmos
e compreendermos sua revelação tanto na natureza quanto na Palavra. Segundo Jonas,
“a inteligência humilhada é a fé que não tem medo de pensar, duvidar ou questionar. A fé
não precisa morrer, só precisa pensar. Uma fé assim percebe a racionalidade e a ordem
divina nas coisas criadas sem, de forma alguma, anular-se ou destruir-se. É possível ser
piedoso e, ao mesmo tempo, inteligente”¹².
Ao mesmo tempo, não podemos ser cientificistas porque estaríamos colocando no
lugar de Deus algo que não é Deus. Além disso, existem aspectos além da nossa
compreensão, fatores que somente alguém que teve os olhos da fé abertos pelo Espírito
pode compreender (a noção de pecado, por exemplo). Nesse sentido, uma passagem
apropriada é a do Ato I, Cena V de Hamlet, obra de William Shakespeare. Ao avistarem
o fantasma do pai de Hamlet, Horácio, um intelectual e amigo de Hamlet afirma “Isso é
estranho”, ao que Hamlet responde “Há muito mais coisa no céu e na terra, Horácio, do
que sonha a sua pobre filosofia”. Hamlet não está desprezando a razão, mas entende que
há coisas além dela. Segundo Jonas “a inteligência humilhada é também a consciência da
humilhação da razão que nos faz reconhecer o papel fundamental da fé. A razão não
precisa morrer, só precisa dobrar os joelhos. A razão que se sujeita a Deus não deve se
envergonhar da sua sujeição, nem se inferiorizar pelo fato de reconhecer sua dependência
da revelação. Pelo contrário, a razão, consciente da sua miséria, deveria ser grata pela
dádiva da revelação, pois, como aprendemos com nossas mães, quando alguém nos dá
um presente, a única reação adequada é a gratidão. É possível ser inteligente e, ao mesmo
tempo, piedoso”.

5. CONCLUSÃO: NEM BALÃO E NEM TOUPEIRA

O fideísta é comparado a um balão, pois está sempre com a mente “nas nuvens”
da fé e o cientificista a uma toupeira, pois está sempre cavando “na terra” da razão. Jonas
entende que o cristão que reconhece a sua inteligência humilhada, que cultiva tanto a fé
como a razão, utilizando ambas para a glória de Deus, não é nem balão e nem toupeira,
pois como afirma Chesterton:

O homem não é um balão que sobe ao céu nem uma toupeira que vive unicamente
cavando na terra, mas antes algo semelhante a uma árvore, cujas raízes se alimentam
da terra enquanto os ramos mais altos parecem subir quase até às estrelas.

¹²Ibidem, p. 27.

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