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TABLE OF CONTENTS

Dedicató ria
Prefá cio
Prefá cio do tradutor [do holandês para o inglês]
Introduçã o
1. Sabedoria
2. Conhecimento
3. Entendimento
4. Pecado
5. Educaçã o
6. Maravilhas
7. Beleza
8. Gló ria
9. Criatividade
10. Adoraçã o
Sobre o autor
Sabedoria e prodígios
Graça comum na ciência e na arte
 
Abraham Kuyper

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


Editora Monergismo
Caixa Postal 2416
Brasília, DF, Brasil ─ CEP 70.842-970
 
Sítio: www.editoramonergismo.com.br
 
1ª ediçã o, 2016

 
Traduçã o: Fabrício Tavares de Moares
 
PROIBIDA A REPRODUÇÃ O POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕ ES, COM INDICAÇÃ O DA
FONTE.

 
Todas as citaçõ es bíblicas foram extraídas da versã o Almeida Revista e Atualizada (ARA)
salvo indicaçã o em contrá rio.
 

SUMÁRIO
Dedicató ria
Prefá cio
Prefá cio do tradutor [do holandês para o inglês]
Introduçã o
1. Sabedoria
2. Conhecimento
3. Entendimento
4. Pecado
5. Educaçã o
6. Maravilhas
7. Beleza
8. Gló ria
9. Criatividade
10. Adoraçã o
Sobre o autor

DEDICATÓRIA
 
Para o dr. Rimmer de Vries,
 
Em reconhecimento de seus empenhos ao longo da vida e de seu legado
permanente como líder cultural, economista, visioná rio e seguidor fiel de
Cristo, refletindo sempre a visã o kuyperiana do senhorio de Jesus Cristo sobre
todas as esferas da sociedade.
 
 
 
PREFÁCIO
Nos dias atuais, aqueles que seguem a Jesus enfrentam numerosos desafios,
um dos quais, nã o menos ferrenhos, sã o eles pró prios.
A vida na cultura ocidental tem sido cada vez mais descrita como “secular”,
“amoral” e “ímpia”, ainda que vá rios servos fiéis de Deus se esforcem para dar
sentido de uma situaçã o pú blica que destrambelhou terrivelmente. A questã o
nã o é que determinado aspecto de nossa fé esteja sendo confrontado, mas,
sim, que a pró pria plausibilidade da fé nã o possui credibilidade quando no
que concerne à vida numa sociedade pluralista. Qualquer que seja a fé que
ainda retenhamos, nã o raro aparenta mais como uma ressaca de um outro
tempo do que uma fé robusta que molda o todo de nossas vidas hoje. Mas o
problema está com os pró prios cristã os?
Lembramo-nos das famosas palavras de Walt Kelly: “Eu me deparei com o
inimigo, somos nó s mesmos!” Os cristã os atualmente se defrontam com um
quadro sério dentro de si mesmos. Perdemos a compreensã o coerente e
holística de como o Evangelho, e por esse meio a prá tica da fé cristã , se
relaciona com cada á rea da sociedade. Nossa confiança sofreu abalos até
mesmo em seus fundamentos na medida em que nos empenhamos para
oferecer uma realidade alternativa para um mundo ansioso. 
E eis Abraham Kuyper. Semelhante a muitos outros, passamos a conhecer a
obra de Kuyper indiretamente, por meio do famoso evangélico Chuck Colson,
quando, em seu livro Como viveremos? , exclamou: “os cristã os sã o chamados a
aplicar a redençã o à totalidade de suas culturas, e nã o somente a indivíduos”.
Essa simples afirmaçã o alterou todo o curso das coisas, pois revela uma
verdade que muitos cristã os esqueceram, isto é, que nó s, cristã os, temos o
papel, na verdade uma responsabilidade, de nos envolvermos na renovaçã o de
cada domínio deste mundo. Nada deve deixar de ser tocado pelo poder
transformador do Evangelho. Essa foi a influência de Kuyper.
O teó logo holandês nos lembra — num tempo quando vá rios cristã os
inconscientemente vivem vidas dualistas e desintegradas — que a totalidade
da vida, nã o somente as “partes espirituais”, pertencem a Deus. Dallas Willard,
dentre outros, diagnostica corretamente o problema quando descreve o
“Evangelho truncado” adotado pela maioria. Nessa visã o reducionista e
defeituosa, ao invés de viverem as riquezas da narrativa bíblica plena da
Criaçã o, Queda, Redençã o e Consumaçã o, os cristã os, pelo contrá rio, se
debatem apenas com os temas da Queda (pecado) e Redençã o (a cruz). Isto
frequentemente nos deixa confusos, levando-nos a questionar se é possível
encontrar a beleza e a bondade num mundo extensivamente deformado pelo
pecado; isso nos leva a perder de vista grande parte da operaçã o divina no
mundo. Quando agimos assim, reduzido a extensã o da obra de Deus à
remoçã o, espera e evacuaçã o. Somos deixados a lutar, a fim de estarmos
plenamente presentes no mundo, crendo que Deus irá , em ú ltima instâ ncia,
abandoná -lo (este mundo) em prol de um domínio espiritual.  
Por outro lado, Kuyper acredita e ensina que a totalidade da criaçã o, até sua
plena consumaçã o, pertence a Deus. Ele nã o é apenas o SENHOR dos céus, mas
sim o SENHOR dos céus e terra. Como observa o salmista: “Do SENHOR é a terra
e a sua plenitude” (Salmo 24.1). A obra de criaçã o divina continua ainda hoje
na plenitude e alegria de toda a vida e cultura humanas. Este é o entendimento
coerente e a sensibilidade prá tica com relaçã o à aplicaçã o da fé no todo da
vida que os conduz os leitores de Kuyper a uma derradeira epifania.
Mas por que ciências e arte? Em Sabedorias e Prodígios , Kuyper aborda dois
dos domínios mais difíceis que intimidam os cristã os nas nossas conversas
modernas: ciências e arte. Muitos cristã os se sentem ameaçados pela ciência,
creem que nã o é digna de confiança e que afronta a fé. Questõ es concernentes
à bioética, evoluçã o, gestã o ambiental e a probabilidade de aumento das
descobertas científicas por meio de novas tecnologias obnubilam a
objetividade entre certo e errado, bem e mal.
A arte é outro aspecto com o qual os cristã os possuem relacionamento
desconfortá vel e indefinido. Vivemos numa época na qual nossas imaginaçõ es
se encontram sob ataque, de modo que, na vida de vá rios indivíduos, a
criatividade se tornou uma vítima. Nã o estamos aptos a discernir entre a boa
arte e a arte pobre, e os patronos da cultura só lida já se perderam.
Infelizmente, grande parte da arte apreciada por cristã os é classificada como
“arte cristã ”, que sã o incapazes de nos comoverem profundamente. Kuyper
vem ao nosso auxílio, se empenhado em recuperar a noçã o de que a grande
arte nã o deveria somente tocar nossos coraçõ es, mas também ocupar nossas
mentes. Caso falhe nisso, nã o se configura como criativo.  
A insistência de Kuyper de que Jesus é, de fato, SENHOR sobre todas as coisas é
ressaltada nas pá ginas deste livro. Sua convicçã o de que a ciência nã o é uma
ameaça à nossa fé, mas uma aliada, e suas exortaçõ es para que celebremos a
gló ria de Deus mediante a expressã o criativa, farã o, com regozijo, colocar
câ nticos novos de louvor À quele que é SENHOR tanto dos céus quanto da terra. 
 
— Gabe Lyons
Fundador do Q Ideas e autor de The Next Christians
 
— Jon Tyson
Pastor da Trinity Grace Church e autor de Rumors of God
 
 
 

PREFÁCIO DO TRADUTOR [DO HOLANDÊS PARA O INGLÊS]


 
A traduçã o de um livro, que, além da língua, também pertence a um tempo
diferente, jamais é um processo tranquilo. Consequentemente, devemos
apresentar aos nossos leitores uma série de decisõ es concernentes à traduçã o
e ediçã o que possibilitaram esta traduçã o de uma obra holandesa escrita há
mais de um século. Essas decisõ es evidentemente envolvem alteraçõ es,
subtraçõ es e adiçõ es.
Por exemplo, ao citar as Escrituras, Kuyper emprega a versã o holandesa da
Staten Vertaling ou suas pró prias pará frases do texto. A fim de sermos
consistentes com o nosso objetivo de produzir uma traduçã o inglesa
contemporâ nea dessa obra, utilizamos a English Standard Version
(ESV)              da Bíblia, salvo em casos apontados. Para auxiliar o leitor, em
alguns pontos, substituímos as pará frases de Kuyper pelo texto efetivo da ESV,
de semelhante modo, fornecemos (em parênteses) as referências textuais
específicas, que nã o constavam no original, tanto nas citaçõ es diretas das
Escrituras quanto nas pará frases. Para algumas referências e alusõ es com as
quais, talvez, nã o estejamos familiarizados, acrescentamos notas limitadas
com referências aos textos das Escrituras relacionados.
Breves notas editoriais também foram adicionadas ao longo do texto, a fim de
identificar pessoas, escolas de pensamentos ou eventos mencionados no
original, que possam ser desconhecidos aos leitores contemporâ neos. 
Outras alteraçõ es estilísticas também foram feitas, a fim de facilitar a leitura e
em prol do bom aspecto. O itá lico foi usado menos frequentemente na
traduçã o do que no original. E, mais importante, pará grafos e sentenças
extensos foram desmembrados, e clá usulas subordinadas foram,
ocasionalmente, reorganizadas a fim de manter a ênfase presente no original.
Também acrescentamos os títulos aos capítulos e as divisõ es internas. O título
original do volume, em holandês, é o presente subtítulo; acrescentamos um
novo título, Wisdom & Wonder , com o intuito de capturar a essência da
mensagem kuyperiana.
Ora, trazer, mediante traduçã o, obras de grande relevâ ncia intelectual para os
nossos dias modernos frequentemente faz com que o tradutor e editor se
confrontem com questõ es que envolvem perspectivas só cio-culturais
delicadas, juntamente com a linguagem a elas relacionadas. À media que os
tempos mudam, também os modos de expressã o se alteram. Isso se aplica, da
mesma forma, ao trabalho de Kuyper. Por exemplo, quando possível, optamos
por um uso responsá vel, mas de modo nenhum rigoroso, dos substantivos e
pronomes neutros (ex.: utilizando o termo “pessoas” ao invés de “homens”).
Quando necessá rio e apenas infrequentemente, formulaçõ es nã o muito felizes
foram alteradas para a sensibilidade moderna ou omitidas.
Nã o obstante, talvez o maior desafio seja a traduçã o da palavra holandesa
wetenschap de modo apropriado ao uso e contexto de Kuyper. O sentido
bá sico da palavra é simplesmente “conhecimento”, mas no uso acadêmico e
filosó fico, corresponde à palavra alemã Wissenschaft , referindo-se à ciência.
Contudo, em contraste à s noçõ es modernas de ciência, Kuyper a compreendia
num senso mais amplo, o qual se referia a algo pertencente à criaçã o, algo
criado por Deus, para o qual o Criador designou uma tarefa exclusiva. Kuyper
estava plenamente consciente de que a ciência consistia da reflexã o humana
sobre a criaçã o, no entanto, insistia que a reflexã o humana espelhava ou
imitava o pensamento divino embutido em toda a criaçã o. Na visã o de Kuyper,
a ciência é um corpo de conhecimentos e insights em constante crescimento
que foi chamado à existência por Deus, desenvolvendo-se, ao longo da
histó ria, devido à s pessoas devotadas ao seu estudo, e que pode ser
restaurada e santificada em Jesus Cristo. Contudo, a visã o científica moderna
geralmente emprega o termo “ciência” em referência à um método de
investigaçã o racional e neutro, ou em referência à s disciplinas ou domínios
específicos.
Ademais, Kuyper distinguia entre “ciências inferiores” e “ciências superiores”;
as primeiras se referem à observaçã o humana simples e direta dos fenô menos
na criaçã o, ao passo que as ú ltimas dizem respeito à uma reflexã o e prá tica
mais refinadas da pesquisa científica em termos de um sistema. Juntamente à s
ciências naturais (que podemos denominar de hard sciences ou de ciências
exatas), Kuyper tratou também acerca das ciências espirituais, ou o que
atualmente se chama de Humanidades (ou Ciências Humanas) e ciências
sociais (literatura, poesia, histó ria, psicologia, antropologia, sociologia,
economia etc.). Tendo essas diferenças em mente, o leitor terá um
entendimento correto do amplo uso que Kuyper faz desses termos.
Por fim, devemos mencionar nossa grata utilizaçã o, em vá rios trechos, da
traduçã o parcial da seçã o concernente à graça comum e a ciência, que está
inclusa na obra Abraham Kuyper: a centennial reader , edita por James D. Bratt
(Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1998, pp. 442–460) e que se pautou numa
reformulaçã o do material produzido por Hans van de Hel. Agradecemos
especial a Clifford Anderson, George Harinck e Harry Van Dyke por seus
experientes conselhos e assistência na preparaçã o do presente texto.
 
 
— Nelson D. Kloosterman
16 de agosto de 2011
 
 

INTRODUÇÃO
 
Vincent E. Bacote
Abraham Kuyper (1837-1920) foi um cidadã o holandês cuja vida e obra
permanecem relevantes até os dias de hoje, particularmente devido à
fermentaçã o contínua por eles propiciados no que tange ao papel que cabe ao
cristã o na vida pú blica. Kuyper era filho de um pastor, tendo recebido sua
educaçã o formal na Universidade de Leiden. Profundamente influenciado pelo
pensamento moderno, eventualmente se tornou pastor na cidade rural de
Beesd, onde passou por uma conversã o ao cristianismo ortodoxo por meio da
influência de alguns membros piedosos e de confissã o reformada de sua
congregaçã o. Durante este mesmo período, o interesse de Kuyper numa fé
com impacto pú blico começou a emergir.
Embora estive profundamente agradecido por aquilo que aprendera dos
membros de sua congregaçã o, ele estava consciente de que o cristianismo nã o
estava confinado à s câ maras internas do coraçã o, mas era definitivo para
vá rias dimensõ es sociais da vida, com as quais nos deparamos na medida em
que participamos dos domínios da cultura, política e economia.
Eventualmente, Kuyper se tornou um líder no movimento anti-revolucioná rio
(termo relacionado com a Revoluçã o Francesa), o qual se tornou um partido
político por volta de 1879, e também editor de jornais diá rios ( De Standaard )
e semanais ( De Heraut ).
Kuyper focou sua atençã o em questõ es relacionadas com as políticas internas
da igreja nacional da Holanda ( Nederlandse Hervormde Kerk ou NHK) e
eventualmente passou a se envolver nas políticas nacionais em 1874. Ele se
via como um defensor dos cristã os ortodoxos que foram marginalizados do
â mbito da influência pú blica e buscou a influência cristã nas políticas pú blicas,
como exemplificado pelo seu apoio na expansã o do voto para famílias e o
apoio pú blico de escolas cristã s. Ele ajudou a fundar a Universidade Livre de
Amsterdã , em 1880, onde lecionou teologia.
Apó s uma grande crise eclesiá stica, ele conduziu, em 1886, sua separaçã o da
NHK (os Doleantie , ou “os aflitos”); em 1892, esse grupo se uniu com aquelas
igrejas que já haviam se separado do NHK, em 1834 (o Afscheiding , ou “os
separados”). Kuyper cresceu em influência na década de 1890; ele ministrou
as palestras Stone no Seminá rio Teoló gico de Princeton, em 1898, e, em parte
devido a uma coalizã o com membros cató licos do Parlamento, se tornou
Primeiro Ministro da Holanda, de 1901 a 1905. Vestindo os trajes de pastor,
teó logo, jornalista e política em vários momentos de sua vida, Kuyper
encarnou o comprometimento com o cristianismo pú blico enquanto mantinha
uma piedade pessoal fervorosa (como seus escritos devocionais nos revelam).
Embora Kuyper seja conhecido por ter abordado um grande nú mero de
questõ es teoló gicas, as mais proeminentes delas talvez sejam a soberania das
esferas, a antítese e a graça comum. A soberania das esferas é a ideia
kuyperiana de que, da soberania de Deus, procede “esferas” soberanas
distintas, tais como o estado, os negó cios, a família e a igreja. Kuyper também
contribui para a formaçã o de instituiçõ es pú blicas caracteristicamente cristã s,
como escolas e hospitais. A soberania das esferas apresenta um pluralismo
tanto das estruturas sociais quanto das cosmovisõ es, configurando-se,
portanto, como um dos traços mais proeminentes da abordagem de Kuyper da
vida pú blica.
A ênfase na singularidade cristã também se encontra enraizada na visã o
kuyperiana da antítese entre cristã os e aqueles que nã o sã o regenerados pelo
Espírito Santo. Como Sabedoria e Prodígios demonstra em certas passagens,
Kuyper cria que a regeneraçã o produz uma diferença epistemoló gica distinta,
que, em ú ltima aná lise, levam os cristã os a interpretarem a realidade de forma
diferente (e com uma exatidã o maior) dos descrentes. Ao enfatizar a antítese,
Kuyper destacava fortemente a importâ ncia da identidade cristã ; ele nã o
deseja que os cristã os sacrificassem sua fé quando de sua participaçã o nas
vá rias á reas do â mbito pú blico.
Em contraste à antítese, a graça comum enfatiza a humanidade compartilhada
e a responsabilidade pú blica. Sabedoria e Prodígios é uma traduçã o recente e
completa de duas seçõ es que Kuyper pretendia incluir na sua obra em três
volumes sobre a graça comum. Essas seçõ es foram omitidas, por engano, da
primeira ediçã o dessa obra mais extensa de Kuyper. De 1895 a 1901, Kuyper
escreveu uma série de artigos no De Heraut , que foram posteriormente
compilados, e os três volumes resultantes foram publicados em 1902, 1903 e
1904. As seçõ es presentemente traduzidas, “a graça comum na ciência e na
arte”, apareceram pela primeira vez como um volume separado em 1905,
sendo mais tarde acrescentado nas outras ediçõ es dos três volumes.
O que exatamente é a “graça comum”? Kuyper expô s esta doutrina como um
desenvolvimento das primeiras expressõ es reformadas da obra preservadora
de Deus na ordem criada. Tal desenvolvimento foi de fato robusto e bem mais
extenso do que as afirmaçõ es da doutrina em teó logos como Joã o Calvino.
Alguns dos críticos de Kuyper dentro dos círculos reformados viram essa
expansã o mais como invençã o do que desenvolvimento. Embora Kuyper nã o
desprezasse as grandes declaraçõ es e a expressã o criativa, a graça comum
está longo de ser uma inovaçã o doutriná ria que se desvia das linhas da
fidelidade à doutrina. Colocada de modo simples, a graça comum responde a
questã o que muitos fazem acerca de nosso mundo: “Como o mundo prossegue
apó s a entrada do pecado e como é possível que coisas ‘boas’ surjam das mã os
dos homens dentro e fora do relacionamento pactual com Deus?”. A graça
comum é a restriçã o exercida por Deus sobre os efeitos totais do pecado apó s
a Queda; a preservaçã o e manutençã o da ordem criada; e a distribuiçã o dos
talentos aos seres humanos.
Como resultado dessa misericordiosa atividade de Deus por meio do da obra
Espírito Santo na criaçã o, torna-se possível para os homens obedecerem o
mandamento dado por Deus de dominarem como mordomos sobre a criaçã o
(Gn 1.28). Nã o se trata de uma graça salvadora, regeneradora ou eletiva, mas
uma graça preservadora que se estende ao mundo que Deus criou, podendo
ser vista na inclinaçã o humana de servir ao pró ximo por meio do trabalho, de
buscar a paz em situaçõ es sociais conflituosas, e de defender a equidade em
todas as formas da interaçã o humana. 
Sabedoria e Prodígios se destina especificamente aos domínios da ciência e
arte. Para Kuyper, a ciência nã o está limitada à s ciências “exatas”, como a
química e biologia, mas também se estende à s ciências humanas e sociais. O
teó logo escreveu numa época na qual se discutia abertamente se a filosofia,
literatura e teologia poderiam ser consideradas propriamente “científicas”.
Nesta obra, ele expressa sua perspectiva de que cabe à ciência descobrir a
verdade mais profunda das coisas, uma verdade que exige investigaçõ es que
conduzem para além dos encontros superficiais com os vá rios fenô menos, em
direçã o a uma compreensã o de como toda a realidade é uma expressã o da
mente divina.
Semelhantemente, ao tratar sobre a arte, Kuyper apresenta uma visã o que
parte com a ligaçã o entre religiã o e expressã o artística e, por fim, se dirige à
afirmaçã o da independência característica da arte ao domínio da igreja. Talvez
um dos pontos mais interessantes da discussã o de Kuyper sobre o domínio
artístico seja sua visã o de que a arte, nas suas composiçõ es superiores, busca
expressar a concretizaçã o final do reino glorioso de Deus através de mídias
como a arquitetura, pintura e mú sica. Isto nã o significa que todo artista
consciente se empenha em criar obras que se aproxima do reino consumado,
mas que o desejo de expressar a plenitude da beleza tende a orientar os
artistas a esse objetivo sublime.
O foco de Kuyper na ciência e arte reflete as discussõ es entã o contemporâ neas
sobre a participaçã o cristã em ambos os domínios. Pelo menos desde os
tempos de Darwin, muitos cristã os perceberam um conflito frequentemente
real com o mundo da ciência, gerando uma tensã o significativa para aqueles
cuja vocaçã o os conduziu à pesquisa, ensinou ou quaisquer profissõ es
relacionadas à ciência. A reaçã o de alguns foi o abandono do mainstream
científico em prol de uma corrente alternativa cristã , ao passo que outros
mantiveram sua fé e seu trabalho efetivamente separados, e ainda outros
abraçaram um anti-intelectualismo envolto numa postura de fé que olha com
desconfiança quaisquer pesquisas científicas sérias. Kuyper encorajar-nos-ia a
nã o seguir nenhum desses caminhos; devemos participar plenamente no
domínio científico, embora conscientes do fato de que existirá uma antítese
genuína entre cristã os e nã o-cristã os no ponto das explicaçõ es derradeiras.
Por certo Kuyper exortar-nos-ia a abraçar tudo aquilo que se encontra no
domínio das ciências.
O domínio da arte é também uma á rea de grandes desafios. Desde o cinema,
passando pela mú sica popular, até à pintura, os artistas cristã os
frequentemente ocupam um domínio que muitos veem como que cercado de
placas indicando perigo. Há um abismo significativo entre o mundo da arte e a
igreja, e aqueles que se consideram como cidadã os de ambos os domínios se
encontram exasperados pelas distorçõ es de sua vocaçã o dentro da igreja.
Assim como no que diz respeito à ciência, há muitos que tender a encorajar
uma participaçã o limitada nas artes, ou mesmo seu abandono, caso os artistas
nã o estejam produzindo obras espiritualmente orientadas. Os leitores
perceberã o que Kuyper está consciente das armadilhas e promessas da arte,
ao mesmo tempo em que, em ú ltima aná lise, encorajando a busca pela
expressã o artística em consonâ ncia com qualidade de portadores da imagem
divina presente em todos os seres humanos, como criadores de beleza, valor,
riquezas e conhecimento. 
Nã o é necessá rio concordar plenamente com uma pessoa a fim de admirá -la
ou crer que suas contribuiçõ es sã o de grande valor. Talvez algumas visõ es
específicas de Kuyper sobre a ciência e arte nã o sejam abraçadas por todos os
leitores: embora incrivelmente visioná rio com relaçã o a alguns
desenvolvimentos na sociedade, Kuyper, todavia, nã o era onisciente, de
maneira que por vezes arriscava algumas opiniõ es que podemos achar
espantosas. Isto talvez se torne mais claro ao observar seus comentá rios com
relaçã o aos africanos e aos “povos primitivos” que aparecem nestas
discussõ es sobre a ciência e arte. Como muitos de sua época, Kuyper via os
africanos como estando bem atrá s dos outros povos civilizados. Embora sua
teologia enfatizasse a criaçã o de todos os seres humanos segundo a imagem
divina, e embora sua ênfase na diversidade cultura (multiformidade) encoraje
a humildade no que toca à extensã o de nosso conhecimento, tais ênfases,
contudo, nã o o levaram a uma apreciaçã o adequada de todos os seres
humanos. Ao passo que isto revela que Kuyper possuía pés de barro, nã o é,
contudo, justificativa para desconsiderar a tremenda contribuiçã o de suas
obras, tais como seus volumes sobre a graça comum. Pelo contrá rio, isso nos
ajuda a aprimorar nossas habilidades de pensamento crítico; podemos criticar
Kuyper no que ele diz acerca de etnia e gênero, ao mesmo tempo em que
reconhecemos que tais afirmaçõ es sã o de fato periféricas ao seu argumento.
O projeto de Abraham Kuyper sobre a graça comum é uma contribuiçã o bem-
vinda para uma discussã o mais profunda acerca do papel dos cristã os na
sociedade. Em décadas recentes, alguns evangélicos nos Estados Unidos
empregaram um grande esforço a fim de discernir como devemos viver com
uma fé robusta e um compromisso apropriado ao engajamento cultural,
político, econô mico e social. Para muitos, parece que as ú nicas opçõ es
possíveis para o engajamento cristã o sã o alguma forma de Cristandade, que
pode se assemelhar a um esforço de governar a sociedade de acordo com os
preceitos expressos da Escritura, ou uma forma de testemunho alternativo,
um tipo de antítese que enfatiza as prá ticas da comunidade cristã como
estando em oposiçã o ao envolvimento direto nos domínios político e cultural.
A graça comum nos ajuda a perceber as demais opçõ es. A obra sustentadora
de Deus na criaçã o nos encoraja a participar nas vá rias á reas da vida, a nos
empenharmos em discernir as melhores formas para concretizar a educaçã o,
arte, política e negó cios, na medida em que participamos desses domínios. O
engajamento cristã o fiel significa a busca da plenitude da vida humana na
totalidade da ordem criada por Deus. Isto nã o exige sançã o eclesiá stica nem a
vida numa polis alternativa. Por certo, todo contexto irá requerer de nó s a
percepçã o da forma pela qual podemos buscar a fidelidade a Deus em
diferentes formas; entretanto, podemos ser encorajados pelo fato de que
Deus, mediante a graça comum, nos possibilitou a participar no â mbito
pú blico de diversas maneiras que contribuem para o florescimento da ordem
criada. Sabedorias e Prodígios é apenas um antegosto daquilo que Kuyper
escreveu a respeito desta grande doutrina — que ele possa aguçar seu
apetite. 
 

 
 
PARTE UM
CIÊNCIA
 

1. SABEDORIA
 
A excelência do conhecimento é que a sabedoria dá vida ao seu
possuidor. (Eclesiastes 7.12)              
 
Se nos atentarmos para o contraste existente entre a vida do Estado
e a sociedade, torna-se evidente que a ciência pertence
definitivamente à esfera da vida social. Contudo, isso nã o atenua o
fato de que, no que diz respeito à graça comum, a ciência nã o pode
ser incluída nas nossas discussõ es a respeito da sociedade, pois
aquele elemento que coloca a atividade social em movimento se
origina dentro da vivência comum e íntima das famílias num mesmo
vilarejo ou aldeia, numa mesma regiã o ou província. Em
contrapartida, embora a ciência e, de modo semelhante, a arte,
devam encontrar a atmosfera apropriada para seu florescimento
dentro da vida comum em sociedade, elas, nã o obstante, extraem
seu impulso de algo que se encontra fora da sociedade, de uma
causa ímpar. Devido a esse fato, a ciência e a arte exigem um
tratamento separado, e é discutindo ambas que concluiremos nossa
exposiçã o sobre a graça comum [1] . 
Primeiramente, pois, enfatizemos o caráter independente da ciência.
Antes de tudo, é necessá rio compreender que a ciência é uma
questã o que se sustenta por si pró pria, nã o podendo ser
atravancada por quaisquer correntes externas. Por isso, se em seus
está gios iniciais faltou à ciência a força necessá ria para se manter
sobre suas pró prias pernas, ela ainda pode, por um tempo, progredir
estando amarrada à s fitas do avental dos outros. De modo
semelhante, o cidadã o livre, que vive em um estado igualmente livre
e que posteriormente viesse a se focar fortemente em sua
independência, foi, quando criança, inicialmente carregado por sua
babá e aprendeu a andar agarrando-se à s fitas do avental dela. 
Nesse contexto, alguns apontam para o fato de que a ciência,
historicamente falando, nã o foi capaz de assumir inicialmente seu
papel sem o auxílio do governo e da Igreja. Todavia, tal observaçã o
de maneira alguma constitui prova contra o cará ter independente
pró prio da ciência.
Em cada forma de vida, devemos distinguir dois está gios. Em
primeiro lugar, o está gio de surgimento seguido de crescimento
gradual, que continua até que a maioridade seja alcançada. E
somente entã o se dá o segundo está gio, quando a vida plenamente
desenvolvida se torna autossuficiente. Eis o motivo pelo qual o
jardineiro posiciona uma vareta ao longo de uma planta jovem,
unindo-as com um laço. Mas quando, graças a esse suporte, a planta
alcança o crescimento pleno, entã o a vareta é removida e a planta se
mantém ereta por si mesma.
E assim se deu com relaçã o à ciência. De qualquer modo, na Europa
setentrional a ciência foi plantada e inicialmente amparada pela
Igreja cristã . Ademais, a ciência nã o teria sido capaz de sobreviver
sem o apoio do governo. Atualmente, de modo diferente, a ciência se
tornou independente na medida em que lhe era infinitamente
preferível dominar a Igreja e Estado a permanecer submissa a eles.
Essa independência, pois, pertence à ciência, nã o se constituindo, de
modo algum, uma usurpaçã o.
A ciência nã o exigiu para si tal independência por meio de uma
confiança jactanciosa, antes, a possui devido ao propó sito divino, e
isso de modo tal que a ciência negligenciaria sua vocaçã o divina caso
permitisse novamente tornar-se serva do Estado ou da Igreja. A
ciência nã o é um ramo que cresce a partir do tronco do serviço
governamental, e muito menos um ramo que se desenvolve a partir
das raízes da Igreja. Pelo contrá rio, a ciência possui sua pró pria raiz,
estando nela, pois, firmada. Ora, é a partir do tronco que se origina
dessa raiz singular que a ciência deve cultivar seus ramos e gerar
seus frutos. Como o famoso relató rio sinó dico [2]
expressou
acuradamente, a ciência é “uma criatura singular de Deus”, com seu
princípio pró prio de vida, criada para se desenvolver em
conformidade com o princípio de vida, isto é, desenvolver-se em
liberdade.
A partir disso, podemos já observar que a ciência pertence à
criação . Pense nisto: se nossa vida humana tivesse se desenvolvido
na situaçã o edênica, distanciada do pecado, entã o a ciência ainda
assim teria existido tal como existe agora, apesar de que seu
desenvolvimento teria sido completamente diferente. Embora seu
cará ter tenha sofrido uma deformaçã o descomunal como
consequência do pecado, jamais podemos dizer que, de modo
semelhante ao Estado e à Igreja, a ciência surgiu por causa do
pecado e, portanto, de uma graça interveniente.
Sem o pecado, nã o haveria Estado, e, à parte do pecado, também nã o
existiria uma Igreja cristã , todavia, teríamos a ciência. Nessa medida,
a ciência se encontra na mesma categoria que o casamento e a
família, ambos os quais igualmente sofreram deformaçõ es
monstruosas como resultado do pecado. Contudo, se a queda nã o
tivesse ocorrido, a família e o casamento manteriam, todavia, sua
existência independente ainda hoje, uma vez que já existiam no
paraíso. Desse modo, assim como nã o se pode afirmar que o
matrimô nio e o grupo familiar devem sua existência ao Estado ou à
Igreja, de semelhante modo, a ciência nã o pode ser vista como
dependente deles. Também a ciência se origina da criaçã o e, como
tal, recebeu do Criador um chamado independente do Estado e da
igreja.
 
__________
 
A posiçã o independente da ciência se encontra firmada na criaçã o
da humanidade segundo a imagem de Deus. No SENHOR , nosso Deus,
há um pensamento divino independente, que nã o assoma na
interioridade divina a partir das coisas criadas, mas que precede a
criaçã o de todas as coisas. Ele nã o pensa porque criou, antes, Ele
criou apó s ter concebido.
Essa é nossa confissã o na doutrina dos decretos divinos. Embora a
manifestaçã o da vontade de Deus resida também no decreto,
todavia, foi firmemente estabelecido que tal vontade divina fosse
direcionada à quilo que Ele, em Sua sabedoria, havia concebido. Nã o
existe um decreto que nã o tenha sido precedido por uma reflexã o
qualquer. Este pensamento divino que precedeu Seu decreto nã o se
configura como um aparecimento de conceitos aleató rios que
emergiram de um sentimento místico e inconsciente de Seu ser,
como propõ em alguns, mas sim um pensamento completamente
independente na clareza absoluta da consciência divina. Deus nã o Se
inspirou em nada fora de Si mesmo.
Isto é algo que as Sagradas Escrituras expressam ao afirmar que
ninguém O instruiu, e ninguém foi Seu conselheiro. A mente do
SENHOR está junto a Ele eternamente. É isto que Paulo indaga:
“Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu
conselheiro?” (Rm 11.34, ARA). Em outra parte, o apó stolo
pergunta: “Pois quem conheceu a mente do Senhor, que o possa
instruir? Nó s, porém, temos a mente de Cristo”. (1Co 2.16, ARA).
Esse pensamento foi anteriormente formulado por Isaías, com as
seguintes palavras: “Quem guiou o Espírito do SENHOR ? Ou, como
seu conselheiro, o ensinou?” (Is 40:13, ARA). Consequentemente, é
necessá rio afirmar definitivamente que, em Deus, o pensamento era
completamente independente e arquetípico; de tal pensamento
proveio o decreto divino; e deste decreto, por sua vez, originou-se o
mundo, da mesma forma como agora procede toda a histó ria do
mundo. 
Com movimentos majestosos, Salomã o nos delineia essa verdade no
livro de Provérbios, quando nos traça a forma como a sabedoria
estava com Deus antes que qualquer coisa criada procedesse de
Suas mã os. Na linguagem exaltada de Provérbios 8.22-31, essa
verdade nos é revelada nestas estrofes:
 
O SENHOR me [a Sabedoria] possuía no início de sua obra,
antes de suas obras mais antigas.
Desde a eternidade fui estabelecida,
desde o princípio, antes do começo da terra.
Antes de haver abismos, eu nasci,
e antes ainda de haver fontes carregadas de á guas.
Antes que os montes fossem firmados,
antes de haver outeiros, eu nasci.
Ainda ele nã o tinha feito a terra, nem as amplidõ es,
nem sequer o princípio do pó do mundo.
Quando ele preparava os céus, aí estava eu;
quando traçava o horizonte sobre a face do abismo;
quando firmava as nuvens de cima;
quando estabelecia as fontes do abismo;
quando fixava ao mar o seu limite,
para que as á guas nã o traspassassem os seus limites;
quando compunha os fundamentos da terra;
entã o, eu estava com ele e era seu arquiteto,
dia apó s dia, eu era as suas delícias,
folgando perante ele em todo o tempo;
regozijando-me no seu mundo habitá vel
 e achando as minhas delícias com os filhos dos homens.

Retomando essa passagem, Joã o, o Evangelista, nos ensina que essa


Sabedoria em Deus era o Verbo, e que todas as coisas foram criadas
por meio dEle: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com
Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as
coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi
feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens” (Jo 1.1-
4, ARA). A expressã o grega utilizada para “o Verbo” é ho logos [ ὁ
λό γος ], que, por seu turno, significa “razã o”. Uma vez que a razã o
pode se encontrar dormente até que venha à plena claridade na
palavra falada, essa frase nã o é traduzida por: “No princípio era a
Razã o”, mas sim: “No princípio era o Verbo”. Com isso pretende-se
dizer que a razã o de Deus nã o deve ser representada como se
existisse num estado de dormência, ainda por vir à claridade, mas
inteiramente diferente — como sendo um com o Ser divino em
plena claridade, de eternidade a eternidade.  
Com efeito, aquelas igrejas que têm contínua e zelosamente
defendido a doutrina dos decretos divinos têm também buscado
resguardar cuidadosamente a honra de Deus e a compreensã o pura
acerca de Sua essência divina. Em contraposiçã o, é possível registrar
a queixa de que outras igrejas — sem negar o decreto, mas em
ú ltima aná lise permitindo que ele fuja de vista e seja assim ignorado
— permitiram a entrada de um conceito falseado acerca do ser de
Deus. Dessa perspectiva, comete-se o equívoco, como as pessoas
geralmente interpretam a questã o, de sugerir que o conflito entre os
Reformados e os Metodistas e outros grupos tem sido desencadeado
simplesmente por causa de externalidades [3] . Pelo contrá rio, esse
conflito toca no ponto mais profundo da religiã o — a nossa
confissã o com relaçã o ao ser e atributos de Deus.
 
__________
 
Portanto, se o pensamento de Deus é eterno, e se a totalidade da
criaçã o deve ser compreendida simplesmente como o fluxo desse
pensamento divino, de tal modo que todas as coisas vieram à
existência e continuam a existir por meio do Logos — isto é,
mediante a razã o divina, ou mais particularmente, através do Verbo
—, entã o o caso é: o pensamento divino se encontra incorporado em
todas as coisas criadas. Entã o, nã o há nada no universo que deixe de
expressar — de encarnar — a revelaçã o do pensamento de Deus.
Nã o é o caso de que tenha existido uma incomensurá vel massa de
matéria que o pensamento divino tentou processar, mas sim que o
pensamento divino está incorporado no todo da criaçã o. A essência
mesma de cada coisa é constituída por um pensamento de Deus, de
maneira que foi esse pensamento que prescreveu para os entes
criados seus modos de existência, suas formas, seu princípio de vida,
suas destinaçõ es e seu progresso.
Toda a criaçã o nada mais é do que a cortina visível por detrá s da
qual radia a operaçã o excelsa desse pensamento divino. Assim como
uma criança, brincando, observa um reló gio de bolso, e supõ e que se
trate apenas de um estojo dourado e um mostrador com ponteiros
mó veis, da mesma forma a pessoa descuidada nã o é capaz de
observar na natureza e em toda a criaçã o nada mais do que a
aparência externa das coisas. Em contraposiçã o, o portador do
reló gio sabe mais. Ele sabe que, por detrá s do mostrador do reló gio,
há o trabalho oculto de molas e engrenagens, e que o movimento
dos ponteiros ao longo do mostrador é causado por essa atividade
que está encoberta. De semelhante modo, todos aqueles que sã o
instruídos pela Palavra de Deus sabem, no que diz respeito à criaçã o
divina, que por detrá s desta natureza, atrá s desta criaçã o, existe
uma operaçã o secreta, velada, do poder e sabedoria de Deus, e que
somente por esse modo as coisas se dã o da maneira habitual. Da
mesma forma, eles sabem que essa atividade nã o é uma operaçã o
inconsciente de um poder languidamente propulsionado, mas a
atividade de um poder que está sendo direcionado pelo
pensamento .
Ora, esse pensamento divino, que produz o movimento de todas as
coisas em seus respectivos cursos, nã o atua sem um plano, desígnio
ou princípio; pelo contrá rio, é uma obra direcionada a um propó sito,
movendo-se em direçã o ao objetivo que se pauta por uma regra
preordenada. Esse plano, já em sua origem, dotou a criaçã o com
tudo aquilo que é necessá rio para a consecuçã o dessa meta.
     Consequentemente, todas as coisas procederem do pensamento
de Deus, da consciência de Deus, da Palavra de Deus. Por meio deles,
todas as coisas sã o sustentadas; todas as coisas devem a eles seu
curso de vida e a certeza de alcançarem seu fim ú ltimo. Desse modo,
podemos e devemos reconhecer e confessar incondicionalmente que
a totalidade da criaçã o, em sua origem, existência e progresso,
constitui uma ú nica e integrada revelaçã o daquilo que Deus, na
eternidade, pensou e estabeleceu em Seu decreto.
Agora a questã o é se nó s, os seres humanos, somos dotados com a
capacidade de refletir esse pensamento de Deus.
Está absolutamente claro que nem toda criatura possui essa
capacidade. Mesmo que o lírio esteja vestido com uma gló ria maior
do que a de Salomã o em todo seu esplendor, ele, todavia, nada sabe
acerca de sua pró pria beleza, e nã o compreende a mínima parcela
do pensamento de Deus que encontra expressã o em sua existência.
Nã o importa quã o esplendidamente o peixe possa viver na á gua —
ele nada sabe a respeito da composiçã o desse elemento, nem de sua
capacidade de manter um corpo flutuando, ou ainda das
propriedades nutritivas nele contidas. É também patente que os
animais dotados de instintos desenvolvidos, como a formiga, a
abelha, a aranha e afins, também nã o compreendem absolutamente
nada a respeito de seu ser, nem ainda concebem nada daquilo que
Deus neles manifesta.
Sem dú vida, devemos sempre nos precaver quando refletimos
acerca dos animais, uma vez que nã o somos capazes de penetrar em
sua existência interior. Contudo, podemos e devemos dizer isto: com
relaçã o aos animais, nã o observamos nenhum desenvolvimento
contínuo, nem percebemos numa aptidã o proeminente ou
consciência superior com as quais foram agraciados. 
Sabemos um pouco mais com relaçã o aos anjos (levando em
consideraçã o que os demô nios sejam anjos caídos). Todavia, com
relaçã o a eles, está escrito que anelam perscrutar coisas que nã o
compreendem. Independentemente da grandiosidade do
conhecimento que possuem, os anjos, em certos aspectos, sã o
inferiores a nó s.
Por contraste, com relaçã o ao ser humano, esta grande verdade é
revelada, a saber, que cada indivíduo é criado segundo a imagem de
Deus. Sobre essa base, as igrejas Reformadas confessam que o
homem original, em sua natureza, isto é, por virtude de sua criaçã o,
nã o mediante a graça sobrenatural mas segundo a ordem da criaçã o,
havia recebido a santidade, justiça e sabedoria . Neste ponto,
portanto, a atençã o recai para uma capacidade concedida aos
homens, que os permite sair de sua concha e espiar, por assim dizer,
o pensamento de Deus que se encontra engastado e incorporado na
criaçã o, e a captá -lo de tal forma que, desde a criaçã o, os seres
humanos fossem capazes de refletir o pensamento que Deus nela
incorporou, já na sua origem.
Essa capacidade da natureza humana nã o foi adicionada como algo
extra, mas pertence ao pró prio fundamento da natureza humana.
Desse modo, pois, chegamos a três verdades que se concatenam.
Primeiramente, a plena e rica clareza dos pensamentos divinos
existiu em Deus desde a eternidade. Em segundo lugar, na criaçã o,
Deus revelou, engastou e concretizou a plenitude de Seus
pensamentos. E em terceiro lugar, Deus criou nos seres humanos, os
portadores de Sua imagem, a capacidade de inteligir, abranger,
refletir e organizar, dentro de uma totalidade, esses pensamentos
expressos na criaçã o.
A essência da ciência humana se apoia, pois, sobre essas três
realidades.
Uma capacidade tã o excelente nã o foi dada aos homens para que
permanecesse inutilizada. Antes, eles devem exercê-la a fim de
realizar o propó sito pelo qual foi dada. No momento em que os seres
humanos empregam essa capacidade para refletir os pensamentos
de Deus acerca da criaçã o, surge a ciência. E na medida em que
atuem mais precisa e diligentemente, a ciência humana alcançará
uma maior estabilidade e um conteú do ainda mais rico. 
 
 
 
Contudo, nã o se deve com isso entender que essa tarefa da ciência,
em si mesma e em toda sua extensã o, foi delegada a todo ser
humano. Isso é impossível. A extensã o dessa tarefa é imensa, e a
capacidade das pessoas individuais é demasiado limitada.
A confissã o basilar da criaçã o dos seres humanos à imagem de Deus
transcende o simples reconhecimento de que nó s, pessoal e
individualmente, cada um por si mesmo, pertencemos à geraçã o de
Deus. Na verdade, tal confissã o só se concretiza efetivamente
quando a aplicamos a toda a raça humana ao longo das eras e
coerindo os talentos concedidos a todas as pessoas. Sendo assim,
nã o é o caso de que somente um cérebro individual, ou um gênio em
particular, ou algum talento singular tenha sido suficiente equipado
a fim de compreender a plenitude do Verbo na criaçã o, mas que
todos eles conjuntamente possuem o objetivo de tornar essa
compreensã o possível entre os homens. Se fosse outra a intençã o,
entã o cada pessoa, homem ou mulher, teria que estar em plena
posse de toda a genialidade e talento. Contudo, nã o é esse o caso. O
gênio e o talento aparecem distribuídos apenas pontualmente sobre
determinados indivíduos. Aceitamos prontamente a afirmaçã o de
que, com relaçã o a essa questã o, por conta do pecado, muita coisa foi
mudada daquilo que teria sido, caso o pecado nã o tivesse
interferido. Mas, mesmo levando isso em consideraçã o, nã o é
possível afirmar que, de acordo com ordem da criaçã o original, nã o
existiria diferença, nem distinçã o entre as pessoas.
Ora, os céus estrelados nã o nos apresentam um nú mero infinito de
estrelas idênticas entre si, mas sim estrelas, em infinitas
constelaçõ es, que diferem todas entre si. É precisamente nessa
diferenciaçã o multiforme que radia o esplendor do firmamento. De
semelhante modo, nã o podemos supor que Deus nã o pretendia nada
mais do que uma uniformidade monó tona no mundo humano, e que
a multiformidade e a variedade surgiram pela primeira vez através
do pecado. Se fosse assim, entã o o pecado teria antes enriquecido do
que depauperado a vida.
Ademais, o simples fato de que Deus criou homem e mulher prova,
de maneira inconteste, que a uniformidade absoluta nã o era parte
do plano da criaçã o. Destarte, nã o podemos, pois, concluir nada além
do fato de que a rica variedade existente entre as pessoas, em termo
de aptidã o e talento, tem origem na pró pria criaçã o e pertence à
essência da natureza humana. Se as coisas sã o dessa maneira, segue-
se automaticamente que, no que diz respeito à imagem de Deus,
nenhum ser humano apresenta esse aspecto de Deus em sua
plenitude, mas que todo talento e todo gênio, reunidos juntos,
possuem a capacidade de incorporar dentro de si mesmos essa
plenitude do pensamento de Deus. 
A ciência é, portanto, construída nã o sobre a base do que uma ú nica
pessoa observa, descobre, imagina e organiza num sistema em seu
pensamento. Pelo contrá rio, a ciência surge como fruto do
pensamento, imaginaçã o e reflexã o de sucessivas geraçõ es ao longo
dos séculos, e mediante a cooperaçã o de todos. Cada pessoa
efetivamente possui conhecimento individual, isto é, o
conhecimento fragmentado por ela adquirido. Entretanto, a criaçã o
de Deus é tã o inefavelmente imensa, e a riqueza de pensamentos
que se encontram depositados em Sua criaçã o é tã o
incomensuravelmente profunda, que o conhecimento fragmentado
de qualquer pessoa virtualmente desaparece. Esse pequeno
fragmento é também ciência, no sentido mais geral do termo, mas
nã o é a ciência que atua como uma criatura singular de Deus, com
seu pró prio princípio vital, a fim de completar sua tarefa também
singular.
A ciência, tomada nesse sentido elevado, se origina apenas por meio
da cooperaçã o de vá rias pessoas. Avança apenas gradualmente nas
geraçõ es que entram em cena, e, desse modo, somente de maneira
gradual adquire a estabilidade e o esplêndido conteú do que lhe
garantem uma existência independente, e somente nessa forma
mais geral começa a assomar como uma influência na vida.
Simultaneamente, segue-se que a ciência pode alcançar relevâ ncia
apenas com o passar dos séculos, e, portanto, será capaz de se
desenvolver em sua mais abundante plenitude somente no fim dos
tempos. A ciência é um templo esplêndido cujas bases tiveram que
ser primeiramente cavadas, para, em seguida, ter seu fundamento
estabelecido. Apenas entã o suas paredes puderam ser erguidas a
partir desse alicerce, para, uma vez finalizadas, construírem suas
ameias. Esse templo poderá ostentar o esplendor cabal de sua
arquitetura, de suas cores e formas, apenas quando toda a
construção estiver completa . Isso explica o porquê terem se passado
séculos, num certo nú mero de naçõ es nas quais dificilmente havia
ciência, no sentido mais amplo da palavra. Também em nosso país,
seria vã a busca por ciência, nesse sentido, entre os Batavos [4] .
Semelhantemente, isso também explica porque apenas a histó ria
dos ú ltimos séculos, especialmente dos séculos XVI e XIX, nos
apresentam o relato de um florescimento tã o poderoso da ciência.
Finalmente, isso também ajuda a explicar tanto aquilo que todos nó s
percebemos, isto é, que ainda hoje a ciência se encontra somente no
começo de suas grandes realizaçõ es, quanto a razã o pela qual todos
os que estã o familiarizados com o domínio da ciência antecipam,
com regozijo, o progresso na esfera científica que se espera no
século XX.
 
 
A ciência nã o é uma possessã o adquirida pessoalmente por cada indivíduo,
pelo contrá rio, cresceu gradualmente em relevâ ncia e estabilidade apenas
como o fruto do trabalho de vá rias pessoas, entre várias naçõ es, no curso de
séculos.
Desse fato, decorre o cará ter independente da ciência, pois esta nã o surgiu
com a elaboraçã o, por parte de seus melhores arquitetos, de um projeto
plenamente desenvolvido para a construçã o de seu templo, e, em seguida,
tendo geraçõ es subsequentes trabalhando silenciosamente, em consenso, e
segundo esse projeto original, com o intuito de eventualmente edificarem o
templo.  
Antes, todo o templo é construído sem um projeto humano e sem a
concordâ ncia dos homens. Aparentemente, ele se ergue sozinho. Cada pessoa
lavra sua pró pria pedra e a traz em seguida para tê-la cimentada na
construçã o. Logo vem outra pessoa que remove essa pedra, remodelando-a e
encaixando-a de modo diferente. Trabalhando separadamente entre si, sem
qualquer acordo mú tuo e sem a menor presença de direçã o por parte de
outras pessoas, com todos ziguezagueando e seguindo seu pró prio curso —
cada pessoa constró i a ciência segundo julga apropriado.
Através dessa confusã o interminá vel, parece, contudo, que no curso dos
séculos, desse labor aparentemente confuso emerge um templo, apresentando
a estabilidade da arquitetura e também seu estilo, e, desde entã o, se passa a
especular acerca de como se dará a consecuçã o de todo o edifício.
Nesse ponto específico, é preciso reconhecer e confessar que todo esse labor
foi conduzido e direcionado invisivelmente por um Arquiteto e Artista que
jamais foi visto. Aqui, pois, nã o é possível sugerir que esse resultado
imensamente belo ocorreu por acidente, sem um plano e totalmente por si
mesmo. Pelo contrá rio, devemos confessar que o pró prio Deus desenvolveu
Seu pró prio plano divino para essa construçã o, criou os gênios e talentos para
sua implementaçã o e direcionou o trabalho de todos, tornando-o profícuo, de
forma que aquilo que havíamos desejado e ainda desejamos se tornasse
efetivamente realidade.
Vendo dessa forma, contudo, a ciência é também uma invençã o de Deus, que
Ele chamou à existência, fazendo com que ela trilhasse as sendas do
desenvolvimento segundo Ele mesmo havia estabelecido.
Isso nã o significa nada além de afirmar e confessar com gratidã o que o
pró prio Deus chamou a ciência à existência como uma de Suas criaturas, e,
consequentemente, que a ciência ocupa seu lugar independente em nossa vida
humana.
 
 

2. CONHECIMENTO
 
O temor do SENHOR é o princípio do conhecimento [5] (Provérbios
1.7a)
 
Descobrimos anteriormente que o pensamento original [6] existia
em Deus. O universo criado configura-se como uma manifestaçã o e
uma concreçã o desse raciocínio original. Aos seres humanos, por
sua vez, foi dada a capacidade de refletir e investigar esse
pensamento divino de uma maneira exclusivamente humana. Tal
reflexã o progride fragmentariamente; contudo, com a ajuda de
direçã o e organizaçã o competentes, ela dá origem a um sistema de
conhecimento. Portanto, a ciência, que é uma criaçã o singular de
Deus, é constituída por esse sistema humano de reflexã o, tendo sido
vocacionada para, de maneira independente, realizar a tarefa que
lhe foi designada pelo pró prio Deus. O SENHOR organizou a ciência
desse modo com o intuito de magnificar Seu santo nome.
Desse modo, e de nenhum outro, a luz do Verbo de Deus desvela o
fundamento. A verdade aqui expressa é compreendida ainda mais
profundamente por meio das Sagradas Escrituras, sendo inferido do
ser, vida e obras singulares de Deus mediante a deslumbrante
revelaçã o de que a Sabedoria ou Verbo possuía uma existência
pessoal eterna em Deus, sendo também verdadeiramente o pró prio
Deus.
Com relaçã o a essa questã o, nã o é necessá rio discutir o pano de
fundo, já que presentemente nã o estamos tratando acerca do
pensamento original, isto é, arquetípico, em Deus [7] , mas sim do
conhecimento refletido, ou ectípico, que se origina segundo o
arranjo divino dentro e a partir da consciência humana.
Como um aparte, a fim de prevenir a compreensã o equivocada,
devemos prestar demasiada atençã o à singularidade das Sagradas
Escrituras, as quais, à medida que lemos, nos passa repetidamente a
impressã o de que, ao invés de recomendar o conhecimento ou a
sabedoria, frequentemente condena o conhecimento humano. Como
lemos em Isaías: “A tua sabedoria e a tua ciência, isso te fez desviar”
(Is 47.10). Ou como diz Eclesiastes, o Pregador: “Quem aumenta
ciência aumenta tristeza” (Ec 1.18). Ou ainda como Paulo escreve
aos Coríntios: “Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de
Deus” (1 Co 3.19).
Essas afirmaçõ es, juntamente com vá rias outras, rapidamente nos
desencorajam de obter aquilo que o mundo chama de conhecimento,
ao invés de nos fazer respeitá -lo. Junte isso ao tom zombeteiro com
que as pessoas da ciência tratam quase sistematicamente a
revelaçã o da Escritura e das demais coisas que nos sã o sagradas. E
nã o ignoremos a destruiçã o da fé de inú meras pessoas ocasionada
pelos chamados resultados da ciência. Quando se reú ne tudo isto,
entã o é possível explicar facilmente a razã o dessa suspeita com
relaçã o à ciência, a qual se instalou entre os crentes. É fá cil
compreender porque um nú mero considerá vel de pessoas vê a
ciência como um poder hostil que deveria, o mais rapidamente
possível, ser combatido ao invés de cultivado. E, finalmente,
podemos prontamente compreender a razã o pela qual algumas
pessoas amaldiçoam o conhecimento, e, portanto, preferem se
recolher à segurança de suas pró prias tendas.
Em resposta a isso, lembramos apenas que a Escritura distingue
entre o verdadeiro e o falso conhecimento. Por um lado, a Bíblia
testifica que “o proveito da sabedoria é que ela dá vida ao seu
possuidor” (Ec 7.12). Por outro, todavia, as Escrituras também nos
alertam contra “aquilo que é falsamente chamado ‘saber’” (1Tm
6.20). Desse modo, a Palavra de Deus contrasta um conhecimento
que é sobremodo excelente com um “conhecimento” que assim é
chamado falsamente. Manter essa distinçã o em vista nos permite
entender o motivo pelo qual, por um lado, as Escrituras nos
advertem com relaçã o ao falso conhecimento, e, por outro, elas
buscam nos inspirar o amor e o respeito pelo verdadeiro saber.
 
 
Essa distinçã o surgiu devido ao pecado, que seduz e tenta as pessoas
para que excluam a ciência de uma relaçã o com Deus, roubando-a
dEle, e, em ú ltima aná lise, fazendo com que ela se volte contra Ele. A
flor da verdadeira ciência possui sua raiz no temor do SENHOR ,
desenvolve-se a partir desse temor e encontra nele seu princípio,
sua força motriz, seu ponto de partida. Se, por meio do pecado, uma
pessoa for cortada dessa raiz que procede do temor do SENHOR , o
resultado inevitá vel é que tal indivíduo verá a ciência como uma
ilusã o destituída de qualquer essência.
Todavia, devemos estar alertas para uma compreensã o equivocada
em particular. Alguns enfatizam esse contraste de tal modo que a
boa ciência, a verdadeira, a “ciência dos santos”, como é chamada em
alguns lugares [8] , existe exclusivamente no conhecimento da graça
de Deus em Cristo. Essa interpretaçã o sugere que o conhecimento
falso se identifica com a investigaçã o das coisas do mundo. Isso,
contudo, é um equívoco. Ora, é possível existir também um falso
conhecimento acerca tanto das coisas santas quando das terrenas.
De modo oposto, pode existir tanto verdadeiro conhecimento da
sagrada revelaçã o das Escrituras, bem como verdadeiro
conhecimento em relaçã o à vida do mundo. Em ambos os domínios,
o conhecimento falso e o verdadeiro, o objeto da ciência é e
permanece sendo a totalidade de tudo que pode ser conhecido por
nó s como seres humanos.
A diferença entre a verdadeira ciência e a falsa nã o se encontra no
domínio no qual as pessoas realizam suas investigaçõ es, mas sim no
modo e no princípio a partir do qual investigam. O pecado nã o
apenas corrompeu nossa vida moral, mas também obscureceu nosso
entendimento. O ú nico resultado possível é que aquele que tentar
alcançar o conhecimento científico com esse entendimento
obnubilado está fadado a obter uma visã o distorcida das coisas, e,
desse modo, chegar a conclusõ es falsas.
Portanto, esse obscurecimento do entendimento humano causado
pelo pecado conduziu a ciência pelo caminho errado. Enquanto o
obscurecimento nã o for compensado pela iluminaçã o do
discernimento dado pelo Espírito Santo, nã o podemos evitar a
exposiçã o a esse perigo.
Caso fosse suspendida a graça comum, e sem essa iluminaçã o
concedida pelo Espírito Santo, o declínio da ciência seria absoluto.
Deixado por si pró prio, o pecado avança de mal a pior. Ora, o pecado
faz com que o homem se resvale por uma ladeira abaixo, sobre a
qual é impossível manter-se de pé.
Aquele que ignora a graça comum nã o pode chegar a nenhuma outra
conclusã o a nã o ser que toda ciência feita fora do domínio do
sagrado se apoia somente nas aparências e desilusõ es, resultando
necessariamente no ludíbrio de qualquer um que lhe dê ouvidos.
Contudo, o resultado demonstra que esse nã o é o caso. Entre os
gregos antigos, que estavam completamente privados da luz das
Escrituras, surgiu uma ciência que continua a nos maravilhar com as
belezas e verdades que nos oferece. Os nomes de Só crates, Platã o e
Aristó teles foram sempre admirados entre os pensadores cristã os.
Nã o é exagero dizer que o pensamento aristotélico tem sido um dos
instrumentos mais poderosos para conduzir os cristã os a uma
reflexã o ainda mais profunda. Também nos tempos modernos,
ninguém pode negar que nas disciplinas da astronomia, botâ nica,
zoologia, física e afins, viceja atualmente uma rica ciência. Embora
conduzida quase que exclusivamente por pessoas que sã o estranhas
ao temor do SENHOR , a ciência, contudo, produziu um tesouro de
conhecimento que nó s, cristã os, admiramos e do qual, agradecidos,
fazemos uso.
Consequentemente, confrontamos o fato de que, fora dos círculos
cristã os, floresceu uma ciência que, vista por um â ngulo, nos proveu
com um conhecimento genuíno e verdadeiro; e, todavia, vista por
outro, culminou numa filosofia de vida e uma cosmovisã o que se
opõ em diretamente à verdade da Palavra de Deus. Ou, dito de outro
modo, estamos efetivamente perante uma ciência que surgiu do
mundo, uma ciência que jaz, definitivamente, sob o domínio do
pecado, e que, por outro lado, pode se vangloriar de resultados nos
quais o obscurecimento do pecado se encontra virtualmente
ausente. Somente nos é possível explicar isso afirmando que,
embora o pecado tenha de fato espraiado sua corrupçã o, a graça
comum, entretanto, interveio a fim de abrandar e restringir sua
atuaçã o. Também, na medida em que diz respeito à ciência, a
situaçã o que se nos apresenta é passível de explicaçã o somente se
dermos a ambos estes elementos aquilo que lhes é devido: por um
lado, o obscurecimento de nosso entendimento por parte do pecado,
e, por outro, a graça comum de Deus que estabeleceu limites nesse
obscurecimento. Ora, que definitivamente podemos e devemos falar
da atividade de Deus nesse sentido torna-se imediatamente
evidente pelo fato de que em pessoas como Platã o e Aristó teles,
Kant e Darwin, estrelas de primeira grandeza resplandeceram,
gênios do maior calibre, pessoas que expressaram as mais
profundas ideias, embora nã o fossem cristã os professos. Essa
genialidade nã o provinha deles mesmos, antes, receberam seus
talentos de Deus, que os criou e os equipou para seu trabalho
intelectual. 
 
 
Para que percebamos isso, nã o devemos nos satisfazer com a
expressã o “obscurecimento pelo pecado”, mas sim dar conta de
como esse obscurecimento opera. O pecado resultou numa
inabilidade de nossa parte em pensar logicamente? Porventura, o
pecado gerou em nó s uma incapacidade de perceber aquilo que
existe e ocorre ao nosso redor? Ou ele coloca uma venda sobre
nossos olhos de forma que deixamos de ver ou observar? De modo
nenhum. Sempre que discutimos com outra pessoa, pressupomos
repetidamente, tanto para nó s mesmos quanto para nosso parceiro
de discussã o, a capacidade do pensamento ló gico. Nã o hesitamos
por um momento sequer, imaginando se aquilo que estamos vendo
ou ouvindo existe efetivamente, tal como o percebemos. Como regra
geral, vivemos nossas vidas com um sentimento completo de
certeza. Nã o deixamos de ser criaturas racionais por conta do
pecado. E quando comparamos nossa pró pria existência com a dos
animais, estamos completamente conscientes da superioridade que
gozamos como seres humanos, graças à nossa razã o. Desse modo, o
poder que gradualmente adquirimos sobre os animais é tã o patente
e real que claramente nos convence da confiabilidade de nossa
pesquisa e pensamento.
Por conseguinte, nã o é possível negar que o obscurecimento por
meio do pecado também pode ser observado nessa instâ ncia. Quã o
demasiadamente fraco é o poder do pensamento ló gico entre um
considerá vel nú mero de pessoas! Quã o numerosos sã o os equívocos
e erros nos quais nosso raciocínio repetidamente tropeça! Quã o
frequentemente a indolência se instala e se introduz em nossas
pesquisas, nos níveis mais profundos! Quantos estudos sã o
realizados simplesmente para os exames ou por uma carreira,
estando de todo ausente a motivaçã o do entusiasmo sagrado pelo
objeto de estudo!
Entretanto, mesmo que admitamos tudo isto, ainda assim, todas
essas coisas nã o sã o nada mais do que um defeito parcial, e nã o um
obscurecimento que impede nossa visã o.
Nã o. O verdadeiro obscurecimento efetuado pelo pecado reside num
lugar completamente diferente — a saber, no fato de que perdemos
o dom de abranger o contexto real, a coerência apropriada, a
integraçã o sistemá tica de todas as coisas. Ora, percebemos tudo
apenas de uma perspectiva externa, nã o em seu â mago e essência,
isto é, percebemos cada coisa individualmente, mas nã o em sua
relaçã o mú tua e em suas respectivas origens em Deus. Tal relaçã o,
tal coerência das coisas dentro da relaçã o original com Deus, pode
ser percebida apenas em nosso espírito. Nã o reside, pois, nas coisas
que se encontram fora de nó s, de modo que poderíamos conhecer e
examinar essa coerência somente na medida em que nosso espírito
vivesse um relacionamento vital com Deus e fosse capaz de delinear
a coerência dos pensamentos divinos que procedem originalmente
de Deus.
O espírito humano possuía precisamente essa característica quando
de sua criaçã o perfeita, tendo-a perdido exatamente quando o
pecado rompeu essa conexã o vital que nos unia a Deus. Assim como
um cachorro ou um pá ssaro vê um palá cio com pedras, madeiras e
argamassa — percebendo talvez até mesmos suas cores, sem,
contudo, compreender ou entender nada acerca da arquitetura ou
do estilo daquela construçã o, nem o propó sito de suas câ maras e
janelas —, assim também nos achamos com nosso entendimento
obscurecido perante o templo da criaçã o. Vemos as partes, as peças,
os elementos, mas já nã o possuímos mais um olhar perceptivo para
o estilo desse templo. Nã o somos mais capazes de vislumbrar seu
arquiteto, e, assim, também nã o somos mais capazes de
compreender esse templo da criaçã o em sua unidade, origem e
destino.
Somos semelhantes a um arquiteto destituído de seus sentidos, que,
quando estava em plena posse de sua mente, compreendeu e
percebeu o edifício inteiro em sua coerência, mas que agora,
espiando da janela de sua cela, contempla fixamente as paredes e os
piná culos, nã o sendo mais capaz de compreender o estilo da
construçã o.
O homem está cego com relaçã o a Deus e à s coisas divinas — o que
significa nã o somente que nó s, que agora habitamos no ofuscamento
de nosso pecado, nã o podemos mais nos erguer em direçã o a Deus,
mas que também nã o nos encontramos mais na posiçã o de perceber,
na criaçã o, a coerência dos pensamentos de Deus. De semelhante
modo, isto significa que somos incapazes de perceber a totalidade da
criaçã o e de formar um conceito claro do plano que a permeia.
Consequentemente, nã o somos capazes de chegar a um
conhecimento verdadeiro da criaçã o.
Podemos certamente adquirir um conhecimento correto a respeito
da pedra, madeira, tinta e metal, mas nos é impossível alcançar uma
visã o correta do estilo, da ideia fundamental, do tema e do objetivo
dessa construçã o chamada criaçã o. Certamente que a ciência nã o
consiste simplesmente no exame da madeira, pedra e metal; antes,
uma investigaçã o se torna mais pró pria e essencialmente ciência
quando tem êxito em capturar uma imagem espelhada do todo.
Precisamente por isso é que o obscurecimento causado pelo pecado
impede a aquisiçã o nã o do conhecimento dos detalhes, mas do
conhecimento no sentido mais sublime e nobre do termo.
Contanto que se olhe para a criaçã o, ainda que excluindo os homens
e ignorando Deus, é certo que a ciência ainda traz à tona maravilhas
por meio de sua precisa dissecaçã o das coisas e delineamento das
leis que governam seus movimentos. Contudo, tã o logo se leve em
conta os homens, nos deparamos com questõ es espirituais que nos
fazem entrar em contato com o centro de toda a vida espiritual, isto
é, com Deus. Neste momento, toda certeza desvanece, uma escola
científica de pensamento se posta ao lado da outra, um paradigma se
opõ e a outro, até que o desespero generalizado tome conta dos
pesquisadores. O conhecimento deles avança, é claro, contanto que
estudem o corpo humano e possam observar algo da psique humana
que tenha alguma forma de expressã o corporal, mas no momento
em que adentram o domínio caracteristicamente espiritual, os
resultados sã o somente especulaçõ es e conjecturas, com uma teoria
substituindo outra, conduzindo, em ú ltima instâ ncia, à dú vida e
ceticismo.
 
 
A forma como tudo isso veio à existência nos seria muito mais clara,
caso soubéssemos mais acerca da situaçã o original de nossa raça
humana quando saiu das mã os de seu Criador, nã o tendo sido ainda
afetada pelo pecado. Certamente nosso conhecimento sobre isso é
mínimo. Todavia, a partir de diversos fragmentos de valiosa
informaçã o, podemos obter, mediante deduçã o, conhecimento
relevante suficiente para compreender a diferença que se instalou
na criaçã o por conta do pecado.
Na nossa atual situaçã o, podemos chegar ao conhecimento das
coisas somente mediante a observaçã o e aná lise. Mas nã o era assim
no paraíso, pois quando lemos que Deus trouxe os animais a Adã o, e
quando este os viu pela primeira vez, ele imediatamente percebeu a
natureza daquelas criaturas de tal forma que, no mesmo instante,
passou a nomeá -los (Gn 2.18-20). Naturalmente isso nã o significa
que, quando cada animal passava por ele, Adã o simplesmente
articulava um som desprovido de sentido ou significado. Imagine
que alguém passasse perante você, carregando duas ou três
centenas de valises, e que à medida que olhasse para cada uma
delas, uma apó s a outra, inventasse um som, sem qualquer
propó sito ou sentido. Antes mesmo de chegar à centésima valise,
você já teria esquecido o nome que havia dado à primeira delas.
Qual propó sito foi cumprido quando Adã o nomeou os animais?
Afinal, Eva nã o estava lá , portanto, ninguém o escutou. Essa
narrativa só faz sentido caso se compreenda que Adã o percebeu de
imediato a natureza de cada animal, e expressou sua intuiçã o dessa
natureza dando um nome que lha correspondesse.
Ora, se Adã o desfrutou dessa posiçã o com relaçã o ao mundo animal,
nã o há razã o para negar que ele gozou de uma posiçã o semelhante
no que diz respeito ao mundo vegetal — na verdade, a todo o mundo
natural. Nã o possuímos mais essa característica, essa capacidade
imediata de percepçã o e compreensã o da essência de plantas e
animais. Se desejamos compreender uma planta ou um animal,
entã o é preciso observá -los cuidadosamente por um longo tempo, e,
partindo daquilo que observamos gradualmente, tirar conclusõ es a
respeito da natureza deles. Isto ocorre independente de chegarmos
algum dia à compreensã o da essência deles. Até mesmo seus
instintos permanecem, para nó s, um enigma completamente
insolú vel.
Adã o, contudo, possuía essa capacidade. Levando isso em
consideraçã o, entenderemos também o modo pelo qual ele teria
alcançado o conhecimento de toda a criaçã o caso o pecado nã o
tivesse interferido. Esse conhecimento teria conduzido a um
entendimento da totalidade da criaçã o no contexto de sua origem e
seu destino.
Mas há algo mais — Adã o nã o somente percebia a essência das
coisas, mas também as nomeava. Tal nomeaçã o também nã o existe
mais para nó s. Podemos certamente dar um nome para um objeto
nã o familiar, todavia, ou tomamos esse nome de outros povos, como
os holandeses tomaram de empréstimo termos do inglês para
trilhos, bondes e locomotivas, ou formamos um nome com a ajuda
de palavras gregas, como telégrafo, telefone, eletricidade e assim por
diante. Portanto, podemos inventar novos nomes em nossa pró pria
linguagem, a fim de expressar a essência das coisas, somente
mediante a composiçã o linguística ou por meio da adoçã o de
palavras já em uso. Nã o somos mais capazes de criar linguagem.
Adã o, contrariamente, era capaz disso. Para ele, o conceito de uma
coisa existia juntamente à sua essência , e a palavra, por sua vez,
existia numa conexã o orgâ nica com esse conceito. Adã o nã o teve
uma mã e que lhe ensinou a falar, antes, ele o fez automaticamente; e
o fato que Deus falou com ele (e ele certamente compreendeu as
palavras divinas) já nos mostra o quã o altamente desenvolvidas
eram suas capacidades conceituais e linguísticas. Desse modo, nã o
estamos exagerando quando afirmamos que, em seus pró prios
pensamentos e consciência, Adã o possuía uma clareza, um
discernimento e uma unidade que perdemos.
Se nã o fosse o pecado, a ciência teria tomado um rumo
completamente diferente, e teria sido construída com uma
imediatez que mal podemos imaginar. O que se deseja expressar por
esse obscurecimento do entendimento devido ao pecado se nos
torna evidente da maneira apropriada somente quando
comparamos aquilo que Adã o poderia fazer e aquilo que nã o somos
mais capazes. A ciência era uma posse imediata para Adã o, mas para
nó s é um pã o do qual nã o podemos nos alimentar a nã o ser
mediante o suor de nossos espíritos, por meio do trabalho á rduo e
extenuante. 
 
 
Embora a ciência tenha adquirido uma feiçã o completamente
diferente como um resultado do pecado, de modo que agora ela é
fruto de custosa diligência, observaçã o precisa, aná lise cuidadosa e
síntese conscienciosa, no entanto, sua existência anterior nã o foi
inteiramente perdida.
Os instintos dos animais demonstram quã o intuitivamente podem
ocorrer tanto o conhecimento preciso quanto as açõ es exatas,
independente de estudo ou prá tica anteriores.
A aranha tece sua teia e a abelha constró i sua colmeia com uma
precisã o e certeza que nã o podem ser superadas por qualquer tipo
de construçã o humana. Tome, por exemplo, uma jovem aranha que
jamais viu uma teia; no entanto, você verá que, em pouco tempo, ela
estará fiando e tecendo uma teia que é, ao mesmo tempo, artística e
proficiente. Nesse contexto, podemos mencionar aquilo que o
apó stolo Paulo observa a respeito do conhecimento humano, que
agora é somente parcial, atuando com imagens espelhadas, mas,
num momento posterior, tornar-se-á completamente diferente e
tido como perfeito [9]
. Presentemente, contudo, nã o mais
possuímos esse tipo de conhecimento, nem a capacidade de obtê-lo
— tudo chega a nó s mediante a observaçã o, aprendizado, prá tica e
estudo. 
Nã o obstante, há algo na experiência humana que se encontra entre
o instinto e o conhecimento adquirido, um tipo de conhecimento
mediado que o Espírito Santo, por toda parte, apresenta com o
termo “sabedoria”. Sabemos simplesmente, por experiência prá tica,
que isso é algo diferente do conhecimento científico. Uma vez ou
outra, em meio à s pessoas mais simples, nos deparemos com o tipo
de indivíduo que é dotado com uma sabedoria extraordinariamente
prá tica. Tais pessoas geralmente nã o possuem muita instruçã o
acadêmica. Ocasionalmente, alguns deles nã o sabem ler ou escrever,
e, ainda assim, quando se trata de aconselhar, decidir ou agir, eles
sã o capazes de falar de forma extremamente sábia ; sabem como
agir sabiamente , de forma que sempre têm êxito, envergonhando
pessoas mais instruídas do que eles.
De modo geral, uma mulher possui uma educaçã o formal inferior ao
homem, contudo, quantas vezes nã o percebemos como a esposa de
um homem douto possui uma ponderaçã o muito mais sá bia com
relaçã o à experiência humana do que seu esposo, de maneira que ela
chega a constrangê-lo com todo seu conhecimento? Esse tipo de
sabedoria é encontrado nã o somente no Oriente, mas também no
Ocidente. Salomã o jamais estudou naquilo que chamamos de
universidade, e muito provavelmente nã o realizou quaisquer tipos
de exames, e, todavia, as pessoas vinham de todas as regiõ es do
Oriente a fim de ouvir a sua sabedoria. Mesmo que uma inspiraçã o
especial tenha entrado em jogo aqui, todavia, entre outros povos do
Oriente, circulavam histó rias a respeito de um povo sá bio que foi de
fato dotado com um discernimento extremamente claro e lú cido no
tocante a vá rias questõ es.
Tal sabedoria é um dos elementos mais preciosos na vida de uma
sociedade. As pessoas ocasionalmente se surpreenderam pelo alto
nível de sabedoria prá tica presente mesmo em indivíduos de tribos
primitivas. No seu sentido mais amplo, nã o podemos compará -la ao
instinto animal, nem tampouco ao conhecimento imediato que Adã o
possuía. No entanto, essa sabedoria nos faz lembrar de ambos, e de
fato tem algo em comum com eles. A semelhança é que,
aparentemente dissociado de qualquer esforço, tal conhecimento
lida confortavelmente com o contexto das coisas, e com uma
apreensã o firme e segura sabe escolher o correto. É como se essas
pessoas sá bias estivessem seguindo uma diretriz superior que
sempre os capacita a encontrar o que é certo. Eles invariavelmente
atingem o alvo.
Isto que presentemente assoma aos nossos olhos nada mais é do que
a operaçã o da graça comum, que preservou alguns resquícios do
paraíso e enriquece nossa vida, mesmo a vida afligida pelo pecado.
Ora, evidentemente essa característica também se desenvolveu
pecaminosamente nos estratagemas do engano e nas astú cias do
enganador.
Entretanto, isso acontece com todos os dons fornecidos pela graça
comum, que se empenha em nos enriquecer, mas ao mesmo tempo
corre o risco de ser empregada incorretamente. Husai e Aitofel [10]
sã o exemplos de ambas essas situaçõ es. Contudo, em nossa situaçã o
pecaminosa, a ciência nã o surgiu dessa sabedoria.
A sabedoria é proveitosa para o momento ou para a vida prá tica,
mas nã o é capaz de construir o conhecimento do todo. Por esse
motivo, a graça comum fornece um segundo elemento. Uma vez
desprovido desse discernimento imediato com relaçã o à essência
das coisas, o caminho foi aberto para que, mediante o trabalho
incansá vel de pesquisa, observaçã o, aná lise, imaginaçã o e reflexã o
ulteriores, uma pessoa possa adquirir pelo menos algum
conhecimento do lado externo das coisas e também possa
compreender o aspecto conjunto das coisas, mesmo que nã o a lei de
seu movimento.
Este é o segundo dom que procede da graça comum que, ao longo
dos séculos, conduziu ao surgimento daquilo que agora chamamos
ciência. Somente através desses meios podem os seres humanos,
tanto quanto lhes cabe, alcançar a ciência. Em que medida a graça
especial contribui para esse fim será objeto de nossas consideraçõ es
no pró ximo capítulo.
 
 
 

3. ENTENDIMENTO
 
Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu
próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de
Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. (1Co
2.11)
 
Conforme dito, o pecado causou certo obscurecimento em nosso
entendimento. Como resultado, a clareza da ciência humana sofreu
consideravelmente no que tange ao entendimento. A situaçã o nã o
seria tã o grave caso nosso conhecimento repousasse inteira e
exclusivamente na observação ou proviesse da experiência. Se assim
fosse, possuiríamos na nossa consciência nada além de um espelho
que refletiria o mundo ao nosso redor. É verdade que um espelho
sem rachaduras ser-nos-ia preferível, contudo, um espelho trincado
ainda pode nos servir em caso de necessidade.
Portanto, poderíamos afirmar que o espelho de nossa consciência
fora trincado pelo pecado, e que o reflexo do mundo projetado nessa
superfície partida nos ofereceria um conhecimento do mundo que
nã o está de todo incorreto. Com efeito, a unidade da imagem do
mundo sofreria certo dano, todavia, ainda assim, seríamos capazes
de observar as partes dessa imagem. 
E é precisamente neste ponto, contudo, que se encontra a
dificuldade. Ora, na verdade, o que se encontra dentro de nó s é algo
totalmente diferente de um espelho. O fenô meno que projeta seu
reflexo no espelho de nossa consciência nã o é, absolutamente, o
ú nico que nos leva a fazer ciência. De semelhante modo, nossa
consciência, nossa razã o e nosso entendimento sã o elementos
totalmente diferentes de uma câ mera. De fato, nosso entendimento
abarca uma capacidade fotográ fica, no entanto, esta é de pouca
ajuda no que diz respeito à operaçã o essencial de nosso pensamento
científico. O mesmo se dá analogicamente com relaçã o a nosso olho.
Nas lentes de nossos olhos, existe, por assim dizer, uma câ mera. Elas
capturam uma imagem; outra pessoa, por sua vez, pode observar
esse reflexo que foi capturado em nosso olho. Mas nossa visão é uma
atividade extremamente mais complexa. Podemos facilmente
exemplificar isso quando comparamos uma pessoa que está olhando
intencionalmente para algo com outra que está fitando
distraidamente o mesmo objeto — o olhar de ambas captura o
mesmo navio, a mesma casa ou o quer que seja. As lentes de cada
uma possuem o mesmo reflexo, e, todavia, uma de fato vê o objeto e
a outra, nã o. Isto constitui prova suficiente de que há uma dualidade
no olhar mais simples. Em primeiro lugar, há o reflexo de algo nas
lentes de nossos olhos; em segundo lugar, nossas mentes se focam
naquilo que é refletido.
A mesma coisa é verdade com relaçã o ao nosso conhecimento
intelectual. A observaçã o mú ltipla captura a imagem, mas com isto
nã o se dá por encerrada a atividade de nosso intelecto. Na verdade,
neste ponto, o trabalho principal de nossa mente está apenas
começando.
É preciso explicar mais profundamente esse contraste entre a
imagem refletida das coisas e o trabalho superior de nossa mente.
Ora, uma observaçã o pode ser simples ou composta, direta ou
periférica. Se vejo o gado pastando à minha frente, podemos dizer
que esses animais estã o sendo observados diretamente no que diz
respeito à sua aparência e movimento. Para isso nã o precisamos de
um professor de zoologia; até mesmo uma criança da fazenda é
capaz de fazê-lo.
Contrariamente, caso seja necessá rio verificar se um micró bio
infectuoso está alocado no pulmã o desses animais; de que espécie
de micró bios se trata; e os danos que podem gerar, torna-se
necessá ria uma observaçã o infinitamente mais analítica e complexa,
a qual pode ser realizada somente por um especialista nessa á rea.
Afinal, o pulmã o nã o está exposto, e os micró bios sã o
demasiadamente minú sculos. Mesmo que tal observaçã o exija um
esforço bem maior; ainda que nã o possa ser feita sem o uso de
vá rias ferramentas apropriadas; e que vá rias formas de
conhecimento dedutivo devem ser consideradas em relaçã o a tudo
isso — contudo, o que temos neste ponto é e permanece sendo nada
mais do que observação .
Alguém pode chamar de ciência essa observaçã o analítica, intensiva,
difusa e confusa e complexa, porém ela se encontra basicamente no
mesmo continuum que a observaçã o direta e ordiná ria. Na verdade,
a ciência é bem mais refinada; requer um talento consideravelmente
maior; exige de nó s um empenho maior; entretanto, o resultado
continua o mesmo. A criança da fazenda vê a olho nu o gado no
pasto; ela conta esses animais, distingue suas cores, as observa
andando e se movendo de um lado ao outro. O pesquisador segue o
mesmo caminho a fim de descobrir os micró bios no pulmã o
enfermo: contá -los, distingui-los no tocante à s suas formas e
identificar seu movimento.
Todas as ciências superiores começam com a avaliaçã o das coisas,
contudo, sua verdadeira tarefa consiste em processar aquilo que
observou e, a partir disso, tirar suas conclusõ es. Tendo realizado as
observaçõ es, as ciências superiores seguem com a composiçã o de
uma complexa teoria que explique claramente as causas relevantes,
os princípios operativos e as interrelaçõ es dos fenô menos. Se esta
descriçã o está correta, entã o nã o há dú vida de que essas
observaçõ es independentes fornecem o material para as ciências
superiores, embora nã o constituam a ciência em si mesma.
Contudo, em contraposiçã o, no século passado, as pessoas se
habituaram cada vez mais a presumir que tal observaçã o artificial já
constituía a verdadeira ciência, e partindo desta premissa eles
atribuíram o mais alto cará ter científico à quelas disciplinas
ocupadas com a observaçã o da natureza. A elas, os franceses
concederam o honorá vel título de sciènce exactes (as ciências
naturais), e os ingleses, por seu turno, lhe deram o título abreviado
de sciences (ciências), como se esses estudos, por si mesmos,
pudessem arrogar-se o ilustre epíteto de “ciência”.
Essa atitude talvez tenha sido causada pelo desleixo, e mesmo pelo
desprezo, com que a observaçã o foi tratada no passado. Mas nessa
posiçã o reside um erro e um perigo que necessitam ser apontados.
Atrá s dessa posiçã o se encontra uma tentativa de libertar a ciência
de nossa subjetividade ou, se preferir, de nossa pessoa. A ciência
supostamente deve ser neutra, e a fim de sê-lo, deve ser dissociada
de nosso ser pessoal. Somente assim pode ser qualificada como
ciência, a qual todos sancionam de forma imediata, ou concordam
com base na demonstraçã o. É isso que as pessoas pretendem ao
insistir que a ciência deve ser imparcial, e que, no que tange a ela,
nossa ú nica preocupaçã o deve ser encontrar a verdade.
Todavia, nessa perspectiva, a questã o se encontra falseada. É
inconcebível, no domínio da ciência, a busca, por parte de um
pesquisador, de algo que nã o seja a verdade — sim, pode ser que
haja alguém com um objetivo adicional.  
Um médico que estuda um pulmã o enfermo espera curá -lo, e o
mineiro que explora uma jazida anseia encontrar ouro. Todavia,
tanto o médico quanto o mineiro estã o comprometidos primá ria e
principalmente com a busca pela verdade. De que outro modo o
pulmã o poderia ser curado? Uma mina poderia oferecer o ouro que
nã o possui? Todo mundo concorda, entã o, que no primeiro está gio
do trabalho científico — isto é, da observaçã o adequada — a
verdade permanece sendo o objeto principal. Uma vez que nã o
produzimos o objeto a ser analisado, antes, o encontramos fora de
nó s mesmos, a pró pria natureza da tarefa exige que busquemos a
maior objetividade possível na observaçã o, em cujo processo nosso
eu deve desempenhar um papel tã o passível quanto possível.
Essa observaçã o, que em si mesma é vá lida, deu origem à proposta
de considerarmos como ciência somente aquilo que é observado de
maneira objetiva, por parte de todos igualmente, e apenas aquilo
que é possível concluir diretamente dos dados. A personalidade
subjetiva do cientista, seu pró prio ego, foi silenciada, e o antigo
conceito de que a nossa mente é uma tabula rasa , uma folha de
papel em branco, ressurgiu numa nova forma: isto é, nossa mente,
em si mesma, nã o possui conteú do. Somos simplesmente
dispositivos de gravaçã o, elegantes câ meras fotográ ficas, e nada
mais.
Embora essa abordagem seja aplicada na física e química, todavia
falhou quando as pessoas a utilizaram nos domínios da histó ria,
filosofia e demais ciências humanas. Com efeito, assim que se
começou a falar sobre uma ciência da antropologia, muitos estavam
tã o inclinados a negar a todas essas disciplinas superiores um
cará ter genuinamente científico, reservando-o apenas para aqueles
domínios que medem, pensam e calculam. Isso pressionou as
pessoas dentro das ciências do espírito (as Humanidades) a
pautarem seus trabalhos o má ximo possível na observaçã o externa.
Mesmo aquilo que chamamos psicologia teve que ser construído
inteiramente sobre aparências externas. Assim, tal fato conduziu a
uma crescente materializaçã o de todas as ciências, alimentando a
falsa noçã o de que a vida espiritual surgiu a partir de causas
materiais. E, falando de modo geral, essa corrente de pensamento
conquistou o campo como a feiçã o dominante da ciência moderna.
Devemos, pois, nos opor a isso. O cará ter independente do elemento
espiritual dentro de nó s nã o deve extirpado, de outro modo
acabaremos negando completamente o â mbito espiritual e,
portanto, Deus.
Se a independência da vida espiritual, do espírito e também do Pai
dos espíritos deve ser mantida intacta, entã o é necessá rio que a
ciência leve em consideraçã o esse fator independente de nossa
mente, e agir assim também tanto com relaçã o ao sujeito
investigador quanto no que tange à s coisas espirituais que sã o
objetos da investigaçã o. Disso, concluímos que a afirmaçã o de que
“somente aquilo que pode ser provado com o consentimento de
todos é efetivamente científico” é absurda. Se todos estivessem
fazendo ciência da mesma maneira, essa afirmaçã o estaria
indubitavelmente correta. Todavia, uma vez que as pessoas que
fazem ciência nã o sã o concordes; já que diferentes pontos de partida
predominam entre as consciências; e porque nã o apenas diferenças,
mas contradiçõ es surgem uma vez por outra, temos, por
conseguinte, que nã o é mais possível sustentar a ilusã o de uma
ciência ú nica.
Nossa observaçã o do mundo espiritual começa invariavelmente com
o exame de nosso pró prio espírito. É apenas partindo de nosso
pró prio espírito que chegamos a algum conhecimento da existência
espiritual dos outros. Os atos de ver e ouvir, pesar e medir podem
simplesmente nos auxiliarem nessa tarefa, mas nada mais. Caso nã o
possuíssemos espírito humano, nada daquilo que vemos ou ouvimos
dos demais indivíduos nos levaria à descoberta do ser espiritual que
há neles. “Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senã o
o seu pró prio espírito, que nele está ?” (1Co 2.11), dizem as
Escrituras. E isso é verdade. A autoconsciência é o meio pelo qual
chegamos ao conhecimento do espírito humano em geral.
Mas isso nã o é tudo — se um mundo espiritual existe, distinto do
mundo material, entã o a comunhã o genuína com ele somente nos é
possível mediante nosso pró prio espírito. Aquilo que observamos da
operaçã o do Espírito de Deus na natureza, da atuaçã o do espírito
humano na histó ria, nas nossas imediaçõ es e na literatura sem
dú vida nos auxilia a enriquecer nosso conhecimento. Contudo, a
experiência nos ensina diariamente que tudo isso que mencionamos
nã o nos conduz a um conhecimento correto de Deus e do homem.
Devemos de fato possuir um espírito dentro de nó s, que nos coloque
em contato com esse reino da vida espiritual.
Nã o devemos confiar primariamente na observaçã o externa e, entã o,
quando nã o podemos ir mais além, suplicar auxílio por parte de
nosso espírito. Isto seria pusilanimidade. Sendo assim, devemos
sustentar intrepidamente a dupla natureza do terreno da
investigaçã o. Por um lado, há o terreno das coisas externas, no qual
tudo depende da visã o, audiçã o, pesagem e mediçã o. Por outro lado,
há também o terreno do invisível, das coisas espirituais, no qual
nosso espírito possui o direito da iniciativa, e no qual aquilo que é
externamente observá vel pode e deve funcionar apenas como um
assistente.
Percebemos quã o profundamente essa dualidade penetra na
essência da ciência ao consideramos que o fazer científico destituído
de reflexã o é algo inimaginá vel. O pró prio ato de pensar é, em si
mesmo, uma atividade espiritual. O pró prio instrumento que serve
como uma espá tula na construçã o do edifício da ciência pertence
nã o ao â mbito das aparências, mas ao invisível. É impossível
descobrir a lei que governa esse pensamento mediante a audiçã o, a
visã o, a mediçã o ou pesagem, antes, ela se manifesta no espírito
humano. Imediatamente surge a contradiçã o de que nosso
pensamento nã o pode deixar de inquirir as indagaçõ es acerca da
origem, coerência e destino das coisas, enquanto a observaçã o nã o
pode nem nos ensina nada nesse tocante.
Ora, a observaçã o só é possível caso exista algo anteriormente.
Imagine, pois, por um momento, que você esteve presente no ato da
criaçã o; você nã o teria visto nada com seus olhos nem escutado
nada com seus ouvidos antes que o universo viesse à existência, e
você nã o poderia dizer coisa alguma acerca da causa que o originou.
De semelhante modo, é impossível chegarmos por meio da
observaçã o ou cá lculo a uma conclusã o fixa e abrangente no que
tange à coerência das coisas.
Mediante a observaçã o pormenorizada, podemos notar uma coisa
ou outra. Descobrimos relaçõ es entre vá rios elementos, e também
observamos como uma coisa desencadeia a outra. Todavia, mesmo
em relaçã o a essas questõ es, nosso conhecimento é tã o limitado que
nos deparamos continuamente com enigmas insolú veis. Nã o ficamos
satisfeitos se somos capazes de discernir uma relaçã o particular
entre as coisas. Nossa consciência mais elevada exige que essa
relaçã o seja explicada através de um sistema racional , de forma a
percebermos como tudo se encaixa entre si e qual o propó sito ao
qual tal estrutura serve.
Percebemos, por exemplo, que há uma relaçã o entre a morte de
Gladstone, o colapso do partido liberal na Inglaterra, a descoberta
das minas de ouro em Rand [11]
, o grupo de executivos do
parlamentar Rhodes e a guerra em Transvaal. Isso nã o é difícil,
todavia, nã o nos satisfaz, ainda que toda a Europa e a América
tenham sido desagradavelmente afetadas por esse curso brutal de
eventos, ressentidas pelo fato de sua impotência em dar cabo dessa
situaçã o.
Desejamos saber nã o apenas a relaçã o causal, mas o nosso espírito
nã o se aquieta até entendermos a ideia que ocasionou o
desenvolvimento dessa relaçã o. Nosso senso de justiça nã o
permitirá ser embalado e, assim, adormecido; permanecemos
inquietos até sermos capazes de esclarecer o relacionamento da
justiça sobre essa relaçã o entre as coisas.
Ora, isso depende do terceiro ponto que mencionamos
anteriormente, isto é, o destino das coisas. Nossa mente nã o
encontra repouso no conceito de uma continuaçã o ininterrupta e
infindá vel de nossa vida aqui na terra. Individualmente, nã o somos
capazes de imaginar uma pessoa vivendo ao longo de todas as eras
deste mundo. E muito menos somos capazes de imaginar o
carpinteiro, século apó s século, nã o fazendo nada a nã o ser serrar e
aplainar a madeira, ou o marinheiro navegando durante períodos
infindá veis de um porto a outro. Tudo deve chegar a um fim, e nã o
podemos deixar de imaginar que o mundo todo há de terminar. E
entã o, o quê? É possível que tudo aquilo que existiu algum dia nã o
tenha outro propó sito a nã o ser perecer? Assim, nos assoma a ideia
de que um objetivo ú ltimo, uma destinaçã o, deve ter sido
estabelecido para todas as coisas, e que tudo aquilo que foi ou é se
encontra necessariamente orientado a fim de alcançar essa meta,
esse destino.
A ciência — justamente pelo fato de apenas escutar, enxergar, medir
e pesar — nã o pode nos dizer nada acerca disso, já que nã o pode ver
o que há depois do fim. À medida que a ciência se apega ao visível e
ao observá vel, ela nã o pode sequer cogitar a questã o da origem,
coerência e destino das coisas. A teoria da evoluçã o se imagina
capaz disso no que diz respeito à s origens, todavia, isso nada mais é
do que um autoengano, já que remonta as causas dos entes aos
primeiros á tomos e à energia que contêm, mas é incapaz de nos
revelar algo no tocante à origem desses á tomos e dessa energia,
esquivando-se dessa questã o, sem respondê-la. 
Nã o obstante, nossa mente constante e repetidamente nos
apresenta esses três grandes e imensos problemas, desafios dos
quais a mente jamais pode se ver livre, três questõ es principais a
respeito das quais nosso espírito sempre medita: “De onde? Como?
Em direçã o a que fim?”. A poderosa ascensã o do darwinismo é, em si
mesma, explicada grandemente pelo fato de pessoas insensatas
imaginarem que há , nessa doutrina, por fim, respostas suficientes
para a primeira dessas três questõ es. 
Todos aqueles que acompanharam até aqui nosso raciocínio a
respeito da ciência nã o terã o dificuldades em formar uma imagem
límpida do estado da questã o [ status quaestionis ]. As ciências
naturais, devido ao fato de poderem medir e pesar com precisã o, sã o
capazes de oferecer um tipo de certeza que é facilmente
demonstrá vel a todos. Essa afirmaçã o conduziu à ideia persistente
de que a ciência se refere apenas à quilo que, em ú ltima aná lise,
possui a concordâ ncia unâ nime. A isso, seguiu-se o esforço em
separar a ciência da pessoa (do sujeito que faz ciência), conduzindo
a pesquisa, na medida do possível, em direçã o ao â mbito sensorial-
observá vel.
Tendo sido excluídas dessa perspectiva, as ciências do espírito
recuaram tanto quanto possível somente para a esfera na qual o
espiritual se manifesta no visível. Eles estavam, conforme
afirmavam, aplicando o método das ciências naturais nas ciências do
espírito. Nesse sentido, contestou-se a independência da pró pria
existência do domínio espiritual. A alma deixou de existir, e Deus
também. Nã o existia nada além da matéria e de suas manifestaçõ es.
Isso ocasionou a materializaçã o completa de todas as ciências, que é
o principal traço característico da ciência moderna.
Desse modo, de nada adianta afirmar: “Eu jamais iria tã o longe.
Tenho minha fé, e por esta fé confio nas Sagradas Escrituras”. Pois,
enquanto continuar sustentando essa falsa visã o da ciência
moderna, você ou permanece entre os chifres de um dilema ou seu
trabalho científico continuamente lhe conduzirá ao
desmantelamento do elemento espiritual.
Neste ponto, é necessá rio romper em princípio com toda essa visã o
da ciência. Antes de tudo o mais, deve-se estabelecer a
independência do espírito, da vida espiritual e da lei que a governa.
É preciso perceber e reconhecer que nosso pensamento também
pertence à vida espiritual. E, de semelhante modo, urge entender de
maneira clara que, justamente por essas razõ es, o pesquisador nã o
pode se satisfazer simplesmente com a observaçã o, mensuraçã o e
pesagem. O nosso espírito nos confronta indomitamente com
problemas totalmente diferentes: sã o problemas que nenhum
conjunto de escalas ou prumo podem resolver, pois envolvem um
domínio no qual a observaçã o é impossível.
Portanto, deve-se abraçar a conclusã o de que a observaçã o nã o pode
reduzir nosso espírito ao status de um mero assistente. Pelo
contrá rio, o espírito que está em nó s deve empregar a observaçã o
das coisas visíveis como um assistente, a fim de continuar regulando
a investigaçã o realizada pela ciência.
Evidentemente, desde o princípio do mundo, os atributos invisíveis
de Deus foram percebidos por meio das coisas que foram criadas,
assim o seu eterno poder, como também a sua pró pria divindade
(Rm 1.20). Embora o leã o e mais ainda a á guia possuam uma visã o
mais nítida do que nó s, e ambos vejam as mesmas criaturas que
observamos, eles nã o sã o capazes, todavia, de compreendê-las nem
conceber nada acerca do eterno poder e da divindade do SENHOR dos
Senhores, simplesmente porque nã o possuem um espírito nem
(consequentemente) a ideia mesma de um Deus.
Em contraposiçã o, você, vendo essas mesmas criaturas,
efetivamente apreende delas o eterno poder e a divindade do
SENHOR . Esse entendimento chega até nó s nã o a partir dessas
criaturas, mas devido ao fato de termos sido criados com um
espírito humano dentro de nó s, e porque, na criaçã o, esse espírito já
incluía a ideia, a noçã o e a consciência da existência de Deus.
É possível que alguém objete dizendo que vá rias pessoas observam
as mesmas criaturas, e, todavia, nã o sã o movidas à adoraçã o do
eterno poder e divindade do nosso Deus. A isto respondemos que o
ato de ver através de um microscó pio depende de sua configuraçã o
e foco corretamente ajustados. Qualquer um que tenha trabalhado
com um microscó pio de alta potência sabe o trabalho necessá rio
para que possamos enxergar o que queremos.
Assim sendo, também nã o se pode levar em consideraçã o o homem
tal como se encontra agora numa posiçã o falseada. Com respeito a
isso, é necessá rio tomar como ponto de partida o homem tal como
Deus o criou. Por meio da natureza, o primeiro homem viu Deus em
Seu eterno poder e divindade de uma forma que nossos olhos nã o
podem contemplá -Lo. Nã o temos o direito de nos queixarmos por
enxergamos tã o pouco. Se eu ajusto o foco do microscó pio para um
estudante, e, passado um tempo, ele troca as lentes ou os ajustes de
forma que ele passa a nã o ver mais nada, a culpa é inteiramente
dele, e nã o minha. Ora, foi exatamente isso que fizemos quando
caímos no pecado. Sem o direito de nos queixarmos, deveríamos,
antes, agradecer, pois aprouve a Deus nos ajudar nessa situaçã o
desesperadora reajustando o microscó pio por meio da graça
comum, de maneira que podemos ao menos enxergar alguma coisa ,
mesmo que nã o seja com aquela clareza anterior.
Todavia, podemos também pecar contra essa graça comum. Se
alguém se encontra totalmente absorto no mundo sensorial, de sorte
que a ideia de Deus desvanece cada vez mais de sua alma; se alguém
se encerra dentro de seu pró prio pensamento autossuficiente, de
maneira a afastar Deus para fora de seu campo de visã o, entã o é
evidente que ele é semelhante a um á guia que enxerga mais
nitidamente do que as pessoas comuns, entretanto, a despeito de
seu olhar penetrante, nã o pode mais discernir o Deus vivo em Sua
criaçã o.
No entanto, isso nã o é motivo para autocongratulaçã o. Se somos
capazes de discernir nas criaturas um lampejo da vida divina, isso é
devido somente à graça que nos é comunicada. Esta é uma graça que
nã o nos torna melhores, mas que, pelo contrá rio, deveria nos levar a
agradecer ao SENHOR com profunda humildade pela
condescendência em revelar Sua presença divina em nosso espírito,
enriquecendo, assim, nossa vida de forma incomensurá vel.
 

4. PECADO
 
Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e aniquilarei a
inteligência dos instruídos. Onde está o sábio? Onde, o escriba? Onde, o
inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a
sabedoria do mundo? (1Co 1.19-20)
 
Caso um indivíduo, já no seu ponto de partida, seja negligente na
afirmaçã o da independência do espírito com relaçã o à matéria , ele
irá eventualmente ser conduzido — tã o logo o objetivo proposto
tenha sido alcançado — da adoraçã o do homem até à derradeira
idolatria da matéria. A aplicaçã o do método científico nas ciências
superiores faz com que seja impossível sustentar a independência
do espírito. Qualquer ciência que escolha esse caminho irá se afastar
cada vez mais de Deus, até por fim negá -Lo totalmente.
Com relaçã o a isso, o pesquisador científico que toma o mundo ao
seu redor como ponto de partida e pauta sua honra na busca pela
objetividade neutra está condenado por seu método a ver a
existência independente de seu pró prio ego eventualmente perecer.
É por isso que insistimos tã o vigorosamente na necessidade de que
mais uma vez se respeite o ponto de partida subjetivo na ciência.
A ciência moderna é subjugada pela desconfiança quando se trata do
nosso sentimento mais profundo da vida, e essa desconfiança nada é
mais é do que descrença. As pessoas tentam recuperar aquilo que
perderam estabelecendo seu fulcro na consciência da maioria
predominante. As pessoas acataram ousadamente tudo aquilo que,
de um modo geral, os círculos científicos consideram como verdade.
Dito de outro modo, aquilo que as pessoas comumente concordam
dessa maneira passa a ser chamado de a verdade — a verdade que
as pessoas afirmam honrar. Todavia, se pressionados, eles
perceberam que essa concordâ ncia geral nã o se configura de
maneira alguma como prova, de modo que passam a supor que
somente pertence ao â mbito da ciência estabelecida aquilo que
podemos tornar evidente a todas as pessoas de mente sã e de
considerá vel educaçã o formal para que elas possam finalmente
compreender e concordar. Os alemã es, especialmente, fizeram disso
seu passatempo, chegando a cunhar a designaçã o “universalmente
vá lido” a fim de descrever essa situaçã o. Todavia, esse termo se
refere apenas ao â mbito do observá vel, que nã o é, em ú ltima aná lise,
passível de contradiçã o, e para o qual é possível conduzir
logicamente todas as pessoas que possuem o raciocínio ló gico.
Contudo, ao mesmo tempo, isso significa que esse sistema foi
estruturado a partir do pensador com o senso mais empobrecido, já
que nega todos os ricos conteú dos da consciência humana enquanto
valida como verdade apenas aquilo com o qual concorda. É
semelhante a um exército que se desloca sob as ordens expressas de
que a cavalaria nã o avance mais rapidamente do que a infantaria,
nem esta mais celeremente do que o soldado mais vagaroso. Mesmo
nessa mentalidade, a fé se faz indispensá vel para o progresso (nã o
importa que seja a crença em apenas um ú nico axioma), contudo, o
resultado, em ú ltima aná lise, foi que todo aquele que possuísse uma
fé mais rica acompanhasse o passo e se adaptasse ao pesquisador
que tivesse menos fé. Disto, segue-se que os pesquisadores cristã os
que se permitiram ser arrastados nessa direçã o tiveram que afastar
o conteú do esplêndido de sua fé consciente para fora do domínio
científico, ou ainda renunciar à sua fé ou cair em apostasia.
Por essa razã o, os pensadores cristã os se tornaram cada vez mais
convictos da necessidade de restabelecer, ao seu lugar apropriado, a
pessoa que faz ciência. Apenas dessa maneira seria possível
sustentar, dentro do â mbito científico, a independência do espírito
com relaçã o à matéria, e desse modo também a existência de Deus.
De semelhante modo, eles também perceberam mais e mais que
essa é igualmente a posiçã o das Sagradas Escrituras. Afinal de
contas, nã o há fundamentos escriturísticos para essa elevada
“validade universal”, como se a verdade se referisse apenas à quilo
que todos, em ú ltima instâ ncia, unanimemente concordam.
Contrariamente, as Sagradas Escrituras declaram nitidamente que a
sabedoria e o conhecimento que o mundo extrai de seus pró prios
princípios se opõ em diretamente à verdadeira ciência. As Escrituras
notoriamente estabelecem que a diferença entre a sabedoria do
mundo, que é loucura para Deus, e a verdadeira sabedoria
legitimada por Deus, surge da diferença que há dentro do espírito do
pesquisador.
Há dois tipos de pessoas. A Palavra os chama de “naturais” e
“espirituais”, deles sendo dito, em 1 Coríntios 2.11-15, o seguinte:
 
Porque qual dos homens sabe as coisas do
homem, senã o o seu pró prio espírito, que nele
está ? Assim, também as coisas de Deus, ninguém
as conhece, senã o o Espírito de Deus. Ora, nó s nã o
temos recebido o espírito do mundo, e sim o
Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o
que por Deus nos foi dado gratuitamente. Disto
também falamos, nã o em palavras ensinadas pela
sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito,
conferindo coisas espirituais com espirituais. Ora,
o homem natural nã o aceita as coisas do Espírito
de Deus, porque lhe sã o loucura; e nã o pode
entendê-las, porque elas se discernem
espiritualmente. Porém o homem espiritual julga
todas as coisas, mas ele mesmo nã o é julgado por
ninguém.
 
Naturalmente isso nã o significa que nã o exista um tipo inferior de
ciência que contorne essa antítese. Na medida em que os resultados
sã o governados pela observaçã o factual, obtidos pela pesagem,
mediçã o e numeraçã o, todos os pesquisadores científicos sã o iguais.
Todavia, tã o logo as pessoas se deslocam desse tipo inferior de
ciência em direçã o a formas superiores, neste momento o sujeito
pessoal presta auxílio no que se refere à diferença entre o homem
“natural” e o homem “espiritual”, a qual entra em jogo. Este
fenô meno definitivamente nã o está restrito à ciência da teologia,
porém, se faz presente em todas as ciências do espírito, incluindo a
estrutura filosó fica das ciências naturais.
Partindo dessa premissa, segue-se necessariamente que os
investigadores se bifurcam em dois campos no nível das ciências
superiores. Aquilo que alguns chamam de sabedoria , as Escrituras
— juntamente com todos os cristã os — denominam loucura ; e, de
maneira recíproca, a sabedoria do mundo zomba daquilo que
chamamos de ciência, considerado o termo “tolice” como um
eufemismo para expressar seu desprezo pela nossa ciência. Mas
como as pessoas podem argumentar, a partir de um ponto de vista
cristã o, que nossa ciência e a ciência do mundo devem ser uma só
coisa, sem, todavia, negar a antítese apresentada pelas Escrituras?
Como podemos, entã o, escapar da divisã o do empreendimento
científico em dois grupos bem definidos? Como podemos, pois,
escapar do princípio de que a distinçã o prá tica nessa questã o surge
das diferentes predisposiçõ es dos sujeitos, uma vez que um vive a
partir da mentalidade e consciência do mundo irregenerado,
enquanto o outro vive a partir da renovaçã o de nosso espírito que
provém somente da regeneraçã o radical?
É evidente que com essa antítese entre o homem “espiritual” e o
homem “natural”, as Escrituras nã o estã o se referindo a pessoas que,
respectivamente, creem ou nã o na Palavra de Deus. Na verdade, essa
declaraçã o guarda um sentido mais profundo — ela afirma a
distinçã o entre ter ou nã o recebido o Espírito de Deus. A Bíblia
afirma enfaticamente: “Ora, nó s nã o temos recebido o espírito do
mundo , e sim o Espírito que vem de Deus , para que conheçamos o
que por Deus nos foi dado gratuitamente” (1Co 2.12). Isto
corresponde exatamente com aquilo que o pró prio Jesus havia dito,
isto é, que “quem nã o nascer da á gua e do Espírito não pode entrar
no reino de Deus ” (Jo 3.5). Se estivermos de acordo que o reino de
Deus definitivamente nã o é idêntico à igreja institucional, mas que,
pelo contrá rio, governa toda nossa biocosmovisã o, entã o a
declaraçã o de Jesus implica que somente aquele que recebeu a
iluminaçã o interna do Espírito Santo se encontra na posiçã o de
alcançar esta perspectiva da totalidade das coisas: aquela que
corresponde à verdade e essência das coisas.
Portanto, se é certo que existem dois tipos de pessoas que
discordam essencialmente em seus egos e nas suas consciências
internas, logo é evidente que suas pesquisas científicas nã o podem
caminhar lado a lado. Nã o é possível que trabalhem conjuntamente
construindo um mesmo muro. Cada um deve construir o seu.
Inevitavelmente, esses dois tipos de ciência devem se desenvolver
em paralelo — por um lado, a ciência daqueles cujo ponto de partida
é o espírito do mundo; por outro, a ciência daqueles cujo ponto de
partida é o Espírito que procede da parte de Deus. Uma vez que a
diferença entre essas pessoas surge através da regeneraçã o, que no
Novo Testamento é chamada palingenesis , geralmente se distingue
esses dois tipos de ciência contrapostos entre si de ciência da
palingênese e a ciência à parte da palingênese.
Assim, pois, se a diferença fundamental se encontra no indivíduo, no
que se refere à regeneraçã o ou nã o da pessoa, entã o, da mesma
forma, é certo que uma segunda diferença fundamental também está
relacionada, a saber, se no â mbito do conhecimento científico leva-
se em consideraçã o a revelaçã o especial de Deus tal como foi
preservada e selada para nó s nas Sagradas Escrituras.
Anteriormente, enfatizamos primeiramente a operaçã o do Espírito
de Deus dentro do indivíduo porque inú meros pesquisadores se
ocupam com as Escrituras, porém lhes falta a iluminaçã o do Espírito.
Eles primeiro diluem o conteú do das Sagradas Escrituras para, em
seguida, interpretarem-no de acordo com o espírito do mundo.
Quando finalmente percebem que isso nã o funciona, eles contestam
toda a autoridade e conteú do das Escrituras, esgarçando e
destruindo-a.
Por si mesma, a Bíblia nã o pode nos fazer progredir nesse tocante,
justamente porque ela nã o é deste mundo; pelo contrá rio, seu
conteú do foi trazido ao mundo pela graça divina, de modo que nã o
pode ser compreendida nem assimilada a nã o ser que seu leitor seja
movido e iluminado pelo Espírito de Deus. A mera afirmaçã o — “eu
levo as Escrituras em conta” — jamais conduz a um resultado
satisfató rio, salvo se levar em consideraçã o também aquilo que é
necessá rio para o seu correto entendimento. Neste ponto, a
operaçã o do Espírito de Deus dentre o sujeito investigador deve ser
combinada com a operaçã o objetiva do Espírito na revelaçã o
especial, a qual, precisamente aqui, projeta sua luz na graça comum,
a fim de fortalecê-la.
É inegá vel que, ao longo dos séculos, a graça comum atuou
eficazmente entre inú meros povos mais desenvolvidos, com o
intuito de conduzir a um grau superior o desenvolvimento espiritual
da nossa raça humana mediante a criaçã o de gênios e a concessã o de
talentos brilhantes. Todavia, foi somente a revelaçã o especial que
lançou essa luz indispensá vel sobre as questõ es mais importantes,
especialmente aquelas que envolvem a origem, o governo e o
destino de todas as coisas. Somente a revelaçã o das Sagradas
Escrituras oferece a certeza com relaçã o a essas questõ es basilares
que dominam nossa a nossa visã o da vida; e, ainda assim, nã o
podemos afirmar que tais questõ es pertencem ao domínio da graça
particular.
A graça particular é aquele que salva o pecador e que,
consequentemente, se estende somente aos eleitos. Em
contrapartida, as Escrituras nos desvelam o mistério da criaçã o, nos
revelam o decreto divino da providência no pacto noaico, nos
advertindo também que este mundo está indo em direçã o a uma
catá strofe final. Tudo isso definitivamente afeta nã o somente os
eleitos, mas todas pessoas e cada ser vivo, incluindo os animais (até
porque estes foram propositalmente incluídos no pacto noaico).
Está escrito: “Eis que estabeleço a minha aliança convosco, e com a
vossa descendência, e com todos os seres viventes que estã o
convosco: tanto as aves, os animais domésticos e os animais
selvá ticos que saíram da arca como todos os animais da terra” (Gn
9:9-10). Como isto poderia pertencer ao â mbito da graça particular?
De semelhante modo, quando o salmista no Salmo 104 apresenta
um retrato da vida dos animais, e quando o profeta Isaías descreve a
vida do agricultor, como poderíamos atribuir tudo isso à graça
particular somente pelo fato de se encontrar na Bíblia? As pessoas
percebem que isso nã o faz sentido. É perfeitamente certo que a
revelaçã o concernente à s questõ es mais profundas da vida,
juntamente com essa perspectiva mais precisa com relaçã o à
natureza, chegou até nó s por meio da senda da revelaçã o especial, e
nã o nos teriam sido concedidas se nã o fosse a graça particular. Nã o
obstante tudo isso, é evidente que esses elementos nã o se
constituem como parte ou porçã o da graça particular. Na verdade,
eles sã o um fortalecimento da luz da graça comum, um
fortalecimento que chega até nó s a partir da revelaçã o especial.
Todavia, é de suma importâ ncia que coloquemos, em primeiro
plano, o fato de que esse fortalecimento proveio da revelaçã o
especial. Caso esta revelaçã o tivesse se limitado apenas à quilo que, a
rigor, diz respeito à salvaçã o do pecado, ignorando tudo o mais, nã o
teríamos os dados necessá rios para a construçã o de um templo da
ciência que estivesse edificado sobre um fundamento cristã o. Se
assim fosse, nã o seríamos capazes de obter nada além de uma
doutrina religiosa, algo que Egeling chamou de “o caminho da
salvaçã o”. Nã o seríamos capazes sequer de obter um sistema
teoló gico completo. No entanto, nã o é assim que as Escrituras agem
— elas nã o somente nos fornecem a direçã o para o caminho da
salvaçã o, mas também lançam luz ao nosso redor no que diz
respeito aos grandes problemas do mundo.
Ademais, as Escrituras nã o dispõ em desses dois domínios — o
caminho da salvaçã o e a vida natural — como duas cabines
emparelhadas uma ao lado da outra, antes, tece-os conjuntamente
como se fossem fios, nos fornecendo, assim, uma visã o do mundo —
de sua origem, de seu curso dentro da histó ria e de seu destino
ú ltimo —, dentro da qual, embora inserida numa estrutura invisível,
se processa toda a obra da salvaçã o. Desse modo, com esses pontos
estabelecidos, é-nos concedida a possibilidade de construir uma
abordagem inteiramente cristã à ciência, que nos afasta da
especulaçã o vazia e nos fornece um conhecimento relativo ao real
estado das coisas, isto é, com relaçã o à realidade tal como foi, é e
será .
Caso nos recusá ssemos a analisar detidamente o sujeito
investigador, nã o seria possível conceber uma diferença na
percepçã o dos resultados científicos obtidos pela investigaçã o
conduzida com base nas Escrituras. Nesse sentido, conquanto
pensassem de maneira ló gica, cada cristã o chegaria à s mesmas
conclusõ es, e nenhuma diferença de convicçã o existiria entre eles no
domínio científico.
Todavia nã o é isso que diariamente os resultados nos mostram. Em
certa medida, isso é verdade, mas tã o logo as pessoas se deslocam
da raiz para a parte superior do caule dessa planta, o caso muda
completamente. Isso nã o nos deve surpreender, se levarmos em
conta a importâ ncia do sujeito investigador, como recentemente
demonstramos ser necessá rio. Essa diferença de percepçã o poderia
ser reduzida ao mínimo somente se a mesma autoridade divina que
é inerente à revelaçã o continuasse a regular, de um modo infalível,
nossa interpretaçã o das Sagradas Escrituras. A Igreja Romana crê na
existência de uma autoridade contínua como essa, de modo que teve
grande êxito em nutrir uma unidade de convicçã o.
Nã o deveríamos, todavia, superestimar esse fato. Pois mesmo no
domínio da Igreja Cató lica Romana, dificilmente todos os resultados
de investigaçõ es sã o automaticamente controlados pelo
pronunciamento da autoridade eclesiá stica. Com relaçã o a inú meras
questõ es subordinadas, os pesquisadores romanistas chegam a
resultados completamente divergentes. No entanto, essas diferenças
sã o naturalmente ainda maiores entre nó s, protestantes, que nã o
reconhecemos tal autoridade divina contínua dada à Igreja, mas que
crê, sim, na direçã o do Espírito Santo. Contudo, nã o conhecemos
esse direcionamento por parte do Espírito de Deus a nã o ser
entrelaçado nos confrontos desses sujeitos. Para nó s, essa direçã o
nã o é uniforme, conduzindo todos sempre ao mesmo resultado. Pelo
contrá rio, ela progride através das disputas de opiniõ es e, desse
modo, apresenta a verdade ú nica e rica numa multiplicidade de
ideias e convicçõ es.
Tomada em si mesma, essa multiformidade nã o apresenta perigo
algum. Antes, deveríamos notar que, nã o fosse o pecado, o esplendor
da verdade teria sido capaz de resplandecer mais fortemente na
variegaçã o de convicçõ es.
Os ú nicos perigos dessa multiformidade sã o as antíteses que
surgiram, cuja origem nã o poderia ser outra a nã o ser a operaçã o do
pecado.
As cores que surgem quando raio de luz perpassa o prisma sã o
multiformes, mas juntas constituem um raio harmonioso. Há
diferença, mas, de modo algum, antítese.
Consequentemente, é possível supor que uma rica variedade de
opiniõ es e convicçõ es teria existido somente se o pecado nã o tivesse
adentrado a criaçã o, e que, somente através do pecado que
continuar a operar, nossas variegaçõ es se insurgiram tã o
ferrenhamente umas contra as outras de forma a gerar, pelo menos
em parte, antíteses absolutas. Todos, portanto, devem se empenhar
continuamente a fim de manter essas variegaçõ es, mas também
devem se empenhar para trazer à luz aquilo que opera como uma
antítese, e estarem atentos ao cultivo da harmonia.
Por um lado, trava-se uma controvérsia de modo tal que as
diferenças nã o podem ser suprimidas. Mas, por outro, busca-se a paz
a fim de manter a unidade. Ora, a unidade automaticamente surge
sob a luz, tã o logo a alacridade da ciência do mundo direciona sua
guerra aos princípios mais profundos e à fundaçã o mesma de nossa
vida comunitá ria. Neste ponto, é possível perceber como aqueles
que se encontram em oposiçã o ferrenha entre si — no que diz
respeito à avaliaçã o dos postulados derivados — repentinamente
unem forças quando se trata de defender sua base comum.
Nó s, protestantes e romanistas, nos encontramos em lados opostos
com relaçã o à concepçã o da imagem de Deus ( imago Dei ) e da
justiça original. Contudo, tã o logo a teoria da evoluçã o expresse sua
crença de que os seres humanos foram feitos segundo a imagem do
animal, ou mesmo que evoluiu a partir do pró prio animal, os
cató licos romanos, os gregos ortodoxos, os luteranos, os anabatistas
e os reformados, todos unem suas forças com um renovado vigor
para defender a criaçã o dos homens segundo a imagem de Deus.
Assim, em meio à diversidade, permanece ainda uma certa unidade
a ser mantida, e a histó ria nos ensina como um processo duplo
ocorre em sequência. Quando o desejo impetuoso por unidade se
excede, de forma a incorrer no risco de transformar a
heterogeneidade necessá ria em uniformidade, segue-se, pois, o
período quando a unidade foi virtualmente esquecida, e, mediante
um esforço tremendo, a diversidade da realidade multiforme mais
uma vez recebe a parte lhe é devida. Porém, quando as pessoas
esquecem essa unidade e enfatizam a diversidade tã o
acentuadamente que, por fim, restam apenas antíteses, entã o um
período inteiramente diferente surge, quando o ataque aos
fundamentos comumente compartilhados se intensifica de tal modo
que a necessidade de se fazer jus novamente à s raízes comuns se
torna automaticamente evidente em cada esfera.
Durante a Idade Média, a diversidade foi sacrifica em prol da
unidade. Durante a Reforma, a diversidade elevou tã o alto sua
cabeça que frequentemente a unidade deixou de ser considerada.
Durante o século XVIII e a primeira metade do século XIX, a
valorizaçã o pela diversidade acabou sucumbindo à indiferença da
superficialidade. Desde entã o, a diversidade novamente ganhou
terreno, mas justo quando ela estava para destruir a catolicidade da
Igreja, veio a teoria da evoluçã o, que nos força mais uma vez a
enfatizar a unidade.
O intercâ mbio de ideias ao qual a vida cristã foi submetida nesses
diferentes períodos nã o alterou nada no que diz respeito à
existência de certas distinçõ es naturais que sã o inerradicá veis
porque, em essência, estã o intimamente relacionadas à s diferentes
capacidades entre as pessoas, naçõ es e momentos histó ricos — a
melhor forma de abarcar a verdade individual revelada deste ou
daquele lado. Isso explica o motivo de nã o sermos capazes de
compreender a verdade de forma abrangente. Em proporçã o à s
nossas capacidades de apreensã o, e na medida em que essas
capacidades se desenvolvem sob certas circunstâ ncias e sob vá rias
influências externas, nesta mesma medida, a verdade é percebida,
compreendida e expressa diferentemente por cada povo.
Mesmo em nossa pequena Europa, a composiçã o dos espíritos é
diferente na parte oriental em relaçã o à parte ocidental, assim como
nas á reas setentrionais e meridionais. O fato de que o sul tenha
permanecido cató lico romano; o leste, grego ortodoxo; o norte tenha
sido dominado pelo modo de vida luterano, ao passo que, no oeste, o
estilo de vida reformada tenha se desenvolvido — este fato nã o é
acidental, mas está relacionado com as diferenças na ancestralidade,
na histó ria, na disposiçã o, juntamente com diferenças no fervor
mental e espiritual. Todos eles tomaram para si o mesmo
cristianismo, o qual, todavia, causou diferentes impressõ es em cada
um deles. Ora, cada grupo assimilou o cristianismo de sua pró pria
maneira, e apó s isso, cada um tenta, de diferentes formas, manifestá -
lo em sua adoraçã o e a concretizar a fé cristã na vida.
A distinçã o entre as quatro principais tradiçõ es eclesiá sticas acima
mencionadas deveria, portanto, ser explicada nã o com base no acaso
ou na arbitrariedade; na verdade, elas se originam numa diferença
de disposiçã o espiritual e social, que atuou psicologicamente a fim
de conduzir inevitavelmente a esses quatro fundamentos diferentes.
Essas quatro variaçõ es principais sã o aná logas a plantas. Um
floresce mais viçosamente em um país, outra, numa regiã o diferente.
Podemos transportá -las para um solo diferente, todavia o resultado
mostra que o solo irá produzir mais abundantemente somente caso
a arraiguemos no solo ao qual pertence.
O mesmo se dá aqui. Há cató licos romanos e luteranos na Rú ssia,
assim como há reformados na Dinamarca, luteranos na Itá lia e
(juntamente com os cató licos) na Holanda e Inglaterra. Mas ainda
assim, a principal corrente em todos esses países continuou a jorrar
ao longo dos séculos na mesma direçã o. Em cada um desses países, o
cristianismo se manifesta mais poderosamente na forma
correspondente à natureza e disposiçã o do povo. Existe aqui, pois,
uma relaçã o natural entre aquilo que a religiã o cristã encontra no
cará ter nacional e a forma que ela adquire. Quanto maior a aptidã o
de um povo, maior será pureza da forma adquirida. Em
contrapartida, quanto menos desenvolvido for um povo, mais
frustrante será a forma assumida.
Certamente é indubitá vel a afirmaçã o de que nossa resiliência
nacional alcançou sua expressã o mais esplêndida quando nosso
povo descobriu a chamada expressã o de vida reformada ou
calvinista dentro da religiã o cristã . A partir disso, pode-se deduzir
que existe uma relaçã o necessá ria entre o cará ter de nosso povo e o
calvinismo, e que este se adequa à quele. Por esse motivo, as pessoas
definitivamente se equivocaram quando, nos séculos XVIII e XIX,
consideraram que a forma calvinista da vida cristã era algo de curta
duraçã o, excelente para o passado, mas inú til para a atualidade, o
que fez com que buscassem seu bem-estar num protestantismo mais
generalizado.
Esse fenô meno resultou numa importaçã o da teologia alemã para a
Holanda — uma teologia que, em sua ideia subjacente, era luterana
—, que nã o encontrou o solo adequado em nosso país e, portanto,
jamais pode florescer aqui. O resultado também demonstrou que
essa planta exó tica, apesar de seu rá pido crescimento, jamais
vingou. Entretanto, o modo reformado de fé e vida apenas havia
começado a se mostrar mais uma vez quando recebeu aclamaçã o de
vá rios círculos, e, presentemente, já nos concedeu novamente uma
teologia holandesa original, nativa. O calvinismo é a planta que, por
força de inclinaçã o e histó ria, pertence a este lugar. Assim que essa
planta novamente lançar suas raízes neste país, as pessoas
continuarã o a ver seus caules se expandindo rapidamente, com uma
folhagem verdejante e com frutos saudá veis e abundantes.
 
 
5. EDUCAÇÃO
 
[Cristo] em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento
estão ocultos (Cl 2.3)
 
As Escrituras afirmam que “a sabedoria deste mundo é loucura diante de
Deus” (I Co 3.19). Todavia, essa afirmaçã o nã o implica, como as pessoas
geralmente entendem, que, na medida em que a ciência rejeita a revelaçã o
especial, ela nã o pode expandir e legitimar nosso domínio sobre a natureza
em vá rios aspectos.
Pelo contrá rio, tal declaraçã o significa que a ciência falha tã o logo busque
penetrar no pano de fundo espiritual da realidade partindo do mundo
observá vel, e tã o logo tente edificar toda uma construçã o a partir de dados
adquiridos. Ela anuncia com grande alarde aquilo que, sob a luz de Deus,
assoma como loucura, isto é, em conflito com a essencialidade e com a
realidade.
Tudo se resume a garantir a confissã o da completa independência de Deus
com relaçã o ao mundo, bem como a sustentar resolutamente a independência
do espírito com relaçã o à matéria. Para este fim, convoca-se uma resistência
contra a inclinaçã o de sujeitar as ciências do espírito ao método das ciências
naturais.
Se essa resistência for bem sucedida, a diferença existente entre duas pessoas
imediata e necessariamente tornar-se-ia evidente — uma diferença que
envolve a extensã o na qual o indivíduo continua completamente envolto no
obscurecimento do pecado, rejeitando, assim, a revelaçã o especial da parte de
Deus. Ou, como um ser regenerado, o esforço que o indivíduo empenha para
lobrigar em meio à s trevas mediante a conversã o e ênfase da Palavra de Deus.
O fato de que a luz espiritual dentro da alma e a lâ mpada para os pés sã o
ambos fornecidos pela Palavra de Deus traz todos os cristã os à mesma
perspectiva fundamental, mas nã o à uniformidade no pensamento e conduta.
A subjetividade dos cristã os nã o é uma réplica fixa de um mesmo modelo,
antes, apresenta diversidade. Nã o há dois pensadores originais que pensem de
forma exatamente idêntica. Contudo, dentro dessas variaçõ es surgem quatro
linhas principais, uma das quais é o calvinismo, que, para todos aqueles que
sã o reformados, é a mais correta.
Essas diferentes visõ es levam os cristã os, pois, a quatro formas distintas de
perceber o mundo e a vida. Aquele que em seu trabalho científico almeja
produzir uma estrutura integrada ao invés de um mosaico há de edificar
solidamente de acordo com as linhas que reconhece como sendo as mais
corretas.
É por isso que a estrutura cató lico-romana será diferente da estrutura
científica que nó s, protestantes, desenvolvemos.  Por conseguinte, justamente
por buscar a verdade acima de tudo, todas as ciências superiores devem
nortear cada pensador a se unir com aquilo que seus colegas pensadores
construíram e continuam a construir em sua pró pria geraçã o.
Por isso, devemos rejeitar como ineficazes todas as tentativas de construir —
tanto nas ciências do espírito quanto nas ciências superiores em geral — em
conjunto a todos aqueles que rejeitam a revelaçã o especial. O mesmo se dá no
que diz respeito à construçã o conjunta com aqueles que, embora aceitem essa
revelaçã o, nã o obstante, por virtude de sua subjetividade diferentemente
orientada, constroem com base num estilo que nã o é o nosso e nã o o pode sê-
lo sem violar nosso passado e nossa pró pria subjetividade.
Disso, segue-se que todos os investigadores podem até trabalhar
conjuntamente naqueles estudos feitos fora das diferenças subjetivas, no
entanto, eles necessariamente se separam, seguindo seu pró prio caminho,
assim que seus estudos passam a focar nas ciências espirituais e na concepçã o
científica da totalidade. Nestes estudos, portanto, crentes e descrentes devem
seguir seus caminhos separadamente.
Geralmente eles podem se beneficiar mutuamente dos resultados de suas
investigaçõ es, entretanto nã o sã o capazes de trabalhar conjuntamente na
construçã o do templo da ciência. E, muito menos, devem os crentes se retirar
para seus nichos eclesiá sticos, e, satisfeitos com o simples ato de possuírem fé,
deixar nas mã os dos descrentes a construçã o do templo da ciência, como se
esta nã o lhes dissesse respeito. Os cristã os nã o podem agir assim porque o
empreendimento científico nã o é um exercício do orgulho humano, mas, sim,
um dever que o pró prio Deus nos delegou.
A honra divina exige que espírito humano esquadrinhe toda a complexidade
daquilo que foi criado, a fim de descobrir a majestade e sabedoria de Deus e
expressá -las nos pensamentos humanos por meio da linguagem humana.
Dado que o mundo descrente nada pode fazer a nã o ser obscurecer a
majestade e sabedoria divinas, os pensadores cristã os sã o convocados a
oferecerem seus lombos para essa grande tarefa que somente eles podem
realizar, ainda que nã o traga benefícios para suas pró prias vidas. Mas,
felizmente, este nã o é o caso. Pelo contrá rio, apenas quando a ciência cristã
nos insere dentro de uma perspectiva do mundo e da vida claramente
considerada e lucidamente explicada, o pensador cristã o pode de fato alcançar
uma visã o das coisas que corresponda à sua fé — uma visã o que antes apoia e
fortalece do que enfraquece sua fé.
Afinal de contas, é evidente que enquanto viver no meio deste mundo, o
cristianismo confessional nã o pode se satisfazer com sua confissã o de fé, mas,
como todos os demais seres humanos, o cristã o também necessita de um certo
entendimento do mundo no qual se encontra. Todavia, se para isso ele nã o
receber orientaçã o de uma perspectiva cristã , ele nã o pode nem terá outra
escolha a nã o ser adotar os resultados da ciência descrente. Ao fazer isso, ele
vive com uma biocosmovisã o que nã o se harmoniza com sua fé, mas que, de
modo irreconciliá vel, contradiz sua confissã o em vá rios pontos. Tal fato o leva,
pois, a experimentar uma esquizofrenia em seu pensamento, por meio da qual
o conteú do de sua confissã o e a perspectiva científica sob a qual ele atua
passam a existir inconciliavelmente lado a lado. Isso destró i a unidade de seu
pensamento e também enfraquece seu poder. O resultado inevitá vel é que sua
fé gradualmente começa a ceder à sua visã o científica, e sem perceber ele
resvala para o modo descrente de percepçã o do mundo. No século XIX, essa
situaçã o resultou no surgimento de uma cosmovisã o mista que, de maneira
semelhante aos teólogos éticos de nosso país, buscou unir partes individuais
da fé com partes individuais da filosofia incrédula a fim de formar uma
unidade que, nã o obstante, sempre permaneceu um híbrido.
De modo recíproco, nosso dever é que nó s, que confessamos Jesus Cristo,
tomemos posse da ciência como um instrumento para anunciar nossa
convicçã o de fé. Vemos repetidas vezes como um grupo de crentes que nã o
percebem essa obrigaçã o se isolam da sociedade circundante, se retirando
para um canto separado, mantendo sua posiçã o geralmente entre as classes
menos desenvolvidas, perdendo, assim, toda influência no curso dos eventos e
na formaçã o da opiniã o pú blica.
Na natureza do caso, a mentalidade geral do povo é moldada pelos
acadêmicos. As universidades estabelecem a direçã o do pensamento para as
pessoas de influência. Do meio universitá rio, esse modelo de pensamento é
reproduzido dentre os políticos, advogados, médicos, professores e escritores.
Mediante tal influência, esse modelo é levado à imprensa, à s escolas primá rias
e secundá rias e à rede dos funcioná rios burocrá ticos.
Se essa vida acadêmica e a influência que ela produz sobre a populaçã o
permanecem exclusivamente nas mã os de incrédulos, entã o a opiniã o pú blica
irá , em ú ltima aná lise, se voltar inteiramente para essa direçã o também no
â mbito moral e religioso, de modo que afetará danosamente nossos círculos
cristã os.
Há somente um meio de prevenir isso — exigir que os pensadores cristã os
estabeleçam um movimento de nível universitá rio, manifestando, por meio
dele, um modelo diferente de percepçã o e pensamento, reproduzindo-o
dentre o povo que acompanha esses estudos acadêmicos. O resultado eventual
seria um quadro de pessoas intelectualmente desenvolvidas para exercer
influência entre as multidõ es, pessoas que poderiam adentrar no campo do
discurso pú blico.
A vida da graça particular nã o subsiste por si pró pria, porém foi disposta por
Deus no meio da vida da graça comum. Uma vez que as Sagradas Escrituras
definitivamente nã o se limitam a nos desvelar o caminho da salvaçã o, antes,
nos foram confiadas com o intuito de enriquecer a graça comum com uma
nova luz, aqueles que confessam a Palavra e nã o fazem com que essa luz mais
brilhante resplandeça sobre o domínio da ciência (que pertence ao campo da
graça comum) sã o negligentes no cumprimento de seu dever.
Dificilmente, uma pessoa está inclinada a imaginar que essa prá tica da ciência
visualize exclusivamente o mundo do pensamento. Ainda que o reflexo dos
pensamentos de Deus projetado pela criaçã o sobre o espelho de nossa
consciência humana seja de fato necessá rio apenas para a honra do nome de
Deus, todavia, esse conhecimento mais refinado nã o reside noutro lugar que
nã o neste reino da vida diá ria.
Na disposiçã o da graça comum de Deus, a ciência é também um dos meios
mais poderosos para combater o pecado e também o erro e miséria que dele
emana. A ciência feita em nome do SENHOR funciona como um antídoto para o
veneno do pecado, mas com isso nã o queremos dizer que a ciência possui o
poder de transportar a alma humana da morte para a vida. O instrumento que
Deus estabeleceu para esse tipo de transiçã o é a fé, e essa fé salvífica pode
surgir somente a partir da re-criaçã o da alma humana, a saber, por meio da
regeneraçã o, que o pró prio Deus comunica no segredo da alma sem nossa
intervençã o ou de qualquer outro instrumento. Por essa razã o, a ciência nã o
pertence à graça particular, nem pode pertencer ao seu domínio, mas ocupa
seu pró prio lugar naquela gloriosa obra da graça comum de restriçã o do
pecado, erro e miséria em suas várias manifestaçõ es.
A fim de se convencer disso, é preciso comparar a vida humana tal como
encontrada entre as tribos negras da Á frica com a vida vivida pelos povos em
nossos países europeus, onde a tocha projetou sua luz por um longo tempo. Os
danos da superstiçã o, incluindo aqueles que ainda surgem entre nó s apenas
esporadicamente, continuam a dominar o todo da vida na Á frica. Dificilmente
se pode falar de um sistema de jurisprudência digno deste nome, por meio do
qual a ordem e a norma poderiam ser introduzidas nessas tribos. Jamais se
ouviu de liberdades e direitos do povo substituindo a arbitrariedade dos
chefes tribais. As mulheres suportam difamaçã o e humilhaçã o. Nã o existe,
num sentido mais refinado, um conceito de educaçã o infantil. As pessoas nã o
possuem quaisquer capacidades de resistir ao poder devastador da natureza.
Doenças e epidemias deixam um rastro de destruiçã o, e nenhuma atençã o é
dada a medidas higiênicas. Nã o há nenhum tipo de cuidado para com os
pobres e os desamparados; e um desenvolvimento superior do espírito se
encontra de todo ausente; as pessoas nã o sã o sequer alfabetizadas. As noçõ es
de honestidade e fidelidade soçobraram. A vida humana nã o tem valor, nem é
respeitada. E a sensualidade mais escandalosa ali impera, sem nenhum pudor
ou restriçã o.
Ora, também em nossos países europeus todos os pecados dessa natureza
permanecem em segredo. Também nosso modo de vida refinado e artificial
trouxe à tona novas misérias que as pessoas jamais haviam experimentado.
Mas, a despeito disso, é inegá vel que nossa sociedade pú blica apresenta um
cará ter mais nobre e elevado, nã o somente no â mbito cristã o, mas também
entre os descrentes. Isso se deve à graça comum que anteriormente
analisamos de forma pormenorizada, de modo que nã o precisamos nos
repetir aqui. Contudo, nesse contexto, é necessá rio mencionar a memorá vel
contribuiçã o que a ciência fez para essa elevaçã o da vida pú blica. A
superstiçã o nã o pode sobreviver onde brilha a luz da ciência. 
A ciência da jurisprudência tem sido um excelente instrumento para o
estabelecimento da ordem e governo na sociedade, para a restriçã o da
violência, para a garantia de segurança para as pessoas e propriedades e para
a resistência à s insurreiçõ es destrutivas oriundas das paixõ es humanas. A
ciência médica pode ter se desgarrado de vá rias formas, no entanto, a ela
ainda pertence a honra de ter sido o instrumento utilizado por Deus para o
alívio de muito sofrimento, de contençã o de vá rias doenças e de desarmar
vá rios males latentes antes que eclodissem. As ciências naturais nos armaram
de meios extraordiná rios contra o poder destrutivo da natureza, submetendo-
a também ao nosso domínio. As ciências humanas sensibilizaram nosso
pensamento humana de uma forma maravilhosamente iluminadora e
influente. A ciência da teologia tem sido o instrumento estabelecido por Deus
para o alinhamento dos conceitos bá sicos de nosso pensamento, aqueles
princípios dos quais a vida humana saudá vel pode surgir; também para que
suas raízes se espraiem; e para um aperfeiçoamento da visã o que deve
escolher entre a verdade e o erro.
Indubitavelmente vá rias dessas crenças nã o foram corretamente tratadas pela
ciência, e muito foi feito por funcioná rios pú blicos, juízes, advogados, médicos,
profissionais da saú de, engenheiros, e assim por diante. Mas isso nã o afeta em
absolutamente nada a importâ ncia da ciência, já que, afinal de contas, foi ela
que formou e equipou essas pessoas.
Durante a Idade Média, percebeu-se tã o claramente esse poder que se
encontra embutido na ciência de resistir ao pecado, ao erro e à miséria, que
nã o raro a prá tica científica era vista quase exclusivamente dessa perspectiva,
à qual mesmo a divisã o da ciência em vá rias disciplinas está relacionada. À
ciência da teologia cabia o combate ao erro; à da jurisprudência, o combate à
violência e desonestidade; as ciências da saú de deveriam lutar contra as
enfermidades e doenças, enquanto as ciências naturais enfrentavam o poder
destrutivo da natureza. Essa perspectiva naturalmente nã o fez jus à s
disciplinas das ciências humanas, já que naquele momento elas nã o haviam
adquirido um lugar independente, servindo somente como um treinamento
formativo para as demais disciplinas.
Se olharmos para a ciência a partir dessa perspectiva, entã o o perigo que nos
ameaça é o estudo dentro dessas vá rias disciplinas ser deslocado de sua firme
base na verdade de Deus. Pois para a disciplina da teologia nã o se exige uma
explicaçã o separada, já que também a histó ria de nossa naçã o demonstrou, de
um modo lastimá vel, como a ciência da teologia, uma vez divorciada da
autoridade da Palavra de Deus, cessa de ser um instrumento de combate para
se transformar num instrumento de novas difusõ es do erro, fazendo com que
este seja espraiado continuamente em novas formas. O mesmo aparentemente
se dá com relaçã o à disciplina da jurisprudência, pois tã o logo se afasta da
segurança que a justiça encontra somente em Deus e em Sua Palavra, os
jurisprudentes nã o sã o capazes de deduzir a justiça de outra fonte que nã o
seja a tradiçã o e o senso de justiça do povo. E uma vez que este senso é tã o
instá vel como as á guas correntes de um rio, ele destró i rigorosamente a
segurança do conceito de justiça. Mediante isto, nã o somente toda a nossa vida
cívica e judicial é perturbada e prejudicada, mas também a justiça cívica perde
seus firmes fundamentos; e a justiça penal é levada a abandonar seu
grandioso chamado particular, isto é, é levada a destruir todo o conceito de
culpa com o lema de negaçã o da responsabilidade.
Nã o é necessá rio outro argumento para perceber que a disciplina da medicina
oferece um grande perigo caso continue nessa direçã o que cada vez mais
ignora a alma, a dimensã o espiritual das pessoas, vendo a pessoa como nada
mais do que um corpo cujas expressõ es de vitalidade provêm da matéria.
Desse modo, elimina-se o cará ter sagrado do sofrimento; toda preparaçã o
para a morte se torna inimaginá vel; o suicídio passa a ser visto como algo
essencialmente inocente; a sensualidade é liberta de toda forma de restriçã o,
sendo antes justificada como uma exigência do bem-estar. E, assim, a oraçã o
da parte e pelos enfermos passa a ser vista como uma brincadeira infantil.
Mesmo que esse mal seja menos comum entre a disciplina das ciências
naturais, já que se contenta com a observaçã o e experimentaçã o, todavia nã o
devemos esquecer que paulatinamente as ciências naturais se ocuparam mais
e mais dos problemas fundamentais da vida. Sua teoria da evoluçã o,
afirmando que toda a vida humana tenha surgido automaticamente das
células e á tomos sem qualquer ordenaçã o superior, conduz diretamente ao
ateísmo, destró i a criaçã o realizada pelo poder absoluto de Deus, e nega a
verdade de que fomos feitos segundo a imagem de Deus e, juntamente com
isso, o valor maior de nossa natureza humana. Mediante essa teoria
fundacional, as ciências naturais atualmente dominam todas as demais
disciplinas, e se posicionam, em princípio e polemicamente, contra todas as
confissõ es cristã s.
No que diz respeito à disciplina das ciências humanas, é preciso mencionar
apenas três elementos — a linguagem, a histó ria e a filosofia — a fim de tornar
imediatamente evidente o perigo que resulta tã o logo essa á rea do saber
abandone o caminho da verdade. O ensino acerca da origem da linguagem
humana, tal como é defendido de vá rias formas pelos estudiosos dessa
disciplina, corresponde quase como um reflexo à teoria evolucionista dos
profissionais das ciências naturais, traçando um retrato do indivíduo
originalmente emitindo sons semelhantes aos grunhidos animais, só vindo a
alcançar algo pró ximo da linguagem humana apó s séculos de
desenvolvimento.
No â mbito da pesquisa histó ria, qualquer noçã o de que a histó ria da raça
humana se encontra ordenada em torno da cruz do Gó lgota, seu centro,
projetada deste modo pelo arranjo divino que deve ser respeitado — toda
noçã o semelhante a esta está sendo gradualmente destruída. Em seu lugar,
adota-se uma perspectiva da histó ria que explica o curso total das coisas com
base em causas puramente materiais e psicoló gicas. E no tocante à filosofia,
quase nos é desnecessá rio trazer à tona a forma como essa disciplina, à
medida que relegou progressivamente toda revelaçã o, repetidamente
voluteou ao redor de suas pró prias suposiçõ es axiomá ticas teó ricas com
relaçã o ao conjunto da realidade. A despeito dos benefícios incidentais dessas
suposiçõ es, a filosofia, em seu conceito fundamental e em seu escopo, acabou
por se estabelecer em posiçã o contrá ria à nossa confissã o cristã .
Com relaçã o à danosa influência que a exaltaçã o descomedida do mundo
idó latra da Grécia clá ssica exerceu em nossa juventude, nã o vamos nos
pronunciar aqui. Pois, afinal de contas, o mal se encontra nã o propriamente
nos estudos clá ssicos, mas sim no uso errado que perspectivas nã o-cristã s têm
feito deles.
Tudo isso que mencionamos é simplesmente o desenvolvimento subsequente
daquilo que postulamos acima como a regra geral, isto é, que a ciência
descrente e a ciência feita por cristã os piedosos sã o duas, e nã o podem,
portanto, fluir lado a lado no mesmo leito de um rio. Até mesmo a noçã o de
que esse mal pode ser compensado com a inserçã o de alguns pensadores
cristã os dentro das escolas da ciência descrente a fim de atuarem como
corretivos nada mais é do que autoengano. Naturalmente, admite-se que algo
assim é melhor do que nada, afinal, pode servir como um meio temporá rio de
assistência através do qual é possível reduzir o mal, pelo menos com relaçã o
ao treinamento dos estudantes. Jovens criados em lares cristã os, que, se
deixados por si mesmos, rapidamente submergiriam nas á guas da vida
acadêmica descrente, podem obter apoio para a resistência desses tais
instrutores assistentes, sendo também por estes equipados para se oporem à
tentaçã o à qual estã o expostos. Todavia, a pró pria ciência nã o é conduzida por
esse caminho, de modo que continua operando sobre uma falsa base.
Acrescente a isso a impressã o generalizada de que a ciência propriamente
emerge do mundo incrédulo, como se o poder e o impulso científico proviesse
dele; como se a ciência descrente construísse o templo da ciência; e como se,
com relaçã o a isso, a religiã o cristã nã o tivesse outro nem maior chamado do
que criticar um ponto aqui e outro ali e, se possível, apresentar uma correçã o
bastante tímida. A á rvore permanece má e continua a florescer a partir de sua
raiz equivocada, de modo que a ú nica coisa que podemos fazer é pinçar uns
poucos rebentos, podar algumas urtigas, e aqui e ali atar aos seus galhos
algumas flores que colhemos em outro lugar, que, para sermos honestos, estã o
naturalmente fadadas a murchar novamente. De modo nenhum —
precisamos, na verdade, de um edifício do todo da ciência construído sobre
uma base cristã . É preciso que a planta da ciência floresça a partir de sua raiz
cristã . Caso nos satisfaçamos em simplesmente passear pelo jardim alheio
com tesouras de poda nas mã os, estaremos certamente descartando a honra e
o valor de nossa religiã o cristã .
Se para cada cá tedra ocupada por um educador descrente pudéssemos criar a
nossa pró pria para um educador crente, entã o a questã o seria completamente
diferente, pois, nessa situaçã o, teríamos um complemento integral de
disciplinas; e o que impediria que todos esses departamentos se unissem,
formando sua pró pria universidade, mesmo se o tivéssemos que fazer por
uma razã o inteiramente diferente? Na medida em que permitimos que a
universidade descrente seja a ú nica universidade, e que alocamos ali os
nossos educadores como corretivos, os cursos ministrados pelos educadores
descrentes continuam sendo os obrigató rios e aquelas ministradas pelos
nossos permanecem somente como as opcionais. Aquelas disciplinas
apresentam a insígnia daquilo que é respeitá vel e essencial, uma vez que
fornecem o material principal, enquanto estas sã o meramente acrescentadas
como acessó rios.
Ora, um cristã o ministrar alguns cursos certamente é algo bom, mas nã o
muito proveitoso, como demonstramos anteriormente. Todavia, se o cristã o
ocupa todas as cá tedras de oposiçã o, entã o naturalmente seria formado um
conjunto de aulas que nã o poderiam ser todas frequentadas somente pelo
simples fato de que nã o haveria horas suficientes. Acima de tudo, nã o se
esqueça que alocar alguns de seus instrutores cristã os isolados que se opõ em
ao ensinamento dos outros nã o mudará o status dos exames finais. Nã o sã o os
seus instrutores, mas aqueles oficialmente designados que continuarã o a
administrar esses exames.
Qualquer um familiarizado com a vida das universidades pú blicas sabe muito
bem como os exames dominam todo o trabalho do curso, e como o estudo
preparató rio para realizá -los exige virtualmente todo o tempo dos estudantes.
Dada essa realidade, como podemos criar a possibilidade de que os cursos de
nossos instrutores cristã os sejam efetivamente corretivos ao invés de algo
pouco mais do que superficial e ocupacional?
É por isso que a crença no cristianismo somente pode obter um futuro melhor
e uma posiçã o mais firme quando este cristianismo é permeado por seu
chamado de levar o poder de sua fé à expressã o independente também no
domínio da ciência. Continuar crendo que, atuando de um modo simplesmente
crítico, eventualmente iremos convencer os educadores descrentes de seus
erros é nada mais do que uma simples ilusã o. Eles nã o sã o capazes de
perceber a verdade concernente à base de todas as coisas, e, portanto, nã o
podem ser por nó s convencidos. Eles se opõ em à quilo que nos é sagrado com
um tipo de daltonismo, e estã o sendo totalmente sinceros quando confessam
nã o ver aquilo que vemos e quando julgam que estamos errados acerca
daquilo que percebemos. Assim, nesse sentido, uma reconciliaçã o que
conduza ao acordo é completamente impensá vel. Na verdade, estamos
perante um enorme abismo que nã o podemos suprimir. Enquanto o
cristianismo se recusar a aceitar essa dualidade com plena convicçã o, com
todas suas consequências, ele será continuamente afligido com a invasã o de
seu territó rio por parte da ciência descrente, com a falsificaçã o de sua
teologia, com a corrosã o de sua confissã o e com o enfraquecimento de sua fé.
Destarte, devemos ver, entã o, como uma feliz consequência da operaçã o da
graça comum o fato de que a ciência descrente sacode cada vez mais o
remanescente da tradiçã o cristã , rompendo gradativa e publicamente com as
categorias vigentes. Com uma determinaçã o crescente, a ciência descrente
substitui a nossa cosmovisã o por uma inteiramente ateísta, fazendo com que
nossa permanência nas tendas de nossa cosmovisã o se torne
progressivamente impossível. Isto é, afinal de contas, a forma como se
pressiona os cristã os cada vez mais a assumir sua posiçã o dentro de seu
pró prio territó rio. E aquilo que o cristianismo nunca faria por impulso pró prio
é finalmente obtido sob a pressã o de uma descrença crescentemente ousada
que nega tudo o que é sagrado. Tudo isso significa que os cristã os começarã o a
perceber a necessidade inexorá vel de se começar a buscar a ciência de forma
independente com base em seus pró prios princípios, levando-os, assim, a se
empenhar por uma vida acadêmica que honre o mistério de toda sabedoria e
todo conhecimento em Cristo.
 
 
 
 
 
 
 
 

PARTE 2
ARTE
 
 

6. MARAVILHAS
 
Pois quão grande é a sua bondade! E quão grande, a sua formosura!
(Zc 9.17)
 
O tó pico da arte também requer uma atençã o especial no tocante à
graça comum. Escolhemos tratar da arte nã o porque julgamos os
tó picos da religiã o e da vida moral como menos importantes, nem
porque negamos que certa medida desses elementos seja concebível
sob as bênçã os da graça comum — mesmo estando ausente a luz
superior da revelaçã o especial. Isso é regularmente patente no
tocante aos indivíduos, grupos inteiros e mesmo naçõ es. Por
exemplo, aquelas regiõ es da Á frica onde o Islã o penetrou podem
ficar muito atrá s quando comparadas à Europa cristã , todavia, é
indubitá vel que elas demonstram um cará ter moral e religioso
muito superior ao das tribos negras da Á frica Central. E aqui, na
Europa, dentre as famílias que romperam completamente com a
confissã o de Cristo, ocasionalmente nos deparamos com homens e
mulheres com uma vida religiosa altamente desenvolvida e com um
ponto de vista moral respeitá vel. Todavia, nã o devotaremos aqui um
estudo separado para a religiã o e vida moral, pois os fenô menos que
seriam discutidos já foram abordados de forma pormenorizada nas
obras doutriná rias. Consequentemente, uma discussã o separada
seria simplesmente um sumá rio ou uma repetiçã o, o que queremos
evitar.
A arte , contudo, é uma questã o inteiramente diferente, que
pincelamos em alguns momentos apenas incidentalmente, mas que
exige uma discussã o em separado, a qual é ainda mais necessá ria
porque a valorizaçã o da arte dentro do domínio religioso varia
amplamente. Nos círculos das igrejas Reformadas aparentemente a
relaçã o para com a arte resultou na sua condenaçã o, se nã o no seu
banimento.
A religiã o e a arte estã o tã o intimamente relacionadas que esta
gratamente reconhece como deve sua origem à adoraçã o pú blica.
Nã o é, pois, segredo o modo como a religiã o e a arte se encontravam
entrelaçados no mundo pagã o em virtualmente todos os pontos. As
Escrituras nos dizem como, em Israel, a arte se concentrou
exclusivamente no templo do Monte Siã o. À parte do ministério do
sagrado, a arte virtualmente permaneceu relegada. E mesmo
presentemente, a Igreja Ortodoxa Grega, a Igreja Cató lica Apostó lica
Romana e, em certa medida, também as igrejas luteranas,
demonstram o que uma arte de expressã o elevada colabora para o
desenvolvimento dos sentimentos religiosos.  
No Islã o, a arte perdeu muito de sua importâ ncia no domínio do
sagrado devido à forte oposiçã o contra todo uso de imagens e
representaçõ es. Entretanto, mesmo entre os cristã os reformados, a
despeito do fato de que sua forma de adoraçã o possui um cará ter
estritamente espiritual, as artes da arquitetura, canto e mú sica
foram incorporadas numa escala relativamente ampla no culto
pú blico. É bem conhecido o imenso valor que Joã o Calvino atribuiu
ao canto na congregaçã o, o esforço que ele empregou para elevá -lo a
uma categoria superior de arte, e como Goudimel, especialmente, o
auxiliou neste esforço.
Nã o obstante, é correto o comentá rio de Von Hartmann de que, em
sua forma mais elevada, a religiã o se despe do manto da arte e
termina ocupando uma posiçã o inteiramente independente em face
dela (da arte). Com efeito, isso nã o poderia ser diferente. Em virtude
do decreto da criaçã o, a consciência religiosa criada dentro de nó s
nos amadurece através de duas formas. Um conhecimento de Deus
nos é comunicado a partir da natureza das coisas criadas, pois “os
atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como
também a sua pró pria divindade, claramente se reconhecem, desde
o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que
foram criadas” (Rm 1.20). Esta é a primeira forma.
E, juntamente a ela, se encontrava, no paraíso, uma segunda forma
— a revelaçã o espiritual no e para o coraçã o das pessoas. As
consequências do pecado, todavia, foram que os olhos e ouvidos se
fecharam a essa revelaçã o, e, fora uma tradiçã o dessa revelaçã o
espiritual, nada mais restou, salvo a revelaçã o de Deus na natureza.
Mas esta revelaçã o, por sua vez, se obscureceu, em parte porque a
capacidade de conhecer a Deus por meio da natureza diminuiu, e em
parte devido à maldiçã o que veio sobre a terra, lançando um véu
sobre sua beleza. Se a graça comum nã o intervisse para fortalecer,
interiormente, a consciência religiosa e, exteriormente, salvaguardar
o discurso da natureza de cair no silêncio, toda religiã o teria
desaparecido em pouco tempo.
No entanto, presentemente, graças à operaçã o da graça comum,
todos os povos virtualmente apresentam uma necessidade por
religiã o — religiã o que, na sua forma alquebrada e mutilada, se
encontra, em quase todos os aspectos, relacionada à revelaçã o
divina por meio da natureza. O sol, a lua e as estrelas intimam as
pessoas a adorarem o Criador — até que elas perdem de vista o
Deus vivo, passando a adorar esses elementos do céu. Até mesmo
em Israel, vá rios adoravam a lua como a Rainha do Céu (Jr 7.18;
45.15-18). O touro, como tipo da força procriadora da natureza,
passou a ser adorado com o nome de Á pis; e aquilo que era chamado
de “culto ao gado” nada mais era do que uma imitaçã o dessa forma
pagã de adoraçã o.  
O culto da natureza emerge de forma espontâ nea especialmente no
Oriente, onde a beleza, riqueza e exuberâ ncia naturais transmitem
uma impressã o bem mais poderosa do que nossos países ocidentais
e setentrionais. E mesmo nas partes longínquas do Norte, onde o
gelo é o fenô meno natural mais grandioso, as geleias e icebergs
deram origem a um imaginá rio religioso que, em ú ltima aná lise,
nada mais era do que culto à natureza. A veneraçã o e culto ao ser
humano — para os quais as pessoas se inclinavam especialmente na
Grécia, embora também fosse conhecida na Índia, ainda que de uma
forma diferente — se encontra numa categoria superior ao culto aos
animais no Oriente. Isto a despeito da inegá vel contradiçã o de que a
autoglorificaçã o da humanidade foi acompanhada e ao mesmo
tempo compensada por aquele elemento que é tã o importante na
religiã o, a saber, a consciência da dependência humana.
Contudo, independente da forma na qual a religiã o idó latra surja, é
justamente pelo fato de se origina a partir da revelaçã o externa
(tendo, pois, perdido gradativamente o fator da revelaçã o
espiritual), que ela nã o poderia se desenvolver a nã o ser por meio
de formas visíveis. Essa religiã o continuou a exigir um objeto visível
de adoraçã o, o que levou ao culto de imagens em vá rias formas. A
multidã o de adorares nã o possuía nada em si mesma — tudo
deveria ser realizado perante seus olhos. Desse modo, todas as
religiõ es crescentemente passaram a se concentrar num lugar
sagrado, em uma construçã o consagrada, em pessoas santificadas,
em imagens e altares santos e em rituais sacros que se processavam
nestes altares. Isto explica a elevada importâ ncia atribuída ao
templo, imagens idolá tricas, altares, instrumentos de culto, vestes
sacerdotais, mú sica, hinos e suas performances. Quase nã o existia
mais alguma forma de adoraçã o espiritual. Tudo deveria ser visto,
ouvido, contemplado e admirado em êxtase.
Na mesma proporçã o em que a multidã o era mantida atô nita por
esses fenô menos sagrados e seus recursos financeiros continuavam
a se dirigir para esse culto, também surgiam rivalidades entre as
cidades e templos. Assim, tal fato possibilitou, pela primeira vez, que
se ajuntasse uma soma enorme de riquezas em relaçã o a esse
domínio sagrado — um montante necessá rio para a arte realizar
seus feitos impressionantes. Nã o é de se admirar, portanto, que a
arquitetura, a escultura, a pintura, mú sica e a poesia floresceram
inicialmente dentro da adoraçã o nos templos, desenvolvendo-se em
formas mais sofisticadas mediante as quais buscavam concretizar
seu ideal. A religiã o alimentada, em sua forma idolá trica, ú nica e
exclusivamente pela natureza ou pela megalomania humana, nã o
pode buscar sua gló ria a nã o ser na pompa externa. Isso explica o
porquê do casamento entre arte e religiã o pertencer, em sua
natureza essencial, a toda forma de idolatria.
Todavia, nã o podemos confundir o sacerdó cio no templo do Monte
Siã o com isso. Devido à ausência de qualquer objeto de culto visível,
a adoraçã o em Siã o apontava justamente para o invisível e o
espiritual. A forma e o sacerdó cio que ali se desenvolveu, ao longo
de todo o processo e nos mais mínimos detalhes, possuía
unicamente um cará ter simbólico .
O termo “símbolo” significa a coincidência de suas esferas distintas
da vida. Um símbolo nos declara, primeiramente, que, além deste
mundo visível, existe outro mundo invisível, espiritual; em segundo
lugar, nos mostra que existe uma conexã o particular entre este
mundo visível e o invisível; e em terceiro lugar, os signos visíveis
podem retratar realidades espirituais a nó s. Assim, um símbolo é
sempre algo visível que funciona como um signo, imagem ou
indicaçã o de um elemento espiritual e invisível.
Ao passo que o culto idó latra nos afasta do espiritual, obscurecendo-
o e relegando-o ao segundo plano, o culto simbó lico,
contrariamente, possui a capacidade, ao repetidamente conectar o
símbolo visível com o espiritual, de direcionar um povo ainda
dependente daquilo que é sensível em direçã o ao espiritual,
alimentando-o com este ú ltimo. 
Uma vez compreendida essa questã o, o culto que se processava no
templo em Siã o era, nesse sentido, exata e exclusivamente espiritual
em sua orientaçã o. Deus habitava ali, e, todavia, ninguém jamais O
viu, nem sequer o sumo sacerdote que adentrava no Santo dos
Santos. E é justamente esse culto ao Nã o-Visto e Invisível que
forneceu seu cará ter espiritual. Em nossa religiã o cristã , a á gua do
batismo e o pã o e o vinho da Santa Ceia sã o símbolos visíveis desse
tipo, representando o lavar de nossos pecados e o sofrimento e
morte de Cristo em favor de nossos pecados. Todavia, no momento
em que vivemos, a relaçã o entre o símbolo e a realidade espiritual é
diferente.
Para nó s, a adoraçã o espiritual se encontra no primeiro plano, ao
passo que para Israel o espiritual era apresentado aos olhos do povo
por meio de sombras e símbolos, nos quais se expressava a imagem
do Messias vindouro. Apó s Sua vinda, o véu do templo foi rasgado e
o templo em Siã o foi destruído para nunca mais ser reconstruído.
Qualquer um que, apó s o ministério de Cristo, ainda continua
dependendo do símbolo e das sombras do Messias, demonstra que
nã o compreendeu Sua vinda, desse modo negando-o e rejeitando-o.
Eis a razã o das guerras santas travadas por Paulo contra os
disparates semelhantes a esse, especialmente entre as igrejas da
Galá cia. Ora, aqueles que continuavam se pautando no simbó lico
demonstravam uma disposiçã o incompatível com a fé no Cordeiro
de Deus. Mas, em contraposiçã o, até a primeira vinda de Cristo, o
chamado mais sublime da arte era expressar o simbolismo do
templo de Siã o de modo sublime; e a arte egípcia juntamente com a
arte de Hirã o, rei de Tiro, serviu à quilo que era adorado e
reverenciado como “a perfeiçã o da beleza” no templo de Salomã o e
anteriormente no taberná culo.
Disto, segue-se que uma vez tendo sido alcançada a plenitude, o
elemento simbó lico desapareceu, e a adoraçã o em espírito e em
verdade se elevou acima da produçã o da arte, alcançando sua atual
independência. Sabemos que ao lado do conhecimento de Deus a
partir da natureza, havia também aquele presente na revelaçã o
espiritual. Assim, quando esta atingiu seu cume e perfeiçã o em
Cristo, a religiã o teve que recuar, de forma que, na adoraçã o, a
expressã o da vida espiritual necessitou assumir a primazia.
Portanto, como essa expressã o espiritual ainda exigia uma forma,
esta deveria ser também bela, o que, por sua vez, fez com que se
buscasse o auxílio da arte, ainda que numa assistência inteiramente
servil . Nã o havia a expectativa de que a arte manifestaria e revelaria
o divino. Qualquer forma de dominaçã o por parte da arte tinha que
ser negada. Daí por diante, sua vocaçã o era simplesmente prestar
serviços auxiliares.
Entretanto, mesmo apó s o ministério de Cristo, a religiã o nã o
poderia alcançar essa posiçã o independente e livre de uma só vez.
Na regiã o a leste do Mediterrâ neo, onde a igreja cristã alcançou sua
primeira expansã o, na Europa Setentrional, na Á sia Menor, e
também na costa norte da Á frica, as multidõ es já se haviam
habituado demasiadamente à representaçã o visual do sagrado,
sendo também bastante dependentes das formas artísticas e visuais.
Consequentemente, a opulência dos templos, que anteriormente
havia sido superada, dentro em pouco ressurgiu em meio ao fausto
das igrejas. Formas e vestuá rios decorativos eram altamente
admirados. Inú meros símbolos, e ocasionalmente pinturas e
esculturas, novamente adentraram os recintos.
Sem dú vida, nesse momento houve uma reaçã o vigorosa, uma que
levou ao terrível conflito entre o espiritual e o sensível na famosa
controvérsia iconoclasta. Todavia, o puramente espiritual foi
derrotado na opulenta regiã o ao leste do Mediterrâ neo, de maneira
que tanto a adoraçã o da Igreja Ortodoxa Grega quanto da Igreja
Cató lica Romana foram fortemente moldadas pelo resultado dessa
controvérsia. E isso nã o porque os gregos ortodoxos e os romanistas
tenham dado a esses fenô menos externos algum tipo de explicaçã o
teó rica que nã o fosse uma de sentido simbó lico. Entretanto, na
prá tica, tal simbolismo ornamentado sempre confronta uma religiã o
fundamentalmente espiritual com o risco de que o espiritual irá
novamente ser subjugado pelo sensível. Qualquer um,
especialmente nos países do sul, que tenha observado
cuidadosamente o uso desse simbolismo percebeu de imediato
como, tã o logo esse simbolismo assume a primazia, o povo
novamente retorna à idolatria.
A reaçã o espiritual a esse perigo foi um dos motivos da Reforma,
tendo sido, pois, preparada já pelo misticismo da Idade Média. Mas
apenas quando este misticismo foi reforçado pelo impulso
concentrado do coraçã o na busca por Deus, essa reaçã o exerceu
força suficiente para romper as barreiras do sensível. Foi, portanto,
essa reaçã o espiritual que assumiu essa luta tã o repentina contra
essa adoraçã o dos sentidos, recolhendo as mercadorias, como diz
Jeremias 10:17, especialmente entre as igrejas reformadas, mais do
que nas igrejas luteranas.
Relacionado a isso estava o fato de que a Reforma avançou muito
pouco na Europa meridional, tendo, antes, se estabelecido quase que
exclusivamente no norte, onde a necessidade de representaçã o do
sensível era menos desenvolvida na inclinaçã o natural do povo.
Desde entã o, essa prevalência do elemento espiritual foi novamente
rechaçada, mas com relaçã o aos demais países podemos dizer que
continuou na Escandiná via, no norte da Alemanha, em nosso país, na
Escó cia e na América. Poderia se acrescentar que, quanto mais
desenvolvida se torna a religiã o cristã , mais ela se vê livre da
necessidade da forma sensível, e mais ela busca seu ideal segundo a
beleza espiritual.
Consequentemente, observamos nesse curso dos eventos um
processo que obedece a uma lei natural. Na medida em que uma
ideia religiosa extrai sua força apenas da contemplaçã o da natureza,
a religiã o presente nos templos idó latras possui um cará ter
meramente sensível, de modo que a arte domina no interior do
santuá rio.
Tã o longo a revelaçã o espiritual retornou a Israel, uma esfera
espiritual veio a coexistir paralelamente à esfera do sensível, de
maneira que ambas as esferas encontraram sua expressã o unificada
no rico simbolismo do templo de Siã o. Quando a revelaçã o espiritual
alcançou sua culminaçã o em Cristo, o simbó lico foi afastado pelo
espiritual, e as epístolas apostó licas nos apresentam uma veneraçã o
puramente espiritual entre as igrejas apostó licas. Entretanto, assim
que a igreja se expandiu entre as naçõ es, que já eram, por natureza,
dependentes do sensível, o exuberante simbolismo novamente se
infiltrou no seu meio. Durante a controvérsia iconoclasta, a reaçã o
espiritual se mostrou incapaz de quebrar o jugo, de maneira que a
adoraçã o continuou a apresentar um cará ter altamente simbó lico
por vá rios séculos.
Contudo, apó s a Reforma, surgiu uma nova reaçã o espiritual que,
desta vez, triunfou, introduzindo, no norte europeu, um tipo de
adoraçã o que buscava seu poder somente na beleza espiritual da
alma. Uma vez alcançada essa posiçã o, a veneraçã o espiritual se
mostrou crescentemente capaz de sobreviver, levando à tona, com
progresso notá vel, o desprezo por todo aparato exterior e o
estabelecimento da adoraçã o em espírito e em verdade como o
cerne do culto.
Esse processo nos conduz à s seguintes perguntas: “partindo desse
curso de eventos, podemos concluir que a arte é condená vel? E os
cristã os voltados para o culto espiritual devem se opor à arte como
se esta fosse um mal?”
Tais questõ es podem ser respondidas afirmativamente somente se
concebermos a arte como somente um parasita que se desenvolve
agarrado ao caule da vida eclesiá stica. Mas, outro lado, se a
honorá vel reputaçã o da religiã o é que ela subjuga o sagrado com
aquilo que relega o espiritual ao segundo plano, tudo visando o
crescimento da arte, neste caso, entã o, devemos declarar sem
hesitaçã o que seria melhor que toda arte desaparecesse do que
prejudicar o cará ter espiritual de nossa religiã o cristã . Caso seja
necessá rio, um povo pode viver e se desenvolver sem arte, mas nã o
sem religiã o. 
Mas é essa a pergunta adequada? Ou nã o deveríamos, pelo
contrá rio, reconhecer que, quando de sua origem, a arte nã o teria
sido capaz de aprender a andar, caso nã o tivesse sido sustentada
pelas rédeas do sacerdote? Nã o deveríamos reconhecer que, tendo
alcançado um desenvolvimento posterior, a arte poderia recorrer,
por meio de todas as formas possíveis, a uma existência
independente, autô noma e livre?
Para entendermos isto de modo mais nítido, precisamos
evidentemente investigar mais detidamente a essência da arte (algo
que somente poderemos realizar numa seçã o subsequente de nosso
estudo). Todavia, já agora podemos observar que parte considerá vel
da arte, com toda sua diversidade, pô de emergir primeiramente
como uma gavinha se enrodilhando ao redor do sagrado, e, somente
num está gio posterior de desenvolvimento, floresceu como uma
planta totalmente independente.
Nesse tocante, podemos rememorar a educaçã o com todos os seus
ramos, um empreendimento que inicialmente, tanto entre pagã os
quanto cristã os, se apoiou e foi sustentado pelo domínio do sacro e
do santo, mas posteriormente pô de se firmar em suas pró prias
pernas, e somente nessa posiçã o independente desenvolveu sua
pró pria essência. Ora, devido unicamente ao fato de que a pró pria
arte era religiã o, constituindo, assim, um elemento integral dela, foi
que seu direito de independência pô de ser contestado. Em
contrapartida, sabemos como é raro encontrar servos zelosos e
piedosos do SENHOR no mundo da arte; e, de modo recíproco,
sabemos também como, em amplos círculos da vida artística, até
mesmo as ordens morais sã o tratadas levianamente. A partir disso,
podemos já deduzir como, por natureza, o gênio artístico e o espírito
da adoçã o divina dificilmente andam de mã os dadas. 
Assim, o resultado demonstrou como, apó s ter sido divorciada do
domínio eclesiá stico, na época da Reforma, as artes nã o
desapareceram de vista. Longe disso, a arte, na verdade, assegurou
que dali por diante poderia levar uma existência independente. O
desenlace apresentou as vias maravilhosas por meio das quais a arte
teve êxito nessa tentativa.
Nã o se pode negar, entretanto, que isso fez com que, em parte, a arte
fosse transformada numa busca mundana, que a arte fosse, de fato,
secularizada — isto sem falar na sua má utilizaçã o para satisfaçã o de
desejos pecaminosos. A isso também retornaremos posteriormente.
Mas é preciso dizer que, de forma alguma, esse abuso da liberdade
pode ser apresentado como evidência de que a arte nã o possui
direito a uma existência independente. Em nossa vida humana, nã o
há nada, absolutamente nada, que ocasionalmente nã o utilize mal
sua liberdade adquirida, visando propó sitos pecaminosos. Observe
como, uma vez por outra, as pessoas abusam da liberdade de
consciência para blasfemar, ou, ainda, como um príncipe ou
governante abusa da soberania concedida por Deus, oprimindo,
tiranizando e abatendo o povo. Analisada em si mesma, é verdade
que, apó s sua libertaçã o, a arte se tornou mundana, no sentido de
que cessou de habitar em espaços sagrados, vindo a se misturar com
a vida cívica comum.
A inspiraçã o artística jamais pertenceu à graça particular, mas
proveio sempre da graça comum. É justamente a vida humana diá ria
que constitui o vasto domínio no qual a graça comum resplandece e,
ao mesmo tempo, o domínio no qual a arte constró i seu templo.
Isso, todavia, nã o implica que, por conseguinte, deva-se permitir que
a arte, daqui por diante, nã o extraia mais seus motivos do â mbito do
sagrado, ou que a arte nã o tenha mais o chamado de glorificar o
nome de Deus. Deixando a arquitetura de lado por um momento, a
qual naturalmente está relacionada à construçã o de igrejas, nã o há
sequer uma arte de ordem superior que, desde o momento em que
revelou seu cará ter independente, nã o tenha recebido também seus
motivos mais ricos do â mbito do santo e do sagrado. E nã o poderia
ser de outro modo.
O gênio artístico e a nobreza de alma nã o sã o mutualmente
exclusivos, portanto, onde quer que uma alma nobre tenha dentro
de si aquela genialidade, como o olho artístico poderia ignorar o
esplendor ú nico que incide sobre o nome de Cristo? Por que deveria
se produzir uma imagem, uma cena bordada, um orató rio ou um
hino somente para o uso eclesiá stico, a fim de inflamar o talentoso
criador desses artefatos com uma paixã o sacra? A arte também
possui suas esferas superiores e inferiores de desenvolvimento —
assim, como nã o poderia a arte, em suas esferas mais elevadas,
ascender ao sublime, e nesta sublimidade se deparar
automaticamente com as maravilhas da religiã o, incorporando-as e
reproduzindo-as na forma artística?
Desse modo, a separaçã o entre igreja e arte nã o se constitui como
uma separaçã o total entre arte e religiã o. Pelo contrá rio, o vínculo
que mantêm entre si é garantido pelo cará ter ideal de ambas;
portanto, se as pessoas se recusam a permitir que o refinado
impulso religioso afete a arte, essa falha pertence nã o à arte em si,
mas à impiedade de seus adeptos.
Afirmamos somente que, em seus está gios iniciais, o curso da
Reforma de fato causou desordem e confusã o. Aquela geraçã o,
acostumada a se deparar com a arte principalmente dentro dos
templos, e porque, devido à aversã o espiritual, acabaram se opondo
a esta arte, correu o grave risco de, apó s terem purificado as igrejas,
também condenarem a arte. Esse risco parcialmente aconteceu.
Naquele momento, certamente houve uma aversã o com relaçã o à
arte produzida a partir de motivos religiosos, uma hostilidade que
ainda hoje se faz presente em alguns círculos. Por outro lado, nã o se
pode negar que a arte recentemente liberta passou muito
rapidamente ao serviço da licenciosidade, descartando, pois, sua
honra.
Esse fato também nã o deveria nos surpreender. Qualquer um que,
por fim, se vê livre de uma tutela demasiadamente rígida e
duradoura, logo se inclina à devassidã o, de maneira que o uso
apropriado dessa recém-conquista liberdade se encontra fora de
alcance. Quã o frequentemente vemos os acadêmicos se
comportarem como meninos que até entã o tinham sido trancafiados
em suas casas por um longo tempo, mas subitamente se encontram
no cená rio acadêmico, livres de toda forma de disciplina, para serem
seus pró prios senhores e mestres? Quantas cenas indecorosas as
pessoas nã o testemunharam, quando soldados, apó s a vitó ria, foram
dispensados por seus comandantes das restriçõ es da disciplina?
Portanto, esse argumento nã o apresenta, de modo nenhum, uma
prova irrefutá vel contra aqueles que afirmam que, embora por
séculos tenha sido incapaz de sobreviver em nossas igrejas
independentemente do ministério do templo e posteriormente das
atividades do culto, a arte, todavia, foi chamada para a liberdade.
Esta afirmaçã o é acompanhada com a insistência de que, desse
modo, a separaçã o entre a religiã o e a arte realizada pela Reforma
foi a consequência inevitá vel de um processo natural em dois
sentidos. Primeiramente, a religiã o poderia confessar seu cará ter
espiritual apenas na medida em que estivesse separada da arte. E,
em segundo lugar, a arte, por sua vez, poderia alcançar sua justa
independência somente na medida em que também estivesse
separada da religiã o.
Assim, pois, especialmente no século XVI, a arte saiu da tenda do
sagrado para erigir sua pró pria tenda do domínio da graça comum,
ao qual pertence. A consequência simultâ nea deste fenô meno foi
que, no momento em que a arte estava florescendo no domínio da
graça comum, ela quis que seu alcance se estendesse a toda vivência
humana, na sociedade em geral. Aquilo que as pessoas chamam de
democratizaçã o da arte se tornou fato primeiramente no século XIX,
todavia a expansã o do territó rio da arte já havia começado no século
XVI. Nesta época, nossa escola holandesa de pintura foi prova desse
fenô meno, tanto no que diz respeito à diversidade de motivos que
inspiraram esses artistas quanto ao círculo mais amplo de cidadã os
que passaram a adornar o interior de suas casas com objetos
artísticos.
 
 

7. BELEZA
 
Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa
daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do
cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus (Rm 8.20-
21)
 
Se, pois, estamos concordes em atribuir à arte uma existência independente, e,
juntamente com isso, delegar ao domínio do belo um cará ter também
independente, entã o torna-se necessá rio, pois, investigar qual visã o de beleza
e, consequentemente, qual visã o da pró pria arte, devemos construir.
Na sociedade em geral, as pessoas tendem a empregar o contraste entre carne
e espírito , atribuindo o belo aos desejos da carne — o que resulta numa
menor apreciaçã o do belo e numa maior inclinaçã o em condená -lo. O fato de
que, a despeito desse modo de pensar, as pessoas continuamente se sentem
atraídas pelo belo nã o contradiz essa opiniã o, pois o homem reconhece que o
coraçã o pecaminoso é suscetível a todas as formas de luxú ria, todavia
somente o confessa apó s ter caído. “Carne e espírito”, quando vistos como
termos absolutamente contraditó rios, envolvem um julgamento de tudo
aquilo que seduz a visã o ou audiçã o. O espírito, entã o, é visto como o ú nico
bem, e a carne, como fonte de todo mal. A beleza torna essa fonte ainda mais
sedutora, transformando-se, assim, na sereia que, por meio de seu agradá vel
canto, busca nos atrair para as profundezas da destruiçã o.
Segundo essa concepçã o, o espírito procede de Deus, e a carne, do diabo.
Nossa piedade cresce na mesma proporçã o em que nos tornamos cada vez
mais espíritos e nos livramos de tudo que é carnal. Nosso corpo, por sua vez, é
uma prisã o que encarcera a alma, e esta foge quando a morte a liberta desta
prisã o. Este corpo, portanto, deve ser nutrido o mínimo possível, e suas
vestimentas devem consistir simplesmente de uma cobertura sem nada de
belo na sua forma ou cor (e especialmente sem adornos). Por uma questã o de
preservaçã o daquilo que há de sagrado em nó s, o feio é preferível ao belo. A
fealdade é o anjo benevolente que nos mantém perto de Deus, já a beleza é o
anjo maligno que nos leva para longe dEle. A despeito da fascinaçã o que esse
anjo perverso possa exercer sobre nó s, todos sabem que apenas o anjo
benevolente merece nossa afeiçã o.
Todavia, a questã o é: tal visã o está correta? Simplesmente ridicularizar
aqueles que sustentam essa perspectiva nã o fornece nenhum julgamento de
sentido moral. E quando, nos nossos tempos modernos, as pessoas que
idolatram a arte e consequentemente, pelo bem do ideal de beleza, estã o
prontas a se esquecerem do Pai dos espíritos, e mesmo alguns dentro dos
círculos cristã os podem estar dispostos a fazer coro neste louvor da arte, isto,
todavia, nã o significa nada para o homem ou mulher que possuem uma visã o
mais circunspecta da vida.
Ainda continuamos a nos deparar com o fato de que nos círculos de
connoisseurs da arte, o primeiro mandamento — amará s a Deus com todo teu
coraçã o, alma e força — é muito mais negligenciado do que nos círculos nos
quais as pessoas sã o cegas e surdas com relaçã o ao mundo da beleza. Mesmo
entre cristã os, nã o raro, é possível observar o brilho no olhar e um calor na
voz quando se discute objetos artísticos ou estéticos, ao passo que, quando se
muda o assunto para as coisas sagradas de Deus, aquele mesmo olho logo se
turva e este tom de voz se torna gélido.
Claramente, se nos pautá ssemos pela experiência prá tica, nã o faríamos nada
além de manter, em prol da verdade, uma atitude hostil à arte. Isto poderia
levar nossa perspectiva sobre a arte a uma conclusã o diferente, caso
argumentá ssemos com base na complacência com relaçã o ao tema que
domina presentemente, ou com base na concessã o culposa quando à
perspectiva do mundo, e nã o exclusivamente a partir da obediência à Palavra
de Deus. Nã o estamos nos unindo ao lado daqueles que, de fato, idolatram a
arte, mas, sim, e decisivamente, ao lado daqueles que colocam a honra de Deus
acima de tudo o mais. É exclusivamente a firme convicçã o de que a beleza
procede de Deus e nã o do diabo que nos proíbe de utilizar o contraste entre
“carne e espírito” no sentido absoluto mencionado acima.
Certamente as Escrituras repetidas vezes nos acautelam para nã o sermos
levado pelo mundo sensível. Contrariamente ao homem com anéis de ouro
nos dedos, o pobre que procura em vã o por um lugar na casa de Deus
encontra provisã o. No julgamento de Cristo, o desprovido Lá zaro, com seus
andrajos e afliçõ es, se encontra infinitamente acima do rico que se regozijava
nos seus faustosos banquetes e nos melhores vestidos. Aconselha-se que as
mulheres busquem seu adorno nã o no frisado de cabelos e nos adereços de
ouro, mas num espírito manso e tranquilo, que é precioso aos olhos de Deus.
Também nos é dito que o mundo e suas concupiscências passam, mas, em
contrapartida, aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre. Este
contraste é aprofundado ainda mais com a declaraçã o de que “tudo que há no
mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da
vida, nã o procede do Pai, mas procede do mundo” (1Jo 2.16).
Consequentemente, jamais se pode escusar ou justificar a acomodaçã o à
sensualidade mundana entre aqueles que confessam o nome do SENHOR .
Todavia, tudo isso, em princípio, nã o decide a questã o, uma vez que se refere a
um mau uso que é desaprovado e contra o qual somos advertidos. Desse
modo, se opõ e ao uso legítimo . É possível perceber isto imediatamente ao
comprarmos Jesus e Joã o Batista. Ora, Joã o era um asceta, vivia no deserto,
vestia-se de couro de animais, se alimentava de gafanhotos e mel silvestre, e
se retirava das atividades comuns do mundo. Por contraste, Jesus se assentava
nas festas, participava de casamentos, se alimentava de comidas finas, bebia
vinho e utilizava o dinheiro que seus amigos lhe davam. Seu porte era tã o
alinhado, que suas roupas, arrancadas antes de ser pendurado na cruz, foram
consideradas suficientemente desejá veis a ponto de serem divididas entre os
soldados responsá veis pela execuçã o no Gó lgota.
Esse ascetismo de Joã o, que rejeitava o mundo, nã o foi condenado. Ele teve
seu valor e importâ ncia naquele momento. Nã o obstante, está claro que Jesus
nã o fez desse ascetismo o padrã o de vida. Na verdade, as pessoas chegaram a
acusá -Lo de glutã o e bebedor.
A soluçã o para esse problema que nos confronta deve ser buscada alhures.
Primeiramente, notemos que as Escrituras nã o atribuem ao diabo nenhum
poder criativo. O mundo da beleza que, com efeito, existe nã o pode ter outra
origem a nã o ser na criaçã o de Deus — ele foi, portanto, concebido por Deus,
determinado por Seu decreto, chamado à existência e sustentado por Ele.
A beleza definitivamente nã o existe apenas naquilo que a inspiraçã o ou
habilidade humanas produzem, mas também no mundo natural que é uma
criaçã o direta do pró prio Deus. O esplendor do firmamento e o mundo
cintilante dos céus estrelados pertencem a Ele. O pró prio Senhor Jesus
chamou nossa atençã o para a beleza radiante do mundo vegetal, quando falou
sobre os lírios do campo que nã o trabalham, nem fiam, todavia, ultrapassam a
beleza das esplêndidas vestes de Salomã o. A beleza da natureza por vezes é
tã o fascinante que o espírito sedento nã o pode escapar do sentimento de
admiraçã o. Os céus declaram a gló ria de Deus, e o firmamento anuncia as
obras das Suas mã os.
Nã o somente o aspecto geral da natureza pode ser deleitosamente belo, seja
no seu traje de verã o ou nos seus fatos de inverno, mas também as partes
individuais dos organismos criados por Deus sã o extremamente primorosas
em sua beleza.
Basta analisar a plumagem de vá rios pá ssaros, a pele de vá rios animais, o olho
do cervo ou a juba do leã o. Também podemos incluir o pró prio homem, que
observa e aprecia todos os tipos de beleza, e que é um produto dessa
maravilhosa criaçã o. As Escrituras Sagradas continuamente comentam acerca
da beleza feminina, afirmando que Sara era “de formosa aparência” (Gn
12.11); que Absalã o tinha “uma formosa irmã ” (2Sm 13.1), que, em toda a
terra de Uz, nã o se acharam “mulheres tã o formosas” quanto as filhas de Jó (Jó
42.15). De semelhante modo, a beleza de homens como Absalã o é reconhecida
nas Escrituras, e, acerca do bebê Moisés, é dito que agradou à filha de Faraó
devido à sua beleza e graciosidade. Portanto, a beleza nã o somente é vista
como uma parte da aparência humana, mas também é destacada, no contexto
escriturístico, como algo cativante. Disto, segue-se que a beleza foi projetada
por Deus para ser algo poderoso, tendo, pois, se originado do prazer divino;
tendo também sido intencionalmente desejada por Deus e, por fim, sido
chamada à existência por Seu poder.
Isto, portanto, nos proíbe de condenar a beleza como tal, já que ela é uma
criaçã o de Deus. Na verdade, nã o podemos sequer afirmar que Deus criou a
beleza simplesmente para nosso deleite — o pró prio Deus deve Se deleitar
nela. Ora, a beleza nã o brilha e resplandece século apó s século nos cumes das
montanhas e nas regiõ es remotas jamais pisadas pelo homem? Nem o Polo
Norte nem o Polo Sul foram visto por seres humanos, sendo assim, quem pode
descrever o esplendor e a majestade que há naquele mundo glacial
inexplorado que fulgurou perante os olhos de Deus por séculos passados e
continuará por séculos vindouros? O que, de fato, sabemos sobre as estrelas
da Via Lá ctea, ou mesmo acerca dos planetas que, juntamente conosco,
orbitam ao redor do sol? A despeito de tal ignorâ ncia de nossa parte, que
beleza atordoante adorna esse universo semeado de estrelas!
E assim é com relaçã o à beleza — e nã o é diferente no que diz respeito ao
nosso senso de beleza. É inegá vel que a noçã o e senso de beleza sã o exclusivos
dos seres humanos. Todavia, ambos nã o atuam com a mesma intensidade em
todas as pessoas. Com efeito, em alguns indivíduos, eles parecem estar
completamente exauridos. Nã o obstante isso, o desejo de adornar nossas
casas ou roupas, ou ainda de se “embelezar” com ouro, prata ou pedras
preciosas, é comum a todos. Podemos observar isto mesmo entre as tribos
mais primitivas.
Todos escutam o canto da cotovia, do melro ou do rouxinol. Entre todos os
povos, a mulheres jovens e belas têm sido consideradas como o epítome da
atraçã o. Nã o importa quã o superficial seja o gosto de muitos, uma certa
apreciaçã o da beleza é ainda um traço comum de nossa natureza humana. É
possível, pois, observar o desenvolvimento desse senso de beleza. Entre os
povos civilizados, a beleza cresce em poder e expande seu alcance. Em alguns
poucos círculos, esse senso de beleza gradualmente alcançou a forma de
apreciaçã o artística. Os gregos sempre foram aqueles que, dentre todas as
demais naçõ es, aparentemente possuíam o senso mais clá ssico de beleza. No
topo dessa pirâ mide, encontram-se derradeiramente os connoisseurs
inspirados da arte, que se comovem pela harmonia mais sutil e a centelha
mais suave da beleza.
Mas de onde provém esse senso de beleza? É possível que algo que pertence à
nossa natureza humana seja algo além de uma capacidade inata ? Caso tenha
sido criado em nó s, quem mais poderia ter depositado no nosso interior a nã o
ser Aquele que nos criou? No entanto, se, por um lado, encontramos no
interior do pró prio Deus o decreto que rege a beleza, entã o Ele estampou tal
decreto sobre Sua criaçã o como se fosse um sinete divino; e por outro lado, se
encontramos em cada ser humano um senso de beleza que foi criado em nó s
por Deus, o que mais esse conceito poderia ser a nã o ser um dos traços da
imagem de Deus segundo a qual fomos criados?
Neste ponto, devemos nos atentar para algo totalmente diferente. O mundo
onde vivemos nã o é o ú nico mundo sobre o qual as Escrituras tratam. Na
verdade, a Bíblia dirige nossa atençã o para além deste mundo, que é
passageiro, para um novo mundo que há de vir. Tudo aquilo que existe
perecerá num incêndio có smico. “Céus, incendiados, serã o desfeitos, e os
elementos abrasados se derreterã o” (2Pe 3.12). Entã o, desta conflagraçã o
có smica, há de surgir “segundo Sua promessa… novos céus e nova terra, nos
quais habita justiça” (2Pe 3.13).
Qual imagem é utilizada a fim de nos retratar essa nova terra? Certamente nã o
uma exclusivamente espiritual. Nã o! Na realidade, trata-se de uma terra
perfeitamente semelhante a uma criaçã o visível, externa e observá vel. Quem
pode perscrutar a descriçã o da Nova Jerusalém que nos é dada no Apocalipse
de Joã o, com os fundamentos de suas muralhas adornados de esmeralda e
safira e portas de pérolas, sem ser imediatamente enlevado pela impressã o de
uma gloriosa beleza que irá ultrapassar em muito as coisas mais belas que
nossos olhos já viram?
As Escrituras sempre utilizam uma palavra especial para essa beleza excelsa
do mundo vindouro, e repetidamente descreve aquilo que há de vir nesse
tempo de “o reino da gló ria”. Nã o importa quã o deslumbrante em muitos
aspectos esta terra já seja, ela, todavia, ainda nã o é gloriosa. Essa beleza
excelsa chamada “gló ria” só há de se manifestar no futuro, de maneira tal que
aqueles que pertencem a Cristo levantar-se-ã o nesse tempo e habitarã o num
corpo regenerado conformado ao corpo glorificado do Senhor Jesus. No
Apocalipse de Joã o temos um retrato desse corpo glorificado de Cristo, tã o
magnífico e deslumbrante em sua aparência que Joã o, ao contemplá -Lo, caiu
aos Seus pés como morto.
Dessa maneira, o conteú do das Sagradas Escrituras efetivamente nã o sugere
que a beleza é transitó ria, algo que deixamos para trá s no momento de nossa
morte para nunca mais reencontrarmos. Pelo contrá rio, segundo as
Escrituras, a beleza pertence ao â mbito das coisas eternas, coisas que perecem
aqui para, depois, retornarem eternamente numa forma ainda mais exaltada, e
apenas assim fazer com que o louvor pleno da majestade divina irradie por
toda Sua criaçã o.
Assim, de acordo com a Palavra de Deus, a beleza nã o pode ser separada de
Deus. “Desde Siã o, excelência de formosura, resplandece Deus” (Sl 50.2).
Zacarias exclama: “Pois quã o grande é a sua bondade! E quã o grande, a sua
formosura!” (Zc 9.17). Acerca do Messias é dito: “Tu és o mais formoso dos
filhos dos homens” (Sl 45.2). “Gló ria e majestade”, diz o salmista, “estã o diante
dele” (Sl 96.6). E “Sua gló ria [está ] acima dos céus” (Sl 113.4). Mesmo na
oraçã o do Pai Nosso, Jesus nos ensina que nã o apenas o reino e o poder, mas
também a gló ria de Deus dura para sempre!
Com efeito, a gló ria nada mais é do que um grau mais elevado de beleza. É a
beleza em sua consumaçã o, mas ainda de um modo pelo qual a beleza presente
e a gló ria vindoura estã o ligadas entre si, dado que ambas sã o revelaçõ es de
um mesmo princípio. Uma expressã o disto se encontra claramente no Monte
Tabor, onde Cristo apareceu subitamente em gló ria, e, todavia, um momento
depois, esta gló ria novamente se apagou, e mais uma vez, aos olhos de Seus
discípulos, Jesus apareceu com Sua radiante forma terrena. Assim, vemos a
beleza terrena se ascendendo à gló ria, e, em seguida, essa forma gló ria
descendo novamente à radiante forma terrena.
Mediante Sua ressurreiçã o, Jesus ressurgiu no mesmo corpo que havia sido
pendurado no madeiro — e Se manifestou em gló ria para Joã o, na ilha de
Patmos, com esse corpo que permanecia idêntico. Isto nos faz pensar num
diamante bruto prestes a ser lapidado. Ainda que permaneça sendo a mesma
pedra, o diamante finamente talhado irradia uma gló ria inteiramente
diferente. As pessoas, de antemã o, notam que um diamante é apenas um
pedaço de carvã o que é transformado em carbono por meio de calor intenso e
exposiçã o ao oxigênio presente no ar. Se um pedaço de carvã o pode se
transformar num diamante simplesmente por meio da aplicaçã o de forças
naturais elementares, e, através de polimento, este diamante pode adquirir
um brilho ainda mais apurado, o que impede Deus de transformar aquilo que
se encontra presentemente nesta terra no fulgor excelso de Sua gló ria?
Quando as Escrituras Sagradas nos dizem que aquelas pedras preciosas, hoje
tã o raras na terra, serã o o material de construçã o comum na Nova Jerusalém,
compomos esse mesmo retrato mental, isto é, que os minerais permanecerã o
idênticos, e, por meio de um novo processo químico, aquilo que existe
presentemente brilhará na excelsa e celestial gló ria divina.
Destarte, é notá vel que, quando Paulo trata do conhecimento de Deus que
obtemos da natureza, ele se refira nã o apenas ao “eterno poder”, mas também
à Sua Divindade que está estampada em toda a criaçã o como um sinete. A
beleza, e além desta, a gló ria divina, sã o o Espírito Santo resplandecendo ao
longo daquilo que se mostra aos nossos olhos.
Nesse tocante, contudo, devemos também levar em consideraçã o a ruptura
que ocorreu na criaçã o original. A terra, tã o como agora vemos, nã o é mais o
paraíso. No que diz respeito a esta situaçã o paradisíaca original, nenhuma
informaçã o precisa nos foi transmitida, salvo que a Escritura nos diz
claramente que a palavra “paraíso” se referia a um estado de coisas mais belo
do que este que presentemente vemos. Quando, no livro Câ ntico dos Câ nticos,
o esposo fala sobre “pomar [paraíso] de romã s, com frutos excelentes: a hena
e o nardo” (Ct 4.13), ele aparentemente busca uma elevaçã o poética da
situaçã o real. Quando o criminoso pendurado na cruz ao lado de Cristo alude
ao paraíso (Lc 23.43), ele se referia à situaçã o dos abençoados. Quando Paulo
testemunha ter sido levado ao paraíso por meio do arrebatamento de todos os
seus sentidos (2Co 12.3), tal expressã o indica um estado de gló ria celestial. E,
por ú ltimo, quando Jesus instrui Joã o em Patos a escrever à igreja em É feso:
“ao vencedor, dar-lhe-ei que se alimente da á rvore da vida que se encontra no
paraíso de Deus” (Ap 2.7), o termo “paraíso” indica um mundo que
infinitamente ultrapassa em gló ria este mundo.
De tudo isto, podemos sintetizar que o mundo, tal como criado por Deus, era
muito mais belo do que o mundo no qual presentemente vivemos. A narrativa
do paraíso corresponde, pois, a isso, na medida em que nela lemos como, apó s
terem caído no pecado, Adã o e Eva foram expulsos do paraíso e,
subsequentemente, tiveram que habitar uma terra oprimida pela maldiçã o.
Devemos entender esta maldiçã o como uma diminuiçã o da harmonia e,
portanto, também da beleza.
Nã o obstante, nã o podemos deduzir, tomando como base o estado desse
paraíso original, como será o reino da gló ria futuro. Talvez alguém faça essa
deduçã o com base no fato de que, por duas vezes, Jesus usou o termo paraíso
para se referir à gló ria vindoura, todavia, tal inferência é um equívoco.
Podemos perceber isto a partir do fato de que Adã o, no paraíso, nã o foi criado
em sua situaçã o derradeira. Por virtude da criaçã o, ele vivia no paraíso com
integridade e santidade, em plena retidã o original, mas nã o como se já tivesse
alcançado a mais alta condiçã o para a qual estava destinado.
Essa condiçã o exaltada nã o era ainda uma realidade para Adã o, mas se lhe
apresentava como um ideal. O objetivo do mandamento probató rio era
justamente que, por meio de sua vitó ria moral, Adã o ascendesse à mais alta
gló ria.
É necessá rio, portanto, distinguir três está gios aqui: primeiro, a situaçã o
paradisíaca; em segundo lugar, a condiçã o de perfeita gló ria; e, em terceiro,
como algo intermediá rio entre os dois anteriores, a situaçã o na qual nos
encontramos presentemente, a qual nã o existia no paraíso e, todavia, também
nã o é a condiçã o derradeira. Assim, no paraíso, certamente resplandecia uma
beleza superior à quela que, por ora, nos cerca. Entretanto, a beleza que em
breve há de prefulgir no reino da gló ria irá ultrapassar demasiadamente
mesmo a beleza do paraíso. Entre ambas, existe agora a desfigurada beleza da
condiçã o pecaminosa — uma situaçã o que, independentemente de quã o
agradá vel e exaltada ainda possa ser, nã o corresponde mais à quilo que uma
vez existira, e está longe de alcançar a beleza que futuramente ser-nos-á
revelada.
Ainda é possível observar uma maior variegaçã o neste está gio “entremeio” no
qual nos encontramos. Esta variegaçã o é uma consequência direta do fato de
que a maldiçã o nã o prosseguiu de forma irrestrita. Uma maldiçã o nã o
atenuada teria transformado toda a terra num caos de fealdade e um deserto
de corrupçã o. Contudo, a graça comum interviu neste ponto, de forma que a
terra nã o se transformou a esse ponto. Por todo lado, é possível observar a
maldiçã o, no entanto, ela foi restringida em sua açã o, e, graças à açã o
preservadora da graça comum, este mundo ainda pode nos apresentar muita
beleza. Nã o obstante, a beleza nã o mais adorna a totalidade da terra; pelo
contrá rio, vemos, lado a lado, o belo, o ordiná rio e o feio. 
Ora, um leã o é belo; um bezerro, comum; e um rato, feio. O mesmo vale para o
reino vegetal. O cedro nos encanta com sua beleza; o salgueiro nos parece
comum; e o cardo nos abate. Os á rabes atraem com sua bela silhueta; nó s,
holandeses, somos, no mais das vezes, comuns na aparência, enquanto alguns
homens tribais primitivos nos sã o aversivos. Percebemos essa mesma
categorizaçã o tripartida nã o somente entre plantas e animais, mas também na
parte nã o-orgâ nica da natureza. Assim, algumas cadeias de montanhas nos
inspiram reverência. Em seguida, há algumas montanhas corcovadas comuns
que mal notamos ao passarmos por elas. E há também rochas tã o estéreis e
terrivelmente fendidas que nos causam um estremecimento involuntá rio;
estes sã os os espécimes reais do “sem forma e vazio” que uma vez existiu. De
modo semelhante, nos deparamos com exuberâ ncia da natureza em uma
regiã o; em seguida, com a vulgaridade insípida de outra; e pró xima a esta, por
fim, vemos a infertilidade da charneca e do deserto. Isso também é vá lido para
atmosfera. Em alguns dias, gozamos daquele céu e tempo que nos fazem sorrir
e levantam nossos â nimos; a este, segue-se outros dias que sã o bastante
comuns, quando nã o há chuva e o sol e a lua aparecem normalmente. E, entã o,
encaramos aqueles dias quando os ventos tempestuosos esparramam a chuva
em nó s e a passarela sob nossos pés se torna, pois, intransitá vel.
Nessas três fases, portanto, a atividade da graça comum oscila sem descanso
no que diz respeito à beleza da natureza. Assim, amiú de, Deus nos mostra e
nos permite a sensaçã o de qual seria nossa sorte e quã o horrível seria o
mundo, caso a maldiçã o tivesse sido levado à sua consecuçã o derradeira. E
entã o, o SENHOR nos permite contemplar um fenô meno natural comovente que
nos faz ter saudades do paraíso. Em seguida, nos chafurdamos novamente no
ordiná rio, no qual nada nos excita ou repulsa, mas que se vê privado de
qualquer tipo de vitalidade, arrefecendo, assim, nosso entusiasmo.
Nesse sentido, o aspecto mais notá vel é que o senso de beleza mais refinado
permaneceu e se desenvolveu mais profundamente nas regiõ es onde a
natureza exibe essas oscilaçõ es (entre o belo, o ordiná rio e o feio) mais
claramente. No mundo oriental, onde a civilizaçã o se encontra mais inundada
por belezas e riquezas, o desenvolvimento da estética ou do senso do belo nã o
desapareceu, mas também nã o alcançou os piná culos do poder criativo. A
insuficiência nesse quesito a isso é ainda maior nas regiõ es no extremo norte
da Europa, onde os fenô menos da natureza sã o deveras desfavorá veis. Em
contraste, nos deparamos com o desenvolvimento humano mais glorioso — e
também no domínio estético — justamente naquelas regiõ es medianas entre o
norte e o sul, onde os contrastes na natureza ocorreram constantemente lado
a lado, onde essas três fases por nó s identificadas sã o experimentadas
sucessivamente, cada uma à sua maneira. 
Disto, torna-se evidente que a graça comum realizou um duplo serviço no
tocante à beleza. Primeiramente, a graça comum conservou muito da beleza
do paraíso, preservando-a de desaparecer, e continua, pois, a nos suprir, ao
longo do curso de nossa vida, com um esplêndido tesouro de coisas belas na
natureza. A graça comum atenuou a maldiçã o e, desse modo, nos legou uma
poesia genuína no interior da natureza. É o mesmo caule que sustenta tanto o
botã o da rosa desabrochado quanto o espinho bravio. Em segundo lugar, no
tocante ao interior do ser humano pecaminoso, a graça comum evitou a perda
total da percepçã o da beleza presente na natureza.
Sem dú vida, nosso senso do belo também sofreu com a Queda. Vá rias pessoas
que passeiam todas as noites sob o firmamento de Deus o fazem sem sequer
erguer seus olhos para adorar a Deus no esplendor de Seus céus estrelados.
Há mesmo pessoas que cultivam um desejo pelo vulgar e pelo repugnante.
Entretanto, na humanidade como um todo, a noçã o de beleza foi preservada
— ainda está lá , ativa. Essa extensã o do senso de beleza é devida, em nã o
pequena medida, justamente à alteraçã o das três fases, que identificamos. Os
olhos que se enchem de uma visã o que é refulgentemente esplendorosa
eventualmente tornar-se-ã o cegos; e, por sua vez, olhos que permanecem
muito tempo na escuridã o sofrerã o danos. Todavia, quando os nossos olhos
gozam de visõ es alternantes, que incluem tons ordiná rios e simplicidade, tais
contrastes fornecem o exercício necessá rio para a clareza de visã o. Ora, as
pá lpebras nos foram dadas para nos velar à noite, e, depois disso, para trazer a
nó s a luz do dia.
Por esta razã o, nã o negamos que Deus trabalhou internamente nas pessoas,
por meio de Seu Santo Espírito, a fim de fortalecer esse senso de beleza.
Vemos isso em Oliabe e Bezalel — e ainda se faz presente nos gênios artísticos
de muitos. Mas indubitavelmente, essa disposiçã o dos fenô menos belos,
ordiná rios e repulsivos um ao lado do outro, e um apó s o outro, estimulou o
senso de beleza. Afinal, assim as pessoas contemplaram a variedade, que, por
sua vez, foi instrutiva. E é precisamente essa visã o e esse senso de variedade
que se tornaram o incentivo mais poderoso — como veremos num capítulo
posterior — ao qual a arte deve sua existência e eminência.
 
 

8. GLÓRIA
 
Porque [Abraão] aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual
Deus é o arquiteto e edificador. (Hebreus 11.10)
 
Sumarizando aquilo que nossa investigaçã o nos apresentou até
entã o, podemos concluir os seguintes pontos:
1. A despeito de ser amiú de violado pelo pecado e por Sataná s, o
reino da beleza (e, de semelhante modo a beleza presente no e do
mundo) procede, em sua origem e essência, dos decretos de Deus, e
deve, portanto, ser valorizado como uma criatura Sua. 
2. Por beleza , entendemos aquilo que as Escrituras chamam da
“divindade” que resplandece através da criaçã o relativamente ao
poder eterno de Deus, implicando nã o somente Seu sá bio plano, mas
também a aparência externa deste.
3. No paraíso, todas as criaturas eram belas, sem deformidades ou
imperfeiçõ es, mas nem por isso apresentavam a beleza divina em
sua perfeita consumaçã o.
4. Apó s a queda da humanidade no pecado, quando a maldiçã o se
espraiou ao redor da terra, a beleza feneceu, e a fealdade e
hediondez surgiram.
5. Caso a açã o dessa maldiçã o tivesse prosseguido de forma
irrestrita, a fealdade teria suprimido toda beleza, assim como o
inferno é retratado, sempre e de forma exata, como a fealdade
consumada.
6. Entretanto, esse desenvolvimento fatal nã o continuou de maneira
desimpedida, mas foi detido pela graça comum, e, dessa forma,
existe um mundo que apresenta esta tríade: o belo, o feio e o
ordiná rio que nem repele, nem atrai.
7. Quando da criaçã o, um senso da divindade que se encontra na
forma e aparência das coisas foi criado dentro dos seres humanos,
de modo tal que um dos aspectos de nossa criaçã o segundo a
imagem de Deus consiste precisamente nesse senso de beleza.
8. Esse senso de beleza foi obscurecido pelo pecado, e tê-lo-íamos
perdido inteiramente caso a graça comum nã o o preservasse em
parte.
9. Como consequência disto, uma variedade tripartida se encontra
entre as pessoas, a saber, um senso de beleza extremamente
refinado em umas poucas pessoas; uma indiferença com relaçã o à
beleza mais sofisticada em um nú mero considerá vel de pessoas; e,
entre pessoas depravadas, um prazer naquilo que é disforme.
10. O presente estado de coisas nã o está destinado a durar para
sempre, mas há de ter fim por meio de uma conflagraçã o có smica, e
deste fogo universal surgirá um novo mundo, o qual nos concederá
nada além da mais perfeita beleza. Esta beleza perfeita se chama o
“reino da gló ria”.
11. Neste reino da gló ria, os regenerados existirã o nã o somente
como uma alma isenta de pecado, mas também com um corpo
glorificado, e, juntamente com estes novos corpos, os salvos
receberam a capacidade para desfrutar e valorizar, de maneira
completa, essa beleza perfeita acima mencionada, que é a pró pria
gló ria. Portanto, nã o iremos desfrutar um retorno à situaçã o do
paraíso, mas adentraremos numa situaçã o que a ultrapassa em
muito.
 
Tendo estabelecido esses fundamentos, nã o nos deteremos mais e
passaremos a considerar em que consiste a beleza. Alguém poderia
escrever volumes e mais volumes sobre esse tema, sem jamais
chegar a uma definiçã o. É possível dizer que a beleza nasce da
harmonia, simetria ou da proporçã o adequada. Mas isso nã o nos
leva muito adiante.
Vá rios já apontaram as relaçõ es que surgem em conexã o com aquilo
que nos impressiona como belo, mas isso nã o nos aproxima de uma
definiçã o da beleza. Mesmo por meio da aplicaçã o da chamada
proporçã o á urea, é possível demonstrar que as proporçõ es desta
razã o trazem à tona um efeito belo, mas o porquê deste efeito ser
belo é algo que nã o pode ser explicado racionalmente.
Experimentamos essa mesma dificuldade com relaçã o ao amor —
algo que podemos desfrutar e expressar, mas nã o analisar, uma vez
que escapa de nossa observaçã o quando nos propomos a explicá -lo.
A beleza é assim porque agradou a Deus fazê-la desse modo. E temos
um senso de beleza porque Deus o criou dentro de nó s.
Contudo, a beleza nã o pertence aos fenô menos que podem
direcionar nosso pensamento em matéria de concepçõ es racionais.
Na verdade, ela pertence ao mundo da imaginaçã o, que é distinto de
nosso mundo conceitual, e o mesmo é verdade no que diz respeito
ao mundo do amor e de qualquer qualidade moral. Destarte,
constitui-se como uma verdadeira lacuna o fato de que, dentro da
dogmá tica e da psicologia, em geral, as pessoas nã o terem sido
capazes de levar em conta este mundo da imaginaçã o. Há um mundo
espiritual-interior e um mundo externo que aparece em forma
visível e audível, e toda beleza consiste na refulgência do divino
neste mundo observá vel.
Isto automaticamente nos leva a indagar se a beleza consiste nessa
realidade espiritual. De fato, o uso linguístico afirma que sim. As
pessoas falam sobre um cará ter belo, um ato belo, um pensamento
bonito e até mesmo de uma alma bela. Neste sentido, afirmar que
Deus é belo talvez nã o soasse como impertinência. Nã o obstante, as
pessoas tendem a ser cautelosas neste ponto.
No passado, os cristã os jamais usavam essa expressã o, tendo sido
influenciados pela escola platô nica, que atribuía uma interpretaçã o
espiritual ao conceito de beleza quando tratava acerca do chamado
“belo-bom”. Atualmente, podemos dizer que tal afirmaçã o, com
efeito, se apresenta como parcialmente verdadeira, isto é, na medida
em que a beleza tem sua origem em Deus, sua base deve, pois, ser
espiritual, já que nã o é nosso olho, nem ouvido, mas sim a alma que,
mediante estes ó rgã os, observa e desfruta a beleza. No entanto,
nesta perspectiva, as pessoas também poderiam naturalmente dizer
que uma barra de metal é espiritual, já que o metal também foi
criado por Deus, e o nosso espírito forja, funde e forma este
elemento por meio de nossas mã os. Tal visã o, contudo, nã o nos leva
a lugar algum, só trazendo confusã o.
O mundo criado nos apresenta, de forma imediata, o contraste entre
o visível e o invisível, entre o material e o espiritual. Qualidades
ú nicas se fazem presentes em cada um destes pares: a matéria é
pesada ou leve, dura ou flexível, e, entã o, bela ou disforme. Em
contraste, o espiritual é bom, sá bio, engenhoso, pecaminoso ou
santo. Cada um desses dois elementos da criaçã o possui uma série
apropriada de termos por meio dos quais expressamos suas
características, de forma que a mistura das características de ambos
somente nos confunde. Nossa época atribui valor desproporcional à
arte e à beleza, donde surge a noçã o de que, na opiniã o de muitos, a
beleza se tornou a característica superior a todas. Ora, geralmente
aplicam a característica da “beleza” também ao espírito, a fim de
elevá -lo à categoria de um ser extraordiná rio. Quando aplicada ao
mais alto ideal (nas palavras deles), na opiniã o deles, isto nã o
implica que Deus é todo-poderoso, sá bio, misericordioso e gracioso.
Com isso eles julgam que é algo demasiadamente superior dizer que
Deus é composto de tudo o que é belo.
Todavia, devemos nos precaver contra essa ênfase exacerbada.
Certamente a beleza existe em Deus, e somente Ele há de trazer a
beleza à sua consumaçã o em gló ria, no tempo determinado.
Contudo, beleza e gló ria sã o ainda características do aspecto externo
das coisas, características que podem ser aplicadas somente
figurativamente ao â mbito espiritual. Ora, o espírito nã o é capaz
somente de ser sá bio, engenhoso, puro, santo e transbordante de
amor, mas também se expressa nas relaçõ es, proporçõ es e
dimensõ es específicas. Assim, uma vez que os elementos materiais
sã o belos no tocante à s relaçõ es apropriadas, à s proporçõ es puras e
à s dimensõ es específicas, as pessoas acabaram por aplicar essas
características do belo também à alma, quando esta demonstra um
equilíbrio perfeito e se expressa nas capacidades amorosas.
No entanto, nã o devemos atribuir nada além de um significado
figurado a isso. Ninguém jamais pensou em tratar tais disposiçõ es
da alma dentro da disciplina da Estética ou do estudo do belo.
Quando as Sagradas Escrituras nos descrevem o reino da gló ria,
comparando-o a uma cidade “da qual Deus é o arquiteto e
edificador” (Hb 11.10), e quando a Nova Jerusalém é descrita em
Apocalipse 21, nã o pensamos na santidade dos eleitos glorificados,
que é retratada com uma imagem completamente diferente, mas
pensamos exclusivamente na nova terra debaixo dos novos céus,
que terá uma forma visível e observá vel, assim como,
presentemente, as coisas materiais sã o audíveis e observá veis para
nó s. Somente a arte da poesia pode ser identificada como puramente
espiritual, embora também isso repouse num mal-entendido. A
palavra é o material com o qual se cria a poesia, ainda que a palavra,
em si, nã o seja espiritual, mas sim as vestes materiais do
pensamento espiritual.
Agora que passamos a tratar da arte, propriamente dita, seu lugar é
automaticamente identificado. Vivemos num mundo que fornece um
lampejo de uma grande beleza, mas nã o da beleza em seu estado
consumado. Consequentemente, há , em nosso coraçã o, uma
nostalgia por tal beleza perfeita. E o impulso do coraçã o nos leva a
tentar evocá -la para os nossos olhos e ouvidos. Sã o estas tentativas,
pois, que inspiram a arte.
Como será visto adiante, com tais observaçõ es nã o esgotamos o
assunto, todavia, podemos deliberadamente colocar em destaque
esse eminente ponto de partida. O motivo de arte chega até nó s nã o
a partir daquilo que existe, mas da noçã o de que há algo superior,
algo mais nobre, mais rico, em relaçã o ao qual o que atualmente
existe corresponde somente em parte.
O artista descrente pode buscar esse algo no ideal de beleza, ao
passo que aqueles que vivem segundo as Escrituras consideram essa
beleza sublime como a beleza da gló ria que há de se revelar um dia.
Para nó s, toda arte e toda beleza que procedem da natureza
constituem uma profecia e uma prefiguraçã o dessa gló ria vindoura.
Consequentemente, para nó s, cristã os, a arte se encontra em relaçã o
direta com nossas expectativas acerca da eternidade. Com mã os
trêmulas, por assim dizer, a arte tateia em direçã o à gló ria que, por
meio de Cristo, irá eventualmente encher céu e terra.
As Escrituras nos informam que os raros diamantes e pedras
preciosas que descobrimos nesta terra sã o simples e dispersas
placas de sinalizaçã o de uma Nova Jerusalém construída somente
com joias. Semelhantemente, nas suas produçõ es mais eminentes, a
arte nos permite contemplar apenas imagens dispersas que nos
ajudam a medir e compreender algo daquilo que será visível no
reino da gló ria.
Vamos esclarecer este ponto com alguns exemplos.
Nesta terra, somente por vezes, a beleza se faz presente no seu grau
mais sublime no corpo e forma humanos. No entanto, na nova terra,
estaremos aptos para desfrutar de um corpo glorificado, que, pela
primeira vez, irá irradiar a beleza humana em perfeiçã o. Assim,
nesse presente tempo em que aguardamos nossos corpos
glorificados, gozamos das produçõ es dos grandes escultores e
pintores, artistas que nos apresentam a beleza e forma humanas
com uma sublimidade e majestade que ultrapassam a realidade,
tateando em direçã o à gló ria que, um dia, iremos radiar fisicamente.
Portanto, de uma perspectiva cristã , a arte nã o somente possui uma
origem sagrada no impulso que foi colocado dentro de nosso
coraçã o, mas também desfruta de uma ligaçã o direta com nossas
expectativas com relaçã o à eternidade. Num certo nível, a arte se
configurava como uma ponte entre a vida aqui a vida apó s a morte.
Dentre os cristã os, toda forma de repú dio à arte se originou
especialmente da perspectiva — contrá ria à s Escrituras — que
concebe a vida apó s a morte como exclusivamente espiritual, uma
visã o que renuncia qualquer expectativa no tocante ao reino de
gló ria. Naturalmente, se, como afirma o espiritismo, nã o haverá um
mundo observá vel na eternidade, entã o, de fato, a arte pertence à s
questõ es insignificantes. Se, pelo contrá rio, confessamos,
juntamente e com base nas Escrituras, que haverá uma Nova
Jerusalém, situada numa nova terra, debaixo de um novo céu, logo a
arte é uma cintilaçã o preparató ria, já nesta vida terrena, daquilo que
há de vir.
Se estas observaçõ es situaram a posiçã o da arte em nossa
biocosmovisã o cristã , entã o, ao mesmo tempo, elas expressam o
motivo pelo qual, em princípio, nos opomos à queles que consideram
que o mais sublime dever da arte é a chamada mimesis , ou imitaçã o
da natureza. Já entre os gregos, as pessoas consideravam como uma
realizaçã o suprema caso alguém pintasse um cacho de uvas de tal
modo que até os pá ssaros se enganariam, voando em direçã o ao
quadro para se alimentar de tais frutos. Destarte, nã o podemos
simplesmente nos contentar em condenar esse ponto de vista. Pelo
contrá rio, ele merece a devida apreciaçã o no que diz respeito à sua
importâ ncia, que consiste desta ideia: qualquer tentativa artística
que se paute na evocaçã o de ideias individuais divorciadas da beleza
da natureza é definitivamente frívola. Podemos nos lembrar das
monstruosidades à s quais essa perspectiva conduziu, especialmente
sob a inspiraçã o do ascetismo da Idade Média e alguns anos atrá s,
sob a influência de Hegel. Nosso objetivo nã o nos permite discorrer
mais profundamente sobre tal ponto. É suficiente, pois, notar que
tais tentativas possuíam o benefício de engendrar uma arte que, de
fato, se empenhava em busca de algo além desta realidade, embora
tenha falhado em satisfazer a lei da beleza na natureza. Seguindo
esse caminho, as pessoas acabavam por celebrar o antinatural e o
teratoló gico. Em resposta a esta forma artística, a escola de arte
mimética era inteiramente legítima — ela convocou a arte para
novamente retornar à natureza, forçando-a a tomar liçõ es dela. De
maneira sincera, celebramos tal desenvolvimento, pois apenas desse
modo o talento do artista é exposto à realidade da beleza.
Todavia, a arte nã o pode estacionar nesse ponto. As formas do corpo
humano nã o devem ser idealizadas de maneira fantasiosa, mas sim
estudadas anatomicamente e reproduzidas a partir do corpo vivo.
Contudo, a arte possui um chamado mais sublime do que
simplesmente colocar nas telas fotografias de visível beleza. A arte
cumpre seu chamado somente quando evoca a forma humana ao
olhar no tocante à harmonia e nobreza dignificadas. Quando nã o
realiza tal funçã o, a arte degrada a si pró pria, ainda que esteja
inconsciente disso; e, assim, decai, passando a retratar o nu nã o em
sua dimensã o sublime, mas na sua forma sensual, sucumbindo à
impureza.
Entretanto, a fim de analisar mais detidamente essa questã o,
devemos levantar esta questã o: caso a situaçã o do paraíso tivesse
sido perpetuada, e o contraste entre beleza e fealdade nã o tivesse,
pois, surgido, a arte ainda assim teria nascido?
É possível, também, indagar: se a arte oferece somente uma
prefiguraçã o da gló ria vindoura em contraste com a beleza inferior
deste mundo pecaminoso, qual chamado a arte teria caso o pecado
nã o tivesse corrompido, e a beleza do paraíso tivesse enchido toda a
terra? Com relaçã o a isto, lembremos aquilo que defendemos num
capítulo anterior, a saber, que, a despeito de sua condiçã o superior,
a beleza do paraíso nã o era ainda, de modo nenhum, o reino da
gló ria.
O paraíso foi o ponto de partida, nã o o destino, da viagem.
Suponhamos, entã o, que o pecado nã o tivesse entrado no mundo, e
que, consequentemente, nenhuma maldiçã o tivesse ocasionado o
surgimento da fealdade — ainda assim, haveria, para a humanidade,
uma diferença entre a beleza em sua origem na terra e a beleza em
sua consumaçã o, quando a gló ria surgisse. Tal diferença teria
despertado, num nível conceitual, um anseio pela beleza ideal da
gló ria. Desse modo, portanto, a arte teria o chamado de ascender, a
partir daquilo que existisse, em direçã o a um nível mais sublime, na
forma de antecipaçã o e profecia. Com isso, nã o pretendemos dizer
que, por esse motivo, a arte teria uma funçã o semelhante à sua atual.
Provavelmente ela gozaria de maior eminência, maior liberdade e
independência, produzindo, assim, resultados que sobrepujariam as
produçõ es mais elevadas de nossa atual arte. Porém, em momento
nenhum se pode afirmar — e este é o nosso ú nico ponto no presente
contexto — que, num mundo sem pecado e maldiçã o, um mundo
que tivesse preservado sua condiçã o paradisíaca, nã o haveria lugar
para o surgimento de qualquer forma de arte.
De semelhante modo, também nã o estamos afirmando que a arte
deve sua origem à graça comum. Diferentemente do Estado, a arte
nã o é uma nova instituiçã o que foi intencionalmente trazida à
existência pela graça comum. Na verdade, a arte é uma parte da
pró pria criaçã o, assim como a vida familiar. Destarte, a arte deve seu
florescimento à graça comum somente na medida em que, nã o
tivesse o pecado e a maldiçã o sido restringidos, a beleza teria sido
corrompida, extraviada à fealdade absoluta, e o senso de beleza
dentro de nó s teria sido destruído.
Devido ao fato de que isso nã o tenha acontecido; que uma grande
parcela de beleza tenha sido preservada; que o senso de beleza
continua a atuar; e que a arte nã o desapareceu, mas se desenvolveu,
crescendo e florescendo com vigor, ora, por tudo, isso sabemos que
estamos obrigados a render graças pela graça comum que procede
da parte de Deus.
Se retraçarmos o percurso da arte dessa forma, logo concluímos que
a arte necessariamente tem sua origem na nossa criaçã o segundo a
imagem de Deus. Somente mediante o reconhecimento dessa
verdade, é possível penetrar na essência singular da arte. Ora, a arte
emana da habilidade, e esta emanaçã o, em seu trajeto principal,
jamais se equivoca. O fato de que a arte floresce entre o povo
significa, pois, que nada, a nã o ser o indivíduo, é capaz de realizar
algo. A palavra “arte” é usada dessa maneira mesmo hoje, em vá rios
contextos e circunstâ ncias. Um ilusionista e um acrobata sã o
capazes de fazer aquilo que nã o podemos, e cada um demonstra,
assim, sua arte . Metaforicamente falando, poderíamos dizer que, ao
montar um quebra-cabeça, a arte consiste na consecuçã o do objetivo
do jogo.
Aqui, temos um provérbio: “A arte está no pegar o jeito”. De
semelhante modo, em cada á rea de atividade, a expressã o “a arte
de...” é usada para indicar que é preciso ser há bil para fazer isto ou
aquilo. No entanto, esse conceito geral deve ser submetido a uma
qualificaçã o mais adequada a fim de se partir da habilidade geral à
habilidade específica do escultor, pintor, cantor, e assim por diante.
As pessoas comumente falam, portanto, das belas artes a fim de
distinguir a arte propriamente dita das vá rias outras habilidades e
técnicas. Especialmente nos nossos dias, quando a aplicaçã o da arte
para usos industriais e prá ticos cresce tã o velozmente, essa
distinçã o entre arte, no seu sentido refinado, e as vá rias habilidades
prá ticas merece nossa atençã o. Existe a arte de cozinhar, a arte da
equitaçã o, a arte da esgrima, a arte da dança e muitas outras, mas
todas elas nada têm a ver com a arte . Kant talvez tenha ido muito
longe ao afirmar que a beleza se refere apenas aquilo “que nã o tem
utilidade”, e talvez tenha levado em conta a arquitetura. Contudo, a
noçã o de artes liberais contém a suposiçã o bá sica de que a arte
trabalha para os propó sitos da beleza, e nã o para os usos que ela
poderia prestar.
Visto dessa forma, a habilidade expressa na arte nã o pode ser
compreendida de outro modo a nã o ser como uma similitude da
habilidade divina, algo evidentemente vá lido contanto que seja
entendido de acordo com as proporçõ es de nossa limitaçã o humana.
Dado que somos criados segundo a imagem de Deus, devemos ser
seguidores dEle como filhos amados. Ora, para nó s é motivo de
orgulho sermos chamados de filhos de Deus, e se Jesus nos
conclama: “Portanto, sede vó s perfeitos como perfeito é o vosso Pai
celeste” (Mt 5.48) — entã o, a compreensã o de que arte humana é
uma sombra da habilidade divina se coaduna perfeitamente com
essa ordem de Cristo.
Todavia, tal fato necessita de uma aná lise mais pormenorizada. Ora,
Deus pode amar; pode reconciliar; e pode condenar; entretanto,
mesmo que tais capacidades também tenham sido colocadas dentro
de nó s, nã o é isto que entendemos por arte. De modo nenhum! Pois
quando dizemos que a arte como uma imitaçã o da habilidade de
Deus, devemos, pois, pensar exclusivamente naquela habilidade
mais sublime de Deus que é expressa em sua onipotência criativa.
Com efeito, podemos modelar e processar as coisas que existem,
mas apenas Deus cria. Esta é a habilidade divina par excellence , a
habilidade de Deus que distingue Suas obras de todas as obras
humanas.
Nesse sentido, chegamos, agora, a uma conceituaçã o mais profunda,
a saber, que a arte, tomada no seu sentido mais refinado, é a
expressã o daquela maravilhosa capacidade presente no interior do
homem, por meio da qual ele pode fazer aquilo que, de outra forma,
somente Deus o pode, isto é, criar. A pró pria linguagem nos ensina
que a noçã o de criaçã o é sempre aplicada entre todos os grupos de
pessoas com relaçã o à arte em seu sentido mais sofisticado. As
“criaçõ es da arte” é uma expressã o comum; igualmente, dizer que
alguém possui um “gênio criativo” é o maior elogio que se pode dar
a um artista verdadeiro. Portanto, até mesmo a linguagem nos
ensina que a habilidade artística deve realmente ser buscada nessa
capacidade criativa.
Naturalmente, nã o pretendemos afirmar que o homem é capaz de
criar como Deus. Na verdade, o homem cria somente a aparência ou
o exterior de algo. O “jovem touro” de Potter é uma criaçã o
maravilhosa, mas existe somente na tela. O animal é visto em sua
aparência, mas nã o existe na realidade; nã o possui substâ ncia. Uma
paisagem pintada por van Ruisdael é bela; representa a natureza
perante nossos olhos, mas é simplesmente a exposiçã o de cores e
linhas, de plantas e animais. Nenhum artista humano pode criar
substâ ncia e esplendor no real; apenas Deus pode fazê-lo. Ainda que
a arte seja efetivamente uma expressã o da vida que evidencia que as
pessoas, criadas segundo a imagem de Deus, podem criar como Ele,
nã o obstante, o homem continua criando de forma criatural, criando
a partir da imaginaçã o, criando a partir da aparência que assoma aos
olhos, criando antes a representaçã o do ente do que o ente em si
mesmo. Deus cria o ser humano, mas o escultor cria um Apolo ou
Vênus a partir do má rmore, em linhas e formas, mas sem que um
homem passe a existir na escultura. Deus cria plantas e animais, e o
pintor sabe como criá -los em formas, linhas e cores, mas sem um
animal ou planta existindo na pintura. Deus cria a histó ria, enquanto
as pessoas criam um épico ou um drama, que, por sua vez, sã o
extraídos da histó ria ou da irrealidade e pura ficçã o.
Desse modo, em todas as artes encontramos uma imitaçã o da
habilidade criadora de Deus — Seu universo é replicado em nossos
palá cios e catedrais; Sua criaçã o orgâ nica é imitada em nossa
escultura; Suas paisagens de vida na natureza e entre os povos sã o
retratadas numa tela em nossa pintura artística; aquilo que Deus
criou e sustenta no interior do coraçã o humano ressoa em nossa
mú sica; e aquilo que Deus criou mediante Sua palavra encontra
expressã o em nossa poesia.
No entanto, toda essa criaçã o mediante a arte permanece sempre
restrita aos limites do humano. Tudo isto se configura como um
criar a partir da criaçã o de Deus, uma imitaçã o em aparência da
criaçã o divina, que nã o é capaz, contudo, de fornecer a substâ ncia, a
qual procede unicamente do eterno poder de Deus. Certamente,
ainda que possamos construir uma caixa de mú sica, dar corda e
deixá -la tocar, somos, todavia, impotentes no que diz respeito a criar
um minú sculo rouxinol ou cotovia. De semelhante modo, em todo o
domínio da arte, podemos, no má ximo, imitar as criaçõ es de Deus,
sem jamais ir além disto. Deus permanece sendo o Original, o ú nico
Criador Real, pois só Ele é o poderoso e sá bio Artista.
Ora, pedimos paciência para aqueles que, porventura, se queixem do
fato de termos retornado à teoria mimética da arte. Afinal de contas,
isto é o que faz toda a diferença: na natureza, a totalidade da
capacidade criativa de Deus ainda nã o foi expressa, pois ainda
aguardamos uma re-criaçã o superior. Assim como o Pregador de
Eclesiastes disse, Deus “pô s a eternidade no coraçã o do homem” (Ec
3.11), do mesmo modo, no â mbito da arte, o SENHOR Deus colocou o
senso de beleza no coraçã o humano, uma capacidade de perceber
uma beleza mais sublime do que aquela apresentada pela natureza.
Evidentemente essa percepçã o dessa beleza mais sublime se
encontra ligada à beleza real da natureza, pois, afinal, a arte deriva
sua forma e temas apenas da natureza. 
Contudo, a fantasia e a imaginaçã o atuam tã o poderosamente no
nosso interior que, contanto que sejam nutridas pela beleza da
natureza, podem ascender a percepçõ es ainda mais elevadas. É o
pró prio Deus que inspira aqueles que possuem um gênio
estonteante no domínio da arte — Ele os leva a perceber uma beleza
e a experimentar em seus espíritos algo muito além daquilo que o
mundo pode oferecer, algo que, tã o logo se desloca de suas
imaginaçõ es para a expressã o visível, enriquece o mundo, deleita
aqueles que foram iniciados no seu significado, e oferece à nossa
existência humana algo do qual jamais teríamos desfrutado nã o
fosse essa capacidade artística.
 
 

9. CRIATIVIDADE
 
As mulheres repartem os despojos — embora vós, homens, repousais
entre as cercas dos apriscos — as asas da pomba são cobertas de
prata, cujas penas maiores têm o brilho flavo do ouro (Sl 68.12b-13)
 
Nã o satisfeita com a beleza da natureza, a arte busca por uma beleza
mais sublime, mais rica, uma beleza que há de vir somente com o
reino da gló ria, mas que já no presente nos oferece lampejos
proféticos. À vista disso, a arte nã o foi chamada simplesmente para
produzir có pias da natureza, mas a ir além dela, desde que ascenda a
esse nível sublime mediante a escada da natureza, a scala creationis .
De modo recíproco, a natureza fornece impressõ es de beleza que
clamam pela arte, de modo que é possível, assim, atingir uma
posiçã o mais ideal do que a oferecida pela natureza. A arte somente
pode servir tal propó sito porque seu surgimento é se deve à imagem
de Deus segundo a qual o homem foi criado. Dentre os aspectos
desta imagem, se encontra a característica de que, assim como Deus
cria, também o homem cria, em termos humanos, por meio da
criatividade. Deus criou a pessoa vivente na pessoa individual de
Adã o, o artista, por sua vez, cria a imagem humana a partir do
má rmore.
Com efeito, ainda que tal fato assinale uma posiçã o firme e nítida
com respeito à doutrina da beleza e da arte à luz das Escrituras,
todavia o significado da arte nã o se torna mais plenamente claro
com essa explicaçã o. “A criaçã o”, diz o santo apó stolo, referindo a
todas as criaturas, “aguarda, com ardente expectativa, a revelaçã o
dos filhos de Deus. Pois a criaçã o”, ele continua, “está sujeita à
vaidade”, mas persevera “na esperança de que a pró pria criaçã o será
redimida do cativeiro da corrupçã o”, e há , portanto, de compartilhar
“a liberdade da gló ria dos filhos de Deus” (ver Rm 8.19-21). No
mesmo veio proveio a profecia da harpa de Davi em direçã o aos
ouvidos de Israel: “As mulheres repartem os despojos — embora
vó s, homens, repousais entre as cercas dos apriscos — as asas da
pomba sã o cobertas de prata, cujas penas maiores têm o brilho flavo
do ouro” (Sl 68.12b-13)
Portanto, a arte humana tem o chamado de enobrecer a natureza e,
juntamente com ela, também a existência humana nesta terra. A
natureza inculta desconhece flores semelhantes à queles cultivadas
em nossos laborató rios. Analogamente, algumas espécies animais
geram, por meio da arte humana, outras espécies mais belas e puras.
Aquilo que se aplica à s plantas e animais também vale para a
natureza indô mita, que certamente apresenta uma beleza singular,
embora demonstre ao mesmo tempo outra face diferente das
paisagens aprimoradas mediante a arte humana. Qualquer um que
compare a cordilheira de Jotunheim e a regiã o de Hardanger, na
Noruega, com as regiõ es de Gooi e Arnhem, na Holanda, perceberá a
diferença imediatamente. As primeiras exibem uma majestade mais
intensa, mas as outras regiõ es que perderam sua hostilidade
apresentam um encanto e suavidade maiores. A imponência de um
nos faz tremer, enquanto a beleza do outro nos atrai.
O mesmo se dá na pró pria existência humana. Um nativo selvá tico
nos causa uma impressã o completamente diferente de um homem
do mar; e um indivíduo sofisticado de uma família aristocrá tica nos
causa uma impressã o inteiramente diversa de uma pessoa vestida
com a esplêndida elegâ ncia dos trajes locais. 
  Frequentemente somos capazes de perceber como a arte atua entre
ambos esses grupos, a fim de elevar a fim a uma posiçã o mais nobre
em matéria de roupas e joias, de casas e mobílias, e de modo e estilo
de vida. A vida humana na cidade africana de Timbuktu nã o é
compará vel à vida numa cidade islâ mica como Tunes, e esta, por sua
vez, desvanece quando comparada ao luxo e beleza da vida humana
vista em cidades como Londres e Paris. Em cada um desses locais, a
arte possui uma funçã o importante. A arte da construçã o, a arte da
tessitura, a arte da decoraçã o, apenas para nomear algumas, têm
sido praticadas por séculos, dignificando e enobrecendo, cada vez
mais, o exterior da nossa vida humana. Gradualmente, toda a vida
humana passa a apresentar uma fisionomia mais bela, uma forma
mais harmô nica, que começam a atuar reflexivamente sobre as
pró prias pessoas, de tal forma que elas começam a adotar maneiras
e formas de vida através das quais seu pró prio estilo, aspecto e
comportamento se tornam mais refinados. Qualquer um que
comparar um retrato de William Ewart Gladstone com um do
príncipe zulu Dingange há de notar a diferença.
Dentre todos esses fenô menos, um senso de arte esteve em atuaçã o,
uma capacidade nã o limitada a indivíduos, mas também operante
entre as massas. A arte da marchetaria na Suíça e a arte do bordado
em Marken surgiram e se desenvolveram em geral no meio do povo.
Ambas expressam um impulso por tornar a existência mais elegante
e a vivência mais bela. Ainda que ocasionalmente o mau gosto tenha
se infiltrado, nã o se pode negar, todavia, que esse impulso artístico
universal constituiu o grande fundamento sobre o qual as artes mais
refinadas se sustentam. Todos os povos antigos cantaram, todos eles
criaram mú sica, e embora tais cantos e melodias fossem primitivos,
foram a cançã o e melodias populares que forneceram o impulso
para uma arte musical e lírica mais refinadas.
Mas logo surgiu a distinçã o entre a arte comum, compartilhada por
todos, e as belas artes, incentivada e direcionada nã o mais pelo
entendimento comum, mas por ideais superiores. De forma notá vel,
quanto mais desenvolvida se tornou essa arte sofisticada, mais
profundamente a arte popular regrediu. Antigamente, o povo era
extremamente mais poético do que hoje em dia, e a capacidade
artística dentre as pessoas comuns era deveras superior na época da
Reforma. É como se o senso artístico houvesse se deslocado das
massas a fim de se concentrar em alguns indivíduos geniais,
deixando, entã o, o povo desemparado. As multidõ es, antes tã o
sensitivas, melodiosas e propensas à arte, se tornaram prosaicas,
inclusive em sua fala. A vida se tornou demasiado agitada e inquieta
para que sobrasse tempo e tranquilidade para a expressã o exterior
de nossas profundas sensibilidades. Neste momento, portanto, a
arte se retirou da vida pú blica, recolhendo-se aos seus nichos,
conquistando uma posiçã o independente na vida.
Isso seria inconcebível caso artistas com talento e gênio
extraordiná rios nã o tivessem surgido no â mbito da beleza. E quem
mais, a nã o ser Deus, criou tais gênios por meio do beneplá cito de
sua graça comum? De fato, podemos nos perguntar se o mundo
grego nã o estava tã o orientado para a beleza artística como o
mundo romano estava para o desenvolvimento da autoridade e
jurisprudência.
No mundo da beleza, houve a operaçã o de um decreto singular
divinamente estabelecido. Inicialmente, tal decreto era um segredo,
atuando apenas inconscientemente na arte popular. Entretanto, no
mundo grego, ele penetrou na consciência de vá rios gênios. Naquele
momento, esses indivíduos compreenderam, manifestaram e
efetivaram esse decreto — o que explica a razã o pela qual essa
beleza clá ssica do mundo se encontrava na arte grega. Nã o porque
era a arte grega em si, mas sim porque agradou a Deus manifestar
pela primeira vez, em meio a esse maravilhoso povo, leis e regras
fixas e soberanamente regentes, isto é, os decretos divinos que
regem a beleza.
A arrogâ ncia daquilo que as pessoas chamam de “gosto” nã o tem
relaçã o alguma com isso. O provérbio latino De gustibus non est
disputandum , que significa “Nã o se deve discutir sobre gostos”, é a
má xima jactanciosa com a qual o mundo geralmente avalia a beleza.
“Eu penso isto” e “você pensa isso” sã o as afirmaçõ es usuais
mediantes as quais cada pessoa exerce o direito de julgar.
Com efeito, há aqui uma verdade relativa, e isto numa perspectiva
que se bifurca. Primeiramente, em nenhum outro â mbito o direito
subjetivo de concordâ ncia atua tã o fortemente quanto no â mbito da
beleza. Isso porque o sentido das impressõ es recebidas pelas
pessoas depende — num grau extremado — do espelho da alma que
as captura. Em segundo lugar, e nã o menos importante, isso se deve
ao fato de que a discussã o racional acerca do belo ocorre somente
incidentalmente, e o chamado juízo estético surge da noçã o de
beleza de determinado indivíduo, cujo julgamento será mais preciso
de acordo com o grau de refinamento de seu desenvolvimento. 
Consequentemente, nã o se pode afirmar, de modo nenhum, que, no
mundo da beleza, a arbitrariedade do gosto pessoal reinará
soberanamente. Qualquer um que afirme isso irá desvincular a
beleza de Deus. Em contrapartida, aquele que confessar, juntamente
conosco, que Deus é o Inventor e Criador da beleza nã o duvida, de
modo algum, que o belo é governado por um padrã o objetivo e
imparcial — ora, nã o se pode negar que existe um decreto divino
regendo o mundo da beleza, de modo que continuamente as pessoas
reconhecerã o que os fundamentos clá ssicos do belo foram
apreendidos de forma mais clara pela primeira vez na Grécia antiga.
Naturalmente isso nã o significa dizer que, consequentemente, toda
arte deve ser arte grega clá ssica. Em particular, a Grécia antiga
jamais encontrou o motivo sublime da consciência cristã . Ademais, a
arte clá ssica nã o existe somente para ser imitada incessantemente
num modelo monó tono e uniforme. Dentro do universo da beleza,
na verdade dentro do mundo inteiro, a mais rica diversidade, uma
multiformidade virtualmente infinita, repetidas vezes prevalece por
seu pró prio estilo e cará ter. Mas assim como a forma universal da
flor jaz no fundamento da diversidade de todas as nossas flores, do
mesmo modo toda variedade artística surge de formas originais
fixas, e estas, por sua vez, em todo seu detalhamento, Deus desvelou
à nossa raça humana por meio dos gregos antigos.
Quando uma guilda artística distinta se desenvolveu na sociedade
humana, dentro da qual a arte conquistou sua existência
independente, dela emergiu uma funçã o dupla. A arte que entã o
despontou buscou uma relaçã o com a sensibilidade artística do
povo, procurando nutri-lo e fornecer-lhe satisfaçã o. Além disso, a
arte, elevada por um impulso ainda maior, foi levada a buscar a arte
pela arte, de maneira que neste seu segundo está gio, ela trouxe à luz
suas maiores criaçõ es na sociedade — criaçõ es que, em geral, nã o
possuíam relevâ ncia alguma ao povo, nem exerciam sobre ele
nenhum tipo de influência, mas que constituía uma manifestaçã o
distinta da experiência humana que era valorizada e apreciada
somente por uns poucos eleitos dentro desse domínio.
Esse duplo uso da arte já fora apontado anteriormente na
comparaçã o entre arte e religiã o. Em tempos antigos, a religiã o
possuía seu templo, com seus limiares eram atravessados somente
pelos sacerdotes e cantores, e perante cujo altar o povo reunido
contemplava os sacrifícios. De semelhante modo, a arte também
possuía seu templo, com seus sumos sacerdotes, seus oficiais e
cantores, que viviam suas vidas dentro das paredes do santuá rio,
inacessíveis ao povo, contudo um templo perante cujos portais as
pessoas se reuniam a fim de serem arrebatadas, enriquecidas e
abençoadas pelos sacerdotes da arte.
Tratava-se de uma vida dentro das paredes do santuá rio da arte,
acessível apenas à queles dotados com uma apreciaçã o mais elevada
pela arte. Todavia, tal vida também exerceu uma influência
(proveniente deste templo) sobre amplos segmentos da populaçã o.
É a relaçã o ora mais ora menos conveniente entre ambas essas
funçõ es da arte que demonstra sua nobreza. Se no universo dos
artistas, há uma â nsia incontrolá vel pela fama, ou ainda pior, a mais
pura ganâ ncia, entã o a arte corre o risco de aviltamento, deixando
de seguir a lei do gosto mais refinado para sucumbir aos ditames do
mau gosto, isso para nã o dizer nada acerca da apreciaçã o artificial
que as pessoas consideram como a popular. Quando se dá isso, a
ordem foi completamente invertida.
O gênio artístico nã o determina o gosto da sociedade, mas é o gosto
da sociedade que deixa sua marca no gênio artístico que mercadeja
seus produtos em busca de fama ou dinheiro. Ora, nã o se pode negar
que, hoje, esse mal se infiltrou nesse meio. A arte é dispendiosa, os
artistas, raramente frugais, e a camisa-de-força da ordem e das
regras os oprimem. Uma vez que a grande multidã o nã o sacrifica
suas rendas para desfrutar da arte desses artistas, e dado que o
gosto artístico se torna cada vez menos ideal à medida que se
assemelha mais ao sensual, uma espécie de autodepreciaçã o se
instala na arte, o que, em ú ltima instâ ncia, leva a um conflito com a
moralidade, modéstia e pureza. Isso se dá nã o apenas com relaçã o à
escultura e pintura, mas também nã o raro com a cançã o, drama e
ficçã o. Consequentemente, uma espécie de impetuosidade invadiu a
arte, o que explica a presente inabilidade de se gerar um estilo
artístico singular na vida moderna.
Recentemente, o jornalista Claretie observou, apó s ter visitado em
primeira mã o a arte disposta na exibiçã o de Paris de 1900: “Falta
alma à arte moderna; falta potência má scula; falta a firmeza das
linhas”. Uma multidã o rompeu com o sublime e nã o se importa mais
com a religiã o ou arte. E há outra multidã o que abandonou
completamente a religiã o e agora busca o ideal na arte, no entanto,
nã o procura este ideal no sublime e no nobre, mas no estimulante,
no sensual e no deleitante, que anseia pela satisfaçã o imanente.
É necessá rio que o sacerdote da arte permaneça livre, acima e
independente face a tudo isso. Ele nã o foi chamado para satisfazer
este apetite desordenado, mas sim para conduzi-lo novamente à
senda da beleza genuína. Todavia, é exatamente isto que as pessoas
que atualmente vivem no templo da arte se recusam a fazer. As
pessoas nã o possuem cará ter, e os artistas se resignam. Esse mal
nã o é combatido por meio da rejeiçã o a toda forma de deleite que a
arte fornece.
Pelo contrá rio, sem o deleite artístico nossa vivência seria
pauperizada. Assim sendo, tal mal deve ser combatido pela
purificaçã o, uma purificaçã o que a arte alcançará somente pela
elevaçã o da pessoa humana além dos domínios da arte, na sua vida
religiosa e ética.
Se retornarmos, pois, à esfera artística sublime dentro dos muros do
templo da arte, entã o descobriremos ali a necessidade de que o
artista busque a beleza na natureza e no mundo oculto. Tal beleza
deve se encarnar na representaçã o engendrada pelo artista, e este,
por seu turno, deve trazer o belo à expressã o, objetificando-o com
seu cinzel ou pincel, com sua harpa ou cítara, na sua melodia ou
cançã o. Quando, portanto, a beleza é concebida numa nova forma
para o mundo de sua imaginaçã o, o artista deve se deleitar no belo
por si mesmo , adorando, pois, a gló ria de Deus e dando graças a Ele
por ter sido equipado e capacitado manualmente para a criaçã o
artística.
Os artistas que honram esses requisitos sã o artistas pela graça de
Deus, e, sozinhos, jamais hã o de se curvar perante a tirania da
soberania popular no â mbito da arte. Ora, podemos afirmar, quase
sem exceçã o, que as estrelas de primeira grandeza em cada campo
da arte se tornam gênios artísticos do mundo porque possuíam,
como seu princípio de vida mais profundo, essa recusa de
submissã o. Foi justamente desse modo que suas produçõ es
artísticas se tornaram uma posse duradoura da raça humana. Na
medida em que foram cativados pelo cinzel, pincel ou pena, eles
instalaram seus objetos artísticos nos museus, a fim de que o s
connoisseurs pudessem se deleitar neles e o devoto da arte pudesse
receber sua iniciaçã o. Como resultado, o retorno financeiro foi
imenso à medida que as naçõ es, competindo entre si por tais obras
seletas, ofereciam somas cada vez maiores.
Contudo, um risco nã o menos sério estava ligado à vida dentro das
paredes do templo da arte. Poderíamos designá -lo de “clericalizaçã o
da arte”. Ora, houve uma superestimaçã o do pró prio domínio
individual, um olhar superior e desdenhoso para com todas as á reas
inferiores, iguais e mesmo as mais sublimes da vida. A piedade, a
bondade e tudo o mais eram tidos como nada. A arte era a sumidade,
a ú nica coisa que importava; e os sacerdotes da arte, por sua vez,
eram os mais nobres de todos, julgando todas as coisas, e nã o sendo
julgados por ninguém. Eram, portanto, uma casta com talento,
afetados por todos os aspectos ruins da vida de casta, nã o negando
nada a si mesmos, demonstrando a todos, por meio de cada forma
possível, inclusive no modo de vestir e no estilo de cabelo, que eram
uma raça ú nica de seres de uma ordem superior, como se fossem
super-humanos [ übermenschen ], vivendo aquilo que os franceses
costumam chamar de “vida boêmia”. Junto a isso, veio a vaidade da
mú tua admiraçã o, atravessada pela amargura da inveja igualmente
mú tua. Alguns desejavam ver seu busto no Museu Real ainda no
período de sua vida. Outros ansiavam por se verem decorados com
faixas de premiaçõ es, umas sobrepostas à s outras. Mediante o
suporte mú tuo dos artistas, suas celebraçõ es logo se expandiram
para festivais nacionais. Graças a Deus, indivíduos de cará ter nobre
e gênios do mais refinado desenvolvimento ainda existem, todavia
eles já nã o dã o mais o tom.
Naturalmente, o mal que nos desafia nessa questã o em particular
ameaça menos o cantor do que o mú sico; ameaça menos o escultor
do que o pintor; e menos o mú sico do que o ator. No entanto, esse
perigo parece ser ainda mais real em meios aos poetas. Ora, ele afeta
mesmo o mundo de nossa prosa literá ria. Anteriormente, a
sensibilidade cristã de nossos artistas fornecia um antídoto. Nã o
obstante, devido ao fato de que as pessoas nos negam a
possibilidade de sermos simultaneamente artistas e piedosos, tal
combinaçã o surge cada vez menos, de forma que aquele que firma
sua fé em Cristo aparentemente se mostra incapaz de oferecer
qualquer tipo de resistência à quele mal extravagante que prevalece
no mundo artístico — um mal ímpio que Ele, de uma vez por todas,
conquistou pelo poder da cruz.
Contudo, disto nã o se pode inferir a explicaçã o do motivo pelo qual a
arte e seus objetos supostamente cessaram de atuar como
abençoadoras. O ministério da arte sempre continuou de forma
sacerdotal mediante seus produtos mais sublimes, ainda que seus
pró prios clérigos dificilmente estivessem ainda conscientes desse
seu ministério. 
Dentro da sociedade, aqueles que percebem e compreendem mais
servem, em cada domínio, aqueles que percebem e compreendem
menos. Ora, caso um homem sem recursos, que nã o possui sequer
um reló gio, tivesse que estar numa certa hora num determinado
lugar, e te perguntasse as horas, certamente que você, possuindo um
reló gio, lhe responderia. De semelhante modo, poucos sã o os
afortunados que podem traçar os movimentos celestiais, todavia,
eles compartilham conosco aquilo que contemplaram, colocando,
perante nó s, uma imagem tal que podemos usufruir daquilo que
seus olhos viram. Se um alguém que se vê impossibilitado de viajar a
um país estrangeiro, nã o obstante, pode ser transportado com sua
imaginaçã o para tais regiõ es, por meio dos relatos daqueles que as
visitaram.
O mesmo se aplica ao mundo da beleza. O artista possui um olhar
mais apurado — ele vê aquilo que nã o vemos. Ele possui uma
imaginaçã o mais fértil, e captura, no espelho de sua imaginaçã o, as
coisas que escapam à nossa atençã o. Assim, o artista vê mais, mais
profundamente e melhor; ele vê as coisas tal como se relacionam
entre si. Ele capta impressõ es harmô nicas, e, em seguida, as
objetifica de um modo que a natureza nã o é capaz de proporcionar
— uma forma que o artista deve apresentar a fim de nos permitir,
com nossa percepçã o mais fraca, mais vulgar e menos habituada,
usufruir de impressõ es similares.
Ora, o artista percebe, e o que percebe, ele captura em sua alma; na
alma, ele encarna suas impressõ es em sua imaginaçã o, e, a partir
desta, por sua vez, ele traz à tela, em linhas, formas e cores. A
reproduçã o é feita com tamanha humanidade e harmonia que, por
fim, percebemos e observamos na tela aquilo que jamais vimos na
pró pria natureza. Eis o fruto do esforço do artista em prol de seu
pró ximo. Eis o rito sacerdotal que ele presta a favor de nó s, os nã o-
iniciados, ainda que nã o seja nada mais do que mostrar uma cena da
natureza, uma cena da vida humana, ou um evento poderoso da
maneira que somente o especialista é capaz de perceber.
Naturalmente, esse rito sacerdotal alcança seu clímax quando o
artista dotado de imaginaçã o inicia um indivíduo com imaginaçã o
limitada, ou pelo menos com imaginaçã o criativa limitada, naquilo
que ele percebeu, criou e desfrutou em sua visã o artística. Neste
ponto, o que se alcança nã o é simplesmente aquilo que poderíamos
observar objetivamente, antes, é-nos dado perceber aquilo que foi
dissolvido somente no cadinho da imaginaçã o, para, entã o, renascer
desta mesma imaginaçã o cintilante numa nova mais sublime e mais
rica. Portanto, nessa forma de vida superior, o escultor, pintor ou
cantor observa tudo isso no campo de sua imaginaçã o, e aquilo que
ele produz no má rmore, na tela ou na sua cançã o é algo mais
sublime, mais rico, mais pleno e mais nobre. Por meio de sua criaçã o
artística, o artista nos conduz ao mundo do ideal, um mundo do qual,
de outra forma, jamais teríamos desfrutado.
O efeito do mú sico e do cantor vai ainda mais longe, pois, com eles, a
arte nos traz um mundo de vibraçõ es e movimentos que, mediante a
audiçã o, é colocado em contato com as vibraçõ es e movimento de
nossa pró pria alma. Nesse caso, de semelhante modo, a arte nã o
fornece nada mais que a aparência, todavia, ainda assim uma
emoçã o aparente que, caso corresponda de fato à emoçã o em nossa
alma, automaticamente adentra na realidade de nossas pró prias
vidas.
O louvor a Deus pode transbordar em nosso peito, mas de forma tal
que nos impossibilita a expirar a melodia e as letras da cançã o
através de nossos lá bios, algo que satisfaz o ímpeto de nossa alma.
Se mú sicos e, de semelhante modo, cantores conheceram esse
mesmo ímpeto, sendo, portanto, capazes de expressar esse ímpeto
no tom e na palavra, entã o é, de fato, glorioso quando descobrimos a
cançã o e melodia resultados disso. O mesmo é verdade quando
ouvimos um mú sico experiente tocando a cançã o, acompanhado de
uma bela voz — até aquele momento quando o tom e a voz fluem
para dentro de nossa alma e sentidos, de forma que desfrutamos
uma exaltaçã o deveras sublime, da qual, de outro modo, jamais
teríamos desfrutado.
Assim é com a dor que embrutece a alma, com o fausto que enobrece
o coraçã o, com a comiseraçã o que pesa sobre nó s por causa do
sofrimento alheio. O mú sico ou cantor traduz aquilo que nó s
mesmos sequer podemos balbuciar, e o faz com acordes tã o ricos e
abundantes que nossa alma se sente desprendida. Mesmo o artista
plá stico com seu pincel nos oferece um deleite semelhante. Se teu
coraçã o está repleto de ressentimento devido à injustiça cometida
contra seus companheiros tribais na Á frica do Sul, e você nã o é
capaz de expressar esse sentimento por si mesmo, entã o é
efetivamente prazeroso ver seu rancor contra a tirania inglesa ser
representada mediante uma imagem chocante. Esse efeito da arte se
dá independentemente da vaidade ou da presunçã o do artista. A
ú nica questã o relevante é se o coraçã o do artista ecoa aquilo que
nosso coraçã o deseja expressar — e se ele, de fato, captou esse
desejo.
Por essa razã o, a arte continua a manter sua atribuiçã o incorruptível
em solo sagrado, nã o simplesmente no que diz respeito ao culto, no
sentido de que toda arte deve lançar seu brilho no santuá rio.
Anteriormente, indicamos a impossibilidade disso, bem como os
princípios que contribuem para o fato de que, na medida em que as
pessoas cultuam mais e mais em espírito e em verdade, a expressã o
religiosa se vê livre do cará ter visual da arte.
No entanto, três artes ainda continuam a ser convocadas para a
adoraçã o. A arquitetura garante a harmonia que existe entre aquilo
que ocorre no santuá rio (isto é, o culto) e a forma manifesta deste
santuá rio, ou, dito de outra forma, a harmonia entre interior e
exterior. Mas também as artes da canção e da música também
servem ao culto, já que nã o há adoraçã o sem louvor, e este, por seu
turno, exige as melhores cançõ es e o acompanhamento instrumental
mais puro. Quando é para o nosso Deus, nada, a nã o ser o melhor,
pode nos satisfazer; contudo, evidentemente nã o ao ponto de se
permitir que a arquitetura, a mú sica e a cançã o dominem o sagrado.
Na igreja de Cristo, Ele é o Rei, e é necessá rio que tudo O sirva. Um
organista tocado seu instrumento apenas para si mesmo nã o
compreende, por conta disso, seu chamado; e o cantor que nã o
compõ e suas letras segundo a linha histó ria da tradiçã o cultual nã o
se santifica, mas peca, caso o som de sua voz sirva apenas para
estimulá -lo, e caso, ao conduzir o canto, nã o se entregue
completamente à adoraçã o de seu Senhor e Rei.
Nada é mais irrisó rio do que coristas cantando como se fossem
pá ssaros, e nã o pessoas; ou mú sicos que nã o sentem absolutamente
nada daquilo que estã o cantando, estando simplesmente perdidos
nas notas musicais. Mas, contanto que essa espécie de performance
artística seja evitada, a arte da mú sica e da cançã o permanecem
indispensá veis para nossa adoraçã o. Em Genebra, Calvino convergiu
todo esforço para que o canto congregacional soasse cerimonioso,
natural, animado e belo.
Todos que sã o suficientemente humildes hã o de admitir com
franqueza que ninguém, ao se assentar no santuá rio, possui o fervor
apropriado para a adoraçã o. Nesse momento, a arte da mú sica e do
canto devem ser os meios para içar a alma do adorador para fora do
ordiná rio e do mecâ nico em direçã o à paixã o e atividade. Canto e
melodia devem falar ao coraçã o humano na plenitude do culto de
uma forma que o estimule à adoraçã o. Tal objetivo nã o será
atingindo caso falte ao canto o ardor santo, e à mú sica, uma
vivacidade mais imponente.
Por isso, inteiramente à parte do chamado que a arte possui de dar
voz aos ideais cristã os fora do santuá rio, essa orientaçã o sacerdotal
da arte deve ser apreciada em relaçã o com a adoraçã o, contanto que
deseje verdadeiramente prestar esse serviço. Foi, portanto, um erro
crasso quando importamos essa inclinaçã o pesarosa da Escó cia, o
impulso de identificar como belo o feio dentro da igreja, e de banir
toda forma de beleza fora do templo. Em Genebra, Calvino analisou a
questã o de modo completamente diferente. O reformador chegou
mesmo a introduzir a composiçã o polifô nica. Ora, por instinto, a
religiã o é bela e busca o belo.
 
10. ADORAÇÃO
 
Enviou o rei Salomão mensageiros que de Tiro trouxessem Hirão. Era
este filho de uma mulher viúva, da tribo de Naftali, e fora seu pai um
homem de Tiro que trabalhava em bronze; Hirão era cheio de
sabedoria, e de entendimento, e de ciência para fazer toda obra de
bronze. Veio ter com o rei Salomão e fez toda a sua obra. (1Re 7.13-
14)
 
Resta somente mais uma questã o a discutirmos, a saber, a relevâ ncia da arte
para o Reino dos Céus. Ora, nã o estamos sugerindo que, dentre o rico material
relativo à disciplina da Estética, nã o há mais questõ es substanciais a serem
abordados — questõ es que, em si mesmas, sã o de extrema importâ ncia.
Contudo, neste espaço, nã o nos é possível sequer traçar um esboço de todo
esse material restante. Afinal de contas, uma vez que estamos analisando a
graça comum relacionada à arte, somente somos capazes de lidar com os
componentes da Estética que estã o relacionados com a graça comum, dentre
os quais definitivamente se inclui a relevâ ncia da arte para o Reino de Deus.
A graça comum forma um contraste com a graça particular, da qual advém o
Reino de Deus; todavia, o valor da graça comum somente é compreendido
corretamente caso a contemplemos e avaliemos de uma posiçã o mais elevada.
O estado, a família, o casamento, a educaçã o infantil, a sociedade e a ciência
foram, repetidas vezes, iluminados nã o apenas no que diz respeito à operaçã o
da graça comum, mas também no que concerne à associaçã o entre todos estes
segmentos da vida humana e a religiã o cristã . Este capítulo conclusivo busca
fazer o mesmo com relaçã o à arte.
Em primeiro lugar, portanto, descobrimos que a arte pode ser um
instrumento e uma ferramenta de duplo cará ter. Nesse sentido, é um
tremendo equívoco supor que a arte nã o é capaz de fazer o mal devido ao fato
de pertencer à s expressõ es ideais da vida.
A arte nã o somente pode causar danos descomunais, mas, de fato, pratica
vá rios males. Um nú mero considerá vel de amantes da arte dentre os remidos
do Senhor se recusam a admitir isso — atitude que se configura como uma
superficialidade culpá vel. É necessá rio nã o compreender errado essa questã o.
Nenhum indivíduo sério irá discordar que a arte, em sua deformaçã o e devido
ao pecado de seus profissionais, desafia inú meras vezes o ideal moral. Nã o é
preciso ser cristã o para reconhecer esse triste fato.
Na crítica de arte publicada em nossa impressa diá ria, as pessoas
continuamente notam, por exemplo, como o palco é constantemente
degradado por performances infames e pelo uso de uma linguagem deveras
chula. Isto é percebido tã o claramente que indivíduos sérios entre os amantes
da arte e que vivem inteiramente fora dos círculos cristã os se empenharam
diversas vezes para restaurar, se possível, a dignidade ao palco. O motivo pelo
qual esses esforços fracassaram sã o a relaçã o entre as finanças e o gosto
pú blico. As performances nos palcos sã o extremamente dispendiosas, e seus
custos sã o cobertos pelos subsídios e doaçõ es ou pela ampla venda de
entradas. Caso houvesse um pú blico suficientemente numeroso, com meios
considerá veis e efetivamente inclinados ao â mbito do ideal, a fim de honrar
uma performance nobre com assiduidade fiel, daí os negó cios poderiam
continuar. Todavia, nã o é o caso. O seguimento maior do pú blico que busca
entretenimento no palco nã o possui qualquer senso artístico mais elevado,
assistem à s peças com o intuito apenas de entreter-se e folgar, e somente se
contentam quando entretidos pela tolice ou quando sã o sensualmente
estimulados pela exposiçã o de atos moralmente covardes. A fim de atrair
multidõ es, a peça representada é forçada a prostituir a arte.
Ademais, a natureza da questã o exige que os atores que se dispõ em a
representar tais peças no palco abandonem grande parte de sua pudicícia, de
maneira que geralmente a comunidade de intérpretes nã o raro apresenta
costumes indecorosos. Contudo, tudo isso resulta do mau uso da arte, e nã o de
seu uso apropriado. A arte genuína se encontra perfeitamente equipada para
representar peças que encantem e enobreçam, das quais toda forma de
imoralidade é se encontra ausente.
Um mal diferente penetra ainda mais profundamente — um mal relacionado
mais intimamente à essência da pró pria arte. Nesse momento, voltemos nossa
atençã o para duas dimensõ es: a primeira é virtualmente insepará vel da arte
da atuaçã o, e a outra aparece entre escultores e pintores. Em relaçã o ao teatro,
nã o é possível alcançar uma arte de performance notá vel a nã o ser que o ator
compreenda que lhe é necessá rio imaginar a si mesmo completamente imerso
no cará ter e existência do personagem representado. Agora, imagine alguém
que, desde seus vinte anos até seus sessenta, nã o faz nada além de identificar
com vá rios personagens, primeiro este, depois aquele, de modo que tal
indivíduo sempre se mostra como uma pessoa, e jamais revela sua própria
pessoa. De repente, nos damos conta de que é inconcebível que esse sujeito
seja capaz de desenvolver sua pró pria personalidade.
Se todos seriamente concordam que a formaçã o da pró pria personalidade é
uma das maiores características de nobreza, entã o nã o podemos evitar a
seguinte pergunta: “É permissível que, para nosso entretenimento, todo um
grupo de pessoas seja entregue a uma existência assim impessoal?”.
Nã o menos sério é o segundo mal que mencionamos — um mal que escultores
e pintores frequentemente julgam como insepará vel de suas artes. Parte
considerá vel de seus estudos é dedicada ao modelo nu, o que significa que
contratam mulheres e homens jovens que permanecem de pé ou sentados
inteiramente despidos por horas em seus estú dios. É verdade que alguns
artistas utilizam suas pró prias esposas para isso, mas, via de regra, contratam
esses modelos nus mediante uma renumeraçã o. Assim, quem poderia negar
que, nesse caso, a arte busca seu êxito ao custo da modéstia e do pudor?
Poderíamos mencionar mais coisas, mas o que foi dito é suficiente para dar
um panorama de como, em mais de uma á rea, a arte vê a lei da modéstia e da
moralidade como inaplicá veis a si. Esse mal é demasiadamente sério e afeta a
arte em essência. A arte se julga tanto autorizada quanto obrigada a se
emancipar da lei moral, em prol de seu ideal artístico. Supostamente, a lei da
modéstia e do pudor nã o foi redigida para se aplicar à arte. A situaçã o chegou
a tal ponto que atualmente, nos museus, podemos nos deparar com vá rias
mulheres jovens, cercadas por vá rios observadores, que nã o se vexam em
pintar, abertamente e em plena vista, as partes íntimas da figura masculina. As
pessoas afirmam que a apreciaçã o artística refinada suprime a consciência
sensual; consequentemente, nã o se pode esperar ou exigir que a arte genuína
esteja preocupada com o pudor.
Ninguém há de negar que, formalmente, essa afirmaçã o contém certa verdade.
Ao suprimir a pessoalidade, em termos de beleza estritamente comum, à parte
dos matizes e cores, é possível esculpir e pintar figuras e formas de maneira
que excluam qualquer efeito sensual. Mas quem que, conhecendo algo da vida
dos estú dios dos artistas, irá argumentar que uma posiçã o assim tã o nobre é a
regra geral, e nã o irá , pelo contrá rio, queixar-se que a intençã o mais frequente
é tirar proveito daquilo que estimulam os sentidos? Desse modo, do ponto de
vista cristã o, o protesto contra essa pretensã o da arte (isto é, a ideia de que a
lei da modéstia nã o se aplica a ela) jamais será suficientemente vigoroso. A
arte nã o pode se escusar de seguir a lei de Deus, e, portanto, desgraça a si
mesma ao buscar tal liberdade. Qualquer coisa que nã o possa ser colocada
numa imagem ou numa tela sem exigir o sacrifício da modéstia ou a ofensa ao
pudor deve ser completamente evitada. A arte nã o é autô noma; é uma das
expressõ es mais refinadas da vida humana, e todas essas expressõ es da vida
estã o organicamente relacionadas e permanecem continuamente sob o
decreto de Deus.
Nã o obstante, tudo isso possui simplesmente um cará ter acidental, na medida
em que alguns tesouros da arte existem em relaçã o aos quais a questã o do
cará ter ou modéstia nã o se encontra em jogo. Quando afirmamos que a arte
como arte pode ser dominada por um duplo cará ter, tínhamos em mente algo
inteiramente diferente. Em todas as suas produçõ es, a arte é a portadora e o
instrumento de um espírito, de um â nimo, que dirige e direciona a arte numa
certa direçã o. Com isso, nã o estamos negando que, até certo ponto, é possível
conceber uma zona neutra para a arte, uma á rea na qual nenhuma orientaçã o
particular do espírito chega a ser expressa. Todavia, também somos prestos a
acrescentar que tal zona evapora sob uma aná lise mais casual, e a arte
dificilmente pode ascender a uma zona mais elevada antes que a expressã o
desta ou daquela orientaçã o do espírito se torne imediatamente evidente.
Até mesmo com relaçã o à arquitetura, todos notam o espírito inteiramente
diferente que nos impacta ao sermos subjugados pela poderosa abó boda
simbó lica no Panteã o em Roma quando comparado ao sentimento de elevaçã o
para uma esfera mais sublime, mais santa, ao se contemplar do exterior ou no
interior uma abó bada gó tica como a de Cologne. Cada estilo arquitetô nico
mais elevado encarna um conceito, seja a noçã o de autoridade e de
imperialismo, ou a ideia de liberdade, ou ainda o conceito do celestial, até
mesmo a ideia do utilitá rio, e muitos outros.
Entretanto, a orientaçã o do espírito se expressa muito mais poderosamente
na arte da escultura e na arte da pintura no que diz respeito aos temas
escolhidos e à maneira empregada para representá -los. Caso alguém compare
Rembrandt e Jan Steen, certamente ficará impressionado pelo contraste entre
a austeridade penetrante que emana da luz penumbrosa e a despreocupaçã o
folgazona. Deparamo-nos, pois, com a glorificaçã o do homem em sua forma,
em seu orgulho, em sua elegâ ncia, em sua luxú ria, ou percebemos o suave e
tenro efeito gerado pela comiseraçã o pela miséria humana capturada nas
cenas de amor e piedade.
Aquilo que se expressa poderosamente através das artes visuais adquire um
cará ter ainda mais sério por meio das artes da cançã o e da mú sica. Nelas, nã o
nos deparamos mais com o efeito visual que busca despertar nossas emoçõ es,
mas sentimos as vibraçõ es da voz e do instrumento que, ao penetrar nossos
ouvidos, se alojam em nossa alma, em nosso coraçã o, na emoçã o, vibraçõ es
que, em si mesmas, fazem com que nossas emoçõ es pulsem e afetem
diretamente nossa disposiçã o emocional. Nã o podemos mensurar o efeito
benéfico em escutar ao hino nacional holandês ou o efeito danoso em ouvir o
hino nacional francês. Mas algo é certo: o espírito de cada era encontra sua
pró pria interpretaçã o musical — que foi totalmente diferente nos dias da
Reforma quando comparada à melodia revolucioná ria cantada em fins do
século XVIII. Se compararmos Bach e Meyerbeer, perceberemos
imediatamente os espíritos totalmente diferentes que os perpassavam, um
contraste que chegou a influenciar mesmo as cançõ es populares.
Consequentemente, estamos perante uma perspectiva assustadoramente
superficial quando as pessoas imaginam que, contanto que a mú sica seja
composta por um mestre eminente, trata-se somente de mú sica, cujo efeito
sobre nó s é neutro. Na realidade, o oposto é verdadeiro: cada estilo de mú sica
e cada cançã o que possua significado nos comunicam um espírito, nos
atravessam com as ondas sonoras da escala musical e influenciam nosso
estado emocional.
Contudo, deve-se admitir que esse efeito em nosso humor nã o é
imediatamente aparente. Devido à natureza do caso, as sensaçõ es geradas em
nosso interior pela mú sica sã o simplesmente sensaçõ es superficiais. Diversas
pessoas experimentam as sensaçõ es de dor intensa ou de alegria extá tica; se
debatem com um sofrimento aterrador ou com heroísmo elevado, num
momento em que seus pró prios coraçõ es se encontram num estado deveras
habitual, de modo que a primeira coisa que fazem apó s escutarem tal mú sica é
buscar um pote de sorvete ou uma taça de champanhe. E, até certo ponto, as
coisas nã o podem ser diferentes disso.
Entretanto, nã o é verdade que essas sensaçõ es superficiais nã o continuam a
exercer efeito sobre nossas emoçõ es. A exposiçã o contínua a tais sensaçõ es
conduz nossas emoçõ es a uma condiçã o contraditó ria, debilita nossa
capacidade para as sensaçõ es genuínas e, em ú ltima aná lise, causa danos à
nossa vida emocional. As consequências disso nos evidenciam, de forma
persistente, que muitos faná ticos musicais que se entregaram irrefletidamente
à mú sica se tornaram vítimas de seu fanatismo. Seus sistemas nervosos foram
afetados, e apesar de seu talento essencial, degeneram na sua honra e
arriscam fracassar na vida. Essa constante oscilaçã o entre extremos distende
sua vida emocional por todas as direçõ es, fechando, pois, o caminho para um
desenvolvimento normal, regular e harmô nico de sua personalidade.
Portanto, devemos nos conscientizar mais claramente de que a relaçã o entre
nossa vida espiritual pessoal e nossa vida artística é um assunto da mais alta
importâ ncia. Como Paulo afirma, “os espíritos dos profetas estã o sujeitos aos
pró prios profetas” (1Co 14.32); do mesmo modo, no domínio da mú sica, na
verdade, no domínio da arte em geral, o gênio artístico deve estar sujeito à sua
personalidade, ou, de outro modo, os danos à sua vida pessoal nã o poderã o
ser evitados.
É possível se inebriar com a arte e, entã o, perder o controle sobre si mesmo.
As pessoas perdem o equilíbrio, e arte se torna um artefato que passam a
idolatrar. Com efeito, nã o podemos ter dú vida alguma de que o amor artístico
conduz muitos à idolatria. Para muitos, nã o há nada mais sublime do que a
arte — deve-se sacrificar tudo por ela, que é seu ideal mais elevado, o fim que
justifica todos os meios.
Todavia, além da ruptura da harmonia em nossa vida interior — uma ruptura
repetidamente causada pela arte —, o principal dano que ela pode causar, e de
fato o faz amiú de, é a direçã o errada pela qual, sutilmente, conduz nosso
espírito. A adoraçã o e a idolatria da arte se limitam a uns poucos faná ticos, a
uns poucos zelotes da arte. Em contraste, a atitude equivocada que a arte pode
suscitar afeta imperceptivelmente grandes massas e causa destruiçã o entre as
multidõ es. Isto se explica pelo fato de que a arte é projetada para ser um
instrumento para facilitar o acesso para o Espírito do SENHOR , para inspirar o
ideal santo e sublime e, desse modo, para glorificar a Deus, o Criador, em
todas as artes. Mas, apesar dessa intençã o, a arte também pode se tornar, por
outro lado, um instrumento para a entronizaçã o do espírito que habita nas
profundezas, e, assim, fazer com que suas produçõ es se voltem contra o
Espírito de Deus.
Naturalmente, como em outras á reas da vida, ambos esses espíritos nã o
assomam aos nossos olhos em oposiçã o nítida e absoluta entre si. Ora, o
espírito de oposiçã o ao Senhor inclui um espírito satâ nico, sarcá stico,
mundano — um espírito indiferente, narcisista e muito mais. De semelhante
modo, contra tudo isto, encontramos nã o apenas o Espírito Santo, mas um
espírito ideal que surge de vá rias formas, como um espírito de humanidade,
de retidã o, de consagraçã o, e assim por diante. Satã se opô s diretamente a
Cristo somente no deserto. Contudo, ainda que, nessa oposiçã o, nos
deparemos com suas mú ltiplas variedades em formas mais atenuadas, é
inegá vel que, em tudo isso, há duas linhas que estã o sempre correndo uma
contra a outra, de forma que, em ú ltima instâ ncia, essas manifestaçõ es
debilitadas e diluídas arrastam constantemente nossas emoçõ es humanas ora
em direçã o ao espírito das profundezas, ora para o Espírito celestial.
Somente quando percebemos isto mais claramente estaremos na posiçã o de
avaliar com exatidã o a relaçã o entre arte a graça particular, ou se preferir, o
Reino dos Céus. Num primeiro momento, a reaçã o contra a arte pagã
condenou, destruiu e sepultou virtualmente todas as produçõ es artísticas fora
do domínio do cristianismo. Depois disso, foi concedido o direito de existência
a um desenvolvimento completamente diferente da arte, um que dava
expressã o ao espírito da sociedade cristianizada.
Essa mudança nã o foi equilibrada, no entanto, é compreensível e, inicialmente,
inevitá vel. Na sua luta contra o mundo pagã o, a religiã o cristã , de tempos em
tempos, se deparou com a vida artística no templo e no fó rum.
Compreensivelmente, essas confrontaçõ es iniciais nã o poderiam ser
reconciliadas com a fé cristã . Ora, os cristã os encarnavam um espírito
diferente, que resistia ao espírito das profundezas que se encontra no interior
do homem. Consequentemente, o poderoso apoio que se encontrava nos
tesouros da antiguidade teve que ser arrancado desse espírito das
profundezas. De modo recíproco, foi necessá rio oferecer esse apoio ao espírito
da religiã o cristã como o ú nico meio para favorecer a criaçã o da arte cristã .
Todavia, foi, de fato, lamentá vel que essa arte recém-nascida fosse tã o
limitada e eclesiá stica.
Era demasiadamente limitada porque assumiu inicialmente uma posiçã o
hostil contra a arte clá ssica da Antiguidade; e deveras eclesiá stica porque os
recursos que propiciaram o florescimento da arte genuína estavam
disponíveis, num primeiro momento, apenas no â mago da vida da igreja. O
espírito da religiã o cristã ainda se concentrava na igreja e no seu clero, nã o
tendo, pois, penetrado de modo profundo na vida do povo, de modo que este
pudesse gerar, a partir de sua cultura, uma nova arte criativa. Naquele
momento, o novo mundo conceitual que a Igreja cristã trouxe como
contribuiçã o à sociedade havia adquirido uma forma suficientemente fixa
apenas no que diz respeito ao dogma e à liturgia, nã o tendo produzido
resultados independentes no domínio da arte.
A consequência disso foi que a suposiçã o subjacente da arte cristã
virtualmente refletiu o comprometimento da arte sacra em expressar sua
reaçã o contra a vida pagã , e assim o fez a partir de um posicionamento
espiritualista imoderado. De modo oposto, a natureza exclusiva dessa arte
cristã conferiu à adoraçã o eclesiá stica um cará ter cada vez mais visual. Ainda
que essa arte eclesiá stica tenha produzido um nú mero imenso de coisas
inegavelmente belas ao mesmo tempo em que desempenhava um serviço
valioso ao fornecer uma direçã o mais santificada à visã o ideal da vida, todavia,
podemos criticá -la devidamente por nã o ter sido capaz de prosseguir abrindo
espaço para um desenvolvimento ulterior. Afinal de contas, a arte vive da
graça comum, e, sem que as pessoas o notassem, a arte sacra foi capaz de
transportar a arte humana do domínio da graça comum para o domínio
privado da graça particular.
Isso explica porque a Reforma rompeu definitivamente com a arte eclesiá stica
e, a despeito da profunda apreciaçã o pela beleza que ela trouxe consigo, se
negou a honrá -la como a ú nica, genuína e completa expressã o artística
segundo os padrõ es cristã os. Duas questõ es contribuíram para isso: a
primeira, a forma mais espiritual de devoçã o e adoraçã o enfatizada pela
Reforma; e, em segundo lugar, a necessidade de uma expressã o mais natural e
equilibrada no domínio da arte.
O culto se tornou mais só brio, de forma que a escultura e a pintura artísticas
nã o mais adornavam a casa de Deus. As pessoas passaram a nã o contribuir
mais com seus recursos financeiros para a decoraçã o do templo e da igreja.
Eles buscavam praticar uma devoçã o de uma natureza mais interior,
enfatizando mais a beleza da alma do que a beleza que irradia do má rmore ou
da tela. Ademais, as pessoas anteriormente foram oprimidas por uma visã o de
vida que estampara o sinete eclesiá stico em toda a extensã o do domínio da
arte. De modo que, no período da Reforma, difundiu-se a noçã o de que a vida
humana, em todas as suas manifestaçõ es, constituía, por si mesma, uma busca
pela arte.
Nã o importa quã o intensamente as pessoas promovam o ideal da arte, elas
ainda desejam que essa busca pelo ideal permaneça com ambos os pés
fincados na vida real e prá tica. As pessoas se equivocavam com respeito à
natureza da vida humana comum — elas se inebriavam por um ideal que
pairava bem acima de nó s, um ideal que, em grande parte, perdeu contato com
a natureza e a vida. Assim, a vida humana multifacetada rompeu as grades
eclesiá sticas: ela começou, com uma energia cada vez mais intensa, a se
conscientizar de seu valor independente e de seu direito inaliená vel de
manifestaçã o independente. Desse modo, fora da igreja e livre do domínio
eclesiá stico, uma nova expressã o artística floresceu naquele momento.
Emergindo do classicismo da Grécia antiga sob a liderança do Renascimento e
de seu retorno à natureza, e devendo sua ligaçã o diretamente à cultura
popular da Reforma, essa nova expressã o artística abriu caminho para um
período inteiramente novo para o florescimento da arte.
Assim sendo, a arte novamente entrou no mercado aberto da vida, embora,
por meio disso, tenha se colocado mais uma vez perante a forte tentaçã o do
espírito das profundezas que continuamente nos importuna, em meio à nossa
vida pecaminosa, com relaçã o a cada manifestaçã o da existência humana. Mais
uma vez, a arte abriu suas asas em liberdade, mas esta, todavia, trouxe consigo
o perigo do abuso do talento artístico. A arte retornou ao territó rio da graça
comum, mas precisamente por isso se arriscou mais uma vez a ser infectada
pelo pecado impetuoso, para cuja restriçã o foi revelada a graça comum. A arte
se tornou mais ampla nessa perspectiva e maior no seu raio de açã o; todavia,
nesse seu grande desenvolvimento, ela rapidamente percebeu a consolidaçã o
dessa dualidade de espírito e direçã o, mencionada anteriormente, que
necessariamente surge de duas correntes dentro do espírito popular.
As pessoas saudaram a manifestaçã o artística da palingênese, que exibiu, fora
do domínio eclesiá stico, o poder do espírito cristã o. Porém, juntamente a isso,
elas viram um tipo de arte emergente que contornou parcialmente o contraste
entre o sagrado e o profano, mas que infelizmente conduziu a um
desenvolvimento artístico inspirado pelo espírito das profundezas.
Ora, isso é algo natural, e há de continuar neste contexto de pecado até o fim
dos tempos. Enquanto a mistura entre sagrado e profano persistir nesta terra,
e o reino da gló ria, isto é, o ideal mais sublime, nã o tiver se concretizado
ainda, a beleza nã o pode alcançar uma unidade e uma manifestaçã o
harmô nica. Dentro do mundo em que vivemos, um espírito multiforme exerce
domínio, de modo que nesse mundo espiritual, o espírito de Cristo e o espírito
das profundezas constituem forças opostas irreconciliá veis.
Se a arte fosse um corpo sistemá tico de ideias, poderíamos erigir um
invó lucro ao seu redor. Todavia, a arte nã o é isso — ela nã o surge a partir de
conceitos e é incapaz de interpretar ideias. Assim como as ideias assomam
independentemente de nosso raciocínio, do mesmo modo a arte surge do
mundo de nossa imaginaçã o sensitiva. Quando nosso espírito, atuando com a
ferramenta da imaginaçã o, alcança clareza e autoconsciência — nã o apenas
pessoalmente, mas também na comunhã o da vida em comunidade —, entã o
uma compulsã o interna o leva a se manifestar no universo da beleza, de forma
que aquilo que é experienciado interiormente se concretiza em algo acessível
aos ouvidos e olhos. 
Portanto, seria uma lacuna na vida do cristianismo caso, por estar
demasiadamente distante da natureza e em descaso total para com a vida
sensível da imaginaçã o, lhe faltasse o impulso para se manifestar no universo
da beleza, sob a inspiraçã o do espírito da palingênese, a fim de glorificar o
nome de Deus no domínio da arte. Essa lacuna pode ser satisfatoriamente
explicada pela nossa oposiçã o com relaçã o a vá rias coisas que sã o honradas
no mundo — todavia, é necessá rio reconhece-la como tal.
Graças ao bom Deus, no domínio da cançã o e da mú sica, nã o faltou ao
cristianismo seus sumos sacerdotes da arte, cujo pensamento procedeu do
Espírito Santo, e os quais, mediante a inspiraçã o do Espírito do Senhor,
tangeram a harpa. Dessa maneira, eles produziram evidência suficiente de
que, fora da esfera eclesiá stica, a arte que é batizada pelo Espírito de Cristo
pode florescer numa forma mais sublime, mais ideal. Entretanto, isso nã o nos
permite justificar a lacuna que existe na á rea das artes visuais.
Estas, embora se encontrem num nível mais baixo, nã o obstante, também
foram chamadas para honrar o Deus que nos convocou para uma visã o mais
exaltada da vida. É preciso somente a cautela para que as pessoas nã o
permitam que o antigo erro se infiltre nas artes visuais novamente, a saber,
afirmar que as artes plá sticas somente servem a um espírito excelso caso
represente cenas da Bíblia, ou que a arquitetura serve a um propó sito maior
apenas quando erige construçõ es para o culto. O espírito de Cristo enobrece o
todo da vida. Aquele que contempla a natureza como Cristo contemplou, que
possui, entã o, o talento artístico para transportar a impressã o recebida para
uma tela, nos ajudando assim a desfrutar dessa impressã o — este indivíduo
glorificou a Deus como um cristã o.
De semelhante modo, aquele que é capaz de compreender a vida humana na
riqueza de suas manifestaçõ es e na multiplicidade de suas adversidades da
forma como devem ser analisadas com a luz da Palavra de Deus, e que sabe
como transferir a impressã o recebida para o universo da beleza, este
compreendeu o Espírito do Senhor que habita na vida dos homens.
Ruskin estava parodiando quando nos conclamou a imitar Deus nos seis dias
da criaçã o, todavia, em suas convocaçõ es singulares se encontrava esta ideia, a
saber, que se Deus glorifica a Si mesmo criando, por meio de Seu Espírito
Santo, a luz dentre as trevas, as á guas em meio à terra seca, juntamente com
os reinos vegetal e animal, entã o toda forma de arte se empobrece e desfalca a
gló ria do nome de Deus caso separe a vida do sagrado da vida da natureza.
Com isto, conclui-se, pois, nossos estudos sobre a graça comum. Caso tais
estudos tenham sido capazes de lançar luz sobre vá rias questõ es profundas
concernentes à nossa vida cristã , à vista disso, por tal resultado, seja dada
honra somente a Ele, que nos concedeu oportunidade e força necessá rias.

SOBRE O AUTOR
 
 
 
Poucos realizaram tanto em á reas tã o diversas quanto o holandês Abraham
Kuyper (1837-1920). Quando faleceu, aos 82 anos, era o cidadã o mais famoso
em seu país. Como pastor, educador, autor, editor e político, foi incansá vel em
seu esforço para aplicar a fé cristã a todas as á reas da vida, conquistando
assim a estima de seus concidadã os e o respeito de muitos no mundo. Fundou
em 1880 a Free University of Amsterdam e serviu como Primeiro Ministro da
Holanda de 1901 a 1905.
 

[1]
Wisdom & Wonder [ Sabedoria e prodígios ] é uma traduçã o nova e completa de duas
seçõ es que, por engano, foram omitidas da primeira ediçã o da obra de Kuyper, disposta em
três volumes, sobre a graça comum, De gemeene gratie . Essas seçõ es foram publicadas pela
primeira vez como De gemeene gratie in wetenschap em kunst (Amsterdam: Hö kever &
Wormser, 1905), tendo sido incluídas posteriormente nos conjunto dos três volumes. [N.
do E.]
[2]
O relató rio sinó dico que Kuyper menciona foi escrito pelo seu amigo e colega de
trabalho Dr. Herman Bavinck, outro nome proeminente do reavivamento neocalvinista na
Holanda. Nesse relató rio, Bavinck desenvolve a ideia de ciência ( wetenschap ) como uma
criaçã o do Deus todo-poderoso.  Para o texto completo do relató rio, ver: “Rapport van prof.
dr. H. Bavinck over het rapport van deputaten voor de opleiding, voor zooveel handelend
over het verband der kerken tot de Vriije Universiteit”, in Acta der generale synode van de
Geformeerde Kerken in Nederland, gehouden te Middelburg, van 11 aug. tot. sept. 1896
(Leiden: D. Donner, 1897), 125. [N. do E.]
[3]
Aqui, a crítica de Kuyper nã o se direciona aos indivíduos ou igrejas que se encontram
dentro das tradiçõ es metodistas-wesleyanas, mas sim à quilo que ele descreve como “um
fruto nã o saudá vel” do movimento avivalista do início do século XIX, que estabeleceu uma
falsa tensã o entre a subjetividade e individualidade da vida espiritual e a unidade orgâ nica
de uma cosmovisã o cristã que se dedica à s questõ es sociais, econô micas, políticas e
culturais. [N. do E.]
[4]
Os Batavos eram uma antiga tribo germâ nica que habitava na regiã o da atual Holanda
(Nota do Editor).
[5]
Via de regra, nas traduçõ es portuguesas, temos, neste versículo, o termo “sabedoria” ao
invés de “conhecimento”. No entanto, visto que, no original inglês, a mesma palavra (
knowledge ) é utilizada tanto no título do capítulo quanto no versículo da epígrafe, optou-se
por mantê-las iguais, a fim de transmitir a intençã o de Kuyper. [N. de T.]
[6]
O autor utiliza o termo original no sentido de arquetípico, primal, aquilo que é
prototípico e fundamental para a concreçã o, o que existia potencialmente antes de vir à
atualidade. [N. de T.]
[7]
Louis Berkhof, em sua Teologia Sistemática , define do seguinte modo o conhecimento
arquetípico de Deus: “O conhecimento de Deus difere do dos homens em alguns pontos. É
arquetípico , o que significa que ele conhece o universo como ele existe em sua pró pria
ideia anterior a sua existência como realidade finita no tempo e no espaço; e esse
conhecimento nã o é obtido de fora, como o nosso. É um conhecimento caracterizado por
perfeição absoluta . Como tal, é intuitivo , antes que demonstrativo ou discursivo” (Louis
Berkhof, Teologia Sistemática , Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2012, p. 65). O conhecimento
ectípico, por sua vez, é concedido ao homem por meio da revelaçã o, de modo que se
configura como uma có pia do original, ou o reflexo parcial de um espelho, nã o guardando,
pois, a mesma clareza. O conhecimento de Deus por parte do homem provém sempre da
revelaçã o, da automanifestaçã o de Deus, na natureza (revelaçã o geral) e na Escritura
(revelaçã o específica). Certamente que nosso conhecimento é analó gico ( analogia fidei ),
mas podemos dizer que é também ectípico, já que é uma có pia (um reflexo) do
conhecimento arquetípico que Deus tem em Si mesmo, e que é manifesto na revelaçã o. [N.
de T.]
[8]
Em sua obra The Way of Salvation and Perfection [O caminho da salvaçã o e perfeiçã o], o
bispo e santo cató lico Afonso Maria de Ligó rio (1696-1787) diferenciou o saber sagrado e o
profano. Numa reflexã o intitulada “The Science of the Saints” [A ciência dos santos], ele
escreve: “Bendito é aquele que recebeu de Deus a ciência dos santos. Ora, a ciência dos
santos é conhecer o amor de Deus. Quantos no mundo sã o versados em literatura,
matemá tica, em línguas estrangeiras e antigas! Mas que benefícios lhes trarã o tudo isso, se
nã o conhecem o amor de Deus?”. A expressã o “ciência dos santos” também alude, de modo
geral, a Provérbios 9:10: “O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria, e o conhecimento
do Santo é prudência”. Ver Afonso de Ligó rio, The complete Works of St. Alphonsus de
Liguori , vol. 2, ed. Eugene Grimm (New York: Benzinger Bros, 1886), 186. [N. de E.]
[9]
Veja 1 Coríntios 13.8-12. [N. de E.]
[10]
Veja 2 Samuel 17.1-24. [N. de E.]
[11]
“Rand” é o termo africâ nder para recife. Trata-se, na verdade, de uma cadeia de
montanhas mais conhecida como Witwatersrand, a qual perpassa o territó rio sul-africano
na direçã o leste-oeste. No mundo econô mico, essas minas ocupam um papel primordial
devido ao fato de se constituírem como a fonte de 40% do ouro explorado no mundo. [N. de
T.]

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