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Sobre a fé e a razão

Um ensaio sobre a racionalidade


do pensamento cristão

Oseas de G. Oliveira
Para a minha esposa Ednária Batista, cuja relevância em minha vida tem aumentado cada vez
mais. Não tenho dúvidas de que Deus nos amou primeiro, e que Ele nos uniu para que
amássemos um ao outro, fazendo de nós dois uma só carne.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
EXEMPLOS DE CRISTÃOS PENSANTES
FÉ E SENTIMENTO
CRÍTICAS DOS CÉTICOS
O LUGAR DA EMOÇÃO NAS QUESTÕES DE FÉ
FÉ E RACIONALIDADE
CRIADOS PARA PENSAR
O CONTEÚDO DA FÉ
O QUE É TEOLOGIA?
A NECESSIDADE DA TEOLOGIA
O CONTEÚDO DA TEOLOGIA
TEOLOGIA E FILOSOFIA
FILOSOFIA E TEOLOGIA
TEOLOGIA E FILOSOFIA COMO COMPLEMENTARES
FILOSOFIA CRISTÃ
PROPRIEDADES DE UMA FILOSOFIA CRISTÃ
A ESCRITURA E A FILOSOFIA
APOLOGÉTICA: A DEFESA DA FÉ
O QUE É APOLOGÉTICA?
POR QUE DEFENDER A FÉ?
INCREDULIDADE COMO PROBLEMA ESPIRITUAL
A RACIONALIDADE COMO FERRAMENTA DE CRESCIMENTO PESSOAL
PENSAR E QUESTIONAR A FÉ
PENSAR E A GLÓRIA DE DEUS
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
Alguns anos atrás, mas especificamente em 1972, o renomado teólogo anglicano
John Stott fez algumas observações na Conferência Anual da Inter-Varsity, observações
estas que foram publicadas em um pequeno livro traduzido no Brasil com o título Crer é
também pensar.
Nessa obra Stott chama a atenção para o anti-intelectualismo predominante entre os
cristãos, e procura combatê-lo, pois ele sabia que o resultado dessa atitude por parte dos
seguidores de Cristo traria alguns danos que estavam longe de ser pequenos. Diz ele: “A
onda do anti-intelectualismo prevalece nos dias atuais. O mundo moderno produz pessoas
pragmáticas para as quais a primeira pergunta sobre qualquer questão não é ‘isso é
verdade?’, e sim, ‘isso funciona?” (STOTT, 2012, p. 22).
Depois de uma vida inteira de dedicação à fé cristã John Stott faleceu em 2011,
deixando uma obra extensa e uma contribuição a favor do reino de Deus que pode, sem
nenhum esforço, ser descrita como admirável. Ele foi, sem dúvida, um dos gigantes do
cristianismo histórico, influenciando de forma positiva muitos crentes de todo o mundo,
principalmente através de sua estupenda obra literária.
Mas para a sua tristeza Stott não conseguiu ver avanços significativos naquilo que ele
se propôs: despertar o interesse dos cristãos para a importância de uma fé mais segura,
consciente e racional. Ao invés disso o teólogo anglicano foi testemunha da contínua
decadência do intelectualismo dentro da Igreja, e de suas consequências nefastas: uma
geração de cristãos que desconhecem as próprias crenças, cujo alicerce não é mais a
Palavra de Deus, mas ideias desconhecidas dos agentes de revelação, muitas vezes
contraditórias e que entram em rota de colisão com aquilo que os cristãos ortodoxos têm
defendido ao longo dos séculos.

EXEMPLOS DE CRISTÃOS PENSANTES


John Stott foi um daqueles cristãos fervorosos que se esforçaram por mostrar que o
cristianismo faz sentido, que não é preciso deixar de pensar para se emocionar com as
maravilhas da fé ortodoxa. Stott, no entanto, está longe de ser o único. Ao longo dos
séculos mentes fabulosas como as de Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e João
Calvino mostraram ao mundo que Cristo não ensinou nada que fosse contrário à razão.
Esses pensadores formidáveis provaram que os ensinos da Escritura não são inimigos
da racionalidade, embora algumas vezes os seus conceitos sejam envoltos em mistérios tão
grandes que acabam se enquadrando em uma categoria que sobrepõe à razão humana pura e
simples. Mas, deve-se nunca esquecer, jamais a violentam.
A luta de Stott, que começou com os grandes pensadores do passado, ainda está em
andamento. E agora, mais do que nunca, é preciso pôr em destaque a racionalidade e a
validade do pensamento cristão. Nesta época cheia de exigências, onde a crença é
considerada irrelevante e também sinônima de fraqueza intelectual, é necessário que o
crente esteja preparado para enfrentar os desafios de uma sociedade que se afasta de Deus
de maneira bastante apressada.
Além disso, as pessoas levantam questões e fazem perguntas que precisam ser
respondidas. Um cristão despreparado não tem condição de lidar com as dificuldades e
críticas de um mundo em crise, onde os homens se mostram cada vez mais inquietos. Hoje,
mais do que nunca, é preciso pensar, e também fazer pensar.
O desafio de qualquer cristão pensante é procurar mostrar que é possível argumentar a
favor da racionalidade da fé cristã. Para isso pode-se fazer uso de algumas ferramentas que
o cristão precisa utilizar com o propósito de mostrar às pessoas que a fé, em si mesma, não
é absurda, e que o cristianismo tem razões de ser bastante justificáveis. Essas ferramentas
são a teologia, a filosofia e também a apologética.
O conhecimento dessas áreas do saber, como se verá de forma paulatina, não é uma
questão de opção, mas o dever de todo seguidor de Cristo comprometido com as verdades
do evangelho, sua divulgação e defesa. Em um mundo que está sempre em busca de
respostas para suas inquietações e angústias, deve-se mostrar a ele que o cristianismo tem
as respostas que se busca.

FÉ E SENTIMENTO
A falta de interesse na arte de pensar por parte dos cristãos tem deixado alguns
intelectuais da fé bastante incomodados. Infelizmente a imensa maioria dos cristãos tem
dado motivos a céticos e inimigos declarados da fé cristã para acusações de irracionalidade.
Em conversas rotineiras com crentes professos eu tenho percebido, com tristeza, que alguns
pensadores cristãos têm razão quando dizem que vivemos o período mais anti-intelectual da
história da igreja.
Adeptos do evangelicalismo moderno tem pensado pouco a respeito das questões
realmente importantes concernentes a fé dos autores do Antigo e do Novo Testamento. Esse
fato tem sido comprovado ao se observar o nível de conhecimento por pare dos membros
de várias denominações cristãs. Muitos cristãos têm se recusado de maneira obstinada a
investigar as razões das crenças que eles mesmos defendem, pelo menos quando estão
cônscios das ideias que o cristianismo alega ser verdadeiras.

CRÍTICAS DOS CÉTICOS


Para a vergonha do evangelicalismo moderno não foi sem motivo que Bertrand
Russel, brilhante matemático e filósofo ateu falecido em 1970, dizia que a razão de as
pessoas aceitarem o cristianismo não tinha muito a ver com argumentação. Em outras
palavras, os cristãos não são cristãos porque o cristianismo é interessante, pensava ele. Na
verdade, Russel considerava os argumentos a favor da fé cristã pouco convincentes, de
forma que a aceitação da dogmática se devia mais a uma necessidade emocional das
pessoas do que à reflexão séria dos pressupostos defendidos pela teologia (RUSSEL, 2012,
P. 41). Sempre achei que essa é uma acusação bastante séria.
Bertrand Russel não foi o primeiro ou o último a acusar os cristãos de usarem pouco a
mente. Outros pensadores, em uníssono, repetiram o mesmo mantra: os cristãos não
costumam pensar. Sua fé não se baseia em fatos, mas em necessidades psicológicas. A fé é
uma muleta para os fracos, uma desculpa para não encarar o mundo como ele realmente é:
um lugar hostil e sem sentido, e que caminha para o nada.
Diante dessa situação o que incomoda alguns cristãos pensantes não são as acusações
em si mesmas, mas sim haver motivos para que elas sejam feitas. Os adversários
ideológicos da fé cristã quase sempre têm alguma razão. O cristianismo moderno tem se
mostrado pouco reflexivo e muito emocional. Na verdade, o fator emocional tem sido em
muitos aspectos um problema para a fé, um entrave para o desenvolvimento de crenças
realmente alicerçadas na Revelação, o que resultaria em uma dogmática não apenas
firmemente ancorada na vontade Deus, mas emocionalmente saudável.
O LUGAR DA EMOÇÃO NAS QUESTÕES DE FÉ
As afirmações supracitadas em relação a essa questão, no entanto, talvez sejam
entendidas de maneira incorreta. Pelo menos há uma possibilidade de que as coisas sejam
dessa forma. É preciso salientar, portanto, que as emoções são relevantes. Elas, em si
mesmas, não representam um empecilho à crença, mas um complemento dela, desde que
posta em seu devido lugar.
A fé cristã, em sua essência, consiste no relacionamento entre Deus e o ser humano.
Esse relacionamento deve produzir boas sensações. Ele deve envolver conhecimento, fé e
emoções. O mandamento escriturístico aponta para o fato de que o conhecimento e o
sentimento devem andar lado a lado: “Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma e de toda a tua força” (Dt 6.5).
Diferente dos cristãos, os filósofos estoicos é que tinham problemas com os
sentimentos. Para eles, como não é possível mudar aquilo que está fora de nosso controle, o
melhor a fazer é procurar se tornar indiferente a algumas situações, principalmente as que
são adversas. A indiferença emocional, nesse caso, torna-se uma meta.
Embora essa técnica possa ajudar (se realmente pudesse ser posta em prática) a
controlar os sentimentos, livrando os indivíduos de medos e ansiedades desnecessárias, ela
pode levar a outro extremo: deixar as pessoas insensíveis, tornando-as, por assim dizer,
pouco humanas. Daí se percebe que não se pode desvalorizar aquilo que se sente, afinal, as
pessoas foram criadas de maneira que as emoções são parte integrante de sua estrutura.
Deus não criou marionetes, Ele criou pessoas. Sentir é fundamental à nossa identidade
como seres humanos. O mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas não é uma
questão de racionalidade apenas, mas de sentimento.
Embora isso soe paradoxal, um cristianismo sem sentimentos seria apenas outra teoria
a respeito de como as coisas funcionam no mundo. Seria algo para ser aprendido, analisado
e discutido, mas não para ser vivido. A crença no Deus da Escritura não pode ser
considerada legítima se ela não trouxer algum tipo de emoção. A fé, a esperança e o amor, é
preciso não esquecer, devem ser vistos como elementos indispensáveis da crença em um
Salvador pessoal.
Quando se lê a Escritura, se percebe, como por exemplo na história dos israelitas pelo
deserto, que as emoções não apenas são relevantes, como são levadas em consideração por
Deus. As constantes revoltas do povo escolhido mudaram o curso dos acontecimentos. As
emoções ruins, por assim dizer, a revolta contra Deus, fizeram com que uma geração inteira
de pessoas perecesse no deserto. Aquilo que sentimos, portanto, pode fazer uma diferença
que não é pequena.
Quando temos esses fatos em mente se percebe que o cristianismo, apesar de
compreensivo, não é pura racionalidade. É simplesmente impossível ser um cristão
autêntico e não amar aquele que se entregou por nós, ou seja, não ter bons sentimentos em
relação a Deus. O amor a Deus, que não é apenas um sentimento, mas de forma alguma o
exclui, é a marca registrada do cristão convertido.
As emoções, quando cumprem com o seu papel de maneira adequada, não podem
representar um problema para o cristão, nem para a fé ortodoxa. O que deve ser
questionado e evitado são os excessos, e eles existem, e também não são poucos.
O cristianismo moderno, seguindo o exemplo de pensadores como Schleiermacher,
para quem a religião é “o sentimento de dependência absoluta” (McDERMONTT, p. 147),
cometeu o erro de colocar as emoções acima da razão, e isso produziu uma religião cuja
prioridade não consiste em zelar pela coerência intelectual, mas a valorização dos
sentimentos em detrimento do ensino da Escritura.
Infelizmente o sentimentalismo exacerbado tornou-se o padrão da verdade, quando o
que é ensinado pelos autores inspirados é o equilíbrio entre as emoções e a racionalidade,
equilíbrio este que precisa ser alcançado e cultivado por todo seguidor de Cristo, de
maneira que as palavras de Deuteronômio 6.5 façam sentido para o adepto do cristianismo
histórico e ortodoxo.
O sentimento humano, portanto, deve estar sob o controle da Escritura. Isso é
interessante porque quando o que se sente não está em harmonia com a racionalidade do
ensino da Bíblia, o sentimento deve ser considerado um engano enquanto a Escritura
continua verdadeira.

FÉ E RACIONALIDADE
Alguns filósofos da antiguidade tinham algumas dificuldades com as questões de fé.
Para eles a fé também era conhecimento, mas uma forma de conhecimento distorcida,
inferior, não confiável e, portanto, indigna de crédito. Eles, assim como alguns críticos
modernos, achavam que a crença não podia ter uma base racional, uma razão que a
justificasse. O problema é que muitos cristãos agem como isso fosse verdade.
Não se pode negar que algumas vezes as crenças são um empecilho ao verdadeiro
conhecimento. Mas isso não se deve, necessariamente, à natureza da fé e do conhecimento,
mas ao mau uso da mente. A fé não é contrária ao verdadeiro conhecimento, ou a
racionalidade. Isso acontece com a crendice.
A fé cristã, diferente de outras formas de crenças, está longe de ser mera crendice,
embora muitos a tratem como tal. Na verdade, o cristianismo histórico tem enfatizado a
necessidade de estudo diligente das Escrituras para que seus pressupostos e bases sejam
entendidos de forma adequada. É preciso que se mostre ao mundo que a fé cristã é
inteligível e inteligente. Isso deve ser assim porque Deus é inteligente, e ao se revelar
tornou-se inteligível para as pessoas que o buscam.
Não é mera questão de opinião por parte de um pequeno grupo de pensadores cristãos
a ideia de que promover um cristianismo inteligente é uma necessidade. Todo cristão
comprometido com a fé de Cristo tem a obrigação de fazê-lo. Os cristãos precisam pensar.

CRIADOS PARA PENSAR


O entendimento, que é o resultado natural da arte de raciocinar, é visto pelos autores
da Escritura como algo a ser buscado com toda a diligência. O homem foi criado “para
aprender a sabedoria e o ensino; para entender as palavras de inteligência” (Pv 1.2). Nesse
contexto, o conselho do teólogo americano Charles Finney deve ser levado em
consideração:

Leia, estude, pense e leia novamente. Você foi feito para pensar. Far-
lhe-á pensar; desenvolver suas capacidades pelo estudo. Deus
determinou que a religião exigisse pensar, pensar intenso, e
desenvolvesse nossa capacidade de pensamento. A própria Bíblia é
escrita em estilo tão condensado para exigir o mais intenso estudo
(FINNEY, 2001, p. 23).
Sou um cristão de tendências reformadas, ou calvinistas. Na prática isso significa que
tenho problemas sérios com a teologia de Finney. Mas nesse sentido ele tem razão. Como
uma criatura trazida à existência a imagem e semelhança de Deus, a capacidade de
raciocinar faz parte de minha estrutura. Cada ser humano é, pelo menos em alguns sentidos,
uma cópia de Deus. E isso tem algumas implicações lógicas. Quando se lê a Escritura, e
também quando se observa as coisas criadas, se percebe com inevitável clareza que Deus é
um Ser extremamente inteligente.
Diferente do restante da criação, Deus nos criou com a capacidade de pensar. Isso é
significativo. Deus nos deu mentes para que nós possamos conhecer melhor aquele que nos
trouxe à existência, e assim glorifica-lo de forma mais consciente. Pensar de modo coerente
é uma forma de glorificar a Deus, de busca-lo com mais entendimento.
A observação de Finney a respeito da forma como a Bíblia foi escrita é interessante. A
variedade de estilos e figuras de linguagem deve ser analisada com cuidado para que a
nossa interpretação não seja equivocada. Quando lemos a Escritura e procuramos entende-
la estamos fazendo um exercício intelectual. E não apenas isso. Quando lemos a Escritura
estamos pensando sobre Deus. E ao fazer isso estamos simplesmente exercendo aquela
capacidade que nos foi dada pelo Criador.
A criação espantou o espírito dos primeiros pensadores gregos, e por causa disso
nasceu o pensamento filosófico. O Deus que trouxe todas as coisas a existência é a fonte de
toda a sabedoria, e também de toda racionalidade. Ele é a inteligência suprema, e por causa
dele todas as criaturas racionais possuem a capacidade de pensar.
Nenhum cristão pode acreditar que Deus tenha criado os seres racionais para
cultivar a negligência intelectual. Deus não premia a ignorância, pois não pensar não é
natural. Se todo ser humano foi criado para pensar não há razão para que a crença em Deus,
por exemplo, seja algo irracional. A fé em Deus deve refletir a imagem daquele que trouxe
todas as coisas a existência com inteligência e poder infinitos.
A crença em Deus, portanto, deve ser inteligente. O cristão, em hipótese nenhuma,
pode ser adepto da crendice, ou daquilo que é inconsistente. A opinião de Gordon H. Clark
sobre essa questão é relevante e certamente verdadeira: “não existe justificativa coerente
para a introdução da incoerência” (CLARK, 2010, p.65). Uma fé incoerente não tem uma
razão justificável de ser. Ela é uma ofensa à imagem e semelhança de Deus da qual todo ser
humano partilha.
No entanto, o estudo nunca deve ser um exercício vazio ou sem direcionamento.
Pessoas guiadas pelo bom senso têm propósitos bem específicos em suas atividades
intelectuais. Os cristãos, assim como grandes pensadores fora do âmbito religioso, também
têm razões que justificam o seu envolvimento nas questões que exigem um uso mais
apurado da mente.
No caso dos cristãos há motivos escriturísticos para o envolvimento com questões
dessa natureza. O apóstolo Pedro, por exemplo, justifica a atividade intelectual quando
incita os cristãos a estarem sempre preparados para responder a todo aquele que pedir razão
da esperança que há neles: “Antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração,
estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança
que há em vós” (1pe 3.15).
O apóstolo Pedro, como se vê, não tem um interesse no conhecimento apenas pelo
conhecimento em si mesmo. Para ele o conhecimento é necessário porque nós devemos
saber justificar nossas crenças.
O diálogo com pessoas que estão fora da comunidade evangélica deve ser inteligível
e frutífero. Os cristãos precisam estar preparados, tendo em mãos ferramentas
indispensáveis para expressar a fé cristã com coerência e intrepidez. Os seguidores de Jesus
devem discutir ideias em pé de igualdade com os pensadores seculares.
Os crentes precisam deixar claro para o paganismo que o cristianismo não é uma
muleta para os fracos, mas uma alternativa para pessoas que gostam de refletir seriamente a
respeito das decisões que costumam tomar. Os críticos da religião precisam saber que há
uma razão de ser para a fé cristã, que ela é uma cosmovisão que vale a pena ser analisada, e
que os cristãos não são intelectualmente inferiores a qualquer outro adepto de qualquer
sistema de pensamento.
Um dos grandes problemas do evangelicalismo moderno é que ele tem falhado em
mostrar ao mundo que a fé cristã não é uma mistura de mitos disfarçados de coerência. Não
se pode negar que o mundo muitas vezes deixa de entrar em contato com a verdadeira fé
porque os cristãos não tem entendido a verdadeira fé. Quando não se entende, de forma
racional, as bases da crença, é natural que passemos a acreditar em uma caricatura, e é essa
caricatura que repassamos para aqueles que estão fora da comunidade cristã.
Não é incomum, por causa dessa falha dos cristãos de não expressarem de forma
coerente o verdadeiro conteúdo da fé, que muitos indivíduos acabem rejeitando o
cristianismo por causa de ideias que não pertencem a ele. Na verdade, muitas pessoas não
rejeitam a fé ensinada por Cristo e pelos apóstolos, mas um cristianismo falsificado,
distorcido, que por causa da ignorância de seus adeptos tomou o lugar da verdadeira fé.

O CONTEÚDO DA FÉ
Formular e expressar um cristianismo inteligente nem sempre é tarefa das mais fáceis
para adeptos do cristianismo. O problema, é preciso salientar, não reside na fé cristã em si
mesma, mas na atitude de muitos daqueles que a adotaram como filosofia e estilo de vida.
Os conceitos básicos do cristianismo não poderiam ser mais compreensíveis e
racionais do que o são, afinal, eles estão arraigados na mente do próprio Deus, e Ele os
revelou em sua Palavra. O que cabe ao cristão é a tarefa de perscrutar a mensagem da
divindade expressa na natureza e na Escritura, isto é, na revelação geral e na especial. É
nesse ponto que precisamos utilizar uma das ferramentas mais importantes que temos a
nossa disposição: a teologia.

O QUE É TEOLOGIA?
Mas o que é teologia? Durante a história da Igreja foram muitas as definições
formuladas, a maioria delas com alguma utilidade. Talvez a mais comum seja dizer que
teologia é o “estudo de Deus”. Essa definição, no entanto, pode ser problemática. Sempre
fiquei incomodado com ela. O problema é que ela dá a entender que Deus pode ser visto
como um objeto de estudo, o que não corresponde aos fatos. O que conhecemos a respeito
de Deus provém dele mesmo. Se Ele não se revelasse a nós, nada saberíamos a seu
respeito.
Karl Barth, talvez o mais importante dos teólogos do século 20, ao falar sobre a
dogmática, ou da teologia, disse:

Trata-se de uma disciplina crítica, quer dizer, instaurada segundo a


norma da Sagrada Escritura e segundo os fundamentos das Confissões
de Fé. A dogmática é uma ciência. Em todas as épocas, tem se
refletido, falado e escrito interminavelmente sobre aquilo que se deve
entender por ciência e não podemos abordar esse problema
contentando-nos com uma simples alusão. Darei uma definição de
ciência que certamente é discutível, mas que pode servir de ponto de
partida para nossa exposição. Entendemos por ciência um ensaio de
compreensão e de representação, uma busca e um ensinamento
relacionados a um objeto e a uma atividade determinados. Nenhum
esforço desse gênero pode ter a pretensão de ser algo mais do que
uma tentativa e, ao dizermos isso acerca da própria ciência, não
fazemos nada mais que sublinhar sua dupla natureza: ela é provisória
e limitada. Nos centros onde a ciência é, de maneira precisa, encarada
com a maior seriedade, não se cria nenhuma ilusão acerca do que o
homem pode fazer: ele não está envolvido em um projeto em que se
combinam a mais alta sabedoria e a mais refinada arte, pois a ciência
caída do céu, a ciência absoluta, não existe. A dogmática cristã é,
também ela, um ensaio, uma tentativa de compreensão e de
representação; uma tentativa de ver, entender e fixar determinados
fatos para reuni-los e organizá-los sob a forma de ensinamento
(BARTH, 2006, p. 8).

Uma maneira interessante de resumir tudo o que Barth fala a respeito dessa ciência
chamada dogmática é simplesmente afirmar, como Anselmo de Cantuária o fez, que a
investigação teológica é a “Fé em busca de entendimento” (GRENZ, OLSON, 2006, p. 17).
Anselmo não poderia ter sido mais feliz em sua definição. Temos aqui o elemento
emocional (a fé) e o racional (o entendimento) formando um só conceito. Nenhuma outra
combinação descreveria tão bem em que consiste o exercício teológico. Por essas e outras
razões é que a teologia deveria ser a grande paixão de todo seguidor de Cristo.

A NECESSIDADE DA TEOLOGIA
Entretanto, nem todos os cristãos têm a mesma paixão pela teologia que deveriam ter.
A questão do interesse, em todas as áreas, é variável. No entanto, o fato de a teologia não
ocupar um lugar de preeminência nos círculos onde ela deveria ser indispensável deveria
causar espanto. O mínimo que o crente deveria fazer é o dever de casa, compreendendo
assim a própria fé.
Mas as coisas nem sempre funcionam dessa maneira. Muitas vezes eles esquecem as
lições mais básicas, e desconhecem por completo as questões mais complexas. Esse é um
problema “doméstico” cujas consequências são estranhas e, por assim dizer, bem
desastrosas: uma geração de cristãos desinformados a respeito de suas próprias crenças. O
que deveria ser mais natural é o cristão saber em que realmente acredita, mas isso nem
sempre acontece.
O anti-intelectualismo de muitos cristãos vem sempre acompanhado da velha
desculpa de que o crente não precisa de teologia, pois o que importa é crer em Jesus. Essa
ideia foi repetida tantas vezes que parece ter adquirido o status de verdade por insistência.
Embora esse argumento pareça ser interessante, há graves falhas nele, falhas que
invalidam de forma decisiva essa maneira de ver o relacionamento entre a fé pessoal em
Jesus e o estudo teológico. Quando alguém levanta esse argumento é possível responder de
uma maneira que as pessoas não costumam gostar: crer em Jesus não é o bastante.
Uma resposta desse tipo sempre desperta desconfianças. Ela parece uma heresia
daquelas bem perniciosas. No entanto, a assertiva de que crer não é o bastante pode ser
justificada. Há um contexto bem específico para que ela seja compreendida de maneira
adequada. As palavras de R. C. Sproul soam muito úteis para esclarecer essa questão:

Existem tantos retratos de Jesus nas galerias deste mundo que parece
inútil esclarecer a confusão que eles têm operado nas mentes das
pessoas acerca de quem é Jesus. Tantas imagens conflitantes de Jesus
Cristo nos são apresentadas que algumas pessoas têm desistido de
atingir um quadro exato de Sua verdadeira identidade (SPROUL,
1998, p.11).

O que deve ser posto em destaque é que não há um único Jesus. A possibilidade de se
crer em outra pessoa que não passa de uma caricatura do verdadeiro Filho de Deus é real e
significativa. O verdadeiro Cristo é confundido com os demais constantemente. Dentro da
própria comunidade evangélica há alguns tipos de Jesus que não correspondem àquele cuja
biografia está na Escritura. Muitas vezes a igreja tem servido como criadora de mitos, e não
como desmistificadora.
A história da Igreja é uma testemunha de que ela tem falhado muitas vezes. A falta de
credos bem elaborados e alicerçados na Escritura pode ser uma porta de entrada para
pensamentos que destoam da ortodoxia. R. C. Sproul observou que “as maiores armas
lançadas contra o cristianismo não foram salvas de tiros de fora da igreja, mas ataques
viciosos de dentro dela” (SPROUL, 2007, p. 8). Isso pode ser entendido de diversas formas.
Os mitos criados pela igreja não é um problema de pouca importância. Talvez não
seja possível saber com certeza a consequência definitiva de uma crença em um Jesus
falsificado. O crente não deve correr o risco de depositar a sua fé em um mito. O Jesus real
e pessoal é mais interessante do que as figuras burlescas dele. O verdadeiro Cristo dá
garantias que nenhum outro seria capaz de oferecer.
O problema do mito, no entanto, não é um risco apenas da cristologia, mas de todas as
disciplinas da Teologia Sistemática. Uma doutrina da salvação equivocada, por exemplo,
pode desonrar a Deus e exaltar a capacidade humana de tomar decisões acertadas, como
costuma acontecer nas várias formas de arminianismo. Corre-se o risco de ver no homem
algum mérito que fez a grande diferença entre o céu e o inferno quando o tempo acabar e
entrarmos na eternidade. Uma teologia saudável sempre honrará a Deus e humilhará o
homem. O que passar disso é mera heterodoxia.

O CONTEÚDO DA TEOLOGIA
A função da teologia é das mais nobres. Pode-se dizer, com alguma segurança, que ela
não procura nos mostrar apenas quem é o Jesus verdadeiro. Ela é o estudo organizado das
crenças inegociáveis da fé cristã. É o estudo daquilo que Deus revelou as pessoas através
da Escritura e da natureza.
Desde o início da Igreja houve cristãos que se preocuparam em fazer afirmações
claras sobre aquilo em que eles acreditavam. Uma das afirmações mais antigas, e também
mais coerentes com aquilo que se encontra registrado nas Escrituras Sagradas é o Credo
Apostólico:
Creio em Deus Pai, Todo-poderoso, Criador do Céu e da terra. Creio
em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, o qual foi concebido
por obra do Espírito Santo; nasceu da virgem Maria; padeceu sob o
poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; ressurgiu
dos mortos ao terceiro dia; subiu ao Céu; está sentado à direita de
Deus Pai Todo-poderoso, donde há de vir para julgar os vivos e os
mortos. Creio no Espírito Santo; na Santa Igreja Universal; na
comunhão dos santos; na remissão dos pecados; na ressurreição do
corpo; na vida eterna. Amém (BEEKE, p. 1935, 2018).

Formulações como o Credo Apostólico são importantes porque deixam claro aquilo
em que os cristãos acreditam. Daí se percebe que a fé cristã não consiste em uma série de
regras de conduta sem embasamento intelectual. Os credos e confissões da igreja são uma
maneira de mostrar ao mundo que o corpo dogmático da fé ortodoxa é um todo bem
organizado, e que ele realmente faz sentido.
De modo geral a teologia pode ser um antídoto poderoso contra a invasão de
pensamentos não bíblicos dentro da igreja. Para algumas pessoas isso não parece
importante. No entanto, elas estão bastante equivocadas. As crenças fazem diferença. O
tipo de cristãos que nos tornamos é definido pelo tipo de crenças que nós temos. Quando o
que está em pauta são as crenças fazer uma distinção entre o certo e errado é crucial. Os
efeitos da ortodoxia jamais serão os mesmos da heterodoxia. Verdade e erro não podem
produzir o mesmo tipo de resultado.
Uma teologia equivocada traz danos sérios a qualquer pessoa que esteja disposta a
se comprometer com a Pessoa de Cristo. Ela pode se tornar uma espécie de escravidão. É
importante destacar essa questão porque não é preciso apenas possuir uma teologia, mas
uma teologia que corresponda aos dados da Escritura.
O labor teológico, portanto, ao invés de ser algo frio e desprovido de sentido, é uma
das maneiras mais eficazes de se conhecer a Deus. A teologia é fundamental para o
crescimento do seguidor de Cristo. Não se pode crescer na graça e no conhecimento de
Cristo sem uma teologia sadia, fundamentada na Escritura. É por isso que costumo dizer
que teologia, para mim, é também uma espécie de exercício devocional.
Se for verdade que conhecer coisas a respeito de Deus não é a mesma coisa que
conhecê-lo de maneira pessoal, é também correto afirmar que não podemos conhecê-lo de
maneira pessoal sem sabermos fatos verídicos a respeito dele. Uma religiosidade sem o
conhecimento adequado daquilo em que se coloca a fé pode ser algo perigoso. Fé sem
entendimento e fanatismo religioso tem uma relação de proximidade, eles costumam andar
de mãos dadas.

TEOLOGIA E FILOSOFIA
Confesso que por bastante tempo fui preconceituoso com a filosofia. Isso mudou
quando entrei na faculdade. Essa mudança aconteceu em minha mente porque a teologia
tem uma relação bastante estreita com a filosofia. Essa disciplina, que teve origem na
Grécia antiga, mudou o curso de todo o pensamento ocidental. Mas o que é filosofia? Por
que ela é tão relevante?
Pra alguns filósofos a própria pergunta “O que é filosofia?” já é por si mesma
filosófica. Esse é o caso de Bertrand Russel, em sua História do pensamento ocidental:
Se alguém pergunta o que é a matemática, podemos dar-lhes uma
definição do dicionário, dizendo, como ponto de partida, que é a
ciência dos números. Trata-se de afirmação inquestionável e, além do
mais, facilmente compreensível por quem fez a pergunta, mesmo que
ignore a matemática. Desse modo, é possível dar definições a respeito
de qualquer campo onde exista um corpo de conhecimentos definido.
Mas a filosofia não pode ser definida assim. Qualquer definição é
questionável e já implica uma atitude filosófica. O único modo de se
descobrir o que é filosofia é fazer filosofia (RUSSEL, 2017).

Diante das características da filosofia pode-se dizer que ela é a ciência da razão, ou
pelo menos faz uso da razão para que se obtenha alguns resultados, por assim dizer,
filosóficos. Alguém poderia dizer que essa maneira de se expressar não ajuda, afinal, as
demais ciências também fazem uso da razão, e isso certamente é verdade. Diante desse fato
pode-se dizer que Russel tem razão. O único modo de descobrir o que é filosofia é
filosofando, ou procurando respostas para perguntas que consideramos inquietantes.
A filosofia investiga a razão de ser das coisas usando como ferramenta a razão pura,
o raciocínio. Por esse motivo ela é uma ciência que não precisa de laboratórios. Ela faz
perguntas a respeito das coisas e procura responde-las racionalmente.
Battista Mondim, em seu Curso de Filosofia, salienta que há duas qualidades que
distingue a filosofia das demais ciências: o método e o objetivo. Diz ele:

O método não é o da simples verificação, nem o da descrição mais ou


menos fantasiosa, nem o da experimentação. O primeiro é próprio do
conhecimento comum; o segundo da poesia e da mitologia; o terceiro,
da ciência. A filosofia tem método diferente, o da justificação lógica,
racional. Das coisas que estuda, a filosofia deseja oferecer explicação
conclusiva e, para consegui-la, se serve somente da razão, isto é,
daquilo que os gregos chamam de logos.

Quanto ao objetivo, a filosofia não busca fins práticos e não tem


interesses externos como a ciência, a arte, a religião e a técnica, as
quais, de um modo ou de outro, sempre têm em vista alguma
satisfação ou alguma vantagem. A filosofia tem como único objetivo
o conhecimento; ela procura a verdade pela verdade, prescindindo de
eventuais utilizações práticas. A filosofia tem finalidade puramente
teorética, ou seja, contemplativa; não procura a verdade por algum
motivo que não seja a própria verdade. Por isso, como diz
egregiamente Aristóteles na Metafísica (A, 2, 982b), é “livre”
enquanto não se destina a nenhum uso de ordem prática, realizando-se
na pura contemplação da verdade (MONDIN, 1982).

A filosofia é uma disciplina bastante abrangente. Ela estuda todas as coisas. Embora
os filósofos costumem analisar algumas questões em particular, como epistemologia (que
trata do conhecimento) ou a estética (que lida com a questão da arte), qualquer coisa que
exista pode ser analisada filosoficamente. De certa forma, nada, inclusive a religiosidade,
está excluída da investigação filosófica.
FILOSOFIA E TEOLOGIA
Se a teologia, que é o estudo organizado das doutrinas cristãs, não é estudada com
afinco por aqueles que professam fé em Cristo, a filosofia é vista com muito mais
ressalvas, senão com completo desprezo. Isso acontece porque as opiniões em relação a ela
tendem a ser distorcidas. Não são poucos os que se perguntam sobre a sua utilidade para o
cristão.
Para muitas pessoas a filosofia é vista como perigosa, ou até mesmo nociva.
Normalmente se argumenta que o cristianismo adotou algumas ideias que não eram
escriturísticas, mas essencialmente gregas, e isso distorceu a fé. Para muitos cristãos a
filosofia é uma espécie de corruptora da boa doutrina.
Não se pode negar que em vários momentos da história do pensamento cristão a
filosofia teve participações decisivas. A sua influência é vista na formulação de doutrinas
importantes, como na questão da vida após a morte e no problema da divindade e
humanidade de Cristo. Negar que a filosofia influenciou a teologia ao longo dos séculos é
ir contra o testemunho vivo da história. A honestidade exige que esse reconhecimento seja
feito.
Pelas razões supracitadas muitas pessoas chegaram à conclusão de que a teologia e a
filosofia não podem andar juntas. É como se elas não se encaixassem, ou mesmo se
excluíssem mutuamente. Colin Brown, na introdução do seu clássico Filosofia e fé cristã,
menciona essa questão. Diz ele:

Esforço algum da imaginação seria capaz de fazer com que o


relacionamento entre a filosofia e fé cristã fosse descrito como um
casamento ideal. Não é ideal, nem, a rigor, pode ser considerado um
casamento. Muitos sãos os cristãos que consideram o interesse pela
filosofia como um flerte dúbio e perigoso (BROWN, 2007, p. 11).

Muitos cristãos, assim como aconteceu comigo, entram na faculdade cheios de


preconceito em relação a filosofia, mas logo percebem que o labor filosófico é relevante,
além de fascinante. E o mais impressionante: a filosofia em si mesma é uma ferramenta de
investigação e formulação do pensamento evangélico, e não uma arma apontada para ele.
Assim como qualquer outra ciência, não há nenhum problema inerente à filosofia.
Ela, por si mesma, não é uma heresia. A questão é como ela é utilizada, e com quais
propósitos. A verdade é que a melhor das ferramentas pode se tornar uma arma mortal nas
mãos de pessoas cujas intenções é a destruição do cristianismo.

TEOLOGIA E FILOSOFIA COMO


COMPLEMENTARES
Se a teologia é o estudo organizado das doutrinas cristãs, ou o estudo de Deus, a
filosofia, como salientado anteriormente, é o estudo de todas as coisas, inclusive de Deus.
De certa forma pode-se afirmar que as duas disciplinas tem o mesmo objetivo básico: a
compreensão da realidade. Tomás de Aquino percebeu isso. Ele entendia que teologia e
filosofia tinham papéis complementares na busca da verdade (SPROUL, 2002, p.71). A
filosofia, assim como a teologia, consegue captar algumas verdades, e toda verdade é
verdade de Deus.
Teólogos e filósofos desejam entender como tudo funciona, o sentido da existência,
a razão última de todas as coisas. A diferença entre as duas disciplinas está na fonte de
informação: a teologia utiliza a razão, mas tem como base a Escritura, ou a revelação
especial de Deus. A filosofia utiliza apenas o raciocínio, ou a razão pura, sem o auxílio da
revelação. Embora essa diferença seja significativa, uma não exclui a outra.
Depois que o cristão passa a se dedicar ao labor teológico ele consegue perceber
com mais clareza que a filosofia tem a sua importância. Essa relevância se evidencia na
necessidade de uma melhor compreensão das doutrinas pertencentes ao cristianismo. A
filosofia pode ser uma ajuda pertinente no entendimento das questões teológicas.
Sobre a relação dessas duas disciplinas, Feinberg e Geisler fazem a seguinte
observação:

não se pode praticar teologia sistemática sem a ajuda da filosofia. A


Bíblia fornece os dados básicos para a teologia cristã, mas a teologia
não é sistemática até que tenha sido ‘sistematizada’. Por exemplo,
cristãos ortodoxos creem em só Deus que eternamente existe em três
Pessoas – a Trindade. Mesmo assim, esta doutrina é o resultado de
vários procedimentos filosóficos (FEINBERG & GEISLER, 2005, p.
61).

O uso da filosofia na interpretação, formulação e expressão da teologia sempre foi


significativo. Ela era vista pelos grandes pensadores do cristianismo do passado como
serva da teologia. Mais do que isso. Nos primórdios da igreja homens de profunda reflexão
e mente aguçada procuraram mostrar ao mundo que a fé cristã era racional, e que ela
poderia ser vista como uma alternativa filosófica entre tantas que já existiam, e uma
alternativa relevante, e que por isso deveria ser analisada e vista como sendo válida.
De qualquer maneira, independentemente do uso que a teologia faz da filosofia, vale
a pena conhecê-la. Há uma infinidade de visões alternativas ao teísmo cristão, e a melhor
opção do seguidor de Cristo certamente não é a ignorância a respeito delas. O fato de não
pertencermos a este mundo não justifica a falta de atuação nele e de não estar informado
sobre o que acontece nele. Ser luz do mundo e sal da terra é também estar envolvido nas
questões importantes da vida, mostrando que o cristianismo é uma opção que vale a pena
ser analisada por aqueles para quem não pensar é impensável.

FILOSOFIA CRISTÃ
Apesar das controvérsias em torno da questão teologia-filosofia, a igreja, ao longo
de seus vários séculos de existência, produziu não apenas pensadores formidáveis, mas
verdadeiros filósofos cristãos. Exemplos notáveis de pensadores que podem se encaixar
nessa categoria podem ser encontrados, por exemplos, nas pessoas de Agostinho de Hipona
e Tomás de Aquino.
Mas, o que seria uma filosofia cristã? Philotheus Boehner e Etienne Gilson, a
definem da seguinte maneira:

É cristã toda filosofia que, criada por cristãos convictos, distingue


entre os domínios da ciência e da fé, demonstra suas proposições com
razões naturais, e não obstante vê na revelação cristã um auxílio
valioso, e até certo ponto mesmo moralmente necessário para a razão
(BOEHNER, GILSON, p. 11, 2012).
O pressuposto de que a filosofia cristã deve ser criada por cristãos convictos é
particularmente interessante. A igreja, desde os seus primórdios, teve que lutar contra
ideias de pensadores que não estavam comprometidos com a Escritura. Isso foi um
problema que esteve longe de ser pequeno. Esse problema pode ser visto tanto na teologia
quanto na filosofia. É necessário, portanto, que o filósofo cristão seja de fato cristão. Uma
mente não convertida, por mais genial que seja, não poderá elaborar um sistema filosófico
que seja coerente com o cristianismo histórico e ortodoxo.
Boehner e Gilson foram muito felizes em destacar que o filósofo cristão, apesar de
usar o raciocínio para argumentar a favor da fé, também vê na revelação um auxílio valioso
e também necessário na formulação de seu pensamento. E isso certamente deve ser dessa
forma, pois quando adicionamos o adjetivo “cristã” ao substantivo “filosofia” a questão do
raciocínio adquire um novo significado.
A filosofia, de modo geral, estuda todas as coisas, mas a filosofia cristã tem um
objetivo bem definido e, por essa razão, também restrito: ela lida com aquilo que é
concernente à religiosidade, como a existência de Deus e o conhecimento que podemos ter
a respeito dele conforme revelado na natureza, conhecimento este que também pode ser
percebido pela razão. Embora, semelhante a filosofia secular, ela busque uma explicação
para todas as coisas, ela parte do pressuposto de que a razão para a existência de todas as
coisas é a existência de Deus.

PROPRIEDADES DE UMA FILOSOFIA CRISTÃ


A filosofia cristã, pelo menos em alguns aspectos, é similar à filosofia secular. Nos
dois casos o uso da razão é fundamental. Mas há diferenças significativas que devem ser
levadas em consideração. Na obra História da Filosofia Cristã Philotheus Boehner e
Etienne Gilson colocam em destaque duas dessas propriedades (BOEHNER, GILSON, p.
12-13, 2012).
A primeira delas é que uma filosofia cristã consta exclusivamente de proposições
susceptíveis de demonstração natural. Neste ponto reside uma diferença significativa entre
a teologia cristã e a filosofia cristã. Embora as duas tenham o mesmo objetivo, os caminhos
são diferentes. Enquanto a Teologia pressupõe a existência de Deus, por exemplo, a
filosofia procurar argumentar sobre a existência dele em bases puramente racionais. A
teologia faz amplo uso da revelação, a filosofia, por vez, procura demonstrar as verdades
do cristianismo pelo uso exclusivo da razão. Quando Tomás de Aquino argumentou a favor
da existência de Deus por meio de suas famosas Cinco Vias, ele não usou os pressupostos
da Escritura, mas utilizou-se do raciocínio para induzir o leitor à crença na Divindade. Foi
um trabalho puramente intelectual.
A segunda propriedade é que a filosofia cristã jamais irá de encontro as verdades da
fé claramente formuladas pela igreja. O fato de a filosofia, diferente da Escritura, não ser
infalível, pode levar à uma contradição entre o que ela ensina e o que ensina a Igreja. Mas
caso isso aconteça, pode-se dizer que esta filosofia deixou de ser cristã, pois entra em rota
de colisão com aquilo que a igreja defende.
Essa segunda caraterística, no entanto, deve ser reavaliada. Tenho algumas
ressalvas. Creio que deve-se levar em consideração a possibilidade de a igreja cometer
erros teológicos. Como a teologia é formulada por pessoas, e as pessoas cometem erros, é
perfeitamente possível que haja doutrinas que não se encaixem com o ensino da Escritura.
Nesse caso, a ênfase deveria deixar de ser posta sobre o ensino da Igreja e direcioná-la para
a Escritura.
Essa última assertiva leva em consideração a prioridade e singularidade da revelação
especial de Deus través dos seus agentes de revelação. A Confissão de Fé de Westminster,
ao lidar com a Escritura, a coloca em uma posição que está acima da igreja e de qualquer
outra forma de revelação, vendo ela como o ponto máximo da comunicação divina, e por
isso necessária, infalível e suficiente:

Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência de


tal modo manifestem a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que
os homens ficam inescusáveis, contudo não são suficientes para dar
aquele conhecimento de Deus e da sua vontade necessário para a
salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e
diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua
vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade,
para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a
corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente
servido fazê-la escrever toda. Isto torna indispensável a Escritura
Sagrada, tendo cessado aqueles antigos modos de revelar Deus a sua
vontade ao seu povo (BEEKE, p. 1992, 2018)..

Se a Escritura expressa a vontade de Deus quanto as coisas concernentes à salvação


pela razão de a natureza não ser clara quanto ao conhecimento necessário, fica evidente que
a investigação intelectual, que tem por base a natureza, não pode entrar em rota de colisão
com essa Palavra.
Fazendo essa correção, isto é, pondo a ênfase na Escritura e tirando-a da Igreja,
pode-se dizer que uma verdadeira filosofia cristã jamais é contrária a qualquer ensinamento
que seja expresso com clareza no Antigo ou no Novo Testamento. O padrão de verdade não
é de forma alguma a Igreja instituída, mas a Revelação de Deus contida na Bíblia Sagrada.

A ESCRITURA E A FILOSOFIA
O apóstolo Paulo tinha uma visão bastante elevada da Escritura: “Toda a Escritura é
inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a
instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda
boa obra (2Tm 3.16-17).
A visão paulina da Escritura é importante porque ela serve para limitar e corrigir a
filosofia quando esta se distancia das verdades reveladas. O teólogo-filósofo realmente
convertido julgará o seu trabalho tendo como parâmetro não outras filosofias, mas a própria
Palavra de Deus. Enquanto sua filosofia for fiel à Escritura ela poderá, de maneira
coerente, ser chamada de cristã. Mas se ela se desviar do ensino dos apóstolos pode-se
dizer com segurança que essa filosofia deixou de ser cristã.
Essa questão não é incoerente com o que foi exposto até agora. A dependência do
filósofo cristão em relação à Escritura não significa dependência em relação ao método. O
cristão pensante, quanto faz filosofia, usa a razão como ferramenta de trabalho, e não a
revelação. Por outro lado, ele procura, sendo fiel às suas crenças, não entrar em rota de
colisão com as verdades reveladas. Ele sabe que a sua reflexão filosófica não é inspirada
como a Escritura, e por esse motivo não deve jamais contrariar aquilo que está contido
nela. Isso quer dizer que embora o método seja diferente, o objetivo é o mesmo, e esse
objetivo deve ser guiado pelo Antigo e pelo Novo Testamento.

APOLOGÉTICA: A DEFESA DA FÉ
Uma das disciplinas mais fascinantes que forma o corpo intelectual do pensamento
cristão é a apologética. Em certo sentido a apologética é uma mistura de teologia
sistemática e filosofia. O resultado é no mínimo bem interessante.

O QUE É APOLOGÉTICA?
Em termos gerais pode-se dizer que apologética é a parte da teologia-filosofia que
se encarrega da defesa da fé cristã. Se a teologia, principalmente a teologia sistemática, lida
com o conteúdo da fé, isto é, com aquilo que se acredita, a apologética procura defender os
conceitos da teologia. É uma tentativa de mostrar aos céticos que as doutrinas básicas do
cristianismo histórico e ortodoxo são racionalmente válidas.
As afirmações teológicas constantemente precisam ser defendidas contra o ataque de
inimigos declarados da fé cristã. Essa defesa exige o conhecimento prévio da teologia e da
filosofia. Precisamos da teologia porque não podemos defender aquilo que não
conhecemos. Da mesma forma necessitamos da filosofia porque não podemos defender
aquilo que conhecemos se não temos as ferramentas necessárias para fazê-lo. Em suma, a
apologética pressupõe essas duas áreas do conhecimento. Algo mais, no entanto, deve ser
dito a respeito da apologética.
Muitos apologetas não gostam da ideia de mera defesa. E assim deve ser. A
disciplina da apologética envolve muito mais do que uma defensiva quando os céticos
fazem severas críticas ao conteúdo das crenças inegociáveis da fé cristã histórica. Alister
McGrath salienta que além da defesa da fé,

A apologética, portanto, tem uma dimensão extremamente positiva,


que consiste em demonstrar a beleza de Jesus Cristo de tal modo que
os que não creem compreendam a razão pela qual Cristo merece ser
levado a sério. O próprio Cristo certa vez comparou o reino do céu a
uma pérola de grande valor: “O reino do céu também é semelhante a
um negociante que procura boas pérolas. Encontrando uma pérola de
grande valor, foi e vendeu tudo o que possuía, e a comprou”(Mt 13.
45-46). O negociante entendia de pérolas; por isso, quando deparou
com aquela pérola em especial, viu que era muito bonita e valiosa e
que valia a pena vender tudo para adquiri-la (McGRATH, p. 17,
2013).

O cristianismo não é intelectualmente inferior a nenhum sistema filosófico, e


certamente é superior quando comparado com o corpo de doutrinas de qualquer outra
religião. Apenas a fé cristã consegue explicar de forma consistente porque o mundo é como
realmente é, e apenas ela consegue dizer por que as coisas são como de fato são. O mundo,
mesmo que não aceite as doutrinas básicas do cristianismo, precisa entender toda a beleza e
coerência da mensagem da Escritura. Quando o ímpio, no dia do juízo final, tiver perdido a
vida que Deus tinha para oferecer, ele saberá que o que a fé cristã tinha a oferecer é o
melhor que se pode imaginar.
POR QUE DEFENDER A FÉ?
A princípio, a apologética suscita a indagação a respeito dos motivos de se formular
uma defesa racional da fé cristã. Há quem entenda que Deus não precisa de defesa. Nós
devemos defender o cristianismo, no entanto, simplesmente porque ele é verdadeiro. Não
há motivo mais convincente do que esse para o envolvimento no embate intelectual com
aqueles que estão fora da comunidade evangélica. A verdade, em quaisquer de suas formas,
sempre deve ser defendida.
O seguidor de Cristo comprometido com os ensinos da Escritura não pode fugir da
prática da defesa da fé, pois ela é um mandamento bíblico. O apóstolo Paulo, por exemplo,
nos convida a nos envolver “na defesa e na confirmação do evangelho” (Fp 1.7). O que
Paulo defende nesse texto é a prática da apologética em sua expressão mais pura.
De modo geral, no contexto secular, os adversários da religiosidade parecem ter
escolhido o cristianismo como o principal foco de suas críticas. Segundo eles a
irracionalidade permeia o corpo de crença e valores adotados por aqueles que acreditam em
Cristo, além de enxergarem a fé como algo completamente inútil, ou, no pior das hipóteses,
como prejudicial ao desenvolvimento intelectual do homem e da sociedade. A tarefa da
apologética, nesse contexto de hostilidade ideológica, é dupla: defesa e persuasão.
O apologista deve procurar mostrar que a fé cristã é “baseada em muito mais que a
razão humana nua e crua, mas de nenhuma maneira em menos” (SPROUL, 2007, p. 8).
Como observou R. C. Sproul. Embora seja verdade que o cristianismo lida com verdadeiros
mistérios, pode-se afirmar que apesar disso as nossas crenças e argumentos podem ser
compreendidos por qualquer pessoa que se aproxime delas, e que não há nenhum tipo de
contradição na estrutura teológica da fé ortodoxa.
Também devemos formular argumentos lógicos que provem que o cristianismo é
válido, e que todas as outras opções não cristãs são inválidas. Se o cristianismo é
verdadeiro, as demais visões de mundo não podem ser igualmente verdadeiras, pois ele, em
sua essência, colide com todas elas. Essa é uma conclusão da qual não podemos fugir, e
nem devemos. Diferente da opinião popular, nem todas as religiões levam a Deus. Quando
o que está em pauta é a veracidade da fé cristã o relativismo não pode ser levado em
consideração.
Alguns cristãos argumentam que a tarefa da apologética é uma batalha inglória, pois
o homem é depravado em sua natureza e, por isso, os argumentos racionais não poderão
trazê-lo à fé salvífica. Embora seja verdade que a conversão é uma obra sobrenatural, isso
não justifica a inércia diante das múltiplas acusações contra a fé cristã. Estamos lidando
com coisas diferentes, embora interligadas.
Embora seja verdade que o apologista não consegue trazer o não-cristão à fé que
salva, pelo menos pode deixa-lo envergonhado, mostrando que o cristianismo é racional, e
que a posição que o ímpio adota tem inconsistências que a tornam inválida como filosofia
de vida. Se não fosse importante existir uma apologética cristã, os agentes de revelação não
teriam aconselhado a estarmos preparados para darmos razão de nossa fé sempre que
formos questionados.

INCREDULIDADE COMO PROBLEMA ESPIRITUAL


O crente acostumado com as questões teológico-filosóficas não ficará surpreso ou
até mesmo frustrado com a questão da incredulidade dos inimigos da fé cristã. O problema
da falta de reconhecimento da veracidade do cristianismo é mais do que uma questão da
mente, mas um problema espiritual. A análise de duas passagens das Escrituras pode
esclarecer essa questão:

Então chegaram a ele os fariseus e os saduceus e, para o


experimentarem, pediram-lhe que lhes mostrasse algum sinal do céu.
Mas ele respondeu, e disse-lhes: Ao cair da tarde, dizeis: Haverá bom
tempo, porque o céu está rubro. E pela manhã: Hoje haverá
tempestade, porque o céu está de um vermelho sombrio. Ora, sabeis
discernir o aspecto do céu, e não podeis discernir os sinais dos
tempos? Uma geração má e adúltera pede um sinal, e nenhum sinal
lhe será dado, senão o de Jonas. E, deixando-os, retirou-se (Mt 16.1-
4).

A crítica de Jesus aos seus ouvintes foi no sentido de mostrar que apesar de eles
serem capazes de interpretar os fenômenos da natureza não estavam conseguindo enxergar
algo que era mais importante: os sinais dos tempos. Tudo o que estava acontecendo
apontava para o que havia sido predito pelos profetas do Antigo Testamento, mas eles não
estavam conseguindo perceber.
O curioso é que Cristo não os acusou de não serem inteligentes. O problema dos
céticos da época de Cristo (e também da nossa) não era a incapacidade intelectual, mas um
problema espiritual. O apóstolo Paulo, lidando com esse assunto, ressaltou:

Mas, se ainda o nosso evangelho está encoberto, é naqueles que se


perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou os
entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do
evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus. Pois não
nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor; e a nós
mesmos como vossos servos por amor de Jesus. Porque Deus, que
disse: Das trevas brilhará a luz, é quem brilhou em nossos corações,
para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo
(2Co 4.3-6).

Cristo não estava falando a pessoas intelectualmente inferiores. A questão não era
essa. Hoje, também, muitos dos críticos da fé cristã são considerados verdadeiros gênios
das ciências. O problema deles, portanto, não tem relação com limitação da mente. É por
causa da dureza do coração deles que lhes foge o entendimento: “Portanto digo isto, e
testifico no Senhor, para que não mais andeis como andam os gentios, na verdade da sua
mente, entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há
neles, pela dureza do seu coração” (Ef 4.17-18).
John Piper, ao analisar o problema da incredulidade do coração do ímpio, e falando da
questão da existência de Deus, observa: “Se a nossa desaprovação da existência de Deus é
bastante forte, nossas faculdades sensoriais e nossas capacidades não serão capazes de
inferir que ele existe” (Piper, pos. 883-886, 2013). A predisposição do ímpio em rejeitar a
existência de um Deus Santo e Justo o leva para longe desse fato, apesar das evidências em
contrário.
A RACIONALIDADE COMO FERRAMENTA DE CRESCIMENTO PESSOAL
Até aqui lidamos com as questões da racionalidade tendo como objetivo principal mostrar
que o cristianismo é racional, e que existem ferramentas que demonstram isso. Não podemos
esquecer, no entanto, que quando usamos a mente temos muitos benefícios. O conhecimento
(principalmente da Escritura e do Deus da Escritura), além de ser uma forma de crescimento
pessoal, é também uma maneira de glorificar o Deus que nos criou com mentes. Não é sem
razão que o autor inspirado nos aconselha desta forma: “Se buscares a sabedoria como a
prata e como a tesouros escondidos a procurares, então, entenderás o temor do Senhor e
acharás o conhecimento de Deus. porque o Senhor dá a sabedoria, e da sua boca vem a
inteligência e o entendimento” (Pv 2.4-8).
Os autores da Bíblia não viam a busca do entendimento (principalmente quando este
se refere a Deus) como um mero capricho intelectual. essa busca é comparada com a
procura de tesouros escondidos. Isso quer dizer que o que há de melhor quando se trata do
conhecimento do Santo não está à mão, não é algo que se possa ter sem algum esforço.
Como John Piper observa, “as maiores riquezas da Bíblia são reservadas para aqueles que
se debruçam sobre ela” (PIPER, pos. 698, 2013)
Embora o labor intelectual seja algo penoso, e as coisas realmente são assim (quase
sempre é exigido muitas horas de leitura e investigação bibliográfica), aquele que se dedica
a ele é ricamente recompensado com um entendimento melhor a respeito de Deus, de forma
que este passa a ser glorificado de maneira mais consciente por nós a partir do
conhecimento que obtemos sobre ele. Isso faz toda a diferença.

PENSAR E QUESTIONAR A FÉ
Muitos críticos e inimigos declarados da fé cristã têm feito severas críticas aos
fundamentos do cristianismo histórico. Isso não deveria nos surpreender. É natural que pessoas
não convertidas ajam dessa maneira. O brado de revolta do faraó por ocasião da libertação dos
israelitas da escravidão no Egito aponta nessa direção: “Respondeu Faraó: Quem é o Senhor para
que lhe ouça a voz e deixe ir a Israel? Não conheço o Senhor, nem tampouco deixarei ir a Israel”
(Ex 5;2).
Os não-cristãos normalmente não apenas têm dúvidas a respeito do Deus judeu-cristão,
como o ignoram completamente. Como visto anteriormente, o deus deste século cegou o
entendimento deles. A incredulidade deles, portanto, tem uma razão de ser. O problema é quando
cristãos sinceros se veem assolados por dúvidas em relação à sua própria fé. Quando a questão
da dúvida se torna um problema doméstico as coisas ficam, por assim dizer, muito mais
complicadas.
Embora fazer perguntas seja algo natural, e isso em si mesmo não consiste em pecado,
algumas vezes o adepto do cristianismo se vê em situações que beiram a incredulidade. Muitas
vezes questões angustiantes, como o problema do mal em um mundo governado por um Deus
santo, a existência de um lugar de tormento eterno e outras doutrinas difíceis de aceitar vem à
tona, e a fé pode ficar profundamente abalada. Quando isso acontece, o questionamento, que é
algo legítimo, passa a se tornar um problema que exige esclarecimento, esclarecimento este que
vem através a investigação cuidadosa daquilo que o cristianismo defende e entende.
Qualquer cristão sincero pelo menos uma vez ou outra fez questionamentos a respeito de
suas crenças básicas. Já fiz isso inúmeras vezes. Dificilmente há alguém cuja sanidade mental
não precise ser questionada que nunca se perguntou, por exemplo, a respeito da existência de
Deus. Esse tipo de questionamento em si mesmo não é errado, e pode até ser algo saudável
quando os seus resultados se mostram benéficos. O questionamento sincero cujos objetivos são o
crescimento e a descoberta da verdade podem resultar, depois da dúvida e das angústias
provocadas por ela, em uma fé mais firme, em convicção alicerçada sobre bases mais sólidas.
Quando isso acontece o cristão terá, sem dúvida, um melhor entendimento sobre a sua própria fé,
e poderá glorificar a Deus de maneira mais plena e consciente.

PENSAR E A GLÓRIA DE DEUS


A Escritura, do começo ao fim, tem uma preocupação que o cristão não pode ignorar: a
glória de Deus. Essa não é uma questão secundária. A afirmação inconteste e determinada do
próprio Deus nos mostra que Ele leva as coisas muito a sério quando se trata de sua glória: ”Eu
sou Jeová, este é o meu nome; a minha glória, não a darei a outrem, nem o meu louvor, às
imagens esculpidas” (Is 42.8). O texto do profeta Isaías, assim como outras porções da Escritura,
nos mostra que Deus tem verdadeira paixão por sua glória.
A questão da glória de Deus tem muito a ver com o que temos visto até aqui. O que está
em foco é muito mais do que mostrar ao mundo que a fé cristã é racionalmente válida, e que há
evidências que comprovem esse fato. Embora pensar a respeito do mundo e de como ele
realmente é seja relevante, pois isso nos mostrará como viver nele e o que esperar dele, há outra
coisa mais importante: a imagem que temos da Divindade.
Um Deus que se importa tanto com a sua glória certamente faz questão de que Ele seja
entendido conforme é revelado em sua Palavra. Qualquer visão de Deus que não corresponda ao
que está contido na Escritura é uma afronta à sua pessoa. O problema de Deus com os israelitas é
que estes o desonravam quando faziam coisas contrárias aos seus mandamentos, e assim as
outras nações passavam a ter visões distorcidas dele. Isso quer dizer que quando o cristão não
tem uma visão correta da Divindade, ele não o está glorificando como deveria, e a Divindade não
é glorificada como merece.
Nesse sentido o labor teológico, que é um exercício tanto intelectual quanto devocional, é
de suma importância. O Cristão não estará glorificando a Deus quando fala de uma divindade
que não corresponde àquela que se revela na Escritura. E a única forma de acreditarmos e
pensarmos no verdadeiro Deus é estudando a sua revelação. Um entendimento equivocado de
Deus não pode glorifica-lo. Acreditar em uma caricatura da divindade é o mesmo que não
acreditar em deus nenhum.

CONCLUSÃO
Muitos cristãos têm profundas dificuldades com um cristianismo que seja inoperante
no mundo das ideias, o que significa que as coisas poderiam estar piores. Em uma época
permeada por tantas cosmovisões é bastante desconfortável saber que na opinião de várias
pessoas a doutrina de Cristo é uma filosofia e um estilo de vida marcada pela
irracionalidade e inutilidade. Preciso confessar que me sinto muito incomodado com essa
questão.
Muitos daqueles que estão fora da comunidade evangélica com frequência veem a fé
como um salto no escuro, como mera credulidade, ou simplesmente como uma alternativa
para pessoas que não possuem uma visão mais sofisticada e científica do mundo. As
afirmações teológicas fundamentais, na visão de muitos pensadores seculares, não podem
passar pelo crivo da investigação racional.
No entanto, a despeito da opinião dos críticos da fé, o cristianismo tem se mostrado
como a melhor de todas as cosmovisões, e a única que carrega o peso da veracidade
absoluta. Seus fundamentos continuam inabaláveis, sua relevância e coerência inalteráveis.
Simplesmente não há falhas naquilo que Deus revelou ao ser humano. O cristianismo, em
sua essência, não obstante as falhas daqueles que acreditam nele, é perfeitamente
inteligível e racionalmente justificável.
Embora a fé cristã seja racional e a melhor de todas as alternativas disponíveis, o
anti-intelectualismo dos próprios cristãos tem sido nocivo a ela. No entanto, os seguidores
de Cristo têm a sua disposição uma série de ferramentas relevantes, como a teologia, a
filosofia e a apologética, que devem ser utilizadas com o propósito de estarmos preparados
para dialogar com qualquer um que questionar os fundamentos da fé, e nos pedir a razão de
acreditar naquilo que o cristianismo histórico tem considerado como sendo verdadeiro.
Ser envergonhado pelos questionamentos dos adversários ideológicos do
cristianismo, em quaisquer circunstâncias, nunca deveria ser uma opção para todo aquele
que foi resgatado das trevas para a maravilhosa luz. Além disso, o labor intelectual é
certamente bastante benéfico para o cristão, pois a compreensão adequada das verdades da
Escritura nos leva a glorificar a Deus de maneira mais consciente e adequada. A minha
oração é para que Deus desperte seus servos para uma vida de engajamento na esfera das
ideias, glorificando assim aquele que os salvou com a sua mente e paixão pela verdade.

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