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PREFÁ CIO
INTRODUÇÃ O
1. ANTIGUIDADE E MOVIMENTO
2. A CIÊ NCIA NEWTONIANA
3. O SÉ CULO XX
Pó s-escrito: Os limites e usos da ciência
 
 
 
A FILOSOFIA DA CIÊ NCIA E A CRENÇA EM
DEUS
 

 
 
 
 
 
 
 
GORDON H. CLARK
 
 

Dr. Gordon H. Clark foi um dos melhores filó sofos cristã os do século XX e, na opiniã o deste
autor, um dos melhores de todos os tempos. Seu Filosofia da ciência e a crença em Deus é só
um exemplo disso. Neste livro, o dr. Clark nos ensina que a ciência tem seu lugar numa
filosofia cristã , um lugar importante. Mas jamais devemos chegar à conclusã o de que a
ciência deve ser entendida como um meio de aprender a verdade. De acordo com o dr.
Clark, e corretamente, a verdade é encontrada na Escritura somente. Se havemos de pensar
biblicamente, que é a ú nica forma como um cristã o deveria pensar, devemos perceber que
a Bíblia tem um monopó lio da verdade. É sempre na Palavra de Deus, e somente nela, que
devemos acreditar e nã o nas experiências dos cientistas.
 
— Dr. W. Gary Crampton
 
 
A ciência merece tanto respeito na nossa sociedade que a maioria dos cristã os parece
pensar que até mesmo Deus deve responder a ela para manter alguma credibilidade.
Quando pregam a budistas, eles nã o argumentam que a fé cristã é apenas uma forma mais
forte de budismo. Quando confrontam as seitas, nunca tentam retratar Cristo como o
principal líder de seita ou o supremo satanista. Porém, quando se dirigem a aqueles que
confiam na ciência, sã o movidos por uma avidez degradante de oferecer a fé cristã como
mais científica do que as suas alternativas. Sem qualquer fundamento, os cristã os admitem
que a ciência descobre a verdade e expõ e o erro, e que o pró prio evangelho, portanto, deve
passar pelo teste dela para garantir um lugar neste mundo.
Isso é muito estranho, porque a Escritura nos diz que o homem espiritual julga todas as
coisas, mas ele mesmo nã o é julgado por ninguém, e certamente nã o pelo homem natural.
Aguardo que os cientistas pleiteiem comigo e me convençam de que as suas conclusõ es sã o
cristã s! A ciência nã o é Deus. A ciência nã o é a verdade. Ela nã o é uma coisa em si mesma.
Nã o é algum padrã o eterno de verdade pelo qual todas as coisas sã o julgadas. O que ela é? A
ciência sã o pessoas. Pessoas conjecturam, escolhem, cometem equívocos, fazem esquemas
de financiamento, revisam suas teorias, inventam explicaçõ es e entram na espiral do
completo absurdo. Mas Jesus Cristo é Deus e a Verdade. Ele é a racionalidade encarnada e
nã o responde a ninguém. A ciência é que deve responder a ele.
Gordon Clark nos diz o porquê.
 
— Vincent Cheung
 
 
“Este é o livro para confundir quem quer que deposite uma fé e confiança na ciência.”
 
— Jay P. Green
 
 
“Durante a maior parte da sua histó ria, a ciência moderna tem estado em guerra com o
cristianismo. Este pequeno livro termina as batalhas, pois demonstra que a ciência nã o
pode argumentar contra a verdade da Escritura, visto que os métodos da ciência nunca
podem provar nada como sendo verdadeiro. Escrito pelo presidente do Departamento de
Filosofia da Universidade de Butler, este livro pode ser estudado com proveito por
professores, pais e estudantes.”
— John Robbins
 

Copyright © 2008 de John W. Robbins,


Publicado originalmente em inglês sob o título
The Philosphy of Science and Belief in God
pela The Trinity Foundation.
 

 
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
EDITORA MONERGISMO
Caixa Postal 2416
Brasília, DF, Brasil - CEP 70.842-970 
Telefone: (61) 8116-7481 — Sítio: www.editoramonergismo.com.br
 
1 edição, 2016
a

 
Tradução : Marcelo Herberts
Revisão : Felipe Sabino de Araú jo Neto
Capa : Felipe Sabino de Araú jo
 

PROIBIDA A REPRODUÇÃ O POR QUAISQUER MEIOS,


SALVO EM BREVES CITAÇÕ ES, COM INDICAÇÃ O DA FONTE.

 
Todas as citaçõ es bíblicas foram extraídas da
versã o Almeida Revista e Atualizada (ARA),
salvo indicaçã o em contrá rio.

Sumário
PREFÁ CIO
INTRODUÇÃ O
1. ANTIGUIDADE E MOVIMENTO
2. A CIÊ NCIA NEWTONIANA
3. O SÉ CULO XX
PÓ S-ESCRITO: OS LIMITES E USOS DA CIÊ NCIA

 
PREFÁCIO
 
Cristã os e nã o cristã os geralmente creem que a ciência é um corpo crescente de
conhecimento sobre o Universo. O conhecimento científico, de acordo com essa visã o
popular, é extraído da natureza com grande dificuldade ― porque a natureza nã o entrega
facilmente os seus segredos ― por um grupo de homens e mulheres extremamente
inteligentes, altamente educados, diligentes, imparciais e escrupulosamente honestos.
O progresso da ciência, assim defende essa visã o popular, pode ser visto na sua gloriosa
marcha de um triunfo tecnoló gico para outro. Apenas um século atrá s o voo motorizado
alguns metros acima do solo era considerado algo impossível; em 1969 homens pousaram
na Lua e retornaram à Terra sã os e salvos. Todos os confortos e conveniências do século XX
sã o produtos da ciência: encanamento residencial, comida abundante, aquecimento central
e ar condicionado, automó veis, televisã o, computadores, viagens aéreas, raios-X e
antibió ticos ― a lista quase nã o tem fim. A ciência, assim parece, tem demonstrado seu
valor e sua verdade vez apó s vez.
Para aqueles que mantêm essa opiniã o popular e ingênua da ciência, o argumento de A
Filosofia da Ciência e a Crença em Deus será bastante surpreendente. De forma justa e
cuidadosa, Dr. Clark examina e entã o refuta a crença de que a ciência nos fornece verdades.
Sua conclusã o, note bem, nã o é apenas dele, a despeito do que o norte-americano comum ―
incluindo muitos cristã os norte-americanos ― poderia pensar. Mas, ao que parece, as
opiniõ es de muitos cientistas e filó sofos nã o têm sido tã o divulgadas ou convincentes
quanto as invençõ es científicas do século XX.
Na mente moderna há uma crença profundamente arraigada, nã o podendo ser totalmente
traçada até John Dewey ou William James, de que o sucesso é uma prova de verdade. Quem
pode discutir com o sucesso? O envio de homens à Lua nã o implica que os cientistas sabiam
verdades o bastante para enviá -los até lá ? A maior expectativa de vida dos norte-
americanos no século XX nã o prova que a ciência médica sabe mais verdades sobre
nutriçã o e cuidados médicos que sabia no século XIX? Se uma coisa funciona, nã o é
verdadeira?
Acompanhando essa noçã o popular da ciência como um corpo de verdades está uma
admiraçã o e um respeito generalizados por cientistas famosos. Albert Einstein é
provavelmente o mais famoso e talvez o mais respeitado cientista do século XX. Mas duvido
de que muitos dos seus admiradores saibam que ele considerava suas pró prias teorias
como sendo falsas ― suposiçõ es brilhantes, mas nã o verdadeiras. Na sua biografia de
Einstein, Ronald W. Clark relata uma conversa entre o famoso físico e o Dr. Chaim
Tschernowitz:
 
Uma contemplaçã o dos princípios primeiros ocupou progressivamente a atençã o de Einstein. Um
visitante, Dr. Chaim Tschernowitz, deu um relato vívido de uma viagem de verã o que tivera com ele
em Havelsee, durante a qual suas discussõ es eram frequentemente metafísicas. “A conversa avançava
e recuava, de profundidades sobre a natureza de Deus, do Universo e do homem a questõ es de
natureza mais leve e animada…”, escreveu ele. “De repente [Einstein] ergueu sua cabeça, olhou para
cima ao céu claro e disse: ‘Não sabemos nada, de fato, sobre isso tudo. Todo o nosso conhecimento
nã o passa de um conhecimento de colegiais’.
     “‘Você acha’, perguntei, ‘que jamais sondaremos o que está oculto?’
     “‘Possivelmente’, disse ele com um movimento de ombros, ‘nó s saberemos um pouco mais do que
sabemos agora. Mas a natureza real das coisas, esta nó s jamais saberemos, jamais’”. [1]

 
Essa visã o da ciência, de nã o fornecer a verdade, tem sido objeto de longos debates por
outros filó sofos. Por exemplo, o filó sofo britâ nico Karl Popper escreveu vá rios livros sobre
filosofia da ciência em que argumenta que a ciência, ao invés de se consistir num corpo de
verdades provadas, como muitos acreditam, consiste nada mais que de suposiçõ es e
suposiçõ es refutadas. Escreve Popper:
 
Em primeiro lugar, embora façamos na ciência o nosso melhor para encontrar a verdade, estamos
cientes do fato de que jamais podemos ter certeza de que a alcançamos… Nó s sabemos que nossas
teorias científicas permanecem sempre como hipó teses… Na ciência não existe “ conhecimento ” no
sentido em que Platã o e Aristó teles entendiam a palavra, no sentido que implica finalidade; na
ciência jamais temos razõ es suficientes para crer que obtivemos a verdade… Einstein declarou que
sua teoria era falsa ― disse que ela seria uma aproximação maior da verdade do que a de Newton,
mas deu razõ es por que nã o a consideraria uma teoria verdadeira ainda que todas as prediçõ es se
confirmassem. [2]

 
Em outro livro, Popper escreveu:
 
Nossas tentativas de ver e encontrar a verdade nã o sã o finais, mas abertas a aperfeiçoamentos; …
nosso conhecimento, nossa doutrina, é conjectura; …consiste de suposiçõ es, hipó teses, em vez de
verdades certas e finais. [3]

 
Para a resposta previsível de que, embora possam nã o ser verdadeiras, as teorias
científicas sã o pelo menos altamente prová veis, Popper (e Gordon Clark) responde: “Pode
ser mesmo mostrado que todas as teorias, incluindo as melhores, têm a mesma
probabilidade, a saber, zero”. [4]

Qual a importâ ncia disso tudo? Por que é necessá rio criticar uma disciplina que tem
concedido tantos benefícios ó bvios a tantas pessoas e que é mantida em tã o alta conta?
Bem, nã o é tanto a disciplina em si que deve ser atacada, mas as concepçõ es errô neas e
populares a seu respeito. Na mentalidade popular, a ciência é a principal, se nã o a ú nica,
forma de descobrir a verdade. Precisamente porque a ciência é mantida em tã o alta conta é
que se faz necessá rio lembrar à s pessoas o que ela é. Evangelistas científicos zelosos como
Jacob Bronowski, Julian Huxley, Ernst Haeckel e Carl Sagan têm proclamado que a ciência é
o guia definitivo para a verdade; e eles têm registrado a histó ria da guerra entre a ciência e
o cristianismo. Por causa dos incansá veis esforços dos evangelistas científicos, “todo
mundo sabe” que Galileu foi martirizado por acreditar que a Terra se move e que Serveto ―
nã o tivesse sido queimado na estaca por Calvino ― teria descoberto a circulaçã o sanguínea.
Na mentalidade popular, “Foi provado cientificamente” substituiu a fó rmula bíblica “Assim
diz o Senhor”.
A Bíblia e a ciência representam autoridades conflitantes, e é o propó sito de A Filosofia da
Ciência e a Crença em Deus mostrar que as crenças populares sobre a ciência sã o falsas.
Fossem os limites e usos apropriados da ciência compreendidos, nã o haveria necessidade
deste livro. Porém, como a ciência se tornou um ídolo na mente de muitos, a natureza dela
deve ser minuciosamente discutida.
Um dos problemas da ciência é que, ao contrá rio da Bíblia, ela é bastante iló gica. No seu
ensaio “Limitaçõ es do Método Científico” [ Limitations of Scientific Method ], o matemá tico,
ló gico e filó sofo inglês Bertrand Russell fez a seguinte observaçã o:
 
Todos os argumentos indutivos se reduzem em ú ltimo caso à seguinte forma: “Se isto é verdade,
aquilo é verdade: ora, aquilo é verdade, logo isto é verdade”. Esse argumento, claro, é formalmente
falacioso. Suponha que eu dissesse: “Se pã o é uma pedra e pedras são alimentos, este pã o me
alimentará ; ora, este pão me alimenta; logo ele é uma pedra e pedras são alimentos”. Se eu
promovesse um argumento como esse, certamente seria taxado de tolo; porém ele nã o seria
fundamentalmente diferente do argumento no qual todas as leis científicas estã o baseadas.
 
Isso equivale a dizer que todas as leis científicas sã o baseadas em argumentos falaciosos.
O cristianismo, é claro, nã o depende da induçã o, experimentaçã o, observaçã o ou da
experiência; seu método é a revelaçã o proposicional e a deduçã o rigorosa a partir de
proposiçõ es reveladas, pois é somente através da revelaçã o que a verdade pode ser obtida.
No século sexto antes de Cristo, o poeta grego Xenó fanes de Có lofon já havia entendido o
contraste entre a revelaçã o e a ciência, pois escreveu:
 
Os deuses nã o desvendaram, desde o princípio,
tudo para nó s; mas com o passar do tempo,
procurando, os homens descobriram o melhor…
Estas coisas, conjecturamos, sã o aná logas à verdade.
Mas quanto à verdade certa, nenhum homem a tem conhecido,
nem virá a conhecê-la; tampouco sobre os deuses,
nem, ainda, acerca de todas as coisas das quais falo.
E mesmo se acontecesse de pronunciar a verdade final,
ele pró prio nã o a conheceria:
pois tudo nã o passa de uma rede tecida de palpites.
 
Assim como Xenó fanes, afirmamos que à parte da revelaçã o tudo nã o passa de uma rede
tecida de palpites. Mas ao contrá rio de Xenó fanes, foi-nos dada uma revelaçã o nos sessenta
e seis livros do Antigo e Novo Testamentos. Sã o essas Escrituras, somente essas Escrituras
e nã o os métodos dos cientistas, que nos dã o a verdade. É na Palavra de Deus que devemos
acreditar, nã o em nossa pró pria experiência. Nã o abandonemos essa Palavra, como fez Eva
no Jardim, só porque a ciência nos parece “agradá vel ao paladar, atraente aos olhos e
desejá vel para dela se obter discernimento”. A ciência é falsa e sempre deverá ser falsa. A
Escritura é verdadeira e sempre deverá ser verdadeira. A questã o é tã o clara e simples
como isso.
 
 
 
— John W. Robbins
 
 
 
 
 
 
 

INTRODUÇÃO
 
 
Vá rios cientistas e diversos filó sofos têm usado conclusõ es científicas num ataque contra a
religiã o. Alguns negam a possibilidade de milagres, mas admitem a existência de Deus;
outros sã o completamente naturalistas e excluem Deus totalmente.
David Hume, por exemplo, descartou tanto os milagres como Deus. Ele fez um ataque total
aos milagres, comparando o relato neotestamentá rio da ressurreiçã o de Cristo a um rumor
fantá stico de que a Rainha Elizabeth tinha levantado dos mortos. Hume também nã o deixou
espaço para Deus ao propor uma cosmologia na qual o Universo, em vez de ser uma criaçã o
divina com uma histó ria finita, era retratado como um eterno vegetal. Mas Hume era um
filó sofo, e filó sofos que baseiam suas teorias em conclusõ es científicas nã o devem ser
ignorados; contudo, para julgá -los adequadamente, é sá bio examinar, antes de qualquer
outra coisa, a ciência e os cientistas envolvidos.
As teorias de muitos cientistas apoiam a visã o de Hume. Porque a rejeiçã o dos milagres tem
sido tã o frequente e disseminada, apenas um exemplo será citado aqui. Austin Farrer, no
seu ataque ao cristianismo ortodoxo, declara que é cientificamente necessário (itá lico seu)
recusar-se a crer que o Sol parou para Josué. A questã o mais ampla entre teísmo e
[5]

ateísmo, entretanto, é mais importante do que a questã o dos milagres; e vá rias amostras
dadas aqui do que virá mais tarde sã o antecipaçõ es oportunas. A partir da conclusã o
alegadamente científica de La Mettrie de que nã o existe alma, o Barã o d’Holbach inferiu que
Deus nã o existe. Alguns anos mais tarde Cabanis defendeu a negaçã o da alma ao identificar
o pensamento como uma secreçã o física do cérebro. O cientista alemã o Bü chner negou que
o pensamento fosse uma secreçã o, mas ao identificá -lo como um movimento do cérebro,
insistiu em seu ateísmo ainda mais vigorosamente: “Onde há três estudantes da natureza,
há dois ateus”. Como a ciência havia chegado a essa posiçã o é uma boa parte da histó ria
seguinte.
Os teó logos que respondem a esses ataques estã o em desvantagem. Quando um cientista ou
filó sofo argumenta contra a religiã o, nã o precisa saber muito sobre religiã o; mas quando
um teó logo discute ciência, precisa saber bastante. O cientista pode se virar sem saber nada
além do fato de que os cristã os creem que Deus é um espírito incorpó reo; mas do teó logo é
exigido debater sobre espaço, tempo, movimento, energia, eletrodinâ mica, o sistema solar,
teoria quâ ntica, relatividade e outros itens diversos.
Há outra coisa que o teó logo deve saber — algo mais importante. Além de uma seleçã o de
fragmentos específicos de informaçã o, como os detalhes recém mencionados, o teó logo
precisa ter uma visã o geral da ciência como um todo. Ele precisa ter uma filosofia da
ciência; isto é, ele precisa saber o que é ciência. Obviamente ele nã o poderá comparar,
contrastar ou relacionar religiã o e ciência a menos que conheça ambas. Isso também vale
para o cientista. Talvez o cientista possa se virar com um conhecimento mínimo de religiã o,
mas ele certamente deveria saber o que é ciência. Muitos cientistas têm uma enorme
quantidade de informaçõ es técnicas detalhadas sobre eletrodinâ mica e teoria quâ ntica, e,
todavia, carecem de uma visã o geral nã o meramente de teologia, mas de ciência. Por
estranho que possa parecer, frequentemente um artista talentoso tem pouca ideia do que é
arte; da mesma forma, um homem pode ser um cientista especialista sem saber o que é
ciência. Mas qualquer argumento a favor da religiã o ou contra ela, qualquer argumento que
reivindique suporte científico, depende mais das implicaçõ es filosó ficas da ciência do que
de fragmentos de informaçã o detalhada. A pessoa tem de encaixar sua ciência numa
filosofia geral. É preciso considerar o alcance e as limitaçõ es da aplicaçã o científica. É
preciso saber o que a ciência realmente é. Portanto, a maior parte do presente estudo, que
traça a histó ria da ciência desde as construçõ es teístas mais antigas até as posiçõ es
antirreligiosas mais recentes, será uma tentativa de dizer o que a ciência é: uma tentativa,
em outras palavras, de esboçar uma filosofia da ciência. Tanto o cientista como o teó logo
sã o convidados a seguir o argumento, e nã o é uma conclusã o precipitada dizer que o
cientista ficará mais descontente do que o teó logo.
A filosofia da ciência nã o é um tema restrito e sem importâ ncia. Nem tampouco a religiã o.
Mas para aqueles que nã o se aprofundaram em filosofia, em ciência ou em religiã o, outro
motivo ― mais preliminar e superficial ― pode ser dado para se manter a atençã o sobre o
assunto.
Nossa civilizaçã o, na sua dependência dos telefones e da televisã o, dos automó veis e aviõ es
a jato, dos modernos manufaturados e computadores, é permeada de ciência. O
pensamento contemporâ neo, o pensamento dos nã o cientistas e nã o teó logos, está
amplamente baseado na visã o científica de mundo. O método científico é dito ser o melhor
― na verdade o ú nico ― método de resolver qualquer problema, de forma que em todos os
debates é a ciência, e nã o a teologia, que tem a ú ltima palavra. Visto que toda pessoa
inteligente e curiosa deseja naturalmente compreender sua pró pria época, ela deve estar
preparada para dar à ciência uma atençã o contínua.
Isso nã o é fá cil. A ciência contemporâ nea é extremamente complexa. Porém, nã o é a
evidente complexidade, nã o é o acú mulo infinito de detalhes específicos, nã o sã o as
complexidades da matemá tica avançada nem tampouco os equipamentos extremamente
caros para levar um homem ao espaço a maior e mais importante dificuldade. As coisas
mais simples sã o as mais difíceis. Nada é mais difícil de explicar do que o simples fenô meno
de uma bolinha de gude rolando sobre uma mesa. E foi mesmo um dos melhores cientistas
modernos quem reconheceu estar absolutamente perplexo com o fato de que ao se pegar
um lá pis por uma das extremidades a outra vem junto.
Esses problemas simples sã o bá sicos; portanto, sã o muito antigos. Homens de outras
épocas têm lutado com eles. E, de modo geral, pode-se dizer que a superestrutura da
ciência em qualquer época depende de como a açã o de uma bolinha de gude rolar ou uma
pedra cair é entendida. Portanto, esta monografia dividirá a histó ria da ciência em três
capítulos, correspondendo a três épocas científicas caracterizadas em grande parte por
suas visõ es divergentes sobre como um corpo se move.
Em primeiro lugar haverá um capítulo sobre “Antiguidade e Movimento”. Movimento, o
simples fato de que as coisas se movem e mudam, é o fenô meno científico bá sico e mais
universal. Seu estudo iniciou na Grécia quase vinte e cinco séculos atrá s; e visto que, em
toda a superioridade da qual se gaba, o pensamento recente tem relativamente pouco mais
a oferecer sobre a dificuldade principal, os argumentos podem manter assim a sua forma
antiga.
Em segundo, o mecanicismo moderno deve ser discutido. Trata-se da física empírico-
matemá tica que começou com Galileu e se desenvolveu sem nenhuma ruptura séria até o
início do século XX. Por causa da figura dominante de Sir Isaac Newton, ela pode ser
chamada de “Ciência Newtoniana”.
Em terceiro lugar, alguns experimentos desconcertantes foram realizados por volta da
virada do século. As mudanças na teoria científica que esses experimentos iniciaram se
provaram muito mais revolucioná rias do que a princípio se suspeitava. De fato, os avanços
mais recentes têm deixado os cientistas ofegantes. As coisas se tornaram tã o
desorganizadas e confusas que alguém poderia ficar tentado a intitular o terceiro capítulo
de “A Confusã o Contemporâ nea”. Mas, para nã o assustar os tímidos nem pré-julgar o caso
antes de ele ser conhecido, nó s nos contentaremos com o título inó cuo “O Século XX”.

1. ANTIGUIDADE E MOVIMENTO
 
 
A ciência, ou pelo menos este capítulo sobre a ciência, começa com um estudo do
movimento. Se nã o houvesse movimento, nã o haveria ciência. A física poderia existir na
ausência de eletricidade, e a zoologia absolutamente nã o requer borboletas. Mas nem uma
nem outra poderia funcionar sem o movimento. Quer na física, quer na zoologia, os
fenô menos examinados ou sã o as causas e efeitos do movimento, ou sã o os pró prios
movimentos.
Movimento ou mudança é um elemento extremamente familiar na nossa experiência. As
plantas crescem, e os planetas giram. Dificilmente algo pode ser mais trivial do que um
lá pis ou uma bola rolando sobre uma mesa até cair. Mas dificilmente algo pode ser mais
difícil de explicar. A maioria das pessoas simplesmente toma o movimento como algo
corriqueiro e nã o reflete sobre ele. Elas nunca supõ em que ele tem de ser explicado. Elas
nã o veem que ele apresenta algum problema. O primeiro objetivo desta seçã o será de
trazer as dificuldades à luz. Assim como uma criança cujo pai sempre a levou a andar em
volta de um carro pode, na adolescência, querer saber como um carro funciona e começar a
estudar os princípios de um motor a combustã o interna, o universitá rio, o cientista e o
teó logo deveriam parar de tomar o movimento como algo corriqueiro e começar a ver que
ele apresenta alguns quebra-cabeças peculiares.
 
Os paradoxos de Zenão
 
Um desses quebra-cabeças foi revestido de grande habilidade literá ria por um antigo
filó sofo grego, Zenã o o Eleá tico (c. 450 a.C.). A histó ria que ele conta é tã o boa que a
realidade do quebra-cabeça intelectual é muitas vezes perdida na diversã o. Ela é a histó ria
da famosa corrida entre Aquiles e a tartaruga.
Uma das fá bulas de Esopo fala de uma tartaruga vencendo a corrida com uma lebre por
causa da soneca autoconfiante desta; mas na histó ria de Zenã o, uma histó ria muito melhor
que a de Esopo, a tartaruga vence por pura inteligência. A tartaruga tinha desafiado Aquiles
para uma corrida, e foi nos termos desse desafio que a genialidade acabou ficando
demonstrada. Os termos eram simples: à tartaruga seria dada a vantagem inicial de já
partir de certa distâ ncia, e Aquiles nã o seria considerado vencedor enquanto nã o
alcançasse a tartaruga. Termos simples ― enganosamente simples. Ao tiro da pistola de
Zenã o o Eleá tico, a corrida mais famosa de toda a histó ria teve início. Porém, quando
Aquiles, cuja velocidade era lendá ria, chegou ao ponto de onde a tartaruga iniciara a
corrida, a tartaruga obviamente nã o estava mais lá . Durante o intervalo ele fez um lento
progresso. Lento, sem dú vida; mas um progresso, apesar de tudo. Ao contrá rio da lebre de
Esopo ― para começar, Aquiles ainda nã o estava à frente da tartaruga ―, Aquiles nã o parou
para tirar uma soneca; ele continuou a correr. Agora, quando Aquiles, por sua lendá ria
velocidade, chegou ao ponto onde a tartaruga esteve quando Aquiles tinha estado no ponto
do qual a tartaruga partira, a tartaruga obviamente nã o estava mais lá . Durante o intervalo,
curto que foi, ele fez um pequeno progresso. Pequeno, sem dú vida; mas um progresso,
apesar de tudo. Aquiles ainda nã o estava em condiçõ es de imitar a lebre de Esopo; ele
continuou a correr. Agora, quando Aquiles, por sua lendá ria velocidade, chegou ao ponto
onde a tartaruga esteve quando Aquiles tinha estado no ponto do qual a tartaruga há muito
partira, a tartaruga obviamente nã o estava mais lá . Durante o intervalo, curto que foi, ele
fez um pequeno progresso. Pequeno, sem dú vida; mas um progresso, apesar de tudo. Bem,
essa histó ria, mesmo sem tirar uma soneca a cada repetiçã o, começa a se tornar longa
demais. O resultado de tudo isso é que, toda vez que Aquiles chegava ao ponto onde a
tartaruga tinha estado, a tartaruga nã o estava mais lá . Como isso acontecia o tempo todo,
nã o houve um momento em que o sempre veloz Aquiles conseguiu alcançar a tartaruga
eleá tica.
Nesse ponto, a maioria das pessoas ri da piada e sem pensar muda o assunto da conversa.
Quem seria tã o estú pido para explicar uma piada? Mas a pergunta deveria ser: Quem seria
suficientemente esperto para explicar essa piada? Embora mais de dois mil anos tenham se
passado desde que Zenã o contou essa histó ria, nenhuma refutaçã o dela obteve até agora
um consenso universal. Uma das respostas superficiais seria a de simplesmente calcular a
distâ ncia que Aquiles poderia percorrer em dez minutos (facilmente um quilô metro) e a
distâ ncia que a tartaruga poderia rastejar no mesmo intervalo de tempo (dificilmente cem
metros). Essa aritmética elementar mostraria que se a tartaruga tivesse originalmente uma
vantagem de duas ou três centenas de metros, Aquiles estaria muito à frente da tartaruga.
Esse é um entendimento superficial, e Zenã o nã o aceitaria essa resposta, porque pressupõ e
um fator que Zenã o nã o admite. Claro, se Aquiles pudesse correr por dez minutos,
indubitavelmente deixaria o nosso lento, mas paciente amigo para trá s; porém a
genialidade da tartaruga em definir as condiçõ es iniciais pelas quais venceu a corrida
depende do fato de que Zenã o nã o está pronto a reconhecer que Aquiles pode correr por
dez minutos. Ele nã o está pronto a reconhecer que Aquiles pode sequer correr.
Ao despir o quebra-cabeça do seu ornamento literá rio, Zenã o o apresenta nos seus termos
claros. Considere uma bolinha de gude rolando sobre uma mesa ou, para ser bem científico,
considere um á tomo se movendo de um ponto para outro no espaço. Antes de o corpo em
movimento poder alcançar o ponto final, ele precisa ter obviamente cruzado metade da
distâ ncia. Certamente, o corpo nã o pode chegar ao final antes de haver passado pelo ponto
médio. Mas antes que possa alcançar o ponto médio, ele precisa ter percorrido a quarta
parte da distâ ncia. E, antes disso, ele precisa ter percorrido um oitavo da distâ ncia, um
dezesseis avos, e assim por diante. O “assim por diante”, todavia, é uma série infinita, o que
significa que o corpo em movimento precisa ter exaurido uma série infinita antes de
começar realmente a se mover. Como, no entanto, uma série infinita é precisamente uma
série que nã o pode ser exaurida, segue-se que uma bolinha de gude ou um á tomo jamais
pode começar a se mover. O movimento é impossível.
Portanto, Aquiles jamais alcançou a tartaruga.
A primeira reaçã o de uma mente norte-americana sadia, uma mente que nunca teve muito
interesse em atividade intelectual e permanece num estado de caos indisciplinado, é
rejeitar a coisa toda como um disparate. É claro que o movimento é possível! Por que se
preocupar com isso? Bem, há uma boa razã o para se preocupar com isso. Carros também se
movem, certo? Ao menos, havendo uma falha no argumento de Zenã o, carros se movem. E é
o norte-americano nã o intelectual, acima de tudo, quem acha que vale a pena estudar
motores a combustã o interna. Agora, se a engenharia automotiva requer em ú ltimo caso
um conhecimento de matemá tica, nã o devemos tropeçar no estudo do movimento (á tomos
se movem, nã o é mesmo?) só porque ele envolve ló gica e séries infinitas.
Outra tentativa superficial de resolver o problema depende do equilíbrio entre a
divisibilidade infinita do espaço e a divisibilidade infinita do tempo. Se Aquiles deve exaurir
uma série infinita de espaços, ao menos tem uma série infinita de tempo para fazê-lo. Isso é
bastante tempo, e assim ele logo ultrapassa a tartaruga. Mas esse artifício meramente
duplica o problema. A dificuldade da divisibilidade infinita irá impedir o tempo de começar
a correr tanto quanto efetivamente impediu o movimento de começar. Para contornar
essas duas dificuldades ― elas sã o, como você percebe, exatamente a mesma dificuldade
aplicada duas vezes ―, Aristó teles ( Física , VIII, 8) argumentou que o corpo em movimento
nã o passa, na verdade, por uma série infinita de pontos. Zenã o, diz Aristó teles, trata um
ponto, o ponto médio, como se fossem dois. Ele o toma tanto como fim e início de um
movimento. Mas esse só pode ser o caso se o corpo em movimento para nesse ponto e
entã o começa a se mover de novo. Se o corpo está em movimento contínuo, nenhum desses
pontos médios é “atualizado”. Os pontos e as divisõ es sã o apenas potenciais, e nã o existem
realmente. Assim, embora seja impossível passar por ou exaurir um nú mero infinito de
pontos reais, nã o há nenhuma dificuldade em passar por um nú mero infinito de pontos
potenciais.
Se essa soluçã o levanta suspeita ― e parece haver algo estranho, nã o é mesmo? ― talvez o
paradoxo de Zenã o nã o seja tã o absurdo quanto inicialmente poderia parecer.
Possivelmente, o movimento é de fato um pouco difícil de entender.
Há ainda outra tentativa de responder a Zenã o. Alguém pode protestar que como uma série
infinita nã o tem um ú ltimo termo, Zenã o nã o pode exigir que o corpo em movimento
alcance o ú ltimo termo antes de começar a se mover. Ele nã o pode levantar como barreira
ao movimento um fator que reconhecidamente nã o existe. E demais a mais, Zenã o disse que
era necessá rio alcançar o ú ltimo termo? Será que seu paradoxo nã o permanecerá se ele
simplesmente afirmar que o movimento nã o pode começar enquanto existirem mais
termos na série? Isso já bastará .
Bem, talvez um expediente ligeiramente diferente permitirá ao corpo se mover. Admitamos
que em qualquer espaço finito exista de fato um nú mero infinito de pontos. Admitamos
também que para se mover daqui para lá um corpo deve passar por todos esses pontos.
Mas neguemos que o corpo deve passar por cada um desses pontos. Isto é, nó s podemos
alegar, Zenã o confundiu um “todos” coletivo com um “cada” distributivo . Ele supô s
erroneamente que o que quer que seja verdade de um, deve ser verdade do outro. No
entanto, há muitos exemplos em que o todo coletivo tem qualidades muito diferentes do
cada distributivo. Pegar cada prego nesse barril é fá cil, mas pegá -los todos é difícil. Da
mesma forma, o que é verdade em cada caso nã o é necessariamente verdade no geral.
Aristó teles argumenta que embora, para cada um dos três tipos de triâ ngulo, seja provado
um teorema, nã o fica provado nisso um teorema para o triâ ngulo em geral. Ou, por fim,
cada elemento de um composto tomado individualmente pode ser venenoso (NaCℓ), mas o
todo pode ser bom para ingerir. Zenã o, assim, estava enganado, pois insistia que um corpo
em movimento deve passar por cada ponto, quando a bem da verdade só precisa passar
por todos eles. Essa soluçã o também é suspeita? Sejamos cautelosos. Nã o há muito mais
soluçõ es, e se nã o podemos decidir sobre uma delas, podemos ser forçados a concluir que o
movimento é impossível. E onde estaria a ciência entã o, pobre coitada?
 
 
O fluxo heracliteano
 
Como nã o podemos parar aqui mais outros dois mil anos para elaborar respostas melhores
a Zenã o, devemos prosseguir como se essas objeçõ es jamais tivessem sido levantadas.
Vamos bani-las da nossa memó ria. Resolvamos nã o pensar sobre elas. Devemos, sem mais
demora, simplesmente assumir que as coisas estã o em movimento. Um dos primeiros
filó sofos a estudar o movimento, na verdade o primeiro filó sofo a fazer do movimento o
principal objeto do seu estudo, concluiu nã o só que as coisas estã o em movimento, como
também que todas as coisas estã o em constante movimento.
O slogan de Herá clito (c. 500 a.C.) era “Tudo flui”. Ele comparou o Universo a um rio com
novas á guas continuamente sucedendo as anteriores. Nada permanece em repouso; tudo
muda. Portanto, nã o se pode entrar no mesmo rio duas vezes. Se o rio consiste de á gua, e a
á gua nunca é a mesma, o rio nunca é o mesmo; logo, ninguém pode entrar no mesmo rio
duas vezes. Se fosse feita uma tentativa de evitar essa conclusã o forçando a ilustraçã o, e se
fosse observado que um rio tem leito e margens tanto quanto tem á gua, Herá clito
responderia que o leito e as margens estã o constantemente erodindo e nunca permanecem
iguais. Até o mais ínfimo cascalho ou partícula de areia está constantemente se
modificando. Nada permanece igual.
Há também outra razã o por que um homem nã o pode entrar no mesmo rio duas vezes. Nã o
é só o rio que muda; a pessoa também muda. Nada do homem permanece igual; de sorte
que nas duas vezes nã o é o mesmo homem que entra no rio.
Embora Herá clito fosse um grego antigo, a universalidade do movimento nã o é uma ideia
estranha nos tempos modernos. Costumava-se considerar os á tomos internamente está veis
e só lidos, mas com a divisã o do á tomo veio a ideia de que o á tomo é mais ou menos como
um sistema solar em miniatura cujas partes giram em torno de um nú cleo central. Ainda
mais, o nú cleo do novo á tomo e seus satélites nã o sã o geralmente considerados esferas
só lidas, mas toda a matéria do Universo é supostamente uma espécie de campo de energia
palpitante onde nada é está vel. Indubitavelmente, os cientistas modernos e os filó sofos
contemporâ neos divergem sobre vá rios detalhes e até mesmo sobre questõ es substantivas;
mas a ideia da mudança universal, ao menos, nã o é estranha em nossa época atual. Por esse
motivo as implicaçõ es que Herá clito e seus discípulos tiraram das visõ es deles, de que
todas as coisas fluem, sã o consideraçõ es que devem ser guardadas em mente até mesmo
hoje.
Foi Crá tilo, um discípulo, em vez de Herá clito, quem extraiu algumas dessas conclusõ es.
Nosso principal interesse aqui, evidentemente, é a aná lise do conceito de mudança
universal, nã o o preciso desenvolvimento histó rico. A questã o, portanto, é: Se todas as
coisas mudam, se nada permanece em repouso, o que resulta disso?
Platã o observa causticamente que os heracliteanos exemplificam seu princípio no fato de
que suas opiniõ es nunca permanecem iguais. Eles nunca respondem a mesma questã o duas
vezes da mesma forma. Suas mentes fluem tã o constantemente como seu rio. Crá tilo,
porém, foi capaz de escapar da acusaçã o de Platã o. Sempre que se lhe fazia uma pergunta,
nã o importava qual fosse, ele dava a mesma resposta. Apenas que a resposta nã o era em
palavras, mas com um aceno de mã o.
Talvez Crá tilo fosse consistente; talvez a teoria do movimento universal tornasse o
discurso inteligível algo impossível. Vamos ver. Se o rio está constantemente mudando, ele
pode mesmo ser chamado de rio? Quando chamamos uma coisa de rio, ou mesmo de
nuvem, acreditamos que ela continua sendo um rio ou uma nuvem por certo espaço de
tempo. Rios presumivelmente duram mais tempo que nuvens; mas até mesmo uma nuvem,
para ser chamada como tal, deve durar tempo bastante para ser assim reconhecida e
nominada. Algo nela, ao menos alguma coisa, precisa permanecer igual e nã o mudar, ou do
contrá rio ela nã o será o que a chamamos. Com isso nã o queremos dizer que o rio deve
permanecer inalterado em todos os aspectos; nem que ele deve permanecer para sempre
inalterado em algum aspecto. Mas a menos que algo (ser um rio) nã o mude em outra coisa
(nã o ser um rio), o nome nã o teria qualquer sentido. Por conseguinte, a possibilidade do
discurso inteligível pressupõ e a existência de entidades que permanecem inalteradas por
algum tempo finito; e, inversamente, a teoria da mudança universal torna o discurso e o
conhecimento impossíveis.
No Timeu , Platã o produziu uma boa ilustraçã o desse ponto. Ele supõ e que um escultor
há bil esteja modelando uma está tua em ouro. O ouro é macio, maleá vel e pode ser
trabalhado de forma rá pida. Para propó sitos ilustrativos, podemos acelerar o processo
para enfatizar o ponto. O escultor agora modela uma está tua de Zeus, e um dos
espectadores pergunta a você no que ela consiste. Mas o escultor nã o para de modelar no
momento em que Zeus aparece no ouro; ele segue em velocidade constante. E antes que
você possa dizer Zeus, a está tua já nã o é mais Zeus. Talvez ela comece a tomar a forma de
Só crates ou de um centauro. Mas toda vez que você se sente seguro para chamá -la de
alguma coisa, ela já mudou. Ela nã o é alguma coisa; ela nã o é nada.
É claro, alguém poderia dizer que ela é ouro. Ela poderia nã o ser Zeus ou um centauro, mas
certamente é uma coisa, ela é ouro. Em resposta a essa réplica nó s teríamos de desenvolver
as implicaçõ es de Platã o um pouco além da ilustraçã o explícita. Somos tentados a chamá -la
de ouro, nã o é mesmo, porque o ouro em si se manteve inalterado ao longo do processo.
Mas suponha, novamente, que o ouro nã o permaneceu inalterado. Suponha que durante o
processo de modelagem o pró prio ouro esteve mudando para barro. Suponha, também, que
tã o logo tenha parecido ser apenas barro, ele começou a mudar para cera. Sob essas
condiçõ es, como poderíamos responder à pergunta “O que ele é”? Ele nã o apenas nã o é
Zeus; ele também nã o é ouro; nã o é barro; nã o é cera; nã o é nada. Vale dizer, se uma coisa
está mudando, ela nã o existe; ou, para generalizar, se tudo está mudando, nada existe.
Mudança universal implica nã o existência universal. E isso implica que a mudança é irreal e
a realidade é imutá vel.
Ora, isso soa sempre de novo como Zenã o! Já nã o mostramos mais uma vez que o
movimento é impossível?
 
 
Aristotelianismo
 
O clímax do estudo da antiguidade do movimento é encontrado em Aristó teles. Antes que
as partes mais intrincadas da sua teoria sejam examinadas, a resposta imediata a Herá clito
servirá como um ponto de partida fá cil. Aristó teles concorda que se tudo estivesse sempre
mudando, nada existiria e o conhecimento seria impossível. Portanto, conclui ele, deve
existir algo que nã o muda.
A afirmaçã o de que algo imutá vel existe, pelo menos por um período finito de tempo, nã o
depende apenas do desejo de Aristó teles de defender a possibilidade do conhecimento,
embora a possibilidade do conhecimento seja, é claro, uma questã o muito importante. Mas
a existência de algo imutá vel também está diretamente ligada à possibilidade do
movimento em si. Isto é, para que algo possa se mover, algo deve permanecer imó vel. A
situaçã o em que o movimento acontece é um pouco complicada. Ao expressar uma situaçã o
de movimento ou mudança, nó s dizemos que a folha verde ficou marrom, ou que o rapaz
mal-educado se tornou um homem educado, ou, simplesmente, que a bola de gude rolou
daqui para lá . Em cada caso, algo deve permanecer imutá vel durante a mudança. Uma folha
só pode se tornar marrom se for a mesma folha em ambos os extremos da mudança; uma
bola de gude só pode rolar daqui para lá se for a mesma bola de gude o tempo todo.
Suponha que nã o fosse a mesma folha e a mesma bola de gude. Teríamos entã o visto uma
folha verde e um pouco mais tarde uma folha marrom, mas nã o teria havido nenhuma
mudança, pois nada teria mudado de verde para marrom. Ou um má gico poderia me
enganar substituindo a primeira bola de gude por uma segunda, produzindo assim uma
ilusã o de movimento. Mas se há duas bolas de gude, nenhuma delas rolou daqui para lá . A
primeira nã o rolou porque nã o chegou lá . A segunda nã o rolou porque nã o partiu daqui.
Todo movimento, portanto, requer um sujeito que permanece imutá vel durante o
movimento.
Uma invençã o moderna fornece uma ilustraçã o melhor do que Aristó teles poderia alguma
vez imaginar. Nos filmes nã o há nenhuma imagem que se move. O movimento é todo uma
ilusã o. Nó s pensamos ver a imagem de um homem caminhando ao fundo. Mas sabemos que
há cerca de dezesseis imagens sendo projetadas na tela a cada segundo. Uma das imagens
aparece na tela numa posiçã o fixa e definida. Ela nã o pode se mover. A pró xima imagem
substitui em seguida a primeira, mas num local ligeiramente diferente. O processo todo
consiste em substituir a imagem precedente por outra. O movimento resultante é uma
ilusã o ó ptica, porque nã o há nada se movendo. Movimento, entã o, pressupõ e um substrato
imutá vel.
No entanto, há uma questã o. Movimento pressupõ e indubitavelmente um substrato
imutá vel, mas como sabemos que existe tal substrato, e como sabemos que há movimento?
Talvez a tela da imagem em movimento seja uma boa ilustraçã o do mundo. Por que
deveríamos assumir que existe um substrato diante dos nossos olhos fora do teatro mais
do que há dentro dele? Mesmo alguns teó logos cristã os, de forma bastante surpreendente,
têm defendido uma teoria chamada de criaçã o contínua. Eles supõ em que Deus está
constantemente criando; o mundo nã o pode preservar a si mesmo, e está constantemente
colapsando; a todo instante Deus o recria. Alguns desses teó logos nã o forçam
demasiadamente a formulaçã o, mas alguns poucos parecem sugerir que um mundo novo
substitui o anterior dezesseis ou dezesseis centenas de vezes por segundo. Nesse caso, nã o
haveria nada que pudesse se mover; cada coisa existiria momentaneamente num ponto
fixo. Agora, por que isso nã o poderia ser verdade? Existe alguma evidência, qualquer
evidência convincente, de que algo permanece imutá vel por qualquer período finito de
tempo?
Talvez, porém, estejamos errados em esperar demais do simples repú dio de Aristó teles ao
fluxo heracliteano. Ele tem outros e muito mais profundos argumentos para dar. Essas
teorias intrincadas podem ser mais facilmente compreendidas se forem precedidas de um
breve relato das visõ es contrastantes de Demó crito. Demó crito era um atomista e
mecanicista. Ele nã o gastou nenhum tempo com os paradoxos de Zenã o e foi apenas
indiretamente influenciado pela filosofia de Herá clito; ele simplesmente partiu do
pressuposto de que os á tomos se movem no espaço vazio. Para ele, portanto, o movimento
é um axioma indemonstrá vel, um fato bruto inexplicá vel. Mas embora o movimento como
tal nã o possa ser explicado, cada movimento particular pode. Assim como numa pá gina
anterior alguém tentou dizer que um corpo em movimento poderia passar por todos os
pontos, mas nã o por cada ponto, Demó crito explica aqui cada movimento, mas nã o todos.
Escolha qualquer á tomo que você queira, e seu movimento, sua velocidade e direçã o
poderã o ser explicados pela força e â ngulo de impacto de outro á tomo em movimento. Esse
outro á tomo em movimento, por sua vez, foi antes atingido por outro á tomo, e assim
retrospectivamente ad infinitum . O movimento nunca começou; ele nã o teve nenhuma
fonte original; ele nunca acabará ; ele é um fato bruto fundamental.
Aristó teles, por outro lado, acreditava ser possível explicar nã o apenas cada movimento em
particular, como também o movimento em geral. Ao fazê-lo, rejeitou a filosofia do
mecanicismo e com ela a imagem atomística do mundo. Em vez do mecanicismo, ele
defendeu a teleologia. Em vez de á tomos num vazio infinito, ele assumiu um mundo finito
totalmente cheio. A visã o resultante é difícil de entender, embora nã o deva, por esse
motivo, ser assumida como insustentá vel. O princípio do mecanicismo, evidentemente, é
muito fá cil de compreender, ainda que com Aristó teles alguém finalmente conclua que ele
falha. Nã o resta nada a fazer, entã o, a nã o ser estudar os argumentos em tantos detalhes e
com tanta meticulosidade quanto o nosso interesse possa permitir.
Nã o se pode discordar de Demó crito sob o fundamento de que ele fez certas suposiçõ es
indemonstrá veis. Cada filó sofo e cada sistema de filosofia deve partir de algum lugar, e, por
ó bvio, nada pode ser anterior ao ponto de partida. Para Aristó teles, no entanto, o ponto de
partida nã o é o fato do movimento observado, mas a existência da natureza. “ Que a
natureza existe”, escreve Aristó teles ( Física , II, I), “é algo que seria absurdo tentar provar;
pois é ó bvio que há muitas coisas desse tipo [objetos naturais], e provar o que é ó bvio por
aquilo que nã o é é a marca de um homem que é incapaz de distinguir o que é autoevidente
do que nã o é”.
Agora, a ideia de Aristó teles nã o é tã o simples e ó bvia quanto poderia parecer. Pode-se de
fato supor que os objetos naturais, como á rvores e pedras, sã o pelo menos tã o
autoevidentes quanto o movimento. Na verdade, desde que movimento é sempre o
movimento de objetos como esses, e desde que, portanto, os objetos sã o logicamente
anteriores ao movimento, por que nã o seria melhor começar com aqueles em vez de com
este?
Essa consideraçã o, porém, nã o é um grande suporte ao procedimento de Aristó teles,
porque embora muitas pessoas estejam inclinadas a dizer que a natureza consiste desses
objetos — á rvores, pedras, animais, terra, ar, fogo e á gua —, essa nã o é a definiçã o de
Aristó teles de natureza. Esses objetos sã o naturais; eles têm uma natureza; eles agem de
acordo com a natureza; mas nã o é verdade que eles são a natureza. Natureza, para
Aristó teles, é um princípio de repouso e movimento, imanente nesses corpos per se . Como
a natureza pode ser a causa do repouso é uma questã o que por ora pode ser adiada; para o
presente deve ser notado que a natureza nã o é um objeto, como uma á rvore ou uma pedra,
e tampouco o agregado deles, mas um princípio de movimento no objeto. Demó crito havia
localizado a causa de todo movimento num corpo que nã o era aquele cujo movimento ele
estava explicando; a causa de qualquer movimento é sempre externa ao corpo que é o
sujeito desse movimento. Mas para Aristó teles, a causa do movimento é imanente no
pró prio corpo em movimento. A bem da verdade, Aristó teles reconhece os movimentos
forçados ou nã o naturais que sã o causados pelo impacto. Quando uma pedra é lançada para
cima, a causa é a mã o e o braço que a lançou. Mas esse é um movimento nã o natural ou
violento. Porém, a queda da pedra é natural, tã o natural como o crescimento de uma planta;
e a causa de um movimento natural nã o é um impacto de fora, mas um princípio imanente
no pró prio corpo em movimento. É a natureza desse corpo.
Agora, é de admirar se um princípio imanente de movimento como esse é tã o ó bvio e
autoevidente como o objeto ou o pró prio movimento. Se confiamos na sensaçã o, podemos
dizer que vemos e sabemos imediatamente que as coisas se movem. Mas pode ser
sustentado que uma causa imanente de movimento é imediatamente conhecida? Sem
dú vida algo deve ser um ponto de partida autoevidente indemonstrá vel; mas é
autoevidente que o movimento natural nã o pode ser explicado por colisã o ou impacto?
Talvez, no entanto, autoevidente nã o signifique imediatamente percebido . Talvez haja um
argumento complicado para mostrar que a teoria mecâ nica do movimento é insatisfató ria.
Talvez, ainda, todas as tentativas falhem, a nã o ser a de Aristó teles, e seu princípio primeiro
tenha sucesso em resolver o problema. Entã o nó s poderíamos dizer que é necessá rio
começar com a natureza concebida como um princípio imanente de movimento e repouso.
A natureza entã o seria autoevidente num sentido muito sofisticado do termo, mas apenas
uma aná lise cuidadosa do argumento pode justificar tal conclusã o.
Em Física , Livro III, Aristó teles começa fazendo um ataque determinado ao problema do
movimento. Ele nã o poupa esforços para chegar a uma soluçã o. E esforço é necessá rio, pois
a explicaçã o do movimento precisa usar os conceitos de continuidade, infinidade, lugar,
tempo e, talvez, vazio. Esse é um problema constante nos temas filosó ficos. Dificilmente se
começa um tó pico antes de descobrir que outro assunto requer primeiro atençã o. Nó s
estamos sempre sendo empurrados para frente ou para trá s até parecer impossível
resolver qualquer problema isolado sem resolver todos. Onisciência é o pré-requisito, e
onisciência é algo difícil de obter. Mas Aristó teles faz um bravo começo.
Primeiro, ele deve definir movimento . Quando alguém se compromete a discutir um
assunto, é vantajoso saber o teor da conversa. Nos primeiros diá logos platô nicos, Só crates
foi capaz de deixar seus adversá rios confusos porque eles nã o sabiam do que estavam
falando. Protá goras nã o podia definir virtude , Eutífron nã o podia definir piedade e Laques,
embora fosse um general do exército, nã o sabia o que era coragem . Assim também, os pré-
socrá ticos nã o conseguiam desvendar o enigma do movimento, principalmente porque nã o
sabiam o que era movimento . Seus conselhos hesitantes eram falhos como definiçõ es.
Dentro dessa seçã o ( Física III, I), Aristó teles formulou a definiçã o de movimento três vezes.
Primeiro ele diz que o movimento é a realizaçã o ─ ele diz, literalmente, a realidade — do
potencial qua potencial. Essa frase enigmá tica é entã o explicada. Quando o que é
construível, na medida em que é construível, é real, está sendo construído; e esse é o
movimento ou mudança chamado de construçã o. Note-se que a casa completa nã o é
construível; ela é construída e o movimento está concluído. A realidade do tijolo e da
madeira também nã o é movimento; até onde os materiais como tal estejam em questã o, o
movimento ainda nã o iniciou. Esse movimento, por conseguinte, é a realizaçã o do
construível qua construível.
Aristó teles deve insistir na importâ ncia do até onde , do qua e do como tal . Bronze é
potencialmente uma está tua, mas a realidade do bronze qua bronze nã o é nem está tua, nem
movimento. Ser bronze e ser mó vel nã o significam a mesma coisa. Ou, mais uma vez, ser
potencialmente saudá vel nã o é o mesmo que ser potencialmente doente; pois do contrá rio
ser realmente saudá vel significaria ser realmente doente. É claro, a mesma pessoa poderia
estar doente ou estar bem, mas as potencialidades sã o diferentes. O movimento, entã o, é a
realizaçã o do potencial qua potencial.
Na segunda vez em que Aristó teles formula a definiçã o, ele diz: “Movimento é a realidade
de um ser potencial quando este, na realidade, nã o opera como sendo o que é, mas como
sendo mó vel”. A terceira formulaçã o, algumas linhas abaixo, é essencialmente uma
repetiçã o da primeira.
Ora, a segunda dessas três formulaçõ es é claramente insustentá vel: é obviamente circular.
Definir movimento como a realidade do mó vel é usar o conceito de movimento na sua
pró pria definiçã o. Como alguém pode saber o que significa móvel , isto é, ser capaz de
mover, sem primeiro entender o que é movimento? Essa circularidade também está
presente no exemplo dado sob a primeira formulaçã o. O que construível significa nã o pode
ser conhecido até que os movimentos de construçã o sejam entendidos. Assim, ou
Aristó teles cometeu uma tolice circular, ou a primeira e terceira formulaçõ es devem de
alguma forma escapar dessa crítica.
Nã o é de todo certo que a segunda formulaçã o seja um mero lapso da pena que é
justificá vel à luz das outras duas. Em Física VIII, I (251a8), uma passagem presumivelmente
se referindo a Física III, I, Aristó teles novamente define movimento como a realidade do
mó vel qua mó vel. Similarmente, algumas pá ginas adiante (257b8), ele diz: “Movimento é
uma realidade incompleta do mó vel”. Parece, entã o, que a nó doa da circularidade é mais do
que apenas superficial.
No entanto, deve ser dada toda oportunidade para Aristó teles rebater essa acusaçã o antes
que um julgamento final possa ser feito. Desde que, portanto, ele fornece duas outras
formulaçõ es, elas também precisam ser examinadas. E deve-se reconhecer que elas ao
menos nã o contêm nenhuma circularidade aparente. Movimento é a realizaçã o do potencial
qua potencial. No entanto, é um pré-requisito afirmar o que se busca dizer com o termo
potencial . Na verdade dois pré-requisitos devem ser satisfeitos. Em primeiro lugar, o termo
potencial deve ser definido sem usar a ideia de movimento, ou, do contrá rio, a circularidade
reaparecerá ; e em segundo, a ideia da potencialidade deve ser apresentada de forma clara e
inequívoca, ou, do contrá rio, toda a física permanecerá vaga e confusa.
A clarificaçã o do conceito de potencialidade é encontrada mais na Metafísica do que nas
discussõ es sobre o movimento. No Livro Delta, Aristó teles afirma: “Potencialidade é uma
fonte de movimento e mudança que está em outra coisa que nã o a coisa movida ou na
mesma coisa qua outra… Potencialidade, entã o, significa a fonte de mudança ou
movimento…” Ao que parece, no entanto, isso nã o é de todo satisfató rio. Na Física
Aristó teles definiu movimento em termos de potencialidade, e agora em Metafísica ele
define potencialidade em termos de movimento. A circularidade, portanto, nã o foi evitada, e
nó s ainda nã o sabemos o que é movimento.
Há , contudo, uma outra passagem. No Livro Teta de Metafísica ( 1048a30-b6), Aristó teles
define realidade:
 
Realidade significa a existência de um objeto, mas não da forma que chamamos potencialidade.
Dizemos, por exemplo, que uma está tua de Hermes está potencialmente no bloco de madeira…
porque pode ser esculpida nele. Também chamamos um homem de estudioso mesmo quando nã o
está estudando, se ele é realmente capaz de estudar… Nã o devemos buscar uma definiçã o de tudo,
mas nos dar por satisfeitos em compreender uma analogia: que assim como aquele que constró i é
para ele alguém que pode construir, assim como aquele que está acordado é para ele alguém que está
adormecido e assim como aquele que vê é para ele alguém que, embora nã o cego, tem os olhos
fechados… a realidade é definida por um membro dessas antíteses e a potencialidade, pelo outro.
 
Mesmo nessa passagem mais extensa, a questã o é se a circularidade foi evitada. Esculpir a
está tua a partir da madeira, estudar e ver sã o movimentos; logo, a potencialidade e a
realidade sã o explicadas com base no movimento. O movimento, entã o, nã o pode ser
corretamente definido em termos de potencialidade.
Mas, diz Aristó teles, isso nã o é uma definiçã o. A potencialidade nã o pode ser definida. Ela
deve ser entendida por analogia. Como aquele que está adormecido é para ele alguém que
está acordado, assim a potencialidade é para a realidade. Agora, o homem que está
adormecido é horizontal, e o homem que está acordado é vertical. É isso o que Aristó teles
quer dizer? Claro que nã o. Mas é difícil entender o que ele quer dizer, pois há muitas
comparaçõ es que podem ser feitas entre homens adormecidos e homens acordados. O
primeiro sonha; o ú ltimo nã o. Como alguém pode escolher que ponto de comparaçã o é
pretendido? Parece, entã o, que mesmo que Aristó teles tenha evitado a aparente
circularidade, ele nã o nos deu um conceito claro e inequívoco de potencialidade.
A ambiguidade da potencialidade e a inutilidade das analogias se tornam mais evidentes
quando Aristó teles sai do movimento para considerar o infinito como uma potencialidade.
O assunto tem a ver com a divisibilidade infinita das linhas e a possibilidade sem fim da
adiçã o. A infinidade, pelo argumento de Aristó teles, é algo potencial, nã o real, pois nunca
pode ser concluída. Agora, há certo sentido em chamar um bloco de madeira de está tua
potencial, já que ele pode ser esculpido numa. Mas um bloco de madeira dificilmente
poderia ser chamado de vela de igniçã o potencial ou de ímã potencial, pois estes nã o
podem ser feitos de madeira. Para mostrar que um objeto é potencialmente alguma coisa é
necessá rio mostrar que numa ocasiã o ou noutra ele se torna essa alguma coisa. O critério
da potencialidade, portanto, é uma instâ ncia de ele haver se tornado real. Mas aqui, na
discussã o da infinidade, Aristó teles diz: “O infinito é potencial. Mas a potencialidade nã o
deve ser tomada no sentido de que a madeira é uma está tua potencial, isto é, que ela será
uma está tua, como se houvesse um infinito que mais tarde se tornasse real. Porém, assim
como o ser tem vá rios significados… assim também o infinito” (206a17-23). E, devemos
acrescentar, assim também o potencial.
Eis aqui, entã o, mais um sentido de potencialidade, nã o claramente relacionado à analogia
do adormecido e do acordado. O que se pode fazer dele? Ouvir que ele é um sentido
diferente do anterior, quando o anterior é em si muito vago, nã o é uma explicaçã o
suficiente para servir de base para resolver o problema do movimento. [6]

Esse argumento poderia agora parecer ter-se tornado muito intrincado. O interesse do
leitor pode ter-se dissipado pelo caminho. Mas a conclusã o deveria ser inquietante o
bastante para sacudi-lo de qualquer tendência ao cochilo. A conclusã o nã o é que Aristó teles
se colocou em um atoleiro; isso seria meramente um fragmento de informaçã o histó rica. A
conclusã o tampouco é, simplesmente, a falta de sentido do conceito de potencialidade e a
inutilidade das definiçõ es analó gicas. Essa é, evidentemente, uma valiosa advertência para
quaisquer filó sofos ambiciosos que estejam inadvertidamente trilhando para um beco sem
saída. Mas há uma conclusã o muito mais inquietante do que todas essas. É que o problema
do movimento permanece sem soluçã o.
Essa falha é bem mais catastró fica do que meramente falhar em decidir se o movimento
depende de um princípio interno, espontâ neo, ou de um impacto externo. Nã o temos a
permissã o de rejeitar Aristó teles e retroceder sobre o movimento como um fato bruto
observado. A aná lise liquidou tanto Demó crito quanto Aristó teles. A razã o é que nã o
sabemos o que é movimento. Nó s nã o temos nenhum conceito de movimento. Nã o temos
nada claramente em vista quando usamos a palavra. Nó s simplesmente nã o sabemos do
que estamos falando. E nos recô nditos do nosso esquecimento ainda espreita o esqueleto
de Aquiles de Zenã o. Talvez o movimento, junto da ciência, seja apenas um absurdo.
 

 
 

2. A CIÊNCIA NEWTONIANA
 
Uma das vangló rias mais difundidas da civilizaçã o moderna é sua superioridade sobre o
medievalismo na ciência. A Idade Média era uma época de ignorâ ncia, superstiçã o e
esterilidade científica. Para nã o mencionar as relíquias dos santos, todo o depó sito de
madeiras da verdadeira cruz e falsificaçõ es como a “Doaçã o de Constantino” e Dionísio, o
Areopagita, a ignorâ ncia na física era evidente no baixo nível de cultura material e conforto
corporal. Nesse aspecto, a Idade Média foi inferior até mesmo à Antiguidade, visto que seus
melhores homens tinham pouco entendimento ou controle dos processos naturais.
Por outro lado, os tempos modernos sã o superiores além da comparaçã o. Conhecimento,
descobertas e invençõ es têm ocorrido em profusã o surpreendente. Obviamente a
construçã o dessa nova civilizaçã o, mesmo o primeiro passo dessa construçã o, foi um
avanço de primeira ordem. O que explica isso? Nã o pensemos que os homens da
Renascença, que lançaram as bases dessas realizaçõ es, tinham mais poder cerebral que os
antigos e os escolá sticos. Aristarco, Arquimedes e Ptolomeu eram cientistas brilhantes; e os
estudiosos medievais, poucos que fossem em nú mero, e ainda que mais metafísicos que
científicos, eram extremamente argutos. A diferença depende mais dos problemas
abordados e dos métodos usados.
Os químicos medievais, chamados entã o de alquimistas, escolheram como seu problema
principal a reduçã o de metais menos nobres a ouro. O problema pode ser e foi resolvido,
mas é um dos mais difíceis problemas físico-químicos imaginá veis. Nã o poderia haver
problema pior para iniciar a química. Os métodos da Idade Média eram totalmente
incapazes de lidar com ela. Na verdade, a metodologia científica da Idade Média podia lidar
com muito pouco. Foi a Renascença, o novo nascimento do conhecimento, que descobriu o
que nó s agora familiarmente chamamos de método científico; e o propó sito final desta
discussã o é afirmar, explicar e analisar esse método; pois a ciência e o método científico sã o
o interesse intelectual dominante dos tempos modernos e a base da nossa civilizaçã o.
Uma das diferenças mais ó bvias entre o método medieval e o moderno, e até mesmo entre
o interesse antigo e o moderno, foi o desprendimento de sofismas inú teis e fantasiosos.
Essa nova geraçã o nã o dava atençã o para quebra-cabeças ingênuos sobre Aquiles e a
tartaruga. Ela nã o se importava em provar que o movimento ocorre nem tampouco
perderia tempo com explicaçõ es ou definiçõ es fú teis do movimento em geral. Aristó teles
nã o tinha definido o movimento apenas, mas também dado um relato cuidadoso do tempo.
Sir Isaac Newton, porém, disse: “Eu nã o defino tempo , espaço , lugar e movimento como se
fossem coisas bem conhecidas de todos”. Deixando todo sofisma estéril para trá s, eles se
lançaram a uma investigaçã o direta da natureza. O resultado é que hoje, ao invés de
ignorâ ncia e analfabetismo, fogueiras pú blicas e Peste Negra, espadas, flechas e cavalos, nó s
temos educaçã o universal, aquecimento central (exceto Londres), drogas milagrosas,
bombas de hidrogênio e aviõ es a jato. Tal é o triunfo da ciência moderna sobre o
medievalismo.
 
 
As falhas em Aristóteles
 
Porém, apesar de toda a escuridã o da Idade das Trevas, nã o devemos supor que nenhum
estudo sério dos fenô menos naturais tenha sido empreendido. Uma superstiçã o moderna é
que os cientistas medievais pensavam que a Terra era plana. Jactâ ncia e superioridade
devem ser temperadas com informaçã o histó rica correta. Sem diminuir um só pouquinho a
fama e a genialidade de Sir Isaac Newton, precisamos reconhecer que certas falhas no
relato aristotélico do movimento estimularam os pensadores medievais a pensar. Havia
pelo menos dois problemas muito reais que homens antes dos tempos de Galileu estavam
estudando. Um deles era o movimento de projéteis; o outro era o problema similar de um
corpo em queda livre.
De acordo com Aristó teles, todo corpo que é colocado em movimento é colocado em
movimento por um propulsor que exerce força sobre ele. Isso é particularmente evidente
no caso de uma pedra que é jogada para cima. Ela nã o pode se mover; ela deve ser movida
por alguma outra coisa. Na verdade, desde que o movimento ascendente nã o é natural para
uma pedra — por natureza as pedras fazem o movimento descendente —, deve ser
exercida uma força sobre a pedra em cada momento da sua ascensã o; do contrá rio ela
começará a cair. Mas o que exerce essa força? A mã o que jogou a pedra, e, para emprestar
um exemplo da Renascença, a explosã o que primeiro impulsionou uma bala de canhã o, nã o
está mais em contato com ela. E nã o é ó bvio, perfeitamente ó bvio, que um corpo nã o pode
exercer força sobre outro sem estar em contato com ele? Uma mã o nã o pode jogar uma
pedra que nã o esteja segurando; e uma bola de bilhar nã o pode colocar outra em
movimento exceto pelo impacto. Como, entã o, pode a pedra continuar subindo apó s ter
deixado a mã o?
A resposta aristotélica, interpretada e expandida a partir de passagens nã o muito claras de
Mecânica (858a19-30), é que quando a mã o primeiro empurra a pedra para cima, a pedra
empurra o ar acima dela; quando a pedra deixa a mã o, o ar deslocado corre para trá s da
pedra e a empurra ainda mais alto; isso desloca mais ar, e assim a pedra continua o seu voo.
Relacionado aos fenô menos dos projéteis, o segundo problema que envolveu os pensadores
medievais posteriores foi o movimento de um corpo em queda livre. Este, ao que parece,
seria um problema mais complicado. Até onde os projéteis estejam em questã o, só se
precisa explicar como eles continuam em movimento; mas um corpo em queda livre nã o
continua em movimento, apenas — ele também acelera. Na verdade, o fato mais ó bvio
sobre um corpo em queda é que o seu movimento é muito mais rá pido perto do fim da sua
queda que no início. Ora, visto que a velocidade, sobre princípios aristotélicos, é
proporcional à força exercida, uma força constante produziria um movimento uniforme,
nã o uma aceleraçã o. Um corpo em queda, entã o, deve estar sujeito a uma força
constantemente crescente. Como isso pode ser explicado? O que faz um corpo em queda
cair mais rá pido?
Essas sã o duas dificuldades conspícuas no sistema aristotélico. Agora, quando esses pontos
específicos de dificuldade sã o encontrados — incorporados no sistema aristotélico,
newtoniano ou em qualquer outro — o procedimento normal é tentar resolver o quebra-
cabeça dentro da estrutura do sistema aceito. Isso é apenas senso comum. Um corpo da
ciência nã o deve ser descartado in toto só porque um ponto menor apresenta uma
dificuldade. Mas à s vezes, uma vez em três ou quatro ou quinze séculos, o ponto
supostamente menor revela um defeito tã o bá sico que uma construçã o totalmente nova se
faz necessá ria. É o que aconteceu no caso em questã o.
A teoria aristotélica da natureza, que também se preocupava com outras formas de
mudança que nã o a locomoçã o — a alteraçã o e o crescimento, por exemplo —, era
teleoló gica e orgâ nica em vez de matemá tica e mecanicista. As causas das mudanças eram
buscadas nas qualidades e nã o nas quantidades dos corpos. Os animais em movimento
natural sã o movidos por sua alma ou forma inerente. Num lugar, Aristó teles explica por
que algumas á rvores produzem frutas doces:
 
Á rvores que crescem em á gua ácida produzem frutas doces porque a acidez, ajudada pelo calor do
Sol, atrai aquilo que é da sua pró pria qualidade, a saber, frio e secura. Os líquidos doces, portanto,
surgem dentro da á rvore… [ De Plantis , 829b].
 
A explicaçã o qualitativa também se aplica ao movimento: As pedras caem porque sã o
pesadas, e o fogo sobe porque é luz.
Amiú de as qualidades que produzem os efeitos nã o sã o evidentes. As drogas e os produtos
químicos produzem seus efeitos, para falar em linguagem medieval, em razã o de
qualidades ocultas, isto é, qualidades que estã o encobertas da visã o. Mas dizer que o ó pio
causa sono em razã o da sua qualidade dormitiva ou soporífera é cobrir a pró pria
ignorâ ncia desvelada com um palavreado vaporoso. À teoria teleoló gica da natureza de
Aristó teles, portanto, é creditada a esterilidade da ciência medieval.
Entã o, para voltar à questã o da locomoçã o: A utilizaçã o de uma terminologia moderna
identificará de forma mais fá cil certas confusõ es no pensamento de Aristó teles. Apesar do
risco de anacronismo, dificilmente se pode evitar o uso da terminologia moderna, pois a
estrutura conceitual da teoria de Aristó teles (veja Física , VIII) é tã o estranha à estrutura
moderna da mente que nossa dificuldade nã o é mais de refutar, mas de meramente
entender. Com alguma falta de precisã o, portanto, talvez seja suficiente sugerir que, por um
lado, Aristó teles confundiu o que consideramos ser os dois conceitos distintos da
velocidade e do trabalho, e, por outro lado, a sua fusã o de tamanho e força o impediu de
chegar ao que chamaríamos de uma definiçã o clara do ú ltimo. E isso nos traz de volta à
questã o: Quais forças fazem um projétil continuar se movendo?
Em meados do século XIV, um filó sofo chamado Buridan fez uma sugestã o muito notá vel.
Ele supô s que quando a pedra foi colocada em movimento pela mã o, o pró prio fato do seu
movimento, embora em contato com a mã o, produziu uma nova qualidade na pedra. Ele
chamou essa nova qualidade de impulso. Todo mundo já observou que quando o ferro é
aquecido no fogo, permanece vermelho por certo tempo apó s retirado do fogo. Ele nã o se
torna novamente preto instantaneamente. Por que, entã o, nã o poderia a mã o por seu
movimento transmitir um impulso à pedra de forma que a pedra continuaria se movendo
por certo tempo apó s o contato ter cessado? [7]
Mais tarde, no final do século XVI, Galileu deu mais um passo e formulou um argumento
interessante que contribuiu para a substituiçã o do aristotelismo pela mecâ nica moderna.
Ele observou que apó s um pêndulo descer até a metade do seu arco, ele sobe no outro lado
da perpendicular à mesma altura do início da sua oscilaçã o. E, novamente, quando se faz
uma bola de gude rolar para baixo num plano inclinado e na base encontra outra inclinaçã o
e deve rolar para cima, ela sobe até a altura da qual partiu. Com base nessas observaçõ es,
Galileu construiu um argumento engenhoso. Durante a descida, a bola de gude ou pêndulo
acelera; durante a subida, desacelera. Portanto, concluiu Galileu, na base da descida, antes
de começar a subir novamente, ela nã o pode estar nem aumentando, nem reduzindo a sua
velocidade. Isto é, um corpo em movimento num plano horizontal continuará em
movimento à mesma velocidade sem qualquer força adicional aplicada a ele, a menos que
seja retardado por alguma força externa de sentido contrá rio. Portanto, embora nenhuma
mudança de direçã o ou velocidade deva ser contabilizada, o movimento continuado de
projéteis para frente ou para cima nã o requer nenhuma explicaçã o. Quando esse plano
horizontal se torna uma linha reta no espaço infinito, em vez de permanecer paralelo à
superfície curva da Terra, a deduçã o de Galileu se transforma na lei da inércia de Newton.
As falhas em Aristó teles levaram a um novo sistema de ciência.
 
 
Sir Isaac Newton (1642-1727)
 
Newton teve os seus antecessores. Nã o apenas tinha Kepler formulado as leis do
movimento planetá rio, como também Galileu e mesmo Buridan tinham antecipado a lei da
inércia. Nada disso, porém, reduz o brilho deslumbrante da síntese de Newton. Sir Isaac
Newton tinha uma mente de primeira ordem; e, felizmente, viveu numa época em que um
problema de primeira magnitude exigia atençã o. Para obter um justo respeito pelo seu
gênio, deve-se pelo menos começar a trabalhar com suas teorias em certo detalhe; mas a
apreciaçã o popular assumiu a forma das linhas de Alexander Pope, que longe de dizer
bastante, disse muito pouco:
 
A natureza e as leis da natureza se escondem na noite;
Deus disse, Deixai Newton agir! E tudo foi luz. [8]

 
Ao examinar a filosofia newtoniana, três pontos devem ser mantidos tã o distintos quanto
possível. Primeiro, há os detalhes científicos concretos. Por exemplo, no Livro II,
Proposiçã o VII, Teorema V:
 
Se corpos esféricos são resistidos como os quadrados de suas velocidades, em tempos que são
diretamente como os primeiros movimentos, e inversamente como as primeiras resistências, eles
perderã o partes de seus movimentos proporcionais aos todos, e vã o descrever espaços proporcionais
ao produto destes tempos e à s velocidades iniciais.
 
Ou, ainda, a Proposiçã o XXV, Teorema XX:
 
Corpos pendentes que sã o, em qualquer meio, opostos na proporção dos momentos do tempo e
corpos pendentes que se movem num meio nã o resistente de mesma gravidade específica realizam
suas oscilaçõ es numa cicloide ao mesmo tempo e descrevem partes proporcionais de arcos em
conjunto.
 
E, finalmente, Livro III, Proposiçã o XL, Teorema XX:
 
Que os cometas se movem em algumas das seçõ es cô nicas, tendo seu foco no centro do Sol, e por um
raio atraído para o Sol, descreve á reas proporcionais aos tempos.
 
 
Esses teoremas entã o recebem sua prova matemá tica completa.
Há também um segundo ponto a ser considerado num estudo da obra de Newton. É a sua
filosofia da ciência. O que ele pensava da natureza e do propó sito da ciência? Além dos
resultados concretos consagrados nos teoremas, como Newton descrevia seus
procedimentos? Que regras de operaçã o usava? Ele percebia que as usava? Ou alegava
proceder de uma forma quando, na verdade, estava usando um método diferente? Alguém
pensaria que com um pouco de cuidado esse segundo ponto poderia ser claramente
distinguido do primeiro; e que, portanto, o pró prio Newton, um matemá tico dos mais
cuidadosos, nã o teria tido dificuldade para distingui-los. Outros, em qualquer caso, se
tornaram confusos; e nó s gostaríamos de evitar essa confusã o, se possível. Para antecipar:
Será que a lei da inércia de Newton é um detalhe científico solidamente baseado nas
observaçõ es de Galileu ou é uma suposiçã o filosó fica a priori fora da esfera da experiência?
Por fim, há um terceiro ponto. Deseja-se saber como Newton influenciou seus sucessores. É
comumente dito que a ciência newtoniana dominou a civilizaçã o ocidental por dois séculos
completos. Muitos homens, tanto cientistas como filó sofos, desenvolveram sobre esse
fundamento. Como eles desenvolveram? As implicaçõ es que eles extraíram do trabalho de
Newton eram implicaçõ es que Newton teria admitido? Ou, ainda que algumas sejam
conhecidas por contradizer certas coisas que Newton disse, essas implicaçõ es foram,
porém, validamente extraídas? Ou sã o falaciosas? Ademais, se dominar o pensamento
ocidental significa ter a religiã o e a política afetadas, se uma cosmovisã o científica nã o é
meramente uma ciência detalhada, mas uma filosofia ampla, se a moralidade, a arte e os
valores da vida estã o envolvidos, entã o um entendimento dessas matérias também é
essencial para uma mente educada.
 
 
Planetas e cometas
 
Com respeito ao primeiro desses três pontos ─ os detalhes científicos, concretos, e como
esses detalhes logo nos introduzem a inquiriçõ es filosó ficas mais amplas ─, a abordagem
mais fá cil é o movimento planetá rio e, em particular, a teoria dos cometas que é aludida no
ú ltimo dos teoremas newtonianos citados logo acima.
O estudo da astronomia, a descriçã o matemá tica precisa dos movimentos diá rios das
estrelas e os movimentos anuais dos planetas, e até mesmo o estudo dos cometas mais
desconcertantes, nunca desapareceu na Idade Média. Embora nã o tenha sido feito muito
progresso com os cometas, as previsõ es das posiçõ es dos outros corpos eram notavelmente
exatas. Essas previsõ es eram feitas assumindo-se que a Terra estava pró xima do centro do
Universo e que os planetas se moviam em ó rbitas circulares ao redor de pontos que se
moviam em ó rbitas circulares ao redor do centro do Universo. O esquema ptolomaico era a
teoria dos epiciclos. Através de um ú nico epiciclo, por exemplo, a posiçã o e os movimentos
para frente e para trá s de Marte poderiam ser preditos por um curto espaço de tempo; com
a adiçã o de outros epiciclos os movimentos aparentes de Marte poderiam ser calculados
por um espaço de tempo mais longo; e por fim os astrô nomos medievais trabalharam até
quarenta e alguns epiciclos.
Na primeira metade do século XVI, Copérnico estudou Aristarco e aprendeu que esses
epiciclos inconvenientes poderiam ser evitados ao fazer o Sol o centro ou ponto de
referência. Ao elaborar uma astronomia heliocêntrica, Copérnico ainda reteve o movimento
circular, com o resultado de que suas prediçõ es nã o eram mais precisas, mas na verdade
menos precisas que as dos seus contemporâ neos. Mas a matemá tica era simplificada e
unificada. A unificaçã o se tornou mais evidente com Kepler, cujas três leis, em particular a
segunda e a terceira, exigiam equaçõ es de formatos similares para todos os planetas e
tornavam o mecanismo planetá rio uniforme. O pró prio Copérnico, entretanto, tomou um
passo decisivo nã o apenas ao remover os epiciclos, mas também ao estabelecer os
tamanhos relativos (nã o absolutos) das esferas planetá rias, ao explicar as flutuaçõ es dos
tamanhos aparentes dos corpos celestes e ao descartar alguns outros pequenos itens da
bagagem ptolomaica.
Tycho Brahe, um astrô nomo dinamarquês mais jovem, nã o foi convencido por Copérnico.
Tanto a observaçã o astronô mica como a filosofia reinante favoreciam o geocentrismo. Por
um lado, a astronomia heliocêntrica implicava uma paralaxe estelar, e nenhuma fora
descoberta. Mas com observaçã o ou nã o, o progresso na matemá tica era indiscutível.
No início Copérnico defendeu seu caso meramente no progresso matemá tico que havia
produzido. Mais tarde ele e, nã o surpreendentemente, todos os demais caíram no há bito de
pensar que os planetas “realmente” giravam em torno do Sol. O esquema se tornaria nã o
meramente matemá tico, mas também concretamente físico. Nessa conclusã o bastante
natural estavam embutidas algumas questõ es filosó ficas que agitaram muitas mentes por
longo tempo. Outras questõ es serã o mencionadas mais tarde, mas neste momento será
traçada aquela em que os cometas desempenharam um papel decisivo.
Durante o final da Idade Média era comumente defendido que os planetas eram carregados
por esferas cristalinas só lidas nas quais estavam incorporados. Antes disso a astronomia
ptolomaica original era a visã o usual. Para Ptolomeu, a verdade simples era que os planetas
se moviam em círculos ao redor da Terra. Os círculos eram meramente os caminhos
geométricos dos planetas. Mas à medida que os escritos de Aristó teles começavam a se
tornar conhecidos, as pessoas ficaram persuadidas de que deveria haver esferas físicas
para carregar os planetas. As “Tabelas de Londres” (A.D. 1232) colocaram as estrelas fixas
numa esfera só lida, mas nã o os planetas, que se moviam no éter. William de Auvergne
(morto em 1248) defendia as esferas só lidas, mas seus pontos de vista eram extremamente
confusos. Menos confusã o é encontrada em Robert Grosseteste. Quando ele desejava
determinar o calendá rio, usava os círculos, excêntricos e epiciclos de Ptolomeu; mas
quando filosofava, referia à s esferas homocêntricas. Essas esferas, contudo, parecem ter
vindo nã o de Aristó teles, mas de um astrô nomo muçulmano, Al Bitrogi. Um pouco mais
tarde (c. 1300) Duns Scotus tentou harmonizar Ptolomeu e Aristó teles. Cada planeta teria
pelo menos três esferas que circundam a Terra. A superfície superior convexa da esfera
superior e a superfície inferior cô ncava da esfera inferior sã o concêntricas com a Terra.
Mas a superfície inferior cô ncava da esfera superior e a superfície superior convexa da
esfera inferior sã o excêntricas à Terra, mas concêntricas uma com a outra. Entre essas duas
superfícies haveria uma terceira esfera, excêntrica à Terra, mas concêntrica com as duas
esferas que acabamos de descrever. As três esferas poderiam se mover sem abrir um
espaço vazio (a natureza abomina o vá cuo), já que a parte mais espessa de uma esfera
estaria sempre na parte mais fina da outra. Além disso, as esferas nã o seriam fraturadas,
pois as superfícies adjacentes seriam sempre concêntricas. [9] Tycho Brahe também
acreditava nas esferas cristalinas só lidas. Pensava-se, portanto, que os planetas se moviam
porque eram transportados em esferas só lidas.
Essas esferas cristalinas ruíram sob o impacto de Copérnico. A astronomia heliocêntrica
nã o poderia obviamente permitir um sistema de esferas só lidas circundando a Terra. Mas
por que as esferas nã o poderiam ser reconstruídas tendo o Sol como o centro? Isso teria a
vantagem de dispensar o expediente engenhoso de Duns Scotus. Visto que Copérnico tinha
os planetas girando em círculos simples em torno do Sol, apenas uma esfera seria
necessá ria para cada planeta. Havia, no entanto, outros fatores operando. Além da nova
astronomia, uma nova filosofia estava tomando forma. A ciência rigorosa, a matemá tica
pura e a observaçã o podem nã o ter exigido o abandono das esferas; mas a imaginaçã o
especulativa, dispersa pelas novas posiçõ es físicas da Terra e do Sol, se lançou numa nova
direçã o. Tinha começado uma reaçã o ao escolasticismo aristotélico. E se o geocentrismo
aristotélico tinha agora se provado falso (embora, a bem da verdade, a prova ainda
estivesse longe de ser completa), entã o sem dú vida Aristó teles também estava errado na
sua visã o de que o mundo tem uma extensã o finita. Mas se o mundo é infinito, as estrelas
devem estar espalhadas pelo espaço infinito, e nã o existe uma esfera exterior.
Nessa situaçã o, nã o apenas a mente comum, mas também a mente filosó fica se perguntaria:
“O que faz, entã o, os planetas se moverem?”.
René Descartes (1596-1650), o fundador da filosofia moderna, deu uma resposta a essa
pergunta. Ele supô s que a matéria era dividida em partículas extremamente pequenas.
Essas partículas preenchem todo o espaço, porque entre as partículas maiores, e ainda
mais entre os corpos visíveis maiores, existem partículas ainda menores — tã o pequenas
que preenchem completamente os interstícios sem deixar qualquer vá cuo. Nos céus, essas
partículas — agitando-se em correntes e redemoinhos — transportam consigo os planetas
do entorno. Nã o há esferas cristalinas só lidas, mas mesmo assim os planetas sã o
impulsionados pelo contato físico.
Esses vó rtices cartesianos tinham a vantagem de apelar à experiência familiar. Todo
mundo já viu correntes e redemoinhos na á gua e assistiu à á gua carregando ramos e lascas
em seu movimento circular ou possivelmente elíptico. A teoria dá assim uma resposta clara
à questã o “O que faz os planetas se moverem?”.
Porém, lamentavelmente, há um fato da astronomia que arruína os vó rtices de Descartes.
Ele também é incompatível com as esferas. Esse fato desagradá vel é a existência de
cometas. Os cometas cortam os planos orbitais dos planetas em todos os â ngulos, e jamais
poderiam, portanto, ser resultado de redemoinhos num fluido celestial. Há também outro
fato. Os planetas na verdade se movem mais lentamente à medida que se afastam do Sol, ao
passo que os vó rtices dariam aos planetas mais exteriores as velocidades maiores. Apesar
desses dois fatos conclusivos, os vó rtices de Descartes competiram com a teoria da
gravitaçã o de Newton por muitos anos. Talvez a hesitaçã o generalizada em aceitar a teoria
de Newton tenha resultado da sua resposta, ou da sua falta de resposta, à questã o “O faz os
planetas se moverem?”.
 
 
Gravitação
 
Desde a época em que a ciência newtoniana ganhou aceitaçã o geral, tem sido habitual dizer
que um corpo em queda livre cai e os planetas giram em torno do Sol por causa da
gravitaçã o. Ora, uma das objeçõ es fatais feitas contra a ciência medieval era que ela apelava
para qualidades ocultas. Ó pio causava sono nã o por causa da sua cor visível, nã o por causa
do cheiro ou de suas qualidades tangíveis, mas por causa de uma qualidade soporífera ou
produtora de sono oculta. Como Newton disse,
 
Os aristotélicos deram o nome de qualidades ocultas nã o para manifestar as qualidades, mas apenas
para qualidades que eles supunham estarem ocultas nos corpos e serem as causas desconhecidas de
efeitos manifestos… Essas qualidades ocultas interromperam o progresso da filosofia natural, e,
portanto, foram nos ú ltimos anos rejeitadas. Dizer que toda espécie de coisas é dotada de uma
qualidade oculta específica pela qual ela age e produz efeitos manifestos nã o nos quer dizer nada.
 
Ora, as observaçõ es de Newton sobre as qualidades ocultas sã o muito pontuais, mas
levantam a questã o se a gravidade também é uma qualidade oculta ─ invisível, intangível e,
portanto, inú til como uma explicaçã o do movimento. O que seria, entã o, gravidade?
Cajori, um editor de Newton do século XX, [10] reú ne algumas frases de Newton que
parecem fazer da gravidade uma propriedade oculta ou inata da matéria. Essas frases sã o
sobretudo aquelas em que Newton fala da atraçã o de um corpo por outro. De fato, esse
entendimento tem sido bastante comum. No entanto, cartas particulares, nã o publicadas
durante a vida de Newton, mostram que essa nã o era de fato a sua visã o. Por um tempo ele
até manteve a ideia de um éter que, por sua condensaçã o e rarefaçã o, exerceria pressã o
sobre os corpos que gravitam. Mas fosse um éter elá stico a explicaçã o correta ou nã o, era
inconcebível para Newton que um corpo pudesse afetar outro corpo sem um contato físico,
a menos que por acaso o movimento fosse causado por algum agente espiritual imaterial.
A palavra final de Newton sobre o assunto era que ele nã o sabia a causa da gravidade. E foi
nesse contexto que ele fez sua declaraçã o frequentemente citada “Nã o invento hipó teses” [
Hypotheses non fingo ]. Ou, novamente, numa carta, “A gravidade deve ser causada por um
agente que opere constantemente de acordo com certas leis; mas se esse agente é material
ou imaterial, deixo à consideraçã o dos meus leitores” (veja o Principia , Proposiçã o LXIX,
Teorema XXIX, Escó lio).
O Escólio Geral no final do Livro III é claro sobre esse ponto. Desde que os corpos
continuam em movimento, argumenta ele, exceto se parados por fricçã o, os planetas
continuarã o a se mover pelas meras leis da gravidade. “Contudo, eles [os planetas] nã o
poderiam de forma alguma ter inicialmente derivado as posiçõ es regulares das pró prias
ó rbitas a partir dessas leis”. Os cometas fornecem evidência conclusiva de que o sistema
solar nã o poderia ter surgido através de meras causas mecâ nicas. Ele “só poderia proceder
do conselho e domínio de um Ser inteligente e poderoso”.
Segue-se entã o uma exposiçã o teoló gica, pois Newton estava convencido de que: “Muito do
que concerne a Deus, no que diz respeito ao discurso sobre ele a partir das aparências das
coisas, certamente pertence à filosofia natural”. Voltando finalmente à gravitaçã o, ele
conclui: “Mas até entã o nã o tenho sido capaz de descobrir as causas daquelas propriedades
da gravidade a partir dos fenô menos, e nã o estruturo nenhuma hipó tese”.
 
 
Explicação
 
O material anterior, selecionado da histó ria da ciência, mostra de forma suficientemente
clara que os detalhes das leis e dos fatos científicos nã o esgotam o interesse do assunto. A
histó ria tem sua importâ ncia, certamente. Nó s queremos saber que Descartes disse isso e
Newton disse aquilo. Mesmo as razõ es para rejeitar vó rtices foram dadas como sendo
informaçã o histó rica. Mas nem toda ciência é tã o definitiva e estritamente científica. Temas
filosó ficos também estã o sempre entrelaçados. Portanto, nesse ponto um pouco de reflexã o
sobre o significado desse avanço histó rico e científico se faz necessá rio.
Logo acima lemos as palavras de Newton, terminando com sua recusa em explicar a
gravitaçã o. O que essa recusa significa? Se a gravitaçã o nã o pode ser explicada, a gravitaçã o
pode explicar alguma coisa? O que se quer dizer com explicaçã o científica?
À parte das observaçõ es de Newton sobre a teologia, à s quais voltaremos um pouco mais
tarde, a questã o imediata é o significado da lei da gravitaçã o para a ciência estrita ─ para a
revoluçã o dos planetas e para um corpo em queda. As esferas cristalinas, os vó rtices
cartesianos e até mesmo, por um tempo, o éter newtoniano foram inventados para explicar
o que faz os planetas se moverem. Mais particularmente, esses expedientes foram
inventados para explicar o que faz os planetas se moverem em uma trajetó ria curva ao
invés de voar em linha reta. Nã o só poderia Demó crito dizer sem rodeios que o movimento
nã o precisa ser explicado, como de fato a lei da inércia de Newton dá a aparência de assim o
dizer. No entanto, a lei da inércia se refere apenas ao movimento retilíneo. Quando um
corpo em movimento muda a direçã o do seu movimento, como os planetas constantemente
fazem nas suas ó rbitas elípticas, uma causa ou explicaçã o é necessá ria. Que essa motivaçã o
esteja por trá s da lei da gravitaçã o é mais claro do que qualquer esfera cristalina já tenha
sido. A gravidade é usada principalmente para explicar por que os planetas “caem em
direçã o” ou giram em torno do Sol em vez de continuar em linha reta de acordo com a
primeira lei do movimento. Mas agora que a lei da gravitaçã o foi desenvolvida com a
precisã o matemá tica dos quadrados inversos, nó s explicamos quod erat demonstrandum ?
A dificuldade pode ser ilustrada com um exemplo ainda mais simples. Se perguntamos para
uma pessoa por que uma pedra que é largada cai no chã o, ela responde “Ah, é por causa da
gravidade”, ela explicou alguma coisa? Aqui a dificuldade nã o é encontrada em uma
mudança de direçã o, como é o caso dos planetas, mas em dois outros fatores: o que faz, em
primeiro lugar, a pedra cair em vez de permanecer no ar, e o que faz sua velocidade
aumentar à medida que ela cai? Será que a lei da gravitaçã o responde essas questõ es?
A lei geral da gravitaçã o é que quaisquer duas partículas se atraem mutuamente na
proporçã o do produto das suas massas e inversamente ao quadrado da distâ ncia. Quando
aplicada aos planetas e cometas, essa lei se transforma nas três leis do movimento
planetá rio de Kepler; quando aplicada a pedras em queda, se torna a lei da aceleraçã o
constante de Galileu. O caso mais simples será satisfató rio para a discussã o.
Fora feitas as perguntas “Por que uma pedra cai? O que a faz cair? O que a faz cair mais
rá pido?”. A resposta usual é “A lei da gravitaçã o”. Essa lei, se aplicada a corpos em queda
livre, é que o corpo cai com uma aceleraçã o de 9,8 metros por segundo ao quadrado. Ora,
para substituir a pró pria lei pelo seu nome, a pergunta “Por que uma pedra cai?” é
respondida dizendo que ela cai porque cai com uma aceleraçã o de 9,8 metros por segundo
ao quadrado. Mas como é que uma declaraçã o da taxa de queda pode explicar o que faz a
pedra cair em primeiro lugar? E como a taxa, sempre tã o cuidadosamente medida, explica o
que faz a pedra cair constantemente mais rá pido? Nã o se torna claro, a partir da uma
reflexã o, que a lei da gravitaçã o nã o é uma explicaçã o? Ela nã o explica nem a queda da
pedra, nem a revoluçã o dos planetas.
Aqui começamos a ver como os detalhes da ciência e os princípios da filosofia se tornam
entrelaçados e mesmo confusos. Galileu e Newton em sua grande genialidade
desenvolveram suas respectivas leis em forma matemá tica rigorosa. Isso era ciência. Que
ninguém subestime a sua importâ ncia! Claro que nã o; nó s resolvemos nunca subestimar a
importâ ncia da ciência — se ao menos pudermos descobrir qual ela é. Chegamos à lei
científica da gravitaçã o, ou, pelo menos, Newton chegou por nó s; mas agora perguntamos, e
até o pró prio Newton começa a perguntar, sobre a importâ ncia dela. Isso nã o é ciência; é
filosofia. Que ninguém subestime a importâ ncia da filosofia!
A filosofia da ciência, em distinçã o da pró pria ciência como ordinariamente entendida, deve
considerar a importâ ncia da lei científica. A ciência explica alguma coisa? Nã o devemos ir
além da ciência, e se nã o nos importamos com qualidades ocultas, nã o devemos, tal como
Newton, explicar a origem (pelo menos) do sistema solar como resultado de uma
Inteligência Suprema? Nã o devemos avançar da física para a metafísica? Certamente
queremos saber mais do que o caminho dos planetas e a aceleraçã o de um corpo em queda
livre. Fatos como esses sã o interessantes e importantes. Mas uma declaraçã o do fato nã o é
uma explicaçã o: é a pró pria coisa que precisa ser explicada. Visto por essa luz, a ciência nã o
explica nada.
Bem, entã o essa luz, alguns cientistas afirmam, deve ser a luz errada. A verdadeira luz,
dizem eles, é que a ciência explica. Visto que, obviamente, a ciência nã o explica o que faz
uma pedra cair, esses homens concluem que a pergunta errada foi feita. A explicaçã o deve
ser definida por aquilo que a ciência pode fazer; o que a ciência nã o pode fazer nã o deve ser
chamado de explicaçã o. Qualquer pergunta que a ciência nã o possa responder — quer ela
tenha a aparência de ciência, como a causa da queda de um corpo, quer seja a fortiori uma
questã o metafísica ú ltima, como a existência de Deus —, nã o é uma pergunta adequada.
Nã o se deve fazer essas perguntas. Só se deve fazer perguntas que a ciência possa
responder. E existe essa pergunta. A ciência pode nã o ser capaz de explicar o que faz um
corpo cair, mas pode responder — e pode responder com incrível precisã o matemá tica —
como um corpo cai: com uma aceleraçã o de 9,8 metros por segundo ao quadrado. A ciência
responde como . Qualquer outra pergunta é absurda. Explicaçã o é descriçã o.
Como Morris R. Cohen coloca,
 
Muitas vezes é feita uma distinçã o nítida entre descrição e explicaçã o, mas uma explicaçã o científica é
no fim das contas apenas um certo tipo de descriçã o, uma descriçã o na qual o fenô meno está
relacionado a outros fenô menos de acordo com certas leis. Assim, explicamos o arco-íris ao chamar a
atençã o para a lei da refraçã o da luz… Note que a lei da refraçã o nã o é algo antecedente no tempo à
ocorrência dos arco-íris. O arco-íris é apenas uma das formas ou ocorrências da refraçã o… Lei nã o é
uma força que compele suas instâ ncias a se conformarem com ela. Entã o, a lei da gravitaçã o é uma
descriçã o em termos matemá ticos das relaçõ es espaço-temporais de todos os corpos, celestes assim
como terrestres… Formular a lei do modo como Newton fez foi possível por causa do fato empírico de
que as observaçõ es da Lua e dos corpos em queda se encaixam nessa fó rmula. Isso em nada responde
a noçã o popular de uma causa como sendo a força que compele objetos a se comportarem de uma
certa maneira em vez de outra. [11]

 
Evidentemente, essa visã o da explicaçã o e, em particular, essa visã o da ciência, nã o era a
visã o de Newton. Planetas e pedras em movimento sem nada os tendo colocado em
movimento lhe era algo inconcebível. A lei da gravitaçã o nã o poderia ter colocado os
planetas nas suas ó rbitas. Sem a operaçã o de uma Inteligência Suprema, o sistema solar
nã o pode ser explicado. Mas se Newton estava certo nesses pontos, como nã o é a ú nica
questã o que pode ser legitimamente feita; a ciência experimental nã o é o ú nico caminho
para a verdade; e uma filosofia da ciência é necessá ria para determinar a gama de aplicaçã o
e as limitaçõ es da ciência. A necessidade de princípios nã o científicos ou nã o experimentais
se torna ainda mais clara quando examinamos a pró pria visã o da explicaçã o. A afirmaçã o
confiante de que como é a ú nica questã o legítima nã o é uma descoberta experimental de
laborató rio. E tampouco é uma descriçã o de qualquer movimento físico. Sobre qual
fundamento, entã o, uma declaraçã o como essa pode ser feita? Como alguém reconhece que
Deus nã o é a verdadeira luz, e que alguma outra coisa é? Mais uma vez fica claro que os
cientistas, quer intencionalmente, quer nã o, fazem e devem fazer uso de uma filosofia.
 
 
Filosofia mecanicista
 
A ciência, a histó ria da ciência, e a filosofia da ciência estã o, como temos visto, tã o
inextricavelmente fundidas ou confundidas que é impossível traçar limites definidos entre
elas. No entanto, algumas pessoas acreditam que os limites sã o mais distintos e ó bvios.
Assim, por vezes os cientistas acusam os filó sofos de nã o serem científicos e ignorarem os
fatos. A ciência lida com fatos! Os filó sofos respondem condenando os cientistas por
aceitarem como fatos as pressuposiçõ es filosó ficas que subjazem suas leis. Ou, o que é pior,
eles acusam os cientistas de nã o estarem cientes de que usam pressuposiçõ es filosó ficas. Os
cientistas frequentemente pensam que seus resultados decorrem direta e exclusivamente
da experimentaçã o e totalmente à parte da especulaçã o filosó fica e da metafísica etérea.
Dificuldades como essas aumentam com o desenvolvimento da ciência newtoniana em
filosofia mecanicista.
O mecanicismo foi a cosmovisã o científica dominante do século XIX. Ele era considerado a
conclusã o mais abrangente e definitiva da investigaçã o científica. Mesmo neste, a segunda
metade do século XX, o mecanicismo nã o está sem defensores. Mas desde que agora ele
também enfrenta oposiçã o dos pró prios cientistas, deve-se determinar se ele realmente é
ciência, ou se é meramente uma metafísica supersticiosa; e sendo o ú ltimo caso, deve-se
decidir como substituí-lo por uma filosofia só lida ou, no caso, fazê-lo sem qualquer filosofia
e metafísica. Consequentemente, o objetivo imediato é mostrar como os métodos modernos
de ciência levaram ao mecanicismo, o que é o mecanicismo, e por fim mostrar o efeito sobre
essa filosofia da revoluçã o do século XX na ciência.
Para examinar a relaçã o entre a ciência e o mecanicismo, algo além da histó ria
convencional deve ser primeiro dado em relaçã o ao método científico. O método científico,
como já foi dito, é tido em alta reputaçã o hoje em dia. Cursos universitá rios em Sociologia,
desenvolvimento da civilizaçã o (onde um estudante aprende tudo sobre tudo em um
semestre) e mesmo Inglês nunca cansam de cantar seus louvores. Mas quando um
estudante de Física, que usa o método científico em seus experimentos de laborató rio, mais
tarde lê relatos divergentes sobre esse método, ele — se nã o a Sociologia e outras
especialidades — entende a dificuldade de defini-lo com precisã o. No entanto, até que seja
definido, sua relaçã o com o mecanicismo permanece em dú vida. Agora, por mais difícil que
seja formular um relato exato do método científico, é relativamente fá cil mencionar
algumas diferenças entre o procedimento aristotélico, agora condenado como nã o
científico, e os métodos modernos.
Ao contrá rio das impressõ es populares, a diferença entre a ciência aristotélica e a moderna
nã o é que a primeira é dedutiva e a ú ltima empírica. Galileu e qualquer cientista moderno
formulou hipó teses e entã o deduziu suas consequências. Sem essa deduçã o, a ciência
moderna nã o poderia funcionar. E, também, a diferença nã o é que a ciência moderna é
observacional e empírica, mas o procedimento aristotélico nã o. Aristó teles e muitos outros
antigos eram excelentes observadores. Embora Aristó teles nã o tenha descoberto a
velocidade da luz, ele observou que corpos pesados caem mais rá pido do que os mais leves
e explicou isso pelas diferentes resistências a um meio.
Talvez a principal diferença — a fonte de outras diferenças — seja que os cientistas
modernos experimentam por princípio, ao passo que os antigos apenas observavam, ou no
má ximo experimentavam em uma escala muito pequena sem qualquer plano definido. O
cientista de hoje nã o senta e espera algum evento natural acontecer por acaso. Ele
deliberadamente faz algo. Galileu, por exemplo, embora seu estudo do pêndulo possa ter
começado acidentalmente, nã o esperou para observar algum corpo casual cair de qualquer
altura que fosse. Ao contrá rio da histó ria popular, ele sequer jogou pesos da torre inclinada
de Pisa. Ele deliberadamente rolou bolas de gude num plano inclinado que havia
cuidadosamente alisado e polido. Essa experimentaçã o planejada é o fator pelo qual John
Dewey gostava sobretudo de recomendar o método moderno. O experimentador faz coisas
com o material que está examinando. Ele o corta, ou o aquece, ou o dissolve em á cido, ou
passa uma corrente elétrica através dele, entre outras coisas.
Essa experimentaçã o sistemá tica logicamente requer e historicamente desenvolveu uma
técnica. Galileu nã o só preparou seu plano inclinado e rolou bolas de gude para baixo, como
também variou a extensã o da sua descida. Isso significa que ele mediu as distâ ncias; ele
mediu os tempos também. E tirou essas medidas com o propó sito de manipulá -las
matematicamente. Uma das suas aná lises matemá ticas mostrou que variar a velocidade
com a distâ ncia pressupõ e velocidade infinita; e uma vez que isso é impossível, ele assumiu
que a velocidade aumenta com o tempo. A partir dessa suposiçã o, dessa lei, dessa equaçã o
matemá tica, pode ser deduzido que um corpo cai quatro vezes tã o longe em dois segundos
como em um. Cientistas posteriores usaram mais matemá tica; na verdade, inventaram mais
matemá tica para usar. Hoje todo mundo que assiste a astronautas na televisã o vê quadros
negros cheios de fó rmulas enigmá ticas. Na física antiga, a matemá tica em larga medida nã o
era usada; mas a matemá tica é a alma, ou materialisticamente alguém diria, a “mola
mestra” da ciência moderna. Kepler expressou a ideia muito bem, dizendo que assim como
os ouvidos foram feitos para o som e os olhos para a cor, a mente do homem é feita para
medir quantidades e vagueia na escuridã o quando deixa o reino do pensamento
quantitativo. [12]
O uso da matemá tica destaca ainda outra importante diferença entre a ciência antiga e a
moderna. Apó s ter matematicamente deduzido da sua primeira fó rmula a consequência de
que um corpo cai quatro vezes tã o longe em dois segundos como em um, Galileu mediu
suas bolas de gude novamente para ver se realmente faziam isso. Ou seja, a deduçã o
matemá tica é uma previsã o que pode ser verificada por um experimento posterior.
Previsã o e verificaçã o sã o a essência do método científico moderno. Claro, a astronomia
antiga fez um uso brilhante da matemá tica, ao menos da geometria. As previsõ es também
eram essenciais, e as previsõ es eram testadas pela observaçã o posterior. Mas essas
antecipaçõ es dos métodos modernos estavam em grande parte confinadas à astronomia. A
física, para nã o dizer a química, era algo completamente diferente.
Os rá pidos avanços do novo método científico — nã o apenas na grande escala celestial de
Kepler e Newton, mas também nos inumerá veis detalhes do pêndulo e de pequenas
má quinas, da pressã o atmosférica, da ó tica física, da termodinâ mica, da teoria atô mica, etc.
— confirmaram o poder ilimitado da matemá tica e a fecundidade da mediçã o quantitativa.
Logo, era inevitá vel a tese de que todos os fenô menos naturais sã o suscetíveis a esse
método. Como Laplace colocou: dê-me as posiçõ es e velocidades de todas as partículas do
Universo e poderei calcular suas posiçõ es em qualquer momento do futuro. Essa tese é a
tese do mecanicismo. O Universo é visto como uma má quina, e as previsõ es das fó rmulas
matemá ticas sã o atualizadas inevitavelmente. Nada que seja contrá rio à matemá tica pode
possivelmente ocorrer. [13]
Que os céus astronô micos sã o mecâ nicos nã o era uma ideia nova. Ela nã o é mais
copernicana do que ptolomaica. Descartes com seus vó rtices e a teoria da gravitaçã o de
Newton nã o eram tã o surpreendentes até onde a ideia de movimento mecâ nico estivesse
em questã o. Mas o que era surpreendente, perturbador e controverso era a extensã o do
ideal mecâ nico para todos os fenô menos, incluindo a vida, e em especial a vida humana.
Descartes estava suficientemente disposto a considerar os animais como má quinas
inconscientes. Esmurre o botã o certo, e sai um grito. Mas Descartes sabia que ele pró prio
nã o era apenas uma má quina; ele era um ser pensante — Cogito ergo sum . O pensamento é
algo que as má quinas nã o podem ter; e por esse pensamento, incluindo a disposiçã o,
Descartes foi capaz de alterar, se nã o a quantidade constante de movimento no Universo,
pelo menos a direçã o dos movimentos ao redor da glâ ndula pineal e, assim, controlar sua
pró pria conduta. No entanto, apesar dessa experiência íntima do pensar, um homem nã o
mecâ nico em um Universo mecâ nico resulta num dualismo estranho. Spinoza, com sua
forte tendência para a unidade, nã o teria o homem como um reino dentro de um reino. As
leis da natureza nã o poderiam permitir nenhuma exceçã o. A lei mecâ nica deve ser
inviolá vel. Mesmo Locke, num momento cético, disse que até onde ele sabia, um corpo era
capaz de pensar. Em cujo caso uma alma seria desnecessá ria. Entã o, o escritor francês La
Mettrie (1709-1751) aboliu os princípios espirituais em seu livro L’Homme Machine :
 
L’â me n’est donc qu’un vain terme dont on n’a point d’idée, et dont un bon esprit ne doit se servir que
pour nommer la partie qui pense en nous. Posé le moindre principe de mouvement, les corps animés
auront tout ce qu’il leur faut pour se mouvoir, sentir, penser, se repentir, et se conduire en un mot
dans le Physique et dans le Moral qui en depend. [But] C’est une folie de perdre le temps à en
rechercher le méchanisme. La nature du mouvement nous est aussi inconnue que celle de la matière…
Qu’on m’accorde seulement que la matière organisée est douée d’un principe moteur… c’en est
assez… [14]

 
Os detalhes científicos de La Mettrie nã o sã o superiores ao nível do século XVIII; alguns dos
seus argumentos parecem superficiais hoje; eles nã o deveriam ser julgados pelos padrõ es
atuais. Uma tentativa mais abrangente de reduzir a vida à lei psicoquímica deve ser
encontrada em The Mechanistic Conception of Life (1912) por Jacques Loeb.
Agora, se os corpos nã o precisam de uma alma, como argumentou La Mettrie, foi fá cil para
outro francês, o Barã o d’Holbach (1723-1789), concluir que o Universo nã o precisa de
Deus. Como com Spinoza, o Universo é sem propó sito e, consequentemente, o teísmo é uma
doença causada por algum desarranjo do mecanismo do homem.
Cabanis (1757-1808) em seguida tentou formular uma psicologia materialista e
mecanicista. Ele relacionou a influência da idade, do sexo, da saú de, do clima, etc. sobre a
assim chamada mente. Foi ele quem inventou a frase muito conveniente “O cérebro secreta
o pensamento assim como o fígado secreta a bile”. No entanto, ele tentou evitar a
metafísica, recusando-se a discutir as “causas primá rias”; e o excelente historiador da
filosofia francesa Lévy-Bruhl alega que, por essa razã o, ele nã o deveria ser chamado de
materialista.
Na Alemanha durante o século XIX o materialismo encontrou liderança nas obras de
Moleschott, Bü chner e Vogt. Força e matéria eram as realidades ú ltimas. O princípio da
conservaçã o da matéria era um fundamento desse materialismo, e o correspondente
princípio da conservaçã o de energia foi usado para apoiar as ideias do mecanicismo e do
determinismo. A ampla aceitaçã o desse ponto de vista ─ o materialismo, o ateísmo e a
arrogâ ncia ingênua da certeza absoluta ─ pode ser julgada pelo fato de que Kraft und Stoff
de Ludwig Bü chner passou por pelo menos 17 ediçõ es em alemã o e 22 em línguas
estrangeiras. Prefaciando seu primeiro capítulo com o slogan “Onde há três estudantes da
natureza, há dois ateus”, ele abre o corpo do seu texto com onze afirmaçõ es do
materialismo por diferentes autores. Além destas, será interessante e instrutivo tomar
como amostra as pró prias afirmaçõ es vigorosas dele:
 
Aqueles que falam de uma força criativa independente ou sobrenatural, que fez o Universo evoluir de
si mesmo ou do nada, estã o em antagonismo com o primeiro e mais simples axioma de uma visão
filosó fica da natureza.
 
A matéria como tal é indestrutível… “Um á tomo elementar simples”, diz B. Stewart, “é realmente um
ser imortal”… A matéria deve ter sido eterna, o Universo deve ser nã o criado… Hoje a
indestrutibilidade ou permanência da matéria é um fato científico firmemente estabelecido.
 
O movimento é um atributo necessá rio e indispensá vel da matéria… A astronomia física nos ensina
com certeza absoluta… Segue-se, portanto, com absoluta certeza que o movimento é tã o eterno e
incriá vel…  como a força ou a matéria… De acordo com Holbach ( Système de la Nature ) o mundo nã o
é nada mais que matéria e movimento… A matéria e o movimento são eternos… E tudo isso é
inteiramente corroborado pela ciência moderna.
 
As leis naturais são imutá veis. A experiência de mais de mil anos tem imposto sobre os observadores
a convicçã o da imutabilidade das leis naturais… com tal certeza absoluta que nã o pode restar a menor
dú vida… Com a mais absoluta verdade e a maior certeza científica podemos dizer neste dia: Nã o há
nada de milagroso no mundo… O fantasma de um espírito pessoal, universal, interferindo nos
processos naturais há muito foi banido da astronomia, física e química… O leigo ignorante pode
acreditar em um Deus pessoal; mas o cientista ou o leigo educado… colocariam sua razã o abaixo da
do camponês mais simpló rio se cressem em tal ser sem um fundamento… A crença em Deus está ,
portanto, quase que confinada atualmente aos chamados homens instruídos que nã o sabem quase
nada sobre os processos naturais… Qualquer interesse teoló gico ou pedantismo tacanho que possa
ser ensejado em oposição a isso, ele será contravertido pela força dos fatos, que no que diz respeito a
isso nã o deixam margem para qualquer dú vida.
 
O pensamento pode e deve ser considerado um modo especial de movimento natural geral que é tã o
característico da substâ ncia dos elementos nervosos centrais como o movimento da contraçã o é da
substâ ncia-mú sculo ou o movimento da luz é do éter universal… As palavras mente , espírito ,
pensamento , sensibilidade , volição e vida nã o designam nenhuma entidade ou coisa real, mas apenas
propriedades, capacidades e açõ es da substâ ncia viva, ou resultados de entidades, que estã o baseadas
na forma material da existência. [15]

 
É o julgamento de Dampier-Whettham [16] que “No início do século XX a maioria dos
homens da ciência mantinha inconscientemente um materialismo ingênuo, ou, se de fato
pensava nesses problemas, era inclinada ao fenomenalismo de Mach e Karl Pearson, ou o
monismo evolucionista de Haeckel ou de W. K. Clifford”.
Entre os filó sofos da ciência do século XX tem havido uma tendência nã o só de negarem
eles mesmos o materialismo, mas também de minimizarem sua extensã o e importâ ncia no
século XIX. Essa interpretaçã o da histó ria da filosofia científica é sustentada de duas
maneiras. A primeira é o ceticismo cauteloso de alguns autores. Por exemplo, acabamos de
ver como Lévy-Bruhl hesitou em chamar Cabanis de materialista por causa da sua
ostensiva fuga das questõ es ú ltimas. Mesmo La Mettrie nã o é um segundo Hobbes. F. H.
Lange (1828-1875), em sua famosa History of Materialism , é um exemplo mais
convincente. Lange era uma espécie de kantiano com uma realidade incognoscível; uma vez
que é incognoscível, nã o podemos afirmar que ela é ou material, ou mental, com o resultado
de que, embora as categorias a priori nos forcem a pensar mecanisticamente, o
materialismo metafísico é ceticamente evitado.
Outro artifício para escapar do ró tulo desagradá vel de materialismo é insistir que por
definiçã o estrita materialismo é a teoria de pequenas esferas maciças se movendo no
espaço vazio. Assim, se um autor nega o espaço vazio e assume um corpo continuamente
elá stico ou etéreo, nã o pode ser chamado de materialista. Talvez possa ser chamado de
corporealista e, se imita Spinoza e atribui a sensaçã o ao corpo, possamos chamá -lo de
hilozoísta.
Essa é a posiçã o de Ernst Haeckel em The Riddle of the Universe . Embora seu prefá cio
modestamente negue a onisciência, ele está bastante convencido de que a conservaçã o da
matéria e a conservaçã o de energia sã o duas leis supremas da natureza. A descoberta delas
é o maior triunfo intelectual do século XIX. Em frases consecutivas ele diz:
 
A morte prematura de Spinoza, Raphael, Schubert e muitos outros grandes homens… é suficiente…
para destruir o mito insustentá vel de uma “Providência sá bia” e de um “Pai Celestial todo amoroso”. A
existência do éter (ou éter có smico) como um elemento real é um fato positivo [itá licos seus] e tem
sido conhecido como tal pelos ú ltimos doze anos. [17]

 
Seu interesse no éter e na conservaçã o da matéria é igualado e talvez sobrepujado por sua
antipatia pelo cristianismo, nã o só na forma da corrupçã o e intriga romana, mas também na
forma do protestantismo liberal. A crença na criaçã o, providência e milagres é incompatível
com a lei da persistência da matéria e da força (235). Até mesmo os ministros protestantes
liberais acalentam ideias de Deus que sã o diretamente opostas a toda experiência científica
(10). A ciência já tem “amplamente demonstrado” (13) que o Universo é eterno, que a
substâ ncia tem dois atributos — matéria e energia — e que a vida orgâ nica resultou da
á gua que foi produzida pelo arrefecimento geoló gico da Terra.
Haeckel evita o materialismo ordiná rio em favor do espinosismo. A matéria nã o pode
existir sem espírito nem o espírito sem matéria. “A matéria ou substâ ncia infinitamente
estendida e o espírito (ou energia) ou substâ ncia sensível e pensante sã o os dois atributos
fundamentais… da essência divina abrangente do mundo, a
substâ ncia universal” (20-21). Portanto ele também pode dizer: “A consciência, o
pensamento e a especulaçã o sã o funçõ es das células ganglionares do có rtex cerebral”.
Esse dogmatismo científico pode nã o ser um materialismo atô mico. Spinoza, de forma
semelhante, tentou evitar a acusaçã o de ateísmo ao tomar a natureza como sendo Deus.
Visto, no entanto, que ele negava a existência de um criador pessoal e transcendente do
Universo, insistir que ele nã o era ateu é meramente um jogo de palavras. Assim também,
quando o pensamento é identificado como uma secreçã o ou como os movimentos das
células ganglionares, nã o passa de um jogo de palavras alegar que o materialismo foi
abandonado. Todavia, deixemos quem quer insistir nessa picuinha; o tipo de ciência que
está sendo aqui discutido é o mecanicismo. Ele é um método que depende de mensuraçõ es
quantitativas e desconsidera qualidades. Seus resultados sã o equaçõ es diferenciais, e sua
filosofia é que nada existe que possa violar a lei mecâ nica.
Sem dú vida, as equaçõ es diferenciais têm seu pró prio apelo estético; mas será que esse
apelo pode ocorrer em um mundo completamente quantitativo, desprovido de qualidades?
Já foi explicado que os cientistas medievais afirmavam, e que Newton negava, o valor das
qualidades ocultas. Essas supostas qualidades sofriam de um defeito duplo: elas nã o
podiam ser observadas, e mesmo quando assumidas, eram inú teis para fins de explicaçã o.
Mas os tipos comuns de qualidade — por mais facilmente que fossem observá veis —
também se provaram, aos olhos de Galileu e Newton, igualmente inú teis para fins
científicos. Ao estudar o pêndulo ou a alavanca, ninguém pensa em prestar atençã o à sua
cor. Se o pêndulo é vermelho ou azul, nã o faz a menor diferença. Da mesma forma, se
alguém estuda os efeitos dos á cidos nos metais, o gosto nã o tem importâ ncia. E se alguém
deixa cair uma bola para ver o â ngulo do seu repique, o som que ela faz ao chocar com a
superfície nã o tem nada a ver com o objeto do experimento. Essas assim chamadas
qualidades secundá rias podem, portanto, ser ignoradas.
Nã o só porque sã o inú teis é que podem ser ignoradas; um pouco de reflexã o irá mostrar
que vermelho e azul, doce e azedo, barulhento e suave, quente e frio na verdade nã o
existem. Galileu considerou o fenô meno do calor. A opiniã o comum, em seus dias e hoje, era
que o calor é uma verdadeira qualidade que realmente reside na coisa que dizemos ser
quente. Mas quando Galileu pensou sobre a constituiçã o do corpo ou matéria, chegou à
conclusã o de que a matéria em sua pró pria natureza possui tamanho e forma; em relaçã o a
outros corpos, um pedaço de matéria pode ser grande ou pequeno; pode se mover ou
permanecer em repouso; toca ou nã o toca em outro corpo. Essas características sã o
absolutamente insepará veis do corpo; nó s nã o podemos separá -las fisicamente nem sequer
podemos imaginá -las separadas. O status das qualidades secundá rias, no entanto, é bem
diferente disso. Se fô ssemos seres de razã o pura e nã o possuíssemos sentidos,
provavelmente nunca teríamos qualquer ideia dessas qualidades. Ao invés de estarem
realmente no corpo, vermelho, doce e quente sã o meramente reaçõ es que ocorrem na
mente de um organismo sensitivo. Fossem as sensaçõ es abolidas, e vermelho e quente nã o
apareceriam mais em lugar algum.
Uma ilustraçã o notá vel desse ponto de vista é o experimento de Galileu com uma pena.
Suponha que uma pena se mova, ela tem um tamanho e uma forma, e a tocamos. Mas se ela
é roçada no lá bio superior logo abaixo das narinas, ela coça. Roce-a na parte de trá s dos
dedos, e ela nã o coça. Ora, diz Galileu, essas có cegas estã o todas em nó s e nã o na pena, e se
o corpo animado e sensitivo é removido (e a pena é roçada em uma está tua de má rmore),
as có cegas deixam de existir. O mesmo vale para os gostos, as cores, os odores e os sons.
Newton também negava a existência real das qualidades secundá rias. Falando das cores,
ele disse que os raios de luz nã o sã o estritamente coloridos. Neles nã o há nada mais do que
certo poder de provocar uma sensaçã o na mente. Assim também, o som de um sino nã o é
nada mais que um movimento trêmulo, e o som no ar nã o é nada mais que o consequente
movimento do ar. As cores e os sons, portanto, só existem na mente da pessoa que os sente.
E se a mente é precisamente o movimento das células ganglionares, entã o as cores e os
sons sã o precisamente os movimentos dentro do nosso crâ nio. Será que complicaria o
argumento se também fizéssemos a seguinte pergunta: se o vermelho que vemos nã o é uma
qualidade do corpo que vemos, mas apenas um movimento no cérebro, nã o sã o os corpos
que vemos e os movimentos que descrevemos nessas equaçõ es diferenciais também
meramente movimentos no cérebro?
A rejeiçã o das qualidades secundá rias é o lado negativo do ponto de vista científico; o lado
positivo é que a quantidade é real. A insistência na mediçã o quantitativa — ou melhor, essa
restriçã o da ciência aos relacionamentos matemá ticos entre pontos no espaço — estava em
decidido contraste com o procedimento medieval e aristotélico. Na filosofia escolá stica, um
dos conceitos científicos importantes era o da mudança qualitativa. A experiência
apresenta inú meros exemplos: nascimento, crescimento e morte; as mudanças do clima; a
deterioraçã o dos alimentos; o derretimento do gelo; e a ebuliçã o da á gua. Todos esses sã o
exemplos de mudança qualitativa. Mas quando as qualidades secundá rias sã o consideradas
irreais e quando a mediçã o espacial substitui todas outras observaçõ es sensoriais, a
mudança qualitativa nã o mais tem qualquer interesse para a ciência. Se nã o há qualidades,
nã o pode haver mudança qualitativa.
Essa nova perspectiva científica logo produziu um resultado interessante e importante. Na
visã o aristotélica alguns corpos eram pesados e outros, leves. Isto é, as diferenças
qualitativas eram a base de duas espécies totalmente diferentes de corpos — tã o diferentes
que as mesmas leis nã o poderiam se aplicar a ambos. Terra e á gua eram pesados, e
naturalmente caiam na direçã o do centro da Terra; ar e fogo eram leves, e seu movimento
natural era para cima em direçã o ao céu. Mas com o novo método matemá tico de mediçã o
do espaço, os experimentos logo foram concebidos para mostrar que o ar tinha peso. Duas
hemisferas de latã o foram colocadas juntas e o ar dentro delas sugado. A pressã o de ar
externa entã o tornou quase impossível separar as hemisferas. Mais uma vez, um tubo de
mercú rio, ou seja, um barô metro, foi levado montanha acima, e foi observado que a altura
da coluna diminuía à medida em que a altitude aumentava. Esses resultados sã o em si
mesmos bastante interessantes, porém mais importante é a generalizaçã o baseada neles ─
a saber, que todos os corpos sã o iguais e que um tipo de lei cobre toda a natureza.
Ao invés, portanto, de a natureza ser composta de corpos pesados, leves, quentes, frios e
coloridos sujeitos a mudanças qualitativas, ela é composta de minú sculos á tomos ou
esferas pesadas e rígidas que se movem no espaço, mas que nã o mudam a si mesmas.
Newton colocou desta forma: “Deus formou no princípio a matéria em partículas só lidas,
pesadas, duras, rígidas e mó veis… incomparavelmente mais duras que quaisquer corpos
porosos compostos delas”. Essencialmente, essa é a visã o do antigo rival de Aristó teles,
Demó crito. Atomismo é a teoria de que o mundo é composto de pequenas partículas
movendo-se no espaço vazio. Todos os fenô menos observados resultam do rearranjo dos
á tomos. Os fenô menos da vida e da mente, da mesma forma, devem ser explicados por
arranjos e movimentos mais complexos.
Claro, o pró prio Newton nã o tinha a intençã o de negar a existência de Deus e da alma; mas
as implicaçõ es da sua teoria foram entendidas como levando a isso. Um autor
contemporâ neo afirma:
 
A autoridade de Newton estava diretamente por trá s dessa visã o do cosmo que via no homem um
espectador débil e irrelevante (até onde alguém aprisionado num quarto escuro pudesse ser assim
chamado) do vasto sistema matemá tico cujos movimentos regulares de acordo com princípios
mecâ nicos constituíam o mundo da natureza. O mundo gloriosamente româ ntico de Dante… o mundo
em que as pró prias pessoas pensavam estar vivendo — um mundo rico em cores e sons, impregnado
de fragrâ ncias, cheio de alegria, amor e beleza… está amontado agora no canto, nos cérebros de seres
orgâ nicos dispersos. O mundo realmente importante que havia fora era um mundo duro, frio, sem
cor, silente e morto. [18]

 
É inclusive um tó pico de disputa se o mundo real — os á tomos — podem ser duros, pois
duro também parece ser uma qualidade em vez de uma dimensã o geométrica. Mas é
indiscutivelmente “um mundo de quantidades, um mundo de movimentos
matematicamente computá veis em regularidade mecâ nica” no qual as aspiraçõ es humanas
nã o podem passar de efeitos químicos misteriosos em compostos de carbono complexos.
Bertrand Russel escreveu um pará grafo muito citado, no sentido de que o homem é o
produto de causas que nã o tinham a previsã o do seu surgimento; que suas esperanças e
temores sã o a colocaçã o acidental dos á tomos; que nenhum heroísmo ou intensidade de
pensamento pode preservar uma vida individual além da sepultura; que todo labor,
inspiraçã o e gênio humanos sã o destinados à extinçã o e serã o enterrados sob os escombros
de um Universo em ruína. E, de maneira definitiva, diz: “Todas essas coisas, se nã o
absolutamente incontestá veis, sã o, todavia, quase tã o certas que nenhuma filosofia que as
rejeite pode esperar ficar de pé”. [19]
É agora ó bvio que a ciência chegou a conclusõ es de importâ ncia religiosa, ética e humana.
Mas é ainda ciência? Nã o será antes cientificismo? Nã o foi o limite tênue entre a ciência e a
filosofia de algum modo cruzado? Deve ter sido; pois embora a negaçã o dos milagres possa
parecer científica devido à incompatibilidade dos milagres com a lei matemá tica, a
existência Deus e a imortalidade da alma e o valor da vida humana em oposiçã o ao
desespero sã o questõ es da teologia e da ética e nã o da física matemá tica. Mesmo a
conservaçã o da matéria e a existência do éter — tã o amplamente demonstradas 12 anos
antes de The Riddle de Haeckel — podem ser filosofia, má filosofia, em vez de boa ciência.
 
 
Verdade absoluta e final
 
Mas muitos dos cientistas e a maioria dos líderes da opiniã o pú blica tomam tudo isso como
uma verdade absoluta e final. Karl Pearson, por exemplo, em sua famosa Grammar of
Science , ensinou: “A classificaçã o dos fatos e a formaçã o de juízos absolutos com base nessa
classificaçã o — juízos independentes das idiossincrasias da mente individual ─ resumem,
em essência, o objetivo e o método da ciência moderna ”. Que os juízos absolutos da ciência
se estendam à teologia e à ética, é algo que Pearson afirma no seguinte:
 
O objetivo da ciência é claro — nada menos que a completa interpretaçã o do Universo… A ciência faz
muito mais do que a demanda que deve ficar na posse tranquila do que o teó logo e o metafísico se
agradam em chamar seu “campo legítimo”. Ela reivindica que toda a gama de fenô menos, mentais
bem como físicos — o Universo inteiro — , é seu campo. Ela afirma que o método científico é a
ú nica porta de entrada para toda a regiã o do conhecimento. [20]

 
W. K. Clifford também estende a ciência à ética quando diz: “É sempre errado, em todo
lugar, e para qualquer um, crer em qualquer coisa com base em evidência insuficiente”.
Isso implica que, talvez com a exceçã o de alguns pequenos lapsos na moralidade, o pró prio
Clifford tinha evidência suficiente para os seus princípios científicos e antiteoló gicos.
O professor A. J. Carson fez uma declaraçã o particularmente vigorosa desse ponto de vista.
Embora seu trabalho profissional nã o estivesse nas ciências exatas, razã o pela qual se
esperaria ser ele menos dogmá tico que um físico, suas expressõ es sã o bastante
intransigentes e foram extraordinariamente influentes por terem sido publicadas duas
vezes. O artigo “A Ciência e o Sobrenatural” afirma:
 
Qual é o método da ciência? Em essência, este — a rejeição in toto de qualquer autoridade nã o
observacional e nã o experimental no campo da experiência… Quando nenhuma evidência é
produzida [em favor de um pronunciamento] além do dito pessoal, das “revelaçõ es” do passado e do
presente em sonhos ou da “voz de Deus”, o cientista nã o pode prestar nenhuma atenção, exceto
perguntar “Como conseguem dessa forma? [21]

 
Em seguida, Carlson afirma confiantemente: “O cientista busca se livrar de todos os tipos de
fé e crença. Ou ele sabe, ou nã o sabe. Se ele sabe, nã o há espaço para a fé ou crença. Se ele
nã o sabe, nã o tem direito à fé ou crença”.
Essa atitude de absolutismo é mais característica do século XIX que do XX, e é interessante
notar esse extremo de dogmatismo justamente na época em que o fundamento newtoniano
estava sendo arrastado. Na verdade, para grande surpresa, ela é encontrada em autores do
século XX, além de Carlson, que deveriam ter sabido mais.
Hans Reichenbach contrasta a incapacidade perene dos filó sofos de chegarem a um acordo
sobre qualquer coisa com o terreno comum, universalmente reconhecido, que a ciência
desenvolveu. Um professor de ciências pode ensinar “com o sentimento de orgulho de
introduzir seus alunos no reino de uma verdade bem estabelecida”. Os resultados da
ciência sã o “estabelecidos com uma validade super-pessoal e universalmente aceita”. [22]
Ora, Reichenbach nã o se opõ e a todos os sistemas de filosofia. A filosofia da aná lise, que se
abstém de se entregar à construçã o independente, é recomendá vel. Outras filosofias sã o
criaçõ es individualistas e glamorosas da arte, mas a filosofia da aná lise goza
 
da vantagem de pavimentar o caminho para a concordâ ncia universal, de configurar resultados que
finalmente serã o isentos de controvérsia e ataque. Ela é o caminho da ciência sobre a qual a filosofia
da aná lise ló gica está operando. Embora menos atraente para a mente româ ntica, a adoçã o do
método científico parecerá ser a consequência inevitá vel de um estudo imparcial da histó ria da
filosofia.
 
Ernest Nagel também herdou um toque de dogmatismo. No seu discurso presidencial de
1954, ele reconhece que os cientistas e filó sofos da ciência se tornaram extremamente
céticos no segundo quarto do presente século. Isso levou a uma especializaçã o estreita que
nã o deve ser de todo lamentada. No entanto, insiste Nagel, os pensadores científicos
sustentam, por vezes inconscientemente, certas pressuposiçõ es abrangentes relativas à
natureza geral das coisas. Ora, um filó sofo tem para si mesmo o dever de articular suas
pressuposiçõ es bá sicas e, conclui Nagel, os achados de diferentes ciências positivas apoiam
algumas e desmentem outras dessas generalizaçõ es amplas. Especificamente, o
naturalismo é um relato generalizado só lido do mundo, repetidamente confirmado por
séculos de experiência humana. A primazia causal da matéria organizada, a contingência
dos eventos sobre a organizaçã o de corpos espaço-temporalmente localizados, é uma das
conclusõ es mais bem testadas da experiência. Nã o há lugar para um espírito imaterial ou
para a sobrevivência da personalidade apó s a decomposiçã o do corpo. Esses princípios,
repete ele, sã o apoiados por evidências convincentes, evidências conclusivas.
Assim, é evidente que se Nagel nã o é tã o impetuoso como Clifford e Carlson, ele está muito
confiante de que a ciência apoia o naturalismo. Esse tremendo orgulho na verdade
permanente das fó rmulas científicas generalizadas tem sido amiú de usado também por
teó logos liberais em seu ataque aos crentes ortodoxos. Rudolf Bultmann, competindo com
Karl Barth pelo primeiro lugar na presente escalaçã o teoló gica, mantém ainda mais o
absolutismo do século XIX que Nagel ou Reichenbach. Em Kerygma and Myth , ele combina
uma confiança na permanência da lei científica com uma rejeiçã o da crença nos espíritos:
“Agora que as forças e leis da natureza foram [realmente] descobertas, nã o podemos mais
acreditar em espíritos, quer bons, quer maus” (4). Consistentemente, ele deveria negar a
existência de Deus, pois Deus é um espírito bom; mas ele parece nã o ser tã o consistente. E
entã o, em Jesus Christ and Mythology (36-38), ele empresta de Auguste Comte e afirma que,
embora a ciência possa mudar em alguns detalhes, o método de pensamento nunca voltará
a mudar. Ele vai ainda mais longe e parece sugerir que, embora a astronomia geocêntrica e
a heliocêntrica possam continuar a mudar, as leis (newtonianas?) do movimento sã o
verdades imutá veis.
Contrastando fortemente com Bultmann e com o dogmatismo científico em geral, a
declaraçã o de Philipp Frank ( Philosophy of Science , 90) é uma modesta antecipaçã o do que
segue: “Levou muito tempo para a teoria do movimento atual se desenvolver, e nã o
sabemos se ela é, ou nã o, o esquema correto para o futuro”.
 
 
Crítica
 
É bem conhecido que os avanços científicos do século XX têm alterado sobremaneira a
cosmovisã o newtoniana. Assim, antes de continuar com a histó ria mais recente, devemos
fazer uma pausa aqui para resumir e avaliar a posiçã o mais antiga. As leis newtonianas do
movimento deram origem à filosofia do mecanicismo. Todos os eventos ocorreriam através
da colisã o entre os á tomos. Nada inconsistente com as equaçõ es matemá ticas poderia
acontecer. Essas leis seriam descriçõ es fixas, absolutas e precisas de como a natureza
funciona. Logo, nenhum milagre, nenhuma alma, nenhuma imortalidade pessoal, nenhum
Deus poderia existir; e a vida na morte, o Universo sombrio, deveriam ser vividos com base
no desespero implacá vel.
O objetivo desta pró xima seçã o de argumentos é mostrar que a ciência newtoniana, de
forma totalmente independente de qualquer reversã o do século XX, nã o pode validamente
apoiar essas conclusõ es. O retrato da ciência é em si mesmo equivocado, e sua extensã o
para assuntos religiosos é injustificada.
Em primeiro lugar, os processos da ciência tal como efetivamente conduzidos nos
laborató rios nã o justificam a conclusã o de que as leis da mecâ nica descrevem a forma como
a natureza opera. As leis newtonianas nunca foram, pura e simplesmente, descobertas. Ao
contrá rio de Carlson, essas leis nã o excluem toda autoridade nã o observacional e nã o
experimental. Na melhor das hipó teses, a lei científica é uma construçã o em vez de uma
descoberta; e a construçã o depende de fatores jamais vistos sob o microscó pio, jamais
pesados numa balança e jamais manuseados ou manipulados.
Para justificar essas críticas, a lei do pêndulo servirá como um exemplo adequado. A lei do
pêndulo afirma que o período da oscilaçã o é proporcional à raiz quadrada do comprimento.
Se, no entanto, o peso do pêndulo for deslocado irregularmente em torno do seu centro, a
lei nã o se manterá . A lei assume que o pêndulo é homogêneo, que o peso está
simetricamente distribuído ao longo de todos os eixos, ou (mais tecnicamente) que a massa
está concentrada num ponto. Nenhum pêndulo físico assim existe, e, portanto, a lei nã o é
uma descriçã o precisa de qualquer pêndulo tangível. Em segundo lugar, a lei assume que o
pêndulo oscila por um fio nã o tensionado. Nã o existe um fio físico assim, e, portanto, a lei
científica nã o descreve nenhum pêndulo físico. E em terceiro, a lei só poderia ser
verdadeira se o pêndulo oscilasse em um eixo sem fricçã o. Nã o existe tal eixo. Segue-se,
portanto, que nenhum pêndulo visível concorda com a fó rmula matemá tica, e que a
fó rmula nã o é uma descriçã o de qualquer pêndulo físico.
Deve ser notado que esse exemplo nã o depende da distinçã o entre reló gios de pêndulo de
caixa alta e pêndulos sob condiçõ es de laborató rio. O pêndulo de laborató rio mais
cuidadosamente construído ainda está aquém dos requisitos ideais. Apenas um pêndulo
ideal, apenas um pêndulo imaginá rio, apenas um pêndulo nã o existente, é descrito pela lei
newtoniana.
Portanto, uma vez que as leis newtonianas nã o descrevem o funcionamento real da
natureza, elas nã o podem ser usadas como uma demonstraçã o satisfató ria da
impossibilidade de Deus e dos milagres. Se essa conclusã o parece ser um pouco prematura,
será necessá rio mostrar de forma mais completa que fatores nã o observacionais sã o
ingredientes essenciais na lei científica.
Para fazer isso, devemos examinar mais cuidadosamente o processo da experimentaçã o.
Nã o importa quã o complexo um experimento possa ser, seu processo bá sico será a mediçã o
de uma linha. Se um cientista tenta determinar o ponto de ebuliçã o de um fluido, mede o
comprimento do mercú rio em um termô metro. Se ele está interessado na gravidade
específica disso ou daquilo, mede a distâ ncia entre o marco zero numa balança e outra
marca na escala. Seja qual for o experimento, toda mediçã o é a mediçã o do comprimento de
uma linha.
Quando esse comprimento foi medido uma vez, o cientista em qualquer novo e importante
experimento repete o experimento e mede o comprimento uma segunda, uma terceira, uma
quarta vez, até que tenha uma longa lista de leituras. Essas mediçõ es sã o os fatores
experimentais; sã o os dados observacionais; mas elas nã o sã o os ú nicos fatores para se
chegar a leis. Depois que o cientista obteve sua lista de leituras, percebe que elas sã o todas
diferentes. A á gua nunca, bem, quase nunca, ferve à mesma temperatura. Um centímetro
cú bico de ouro dificilmente pesa o mesmo duas vezes. Assim, uma lista de leituras
diferentes é um resultado inevitá vel da mediçã o.
Com essa lista de leituras, o cientista faz o que parece ser apenas bom senso. Ele soma os
valores e os divide pelo nú mero de leituras; isto é, ele calcula a média aritmética. Para
propó sitos filosó ficos, esse passo deve ser cuidadosamente considerado. Por que seria bom
senso calcular a média aritmética? Para muitas pessoas isso parece ser a coisa natural a
fazer porque elas consideram que nó s precisamos de uma média, e a média aritmética é a
ú nica média que elas conhecem. Mas os estatísticos conhecem duas outras médias: a moda
— ou o nú mero que ocorre mais frequentemente — e a mediana — ou o nú mero do meio
na lista quando é disposta em ordem de grandeza. Por que entã o o cientista escolhe a
média em vez de alguma das outras duas? Essa questã o acaba sendo mais difícil de
responder do que a princípio pareceria; mas qualquer que seja a resposta tentada,
claramente nada nos dados observacionais ditou a escolha. Aqui está algo com que o
pró prio cientista contribui, sem dú vida a partir da sua pró pria teoria de matemá tica. Tal
escolha certamente nã o lhe é nem imposta pelo material experimental, nem descoberta por
ele nesse material. [23]
Esse é apenas o começo no uso de fatores nã o empíricos na construçã o de uma lei da física.
O pró ximo passo é o cientista subtrair cada leitura da média para encontrar a diferença.
Uma leitura pode ser .002 acima da média e outra .003 abaixo dela. Quando essas
diferenças sã o determinadas, o cientista — desconsiderando os sinais de mais e menos —
as soma e divide pelo nú mero de leituras, calculando assim a média aritmética das
diferenças. A essa média ele acrescenta o sinal de mais e menos da média original (por
exemplo, 19.31 ± .0025) e a chama de variá vel de erro. Mais uma vez o procedimento é
ditado por algo que nã o os dados observados.
Apó s o cientista ter feito isso para toda uma série de experimentos — por exemplo, o ponto
de ebuliçã o de um líquido a diferentes pressõ es, ou a força da gravidade entre os mesmos
dois corpos separados por diferentes distâ ncias —, seu pró ximo passo é a notá vel
confirmaçã o da conclusã o de que uma lei da física é uma construçã o e nã o uma descoberta
de como a natureza age. O passo que vai das diferentes médias com suas variá veis de erro à
equaçã o que será chamada de lei pode ser feito através da representaçã o grá fica desses
valores. Mas, é claro, em vez de indicar um ponto no grá fico, o valor 19.31 ± .0025 indica
uma linha; o correspondente intervalo de pressã o ou de força indica outra linha sobre
outro eixo, com o resultado de que os dois valores delimitam uma á rea retangular no
grá fico. O cientista traça uma série dessas á reas, cada uma correspondendo a um dos
experimentos de todo o conjunto.
Entã o ele passa uma curva através dessas á reas, e chama essa curva de lei. Mas aqui está o
problema. É possível passar através de uma série de retâ ngulos qualquer nú mero de
curvas. Mesmo através de uma série de pontos aparentemente em linha reta é igualmente
fá cil passar uma linha reta ou uma curva senoidal. Na verdade, deve ser particularmente
notado que através de uma série de á reas um nú mero infinito de diferentes curvas pode ser
passado. Os dados empíricos nã o necessitam de qualquer curva. Em outras palavras, até
onde a observaçã o esteja em questã o, o cientista poderia ter escolhido uma lei diferente da
que selecionou. Na verdade, sua gama de seleçã o era infinita; e desse infinito ele escolheu,
ele nã o descobriu, a equaçã o que aceita.
Essa consideraçã o nã o apenas mostra que as leis nã o sã o descobertas no material empírico
ou necessariamente deduzidas desse material, como também que se as equaçõ es
matemá ticas pudessem descrever a natureza, a chance de escolher a descriçã o correta seria
uma no infinito, ou zero. Portanto, todas as leis da física sã o falsas.
Quae cum ita sint , como nossos velhos amigos das aulas de latim do colegial diriam, segue-
se que a filosofia do mecanicismo nã o é uma conclusã o empírica tã o fixa e absoluta a ponto
de alguma outra crença ser imoral. Nã o é suficiente descartar os milagres neste mundo ou a
imortalidade no pró ximo. Nem é isso algo “quase tã o certo” que devemos trocar a fé em
Deus pelo desespero, quer cedendo, quer persistindo. O mecanicismo pode, por esta ou
aquela razã o, parecer plausível aos olhos de alguns filó sofos, mas nã o é uma necessidade
científica.
O verdadeiro estado de coisas pode ser revelado mais plenamente por outra consideraçã o.
A pergunta é: Como se chega à conclusã o de que o Universo é um mecanismo? Certamente
ela nã o é uma deduçã o vá lida a partir da experiência. Pelo contrá rio, é um salto de fé. Todos
nó s, incluindo os cientistas, temos a experiência comum de seres vivos, animais e homens;
também temos a experiência comum de má quinas. As diferenças entre as duas espécies de
coisas sã o ó bvias. Ora, devemos saltar para a conclusã o de que o homem e o Universo como
um todo sã o má quinas, ou devemos saltar para a conclusã o de que corpos em queda livre e
o Universo como um todo sã o seres vivos? Muitos dos antigos retratavam o Universo como
um ser vivo. Essa visã o nã o é uma excentricidade desconhecida, por mais que possa parecê-
lo aos materialistas recentes. Nã o apenas alguns antigos, mas alguns filó sofos modernos
também defendiam que o Universo é vivo. Leibniz compô s o mundo de almas, e o idealismo
hegeliano diz que ele é uma mente. Mas Galileu e a ciência newtoniana tomaram o Universo
como sendo uma má quina inanimada.
Aqui, entã o, está um problema importante. Sobre que base, experimental ou intuitiva,
deveria um cientista escolher sua imagem do Universo? Assim como a observaçã o dos
animais nã o necessariamente implica que o Universo é um animal — David Hume sugeriu
que era um repolho —, a experimentaçã o com bolas de gude nã o implica que ele é uma
má quina. De fato, poderia a familiaridade com qualquer parte do Universo justificar uma
conclusã o verdadeira para o Universo como um todo? Uma analogia é melhor do que
qualquer outra? Foi uma cegueira lamentá vel para os problemas ló gicos e filosó ficos que
levou os séculos XVIII e XIX se incomodarem cada vez menos com a ló gica da analogia.
Aqueles que se gabam da ciência estavam certos de que o Universo com o homem nele é
uma má quina.
Esses argumentos, entã o, minam a confiança de Clifford, Carlson e Russell. O mecanicismo
nã o é a descoberta científica de uma verdade fixa e final, e tampouco é qualquer lei da física
uma descriçã o de como a natureza funciona. Isso tudo pode ser afirmado estritamente
dentro dos limites da era newtoniana. Quando chegamos agora à revoluçã o científica do
século XX, nã o apenas essas conclusõ es sã o confirmadas, como também somos
apresentados a uma visã o radicalmente nova, nã o meramente da precisã o de leis
específicas, mas da natureza, das limitaçõ es, da finalidade e da importâ ncia da ciência como
um todo.

 
 

3. O SÉCULO XX
 
O fato mais bem conhecido sobre a física do século XX é seu tremendo avanço para além
tudo o que a precedeu. Popularmente, esse avanço é reconhecido no uso da televisã o, dos
aviõ es a jato e da bomba atô mica. Mas há também certa consciência por parte do pú blico de
que essas invençõ es dependem de novas leis da física, recentemente “descobertas”. Quase
todo mundo já ouviu falar de relatividade e Einstein. Há um entendimento bastante amplo
de que a física passou por uma revoluçã o. Naturalmente, os cientistas têm uma apreciaçã o
mais ampla do escopo dessa revoluçã o do que um pú blico geral; e por essa razã o eles estã o
mais dispostos a admitir que a ciência nã o descobre verdades absolutas. Se os cientistas
anteriores tivessem realmente descoberto uma lei, ela nã o seria agora rejeitada. A verdade
fixa e final nã o é para ser descartada. Portanto, a noçã o aristotélica e medieval, adotada
pelo epígono newtoniano, de que as leis da ciência estã o perenemente acima de qualquer
questã o foi em larga medida substituída pela visã o platô nica e mais cética de que toda
ciência é tentativa.
Esse ponto pressupõ e que a revoluçã o na ciência nã o é uma mera adiçã o de leis recém-
descobertas à s leis anteriormente descobertas, mas uma rejeiçã o das leis anteriores e sua
substituiçã o por leis diferentes. Para sustentar esse ponto, entã o, é necessá rio prosseguir
com um pouco mais de histó ria e exposiçã o. E o primeiro exemplo será o mais simples
possível.
 
 
O colapso da mecânica
 
A primeira lei do movimento de Newton e o fundamento sobre o qual todo o restante do
seu sistema está baseado é a lei da inércia: “Todo corpo continua em seu estado de repouso
ou de movimento uniforme em linha reta a menos que seja compelido a mudar esse estado
por forças exercidas sobre ele”. A dificuldade com as forças exercidas sobre os planetas já
foi discutida; agora a concepçã o de movimento uniforme em uma linha reta exigirá nossa
atençã o. Um estudo da astronomia faz alguém se perguntar se existe algo como um
movimento em linha reta. Que evidências há de tal movimento? Ou, de fato, como o
movimento em linha reta poderia definido?
Em linguagem coloquial, diz-se que uma bola de bilhar se move em linha reta se nã o
diverge do caminho mais curto entre sua posiçã o atual e um ponto fixo na mesa ao qual ela
chega num momento posterior. Uma linha reta, portanto, é determinada por dois pontos,
um dos quais sendo a posiçã o atual do corpo em movimento. Mas o que dizer do outro
ponto, chamado ponto fixo? Quer seja o caso de uma bola de bilhar, quer o de um aviã o
voando de Nova Iorque para Los Angeles, o movimento nã o é verdadeiramente uma linha
reta, ainda que os corpos em movimento se dirijam constantemente aos seus destinos.
Durante o tempo decorrido (isso é mais ó bvio, mas nã o mais real, no caso do aviã o), a Terra
gira e faz seu movimento de revoluçã o. Portanto, Los Angeles está constantemente
mudando sua posiçã o no espaço newtoniano.
“O espaço absoluto”, disse Newton, “em sua pró pria natureza, sem relaçã o com qualquer
coisa externa, permanece sempre similar e imó vel”.
Ora, se uma meta está constantemente mudando sua posiçã o no espaço, um corpo que está
sempre se movendo em direçã o a ele nã o pode se mover em uma linha reta. Isso que vale
para o aviã o e Los Angeles vale igualmente para um á tomo nos espaços interestelares. Se o
movimento desse á tomo pudesse ser observado como sendo na direçã o de uma estrela
“fixa”, o movimento nã o poderia ser um movimento em linha reta, pois a estrela nã o é fixa.
Ela também se move, assim como Los Angeles. Como nã o há pontos visíveis nos céus além
das estrelas, permanece sempre impossível descobrir um movimento em linha reta, se de
fato há algum. Talvez o planeta Marte esteja se movendo em uma linha perfeitamente reta
na direçã o de algum ponto hipotético invisível no espaço, levando todo o sistema solar
consigo; mas sendo esse o caso, nó s jamais poderíamos sabê-lo, pois nã o podemos fixar
esse ponto. Portanto, a ideia do movimento retilíneo deve ser descartada da ciência.
Uma vez que essa primeira lei do movimento, a lei da inércia, subjaz todo o sistema
newtoniano, uma falha nesse ponto automaticamente altera tudo o que se segue.
Essencialmente a mesma dificuldade está atrelada ao conceito newtoniano de repouso. A
primeira parte da lei tinha afirmado que um corpo continua em repouso a menos que
forças exercidas possam compelir a uma mudança. Um corpo assim pode existir? Como
alguém poderia identificá -lo? Newton escreveu (Escó lio à Definiçã o VIII):
 
Movimento absoluto é a translaçã o de um corpo de um local absoluto para outro; movimento relativo,
a translaçã o de um local relativo para outro… Mas repouso absoluto real é a continuidade do corpo na
mesma posição desse espaço imó vel… Mas podemos distinguir repouso e movimento, absoluto e
relativo, um do outro pelas suas propriedades, causas e efeitos. Uma propriedade do repouso é que
corpos realmente em repouso repousam uns em relaçã o aos outros. E, por conseguinte, assim como é
possível que em regiõ es remotas de estrelas fixas, ou talvez muito além delas, possa haver algum
corpo absolutamente em repouso; mas sendo impossível saber, a partir da posiçã o dos corpos uns
dos outros em nossas regiõ es, se quaisquer deles mantêm a mesma posição desse corpo remoto,
segue-se que o repouso absoluto nã o pode ser determinado a partir da posiçã o dos corpos em nossas
regiõ es.
 
Assim, o pró prio Newton reconheceu que era impossível identificar qualquer corpo como
estando absolutamente em repouso, mas nã o é prová vel que ele remotamente suspeitou da
situaçã o impossível que havia criado.
Repouso absoluto, movimento absoluto e o espaço absoluto em que eles supostamente
ocorrem levaram posteriormente a uma interessante ramificaçã o da teoria. Perto do início
do seu Principia , Newton, que era muito cuidadoso em definir massa , momento , etc., disse:
“Eu nã o defino tempo , espaço , local e movimento como sendo bem conhecidos de todos”.
Mas ele insistiu na distinçã o entre movimento absoluto e relativo, espaço absoluto e
relativo e tempo absoluto e relativo.
Esses absolutos nã o gozam de boa reputaçã o científica hoje, e a defesa de Newton do
movimento absoluto foi adversamente criticada. O experimento de Newton tinha sido
engenhoso. Ele fez um balde de á gua girar rapidamente. Newton usou uma corda e a torceu
o bastante para que o balde, assim que solto, produzisse um movimento de revoluçã o.
Assim que o balde começou a girar, a superfície da á gua permaneceu nivelada por algum
tempo; mas logo em seguida o balde transmitiu seu movimento à á gua. A á gua nã o só entã o
começou a girar, como também começou a subir pelos lados do balde, deixando o centro
deprimido a ponto de a superfície se tornar cô ncava. Com base nesse experimento, Newton
argumentou que quando o movimento relativo da á gua era maior — isto é, antes de o balde
ter transmitido sua rotaçã o à á gua —, a á gua permanecia nivelada. Logo, o movimento real
ou absoluto da á gua ainda nã o tinha começado. Mas na sequência, quando o movimento
relativo da á gua era menor — isto é, quando a á gua também estava girando —, a subida da
á gua pelo lado do balde mostrava uma tentativa de se afastar do eixo; e essa tentativa
revelava o movimento real da á gua, subindo continuamente até atingir seu ponto mais alto,
enquanto relativamente a á gua estava em repouso no balde. Ernst Mach responde:
 
Quando autores bastante modernos se deixam ludibriar pelos argumentos newtonianos que sã o
derivados do balde de á gua para distinguir entre movimento relativo e absoluto, eles nã o refletem
que o sistema do mundo nos é dado apenas uma vez , e que nossa interpretaçã o é a visã o ptolomaica
ou a copernicana, mas ambas sã o igualmente reais. Tente fixar o balde de Newton e girar o céu das
estrelas fixas e entã o prove a ausência de forças centrífugas! [24]

 
No que diz respeito à resposta de Mach, Hans Reichenbach acrescenta: “A resposta de Mach
está baseada no fato de que a força centrífuga pode ser interpretada relativisticamente
como um efeito dinâ mico da gravitaçã o produzido pela rotaçã o de estrelas fixas”. [25] Sobre
o mesmo assunto do movimento absoluto, embora nã o do experimento do balde,
Reichenbach havia mesmo dito:
 
Talvez nenhuma outra passagem demonstre tã o claramente a influência trá gica da filosofia de
Newton sobre o seu julgamento… Apó s dois séculos de erro, a “philosophia naturalis” finalmente
deixou as visõ es filosó ficas de Newton, mas isso nã o diminui as contribuiçõ es de Newton à física.
Felizmente, todo conhecimento empiricamente baseado é independente da interpretaçã o dos seus
descobridores, mas o preço dessa independência é que esse conhecimento é possuído apenas
aproximadamente.
 
Essa ú ltima sentença reduz muito o preço, mas a citaçã o inteira somada ao argumento de
Mach é uma evidência de que o sistema newtoniano nã o é mais aceito.
A extensã o do argumento contra o movimento absoluto aos conceitos de tempo e espaço
absoluto pode ser mostrada por uma referência adicional a Mach e Reichenbach. O
primeiro argumenta que
 
O tempo é uma abstraçã o à qual chegamos por meio da mudança das coisas… Um movimento pode,
em relaçã o a outro movimento, ser uniforme. Mas a questã o de saber se um movimento é em si
mesmo uniforme nã o faz sentido. Com idêntica justiça, também, podemos falar de um “tempo
absoluto” — de um tempo independente de mudança. [26]

 
O argumento deste ú ltimo aparece em uma aná lise incisiva que é demasiado complicada
para ser reproduzida aqui, mas a rejeiçã o do espaço absoluto está centrada na declaraçã o
“O espaço é a ordem de coisas coexistentes, ou a ordem de existência de todas as coisas que
sã o contemporâ neas”. [27]
Essas aná lises dos absolutos do espaço e do tempo podem parecer mais filosó ficas do que
estritamente científicas, se tal distinçã o retém qualquer significado apreciá vel. Mas
nenhuma objeçã o assim, por mais superficial que possa ser, pode ser levantada contra as
investigaçõ es recentes da velocidade e da luz. Elas podem ser oferecidas como as provas
experimentais convincentes de laborató rio de que a mecâ nica newtoniana entrou em
colapso.
As formulaçõ es de Newton pressupõ em a possibilidade de se determinar a posiçã o e a
velocidade de uma partícula de forma absoluta, isto é, à parte de sua relaçã o com qualquer
outra partícula. Ao mesmo tempo, a lei da gravitaçã o afirma a contínua interaçã o de todas
as partículas. Por muito tempo a incompatibilidade dessas duas pressuposiçõ es nã o
impediu o brilhante desenvolvimento da ciência newtoniana, e cientistas orgulhosos
rejeitaram as aná lises ló gicas como sendo especulaçõ es etéreas de filó sofos nebulosos; [28]
mas quando no passado bastante recente os fenô menos da luz se tornaram fatores mais
frequentes na experimentaçã o, a contradiçã o latente logo resultou na destruiçã o do nobre
edifício.
Um elétron, assim nossos experts contemporâ neos nos dizem, só pode ser estudado quando
troca energia com alguma outra coisa. Em completo isolamento ele jamais poderia ser
descoberto. Ora, um elétron é um corpo tã o pequeno (se é que é um corpo) que qualquer
troca de energia o perturba seriamente. Até mesmo a luz o perturba. Se ao estudar o
elétron usamos luz de comprimento de onda longo e pouca energia, a perturbaçã o pode ser
pequena e a velocidade do elétron dificilmente é alterada; mas a imagem será tã o obscura
que nã o poderemos determinar a posiçã o do elétron. Por outro lado, se usamos luz de
comprimento de onda curto e maior energia, sendo assim capazes de determinar a posiçã o
do elétron, seu movimento se torna imprevisível. Ou seja, quanto mais precisamente
determinamos a posiçã o do elétron, menos precisamente podemos determinar sua
velocidade; e quando mais precisamente determinamos a sua velocidade, menos podemos
determinar sua posiçã o. Mas para a previsã o científica, que vimos antes ser uma das
características mais importantes que distinguem a ciência moderna da antiga, a velocidade
e a posiçã o devem ser ambas precisamente conhecidas.
Isso basta para demonstrar que o determinismo mecanicista nã o é uma descoberta baseada
na observaçã o, mas uma tese a priori adotada por outras razõ es. Se isso é suficiente ou nã o
para demonstrar que a natureza é indeterminista, é uma questã o totalmente diferente. Mas
suficiente ou nã o, isso nã o é tudo. O experimento com luz produziu mais resultados
surpreendentes. Tem sido muitas vezes contada a histó ria, e para o presente propó sito
deve ser repetida, de como o século XIX refutou a teoria corpuscular da luz de Newton por
meio de um experimento crucial, que de uma vez por toda demonstrou a teoria das ondas e
a colocou além de qualquer dú vida futura.
A partir da mecâ nica dos fluidos, segue-se que a velocidade da luz no ar seria maior que na
á gua se a luz fosse um movimento ondulató rio em um meio; mas a velocidade da luz seria
maior na á gua se a luz fosse corpuscular. Infelizmente, nos dias de Newton nã o havia
nenhum método para fazer essas mediçõ es, e o pró prio Newton reconheceu a necessidade
de uma maior experimentaçã o. Arago delineou o experimento necessá rio em 1838, e em
1850 Leon Foucault o realizou. Ele descobriu entã o que a velocidade da luz é maior no ar.
De um ponto de vista estritamente ló gico, essa descoberta experimental nã o estabeleceria a
teoria ondulató ria, a menos que as ondas e os corpú sculos fossem as ú nicas alternativas.
Visto que nenhuma outra possibilidade era entã o conhecida, a maioria das pessoas
concluiu que a teoria ondulató ria estava demonstrada. O que eles tinham mais certeza era
que a teoria corpuscular tinha sido permanentemente refutada. Se essa teoria requer luz
para viajar mais rá pido na á gua, e de fato nã o requer, entã o a teoria corpuscular deve ser
falsa, permanentemente falsa.
De forma bastante surpreendente, outro experimento por assim dizer crucial foi realizado
em 1902 por Phillip Lenard, e sua importâ ncia foi vista por Einstein em 1905. Suponha que
uma fonte de luz brilhe sobre uma placa de cobre: a energia constituída na placa por
unidade de tempo pode ser medida. Se a distâ ncia entre a placa e a fonte de luz é
gradualmente aumentada, a quantidade de energia diminui. Ora, no pressuposto de que a
luz é um movimento ondulató rio, essa diminuiçã o continua infinitamente em direçã o a
zero. Se, no entanto, a luz é uma partícula, e a fonte emite tantas partículas por unidade de
tempo, a diminuiçã o nã o reduzirá uniformemente até zero, porque a energia absorvida pela
placa nunca pode ser menor do que a energia de uma ú nica partícula. O experimento
mostrou que a energia nã o diminui uniformemente até zero, mas, pelo contrá rio, diminui
até um e entã o cai de repente para zero. Assim, a teoria ondulató ria parece ter sido provada
falsa, permanentemente falsa.
Nesse ponto, devemos fazer uma pausa para esclarecer a ló gica tanto dessa situaçã o
particular como da verificaçã o experimental em geral. Um argumento simples da
verificaçã o procede assim: Uma dada hipó tese implica certos resultados definidos; o
experimento realmente dá esses resultados; portanto, a hipó tese é verificada e pode ser
chamada de lei. Obviamente, esse argumento é a falá cia de afirmar o consequente; e uma
vez que toda verificaçã o deve cometer essa falá cia, segue-se que nenhuma lei ou hipó tese
científica pode alguma vez ser logicamente demonstrada.
Parece, no entanto, que as hipó teses podem ser logicamente provadas falsas. O argumento
seria: Uma dada hipó tese implica certos resultados definidos; o experimento na verdade dá
um resultado contraditó rio; portanto, a hipó tese é falsa. Obviamente, esse é o argumento
perfeitamente vá lido de negar o consequente. Assim, ao que parece, embora as leis possam
ser provadas falsas, nunca podem ser provadas verdadeiras.
No entanto, há complicaçõ es, e a situaçã o que inspirou esta liçã o elementar de ló gica é um
excelente exemplo disso. O argumento estrito em 1850 deveria ter sido: A teoria
corpuscular da luz e toda a mecâ nica de Newton implicam o que o experimento negou;
portanto, ou a teoria corpuscular é falsa, ou algo está errado com a mecâ nica newtoniana,
ou ambos. Mas até à data ninguém se dispô s a questionar a mecâ nica newtoniana. O
experimento mais recente de Lenard e a argumentaçã o de Einstein mostram que a luz pode
consistir de partículas, se descartarmos a mecâ nica newtoniana. E atualmente as leis
newtonianas foram substituídas.
Estranhamente, os cientistas de hoje usam ambas as teorias da luz. Para alguns propó sitos,
eles dizem que a luz é um movimento ondulató rio; para outros propó sitos, dizem que a luz
consiste de partículas. Obviamente essas duas teorias nã o podem ser ambas verdadeiras.
Mas ambas se provam ú teis, e os cientistas contemporâ neos por vezes mostram um deleite
travesso nas suas pequenas inconsistências: como um brilhante cientista explicou, a luz nã o
é nem uma onda, nem uma partícula, mas uma wavicle . [29]

As duas teorias da luz tampouco sã o o ú nico exemplo do estado autocontraditó rio da


ciência. Experimentos sobre as propriedades térmicas dos gases usam uma teoria que
retrata os gases como um agregado de partículas discretas; mas na acú stica o cientista
representa o gá s como um meio contínuo. Logicamente, essas teorias nã o podem ser ambas
verdadeiras, e somos levados a concluir que a violaçã o da ló gica só pode ser justificada no
fato de que os cientistas nã o estã o interessados na verdade literal das suas leis.
Mas se a ló gica da situaçã o é facilmente determinada, a ciência da situaçã o é um tanto
quanto obscura. Que a mecâ nica newtoniana tenha entrado em colapso, nã o é algo obscuro.
Se os itens relativamente simples mencionados nã o sã o suficientes para convencer uma
pessoa, faça-a ler a nova fó rmula para a adiçã o de velocidades, a mudança da massa em
[30]
energia e novamente a dependência do movimento da velocidade, o problema da
simultaneidade, e uma longa lista de maravilhas modernas. O que permanece obscuro sã o
as leis específicas que a ciência irá propor em seguida, e se alguma lei científica voltará a
desfrutar tanto quanto dois séculos ou pelo menos duas décadas de aceitaçã o. A ciência
muda com rapidez cada vez maior. A afirmaçã o dogmá tica de verdades absolutas, a
exclusã o de todo dado nã o observacional, a ideia de que a ciência realmente descobre como
a natureza funciona têm sido amplamente refutadas. O que é necessá rio agora nã o é tanto
uma nova ciência, mas uma nova filosofia de ciência. E tentativas nesse sentido nã o faltam.
 
 
Operacionalismo
 
Nos ú ltimos anos do século XIX, houve dois grupos de cientistas filosó ficos. Um grupo,
contra o qual este argumento foi dirigido, enfatizava os resultados e conteú dos da ciência e
levantava princípios ú ltimos da natureza, da vida e da religiã o com base neles. Se esses
autores nã o eram todos estritamente materialistas, eram pelo menos naturalistas. O
segundo grupo, ainda que alguns de seus membros fizessem e ainda façam afirmaçõ es
naturalistas, enfatizava os métodos da ciência e rejeitava as questõ es dos princípios
ú ltimos como pseudoproblemas metafísicos. Estes autores sã o agora conhecidos como
positivistas ló gicos.
Talvez devamos localizar a origem do positivismo ló gico em Ernst Mach (1838-1916). Este
argumentou contra uma metafísica materialista bem como contra uma metafísica
mentalista. Mas se ele se opunha a toda a metafísica, como os positivistas ló gicos agora
fazem, é duvidoso, por causa da sua afirmaçã o de que a realidade é neutra. Em todo caso,
essa afirmaçã o é singularmente pouco informativa, e nã o vai além do incognoscível de
Lange e Kant. Neutra significa simplesmente que nã o é nem mental, nem material. Mas o
que isso positivamente é, ou mesmo quais alternativas existem, Mach e Lange nã o podem
dizer. Essas pessoas sã o frequentemente as primeiras a reclamar da falta de sentido da
teologia negativa. A eternidade é tomada como sendo a mera negaçã o do tempo sem
qualquer conteú do positivo. Mas dizer que a realidade é neutra é tã o negativo e tã o sem
sentido quanto.
Os seguidores posteriores de Mach tentaram ser mais consistentes. Eles definitivamente
recusaram toda metafísica.  Nenhuma declaraçã o sobre a realidade deve ser permitida. A
realidade ú ltima é um conceito vazio e inú til; ou, antes, é uma palavra sem um conceito.
Questõ es sobre a alma, até mesmo questõ es sobre a origem da vida, sã o pseudoproblemas.
Toda proposiçã o significativa (exceto as tautologias formais, processuais da ló gica e da
matemá tica) devem ser verificadas pela observaçã o sensorial. Uma declaraçã o que nã o
possa ser relacionada ao e testada pelo experimento científico nã o diz nada. Assim, tanto
Deus como matéria sã o sílabas sem sentido. Uma extensã o desse ponto de vista nos leva ao
operacionalismo.
Nos Estados Unidos, um dos primeiros e mais proeminentes defensores do
operacionalismo foi Percy Bridgman ( The Logic of Modern Physics , 1927). Embora seu
livro seja intensamente interessante, é impossível, no entanto, dar um relato completo dele
aqui. O presente objetivo é caracterizar e projetar uma linha de pensamento. Para esse
propó sito, nã o é necessá rio fazer plena justiça a Bridgman nem tampouco concordar com
tudo o que ele diz. Na verdade, pode-se sustentar que Bridgman nã o procede consistente
com suas principais teses. De qualquer modo, a situaçã o na ciência, que Bridgman tã o bem
descreve em outros aspectos, nã o parece justificar sua afirmaçã o de que “A atitude do físico
deve, portanto, ser a de um puro empirismo” (3). Assim, a presente finalidade é selecionar
aquelas ideias que constituem a contribuiçã o mais ú til de Bridgman e forçá -las, talvez, para
além dos limites que ele pró prio imporia.
Como estudante, Bridgman recebeu uma educaçã o newtoniana, e ele reconhece que “Foi
um grande choque descobrir que conceitos clá ssicos, aceitos sem questionamento, eram
inadequados para atender à situaçã o real” (1). Na Introduçã o (ix), ele antecipa a extensã o
do choque ao dizer que:
 
Os fatos experimentais sã o tã o completamente diferentes daqueles da nossa experiência habitual que
nã o só temos de aparentemente abrir mão de generalizaçõ es da experiência passada tã o amplas
como as equaçõ es de campo da eletrodinâ mica, por exemplo, como é mesmo questionado se nossas
formas habituais de pensamento sã o aplicá veis no novo domínio; é muitas vezes sugerido, por
exemplo, que os conceitos de tempo e espaço sucumbem.
 
Embora esse argumento da monografia tenha mostrado a impossibilidade de um
empirismo puro ao mostrar alguns fatores que nã o sã o dados observacionais, uma das
principais razõ es de Bridgman para a sua infeliz generalizaçã o é bastante só lida. Ele insiste
que os conceitos adequados em um determinado tipo de experimento nã o devem ser
assumidos como aplicá veis para outro gama de experiência. Ao invés de antecipá -la com
conceitos antigos, deve-se esperar pela experiência posterior, e só entã o decidir sobre que
conceitos usar.
Esse princípio geral é extensamente discutido sob a noçã o pitoresca da penumbra. Depois
de comentar que todos os resultados de mediçã o sã o apenas aproximados e que, portanto,
declaraçõ es sobre as relaçõ es numéricas entre as grandezas medidas sã o vá lidas apenas
até certo ponto, Bridgman conclui: “Nunca temos um conhecimento bem lapidado de
qualquer coisa, mas toda a nossa experiência está rodeada por uma zona limiar, uma
penumbra de incerteza, na qual nã o penetramos” (33). No que concerne ao que existe ou se
passa nessa penumbra, nã o se deve manter quaisquer noçõ es preconcebidas. Mesmo
 
a aritmética, até onde ela se propõ e a lidar com objetos físicos reais, também é afetada pela mesma
penumbra de incerteza… Se a declaraçã o de aritmética deve ser uma declaraçã o exata no sentido
matemá tico, o “objeto” deve ser uma coisa definida e lapidada que preserve sua identidade no tempo
sem nenhuma penumbra. Mas esse tipo de coisa nunca é experienciado, e tanto quanto sabemos nã o
corresponde exatamente a qualquer coisa na experiência… Mesmo só lidos [para nã o mencionar
líquidos e gases] evaporam ou condensam os gases neles, e vemos que um objeto com identidade é
uma abstraçã o correspondendo exatamente a nada na natureza [34-35].
 
Bridgman encontra a mesma espécie de penumbra presente em explicaçõ es físicas
também: “Uma explicaçã o nã o é uma espécie absoluta de coisa; o que é satisfató rio para um
homem nã o o será para outro” (38). As explicaçõ es dependem dos elementos ou axiomas
utilizados, e esses dependem do objetivo em vista e também do alcance da nossa
experiência física anterior. Portanto, as explicaçõ es mudam à medida que o físico progride:
 
No reino dos fenô menos quâ nticos é ponto pacífico que nossas antigas ideias de mecâ nica e
eletrodinâ mica têm falhado, sendo assim da maior preocupação descobrir quantos elementos das
antigas situaçõ es, se é que realmente algum, podem ser transportados para os novos [41].
 
Muitos físicos no passado nã o tiveram essa cautela. Confrontados com algo novo, eles
geralmente concebiam uma estrutura construída sobre elementos familiares e a usavam
para explicar o que estava além do seu alcance real de experimentaçã o. Mas, afirma
Bridgman, “Nã o há nenhuma garantia, qualquer que seja, na experiência para a convicçã o
de que à medida que penetrarmos mais e mais fundo, veremos os elementos da experiência
anterior repetidos” (43-44). Faraday e, em menor extensã o, Maxwell eram culpados desse
alargamento injustiçado dos conceitos quando tentaram explicar a eletricidade por
atraçõ es e impulsos mecâ nicos. Um exemplo anterior e mais horrível foi o de Boscovitch, na
sua tentativa de explicar a gravitaçã o. Bridgman é ainda mais enfá tico: “É difícil conceber
qualquer coisa mais cientificamente intolerante que postular que toda experiência possível
se conforma ao mesmo tipo com o qual estamos familiarizados” (46). A nostalgia pela
explicaçã o mecâ nica, diz ele, tem toda a tenacidade do pecado original.
A implicaçã o dessa linha de raciocínio é que devemos analisar a natureza em correlaçõ es
sem qualquer tipo de pressuposiçã o quanto ao cará ter dessas correlaçõ es. Devemos aceitar
como ú ltimo para a explicaçã o a mera declaraçã o de uma correlaçã o.
Em consideraçõ es como essas, Bridgman coloca em questã o a existência de campos
elétricos. Quase todo físico assume que um campo de força é uma realidade física:
 
A realidade do campo é autoconscientemente inculcada em nosso ensino básico… e é considerada o
conceito mais fundamental de toda a teoria elétrica moderna. No entanto, a despeito disso, creio que
um exame crítico mostrará que a atribuição da realidade física ao campo elétrico é totalmente sem
justificaçã o. Nã o consigo encontrar um ú nico fenô meno físico ou uma ú nica operaçã o física pela qual
uma evidência da existência do campo possa ser obtida independentemente das operaçõ es que
introduziram a definiçã o [57].
 
Em adiçã o a tudo isso, que pode ser chamado de negativo e destrutivo, Bridgman oferece
uma proposta positiva para a formulaçã o dos conceitos da física. Seu primeiro exemplo é o
mais simples possível — o conceito de comprimento. Para virtualmente todos os físicos do
passado, comprimento era uma característica física real para um objeto individual real. Era
algo que podíamos ver perante os nossos olhos. Mas se, como uma citaçã o prévia de
Bridgman já indiciou, nã o existe tal coisa como um objeto individual real, o conceito de
comprimento deve ser entendido de outra maneira:
 
O que queremos dizer com o comprimento de um objeto? Nó s evidentemente sabemos o que
entendemos por comprimento se podemos dizer o comprimento de todo e qualquer objeto, e para o
físico nada mais se requer. Para encontrar o comprimento de um objeto, temos de realizar certas
operaçõ es físicas. O conceito de comprimento é, portanto, fixo quando as operaçõ es pelas quais o
comprimento é medido sã o fixas; isto é, o conceito de comprimento envolve tanto quanto e nada mais
que o conjunto de operaçõ es pelas quais o comprimento é determinado. Em geral, por qualquer
conceito nó s nã o queremos dizer nada mais do que um conjunto de operaçõ es; o conceito é sinônimo
do conjunto de operações correspondente [itá licos seus; 5].
 
Se temos mais que um conjunto de operaçõ es, temos mais que um conceito, e deveria estritamente
haver um nome separado para corresponder a cada diferente conjunto de operaçõ es [10].
 
Ele passa entã o a mostrar que o “comprimento” astronô mico, o “comprimento” cotidiano,
ingênuo, e o “comprimento” microscó pico sã o três conceitos totalmente diferentes.
 
Qual é o possível significado da afirmaçã o de que o diâmetro de um elétron é 10 -13
centímetros? Mais
uma vez, a ú nica resposta é encontrada ao examinar as operaçõ es pelas quais o nú mero 10 -13
foi
obtido. Esse nú mero veio da resoluçã o de certas equaçõ es derivadas das equaçõ es de campo da
eletrodinâ mica, nas quais certos dados numéricos obtidos pela experiência foram substituídos. O
conceito de comprimento foi, por conseguinte, agora modificado para poder incluir essa teoria de
eletricidade incorporada nas equaçõ es de campo; e, mais importante, ele assume a veracidade de
estender essas equaçõ es das dimensõ es nas quais podem ser verificadas experimentalmente para
uma regiã o na qual sua veracidade é uma das questõ es mais importantes e problemá ticas da
atualidade na física… A bem da verdade, o conceito de comprimento desaparece como uma coisa
independente e se funde de uma maneira complicada com outros conceitos, todos os quais sã o eles
pró prios assim alterados… [21-22].
 
O significado dessa teoria da definiçã o operacional dos conceitos nã o deve ser perdido.
Comprimento, massa, carga elétrica e todos os conceitos da física sã o descriçõ es de
operaçõ es realizadas em laborató rio. Eles nã o sã o descriçõ es de objetos naturais ou
realidades físicas. As leis da física, as equaçõ es que incorporam os conceitos, nã o
descrevem como a natureza age. Elas descrevem como o físico age. Seria bastante
surpreendente se os processos da natureza e os processos do físico fossem iguais. Ao
contrá rio, a verdade mais certa da física é que a física nã o é verdadeira — nã o é verdadeira
como um relato do que a natureza é e como a natureza funciona. Os conceitos da física sã o
as operaçõ es do físico.
Desde que os conceitos mudam com a mudança das operaçõ es, segue-se que quando
investigamos fenô menos que estã o fora do domínio de um experimento anterior, é sempre
ilegítimo aplicar os conceitos assim obtidos. Uma mudança de operaçõ es muda os
conceitos; e usar os mesmos nomes em ambos os casos, quer seja comprimento , massa ,
tempo ou espaço , é tropeçar na ambiguidade. O que é pior, do ponto de vista do mundo
impecavelmente ordenado do mecanicismo, é que os conceitos perdem sua individualidade
e se fundem à medida que se aproxima dos limites experimentais. Apó s suas observaçõ es
sobre as dimensõ es de um elétron, Bridgman conclui que “os conceitos de comprimento e
os vetores de campo elétrico se fundem num todo amorfo” (24).
Bridgman ilustra entã o suas visõ es através de uma aná lise dos conceitos de espaço, tempo,
causa, velocidade, energia e alguns outros. Desde que o “comprimento” de uma vara
métrica nã o é o “comprimento” das ondas de luz, há pelo menos dois tipos diferentes de
“espaço”, tá til e ó ptico. Do mesmo modo, há dois tempos. Um dos tempos tem a ver com
eventos que ocorrem pró ximos um do outro no espaço tá til; outro, diz respeito a eventos
astronomicamente separados um do outro. A partir disso, segue-se também que tempo e
espaço estã o inextricavelmente misturados. “Isso nã o é primariamente uma declaraçã o
sobre a natureza, e poderia ter sido feita simplesmente pela observaçã o de que as
operaçõ es pelas quais o tempo estendido é medido envolvem aquelas para a mediçã o do
espaço” (69).
As complicaçõ es sã o enormes:
 
Nó s reconhecemos em princípio que o comprimento da vara métrica pode ser diferente quando em
movimento, que ele pode igualmente mudar durante a aceleraçã o incidente para movê-la de um lugar
a outro, e que, até que provado em contrá rio, a velocidade da luz pode ser uma funçã o da velocidade
ou da aceleraçã o [70].
 
Complicaçõ es como essas nã o diminuem quando se tratar de força, massa, energia e
termodinâ mica. Mas arrolar os detalhes é talvez agora desnecessá rio.
Bridgman também extrai a conclusã o de que, devido a essas consideraçõ es, todo o nosso
conhecimento é relativo. Aqui nó s nã o precisamos segui-lo, pois se trata de uma implicaçã o
invá lida. O relativismo filosó fico nã o segue do operacionalismo, e o ceticismo na ciência nã o
é ipso facto um ceticismo universal. Bridgman poderia ter concluído corretamente que todo
conhecimento obtido por processos de laborató rio é relativo; que todas as leis e conceitos
da física sã o relativos. Mas a conclusã o que ele realmente dá requer como premissa a
afirmaçã o absoluta de que o procedimento de laborató rio é a ú nica porta de entrada para
todo conhecimento. Esse princípio de Karl Pearson, no entanto, carece, como temos visto,
de uma justificaçã o empírica, científica e observacional. Talvez Bridgman concorde com
Pearson, mas ele nã o tem nenhuma base experimental ou operacional para essa
concordâ ncia.
Nã o apenas o cientificismo de Karl Pearson nã o tem suporte científico, como também a
afirmaçã o geral do relativismo filosó fico é autodestrutiva. Quando um filó sofo afirma que
todo conhecimento é relativo, ele deixa de reconhecer que viola seu pró prio princípio ao
afirmá -lo. Essa declaraçã o, ele nunca considera relativa e tentativa; essa declaraçã o, ele
nunca pretende substituir pela sua contraditó ria. Assim, os relativistas sã o absolutistas a
despeito de si mesmos. Mas se o relativismo e o ceticismo estã o confinados à ciência, os
operacionalistas tiveram uma vitó ria completa sobre as visõ es dogmá ticas da era
newtoniana.
 
 
Expressões de ceticismo
 
Em uma pá gina anterior, o dogmatismo inflexível foi ilustrado com uma lista de citaçõ es. A
ciência faz descobertas permanentes das operaçõ es da natureza, chega a verdades fixas e
formula julgamentos absolutos. Este é o local apropriado para incluir outra lista. Em
contraste com os precedentes, os cientistas mais recentes têm reconhecido certas
limitaçõ es da ciência e considerado um grau maior ou menor de ceticismo. As citaçõ es a
seguir sã o exemplos dessa tendência cética. O objetivo nã o é avaliar com precisã o o grau de
ceticismo de cada autor. Alguns deles, por exemplo Sullivan, sã o em geral menos céticos do
que parecem nas frases selecionadas. O objetivo, pelo contrá rio, é simplesmente apontar a
tendência do pensamento científico e enfatizar o nítido contraste entre os séculos XIX e XX.
A primeira nesta lista será a citaçã o final de Bridgman, desta vez de uma das suas
publicaçõ es posteriores, The Way Things Are :
 
Algumas pessoas vã o longe a ponto de definir ciência como o consenso de todos os observadores
competentes. Isso, parece-me, vai longe demais e faz perder a ênfase… “Pessoas competentes” em
qualquer época significa aquelas em dada época que eram sujeitas a um precondicionamento
definido… Isso nã o exclui a possibilidade de que todas as pessoas competentes estejam reagindo
incorretamente por causa de alguma característica na cultura contemporâ nea; e há exemplos, como
Weierstrass na matemá tica, onde o consenso em ú ltima aná lise foi demonstrado ter sido errado
[129].
 
A citaçã o aponta para a grande possibilidade de erro entre os cientistas. A grande maioria
pode estar toda errada. No entanto, isso nã o é razã o suficiente para se recusar a “definir
ciência como o consenso de todos os observadores competentes”. Meramente significa que
a ciência, como uma descriçã o da natureza, está normalmente, na verdade sempre,
enganada.
Em seguida, J. W. N. Sullivan em The Limitations of Science opõ e os extremos do
convencionalismo e mantém que realmente existem aspectos objetivos e físicos na
natureza de forma totalmente independente dos nossos métodos de medi-los; e,
aparentemente falando de si mesmo também, ele observa que a maioria dos cientistas
ainda acredita existir uma verdade científica final sobre o Universo da qual estã o se
aproximando (160-162). No entanto, essa crença numa verdade científica final, admite ele,
é um artigo de fé; o que as quantidades físicas fundamentais do Universo sã o, ninguém
sabe. Esse é um grau de ceticismo nunca encontrado em Bü chner, por exemplo.
Em outras passagens, Sullivan parece ainda mais cético. Representaçõ es pictó ricas de um
elétron sã o substituídas por símbolos matemá ticos, e nó s nã o sabemos o que esses
símbolos significam na verdadeira realidade física (38). Na pá gina seguinte ele até mesmo
diz que “verdade” na ciência é conveniência e que os cientistas sã o na prá tica pragmá ticos,
qualquer que seja a filosofia dogmá tica em que acreditem. E, finalmente, parafraseando um
tanto que livremente, nó s nã o precisamos conhecer a natureza das entidades que
discutimos; tudo o que realmente sabemos sobre essas entidades é o modo como afetam os
nossos instrumentos de mediçã o. Embora possamos medir distâ ncias no espaço, é evidente
que o espaço da física nã o tem nada a ver com o espaço da percepçã o. Desde que uma rede
matemá tica pode sempre ser tecida sobre qualquer distribuiçã o de objetos, o fato de a
física lidar com estruturas matemá ticas pode ser uma coincidência em vez de uma
descoberta. Sullivan questiona se a energia é um constituinte do Universo externo e duvida
de que ele nunca aumente ou diminua. A imagem de Bohr de elétrons girando dentro de um
á tomo foi inicialmente pensada como sendo fiel à realidade objetiva; mas agora nó s
percebemos que qualquer outra imagem, consistente com as equaçõ es, também o seria. E o
á tomo de Schrö dinger com suas ondas no espaço multidimensional é francamente nã o
crível. Entã o, para concluir essas frases selecionadas de Sullivan (38, 41, 141-162), citamos
sua afirmaçã o de que “é altamente prová vel que todas as teorias científicas estejam
erradas”.
Sullivan, como o presente autor, está interessado em defender certos valores éticos,
estéticos e teoló gicos da aniquilaçã o científica. Philipp Frank ( Philosophy of Science , 238-
242) critica seu argumento como sendo uma simplificaçã o grosseira. Sullivan havia
argumentado: Desde que os físicos nã o conhecem a natureza das entidades que discutem,
mas conhecem apenas as estruturas matemá ticas, a ciência nã o pode insistir que somente a
matéria em movimento é real e que Deus e a moralidade sã o irreais. Frank objeta que
alguns newtonianos tardios negavam a realidade da matéria e mantinham que somente a
energia é real, e esse tipo de física dá espaço para os valores. Ou, ao contrá rio, continua
Frank, “dificilmente é mais plausível considerar a beleza e a comunhã o com Deus como
ondas de Broglie do que considerá -las como massas materiais”.
A ú ltima frase e o tema que ela expressa sã o bastante verdadeiros. Nã o se pode defender as
realidades espirituais simplesmente substituindo a matéria em movimento pelas ondas de
Broglie. Nem tampouco, para remeter a outros autores, pode-se defender o livre-arbítrio
pela teoria quâ ntica ou a predestinaçã o pela relatividade. Mas talvez Frank tenham
entendido mal o argumento de Sullivan. Na medida em que Sullivan mantenha algum
dogmatismo do século XIX, ele pode estar aberto à crítica. Mas ela só pode se aplicar até
onde a física apreende a verdade absoluta.
Em que medida Frank acha que a física apreende a verdade absoluta? Em uma pá gina
anterior ele reconhece que:
 
Levou um longo tempo até que a teoria atual de movimento se desenvolvesse, e não sabemos agora se
ela é, ou nã o, o esquema certo para o futuro… É muito importante avaliar corretamente que as teorias
antigas tinham a sua pró pria beleza e consistência ló gica. Nã o podemos dizer que as pessoas que
acreditavam nelas estavam “erradas”, mas é certo que usavam um esquema simbó lico diferente [90].
 
Aqui Frank parece bastante cético: Nó s nã o podemos dizer que a teoria atual está certa
nem que as teorias antigas estavam erradas. Na primeira sentença, a frase “nã o sabemos
agora” deixa em aberto a possibilidade de que podemos chegar à verdade absoluta algum
dia, mas o restante tem uma tendência cética.
No entanto, ao criticar Sullivan, Frank parece adotar uma atitude mais dogmá tica. Ele
escreve: “Pode-se claramente ver que a palavra ‘incerteza’ no princípio de Heisenberg nã o
significa ‘incerteza’ sobre a verdade de uma teoria científica” (241). Isso é de fato verdade;
pode-se estar bastante certo de que o movimento subatô mico é incerto ou imprevisível.
Mas Frank aparentemente nã o vê que o argumento de Sullivan nã o traz essa confusã o.
Sullivan nã o argumenta “Visto que as ondas de Broglie substituíram as partículas atô micas,
podemos acreditar em valores ético e teoló gicos”. Antes, o argumento é: “Visto que o
avanço da ciência, dos á tomos para as ondas de Broglie e outras maravilhas modernas,
mostra que as leis físicas sã o apenas tentativas, que elas nã o sã o descriçõ es da natureza ou
declaraçõ es sobre a realidade ú ltima; visto que os cientistas de fato nã o têm nenhum
conhecimento das entidades naturais que discutem; e visto que é altamente prová vel que
todas as teorias científicas estejam erradas, a ciência nã o pode insistir que Deus e a
moralidade sã o irreais. A objeçã o de Frank a esse argumento é completamente irrelevante.
Bridgman e Sullivan já foram citados como tendendo ao ceticismo científico. A eles
poderiam ser somados vá rios cientistas, inclusive Frank, que admitem que preferências
estéticas — particularmente a respeito da simplicidade matemá tica ─ determinam as
equaçõ es mais gerais que um cientista aceita. Nenhuma descoberta da verdade física está
envolvida; é meramente uma questã o de beleza e elegâ ncia.
A estética nã o é o ú nico determinante nã o observacional da lei física. C. West Churchman,
de forma alguma um cético, escreve:
 
A questã o de fato mais simples na ciência requer, mesmo para uma aproximaçã o, um juízo de valor…
a ciência da ética (como todos os principais ramos da ciência) é básica [itá lico seu] para o significado
de qualquer questã o que o cientista experimental possa levantar. [31]

 
Sem entrar no mérito da questã o de como as normas éticas sã o estabelecidas, pareceria
que uma escolha das leis físicas com base em princípios éticos representa uma tendência
cética na física.
 
 
Objeções ao operacionalismo
 
Reconhecidamente, a teoria do operacionalismo e suas implicaçõ es céticas nã o sã o
universalmente aceitas pelos filó sofos e cientistas do século XX. Vá rios autores tentam
manter alguma forma atenuada de dogmatismo. A. R. Hall insiste que a ciência lida com
 
entidades materiais na natureza,… distingue firmemente entre teorias confirmadas por mú ltiplas
evidências, hipó teses, e especulaçõ es nã o confirmadas. Ela apresenta nã o um retrato possível ou
mesmo plausível da natureza, mas um retrato no qual todos os fatos disponíveis recebem sua posiçã o
ló gica e ordenada. [32]

 
Embora o restante do livro seja informativo e interessante, Hall parece se apoiar na
confiança ingênua e nã o faz nenhuma tentativa de lidar com os argumentos céticos.
Hans Reichenbach, previamente citado, faz melhor. O capítulo sobre racionalismo e
empirismo em Modern Philosophy of Science se estende até certo ponto na defesa da atitude
antiga para com a ciência. Em resposta a Hume, Reichenbach desenvolve dois pontos.
Primeiro, ele redefine conhecimento e verdade para preservar o “conhecimento” na ciência.
Poderia talvez ser argumentado que o que ele agora toma como “conhecimento” nã o está
longe do ceticismo. Mas o segundo ponto pode ser tratado mais rapidamente. O autor
parece interpretar a força dos argumentos de Hume como se apenas lançassem dú vida
sobre a acurá cia das previsõ es relativas ao futuro (142). Essa é uma interpretaçã o
manifestamente inadequada de Hume. A filosofia de Hume também descarta todas as
induçõ es e generalizaçõ es do passado.
Há dois outros autores que lidam com o operacionalismo de frente e em detalhes. É
necessá rio, portanto, considerar seriamente as objeçõ es de A. Cornelius Benjamin e Ernest
Nagel.
O professor Benjamin ( Operationism , 1955) faz uma crítica refletida e abrangente de
Bridgman. Dos dois principais elementos dessa crítica, um acusa Bridgman de
inconsistência em questõ es menores, enquanto o outro rejeita a teoria na sua forma mais
generalizada.
Quanto à s questõ es menores, Benjamin cita as definiçõ es inconsistentes (ou pelo menos
nã o relacionadas entre si) do seu método. Há um sentido estrito do termo operação ,
referindo-se à mediçã o por varas métricas, e um sentido mais amplo incluindo operaçõ es
mentais, isto é, de lá pis e papel. O fracasso de Bridgman em distinguir as operaçõ es
simbó licas das nã o simbó licas, seu fracasso em classificar as operaçõ es (ou mesmo de
arrolar seus tipos exaustivamente) ─ Benjamim toma essas coisas como sendo uma
confusã o fatal.
Gustav Bergmann também percebe essa dificuldade:
 
Embora as operaçõ es no sentido relevante sejam manipulaçõ es e nada mais, os “operacionistas” viam
operaçõ es por toda parte. Num extremo, as observaçõ es do cientista eram adornadas para serem
espécies de operaçõ es; no outro, suas atividades verbais e computacionais eram, como assim
chamadas operaçõ es simbó licas, arrebanhadas dentro do mesmo curral. Esse uso completamente nã o
específico de “operaçã o” (ou de qualquer palavra) nã o apenas é inú til; é também confuso. [33]

 
A continuaçã o dessa objeçã o por Bergmann especifica John Dewey como outro exemplo.
Contudo, nã o é evidente que se trata de uma falha tã o fatal e irremediá vel quanto Benjamin
pensa. John Dewey pode ser confuso, e Bridgman pode ter sido inconsistente. De fato,
parece que ele foi, porque além da sua afirmaçã o principal, “O conceito é sinô nimo das
correspondentes operaçõ es”, ele também disse “O aspecto operacional de forma alguma é o
ú nico aspecto de significados”. No entanto, essa nã o é uma objeçã o fatal e final ao
operacionalismo, pois confusõ es sã o evitá veis e inconsistências sã o removíveis.
Ora, nã o é de surpreender que a primeira obra de Bridgman, The Logic of Modern Physics
(1927), contenha vá rias infelicidades menores. Mesmo numa obra posterior, em que
responde diretamente a Benjamin ( The Way Things Are , 37-38), ele nã o aborda
plenamente as críticas. Mas o significado disso é de pouca importâ ncia para a presente
finalidade, e mesmo talvez para Bridgman também, porque, por um lado, os detalhes
menores podem ser ajustados e tornados harmoniosos, enquanto que, por outro lado, a
crítica se aplica a uma teoria estendida e generalizada do operacionalismo que deixa o
domínio mais estreito da física e se funde com a epistemologia geral.
Benjamin reconhece que Bridgman se exime de qualquer teoria geral de conhecimento e se
restringe ostensivamente à física e sua técnica. Mas, afirma o crítico, postulados
epistemoló gicos subjazem essa visã o restrita, mesmo que Bridgman nã o os afirme. Sobre
este ponto, Benjamin está totalmente certo. Nó s também reconhecemos que num lugar
Bridgman realmente afirma um relativismo epistemoló gico geral, e que, como Benjamin
alega, ele e seus seguidores sã o inclinados ao pragmatismo e positivismo ló gico. Benjamin
certamente tem razã o. Mas é um ponto que pode ser evitado, indubitavelmente em
oposiçã o à s inclinaçõ es de Bridgman, ao se insistir na visã o mais estreita do
operacionalismo e combinando-a com uma epistemologia externa a ambos os autores.
Vamos, portanto, limitar nosso argumento para as objeçõ es específicas de Benjamin à
forma mais estreita de operacionalismo. Ele sustenta que a tese “Os conceitos sã o
sinô nimos das operaçõ es físicas” é refutado de forma muito simples: ele é falso como uma
descriçã o das técnicas, fú til como uma proposta para o futuro e patentemente absurdo!
Por que, exatamente, Benjamin declara que o operacionalismo é falso e fú til, nã o é fá cil ver,
a menos que seja porque ele inclui esses dois pontos sob a rubrica do “patentemente
absurdo”. Nesse terceiro ponto, Benjamin argumenta que cada operaçã o é um evento
singular, datá vel, e nã o pode ser repetido. Assim, nã o é possível duas operaçõ es darem o
mesmo conceito. Portanto, ao se medir uma mesa com uma vara métrica, haveria diferentes
conceitos ─ nã o meramente diferentes comprimentos, mas diferentes conceitos de
comprimento ─ cada vez que a mesa fosse medida, ainda que pela mesma vara métrica. E a
maioria das pessoas concorda que isso é patentemente absurdo.
De forma muito clara, no entanto, esse absurdo nã o é o significado de Bridgman. Nessas
vá rias tentativas de medir a mesa, uma vara métrica é sempre usada. Embora os resultados
em centímetros possam diferir, o método ou operaçã o é o mesmo, e, portanto, há apenas
um conceito de comprimento envolvido. Somente quando varas métricas sã o substituídas
por microscó pios eletrô nicos ou outros instrumentos um conceito diferente aparece. E isso
nã o é patentemente absurdo.
Em vez de considerar a descriçã o de técnicas e mostrar que o operacionalismo por esse
motivo é falso, a objeçã o de Benjamin nã o concerne realmente ao operacionalismo como
uma teoria estreita da física, mas como uma epistemologia geral. Pois é neste contexto que
Benjamin acusa Bridgman de uma ênfase exagerada na particularidade. Bridgman, ao fazer
das operaçõ es eventos singulares, datá veis e nã o repetíveis, nã o forneceu, na opiniã o de
Benjamin, nenhum método de desenvolver conceitos abstratos a partir dos experimentos
singulares. Em outras palavras, Bridgman é um nominalista extremo: nã o há nada similar
em quaisquer duas aplicaçõ es de uma mesma vara métrica. Ora, o problema dos universais
é, evidentemente, um problema epistemoló gico substancial; mas isso dificilmente pode ser
uma razã o suficiente para reivindicar que o operacionalismo é falso como uma descriçã o
das técnicas na física. Que seja admitido que Bridgman, o físico, é fraco em epistemologia;
porém, o método de mediçã o por varas métricas é, todavia, um conceito universal ou
abstrato distinguível de técnicas microscó picas que dã o origem a um conceito diferente de
comprimento.
Benjamim também repete o reductio ad absurdum de Franz Adler. Para definir C some o n

nú mero de horas que um homem dorme numa dada noite ao comprimento do seu nariz,
mais ou menos 1 se ele gosta ou nã o gosta de fígado frito, etc.; repita as mensuraçõ es toda
segunda-feira até onde puder, e manipule as figuras em alguma fó rmula matemá tica. Assim
o conceito de C é um conceito científico cuidadosamente concebido.
n

Muito espirituoso, mas isso nã o é um reductio ad absurdum do operacionalismo. Se ele


reduz qualquer coisa ao absurdo, é toda a ciência que ele torna absurda. Até mesmo no
newtonianismo mais estrito, nã o há nenhuma garantia contra multiplicar o diâ metro da
Terra pela periodicidade das marés, dividindo por pi e correlacionando o resultado com a
velocidade da luz na á gua e no ar. Ambos os exemplos sã o absurdos no sentido de
inutilidade. E o operacionalista, tã o facilmente como o newtoniano, pode abandonar esses
experimentos e tentar encontrar outros conceitos mais ú teis.
Passar pela crítica de Benjamin é outro tema mais claramente expresso pelo professor
Nagel. Ele tem a ver com a objetividade, o verdadeiro valor das leis científicas e a referência
delas à natureza. Nagel observa ( The Structure of Science , 137) que os proponentes do
instrumentalismo ou operacionalismo acreditam assim que as teorias científicas revelam
ser temas impró prios para as caracterizaçõ es de verdadeiro e falso. Tal é
reconhecidamente o argumento dessa monografia. Nagel entã o acrescenta que nã o existe
nenhuma incompatibilidade necessá ria entre dizer que uma teoria é verdadeira e dizer que
ela é ú til. Isso nó s também admitimos. Mas é algo irrelevante, pois a questã o bá sica é se
uma teoria científica pode ser verdadeira. O problema principal é enfrentado no sentido
oposto. É este: Visto que, como foi mostrado, as leis da física nã o podem ser verdadeiras ─
isto, verdadeiras como descriçõ es de como uma natureza independente funciona ─, qual
entã o é o seu status? O operacionalismo ou instrumentalismo responde essa pergunta.
A falha na crítica tanto de Benjamin como de Nagel é a sua segurança indelével de que a
ciência deve ser verdadeira e deve compelir o assentimento de todos os investigadores sem
preconceitos. Assim, Nagel segue a dizer que os operacionalistas nã o concordam em seus
relatos dos “objetos científicos”, tais como elétrons e ondas de luz, que sã o ostensivamente
postulados pelas teorias microscó picas. Se isso é uma objeçã o só lida ao operacionalismo,
deve se aplicar aos cientistas nã o operacionalistas também, pois estes também divergem
em seus relatos dos elétrons e das ondas de luz. Entã o Nagel acrescenta: “Mas o ponto
adicional [nã o é um ponto adicional, mas o mesmo, sempre de novo] também pode ser feito
de que está longe de ser claro como, nesta visã o, esses ‘objetos científicos’ podem ser tidos
como coisas fisicamente existentes” (140). Mas quem disse isso? Nã o foi Bridgman. Nem
essa monografia. Os elétrons e as ondas de luz nã o sã o coisas fisicamente existentes; sã o
elementos de um conjunto de instruçõ es sobre como operar em um laborató rio. Ora, se
algum operacionalista indiferente discutiu a questã o de se á tomos existem e concluiu que
eles existem, como Nagel sugere, essa inconsistência infeliz em alguns poucos autores nã o
significa uma refutaçã o de toda a teoria.
 
 
Conclusão
 
Para uma conclusã o, devemos propor, em primeiro lugar, que as expressõ es de ceticismo
sejam tomadas mui seriamente. Na Introduçã o, um cientista contemporâ neo foi citado no
sentido de que estava absolutamente perplexo com o fato de que ao se pegar um lá pis por
uma das extremidades a outra vem junto. Esse enigma depende das distâ ncias entre os
á tomos que compõ em o lá pis e as distâ ncias mais imensas entre os misteriosos pró tons e
nêutrons que compõ em o á tomo. Noventa e nove por cento ou mais do espaço entre duas
extremidades do lá pis é completamente vazia; e a experiência ensina que se pegarmos uma
dú zia de grã os de areia no final de uma linha desses grã os, o resto da linha nã o virá junto. A
ciência, entã o, nã o tem nenhum conhecimento do que acontece quando pegamos um lá pis.
Embora esse exemplo venha do século XX, uma ignorâ ncia semelhante caracterizava a era
newtoniana, ainda que os cientistas dogmá ticos tenham sido ignorantes da sua ignorâ ncia.
David Hume deu o exemplo de duas peças lisas de má rmore que se aderem de tal maneira
que é necessá ria uma grande força para separá -las numa linha direta, embora façam muita
pouca resistência a uma pressã o lateral.
O presente autor inquiriu três físicos sobre esse problema. O primeiro explicou o fenô meno
pela pressã o do ar e o vá cuo. As superfícies lisas impedem que qualquer ar permaneça
entre as peças de má rmore. Elas sã o difíceis de separar porque a pressã o do ar no lado de
fora as mantêm juntas. O segundo físico explicou que quando as superfícies sã o muito lisas,
as duas faces estã o tã o pró ximas uma da outra que uma atraçã o molecular é estabelecida
semelhante à quela dentro de qualquer pedaço de má rmore. Separar as peças é quase tã o
difícil quanto puxar uma ú nica peça à parte. Perguntei a esse senhor se a pressã o do ar
tinha alguma coisa a ver com o fenô meno. Ele confiantemente afirmou que a pressã o do ar
era totalmente irrelevante. A atraçã o molecular é a explicaçã o. O terceiro físico respondeu
simplesmente que ninguém sabe por que as peças aderem. Estou inclinado a acreditar que
ele estava certo.
Portanto, o primeiro ponto desta conclusã o é reafirmar a declaraçã o de Hume:
 
O máximo esforço da razão humana é de reduzir os princípios, fonte dos fenô menos naturais, a uma
maior simplicidade, e de resolver os muitos efeitos particulares em algumas poucas causas gerais por
meio de raciocínios da analogia, experiência e observaçã o. Mas quanto à s causas dessas causas gerais,
em vã o tentaríamos a sua descoberta; e tampouco seríamos capazes de nos satisfazer com qualquer
explicaçã o particular dos mesmos. Essas fontes e princípios ú ltimos sã o totalmente inacessíveis à
curiosidade e inquirição humanas. [34]

 
O segundo ponto da conclusã o complementa o primeiro. A mera afirmaçã o de que a ciência
nos deixa na ignorâ ncia das operaçõ es da natureza nã o é uma filosofia da ciência suficiente.
Algo deve ser dito da natureza e utilidade da ciência. Portanto, o operacionalismo é
oferecido nã o como uma teoria geral de epistemologia, mas como a melhor filosofia da
ciência disponível. Essa é uma declaraçã o melhor do que a ciência é, do que a ciência
realmente faz e do que a ciência pode fazer.
Somente negando que a ciência é cognitiva é que alguém pode justificar o uso de teorias
contraditó rias. Por todas as consideraçõ es espirituosas sobre wavicles , duas equaçõ es
irredutíveis nã o podem ambas descrever a propagaçã o da luz. Nenhuma pessoa em sã
consciência pode aceitar ambas como descriçõ es acuradas da natureza. Mas se a ciência, em
vez de ser considerada cognitiva, é tomada como um método para dominar e utilizar a
natureza, nã o há nada repreensível em utilizar essas fó rmulas incompatíveis.
Mesmo acima o professor Nagel defendeu a ideia perfeitamente correta, mas
completamente irrelevante, de que uma fó rmula pode ser tanto verdadeira como ú til. A
esta altura quase todo mundo pode ver que a questã o relevante é: Uma fó rmula pode ser
falsa e também ú til? Pode.
Um exemplo interessante é a reduçã o da mortalidade em vacas com febre do leite. A teoria
da doença por germes, mesmo descoberta por Louis Pasteur, levou um veteriná rio
dinamarquês a injetar uma soluçã o antisséptica nos ú beres de vacas. A mortalidade caiu de
90 para 30%. Isso parecia confirmar a teoria da doença por germes, até que se descobriu
que a á gua destilada produzia tantas curas quanto a soluçã o antisséptica. Mais tarde, o ar
comprimido teve resultados ainda melhores. O operacionalismo aceitará os procedimentos
como ú teis, mas as teorias de como a natureza funciona na febre do leite eram falsas.
A ciência, entã o, nã o deve ser considerada cognitiva, mas sim uma tentativa de utilizar a
natureza para as nossas necessidades e desejos. Essa filosofia da ciência nã o é apresentada
como uma epistemologia geral, e certamente nã o como um relativismo universal. O
relativismo universal é autoestupidificante. Pelo contrá rio, o operacionalismo é aqui
oferecido absolutamente como uma filosofia da ciência. Em vez de ser a ú nica porta de
entrada para todo conhecimento, a ciência nã o é uma forma de conhecimento, seja qual for
— a menos que, como foi dito, se trate de um conhecimento do que fazer em um
laborató rio. Mas conhecimento da natureza, nã o. Para repetir uma citaçã o anterior de
Bridgman, “Isso [partícula da física] nã o é primariamente uma declaraçã o sobre a
natureza”
O terceiro ponto da conclusã o é que o relacionamento entre a ciência, por um lado, e a
religiã o, a moral e outras disciplinas normativas, por outro lado, deve ser construído em
termos radicalmente diferentes das visõ es de Bü chner, Clifford, Carlson e daqueles de
mesma mentalidade. O naturalismo científico, isto é, o naturalismo oferecido como uma
conclusã o inescapá vel da ciência, deve ser repudiado.
No seu discurso presidencial perante a Associaçã o Filosó fica Americana em 1954, Ernest
Nagel disse:
 
A ocorrência de eventos, qualidades e processos, e os comportamentos característicos dos vá rios
indivíduos, sã o contingentes sobe a organizaçã o dos corpos situados espaço-temporalmente, cujas
estruturas internas e relaçõ es externas determinam e limitam o aparecimento e o desaparecimento
de tudo que acontece. Que isso assim seja é uma das conclusõ es mais bem testadas da experiência…
Nã o há lugar para a operaçã o de forças incorpó reas, nenhum lugar para um espírito imaterial
dirigindo o curso dos acontecimentos, nenhum lugar para a sobrevivência da personalidade apó s a
corrupção do corpo que a exibe.
 
O argumento dessa monografia mostra que nã o existe nenhuma base científica para essas
inferências. Os corpos naturais sã o desconhecidos; os corpos científicos existem em vá rios
tipos diferentes de espaço e tempo; as estruturas internas estã o abaixo do limiar da
observaçã o; e as relaçõ es externas nã o explicam nada. Certamente, as relaçõ es externas ─
como a gravitaçã o ─ nã o determinam o aparecimento ou desaparecimento de qualquer
coisa; ao contrá rio, supostos aparecimentos supostamente determinam a lei da gravitaçã o.
Talvez, por algumas razõ es filosó ficas, um homem possa decidir que as mô nadas
leibnizianas (aquelas forças incorpó reas que fazem todas as coisas acontecerem) sejam
ilusó rias; mas nã o há nenhum argumento científico para provar isso.
Austin Farrer disse que nenhum homem moderno decente pode acreditar numa criaçã o
oito mil anos atrá s. Em resposta, perguntamos: Pode um cientista que está convicto de ter a
verdade, um cientista que nã o dá espaço para a crença ou porque sabe, ou porque nã o sabe
(e se sabe, nã o há espaço para a crença, mas se nã o sabe, nã o tem o direito de crer) ─ Pode
um cientista crer, saber ou provar que o mundo existe há mais de 24 horas ou mesmo 5
minutos? Estudiosos que, como Nagel, sã o tã o confiantes de que Deus nã o pode existir e
que, como Pearson, alegam fazer julgamentos absolutos que estã o além de qualquer
dú vida, deveriam ser capazes de cientificamente demonstrar com certeza absoluta que o
mundo existe há mais de cinco minutos. Essa nã o pode ser uma suposiçã o das mais
absurdas. Mas se é tã o absurda, isso nã o pode com a maior facilidade ser demonstrado
acima de qualquer dú vida? Qual, entã o, é o argumento científico contra a proposiçã o de que
apenas um minuto atrá s o Universo veio à existência, á rvores completas com anéis, seres
humanos com umbigo e cientistas com aquelas ideias que chamamos de memó ria? Em todo
caso, nã o posso imaginar qualquer observaçã o empírica que contradiga essa hipó tese
extremamente peculiar. Para descartá -la, outra coisa que nã o a ciência é necessá ria.
Tanto menos pode a física demonstrar a nã o existência de uma Inteligência Suprema que
fez o que a gravitaçã o nã o poderia e que dirige o Universo inteiro para os seus pró prios
fins. E como o procedimento de laborató rio ─ confinado no século XIX a condiçõ es
impossivelmente ideais no aqui e agora, e no século XX impedido de toda aplicaçã o
descritiva à realidade ─ pode mostrar que a personalidade nã o sobrevive à morte em uma
vida futura, é algo totalmente ininteligível.
Finalmente, para mostrar a inutilidade da ciência fora da sua pró pria esfera restrita, a
ciência nã o pode determinar seu pró prio valor. Sem dú vida, a ciência permite ao homem
dominar a natureza. Pela ciência bombas sã o feitas e o câ ncer poderá em breve ser curado.
A maioria das pessoas acha que as bombas e a medicina sã o coisas boas de se ter. Mas nã o
há nenhum experimento que prove a bondade dessas coisas. Elas sã o indubitavelmente
“boas para” alguma coisa; sã o meios eficazes para um fim. Mas pode a experimentaçã o
demonstrar que a destruiçã o de cidades ou o prolongamento da vida é algo bom?
O valor da ciência depende do valor da vida; mas o valor da vida, quando o suicídio é uma
escolha possível, e, portanto, o valor da ciência em si, deve ser determinado por algum tipo
de filosofia geral, da qual a ciência nã o é nem a totalidade, nem a base, mas apenas uma
parte subsidiá ria. E é a minha convicçã o que a melhor filosofia geral, na verdade a ú nica
posiçã o que administra satisfatoriamente todos esses problemas, é a filosofia revelacional
do teísmo cristã o.
 
 

PÓS-ESCRITO: OS LIMITES E USOS DA CIÊNCIA [35]

 
 
A maioria dos cristã os, quando pensa na ciência, tem em mente algum interesse
apologético imediato. Por exemplo, a filosofia mecanicista nega a ocorrência de milagres e
questiona o valor da oraçã o. Os cristã os comuns querem, entã o, um argumento para
justificar a oraçã o e os milagres. Ou, novamente, o behaviorismo elaborou uma teoria da
natureza humana que mina o conceito bíblico de pecado e tem levado muitos universitá rios
à imoralidade grosseira. Os cristã os devotos, naturalmente, querem alguma defesa contra
Sigmund Freud, Bertrand Russell e John Dewey. E subjazendo o behaviorismo está a teoria
da evoluçã o, pela qual todas as formas de vida derivam da matéria inanimada e a vida
humana, dos animais inferiores. Mais uma vez, queremos ver o homem nã o como um mero
animal sensorial, mas como uma alma racional que anseia por uma vida além-tú mulo.
 
Ciência como vocação
 
Embora a maioria dos cristã os pense nessas questõ es de forma um tanto que desordenada,
está claro que a Física, a Psicologia e a Zoologia sã o assuntos técnicos em que o pensamento
desordenado e desconexo nã o tem qualquer valor. Os estudiosos devem fazer dessas
ciências sua preocupaçã o profissional e dedicar sua vida à s formulaçõ es técnicas delas.
Alguns estudantes extremamente devotos, porém, vendo com preocupaçã o a apostasia das
igrejas, o secularismo da populaçã o e o recrudescimento universal da criminalidade, da
dependência das drogas e do terrorismo, agora questionam se uma vida de pesquisa
científica vale a pena ou é mesmo permissível a um cristã o. Os adultos na metade da
carreira dã o pouca atençã o a essa questã o, mas para um pequeno grupo de estudantes
dotados a ciência, como alternativa vocacional, é uma opçã o forçada e momentosa. O
presente ensaio, embora principalmente interessado na natureza e na filosofia da ciência
como tal, se permite, por causa de alguns desenvolvimentos atuais, começar com o
problema pessoal.
Todo estudante deve escolher a profissã o para a sua vida. O problema é real. Mas os
estudantes cristã os podem enfrentar a alternativa de pregar o Evangelho ou de fazer Física.
Eles nã o sã o suscetíveis a negar que a Bíblia aprova todos os métodos de ganhar a vida, à
exceçã o dos que sã o pecaminosos. Há muitas ocupaçõ es; e nem todo cristã o, por mais
sincero que seja, é obrigado a entrar no ministério. A ciência, portanto, é uma vocaçã o
legítima.
Por outro lado, no presente estado de coisas, o mundo em geral mantém a ciência em tã o
alta estima que alguns cristã os têm começado a questionar o valor de se pregar o
Evangelho. Eles já começam a partilhar da idolatria da ciência. Visto serem cristã os
professos, criados em lares evangélicos, mantendo uma ligaçã o com visõ es bíblicas, esses
filó sofos-teó logos pinçaram Gênesis 1.28, cunharam a frase “mandato cultural” e
enfatizaram a tal ponto a subjugaçã o da Terra para o conforto do homem que o ministério
acabou sendo realmente rebaixado. Alguns foram longe a ponto de sugerir que a pregaçã o
do Evangelho deveria cessar até que a sociedade fosse reconstruída em linhas socialistas e
pronta, assim, para aceitar o cristianismo.
Nos dias pré-diluvianos, esse mandato cultural de Gênesis foi cumprido pelo
desenvolvimento da agricultura, pela domesticaçã o dos animais, pela invençã o de
instrumentos musicais, pela metalurgia e pelas artes rudimentares de guerra. Esses foram
avanços científicos — científicos, pelo menos, no sentido de que a ciência deveria começar
dessa maneira —, mas foram feitos, assim nos dizem os registros, principalmente pela
linhagem ímpia de Caim e nã o pelos descendentes de Sete. Mais tarde, como observado em
Êxodo 31, alguns da linhagem piedosa eram há beis na arte, se nã o na ciência.
A Escritura, assim, aprova as artes e as ciências. Mas ela nã o aprova a pesquisa física em
exclusã o de outras ocupaçõ es dignas. A aprovaçã o admite, e neste caso requer, um
reconhecimento de graus de importâ ncia. De fato, o Antigo Testamento mostra pouco
interesse em matemá tica e física, ao mesmo tempo que atribui um papel contínuo aos
sacerdotes e levitas. E no Novo Testamento, se Paulo tivesse considerado o cumprimento
do mandato cultural um pré-requisito para a execuçã o da “Grande Comissã o”, o
cristianismo jamais teria ido além das fronteiras da Palestina. Menos ênfase ainda requer o
mandato cultural hoje, pois, com a ajuda especial da linhagem ímpia, ele tem sido muito
mais plenamente obedecido que a Grande Comissã o.
Também deve ser observado que há uma grande lacuna ló gica entre as simples palavras de
Gênesis e algumas das propostas atuais feitas sob sua égide. Se alguém apela à Escritura
para um mandato cultural, também deve mostrar, por exemplo, que as políticas precisas da
Associaçã o Cristã para o Trabalho do Canadá (CLAC), a desvalorizaçã o da moeda, a
exigência de que pequenas empresas com somente quatro ou cinco empregados façam
longos relató rios trimestrais em quintuplicado, a lei contra os idosos com artrite nos dedos
impedindo-os de ter acesso aos remédios em recipientes facilmente abertos e volumes de
regulamentos irritantes sã o deduzíveis por silogismos vá lidos nã o de Gênesis , mas de
outras partes da Bíblia. Caso contrá rio, no entanto, a ciência é uma ocupaçã o
indubitavelmente legítima para um universitá rio.
 
 
O que é Ciência?
 
De interesse pessoal, nada mais a acrescentar. A ciência é legítima e importante, assim
como real e generalizada. Esse julgamento, contudo, levanta a seguinte questã o: o que é
ciência? Qual é a natureza e funçã o da experimentaçã o em laborató rio? Será que ela, por
silogismos vá lidos, pode suportar uma cosmovisã o mecanicista, banir Deus do Universo e
reduzir a oraçã o à meditaçã o sobre outros assuntos?
Essas perguntas sã o na verdade questõ es de interesse apologético, mas as respostas só vêm
mediante uma aná lise filosó fica técnica. Infelizmente, um ensaio breve como este só poderá
cobrir um pouco do assunto. Portanto, o behaviorismo, a evoluçã o e muitas outras coisas
mais precisam ser omitidos para podermos nos concentrar num assunto — física — com
maior profundidade. Essa limitaçã o pode ser de certa forma justificada porque a biologia
depende da física e os vá rios pontos de vista sobre a ciência bá sica alteram profundamente
todas as disciplinas que dela dependem. Portanto, apó s uma breve descriçã o de alguns
desenvolvimentos histó ricos, a aná lise do procedimento adotado em laborató rio e da
formulaçã o das leis físicas levará à s conclusõ es aqui propostas.
Como a pesquisa histó rica também deve ser breve, nã o há por que focar a era pré-
newtoniana. Usando o trabalho de Galileu e Kepler, Sir Isaac Newton estabeleceu princípios
que nortearam os avanços científicos por dois séculos. De 1686 (ou tã o logo os cientistas
puderam ler o Principia Mathematica ) até aproximadamente 1900, toda a física estava
baseada em certas definiçõ es e leis bá sicas, das quais os seguintes exemplos sã o
especialmente importantes:
 
O tempo absoluto, verdadeiro e matemá tico, em si mesmo e por sua pró pria natureza, flui
uniformemente sem relaçã o com qualquer coisa externa…
 
O espaço absoluto, em sua pró pria natureza, sem relação com qualquer coisa externa,
permanece sempre similar e imó vel.
Movimento absoluto é a translaçã o de um corpo de um espaço absoluto para outro…
 
Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma
linha reta a menos que seja obrigado a mudar esse estado por forças impressas sobre si.
[36]

 
Com base nessas premissas, Newton, com incrível genialidade e infinita paciência, elaborou
seu sistema gravitacional em grandes detalhes. Embora seu triunfo tenha sido esmagador,
seu edifício hoje está em ruínas. Nada dele permanece. Tanto o seu desenvolvimento como
o seu fracasso lançam luz sobre a natureza e o compasso da ciência.
Durante a vida de Newton, Leibniz argumentou que a Principia dependia de um conjunto de
contradiçõ es. Mas os outros cientistas nã o ficaram impressionados com as objeçõ es desses
filó sofos de araque; eles firmemente operaram sobre a teoria newtoniana em suas muitas
leis subordinadas. Entã o, dois séculos mais tarde, Ernst Mach, bastante inocente sobre a
erudiçã o leibniziana, redescobriu a asneira ló gica de Newton: a lei da gravitaçã o e os
conceitos de tempo e movimento absoluto nã o podiam ser combinados. Como Hans
Reichenbach escreveu:
 
A famosa correspondência entre Leibniz e Clarke… sugeria que Leibniz tivesse tomado
seus argumentos das exposiçõ es da teoria de Einstein… Essa concepção da relatividade foi
mantida num momento posterior por Ernst Mach [que argumentou]… que a relatividade
do movimento rotacional requer uma extensã o do relativismo para o conceito de força
inercial. [37]

 
O material técnico relevante está disponível para qualquer um que queira lê-lo. Aqui, deve
ser suficiente indicarmos apenas duas das dificuldades de Newton. Em primeiro lugar, a
ideia de que o tempo absoluto flui uniformemente sem relaçã o com qualquer coisa externa
é cientificamente inú til e filosoficamente impossível. A razã o é a seguinte. Quando medimos
o movimento de um automó vel, dizemos que ele vai a 50 quilô metros por hora, isto é, uma
determinada distâ ncia num determinado tempo. Mas se o pró prio tempo flui
uniformemente por nó s, esse movimento do tempo nã o pode ser medido pelo tempo —
assim como o movimento do automó vel é medido pelo tempo —, mas apenas por sua
relaçã o com algum “supertempo”. Agora, se o tempo pode ser medido em segundos e o
movimento de um carro em metros por segundo, em que velocidade se dá o fluxo uniforme
do tempo? Em segundos por o quê? O automó vel vai em metros por segundo ; o tempo vai
em segundos por o quê? Apó s responder isso, deve-se seguir e perguntar se esse
“supertempo” também flui uniformemente. E assim por diante, ad infinitum .
Uma segunda dificuldade com a teoria newtoniana diz respeito ao princípio do movimento
em linha reta. Um método empírico para identificar o movimento retilíneo no espaço
absoluto é impossível. O cientista precisaria, além da localizaçã o atual do corpo em
movimento, de um ponto fixo no espaço para o qual o corpo estivesse se movendo. Uma
estrela fixa satisfaria essa exigência. Mas nã o há estrelas fixas. Por isso, o conceito de
movimento em linha reta é inú til na ciência.
Note também que a lei da gravitaçã o conflita com a distribuiçã o observada da populaçã o de
estrelas. A gravitaçã o implica um centro no Universo em que haja mais estrelas por volume
cú bico do que nos outros lugares, com a populaçã o de estrelas diminuindo gradualmente
do centro para uma á rea distante de completo vazio. Contudo, a observaçã o real nã o
corrobora essa hipó tese.
Nesse ponto, o leitor nã o científico pode querer outra referência para a apologética. Três
podem ser dadas. Primeiro, a hipó tese do mecanicismo newtoniano — pelo qual W. K.
Clifford, Karl Pearson e outros condenaram os milagres — nã o tem prova experimental. Os
cientistas podem permanecer, e alguns permanecem, mecanicistas, mas nã o têm nenhuma
base científica para fazê-lo. Assim, nã o existe nenhum argumento científico vá lido contra os
milagres.
Em segundo lugar, se o majestoso sistema newtoniano se desintegrou, e se a ciência deve
estar sempre baseada em tentativas, nenhuma síntese futura pode ser tomada como
verdadeira e final. Todo mundo sabe que a Física tem passado por enormes mudanças,
porém mesmo alguns cientistas acham difícil compreender a imensidã o disso. Por exemplo,
em “As limitaçõ es da Ciência”, J. W. N. Sullivan conta uma interessante histó ria sobre os
avanços e as dificuldades da ciência contemporâ nea. Mas embora detalhe as dificuldades,
apresente as limitaçõ es e beire o ceticismo, ele nã o se coloca em posiçã o de finalmente
reconhecer que a ciência sempre será tentativa. [38] Entretanto, sua pró pria evidência é
conclusiva. Tã o rá pidas e extensas foram as mudanças na Física desde a aboliçã o do éter e a
invençã o das wavicles , [39]
que se pode afirmar com confiança que, conquanto o
newtonianismo tenha durado dois séculos, nenhuma teoria hoje parece prová vel durar
duas décadas. Os argumentos deste capítulo se referem diretamente à Física; mas se a
Física é sempre tentativa e nunca final, podem as ciências que dela dependem ser
superiores? Claramente, nã o. Portanto, os argumentos anticristã os baseados na ciência
sempre dependem de premissas que em breve serã o descartadas.
Há também um terceiro ponto, ou pelo menos uma confirmaçã o do segundo. A seguinte
aná lise do procedimento de laborató rio irá mostrar por que nenhuma lei da Física já foi ou
mesmo pode ser alguma vez uma descriçã o verdadeira dos processos naturais.
 
 
O método experimental
 
Com base no pressuposto de que os conceitos de tempo e espaço absoluto estã o
desacreditados e que a lei da gravitaçã o sucumbiu ante o assalto da relatividade, é
pertinente contrastar a visã o de ciência do século XX, baseada na tentativa, com a visã o do
século XIX de que a Física chega à verdade absoluta. A populaçã o em geral, embora
vagamente consciente dos grandes avanços científicos deste século, ainda mantém o
otimismo newtoniano de que a ciência realmente descobre a verdade. No lado oposto,
alguns cientistas profissionais conhecem tanto de ciência moderna e tã o pouco de histó ria
que duvidam que já houve uma teoria de verdade fixa em Física. Houve já uma tal teoria, no
entanto. Seus expoentes nã o sã o espantalhos. [40]
Karl Pearson, em sua “Gramá tica da Ciência”, ensinou que “a classificaçã o de fatos e a
formaçã o de juízos absolutos com base nessa classificaçã o — juízos independentes das
idiossincrasias da mente individual — resumem, essencialmente, a finalidade e o método da
ciência moderna ”. Que os juízos absolutos da ciência se estendam à teologia e à ética, é algo
que Pearson afirma explicitamente:
 
O objetivo da ciência é claro — nada menos que a completa interpretaçã o do Universo… A ciência faz
muito mais do que urge ser deixado na posse imperturbá vel do que os teó logos e metafísicos se
agradam em chamar de seu “campo legítimo”. Ela afirma que toda a gama de fenô menos, mentais
assim como físicos — o Universo inteiro — é o seu campo. Ela afirma que o método científico é a
ú nica porta de entrada para toda a regiã o do conhecimento. [41]

 
O professor A. J. Carlson escreve:
 
Qual é o método da ciência? Em essência é isto ─ a rejeiçã o in toto de toda autoridade nã o
observacional e nã o experimental no campo da experiência… Quando nenhuma evidência é
produzida [em favor de um pronunciamento] além da personal dicta , de “revelaçõ es” do passado e
do presente ou da “voz de Deus”, o cientista nã o pode dar nenhuma atençã o, exceto para perguntar
“Como se chegou a isso?”.
 
Carlson, entã o, confiantemente afirma: “O cientista tenta se livrar de toda espécie de fé e
crença. Ou ele sabe, ou ele nã o sabe. Se ele sabe, nã o há espaço para a fé ou crença. Se ele
nã o sabe, nã o tem direito à fé ou crença”. [42]
Mesmo Hans Reichenbach, que, como a citaçã o anterior mostra, deveria saber mais,
sucumbe ao excessivo otimismo. Na sua “Moderna Filosofia da Ciência”, ele contrasta a
perene incapacidade dos filó sofos de concordarem em qualquer coisa com o terreno
comum, universalmente reconhecido, que a ciência desenvolveu. Um professor de ciências
pode ensinar “com o sentimento de orgulho de introduzir seus alunos em um reino de
verdades bem estabelecidas”. Os resultados da ciência sã o “estabelecidos com uma
validade super-pessoal e universalmente aceita”. [43]
Philipp Frank, por outro lado, interpreta de forma mais precisa o estado de coisas
contemporâ neo: “Levou um longo tempo até a teoria de movimento atual ser desenvolvida,
e nã o sabemos se ela é ou nã o o esquema correto para o futuro”. [44]

Nesse ponto, é instrutivo notar quã o retró grados sã o muitos teó logos liberais. Rudolf
Bultmann, por exemplo, afirma em “ Kerigma e Mito” que “agora que as forças e leis da
natureza foram descobertas, nã o podemos mais crer em espíritos, bons ou maus”. Se [45]

fosse consistente, Bultmann deveria negar a existência de Deus, pois Deus é um espírito
bom; mas ele nã o parece ser tã o consistente. E entã o, em “Jesus Cristo e Mitologia”, ele se
baseia em Auguste Comte para afirmar que, embora a ciência possa mudar em alguns
detalhes, seus métodos de pensamento nunca mais irã o mudar. Ele vai ainda mais longe
[46]

e parece sugerir que, embora a astronomia geocêntrica e a heliocêntrica possam continuar


mudando, as leis (newtonianas?) do movimento sã o verdades imutá veis.
Para sustentar a afirmaçã o anterior de que a física jamais pode descobrir ou formular uma
descriçã o verdadeira dos processos naturais, é apropriado seguir agora com uma aná lise
técnica, embora simples, da metodologia de laborató rio. O que um cientista faz, o que ele
deve fazer, o impede de descobrir alguma vez a verdade ─ a verdade supostamente fixa e
absoluta de Clifford, Pearson e Carlson, a lei inalterá vel, final e insubstituível.
Apó s escolher um problema e iniciar um experimento pertinente à sua hipó tese, o cientista
logo inicia mensuraçõ es. Na verdade, se poderia dizer que todo experimento à mediçã o o
comprimento de uma linha. Pode ser o comprimento de mercú rio num tubo; pode ser uma
certa distâ ncia numa fita métrica; ou a distâ ncia entre dois pontos num mostrador. O
cientista registra essa leitura. Entã o repete o experimento e faz uma segunda leitura. Por
quê? Uma possível razã o para a segunda leitura é que seus olhos podem ter piscado na
primeira vez. Eles poderiam, é claro, piscar na segunda vez também, mas o cientista espera
que um grande nú mero de leituras irá minimizar esses defeitos. Mas há também outra
razã o para fazer uma segunda ou vigésima segunda leitura. Pode ser que o mercú rio ou o
marcador de aço esteja palpitando, constantemente se expandindo e se contraindo no fluxo
universal. Uma barra de metal pode nã o se expandir uniformemente em todas as
temperaturas, nem todas as vezes, mesmo dentro de limites muito estreitos de
temperatura. Pior ainda (no que diz respeito à verdadeira ciência), o pró prio objeto sendo
medido também pode estar vibrando. Poderia algum experimento provar que um
centímetro cú bico de ouro, á gua ou enxofre mantém sempre o mesmo peso? As mediçõ es
sempre variam, e os pesos atô micos sã o apenas médias. Se essas variaçõ es sã o casuais,
entã o a verdade fixa é impossível, nã o só porque nossos olhos piscam, mas também porque
o objeto em si nã o é fixo. De fato, em anos recentes este ú ltimo ponto de vista tem sido
aceito por alguns cientistas, como em breve será explicado.
Antes de levar adiante a discussã o sobre o indeterminismo metafísico ao qual o ú ltimo
pará grafo se refere, consideremos se a utilizaçã o de médias pode neutralizar o piscar dos
olhos e assim preservar a veracidade das leis físicas. O que o físico faz é repetir um
experimento muitas vezes e registrar uma lista das leituras divergentes. Em seguida ele
calcula sua média aritmética. Há outras médias que ele poderia usar, mas por nenhuma
razã o empírica o físico prefere a média aritmética. Há outros fatores nã o observacionais
que contribuem para os achados do físico. Na verdade, os achados do físico nã o sã o achados
de fato. Sã o formulaçõ es. Vá rios fatores na formulaçã o de uma lei estã o completamente
ausentes de evidência observacional, mas para o momento é suficiente notar que o físico
escolhe um tipo de média dentre outras.
Em seguida, cada leitura é subtraída da média aritmética, e uma média desses desvios é
calculada. Essa segunda média é anexada à primeira e entã o chamada de índice de erro.
Nessa altura, o físico tem uma longa lista de figuras como 17.03 ± .0007. Entã o ele repete o
experimento uma série entediante de vezes e obtém uma longa lista de figuras semelhantes
à descrita acima.
Para formular sua lei, o físico agora transfere esses valores para um papel grá fico, onde
aparecem como pequenos retâ ngulos. Através deles ele desenha uma curva, determina uma
equaçã o algébrica que originará uma curva correspondente e anuncia isso para o mundo
como uma lei da física.
Para simplificar o argumento, suponhamos que as médias resultem em três manchas no
papel grá fico que pareçam podem ser unidas por uma linha reta. O cientista pode entã o
anunciar que a lei é ou . Isso poderia significar que a pressã o na parte
inferior de um vaso aumenta e reduz com a altura do líquido, ou que a temperatura varia
com o comprimento de uma coluna de mercú rio. Contudo, esses pequenos retâ ngulos
também podem ser unidos por uma curva senoidal; na verdade, por um nú mero infinito de
curvas senoidais, e mesmo por alguma de um nú mero infinito de outras curvas.
Que três á reas, ou mesmo três pontos numa linha reta podem ser pontos numa curva
senoidal é mais facilmente demonstrado visualmente desenhando-se uma linha reta
através de uma curva dessas.  Mais reconditamente, a equaçã o
pode sempre passar por três pontos determinados por . As duas equaçõ es
definitivamente nã o sã o a mesma lei na física.
O leitor paciente pode permitir ou ignorar um exemplo mais complexo. Suponha que uma
série de experimentos produza vá rios valores a serem assinalados logo acima do eixo x .
Aos olhos da pessoa eles também poderiam parecer com uma linha reta. Mas poderiam ser
a extremidade assintó tica de uma hipérbole. Ou, para pegar um caso real, os valores
poderiam ser a extremidade assintó tica da lei da gravitaçã o, que nã o é uma hipérbole. Mas
desde que esses valores sã o á reas retangulares, eles poderiam estar conectados pela
equaçã o complicada
 

 
 
Ou, reconhecendo que as leis da física sã o escolhidas por consideraçõ es estéticas, os
mesmos valores também podem ser determinados pela equaçã o muito mais bonita
 

 
 
Para conectar isso com a gravitaçã o, a ú ltima equaçã o poderia ser alterada para
 
 
Aqui nó s temos o cerne da controvérsia entre choque ou contato e açã o à distâ ncia. Newton
pensava que dois corpos se aproximam um do outro, entram em choque e se afastam. A
açã o à distâ ncia parecia-lhe uma impossibilidade nã o mecâ nica, sobre a qual fez sua
declaraçã o frequentemente citada hypotheses non fingo (nã o faço hipó teses). Mas nã o há
nenhuma evidência observacional que requer corpos entrando em choque. A força de
gravitaçã o pode aumentar até que a distâ ncia entre os dois corpos seja infinitesimal, em
cujo ponto uma força de repulsã o tem início; a curva tem uma inflexã o para baixo de um
ponto alto no eixo y para um valor negativo igualmente grande. Portanto, a açã o à distâ ncia
bem como as forças impressas de Newton sã o igualmente compatíveis com as observaçõ es
empíricas. A experimentaçã o jamais descobre como a ciência funciona. Toda lei da física é
uma equaçã o e, se vista como uma descriçã o dos processos naturais, falsa. A lei é
indubitavelmente imprová vel; ela pode ser chamada de falsa, pois (mesmo à parte da teoria
do indeterminismo) a partir de uma visã o estritamente mecanicista a chance de selecionar
a verdadeira descriçã o entre todas as leis que a observaçã o permite é uma no infinito, ou
zero.
Numa conversa sobre a natureza da realidade ú ltima, Chaim Tschernowitz cita Einstein, ao
dizer: “Nã o sabemos nada, de fato, sobre isso. Nosso conhecimento nã o passa de um
conhecimento de colegiais…Nó s deveremos saber um pouco mais do que sabemos agora.
Mas a natureza real das coisas — essa nó s jamais saberemos, jamais”. [47]

Segue-se disso a conclusã o de que a ciência jamais pode refutar a veracidade do


cristianismo. Ela jamais pode provar ou refutar qualquer afirmaçã o metafísica ou teoló gica.
 
 
Ciência e cristianismo
 
Dois exemplos dessa conclusã o negativa devem ser agora explicados; e entã o deve ser feita
uma declaraçã o sobre o valor ou importâ ncia da ciência, se ela é sempre falsa.
Os dois exemplos dessa conclusã o negativa objetivam enfatizar que nenhuma conclusã o
metafísica ou teoló gica é possível. Embora o argumento tenha mostrado que a ciência nã o
pode afirmar o mecanismo, igualmente se segue que ela tampouco pode afirmar o
indeterminismo. Por volta de 1930, Heisenberg convenceu o mundo de que se os seus
experimentos sobre partículas usassem suficiente luz para localizar o objeto, a velocidade
dele nã o poderia ser determinada, porque a pró pria energia da luz afetava o objeto. Por
outro lado, se a luz fosse tênue o bastante para nã o interferir na velocidade, o objeto nã o
poderia ser localizado. Mas a partir desse trabalho científico admirá vel, Heisenberg chegou
à conclusã o de que o mecanismo é falso e o indeterminismo é verdadeiro. Essa inferência é
invá lida. [48]
A incapacidade do cientista de construir um experimento que possa
determinar tanto a velocidade como a posiçã o certamente nã o dá nenhuma informaçã o
sobre as leis ainda desconhecidas das partículas infinitesimais. Ou, no que diz respeito a
isso, a incapacidade do cientista torna incerto se a natureza é de fato constituída de
partículas, ou se é um continuum . O resultado é zero; nem positivo, nem negativo.
Alguns apologistas cristã os, embora reconheçam que esse resultado destró i todos os
argumentos científicos contra os milagres, ainda podem defender o mecanismo científico
porque a segunda lei da termodinâ mica parece provar a doutrina de uma criaçã o no
passado finito e refutar a doutrina da eternidade do Universo. No entanto, se é impossível
medir com precisã o uma linha, e se uma série de á reas sobre um grá fico fornece um
nú mero infinito de equaçõ es que se pode escolher, a segunda lei da termodinâ mica,
juntamente com todas as demais, se torna tentativa e falsa.
Suponha que um cientista, por um breve instante na sua vida, esteja na costa da praia
observando a maré baixando. O nível da á gua desce um metro em 12 horas, ou em 12
bilhõ es de anos. Ele conclui que a maré nã o pode estar baixando desde a eternidade, pois se
assim o fosse, a á gua já teria alcançado seu nível mais baixo milhõ es de anos antes daquele
momento de observaçã o. Evidentemente, é filosoficamente impossível a maré subir da
mesma forma que desce; ou nã o?
Agora, o cientista termodinâ mico observou alguns sistemas de energia, poucos em nú mero
e no má ximo pelo período de algumas poucas vidas. Ele viu o refluxo e, sem nunca ter visto
uma maré subindo, registrou alguns pontos sobre um grá fico. Eles se parecem com uma
linha, mas um matemá tico pode muito bem ligá -los por uma perturbadora curva senoidal.
O cientista vive na era do refluxo; numa era futura, as diferenças de energia voltarã o a
aumentar.
Talvez um exemplo simplificado e artificial possa tornar mais claro como uma série de
nú meros pode acomodar uma variedade grande, mesmo infinita, de equaçõ es. Suponhamos
que o primeiro ponto esteja em 3, o segundo ponto em 9 e o terceiro em 19. [49] Agora,
suponha a experimentaçã o que termine com o nú mero 9. A experimentaçã o deve sempre
terminar em algum lugar, pois do contrá rio nenhum momento seria deixado para formular
uma lei. Se, entã o, o ú ltimo experimento desse o nú mero 9, a lei poderia ser e — em vista da
antipatia do cientista pelas complicaçõ es de Rube Goldberg — seria x = 3 . O primeiro
n

nú mero é 3, o segundo é 3 à segunda potência e o terceiro será extrapolado no grá fico e


predito como 27.
Mas neste exemplo a experimentaçã o nã o parou em 9. O cientista seguiu para a sua terceira
média, 19. Portanto, x = 3 é refutado. Uma nova fó rmula deve ser concebida. Bem, o
n

cientista tem um nú mero infinito de escolhas, das quais duas sã o:


 
 e 
 
Esse exemplo artificial deveria convencer qualquer um de que em qualquer teorizaçã o
científica há infinitas possibilidades de extrapolaçã o. Cada uma descreve o processo natural
igualmente bem; isto é, nenhuma delas pode ser mostrada como sendo a verdadeira
descriçã o. Assim, toda lei da física deve ser falsa, pois a ciência sempre está baseada na
tentativa.
 
 
O valor da Ciência
O pú blico em geral, incluindo os teó logos conservadores e alguns cientistas, podem rejeitar
essa tese do ensaio com uma repulsa irracional; mas caso nã o o façam, certamente irã o
perguntar — e é uma pergunta legítima: “Se a ciência é sempre falsa, que valor ela tem?”. A
ciência tem feito maravilhas. Mesmo a cura do câ ncer ainda nã o estando ao nosso alcance,
nó s pusemos homens na Lua. Como poderiam leis falsas ter produzido essas maravilhas?
A resposta é que uma lei nã o precisa ser verdadeira para ser ú til. Leis científicas agora
universalmente reconhecidas como falsas amiú de foram muitas ú teis. Por exemplo,
nenhum astrô nomo contemporâ neo aceita a teoria geocêntrica de Ptolomeu. Todavia,
mesmo depois de Copérnico ter se apropriado indevidamente do sistema heliocêntrico de
Aristarco e Platã o, o sistema ptolomaico ainda era capaz de predizer as posiçõ es dos
planetas com maior precisã o que a teoria copernicana; e assim, as leis de Ptolomeu eram
mais ú teis para essas prediçõ es, quaisquer que fossem as utilidades destas. Da mesma
forma, a teoria de que campos eletromagnéticos existem é agora negada, pelo menos por
alguns cientistas; mas ninguém nega que essa teoria falsa ajudou bastante no avanço da
utilizaçã o da eletricidade.
Para aliviar o sofrimento daqueles que se cansam com física, outro exemplo — mais
interessante — pode ser tomado da zoologia ou medicina veteriná ria. No século XIX, a febre
do leite nas vacas era uma temível doença com morbidade estimada em 90%. Apó s a guerra
franco-prussiana, Pasteur propô s a teoria da doença por germes e curou casos de antraz e
raiva. Entã o um veteriná rio brilhante pensou consigo mesmo: germes causam doenças;
logo, se eu injetar um antisséptico nos ú beres das vacas e matar os germes, as vacas ficarã o
bem. Ele fez isso; as vacas se recuperaram, ele publicou suas descobertas e a mortalidade
rapidamente caiu de 90% para 30%. Ele e outros argumentaram, entã o, que isso provava
ainda mais a verdade da teoria da doença por germes.
Mas certo dia uma vaca telefonou para o seu veteriná rio para ele vir imediatamente, ou ela
morreria. Ele imediatamente encilhou seu mustangue e a 60 MPH ( mudpuddles per
hedgerow ) logo chegou ao destino. Mas entã o, quando abriu sua valise preta, descobriu
[50]

que lamentavelmente havia esquecido de trazer nela uma provisã o de antisséptico.


Felizmente, algumas vacas ainda morreram; e como nem a vaca, nem o fazendeiro podia
dizer a diferença, eles jamais saberiam que ele havia injetado á gua destilada em vez de
Lugol. Para a surpresa dele, a vaca ficou bem.
Tendo uma mente científica, ele continuou a injetar á gua destilada nas outras vacas,
resultando em que tantas ou mais vacas se recuperaram. Ele publicou suas descobertas; e
outros veteriná rios investigadores tentaram injetar ar comprimido, com resultados ainda
melhores. Mas o que dizer, entã o, da teoria da doença por germes? Á gua destilada e ar
comprimido nã o matam germes. O ponto é que a teoria dos germes, agora provada falsa
[51]

com respeito à febre do leite, foi, todavia, muito ú til na cura das vacas. Portanto, a utilidade
da ciência pode ser defendida até mesmo quando se afirma a sua falsidade.
Agora, em conclusã o: a ciência é sempre incapaz de produzir um argumento vá lido contra a
existência de Deus, contra a ocorrência de milagres, incluindo a revelaçã o sobrenatural, e
contra a vida além-tú mulo. O autor do artigo sobre “Ateísmo” na Enciclopédia de
[52]

Filosofia baseia os argumentos no problema do mal; outros autores podem tentar provar o
ateísmo sobre outras bases. Este artigo diz respeito à física; e a física — e seus
desdobramentos da química e biologia — é totalmente, totalmente incompetente, tanto
positiva como negativamente, para fazer qualquer pronunciamento metafísico ou teoló gico.
A ciência é falsa, mas muitas vezes ú til.
 

[1]
Ronald W. Clark, Einstein: The Life and Times, Avon Books, 1971, 504.
[2]
Popper Selections , editado por David Miller, Princeton University Press, 1985, 90, 91, 121; a ênfase é de Popper.
[3]
Conjectures and Refutations , Harper and Row, 1968, 151.
[4]
Ibid ., 192.
[5]
Hans Werner Bartsch, ed., Kerygma and Myth , Harper & Brothers, 1961, 214-215.
[6]
Para complicar o assunto ainda mais, considere o argumento de 206b20ss. Aristó teles afirma que a magnitude infinita
nã o pode existir mesmo potencialmente, pois não existe um infinito real. Aqui a nã o existência de uma realidade é usada
para provar a nã o existência de uma potencialidade. Isso funciona suficientemente bem no caso usual da está tua, mas se
essa interpretaçã o está correta, ela torna o segundo sentido totalmente impossível.
[7]
Para as dificuldades na teoria do impulso e o hiato entre ela e a teoria posterior da inércia, veja A. R. Hall, The
Scientific Revolution , 77-80.
[8]
Nature and Nature’s laws lay hid in night / God said, Let Newton be! and all was light.
[9]
Compare com Pierre Duhem, Le Système du Monde , III, 231-498.
[10]
Florian Cajori, Newton’s Principia , 1934, Apêndice, 632ss.
[11]
The Meaning of Human History , 1947, 99.
[12]
Herbert Butterfield, The Origin of Modern Science , 67.
[13]
A definição de mecâ nica dada por Laplace, embora expressa de forma bastante simples, dificilmente pode ser
aperfeiçoada. Discussõ es contemporâ neas tentam agora ser mais técnicas ou, pelo menos, mais pedantes. A frase “lei
processo” entrou em uso, e o mecanicismo é definido como a teoria segundo a qual toda explicaçã o científica toma a forma
de leis processo. Mas, em primeiro lugar, o termo lei processo é menos amplamente compreendido do que o termo lei
matemática . E, segundo, mesmo Gustav Bergmann, que prefere a palavra processo , admite que “mesmo quando
conhecemos processos, como é o caso na Física, a lei nã o é realmente afirmada dessa forma, mas, como referi antes, como
um sistema de equaçõ es diferenciais ( Philosophy of Science , 93). Assim, parece satisfató rio definir mecanicismo como a
teoria que sustenta que o Universo consiste de partículas cujos movimentos podem ser descritos e cujas posiçõ es futuras
podem, portanto, ser preditas por equaçõ es diferenciais. Por outro lado, o mecanicismo é negado quando é dito que as
menores partículas sã o individualmente imprevisíveis; em cujo caso, seu comportamento é descritível somente por leis
estatísticas.
[14]
Aram Vartanian, editor 1960, 180, 189.
[15]
Force and Matter , ediçã o inglesa, 1891, 8, 14-19, 58-66, 75-81, 242-243.
[16]
A History of Science , 445.
[17]
The Riddle of the Universe , 1901, 225.
[18]
E. A. Burtt, The Metaphysical Foundations of Modern Science , 236.
[19]
Mysticism and Logic , 47, 56.
[20]
Karl Pearson, Grammar and Science, 6, 14, 24.
[21]
Science , 73:217-225, 1931; The Scientific Monthly , 59:85-95, 1944.
[22]
Hans Reichenbach, Modern Philosophy of Science , 136, 149.
[23]
O físico usa outras médias também. A média geométrica, usada na dupla pesagem, parece ser menos arbitrá ria; mas
na verdade depende da teoria a alavanca, que por sua vez foi obtida da forma descrita. Há também a média harmô nica e o
desvio padrã o. O ú ltimo inclui um nú mero quadrado, quadrado por causa da teoria dos quadrados mínimos. Mas poder-
se-ia ter os nú meros ao cubo e aplicá -los a uma teoria dos cubos mínimos.
[24]
Science of Mechanics , 1942, 280.
[25]
Modern Philosophy of Science , 50.
[26]
Science of Mechanics , 272.
[27]
The Theory of Motion, According to Newton, Leibniz, and Huyghens , 52.
[28]
Hans Reichenbach, Modern Philosophy of Science , 46-47, fornece ainda outro exemplo do fracasso dos cientistas em
se beneficiar da aná lise filosó fica: “É irô nico”, diz ele, “que Newton, que tã o imensamente enriqueceu a ciência com suas
descobertas físicas, tenha ao mesmo tempo em grande parte impedido o desenvolvimento do fundamento conceitual
dela… A teoria da mecâ nica de Newton atrasou a aná lise do espaço e do tempo por mais de dois séculos, nã o obstante o
fato de Leibniz, que era seu contemporâ neo, ter demonstrado uma compreensã o muito mais profunda da natureza do
espaço e do tempo… A injustiça da histó ria vai ainda mais longe… As teorias [de Leibniz] parecem ter sido esquecidas
pelos cientistas e preservadas apenas pelos historiadores da filosofia… Mach, o primeiro relativista, da nova era… nã o
sabia nada das objeçõ es bem fundamentadas de Leibniz a Newton, e fez apenas alguns poucos comentá rios ingênuos
sobre ele. Até mesmo a solução de Einstein, indo muito além de Mach, tomou a ‘mecâ nica clá ssica’ de Newton como seu
ponto de partida sem fazer qualquer referência a Leibniz e Huyghens”. Também se poderia mencionar a declaraçã o de
Percy Bridgman em The Way Things Are (134): “A visã o de que pode ser conceitualmente ilegítimo estender
indefinidamente o mundo que nos é revelado pela instrumentaçã o [como fez Lorentz na sua teoria do elétron] é uma
visã o que nó s devemos à teoria quâ ntica recente”. Nã o, nã o é. É a antiga falá cia ló gica da composiçã o e divisã o, revelada
aos estudantes em manuais de ló gica elementar.
[29]
Fusã o das palavras wave (onda) e particle (partícula) para representar entidades possuindo simultaneamente as
propriedades de onda e partícula. [N. do T.]
[30]
O caso da adiçã o de velocidades fornece uma refutação facilmente compreendida da tentativa de reabilitar Newton e a
descoberta da verdade absoluta. Tem sido dito que as leis mais recentes sã o simplesmente descriçõ es mais precisas, e que
as leis anteriores sã o casos especiais deduzíveis das leis mais gerais descobertas posteriormente. Morris R. Cohen, The
Meaning of Human History , 85-86, tem isso da seguinte forma: “Podemos nó s formular uma proposiçã o universal precisa
(isto é, uma sem qualquer exceçã o) que nos capacite a dizer o que é relevante e o que é irrelevante para todos esses
movimentos? A lei da gravitaçã o faz precisamente isso… Outra lei, como a de Einstein, pode substitui-la como uma
descriçã o mais precisa, mas essa outra lei terá de incluir a verdade da mais antiga sob determinadas condiçõ es”. Cohen
também especifica as leis da luz como exemplos. Mas Cohen está equivocado. A formula v1 + v2 = V (isto é, um homem
que anda a 3 mph dentro de um trem viajando a 60 mph está se movendo a 63 mph) nã o pode ser matematicamente
deduzida a partir de e como um caso especial de:

 
Claro, o quadrado da velocidade da luz é uma quantidade negligenciá vel em se tratando de andar dentro de um trem; mas
essa nã o é a consideraçã o pela qual uma equaçã o é determinada como um caso especial de outra.
[31]
Theory of Experimental Inference , vii.
[32]
The Scientific Revolution , xi.
[33]
Philosophy of Science , 58.
[34]
Enquiry , Seção IV, Parte I.
[35]
Este ensaio apareceu originalmente em Horizons of Science , Carl F. H. Henry, editor, 1978.
[36]
A. Motte, tradutor, e F. Cajori, editor, Mathematical Principles of Natural Philosophy , 1946.
[37]
Hans Reichenbach, “The Philosophical Significance of the Theory of Relativity”, em Albert Einstein Philosopher-
Scientist , Paul A. Schilpp, editor, 1949, 299ss. Veja também Reichenbach, Die Beweglehre bei Newton Leibniz und
Huyghens , 1924, e Philosophic Foundation of Quantum Mechanics , 1944.
[38]
J. W. N. Sullivan, The Limitations of Science , [1933] 1957. Veja também Henri Poincaré, Science et Methode, Paris,
1927, e seus dois volumes sucessivos.
[39]
Fusã o dos termos wave e particle no plural para representar entidades possuindo simultaneamente as propriedades
de onda e partícula. [N. do T.]
[40]
W. K. Clifford, The Common Sense of the Exact Sciences , 1946; Karl Pearson, Grammar of Science , 1911, 6, 14, 24; A. J.
Carlson, “Science and the Supernatural”, Science, 73 (1931): 217-225; reimpresso em The Scientific Monthly, 59 (1944):
85-95.
[41]
Pearson, Grammar of Science , 6, 14, 24.
[42]
A. J. Carlson, “Science and the Supernatural”.
[43]
Hans Reichenbach, Modern Philosophy of Science , 1959, 136, 149.
[44]
Philipp Frank, Philosophy of Science , 1962, 90.
[45]
Rudolf Bultmann, Kerygma and Myth , 1961, 4.
[46]
Rudolf Bultmann, Jesus Christ and Mythology , 1958, 36-38.
[47]
Reader’s Digest, Agosto de 1972, 28.
[48]
Para uma discussã o técnica, veja C. T. Ruddick, “On the Contingency of Natural Law”, The Monist (Julho, 1932), 330-
383.
[49]
Morris R. Cohen e Ernest Nagel fornecem esse exemplo em An Introduction to Logic and Scientific Method , 1934,
209ss., embora Nagel, em seus livros posteriores, rejeite a implicaçã o do operacionalismo.
[50]
Literalmente, em inglês, “poças de lama por cerca viva”. O autor faz um trocadilho com “milhas por hora”, a unidade de
velocidade representada por MPH. [N. do T.]
[51]
O leitor pode verificar se a febre do leite é agora curada com injeçõ es de cá lcio no pescoço da vaca.
[52]
Paul Edwards, “Atheism”, The Encyclopedia of Philosophy , 1967, Volume I, 174-190.

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