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INTRODUÇÃ O
ESBOÇO DA CARTA DE PAULO A TITO
1. PRIMEIRO SERMÃ O: SERVO DA PALAVRA DE DEUS [Tito 1.1-4]
2. SEGUNDO SERMÃ O: PROMESSA ATUAL E ESPERANÇA FUTURA
[Tito 1.1-4]
3. TERCEIRO SERMÃ O: A FÉ COMUM [Tito 1.4, 5]
4. QUARTO SERMÃ O: LIDERANÇA NA IGREJA (1) [Tito 1.5, 6]
5. QUINTO SERMÃ O: A LIDERANÇA NA IGREJA (2) [Tito 1.7-9]
6. SEXTO SERMÃ O: MANTENDO A VERDADE [Tito 1.9-10]
7. SÉ TIMO SERMÃ O: O ADVERSÁ RIO DE DENTRO [Tito 1.10-12]
8. OITAVO SERMÃ O: SADIOS NA FÉ [Tito 1.12-15]
9. A TIRANIA DA TRADIÇÃ O [Tito 1.15, 16]
10. O CARÁ TER CRISTÃ O (1) [Tito 2.1-3]
11. O CARÁ TER CRISTÃ O (2) [Tito 2.3-5]
12. CARÁ TER CRISTÃ O (3) [Tito 2.6-13]
13. GRAÇA E GLÓ RIA [Tito 2.11-14]
14. O MANDATO DO PREGADOR [Tito 2.15-3.2]
15. DEUS É QUEM SALVA [Tito 3.3-5]
16. NOVA VIDA EM CRISTO [Tito 3.4-7]
17. PROVEITOSAMENTE OCUPADOS [Tt 3.8-15]
ORAÇÕ ES ANTES E DEPOIS DO SERMÃ O
SERMÕES SOBRE TITO
Joã o Calvino
 
Tradução
Valter Graciano Martins
 

Copyright © 2015 de Robert White


Ediçã o baseada na traduçã o inglesa publicada
pela The Banner of Truth Trust,
3 Murrayfield Road, Edinburgh EH12 6EL, UK.
 
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

EDITORA MONERGISMO
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato
Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br
 
1ª ediçã o, 2019
 
Traduçã o: Valter Graciano Martins
Revisã o: Felipe Sabino de Araú jo Neto e Fabrício Tavares de Moraes
Capa: Bá rbara Lima Vasconcelos
PROIBIDA A REPRODUÇÃ O POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕ ES, COM INDICAÇÃ O DA
FONTE.

 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Calvino, Joã o
Sermõ es sobre Tito / Joã o Calvino, traduçã o Valter Graciano Martins — Brasília, DF:
Editora Monergismo, 2019.
Título original: Sermons on Titus
1. Sermõ es — Joã o Calvino 2. Novo Testamento — Tito 3. Teologia reformada I. Título
CDD 230

 
 
 
 

Sumá rio
INTRODUÇÃ O
ESBOÇO DA CARTA DE PAULO A TITO
1. PRIMEIRO SERMÃ O: SERVO DA PALAVRA DE DEUS [Tito 1.1-4]
2. SEGUNDO SERMÃ O: PROMESSA ATUAL E ESPERANÇA FUTURA [Tito 1.1-4]
3. TERCEIRO SERMÃ O: A FÉ COMUM [Tito 1.4, 5]
4. QUARTO SERMÃ O: LIDERANÇA NA IGREJA (1) [Tito 1.5, 6]
5. QUINTO SERMÃ O: A LIDERANÇA NA IGREJA (2) [Tito 1.7-9]
6. SEXTO SERMÃ O: MANTENDO A VERDADE [Tito 1.9-10]
7. SÉ TIMO SERMÃ O: O ADVERSÁ RIO DE DENTRO [Tito 1.10-12]
8. OITAVO SERMÃ O: SADIOS NA FÉ [Tito 1.12-15]
9. A TIRANIA DA TRADIÇÃ O [Tito 1.15, 16]
10. O CARÁ TER CRISTÃ O (1) [Tito 2.1-3]
11. O CARÁ TER CRISTÃ O (2) [Tito 2.3-5]
12. CARÁ TER CRISTÃ O (3) [Tito 2.6-13]
13. GRAÇA E GLÓ RIA [Tito 2.11-14]
14. O MANDATO DO PREGADOR [Tito 2.15-3.2]
15. DEUS É QUEM SALVA [Tito 3.3-5]
16. NOVA VIDA EM CRISTO [Tito 3.4-7]
17. PROVEITOSAMENTE OCUPADOS [Tt 3.8-15]
ORAÇÕ ES ANTES E DEPOIS DO SERMÃ O

 
INTRODUÇÃO
As três cartas que, juntas, constituem as Epístolas Pastorais de Paulo
— 1 e 2 Timó teo e Tito — pertencem ao final da vida do apó stolo.
Diferentemente das outras cartas de Paulo, que sã o endereçadas
coletivamente a uma igreja cristã , estas sã o endereçadas
pessoalmente a homens a quem ele considera colegas íntimos e de
plena confiança: Timó teo em É feso e Tito em Creta. A despeito das
aparências, as cartas nã o sã o um projeto de reforma nem um
manual de governo eclesiá stico. As incumbências de Paulo a
Timó teo sã o específicas: refutar os falsos mestres que se encontram
ativos em É feso (1Tm 1.3); manter a sã doutrina e, se possível,
juntar-se ao apó stolo em Roma (2Tm 1.13; 4.9). Igualmente
específica é sua ordem a Tito: completar a obra começada em Creta,
estabelecendo em cada cidade presbíteros que sejam, a um só
tempo, homens íntegros e mestres eficientes, capazes de coibir a
influência de certos oponentes judeus cristã os, “porque existem
muitos insubordinados, palradores frívolos e enganadores,
especialmente os da circuncisã o” (Tt 1.5-10).
No que concerne à liderança irrepreensível, ao ensino fiel e ao bem-
estar espiritual dos membros da igreja, a carta a Tito soa uma nota
fortemente ética e evangelística em sua ênfase sobre o viver íntegro,
pelo qual Deus é honrado e os estranhos sã o atraídos à fé. A fé que
se expressa publicamente em culto a Deus também se expressa
publicamente em obras excelentes, pelas quais se entendem nã o
simplesmente os bons feitos, mas visível e atrativamente as boas
açõ es (Tt 2.7, 14; 3.8, 14). A partir dessas açõ es os incrédulos podem
receber um vislumbre do poder do evangelho e de sua graça,
libertando-os dos maus atos e capacitando os crentes a viver, “no
presente século, sensata, justa e piedosamente” (Tt 2.12). [1]
Portanto, em seus sermõ es sobre Tito, Calvino ressalta
consistentemente a centralidade da Palavra revelada de Deus na
vida coletiva da igreja e a necessidade de que cada crente se
conforme ao padrã o divino de santidade, integridade e pureza. Uma
vida saudá vel é, pela obra graciosa do Espírito, tanto a consequência
quanto o acompanhamento do ensino saudá vel. Entretanto, a
inconsistência de conduta nã o é fá cil de evitar, e o mundo com razã o
condenará os cristã os que dizem uma coisa e fazem outra.
Transformaçã o à semelhança de Cristo é uma obra da vida inteira.
Arrolados na escola de Deus, os crentes sã o instados a tirar proveito
de cada dia, crescendo nã o só em conhecimento, mas também em
amor, e nã o somente para proveito pró prio, mas para o benefício de
seus semelhantes, aos quais estamos jungidos pelos laços de
humanidade e fraternidade. Desta forma, a igreja é fortalecida, seu
testemunho é confirmado e se dá prova tangível de que ela é o que
alega ser — a comunidade dos redimidos de Deus sobre a terra.
Dada a importâ ncia que Calvino vinculou aos pastores e presbíteros
em seu conceito de ministério, é inevitá vel que o pregador insista
longamente nas funçõ es e qualidades do prestre-evesque , o
presbítero-supervisor, como delineado por Paulo, e que ele
comentaria de um modo á cido sobre a indiferença de Roma para
com o ensino dos apó stolos. Ecos da cena genebrina contemporâ nea
podem ser encontrados na sensível defesa que o Reformador faz da
disciplina eclesiá stica, em suas advertências contra os falsos
mestres (onde ele tem em mente particularmente Serveto), e sua
defesa em prol da generosa hospitalidade que deve ser estendida
aos refugiados religiosos para os quais Genebra representava um
precioso lugar de asilo.
Um lampejo da compreensã o que o pró prio Calvino tinha de seu
papel como arauto do evangelho é fornecido por uma série de
passagens sobre “nó s”, onde a atençã o é dirigida nã o ao universal —
“nó s, humanos”; “nó s, cristã os”; “nó s, pecadores” — mas ao
particular: “nó s, pregadores”; “nó s, ministros da Palavra de Deus”.
Acima de tudo, os sermõ es sobre Tito revelam o coraçã o do pastor
Calvino, o pastor do rebanho de Deus, cujos membros sã o nutridos
pela Palavra da verdade, feitos um com Cristo pelo poder
regenerador do Espírito, adotados na família de Deus, cuja promessa
da herança celestial nã o pode falhar. Embora o pregador recuse-se a
aprovar a divisã o tradicional entre clérigos e leigos, ele nã o é um
nivelador. É verdade que, pela graça, todos somos filhos de Deus e
do mesmo rol de membros de Cristo. Cada um de nó s é guarda de
nossos irmã os. Todavia, nem Paulo, em sua carta a Tito, nem
Calvino, em seus sermõ es, falam de um presbiterado ao qual todos
os crentes podem aspirar indiscriminadamente. O padrã o de Deus
para a igreja é bem ordenado, onde há os que ensinam e os que sã o
ensinados, cada um segundo sua vocaçã o. Portanto, os que ensinam
fielmente lideram; e os demais recebem a Palavra, nã o
passivamente, mas com reverência e açã o de graças.
Nã o obstante, o pastorado nã o é uma casta privilegiada. O presbítero
nã o é mais que um administrador na casa de Deus, conduzindo-a
sob o olhar vigilante de seu Senhor no céu, a quem ele tem de
sempre prestar contas. Seu modelo nã o é o sacerdote sacrificador ou
o prelado moná rquico da Igreja Cató lica Romana, e sim Cristo, o
Servo obediente. Sua liderança é como a de alguém cuja vida e
doutrina sã o julgadas, respectivamente, pelos homens e por Deus, e
cuja conduta no pú lpito e fora dele tem de ser exemplar. Como
mestre, ele mesmo tem de ser ensinado constantemente; deve
confiar em seu pró prio juízo sem o auxílio de ninguém, buscar
conselhos mais sá bios e atentar para as advertências bem
intencionadas. A presunçã o, nã o menos que a cupidez, a ambiçã o e a
imoralidade, lhe constituem em morte.
***
A primeira obra de Calvino sobre as Epístolas Pastorais tomou a
forma de um comentá rio sobre 1 e 2 Timó teo, publicada em 1548.
Um comentá rio separado sobre Tito apareceu no início de 1550. [2]
Somente em setembro de 1554 é que o Reformador, no curso de
seus deveres regulares de pregaçã o, em Genebra, começou a expor a
primeira das Epístolas Pastorais, seguida pela segunda em abril de
1555 e pela terceira — Tito — em agosto daquele ano. Ele dedicou
dezessete sermõ es à ú ltima epístola mencionada, pregando
normalmente duas vezes a cada domingo sobre os versículos
consecutivos e concluindo a série em meados de outubro de 1555.
[3]
Anotadas taquigraficamente por Denis Raguenier e transcritas
subsequentemente, as três séries de sermõ es foram publicadas
juntas em um só volume pelo tipó grafo genebrino Conrad Badius em
1561, sob o título Sermons de Iean Calvin sur les deux Epistres S. Paul
à Timothée et sur l’Epistre à Tite . [4] A obra foi habilmente traduzida
para o inglês por Laurence Tomson e impressa em Londres por G.
Bishop e T. Woodcocke em 1579. Uma versã o grandemente
abreviada e modernizada da traduçã o de Tomson foi publicada em
Nova York em 1830, e uma reimpressã o fac-similar do volume
inteiro foi publicada por The Banner of Truth Trust em 1983.
A traduçã o atual dos Sermões sobre a Carta a Tito foi feita
recentemente com base no francês de 1561. É baseada no texto
preparado por G. Baum, E. Cunitz e E. Reuss para sua monumental
ediçã o das obras reunidas de Calvino. No entanto, a leitura foi
totalmente cotejada com a có pia da ediçã o de Badius fornecida pela
Bibliothèque de Genève. Os títulos dos sermõ es sã o de minha lavra.
A pontuaçã o foi modernizada e foram introduzidas divisõ es em
pará grafos onde no original nã o aparece nenhuma.
Com frequência, o pregador cita a Escritura de memó ria ou ainda se
contenta em parafraseá -la, nem sempre da mesma forma; em cada
caso, eu traduzi o texto conforme ele o cita. As referências bíblicas,
que aparecem nas margens do texto de Calvino, sã o identificadas à
medida que ocorrem. Em alguns lugares, elas foram corrigidas e
referências ausentes foram adicionadas. Um pequeno nú mero de
notas explicativas também foram incluídas. Calvino começava seus
sermõ es com uma oraçã o para iluminaçã o e os concluía com uma
breve oraçã o de improviso, que por sua vez levava a uma longa
oraçã o de intercessã o cuja forma, ao menos para o culto matutino de
domingo, era afixada pela liturgia genebrina de 1542. Eu restaurei a
oraçã o de improviso que os editores da CO omitiram, e incluí tanto a
oraçã o por iluminaçã o como a oraçã o intercessó ria no final deste
volume. Também está incluso o “Esboço da Carta de Paulo a Tito”,
que prefaciou a ediçã o de 1561 e que Calvino já havia acrescentado
a seu Comentário a Tito (1550). Em deferência à s normas da
polêmica do século XVI, nã o tentei suavizar as farpas dirigidas por
Calvino ou à Igreja Cató lica Romana — principalmente à sua
hierarquia — ou a outros oponentes que, visando a ridicularizar o
Reformador, algumas vezes podiam ser encontrados na pró pria
Genebra.
É -me um grande prazer expressar minha gratidã o aos curadores de
The Banner of Truth por concordarem em publicar este volume, e
minha gratidã o ao editor, Jonathan Watson, cujo auxílio,
encorajamento e sá bio conselho têm sido, como sempre, de valor
imensurá vel para mim.
 
— Robert White
Sydney, julho de 2015

ESBOÇO DA CARTA DE PAULO A TITO


Paulo, tendo apenas lançado os fundamentos de uma igreja em Creta
e se vendo obrigado a mudar-se para outros lugares — nã o sendo
pastor de uma ilha, mas apó stolo aos gentios —, confiara a Tito, na
qualidade de evangelista, a tarefa de continuar a obra começada.
Pode-se ver facilmente, à luz da carta, que, logo apó s a partida de
Paulo, Sataná s se empenhou nã o só em subverter o governo e a
ordem da igreja, mas também em corromper seu ensino. Havia
pessoas ambiciosas que buscavam promover-se como mestres na
igreja e ser tidos entre seus pastores. Uma vez que Tito recusou-se a
partilhar de seus propó sitos perversos, promoveram-se contra ele
falató rios de um tipo calunioso e derrogató rio entre alguns grupos.
Havia também judeus que, com o pretexto de sustentar a lei de
Moisés, praticavam toda sorte de inconveniência. Essas pessoas
encontraram um auditó rio disposto e nã o se fez nenhuma tentativa
para dissimular o apoio deles.
Portanto, o alvo de Paulo, ao escrever como o fez, era conferir a Tito
reconhecimento e autoridade para que ele suportasse melhor um
fardo tã o pesado do ofício. Pois nã o há dú vida de que havia alguns
que achassem fá cil menosprezá -lo, como se ele nã o tivesse mais
condiçã o do que qualquer outro ministro ou pastor. É também
possível que aqui e ali se ouvissem queixas de que ele estava
empreendendo demais e assim assumia mais autoridade do que lhe
era pró prio; porque ele nã o devia admitir ninguém como pastor até
que pessoalmente examinasse e testasse o candidato.
E assim podemos inferir que Paulo nã o escreveu tanto em razã o do
pró prio Tito, mas por causa das congregaçõ es cretenses em geral. É
imprová vel que em sua carta ele pretendesse reprovar Tito pela
prontidã o em promover pessoas que eram indignas de ser
supervisores e pastores; nem desejasse instruí-lo como um
principiante ou alguém totalmente novato para o ofício, com o fim
de mostrar-lhe como deveria instruir seu povo. Visto, porém, que
Tito nã o era tido na devida estima e respeito, aqui Paulo lhe outorga
autoridade para designar ministros e fazer o que é necessá rio para o
bom governo da igreja, como ele pró prio teria feito se estivesse
presente. Pois, de igual modo, visto que muitos teriam preferido
outro tipo de ensino e estilo de instruçã o do que aqueles
empregados por Tito, Paulo deixa claro que ele a nenhum aprova
senã o estes e rejeita todos os demais e exorta Tito a continuar como
vem fazendo desde o início.
Daí ele discutir antes de tudo que tipo de homens devem ser
escolhidos como ministros. Entre os demais dons que ele requer de
um ministro, Paulo deseja que seja alguém bem versado na sã
doutrina e de tal modo equipado com ela, que repila os adversá rios.
Nesta conexã o, ele menciona um nú mero de falhas entre os cristã os,
mas repreende principalmente os judeus que buscavam santidade
em distinçõ es sobre alimento e em outras questõ es externas. Com o
intuito de rebater suas tolices, ele descreve as prá ticas que
realmente constituem a piedade e o viver cristã o. Para corroborar
seu ensino, ele dá uma lista detalhada de qual é o dever de alguém
em conformidade com sua vocaçã o. Para que as pessoas nã o sejam
importunadas por ouvir a mesma coisa repetidas vezes, ele ordena a
Tito de maneira explícita que enfatize este ponto cuidadosa e
constantemente, e explica que este é o alvo da redençã o e da
salvaçã o que Cristo já conquistou para nó s. Se algum indivíduo
confuso ou obstinado resistir e recusar-se a se submeter, ele lhe diz
que nada tem a ver com o tal.
Vemos, portanto, que o ú nico propó sito da carta de Paulo era
defender a causa de Tito e dar-lhe toda assistência enquanto este
estava comprometido com a obra do Senhor.

1. PRIMEIRO SERMÃO: SERVO DA PALAVRA DE DEUS [Tito 1.1-


4]
Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que
é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a
piedade, na esperança da vida eterna que o Deus que não pode mentir
prometeu antes dos tempos eternos e, em tempos devidos, manifestou
a sua palavra mediante a pregação que me foi confiada por mandato
de Deus, nosso Salvador, a Tito, verdadeiro filho, segundo a fé comum,
graça e paz, da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Salvador.
 
Nã o é a primeira vez que tantos homens ímpios, reivindicando
pertencer à congregaçã o cristã , têm se esforçado com o má ximo de
seu empenho para subverter a ordem da igreja e obstruir o curso de
tudo o que é bom e santo. Têm feito tudo o que podem para
corromper todas as coisas. Sabemos que uma igreja nã o pode
manter-se sadia sem pastores bons e fiéis. Deus forneceu uma
norma boa e segura para sua escolha e designaçã o no ofício. Nã o
obstante, muitos homens têm tentado promover-se através de
ambiçã o e por meios corruptos. Mesmo no período dos apó stolos,
quando o evangelho florescia em toda sua pureza, este mal já
prevalecia, como podemos ver. Por contraste, se andarmos em
obediência a Deus, a verdade na qual somos instruídos terá
autoridade sobre nó s, e os que sã o encarregados dessa tarefa serã o
ouvidos com respeito. Pois se os pastores forem desprezados, a
Palavra também será desprezada e calcada sob os pés.
Ora, é ó bvio que já nos dias de Paulo havia muito desafeto e
protesto. Falsos mestres eram prontamente tolerados e bem
recebidos, embora os fardos que impunham fossem pesados e
severos. No entanto, quando os homens que buscavam servir a Deus
lealmente faziam o que lhes era requerido, de imediato apareciam
facçõ es, formavam-se panelas e surgiam conflitos com o intuito de
subvertê-los e assenhorear-se deles. É isso que Paulo tinha em
mente quando escreveu esta epístola. Seu propó sito era castigar os
que desejavam prejudicar a ordem e o bom governo da igreja, que se
recusavam a submeter-se ao jugo ou receber mansamente e com
deferência a Palavra que lhes era anunciada. Além de tudo isso, visto
que sempre houve pessoas levianas que preferiam dar rédeas soltas
à sua curiosidade, em vez de edificar mediante a sã doutrina, Paulo
descarta todas as frivolidades infrutíferas, mostrando que, se
mantivermos o ensino que é de acordo com Deus, devemos
depositar nossa confiança nele e deixar-nos encorajar a invocá -lo
com a devida confiança. Além do mais, para que nossa vida seja
devidamente ordenada, temos de mostrar, por nossas açõ es, que
nossa herança está no céu e que devemos passar por este mundo
sem nos determos nele.
Portanto, essa é a meta de Paulo ao escrever esta carta.
Consideremos, pois, se tais admoestaçõ es nã o se aplicam também
aos nossos pró prios tempos e se nã o nos sã o muitíssimo
proveitosas. Pois que tipo de pregadores podemos ter hoje se
dermos importâ ncia à opiniã o popular? Quã o ardiloso tem sido
Sataná s em introduzir homens indignos para trazer desdém e
opró brio à Palavra de Deus! Há muitos cujo desejo é propor como
pastores e ministros da Palavra indivíduos que ou sã o de uma vida
dissoluta ou sã o destituídos de zelo, que amam meramente tagarelar
e que até zombam de Deus. Preferem uma taverna a qualquer outra
coisa!
Por que as pessoas preferem tais coisas? Porque percebem que tais
pregadores sã o facilmente amordaçados; que o que dizem pode ser
ridicularizado; inclusive podem ser silenciados ou corrigidos num
instante. Aliá s, poderiam trabalhar apenas para receber ordens
como asnos e ser intimados à repreensã o: “Quem você pensa ser?
Você nem sabe que é afortunado em ocupar a posiçã o que ocupa.
Você nã o serve nem mesmo para ser guardador de porcos ou
vaqueiro, mas aqui você é um pastor!”.
Portanto, há muitas pessoas malignas que procuram pregadores que
se ajustam ao gosto delas. Vemos isso acontecer tanto agora como
no passado. Quisera Deus tais coisas nã o fossem tã o comuns!
Portanto, mais que qualquer outra coisa, temos de atentar bem para
a advertência de Paulo, de modo a termos pessoas competentes para
ensinar e que cumpram fielmente seu dever. E quando pregarem
como pretendem fazer, que sua vida seja compatível com sua
pregaçã o; que esta confirme a doutrina que proclamam e deem
visível prova dela. Além do mais, hoje vemos muitos cujos ouvidos
sã o tã o delicados que, tã o logo um tênue nervo é tocado, se irritam,
se enfurecem e demandam uma completa mudança quando a
pregaçã o nã o lhes sai ao gosto. Raramente um em cem está disposto
a calmamente obedecer ao santo ensino. Pensem naqueles que
alegam ruidosamente ser crentes verdadeiros. Se alguém tenta
instruí-los, mas nã o lhes permite continuar em sua vida pecaminosa,
imediatamente se tornam irritados ou seguem de mal a pior e
terminam inclusive perdendo o gosto e prazer pela verdade de Deus.
Outros ficam embaraçados e desafiam tudo, e se contentam com as
coisas que causam tortura e ruína, contanto que sejam deixados
livres para causar seus danos.
Assim, quando vemos estas coisas, certifiquemo-nos de que o
Espírito Santo já fez justa provisã o para tais males e já nos supriu
com um remédio, de modo que cada um de nó s obedeça
serenamente e com toda humildade à Palavra de Deus. E quando
virmos entrar em cena agitadores e escarnecedores, com o intuito
de atazanar-nos e atormentar-nos, fujamos deles como de uma
praga e procuremos dar cabo deles. Se quisermos que Deus nos
ajude a reter a posse do tesouro de seu evangelho, de nossa parte
nã o tomemos partido com os que desejam ver tudo arruinado, o
rebanho de Cristo disperso e a casa de Deus destruída. Por fim,
como hoje o povo de Deus está tã o consumido por estú pida
curiosidade como sempre, sejamos cautelosos em evocar o que aqui
Paulo nos ensina: quando lemos a Palavra de Deus e quando vamos
à igreja, que nosso ú nico alvo seja ser instruídos na sã doutrina —
aquela doutrina que promove nossa salvaçã o, de modo que
cresçamos continuamente na fé de nosso Senhor Jesus Cristo, tendo
certeza da salvaçã o que ele conquistou para nó s e confiando na
graça que ele já nos comprou. Que sejamos aptos a invocar a Deus
com pureza e sem pretexto e olhemos sempre para a herança
celestial; conheçamos a vontade de Deus, de modo que nã o
vacilemos nem duvidemos, mas prossigamos em frente, uma vez que
somos aprovados por Deus e uma vez que nos apegamos tã o
somente à sua Palavra.
Recordemos, pois, que esta carta nos é tã o necessá ria hoje como
sempre o foi. Passemos agora ao que a carta contém.
Em primeiro lugar, Paulo se autodenomina servo de Deus e apóstolo
de Jesus Cristo. Ora, o termo “servo”, neste texto, comunica nã o
apenas a ideia de submissã o. Naturalmente, todos nó s devemos
engajar-nos no serviço de Deus, pois ele já se agradou de aceitar-
nos. Aqui, Paulo enfatiza a natureza especial da tarefa que lhe foi
confiada. E, assim, há diferença entre aquele que vive em “sujeiçã o”
e aquele que é “servo”. Todo povo vive sujeito a um governo ou à
liderança daqueles sob os quais ele vive, os portadores de um ofício
que exercem uma funçã o pú blica. Assim, Paulo nã o era apenas um
cristã o a serviço de Deus, mas também era um mestre que tinha uma
responsabilidade particular e uma posiçã o na igreja. Ele descreve tal
responsabilidade denominando-se “apó stolo de Jesus Cristo”.
Sabemos que Deus enviou seu Filho sob a condiçã o de que somente
ele exercesse domínio sobre nó s. Ele nã o vive pessoalmente entre
nó s, mas escolheu aqueles a quem ele bem quis para declararem sua
Palavra e o representarem em sua ausência. Isso é explicado mais
plenamente no quarto capítulo de Efésios: “Aquele que desceu é
também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher
todas as coisas. E ele mesmo concedeu uns para apó stolos, outros
para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e
mestres” (Ef 4.10, 11). Ele nã o abandonou os seus, mas assim
estabeleceu um governo para que nã o cesse de governar-nos,
embora, no corpo, ele esteja ausente.
Portanto, o propó sito de Paulo é claro. Também vemos que ele nã o
escreveu exclusivamente para um homem, mas para que seu ensino
visasse a todo o povo cristã o. Pois havia muitos homens malignos,
como já pontuamos, que rejeitavam a liderança de Tito. Desse modo,
Paulo serve aqui como um tipo de escudo e reforça com sua pró pria
autoridade aquele que está sendo atacado. Consequentemente, nã o
foi por causa de Tito que ele reivindica para si esses títulos
honoríficos. Isso teria sido sem sentido. Tito o conhecia como pai,
visto que Paulo tinha boas razõ es para chamá -lo “verdadeiro filho”;
e Tito também sabia por quem Paulo fora enviado. Assim, Paulo nã o
tinha necessidade de causar impressã o em alguém que já o tinha em
má ximo respeito. Visto, porém, que o povo de Creta nã o queria ser
governado por Tito, Paulo nã o se lhes apresenta como uma pessoa
avulsa, mas como alguém enviado por Deus e por nosso Senhor
Jesus Cristo.
Entretanto, a fim de dar mais substâ ncia à s suas palavras, Paulo
acrescenta para promover a fé que é dos eleitos de Deus . E entã o
explica o que é esta fé: o pleno conhecimento da verdade , o que nã o é
uma coisa simples, mas segundo a piedade [ou no temor de Deus]; e
é na esperança da vida eterna .
Aqui podemos ver o que o apostolado de Paulo envolve. Nã o é uma
honra fú til ou algum título etéreo, mas uma solene incumbência de
declarar a Palavra de Deus, a fim de que o povo seja edificado em
toda a bondade, a salvaçã o que nos é prometida seja proclamada e
os crentes sejam levados a participar dela. Em suma, esse é o
significado desta passagem. No entanto, a entenderemos melhor se
aplicarmos este ensino a nó s mesmos. Sempre houve dois extremos
no que diz respeito à recepçã o da Palavra. Ou aceitamos os que a
proclamam ou os rejeitamos. Muitos têm sido motivados pela
ignorâ ncia ou, melhor, pela estupidez, de modo que nã o podem
diferenciar o bem do mal, mas se contentam meramente em ouvir
palavras vagas e afetadas. Deste modo, a plebe cresce sem cultura,
como é o caso hoje no papado. Os que sã o apó statas na igreja e em
seu frenesi rejeitam a Palavra de Deus, nã o obstante alegam que de
boa vontade se submetem à santa mã e igreja, e em nome da
humildade deflagram guerra, à semelhança de bestas dementes,
contra Deus e contra sua Palavra. Todavia, querendo promover a
honra de Deus, se submetem à tirania dos homens!
Ora, qual a razã o disso? Carência de sabedoria e de discernimento.
Imaginam ser suficiente ouvir a palavra “igreja” ecoando em seus
ouvidos. Na verdade, eles indagam o que a Palavra significa e,
quando o papa se denomina o vigá rio de Cristo e sucessor de Pedro,
deveriam inquirir se ele tem razã o ou nã o. Se ele fosse capaz de
provar sua tese, entã o deveriam ter aceito seu ensino. Mas sabemos
que muitos têm admitido que sã o enganados. Esse pobre povo é feliz
em ter seus olhos cegos — se deixa embrulhar e arrastar para cá e
para lá ao erro e superstiçã o. Portanto, é um extremo realmente
terrível quando, sob a capa do nome de Deus, assim os homens se
deixam arrebatar pelo mal.
Entretanto, há outro erro que é pior e ainda mais nocivo. É quando
muitos rejeitam todo ensino e todo jugo, e de nada mais cuidam
senã o ouvir algo de Deus em qualquer aspecto ou forma. Temos
visto como os pobres papistas estã o em perigo de perdiçã o, porque
se acham tã o cegos, que prontamente aceitam tudo o que lhes é dito
pelos homens, mas sã o totalmente ignorantes das coisas que
procedem de Deus. No entanto, como se dá entre nó s? Muitos
professam verbalmente em alto e bom som que querem seguir o
evangelho, mas têm pouco interesse em ser instruídos. Nã o sentem
nenhum remorso por zombar de Deus, desafiando sua majestade e
lançando vitupérios contra sua Palavra e contra os que lha trazem.
Que sentido, pois, tem hoje para muitos a expressã o “servo de Deus”,
por mais que a achem bonita? Para eles, é vazia de significado. Que
terrível insolência é esta, segunda a qual aqueles que desejam ser
considerados cristã os e que se envergonhariam de passar por turcos
ou incrédulos se opõ em total e abertamente a Deus e à sua Palavra e
nã o se importam com nada que se lhes diz!
Nó s, em contrapartida, devemos refletir e notar, em primeiro lugar,
que para sermos considerados cristã os temos de ter suficiente
humildade para obedecer ao que nos é ensinado e submeter-nos a
esse ensino sem discordâ ncia; e quando ouvimos as palavras “servo
de Deus”, devemos entender que o termo nã o é um chamado a ser
desprezado. Como Paulo já disse, se Deus designa em sua pró pria
casa pessoas para dirigi-la, nã o devemos rejeitá -las para que, ao
mesmo tempo, Deus nã o nos rejeite. É justo que ele nos reconheça
como seus filhos e que nó s resistamos a ele e, supondo que
podemos, lhes cuspamos no rosto? Se dizemos que nã o temos tal
intençã o, Deus já disse que deseja ser conhecido através de sua
Palavra, e deseja que demos as boas vindas à queles a quem ele
escolheu para proclamá -la. Ele os chama de despenseiros de seus
mistérios e administradores de sua casa. Haveríamos de demiti-los
sem nenhuma consideraçã o? Onde, pois, está a honra que devemos
para com nosso Deus? Ele nã o deseja aparecer numa forma
fantasmagó rica aos olhos dos perversos. Ele quer que o
reverenciemos, aceitando sua Palavra, como se expressa através de
seu profeta: “Eu te enviei minha palavra, de modo que ela seja
recebida dos lá bios de homens e de mã o em mã o até o fim do
mundo” [cf. Is 59.21].
Em suma, tomemos cuidado de ouvir o ensino que nos é oferecido
em nome de Deus. Ouçamo-lo com humildade, sabendo que é Deus
quem fala, ainda que pela açã o humana e por meio de homens que
sã o desprezíveis segundo a carne; nã o deixemos de inclinar a cerviz
e mostrar que realmente somos suas ovelhas, visto que lhe aprouve
ser nosso Pastor. Nada façamos com orgulho e nã o sejamos duros de
governar. Que tenhamos o espírito de mansidã o de que fala Tiago,
quando nos ensina como receber a Palavra de Deus em verdade [Tg
1.21]. No entanto, é suficiente o que foi dito sobre este ponto.
É importante que saibamos que, quando outros falam, nã o agem por
sua pró pria iniciativa e nã o apresentam suas pró prias ideias
fantasiosas, mas sim o que foi realmente enviado por Deus. Como
podemos saber disso? Basta abrir nossos olhos e ouvidos! E entã o?
Há muitos que de bom grado escolhem ser cegos, como fazem os
papistas sempre que lhes é dito que examinem a doutrina que lhes é
ensinada. Eles recusam atender, pois se contentam em brincar com
Deus. Com seus rituais, suas tolas cerimô nias e toda escó ria inú til,
acreditam já terem mais do que cumprido seu dever e fabricam todo
tipo de ídolo segundo seu gosto. Assim, ninguém é realmente
enganado a menos que o queira. Portanto, estes escarnecedores que
querem ser deixados inteiramente livres recusam-se a indagar se o
ensino é ou nã o de Deus. Invariavelmente, exibem a mesma defesa:
“Oh! Nã o pretendo contender com Deus. Mas como fico sabendo se o
pregador está falando a Palavra de Deus?”. Entã o, por que nã o
observam o que está sendo dito? “Nã o gosto de fazer isso. Eu posso
sentir-me importunado.” Assim fica claro que todos os que se
recusam a congregar-se com Deus e com seu rebanho se perdem
voluntariamente. É culpa deles que pereçam: sã o responsá veis pelo
pró prio infortú nio.
É verdade que nã o cessam de apelar para a ignorâ ncia. Mas nã o
podem brincar com Deus sem que sua pró pria perversidade se torne
ó bvia. Em suma, os homens nunca enfrentam desgosto exceto por
sua pró pria decisã o. Pois, reiterando o que eu já disse, a ignorâ ncia
sempre envolve certa medida de hipocrisia, indiferença ou rebeliã o
franca. Alguns afrontam a Deus espontaneamente. Outros agem
hipocritamente e, com a desculpa de dever religioso, apresentam
pequenos rituais, gestos triviais e se aprazem em devoçõ es. Outros
seguem as vaidades deste mundo e assuntos comerciais; e outros,
por interesses urgentes, se veem impedidos de buscar a Deus, e
assim sua displicência aumenta. As advertências sã o sem proveito.
Todos sã o indiferentes: o que entra em um ouvido sai pelo outro. E
por que é assim? Porque sua mente está posta em coisas totalmente
diferentes.
Devemos, pois, prestar a má xima atençã o a este texto. Quando
ouvimos a Palavra de Deus e somos informados pelo pregador de
que esta nã o é sua, mas de Deus, e que Jesus Cristo, que tem domínio
e autoridade sobre tudo, o designou para este santo e inviolá vel
ofício, ouçamos atentamente e inquiramos se aqui o Filho de Deus
está falando a nó s, prestemos-lhe aquela homenagem que bem
merece, pois ele mesmo disse: “Beijai o Filho” [Sl 2.12]. Portanto,
sirvamo-lo e honremo-lo, a fim de nã o ofendermos a Deus, negando-
lhe sua majestade e gló ria e — protestemos como pudermos — nã o
sejamos culpados de sacrilégio.
Nesta passagem, Paulo mostra que todos os que proclamam o ensino
de Cristo sã o verdadeiros servos de Deus, pois o Pai e o Filho sã o
um. O Filho é nã o só da mesma essência que o Pai; ele está em plena
concordâ ncia com o Pai que se nos revela na pessoa de seu Filho.
Como o pró prio Cristo declara: “Quem crê em mim crê, nã o em mim,
mas naquele que me enviou” [Jo 12.44]. É como se ele quisesse dizer
que, como um homem mortal, de si mesmo nada possui. Visto,
porém, que ele é aquele que desceu do céu, e visto que nele reside
toda a plenitude da Divindade, se cremos nele, seremos conduzidos
à eterna gló ria de Deus. Pois é por meio dele que fomos criados e
formados; e é por meio dele que somos preservados e sustentados.
Portanto, é isso que devemos notar sobre a descriçã o que Paulo faz
de si mesmo como “servo de Deus” e “apó stolo de Jesus Cristo”.
Entretanto, para sermos aceitos e reconhecidos por Deus, devemos,
antes de tudo, obedecer a seu Filho, a quem ele deu poder e senhorio
sobre nó s. Ainda que os turcos protestem fortemente que é a Deus
que eles adoram, contudo fazem para si um ídolo, porque se
separam de Jesus Cristo. “Todo aquele que nega o Filho, esse nã o
tem o Pai”, como Joã o escreve em sua carta [1Jo 2.23]. O mesmo é
verdade quanto aos judeus e a todos os pagã os. E, embora os
papistas com frequência se gabem de sua fé em Deus, sua
incredulidade é evidente, porque resistem ao evangelho e nã o
podem adorar o Filho de Deus mediante obediência ao seu ensino.
Visto que se recusam a render-lhe obediência, podemos denominá -
los de incrédulos. Acaso cremos que Deus nos aceitará como seu
povo, contanto que também rendamos plena obediência a nosso
Senhor Jesus Cristo? Quando ele nos envia seus apó stolos, saibamos
que Cristo se fez Rei sobre nó s, de modo que já lhe pertencemos. O
cetro pelo qual ele nos governa é seu evangelho; e os homens que
ele designa sobre nó s representam sua pessoa. Uma vez fracassados
nesse ponto, nã o pensemos que Deus se dispõ e a aceitar-nos. De
fato, ser-nos-á de grande custo nos gloriarmos no título “cristã o”,
contanto que façamos como Paulo nos ensina aqui e ouçamos o Filho
de Deus quando ele nos fala, mesmo quando seja através dos lá bios
de homens mortais.
Reiterando o que eu disse previamente, nã o devemos esperar que
Cristo desça do céu. Basta que ele levante pessoas que fielmente nos
tragam sua Palavra, os quais de certo modo sã o instrumentos de seu
Santo Espírito e que recebem dele a Palavra a fim de no-la ministrar,
sem mistura com quaisquer ideias fantasiosas propriamente suas. E
assim, quando nosso Senhor Jesus Cristo nos outorga sua graça, é
justo que aceitemos obediente e mansamente tudo o que nos é
comunicado. Portanto, sejamos bem cientes dessas coisas.
Agora Paulo adiciona uma afirmaçã o que temos de notar muito bem.
Ele se denomina apó stolo para promover a fé que é dos eleitos de
Deus [ou, apó stolo segundo a fé comum dos eleitos de Deus]. Ao
escrever nesses termos, ele se identifica com todos os patriarcas e
santos pais que viveram desde o princípio do mundo e com todos os
crentes que desde entã o têm vivido. Portanto, ele afirma que todos
os que nã o aceitam seu ensino se excluem e se separam da igreja de
Deus. Sã o réprobos, pois, se pertencessem à companhia dos eleitos,
se poriam lado a lado com Paulo, dado que seu apostolado de modo
algum é diferente da fé dos eleitos. Aqui, Paulo realça um ponto
sobre o qual já tocamos: o ofício apostó lico nã o é uma honra banal,
mas é uma incumbência confiada a ele por Deus, a fim de que a
verdade de Deus seja proclamada com pureza.
Neste aspecto, podemos julgar quã o longe estamos de aceitar o papa
como cabeça da igreja e quã o importante é toda a hierarquia da qual
ele se gaba — isto é, todos os parasitas clericais que se deixam
consumir pela ambiçã o. O papa alega que ele e seus bispos mitrados
sã o sucessores dos apó stolos. Ora, tal alegaçã o nã o deve enganar a
nenhum de nó s, uma vez que aceitamos o comando de Deus. Temos
um guia seguro e infalível que identifica os verdadeiros sucessores
dos apó stolos, a saber, todos aqueles que nos pregam o evangelho e
que concordam com a fé de todos os eleitos de Deus. Uma vez que
encontremos o papa pregando a verdade mantida pelos patriarcas e
profetas, e também mantida pelos apó stolos, nã o haverá mais
necessidade de negar-lhe a condiçã o de pastor. Mas ele se comporta
como um ídolo, exerce bá rbara tirania e é incapaz de pronunciar
sequer uma palavra na forma de ensino; pois isso aviltaria sua
posiçã o!
Portanto, devemos execrar tal simulaçã o introduzida por Sataná s.
Constitui uma corrupçã o diabó lica, que se opõ e à autoridade do
Filho de Deus e à ordem que ele estabeleceu em sua igreja. Acaso se
encontrará ali a fé dos eleitos da qual Paulo fala? Além do mais,
sabemos que, para sustentar o poder tirâ nico que ele usurpou, o
papa nã o tem interesse em que alguém, de algum modo, investigue a
verdade de Deus. Seu alvo é sepultar a Santa Escritura e assim
exaltar-se acima de todas as criaturas, que os profetas e apó stolos
sã o como nada em comparaçã o. Assim, quando vemos com que
sacrilégio ele usurpa a Deus de sua majestade, e nã o permitirá nada
que valide seu ofício; quando, independente de seus méritos, ele
demanda reconhecimento como apó stolo, nã o nos cabe dú vida de
que isto é uma vil falsificaçã o engendrada pelo diabo com o fim de
destruir todo bom governo na igreja, em franca oposiçã o ao
mandamento de nosso Senhor. Esse é um ponto que temos de reter
na memó ria.
Quanto ao restante, observe-se que, se soubéssemos com certeza
que alguém está nos falando em nome de Deus, deveríamos inquirir
da fé sustentada pelos santos pais, quer antes da lei, quer sob os
profetas, e igualmente mantida pelos apó stolos. Se fizermos isso,
nã o podemos errar. É uma fonte de infindá vel conforto descobrir
que Deus nos absolve mesmo quando o mundo nos condena; e que
ele nos aceita como seus filhos mesmo quando o mundo nos
considera como piores que réprobos. Como isso é possível? É
possível porque Jesus Cristo governa sobre nó s e nos dá as boas-
vindas como membros de seu corpo, para que concordemos com os
santos pais e partilhemos com eles da fé comum. Pois estamos
unidos a Cristo por um vínculo que nã o pode ser quebrado.
Deixemos bem claro, pois, que estamos unidos em um só corpo com
eles, porquanto temos a fé que eles tinham. E é assim que hoje
podemos desafiar e provocar os papistas a despeito de sua
ignorâ ncia. Por mais que se gabem de ser verdadeiramente cató licos
— pois é assim que se denominam —, estamos certos de que Deus
nos reconhece como seus e os condena. Eis por que existe entre nó s
a regra espiritual que o Filho de Deus nos impõ e. Ouvimos sua
Palavra de maneira tal que entre a fé dos irmã os de outrora, entre
todos os eleitos de Deus e nó s, há plena e harmoniosa concordâ ncia.
Visto ser assim, podemos ter completa certeza. Que o mundo nos
julgue tã o severamente como lhe apraza, somos inteiramente livres
para condená -lo. Pois se temos o dever de coibir os anjos celestiais
quando se levantam contra o evangelho de Jesus Cristo, o que nã o
podemos fazer no caso daquele nauseante amontoado de esterco
que é o papa e seus associados, quando reivindicam aquele poder
que reduz Cristo a nada; quando a fé é calcada sob os pés e quando
presumem ensinar tudo quanto lhes apraza? Eis como devemos
aplicar este texto de Paulo.
Isto deve igualmente prover segurança à queles a quem Deus envia
para pregar sua Palavra; de modo que, quando se sentirem
inapropriados a proclamar a mensagem do evangelho, eles têm a
palavra de Paulo de que o que ensinamos concorda com a fé de
todos os eleitos de Deus. Isto deveria ser suficiente para repelir
todos os que se levantam contra nó s e deve ajudar-nos a confessar
com Paulo: “Porque as armas da nossa milícia nã o sã o carnais, e sim
poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nó s sofismas
e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus; e
levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo; e estando
prontos para punir toda desobediência, uma vez completa a vossa
submissã o” [2Co 10.4-6].
É verdade que devemos esforçar-nos sempre por conduzir alguém à
obediência a nosso Senhor Jesus Cristo. Nã o obstante, nã o hesitemos
em declarar que todos os que nã o se unem a nó s e nã o prestam a
devida homenagem a Jesus Cristo sã o lançados fora da igreja e
banidos do reino de Deus. O que todos eles podem esperar é a
terrível vingança que já foi preparada para eles.
Note-se ainda que todos os cristã os acham neste texto um pronto
suporte quando se veem bafejados por muitas tribulaçõ es. Basta que
eles já tenham sido congregados ao rebanho de Cristo e que
partilhem de igual fé com os antigos pais e com todos a quem Deus
escolheu. Que se contentem com isso. Nã o obstante, para se
compreender quã o proveitosa é esta passagem, vemos que Paulo
aqui buscava armar tanto a Tito quanto a todas as pessoas contra
um escâ ndalo que angustia muitos que sã o fracos. Quando os
ignorantes se deparam com animosidade e oposiçã o entre os assim
chamados cristã os, que se comportam mal e de forma brutal, se
veem grandemente atribulados. Aqui somos informados de que é
suficiente saber que somos associados e unidos com os eleitos de
Deus. Paulo nos adverte a que nã o nos surpreendamos se houver na
igreja pessoas sediciosas que tentam subverter toda a ordem, se há
hipó critas que semeiam discó rdia com o fim de afastar os ignorantes
da pureza do evangelho ou se houver perversos e licenciosos que
atacam violentamente a Deus e guerreiam contra o reino de nosso
Senhor Jesus Cristo.
Por que agem assim? Porque nem todos sã o eleitos. Entendamos
que, para termos fé e obedecermos ao evangelho de Cristo, temos de
ser membros do rebanho de Cristo; e isso por um especial dom de
Deus. Nosso Senhor declara que os que creem nele têm de ser-lhe
dados pelo Pai como sua herança [Jo 6.65]. Desse modo, ele deixa
claro que nossa salvaçã o nã o é iniciada por nó s. Todavia, esses
palhaços, ou, melhor, estas ferramentas de Sataná s, fomentam a
intençã o de solapar o primeiro fundamento de nossa fé, a saber, a
eterna eleiçã o e predestinaçã o de Deus, e vivem preparados a
censurar tanto a Deus quanto ao seu Santo Espírito. Paulo, ao
contrá rio (e Cristo igualmente, no versículo já citado), salienta que a
fé nã o tem seu início causado por nó s. É porque Deus nos escolheu,
em razã o de sua imutá vel eleiçã o, e por causa da imerecida bondade
que ele exibiu em adotar-nos como seus filhos, visto que ele nos deu
a Jesus Cristo. Portanto, acheguemo-nos a ele. Fazemos isso porque
fomos enviados a ele por Deus, seu Pai. Essa é sua maneira de
mostrar que ele nos mantém como sua possessã o e herança.
Por isso devemos aprender que, se o evangelho atual nã o é recebido
sem protesto e disputa; se há muitos adversá rios francos na pró pria
casa de Deus — gentalhas misturadas conosco; pessoas que agem
pior que os papistas! —, nã o desfaleçamos nem trema nossa fé em
face de tais escâ ndalos. Nossa submissã o a nosso Senhor Jesus Cristo
nã o é algo dado a todos. Basta-nos ser arrolados entre os eleitos de
Deus. Ele quis que fosse assim; e visto que seu beneplá cito só é de
direito quando chegarmos a um acordo com ele.
Sumariando, sempre que virmos a arrogâ ncia desses malfeitores
que blasfemam de Deus; quando virmos escâ ndalos e erros que
entre nó s sã o ainda piores que entre os papistas; quando virmos os
que resistem todo o sã o ensino, aceitando somente o que lhes
apelam; quando escarnecem da pró pria advertência; quando torcem
seus narizes e inclusive erguem seus chifres e desviam a cabeça de
Deus e dos que os ensinam, nã o nos escandalizemos e caiamos, mas
nos armemos com o que nos é dito aqui.
De qualquer maneira, eles nã o alienarã o dele nenhum dos eleitos de
Deus; ele bem conhece os que sã o seus, pois eles sã o sua pró pria
herança. Portanto, ele os sustentará . No ínterim, nada sintamos
senã o aversã o pelos capangas do diabo — isto é, pelos que se opõ em
abertamente a Deus e à sua verdade — fugindo deles o quanto
pudermos. Permaneçamos solidamente invencíveis contra todos os
que impiamente se levantam contra Deus; e nã o importa o que
aconteça, andemos sempre na simplicidade do evangelho. Eis, pois, a
razã o por que aqui Paulo fala explicitamente dos eleitos de Deus.
A seguir o apó stolo amplia o que disse anteriormente sobre a fé,
descrevendo-a como o pleno conhecimento da verdade segundo a
piedade, na esperança da vida eterna que o Deus que não pode mentir
prometeu antes dos tempos eternos [ou, o conhecimento da verdade
que é de acordo com o temor de Deus, na esperança da vida eterna].
Ao denominar a fé “conhecimento da verdade”, antes de tudo ele
revela que a fé nã o é mera opiniã o, senã o que temos de saber que
ela procede de Deus e concorda com sua vontade. De sua pró pria
fabricaçã o, os papistas forjaram uma fé a que chamam de “implícita”,
significando que é suficiente que o inculto e o leigo creiam no que a
igreja crê. Nisso nã o há qualquer vestígio de conhecimento! E entã o,
que tipo de crença é essa? Um tipo sem sentido que afirma: “Nã o
tenho ideia de como é Deus; nem uma gota de entendimento no que
diz respeito à sua Palavra. Porém confio na santa madre igreja. Nada
direi contra ela se isso é o que devo fazer”. Mas, e se supusermos
que lhes foi dito que há centenas de deuses? “Muito bem, se a santa
madre igreja pensa assim, nã o discuto. Farei a mesma confissã o
sobre o que ela faz. Para mim, ela é tudo. Eu sempre me submeto à
nossa santa madre igreja.”
Afirmo que este é o tipo de fé que os papistas têm! É plenamente
justo que os chamemos de incrédulos, mesmo quando pensam que
possuir a fé implícita é perfeitamente correto; e que é suficiente que
um cristã o simples creia por procuraçã o. Em contrapartida, Paulo
diz exatamente o contrá rio, asseverando que a fé nã o é estú pida, e
sim conhecimento — aliá s, conhecimento da verdade de Deus, pela
qual alcançamos a esperança da vida eterna. Para que sejamos
reconhecidos como cristã os, aprendamos, pois, a abrir nossos olhos
e a matricular-nos na escola onde passamos a ser estudantes
daquele que é o Mestre e Instrutor designado por Deus, seu Pai. Pois,
se formos ensinados por Jesus Cristo, de fato podemos confessar que
somos dele, contanto que nó s mesmos aceitemos a instruçã o que
vem dele e é ministrada em seu nome.
Nã o basta manter uma mera opiniã o sobre o que os chamados
crentes fazem. Embora eles tenham uma ideia ou outra do
evangelho — ou assim pensem —, nã o têm certeza sobre isso;
raramente há entre eles alguém capaz de produzir plena convicçã o e
persuasã o. Todavia, nesta passagem, Paulo toma particular cuidado
em distinguir entre fé e incerteza de todo tipo. Nã o demos vazã o a
pensamento fugaz e assim digamos: “Penso que isto é assim”. Em
vez disso, tenhamos certeza, como quando Joã o escreve: “Amados,
agora somos filhos de Deus” [1Jo 3.2; 5.19]. Crer, no que diz respeito
ao evangelho, vai bem além do que comumente entendemos.
Dizemos: “Eu creio. Realmente nã o sei, e nã o estou disposto a
descobrir”. Entretanto, o verdadeiro crer, como diz Joã o em outro
lugar [Jo 1.12], é aquela só lida e inabalá vel convicçã o pela qual
aceitamos tudo o que nos é proclamado no nome de Deus, como se
fô ssemos testemunhas de um documento legal ao qual adicionamos
nossa assinatura.
Isto é o que Deus demanda de nó s e é assim que o honramos,
confessando que ele é confiá vel em tudo o que ensina e que sua
Palavra é a inabalá vel verdade que nunca pode frustrar-nos. É isto o
que ele quer dizer por conhecimento. E quando Paulo fala da
verdade, por nada mais Deus quer que depositemos nossa confiança
em sua Palavra. Por quê? Porque seu ensino nã o constitui uma
mentira; ele é seu autor. Deus é a fonte primordial da verdade. Acaso
poderia haver algo dú bio sobre o que ele nos diz? Ele quer que
dependamos dele. Por isso devemos possuir aquela certeza da qual
Paulo fala aqui. Devemos ser resolutos, isentos daquela sorte de
pensamento que se verga como caniços ao sabor do vento. Nunca
podemos ser tidos por crentes a menos que manifestemos adesã o
total a Deus. Ao descrever a fé como conhecimento da verdade,
Paulo busca omitir tudo quanto procede dos homens. Pois o que os
homens poderiam contribuir para consigo mesmos? A Escritura reza
que eles sã o mera vaidade [Sl 39.4-6]. Com isso, usam de todo
volteio com o intuito de enganar-nos — isto é, contanto que hajam
recebido seu ensino do alto e possam mostrar que de mã o a mã o
ministrem uma verdade tã o sacra que nada se misture a ela.
A verdade de Deus, quando pregada, deve ser isenta de todas as
adiçõ es, de modo que ela permaneça absolutamente pura. É isso que
Paulo quer dizer aqui, especialmente quando ele declara que esta
verdade “é segundo o temor de Deus e na esperança da vida eterna”.
Devemos ser edificados em toda boa obra e aprender a ser um povo
santificado a Deus. Nã o devemos viver nossas vidas neste mundo
como animais miserá veis, buscando tã o somente ser alimentados e
vestidos como se estivéssemos presos a esta vida transitó ria. Ao
contrá rio, devemos subir à quela herança que já nos foi prometida. A
intençã o de Deus ao enviar-nos seu evangelho foi atrair-nos do
mundo e atar-nos a si, de modo que possamos esperar com
confiança na herança da vida eterna tã o amorosamente adquirida
para nó s por nosso Senhor Jesus Cristo. Para obtê-la, andemos com
toda pureza no temor de Deus, como Paulo insta conosco para
fazermos. Ao enviar-nos seu evangelho, Deus nada menos buscou
senã o nossa salvaçã o, a qual é a suprema felicidade e a mais perfeita
das bênçã os. Portanto, sejamos mui dispostos a obedecer-lhe e a
assumir nosso lugar no rebanho de Cristo, de modo que ele seja
nosso Pastor e nosso Guia.
Oração
Agora, lancemo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que nos faça tã o cô nscios
deles que, sendo humilhados em nó s mesmos, por sua bondade nos
ergamos acima da imundícia deste mundo, acima de todos os
desejos e pecados perversos que ainda reinam em nó s. Sejamos mais
e mais conformados à sua justiça e à sua santa Palavra, e ele se
agrade de suster-nos em todas as nossas fraquezas até que ele as
remova totalmente de nó s.

2. SEGUNDO SERMÃO: PROMESSA ATUAL E ESPERANÇA


FUTURA [Tito 1.1-4]
Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que
é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a
piedade, na esperança da vida eterna que o Deus que não pode mentir
prometeu antes dos tempos eternos e, em tempos devidos, manifestou
sua palavra mediante a pregação que me foi confiada por mandato de
Deus, nosso Salvador, a Tito, verdadeiro filho, segundo a fé comum,
graça e paz, da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Salvador.
 
Vimos nesta manhã que Paulo descreveu a fé verdadeira como
conhecimento da verdade, advertindo-nos assim de que devemos
ser diligentes alunos na escola de Deus se quisermos ser
reconhecidos como cristã os à sua vista. Ao mesmo tempo, notamos
que o que foi dito sobre a Palavra de Deus constitui-nos um conforto
especial. Pois quando compreendemos que é Deus quem nos tem
falado, somos libertos de todas as dú vidas e apreensõ es. Nele, a
verdade é certa e infalível, como Paulo nos lembra quando diz que
Deus não pode mentir . Portanto, esta nã o é uma questã o de confiar
nos homens, os quais nos conduziriam a desconfiar de tudo quanto
foi dito. O que procede da boca de Deus é absolutamente indubitá vel
e deve tranquilizar-nos por completo.
A Escritura nos informa com frequência que a Palavra de Deus é
pura, isenta de toda má cula e superfluidade, sem mistura. Essa é a
razã o por que ela é comparada ao ouro e à prata derretidos e
refinados pelo fogo [Sl 12.6; 19.10]. Essa certeza nos é dada para
que possamos dizer que nossa fé nã o procede dos homens, mas,
antes, tem Deus como seu Autor; e assim somos armados com
confiança, seja qual for a luta que Sataná s decida empreender contra
nó s. Quanto ao restante, fica claro que, supondo que tivéssemos
todo o conhecimento do mundo, sem o conhecimento de Deus e de
sua Palavra nã o somos mais que vento.
Nã o é apenas nesta passagem que o Espírito Santo expressa a ideia
de que a Palavra de Deus é a verdade — verdade límpida e sem
adulteraçã o, como reza o adá gio. Portanto, quando Paulo, em
Colossenses, busca exaltar o evangelho, ele escreve: “tendes
conhecido a verdade, isto é, a palavra da vida que está preparada
para vó s” [Cl 1.5, 6]. “O Espírito vos guiará a toda a verdade”, diz
nosso Senhor Jesus Cristo [Jo 16.13]. E, quando fala com seu Pai, ele
diz: “Pai celestial, a tua palavra é a verdade” [Jo 17.17]. Aprendamos,
pois, que Deus quer de toda maneira firmar-nos solidamente a ele,
para que o honremos como bem merece e reconheçamos sua
autoridade como ele demanda e para que também vivamos seguros,
resolutos, dominados nã o por opiniã o leviana, mas capazes de dizer
como foi dito à mulher samaritana: “Já agora, nã o é pelo que disseste
que nó s cremos; mas porque nó s mesmos temos ouvido e
sabemos...” [Jo 4.42]. Esta é a liçã o que Paulo nos deixa aqui.
A seguir somos informados da natureza desta verdade. O apó stolo a
distingue de qualquer outro ensino que esteja jungido a esta vida
fugaz e à s atividades do mundo. Ele escreve que esta verdade é
segundo a piedade [ou, segundo o temor de Deus]. Isto é, seu
propó sito é edificar-nos em tal santidade, que Deus seja glorificado.
Trabalhamos em vã o em cada ramo do conhecimento humano;
nenhum deles é capaz de guiar-nos a Deus. E assim Paulo contrasta a
fé dos cristã os com tudo o que porventura temos a chance de ouvir.
Nã o há outra regra para a verdadeira religiã o senã o aquela que se
encontra na Palavra de Deus e que nos vem dele. Ao mesmo tempo,
Paulo adiciona na esperança da vida eterna ou por causa da
esperança da vida eterna . Aqui ele mostra que os homens nunca se
engajam no serviço de Deus, a menos que o ponham em primeiro
lugar e antes de tudo mais. Pois embora sintamos a mã o de Deus
sobre nó s e tenhamos certo afeto para com ele, isso é nada e logo
passa. Em suma, nã o há nenhuma raiz viva de fé ou religiã o até que
sejamos elevados em direçã o aos céus, isto é, até que vejamos que
Deus nã o nos fez viver sobre a terra como os animais brutos, senã o
que nos adotou como sua herança e nos conta como seus filhos.
Enquanto nã o olhamos para o céu, nã o podemos ter uma devoçã o
tã o verdadeira que nos rendamos a Deus nem podemos ter em nó s
um fiapo de fé ou cristianismo. Eis por que hoje, entre todos os que
se denominam cristã os e que reivindicam tal direito, há bem poucos
que portam a verdadeira marca que Paulo aqui assinala para os
filhos de Deus. Pois todos se ocupam com esta presente vida e de tal
maneira se aferram a ela que nã o nutrem nenhum anelo pela vida
celestial. Uma vez despertados dessa falha comum, esforcemo-nos
grandemente por preservar-nos e lançar de nó s as coisas que nos
atam à terra. Usemos a força bruta para quebrar o que de outro
modo nã o podemos desatar, até que por fim adiramos a Deus. Só
poderemos fazer isso quando tivermos real e conscientemente
concebido a esperança da vida eterna como Paulo aqui a descreve.
Em particular, isto envolve instruçã o, cujo alvo deve ser ensinar-nos
que, se nossa vida está agora escondida de nó s, nem por isso
devemos amofinar-nos desta realidade. Pois os homens sã o sempre
limitados em seu entendimento, razã o por que nã o podem abraçar a
promessa da salvaçã o que diariamente lhes é oferecida. Sã o cegos
para o que Deus lhes promete e nã o podem imaginar nada além do
que veem e o que suas mentes concebem. Nã o obstante, quando
ouvimos que Deus nos fala, há a necessidade de todos
compreendermos as coisas que ora nos estã o ocultas, embora nã o
possamos apoderar-nos delas com nossos poderes naturais.
Portanto, apoderemo-nos da esperança de que Paulo fala. E ainda
que nã o tenhamos divisado a herança que nos aguarda, nã o
cessemos de amá -la com fervente afeto e assim deixemo-nos de tal
modo transportar que as coisas deste mundo se tornem lixo; já que
sabemos que elas nos tolhem os passos no progresso rumo à
salvaçã o que Deus nos oferece e que sã o entretenimentos que nã o só
nos seduzem e nos mantêm presos à terra, mas que tramam
arruinar-nos e destruir-nos e infectar-nos com peçonha mortal à
medida que nos deixarmos prender a este mundo. Eis o que Paulo
subentende quando denomina de “servo de Deus segundo a
esperança da vida eterna”.
Da mesma maneira que ele louva os colossenses pelo amor e afeto
que nutrem para com Deus em razã o da esperança depositada para
eles no céu [Cl 1.4, 5], ele insta com os crentes a que sirvam a Deus
de todo o coraçã o: esforcem-se por praticar o bem e lutem contra
todo obstá culo, com os olhos firmemente fixados na herança que
lhes está reservada no céu [Cl 1.10-12]. Isso é algo extra que ele
ensina nesta passagem.
Ora, visto que os homens buscam continuamente o que está junto
deles e, quando se mostram ignorantes de algo, sã o incapazes de
pensar mais longe, Paulo tenta corrigir esta falha, rememorando a
promessa de Deus. Na verdade, o apó stolo diz: “Meus amigos, ouvir
sobre o reino do céu equivale a contemplar algo além de nosso
poder de compreender; é alto demais e infinitamente profundo.
Mesmo assim, aspiremos ainda alcançá -lo, visto que temos um
penhor seguro. Deus mesmo nos fez esta promessa e ele nã o pode
mentir”. Vemos como todas as coisas daqui de baixo sã o
mutuamente dependentes; nó s, porém, somos separados de todas as
demais criaturas. Nossa fé nã o seria firme se fosse direcionada
somente para os homens ou para as coisas terrenas. Confiantes de
que Deus fará novas todas as coisas, devemos solidificar a esperança
e persistir nela. Rendamos, pois, a Deus a honra que ele merece.
Ponhamo-lo bem acima das posiçõ es humanas, como fez até mesmo
Balaã o, o falso profeta, muito embora ele fosse pago para mentir
[2Pe 2.15]. Nã o obstante, ele se viu compelido a falar a verdade
como um criminoso sob tortura. Diz ele: “Deus nã o é homem” [Nm
23.19]. Notemos bem quem fala nestes termos — um enganador, um
malfeitor que de bom grado subverteria a honra de Deus e a
salvaçã o da igreja! Se Balaã o fala assim, o que nos convém fazer?
Acaso lançaremos dú vidas sobre as promessas de Deus feitas a nó s,
as quais nunca falham e nunca causam desapontamento?
Assim, atentemos para o que nos é dito aqui e o apliquemos a ponto
de ver que o fundamento de nossa fé é o conhecimento que Deus
mantém à parte dos homens. Nunca se pode atribuir falsidade
à quele que jamais erra e é a verdade eterna. Quando deixamos de
ver a gló ria prometida e somos tentados a duvidar, devemos ter em
mente que é assim que devemos dizer: “Muito bem, é verdade que
estas coisas se acham além de nosso entendimento, mas devemos
confiar em Deus e tudo se fará claro”. Portanto, confiemos-lhe nosso
tesouro, e ele o manterá a salvo. Eis por que Paulo afirma em 2
Timó teo que Deus é o fiel guardiã o de nosso tesouro — isto é, de
nossa salvaçã o — e que por isso podemos ousadamente confiar-nos
a ele [2Tm 1.12].
Além disso, aqui Paulo fala da promessa feita por Deus “antes dos
tempos eternos”, e do que nos será revelado no devido tempo. Há
quem tome a palavra “promessa” como referência à eleiçã o divina
de todos os crentes, como na afirmaçã o feita a Timó teo de que a vida
lhes foi dada desde toda a eternidade [2Tm 1.9]. No entanto, visto
que a palavra “promessa” implica uma comunicaçã o entre Deus e os
homens aos quais ele fala, nã o tenho dú vida de que “antes dos
tempos eternos” significa um penhor feito desde muitas eras de
tempo. Pois sabemos que, desde o princípio do mundo, Deus
testificou que desejava ser o Salvador dos homens e que lhes
enviaria o Redentor. Ele continuou a honrar sua intençã o, que é a
razã o por que Paulo diz corretamente que agora a salvaçã o nos foi
revelada no evangelho prometido por Deus “antes de todas as eras”.
Esta foi a mesma promessa feita aos pais de outrora, pois quando
Deus os adotou e se manifestou ao pai deles, ele os conservou em
estado de expectaçã o até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Os
profetas sempre visualizaram o tempo do cumprimento, o qual a
Escritura indica como “o fim da lei” [Rm 10.4]. Portanto, as
promessas de Deus persistiram, por assim dizer, vacantes até a
vinda do Redentor; mas elas sã o muito mais plenamente manifestas
agora que Jesus Cristo já nos foi enviado.
À primeira vista, as palavras de Paulo podem parecer contraditó rias,
pois primeiro ele fala de “esperança” e entã o, por assim dizer, de
coisas postas por Deus diante de nossos pró prios olhos. A
contradiçã o é facilmente resolvida se notarmos que três passos
estã o envolvidos. O primeiro diz respeito à condiçã o dos pais que
viveram sob a lei. Possuíam evidência da misericó rdia e compaixã o
de Deus e também esperavam a salvaçã o que lhes fora prometida.
Nã o obstante, viveram sob sombras, vendo as coisas de longe, no
dizer da Escritura [Hb 11.13], e tendo um véu diante dos olhos que
os impedia de ver o que Deus hoje nos mostrou plenamente, ao
manter a promessa de que Paulo fala. Portanto, somos instados a
colocar nossa salvaçã o sempre e com paciência nas mã os de Deus.
Uma advertência similar é dada pelo apó stolo em Hebreus: “Nã o
podeis ter fé, a menos que confieis nas promessas da vida por vir.
Pois neste mundo nã o temos descanso. O que é esta vida, senã o
peregrinaçã o que prossegue até a morte?” [Hb 11.1, 13]. Temos
assim as promessas de Deus; mas, até agora, no dizer de Paulo,
vemos obscuramente como num espelho [1 Co 13.12].
Em segundo lugar, vemos que, comparados com os pais que viveram
sob a lei, possuímos a substâ ncia e a verdade. Nada poderia ser mais
claro, pois nosso Senhor Jesus Cristo já cumpriu perfeitamente tudo
o que era necessá rio para nossa salvaçã o. Vivemos atemorizados,
pois, só porque ainda somos pecadores? Achamos justiça no Filho de
Deus. Nossa ignorâ ncia nos angustia? Ele é dado a todos para
sabedoria. Somos ainda cativos e escravos de Sataná s? Ele é aquele
que nos redime. Somos corruptos e contaminados? Ele nos santifica.
Somos fracos? Ele é o poder de Deus que nos fortalece. Vemos em
nó s apenas imundícia? Ele é a fonte de toda pureza. Nada possuímos
em nó s senã o morte? Ele é vida e Senhor sobre a morte, porquanto
ele já a venceu. Os pais esperaram estas coisas em esperança; hoje,
nos sã o dadas na pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo. É verdade
que ainda nã o vemos em nó s seu fruto e cumprimento; nã o
obstante, temos muito mais que os pais jamais tiveram. Assim, o que
os pais esperavam, Deus no-lo revelou; deles se requereu que
esperassem pelo que Deus lhes prometera.
O terceiro passo é a perfeiçã o prometida para o ú ltimo dia, quando
formos reunidos juntamente com os pais. Entã o a fé cessará de
existir, pois fé equivale a ver o que nã o é visto e conhecer o que
ainda nã o está presente [Hb 11.1]. Portanto, nã o haverá necessidade
de fé, porque possuiremos o que hoje Deus nos oferece no
evangelho. Assim, o que Deus prometeu antes de todas as eras e se
nos fez conhecido em nosso Senhor Jesus Cristo, embora ainda nã o
seja visível a nó s que somos seus membros, é deferido para o ú ltimo
dia.
Quando Paulo fala, em particular, do tempo devido e próprio , faz isso
para glorificarmos a Deus em seu conselho secreto, admitindo que
ele dirige todas as coisas segundo a sua vontade e refreando o
protesto arrogante quando deixa de fazê-lo como lhe apraz. Eis por
que Paulo escreve aos gá latas: “Quando chegou a plenitude do
tempo, ele enviou seu Filho” [Gl 4.4]. Ora, qual é o significado aqui?
A curiosidade leva os homens a indagar: “Por que ele nã o se
manifestou antes? Vemos Adã o trazendo ruína a si e à sua raça. Os
homens permaneceram perdidos por tanto tempo que quase
pereceram em sua miséria. Por que Deus conservou os pais
pendentes, por assim dizer? Por que o Redentor nã o foi enviado
antes, visto que o mal já se proliferava em nosso meio? Por que Deus
nã o poderia ter provido um remédio mais cedo?”. É assim que os
homens argumentam; mas, ao tomar tais libertinagens, poderiam
ainda perguntar por que o mundo só foi criado seis mil anos atrá s e
por que Deus nã o pensou em fazer isso logo! E entã o? Quando
adentramos nesse tipo de desordem, corremos o risco de completa e
total ruína. Aprendamos, pois, a ser só brios e a nã o inquirir além de
nossa capacidade. Estejamos certos de que justamente como Deus
escolheu o tempo certo para criar o mundo também conhecia o
tempo apropriado para enviar o evangelho.
Por conseguinte, em Romanos, na segunda carta a Timó teo, em
Coríntios e em Efésios [Rm 14.1-4; 2Tm 2.16, 23; 1 Co 8.2; Ef 5.6],
Paulo elabora sucintamente todas as questõ es frívolas. Ali ele
ressalta que nã o cabe aos homens julgarem; que seria presumir
demais sobre uma matéria tã o elevada como o conselho de Deus.
Deveríamos nos contentar em saber que Deus organizou atividades
desse tipo e que ele conhece o tempo mais oportuno para realizar
sua obra. E, assim, quando ouvimos que o evangelho nos é pregado,
mas que tal graça ainda nã o fora dada aos pais e aos profetas de
outrora, devemos louvar a Deus por levar-nos a dar um passo além
deles; nã o porque o mereçamos, mas em razã o de sua infinita
bondade. Nã o busquemos conhecer além de nossa capacidade,
porque, se lançarmos a prudência aos ventos, inevitavelmente
fracassaremos. Tudo o que faríamos seria soçobrar em nosso
abismo e bem longe da praia. Tenhamos aquela singeleza mental
que diz: “Deus tem feito o que bem sabe ser melhor; e sua vontade é
tudo de que precisamos para a sabedoria”. Buscar conhecer mais é
ser culpado de orgulho diabó lico. Desonramos a Deus quando
deixamos de confessar que ele tem feito tudo com maravilhosa
sabedoria e justiça. Portanto, devemos ser discretos e circunspectos.
Havendo estabelecido que o evangelho foi revelado no bom tempo
de Deus e em cumprimento da expectativa dos pais, a seguir Paulo
fala que Deus manifestou sua palavra mediante a pregação que [lhe]
foi confiada. Por “palavra” é bem possível que esteja implícita uma
referência a nosso Senhor Jesus Cristo. Eis como Joã o a representa
em sua carta: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o
que temos visto, e as nossas mã os apalparam com respeito ao Verbo
da vida (e a vida se manifestou, e nó s a temos visto, e dela damos
testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o
Pai e nos foi manifestada) [1Jo 1.1, 2]. Ele diz que, na pessoa do Filho
de Deus, a vida nos foi oferecida, de modo que ela nos é dada ainda
quando seu fruto ainda nã o seja evidente. Ora, nesta passagem Paulo
relaciona “a palavra” com as promessas de Deus que nos foram
reveladas no devido tempo. Deus nos deu sua Palavra, à qual
devemos apegar-nos como testemunho da vida que temos. Mas para
onde a Palavra de Deus nos guia senã o a Cristo? Pois ele é sua
substâ ncia, como Paulo declara quando escreve: “Porque quantas
sã o as promessas de Deus, tantas têm nele o sim; porquanto
também por ele é o amém para a gló ria de Deus” [2Co 1.20]. Nã o
possuímos firmeza, a menos que descansemos em nosso Senhor
Jesus Cristo. Nã o que em si mesmo Deus seja mutá vel, pois nã o há
argumento sobre o que Deus pode fazer. Nã o devemos buscar vida
em algum outro lugar senã o no lugar onde Deus no-la concede. De
nenhum outro lugar podemos derivar plena confiança em sua
promessa.
Portanto, Paulo está certo em referir-nos a pessoa de Cristo,
especialmente pela razã o disto ser o que nos distingue dos pais que
viveram outrora. Temos o Redentor em quem vemos claramente
tudo o que nos era necessá rio para nossa salvaçã o. Os pais tinham
os sacrifícios, porém o sangue de um novilho ou cordeiro tinha a
virtude de santificá -los ou de reconciliá -los com Deus? É evidente
que nã o! Eles tinham suas lavagens, mas tais ritos podiam conferir-
lhes justiça real? Longe disso! Eles tinham um mediador, Moisés,
mas ele era um homem mortal, sujeito como eles a todas as
debilidades, e que tinha que interceder por seus pró prios pecados
junto a Deus. Eles possuíam um santuá rio visível, porém nada podia
conduzi-los a um estado de perfeiçã o.
E assim temos o Filho de Deus em quem toda a bondade está contida
[Cl 1.19; 2.9]. Ele é o nosso Mediador e nã o tem necessidade de ser
perdoado de pecado, pois ele é puro e imaculado, e continua em
perfeita justiça. Em contrapartida, ele nã o é desconhecido de Deus;
pois ele saiu dele, nã o só quando se fez nosso Redentor, mas porque
ele é da mesma essência, sendo nosso Deus imortal. De modo que na
pessoa de Jesus Cristo somos elevados a um passo acima dos pais de
outrora. Sua morte e paixã o constituíram o eterno sacrifício pelo
qual todas as nossas transgressõ es foram perdoadas e a ira e
maldiçã o de Deus foram removidas. Deus ficou satisfeito com a
remissã o paga, a saber, em que o sangue de Cristo foi vertido para
nossa purificaçã o. Visto que tudo isso é nosso, vemos como nos foi
revelado na pessoa de Cristo o que outrora foi garantido aos pais.
Ao mesmo tempo, Paulo refere à sua pregaçã o, a qual nã o pode
separar-se de Jesus Cristo e sua Palavra. Entre Cristo e o evangelho
há um vínculo inquebrá vel. Se fô ssemos considerar a mera figura de
Cristo, sem referência a seu ensino, nó s o reduziríamos a algo sem
sentido, como fazem os papistas que o transformam em um ídolo. A
verdade é que eles estã o perenemente aclamando Cristo como
“Filho de Deus” e “nosso Redentor”, mas revelam ignorâ ncia quanto
à sua obra e nã o têm noçã o de por que ele veio — e o que é pior, eles
nem mesmo têm desejo de saber! Estã o de tal modo emaranhados
em suas frívolas fantasias que, enquanto confessam que Cristo veio,
nã o podem dizer por quê, pois seu poder só é conhecido através do
evangelho que rejeitam e do qual escarnecem.
É evidente, pois, por que Paulo nos lembra que, sem a pregaçã o,
Jesus Cristo nã o pode ser-nos de nenhuma ajuda. A menos que
estejamos unidos a ele através do evangelho, frustramos o plano de
Deus e obstruímos o quanto podemos seu propó sito. Carecemos da
certeza que Deus dá através de sua Palavra: se nos aferrarmos a ela,
jamais seremos desapontados. Mas é Jesus Cristo quem provê a
garantia mais segura de sua verdade. Cuidemos, pois, de nã o separar
as duas coisas que Paulo enfeixou numa só . Consideremos como
sagrado o vínculo entre elas. E assim, sempre que ouvirmos a
Palavra de Deus proclamada, olhemos para nosso Senhor Jesus
Cristo; ele é o alvo que almejamos. Podemos estar certos de que nele
temos tudo o que pertence à esperança de nossa salvaçã o. Quanto ao
resto, quando os homens nos falam de Jesus Cristo, nã o o pintemos
como alguma sorte de fantasma, como fazem os papistas; mas
levemos o evangelho aonde ele possa ser conhecido, onde
aprendemos por que Deus, seu Pai, no-lo deu, a bênçã o que ele
adquiriu e seu ministério para nó s. Visto que o evangelho nos
mostra claramente estas coisas, seguramente podemos considerá -lo
um verdadeiro espelho no qual contemplamos nosso Deus na
imagem de nosso Senhor Jesus Cristo, como o apó stolo escreve [2Co
4.4].
Paulo adiciona que esta pregaçã o lhe foi confiada , de modo que
pode ser recebida da maneira apropriada. Paulo alega falar com
autoridade, pois, sem isso, o que teria lucrado escrevendo? Ele
deseja que aceitemos suas palavras como que vindas de Deus, nã o
de um mero homem. Daí ele insistir que nã o foi por escolha pró pria
que assumiu a obra da pregaçã o; foi uma tarefa a ele confiada. Ora,
nã o nos cabe usurpar qualquer ofício na igreja de Deus. Ninguém
deve escolher para si esta honra, no dizer do apó stolo [Hb 5.4]. Jesus
Cristo nã o se precipitou a ela, embora estivesse muito acima de tudo
e tivesse a posse de toda autoridade. Ele nã o se lançou a um mero
capricho a fim de assumir o ofício; foi por Deus, seu Pai, designado
sacerdote mediante um juramento solene, como lemos no Salmo: “O
SENHOR jurou e nã o se arrependerá : Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedeque” [Sl 110.4]. Portanto, Cristo
confirma que seu Pai celestial lhe conferiu autoridade. Se o Dono da
casa fala nesses termos, Aquele que é a cabeça dos anjos, a quem
todas as criaturas devem homenagem e diante de quem dobram
seus joelhos, o que cabe a nó s que somos pobres e frá geis vasos de
barro, e nada somos? Acaso ousaremos reivindicar o nome de Deus,
a menos que ele nos haja chamado?
Notemos que Paulo nã o reivindica autoridade a fim de conquistar a
estima dos homens, nem se gloria de que o mundo pensa bem dele.
Diz simplesmente que foi chamado por Deus. Naturalmente, ele foi
especialmente chamado como o foram todos os apó stolos.
Entretanto, agora Deus estabeleceu uma ordem que ele quer que
toda a igreja observe. Assim, os que sã o chamados de acordo com
Deus e buscam servi-lo podem dizer com Paulo que lhes foi confiada
a tarefa da pregaçã o. Se forem rejeitados, essa é uma injú ria feita a
Deus, nã o à s suas pessoas. Mas tudo deve ser feito com autoridade,
pois os falsos mestres podem até mesmo reivindicar o nome de Deus
como sempre fazem. Paulo, contudo, que declara que a pregaçã o lhe
foi confiada, tem só lida e infalível prova de sua reivindicaçã o.
Portanto, seu ensino só podia ser genuíno.
Paulo nã o estava falando apenas a seu pró prio tempo, mas, visto que
a verdade de Deus é eterna, falava também ao nosso pró prio tempo.
Nã o se deve imaginar que o apó stolo ensinava um produto do
cérebro de alguém; ele era o instrumento do Espírito Santo; sendo
incumbido da pregaçã o, ele cumpriu fielmente sua tarefa. Ele serviu
a Deus, administrando o tesouro do evangelho no qual temos a
certeza da salvaçã o. Por isso, aferremo-nos ao que foi escrito,
confiantes de que nossa fé nã o depende dos homens.
Paulo conclui o versículo, afirmando: por mandato de Deus, nosso
Salvador. Aqui nã o se põ e dú vida sobre a dignidade pessoal, embora
o apó stolo tivesse razã o de vangloriar-se caso fosse essa sua
intençã o, como de fato ele faz quando compelido a fazê-lo. “Se há
homens que ousam vangloriar-se”, diz ele, “eu nã o sou
absolutamente inferior. Se dizem que sã o da linhagem de Abraã o,
porventura também nã o o sou? Se eles mesmos sã o ministros, acaso
nã o sou mestre da lei? Caso se gabem de sua integridade e maneira
de viver, eu vivi de modo irrepreensível durante toda minha vida. Eu
possuía a reputaçã o de santidade antes que me tornasse cristã o. Eu
posso reivindicar tudo isso, mas tudo nã o passa de esterco e
imundícia desde que Jesus me foi dado; pois eu sei que, a despeito
de minha sabedoria e santidade, fui precipitado nas profundezas do
inferno. Agora considero tudo isso como refugo e perda para
conquistar a Cristo” [2Co 11.21-23; Fp 3.4-7]. Em suma, Paulo era
um homem cuja vida estava sempre em perigo, que abandonou tudo
que uma vez lhe foi tã o querido a fim de salvar sua vida e que só
pode ser salvo lançando de si tudo o que lhe era precioso com o fim
de se enriquecer com os dons de nosso Senhor Jesus Cristo. O
apó stolo poderia ter se vangloriado de tudo isso, porém renuncia a
tudo para demonstrar que nada portamos que seja propriamente
nosso quando queremos que os homens ouçam o que recebemos da
parte de Deus.
Esse tipo de abordagem é profundamente humilhante. Como Paulo
diz em outro lugar: “E que tens tu que nã o tenhas recebido?” [1Co
4.7]. Pois há muitos que falam dos dons de Deus, porém sã o
saturados de orgulho. Assemelham-se ao fariseu no templo que,
inflado de orgulho e presunçã o, considerava o outro como indigno
de aproximar-se dele. “Eu te dou graças, Senhor”, diz ele. Agora
podemos imaginá -lo isento de arrogâ ncia, mas seu orgulho se
sobressai. Ele espera que Deus o ouça em razã o de seus méritos e
boas obras; contudo, ele nã o conhece a graça de Deus com
sinceridade de coraçã o. Por isso, ele permanece sob a maldiçã o de
Deus, ao passo que o homem a quem ele nã o se digna a olhar e a
quem descarta como um mísero desgraçado é ouvido por Deus,
como nosso Senhor Jesus Cristo declara [Lc 18.11-14].
Esse era o comportamento de Paulo. E essa é a razã o por que nesta
passagem, como em outras, quando fala de sua obra em prol do
evangelho, ele declara que isso se deu por mandato de Deus,
significando que Deus nã o o escolheu por ser o mais adaptado e
mais capaz, e sim porque isso foi de seu agrado. Aprendamos, pois, a
submeter-nos inteiramente à vontade de Deus, muito mais do que
temos feito até agora. E se nossos pró prios sentimentos nã o nos
permitirem, que este seja o pensamento que nos dirige. Que Deus
seja aquele que nos governa e que esteja no controle. Quando
ocorrer algo para irritar-nos e atribular-nos — algo que deveríamos
antes evitar —, pensemos: “Nã o é justo pensar desta maneira. Nã o é
isto que Deus quer”. Esse pensamento repelirá todas as tentaçõ es da
carne que porventura poderiam levar-nos a errar.
Quanto à boa ordem que Deus designou para a igreja, nã o
introduzamos nada de nossa pró pria invençã o, como se
disséssemos: “Penso que esta será uma boa ideia. É isto que eu
quero”. Apenas atente bem para quem está falando: vermes que
rastejam pela terra a levantar bem alto suas cabeças, seres
desprezíveis que saltam para cima e para baixo! Estejamos certos de
que seus ventres estã o empanturrados; o que fazem de real valor?
Peste e podridã o! Contudo, presumem aceitar ou rejeitar a igreja
como bem lhes apraz e sentar-se em juízo sempre que desejam.
Nã o obstante, temos esta advertência de Paulo. Sem dú vida, ele
procurava desafiar os poderosos deste mundo que nã o querem
obedecer ao ensino de Cristo e ao mandamento de Deus, seu Pai.
Mas ele avança ainda mais a fim de abrandar seus coraçõ es,
declarando que Deus é o Salvador , que através do ministério do
evangelho e o ato de comissionar pregadores visavam à nossa
salvaçã o. Portanto, ai de nó s se agirmos como bestas selvagens e
levantarmos nossos chifres contra Deus, rejeitando os dons que nos
sã o oferecidos! O que nó s, míseras criaturas, tencionamos lucrar
com isso? Paulo faz mais que evocar a majestade de Deus diante da
qual devemos curvar-nos; ele adiciona a cativante palavra
“Salvador”. Foi isso que Deus se declarou quando ordenou aos
homens que pregassem o evangelho, o qual Paulo descreve no
primeiro capítulo de Romanos como “o poder de Deus para a
salvaçã o de todo o que crê” [Rm 1.16]. O Deus que antes de tudo
enviou seus apó stolos, hoje designa pastores em sua igreja, a fim de
injetar em nó s a certeza da salvaçã o. Se formos ingratos e nã o lhe
rendermos plena obediência, sofreremos uma dupla perda por
havermos recusado a bênçã o oferecida. Sejamos claros, pois, que
para termos Deus como nosso Salvador temos de arrolar-nos em sua
escola e deixar-nos instruir pelo evangelho, o qual é Jesus Cristo. E,
quando desfrutarmos desta bênçã o, aceitemo-la como um tesouro
que excede a tudo quanto já possuímos sobre a terra.
Aos gritos, os papistas reivindicam Deus como seu Salvador, mas o
que realmente significa para eles o poder de pregar? Porventura
conhecem o propó sito da vinda de Cristo? Porventura veem o
evangelho como o poder de Deus para sua salvaçã o? Rosnam como
animais selvagens e o perseguem furiosamente. Acaso sabem que,
quando abandonam e negam o ensino de Cristo, cessam de
reverenciá -lo? Portanto, se quisermos que Deus nos reconheça, nã o
nos apartemos de sua vontade, mas aceitemos a salvaçã o que nos é
apresentada no evangelho. Aceitá -lo equivale a desfrutar da mais
seleta consolaçã o, já que sabemos que Deus completará nossa
salvaçã o. Por mais débeis que sejamos e por mais que tantas
misérias nos assaltem, nossa salvaçã o está assegurada. Como assim?
Através da pregaçã o do evangelho aprendemos que Deus quer ser
nosso Salvador — um Salvador que exerce domínio sobre nó s e cujo
trono está estabelecido com a má xima segurança.
Eis a liçã o que temos de aprender. Nã o sejamos obcecados por
nossos vã os e fú teis pensamentos, os quais nos iludem e enganam,
mas abracemos a verdade de Deus e confiemos nela, sem jamais
desviar-nos. Olhemos muito acima deste mundo presente e da vida
terrena, e corramos para nosso Senhor Jesus Cristo, rogando-lhe que
derrame sobre nó s seus dons a fim de que, assegurados da bondade
de Deus para conosco, sejamos confiantes em obter o fruto e
cumprimento do que hoje nos é prometido e pelo qual esperamos.
Nesse ínterim, glorifiquemos a Deus que nos tem abençoado mais do
que abençoou os pais sob a lei. Ele nos preferiu a eles ao conceder-
nos uma revelaçã o mais completa de sua vontade e da promessa da
salvaçã o. Acheguemo-nos a ele com um coraçã o mais disposto e
amemo-lo com afeiçã o mais veraz até que nos chame para seu reino
celestial. Ali veremos em sua perfeiçã o as coisas que agora
contemplamos pela fé.
 
Oração
Agora lancemo-nos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos pecados e rogando-lhe que nos faça de tal
modo cô nscios deles, que mais e mais nos enfademos deles e nos
entristeçamos por eles, até que realmente nos arrependamos e
sejamos purificados de toda imperfeiçã o. Visto que somos
totalmente corruptos e que em nossa natureza persistem tantas
falhas que o ofendem, que lhe apraza sustentar-nos e tratar-nos com
misericó rdia; de modo que, sendo governados por seu Santo
Espírito, nã o lhe provoquemos a ira como temos feito até entã o. E
que ele nos perdoe em sua paternal bondade e nos faça aceitá veis a
si; no nome e por amor de nosso Senhor Jesus Cristo.
 
3. TERCEIRO SERMÃO: A FÉ COMUM [Tito 1.4, 5]
 
[Paulo] a Tito, verdadeiro filho, segundo a fé comum, graça e paz, da
parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Salvador. Por esta causa, te
deixei em Creta, para que pusesses em ordem as coisas restantes, bem
como, em cada cidade, constituísses presbíteros, conforme te prescrevi.
 
Nada mais resta na saudaçã o de Paulo a ser explanado, exceto a
frase Tito, meu verdadeiro filho segundo a fé comum ; e a sú plica,
para que Deus lhe conceda graça, misericórdia e paz .
É verdade que neste mundo somos proibidos de chamar alguém de
“pai” [Mt 23.9], mas o que está implícito é que nã o sejamos tã o
obcecados com a criatura a ponto de privar Deus de sua honra, pois
todo parentesco tem origem nele e deve referir-se a ele. Nã o
simplesmente em um sentido espiritual. Sempre e em toda parte
Deus deve ser reconhecido e honrado como um e ú nico Pai. Por
certo que o apó stolo em Hebreus o chama “o Pai de nossas almas” e
o compara a nossos pais “segundo a carne” [Hb 12.9]. Nã o obstante,
Deus é também nosso Pai em um sentido físico, pois, embora, em
concordâ ncia com a natureza, nasçamos de pais terrenos, foi Deus
quem nos formou e fez. Este é um milagre que merece ser celebrado
quando Deus cria uma criatura tal como o homem e lhe dá forma
particular. Aqui, Deus exibe sua maravilhosa sabedoria, de modo
que nossos corpos sã o espelhos em que podemos contemplar a obra
de sua mã o. Como eu disse, Deus é Pai de nossos corpos tanto
quanto de nossas almas. Mas, acima de tudo, ele quer ser nosso Pai
espiritual.
Isso dito, nada impede os que nos geram através da Palavra de Deus
de ser considerados nossos pais, ainda que inferiores a Deus, que
permanece soberano em poder e nã o tem parceiro; nenhum homem
mortal é seu igual. Entretanto, visto que lhe aprouve usar homens
mortais e empregá -los como instrumentos a fim de nascermos para
a vida celestial — por meio do que Pedro chama de “a semente
imperecível” [1Pe 1.23], isto é, através da mensagem evangélica —,
aqueles designados para pregar a sua Palavra sã o nossos pais. Paulo,
pois, nã o usurpou o que pertence a Deus. Ele é chamado pai de Tito
por havê-lo gerado na fé cristã . Longe de ocultar a honra e a
dignidade de Deus, o título constitui um endosso delas.
Se os que nos ensinaram a mensagem da salvaçã o sã o nossos pais,
que diremos daquele que enviou essa mensagem, o qual é seu Autor
e usa os labores dos homens, qualquer que seja o meio que escolhe?
Quando ele fornece habilidade e os meios, quando dá poder à
Palavra, de modo que ela nos beneficia, quando, repito, Deus opera
tã o poderosamente que gera e completa todas as coisas, acaso ele
nã o deve receber toda a gló ria? Quando se diz que os ministros da
Palavra perdoam os pecados e liberam as almas [Mt 16.19; Jo 20.23],
isso se dá nã o porque Deus lhes cedeu suas responsabilidades e se
desembaraça delas; mas, ao confiar-lhes sua Palavra, também lhes
ensinou qual seria seu fim e propó sito. Pois, entre os que recebem as
promessas que lhes apresentamos no nome de Deus, é preciso haver
a certeza de que o que pregamos é sancionado no reino celestial.
Deus nos enviou a fim de que chamemos os homens de volta para
ele. Assim, enquanto aqueles que sã o responsá veis por proclamar o
evangelho liberam as almas e perdoam pecados em nome de Deus,
as palavras de Isaías permanecem inteiramente verazes: “Eu, eu
mesmo, sou o que apaga as tuas transgressõ es por amor de mim e
dos teus pecados nã o me lembro” [Is 43.25].
Nã o pode haver confusã o entre Deus e qualquer de suas criaturas,
pois somente ele pode lavar o pecado. Todavia, o meio que ele usa e
o instrumento que emprega é a sua Palavra, a qual ele confia a
homens mortais. Portanto, como vimos, Paulo nã o se exalta além da
medida, mas apenas desejava mostrar a que propó sito o evangelho é
ensinado. Seu alvo é transformar-nos em novas criaturas, porque [o
evangelho] é a semente imperecível; de modo que a Palavra de Deus
nos vivifica a fim de que alcancemos a herança eterna que nos foi
preparada. Desta maneira, quando apraz a Deus enviar-nos sua
Palavra, somos instados a recebê-la com prontidã o, como se ela nos
adquirisse a vida, pois é justamente isso que ela faz. Nã o podemos
estar cô nscios dela nem apreendê-la em nosso pensamento, mas
esse é o caso. Portanto, consideremos quã o grande é a bênçã o
quando Deus nos comunica sua Palavra.
Essa também é a razã o por que a igreja é chamada nossa mã e. No
dizer de Paulo, ela tem a incumbência da Palavra que lhe é confiada.
Visto que Deus dispensa sua Palavra pela açã o de homens e
estabeleceu esta ordem na igreja, assim como Deus é nosso Pai, a
igreja deve ser nossa mã e [Gl 4.26; 1Tm 2.15]. Ela deve conceber,
alimentar e nutrir-nos. Da mesma forma que o esposo concorda com
a esposa em que devem alimentar seus filhos, e a esposa assume
particular cuidado deles, assim Deus confia à igreja esta
responsabilidade, de modo que, por seu leite, somos alimentados até
que alcancemos a maturidade, como lemos no quarto capítulo de
Efésios [Ef 4.13].
Daí Paulo chamar Tito “meu verdadeiro filho” — especificamente
seu filho verdadeiro e natural, com o intuito de distingui-lo dos
hipó critas que aparentemente nascem na casa de Deus, como lemos
em Gá latas, mas que, no fim, à semelhança de Ismael, têm de ser
lançados fora como filhos bastardos e nã o como filhos legítimos [Gl
4.22, 30]. Pois casa de Abraã o constitui uma genuína imagem e
representaçã o da igreja. Ismael é filho de Abraã o segundo a carne,
mas sua mã e é excluída. Ismael aparenta ter o direito da
primogenitura, e inclusive moteja de Isaque, seu irmã o, buscando
frustrar a promessa de Deus de que a bênçã o viria através de Isaque.
Ele ridiculariza a promessa porque pensa ser suficiente que ele seja
o primogênito. A despeito disso, ele é banido da casa, nã o só por
Abraã o, mas principalmente por Deus; ele é mandado embora como
um proscrito. E, assim, ele é um membro decomposto, e tudo o que
ele tinha anteriormente, no dizer de Paulo, é perdido.
Agora Paulo aplica esta liçã o a fim de recebermos todo o benefício.
Ele declara que, quando a Palavra de Deus é anunciada, muitos a
ouvirã o, porém nã o conseguirã o tirar proveito dela, posto que nã o
nasceram para a liberdade, nã o foram iluminados pelo Espírito de
Deus, nã o aceitaram a graciosa promessa de sua salvaçã o e nã o
possuem nenhuma fé viva que lança raízes em seu coraçã o. Bem que
poderiam ser considerados filhos de Deus, mas nã o há neles
nenhuma semente genuína. Há apenas exibiçã o externa; só há , por
assim dizer, uma forma sem substâ ncia. E, ainda que se gloriem nela
por algum tempo, nã o se sentem surpresos pelo que acontece.
Ismael era o mesmo, mas finalmente foi excluído. Eis como se dará a
todos os que falsamente alegam pertencer ao povo de Deus,
enquanto os que realmente nasceram [pela fé] sã o preservados e
desfrutam da herança da salvaçã o. Aprendamos, pois, a ser
conhecidos como filhos, nã o apenas nominalmente, mas em
realidade e verdade. Isto sucederá se, fazendo proficiência no ensino
do evangelho, permitirmos que sua mensagem lance raízes pró prias
em nó s e produza seu fruto. Tomemos o cuidado de nã o ser filhos
bastardos. Entã o Deus nos guardará sempre entre o nú mero e na
companhia dos que sã o dele. De outro modo, a vangló ria de que
somos cristã os e crentes provará ser de nenhum préstimo. O que
aconteceu a Ismael poderia acontecer-nos.
É evidente que Paulo nã o estava se dirigindo a um homem,
pessoalmente, mas estava provendo ensino ú til para a igreja como
um todo. Seguindo o exemplo de Tito, todos seremos filhos legítimos
e portaremos a marca dos que sã o gerados pela Palavra da salvaçã o,
recebendo e beneficiando-nos da graça de Deus e sem regozijar-nos
simplesmente no nome, mas em sua verdade e substâ ncia.
A seguir Paulo acresce que isto é segundo a fé comum , a qual eles
têm unanimemente. Isto serve para reforçar a ideia que Paulo
apresentou anteriormente quando chamou a si de “pai”. Sua
intençã o nã o era empanar a gló ria de Deus ou obliterar a honra de
Jesus Cristo. Embora seja pai, ele se situa firmemente na categoria
dos filhos de Deus. Consequentemente, aquele que é pai na igreja de
Deus — visto que tem a semente da vida e que, através de seus
labores, as almas sã o recriadas à imagem de Deus — permanece
parte da companhia comum. Como assim? É a fé que nos concede o
privilégio de ser filhos de Deus, como vimos no primeiro capítulo de
Joã o: “Mas, a todos os que o receberam, deu-lhes o poder de serem
feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem em seu nome” [Jo 1.12].
Porque esse dom é nosso pela fé —, se lemos que a fé é comum tanto
aos mestres quanto aos alunos —, todos nó s pertencendo à mesma
companhia e tendo a mesma posiçã o. Somente Deus possui a
preeminência e governa sobre todos; somente ele merece ser
exaltado como Pai.
Notamos, pois, que, com as palavras “fé comum”, Paulo serenamente
assume seu lugar lado a lado com os demais, de modo que ninguém
pense que ele avidamente reivindica mais que o devido ou toma
para si a honra que pertence a Deus. Ele deixa claro que continua
sendo irmã o de Tito, visto que ambos foram gerados pela Palavra de
Deus. É verdade que Paulo precedeu a Tito. Nã o obstante, reiterando
o que já foi dito, visto que todos nó s, juntamente, renascemos pelo
Espírito de adoçã o, Deus deve ser nosso Pai e devemos ser humildes
e obedientes diante dele. Ninguém busque anulá -lo em nome da fé
do evangelho, como se possuísse alguma autoridade procedente
dele pró prio. Que Deus permaneça intocado e que nada nele seja
diminuído. Todos os homens sã o obrigados a servi-lo, cada um em
seu pró prio lugar e vocaçã o.
O apó stolo termina sua saudaçã o com as palavras graça,
misericórdia e paz da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo nosso
Salvador . Normalmente, quando ele saú da os irmã os, Paulo se
contenta com duas palavras: “graça” e “paz”, significando, como
dissemos alhures, que nossa bem-aventurança e felicidade residem
no fato de que já fomos reconciliados com Deus, e que ele nos
guarda em seu amor e favor. Esta é a fonte de tudo que devemos
desejar: o amor e a bondade de Deus dados a nó s. Ai de nó s se Deus
for nosso inimigo, mesmo quando o mundo inteiro conspire para
ajudar-nos! Mas, se Deus nos aceita, por mais desditosos que
sejamos aos olhos dos homens, tudo será feito para nosso bem e
para nossa salvaçã o.
Portanto, a graça de que Paulo fala nã o é algo pequeno. Ele a chama
“graça” em vez de “afeto” ou “amor” porque é amor imerecido. Deus
nã o pode receber-nos favoravelmente, a menos que ele se apiede de
nó s. Em nó s nada existe senã o pecado. Portanto, Deus com toda
razã o teria que odiar-nos, teria que sentir aversã o de nó s, teria que
repudiar-nos como parte de sua criaçã o. No entanto, quando decide
ter compaixã o de nossa miséria, entã o começa a amar-nos de livre
bondade.
Aqui, Paulo adiciona a palavra “misericó rdia”, a qual expressa ainda
melhor a bondade que já descrevemos. Deus deve receber-nos em
sua mercê, visto que somos perversos e perdidos. Se nã o se deixasse
comover de compaixã o, jamais poderia deixar-se levar a amar-nos.
Naturalmente, estritamente falando, misericó rdia vem antes de
graça, pois quando contempla a humanidade, Deus nada vê senã o
ruína, visto que todos nó s somos malditos em Adã o. Como já
dissemos, é verdade que, em razã o de sua eleiçã o, ele nã o se apieda
de todos. No dizer de Moisés: “Ele tem misericó rdia de quem quer”
[Ex 33.19], pondo assim um fim a todo argumento, para que os
homens nã o indaguem por que ele age assim. No dizer de Moisés,
“ele age assim porque essa é a sua vontade”. Em qualquer caso, Deus
olha com amor compassivo para aqueles a quem quis eleger para a
salvaçã o e em sua livre bondade os recebe em seu favor. Assim, a
misericó rdia vem em primeiro lugar e a graça se une a ela, tendo sua
fonte e origem na misericó rdia. Aqui, contudo, Paulo reverte a
ordem a fim de mostrar-nos mais claramente de que maneira Deus
nos é favorá vel uma vez que ele nos recebeu em sua mercê. Ou entã o
o alvo de Paulo é salientar que, embora Deus nos ame, nos adote,
nos repute como seus filhos e nos exiba sua bondade, que é um
seguro emblema de seu amor, ele deve continuar a exibir-nos sua
mercê até o fim.
E qual a razã o? É verdade que, quando nos chama, ele nos inclui no
nú mero de seu rebanho e nos governa por meio de seu Santo
Espírito, coibindo-nos de levar vidas dissolutas e libertinas. Ele nos
recria em conformidade com sua pró pria imagem, ainda que
permaneçamos fracos, pecadores e maculados. Assim, Deus nos
perdoa diariamente e exerce sua misericó rdia para conosco,
apagando nossos delitos e pecados, sem o que seríamos
imediatamente vazios da graça que ele nos outorgou. Suponhamos
que Deus oferecesse a um homem sua mercê somente uma vez e,
permitindo que ele partilhe das promessas do evangelho, o deixasse
no mesmo estado como antes. Mesmo que ele fosse o homem mais
perfeito da terra, ainda necessitaria que Deus continuasse a
sustentá -lo ou logo perderia a honra que recebera e o grande
privilégio de ser filho de Deus. Eis por que Deus tem de exibir-nos
continuamente sua mercê, pois a graça que foi outorgada por um dia
nã o seria suficiente, senã o que ineficaz, a menos que Deus
continuasse a instilar-nos nova graça. Esse, em suma, é o ensino de
Paulo neste texto.
Lembremo-nos, pois, que, quando Paulo roga a Deus que dê sua
graça a Tito, a mençã o da misericó rdia nã o é uma adiçã o supérflua;
pois dela nos vem, como já dissemos, paz e todo nosso senso de
felicidade. É como se Deus enviasse do céu chuva para regar a terra;
quando a terra estiver regada, ela germina e floresce. Donde vem a
chuva? Do céu. Também todas as bênçã os que tanto desejamos nos
vêm do livre amor de nosso Deus. Além do mais, quando tivermos
sofrido muita afliçã o, quando Deus provar-nos através de doenças,
infelicidade ou perda terrena, temos que aprender a sempre
visualizar sua graça, repousar e ser felizes no conhecimento de que
Deus nos ama. Aprendamos a adoçar todos os nossos sofrimentos
com a consolaçã o que Paulo introduz no oitavo capítulo de
Romanos: “Todas as coisas contribuem para o bem dos que amam a
Deus” [Rm 8.28]. Aqui Paulo está falando das tribulaçõ es, opró brios
e outras misérias pelas quais passamos nesta vida terrena. Neste
versículo, nã o é sem motivo que o apó stolo associa nosso Senhor
Jesus Cristo com Deus, o Pai. Pois embora Deus seja o Autor de tudo
o que é bom, nã o obstante devemos olhar para Jesus Cristo, sem o
qual haveria uma distâ ncia imensa entre Deus e nó s e nã o
poderíamos achegar-nos a ele para degustarmos sua graça e
participarmos dela.
Deste modo, enquanto Deus, o Pai, nos envia cada bênçã o, Jesus
Cristo deve estar junto de nó s. A majestade de Deus seria elevada
demais, mas nosso Senhor Jesus Cristo se fez pequeno — aliá s, se
reduziu a nada! — a fim de guiar-nos ao Pai. Para que nã o deixemos
de buscar Aquele que está tã o longe de nó s, ele é o nosso Deus que
se manifestou na carne. Eis a razã o por que Paulo nos faz lembrar de
nosso Senhor Jesus Cristo, para que através dele alcancemos a gló ria
consumada e a divina majestade de Deus.
Observemos ainda que o apó stolo atribui o título “Salvador” tanto a
Deus Pai quanto a nosso Senhor Jesus Cristo, mas por razõ es
diferentes. Deus Pai é nosso Salvador pelo fato de nos enviar a
salvaçã o através de seu Filho unigênito. Jesus Cristo é nosso
Salvador porque ele fez tudo o que era necessá rio ser feito para
nossa salvaçã o. Segundo a Escritura, “Deus amou o mundo de tal
maneira que nã o poupou seu Filho, mas no-lo deu para morrer por
nó s” [Jo 3.16; Rm 8.32]. Daí concluirmos que a principal causa de
nossa salvaçã o é o beneplá cito que Deus manifestou a nó s quando
decidiu salvar-nos da perdiçã o. Eis como Deus, o Pai, é nosso
Salvador, mas se revelou como Salvador na pessoa de seu Filho. Pois
nosso Senhor Jesus Cristo nos redimiu da escravidã o à morte, fez
satisfaçã o por todas as nossas dívidas, ofereceu em sacrifício a Deus
Pai seu corpo e sangue — sua pró pria alma — para que fô ssemos
perdoados à vista de Deus. Visto que somos justificados por nosso
Senhor Jesus Cristo e que ele fez tudo o que lhe foi requerido para
nossa salvaçã o, é de direito seu que aqui ele seja chamado nosso
Salvador. Portanto, isto é o que devemos aprender: onde está em
pauta nossa salvaçã o, ela está fundada na mercê de Deus Pai e
consumada por nosso Senhor Jesus Cristo. Em sua morte e paixã o,
temos, por assim dizer, um modelo e espelho, a pró pria verdade e
substâ ncia do sacrifício que ele fez por nó s e da redençã o pela qual
somos justificados.
Seguindo estas observaçõ es, Paulo explica por que deixou Tito na
ilha de Creta. Foi para que Tito pudesse corrigir com sabedoria as
coisas que restam e designar anciãos ou presbíteros em cada cidade .
Ao dizer isso, Paulo nã o tem em mente ensinar a Tito quais sã o seus
deveres, porém busca dar-lhe autoridade para que ninguém lhe
resistisse quando gerisse a tarefa que lhe fora designada. É como se
Paulo dissesse: “Nã o que algo o impeça em seu trabalho em Creta.
Corrija o que precisa ser corrigido e mantenha o estado e governo
pró prios da igreja. Que nada o detenha da tarefa que lhe confiei”.
Essa era a intençã o de Paulo. No entanto, note-se ainda que ele nã o
concede a Tito mais do que lhe foi permitido. O que Paulo desfrutava
nã o era o direito de governar ou algum poder régio; era apenas os
deveres de ministro. A tarefa de Paulo era edificar a igreja de Deus e
ver o avanço da obra até que fosse completada.
Ora, a razã o de ele ter deixado Tito para trá s era clara. Os apó stolos
nã o receberam a ordem de pregar em um lugar ou noutro, mas de
“pregar o evangelho no mundo inteiro a toda criatura” [Mc 16.15]. E
assim Paulo se viu obrigado a fazer este trabalho com o má ximo de
sua habilidade, indo de um lugar a outro para pregar o evangelho
por toda parte. Assim era suficiente que ele pregasse em um lugar
durante três meses, ou seis, ou mesmo por um ano? Nã o. Esse
trabalho deveria continuar ou a edificaçã o sofreria um colapso
imediato, e tudo o que foi começado se reduziria a nada, a menos
que fosse continuado. Embora os fundamentos já estivessem
lançados, o edifício tinha de ser erguido ou tudo estaria perdido. Nã o
bastava construir uma parede; isso seria inú til se toda a casa nã o
fosse completada.
Foi assim que se deu com o evangelho. Nã o bastava pregá -lo por
certa extensã o de tempo. Os apó stolos tinham que nomear bispos
em seu lugar; pois é assim que Paulo os denomina alhures, quando
fala da ordem permanente da igreja [At 20.28]. Os pastores tinham
também que ser designados, como ele afirma aqui. Pois esta é a
diferença entre um apó stolo e um pastor: um pastor é designado
para um lugar e deve permanecer ali como um lugar fixo; requer-se
de um apó stolo que ele vá por toda parte, e o ofício era temporá rio
até que o evangelho fosse proclamado a todos. Portanto, havia
necessidade de apó stolos; no entanto, uma vez que sua existência
cessasse, somente o ofício regular de pastor era permanente. Os
apó stolos eram como deputados, usados para assegurar que Jesus
Cristo tomou posse de seu reino. Dessa forma, no dizer de Paulo,
cumpria-se a profecia de Isaías: “Fui buscado pelos que nã o
perguntavam por mim; fui achado por aqueles que nã o me
buscavam; a um povo que nã o se chamava do meu nome, eu disse:
Eis-me aqui, eis-me aqui” [Is 65.1; Rm 10.20]. Essa, repito, era a
tarefa para a qual Paulo e seus companheiros foram comissionados.
Tinham que proclamar a Palavra de Deus em lugares onde
anteriormente ela era desconhecida; tinham que levar avante o
reino de nosso Senhor Jesus Cristo; reconduzir as pessoas que
viviam longínquas; reunir no rebanho os que eram bestas
indomadas; e trazê-los à submissã o do grande e supremo Pastor os
que lhes foram dados por Deus, o Pai. Mas para os pastores o ofício
era bem diferente — cada um tinha que ter um lugar fixo a ele
designado, e tinha que ficar ali.
Em nossa pró pria época, os pastores sã o escolhidos. Como isso é
feito? Nã o como os apó stolos que tinham de ir por todo o mundo
sem parada. Cada pastor deve conhecer a tarefa que lhe foi confiada
e, quando designado a um lugar, deve lançar mã o à obra e trabalhar
com toda fidelidade. É esse o significado de Paulo quando escreveu:
“Eu te deixei em Creta para que designasse pastores e presbíteros
em cada cidade”. A palavra “presbíteros” usada por ele aqui significa
a mesma coisa que “anciã o”. Nã o é que todos os que eram chamados
para aquele ofício fossem pessoas idosas, pois vimos que Timó teo,
um anciã o — também uma pessoa ilustre —, era jovem. E quando
Paulo o comissionou, nã o significava uma perversã o da ordem de
Deus. Comumente, a Escritura refere os que exercem a liderança
como “anciã os”, ainda que nã o fossem relacionados à igreja. Mas por
causa de sua sabedoria, seriedade e bom senso, é como se já fossem
avançados em idade. Essa é a razã o para que fossem sempre assim
descritos.
Quanto a essa ralé que no papado é chamada de sacerdó cio, sã o uma
piada, inclusive uma desgraça! Nã o obstante, o fato de que tornaram
a palavra odiosa e um opró brio, nã o significa que um termo
empregado pela Santa Escritura seja rejeitado. [5]
A palavra
“presbítero” é um título em si mesmo santo, ainda quando fosse
preferível ser pendurado de um patíbulo do que ser um sacerdote
papal! Esta é uma maldiçã o tã o abominá vel que deveríamos
considerá -los como açougueiros de Jesus Cristo, pois o crucificam
diariamente o quanto forem capazes. [6] Ser um presbítero cristã o,
porém, é algo muito diferente.
Aqui, portanto, a intençã o de Paulo é mostrar que nã o basta que o
evangelho seja pregado uma vez em um lugar; a obra pedagó gica
deve prosseguir até o fim. Por quê? Porque nã o somos levados
imediatamente à perfeiçã o. Assim, pois, o que uma vez foi edificado
tem de ser mantido até o fim. Razã o por que necessitamos de
pastores em todos os lugares; os presbíteros que seguirem outrem
fortalecem os crentes continuamente e os capacitam a fazer
proficiência na escola de nosso Senhor Jesus Cristo. Devem servir,
respectivamente, grandes e pequenos; idosos e jovens; e assim
corpo a corpo o ofício alcança aqueles que vierem depois de nó s.
Com isso em mente, visualizemos agora o que a seguir está escrito:
Por esta causa, te deixei em Creta, para que pusesses em ordem as
coisas restantes . A palavra que Paulo usa realmente significa
“emendar”, mas também tem o sentido de “levar à completude”. Ora,
ele nã o está sugerindo que Tito emendasse, mudando tudo o que
Paulo havia feito desde o início; em si, coisas boas e só lidas e acima
de censura. Entretanto, visto que ele havia começado a construir, a
obra deveria continuar e se completar. Tito, pois, tinha que corrigir
o que ainda estava faltando, porém sem mudar ou desfazer o que
Paulo havia posto no lugar. Ele tinha que fazer acréscimo e, assim,
levar a obra à sua completude. Enquanto Paulo arma Tito com
autoridade, devemos recordar que devemos ajudar os servos de
Deus tanto quanto pudermos para o cumprimento de seu ofício; e se
alguém resistir e tentar obstruí-los, esse deve ser repelido.
Na verdade, devemos provar que somos cristã os? Demos um só lido
suporte à queles que estã o incumbidos de declarar a Palavra de
Deus, a fim de que façam tudo o que lhes é requerido. Se forem
estorvados, ajudemos-lhes com o melhor de nossa habilidade; cada
um segundo sua posiçã o e situaçã o. Os indivíduos privados devem
resolver dar sua assistência aos que estã o em dificuldade, porém
que sirvam a Deus fielmente e sustentem a autoridade deles. Caso
haja intrometidos e salafrá rios que se levantem contra eles, que
sejam resistidos e que todos nó s concordemos em indiciá -los, por
assim dizer, num sentido legal. Eis como podemos mostrar que
somos cristã os genuínos. Os que exercem o poder da espada devem
entrar em açã o, principalmente para assegurar que o ministro do
evangelho permaneça a salvo e íntegro — isto é, que os pastores nã o
sejam impedidos de desfrutar da liberdade que lhes é permitida por
Deus, a fim de preservar a ordem e disciplina necessá rias.
Que os pastores também tratem uns aos outros desta maneira.
Aquele que recebeu um dom maior nã o empurre para um lado os
colegas com o fim de tirar deles vantagem e conservá -los em posiçã o
inferior. Ao contrá rio, que lhes ofereça uma mã o ajudadora e os
ajude a serem promovidos. Os que estã o abaixo deles e que nã o
exercem a mesma autoridade, sejam cuidadosos em seguir o
exemplo dos outros e se unam harmoniosamente com eles. E o que
quer que aconteça, que isso coopere para que a obra de edificaçã o
avance rumo à sua completude. Que sirvam a Deus sem inveja ou
rivalidade e sem perturbar a ordem designada por Deus. Que isso
seja clara evidência de que de fato sã o filhos de Deus.
À moda de contraste, vemos que tipo de pessoas sã o aqueles que
desejam destruir a autoridade dos pregadores. É verdade que, se os
homens, sob o pretexto de ser pastores da igreja e ter a incumbência
da mensagem da salvaçã o, buscam subir mais alto, tal tirania deve
ser resistida. Mas quando os homens se inclinam a caluniar os que
pregam a Palavra de Deus, de modo que a sua mensagem só é
recebida pela metade e sã o continuamente ridicularizados, devemos
considerar como ferramentas de Sataná s todos os que tentam
vilipendiar e denegrir os pastores da igreja.
Isto foi o que vimos acontecer no conflito circunjacente com um
mísero herege cujo ú nico desejo era subverter tudo e semear
terrível confusã o entre nó s. [7] E os que se envolvem com tais
vermes deveriam enrubescer-se de vergonha durante toda a vida,
pois eles lutaram tã o ferrenhamente quanto puderam contra Deus e
se mostraram inimigos da igreja quando se puseram ao lado daquele
miserá vel que tentou acender aqui um fogo diabó lico que nã o teria
facilmente se extinguido. Nã o devemos ter respeito por pessoas
como essa. Em vez disso, sigamos a Paulo e tentemos o quanto
pudermos ver que a Palavra de Deus é aceita com toda reverência.
Mostremo-nos bem dispostos para com aqueles que fielmente no-la
pregam. Asseguremo-nos de que sejam aptos a cumprir livremente
seus deveres e que se armem nã o com a espada física, mas com a
espada da Palavra de Deus; de modo que, quando falarem em nome
de Deus, sejam ouvidos sem dissensã o ou porfia. Que haja entre nó s
tal ordem que nã o soltemos as rédeas e nã o deixemos cada um agir
livremente como lhe apraz; em vez disso, submetendo-nos ao jugo
de Deus, nos guardemos de toda confusã o. É assim que devemos
aplicar este versículo onde Paulo declara que deixou Tito em Creta.
Portanto, Paulo, o santo apó stolo que foi posto muito acima dos
demais, nã o nutre inveja de Tito, que era inferior em idade, porém
lhe diz que “corrigisse o que ainda resta”. Os que sã o motivados por
ambiçã o gostariam de ser tidos imediatamente como talentosos;
desejam ser respeitados como pessoas que prestam um serviço fiel e
impecá vel. Ao contrá rio, supondo que temos labutado a vida inteira
para edificar a igreja, jamais conseguiremos concluir. Portanto,
somos advertidos a nã o contar tanto com nosso duro labutar e nossa
pró pria força, como se uma pessoa com dons superiores pudesse de
uma vez edificar com perfeiçã o a igreja de Deus. Ao contrá rio, nossa
intençã o deve ser ajudar uns aos outros; e a pessoa que já avançou
mais deve entender que nã o pode fazer tudo sozinha. Em vez disso,
que cada um se curve ao trabalho, mas também peça ajuda à queles a
quem Deus supre; que se alegre vendo o progresso de outros,
contanto que o alvo de todos seja servir a Deus e fazer avançar o
reino de nosso Senhor Jesus Cristo.
Se pensarmos seriamente em nó s mesmos, teremos sempre motivo
para gemer, uma vez que estamos mui longe de cumprir com nosso
dever. Estã o grandemente equivocados os que se contentam com
facilidade e dizem a si pró prios: “Esta é uma igreja realmente
reformada; nã o falta nada”. Pois se soubessem qual foi a reforma
real, seriam precavidos em pensar que tudo foi feito sem falha. Por
mais arduamente que tentemos ordenar e organizar as coisas, vê-se
que é um notá vel empreendimento, uma vez tenhamos começado a
realizar mesmo a tarefa mais simples! Quanto ao começo, a obra que
deveria ser feita com perfeiçã o, ainda estamos longe de alcançar a
meta. Por isso temos de recordar o que Paulo diz em outro lugar
sobre o alvo rumo ao qual ele labuta: havendo feito quatro ou cinco
corridas, e havendo avançado até o limite, ainda nã o havia alcançado
o ponto de chegada [Fp 3.12-14]. Diz ele: “Eu labuto ao má ximo que
posso; mas o que tenho feito equivale a nada, até que Deus conduza
meus labores ao ponto final — até que ele me remova deste mundo”.
Portanto, nã o devemos presumir que, havendo trabalhado por um
tempo, podemos entã o viver aqui em nosso ó cio. Temos de ser
servos de Deus sob a condiçã o de viver e morrer visando à
edificaçã o de sua igreja.
Ora, visto que o tempo nã o nos permite explicar mais
detalhadamente, vejamos que o usemos para nossa instruçã o.
Quando Paulo fala da igreja de Deus, ele descreve seu trabalho como
ainda incompleto; e declara que um homem nã o é suficiente; a
necessidade requer nã o é apenas o trabalho de dois ou três, mas o
trabalho contínuo de todos a quem foi confiada a tarefa; a obra deve
avançar e aumentar corpo a corpo. Assim, quando tivermos
consumido toda a nossa vida na edificaçã o da igreja e quando Deus
graciosamente fizer pró speros nossos esforços, tentemos assegurar-
nos de que, apó s nossa morte, a obra nã o é abandonada, senã o que
haverá sempre pessoas a levá -la a bom termo e, se possível,
conduzi-la à completude. Para tal realizaçã o, nã o negligenciemos os
meios e auxílios que Deus nos designar. Pois precisamente como ele
conhece bem nossa fragilidade e ignorâ ncia, assim também conhece
o remédio a ser aplicado.
Eu insisto neste ponto, porque no pró ximo domingo receberemos a
Ceia do Senhor. [8] Ninguém deve pensar em vir irrefletidamente à
santa mesa e adentrar como suínos que metem seus focinhos na
gamela. Tal sacrilégio nã o ficará impune. Toda vez que a Ceia do
Senhor é preparada, temos de nos lembrar de nossa fraqueza e de
como Deus provê socorro para nossa fragilidade. Ele faz isso quando
o evangelho nos é pregado diariamente; quando fazemos oraçõ es e
sú plicas; quando lemos em nossas casas ou quando ouvimos falar o
que é pertinente à nossa salvaçã o. Em meios como estes, Deus
mostra continuamente que ele nos sustenta. Nã o obstante, a Ceia dá
especial testemunho do fato de que nosso Deus nos ajuda quando
estamos, por assim dizer, a meio caminho de casa; ele busca impelir-
nos ainda mais, de modo que olhemos sempre para ele.
Notemos também que a Ceia serve para corrigir e completar as
coisas que ainda estã o faltando. Nada seria se Deus meramente
começasse em nó s uma obra, sem continuaçã o, a ajudar-nos a sentir
sua graça, da qual temos na Ceia firme certeza. Entã o, ai de nó s se
macularmos esta santa mesa que é dada para auxiliar-nos em nossa
salvaçã o. Portanto, quando tomarmos parte nela, cuidemos de estar
bem fundamentados na fé, no arrependimento e no amor. E visto
que somos plenamente persuadidos de nossa fraqueza e fragilidade,
visto que nã o temos tudo o que nos é requerido, roguemos a Deus
que nos fortaleça para seguirmos adiante, para aumentarmos nossa
fé e nossa esperança da vida celestial. Anelemos por isso com todas
as nossas forças; e que cada um se esforce e lute, nã o com sua
pró pria força, mas na força que Deus supre. Ele nã o falhará .
É isso que devemos aprender desta passagem. De tal modo
construamos que cada um de nó s assista a seu pró ximo para que
cresça na graça. Nã o invejemos o outro, mas nos esforcemos para
avançar na obediência a Deus e nosso Senhor Jesus Cristo. Estando
unidos por aquele santo e insepará vel vínculo que ele santificou
para nó s quando nos chamou para sermos membros de seu corpo,
sirvamo-lo e honremo-lo, a fim de que, finalmente, sejamos
herdeiros com ele de sua gló ria celestial.
 
Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossas falhas e orando para que ele nos faça senti-las,
e tudo mais, de modo que sejamos sempre levados a odiar nossos
pecados, amar sua justiça e anelar por ela, até que ela realmente
reine dentro de nó s. E que sejamos recriados segundo sua justiça, a
qual se concretizará quando formos esvaziados de nossas
imperfeiçõ es e vestidos de sua gló ria.
 

4. QUARTO SERMÃO: LIDERANÇA NA IGREJA (1) [Tito 1.5, 6]


Por essa causa, te deixei em Creta, para que pusesses em ordem as
coisas restantes, bem como, em cada cidade, constituísses presbíteros,
conforme te prescrevi: alguém que seja irrepreensível, marido de uma
só mulher, que tenha filhos crentes que não são acusados de
dissolução, nem são insubordinados.
Começamos esta manhã pontuando quã o difícil é a obra de
edificaçã o da igreja de Deus e quã o impossível é ser bem-sucedido
em um dia ou em curto período. A obra é contínua, e a vida inteira
de um homem nã o basta. Naturalmente, Deus poderia conduzir seu
povo à perfeiçã o se porventura quisesse fazê-lo, mas ele quer levar-
nos por passos medidos — tudo com o fim de humilhar-nos e
ajudar-nos a reconhecer nossas misérias e deplorá -las, de modo a
caminharmos por este mundo sempre nos volvendo para ele. Pois
sabemos que o que ele começou em nó s nada é até que, como
costumamos dizer, ele ponha um ponto final. E, visto que cada um de
nó s deve acima de tudo ser um templo do Santo Espírito, apliquemo-
nos a esta obra de construçã o.
Aqueles a quem Deus chamou a pregar sua Palavra designou
pedreiros na construçã o de seu templo. Da mesma forma, ele deseja
que nos ocupemos nisso, cada um em sua pró pria esfera. Entretanto,
notemos que é a toda a igreja que edificamos em comum, e cada um
de nó s deve trabalhar nela, pois nos cabe fazer as coisas
progredirem o má ximo que pudermos. No entanto, os que vivem
satisfeitos com o atual estado de atividades estã o muito enganados.
É um sinal de que ainda nã o entenderam o alvo ao qual Deus os
chama nem se examinam, pois estã o muito longe da meta a que
deveriam almejar. Assim, esforcemo-nos o má ximo que pudermos
para alcançá -lo e reflitamos cuidadosamente sobre qual é nossa
deficiência. Ainda que Deus permita graciosamente que sua Palavra
nos seja ensinada com pureza e mesmo quando entre nó s prevaleça
alguma ordem tolerá vel, lembremo-nos de que tudo ainda nã o é
perfeito e que a obra nunca é feita com inteireza. Isto nã o deve
deprimir nossos espíritos, mas, ao contrá rio, deve estimular e
inspirar-nos a observar a injunçã o de Paulo e a seguir seu conselho.
Mas, notemos bem, assim que Deus começa a edificar sua igreja
entre nó s, os homens se dispõ em a desfazer tudo. Em qualquer caso,
quem realmente se põ e a refletir sobre o que é errado? Ao contrá rio,
nã o podemos suportar o presente estado de coisas — frá gil como ele
é — sem nos queixarmos de que o jugo de Cristo é demasiadamente
pesado; e se há entre nó s alguma sorte de ordem, por mais
insignificante que seja, nã o o podemos tolerar: “Oh! Se esta
disciplina continuar, onde irá terminar?”. Caso se faça alguma
tentativa de sofrear a blasfêmia: “Oh! Por que tanta severidade?
Todos nó s fazemos isso ocasionalmente!”. Caso se faça mençã o de
outras irregularidades: “O que é isso? Nã o podemos regozijar-nos
legalmente?”. Quando se pune a dança e outras infâ mias, alguém
protesta. Se há leis que procuram refrear um comportamento
desenfreado, dizemos que sã o severas demais. Por quê? Porque
somos surdos para com a instruçã o de Paulo aqui. Embora
trabalhasse em Creta com dificuldade e houvesse estabelecido uma
forma de igreja segundo o mandato de nosso Senhor Jesus Cristo,
contudo nã o havia conduzido o reino de Cristo à completude. Isso só
poderia se dar na plenitude do tempo. Como podemos hoje fazer
melhor que Paulo? É um equívoco pensar que somos mais prontos a
aceitar uma forma mais completa e mais só lida de governo do que o
povo daquele tempo. Aprendamos, pois, a sentir desprazer em nó s
mesmos. Sejamos sempre levados a buscar o avanço do reino de
Cristo e, à medida que virmos o edifício ainda incompleto, tentemos
terminá -lo quanto for possível.
Se temos uma casa que tem infiltraçã o de á gua da chuva e receamos
que ela apodreça, reparamos o teto. Se há uma parede que ameaça
cair, a reconstruímos. Acaso há uma casa neste mundo mais preciosa
que o santo templo de Deus, que nos honra com a habitaçã o de seu
Santo Espírito em nó s e que espera que nos unamos como pedras
vivas que formam uma casa espiritual, onde lhe oferecemos
sacrifícios, adorando-o e invocando seu nome? Vemos a chuva
chegando, ouvimos estalidos, vemos sinais ó bvios de decadência e,
no entanto, nã o nos apressamos a preservar algo de tã o grande
preço e valor! Quando vemos porcos invadindo a sala de um homem
nobre, acaso nã o tomamos providência imediata a fim de que uma
coisa tã o vil nã o aconteça outra vez? No entanto, vemos cã es e
porcos enlameando a igreja de Deus e trazendo-lhe infecçã o, vemos
desabrida licenciosidade que traz opró brio ao nome de Deus, vemos
sua igreja vilipendiada, sem que alguém pareça notar! Pior, há
homens que querem esta confusã o e que o mal seja encoberto! Em
suma, a maioria das pessoas dá seu má ximo para arruinar e solapar
todo o progresso já feito.
Enquanto um dos servos de Deus prega fielmente a Palavra e é
zeloso em guiar seu povo a uma vereda certa, há bem poucos que
tentam ajudá -lo. A maioria fará tudo quanto pode para lançar tudo
de ponta cabeça. Enquanto alguém com muito esforço e dificuldade
carrega uma pedra, outros arrancarã o três com o fim de impedir o
prosseguimento da obra. Tais coisas sã o corriqueiras hoje. Por isso
devemos labutar com ousadia para construir este templo espiritual
de Deus e que nenhuma dificuldade nos impeça de prosseguir, pois
Deus nos dá graça para terminar enquanto nã o formos ociosos e
negligentes.
É oportuno, pois, que trabalhemos muito seguindo o exemplo de
Paulo. Observemos especialmente as palavras o que ainda resta .
Que cada um de nó s olhe para si mesmo e considere
cuidadosamente o que ainda lhe falta. Descobriremos que ainda
estamos sujeitos a muitas falhas, de modo que fracassamos
completamente no cumprimento de nosso dever. Somos também tã o
indolentes que nã o fazemos a centésima parte do que deveríamos.
Deveríamos voltar nossos pensamentos para a vida celestial e,
enquanto passamos por este mundo, subjugar todos os nossos maus
desejos para que eles nã o mais nos façam recuar. Em vez disso,
dificilmente conseguimos manter-nos pensando, ainda que de
maneira efêmera, no céu. Em suma, quando nos pomos a olhar para
Deus e a buscar a vida a que ele nos chama, somos mais frios que o
gelo. Entretanto, nos deixamos arrebatar por um vagalhã o de
sentimento e desejo. Assim, quando vemos que somos carentes de
muitas coisas neste mundo, que todos sejamos mais prontos a
corrigir-nos e, tendo feito isso, a considerar o mundo ao nosso
redor, onde vemos, de um lado, blasfêmias, e, do outro, imoralidade,
indisciplina, indulgência e outros escâ ndalos e infecçõ es. Estas
coisas, repito, deveriam despertar-nos para nã o sermos tã o
arrogantes a ponto de pensar que somos tã o perfeitos que nã o se
requer de nó s mais nenhuma obra. Em vez de disso, deveríamos
assegurar-nos de que o que é bom continue avançando, que
prevaleça melhor ordem do que se dá hoje e que nos aproximemos
ainda mais de Deus e do padrã o de pureza que ele nos ordena em
sua Palavra. Isso é o que devemos ter em mente.
Vemos que o evangelho só pode ser mantido se atentarmos para o
que Paulo acrescenta em seguida: bem como, em cada cidade,
constituísses presbíteros. Pois a pregaçã o é o meio pelo qual a igreja é
mantida. Como dissemos nesta manhã , ela é a semente imperecível
pela qual somos gerados por Deus ⸻ é o leite para cada jovem e
alimento para os adultos. A igreja fracassaria e pereceria se nã o
fosse sustentada pela pregaçã o da Palavra de Deus. Eis por que
Paulo requer que fossem designados anciã os ou presbíteros,
homens que têm a tarefa de guiar sempre o povo de Deus e de
conservá -lo obediente a ele. Estes nã o sã o o tipo de pastores
sonhado pelos papistas: entre eles, sacerdó cio é uma infecçã o
saturada de sacrilégio que almeja destruir toda ordem. Estes sã o
presbíteros cristã os cuja tarefa é declarar o evangelho; nã o
sacrificar Jesus Cristo como fazem aqueles demô nios que falsamente
reivindicam o direito de oferecer Cristo a Deus Pai. Nada disso tem
algo a ver com o ofício de presbítero como o achamos aqui, pois
Paulo mostra sucintamente que os presbíteros de quem ele fala sã o
ministros e pastores da igreja. Entretanto, este é um tema que
consideraremos mais plenamente em seu lugar. Agora basta saber
que, se queremos que a igreja de Deus seja sadia e íntegra, deve
haver pessoas que nos proclamem a Palavra de Deus, porém nã o
aqueles que, movidos pela ambiçã o, logo subverteriam toda a ordem
como se corta a garganta de um homem! Pois nã o há outra vida à
vista de Deus além daquela que temos pela fé, como dissemos nesta
manhã .
É importante enfatizar este ponto e rogar a Deus, quando ele enviar-
nos sua Palavra, que ao mesmo tempo levante homens que
verdadeiramente no-la ministrem. A seguir Paulo se refere aos
presbíteros que sejam escolhidos [ou constituídos]. Ele prefacia suas
palavras a Timó teo com a mesma observaçã o: “se alguém aspira ao
episcopado, excelente obra almeja” [ou, o homem que deseja ser
bispo assume uma tarefa nobre] [1Tm 3.1]. Esta nã o é uma
ocupaçã o ordiná ria, e nã o é uma diversã o. Como continua a dizer:
“Porque é indispensá vel que o bispo seja irrepreensível como
despenseiro de Deus” [ou, aquele que é pastor na igreja é como um
administrador na casa de Deus, tendo o cuidado das almas] [Tt 1.7].
Portanto, que ninguém lance mã o da obra irrefletidamente, nem
promova o primeiro homem que apareça. Que se faça uma escolha
discriminató ria, para que o lugar somente seja assumido por alguém
apto para edificar a igreja de Deus e competente para exercer seu
ofício.
Em primeiro lugar, se requeria que os escolhidos fossem
irrepreensíveis . Aqui, a intençã o de Paulo é a mesma que em sua
primeira carta a Timó teo. Ele nã o esperava que os pastores fossem
isentos de todas as falhas, pois seria impossível encontrar tal pessoa.
Quando, no tempo da lei, os sacerdotes que prefiguravam nosso
Senhor Jesus Cristo entravam no santuá rio para mediar entre Deus e
os homens, eles faziam reconciliaçã o e paz entre os dois. Antes de
tudo, eles tinham que confessar que, na verdade, eram pecadores
miserá veis. Assim, a igreja seria destituída de mestres caso se
requeresse que estes fossem impolutos e sem má cula. Entretanto, há
falhas ocasionadas por fraqueza e pecados dos quais todos os
homens sã o culpados. É possível achar homens que sirvam a Deus e
cuja vida seja sem aquela sorte de mancha que é merecedora desta
censura: “Tu és um ladrã o, um mulherengo, um ébrio, um blasfemo”,
ou algo similar. Pode ser que possuam fraqueza como todos os
homens, porém que nã o sejam tã o corruptos que nã o possam servir
a Deus fielmente se chamados para essa tarefa, ou nã o possam
reprovar e censurar homens por seus pecados. É isso que Paulo quer
que entendamos nesta passagem.
Ele tinha toda razã o em demandar que os que pregam Palavra de
Deus sejam irrepreensíveis, pois o que aconteceria se um homem
fosse culpado de uma falha tã o notó ria que o desacreditasse
inteiramente? Poderia abrir a boca para recriminar os ofensores?
Ele nã o seria livre para isso. Pois, como diz Paulo em outro lugar,
faz-se necessá ria uma consciência limpa e pura se temos de
proclamar a verdade e ensinar livremente e sem oposiçã o [1Tm
1.19; 3.9]. A conclusã o a que chegamos do que lemos aqui, portanto,
é que a Palavra de Deus nã o deve ser diminuída pela culpa de
alguém que a porta, de modo que alguém diga: “Quem ele pensa ser?
Ele fala muito bem quando se encontra no pú lpito, mas um
violonista poderia fazer outro tanto, e um comediante realizaria
muito mais. Isso outra coisa nã o é senã o tagarelar”. A Palavra de
Deus se transformará em objeto de escá rnio se um homem falha em
mostrar com sua vida que fala seriamente. Para evitar o sacrilégio
de ver a Palavra de Deus entre nó s calcada sob os pés, Paulo afirma
que o ministro que a prega seja isento de toda má cula [2Co 6.3].
É verdade que os servos de Deus nunca estarã o acima de qualquer
censura. O pró prio apó stolo confessa que teve de sofrer opró brio e
desgraça [1Co 4.13]. No entanto, em toda a sua vida ele se
comportou tã o inocentemente que nele nã o se achava falha
nenhuma; mesmo antes que abraçasse a fé em Jesus Cristo, ele era
irrepreensível, um espelho e pérola de toda santidade.
(Seguramente, ele nã o sabia o que estava fazendo, pois ainda nã o
era governado pelo Espírito de Deus. Mesmo assim, viveu uma vida
de tanta retidã o, que ninguém poderia achar nele qualquer falha.)
Nã o obstante, ele nos informa de que foi excluído por zombaria e
opró brio, era acusado até pelos crentes que mostravam tã o pouca
gratidã o que em sua ausência foi injuriado e amplamente caluniado
[1Co 4.9-13; 2Co 10.8-11; 12.16-18]. Entã o, quando Paulo demanda
que os pastores sejam irrepreensíveis, ele quer dizer-nos que
investiguemos e examinemos se a vida do homem é pura e impoluta
e se ele continua a se comportar dessa maneira.
Portanto, embora nã o possamos silenciar o fofoqueiro e, assim,
evitar toda e qualquer difamaçã o, nó s mesmos temos de ser
irrepreensíveis, visto que nos é dito que, a despeito de nossa pureza
e inocência, seremos ultrajados como malfeitores. Como isso é
possível? Temos da parte de Deus este testemunho de que ele nos
aprova e, por mais que façam mexericos contra nó s, isso nã o passa
de mentira. Uma vez que Deus nos tenha aceitado e recebido,
seremos aptos a manter nossa integridade. Existem homens
perversos que falarã o mal de nó s sem razã o. Todavia, se um homem
se esforça em defender sua causa justa e está pronto a responder
por si mesmo sempre que for intimado, ele se mostra irrepreensível
comparecendo ousadamente, tendo, no dizer de Isaías, sua
testemunha no céu [Is 50.8]. Entã o, ao exigir que os pastores
escolhidos sejam irrepreensíveis, Paulo deixa bem clara a sua
intençã o. Seu desejo é que a Palavra de Deus seja honrada como bem
merece e que nã o sofra nem opró brio nem ó dio por conta dos
pecados dos homens. Os acusados que reprovam os ofensores
devem cumprir livremente com seu dever; nã o devem ser detidos
por qualquer objeçã o que porventura os homens façam: “O que você
pensa ser? Conhecemos a sorte de vida que você vive e como se
comporta!”. Eis por que Paulo insiste que os ministros da Palavra,
cumprindo com a tarefa de liderar outros, devem ser
irrepreensíveis. Somente assim cumprem as demandas de seu ofício.
Daí Paulo continuar dizendo: marido de uma só mulher . Este texto
tem sido mal entendido, porque ninguém considera o que levou
Paulo a fazer esta afirmaçã o. Entre os judeus havia uma corrupçã o
tal que se pensava ser lícito ter muitas esposas, justamente como os
patriarcas tiveram, cujo exemplo estupidamente seguiam. Pois os
homens, assenhorando-se da mais leve oportunidade para a
libertinagem, sempre converterã o uma má tradiçã o em lei. Se este
erro existiu entre os patriarcas — e só entre alguns deles —, a
intençã o de Deus nã o era que isso se tornasse um precedente e uma
norma. Nosso Senhor Jesus Cristo nos aponta a instituiçã o original
do matrimô nio, dizendo: “Nã o tendes lido que o Criador, desde o
princípio, os fez homem e mulher e que disse: Por esta causa deixará
o homem pai e mã e e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois
uma só carne” [Mt 19.4, 5]. Entã o, os judeus tinham falsamente
tentado seguir o exemplo dos santos patriarcas. Seja como for, este
abuso era praticado entre eles em grande escala.
Quando o cristianismo começou, teria sido algo demasiado doloroso
e amargo compelir os homens a deixarem as esposas a quem haviam
tomado. Lançá -las fora teria sido duro demais. Nã o obstante, nã o
pode ser que uma prá tica tolerá vel entre os povos fosse permitida a
alguém que se destinava a ser um espelho a outros e a mostrar-lhes
o caminho. Caso eu seja criticado por uma falha, posso replicar:
“Meu vizinho faz exatamente a mesma coisa!”. Isso procede, mas
meu vizinho nã o tem a tarefa de ensinar e corrigir outros. Os
ministros da Palavra de Deus nem por isso devem ser livres para
fazer o que é tolerado em outros; devem conhecer o que lhes é
permissível. É pró prio que sejam mantidos com rédea mais
apertada; se outros sã o mantidos por uma só rédea, entã o os
ministros devem ser mantidos por duas!
Por conseguinte, Paulo viu que entre os judeus existia um mal que
nã o podia ser corrigido com facilidade. A despeito do mandamento
de Deus, um homem poderia tomar para si duas ou mais esposas, de
modo que um direito habitual há muito reivindicado se tornara lei e
nã o podia ser removido imediatamente, como sucede quando um
vício se torna profundamente radicado. O apó stolo proíbe
expressamente que os pastores e aqueles a quem foi confiado o
ensino se comprometessem com uma prá tica como essa, a qual nada
mais é senã o incontinência. Quando alguém tenha maculado o que
deveria ser o mais santo dos contrastes e inclusive tenha subvertido
a ordem natural, como nã o poderia ser culpado disso? Bem sabemos
que o matrimô nio é um vínculo sagrado, e a natureza nos ensina que
a poligamia é vil e detestá vel. Imaginemos um homem que chega a
destruir os pró prios fundamentos da natureza, mas que sobe ao
pú lpito e declara: “Meus amigos, devemos mostrar em cada parte da
vida que nos cabe servir a Deus com temor, obediência e
integridade. Nã o devemos ser como os pagã os que nã o se deixam
governar pela Palavra de Deus”. Como pode ele chegar a falar nesses
termos, quando alguém pode dizer-lhe: “Miserá vel! Você ousa dizer-
nos ser um abuso do vínculo conjugal ter duas esposas, logo você
que tem duas?!” Essa é a razã o por que Paulo buscava estigmatizar a
prá tica entre os pastores, a fim de que todos soubessem que esta era
repugnante a Deus e uma desordem que nã o deve ser tolerada.
Embora entre o povo ordiná rio ela nã o pudesse ser corrigida quanto
era necessá rio, pessoalmente temos de aprender a aderir à regra
apostó lica.
Esse, pois, é o primeiro ponto que Paulo estabelece, e devemos
compreender bem seu significado. Nã o obstante, vemos que,
diferente do papa, ele nã o recomenda que os ministros da Palavra se
abstenham do matrimô nio como forma de buscar a santidade.
Quando ele declara que um ministro deve ter uma casa bem
ordenada, viver pacificamente com sua esposa e governar seus
filhos com aquela disciplina que sirva de exemplo para os demais,
ele nã o estaria falando com a autoridade de nosso Senhor Jesus
Cristo? Portanto, esta é a santidade que Deus requer de seus servos
e dos que sã o designados a pregar sua Palavra; devem viver
castamente com suas esposas e como um casal casado. Aqui, no
entanto, temos o papa asseverando que, se um sacerdote é casado,
entã o ele se conspurcou, é um filho deste mundo, indigno daquele
estado angélico e obrigado a renunciar o matrimô nio se quiser ter
um lugar na igreja. Se o papa alega falar com a autoridade de Deus,
entã o que a produza!
Há uma clara contradiçã o aqui, pois o Espírito Santo mantém que o
matrimô nio é legítimo entre os pastores da igreja, de modo que
ninguém nutra quaisquer dú vidas. Além do mais, em outro lugar ele
diz: “Digno de honra entre todos seja o matrimô nio” [Hb 13.4]. No
mesmo versículo, lemos ainda que Deus julgará os imorais e
adú lteros, mas que o matrimô nio é digno a seus olhos; e nã o só
entre o laicato — para usar o termo inventado por esta escó ria e
gentalha papais —, mas entre todos. Visto isto ser assim, acaso nã o
teria o diabo falado pela boca do papa e de todos os seus lacaios,
quando negaram o matrimô nio aos que sã o chamados a pregar a
Palavra de Deus? E nã o contente em exercer sua tirania e privar os
homens da liberdade outorgada por Deus, têm blasfemado
terrivelmente, declarando que os que vivem na carne nã o podem
agradar a Deus. Ora, o que é isso, senã o torcer e falsificar a Santa
Escritura [Rm 8.8]? Ali Paulo está falando de adú lteros e devassos,
de roubadores, blasfemos e enganadores, os maldizentes que
mentem acerca de seus vizinhos e malfeitores de toda espécie. Esses
tais, reiterando, nã o podem agradar a Deus. Além disso, o diabo, em
Roma, vomitou sua blasfêmia infernal, declarando que os que se
casam nã o podem agradar a Deus! Acaso o santo matrimô nio
poderia ser mais vilmente conspurcado ou mais gravemente
blasfemado do que isso?
Além do mais, quem é o autor do matrimô nio? Evidentemente, Deus
tem permitido que Sataná s reine nesse trono de apostasia, de modo
que os que veem que ele é um fosso do inferno se deixam cegar
voluntariamente e merecem a perdiçã o. Ninguém pode alegar tal
ignorâ ncia a ponto de dizer: “Esta pobre plebe simplesmente segue
aonde seus prelados os guiam”. O fato é que sã o mais que ditosos
deixando-se tapear e enganar e seguir em frente rumo à destruiçã o.
Deus nã o poderia fazer outra coisa senã o tomar vingança de uma
confusã o tã o diabó lica. Pois como seria se o mundo fosse destituído
de bons pastores? Todos os que buscaram viver vidas santas e
impolutas foram silenciados, como se deu com aqueles que
desejavam servir a Deus e abster-se da imoralidade e outras
perversidades. Nenhum desses teve a ventura de ser bispo,
sacerdote ou algo mais. Por quê? “Oh! Eram casados!” Enquanto os
que livremente se entregaram à orgia foram tidos como aptos a ser
cú mplices do papa. Portanto, nã o fazia diferença se eram bispos
mitrados ou sacerdotes besuntados! [9] Esses eram aptos ao ofício, e
no fim do mundo foram saturados com sua infecçã o.
Foi assim que a imoralidade se espalhou e o matrimô nio foi
despojado e os lares só foram mantidos puros com a maior
dificuldade; pois o fedor desses homens prevaleceu onde quer que
eles expelissem seu veneno, e tã o contagiosa era a doença que quase
ninguém ficou imune dela. Além do mais, Deus os cegou e injetou
neles tal depravaçã o, que nã o podiam falar bem dos maus, nã o da
maneira dos animais brutos — pois a brutalidade daqueles que
sustentavam a tirania do papa é de uma ordem bem diferente —,
mas, de uma maneira muito pior e mais aversiva. Estes, pois, sã o os
salá rios que Deus lhes enviou em sua ira e justo juízo, porque
rejeitaram o santo matrimô nio, o qual é um estado nobre e
eminente. Portanto, se possuímos verdadeira firmeza, nã o nos
deixemos guiar por nossas pró prias ideias; consideremos o que
Deus aprova e nos contentemos com isso.
Ora, quando lemos que o servo de Deus deve ser esposo de uma só
mulher, nã o devemos exigir dele mais do que isso. A intençã o de
Paulo nã o era tornar o matrimô nio obrigató rio ao homem nem
proibi-lo aos que sã o designados ministros da Palavra. Nã o há
sugestã o de compulsã o. Paulo meramente estabelece o princípio
geral: que cada um olhe para si mesmo e que o homem solteiro use
de sua abstinência para a honra de Deus e assegure-se de que dê ao
serviço de Deus o má ximo que puder. O pró prio Paulo se absteve de
uma esposa, como nos informa no sétimo capítulo da primeira carta
aos Coríntios [1Co 7.8]. Ele preferia que todos fizessem o que ele
mesmo fez, porém insiste que seu desejo nã o era pô r um jugo nas
almas, mas que todos fossem inteiramente livres. O homem que é
casado deve passar por este mundo como se fosse solteiro, e o
solteiro nã o olhe de viés para os outros. Seria preferível que um
homem fosse imoral do que vituperar o matrimô nio porque ele
mesmo nã o tinha esposa. Ser-lhe-ia preferível sepultar a si mesmo
em um bordel do que desprezar o matrimô nio, abstendo-se dele e
rejeitando um estado que Deus santificara.
Mais que a imposiçã o de uma lei que requer o casamento, Paulo
deseja apenas se assegurar de que os que sã o designados a pregar a
Palavra de Deus nã o sejam intemperantes ou dissolutos e que, se
houver alguma falha que ao povo comum seja permitida, que a
mesma seja proibida aos pastores da igreja que se destinam a ser
espelhos. Devemos ser cuidadosos para nã o justificar as falhas dos
pastores sob a alegaçã o de que sã o toleradas nos homens ordiná rios
de menos reputaçã o. Os ministros estã o sujeitos a uma disciplina
mais estrita do que os indivíduos privados e devem ser vigiados
mais de perto. Sob nenhuma circunstâ ncia lhes é permitida rédea
solta.
A seguir somos informados que s eus filhos sejam crentes e não
acusados de dissolução, nem sejam insubordinados. Este é um ponto
importante para observar, pois também nas cartas a Timó teo vemos
que Paulo nã o se confina unicamente aos ministros, mas requer que
suas esposas sejam bem ordenadas, de modo que, se um homem
viveu uma vida honesta e irrepreensível, mas tinha uma esposa
indisciplinada, o erro dela repercutiria sobre ele. Qualquer que fosse
a acusaçã o, as pessoas diriam: “Vejam, aquela mulher
desavergonhada é a esposa do pregador! Seu marido deveria pô r um
freio em toda essa frivolidade e desordem. Ele é o culpado de todo o
problema!”. Pois, no dizer de Paulo, se ele nã o consegue governar a
pró pria casa, como poderá governar a casa de Deus [1Tm 3.5]?
Como poderá controlar toda a congregaçã o, homens e mulheres,
jovens e idosos, quando nã o puder controlar a pró pria esposa? Por
isso, quando se faz mençã o de filhos neste texto, o que se pretende é
mostrar que, para um homem ser apto a guiar o povo de Deus e ser
um bom líder da casa de Deus e da igreja, deve provar a propó sito
que administra sua pró pria casa.
Portanto, se um homem revela que nã o só anda no temor de Deus e
nã o comete injustiça, mas que Deus é honrado e servido pelos que
estã o sob seu cuidado; que ele nã o permite que sua casa se
transforme em um bordel, um covil de jogadores, uma taverna de
bêbados ou outras coisas assim; que ele nã o permite que seus
servos, sua esposa ou seus filhos sejam, de alguma forma, levianos,
desordeiros, extravagantes ou fú teis — quando um homem governa
assim sua casa, fica em evidência que é vigilante, zeloso para com
Deus e em si mesmo sá bio e só brio. Esse é um teste seguro que
demonstra que ele é apto para liderar a igreja de Deus.
Ao requerer que os filhos sejam crentes, nã o dissolutos nem
rebeldes, Paulo fala de três qualidades essenciais. Primeiro, os filhos
devem ser crentes. Se um homem decidiu pregar a Palavra de Deus e
nã o tem instruído sua família, e se seus filhos, quando indagados
nã o podem dar sequer uma razã o para sua fé, como pode ele
conduzir à fé os de fora, quando ele mesmo nã o conduziu os seus?
Esse é o ponto de partida. Se virmos que ele tem instruído bem seus
servos e tem se comportado com propriedade em sua pró pria casa,
entã o podemos concluir que fará ainda melhor quando for posto em
posiçã o mais elevada, e que se devotará a edificar todo o povo. Aqui,
pois, a fé deve vir em primeiro lugar.
Ao mesmo tempo, contudo, sua família nã o deve ser publicamente
acusada de indisciplina. No dizer de Paulo, seus membros nã o
devem parecer dissolutos. Nã o é uma questã o de algum processo
legal na presença de um juiz, com acusadores enfileirados contra
eles. A intençã o de Paulo é que nã o haja uma indisciplina ó bvia ou
erros claros nos filhos dos pregadores. Suponhamos que ele
dissesse: “Ora, pois, quem ousa censurar meus filhos? Qualquer um
que tente culpá -los de injustiça terá que me responder!”. Se um
homem alega ser zeloso para consigo e honra seus filhos, porém os
deixa livres a um mau comportamento, de modo que se torna um
motivo de riso, tal homem pode ser escusado? No entanto, há muitos
que pensam que já fizeram tudo quando há em sua casa conversaçã o
que causa dano. “Se alguém me atacar”, retrucam, “esse tal pagará
por isso! Eu o enfrentarei e lhe mostrarei de que barro sou feito!”
Nesse ínterim, as pessoas ridicularizam a ele, a toda sua casa e a sua
esposa. Acaso esse tal nã o merece ser um marido tapeado? Um
homem pode nã o querer que seus filhos sejam difamados, contudo
permite que sejam irresponsá veis. Eles zombam das reprovaçõ es
que recebem; desafiam a Deus; neles só se vê o mal. Todavia, nã o se
deixarã o advertir do perigo que os ameaça; sabem que estã o a um
passo da destruiçã o, porém nã o podem suportar deixar seu
caminho. Visto, porém, que sã o doentes que nã o querem ser
curados; visto que recusam todo o remédio que lhe é oferecido,
deixe-se que pereçam como pobres criaturas que sã o.
E assim, quando Paulo demanda que os filhos dos ministros sejam
isentos da acusaçã o de indisciplina, ele quer dizer que nã o se
encontre neles nenhuma perversidade; que se comportem
honestamente; nã o deem motivo de ofensa nem apresentem escusas
quando alguém os injuriar e os difamar. Esse é o segundo ponto.
Em terceiro lugar, nã o devem ser rebeldes; isto é, o ministro que
proclama a Palavra e que governa a igreja de Deus deve prover que
seus filhos nã o sejam intemperantes, obstinados ou duros de
manejar como bestas selvagens. Se nã o tiver bom êxito com seus
filhos, como poderá ter bom êxito com os que nã o sã o relacionados
com ele? Se ele nã o pode controlar a insolência de uma criancinha, o
que fará com uma congregaçã o inteira? Esse, pois, é o que Paulo
queria dizer.
Note-se, contudo, que, embora esteja falando dos que haverã o de ser
escolhidos pastores, este ensino é relevante a todos nó s. Paulo nã o
está propriamente falando a pastores sobre o que devem ser, mas
está descrevendo as qualidades da pessoa escolhida para tal ofício. O
homem, diz ele, que é tã o perverso que nã o pode governar sua
pró pria casa, esse mesmo nã o pode suportar uma carga muito mais
pesada e mais difícil. Quando vem a questã o da escolha de ministros,
devemos ir muito além disso. Qualquer homem escolhido para
ensinar a Palavra de Deus, mas que se comporta mal, tanto ele
quanto toda a sua casa, perde o direito à sua herança. Ele deve ser
afastado; sua ofensa nã o deve ser tolerada. Assim como cada um
deve olhar para si mesmo, também aquele que mantiver o ofício
pú blico atente bem para o conselho de Paulo, de modo que saibamos
quais pessoas podem ser escolhidas e que obedecem a regra aqui
estabelecida. Roguemos de Deus a graça de viver de tal modo que
sua Palavra nã o seja exposta ao ridículo por nossa causa e que
nossas falhas nã o deem ao perverso motivo de blasfemar o nome de
Deus, dizendo: “Esse homem é um blasfemo e malfeitor. Que belo
bispo ele representa!”. Que tal censura nã o saia dos lá bios do
perverso sem que seja envergonhado e se revele sua perversidade
quando disser tais coisas. Portanto, Paulo nos ensina que tipo de
cristã os devemos ser.
É verdade que os ministros da Palavra de Deus devem assumir a
liderança, mas os demais devem seguir, cada um segundo sua
vocaçã o. E quando, em sua bondade, Deus permitir que um homem
se case, que seu desejo seja de tal modo adstrito e jungido à sua
esposa, que nã o seja assaltado pela luxú ria ou seu coraçã o seja
tentado em qualquer lugar. Que ele siga em frente, sabendo que se
casou em nome de Deus e que deve ser fiel à sua esposa, visto que
ela lhe foi dividida com ele por Deus. Por isso todos os cristã os,
ainda que cidadã os privados, devem viver de tal modo que se
contente com sua esposa, vivendo com integridade sem porfia. E
aqueles a quem Deus honrou com filhos saibam que têm um dever
ainda maior de dar assistência à instruçã o de seus filhos. Ora, se
desejam que seus filhos recebam um ensino só lido, entã o que
comecem sempre com o exercício da fé.
É possível que os filhos aparentem possuir todas as virtudes do
mundo, mas nada serã o a menos que sejam tementes e honrem a
Deus. Por exemplo, existem muitos pais que exercem grande
cuidado para que seus filhos sejam bem-educados nas atividades
mundanas. Eles os munem com numerosos tutores, mas apenas com
o fim de ensinar-lhes maneiras atraentes e duas ou três palavras em
latim de modo que possam exibir-se à mesa, conversem
polidamente e pareçam bons aos olhos do mundo. No entanto, nã o
se fala sequer uma palavra sobre o conhecimento de Deus. Esse nã o
é o caminho a seguir; agir assim equivale a pô r a carroça adiante do
cavalo. Portanto, devemos seguir o exemplo de Paulo de
primeiramente instruir nossos filhos na fé. Uma vez que passem a
conhecer a Deus, um firme fundamento terá sido lançado sobre o
qual construir; sem este, só haverá ruína e confusã o. Quando nos
esforçarmos a ensinar nossos filhos a fé em Deus e o puro
conhecimento de sua verdade, que sua vida dê testemunho disso.
Que eles sejam íntegros, sem indisciplina ou falta de controle; que
sejam de tal modo disciplinados que se mantenham limpos de
glutonaria, embriaguez, jogatina maligna e coisas semelhantes; que
neles nã o haja velhacaria, fazendo uso de um termo comum. Esta,
pois, é a segunda liçã o que Paulo quer que aprendamos.
Todavia, visto que os jovens constituem um tipo de fera difícil de
domar, Paulo lhes ordena que sejam humildes e tratá veis; pois se as
criancinhas nã o podem aprender o autocontrole, por mais que
tentemos educá -los, darã o coices como potros indomados que
mordem e correm desembestadamente de seus donos. Eis por que
Paulo, aqui, situa a humildade como a virtude muitíssimo necessá ria
para os jovens. Todavia, tã o necessá ria como é, é muito raramente
encontrada. Se visualizarmos os jovens de hoje, como se
comportam? É verdade que os pais à s vezes bem merecem ter seus
filhos arrancando seus olhos, porquanto nã o cuidam em vê-los
criados no temor de Deus. Porventura nã o é justo que sejam pagos
com moeda semelhante? É deplorá vel que os filhos sejam tã o
desobedientes que nã o possam ser de modo algum domados quando
pequenos, ou ser de alguma forma levados a degustar a bondade. O
que acontecerá , pois, quando forem mais crescidos? Nã o digo
“quando chegarem a ser homens viris”, mas quando já nã o forem
crianças, quando forem o que denominamos de adolescentes. Oh!
Gostariam de ser chamados homens e pensam que é um erro se sã o
chamados de um nome diferente! Deveriam ser mantidos na escola
por mais dez anos e sentir a vara do professor; contudo, querem ser
tidos como adultos! Uma vez e outra lhes tenho dito: “Acaso sã o
palhaços se denominando de homens? Vocês precisam é de vara
para que se mantenham controlados!”. Se atentassem para estas
advertências, entã o nã o haveria necessidade de lá grimas agora ou
da presente exibiçã o de severidade. Nã o haveria necessidade de
envergonhá -los com puniçõ es se fossem mais sá bios e com maior
discernimento.
Por isso devemos ser duplamente cuidadosos em seguir o conselho
de Paulo. Que os pais mantenham rédea curta para com seus filhos;
e seus filhos tentem fazer a parte de homens quando estiverem
ainda sujeitos à vara e sejam assim poupados. Naturalmente, os pais
nã o devem provocar seus filhos ou levá -los a um mau
comportamento em razã o de sua excessiva severidade. Mesmo
assim, devem temer que seus filhos, sendo de difícil controle, nã o
quebrem as peias e se entreguem a toda forma de perversidade e
vã o de mal a pior com o fim de ver seu caminho liberado. Ao mesmo
tempo, os jovens saibam que, a menos que exerçam controle e
obedeçam serenamente à liderança de seus anciã os, haveremos de
chorar envergonhados de todas as suas virtudes. Estas nã o serã o
mais que arrogante presunçã o e lixo sem valor, e Deus lhes abaterá
o orgulho. Que todos nó s aprendamos esta liçã o como que
aprendida do apó stolo nesta passagem.
 
Oração
Agora curvemo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossas falhas e orando para que ele nos faça de tal
modo senti-las que, do maior ao menor, nos humilhemos e
busquemos refú gio somente em sua mercê. Assim também,
resolvamos retornar para ele e crescer ainda mais em seu temor e
em sua obediência. Invoquemos seu nome para que sua casa seja
purificada de toda corrupçã o e para que esta nã o prevaleça entre
nó s e cada um seja ajudado a almejar sua salvaçã o. Que todos nó s,
em comum acordo, façamos com que esta seja nossa meta comum.
 

5. QUINTO SERMÃO: A LIDERANÇA NA IGREJA (2) [Tito 1.7-9]


Porque é indispensável que o bispo seja irrepreensível como
despenseiro de Deus, não arrogante, não irascível, não dado ao vinho,
nem violento, nem cobiçoso de torpe ganância; antes, hospitaleiro,
amigo do bem, sóbrio, justo, piedoso, que tenha domínio de si, apegado
à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder
para exortar pelo reto ensino como para vencer os que contradizem.
 
Para extrair o má ximo benefício desta passagem, devemos ter em
mente que os que sã o chamados a declarar a Palavra de Deus devem
ser transparentes quanto ao que envolve sua tarefa e ofício, de modo
que cumpram fielmente seu dever tanto para com Deus quanto para
com sua igreja. Todos os cristã os, em geral, deveriam considerar o
que se requer de um bom pastor, de modo que nã o decidam
displicentemente ou ajam com parcialidade, interesse pessoal ou de
maneira irrefletida. Que cada um de nó s leve em conta o bem-estar e
a salvaçã o de todos os filhos de Deus e que a mesma coisa seja
observada nos que já exercem seu ofício. Nã o devem reter seu cargo,
a menos que se comportem como ordena o Santo Espírito. Mais uma
vez, visto que as virtudes descritas por Paulo sã o requeridas de
todos os ministros da Palavra de Deus, sendo aqueles que têm a
incumbência de mostrar o caminho a outros, há aqui uma liçã o geral
para todos nó s. Pois, se um pastor se comporta bem e em
conformidade com a vontade de Deus, enquanto o povo se entrega a
toda sorte de mal e depravaçã o, o que acontecerá ? Assim como o
pastor deve mostrar o caminho e dar o bom exemplo, assim também
todo o corpo da igreja deve se comprometer com o que é ensinado
aqui.
Para explicar o texto de Paulo de maneira mais ordenada, devemos
observar que aqueles a quem ele inicialmente chamou de
presbíteros ou anciã os agora os denomina bispos, significando —
como devemos intitulá -los — “supervisores” ou “guardiã es”, e dá
este título a todos os que se destinam a proclamar a Palavra de Deus.
Este termo veio a ser um equívoco e perversã o entre os papistas e,
aliá s, na Igreja Primitiva, ao empossar um homem como bispo. Isso
alterava as palavras do Espírito Santo, ao passo que nosso dever é
falar de acordo com a Escritura. É ó bvio que Sataná s tentava afastar-
nos da simplicidade pura da Palavra de Deus, e erramos e
injuriamos o pró prio Deus quando buscamos apartar-nos da ordem
que ele sancionou por sua infalível autoridade. Notemos, pois, que
todos aqueles a quem Deus tem chamado e comissionado a pregar
sua Palavra devem, como anciã os, ser antes de tudo maduros e
só brios. Sã o também supervisores, como vemos o profeta Ezequiel
comparando-os a vigias em uma torre [Ez 3.17]. Este nã o é um título
de honra ou distinçã o; é um cargo — um cargo muito difícil e
oneroso: vigiar e cuidar de todo o rebanho enquanto outros
dormem.
Portanto, esta é a primeira coisa a considerar. O título que o Espírito
Santo designa a todos os pastores já revela a obra para a qual Deus
os chama e o dever que devem para com sua igreja. Em
consequência, que os homens nã o pensem que merecem ser
tratados como prelados enquanto gastam seu tempo repousando,
dormindo ou comendo até se fartar! Deus nã o escolhe pastores, em
sua igreja, por sua bela aparência, como corre o dito. Ele os junge
estritamente a todo o seu povo, pois nã o podemos servir a Deus
exceto quando trabalhamos para servir a todo o rebanho. A maior
honra que os ministros da Palavra podem ter é servir aos crentes —
todos eles!
Mudemo-nos agora para o que é dito sobre os supervisores. Devem
ser irrepreensíveis, sendo despenseiros na casa de Deus . Já notamos
as palavras de Paulo a Timó teo: “para que, se eu tardar, fiques ciente
de como deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo,
coluna e baluarte da verdade”. “Ninguém despreze a tua mocidade;
pelo contrá rio, torna-te padrã o dos fiéis, na palavra, no
procedimento, no amor, na fé, na pureza” [1Tm 3.15; 4.12]. Seria
algo tã o pequeno ser administrador de Deus e exercer o controle de
sua casa? Daí a insistência de Paulo em que aqueles que foram
honrados por Deus portem e preguem sua Palavra, tendo cuidado de
como andam, pois sã o administradores de sua casa.
Em contrapartida, encontramos neste texto uma mensagem de
grande e especial conforto. Deus nos honra ainda mais quando se
digna chamar-nos para sua casa, fazer-nos membros de sua família,
habitar em nosso meio e continuar conosco. Isso só pode se dar
quando vivemos juntos dele, quando seus olhos permanecem sobre
nó s e ele se esforça em nos guiar e alimentar. Deveria comover-nos
grandemente saber que nã o somos separados de nosso Deus; que
nã o cremos, como se diz, por procuraçã o; que nã o somos deixados à
deriva para extraviar-nos, mas somos reunidos por ele ao seu
rebanho, de modo que ele está e permanecerá conosco até o fim do
mundo. Assim somos encorajados a amá -lo e a servi-lo com um
coraçã o mui fervoroso. Visto que ele nos tem em seu cuidado, nos
recebe em sua família e é nosso Pai e Mestre, e visto que ele designa
administradores para que tudo seja feito segundo a necessidade,
tudo é ordenado e entre nó s nada fica fora de lugar — quando
vemos que Deus se faz conhecido de maneira tã o íntima, acaso
realmente nã o seríamos ingratos se nã o fô ssemos levados a amá -lo e
a servi-lo?
Portanto, quando a igreja é chamada casa de Deus, isso se dá para
que engrandeçamos a infinita bondade que Deus tem demonstrado
atraindo-nos para junto de si, habitando no corpo composto de
todos os crentes e esperando que nos unamos a ele. Ele cuida de
nossa salvaçã o e a todo tempo nos dirige e nos alimenta como nosso
Senhor e ú nico Guardiã o, nã o para sua pró pria vantagem, mas para
nossa salvaçã o. Além do mais, visto que isso é assim, saibamos que
nã o podemos escapar à vista de Deus, pois estamos perto dele.
Portanto, que cada um de nó s se mantenha sob controle. E, porque
ele nos tem admitido à companhia dos fiéis, sejamos ainda mais
zelosos a oferecer-nos a ele e, assim, ele nos guie; e nã o nos
comportemos como bestas selvagens, visto que ele nos tem
abençoado, congregando-nos em sua casa. Ele quer que sejamos
como cordeiros, já que deseja ser pessoalmente nosso Pastor.
Vemos, pois, que este texto nã o visa somente aos ministros da
Palavra, mas é proveitoso a todos os crentes se aprenderem a pô -lo
em prá tica. Nesse ínterim, Paulo explica em detalhe as outras
virtudes requeridas de um bom pastor. Nã o devem ser orgulhosos ou
obstinados, apegados demais às suas próprias ideias, não irascíveis,
nem dados a muito vinho, nem cobiçosos de torpe ganância [ou lucro
desonesto]. Aqui o apó stolo cataloga as virtudes por seus opostos,
como se quisesse dizer que um homem dado ao vinho, obstinado,
rixento e cobiçoso de lucro poluísse o lugar onde está e
contaminasse toda a igreja. Essas sã o as ofensas à s quais ele referiu
anteriormente quando declarou que o bispo devia ser
irrepreensível. Ora, os erros descritos aqui sã o de fato graves;
apontam para a contaminaçã o que os pagã os causam em todo o
governo da igreja. Um homem que é manchado de alguma maneira
por tais erros nã o pode servir a Deus; ele tem primeiro de ser
purificado de todos. A lista que Paulo faz das virtudes principais
requer do homem que proclama a Palavra de Deus que se abstenha
dos erros que aqui sã o condenados e se esforce por corrigi-los, de
modo que nada o impeça de realizar seu trabalho.
Portanto, o pecado da obstinaçã o que Paulo menciona torna os
homens insuportá veis. Quando confia plenamente em seu pró prio
julgamento, o homem é um mundo à parte, como os escritores
pagã os disseram com sabedoria. Assim como um ministro da
Palavra de Deus deve conquistar os que sã o de fora, por assim dizer,
ele deve também preservar a unidade e a paz entre os que já
pertencem à igreja. No entanto, se ele tem muitas opiniõ es fixas,
será levado a agitar o rebanho de Deus, e daí resultarã o terríveis
divisõ es. Eis por que um homem deve pô r de lado suas pró prias
ideias a fim de servir a Deus e manter a harmonia na igreja.
Duas coisas sã o especialmente importantes aqui. Quando nos pomos
a ensinar os outros, antes de tudo nó s mesmos temos de ser
ensinados, pois, se formos relutantes em aprender e entã o crescer
em entendimento, de modo que outros cresçam conosco, nã o
podemos cumprir nossa tarefa. Portanto, aquele a quem Deus
estabeleceu como mestre e instrutor em sua casa tem que ser o
primeiro aluno, devendo estar ainda mais disposto a receber o
ensino e a admoestaçã o. Este é o primeiro ponto. O segundo é que
devemos permitir que outros deem seu parecer e ofereçam
conselho, bem como estejam preparados a aceitar o que for mais
conveniente. Essa, em suma, é a intençã o de Paulo aqui. Os que sã o
chamados a pregar a Palavra nã o devem ser teimosos demais; têm
de ser ensiná veis, tendo maneiras brandas e espírito pacífico, sendo
seu ú nico desejo edificar. Tampouco devem ser inflados de orgulho
a ponto de pensarem que já conhecem tudo. Ao contrá rio, devem
indagar com o fim de aprender algo novo a cada dia, e que nutram a
â nsia de receber instruçã o. Quanto à disposiçã o, que sejam
igualmente flexíveis. É um fato que todos os que sã o culpados de
orgulho sã o também, em qualquer tempo, suscetíveis a causar
cismas, gerando facçõ es na igreja de Deus e inquietando a todos. É
por isso que Paulo é justificado em querer corrigir tal arrogâ ncia.
Ele a chama de ofensa, e a experiência o corrobora.
Reiterando, lemos que o bispo não deve ser irascível . Este é um erro
parecido com a arrogâ ncia, pois, se alguém permite que sentimentos
fortes o dominem, decerto será impedido de servir a Deus. De modo
semelhante, a embriaguez inflama o orgulho dos que já sã o
demasiadamente inclinados a esse comportamento. Visto que ela é
uma sorte de demência, Paulo convoca explicitamente os ministros
de Cristo a que sejam só brios e não inclinados a muito vinho . Se um
homem sucumbe à embriaguez, é inapto ao raciocínio, à firmeza e à
moderaçã o. Tudo isso, pois, nada mais é do que pragas mortais, que
Paulo chama de fracassos e dos quais os ministros devem se
precaver. Além do mais, ele acresce que nã o devem ser violentos [ou,
belicosos ou rixentos]. Nã o devem ser como soldados, sempre
prontos a sacar sua arma e incitar uma luta, como se a espada
estivesse sempre em sua mã o. Este é outro erro que deve ser
corrigido. Por ú ltimo vem cobiçoso . É indubitá vel que um homem
que, enquanto no ofício, tenta obter riqueza nã o é superior a um
alcoviteiro quando ostenta a Palavra de Deus e a macula. Ele busca
agradar a um homem e contentar a outro, porém termina
desfigurando e distorcendo tudo. Ou, pior, ele põ e um verniz tã o
falso nas coisas que se faz evidente que sua intençã o é enfeitar suas
velas. Seu alvo é beneficiar a si mesmo e, como corre o dito, trazer
mais grã os para seu moinho. Portanto, se a motivaçã o do ministro
da Palavra for a cobiça, seguramente ele nã o será melhor que os
forjadores, pervertendo a sã doutrina e convertendo a verdade em
mentira.
Esta é a primeira liçã o que Paulo apresenta em sua lista de virtudes
em termos negativos, onde se requer dos que desejam edificar
fielmente a igreja de Deus se abstenham de todo vício abominá vel
que nesta vocaçã o é intolerá vel. A seguir ele fala positivamente
sobre as virtudes. Um bispo deve ser hospitaleiro para com os
estrangeiros e recebê-los bem e de modo generoso. Este é um dever
que deve sempre ser observado; mas, como já dissemos em um
sermã o sobre Timó teo, havia uma razã o particular naqueles tempos.
[10]
Os crentes pobres se assemelhavam a aves em um ramo, saltando
de um lugar para outro; como as perseguiçõ es surgiam e as
fogueiras eram acesas, um grupo se levantava e mudava para outra
cidade ou para onde pudessem, estando frequentemente em risco de
morte. Entã o havia necessidade de muita compaixã o. É com boa
razã o, pois, que Paulo requer que o bispo, mais ou menos o pai da
igreja, seja generoso e dê as boas-vindas aos estrangeiros,
recebendo-os de forma fraterna.
Apó s a hospitalidade, Paulo lista amigo do bem , ou bondoso , uma
virtude associada à precedente, pois, embora o apó stolo empregue
somente uma palavra, ela tem o sentido de “amor pela humanidade”,
sendo o sentimento magnâ nimo que nos inspira a praticar o bem
para com os que sã o necessitados, e a fazê-lo com boa vontade. Daí,
a pessoa que é descaridosa ou destituída de piedade e que vive no
ó cio sem qualquer respeito para com os demais, nunca pode exibir
hospitalidade para com o perseguido e afligido. Eis por que Paulo
liga estas duas virtudes. Mas ele prossegue, adicionando as palavras:
sóbrio , justo , piedoso e que exerce domínio de si . Sobriedade tem a
ver com o modo como vivemos. Entã o há justiça, isto é, equidade,
quando um homem é cuidadoso em respeitar os direitos de outrem
e prefere antes morrer que errar, prejudicar ou fazer violência a
outrem. Isso é o que Paulo tem em mente com a palavra “justiça”.
Entã o há também a santidade [ou, piedade], que diz respeito
principalmente a Deus. Devemos viver nã o só sem injuriar nossos
semelhantes, devemos também ser puros, dedicados ao serviço de
Deus e valorizar tudo o que está contido na primeira tá bua da lei,
significando oraçõ es, sú plicas e a honra que rendemos a Deus. Além
do mais, devemos aprender a esquivar-nos do mundo, fugir da
extravagâ ncia, esvaziando-nos da vaidade e da autoindulgência,
contentando-nos, em vez disso, em conduzir-nos em obediência a
Deus. Eis o que santidade envolve, enquanto justiça, conduta
honesta e íntegra entre nó s mesmos, tem a ver com os homens.
Por ú ltimo, vem o domínio de si . Isto cobre tudo o que a palavra
“sobriedade” implica. Pois nã o basta ser só brio em nosso beber e
comer; temos de ser disciplinados e decentes em cada á rea da vida,
mantendo sob controle nossas mã os, olhos, ouvidos e lá bios. Por
domínio de si, Paulo realmente quer dizer-nos que estejamos
prontos e moderados, nã o indô mitos nem devassos em nosso
comportamento e sem presunçã o — tudo o que nos caracterizaria
como dissolutos e sem boa reputaçã o. Temos de tal modo de
obrigar-nos para com Deus por nossa obediência, que os homens
vejam que já renunciamos o mundo. Essa é a mensagem de Paulo
para nó s aqui.
Ele conclui dizendo que os bispos devem ser apegados à palavra fiel,
que é segundo a doutrina . Esta é a principal coisa que se exige dos
ministros da Palavra. Nã o só que sejam bem instruídos a fim de que
possam ensinar a outros, mas também que sejam firmes e
constantes em seu fundamento, para lutar quando a verdadeira
doutrina tiver de ser defendida, de modo que permaneça intocada.
Eis por que a palavra que Paulo usa significa tanto “reter” quanto
“abraçar”. Por isso, devemos ver que nosso ensino seja verdadeiro.
Se estivermos fortemente apegados a ela, ela jamais se
desvencilhará de nó s. Por mais que o diabo faça seu melhor
empenho para afastá -la de nosso alcance, jamais nos separaremos
dela. Paulo ainda explica seu uso. Ela é o meio pelo qual podemos
exortar pelo reto ensino e convencer os que o contradizem . Isto é, nos
é dada a habilidade e os meios para ensinar os que se prontificam a
obedecer a Deus e que sã o tranquilos; mas também temos o poder
de lutar contra os que se mostram hostis para com a Palavra de
Deus; contra os rebeldes e escarnecedores; contra os que buscam a
ruína da igreja. Temos o poder e a autoridade de reprová -los; de
modo que, se insistirem, serã o envergonhados. Isso, sucintamente, é
o que nos é ensinado aqui.
Já dissemos que, embora Paulo tenha ministros para liderar, ele
considera seu ensino relevante a todos os crentes. Pois, por que os
ministros da Palavra devem viver uma vida bem regrada, justa e
santa? Por que devem ser só brios, nã o dados ao vinho, nã o
intrigantes ou amantes das disputas? Por que devem ser
temperados? Para que a Palavra de Deus nã o seja blasfemada
quando sã o encontrados neles esses erros ó bvios. Também é para
que possam atestar sua doutrina mediante seu bom viver e assim
possam confirmá -la e esta seja mais prontamente recebida. Por fim,
é para que o povo siga seu exemplo e se modele em todas as
virtudes vistas em seus pastores. É claro, pois, que Paulo nã o quer
meramente que os ministros da Palavra evitem um comportamento
selvagem e indisciplinado, dominado pela cobiça e pela arrogâ ncia, e
sejam benignos, justos, só brios e puros. Todos os crentes nã o sã o
menos instados a fazerem da sobriedade uma virtude comum a
todos, lado a lado com a justiça, santidade, domínio pró prio e todo o
resto que se menciona aqui. Acaso temos de dar prova real de que
somos filhos de Deus? Entã o resolvamos corrigir os erros que Paulo
condena e a perseguir as virtudes que ele demanda.
Ora, se um ministro é encarregado da casa de Deus, nã o significa que
cada um de nó s, como pessoa privada, tem uma vocaçã o similar de
servir como líder. Quando Deus chama determinada pessoa para
proclamar sua Palavra, nã o é para que ele escuse os demais ou que
nã o queira fazer uso deles. Ao contrá rio, é para que Deus seja
servido por todos sem exceçã o. É em plena consciência que nos
entregamos ao seu serviço que Deus nos ordena a pregar sua
Palavra. Pois, quando ele nos honra, recebendo-nos em sua casa e
nos adotando como seus filhos, sua intençã o nã o é que sejamos
ociosos, nem nos dá nossa aptidã o e nos permite que nos
intrometamos como bem quisermos. Ele pretende manter-nos sob o
jugo para que tudo façamos para glorificá -lo. Nã o devemos ser
inú teis, pois Deus nos tem honrado, empregando-nos em seu
serviço. Em consequência, que os ministros da Palavra olhem
detidamente para si mesmos e que todos os cristã os também saibam
que possuem uma regra que tem a ver com eles e os inclui, desde o
maior até o menor.
Portanto, que sejamos guiados pelo espírito de equilíbrio e
sobriedade, justiça e santidade, de que Paulo fala. E também
observemos tal disciplina, que os pecados mencionados aqui nã o
nos dominem. Por exemplo, nada pode ser mais avesso ao cará ter
dos crentes do que a embriaguez. Se todos os homens sã o feitos à
imagem de Deus, e se o ébrio afunda tã o baixo que chega a
assemelhar-se a um animal sem raciocínio ou entendimento, acaso
nã o devemos manter-nos com rédeas mais curtas? Quando os
homens se embriagam, nã o só a brutalidade oblitera a imagem de
Deus que Cristo restaurou em nó s, mas também toda a decência da
vida. Eles se comportam como cã es e porcos. Entã o, se desejamos
ser tidos como filhos de Deus, acaso nã o devemos nó s desvencilhar-
nos deste vício? Essa é a razã o de Paulo excomungar todos os ébrios
e proibir-nos de ter transaçõ es com eles ou de buscar sua
companhia [1Co 5.11], de modo que, vencidos pela vergonha,
emendem suas vidas — porquanto estã o longe de ser admitidos à
santa mesa de nosso Senhor Jesus Cristo.
Reiterando, acaso o orgulho e a arrogâ ncia nã o sã o totalmente
opostos ao espírito de mansidã o que é a verdadeira marca dos filhos
de Deus? Como alguém saberá que tiramos proveito da escola de
Cristo? Somente se formos mansos, humildes e moderados.
Portanto, quando alguém se infla de orgulho, esse é um sinal de que
o tal é amante demais de seus pró prios pensamentos e pretensõ es e
nunca provou o que significa tirar proveito da escola de Deus ou de
nosso Senhor Jesus Cristo.
Quanto à cupidez, sabemos que esta é comum nã o só nos ministros,
mas também em todo o rebanho de Deus. Pensamos tanto sobre este
mundo e nos esquecemos das benesses espirituais e da herança à
qual Deus nos chama. Entã o, o que sucederá se a cupidez prevalecer
e se formos de tal modo apanhados em nossa preocupaçã o com os
bens do mundo, a ponto de nos esquecermos da vida celestial?
Embora esta repreensã o seja martelada em nossos ouvidos e
sejamos diariamente lembrados deste pecado, nos preocupamos
perenemente com os cuidados terrenos e de tal modo nos vemos
atados a este mundo, que nã o podemos elevar nossas mentes ao alto
com o intuito de pensar seriamente na vida celestial. O que a
Escritura diz nunca cessa de ser verdadeiro: “Onde estiver o nosso
tesouro, aí estará o nosso coraçã o” [Mt 6.21; Lc 12.34]. Os que sã o
apegados aos bens deste mundo, de tal modo põ em neles sua mente
e coraçã o, que nã o podem aspirar à herança celestial. Eis por que
chamamos a cupidez uma praga mortal que cega os homens e lhes
rouba a promessa de Deus. Nã o surpreende, pois, que Paulo a
intitule “a raiz de todos os males” [1Tm 6.10], pois ela suscita a
ilusã o e outros males: a traiçã o, a deslealdade e a crueldade. Nã o há
perversidade que nã o se origine da cupidez. Um homem motivado
pela cupidez se esquecerá de toda retidã o, como se lhe fosse
permitido fazer qualquer coisa. Ele se sentirá livre para roubar e
apanhar tudo quanto possa e, entã o, se voltará e se rirá de Deus. Ele
nã o demonstra nenhum temor quando se fala de agressã o ou
violência. A cupidez leva os homens a matar, a corromper e a fazer
tudo quanto possa para prejudicar uns aos outros. Em suma, é uma
demência que de tal modo se apodera dos homens, que estes se
tornam como demô nios quando dominados pela cupidez. Que tanto
os ministros da Palavra de Deus e todos quantos sã o crentes se
mantenham livres dela.
Paulo prossegue exortando-nos nã o só a sermos pacíficos, mas
também pacificadores, uma marca pela qual nosso Senhor Jesus
Cristo quer que sejamos conhecidos. “Bem-aventurados os
pacificadores, porque serã o chamados filhos de Deus” [Mt 5.9]. Ora,
se formos vingativos, rixentos e amantes de disputas, acaso nã o
estaremos demonstrando que somos estranhos à paz de Deus e que
nada há dele em nó s? Sabemos que toda afinidade e
relacionamentos vêm de Deus, e somos instados a preservar entre
nó s a fraternidade e a santa unidade, como membros de um só
corpo. Como, pois, pode ser que os que sã o rixentos e contenciosos
sejam realmente chamados filhos de Deus? Além do mais, requer-se
de nó s que sejamos bondosos para com os estranhos, quando os
virmos destituídos de ajuda e socorro. É um ato de monstruosa
barbá rie deixar de demonstrar piedade ou compaixã o para com os
que nada possuem. Sempre foi um há bito mesmo entre os pagã os
vilipendiar os que eram tã o insensíveis e ignorantes, que nã o
recebiam os sem teto. Entã o, quando a igreja de Deus se vê
atribulada por tiranos e inimigos da verdade e quando os crentes
pobres sã o arrancados de seus lares, quanto mais culpado somos
nó s se negamos a Deus deixando de recebê-los calorosamente!
Pois a intençã o de Deus é que também sejamos estrangeiros neste
mundo, e isto sob a condiçã o de que ele nos faça seus filhos, como
escreve o apó stolo na carta aos Hebreus [Hb 11.13]. Deus está no
céu, contudo desceu onde estamos a fim de ter domínio sobre nó s.
Por seu exemplo, ele nã o mostra o quanto se apieda dos que se
achegam a nó s em busca de refú gio, posto que sã o como pobres
ovelhas dispersas por lobos vorazes? Aqui, outra vez, Paulo fala nã o
só aos ministros, mas lhes revela como em um espelho o que
devemos ser, como se faz evidente à luz de suas observaçõ es
seguintes sobre a bondade e as boas obras. Se somos tã o renitentes
a ponto de nã o querer ajudar o necessitado e destituído, ou sentir
compaixã o quando nossos semelhantes sofrem, é ó bvio que nã o
temos parte em Deus. Portanto, Deus quer que nos conformemos à
sua semelhança, praticando o bem. Nosso Senhor Jesus Cristo ensina
que este é o que se parece com o Pai celestial, visto que ele faz raiar
seu sol nã o só sobre os bons, mas também sobre os indignos [Mt
5.45]. Entã o, o que devemos fazer, senã o pesar bem o que Deus põ e
em nossas mã os e ter na memó ria que devemos partilhar uns com
os outros, cada um servindo ao pró ximo? De outro modo, Deus teria
que ter criado tantos mundos quantos há homens e mulheres, se
cada um de nó s tencionasse cuidar somente de si pró prio e fechar-se
em seu canto tacanho! Contudo, visto que ele nos conduz juntos, e
visto que temos vida em comum, devemos reconhecer que nã o
nascemos para nó s mesmos a ponto de viver neste mundo para
nosso pró prio benefício, mas para partilhar com nossos semelhantes
e servi-los. E ai de nó s se nã o pudermos ver isso!
Devemos ser cuidadosos em demonstrar tanta bondade quanto
possível e sempre que tivermos os meios; e resolvamos fazer o bem
a todos: assistir aos que necessitam de nossa ajuda; trazer-lhes
alívio e partilhar com eles o que temos para que nã o seja somente
nosso, mas, à medida que nos permitir a oportunidade, para o
benefício de todos. É verdade que nã o se pode estabelecer aqui
nenhuma definiçã o da lei. Paulo se contenta em encorajar-nos a agir
livre e generosamente. Nã o obstante, damos claras provas de que
nã o somos filhos de Deus se nã o houver em nó s amor e bondade que
nos inspirem a ajudar o necessitado. De fato, se falharmos aqui,
distorcemos o que a pró pria natureza nos tem para ensinar, ainda
que sejamos vazios de fé, religiã o ou conhecimento da lei e do
evangelho.
A lista de Paulo inclui a sobriedade e a temperança, revelando que,
se somos cristã os, nã o basta abster-nos do mal, da extorsã o, da
violência, da crueldade, da usura, do furto e do roubo. Devemos
também observar tal moderaçã o, que nã o sejamos mundanos nem
dados à vã exibiçã o, como os que nada mais querem senã o
pavonear-se ostensivamente, ser respeitados, ataviados
esplendidamente e admirados à distâ ncia. As pessoas que têm tal
disparate em suas cabeças mostram que o mundo, em grande
medida, continua sendo seu dono. Sã o libertinos, sempre desejosos
de fazer-se glutõ es e de ventres empanturrados. Longe de ser
pró digos alunos na escola de Deus, nem mesmo merecem ser
reconhecidos como humanos! Se de fato fossem respeitá veis, nã o
esqueceriam esta liçã o. Sã o desenfreados em seu beber e comer?
Entã o sã o demasiadamente dissolutos em cada á rea de sua vida.
Assim, os ébrios ficam tã o alienados de suas faculdades mentais, que
matam a si mesmos como se quisessem cortar a pró pria garganta.
Quando chegam à mesa, se espojam como cã es e a deixam como
porcos. Descontrolados em sua bebida e comida, se prestam para
nada. Quando os homens perdem a noçã o de como comer e beber,
como podem realmente dizer que é a mã o de Deus que os alimenta?
Os pagã os mostram mais decência, como já dissemos, visto que a
natureza os conduz a isso.
No entanto, somos muito bem ensinados e temos uma razã o mais
eficiente ao refrearmos nossos apetites. Pedimos a Deus que nos dê
nosso pã o cotidiano e, ao comermos e bebermos, sempre retemos
em nossa mente que recebemos tudo de sua mã o. Entã o, se usamos
mal estas coisas em razã o da glutonaria ou bebedice, acaso nã o
estamos mais ou menos obliterando sua imagem em nó s? E acaso
com isso nã o demonstramos que estamos tã o aferrados à s coisas
passageiras deste mundo que nos esquecemos completamente do
céu? Esta é a liçã o que devemos aprender deste texto.
Paulo, ao seguir em frente, descreve os bispos como justos e santos,
e entã o deveríamos reconhecer que nos é requerido ser íntegros e
equâ nimes, permitindo que todos desfrutem do que é seu, o que só
podemos fazer se evitarmos a fraude e a malícia. Portanto, nã o
sejamos astutos em buscar nossa pró pria vantagem; intuamos,
porém, o que é devido aos outros e cumpramos nosso dever para
com eles. Ora, ao vivermos entre os homens, acaso nunca lhes
causamos dano ou injustiça? Entã o, vejamos também que à vista de
Deus demonstremos verdadeira santidade em nosso
comportamento. A Escritura nunca se enfada de ensinar-nos que
Deus, ao separar-nos da corrupçã o do mundo, faz da santidade a
marca pela qual mostramos que somos membros de sua família e
estamos sob o controle do Santo Espírito. Tomemos isto no coraçã o
e olhemos mais detidamente para nó s mesmos do que temos feito
até aqui. O requerimento de Paulo concernente ao ensino é algo que,
querendo Deus, consideraremos depois do jantar. Pois agora é
bastante trazer à memó ria que aqui Paulo buscava prover-nos de
uma regra que se aplica a todos os crentes, de modo que ninguém
pense em si mesmo como isento. Resta-nos ver como podemos
alcançar essas virtudes e como podemos subjugar e vencer os erros
que sã o condenados.
Ah! Quã o inú til é nosso livre-arbítrio bem como nossa inteligência.
Esta tem de ser uma obra do pró prio Deus. O que, pois, está
envolvido? Temos de ser membros de nosso Senhor Jesus Cristo e
nos tornarmos justos, santos, só brios e disciplinados. Como isto
pode ser feito? Somente quando o Espírito Santo nos governa é que
possuímos estas virtudes. Dizem-nos para fugir da embriaguez, da
intemperança, das rixas, das disputas e do orgulho. Como? Quando
tivermos o espírito de brandura, de humildade, do temor de Deus,
de sabedoria e de discernimento. Todas estas coisas foram dadas a
nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que as partilhasse com seu povo
fiel. Visto, pois, que por natureza somos intemperantes, saturados
de vaidade, mentiras, ambiçã o e orgulho, dados à injustiça, engano e
furto; visto também que damos rédeas soltas aos apetites
desregrados, devemos chegar-nos em submissã o com nossa cabeça
bem ordenada, sabendo que nã o há outro modo de conservar-nos
obedientes a Deus e viver em conformidade com sua vontade, exceto
estando unidos ao corpo de Cristo. Pois entã o seu Santo Espírito nos
é derramado; ele nos fortalece com mais eficá cia, porque ele é a
fonte de toda santidade, de toda justiça e, em suma, de toda
perfeiçã o. Esta é a vereda que devemos seguir a fim de obter as
coisas que Paulo demanda de nó s. Eis por que somos diariamente
intimados à comunhã o com nosso Senhor Jesus Cristo, pois quando
Paulo fala do propó sito e uso pró prio do evangelho, ele diz que
somos chamados à participaçã o de Cristo. Estando unidos a ele,
somos feitos a um só corpo com ele, de modo que ele vive em nó s e
estamos unidos a ele por um laço inquebrá vel. Sendo esse o alvo do
evangelho, segue-se que a mesma verdade nos é comunicada pela
santa ceia que neste momento é disposta diante de nó s. Como, pois,
achegamo-nos a esta santa mesa? Sabendo que aqui nosso Senhor
Jesus Cristo se nos oferece a fim de confirmar-nos na uniã o que já
recebemos pela fé no evangelho; de tal modo somos parte de seu
corpo, que ele vive em nó s e nó s nele. E, assim, vejamos bem que
façamos o má ximo desta santa uniã o e nos apeguemos mais
estreitamente ao Filho de Deus do que já fizemos antes. Por esta
razã o, somos instados fortemente a fazer uso desta santa ceia; essa é
também a razã o por que ela nos é repetida. Somos terrenos e
carnais enquanto vivermos neste mundo. Devemos trazer à
memó ria com frequência as coisas que temos ouvido apenas uma
vez; de modo que nos beneficiemos do que é posto diante de nó s. Só
nos beneficiamos se formos cuidadosos em nã o profanar a graça que
nos é dada por Deus que, por estes sinais, testifica que temos
comunhã o com seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo.
Portanto, roguemos-lhe que de tal modo nos governe mediante seu
Santo Espírito, que nã o maculemos sua santa mesa. E, reconhecendo
que somos criaturas pobres e miserá veis, acheguemo-nos a nosso
Senhor Jesus Cristo para que nos purgue de toda má cula. Como a
fonte de toda pureza, que ele de tal modo nos purifique, que
renunciemos a todas as nossas falhas para que, muito embora elas
ainda permaneçam em nó s, nã o exerçam domínio sobre nó s. E que o
Santo Espírito de tal modo nos controle, que os homens vejam que
estamos unidos a ele e já nos afastamos do mundo em busca das
coisas espirituais. Lutemos, pois, contra as vaidades de nossa carne
e contra todas as paixõ es nocivas; desejemos mais e mais crescer em
sua imagem e ser reconhecidos como seus filhos. Que o pró prio Pai
celestial nos reconheça como seus herdeiros.
 
Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e orando para que ele nos faça senti-las
mais agudamente do que antes; para que aprendamos a odiá -las e,
ao odiá -las, volvamo-nos para ele, oferecendo-nos a ele como
sacrifícios. E, fazendo morrer nossa velha natureza, que ele se
agrade de renovar-nos, de modo que glorifiquemos sempre seu
nome. Nesse ínterim, que ele mostre ser nosso Pai e nos sustente em
todas as nossas imperfeiçõ es; até que estas sejam totalmente
removidas de nó s.
 

6. SEXTO SERMÃO: MANTENDO A VERDADE [Tito 1.9-10]


 
Apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de modo que tenha
poder para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o
contradizem. Porque existem muitos insubordinados, palradores,
frívolos e enganadores, especialmente os da circuncisão.
 
Paulo começou descrevendo a maneira de viver dos que proclamam
a Palavra de Deus de modo que fossem mais bem habilitados para
edificar, mediante sua sinceridade de linguagem e pela reverência
para com Deus. Agora ele passa a um ponto muito importante:
devem perseverar inabalá veis em pureza e ensino saudá vel. Isto
pressupõ e que eles já haviam sido instruídos. Tal firmeza é
impossível a menos que antes de tudo se lance um fundamento
só lido.
É assim que descobrimos a diferença entre os homens que sã o
simplesmente renitentes e os que sã o firmes. Quando alguns
estú pidos, sem instruçã o adicional, criam uma ideia, eles se tornam
tã o obstinados, que nã o darã o ouvidos a outra opiniã o. Nã o é virtude
se alguém nã o mudar sua mente ou desvencilhar sua cabeça de uma
fantasia tola. Em contrapartida, a firmeza é sempre fundada na
razã o e na verdade. Assim, quando aconselha os pastores a se
manterem firmes na sã doutrina, a fim de que ela nã o lhes escape,
Paulo quer que eles saibam que estã o seguindo a verdade de Deus, a
fim de que declarem confiantemente de quem procede sua
mensagem e de modo algum se deixem abalar. Em suma, pois, o
apó stolo afirma que ninguém é apto a dirigir a igreja de Deus, a
menos que seja competente para ensinar; mas, também, acrescenta
a qualidade da firmeza. Um homem nã o deve ser leviano; e, por mais
que os ventos e os furacõ es soprem de todas as direçõ es, deve
perseverar no que bem sabe vir de Deus.
Reiterando, Paulo insiste que a verdade de Deus deve ser aplicada
ao povo para sua instruçã o, pois ele fala da palavra fiel, que é
segundo a doutrina . É assim que ela deve ser usada para edificar o
povo. Quando Deus intima homens a pregar a Palavra, seu propó sito
nã o é alimentar nossos ouvidos, ainda que haja muitos que se
achegam para ouvir o sermã o movidos por curiosidade irrefletida.
Deus tem algo mais em vista: devemos ser edificados, é possível
dizer, para nosso pró prio bem. Esse é um ponto. Mas, além disso,
Paulo sugere que nã o basta que os pastores guiem os que sã o
passíveis de aprender e prontos a obedecer. Devem também estar
armados para convencer os que o contradizem . Caso haja alguém
que se oponha à Palavra de Deus, o homem que é designado pastor
deve reprová-lo poderosamente . Portanto, vemos o que Paulo está
pretendendo. Ele demanda, com razã o, que aqueles que sã o
estabelecidos por Deus em sua casa sejam mestres íntegros. Se um
homem escolhe alguém para administrar sua casa, ele lhe designa
seus deveres. Que deveres, pois, Deus nos designou, senã o
comunicar a seu povo o alimento da vida, isto é, sua Palavra? Sem
isso, o título “pastor” significa alguma coisa? Alguém que reivindicou
ser o pastor de um rebanho de ovelhas ou o guardador de uma
manada de vacas, mas que deixa os pobres animais famélicos até a
morte, seguramente merece ser apedrejado. Todavia, somos
pastores, nã o de animais irracionais, mas de filhos de Deus! Nossa
tarefa é alimentar, nã o corpos com alimento que perece, mas almas
com o pã o celestial. Se nã o possuímos o que é necessá rio para
cumprir nosso ofício, acaso nã o estamos motejando de Deus,
usurpando um título tã o nobre, quando a realidade é bem outra?
Observamos, pois, que ser pastor, supervisor, ministro, presbítero e
líder da igreja equivale a ser alguém cujo ensino edifica o povo de
Deus. Aqui, vemos muitíssimo bem que tipo de igreja existe no
papado. Gabam-se em alto e bom som de sua preeminência
ordenada por Deus, que é o argumento que usam principalmente
para rejeitar a pró pria Palavra de Deus e negar sua autoridade.
Quando citam a Santa Escritura, e o papa e seu fétido clero
permanecem publicamente condenados, seu ú nico recurso é dizer:
“O que você quer dizer? Porventura nã o somos a igreja?”. Ora, isso é
algo a ser provado de uma maneira ou de outra. Alegam que
representam a igreja porque sã o prelados. Ah, sim, mas quem tem o
direito de decidir se sã o ou nã o prelados? Deus deve falar e passar
sentença, pois ele é o ú nico juiz competente. Neste texto, ele
demonstra que as ú nicas pessoas a quem reconhece como prelados
ou bispos sã o as que sã o aptas e capazes de ensinar e que cumprem
com seu dever.
Entã o fica claro que Sataná s estabeleceu uma sinagoga infernal em
todo o papado, visto que seus bispos nã o sã o melhores que cã es
mudos. Enquanto seguem seus rituais e outros disparates afins,
enquanto montam um espetá culo convincente e sã o tratados como
ídolos, isso lhes basta. Pois nã o é parte do papel de um bispo pregar
a Palavra de Deus, e, mesmo que o fosse, tem de ser feito com tã o
grande pompa e cerimô nia, que seja tido como algo muitíssimo
incomum. Seria como um homem que caísse das nuvens se um bispo
entrasse com sua mitra cornuda na cabeça e abrisse a boca para
falar de Deus! Nã o devemos sentir-nos intimidados pela ostentada
reivindicaçã o papista de constituir a igreja, pois seus assim
chamados prelados e bispos antes de tudo devem ser ministros da
Palavra de Deus. É suficiente o que foi dito sobre esse ponto.
Os bispos, escreve Paulo, devem ser apegados à “palavra fiel”. Se nã o
podemos dizer a diferença entre o que é de Deus e o que tem sido
inventado pelos homens, isso só se dá porque somos
irredutivelmente obstinados. Portanto, temos de estar certos de que
a doutrina pela qual ele luta é de Deus; de outro modo nã o podemos
ter certeza. Sabemos que os homens, por natureza, sã o dados a
futilidades e mentiras. Temos de estar firmemente fundados em
Deus a fim de estarmos certos de nossa fé. Lembremo-nos, pois, que
a religiã o é nula e vazia a menos que o que nos é pregado produza
fruto. Isto é, nã o devemos nutrir dú vida de que ela vem de Deus e de
que é nisto que repousa nossa certeza. Aqui, uma vez mais,
observamos entre os papistas a pior confusã o possível. Esperar que
eles nos ensinem a Palavra de Deus é fora de questã o; temos que
contentar-nos com o que aos homens aprouve inventar para si. Sã o
destituídos de discernimento. Aliá s, sentir-se-iam felizes em
converter os homens em idiotas, pois, para crer como eles, seria
necessá rio abandonar toda a razã o e o bom senso.
É verdade que a fé começa com a obediência a Deus. Teríamos de
tornar-nos imbecis; isto é, teríamos de esvaziar-nos de nosso
pró prio entendimento. Nã o obstante, temos de ser bastante sá bios
para ouvir a Deus e saber que é ele quem fala, de modo a estarmos
absolutamente certos de que o ensino ao qual aderimos é confiá vel.
Ao mesmo tempo, devemos observar que Paulo requer também de
nó s que atestemos o que é ensinado, a fim de confirmar sua
autoridade, pois ele deve ser-nos proveitoso. Nã o basta que um
homem assevere que nunca ensinou o erro nem foi acusado de
pronunciar falsidades. Isso é bom enquanto se comprova, porém
nã o é tudo. Suponhamos que eu decida discutir alguma especulaçã o
fú til. Se tudo o que eu disse foi proferir umas poucas ideias
engenhosas, mesmo que atraentes, sem que dentre os que me
ouvem sejam encorajados a temer a Deus, confiar em sua bondade,
ter certeza da salvaçã o, fazer oraçã o e sú plica ou praticar a
paciência, se eu nã o fizer mais que isso, seria suficiente dizer que eu
nã o prego erro? Absolutamente, nã o! Profanamos a Palavra de Deus
quando pregamos sem qualquer objetivo e sem nenhum fim real em
vista. Eis por que, havendo falado da Palavra de Deus como fiel e
verdadeira, Paulo declara que ela também deve ser usada para
salvar almas, de modo que os que ouvem nã o gastem seu tempo e o
que fala nã o encha o ar com sons vã os e sem proveito, porém mostre
que ensina a Palavra de Deus para o bem-estar e a salvaçã o de todos.
Eis também por que ele escreve no capítulo doze de Romanos: “o
que ensina, esmere-se em fazê-lo” [Rm 12.7]. Nesse texto, Paulo
mostra que os que têm responsabilidades pú blicas se empenhem em
ver que tudo o que é feito seja para a edificaçã o da igreja e de todo o
corpo. Os que ensinam nã o devem tentar acentuar sua pró pria
reputaçã o ou alardear-se. Ai dos que dã o vazã o a essa ambiçã o! Em
vez disso, devem alegrar-se por poderem servir à igreja de Deus e
ter sido de alguma utilidade. Daí a injunçã o de Paulo, que os mestres
ensinem e que os instrutores atentem para sua instruçã o.
Agora fica claro o que Paulo quer dizer por “a palavra fiel que é
segundo a doutrina”. A verdade deve ser proclamada com pureza e
livre de qualquer mistura humana. Os crentes devem ter certeza da
fé e estar plenamente certos de que sabem de quem ela vem. De
resto, que nã o sejam alimentados de curiosidades fú teis, mas
tenham o alimento só lido que nutre amplamente nossas almas. Pois
quando ouvimos sermõ es sofisticados que nos agradam, mas que
nã o nos faz bem, isso se dá se nosso estô mago estiver cheio de vento
a ponto de explodir e nossas entranhas estiverem inchadas e
empanzinadas. Mas onde está todo o alimento? A intençã o de Deus é
que sua Palavra seja nosso alimento, como lemos no sexto capítulo
de Joã o [Jo 6.35, 51]. Por isso devemos receber seu ensino; ou, do
contrá rio, qualquer outra coisa dada será meramente lixo sem valor.
Mesmo quando nã o seja possível dizer: “Isto é um erro! Isto é
heresia!”, nã o é suficiente. Ao mesmo tempo, devemos estar aptos
em dizer: “Isto nos foi muito proveitoso. Deus foi gracioso para
conosco, pois ouvimos a sua Palavra”. Como ela é proveitosa?
Porque, quando nos é pregada, ela nos dá certeza, a fim de que nã o
sejamos errantes como os ignorantes, mas nos aferremos à sua
graça e mercê, verdadeira e totalmente a ambas. E assim nos
acheguemos a Jesus Cristo para receber a certeza de nossa salvaçã o,
conhecendo a obra que ele realizou e as bênçã os sem preço que ele
adquiriu para nó s. Saibamos também o que significa invocar a Deus
em confiança e volver-nos para ele em busca de socorro, ser
pacientes na afliçã o e na adversidade, e regozijar-nos em meio aos
ais desta presente vida. Sabemos sobre a vida celestial e como
devemos passar por este mundo. Estas, pois, sã o as coisas que Paulo
especialmente requer.
Ele adiciona algo mais: “firmeza” [ou, constâ ncia]. Ele escreve que “o
pastor de tal modo abrace a doutrina pura e se mantenha com
segurança tal, que esta nunca escape de sua mã o uma vez recebida
da parte de Deus”. Reiterando, aqui está uma virtude muitíssimo
necessá ria. Pois se mesmo os menos escolados e os mais simples
dentre os crentes forem firmes na fé, e nã o parecerem caniços que
tremem com o vento, o que será dos que devem dar o exemplo aos
demais? Paulo, no quarto capítulo de Efésios, nos informa que, se
formos instruídos no evangelho, entã o nã o seremos como meninos
que podem ser facilmente persuadidos de que giz é queijo! Devemos
receber a verdade de Deus com segurança e permanecer constantes
nela; que nã o nos deixemos emaranhar por todo vento passageiro —
essas sã o suas palavras —, senã o que resistamos a toda tentaçã o e
astú cia de Sataná s e seus lacaios [Ef 4.14].
Esta advertência visa nã o só aos pastores, mas a cada crente, do
maior ao menor. O que dizer, pois, dos que sã o chamados para ser
colunas sobre as quais o resto repousa? Joã o declara que a fé é a
vitó ria que vence o mundo [1Jo 5.4], e ali ele fala inclusive do
ignorante. Pois Isaías diz de todos os cristã os que “serã o ensinados
por Deus” [Is 54.13]. Acaso esse ensino nã o implica que nossa fé
deve ser resoluta e solidamente fixa, de modo que nada possa
desviar-nos dela ou abalar-nos? Se a fé de uma pessoa particular
deve vencer o mundo — nã o um ataque ou mesmo uma dú zia, mas
todo e qualquer ardil que o diabo possa usar para destruir nossa fé
— e se, nã o obstante, a fé permanece invencível, está vel e sem
mudança, o que dizer daqueles que guiam outros e que servem de
coadjuvantes da fé cristã ? Consequentemente, Paulo tem toda razã o
em instar conosco nã o só para que sejamos bem fundados na
verdade de Deus e nos certifiquemos de que ela é ú til a todo o povo,
mas também permanece firme sem recuar. E ainda que os ventos, os
furacõ es e as tempestades se levantem, nã o tremamos, mas nos
aferremos sempre à sã doutrina, de modo que ninguém a arrebate
de nó s, por mais ferozes e inexorá veis sejam seus ataques. Que este
tesouro nunca nos seja tomado, mas que conservemos sempre a
posse do ensino que nos foi confiado.
Eis uma coisa mui necessá ria; contudo saibamos que poucos a
observam realmente bem. Quantos encontramos hoje com suficiente
confiança para conservar bem segura a verdade de Deus que uma
vez lhes foi revelada? Vemos o que aconteceu quando entrou o
Interino diabó lico; muitos se rebelaram e preferiram sentar-se no
muro em vez de encarar os odiados do mundo. [11] Isso se deu
porque deixaram de considerar a admoestaçã o de Paulo de que
ninguém é apto para ensinar, a menos que resolva permanecer
firme e nã o transigir. Quisera Deus que exemplos desse tipo fossem
poucos e remotos! Mas, vejam só , há muitos pregadores que estã o
tã o prontos a promover o Alcorã o de Maomé ou o breviá rio do papa
como sendo o evangelho, contanto que tenham algo a lucrar e
possam continuar vivendo como antes. Enquanto possuírem sua
panela de guisado e uma tigela à mã o para enchê-la, realmente nã o
se preocupam. Alegam que creem na reforma evangélica, porém sã o
instrumentos de aluguel, menos dignos até mesmo que os animais
irracionais. Sã o alcoviteiros, sempre mudando sua aparência e
desatentos do que o povo diz. É suficiente que desfrutem do favor
dos homens. Portanto, tais pessoas sã o uma praga — uma praga
dupla, pois com ela ou sem ela nã o podem escapar ao tribunal
daquele que já passou sobre suas cabeças a sentença de condenaçã o.
Seja como for, de nossa parte devemos determinar continuar, pois
temos a incumbência da parte de Deus de sustentar a verdade e
defendê-la contra todos os ataques, por mais que o mundo se nos
oponha. E assim Jeremias foi enviado sob esta condiçã o: “Pelejarã o
contra ti, mas nã o prevalecerã o”. Por quê? “Porque eu sou contigo,
diz o SENHOR , para te livrar” [Jr 1.18, 19]. Isso foi dito
primeiramente a Jeremias, mas a intençã o de Deus é dar-nos, em sua
pessoa, uma norma para mostrar-nos o que fazer.
A seguir, retornemos ao que Paulo diz sobre como o ensino deve ser
aplicado. Devemos exortar os que se contentam em viver
tranquilamente e repreender os que contradizem . Sabemos que um
bom pastor usará uma linguagem suave e agradá vel quando reú ne
seu rebanho. Daí Jesus Cristo dizer que suas ovelhas ouvem sua voz
e facilmente a distinguem da voz de um estranho, de modo que se
reú nem sob seu cajado [Jo 10.4, 5]. Todavia, nã o basta que um
pastor chame suas ovelhas e as ajunte; deve também ter uma voz
que afugenta os lobos e ladrõ es; deve gritar quando vê seu rebanho
atacado e seus cã es latindo para espantar os que espalham as
ovelhas. Se cumprirmos nosso dever, devemos imitar a voz graciosa
de Jesus Cristo para atrair as ovelhas para si e mantê-las a salvo. No
entanto, devemos ter uma voz temível para espantar os lobos e
ladrõ es que buscam destruir o rebanho.
Esta, pois, é a dupla funçã o da Palavra de Deus. Na verdade, esta é
uma tarefa para todos, pois, quando Paulo arma os crentes, ele
descreve a Palavra de Deus como uma espada; a fé como seu escudo;
e a esperança como seu capacete [Ef 6.17; 1Ts 5.8]. Desta maneira,
ele mostra que a Palavra de Deus é nã o só boa para nó s quando
passamos a conhecê-la e quando aprendemos a render obediência a
Deus, ela também nos ajuda a repelir o diabo e a todos os que o
servem. Se eles nos tentassem corromper e afastar da casa de Deus,
seríamos capazes de resistir a eles. Se é assim com todos os crentes,
o que se dirá dos que servem como oficiais que levam os primeiros
golpes e sã o mais bem armados do que todos os demais? Por isso,
aqui Paulo registra corretamente ambos os usos da Palavra de Deus.
Portanto, aprendamos que sempre podemos tirar proveito da lei, do
evangelho e de toda a Santa Escritura se, sendo instruídos na
vontade de Deus, soubermos que sã o ú teis e se nos beneficiamos do
encorajamento que daí recebemos. Ao mesmo tempo, nos é dado o
que nos convém para a batalha, a fim de que, quando nossa fé é
assaltada e Sataná s maquina nossa ruína, nã o nos deixemos
desfalecer. Sejamos bons soldados, pois nossa bandeira é hasteada e
sabemos que Jesus Cristo nos escolheu como campeõ es que lutam
em prol de sua verdade. Essa é a primeira liçã o a ser aprendida.
Muito bem, quantos encontramos que perseveram quando sopra
mesmo a mais leve brisa? Sã o imediatamente esmagados! E por quê?
Porque há bem poucos que cuidam de armar-se. Quase todos creem
que basta ter provado a Palavra de Deus de passagem, como dizem.
Daí o diabo os acharem de mã os vazias. Era tudo uma questã o de
exibiçã o externa; nã o havia neles nenhuma firmeza. Longe de se
equiparem para enfrentar a provaçã o, mesmo na ausência de algum
ataque direto, logo desistem, pois nã o possuem nenhuma raiz viva e
nã o extraem da Palavra de Deus nenhuma nutriçã o só lida para suas
almas. Nã o obstante, este é o poder que o Senhor sempre conferiu à
sua Palavra. No ú ltimo dia, é bem possível que ele nos repreenda por
havermos feito tã o pouco uso dela, se nã o formos bem instruídos
como deveríamos ser, nem tã o bem armados para resistirmos todos
os estratagemas, erros e males que Sataná s emprega para desviar-
nos da vereda da salvaçã o. Portanto, concluímos que a falha é nossa
se realmente nã o tivermos certeza do que temos de fazer, pois isso
equivale a profanar a verdade de Deus.
Aqui vemos ainda quã o terrivelmente os papistas blasfemam
quando comparam a Santa Escritura com um nariz de cera que nã o
pode prover nenhuma certeza de fé. [12] Pois, se a Palavra de Deus
nã o tivesse poder para assegurar-nos do que é necessá rio para
nossa salvaçã o, Paulo jamais teria falado nesses termos. Por isso,
devemos admitir o que Deus tem dito para guiar-nos, e assim
assegurar-nos de que nã o podemos errar nem extraviar-nos. Isso é
suficiente para esse ponto.
Aprendamos melhor que antes a esquivar-nos de todos os assaltos,
pois a Palavra de Deus é nossa espada espiritual. Quanto virmos o
evangelho enfrentar ataques de todos os lados, oremos para que
Deus nos fortaleça e cada um de nó s se equipe com as armas que
Deus supre, de modo que nã o sejamos tomados desprevenidos.
Recordemos bem que seremos envergonhados se nos acharmos
despojados da armadura. Deus nos tem dado os meios, provendo-
nos para que de nossa parte tenhamos suficiente cuidado. Acima de
tudo, aqueles cuja tarefa é declarar a Palavra de Deus se assegurem
de que ensinem e exortem pelo uso da sã doutrina. Pois Paulo nã o se
contenta em falar de “ensino”; a palavra que ele usa — “exortaçã o”
— é muito mais forte, significando que, embora os homens estejam
prontos a aprender, se deixem guiar espontaneamente e receber
humilde e mansamente o jugo de Deus, nã o basta apenas dizer: “Este
é o caminho a seguir”. Devem ser estimulados, pois o melhor e, por
assim dizer, o mais piedoso, ainda necessita ser incentivado. Sempre
haverá neles alguma indolência e muita fraqueza.
Daí, nã o basta que aceitemos o que nos é ensinado. Temos de ser
instigados, e a Palavra de Deus deve ter o poder de impelir-nos
como que pela força. É preciso notar cuidadosamente este fato, pois
Paulo, nesta passagem, nã o está falando dos que sã o mal-
humorados, malevolentes, hipó critas ou obstinados; ele está falando
dos que sã o genuínos cordeiros que buscam obedecer a seu pastor e
que, numa palavra, sã o condescendentes. Mesmo assim, ele está
ciente de que há tal enfermidade em todos os homens. Uma vez que
tenham sido ensinados, devem continuar sendo instados. Além do
mais, é necessá rio que sejam ajudados. Eles têm de ser incentivados
e instruídos acerca do que mais têm que fazer. Embora a palavra
“exortar” algumas vezes signifique “confortar”, Paulo sugere que nã o
é suficiente ouvir o que é bom; devemos ser também estimulados a
pô -lo em prá tica. Entã o, quando formos à igreja, nã o devemos
considerar estranho se ouvirmos um apelo para irmos a Deus, pois
alguns há que prefeririam que os sermõ es fossem frios e sem vida, e
que gostariam que só lêssemos para eles o que a Escritura contém.
E entã o? Deus sabe melhor que nó s o que é necessá rio para nossa
salvaçã o. Portanto, devemos ir e ouvir a Palavra de Deus, nã o só
para aprender o que é bom, mas também para sermos encorajados a
agir de acordo com ela, quanto for necessá rio e quanto requeira
nossa indolência e fraqueza. Enquanto isso, resolvamos estar entre
aqueles de quem Paulo fala, se tivermos a Palavra de Deus como
nossa instrutora; de outro modo, fecharemos a porta a Deus para
que ele nã o seja nosso Mestre ou opere em nó s; à medida que o
resistirmos, fugiremos dele envergonhados e recusaremos seu jugo.
Isso, reitero, é o que devemos fazer se quisermos que Deus seja
nosso Mestre. Entã o, acaso estaremos abertos à sã e proveitosa
doutrina? Devemos considerar-nos entre as ovelhas e cordeiros que
ouvem de bom grado seu Pastor, os quais nã o sã o tã o difíceis de
lidar e que tranquilamente atentam para as exortaçõ es que se
destinam a estimular-nos.
Além disso, contudo, notamos que os que contradizem devem ser
repreendidos. Aqueles que têm a incumbência de ensinar a igreja
devem assistir sabiamente a todos os que voluntá ria e serenamente
se deixam guiar e que, sem dissentimento, permitam que o Senhor
Jesus exerça domínio sobre eles. Nã o obstante, se houver
dissentimento, que se aplique o remédio proposto por Paulo.
Qualquer pregador do evangelho que negligencia este dever jamais
o cumprirá bem. Daí, quando o ministro subir ao pú lpito, seu
primeiro alvo deve ser sempre conduzir todos à obediência a Deus,
como Paulo declara na segunda carta aos Coríntios. Ali, ele escreve
sobre a espada espiritual que destró i todos os sofismas humanos e
anula toda altivez que se opõ e a Jesus Cristo, e sobre a vingança que,
quando nossa obediência é completa, aguarda a todos os que
desobedecem [2Co 10.5, 6]. Com efeito, ele diz isto: “Quando
pregamos o evangelho, nosso alvo primordial deve ser introduzir na
igreja os que se contentam em ser guiados tranquilamente”.
Esse é um ponto; nã o nos esqueçamos, contudo, do segundo. Se
houver quem contradiga, que esse seja repreendido incisivamente.
Ora, há muitos que gostam disso. Alguns se propõ em a difundir suas
heresias com o fim de prejudicar a pura doutrina de Deus; irradiam
mentiras e fantasias. A estes devemos resistir acima de tudo. Outros
nã o sã o tã o nocivos nem tã o extremados, mas ainda sã o maus. Pois
alguns se deixam excitar facilmente, sendo demasiadamente
amantes de ninharia e futilidade, coisas indignas que nunca podem
edificar. Estes também devem ser repelidos. Ainda há outros que
desprezam a Deus. Eles nã o buscam refú gio atrá s de falso ensino,
mas se sentiriam contentes se todo o governo da igreja fosse abolido
e toda religiã o varrida. Também aqui o pastor deve estar armado.
Quando os homens sã o dissolutos e dados a todo tipo de mal, se nã o
permitirmos nenhuma corrupçã o e nos recusarmos a acomodar-nos
a eles, entã o se ajuntarã o e traçarã o planos diabó licos a fim de
destruir toda a disciplina e ordem. Contra homens como esses
devemos também enfrentar com ousadia.
Resumindo, uma pessoa que contradiz é alguém que se recusa a ser
guiado pela Palavra de Deus. Portanto, nã o devemos pensar ser
estranho se os pastores falem asperamente desde o pú lpito e
pareçam excessivamente radicais e severos. Pensemos no estado em
que vivemos hoje. Acaso realmente somos melhores e mais perfeitos
que esses que viveram nos dias de Paulo? Sabemos que o mundo
havia atingido tal clímax de perversidade que se tornara um dilú vio!
Em consequência, como é possível que sirvamos à igreja de Deus
sem deflagrar batalha contra os que a contradizem, visto que sã o
infinitos em nú mero e se erguem com maior ousadia e fú ria do que
nunca e visto que o diabo, como costumamos dizer, está fazendo um
jogo desesperado? Sendo assim, os ministros da Palavra de Deus
devem olhar atentamente e descer à obra.
Nã o obstante, eles estã o longe de fazer tudo o que deveriam, embora
muitas almas sensíveis e suscetíveis se queixem de que fazem tanto.
Ah! Quando Deus nos pedir contas, nã o poderemos escapar à
responsabilidade de haver falhado em cumprir metade de nosso
dever — nem ainda um décimo dele! Todavia, devemos esforçar-nos
por obedecer ao que nos é ensinado aqui e seguir a regra contida
neste texto. Se virmos homens que contradizem, entã o nos armemos
contra eles. Que soe a trombeta e declaremos guerra franca contra
eles! De outro modo, somos covardes e traidores de Jesus Cristo, o
qual nos chamou sob a condiçã o de lutarmos sob sua bandeira
contra todos os que se levantam, os quais buscam denegrir e
escarnecer sua Palavra e desacreditá -la. Em vez disso, devemos
recebê-la com aquela reverência que bem merece. Daí, os que nã o
querem ser julgados severamente pela Palavra de Deus que se
cuidem de nã o fazer resistência. Antes e acima de tudo, devem
aceitar a verdade ensinada nela e manter a paz e a harmonia entre o
rebanho. Esse é um ponto.
O segundo ponto é que nã o devem tentar encher o mundo com seus
joios diabó licos, ou desprezar a Deus, ridicularizando sua Palavra.
Que a Palavra cause neles temor e inclusive os faça tremer, no dizer
do profeta Isaías: “O Espírito de Deus repousa sobre os que tremem
de sua palavra” [Is 66.2]. Que os que nã o desejam ser tratados
asperamente, se uma vez foram obstinados, se tornem obedientes e
emendem sua vida e saibam que, se nã o se comprometerem a fazer
progresso, seremos compelidos a deflagrar guerra contra eles. Se
um farrista, ébrio ou blasfemo se diverte em sua imundícia, seria
possível que ficá ssemos surpresos se os servos de Deus lutassem
contra ele? Imaginemos uma vila onde um agricultor é contratado a
velar pelos campos e vinhas do proprietá rio. Ele vê ladrõ es que
surgem para roubar, mas finge que nada está errado e se fecha em
sua casa, agindo como se fosse cego. Porventura ele nã o seria
cú mplice dos ladrõ es — pior ainda, mais que criminoso, porque a
ele foram confiados os pertences do proprietá rio, enquanto nã o a
outros?
Daí, quando virmos homens maus subvertendo todo o temor de
Deus e toda a integridade, que se inclinam a poluir tudo com seu
mau cheiro, se dissimularmos e falharmos em enfrentá -los, seremos
a causa de toda esta perversidade. Portanto, eles nã o devem
queixar-se quando forem severamente repreendidos; porque, se
tomam tais liberdades, tudo que podem fazer é subverter a ordem
que nosso Senhor Jesus Cristo estabeleceu. Sempre que
encontrarmos os que contradizem, isto é, sempre que a Palavra de
Deus nã o for recebida com a devida reverência, deve-se juntar a
batalha. E se clamarem, “Oh!, que estardalhaço é esse? Que se
levante contra eles uma tempestade!”, sã o eles mesmos que fazem
todo o alvoroço, pois neles nã o há fé, nem religiã o, nem temor de
Deus que inspire obediência. Visto que sã o eles os que subvertem
tudo, entã o que nos esquivemos deles quando tentarem tirar o Filho
de Deus de seu trono, despojá -lo de seu reino neste mundo e
desfazer tudo.
Enquanto Paulo dirige expressamente suas observaçõ es aos
ministros da Palavra de Deus, há aqui uma regra para todos os
cristã os: que movamos batalha contra todos os inimigos de Deus. Se
tivermos ciência de que escarnecem de Deus e que tentam subverter
e arruinar tudo; se Sataná s tem falsos mestres que torcem a verdade
pura; se há pessoas indisciplinadas que marcham para semear
confusã o e impedir Deus de ser servido e honrado, nã o neguemos
nosso compromisso a Jesus Cristo, mas nos armemos contra eles e
usemos as armas da Palavra de Deus para rechaçá -los.
Naturalmente, vivamos pacificamente com todos, o quanto nos for
possível. Paulo mesmo faz essa exceçã o [Rm 12.18]; pois ele pô de
ver que, neste mundo, nã o podemos viver sem nos opormos aos
perversos e sem, em qualquer caso, ser seu inimigo. Ai de nó s se
formos pacíficos para com os que claramente deflagram guerra
contra Deus! Acaso isso nã o significa tramar vil e traiçoeiramente
em favor dos inimigos de nosso rei? Portanto, lemos no salmo 15
que Deus conta como membros de sua igreja os que odeiam os
malfeitores, porém amam e reverenciam os retos [Sl 15.4]. Pois que
tipo de pessoas somos nó s se nã o tratarmos com carinho a verdade
e odiarmos o mal?
É isso que esta passagem tem para ensinar-nos. Temos que tentar
com toda brandura instruir os que permitem que Deus seja seu Guia,
por mais fracos que sejam em ser suportados por nó s. Mas, se forem
rebeldes, um asno insubordinado merece um dono obstinado. Entã o
temos que fazer o que o salmo 18 nos diz [Sl 18.40-42]. É verdade
que Deus nada mais deseja senã o que conheçamos a sua bondade.
Todavia, lemos que ele é duro com os duros; e rude e á spero para
com os que despudoradamente se rebelam e sã o como á rvores
petrificadas. Esses devem ser derrubados e removidos. Daí
devermos pô r em prá tica esta liçã o, resistindo a todos os que sã o
maus. Roguemos a Deus que nos preserve como membros de seu
povo.
Para mostrar quã o vital é esta liçã o para nó s hoje, ponderemos
sobre a explanaçã o que Paulo faz em seguida: existem muitos
insubordinados, palradores, frívolos e enganadores . Mesmo entre os
judeus que se gabavam de ser o povo de Deus — os filhos mais
velhos, por assim dizer, da igreja — e que reivindicavam o privilégio
mais elevado, Paulo declara que muitos dentre eles eram indignos e
capazes de destruir tudo, a menos que fossem resistidos. Em
consequência, ele aponta para uma necessidade atual e urgente a
fim de motivar mais intensamente a Tito e aos demais pastores.
Devemos considerar ainda nossa pró pria posiçã o, como eu já disse.
Pois seguramente chegamos a um tempo em que o mundo nunca foi
tã o obstinado nem as coisas tã o má s como o sã o hoje. Se
visualizarmos atentamente o atual estado do mundo, ficaremos
totalmente desanimados. Nesse caso, nã o devemos estar mais bem
armados do que nunca? Nã o devemos ser zelosos em resistir a todos
os que contradizem? Visto que o mundo está cheio de tais pessoas;
visto que tanto os grandes quanto os pequenos fazem guerra contra
Deus, acaso nã o deveríamos demonstrar a quem servimos? Acaso
nosso pró prio Senhor Jesus Cristo nã o nos convocou para manter a
gló ria de seu reino aqui em baixo? E visto que ele graciosamente nos
fez administradores de sua verdade, nã o deveríamos labutar
ferrenhamente em prol dela? Pois é plenamente certo que, enquanto
nã o puder considerar-nos aptos para a tarefa, ele nã o nos conferirá
a honra de usar-nos. O mínimo que cada um de nó s pode fazer é
chegar diante dele, dizendo: “Usa-me, Senhor. Que eu jamais
concorde com os que se opõ em à tua Palavra ou os considere
amigos; mas que eu seja contado no nú mero de teu povo”. O
apó stolo afirma expressamente que Moisés só podia ser parte do
povo de Deus deixando para trá s as riquezas do Egito [Hb 11.25, 26].
O que mais ele tem em mente senã o que devemos deixar a
companhia dos que têm se levantado contra Deus? Pois se alguém
pensa que está suficientemente pronto para rivalizar-se com os
perversos enquanto ainda cumpre seu dever para com Deus, esse
está equivocado. Esta palavra certamente se provará ser verdadeira:
“Um pouco de fermento levada toda a massa” [1Co 5.6].
Portanto, aprendamos a fugir o quanto possível de todos os que
buscam introduzir-se entre nó s, com o fim de apoderar-se de nó s e
fazer-nos desobedientes a Deus. Notemos outra vez que nã o
podemos escapar à obrigaçã o de lutar contra os que se opõ em a
Deus; pois, de outro modo, Jesus Cristo nos renunciará . Ele é
designado cabeça de sua igreja sob o critério de que nos tornemos
iguais a ele. Ele diz que o zelo da casa de Deus o consumiu, e que os
opró brios que se destinavam a Deus caíram sobre ele [Sl 69.9; Jo
2.17; Rm 15.3]. Portanto, nó s também devemos fazer nossa a causa
de Deus, e nã o permitir que sua Palavra de modo algum seja
profanada. Devemos batalhar nã o só contra seus inimigos
declarados tais como os papistas, mas contra os que se misturam
conosco, da mesma forma que Paulo fala dos judeus, pois ele tem em
mente os que possuem os meios de nos causar muito dano, quando
dispersado entre os cristã os.
É assim, pois, que devemos nos desvencilhar nã o só dos turcos, dos
papistas e de outros incrédulos, mas daqueles que vivem entre nó s e
que gostariam de pô r fim a toda a obediência a Deus. Em todo caso,
devemos ser seus inimigos, a menos que se reformem, tornando-se
obedientes e mostrando que sã o um conosco. Devem dar sua mã o;
de modo que, de todo o coraçã o e voz, adoremos aquele que governa
terra e céu, diante de quem todo joelho deve dobrar-se e toda língua
há de confessar que ele está assentado à destra de Deus Pai.
 
Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e orando para que ele nos faça senti-los
mais sensivelmente do que antes. Que todos nó s, a um só tempo,
sejamos alimentados e nutridos pelo alimento de sua Palavra e, visto
que todos necessitamos tornar-nos fortes, cada um de nó s se esforce
por receber a graça que ele oferece, a fim de que escapemos dos
ataques de todos os que contradizem e que diariamente se opõ em à
sua doutrina. Que batalhemos contra nó s mesmos, pois nossa
natureza é tal que nos faz insurgir contra Deus, seu culto e sua justa
lei. Sejamos soldados corajosos, para que, uma vez sendo vitoriosos
em todo combate desta vida mortal, alcancemos a gló ria celestial
que está preparada para nó s, a qual ele tã o amorosamente
conquistou para nó s e onde possamos desfrutar o fruto de todo o
nosso labutar.
7. SÉTIMO SERMÃO: O ADVERSÁRIO DE DENTRO [Tito 1.10-12]
Porque existem muitos insubordinados, palradores frívolos e
enganadores, especialmente os da circuncisão. É preciso fazê-los calar,
porque andam pervertendo casas inteiras, ensinando o que não
devem, por torpe ganância. Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta,
que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventre
preguiçosos.
 
Já explicamos previamente por que Paulo diz que nas cidades e no campo de
Creta havia muitas pessoas necessitadas de corretivo . Seu propó sito era
advertir Tito, que entã o vivia na ilha, a que fosse mais vigilante em designar
pessoas que pudessem repreender os que se opunham à verdade de Deus, que
perturbavam a igreja e que para alguns eram motivo de escâ ndalo. Pois bem,
sabemos que temos de ser cuidadosos em remediar as ocupaçõ es segundo
demandem o perigo e a necessidade. Daí, quando virmos malfeitores cuja
intençã o é derrubar a igreja, devemos estar ainda mais alertas e zelosos em
detê-los. Essa era a intençã o de Paulo quando salientou que muitas dessas
pessoas haviam se misturado com os crentes. Nã o pertenciam à ralé ordiná ria,
pois assumiam para si o ensino, eram desobedientes, sendo dados, no dizer de
Paulo, à conversação fútil e lucro desonesto, ensinando coisas que não podem
edificar .
Observemos, pois, que, quando vemos a igreja de Deus perturbada por
homens malignos, os pastores devem agir com ainda mais dureza para manter
a boa ordem, e devem estar armados, nã o com a espada física, mas com a
Palavra de Deus e com sabedoria e energia, a fim de espantar tais homens. Ao
notarmos os indivíduos que inventam apresentar alguma novidade, façamos
nosso melhor para ver que a igreja de Deus seja suprida com líderes íntegros
que podem prevenir que Sataná s leve os homens a tropeçar.
Isso, em suma, é o que esta passagem ensina. Quanto ao resto, Paulo nã o se
contenta apenas em dizer que isto era justamente o que algumas pessoas
eram: ele distingue principalmente os judeus. Ora, estes eram a nata da igreja,
o primogênito da casa de Deus [Rm 11.16]. Como bem sabemos, os gentios
eram como brotos silvestres que Deus graciosamente escolheu para enxertar
no tronco da raça de Abraã o. Daí os judeus serem, desde tempos imemoriais,
os verdadeiros herdeiros da salvaçã o; a herança da vida lhes pertencia.
Mesmo assim, Paulo nã o hesita em lançar-lhes opró brios, dizendo que eram os
que mais perturbavam a igreja. Notemos, pois, que nã o pode haver dú vida
alguma de poupar os que sã o aptos a causar dano ou injú ria. Devem sofrer
desgraça, de modo que todos se acautelem deles assim que fique evidente que
nã o há outro modo de detê-los.
É verdade que odeiam ver seus erros sendo trazidos à luz, mesmo quando
todos conheçam o tipo de pessoas que sã o. Contudo, consideremos se
preferimos essas ferramentas de Sataná s a todo o corpo da igreja de Deus e
seu povo. Se há perversos que semeiam suas cizâ nias, quer doutrinas falsas ou
conversaçã o torpe, com vistas a que os crentes se desviem do caminho reto e
se dissimularmos ou pretextarmos nã o ver, as pessoas simples serã o
infectadas; nã o se tomará nenhuma precauçã o e muitos ignorantes se
desviarã o. Entã o, a praga se espalhará por toda parte. Mas, se notarmos tais
homens e apontarmos para eles, todos os evitarã o e estes ficarã o
impossibilitados de causar dano. Era isso que o apó stolo tinha em mente.
Seguindo seu exemplo, ao virmos pessoas propensas ao mal, as quais só criam
estrago na igreja, se pudermos trazê-las serenamente de volta à s veredas
certas, entã o que tentemos. Se, no entanto, obstinadamente aderem aos seus
maus caminhos, nã o devemos ser mais sá bios que o Espírito Santo. Que sejam
descobertos e expostos; que sua depravaçã o seja exibida para seu opró brio, de
modo que os homens venham a detestar seu estado e esquivar-se deles, como
já vimos no caso de outros textos. Outros objetam quando tais passos sã o
tomados para mostrar claramente que nada querem senã o a ruína da igreja.
Naturalmente, alegam ser motivados pelo espírito magnâ nimo: “Olhe aqui,
acaso dessa maneira nã o estamos denegrindo as pessoas e envergonhando-as
como se realmente quiséssemos destruí-las?” Mas, nesse ínterim, nã o estamos
levando a pobre igreja de Deus aos lobos, por assim dizer, e aos ladrõ es? Todo
o rebanho deveria ser disperso, o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo calcado
sob a planta dos pés, aquelas almas perdidas que ele redimiu por grande custo
e toda ordem varridas, enquanto ninguém diz sequer uma palavra e todo olho
se fecha? Que covardia é essa? Entã o, tanto quanto possível, devemos trazer
de volta os que nã o estã o totalmente carentes de correçã o, sem envergonhá -
los, especialmente se seus erros sã o ocultos. No entanto, quando lançarem
toda a prudência aos ventos e ameaçarem a igreja com ruína, entã o deve ser
empregado um remédio mais eficaz. Devemos expô -los pelo que sã o e
certificar-nos de que as pessoas os conheçam e se acautelem deles. Nã o devem
ser poupados, porque aqui é a pró pria salvaçã o de todo o povo de Deus que
está em jogo. Esse é um ponto.
Mais uma vez, a mençã o que Paulo faz dos judeus nos lembra que nã o
devemos permitir que nos influenciem parcialmente, a ponto de dizermos: “A
este homem devemos respeito; e, à quele, tolerâ ncia”. Como se tem dito, que
façamos tudo quanto pudermos para reconduzir os irredutíveis; mas, se
soubermos que o mal tende a se espalhar mais, Sataná s deve ser detido e
posto em fuga. Por isso, hoje, nã o nos concentremos nos honrados e nos
privilegiados, a ponto de negligenciar nosso dever. Deveras há homens que
sã o tã o santos, que meramente tocá -los ameaça sua existência; transpiram
complacência, ainda que neles só haja imundícia. Contudo, mesmo supondo
que sejam homens de eminente dignidade, que mais podem reivindicar além
do que foi reivindicado pelos judeus? Acaso podem gabar-se de ser melhores
que qualquer outro? Já dissemos que o evangelho veio dos judeus; que, em
certo sentido, eles eram a raiz santa, o povo santo e escolhido, a igreja de
Deus. Quando os judeus desfrutavam desses privilégios, nã o podiam dizer que
nã o deviam ser criticados, mas que, embora o mundo inteiro fosse desditoso,
pelo menos eles tinham o direito a alguma honra?
Nã o obstante, Paulo considera que eles tinham ainda maior liberdade para
praticar o mal. Como o evangelho veio da Judeia e da raça de Abraã o, pareciam
ser anjos, mas tinham maior escopo para causar dano. Nã o lhes bastava gabar-
se: “Somos o primogênito na casa de Deus” — pois assim Paulo os
denominava. Somos o povo que Deus escolheu para si. “Somos da linhagem de
Abraã o que Deus há muito adotou. Foi a nó s que Deus se revelou; e é tã o
somente por nosso intermédio que vocês possuem a mensagem da salvaçã o.”
Se os judeus pudessem fazer tal reivindicaçã o, como os ignorantes nã o se
sentiriam intimidados?
Entã o, quando alguns desfrutam certa medida de honra e havia muito eram
tidos em alta estima, se usam sua influência para fazer dano, ou semear a
discó rdia, ou destruir a casa de Deus, temos de resistir-lhes com vigor e
dominá -los, como se deles nos viesse o maior perigo, pois abusam do nome de
Deus para melhor deflagrar guerra contra ele. Entã o, um homem comum que é
desconhecido e que nã o possui nenhum recurso para estragar tudo deve, no
entanto, ser detido se for mau, a fim de que sua peçonha nã o se espalhe a
longa distâ ncia. No entanto, um homem proeminente que está exposto ao
pú blico e se gaba de sua reputaçã o será como um homem possesso e bem
armado. Se ele for deixado intocado, o que nã o fará ?
Lembremo-nos, pois, que, quando os homens sã o honrados por sua posiçã o
social ou por sua reputaçã o consolidada e quando, tendo dado evidência da fé
cristã , se tornam maus e se ajuntam contra Deus, tramando perversamente
suprimir toda a verdade evangélica, os pastores devem desconsiderar seu
povo e deflagrar guerra principalmente contra estes. Pois é nesses termos que
Paulo o expressa. Guiado pelo Espírito de Deus, ele estabelece uma regra de
perseverança para a seguirmos. Além do mais, quando descreve tais pessoas,
notemos que ele nã o as chama de hereges — um termo usado em outros
lugares acerca daqueles que pervertem totalmente a mensagem evangélica e
espalham o erro e a falsa doutrina. Ele os denomina palradores [ou, tagarelas],
desobedientes e obstinados, homens surdos para com a razã o e a verdade.
Assim, ainda que a doutrina de Deus nã o seja atacada abertamente, devemos
precaver-nos do caso de alguns, de maneira sorrateira e clandestina, porem
tudo de ponta cabeça. Devemos impedi-los de ir longe demais e nã o esperar
que alguém se revele um inimigo mortal do evangelho. Se o tal tentar
secretamente promover problema, esse de fato é um inimigo; pois nã o há
inimigos mais mortais do que os traidores e os que, sob o disfarce do nome de
Deus, semeiam divisõ es na igreja, na tentativa de retardar o que Deus
pretende e, assim, conseguir enlamear a pureza da doutrina, mesmo quando
nã o introduzam heresias ó bvias.
Por exemplo, sabemos que alguns há que nã o confessam que o que ensinam é
falso. Por mais descarados que sejam, sentem envergonha de afirmar tais
coisas, pois nada se pode lucrar que valha a pena. Assim, esses demô nios nã o
mostram seus chifres imediatamente. Em vez disso, tentam suscitar
antagonismo entre as pessoas, como vezes sem conta tem sucedido. Queira
Deus que sejamos real e completamente purificados de tais infecciosas
imundícias! A seguir eles tentam forjar seu pró prio esquema de introduzir
mudanças e novidades, a ponto de serem capazes de lançar tudo em confusã o.
Naturalmente, as mudanças nã o sã o feitas de imediato, nem tais pessoas
dizem que o que ensinam é em si mesmo falso. Nã o obstante, tornam sua
inimizade perfeitamente clara. Ora, se nada fizermos e pretextarmos que tudo
está bem, onde tudo isso terminará ? Acaso o diabo nã o terá vencido? E
porventura nã o seremos culpados de deixar o rebanho desprotegido, de modo
que o que edificamos em nome de Deus seja destruído? Em consequência, nã o
temos que lutar somente contra os papistas ou os turcos, os quais rejeitam
totalmente nossa doutrina, mas contra os inimigos em nossa pró pria casa, os
quais, em sua perversidade e insídia, se empenham em demolir o que foi
corretamente estabelecido e enfraquecer o governo de Deus, de modo que
pouco a pouco tudo seca e, finalmente, se decompõ e, infectando toda a pureza
da religiã o. Devemos esquivar-nos de tais homens com toda firmeza.
Ora, tã o longe estamos de manter-nos em guarda, que cada um parece
conscientemente querer sorver o veneno! Se nutríssemos dú vida sobre o
alimento, certamente nã o o tocaríamos; tal é o amor e a preocupaçã o que
temos por esta vida fugaz. Contudo, quando Deus nos adverte que constitui
veneno nos afastarmos de sua Palavra, em razã o do respeito que lhe devemos
e do ardoroso desejo de fazer proficiência dela, nã o prestamos atençã o.
Alguns se contentam em alimentar seus ouvidos com umas poucas e estú pidas
especulaçõ es; outros saltam de alegria quando veem interrompida a obra do
ensino; sentem-se felizes vendo os servos de Deus importunados e exultam
publicamente nisso. Eis por que dã o aos hereges uma mã o ajudadora, como
tã o frequentemente tem sido o caso aqui, para nã o alongar mais a vista. Em
qualquer caso, os crentes devem pô r-se em alerta quanto ao que Deus diz: se
quiserem que suas almas estejam a salvo e em segurança, precisam estar
vigilantes e livres de todo e qualquer falso ensino. Aliá s, quando virem que
Sataná s se empenha secretamente em torná -los enfadados da Palavra de Deus
quando lhes é pregada, devem estar cientes disto e agir com propriedade, cada
um de sua pró pria maneira. Porque, como eu disse previamente, Paulo está se
dirigindo nã o só a Tito, mas a todo o povo.
O apó stolo adiciona ainda que estes homens pervertem casas inteiras . Já é
demais que uma pessoa seja desviada, pois as almas devem ser-nos preciosas.
Nosso Senhor Jesus Cristo as tinha como tã o queridas, que deu sua pró pria
vida para nossa redençã o e salvaçã o. Mas quando famílias inteiras se desviam,
e cada membro delas, isso é abominá vel. E assim vemos que, se for adicionado
à massa um pouco de fermento, imediatamente tudo azeda. Já notamos que,
quando Paulo se referia à s graves e pesadas ofensas dos enganadores, ele os
acusou de conversação vazia e especulações fúteis e de certas tradiçõ es que os
judeus haviam tomado de sua lei, a qual eles entendiam erroneamente. Ele diz
que isso se dava para que pudessem enganar mais facilmente. Como, pois, é
possível que, ao sermos plenamente advertidos, nã o nos ponhamos em
guarda? Se vivemos fora do caminho, de quem é a culpa? Se nosso Senhor
permite que Sataná s nos engane, de modo que nos tornemos insensíveis e
dados a uma mente réproba, teremos feito isso por nó s mesmos, por razã o de
nossa displicência e falta de discernimento, a despeito de Deus, uma vez que
fracassamos em fazer uso do remédio que ele providenciou. Portanto,
antecipemos tais perigos, pois o Santo Espírito nos ensina que muito pouco é
necessá rio para que todas as famílias se envenenem. Estejamos alerta ao que
pode acontecer, pois Paulo continua explicando a causa que é a raiz de tais
coisas — lucro desonesto . Quando a cupidez nos impele, quando, em suma,
pomos nosso coraçã o nos bens terrenos, nã o podemos ensinar com pureza.
Meramente distinguimos a verdade e, como os vendedores, falsificamos tudo.
Essa é a imagem que Paulo emprega quando escreve que proclamava o
evangelho com pureza [2Co 2.17]. Ele nã o era um vendedor dado ao disfarce,
mas, ao contrá rio, preservava a simplicidade pura da Palavra de Deus.
Daí, todos os que sã o incumbidos do ensino na igreja devem certificar-se de
que aprendem a servir a Deus com sinceridade. Devem contentar-se com o
que ele lhes dá e voltar suas costas a todo o amor pela riqueza; devem refletir
que sã o mais que ricos quando tiverem edificado a igreja de Deus. E quando,
inocentes de cupidez e do desejo por riquezas, percebem que o Senhor faz uso
de seu trabalho, entã o que se alegrem porque o trabalho nã o foi em vã o, senã o
que Deus o tornou frutífero. Esse pensamento deve ter precedência em suas
mentes. Pois, quando os homens buscam ajuntar para si dá divas e subornos,
quando um homem demanda favores e outros tomam posse de todo o mundo,
quando isso acontece, entã o surge um princípio fatal, pois toda a verdade de
Deus é infectada pelo veneno. Isso é o que Paulo ensina nesta passagem.
No entanto, ele faz soar uma nota mais grave quando diz que toda a raça no
meio da qual Tito se encontra há muito se tornara refratá ria e imunda. Ele tem
em vista a ilha de Candia, que hoje é chamada Creta. É uma ilha grande que já
contou com cem vilas ou cidades. Nã o obstante, diz Paulo. que eram lugares de
má reputaçã o, conhecidos pelos modos pecaminosos e malignos de seu povo.
Portanto, Tito tinha de ser muito mais bem armado com força e constâ ncia a
fim de abrandar a dureza desses brutos obstinados. Em consequência, o
apó stolo cita um de seus poetas nativos, um homem célebre como seu pró prio
profeta, que declarou: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres
preguiçosos. [13] Quã o ingló rio é ser chamado de ociosos, glutõ es, mentirosos
e ventres preguiçosos! E assim lhes é negado qualquer nome bom. Aqui, Paulo
parece se lhes opor como seu inimigo, pois ele nã o escreveu a Tito em
segredo, mas a fim de ser lido e publicado, de modo que todos os cretenses
pudessem ouvir o que estava sendo escrito sobre eles. A impressã o que Paulo
deixa é que tem em mente abandoná -los.
Mesmo assim, ele era seu pastor; e, embora seus deveres o levassem a outros
vastos lugares, ele tinha também que cuidar desta igreja. Daí devermos
aprender que, embora um homem queira a salvaçã o de seu povo e tenha amor
especial para com eles, o mesmo nã o pode deixar de apontar-lhes seus erros.
Na verdade, nã o podemos exibir o amor que temos para com aqueles que sã o
entregues ao nosso cuidado, exceto se tentarmos corrigir os erros e males que
os mancham. Pois, se nã o dissermos nada, simplesmente embalamos os
homens a dormir quanto sã o capazes de fazer. Nã o pensam em emendar suas
vidas, e tudo o que fizermos, em certo sentido, equivale a espalhar a praga
entre eles. Eis por que eu disse que um bom pastor, por mais asperamente que
invectiva contra seu povo, mesmo assim ele deve amá -los ainda mais que sua
pró pria vida. Mas, justamente como o dever dos pregadores é fazer uso da
liberdade que Paulo lhes permite, assim os crentes nã o devem ter ouvidos tã o
delicados, que se tornam excessivamente aborrecidos quando seus erros lhes
sã o apontados. Infelizmente, hoje chegamos ao ponto em que as pessoas nada
toleram. Muitos esperam ser bajulados; ou, pior, seu modo de pensar o
evangelho nã o foi propriamente alcançado. Creem que a verdadeira pregaçã o
consiste em encobrir sua imundícia e em entregar-se a ela e comprazer-se
nela!
Ora, neste texto temos uma doutrina bem diferente, a qual nã o pode ser
licitamente alterada. Aqui, respectivamente, os ministros e todo o corpo dos
crentes têm liçõ es a aprender. Quando, de sua parte, os ministros descobrem
erros entre os que lhes foram confiados, nã o devem escondê-los, e sim pô -los
a descoberto, pois é preferível que envergonhem os que se tornaram tã o
adormecidos do que pô r-lhes vendas para que vejam ainda menos. Eles
devem, repito, ser despertados, como quando Paulo diz que os coríntios nã o
tinham outro pai além dele. Diz ele: “Nã o vos escrevo estas coisas para vos
envergonhar; pelo contrá rio, para vos admoestar como a filhos mui amados.
Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores em Cristo, nã o teríeis,
contudo, muitos pais; pois eu, pelo evangelho, vos gerei em Cristo Jesus”. No
entanto, ele continua: “Para vos admoestar como a filhos mui amados” [1Co
4.14-15]. Seu propó sito nã o era fazê-los publicamente desditosos, mas
envergonhá -los entre si, porque nã o sabiam o que eram antes. Foram
enganados por sua fú til reputaçã o e ainda haviam se gloriado em cometer
erro. O alvo de Paulo era este: primeiro proibir; entã o, usar o bisturi como faz
o cirurgiã o quando há uma ferida que ele deve curar. Ele elimina a carne
pú trida; ou, se há um abscesso, é preciso limpá -lo até o â mago, a fim de
remover tudo o que está infectado e corrompido. Assim se dá com os que
devem cumprir com seu dever para com Deus e para com o povo sob seu
cuidado. Mas é suficiente dizer isso nesse ponto.
Pelo mesmo emblema, é também necessá rio que os crentes suportem
pacientemente os castigos, por mais sejam á speros ou severos que sejam.
Devem entender que precisam ser tratados desta maneira, particularmente
quando vedam seus olhos através da negligência, quando nã o desejam
reformar, mas se tornam piores em sua perversidade; ou quando se tornam
empedernidos e seus pecados sã o tã o entranhados, que nada se pode fazer
por eles. Portanto, os crentes devem aprender que é preciso empregar serras
e outros remédios mais dolorosos como em casos de enfermidade extrema.
Que resmunguem ou protestem contra os que trabalham em favor de sua
salvaçã o. Pois que vantagem há quando somos honrados aos olhos do mundo,
porém amaldiçoados à vista de Deus e seus anjos? E quando à plena luz do dia
os livros forem abertos, nossa perversidade exposta e cada criatura clamar
vingança contra nó s? No entanto, é isso que acontecerá aos que rogam que
seus erros permaneçam ocultos e sepultados. Querem que os homens
valorizem seu bom nome, mas em todo tempo aumentam a ira de Deus contra
eles e se tornam ainda mais odiosos aos anjos do paraíso, aos profetas,
apó stolos e a toda criatura, porquanto desafiam a Deus com sua frenética
obstinaçã o. Que lucro há nisso? É mera demência, o que até mesmo as
criancinhas acham absurdo, quando os homens nã o podem suportar que seus
erros lhes sejam revelados. Pois se o pregador abre sua boca para dizer: “Este
é um pecado que vemos entre nó s”, sentem forte calor sob o colarinho. Alguns
rangerã o os dentes para ele; alguns tentarã o vá rios estratagemas para coibir
sua liberdade; e outros se rirã o dele nas tavernas.
Nã o obstante, sua depravaçã o é ó bvia a todos. Ao redor, vemos malogros da
justiça; favores dados e recebidos; excessos; iniquidade e atos de
desobediência, tais que fariam uma criancinha enrubescer de vergonha. No
entanto, quem ousa pronunciar sequer uma palavra contra estas coisas? Os
homens falam delas em casa, nas lojas, nas ruas e nas praças da cidade; mas se
alguém no pú lpito ousar falar sequer uma palavra da verdade, a ira se irrompe
e o gênio se inflama como se tudo estivesse perdido! No entanto, nos recessos
dos lares e nas ruas pú blicas essas almas sensíveis sã o julgadas e condenadas.
Bem sabem que é assim, mas nã o se preocupam; para eles, nã o significa nada.
Somente quando a Palavra de Deus expõ e seus erros é que se exasperam.
Quã o prodigioso é que sejamos clarividentes e Deus seja cego; que os homens
falem, mas Deus fique mudo; que os homens ouçam, mas que Deus seja surdo!
No entanto, é justamente assim que acontece.
“Bem, que sabichõ es sã o esses pregadores!” Sim, mas pode-se esperar que
sejamos ignorantes do que é ó bvio à s copeiras e criancinhas? Nã o há ninguém,
quem quer que seja, que nã o possa dizer livremente: “Tal e tal pecado é
comum entre nó s. Ele é praticado assim e assim”. Em suma, nada há que
impeça alguém de julgar os pecados e vilanias que prevalecem hoje. Todavia,
aqueles cuja tarefa é manter a vigilâ ncia nã o ousam abrir suas bocas ou dizer
alguma coisa! Nã o obstante, seu dever decreta outra coisa. A Escritura diz que
a Palavra de Deus que proclamam penetra os pensamentos mais secretos; que
é uma afiada espada de dois gumes que traspassa medula e ossos,
respectivamente, e quase põ e a descoberto nossa pró pria estrutura, revelando
o que se oculta no interior [Hb 4.12]. Como Paulo escreve aos Coríntios, a
Palavra traz à luz os pensamentos que antes jaziam ocultos [1Co 114.25]. De
acordo com o versículo de Hebreus já citado, Deus designa à sua Palavra a
tarefa de sondar as profundezas do pró prio coraçã o. Se esse é o poder da
Palavra, entã o imaginamos que os que sã o ministros dela a nó s nã o deveriam
ser sá bios para ver e velar de longe? E nã o deveriam investigar
cuidadosamente a fim de antecipar o perigo, aplicando todo o remédio que
bem sabem ser necessá rio?
Outra vez digo, há aqueles que apenas querem que os pastores sejam surdos,
cegos e mudos, enquanto as mulheres e crianças sejam livres para ouvir, falar
e ver. Ora, como seria possível nã o vermos nada, enquanto tudo era aberto e
manifesto a todos os demais? Aprendamos, pois: se quisermos ser conhecidos
como cristã os, tenhamos uma disposiçã o tranquila e cordial, e nos
contentemos em que nossos erros sejam repreendidos e seja extraído todo e
qualquer abscesso oculto. Nã o fiquemos satisfeitos meramente com
emplastros; e quando o tumor for doloroso e inflamado, nã o cessemos de
amar a medicina, sabendo que ela existe para nosso bem. Nã o resistamos ao
médico quando ele busca restaurar nossa saú de. Esse, em suma, é o teor deste
versículo.
Observemos o método que Paulo segue. Tendo autoridade, com base na
Palavra de Deus, de passar juízo, ele podia exibir ao pú blico os erros dos quais
os cretenses eram culpados. Ele podia tê-los ensinado a liçã o espiritual
encontrada nos lá bios de nosso Senhor Jesus Cristo e convencido o mundo do
pecado, da justiça e do juízo [Jo 16.8]. Ele podia ter dito: “Eu cheguei a ver
quã o prontos vocês estã o a permanecer na igreja de Deus. Descobri no meio
de vocês infecçõ es que corrompem suas mentes e que nã o faz de vocês
ovelhas, mas piores que lobos vorazes”. Ele poderia ter dito tudo o que estava
em direito dizer, em conformidade com a autoridade que lhe fora confiada. No
entanto, o que ele faz? Cita um poeta pagã o, um estranho! Ele declina usar o
que Deus lhe dera, mas no lugar disso ele declara: “Vocês serã o repreendidos
por alguém que é cego; um incrédulo. Deus lhes deu graciosamente a luz de
seu evangelho; e nosso Senhor Jesus Cristo, o Sol da Justiça, governa em seu
meio. No entanto, ele toma um homem ignorante e privado da visã o para subir
ao pú lpito e condená -los!”.
As palavras de Paulo se destinam claramente a cobrir os cretenses da má xima
vergonha. Nó s também devemos recordar que, a menos que encurvemos
nossos pescoços para que recebam a canga de Deus — isto é, ser convencidos
por sua Palavra —, e a menos que permitamos que ele nos governe
espiritualmente através daqueles que foram designados para pregar sua
Palavra, seremos condenados, respectivamente, pelos incrédulos e,
finalmente, pelos demô nios do inferno. Eis por que os papistas de hoje sã o
aptos a caluniar-nos. É verdade que nã o podemos viver tã o retamente além de
censura. De acordo com Paulo, este é o nosso estado atual: “Por honra e por
desonra, por infâ mia e boa fama, como enganadores e sendo verdadeiros”
[2Co 6.8]. Deus quer testar-nos neste conflito e ensinar-nos a olhar para ele.
Portanto, os homens bons se veem obrigados a suportar calú nias, mas, à s
vezes, o erro é nosso, porque nos recusamos a permitir que Deus nos julgue.
Eis por que os papistas de hoje vomitam contra nó s um abuso tã o vil, e isso
corretamente, para que encurvemos nossas cabeças e fechemos nossas bocas
em reconhecimento de nossa culpa.
E qual a razã o disto ser assim? Gloriamo-nos no evangelho, contudo queremos
um evangelho adulterado e inventado, algo que se dissipe no ar e a ninguém
perturbe. Nã o queremos que alguém toque nossos pontos inflamados ou nos
castigue e nos envergonhe. É ó bvio que nã o queremos isso. E assim nosso
Senhor se ri duas vezes à nossa custa e nos confunde duas vezes. Virã o os
cegos, e ainda que nada vejam e andem à s cegas ao redor, eles nos
condenarã o; o mudo também falará . Portanto, saibamos que, se nã o
quisermos que os incrédulos nos condenem, entã o que sejamos mansos,
longâ nimos e amantes da instruçã o, sempre que nosso Senhor nos convencer
através de sua Palavra.
Nã o obstante, nossos erros sã o postos diante de nó s para que sejamos levados
a declarar-nos culpados e, como costumamos dizer, confessar francamente
nossas dívidas. Por isso, podemos julgar quanta fé pode ser encontrada
naqueles que se queixam: “Como você espera que eu me aperfeiçoe?”. Tais sã o
os teó logos noviços que imaginam ser inteligentes. Se algo errado lhes é
apontado, sua resposta é: “Olhe, isso nã o cabe a você dizer!”. E assim Paulo foi
longe demais quando condenou asperamente os cretenses! Mesmo assim, esta
é a regra que nos é ensinada pelo Santo Espírito por toda a Escritura. No
entanto, a prá tica comum é recusar-se a ser corrigido. Queremos ser deixados
livres para nos refestelarmos no pecado, sem ninguém a coibir-nos. Esse nã o é
o comportamento de quem deseja ser tido como cristã o. Ouvimos a exortaçã o:
“Consolai-vos uns aos outros” [1Ts 5.11]; “E nã o sejais cú mplices nas obras
infrutíferas das trevas, antes, porém, reprovai-as” [Ef 5.11]. A quem o Espírito
Santo está falando nestes dois textos? A todos os crentes, sem exceçã o! Pois,
embora Deus só designasse a alguns a tarefa de exortar, advertir e reprovar os
que se extraviam, também manda que todos os indivíduos privados resistam
ao mal, de acordo com os meios e a oportunidade que lhes sã o dados. Se esse é
o caso com os que nã o têm deveres pú blicos, qual dos ministros ele
encarregou especificamente desta responsabilidade?
Infelizmente, aqui em Genebra comumente ocorre que ninguém é incomodado
por tais correçõ es. Há cristã os falsos que sabem menos sobre Deus e sua
Palavra do que os nativos que temos como pertencentes aos Novos Mundos.
Se alguém se aventura a pronunciar uma palavra de reprovaçã o, eles gritam:
“Oh! eu tenho meu pró prio juiz regular. Nã o sou obrigado a dar-lhe resposta!”.
Essa é a resposta que sempre obtemos de todos os que desprezam a Deus e
rejeitam toda disciplina. Certamente tentam por todos os meios achar uma
saída para evitar que sejam levados ao acerto de contas, porém nada acham
que os justifique. E assim vemos que, quando Paulo repreende os cretenses,
lembrando-os das palavras de seu profeta, e quando lhes diz que Deus põ e a
descoberto nossos erros e providencia, por assim dizer, sobre nó s um líder a
fim de dar curso à nossa salvaçã o, devemos, com toda humildade, reconhecer
nossos pecados e lamentá -los e odiá -los. Nada lucramos com nossa
obstinaçã o, com a dureza de nossos coraçõ es e com a fú ria como de animais
selvagens. Na longa corrida, devemos confessar-nos derrotados e, se nã o
pudermos nos submeter, certamente Deus nos quebrantará . Recordemos,
pois, do que esta passagem nos diz.
Visto, porém, que agora nã o podemos explanar o pleno significado deste texto,
reflitamos que foi mediante um milagre de Deus que o evangelho chegou a
Creta, onde, como esta passagem nos informa, o povo era maligno. A despeito
disso, nosso Senhor os visitou em sua bondade, precisamente como se sua
graça chegasse ao pró prio inferno, trazendo à luz de seu conhecimento o que
era vil e depravado. Observemos, pois, que Deus nã o olhou para nossa
dignidade quando nos chamou primeiramente para estarmos em sua igreja;
mas algumas vezes ele decide exibir sua misericó rdia até mesmo para com os
de maior inteligência. Em consequência, quando ele nos atrai a si, nó s que
está vamos perdidos, e quando reteve sua mã o sobre nó s, sua dignidade
merece o mais intenso louvor. Porque, como nada merecíamos da parte dele,
entã o que toda boca se feche e nada presumamos de nó s mesmos. Se temos o
evangelho, isso nã o se deve à obtençã o dele por nossas virtudes, mas porque a
Deus aprouve estender-nos sua bondade. Ele nã o pode ser movido por nada,
exceto pela livre mercê que exibe chamando a si os homens, para que
conheçam sua vontade.
Aprendamos, pois, com toda humildade, a glorificar nosso Deus e a nã o
sermos demasiadamente complacentes conosco. Se nosso Senhor nos
escolheu e passou por alto os demais, saibamos que, se quisermos manter
firme esta bênçã o, entã o examinemos diariamente nossas vidas e,
reconhecendo que somos malditos e por natureza só podemos provocar a ira
de Deus, condenemo-nos e, assim, antecipemos sua ira. Pois, quando cada um
de nó s julga a si mesmo, somos absolvidos diante de Deus. Ele nã o só nos
purificará de todos os nossos males, mas também, mais e mais, fará com que
sua gló ria brilhe sobre nó s, de modo que o invoquemos como Pai e
confessemos diante do mundo que ele nos adquiriu por intermédio de seu
Filho, a fim de fazer-nos sua herança.
 
Oração
Agora nos prostremos diante da majestade de nosso bom Deus, reconhecendo
nossos erros e orando para que ele nos faça senti-los mais e mais, e nos ajude
a nos submetermos plenamente, sem orgulho ou ambiçã o, à disciplina de
nosso Senhor Jesus Cristo. Aceitemos nã o só seu ensino, mas também suas
correçõ es, de modo a nã o nos deleitarmos no mal que praticamos, mas, em vez
disso, resolvamos fugir dele. E, enquanto isso, passemos por este mundo com
nossos olhos fixos no reino celestial, até que, sendo reunidos em e vestidos
com sua justiça, nos seja permitido partilhar da gló ria que ele já preparou
para nó s.
 

8. OITAVO SERMÃO: SADIOS NA FÉ [Tito 1.12-15]


Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta, que diz: Cretenses, sempre
mentirosos, feras terríveis, ventres preguiçosos. Tal testemunho é
exato. Portanto, repreende-os severamente, para que sejam sadios na
fé e não se ocupem com fábulas judaicas, nem com mandamentos de
homens desviados da verdade. Todas as coisas são puras para os
puros; todavia, para os impuros e descrentes, nada é puro. Porque
tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas.
 
Nesta manhã dissemos que, se os homens forem indispostos a julgar a si
mesmos, só aumentam sua condenaçã o. Eles se equivocam se pensam que
podem tirar o melhor proveito de Deus com sua arrogâ ncia e obstinaçã o, pois
perecerã o estritamente quando Deus vir o quanto sã o cabeças-duras. Deus
age em concordâ ncia com o bem conhecido provérbio: “Uma mula obstinada
demanda um dono obstinado”. Nosso Senhor nem sempre dá aos homens a
honra de julgá -los por sua Palavra, quando tudo o que querem é que seus
pecados sejam permitidos; ele levanta o cego para condená -los, como ocorre
aqui neste notá vel exemplo. Paulo, no poder do Espírito de Deus, poderia ter
facilmente lembrado aos cretenses quã o perversos eram; mas ele nã o se digna
a julgá -los. Convoca um pobre pagã o, um incrédulo sem visã o, que nunca
possuíra um vislumbre de luz, ou da lei, ou do evangelho. Ele o invoca para
transmitir a sentença e, assim, deixá -los ainda mais envergonhados.
Em primeiro lugar, ele os chama de mentirosos , o que inclui infidelidade de
todo tipo. É como se fosse dito a essas pessoas que elas eram insinceras e
desonestas, ou dadas a falar falsamente, trapaceiras, fraudulentas e insidiosas.
Ele continua descrevendo-as como feras terríveis , como que para excluí-los
das condiçõ es humanas. Isso parece ser o que a palavra implica, como quando
dizemos que alguém nã o é um ser humano, mas transformou-se numa besta, e
nã o há mal pior que esse. Ele também os chama gulosos , dissolutos e
preguiçosos . Se nã o permitirmos que Deus nos reprove, ainda que
brandamente, com o fim de corrigir algum erro, é isto o que acontece: nã o
receberemos nenhuma palavra bondosa de advertência, mas os pró prios
incrédulos denunciarã o nossa perversidade e nos infamarã o à vista de todas
as criaturas. Portanto, aprendamos a humilhar-nos e a deixar-nos conduzir
mansamente, a fim de recebermos as correçõ es que Deus nos envia.
Encurvemos nossos pescoços à sua canga; e, acima de tudo, aprendamos a
condenar-nos, de modo que permaneçamos perdoados diante dele.
Reconheçamos nossas falhas a fim de que elas sejam cobertas e ocultas
quando ele nos chamar a prestar contas. Sintamos vergonha dos erros que
tivermos cometidos, para que nossa perversidade nã o se apresente em juízo à
vista ou dos anjos ou dos homens mortais. Isso é suficiente para esse ponto.
A seguir, Paulo diz a Tito que os repreenda incisivamente , a fim de que sejam
sadios na fé . Pareceria que este ensino ou exortaçã o particular nã o requer tal
extremo, porque simplesmente requer que os homens sejam sadios na fé.
Seguramente nã o há necessidade de sermos rudes aqui. Essa ordem severa
nã o é necessá ria para que se demonstre que estamos longe de seguir a pureza
do evangelho e que devemos permanecer obedientes a nosso Senhor Jesus
Cristo? Acaso este é o lugar para reprovaçã o? Aqui, o ensino de Paulo parece
algo sem sentido. No entanto, quando consideramos quã o ingratas sã o muitas
pessoas, vemos que o apó stolo teve boa razã o para tratar os cretenses dessa
maneira. Há muitos que nã o se deixam vencer por meio de bons modos;
precisamente como quando a pessoa que nã o tem apetite por alimento, ao ser
chamada para o jantar, se sente aborrecida e agitada, de modo que tem de ser
quase impelida com os ombros! Algumas vezes, o doente tem de ser tratado
com energia para que se consiga algo dele, pois, sempre que pode, se recusa.
Há multidõ es assim. Se forem informados de que todo seu bem-estar depende
de seguir o evangelho, e o Deus que sabe que estamos à mercê da morte nos
levanta pela oferta da graça, cura todas as doenças e nos assiste como um
médico — se, repito, aprendermos isso de maneira mais branda, a maioria de
nó s se sente tã o aferrada a este mundo que menosprezará as benesses
espirituais e se rirá delas; ou, pior, fugirá acanhado e escapará se tentarmos
conduzi-lo a Deus. Só se sentirã o felizes se forem deixados totalmente livres
para ir aonde quiserem. Há alguns a quem o diabo enche com tal fú ria que
desejam tirar Deus de seu trono e apagar toda a memó ria dele. Essas sã o as
coisas como as vemos.
Eis por que Paulo diz a Tito que constrangesse muitos que se sentem
indispostos a se render, visto ser isto para seu bem. Ele escreve: “Repreende-
os severamente, para que sejam curados”. Pois se virmos algum invá lido que é
desatento para com sua saú de e que é surdo a todo conselho e razã o, precisa
ser levado a cooperar, ainda que seja indisposto. Se um homem se mostra
corrigível e consente serenamente em ser guiado, nã o há necessidade de
severidade. Assim vemos que Deus se dispõ e a acomodar sua Palavra a nó s
enquanto formos passíveis de ensino. Ele quer que os homens nos tratem de
maneira bondosa, pois somos suas ovelhas. Ele quer que o pastor fale de modo
gracioso, mas, se formos animais irredutíveis, entã o temos de ser domados
como que à força. A Palavra de Deus nã o pode ser pregada simplesmente com
o fim de sermos ensinados qual seja nosso dever; ela deve ser pregada
severamente ao ponto de castigo. Nossa arrogâ ncia interior tem de ser extinta,
querendo nó s ou nã o. Essa é a mensagem de Paulo neste versículo.
E assim cada um de nó s considere sua pró pria disposiçã o; e quando virmos
quã o morosos somos em ir a Deus, a menos que sejamos aguilhoados e
acicatados, compreendamos que merecemos ser tratados com rigor, puxados
pelas orelhas e repreendidos brusca e penosamente, pois de outro modo Deus
jamais exercerá domínio sobre nó s. Já que é assim, aprendamos a amar todas
as correçõ es de Deus, as quais nos beneficiam, e nã o sejamos como os que se
recusam a ser atraídos a ele, embora ele empregue quase todos os meios para
ganhá -los para si. Os que necessitam de um castigo mais incisivo nã o podem
suportar ouvir uma palavra á spera. Mesmo os bons e bem dispostos a ir a
Deus sã o de igual modo inclinados, mas que lutem contra a tentaçã o, de modo
que aceitem ser graciosamente advertidos, instados, despertados e
poderosamente exortados. Pois, embora nã o sejam cô nscios de suas
enfermidades, sabem que elas lhes sã o ocultas, porém visíveis a Deus. Eis por
que nã o se rebelam quando seus pecados sã o repreendidos. Mas aqueles cujas
cabeças sã o empedernidas e têm pescoços de bronze, de modo que nã o podem
render-se, esses zombam de Deus e de toda mensagem de salvaçã o, os quais
se assentam com as vaidades deste mundo ou, melhor, se sentem tã o
enfeitiçados por elas, que nã o têm nenhum gosto por todas as promessas de
Deus — estes, se lhes for dito alguma palavra á spera, se irritam e se
enfurecem e a qualquer momento estã o prontos a arremessar para longe o
evangelho. Esse é um fato comprovado.
Somente os animais selvagens provam ser ingoverná veis. Os homens que sã o
razoá veis, que sã o fá ceis de manobrar, e que rendem obediência a Deus, agem
normalmente mesmo quando reprovados. Aceitam serenamente tudo o que
lhes for dito sem rejeitar colericamente o que é ensinado ou resistir aos que os
repreendem. É assim especialmente importante que tomemos nota deste
texto. Os que têm a tarefa de proclamar a Palavra de Deus devem se precaver
das capacidades daqueles que foram confiados ao seu cuidado. Assim que
virmos que os homens nã o se rendem espontaneamente, devemos empregar o
remédio que Deus nos ordena usar. Devemos repreendê-los com veemência,
sem afetaçã o em nossas palavras; pois isso é o que Paulo quis dizer aqui.
Devemos ir fundo no problema sem grande afetaçã o de eloquência. Nã o
devemos animar o desobediente, mas dirigir-lhes esta breve palavra: “Olhe
aqui, miserá vel criatura, com quem você pretende brincar? Acaso você nã o
percebe que está deflagrando guerra contra Deus? Acaso ele nã o é soberano?
Você pensa que ele o tolerará para sempre? Se agora ele o trata com brandura,
e se através de um homem mortal ele o convida a ir a ele, você pensa que ele
agirá sempre assim? Acaso ele nã o lançará os raios do relâ mpago no fim? Você
deseja assemelhar-se aos demô nios em vez de criaturas feitas à sua pró pria
imagem? Acaso você nã o pensa quã o horrível é esquecer o custo de sua
redençã o, escarnecendo da graça do evangelho?”. Quando os ministros da
Palavra de Deus percebem que as pessoas sã o tã o avessas a deixar-se guiar, é
assim que deve ser nosso tom de linguagem: incisivo e á spero. Mas isso basta
para esse ponto.
Portanto, Paulo insiste que o pastor encarregado do rebanho de Deus nã o
deve apenas provê-lo com alimento, mas também dever sentir compaixã o das
ovelhas que sã o fracas, a fim de fortalecê-las. Deve buscar cura para os
enfermos; e quando, no devido curso, ele descobre alguns que sã o
indisciplinados, deve domá -los. É evidente, pois, que a Palavra de Deus deve
ser levada em conta quanto à natureza e temperamento daqueles a quem ela é
dirigida.
Esta é, além do mais, uma questã o para todos os crentes sem distinçã o. Pois,
se formos severamente castigados, que vantagem teremos desafiando a Deus?
Muitos dos que sã o tratados com menos brandura que gostariam se tornam
furiosos e rangem os dentes contra a Palavra. É como se um homem fosse
desafiar seu estô mago se recusando a comer; a ú nica pessoa a quem
finalmente ele causa dano é a si mesmo. E assim se dá com os que negam a si o
alimento espiritual para suas almas; virã o a morrer de fome, a menos que
Deus se apiede deles e os faça voltar ao seu bom senso. Entã o, nenhum de nó s
deve se indispor quando for tratado de modo rude, pois sabemos que é disto
que necessitamos. A menos que sejamos provocados e instados,
permaneceremos sem bom senso e embrutecidos. Portanto, sabendo que Deus
nã o nos trata assim sem justa causa, e que ele vê em nó s doenças que jazem
ocultas, mas que devem ser purgadas, deixemo-nos governar por ele como ele
bem sabe ser adequado.
Nesse ínterim, nã o sejamos prontos demais a agradar-nos, especialmente já
que o mundo moderno é tã o corrupto que o mal se prolifera por toda parte.
Entendamos que, se os homens protestam e nos censuram ferinamente, eles
estã o certos em agir assim. Se compararmos nosso tempo com o de Paulo, o
mundo se tornou muito pior do que entã o. Alcançamos mais ou menos o auge
de toda a perversidade. Portanto, acaso Deus nos lisonjeará hoje e nos
animará ? Nó s nos tornamos putrefatos no pensamento e no sentimento,
contudo todos nó s queremos ser besuntados com azeite mais que ter a cura
pró pria para as doenças extremas que sofremos. Aprendamos, repito, a sentir
que necessitamos ser rudemente despertados e sem rejeitar as correçõ es que
Deus nos envia, visto que elas sã o a mais ú til dos remédios.
Podemos objetar que nã o somos como a raça de pessoas de que Paulo fala. No
entanto, é certo que, se havia erros tã o graves entre eles, entre nó s hoje os há
semelhantes ou piores. E assim devemos curvar nossas cabeças e parar de
pilheriar-nos com lisonjas fú teis. Permitamos à quele que nos julga tratar-nos
como ele bem o queira, visto que somos inteiramente ignorantes do que nos é
pró prio e proveitoso. É verdade que, quando um pregador adota o tipo de tom
que é ordenado aqui, nã o será bem sucedido em conduzir alguém a Deus. Isso
é impossível. É verdade ser bem provável que os cretenses se sentissem
muitíssimo ofendidos com isso. Ter-se-iam irado ao pensar que seu povo se
sentisse abertamente envergonhado quando Paulo os chamou de mentirosos,
infiéis, bestas malignas, preguiçosos e glutõ es. Tal repreensã o nã o podia ter
sido ministrada sem que muitos, ou, melhor, todos protestassem aos gritos.
Nã o obstante, Paulo se viu obrigado a falar nestes termos. Ele tinha a
aprovaçã o da parte do Senhor, ainda que os que se sentiam irados
amontoassem sobre ele uma condenaçã o apó s outra. Entretanto, nada podia
escusá -los. Deus os advertiu de que, se nã o podiam suportar que fossem
condenados por ele, os pagã os e os incrédulos já os haviam condenado.
Significa que já haviam sido encontrados culpados. Mesmo assim, havia bons
homens que aquiesceram de bom grado, pois viram que seu povo era
censurado com toda a razã o. Hoje, como sabemos, há muitos que nã o aceitam
com espírito sereno as advertências a eles dirigidas; pensam que elas sã o
severas demais. Entretanto, devemos dar-lhes o má ximo de crédito, pois este
será um testemunho a eles, dado que os privará de toda e qualquer escusa
diante de Deus. Em qualquer caso, os bons que realmente sã o ovelhas de
nosso Senhor Jesus Cristo aceitarã o pacientemente a repreensã o e nã o se
voltarã o contra o evangelho nem enfrentarã o seus pastores quando souberem
que é para seu pró prio bem e salvaçã o que foram acicatados desta maneira. Se
nã o podemos ver isso, entã o somos piores que feras irracionais. Provamos
que somos filhos de Deus quando, embora tratados com austeridade, nã o nos
desviamos da obediência ao evangelho ou da vereda de nossa fé.
Agora Paulo continua explicando em poucas palavras como os homens podem
manter-se a salvo e seguros: perseverando na pureza da fé . Portanto, se nã o
nos desviarmos do claro ensino do evangelho, mas nos contentarmos em ser
guiados em concordâ ncia com a vontade de Deus, nã o nos deixando mover
por nossos sentimentos incertos e nos recusando a ser guiados por nossos
desejos triviais — se, em suma, formos bons alunos de Deus e somente
aceitarmos o ensino que ele oferece, entã o seremos guardados a salvo de todo
mal. Naturalmente, a cada dia o diabo espalhará por toda parte infecçõ es e
tentará envenenar a todos com seu veneno; ele espalhará sua imundícia para
todos os lados, a ponto de encher o mundo inteiro com seu mal e corrupçã o.
Nã o obstante, nã o devemos apartar-nos da simplicidade de nossa fé. Em vez
disso, desejemos sempre ser instruídos por Deus com toda sinceridade.
Quando este for o curso tomado, seremos preservados de todo dano que
porventura Sataná s faça para nos frustrar.
Isso é o que devemos notar sobre as palavras seguintes de Paulo: sejam sadios
na fé . O que ele tem em mente por “sadios”? Diz ele: “sadios na fé”. É como se
os homens deliberadamente buscassem seu pró prio dano, afastando-se da
pureza do evangelho. Pois, se permitirem que Deus os guie e desejarem
somente ser ensinados por ele sem se extraviar para cá e para lá , entã o devem
permanecer unidos como deveriam. Visto, porém, que vacilam, correndo para
cá e para lá , e sã o totalmente capciosos, sã o facilmente enganados e guiados
ao erro. Assim, aferremo-nos à fé pela qual Deus nos une como se fô ssemos
um só .
Por via de uma longa explanaçã o, o apó stolo anexa: e não se ocupem com
fábulas judaicas, nem com mandamentos de homens desviados da verdade. A
palavra “fé” realmente sumaria tudo o que temos dito; mas, visto que os
homens sã o tã o morosos em entender o que os beneficia espiritualmente,
Paulo se viu compelido a prover uma explanaçã o mais completa. Por
“simplicidade da fé” ele tem em vista que rejeitemos toda invençã o humana e
nos aferremos ao que Deus nos ensina em sua Palavra. Nada mais deve ser
acrescentado, pois a mistura resultante no fim seria totalmente corrupta.
Entã o, devemos preservar esta simplicidade? Rejeitemos tudo o que os
homens porventura introduzem de sua pró pria iniciativa e que misturam com
a Palavra de Deus. Esse é o significado de Paulo.
Ora, o que ele descreve aqui como “fá bulas judaicas” sã o ninharias
mesquinhas, invençõ es baratas e fú teis. Ele explica o que tem em vista quando
fala de “mandamentos de homens”. Por que ele as denomina de judaicas?
Deduz-se do que dissemos nesta manhã . Os judeus, em particular, suscitaram
muito problema na igreja primitiva, sob o pretexto de que desde os tempos
imemoriais foram o povo de Deus, educados desde a infâ ncia na lei que de fato
era sua herança. Eis a razã o por que os homens os ouviam. No entanto,
buscavam misturar lei e evangelho. Propriamente entendidos, ambos eram
plenamente compatíveis, pois Deus nã o mudou sua mente. Quando enviou o
evangelho, sua intençã o nã o era abolir a lei, mas ratificar o que ela continha.
Nã o obstante, a confirmaçã o da lei reside no fato de que as observâ ncias
cerimoniais foram abolidas. Elas funcionavam simplesmente como sombras
na ausência de nosso Senhor Jesus Cristo. Uma vez que a verdade e a
substâ ncia de todos os símbolos antigos se fizeram manifestos, tudo o mais
tinha que cessar. Dizer que foram canceladas nã o equivale a prejudicar as
observâ ncias da lei nem condenar a forma de culto instituída para os judeus. É
simplesmente mostrar que todo o seu vigor e eficá cia foram revelados quando
nosso Senhor Jesus Cristo se manifestou. Se isso nã o fosse assim, que outra
coisa veríamos nessas observâ ncias senã o jogos infantis? Todavia, quando
consideramos sua veracidade e o padrã o celestial que Moisés contemplou no
monte — como visto no vigésimo terceiro capítulo de seu terceiro livro [Lv
23.1-44] — observamos que nada de supérfluo foi ordenado.
É nisto, pois, que a lei e o evangelho concordam. Todavia, os judeus eram
intérpretes voluntariosos da Escritura e nã o permitiriam que os antigos
símbolos fossem abolidos. Gastavam seu tempo nessas coisas triviais, as quais
de fato foram ritos bons e ú teis até que o Redentor se revelou ao mundo. Seja
como for, tudo o que fizeram foi ocultar nosso Senhor Jesus Cristo, e inclusive
impuseram uma servidã o intolerá vel. Em consequência, Paulo repreende
expressamente os judeus, ao dizer que, com suas fá bulas, haviam obscurecido
o evangelho e que deveriam ficar satisfeitos com o ensino de Cristo, segundo o
qual a lei permanece em vigor no tocante à doutrina, porém é obsoleta no que
tange à prá tica; ela já nã o tem nada a ver com o cristã o.
A intençã o de Paulo fica assim bem clara. À luz deste texto, em primeiro lugar
aprendemos que os mandamentos de homens devem ser rejeitados. A ú nica
base sobre a qual o apó stolo omite as invençõ es humanas é dizer: “Que bem
elas fazem?”. Por isso devemos aprender que Deus de tal modo deve governar-
nos que os homens nã o nos imponham suas leis. O que eu tenho em vista por
leis espirituais é o que diz respeito à s nossas almas, pois estas nã o se
envolvem nos negó cios do governo. Há uma ordem externa, e nosso Senhor
insiste que neste mundo as leis sã o necessá rias. A Escritura declara acima de
tudo que Deus, em sua sabedoria, dirige os soberanos e magistrados para que
possam promulgar leis e estatutos. Aqui, contudo, o ponto em pauta é a esfera
espiritual da alma, a saber, como Deus deve ser servido e qual a verdadeira
religiã o. Aqui, os homens nã o se devem aventurar a impor leis ou promulgar
decretos, asseverando que é assim que Deus deve ser servido. Ele manteve
para si essa prerrogativa. Entã o, o que no papado é chamado culto de Deus
meramente serve para subverter a obediência real que a ele devemos. Nã o há
necessidade, pois, de longa e penosa investigaçã o; basta que Paulo, no poder
do Santo Espírito, tenha dito que os mandamentos de homens devem ser
descartados, a lousa seja apagada e que entre nó s observemos a ordem
aprovada por Deus.
Notemos que todos os mandamentos dos homens sã o denominados de fá bulas
ou ilusõ es, a despeito de sua aparente sabedoria. Nã o há dú vida de que tudo o
que é inventado pela iniciativa do homem sempre será preferido ao que Deus
ordena. E por que é assim? É porque vemos nossa pró pria natureza refletida
nisso. Daí, quando as leis sã o elaboradas pelos homens, o povo sempre achará
que elas sã o mais apetecíveis e agradá veis do que se seguissem a simplicidade
da Santa Escritura. “Oh! isso nã o é maravilhoso?” No papado, os homens
valorizam grandemente as leis que foram forjadas por eles. Entã o gritam:
“Nã o é uma boa ideia abster-se de carne nas sextas-feiras? Como guardar a
Quaresma? Antes de tudo, esse nã o um modo de domar a carne, e nã o é para
honrar a morte e paixã o de Cristo que guardamos esses dias? Nã o é bom que
os sacerdotes renunciem o casamento, pois necessitam de estar cheios de toda
santidade? Seria impensá vel se viessem a tornar-se profanos como os leigos.
Eles têm que ministrar os santos sacramentos. Nã o ser diferente dos homens
comuns detrairia da excelência das coisas santas. E quando vêm para a
confissã o, nã o é preferível que o homem se prostre humildemente e confesse
todos os seus pecados?”. Em suma, todas essas invençõ es, por mais estú pidas
que sejam, sã o obrigadas a ter a aparência de sabedoria, porque, eu já disse,
amamos as coisas que concordam com nosso pró prio modo de pensar.
Tudo o que os homens têm assim inventado se adéqua à nossa natureza, e
amamos tudo o que se assemelha a nó s. Deus, no entanto, nã o está
preocupado com as coisas que se parecem conosco e à s quais nos sentimos
atraídos. Sua vontade deve ser a regra que retemos, venha o que vier. Assim,
quando descobrirmos que estamos gostando e apreciando as invençõ es
humanas, saibamos que Deus as condenou de uma vez por todas como lixo
completo, mera imundícia, mitos e coisas de nenhum valor. É verdade que em
outro lugar, a saber, Colossenses, Paulo diz que as leis que se originam nos
homens têm aparência de sabedoria e inclusive de humildade; cremos que nos
humilhamos quando obedecemos aos mandamentos de homens. Mas, ao
mesmo tempo, Paulo acrescenta que, visto que sã o mandamentos de homens,
nada significam [Cl 2.22, 23]. Portanto, segue-se que o que consideramos
como de elevado valor e importâ ncia, traz um fétido odor e é abominaçã o à
vista de Deus, como ele mesmo declarou pela boca de nosso Senhor Jesus
Cristo em Lucas [Lc 16.15]. Isso é que temos de recordar aqui.
A seguir, consideremos o que Paulo escreve concernente à pecaminosidade
dos homens: Todas as coisas são puras para os puros; todavia, para os impuros
e descrentes, nada é puro. E qual é a razã o? É porque eles corrompem tudo.
Quando lidam com as boas criaturas de Deus, as infectam com sua poluiçã o,
pois a incredulidade é como uma praga mortífera. Entã o, quando um homem é
conspurcado, tudo o que ele toca é maculado juntamente consigo. O que Paulo
mostra é que os judeus, tentando compelir os cristã os a se absterem de
alimento proibido pela lei, simplesmente pervertem o culto de Deus, por mais
virtuosos que pareçam ser.
Ora, é possível que estranhemos que Paulo falasse tã o energicamente sobre
coisas que nã o têm muita importâ ncia; ou assim pensamos. Acaso nã o importa
a diferença se comemos carne ou nã o? Ele tinha que fazer tanto estardalhaço?
Se os judeus praticavam sua piedade, deixando de comer certos alimentos,
bem, embora pudessem estar errados e mostrar-se propensos à superstiçã o e
erro, Paulo teria deixado passar desapercebidamente sem notar algo. Eis
como os homens sá bios deste mundo sentem hoje: gostam de se sentar
indecisos e nos chamam de perturbadores quando pedimos aos homens que
nã o se submetam à s leis humanas. Dizem: “Por que é tã o errado nã o comer
carne nas sextas-feiras?”. Entretanto, o que nos interessa sã o os essenciais. Ao
condenarmos os papistas, nã o estamos preocupados em saber se é lícito
comer carne nas sextas-feiras. Queremos ir à fonte do problema e indagar se
os meros homens têm o direito de usurpar a autoridade de Deus a ponto de
governar as consciências, promulgando leis de sua pró pria decisã o, impondo
sua observâ ncia sob a pena de pecado mortal e aplicando uma compulsã o de
tal vulto que seus estatutos sã o postos acima da Palavra de Deus.
Aonde tudo isso nos conduzirá ? O que está em pauta é como Deus deve ser
servido e honrado: se pela obediência a ele ou segundo o bel-prazer dos
homens. Precisamos saber qual realmente é o culto verdadeiro de Deus e qual
a verdadeira religiã o. Uma vez que isso é assim, porventura os que nã o podem
criar a ínfima mosca, podem proibir-nos de comer alimento que Deus criou
para nosso uso? E se uma pessoa condena a outra por causa de coisas que
foram inventadas segundo os caprichos dos homens, acaso Deus deve ser
despido de sua autoridade, arrancado de seu trono e perder seu direito de nos
governar, enquanto os homens têm o poder má ximo de condenar-nos ou de
salvar-nos como bem decidam? Este é o ponto essencial se entendermos a
base de nossa discussã o com os papistas. Eis por que Paulo colericamente
resistiu a superstiçã o dos que negavam aos cristã os a liberdade de comer tal
alimento como Deus criara para nosso uso. É verdade que Deus fez alguma
distinçã o entre diferentes tipos de alimento. Todavia, como já dissemos, tudo
isso cessou com a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Foi tudo abolido, visto
que os filhos só estã o sob um guardiã o até que atinjam a maioridade. Quando
um guardiã o ou protetor é escolhido para uma criança, nã o significa que na
idade de trinta ou quarenta anos ela ainda permanecia criança.
Assim, Deus decidiu guiar seu antigo povo de uma maneira adequada à s
criancinhas, no dizer de Paulo [Gl 3.24,25]. Agora, porém, ele nos provê com
orientaçã o e direçã o apropriadas à perfeiçã o a que ele nos conduziu. Se os
judeus tentavam forçar os crentes a obedecerem aos seus ritos, isso seria uma
grosseira ofensa a nosso Senhor Jesus Cristo e diminuiria as benesses que ele
nos outorgou, pois, em sua igreja, ele quer que desfrutemos a liberdade que
ele mesmo conquistou para nó s. Além do mais, isso obscureceria sua graça,
pois justamente como podemos julgar um objeto oculto mediante sua sombra,
assim os judeus de outrora podiam ter sido prontamente guiados a Jesus
Cristo pelas sombras que Deus lhes designara.
Entretanto, agora que Jesus Cristo se manifestou, se continuarmos a ocupar-
nos com as sombras e ignorarmos a realidade e a substâ ncia, acaso nã o
zombamos dele e o desafiamos totalmente? E assim vemos que a luz do
evangelho foi velada pelas obrigaçõ es que os judeus tentavam impor aos
cristã os. Com boa razã o, pois, o apó stolo os tomou por alvos e lhes falou
severamente. Portanto, lembremo-nos de que, quando os homens planejam
introduzir alguma nova forma de servir a Deus, nã o se pode permitir tal coisa.
É como se o homem buscasse trazer Deus ao nível comum, e como se meras
criaturas desejassem usurpar o que ele reservou exclusivamente para si.
Essa é a primeira coisa que devemos ter em mente sobre essas tradiçõ es
elaboradas pelo homem. No entanto, notemos ainda que, quando
estabelecemos essas coisas triviais como um padrã o de santidade, barateamos
o verdadeiro culto de Deus. O que ele requer de nó s? Que depositemos nele
nossa confiança; reconheçamos nossa miséria e nos volvamos para ele em
busca de misericó rdia; invoquemo-lo em cada necessidade da vida e
suportemos com paciência as afliçõ es que ele nos envia; mantenhamo-nos
esperando nele, por maiores que sejam as tribulaçõ es que nos assaltem;
andemos em pureza de consciência e portemo-nos honestamente e com
integridade para com nosso pró ximo. Isso é o que está implícito pelo
verdadeiro culto de Deus. Nã o obstante, há sempre os que nos dizem ser uma
coisa excelente nos abstermos de carne em tais e tais dias. Eles nã o querem
que nos dediquemos ao serviço espiritual prestado a Deus e tentam
persuadir-nos de que ele fica satisfeito com ninharias dessa sorte. Pois que
mais sã o as coisas que os homens inventam senã o brinquedos de criancinhas?
É assim, pois, que os papistas mantêm Deus em ridículo. Assim, ao nos
ocuparmos com seus mitos, nos manchamos da maneira como Paulo condena
aqui. Ora, se os papistas querem servir a Deus como bem lhes apraz, deixemo-
los sozinhos e mantenhamo-nos fora de seu caminho. Eles dizem: “É assim que
se pratica a religiã o. Faz bem nã o comer carne em um dado dia, e nos demais
fazer isto ou aquilo. Seja como for, deixem que empilhem uma absurdidade
sobre outra. O que é tudo isso comparado com o que Deus nos ordenou em
sua Palavra? Acaso nã o é um sacrifício muito mais excelente invocar o nome
de Deus do que fazer algo forjado pela pró pria cabeça dos papistas? Eis o que
Paulo ensina aqui, quando insiste que rejeitemos a servidã o com que os
judeus buscavam agrilhoar as consciências. E assim ele deixa claro que, se
quisermos para nó s uma norma sã , peçamos a Deus o que ele aprova e o que
lhe é aceitá vel. Que de modo algum façamos algo de nossa pró pria invençã o,
pois devemos saber que ele quer que andemos em pureza de consciência e
que seu culto seja espiritual.
Ele nã o requer que se lhe ofereça em sacrifício uma manada de gado; nã o
requer grande exibiçã o ou qualquer outra coisa. De nó s, ele exige que
neguemos a nó s mesmos e nos submetamos a ele; volvamo-nos para ele em
busca de asilo, visto ser ele quem supre todas as nossas necessidades;
atribuamos a ele todo o louvor por todas as nossas benesses; e, quando ele
nos afligir, permaneçamos serenos, e nã o nos queixemos quando as coisas nã o
andam bem como gostaríamos; andemos neste mundo como que à sombra da
morte, sempre contemplando a vida celestial como no-la é oferecida no
evangelho. Repito que esse é o verdadeiro culto de Deus, segundo o claro
ensino desta Palavra.
Nã o obstante, os homens tentarã o justificar-se por todas as sortes de
absurdidade. Praticarã o suas devoçõ es como que a dizer: “É assim que quero
agradar a Deus e fazer satisfaçã o por meus pecados. Conquistarei mérito
fazendo isto ou aquilo. Melhor ainda, quero que se rezem missas. Essas coisas
conquistarã o o paraíso para mim!”. Se os homens pensam que isto dará
avanço à sua causa, estã o gravemente equivocados. Essas coisas sã o nã o só
infantis e fú teis, sã o vis e infernais abominaçõ es que Deus nã o pode tolerar.
Daí se dar que toda a obediência que devemos a Deus seja servi-lo em
concordâ ncia com sua vontade. Ele nos informa que nã o é por meio de
cerimô nias ou por realizaçõ es externas que é corretamente servido, senã o que
devemos começar com a integridade interior; fazer oraçõ es e sú plicas; e
devemos renunciar nossa razã o e vis apetites e oferecer-nos como
verdadeiros sacrifícios, sendo renovados interiormente a fim de que o Espírito
de Deus reine em nosso interior. Se nos lembrarmos disto, veremos que tudo
o que os homens têm inventado é mera zombaria que facilmente se
desvanece. Entã o, em vez de dar grande importâ ncia a essas coisas e ser
extraviado, descobriremos que sã o apenas imundícia, hipocrisia e coisas como
tais. Uma vez fazendo proficiência em saber como Deus gostaria que o
servíssemos e o honrá ssemos, nã o correremos nenhum risco de ser
trapaceados ou enganados. No entanto, o resto deve ser reservado para outro
momento.
Oração
Agora prostremo-nos diante da majestade de nosso bom Deus, reconhecendo
nossos erros e orando para que ele nos faça senti-los, para que sejamos
guiados ao verdadeiro arrependimento, a fim de que nã o só nos condenemos
interiormente, mas busquemos o remédio, sendo purificados de todas as
mazelas pelo poder de seu Santo Espírito. Que ele nos ajude a conformar-nos à
justiça de sua lei e que cada dia de tal modo imprimamo-la em nossos
coraçõ es, a fim de nos rendermos somente a ele e ao seu beneplá cito.
 

9. A TIRANIA DA TRADIÇÃO [Tito 1.15, 16]


Todas as coisas são puras para os puros; todavia, para os impuros e
descrentes, nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência
deles estão corrompidas. No tocante a Deus, professam conhecê-lo;
entretanto, o negam por suas obras; é por isso que são abomináveis,
desobedientes e reprovados para toda boa obra.
 
No sermã o anterior, Paulo enfatizou que devemos viver nossas vidas
em conformidade com a Palavra de Deus, e devemos considerar os
mandamentos dos homens como fú teis, visto que neles nã o há
santidade nem perfeiçã o de vida. Agora ele dá exemplo dos
mandamentos que tem condenado, a saber: quando os homens
proíbem comer certos alimentos e negam ao povo de Deus a
liberdade que este lhes permite.
Os que atribulavam a igreja nos dias de Paulo eram aptos em fazer
uso da lei como cobertura para as tradiçõ es que estavam
promovendo. Entretanto, visto que tais leis só estiveram em vigor
por certo tempo, o apó stolo estava certo em chamá -las de invençõ es
humanas, pois o templo havia de ser removido na vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo. Entã o, quando alguns na igreja cristã buscaram
supersticiosamente proibir certos alimentos, nã o tinham a seu lado
a autoridade de Deus, pois era contrá rio à sua intençã o que os
cristã os se submetessem a tais ritos. Entã o Paulo mostra claramente
que hoje estamos livres para comer todos os alimentos, sem
exceçã o. Aqui a questã o nã o é a saú de física, mas a autoridade de
impor-nos leis que contradizem o que Deus nos ensina em sua
Palavra. Uma vez que Deus nã o faz distinçã o entre alimentos, entã o
usemo-los sem nos preocuparmos com o que agrada aos homens ou
acarreta sua aprovaçã o. Esse, em resumo, é o ensino de Paulo na
primeira parte deste texto.
É verdade que devemos usar as boas dá divas de Deus sobriamente e
com moderaçã o. Mesmo que, como corre o dito, tenhamos bastante
alimento para sufocar-nos, cada um de nó s deve exercer controle e
respeitar a norma que nos foi ensinada: que Deus nos supriu com
alimento para ser usado nã o com o propó sito de encher nossos
estô magos como porcos, mas para sustentar nossa vida. Digo outra
vez que observemos a moderaçã o que Deus nos recomenda em sua
Palavra. Além do mais, se nã o tivermos alimento para contentar
nosso coraçã o, suportemos a privaçã o com paciência e assim
ponhamos em prá tica as palavras de Paulo. Saibamos tanto como
sofrer carência quanto desfrutar abundâ ncia [Fp 4.12]. Pois, se
nosso Senhor nos dá mais do que esperamos, nã o obstante devemos
refrear nossos apetites; e, em contrapartida, quando ele decide
reduzir nossas raçõ es, de modo que comemos frugalmente,
fiquemos satisfeitos e roguemos-lhe que nos dê paciência quando
nossa carne aspira por mais.
Em suma, devemos voltar ao que está escrito no décimo terceiro
capítulo de Romanos: “mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e
nada disponhais para a carne no tocante à s suas concupiscências”
[Rm 13.14], pois os males nã o teriam fim se aos homens fosse dada
rédea livre. Portanto, contentemo-nos em ter aquilo de que
necessitamos e o que Deus bem sabe nos ser apropriado. Desta
maneira, todas as coisas nos sã o puras, uma vez que as tomemos
como puras. Naturalmente, mesmo que todos os homens fossem
impuros, o alimento que Deus criou ainda seria bom. No entanto, o
que está aqui é uma questã o de uso. Quando Paulo diz que todas as
coisas são puras , ele nã o tem em mente que sã o puras em si
mesmas, mas refere-se aos que as recebem. Já vimos isso quando
Paulo escreveu a Timó teo: “alimentos que Deus criou para serem
recebidos com açõ es de graças” [1Tm 4.3-5]. O apó stolo afirma:
“Deus encheu o mundo com tal abundâ ncia, que devemos
maravilhar-nos quando virmos que ele cuida paternalmente de nó s”.
Pois, qual era o propó sito de Deus em criar as riquezas aqui
embaixo, se nã o exibir sua generosidade para com os homens?
Ora, se nã o sabemos que Deus, que é nosso Pai, deseja também
nutrir-nos, e se nã o recebemos de suas mã os tudo o que ele nos
supre no tocante à comida, entã o nos certificamos de que é ele que
nos alimenta — se nã o tivermos ciência disso, Deus nã o pode ser
glorificado como bem merece e nã o podemos comer um naco de pã o
sem cometer sacrilégio! Seríamos passíveis de julgamento, se nã o
fô ssemos convencidos de que Deus tanto nos alimenta quanto nos
sustenta e de que podemos corretamente desfrutar as benesses que
ele nos tem outorgado. Eis a pureza de que Paulo fala quando
declara que “todas as coisas sã o puras para nó s”, contanto que
sejamos suficientemente probos em rogar a Deus que nos dê nosso
pã o diá rio e nã o nos deixe subestimar as benesses de que outros
desfrutam. Nesse caso, podemos ter como certo que estamos
autorizados a receber, como nosso de pleno direito, tudo o que Deus
nos dá .
Notemos donde vem essa pureza. Ela nã o se encontra em nó s
mesmos, mas nos é conferida pela fé. No décimo quinto capítulo de
Atos, Pedro — enquanto trata de um tema muito mais amplo — diz
que os coraçõ es de todos os antigos pais foram purificados por meio
da fé que Deus lhes deu [At 15.9]. É verdade que ali ele tinha em
mente nossa eterna salvaçã o, pois éramos totalmente imundos até
que Deus nos reconciliou consigo mesmo através de Jesus Cristo, e
tendo-o tornado nosso Redentor, ele pagou o preço do resgate por
nossas almas. Nã o obstante, este ensino tem também relevâ ncia
para esta vida atual. Pois, enquanto nã o soubermos que, pela adoçã o
em Cristo, somos filhos de Deus e assim recebemos o mundo como
nossa herança, nã o podemos sequer tocar um naco de comida sem
que sejamos ladrõ es, visto que, pelo pecado de Adã o, estamos
excluídos de todas as boas dá divas de Deus até que nos apoderemos
delas em nosso Senhor Jesus Cristo. A fé, pois, deve purificar-nos, e
entã o todos os alimentos nos serã o puros — isto é, seremos livres
para desfrutar deles sem quaisquer desconfianças.
Portanto, se os homens buscam impor-nos leis, podemos
desconsiderá -las, já que sabemos que Deus nã o pode ser agradado
se, obedecendo-lhes, tomarmos os homens como parceiros iguais a
ele. Sua prerrogativa exclusiva é controlar-nos e dirigir-nos. Norma
espiritual é direito inviolá vel de Deus, de modo que, quando
atribuímos supremacia aos homens, e quando enredam e enrolam
nossas almas em seus rolos, é como se estivéssemos negando o
poder e o domínio de Deus. Em resultado, nossos esforços de
parecer humildes, obedecendo à s tradiçõ es elaboradas pelos
homens, seria pior que todas as rebeliõ es do mundo; pois eles
roubariam a Deus de sua honra e ele seria refém de homens mortais
e de criaturas sem nenhum valor.
É verdade que aqui Paulo está se referindo à s prá ticas
supersticiosas de certos judeus que desejavam corroborar as
sombras e símbolos da lei. Mesmo assim, aqui o Espírito Santo
expressou uma verdade que deve ser obedecida até o fim do mundo.
Pois hoje em dia Deus nã o nos sobrecarrega como fez aos pais de
outrora. Ele pô s de lado seus primeiros mandamentos e proibiçõ es
atinentes a alimento, visto que eles eram meramente leis
temporá rias. Ora, visto que Deus nos deu esta liberdade, quã o
ousados seriam esses vermes que rastejam pela terra se
estabelecessem sobre nó s novas leis; como se Deus nã o fosse
suficientemente sá bio! Quando citamos este texto aos papistas,
dizem que Paulo estava falando unicamente dos judeus e dos
alimentos proibidos pela lei. Admito que isso procede; mas vejamos
se esta é uma resposta sã e aceitá vel.
Neste versículo, Paulo nã o só diz que é permissível desfrutar do que
foi proibido; ele faz também uma afirmaçã o geral de que “todas as
coisas sã o puras”. Assim, Deus nos concedeu tal liberdade no uso de
alimentos, que nã o quer que sejamos constrangidos como o foram
os pais de outrora. Ora, visto que Deus cancelou a lei que
previamente promulgara e a considera como nã o mais vá lida ou em
vigor, se os homens se aventurarem a inventar quaisquer tradiçõ es
segundo seu gosto e nã o se contentarem com o que Deus lhes tem
ensinado, mas concluírem que sã o mais sá bios que ele, onde haverá
fim? Porventura nã o será duplamente mau? Notemos uma coisa: a
igreja cristã será condenada ao mesmo estado imaturo como
prevaleceu sob o Antigo Testamento. Contudo, Deus quer governar-
nos como pessoas que já atingiram a idade adulta e que nã o mais
precisa aprender seu abc! Isso equivaleria a subverter a ordem
estabelecida por Deus. E entã o, outra coisa: ao estabelecer algo
inventado pelos homens e requerer obediência sob pena de pecado
mortal, esquecemos que hoje o pró prio Deus já nã o deseja que
guardemos sua lei no que diz respeito à s suas sombras e símbolos,
havendo tudo isso cessado com a vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo. Portanto, seria mais lícito obedecer à s coisas intentadas pelo
cérebro humano? E se tentarem forçar-nos a obedecer, isso seria
algo mais fá cil de suportar? Acaso nã o vemos que isto se arremete
diretamente para o rosto de Deus?
Eis por que Paulo está determinado a resistir a esses enganadores
que queriam compelir os cristã os a se absterem de certos alimentos
como ordenados pela lei de Deus. Repito que, se Paulo saísse a
resistir a eles expressamente e com o má ximo rigor, o que faríamos
quando os homens desafiam abertamente a Deus, tentando arrastá -
lo de seu trono, reivindicando a autoridade que lhe pertence com
exclusividade, tratando-o como um troféu que haviam conquistado e
levando-o em triunfo? Nã o deveríamos considerar isto uma
monstruosa blasfêmia contra o pró prio Deus? Se alguém
argumentar dizendo que abster-se de carne nas sextas-feiras e na
Quaresma nã o é muito importante, devemos considerar se usurpar e
macular o culto de Deus é também sem importâ ncia. Existem
aqueles que, em desafio à Palavra de Deus, tentam promover tudo o
que lhes agrada com o fim de abrir caminho para as tradiçõ es
elaboradas pelo homem. Evidentemente, sã o culpados de sacrilégio
e correm o risco de arruinar tudo. Visto que Deus quer que o
sirvamos em obediência, cuidemos de manter-nos dentro dos
limites que ele estabeleceu e nã o permitamos que os homens
acrescentem algo de si pró prios.
Igualmente, esse erro leva a outros erros, como quando pensamos
que prestamos um serviço meritó rio pela abstençã o de carne —
uma insistência já feita — e assim adquirimos santidade. Servir a
Deus é um ato, no entanto é completamente anulado quando os
homens sã o enganados por um absurdo tã o indigno. Eles
confundem, por assim dizer, o glacê pelo bolo. Portanto, é ainda
mais importante insistir em nossa liberdade e certificar-nos de que
ela seja mantida entre os crentes. Devemos seguir a regra ensinada
por Deus em sua Palavra, de modo que os homens nã o mais nos
importunem e inventem novas leis para trazer as almas em
servidã o. Essa é uma tirania diabó lica que enfraquece a autoridade
de Deus; ela mistura a verdade do evangelho com os símbolos da lei
e distorce e corrompe o genuíno culto a Deus que deve ser de
cará ter espiritual.
Portanto, isso é suficiente para a afirmaçã o inicial de Paulo de que
“todas as coisas sã o puras para os que sã o puros”. Observemos que
privilégio inapreciá vel ser capaz de agradecer a Deus com uma
consciência tranquila, sabendo que sua vontade é que desfrutemos
suas boas dá divas. Ao agirmos assim, evitamos enredar-nos na
superstiçã o humana. Contentemo-nos com a pura simplicidade que
se encontra em sua Palavra. No entanto, entendemos que nos
tornamos puros quando recebemos o Senhor Jesus Cristo, o qual nos
purifica de nossas manchas e desonra, e quando o reconhecemos
como o soberano do mundo inteiro. Através de sua graça
partilhamos hoje das benesses de Deus, pois somos contados entre
seus filhos; e ainda que em nó s mesmos nã o sejamos nada, nã o
obstante Deus nos reconhece como membros de sua casa a quem,
por isso mesmo, alimentará .
A seguir, em nosso texto, Paulo fala dos impuros e descrentes , para
quem nada é puro. Esta é a forma de o apó stolo mostrar que os que
prescrevem novas leis nã o podem esperar agradar a Deus por tais
meios: ele sempre os afugentará , visto que tudo o que eles
produzem é saturado de infecçã o. Qual a razã o? Porque, enquanto
sã o infiéis, sã o malignos e profanos, sendo tã o imundos que tudo em
que tocam fica manchado por sua perversidade. Em consequência,
todas as leis e normas que elaboram sã o fú teis, porque Deus repudia
todas elas e as rejeita como totalmente aversivas.
Vemos, pois, que, embora os homens levem a sério suas cerimô nias
e observâ ncias externas, ainda que seja de coraçã o reto, labutam em
vã o — escavam a areia, como costumamos dizer. O genuíno serviço
a Deus deve começar com sinceridade e integridade. Enquanto
formos incrédulos, seremos conspurcados e pú tridos aos olhos de
Deus; tudo o que vem de nó s é imundo e pestilento. Isto deveria ser
perfeitamente claro e em si mesmo evidente, a nã o ser que a
hipocrisia esteja tã o arraigada nos homens que jamais aprendam
coisas que nã o sã o difíceis de apreender. Quando nos é dito que
nosso culto nã o é agradá vel a Deus até que nosso coraçã o seja
purificado de todo o mal, todos admitimos que a afirmaçã o é
procedente e nela nada vemos que seja obscuro. Nã o obstante, nó s a
descartamos de nossas mentes. Como é possível que isso seja assim?
Como eu já disse, é por causa de nossa hipocrisia.
Eis por que Deus se digladiou com seu antigo povo acerca desta
doutrina, como vemos especialmente no segundo capítulo do
Profeta Ageu. Ali, Deus pergunta aos sacerdotes: “Se alguém leva
carne santa na orla de sua veste, e ela vier a tocar o pã o... ficará isso
santificado?” [Ag 2.12]. Os sacerdotes respondem: “Nã o!”. Entã o, ele
pergunta: “Se alguém que tinha se tornado impuro pelo contato com
um corpo morto tocar nalguma destas coisas, ficará ela imundo?
Responderam os sacerdotes: “Ficará imunda”. Portanto, Deus
conclui: “Assim é este povo... assim é toda a obra de suas mã os” [Ag
2.13,14]. Tragamos agora à luz da verdade o que a lei continha em
forma simbó lica e obscura. Se um homem que fora maculado tocasse
alguma coisa, tudo era maculado e a seguir tinha que ser purificado.
Por isso diz nosso Senhor: “Considerai o que sois. Sois totalmente
corruptos e imundos; contudo, por vossos sacrifícios, oferendas e
coisas afins, pensais que podeis satisfazer-me. Mas, nã o! Enquanto
vossas almas se acham enleadas pelos maus desejos; enquanto
alguns sã o mulherengos e adú lteros, e outros blasfemos e falsas
testemunhas, saturados de fraude, crueldade e malícia; enquanto
vossas vidas sã o dissolutas, o que podeis trazer-me? Tudo está
contaminado. Nã o posso tolerar tal coisa, por mais atraente que seja
aos olhos dos homens”.
Entã o fica claro que, até que sejamos realmente reformados em
nossos coraçõ es, cada ato do serviço que prestamos a Deus será
apenas zombaria. Deus o rejeita e o condena totalmente. Mas que
homem realmente se deixa convencer de que isso é assim? De fato,
há malfeitores impregnados de suas iniquidades que, sentindo
remorso em sua consciência, se empenharã o em fazer as pazes com
Deus, ocupando-se de cerimô nias. No entanto, será plenamente
suficiente se puderem satisfazer aos homens na esperança de que
Deus seja assim aplacado. Foi assim que sempre se fez em todos os
tempos. Por isso os homens revelam em sua duplicidade que sã o
cegos ao que deveria ser-lhes ó bvio quando pensam claramente no
assunto. Em outros lugares à parte de Ageu, Deus os repreende por
amarem a duplicidade e por crerem que podem ser reconciliados
com ele por esses meios mesquinhos. Esta foi a causa do contínuo
conflito entre os profetas e os judeus. “As vossas festas da Lua Nova
e as vossas solenidades, a minha alma as aborrece; já me sã o
pesadas; estou cansado de as sofrer” [Is 1.14; Am 5.22]. Essa é a
imagem que Deus usa para mostrar quã o vil e torpe era o mau uso
que os homens faziam das coisas que ele ordenara e que os
hipó critas profanavam. Como ele diz por intermédio de Jeremias:
“Porque nada falei a vossos pais, no dia em que os tirei da terra do
Egito, nem lhes ordenei coisa alguma acerca de holocaustos ou
sacrifícios. Mas isto lhes ordenei, dizendo: Dai ouvidos à minha voz,
e eu serei o vosso Deus, e vó s sereis o meu povo; andai em todo o
caminho que eu vos ordeno, para que vos vá bem. Mas nã o deram
ouvidos, nem atenderam, porém andaram em seus pró prios
conselhos e na dureza do seu coraçã o maligno; andaram para trá s, e
nã o para frente” [Jr 7.22-24]. Na mesma passagem, ele os reprova
ainda por haverem convertido suas cerimô nias e seu templo num
covil de ladrõ es [Jr 7.11].
Portanto, aprendamos que, quando os homens tentam servir a Deus
de sua pró pria maneira, erram e se extraviam. Todos se reduzirã o a
nada, como Deus declara em outro lugar em Isaías: “quem vos
requereu o só pisardes os meus á trios?” [Is 1.12]. Aqui ele revela
que, se quisermos que aprove nossas obras, temos de ter a sançã o
de sua Palavra. É aí que temos de começar.
Agora podemos ver o que Paulo tinha em mente quando disse que
“para o impuro nada é puro”. A razã o, como ele diz, é que suas
mentes e suas consciências são impuras . Isto é, até que tenhamos
aprendido a servir a Deus honestamente e com sinceridade, nada
lucramos das trivialidades que tanto afagamos, as quais nos
acariciam continuamente e nos é um acalanto para dormir.
Pensemos em todas as tradiçõ es que existem entre os papistas. Seu
propó sito primordial é fazer as pazes com Deus por meio das assim
chamadas obras de super-rogaçã o — isto é, obras de superá vit de
mérito. Se eles fazem mais do que Deus lhes ordenou, pensam que
têm cumprido com seu dever para com ele e que, ao fazer tal
pagamento, entã o o satisfizeram. Computam tudo, de modo que,
quando tiverem jejuado e guardado vigília, feito abstinência de
carne nas sextas-feiras, realizado uma multidã o de ritos, ouvido
piamente a missa e usado á gua benta, pensam que Deus nã o
esperaria nada mais deles, visto que se acham acima de censura.
Contudo, em todo o tempo continuam cultivando seus vícios
interiores — sua prostituiçã o, suas mentiras e suas blasfêmias —,
cada um deles aferrado a seu pecado. Pois creem que Deus aceitará
como recompensa tudo quanto é lixo que lhe oferecem, como
quando usam a á gua benta, culto aos ídolos, correm de altar a altar e
assim por diante. Ao lançarem as palavras má gicas de Sataná s e
murmurarem encantamentos, imaginam que este é o pagamento e
recompensa suficientes para suas ofensas.
Entretanto, ouvimos o que o Santo Espírito ensina sobre os que sã o
imundos: nã o há nada puro ou limpo em nada que fazem. Apenas
supõ em que todo este disparate, ou, melhor, todas estas
abominaçõ es dos papistas, nã o eram má s por natureza. Nã o
obstante, é o caso de que, segundo o ensino de Paulo, seriam
impuros, visto que os papistas continuariam manchados pelo
pecado. Imaginemos um deles entrando na igreja. Ele careceria de
trinta lagos — ou, melhor, oceanos! — para que se lavasse e ficasse
limpo. No entanto, ele toma três gotas de á gua benta e crê que está
completamente purificado aos olhos de Deus. Assim, ele requereria
também um vasto cortejo de luzes para que pudesse ver. Toda a luz
do mundo lhe seria inú til, pois ele é um mísero cego que nada sabe;
um homem que se brutalizou por sua ignorâ ncia. Mesmo assim, ele
se contenta com uns poucos brilhos fugidios de Luz e nada discerne
da verdade de Deus. Incansavelmente, saem aos atropelos para
ouvir a missa, mas o que ganham por todo esse disparate? É verdade
que enfrentam duras penas e pensam que Deus se sente gratificado
pelos esforços que fazem para servi-lo desta maneira. Mas tudo o
que fazem nã o mostra nenhum sinal de mudança: continuam se
refestelando em sua imundícia e incredulidade e nã o retornam para
Deus.
Ninguém necessita de ocupar-se com nada disso, nem pense que,
assim, pode achar um meio de se purificar de suas mazelas e
manchas. Tudo isso nã o passa de medicina do diabo e uma infecçã o
infernal. No entanto, escolho este exemplo para ilustrar, à moda de
contraste, o que Paulo está dizendo. Enquanto os homens sã o infiéis,
eles sã o corruptos e manchados, de modo a contaminar tudo o que
tocam. Portanto, a doutrina que temos ouvido deveria fazer-nos
muito mais prontos a condenar a nó s mesmos e a reconhecer que
em nó s nada se acha senã o contaminaçã o; mas também deveria
levar-nos a orar para que Deus, em sua bondade, nos purifique
mediante seu Santo Espírito e permita-nos participar de nosso
Senhor Jesus Cristo, o qual é a fonte de toda justiça e santidade. Pela
fé temos comunhã o com ele, de modo a sermos tidos como puros e
inculpá veis diante do Senhor. E mesmo que haja em nó s muita
contaminaçã o, devemos pedir-lhe que nos seja favorá vel e aceite o
que lhe temos dado de bom grado à maneira de serviço obediente, e
nã o segundo nossa pró pria inclinaçã o.
Quanto ao resto, notemos que nunca atingiremos a verdadeira
pureza sem lançar fora todas as nossas queridas ideias e tudo o que
nossa mente carnal crê ser adequado e pró prio. Por qual razã o?
Porque só há uma regra que Deus aprova. Devemos atentar
sinceramente para tudo o que ele ordena e aprender a submeter-nos
sem qualquer adiçã o que seja propriamente nossa; pois tudo o que
vem de nó s é profano. É uma terrível condenaçã o que nos é imposta
quando lemos que para eles nada é puro, e que tudo é poluído e
contaminado até que Deus os torne novos outra vez. Longe de nó s
trazer algo que lhe seja aceitá vel, que nã o podemos beber, nem
comer, nem vestir-nos e nem sequer dar um passo sem
contaminaçã o. E mais ainda, vivendo neste mundo, infectamos todas
as criaturas. Portanto, no ú ltimo dia, estas rogarã o vingança sobre
todos os que sã o infiéis e réprobos.
De modo que só temos razã o para detestar-nos e envergonhar-nos,
visto que as criaturas de Deus sofrem dano por nossa causa, e que
somos culpados de haver contaminado o que Deus separou para
nosso uso. Aliá s, em nó s nada há senã o impureza, a qual Deus
repudia e amaldiçoa. Em contrapartida, uma vez que nos
humilhemos dessa maneira, deveríamos entender quã o preciosa é a
bênçã o de Deus quando nos une a si e quando, havendo-nos
purificado, nos permite desfrutar de suas mais generosas dá divas
com um coraçã o puro, assegurando-nos que podemos, licitamente,
beber e comer com a devida moderaçã o e restriçã o racional. Além
do mais, Deus nã o só nos santifica para que nã o mais sejamos
culpados de macular suas boas criaturas, mas aceita o que lhe
apresentamos, mesmo que nossas boas obras ainda sejam um tanto
maculadas e manchadas, já que nã o podemos ser suficientemente
perfeitos para servir a Deus com plena integridade. Mesmo assim,
ele nã o deixa de aceitar o que fazemos em concordâ ncia com sua
Palavra, pois, em sua imerecida bondade, ele nos purificou por amor
a nosso Senhor Jesus Cristo, mas sob a condiçã o de que nã o
busquemos diminuir qualquer parte de sua autoridade, usurpando o
que lhe pertence exclusivamente, como já dissemos.
Isso é o que temos de notar sobre esta passagem. Reconhecemos a
infinita bondade que Deus teve conosco ao resgatar-nos de nossa
maldita situaçã o quando ainda está vamos entre os papistas, e ao
ensinar-nos como podemos servi-lo com uma consciência serena.
Somos livres para ir e vir e seguir nossa vocaçã o, cô nscios de que
Deus se agrada da liberdade que nos deu. Nã o somos presas de
contínua inquietaçã o, sem saber se temos uma regra definida ou que
tipo de liberdade nosso Senhor Jesus Cristo conquistou para nó s.
Desfrutemos de tudo isso de modo que nunca permitamos que os
homens nos apanhem outra vez em seus ardis e nos traga em
servidã o.
Tal é a nota com que Paulo conclui: No tocante a Deus, professam
conhecê-lo; entretanto, o negam por suas obras; é por isso que são
abomináveis e reprovados para toda boa obra. Aqui o apó stolo
desmascara estes indivíduos, de modo que nã o mais enganem com
sua agradá vel aparência. Pois os que inventam muitos estatutos e
ordenanças concernentes à s cerimô nias asseveram que seu alvo é
servir a Deus. É essa sua escusa, mas, se examinarmos as vidas que
levam, veremos que escarnecem de Deus e zombam completamente
de sua majestade. Portanto, esse é o principal tema de Paulo aqui.
No entanto, é importante olhar detidamente o que ele diz. Ele
salienta, à primeira vista, que tais pessoas aparentam ser religiosas,
parecem extremamente piedosas e zelosas para com a honra de
Deus. Mas zelosas de que maneira? Essa é a pergunta que devemos
formular, pois Deus quer que julguemos se de fato o tememos ou
nã o pelo padrã o de sua Palavra. Quando queremos testar a pureza
de um metal, ou usamos uma pedra de toque ou o pomos na
fornalha. Nã o temos outro meio de julgar nossas vidas ou provar
nossos coraçõ es além de olhar para os mandamentos de Deus. Mas,
para estes homens, toda a santidade consiste em meros atavios.
Pensam ser suficiente se servimos a Deus por modos que ele nã o
requer e em que ele nos permite livre escolha. Todavia, ignoram
totalmente o que ele nos manda em sua Palavra! Sempre e em cada
época os homens têm desprezado a lei de Deus por amor de suas
pró prias tradiçõ es, justamente como nosso Senhor Jesus repreendeu
os fariseus de fazerem [Mt 15.3], mas também como sucedeu nos
dias dos profetas. Isaías estava certo de vituperar amargamente
contra os que eram extraviados pelas tradiçõ es dos homens [Is
29.13]. E por quê? Porque, enquanto se ocupavam em fazer isso,
omitiam levianamente os mandamentos de Deus, um exemplo
comumente visto entre os papistas.
Pois o que pretendem quando falam do culto de Deus? Sã o grotescos
arranjos sem sentido que têm inventado a fim de agradar a Deus. No
mesmo instante que ouvem uma missa já estã o prontos para outra;
há um sem fim de rituais a realizar; uma coisa apó s outra: uma
oferta, uma peregrinaçã o a um santo do dia ou alguma outra coisa.
Em suma, nã o há fim ou limite para isso; é um abismo sem fundo.
Quando os homens endoidecem para fazer quanto lhes agradam
suas fantasias, certamente entram num labirinto tã o impenetrá vel
que se torna pior que muitos abismos do mundo. Se um homem
fosse gastar seu tempo em nada senã o isso, terminaria emaranhado
sem esperança. Assim, vemos como no papado o excessivamente
devoto, havendo ocupado toda a manhã , ainda têm muitas outras
maneiras de se promover: tantas mea culpa a entoar; tanta á gua
benta a aspergir — sua tarefa nunca termina. Em confissã o, ele
nunca tira o suficiente de seu baú sem começar tudo de novo! Numa
palavra, quando os homens sã o tã o obcecados por suas tradiçõ es,
nã o lhes sobra sequer um minuto para pensar no verdadeiro culto a
Deus; absorvido por suas invençõ es absurdas, simplesmente o
ignoram. É disso que os homens gostam quando determinam agir
como preferem, segundo suas pró prias ideias.
Eis por que o profeta Isaías denunciou os que valorizavam demais as
tradiçõ es dos homens, declarando que Deus pronuncia a terrível
ameaça que cegará até mesmo o mais sá bio dos homens, visto que se
extraviaram da norma pura de sua Palavra a fim de seguir seus
pró prios inventos [Is 5.20, 21]. Eis a tese de Paulo nesta passagem,
quando sugere que tais homens nã o revelam nenhum temor de Deus
e que realmente o negam. Como assim? Diz ele: “Basta olhar para
sua maneira de vida; eles sã o vis”. O que ele tem em mente é que, de
fato, eles podiam lavar suas mã os quatro vezes com o fim de serem
santificados da mesma maneira que os papistas usam a á gua benta.
Em consequência, esses homens praticavam suas costumeiras
lavagens e alguma série de outros rituais além desse. Todavia, onde
está a coisa que realmente importa? Sabemos que Deus requer de
nó s que andemos com integridade e nos abstenhamos de toda e
qualquer violência, roubo, crueldade, malícia e fraude. Nossa vida
deve ser isenta de todas essas coisas. Ele nos ordena que sejamos
só brios e disciplinados, moderados e de modo algum desregrados.
Todavia, Paulo insiste que esses homens sã o maus. É ó bvio que sã o
carentes de autocontrole; suas vidas sã o totalmente conspurcadas e
nã o têm em si nenhum temor de Deus.
Onde, pois, está o zelo de que se gabam para agradar a Deus por
meio de suas devoçõ es interminá veis? É por isso que Paulo insta
conosco a marcá -los bem para que nã o sejamos enganados pelo
pretexto fú til de servirem a Deus. Portanto, somos advertidos de que
é inú til sermos estimados pelos homens. Podemos desfrutar dos
aplausos dos homens; mas, se o Juiz celestial nos rejeitar, o que
lucraremos com isso? Nã o obstante, nesta vida mortal buscamos
apenas a aprovaçã o dos homens; e quando cada um de nó s crê
deleitosamente a possuir, imaginamos haver pago devidamente
nosso débito com Deus. Mas nã o devemos ser surpreendidos, pois
Deus nã o revogará nenhuma das coisas que ele nos ordenou em sua
lei. Sabemos de fato o que é realmente uma vida bem ordenada?
Entã o atentemos bem para os mandamentos de Deus. Nã o é, como já
dissemos, uma questã o de buscar santidade através de tais refugos
ostentosos ou através da exibiçã o externa tã o grandemente
encarecida pelos homens. Devemos começar com a pureza do
coraçã o, de modo que invoquemos a Deus e depositemos nele toda a
nossa confiança. Despidos de todo orgulho e arrogâ ncia, acheguemo-
nos a ele com toda humildade, nã o nos deixando dominar por
nossos desejos carnais, mas cativos a Deus e sob seu controle.
Sejamos livres da cupidez, da orgia, da autoindulgência, do furto, da
blasfêmia e de outros males afins. É para isto que Deus quer que nos
acheguemos a ele, se nossas vidas hã o de ser bem ordenadas.
E, assim, os que buscam justificar os homens por sua prá tica
externa, nã o mais cubram uma fétida pilha de imundícia com um
lençol ou um manto de linho, pois entã o a imundícia permanece.
Desfaçamo-nos, pois, da podridã o oculta em nosso coraçã o; que todo
o mal, repito, seja arrancado de nó s. Entã o nosso Senhor aprovará a
vida que vivemos.
Vemos aqui o que realmente significa conhecer a Deus. Nã o nos
entreguemos à especulaçã o visioná ria, mas sejamos realmente
transformados em obediência a ele. Nã o podemos conhecer a Deus
sem sermos transformados à sua imagem. É verdade que, como os
pagã os, temos um vago conhecimento de Deus, mas isso nos faz
menos escusá veis, pois Deus nã o permite que os homens sejam tã o
brutos que cessem de sentir que existe um Deus que os criou. No
entanto, isso simplesmente serve para condená -los, pois, ao
saberem, nada sabem. Sã o embrutecidos; Sataná s cegou seus olhos,
como diz Paulo [2Co 4.4]. Embora o evangelho lhes seja pregado,
dificilmente o percebem, como hoje se faz evidente em tudo o que
nos cerca. Quantos há neste mundo que foram instruídos na
mensagem do evangelho e, contudo, permanecem insensíveis em
sua ignorâ ncia e sã o tã o brutos como sempre foram? Sataná s de tal
modo os encheu com desejos malignos que, por mais radiante que o
sol brilhe, ainda sã o cegos demais para ver alguma coisa.
Portanto, entendamos que o verdadeiro conhecimento de Deus nã o
está morto, mas vivo e ativo; é visível e produz fruto em cada parte
de nossa vida. Daí, como Paulo salienta na segunda carta aos
Coríntios, a fim de conhecermos a Deus, temos antes que ser
transformados à sua pró pria imagem [2Co 3.18]. Pois, se alegarmos
que o conhecemos enquanto nossa vida é dissoluta e vil, nã o há
necessidade de testemunha que nos contradiga: nossa pró pria vida
dá amplo testemunho de que, ao abusarmos do nome de Deus, o
escarnecemos e pervertemos a verdade. Assim, Paulo escreve em
outro lugar que, se conhecemos a Jesus Cristo, temos de despir o
velho homem [Cl 3.9]. Isto é, nã o podemos conhecer Jesus Cristo a
menos que o recebamos como nossa Cabeça; e ele nos una a si como
membros de seu corpo, o que só pode acontecer quando tivermos
renunciado nosso velho ego e nos tivermos convertido em novas
criaturas. Ao mesmo tempo, o apó stolo anexa: “Se o tiverdes
conhecido como deveríeis” [Cl 3.10]. Esta observaçã o é acrescida
deliberadamente, porque em cada idade os homens abusam
perversamente do nome de Deus, como ainda é o caso hoje.
Entã o, pensemos seriamente sobre o verdadeiro e correto
conhecimento que Paulo descreve aqui. Quanto ao resto, e à maneira
de conclusã o, quando ele se refere à s boas obras, nã o venhamos
mais com nossas escalas e balanças e asseveremos: “Em minha
opiniã o, é isto que se requer, ou assim me parece”. Tenhamos em
mente que boas obras sã o as que Deus ordenou em sua lei; e que
tudo o que porventura fizermos redunda em nada. Devemos render-
nos aos mandamentos de Deus, colocando nele toda nossa confiança,
invocando-o em oraçã o, dando-lhe graças, suportando
pacientemente tudo o que ele cuida de enviar-nos, vivendo com
integridade com nosso semelhante e sendo honrados e moderados
em nosso comportamento. Estas sã o as boas obras que Deus
demanda de nó s. Se nossa natureza nã o fosse tã o depravada, todos
prontamente veriam que isso é assim. Sim, até as criancinhas teriam
suficiente ciência para declarar: “Estas sã o as boas obras, e todo o
resto é futilidade — abominaçõ es que arruínam o culto puro de
Deus!”. Isso é, repito, como podemos saber o que Paulo quer dizer
com boas obras. Devem ser distinguidas de tudo o que os homens
inventam. Nossa tarefa é unicamente seguir o que Deus de uma vez
por todas revelou em sua Palavra. Nã o temos outra norma além
daquela que ele nos deu, e a qual ele haverá de endossar quando, no
ú ltimo dia, lhe respondermos como nosso ú nico Juiz.
Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que nos faça senti-los
mais profundamente que nunca. Por amor de nosso Senhor Jesus
Cristo, que ele nos dê tal confiança, que nã o hesitemos em achegar-
nos a ele e em receber a certeza de que nossos pecados sã o
perdoados. Que ele nos conduza a uma fé tã o só lida, que sejamos
purificados de toda mancha, de modo que cessemos de infectar o
mundo em que vivemos. Que sejamos purificados pela fé que ele nos
dá em seu evangelho e que nossas obras lhe sejam aceitá veis, uma
vez que ele nã o mais nos imputa os erros e imperfeiçõ es nem os
pecados que merecem condenaçã o.
 

10. O CARÁTER CRISTÃO (1) [Tito 2.1-3]


 

Tu, porém, fala o que convém à sã doutrina. Quanto aos homens


idosos, que sejam temperantes, respeitáveis, sensatos, sadios na fé, no
amor e na constância. Quanto às mulheres idosas, semelhantemente,
que sejam sérias em seu proceder, não caluniadoras, não escravas a
muito vinho; sejam mestras do bem.
 
Vimos previamente como Paulo condenou os que, movidos pela
ambiçã o, abusam da Palavra de Deus e, assim, a corrompem e que,
como resultado, fracassam em edificar a igreja. Deus nã o nos deu
sua Palavra para que meramente fatigue nossos ouvidos ou para que
se permita que o que foi dito se desvaneça no ar. Sua intençã o é que
ela nos seja alimento e molde nossas vidas. Em suma, sua vontade é
que a ponhamos em prá tica e provemos que nã o desperdiçamos
nosso tempo como alunos em sua escola.
Ora, visto que as pessoas sã o sempre movidas por novidade e visto
que a maioria se contenta em ouvir as mais antigas questõ es
discutidas, os que sã o destinados a ensinar podem ser induzidos a
exercer um papel falso a fim de agradar e gratificar a congregaçã o,
de modo que desaparece o ensino proveitoso e sadio. Isso é
especialmente assim quando há alguns que apresentam uma fina
exibiçã o com o fim de impressionar. Outros podem ser tentados a
fazer o mesmo, a menos que, restringidos pelo temor de Deus,
parem para pensar: “Ora, pois, aqui me é confiado este ofício digno.
Sou responsá vel diante de nosso Senhor Jesus Cristo que me
ordenou que falasse de sua parte e com sua autoridade. A mim foi
confiada a salvaçã o das almas — um tesouro tã o querido a Deus que
ele nã o poupou a seu ú nico Filho. Nã o devo profanar a doutrina da
salvaçã o, mudá -la para adequar-se a mim mesmo ou para que meu
modo de pensar agrade outros. Isso equivaleria a falsificar tudo. Ser
culpado de tal pecado aos olhos de meu Deus seria pouco mais que
uma traiçã o”.
A menos que os homens cuja tarefa é proclamar o evangelho deem
cuidadosa atençã o a estas coisas, estejam certos de ser levados ao
redor e pregar coisas inú teis a fim de satisfazer a homens com
comichã o nos ouvidos. Sabemos que isto é verdadeiro em todas as
épocas. Muitos se sentem mais que felizes se conseguem excitar
aplauso ou gargalhada. Creem que seu tempo foi bem gasto;
contudo, nã o têm atentado para a edificaçã o, para fazer bom uso do
ensino e alimentar as almas dos homens. Pois, assim como somos
fisicamente sustentados de pã o e alimento, assim também nossas
almas devem ser nutridas pela doutrina da salvaçã o.
Eis por que neste ponto Paulo diz a Tito: “Embora vejas louvores
amontoados sobre os homens que escarnecem de Deus, embora
todos os saciem e embora pareçam ser mui importantes mestres em
razã o de seu dom para a especulaçã o sagaz, supondo que todos os
homens estavam destinados a segui-los, tu nã o deves afastar-te de
teu alvo. Segue em frente e permanece fiel à doutrina que é clara e
sã . Cuida bem que a igreja receba o fruto de teu labor; sente-te
satisfeito por servires a Deus e estejas certo de que as almas sejam
salvas. Este é todo o louvor de que necessitas. Este deve ser teu alvo.
De modo que nã o sejas enganado pelos exemplos que vês ao teu
redor. Nã o os sigas nem os copies”.
Este, pois, é o sentido da expressã o de Paulo: Tu, porém . Ele acabara
de falar de homens grandemente estimados por seu excelente
empreendimento, homens que pregavam ostensivamente com o fim
de impressionar. Entã o, Paulo diz: “Embora vejas o quanto
desfrutam os favores do mundo, nã o recues. Persegue a obra que
começaste. Que a doutrina que procede de teus lábios seja sã ”. Ele
usa a palavra deliberadamente, porque, se temos de permanecer
realmente saudá veis, a Palavra de Deus que nos é pregada deve ser
nosso alimento espiritual. É verdade que nã o vemos isto
imediatamente; mas é assim que é. Por que nã o o vemos? Porque
somos demasiadamente aferrados à terra e cativos de nossos
sentidos. Quando nos falta alimento para o corpo, imediatamente
nos apavoramos; somos tomados pelo pâ nico; nã o temos um minuto
de paz; pois isto nos toca diretamente. Somos sensíveis quanto ao
que temos de fazer com esta vida perecível; mas deixamos mais ou
menos de preocupar-nos sobre o destino de nossas almas. Somos
tã o estú pidos e obtusos, que nã o temos consciência do que nos falta,
por mais que tal coisa nos prejudique.
Notamos, contudo, quã o frá geis nos tornamos se nã o somos
alimentados pelo ensino de Deus. Portanto, diz-se que ela é sadia,
pois isso é o que faz nossas almas sadias. Justamente como nossos
corpos sã o mantidos em boa condiçã o graças à nutriçã o regular,
assim nossas almas sã o sustentadas pela sã doutrina, a qual serve
nã o só de alimento, mas também de medicina. Pois nos saturamos
de males que sã o piores que enfermidades. Devemos ser purgados,
se queremos ser curados deles. Isto nos acontece quando fazemos
bom uso da Palavra de Deus. É por isso que Paulo tem razã o em
descrevê-la como sã , pois deseja demonstrar o efeito que ela exerce
em nó s. Ela nos restaura quando estamos doentes e nos mantém
sadios, de modo que passamos a ter a força de engajar-nos no
serviço de Deus. Nada nos impede de ser purificados de nossos erros
e da contaminaçã o que nos afasta da vereda certa. Assim, vemos que
a Palavra de Deus deve ser usada para instruir os homens de tal
maneira que sejam equipados para servi-lo. É isso que a Escritura
quer dizer com a palavra “edificar”. Precisamos estar solidamente
assentados, visto que, por natureza, somos tã o desajudados quanto é
possível. Nã o podemos erguer sequer um dedo para fazer alguma
coisa boa; somos incapazes até mesmo de gerar um bom
pensamento. Assim, Deus deve agir por meio de sua Palavra a fim de
conquistar-nos para si. Entã o, quando nos tiver estabelecido na
vereda, ele nos dirigirá e nos guiará para todo o sempre.
Seguindo este comentá rio geral, Paulo prossegue: Quanto aos
homens idosos, que sejam temperantes, respeitáveis, sadios na fé, no
amor e na constância . Ele poderia muito bem falar da lei e ter dito a
Tito que ensinasse as pessoas a se comportarem como Deus quer
que façam. Em vez disso, ele discute os deveres particulares dos
indivíduos. Isto é digno de nota, porque ocorre que, se os homens
pregam generalidades, seu ensino será deveras frio; faltar-lhe-á
açã o. Eis por que, sempre que Deus nos chama a si, recuamos o
quanto podemos. Daí ser necessá rio que ele fale diretamente a cada
um de nó s, com o intuito de tocar-nos mais profundamente. E assim
ele se volve a todas as classes de homens e lhes explica seus deveres.
Especificamente, ele se dirige primeiramente aos mais velhos; e,
entã o, aos jovens; aos casados, tanto homens quanto mulheres;
entã o, aos servos e senhores. Ele fala aos ricos e aos pobres; aos que
detêm autoridade e se assentam como juízes; aos incumbidos da
pregaçã o de sua Palavra; aos que têm famílias para governar e aos
que nã o têm nenhuma.
Entã o, quando cada um de nó s, por sua vez, é abordado segundo sua
vocaçã o, a Palavra de Deus nos impressiona muito mais. De outro
modo, ignoraríamos tudo e tudo se dissolveria no ar, como vemos da
pró pria experiência. É claro que Paulo nã o se contentou em falar, em
termos gerais, da necessidade de ensinar à s pessoas como Deus é
servido e como devem viver segundo a lei que ele promulgara. Ele
declara que cada um de nó s deve ser instruído na matéria de seu
dever e que Tito devia falar tanto aos senhores quanto aos escravos;
tanto a jovens quanto a idosos; tanto aos homens quanto à s
mulheres. Ninguém deve ser ignorado. Esse é o primeiro ponto
digno de nota.
Estas coisas, por certo, parecem bem familiares e dificilmente
precisam ser marteladas. Quem, afinal, nã o sabe que os homens
mais idosos devem mostrar certa seriedade e autocontrole em sua
conduta, ser exemplo de honestidade para os outros e pacientes, já
que Deus os treinou por mais tempo — numa palavra, devem
mostrar que, neste mundo, nã o têm vivido em vã o? A pró pria
natureza nos ensina isso. Portanto, raramente parece necessá rio dar
assistência à igreja para que ela aprenda coisas que sã o tã o ó bvias. O
mesmo se aplica ao que lemos das mulheres, tudo o que se pode
aprender em casa. Cada um de nó s, parece, poderia ser seu pró prio
professor neste aspecto. Nã o obstante, Paulo nã o insta Tito a
proclamar estas coisas somente uma ou duas vezes; sua vontade é
que ele faça esta obra com persistência.
À primeira vista, a tarefa pareceria supérflua, mas, já que sentimos
um comichã o de curiosidade ociosa, gostaríamos que a cada dia se
oferecesse algo novo. Sentimo-nos aborrecidos se somos lembrados
de coisas familiares. Qual a razã o? Dizemos: “Oh! eu posso aprender
isso em casa, debaixo de meu pró prio teto, onde tenho que
administrar uma esposa e filhos. Deveria Deus revelar sua Palavra
do céu sobre essas coisas triviais e rotineiras?”. E, assim,
pretextando que há pouco a ser ganho em dizer-nos estas coisas,
preferimos ouvir algo novo ou outras coisas que causam impacto à s
nossas cabeças! Como eu disse antes, todos se sentem inclinados a
atentar para essas coisas estranhas, as quais gratificam nossa tolice
e apetites indisciplinados. No entanto, o Espírito de Deus é mais
sá bio que nó s; ele sabe o que nos é adequado. Portanto,
mantenhamo-nos sob freio. E embora nos ressintamos de ser-nos
ensinado o que se acha no texto, como se fosse um desperdício de
esforço, é com boa razã o que Deus insta conosco a evocar à mente
estas coisas.
De fato, se olharmos detidamente para nó s mesmos, veremos desde
logo que, enquanto vivermos, jamais faremos tanto progresso
quanto deveríamos nas coisas que descartamos como banais ou
autoevidentes inclusive para criancinhas. Por exemplo, ao se dirigir
aos idosos, primeiro Paulo solicita que sejam sérios e disciplinados
em sua conduta . Isso é facilmente dito e à s vezes discutido, mas
quantos realmente compreendem isso? Vemos os mais velhos tã o
firmes em seus maus caminho, para os quais olhamos como modelos
de perversidade; e é nesse procedimento que sã o encontrados!
Alguns sã o velhas raposas habilidosas na fraude e na malícia, de
modo que seguir seu exemplo equivale a perder toda a fidelidade e
retidã o. Entã o, há os que vivem vidas conspurcadas e dissolutas;
outros que, na juventude, foram aferrados à blasfêmia e que, na
velhice, nã o mostraram nenhum sinal de emenda. Há velhos
libertinos que se afundaram de tal modo no vício que infectam tudo
e cuja conversaçã o é tã o vil que até os jovens se envergonhariam de
ouvir a imundícia que vomitam. Buscam apenas licença para
refestelar-se em sua desavergonhada vilania. Ainda que dificilmente
possam mover uma perna, a visã o da dança e de outras indecências
os enche de deleite. Tudo isso é evidente entre os idosos. Ao vermos
tais coisas, estejamos certos de que Deus nã o os admoesta sem
razã o.
Agora temos a noçã o de que somos por demais perspicazes e de que
nos basta que se diga uma ou duas palavras de passagem sobre estas
coisas. Contudo, paremos aqui: o ponto que apresentamos hoje será
apresentado outra vez amanhã . Nunca cessamos de aprender; e, no
final de cada ano, ficará evidente que necessitamos de instar nã o
duas, mas cem vezes mais. Aprendamos, pois, a nã o impacientar-nos
quando formos exortados a fazer o bem; ao menos até que tenhamos
atingido a perfeiçã o consumada. No entanto, isso deve ser buscado
em outro mundo, pois, a menos que sejamos completamente cegos,
somos todos cô nscios de nossos erros e imperfeiçõ es.
Portanto, confiemo-nos a Deus e permitamos que ele nos prense e
nos repreenda. E porque somos duros de ouvidos e também frios e
lentos, se Deus nos aguilhoar diariamente com a espora, suportemo-
lo com paciência, sabendo que tudo isso é para nossa pró pria
vantagem. Dessa maneira, nã o seremos tã o exigentes a ponto de nos
enfadarmos da sã doutrina. A menos que ela atraia nossa atençã o
repetidamente durante toda nossa vida, logo a esqueceremos, visto
que nunca a aprenderemos totalmente como se deve desejar.
Observemos outra vez o ponto já firmado. Antes de tudo, quando
Deus nos atrai a si e nos fala mais intimamente, ele explica a cada
um seu dever particular. É verdade que, possuindo a lei como a
possuímos, temos uma norma tã o adequada que deveria ser
suficiente. Deus nã o lhe anexa nada. Quando fala acerca de esposos e
esposas, de pais e filhos, de senhores e escravos, de senhores e
sú ditos, de idosos e jovens, ele nada anexa ao que já está em sua lei.
Entretanto, ele a elabora de forma que nos instrua e ajude a cada um
de nó s a olhar mais atentamente do que temos feito durante toda a
nossa vida. Em consequência, quando lemos a Santa Escritura ou
ouvimos um sermã o, nos é proveitoso pensar cuidadosamente em
como devemos usá -la. A verdade é que fazemos o contrá rio: só
atentamos para o que afeta adversamente nosso semelhante. E
assim zombamos de Deus e fazemos com que sua Palavra fique sem
efeito. Fechamos-lhe, por assim dizer, a porta. Portanto, cada um de
nó s note bem se o que é dito lhe diz respeito e se lhe é relevante.
Falemos a nó s mesmos: “Deus fala nã o só a toda a assembleia em
geral, mas especificamente a mim. É como se ele fizesse seu caminho
direto ao meu coraçã o e insistisse comigo a fazer o bem”. Esse é o
tipo de vigilâ ncia de que precisamos se quisermos fazer uso prá tico
da Palavra de Deus.
Eis por que lemos em Joã o: “Pais, eu vos escrevo, porque conheceis
aquele que existe desde o princípio. Jovens, eu vos escrevo, porque
tendes vencido o maligno. Filhinhos, eu vos escrevi, porque
conheceis o Pai. Pais, eu vos escrevi, porque conheceis aquele que
existe desde o princípio” [1Jo 2.13, 14].
Ora, visto que aos homens idosos nã o é fá cil ensinar e visto que,
havendo vivido no mundo, pensam que nã o têm nada mais a
aprender, tornam-se orgulhosos e indispostos para com Deus. Daí
Joã o dizer-lhes: “Por que nã o ouvis à quele que existe desde toda a
eternidade? Suponhamos que vivais oitenta ou cem anos sobre a
terra; o que é isso comparado a alguém que nã o teve princípio e que
sempre existiu? Eis aqui o vosso Deus. Ele vos chama a participar da
infinita sabedoria que esteve eternamente oculta nele. Contudo, sois
tã o orgulhos e arrogantes, que credes que nã o existe nada novo para
aprenderdes!”. E assim Joã o fala aos idosos a fim de acicatá -los. E
aos jovens ele diz: “Quanto a vó s, pensais que, a tempo, podeis
passar”. Ora, os jovens se deixam persuadir de que viverã o cem anos
apó s sua morte! Daí se deleitarem nas vaidades mundanas, se
esquivarem de pensamentos melancó licos e amarem bom alimento
e entretenimento. Como resultado, poucos deles saboreiam a
Palavra de Deus ou prestam a devida atençã o a ela. No dizer de Joã o:
“Uma vez que Deus já vos adotou como seus filhos e deseja ser vosso
Pai, por que nã o pensais nele?”.
Esse é o tema desta passagem, na qual Deus nã o só faz um apelo
geral, mas fala a cada um de nó s segundo nossa situaçã o, dizendo:
“Vede, eu estou falando diretamente a vó s. Ponde em ordem vossos
deveres e pensai em vossas obrigaçõ es”. Quando vemos quã o á vido
ele é por conquistar-nos para si, nã o somos obstinados se ao menos
nã o respondemos quando ele condescende conosco? Isso, em suma,
é como devemos aplicar a injunçã o de Paulo: “Ensina os homens
idosos”.
Notamos que, embora os idosos tenham sido provados pela
experiência, nã o deveriam ser rabugentos como muitos sã o. É
possível que pensem que uma longa vida os tenha feito
suficientemente sá bios. Mas nã o; vemos como Deus os intima a que
voltem à sua escola; e como, muito embora tenham um pé no tú mulo
e tenham vivido muitos anos, ainda quer que eles ouçam e pensem e
se rendam à sua diretriz. Se eles alegam ser mais sá bios do que
realmente sã o, ele os envergonhará em sua arrogâ ncia. Portanto, a
doutrina do evangelho nã o é um simples abc que nos instrui em
nossa inexperiência e nos anos de imaturidade; é a perfeiçã o de toda
sabedoria à qual todos nó s, jovens e idosos, devemos nos submeter.
O versículo que diz temperantes, respeitáveis, sensatos serve tanto
para corrigir os vícios da velhice quanto para ilustrar as qualidades
apropriadas para aquele período de vida. É verdade que algumas
vezes vemos homens idosos que se excedem na bebida e, porque
isso acontece sempre, usam a velhice como desculpa. Ao contrá rio, é
vergonhoso e fora do natural que os que já viveram sobre a terra
por muitos anos ainda nã o usem as provisõ es de Deus nem
entendam por que e a que fim nos sã o dados o alimento e bebida. Eis
por que Paulo, aqui, buscou expressamente corrigir este erro,
ressaltando a necessidade de gravidade e temperança entre os
idosos.
Se os jovens sã o desobedientes, naturalmente devem ser mantidos
sob restriçã o. Se eles sã o errantes e correm como gado selvagem,
devem retroceder sob a canga. Mesmo assim, se compararmos os
dois grupos, os idosos sã o muito piores e muito mais repreensíveis
quando perseguem seus apetites volú veis; eles têm de ser domados.
A natureza, se nã o a pró pria idade, deixa isso bem claro. No entanto,
quando o evangelho demonstra claramente o propó sito de uma vida
longa, devemos tirar proveito do que Deus nos mostra aqui, para
que mais adiante nossas vidas continuem ainda mais disciplinadas,
só brias e sérias. Reiterando, descobrimos que desastre da natureza
é que o idoso se divirta como um jovem tolo e que se expanda como
um adolescente. Que o idoso experimente o que quiser; ele nã o pode
arrastar uma perna apó s a outra ou mover seus braços — sua
fraqueza física testifica amplamente essa realidade. Se seu corpo é
frá gil e decrépito, e se sua alma é amarga, mal-humorada ou
impetuosa, onde terminará ? Seria conveniente desafiar a pró pria
natureza humana?
Vemos, pois, por que Paulo faz mençã o especial de sobriedade,
gravidade e temperança. E entã o ele anexa: sadios na fé, no amor e
na constância. Com isso ele quer dizer que, se os idosos forem débeis
e invá lidos, portadores de muitas doenças e com menos energia que
antes, eles devem ao menos suprir isso com a saú de da alma.
Embora isto nã o seja dito por Paulo com muitas palavras, este é o
contraste que ele tem em mente. Para entender isto melhor,
consideremos o que ele diz na segunda carta aos Coríntios:
“Sabemos que, se nossa casa terrestre deste taberná culo se desfizer,
temos da parte de Deus um edifício, casa nã o feita por mã os, eterna,
nos céus” [2Co 5.1]. “Mesmo que nosso homem exterior se
corrompa, contudo o nosso homem interior se renova de dia em dia”
[2Co 4.16]. Ele compara nosso corpo e tudo o que diz respeito a esta
vida atual a uma habitaçã o. Se construirmos uma pequena moradia
de palhas e folhas, e se a chuva persistir e o vento entrar, ela cai e se
decompõ e; nã o dura muito. Mesmo os edifícios resistentes
finalmente ficam velhos e vêm a ser dilapidados. O que dizer, pois,
de um amontoado de folhas suspenso somente por forquilhas?
Segundo Paulo, sã o logo levados embora. Nossas vidas nã o sã o
diferentes, pois ainda que vicejemos por algum tempo, nossa força
se esvai gradualmente. E embora nã o possamos ver o modo de Deus
retirar-nos deste mundo e embora continuemos normalmente,
nossos corpos vã o se arqueando, nossa vista se ofusca e nossos
tendõ es enfraquecem e se retraem. Tornamo-nos pesados e lentos
em tudo o que fazemos.
Quando vemos isso acontecer, somos aconselhados a buscar uma
vida mais saudá vel. De outro modo, acaso Deus quer que nossa sorte
seja pior do que a dos animais irracionais? Pois, durante o curso de
sua vida, os animais irracionais exibem muito mais energia do que
os humanos. A que ponto nossa força dura? Nã o dura quase nada:
numa virada da mã o chegamos ao fim! Ora, alguns animais duram
muito mais, e outros permanecem sem alteraçã o durante suas vidas.
Entã o, o que dizer de nó s? No dizer de Paulo, “aprendamos a
renovar-nos”. Mas como? O homem interior deve ser refeito, e
através da fé e esperança devemos tornar-nos fortes. Ainda que
nossos corpos falhem, que o reino de Deus mantenha perenemente
nossa forma e lhe adicione ainda mais. Devemos rejeitar o mundo
como o mundo nos rejeita; pois, quando os homens começam a se
debilitar, também o mundo os vai abandonando; como corre o dito:
“Eu nã o o alimentarei para sempre. Você precisa saber que nã o
possuo os meios de sustentá -lo em sua atual condiçã o”. E assim,
quando o mundo nos abandona, devemos também abandoná -lo;
aspirar a todo o tempo pela vida celestial à qual Deus nos chama.
Este versículo se reporta aos idosos, que eles devem ser “sadios na
fé, no amor e na constâ ncia”. Ora, os homens que sã o cô nscios
somente de sua fraqueza podem ser tentados a dizer: “Ah! O que
mais posso fazer neste mundo? Já nã o posso aguentar esta vida
presente”. Tais homens realmente deveriam ter-se despedido deste
mundo desde o início! Mas os homens que sã o sadios e
espiritualmente íntegros nã o devem se combalir e se condoer de
seus corpos. Devem tentar recompor o que lhes falta.
A senilidade decerto merece respeito, como ordena nosso Senhor e
como também o demonstra a natureza. Nã o obstante, devemos
certificar-nos de que os idosos possuem alguma qualidade digna de
recomendaçã o, pois à s vezes atraem desprezo sobre si. Se os
homens lhes dirigem pilhérias, se queixam amargamente; se os
homens os ridicularizam, reclamam que sã o injustiçados
grosseiramente e clamam a Deus por vingança. No entanto, na
maioria das vezes a culpa é deles, porque nã o possuem sequer um
fiapo de virtude que mereça louvor. O que é pior, como eu já disse, a
maioria deles, conscientemente, traz vergonha sobre si mesmos por
corromperem os jovens. De certo modo, aparecem como modelos de
impureza e de vício. Portanto, acaso nã o merecem que os homens
cuspam em seu rosto? Os jovens que se comportam mal nã o devem
ser escusados, porém nã o devem ser estigmatizados. Os idosos
devem ser envergonhados duplamente pelo opró brio que sofrem; a
menos, naturalmente, que ocorra serem homens de dignidade
autêntica.
Portanto, se os idosos devem ser respeitados, entã o que se
assegurem de que façam compensaçã o por sua fragilidade física com
a saú de espiritual de que Paulo fala aqui. É verdade que os servos de
Deus nunca devem ser motivados por um interesse egoísta, mas nã o
vejo por que os idosos nã o devam diligenciar-se na fé sadia, no amor
e na constâ ncia. Eis por que Paulo fala especialmente nesta
passagem da saú de, pois há um tipo de decadência progressiva nas
pessoas idosas: nã o podem aplicar sua vida a algo ú til e já sentem o
odor do tú mulo. Seus rostos estã o voltados para a terra e os outros
já parecem considerá -los como redundantes. Visto ser assim, que
adotem ao remédio que nos é ensinado aqui.
O apó stolo ressalta a fé, o amor e a constâ ncia, os quais sã o a
perfeiçã o genuína e pró pria de nossa vida. Deveras a Escritura
costuma mencionar a fé e o amor, dois elementos que, juntos, sã o
suficientes para explicar a norma de servir a Deus. No entanto, aqui
se anexa a constâ ncia para ampliar o todo, e isso corretamente.
Entã o, em primeiro lugar vem a fé. É na fé que nos entregamos a
Deus, confiamos em sua bondade, abraçamos o perdã o dos pecados
que nos foi prometido no nome de Cristo e recebemos a certeza da
salvaçã o que nos foi oferecida no evangelho. Entã o, também
devemos buscá -lo, voltar-nos para ele em busca de proteçã o, rogar-
lhe sua compaixã o e força para alívio de todas as provaçõ es. É
fazendo isso que somos sadios na fé descrita por Paulo. Assim, nã o
podemos ser íntegros em nossa fé sem a certeza das promessas de
Deus, mediante as quais confiamos em sua bondade, aceitamos o
perdã o dos pecados oferecido por intermédio de nosso Senhor Jesus
Cristo e recebemos a salvaçã o que nos foi conquistada e nos está
reservada no céu. Daí invocarmos ao nosso bom Deus e buscarmos
refú gio tã o somente nele, que é a fonte de todas as benesses.
Portanto, essa é a fé. Ora, realmente temos honrado a Deus? Temo-lo
reconhecido como nosso Salvador e Pai? Temos confiado
plenamente na morte e paixã o de nosso Senhor Jesus Cristo? Temos
aderido à vida celestial que ele nos prometeu?
É -nos requerido que vivamos com equidade e justiça para com
nossos semelhantes. Nã o podemos fazer isso a menos que amemos
nossos semelhantes como a nó s mesmos. Como posso guardar-me
de enganar uma pessoa e roubar a outra, de fraudar e prejudicar, de
tramar maldade, de trapacear ou nutrir sede de vingança? Como,
pergunto, posso guardar-me dessas coisas se nã o amo a meu
semelhante? Como, de fato, posso buscar o bem estar de outras
pessoas se nã o promovo amizade com aqueles que Deus uniu a
mim? O amor deve ser o vínculo da justiça. Ele deve controlar-nos e
governar-nos; de outro modo, brigaremos como cã es e gatos,
seremos piores que bestas selvagens, pois arrancaremos os olhos
uns dos outros. Daí, se nossas vidas têm de ser íntegras, temos de
nos comportar com amor mú tuo, uns pelos outros.
Finalmente, vem a constâ ncia. É verdade que a constâ ncia depende
da fé. Nã o obstante, como foi dito previamente, Paulo a menciona
oportunamente aqui em razã o de nossa ignorâ ncia. Se temos fé,
seremos pacientes em face de toda adversidade. Por quê? Porque a
fé nos conduz ao alto e nos faz esquecer o mundo; ou, ao menos, nos
ajuda a atravessá -lo. A nã o ser que sejamos estranhos aqui embaixo,
como podemos dizer que a nossa herança está no reino celestial?
Portanto, passemos por este mundo e nã o o deixemos deter-nos. Se
temos de sofrer tribulaçã o e angú stia, estaremos capacitados a
suportá -las pacientemente enquanto fizermos do céu nossa meta,
pois é para lá que Deus nos chama.
Contudo, os homens nã o suportam as provaçõ es calmamente como
deveriam; e o bem notó rio provérbio “A paciência excede a
inteligência” mostra o quanto nos é difícil consentir e ombrear todo
fardo que Deus quer que suportemos. Se recebemos a adversidade
da mã o de Deus, é também necessá rio que ela nos impulsione para a
frente. Essas coisas demandam um á rduo esforço e o sucesso só vem
depois de uma incessante labuta. Eis por que Paulo, neste texto,
anexa a palavra “constâ ncia”, com o fim de mostrar quã o está veis e
sã os devemos ser, pois entã o seremos aptos a abraçar a bondade
que Deus nos oferece em nosso Senhor Jesus Cristo, a encontrar nele
nosso refú gio e viver sincera e retamente com nossos semelhantes, a
amar à queles a quem Deus uniu a nó s — a amar inclusive aos nossos
inimigos. Sejamos, pois, pacientes, ainda que Deus nã o nos trate
como gostaríamos e faça o oposto do que queremos. É possível que
alguns sejam afligidos com pobreza e outros, com doenças; outros se
definham ou suportam menosprezo. Ainda que todos tenham suas
tribulaçõ es e vexaçõ es e sejam tratados de um modo doloroso,
inclusive em sua pró pria casa — esposas pelos esposos, esposos
pelas esposas, pais pelos filhos —, esta é a vereda que devemos
trilhar. A prerrogativa de Deus é governar-nos; nã o nos cabe
escolher que lei lhe imporemos; pois, como seria se ele se sujeitasse
aos nossos caprichos?
Portanto, permitamos ser governados por sua mã o, de modo que, se
ele agir de modo contrá rio aos nossos desejos, nã o protestemos,
mas sejamos como cordeiros, tendo nossos lá bios selados. Mesmo
assim lhe renderemos graças quando formos assim afligidos e será
suficiente que ele nã o permita que falhemos completamente. Digo
que essa é a verdadeira saú de benéfica aos idosos, pois, quanto mais
vivemos neste mundo, de mais paciência precisamos. Esta é uma
liçã o que Deus tã o frequentemente nos traz à memó ria e deveríamos
ser exaustivamente escolados nela, a fim de sabermos,
sinceramente, o que havemos de sofrer. E entã o? O fato é que
sempre somos neó fitos, e ainda notamos quã o mais impacientes sã o
os idosos do que os jovens. Um jovem sofrerá infortú nio com menos
aborrecimento, se mostrará indiferente e aceitará o freio entre seus
dentes. Os idosos, por outro lado, sã o tã o exigentes que ainda que
obtenham tudo o que querem acharã o alguma justificativa para
continuarem aborrecidos; continuarã o ofendidos e acalentarã o
alguma amargura interior. E, assim, aqui Paulo tem toda razã o de
recomendar a constâ ncia. Quã o completamente ingratos seriam se,
em vez de se beneficiarem de sua longa experiência com o
sofrimento, os idosos a adicionassem a tudo a fim de se afligirem
ainda mais!
Um idoso deve dizer a si mesmo quando encara a adversidade: “Esta
é uma nova experiência para mim. Sei de tantos que têm sofrido nas
mã os de Deus. Se sou um deles, devo achar isso estranho? Se Deus
me trouxe sofrimento antes, e se com tudo isso nã o me dobrei sob
sua mã o, mas suportei a canga, agora chegou o tempo de ceder”.
Quantos, por contraste, reconhecem tudo e guardam um registro
completo disso! Dizem: “Chegará o tempo em que Deus se cansará
de me afligir? Desde a juventude tenho sofrido, de um modo ou de
outro, e enfrentado infortú nio”. Quanto à s benesses de Deus, nã o
tenho lembranças delas. E assim Deus nada ganha com isso; ele tem
gasto o seu tempo com pessoas como eu. Além do mais, elas têm um
truque para adicionar aos seus ais. Eles clamam: “Tenho sofrido
tanto”. “Supondo que eu nã o tenha outro problema e supondo que
Deus me punisse apenas uma vez, isso seria suficiente. Mas nã o há
fim para o problema.” Eis como o idoso se queixa e põ e Deus, por
assim dizer, à prova. Em razã o dessa ingratidã o foi que Paulo se viu
obrigado a instar com eles a que fossem pacientes, como faz aqui.
Ora, como já vimos, o apó stolo se dirige nã o apenas aos homens,
mas, ao mesmo tempo, à s mulheres. Elas também têm sua parte no
jogo e sã o instadas a que sejam sóbrias . Em primeiro lugar, Paulo
fala de seu vestuá rio, empregando uma palavra composta que
significa “decência santa”; pois essa é a traduçã o literal. [14] Qual a
razã o? Sabemos que as mulheres sã o muito cuidadosas com seus
adornos. E embora, quando avançam em idade, tanto a natureza
quanto o senso de pudor as forcem a se vestir com mais modéstia,
nã o obstante, tomam o maior cuidado possível. Em consequência,
Paulo deseja que sejam sérias em seu proceder , sem requinte de
encanto ou extravagâ ncia, pois é inconveniente que as mulheres
cristã s se vistam com apuro e se exibam como bonecas. Sentem
vergonha se seguem vadiando de um lado a outro do país — uma
coisa impensá vel entre os cristã os, embora comumente seja visto!
Ora, se as idosas possuem algum senso de modéstia, se nã o se
sentem tentadas a vestir-se e parecer maliciosas a ponto de chamar
a atençã o, podem errar de uma maneira diferente e serem levadas a
um extremo igualmente negativo. Podem adotar um tipo
supersticioso de vestuá rio, como vemos entre as mulheres que
vagueiam como monjas e cuja aparência se destina a chamar a
atençã o à distâ ncia. Ora, excesso dessa sorte deve ser evitado. Que
as mulheres nã o tentem adornar-se e deixem bem claro que nã o
desejam exibir-se. Além do mais, nã o devem preocupar-se em usar
roupas que nã o se adequam a uma mulher cristã devota.
Pode parecer, na superfície, que nenhuma destas questõ es importa
muito, visto que roupas sã o coisas indiferentes, que Deus deixa os
homens e mulheres livres para se decidirem. Por que, pois, Paulo
insiste nessas coisas como se fossem realmente importantes? Aqui
devemos buscar a fonte daquela tola ambiçã o que se encontra nas
mulheres. Se realmente pensam na vida celestial, seguramente
deveriam evitar todo excesso e extravagâ ncia. Os que nunca
ouviram sequer uma vírgula da Palavra de Deus e que eram cegos e
míseros pagã os, nã o obstante tinham o discernimento de dizer:
“Aquele que adorna o corpo com excesso deixa sua alma
conspurcada”. [15] Sabemos por experiência que aos que sã o tã o
afeiçoados à exibiçã o mundana e que se vestem para ser vistos e
admirados é impossível que tenham um pensamento voltado para
suas almas. Pior ainda, enquanto homens e mulheres se deleitam em
seu vestuá rio, suas almas sã o manchadas e conspurcadas aos olhos
de Deus.
Observemos, pois, que Paulo buscava, com razã o, corrigir a maneira
das mulheres se vestirem, especialmente porque sã o muito mais
excessivas em seus gostos do que os homens. É verdade que os
homens também sã o excessivamente obsessivos sobre tais coisas,
mas, caso se faça uma comparaçã o, descobriremos que as mulheres
sã o muito piores. Estã o sempre ocupadas em se embelezar, em olhar
no espelho e em se compor. É uma ocupaçã o constante. Daí a
preocupaçã o de Paulo em remediar esta falha, mostrando como a
vida delas deveria ser ordenada. Vemos que tais coisas, em primeiro
lugar, afastam de Deus o coraçã o; segundo, a alma é conspurcada
quando ela se rende a muitas atraçõ es do mundo. Meditar sobre o
reino de Deus se torna impossível. Indaguemos: acaso todos esses
adornos e todo esse refinamento nã o constituem uma forma de
alcovitaria? Isso parece muito claro. Quando uma mulher se mostra
fogosa demais com vistas a ser admirada, isso constitui um sinal
seguro de que ela é menos que casta; que ela é grosseira e
lamentavelmente orgulhosa ou possui algum outro vício nocivo. Sua
escusa usual é que desejam agradar a seus esposos. Para sua
vergonha, seu propó sito é bem ó bvio! Portanto, ao recomendar,
respectivamente, a decência e a reverência, Paulo buscava, numa
palavra, remediar duas coisas: o orgulho, de um lado; a
concupiscência, do outro.
É o orgulho que leva as mulheres a exagerar sua posiçã o, com o
objetivo de afirmar sua superioridade sobre os demais. Nã o há nada
de indecente em tal comportamento, mas sua altivez certamente
merece ser condenada. Temos aqui um importante ponto a notar: o
propó sito de Paulo é ensinar-nos a temperança. Entã o vem a
concupiscência. Quanta exibiçã o de elegâ ncia vemos quando as
mulheres se apresentam para ser admiradas! Praticam tais artes de
dissimulaçã o quando desejam causar mais rubor no vulgo aferrado à
lei. Portanto, quando o apó stolo demanda delas que sejam ataviadas
decentemente e por meio de seu vestuá rio se mostrem santas, ele
formula sua tese de que o vestuá rio deve ser mais ú til do que
fascinante; e que ninguém tente exibir-se ou buscar o
reconhecimento social.
Ora, há muitas mulheres que agem dessa maneira e à s vezes sã o
conhecidas por preferirem se sujeitar à morte do que sofrer a perda
da condiçã o. Desafiando, respectivamente, a Deus e à natureza, seu
alvo é impressionar, para que as pessoas pensem: “Eis aí uma
mulher elegante. Ela chegou lá !”. No ínterim, há outras que nã o
passam de pobres infelizes, que nã o podem oferecer uma refeiçã o
decente! Em suma, embora Deus seja rigoroso com o martelo para
formar-nos, quando sua Palavra é infrutífera, ele nã o pode vencer o
orgulho dos que estã o atolados na mais profunda miséria. Eis por
que ele permite que o orgulho e a presunçã o sejam devorados pelos
piolhos, tal é seu abominá vel desrespeito para com Deus e a
natureza.
O Espírito Santo já fez provisã o para essas coisas, pois ele conhece o
que nos aflige. Portanto, saibamos que, até que consintamos em ser
tratados segundo nossas necessidades e a prescriçã o fornecida aqui,
comprovamos ser orgulhosos e arrogantes. Se resistirmos a Deus,
ele se aviará conosco com tanta dureza, que teremos de nos
submeter a despeito de nó s. Vemos, pois, que nosso Senhor tem de
nos purgar como se contraíssemos febre. Quando um paciente
deseja um tratamento suasó rio, lhe sã o dadas diretrizes para que se
abstenha do que é nocivo. Por conseguinte, Paulo ensina as
mulheres cristã s a exercer restriçã o — ele faz a mesma coisa em sua
carta a Timó teo [1Tm 2.9, 10] — e as orienta a evitar excesso em seu
vestir-se como em tudo mais.
Todos nó s devemos permitir que Deus nos governe de tal modo que
nos confiemos plenamente a ele; e, quando houvermos aprendido
como nos comportarmos, nã o fiquemos aborrecidos ou mal-
humorados. Curvemos nossos pescoços à canga de Deus, de modo
que a suportemos quando nos for posta para nosso pró prio bem e
para nossa salvaçã o.
Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando que ele no-los faça sentir mais
agudamente do que antes; a fim de que nos envergonhemos de nó s
mesmos e realmente odiemos nossos pecados. Que ele se agrade de
refazer nossas vidas, de modo que busquemos somente aprazê-lo de
todos os modos. Que sejamos estimulados e encorajados a obedecer
à s suas obras e a seus mandamentos e a praticar tudo o que ele nos
pede que façamos.
 
11. O CARÁTER CRISTÃO (2) [Tito 2.3-5]
Quanto às mulheres idosas, semelhantemente, que sejam sérias em seu
proceder, não caluniadoras, não escravizadas a muito vinho; sejam
mestras do bem, a fim de instruírem as jovens recém-casadas a
amarem ao marido e a seus filhos, a serem sensatas, honestas, boas
donas de casa, bondosas, sujeitas ao marido, para que a palavra de
Deus não seja difamada.
 
Nesta manhã , vimos que Paulo ordena à s mulheres idosas a se
vestirem decentemente e com toda a santidade, de modo a evitarem
qualquer insinuaçã o de arrogâ ncia e pretensã o. Sua aparência deve
ser tal que edifique e dê a todos um bom exemplo. Ele, pois, continua
a recomendar que elas nã o sejam caluniadoras , pois já dissemos que
sua meta é corrigir os erros aos quais sã o tã o inclinadas quanto os
homens. E assim ele nos adverte a que sejamos precavidos, cada um
em seu pró prio lugar, justamente como um médico que,
reconhecendo a condiçã o de um paciente e desejando curá -lo,
informa-o de que o ajudará .
Consideremos, pois, o quanto era necessá rio que se instasse com as
viú vas e as idosas a que controlassem a língua. Sabemos o quanto
elas gostam de tagarelar entre si; é o erro mais comum que existe.
Quisera Deus que nã o tivéssemos que mencioná -lo! Mas, visto que
esta queixa é tã o prevalente, Paulo insiste que as mulheres —
especialmente as mulheres de idade madura que deveriam saber
mais — evitem todo mexerico e maledicência. Pois sabemos, e a
experiência no-lo confirma, que as má s línguas sã o como tochas que
incendeiam tudo; e visto ser mais fá cil para uma mulher vir e ir, ela
pode causar muito mais dano. E assim o Espírito Santo estabelece o
ensino que bem sabe ser mais ú til: que as mulheres se comportem
com restriçã o e se refreiem acima de tudo de caluniar. Permitirem-
se dizer tudo de que gostam e especialmente se queixarem e
difamarem e incitarem problema com sua malícia equivaleria a
resistir ao Espírito de Deus.
Além do mais, de acordo com Paulo, que não [sejam] escravizadas a
muito vinho. Ora, é excessivamente ruim se uma mulher for ébria. Os
homens que partilham do mesmo vício sã o igualmente repulsivos.
Acima de tudo, o que é a embriaguez senã o um tipo de bestialidade
que destró i toda a razã o e o discernimento nos que sã o feitos à
imagem de Deus? Sabemos que o ébrio nã o é capaz de decência ou
discernimento mais que um asno ou cavalo. De fato, ele é muito pior,
pois os animais refreiam seu instinto natural, enquanto um homem
é totalmente deformado e vem a ser um monstro. E, assim, a
embriaguez, quer nos homens, quer nas mulheres, é algo terrível;
uma coisa a ser detestada.
Ora, quanto à embriaguez nas mulheres, ah!, ela nã o é um caso raro,
como sabemos sobejamente bem. Eis por que esta liçã o é importante
para nó s. Se mesmo os pagã os consideravam tã o intolerá vel o apego
de uma mulher ao vinho, que o proibiam como sendo algo
antinatural, e quanto a nó s que temos a Palavra de Deus a guiar-nos
e a iluminar-nos? Acaso nã o devemos comportar-nos mais
sobriamente do que os míseros cegos que, nã o obstante, viam que
deixar as mulheres sucumbirem à embriaguez equivalia ao caos, ao
extermínio de todo pudor e autocontrole? Esse, pois, é o nosso
segundo ponto.
Em terceiro lugar, as mulheres devem ser mestras do bem . Aqui,
Paulo pressupõ e que as mulheres nutrem o desejo natural de ser
ouvidas. De fato, algumas mulheres sã o mais perspicazes do que os
homens quanto a serem ouvidas e estimadas! Ora, concede-se mais
precedência aos homens em vista de sua posiçã o. Entretanto, visto
que as mulheres nã o podem elevar-se a um nível tã o alto, algumas
vezes elas sã o mais ambiciosas e mais egoístas do que os homens.
Nã o significa que isto é sempre procedente, pois pensar assim seria
vergonhoso. Mas, quando miramos as coisas mais detidamente,
descobrimos que algumas mulheres sã o mais projetadas do que os
homens e mais perspicazes para proeminência e liderança. Gostam
de ser tidas por sá bias, de ser ouvidas com respeito e que sua
palavra seja levada em conta quando se debatem questõ es e se
buscam suas opiniõ es. Disso nã o pode resultar nada bom. Paulo, de
sua parte, enfatiza a virtude contrá ria: elas devem ensinar o que é
bom. E, assim, em vez de se exibirem quando estã o com as jovens,
devem assegurar-se de que lhes transmitam bem sua liçã o e as
exortem à prá tica do bem. Ele declara que ensinar é o papel com que
as mulheres se contentem. Aqui nada há que desperte os
sentimentos de superioridade ou o desejo de se exibir. É como se
Paulo dissesse: “Vejam bem, vocês querem para si um bom nome e
reconhecimento. Entã o descartem todos esses pensamentos. Se, ao
longo de seus anos o Senhor lhes deu mais conhecimento do que à s
jovens, entã o tentem mostrar o caminho da salvaçã o a todas as que
sã o menos capazes e a fim de que aprendam por meio de seu
exemplo”.
Do mesmo modo, à s mulheres idosas se insiste expressamente [ que
instruam ] as jovens recém-casadas a amarem ao marido e a seus
filhos . Nã o devem encorajá -las ao mexerico ou a dar ares de grande
importâ ncia ou graças; ou difamar um e insultar outro. No entanto, a
maioria das jovens de hoje sã o ensinadas a retrucar caso alguém
indague e a agir como os que entram nas arenas com uma lança em
sua mã o! Essa é a sorte de conduta que vemos hoje. À moda de
contraste, Paulo quer que as mulheres ensinem à s mais jovens o
autocontrole. Diz ele: “Esta é toda a sabedoria que necessitam
ensinar. Devem mantê-las tranquilas; detê-las de trapacear e de
adquirir o há bito da conversaçã o fú til. Que vivam com simplicidade
e se comportem de tal maneira que ninguém pense que sã o
escoladas na malícia ou na trapaça”. Como, pois, as jovens e
mulheres cristã s exibem a verdadeira sabedoria? Naturalmente, nã o
sendo pretensiosas e se comportando como as damas da corte que,
com suas línguas fluentes, assustam com seu amor à tagarelice e
mexerico ou, pior, com sua afetaçã o e dengo; mas que sejam
discretas, administrando suas casas tranquilamente, criando seus
filhos e sendo submissas e obedientes aos seus maridos. Tais sã o as
mulheres a quem Deus tem por sá bias, como testifica o Espírito
Santo.
Quanto à s mulheres que querem ser admiradas, há quem as
considere como íntegras e sensíveis, mas isso nada é senã o mera
vaidade. Mulheres como essas devem buscar louvor em outro lugar,
pois o Santo Espírito as condena e lhes diz que o ú nico ensino
adequado para as mulheres é aquele que as treine no autocontrole,
em tranquila e boa ordem, de modo que nada de mal seja dito contra
elas.
A seguir, Paulo delineia mais virtudes apropriadas à s idosas: a
amarem ao marido [ou, a viverem pacificamente com seus maridos] e
a seus filhos, a serem sensatas, honestas, boas donas de casa. O que é
dito sobre o amor dos esposos e filhos nã o parece ter muito a ver
com a doutrina da piedade. Acaso as mulheres nã o amam a seus
esposos? Sim, mas Paulo, aqui, fala de um amor que se afina com
Deus e sua Palavra. Pois, enquanto se recomenda que as esposas
amem a seus esposos e que os esposos amem a suas esposas, aqui,
mais que em qualquer outro lugar, percebemos quã o corrupta é
nossa natureza. Se os homens amam a suas esposas, é com um amor
mau e excessivo; um amor sem medida ou moderaçã o. Se as esposas
amam a seus esposos, esse amor nã o conhece limites, ainda que à s
vezes seja estragado pelo ciú me. Na verdade, é raro achar tal
respeito entre esposo e esposa que ambos se unam por genuína
afeiçã o. Quaisquer que sejam as falhas dos esposos, as esposas os
suportam, visto que Deus os uniu por um vínculo santo e inviolá vel,
de modo que ambos devem cumprir fielmente com seu dever que
ambos devem um para com o outro.
Quã o poucos há que encaram o matrimô nio desta maneira! De
qualquer modo, nã o vemos isso com muita frequência. Portanto, o
propó sito de Paulo nã o é instar as mulheres a que de certa forma
amem a seus esposos como o ditam o mundo e a carne, mas para
mostrar que seu amor é santo e que se submetem sinceramente a
seus esposos. Pois, se a esposa despreza seu marido, onde está seu
amor? Mesmo entre as pessoas mais comuns, onde nã o há
superioridade, o amor real deve ser acompanhado por respeito e
reverência. Nã o posso amar, a menos que eu honre o ente a quem
amo. O que, pois, fazem as mulheres quando Deus as coloca sob a
autoridade de seus esposos? Sabemos que até mesmo as esposas
que amam loucamente a seus maridos a cada passo os desobedecem
e mostram a língua para eles. Os esposos nã o sã o mais obedecidos
do que um estranho ou intruso costuma ser! Entã o, as esposas, para
seu opró brio, costumam perder o equilíbrio. Nã o se pode receber
delas nenhuma ajuda quando se ocupam de vadiagem a ponto de
negligenciarem a casa e os filhos. Em vez de viver em ditosa uniã o
com seus esposos, perambulam e cometem todos os tipos de
loucura.
E assim vemos como Paulo estava certo quando fala do amor das
esposas por seus maridos. Ao mesmo tempo, ele inclui os filhos,
pois, se as esposas põ em seus coraçõ es e mentes nisto, seguramente
evitarã o um grande volume de erros. Por que as mulheres nã o
podem viver tranquilamente em seu pró prio lar, ajudando o marido
e praticar o que é bom? A culpa é de sua vaidade — de tal modo que
que nunca estã o satisfeitas e vivem desocupadas demais para
aceitar o que lhes é oferecido. A razã o é que nã o prestam atençã o à
tarefa para a qual Deus as chama. Quando as conduz ao casamento,
ele as ofende, dizendo-lhes que se ocupem de sua casa; e quando
têm filhos, ele demanda delas que os eduquem, cuidem deles e lhes
ensinem o temor divino quando já tiverem idade suficiente. Se as
mulheres pensassem nessas coisas, veríamos muito mais harmonia
nos lares do que atualmente é o caso. Portanto, nã o consideremos
supérfluos os comentá rios de Paulo quando ele instrui as esposas a
amarem a seus maridos e filhos.
O apó stolo associa amor com uma virtude que é inseparavelmente
ligada a ele: a serem sensatas, honestas e boas donas de casa . Um
pouco antes, ele lhes ordenara que evitassem o excesso de vinho,
condenando assim a embriaguez e a intemperança. Aqui ele requer
mais, salientando a necessidade de autocontrole ou o que pode ser
chamado sobriedade. As mulheres, pois, nã o devem render-se à sua
insensatez e maus desejos. Anteriormente, Paulo exigira o mesmo
dos homens; e depois repetirá sua incumbência quando se dirige aos
jovens. Nã o obstante, a primeira virtude que ele solicita das
mulheres é que elas sejam castas. A palavra em si tem um sentido
mais amplo, pois significa todas as formas de pureza. Nã o basta que
a mulher se refreie da imoralidade. Ela deve ser pura e honrá vel,
pois, se se embeleza e atrai para si os homens, ainda que nada de
imoral ocorra, sua reputaçã o já está comprometida. Por isso o
desejo de Paulo é nã o só que as mulheres sejam castas, mas que
guardem o penhor da fidelidade e da lealdade aos seus esposos. Ele
deseja também que sejam só brias e se comportem honrosamente,
de modo que, por suas vidas e em cada aspecto da linguagem e
conduta, sejam puras e discretas. Se esse fosse realmente o caso,
teríamos ampla razã o para louvar a Deus. Mas, entre as mulheres
que se denominam cristã s, quã o poucas há cuja vida é bem ordenada
em conformidade com o que Paulo descreve! Portanto, todos nó s
temos mais razã o em gemer quando vemos quã o pecaminosas e
manchadas sã o em seu interior. Portanto, que as mulheres se
empenhem em progredir no evangelho mais do que antes e que
aquelas a quem Deus graciosamente capacitou para obedecerem a
este ensino façam de tudo para incentivar as demais a serem
também boas mestres. Que as jovens também tentem tirar proveito
de seu exemplo. Essa é a liçã o que devemos manter em mente.
A seguir Paulo anexa estas palavras: boas donas de casa, bondosas e
sujeitas ao seu marido. Quando as mulheres sã o instadas a manter-se
ocupadas de sua casa, esta deveria ser uma virtude tã o querida por
elas, que já nã o se faria necessá rio nenhum estímulo especial. A
natureza deixa isso claro, e até mesmo os pagã os insistem neste
ponto por meio de uma tosca ilustraçã o — nã o diferente de nossos
almanaques pastorais — retratando uma mulher como uma
tartaruga que carrega seu casco aonde quer que vá . Assim, as
mulheres nunca deveriam vadiar por todo o país. E por quê? Os que
sã o lembrados a fazerem como Deus ordena sempre acharã o o
bastante em que se ocupar. Mesmo que tenham apenas uma
pequena casa para administrar, haverá para elas abundâ ncia de
ocupaçã o, à medida que nã o se contentarem com a ociosidade. Se
possuem uma grande casa, terã o que trabalhar ainda mais
duramente se quiserem fazer tudo o que seu dever requer.
Portanto, é uma pena que estas coisas sejam tã o negligenciadas hoje.
Pois o egoísmo, a curiosidade e as oportunidades para o ó cio
arrastam as mulheres de suas casas e as enviam daqui para ali.
Durante todo o tempo, que infindá vel mal tal agitaçã o produz!
Notamos previamente que, quando Paulo fala das mulheres, ele
descreve as que sã o ociosas como pessoas intrometidas, amantes do
mexerico, curiosas em ouvir tudo o que possam passar adiante [1Tm
5.13]. [16] Essa é sua insistência, a menos que as mulheres estejam
preparadas, como dizem, a pô r sua mã o na massa, a ociosidade as
faz inquisitivas e as convertem em pessoas intrometidas, de modo
que de nada falam senã o das ú ltimas sobras de informaçã o que
atingem seus ouvidos. Sã o como um tonel cheio de furos; quanto
mais ar entra por eles, mais rá pido escapará ! Uma palavra que lhes
seja transmitida será ampliada quatro vezes mais. O que
aconteceria, pois, se fossem vender a varejo o mexerico de toda uma
cidade? Poderiam pô r fim à sua tagarelice? Nunca! Explodiriam se
tentassem! Quando se dã o ao falató rio ocioso, nã o há como detê-lo;
razã o por que deveriam prestar particular atençã o a este ensino.
Pois tal falató rio, como eu já disse, acende incontá veis fogueiras,
espalhando rumores que suscitarã o inveja e ressentimento em uma
casa, e entã o continuam a espalhá -los nas casas vizinhas, causando
discussõ es e argumentos que arrastarã o o mal em seu rastilho.
Sendo esse o caso, pode-se ter certeza de que uma mulher já fez
muito progresso no evangelho caso se conserve ocupada em sua
casa.
Isso nã o significa que as mulheres sã o justificadas por nã o servirem
a seus vizinhos ou a alguém que necessite de seu auxílio. Se uma
mulher disser: “Oh! Tenho muito serviço em casa; nã o posso me
preocupar com os problemas de outras pessoas”, o que será , entã o,
do amor que devemos para com nosso semelhante? Portanto,
quando Paulo insta as mulheres a que se ocupem de sua casa, o
intuito é refreá -las, por assim dizer, para que nã o estejam sempre a
levar aos ouvidos as ú ltimas notícias e, assim, vivam a vadiar e a
suscitar problema e disputas. Portanto, a fim de coibir tal
curiosidade que é tã o comum, Paulo deseja que as mulheres estejam
ocupadas em casa.
Além disso, ele espera que elas sejam bondosas e submissas aos
seus esposos. Se nã o forem bondosas, como se poderia dizer que
amam a seus esposos ou que sã o obedientes e submissas a eles? Se
uma mulher fosse mal-humorada ou impetuosa, como seu esposo
poderia aguentá -la? Em consequência, se ela se dispõ e a seguir os
ditames da natureza bem como os mandamentos de Deus, antes de
tudo ela deve preparar sua mente para dominar suas má s
inclinaçõ es e nã o resistir obstinadamente ao que Deus ordenou.
Todas essas coisas devem ser postas de lado; nã o deve haver
orgulho ou arrogâ ncia que a impeça de cumprir o dever diante de
Deus e de seu esposo. Eis a sorte de bondade a que Paulo se refere
aqui. A submissã o ao esposo provém daquela. Havendo falado
primeiramente do amor de uma esposa para com o marido, o
apó stolo anexa o dever da obediência. Pois, embora as esposas nã o
possam amar a seus esposos sem que os respeitem, requer-se mais.
Elas nã o devem se sentir tã o mais resolutas que queiram subjugá -
los; ao contrá rio, devem reconhecer que seus esposos foram
designados como sua cabeça, e que a liderança nã o é o papel dela. Se
os homens tomassem a iniciativa de assumir tal autoridade, se
poderia dizer que agem egoisticamente. Visto, porém, que Deus a
ordena, e visto que a natureza concorda, como podemos ainda
discuti-la?
Nã o obstante, esta nã o é uma questã o fá cil, como bem o sabemos.
Além do mais, a experiência o comprova. Daí, as esposas nã o devem
importunar seus maridos sem razã o. Em vez disso, devem mostrar
que, vivendo tranquilamente, amorosas e submissas como o Senhor
ordena, professam o evangelho. Pois, se uma mulher for irritadiça e
ingoverná vel, se ela insistir em viver a seu pró prio modo e nã o se
deixar conduzir tranquilamente, ela vai sempre assumir a liderança
e, assim, todas as suas virtudes se convertem em vícios. Nosso
Senhor as condena à deterioraçã o. As mulheres devem aprender,
pois, que nã o podem agradar a Deus e que toda sua vida nã o pode
ser-lhe aceitá vel a menos que estejam preparadas a obedecer, como
Paulo diz aqui.
Ora, é verdade que neste texto ele nada diz sobre os deveres dos
esposos, mas, se seguirmos seu raciocínio, descobriremos que ele
nã o visa a escusar os homens de cumprirem seu dever para com
suas esposas, como que a desfrutar livre e ilimitado senhorio sobre
elas. Essa nã o é a intençã o de Paulo, como se pode ver de outras
passagens. Entretanto, visto que nã o é seu propó sito enumerar cada
dever individual, ele se contenta em citar os exemplos que
encontramos aqui. Deles, cada um de nó s pode inferir seu pró prio
dever individual. Paulo ordena que as mulheres vivam
tranquilamente, de modo que os esposos lhes digam: “Deus nos
honrou, fazendo-nos o líder sobre nossas esposas. Entã o, podemos
nos comportar como tiranos? Podemos, como corre o dito, pô r
nossos pés em sua garganta? Nã o! Elas sã o nossas companheiras”.
Nunca lemos que uma mulher deve ser escrava. A Escritura a
descreve como a parceira na vida de seu esposo, como parte de seu
corpo e de sua pessoa [Gn 2.18, 21-23]. Além do mais, visto que
Deus tem honrado os esposos desta maneira, sã o duplamente
ingratos se forem inclementes com suas esposas e se deixarem, nas
palavras de Pedro, de sustentá -las como vaso mais fraco [1Pe 3.7].
Portanto, eles devem estar unidos por uma santa amizade, como
vemos em textos tais como Timó teo, Efésios e em outras partes
[1Tm 3.2; Ef 5.25; Cl 3.19]. Tã o claro é o ensino de Paulo, que ele diz
aos esposos que desonram a Jesus Cristo se nã o viverem em
verdadeira harmonia com suas mulheres. Porque, diz ele, no
casamento de Jesus conosco temos um espelho da uniã o que deve
existir entre esposo e esposa [Ef 5.25-33]. A santa uniã o que temos
com ele constitui um casamento espiritual que nos torna parte de
seu corpo, carne de sua carne e ossos de seus ossos [Ef 5.30]. Pois o
que foi dito a Adã o e a Eva se cumpriu em nosso Senhor Jesus Cristo
[Gn 2.23]. Daí, a menos que o homem certifique-se de que ama sua
esposa, ele mostra que nunca provou a graça de nosso Senhor Jesus
Cristo ou de seu evangelho. Em consequência, embora Paulo dirija
suas palavras e exortaçõ es à s mulheres, sua intençã o nã o é dar aos
homens rédeas soltas para que façam o que bem quiserem. Eles têm,
igualmente, sua norma.
Essa é a substâ ncia deste versículo. Uma vez compreendamos quã o
necessá rio é este ensino, nã o nos preocuparemos se ele é incutido
em nossos ouvidos e se somos recompensados em nos lembrarmos
dele. Além disso, para certificar que o aceitamos mais prontamente,
Paulo anexa: para que a palavra de Deus não seja difamada. Devemos
tomar estas palavras num sentido geral, relacionando-as com o que
já foi discutido. Com efeito, Paulo tem em mente que, se os que
alegam ser de Cristo e que já foram batizados em seu nome, nã o
vivem uma vida santa e justa, ou se nã o dã o bom exemplo, isso será
contra o evangelho e trará ridículo sobre a religiã o que professamos.
Os homens dirã o: “O que é isso? Essas pessoas se gabam de que têm
a verdade de Deus e de que possuem a lei que é a regra de toda
perfeiçã o. Contudo, vemos todo o mal que fazem e os escâ ndalos que
causam com seu comportamento leviano. Que lei maravilhosa é
essa! Que tipo de reforma é esta e a que diretriz realmente
seguem?”. É assim que os homens maliciosos abrirã o suas bocas a
blasfemar contra Deus e sua Palavra, e somos acusados quando nã o
vivemos como deveríamos. Portanto, vemos que uma vida íntegra e
santa se assemelha a um ornamento, como Paulo diz mais adiante —
um ornamento, isto é, do evangelho [Tt 2.10].
Porventura nã o é uma honra extraordiná ria que Deus nos faz
quando deseja que sua Palavra seja adornada e embelezada por
nossa boa conduta e nossas vidas santas e bem ordenadas? Pois o
que ele encontra em nó s, e o que exatamente é sua Palavra? É sua
imagem na qual brilha sua gló ria e onde sua majestade se revela; é o
cetro pelo qual ele governará o mundo. Em suma, é a sabedoria, o
poder, a força, a justiça e a bondade que se encontram em Deus e se
manifestam em sua Palavra. Como, pois, podemos adorná -la, nó s
que nã o somos mais que míseras rã s que vivem na imundícia e no
pâ ntano, as quais sã o embaçadas com tantas manchas e coloraçõ es
— como podemos trazer honra à Palavra de Deus? Nã o obstante,
Deus se digna de chamar-nos a esta nobre tarefa, de modo que,
quando vivemos vidas santas, sua Palavra é honrada e estimada. Se
tivermos em nó s uma gota de humanidade, isso nã o abrandaria
nossos coraçõ es? E porventura nã o acenderia em nó s uma chama de
amor e zelo e de tal modo nos transportaria que passaríamos a
devotar-nos à bondade?
Entã o, quando Deus é blasfemado em razã o de nossos pecados, e
quando sua Palavra é exposta à s difamaçõ es e pilhérias dos
incrédulos, somos mais que culpados; merecemos ser condenados.
Pois como podemos nos defender diante dos anjos no paraíso se,
quando a imagem de Deus é maculada e os homens cospem nela, a
culpa é nossa? Supondo que digamos a alguém: “Vejo que agora você
se comporta decentemente; pois, se continuasse como começou,
você desonraria seus pais e também toda a sua família”. Aquele que
ouvir isto, por mais dissoluto que seja, se sentirá de tal modo
envergonhado que dirá : “Eu nã o quero desonrar meu pai ou minha
casa!”. E qual é o caso conosco? Ora, Deus estampou em nó s sua
marca, e sabemos que sua gló ria é esplendorosa em sua Palavra, a
qual é a mensagem da salvaçã o. Todavia, se é devido a nó s que as
pessoas mostram a língua para a Palavra, criticam-na e a
ridicularizam; se dizem: “Esta religiã o é mera ilusã o, uma reforma
apropriada para cavalos e asnos” — se, repito, somos culpados de
trazer tal infâ mia a Deus e descrédito à sua imagem, o que diremos?
Portanto, visto que nosso Senhor quer que nossas vidas sejam
consistentes com o ensino que nos é oferecido, vejamos bem que
estudemos e nos esforcemos para aumentar nossa força nela e
aprendermos que, para lutar, nã o temos necessidade de nossa
pró pria força, e sim do poder do Santo Espírito.
Naturalmente, mesmo que a Palavra de Deus nã o nos fosse pregada,
nã o deveríamos entregar-nos ao mal. No entanto, aqui Paulo busca
envergonhar os que se comportavam nocivamente e que ignoravam
o fato de que pecavam duplamente quando faziam com que Deus
fosse difamado e sua Palavra, profanada. Se sua Palavra for
escarnecida por algum erro nosso, embora nã o testifique estar
presente para repreender-nos, seria bastante sabermos que nada é
oculto de Deus. Em consequência, mesmo que nã o trouxéssemos
nenhum descrédito à Palavra de Deus, nossas consciências nos
refreariam a fim de andarmos íntegra e inocentemente diante de
nosso Deus.
Lembremo-nos ainda que havemos de comparecer diante dos anjos
do paraíso, e que o que agora jaz oculto será trazido à luz. Entã o,
nossa depravaçã o será revelada à vista tanto do céu quanto da terra.
Visto que nã o podemos escapar ao escrutínio de tantos juízes, nã o
deveríamos refrear-nos de lançar algum escâ ndalo contra o
evangelho? Mas se também formos acusados diante de Deus, se
nossa consciência nos condenar e se os perversos abrirem suas
bocas e por nossa causa presumirem zombar de Deus, o que será de
nó s? Se pensarmos seriamente em tais advertências, haveremos de
nos comportar mais cautelosamente que antes. Pois hoje sabemos
quã o de perto os inimigos da verdade velam e nos espionam. Se os
papistas encontram em nó s pequenas falhas, imediatamente
acumulam toda sujeira contra nó s. Por que fazem isso? Para terem
contra nó s justificativas ó bvias para denunciar publicamente a Deus
e à verdadeira religiã o. Isso nã o nos vem como surpresa, pois Deus,
por assim dizer, nos colocou num palco, fez com que sua luz brilhe
sobre nó s e quer que sejamos vistos mesmo de longe. Todavia, em
todo o tempo, nos entregamos a todo tipo de mal, como se
quiséssemos desafiar o mundo e o pró prio Deus. E, embora ele nos
advirta diá ria e constantemente pleiteie conosco, designando-nos
homens que sejam testemunhas de sua verdade, nã o só a ignoramos,
mas gastamos toda a nossa vida desdenhando dela e denegrindo-a o
quanto nos é possível. Acaso nã o é um abominá vel sacrilégio quando
o evangelho é trazido à desonra por nossa causa?
Os papistas nã o sã o os ú nicos que buscam difamar-nos. Os que se
gabam de ter o evangelho também agem assim e, mesmo quando
lhes faltam razõ es, de bom grado lançam mã o da chance de zombar
de nó s e de ridicularizar-nos. Entã o, quando compreendemos que
outros estã o olhando o que fazemos, deveríamos ser ainda mais
cuidadosos e disciplinados. No entanto, parece que nada pode deter-
nos, tã o imersos estamos em nossos apetites. É verdade que os
homens sã o inclinados a culpar-nos; de modo que, mesmo que
sejamos inocentes, eles dirã o o mal de nó s. Todavia, quando
conscientemente damos aos mexeriqueiros um bom motivo para
nos difamarem, acaso nã o conspiramos com Sataná s para despertar
homens contra Deus e ajudá -lo a instigar seus servos a vilipendiar o
evangelho? Encontramos tais coisas com muita frequência. Quisera
Deus assim nã o fosse!
Prestemos cuidadosa atençã o, pois, à s palavras do apó stolo, para
que a doutrina de Deus nã o seja difamada em razã o de alguma falha
de nossa parte. Este é um ponto que ele continua elaborando; e
embora ele forme parte de outro versículo [Tt 2.8], nó s o ligamos ao
ensino aqui, pois assim ele faz mais sentido. Portanto, Paulo escreve
isto: para que o adversário seja envergonhado, não tendo indignidade
alguma que dizer a nosso respeito .
A palavra “adversá rio” subentende alguém que é do outro lado,
alguém que se levanta e se opõ e a nó s ou a quem assume uma
posiçã o contrá ria. Esse alguém, segundo Paulo, deve ser
envergonhado. Com estas palavras, o apó stolo almeja mostrar quã o
importante é que estejamos em guarda, pois os inimigos da verdade
nos pressionam fortemente, buscando a chance de apanhar-nos
desprevenidos e achar erro em nó s. Isto é o que sempre foi, e esta é
a forma de Deus moldar seu povo. Os pagã os e os incrédulos
realmente têm dito que nossos inimigos costumam ser-nos mais
ú teis do que o sã o nossos amigos. [17] Ora, por que isso é assim?
Nossos amigos nos bajulam, se fazem cegos aos nossos erros e
pretextam nã o vê-los. Pior, nos ajudam a persistir neles, sempre
lado a lado conosco, por mais que isso nos seja um mal. Essa é a
vereda da destruiçã o! Nossos inimigos, em contrapartida, têm seus
olhos postos em todas as nossas fraquezas; eles as investigam e
assim nos põ em a falar de afliçã o. Por isso somos advertidos a que
corrijamos qualquer falha que porventura encontremos em nó s. Ora,
se os pró prios pagã os nos ensinam a olhar para nó s mesmos, que
justificativa temos se falhamos de atentar bem para o que nos é
ensinado por todos os apó stolos?
Entã o, quando Paulo insta conosco a envergonharmos nossos
inimigos, para que nada encontrem com que nos criticar, ele deixa
bem claro que seguramente os homens têm seus olhos postos em
nó s quando tentamos servir a Deus; e que eles nos espionam com o
fim de desacreditar-nos. Por tais meios, como eu já disse, Deus busca
estimular-nos. É verdade, em qualquer caso, que, o que quer que
façamos, nã o podemos impedir as má s línguas de difundir a calú nia,
pois sabemos que o diabo, que é o pai da mentira, sempre levantará
seus servos a uma tal intensidade de fú ria que certamente nos
denigre. E se o pró prio Filho de Deus nã o foi poupado, o que será
dos homens que sã o sempre saturados com muitas imperfeiçõ es?
Se nos comparamos com Paulo, ou com os profetas e outros
apó stolos, ah!, estamos longe de ser tã o íntegros como eles o foram.
Neste mundo, eles eram como anjos; contudo, nunca cessaram de
ser estigmatizados e abusados. E quem foi como os apó stolos,
especialmente Paulo, que estivesse acima de censura? Mesmo antes
que se convertesse a Jesus Cristo, a vida que ele viveu parecia estar
além do alcance humano; e, quando Jesus Cristo o chamou para seu
evangelho, sabemos que tal foi seu altruísmo, que era como um
homem transportado deste mundo, vivendo sempre absorvido por
seu trabalho em prol da igreja. Ele vivia tã o despreocupado consigo
mesmo, que se esqueceu de seu pró prio conforto. Em suma, seu
ú nico pensamento era o avanço do reino de Deus e a exaltaçã o de
Jesus Cristo. Mesmo assim, acaso ele escapou à crítica e à calú nia?
Pelo contrá rio: aonde quer que fosse, era estigmatizado; pois, como
ele diz, nã o só teve que suportar insultos e sofrer opró brio como se
fosse um malfeitor, mas ele e seus companheiros foram
considerados escó ria da terra; como lixo e tudo quanto é sujeira
pú trida que é lançada fora quando os animais sã o mortos [1Co 4.12,
13]. Essas sã o as imagens usadas por Paulo para mostrar como Deus
o humilhou. Daí ser claro que, seja o que for que façamos, nã o
podemos fechar a boca dos perversos ou evitar todo tipo de insulto
e abuso.
Nã o obstante, vivamos de tal maneira que possamos apelar para
Deus e seus anjos a vindicar nossa integridade; e à vista dos homens
estejamos prontos a responder pelos erros dos quais permanecemos
acusados, e só nos esforcemos para demonstrar que somos
inocentes e que nossas vidas sã o isentas de todo e qualquer
escâ ndalo. Ao agirmos assim, seguimos os apó stolos e profetas, e
nos acharemos na melhor das companhias! Entrementes, embora
nossos inimigos nã o cessem de falar mal de nó s, certamente haverã o
de ser envergonhados. Por quê? Nossa consciência testificará de
nossa inocência, de modo que eles serã o convencidos de que somos
inculpá veis. Na verdade, ainda vomitarã o muitos males, mas isso
passará e se desvanecerá . Será como um rumor que, uma vez
espalhado, se faz popular por algum tempo, mas no fim se verá que
nã o passa de uma nuvem evanescente e momentâ nea, do primeiro
ao ú ltimo, um jugo miserá vel.
Muitas pessoas de fato se sentem ditosas vendo os cristã os
desacreditados e, embora nada conheçam do que é dito sobre eles,
espalharã o rumores ignorantes de uma parte a outra, e movidos de
um ó bvio rancor, caluniarã o os filhos de Deus. Quando isso ocorre,
devemos volver-nos para nosso protetor celestial. Acima de tudo,
que nossa vida responda por nó s, de modo que traga opró brio aos
perversos que tã o ardentemente nos difamam; e, quando abrem
suas bocas para achar erro em nó s, que nossas boas vidas e conduta
de tal modo os silenciem, que sua iniquidade seja ó bvia à vista. E
assim, quando o diabo levantar seus ministros para denunciar-nos e
nos humilhar, asseguremo-nos de que temos os meios para resistir a
eles; e quando os monges mexeriqueiros espalharem escâ ndalos e
falsas fá bulas, que isso ricocheteie sobre suas pró prias cabeças,
quando provarmos que somos inocentes.
Isso, repito, é o que devemos fazer — e de tal modo que nada nos
desencoraje mesmo que o mundo seja suficientemente ingrato para
conspurcar-nos pelo bem que fazemos. Quando uma pessoa se
empenha com todas as suas forças em fazer todo o bem que possa e
só é recompensada com desprezo, tal coisa nos indispõ e e nos irrita.
Nã o obstante, tudo redunda nisto: que, se os homens sã o tã o
perversos a ponto de censurar-nos pelo bem que fazemos, é
suficiente que tenhamos nosso protetor celestial a quem podemos
apelar. Também os profetas lutaram os mesmos tipos de batalhas.
“Persuadiste-me, ó SENHOR , e persuadido fiquei; mais forte foste do
que eu, e prevaleceste; sirvo de escá rnio todo dia” [Jr 20.7].
Reiterando, Isaías diz isto dos que falavam mal contra ele: “Ofereci
as costas aos que me feriam, as faces, aos que me arrancavam os
cabelos” [Is 50.6]. Em outras palavras, “o povo é livre para abusar de
mim o quanto queira. Estou para ser feito em pedaços, insultado em
toda festa; cada um presume julgar-me e condenar-me. Mas,
enquanto os homens lançam contra mim seu ó dio, eu tenho no céu o
meu protetor. Ele me salvará de todas as suas censuras”. Eis como
devemos agir sempre que os perversos acharem em nó s algum erro.
Uma consciência pura e isenta de todo o mal que nos é atribuído
deve responder a Deus. Nã o devemos preocupar-nos se o mundo
nos retribui tã o pobremente e nos culpa por fazermos o bem; que
nos alegremos pelo fato de que Deus conhece nosso valor. Entã o,
sempre que acontecer, nada nos afaste dele, senã o que continuemos
a seguir nossa vocaçã o rumo à gló ria de Deus. E quando cada um de
nó s, pessoalmente, tiver se beneficiado desta doutrina, tentemos
atrair outros a ela e ao reconhecimento do evangelho que Deus nos
deu. No ínterim, que todos que nos estigmatizam sejam
envergonhados e que suas bocas sejam fechadas, queiram eles ou
nã o.
 
Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que nos faça senti-los
mais agudamente do que antes; a fim de que lutemos mais e mais
contra nossas má s inclinaçõ es; e que nos desviemos deste mundo
para anelarmos somente a ele. E, visto que sabemos que dureza e
rebeliã o há em nosso íntimo, que Deus nos dome e nos domine para
que, através de seu Santo Espírito, ele nos reja e nos governe.
Renunciemos a nossos pró prios desejos e rendamo-nos cativos a ele.
Que deixem de exercer domínio sobre nó s e sustentem a obediência
que devemos ao nosso Senhor Jesus Cristo, diante de quem todo
joelho deve curvar-se.
 

12. CARÁTER CRISTÃO (3) [Tito 2.6-13]


Quanto aos moços, de igual modo, exorta-os para que, em todas as
coisas, sejam criteriosos. Torna-te, pessoalmente, padrão de boas
obras. No ensino, mostra integridade, reverência, linguagem sadia e
irrepreensível, para que o adversário seja envergonhado, não tendo
indignidade nenhuma que dizer a nosso respeito. Quanto aos servos,
que sejam, em tudo, obedientes ao seu senhor, dando-lhe motivo de
satisfação; não sejam respondões, não furtem; pelo contrário, deem
prova de toda a fidelidade, a fim de ornarem, em todas as coisas, a
doutrina de Deus, nosso Salvador. Porquanto a graça de Deus se
manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos para que,
renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente
século, sensata e piedosamente, aguardando a bendita esperança e a
manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus,
o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda
iniquidade e purificar para si mesmo um povo exclusivamente seu,
zeloso de boas obras.
 
No ú ltimo domingo, explicamos o quanto Deus nos honra, desejando
que nossas boas obras e vidas santas confirmem a doutrina do
evangelho. Sabemos que a gló ria de Deus é esplendorosamente
exibida em sua doutrina; mas quem somos nó s para trazer-lhe
honra? Nã o obstante, ele se agrada em usar criaturas tã o miserá veis
em uma obra tã o nobre e preciosa. Devemos, pois, ser ainda mais
aptos a fazer o que nos é requerido.
A Escritura declara que os que proclamam a Palavra de Deus devem
ser como espelhos, de modo que sejamos edificados por sua boa
vida e pelo exemplo. Eles sã o advertidos de que estarã o em falta se,
por seu comportamento, o nome de Deus for blasfemado. Pois os
papistas e os incrédulos aproveitam a chance para rir de nossa fé e
do cristianismo que professamos se nossas vidas sã o inconvenientes
e inconsistentes. No entanto, aqui Paulo avança mais e menciona os
escravos que nã o eram como os servos assalariados de hoje. Aqueles
viviam em servidã o; sua sorte se assemelhava à do gado ou de
outros animais; um senhor poderia matar seu escravo tã o facilmente
como poderia fazê-lo ao seu cã o. A despeito disso, Paulo diz que a
religiã o será adornada por eles se sua conduta for tal que faça os
malfeitores verem que a doutrina de Deus tem poder para renovar
os homens e conduzi-los à santidade de vida. Visto ser assim, acaso
nã o somos débeis, se nã o fizermos nosso melhor para fechar a boca
de todos os que falam mal e até para forçá -los a honrar e glorificar a
Deus?
Daí, os que sã o de posiçã o humilde e que sã o desprezados por todos
devem se contentar em saber que Deus os tem honrado
grandemente, recebendo-os como filhos, e que ainda deseja que sua
gló ria resplandeça neles, de modo que nã o só usem o distintivo dele,
mas sua pró pria vida é como um ornamento e embelezamento do
evangelho. Entrementes, os que têm sido elevados a posiçõ es de
honra e importâ ncia atentem bem para si mesmos, pois se Deus
deseja que os mais humildes e menos estimados — meros proscritos
que nã o merecem um segundo olhar! — adornem sua Palavra, acaso
os que sã o preeminentes nã o devem fazer nada para desacreditar a
sã doutrina ou dar aos homens razã o para motejar de Deus por meio
de sua má conduta?
Pensemos nos magistrados que em certo sentido sã o as imagens de
Deus no mundo. [18] Se alguns deles desprezam a Deus ou sã o
corruptos e avarentos; e se outros sã o totalmente cruéis ou se
dispõ em a solapar e arruinar toda a boa ordem, acaso com seus
excessos nã o causarã o tal escâ ndalo que todos passem a difamar a
doutrina que pregamos? Daí, tomemos todo o cuidado, cada um em
seu pró prio lugar, e que grandes e pequenos vejam bem que Deus
nã o rejeite a ninguém, mas que se apraza a estabelecer seu reino
entre nó s, de modo que todos possam cultuá -lo e glorificá -lo. Se
agirmos assim, seremos bem sucedidos em impedir que as calú nias
dos homens maus circulem entre nó s — nã o que serã o
completamente silenciados, pois sabemos o quanto sã o
desesperadamente despudorados os que escarnecem de Deus.
Supondo que fô ssemos tã o perfeitos quanto os anjos, ainda
vomitariam suas calú nias contra nó s! Nã o obstante, quando a
verdade é plenamente conhecida, ainda se exporã o ao opró brio, pois
nossa vida responderá por nó s, e nossas consciências nã o só
testificarã o de nossa inocência diante de Deus, como também
provaremos diante dos homens que somos injustamente
estigmatizados. Levemos a sério esta liçã o.
Ora, quando Paulo fala dos moços, ele lhes ordena que sejam
criteriosos [ou, tenham autodomínio]. Esta é uma virtude mui
necessá ria para os dessa idade. Sabemos que este é um tempo de
grande calor, pois é excessivamente difícil manter os jovens sob
rédeas curtas. Sã o como uma panela que começa a ferver e
transborda. Sua idade é pró pria para isso: só pode ser dominada
com o mais vigoroso esforço. Em qualquer caso, Paulo enfatiza que
necessitam de domínio pró prio. Por quê? Quando nossos erros estã o
à vista, nã o constitui uma escusa dizer que eles sã o meramente
irrefletidos; ou, do contrá rio, nã o se deixarã o coibir. Antes, quando
tais moléstias aparecem, devem-se aplicar remédios. Um homem
que jaz doente nã o se enfraquecerá onde está ; buscará ajuda usando
todos os meios disponíveis. Em consequência, quando os jovens
veem que se acham dominados por maus desejos, os quais os
arrastam à prá tica do mal, quando somente a força os fará render-
se, quando alguns sã o promíscuos e outros atingem o pior estado
imaginá vel — temeridade, extravagâ ncia, glutonaria, jogatina —,
quando os jovens veem que este é o rumo para onde sua natureza os
leva, devem ser complacentes? Esconder-se-iam por detrá s do
pretexto de que sua idade é propensa a vícios desta sorte? Claro que
nã o! Devem ouvir o que lhes é ensinado aqui. Têm de lutar ainda
muito mais contra suas má s inclinaçõ es, até que estas sejam
vencidas; e até que Deus vença tal senhorio sobre eles, para que seu
mau comportamento cesse.
Ora, ainda que esta exortaçã o seja absolutamente essencial, quã o
precariamente a praticamos! Os jovens, sendo também teimosos,
sã o destituídos de prontidã o e autocontrole. Que tipo de restriçã o
notamos neles? Se eles sã o néscios e instá veis, deveriam no mínimo
ser humildes, aceitar bom conselho e segui-lo. Em vez disso, sã o
voluntariosos e presunçosos, como se possuíssem toda a sabedoria e
experiência do mundo; o exato oposto. Nã o se preocupam em ouvir
uma palavra, mas pensam que sã o suficientemente expeditos. Ora,
quando os jovens se tornam excessivamente arrogantes, seu caso é
sem esperança e além de correçã o: nada de fidedigno se pode
esperar deles. Um jovem pode ter toda virtude possível; mas, se é
arrogante, carente de humildade e autodisciplina, tudo isso
redundará em fumaça. Ele será como uma semente inú til que se
veste de germinaçã o vigorosa, mas que, por fim, nã o produz nenhum
bom fruto. Seja qual for o caso, o Espírito Santo nã o quer que
ignoremos esta admoestaçã o, tendo sido de uma vez por todas dita
pela boca de Paulo. Daí que os jovens resolvam submeter-se e
demonstrar que nã o buscam permitir que o mau comportamento
prevaleça. Que exerçam a restriçã o na ausência de alguma outra
instâ ncia.
No entanto, se os virmos incitando malefício, os que têm
responsabilidade sobre eles devem ser diligentes em ressaltar suas
loucuras e censurá -los. Os ministros da Palavra devem lembrar-se
de que sã o responsá veis diante de Deus, caso fechem seus olhos e se
esqueçam das paixõ es nocivas dos jovens. Se virem os jovens agindo
nocivamente, mas nã o pretendem notar nem protestar, certamente
terã o que responder diante de Deus. E se os jovens provarem que
sã o ingratos e se deixam de tal modo se assenhorear de cegueira a
ponto de se tornarem ingoverná veis, nã o obstante, deve-se manter o
que nos é ensinado aqui. Também os pais devem usar a autoridade
que Deus lhes concedeu nesta questã o e tentar manter a indisciplina
sob controle.
Neste ponto, o apó stolo volta a Tito, instruindo-o a que seja como um
espelho ou modelo de toda virtude, segundo a doutrina . Isto é, o
homem incumbido de proclamar a Palavra de Deus deve pregar em
cada parte de sua vida, já que Deus o escolheu para tal tarefa.
Quando as pessoas olhassem para ele a fim de ver como ele se
comporta, deveriam achar a confirmaçã o da doutrina que ele
proclama; e ele deveria fazer o bem e edificar nã o só com os lá bios, e
assim ensinaria aos homens seu dever, mas também por meio de seu
exemplo; de modo que ele seja conhecido por falar sinceramente, e
nã o sob pretexto, para a edificaçã o de todos. Aprouvesse a Deus que
essa injunçã o fosse obedecida, a verdade de Deus seria recebida com
mais reverência do que é! Mesmo assim, já que Deus escolhe usar-
nos para disciplinar a outros, nã o haverá escusa se nã o nos
disciplinarmos com propriedade. Devemos ordenar nossas vidas de
tal maneira que, como por consenso comum, para guiar outros,
devemos também diligenciar-nos em honrar a Deus sem lhe dar
sequer um motivo para rejeitar sua santa Palavra; pois ele nos fez
seus instrumentos e quer que aceitemos sua doutrina como se
estivesse falando conosco pessoalmente.
Mais precisamente, Paulo insta conosco a que ensinemos com toda
seriedade, sobriedade e com sãs palavras . Com efeito, devemos
certificar-nos de que mantemos sobre nó s uma rédea mais curta do
que sobre outros. Pois vemos muitos que se deixam dominar pela
paixã o quando é necessá rio repreender o pecado. Desaprovam tudo;
nada fica de seu gosto. Daí, a advertência de Paulo redunda nisto:
“Alguns se mostram prodigamente condescendentes em seus
pecados; contudo, fuzilam amargamente contra os pecados de
outros. Nã o é isto que se faz necessá rio — na verdade, muito ao
contrá rio! Quando solicitamos a outros que obedeçam à vontade de
Deus, antes de tudo, devemos dar atençã o aos pró prios pecados. Nã o
devemos encaminhá -los meramente em seu caminho — devemos ir
adiante”.
Uma excelente visã o disto seria se o pregador instasse seu povo a
cultivar o autocontrole, enquanto ele mesmo fosse dissoluto ou dado
a uma conversaçã o vil e desrespeitosa! Tal homem seria claramente
condenado por sua pró pria boca. Ou imaginemos alguém que
louvasse a sobriedade e a moderaçã o, mas que ele mesmo fosse
ébrio e glutã o. Retratemos um terceiro que denunciasse a cupidez,
mas que também se deleitasse em roubar de todo mundo. Ou outro
que, enquanto nos diz que esqueçamos o mundo e nos deleitemos
em Deus, permanecesse cravado na terra, sem cuidar da vida
celestial como fazem os meros animais! Uma visã o excelente, repito,
seria se alguém nos instasse a fazer estas coisas, dizendo: “Vá em
frente”, enquanto ele mesmo se recusa a seguir em frente! Sua tarefa
seria guiar e mostrar a outros o caminho certo.
E assim Paulo deseja nã o só que mostremos moderaçã o e
ordenemos bem nossas vidas para que ninguém moteje de Deus e
menospreze sua Palavra; ele espera que também confirmemos e
endossemos sua doutrina por meio de nossa linguagem, de modo
que os homens atentem bem e se deixem animar a fazer o bem. Eis
por que ele anexa “com linguagem sadia”. Ele nã o aprova nenhuma
frivolidade em nossa linguagem que porventura excite gracejo, pois
sabemos que as má s palavras e conversaçõ es têm sua origem na
corrupçã o da boa moral, como diz Paulo em outro lugar [1Co 15.33].
Ali ele cita um provérbio popular entre os pagã os, e registrado por
um poeta profano, a fim de envergonhar os crentes que
transgrediam em palavra e linguagem. [19] Conspurcaçã o desse tipo
é um sinal de que sentimos menosprezo por Deus e que queremos
ser livres para desfrutar nossos vícios. Essa é a liçã o para nó s aqui.
Agora sã o abordados os escravos e os que vivem em servidã o: que
sejam, em tudo, obedientes ao seu senhor, dando-lhe motivo de
satisfação . Aqui, Paulo tem em mente as necessidades daqueles a
quem particularmente ele fala. Pois, naqueles tempos, os escravos
eram passíveis de roubar e também de retrucar, a menos que
fossem desencorajados pelo temor de serem açoitados. À s vezes, o
brutal tratamento que recebiam os tornava duros: eram tratados
como bestas brutas, surrados, atormentados e torturados; para sua
refeiçã o, à s vezes eram despidos e flagelados, seu sangue jorrando
em todas as direçõ es. Nã o surpreenderia, pois, se, empedernidos
pelo sofrimento, fossem culpados de se vingar de seus senhores
sempre que tivessem ocasiã o.
Nã o obstante, Paulo os exorta a que agradassem seus senhores —
agradassem a eles em toda a coisa obra, uma exceçã o que ele
esclarece em outros lugares [Ef 6.5-8]. Também devem ser pacientes
e nã o retrucar; mas devem dar bom exemplo mesmo que seus
senhores sejam ingratos. Ora, ainda que esse tipo de escravidã o já
nã o exista entre nó s como outrora, a liçã o de Paulo de modo algum é
fora de lugar hoje. Aqueles de quem se requer que trabalhem em
serviço normal devem agir com muito mais disposiçã o, pois há uma
comparaçã o ó bvia a ser traçada aqui. Se Deus esperava que os
escravos que eram tã o maltratados e nã o tolerados obedecessem
aos senhores que os oprimiam, como será com os servos
assalariados que, embora nã o se irritem dessa maneira, deixam de
cumprir com seu dever? Acaso nã o sã o duplamente culpados diante
de Deus? Naturalmente, sã o! Quanto mais fá cil e mais suportá vel for
nossa sorte, menos escusá veis somos em recusar aquiescência.
Portanto, que os empregados como servos saibam que esta doutrina
é para eles hoje; e que Paulo lhes ordena que obedeçam aos seus
senhores e nã o retruquem ou tirem o que é deles, mas tentem
agradá -los o quanto puderem.
Esse é um ponto. Segue uma admoestaçã o mais geral. Somos
inclinados a pensar que, se alguém falha no cumprimento de seu
dever para conosco, somos justificados em fazer, por nossa vez,
muito pior. Entã o dizemos a nó s mesmos: “O que lhe devo?”. Ah! sim,
mas nã o devemos a Deus? A Escritura declara que o amor nos faça
sujeitos uns aos outros, e que ele nos obrigue aos demais [Rm 13.8;
1Pe 5.5]. E, assim, este é o paralelo que devemos traçar: “Embora
ninguém possa forçar-me a fazer mais do que é requerido, visto que
Deus me tem tratado tã o bondosamente, seria errado eu nã o
cumprir com meu dever”. Portanto, visto que nã o somos tratados
incorretamente, devemos prestar um serviço livre e espontâ neo ao
nosso semelhante, e resolver nã o tirar daqueles aos quais Deus nos
têm unido.
É assim que esta doutrina se aplica nã o só ao serviço prestado a
homens e mulheres, mas a todos os crentes, sem exceçã o. Onde
lemos expressamente que os escravos devem agradar a seus
senhores, temos que entender que este nã o é simplesmente um
trabalho que fazem sob compulsã o; sabem que, ao fazê-lo, estã o
servindo a Deus. É verdade, como Paulo escreve no sétimo capítulo
da primeira carta aos Coríntios, que, se naqueles dias um homem
pudesse ser livre, ele nã o deveria rejeitar a oportunidade, mas
desejá -la [1Co 7.21]. Mesmo assim, Paulo quer que cada homem
permaneça em seu pró prio lugar e situaçã o. Tal homem deveria
dizer: “A Deus aprouve humilhar-me. Ele nã o me pô s em um lugar
elevado, mas decidiu fazer-me subserviente. Entã o, permaneço onde
ele me colocou”. Aprendamos, pois, que, se alguém está em serviço,
o mesmo nã o deve recuar de fazer o bem, mas que se esforce em
cultivar uma disposiçã o alegre e em trabalhar de todo o coraçã o,
como Paulo diz em outro lugar: “Que os servos nã o servissem à
vista, como para agradar a homens, mas como servos de Cristo,
fazendo de coraçã o a vontade de Deus” [Ef 6.6; Cl 3.22]. Pois há os
que se vestem da melhor aparência com o fim de enganar a seus
senhores.
Paulo demanda uma disposiçã o que seja livre e de boa vontade, de
modo que, mesmo quando o senhor nã o esteja olhando, os escravos
nã o temam a demissã o ou repreensã o, muito menos a puniçã o.
Deveriam ser sempre fidedignos como se estivessem diante de Deus.
No entanto, há uma exceçã o: tinham que agradar a seu senhor com
toda bondade [Ef 6.5-8]. Porque se, com o intuito de gratificar o
senhor, um escravo agisse como alcoviteiro ou ferisse um homem e
espancasse outro, ou roubasse, ou surrupiasse, ou blasfemasse
contra Deus, toda a ordem seria destruída. E assim, quando Paulo
fala de posiçã o social, notamos que Deus sempre retém sua
autoridade e nunca abandona seu ofício. Se os escravos, portanto,
devem obedecer a seus senhores, isso só pode visar a um bom
propó sito. Daí, se um senhor insta seus filhos ou servos a agirem
erroneamente, a saber, que sejam ladrõ es ou homicidas; ou se, para
agradar um senhor, um homem planeja matar, envenenar, incitar
porfia ou praticar a insídia, esse será absolvido, alegando que seu
senhor ordenou que ele o fizesse? “E entã o? Seu senhor lhe
ordenou? Mas ele também está sujeito à autoridade civil. Quanto
mais você!” Entã o, se a justiça sempre tomasse seu curso, embora os
senhores devam ser obedecidos em sua pró pria casa, acaso cremos
que Deus renunciará a seu ofício e seus direitos, sob o pretexto de
que os senhores, magistrados e outros ocupam posiçã o superior,
enquanto os servos e pessoas ordiná rias ocupam uma inferior?
Lembremo-nos, pois, que, se devemos estar sujeitos aos homens, os
direitos de Deus de modo algum sã o obliterados ou diminuídos. Ao
contrá rio, devemos ser sempre mais encorajados a servi-lo; pois até
mesmo míseros escravos, por mais que sejam maltratados e
horrivelmente abusados, devem tentar satisfazer seus senhores.
Todavia, que sã o os homens em comparaçã o ao nosso Deus? Ele nã o
nos trata tiranicamente nem nos explora como os homens mortais
buscam fazer. Ele nã o nos extorque o sangue nem suprime de nó s
para seu pró prio proveito ou vantagem. O que ele demanda de nó s
que nã o seja para nosso bem-estar e salvaçã o? Visto que Deus exibe
tal generosidade para conosco, somos malditos e duplamente
malditos se nã o nos dispusermos a servi-lo com alegria e nã o nos
oferecermos a ele como um sacrifício voluntá rio! Entã o, que nos
fique bem claro que, quando é uma questã o da obediência que
devemos ao homem, nossa primeira obrigaçã o é, além de
comparaçã o, para com ele. Além do quê, sua majestade, como bem
sabemos, excede a toda sorte de supremacia conhecida dos seres
humanos. E visto que, de sua parte, ele deseja apenas nos governar
de uma maneira paternal; e visto que ele nos sustenta como seus
filhos, como ele diz por meio de seu profeta [Jr 31.9], todos nó s
somos ainda mais obrigados a servi-lo com coraçõ es livres e
voluntá rios.
Havendo tratado desse ponto, Paulo agora acrescenta: a graça de
Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos para
que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos, no
presente século, sensata, justa e piedosamente, aguardando a bendita
esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e
Salvador Cristo Jesus . Como dissemos anteriormente, Paulo nã o
entra em detalhes nem explica plenamente cada dever específico à s
vocaçõ es dos homens. Ele se contenta em prover uma série de
exemplos. É como se quisesse dizer que, para edificar a igreja de
Deus, nó s, que somos incumbidos de pregar o evangelho, nã o
devemos gastar tempo com questõ es especulativas que a ninguém
traz proveito; em vez disso, devemos instar todo homem a que
cumpra seu dever. No entanto, nã o há necessidade de um amplo
esboço de normas para o bom e santo viver. Devemos ensinar aos
pais como controlar seus filhos; e os filhos, como obedecer a seus
pais e mã es. Devemos informar aos esposos como viver
pacificamente com suas esposas; e à s esposas, como viver
pacificamente com seus esposos. Os servos devem aprender que
devem ser fidedignos no serviço prestado a seus senhores; e os
senhores devem ser restringidos no caso de se sentirem livres para
fazer tudo quanto lhes apraza ou para agir cruelmente e, assim,
abusem de seu poder. Devem contentar-se com o privilégio de ter
autoridade sobre criaturas racionais. E assim o apó stolo explica
sucintamente a doutrina de Deus, a fim de mostrar que seu
propó sito nã o é satisfazer a coceira de nossos ouvidos, mas edificar-
nos em toda a bondade. Guardemos esse pensamento bem
solidamente.
A seguir nos é mostrado sobre que bases Paulo assenta sua doutrina.
Vimos, numa passagem anterior, que a graça de Deus que se fez
conhecida pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo deve ser
proclamada a cada dia. [20] Que espantoso mistério é que Deus se
manifestasse em carne e, nã o obstante, nos revelasse sua gló ria
celestial para que fô ssemos feitos um com ela! Esta é a tarefa de
cada pastor, a saber, que proclamar que a sabedoria de Deus já nos
foi revelada na pessoa de seu Filho nunca é perda de tempo. Essa é
também a razã o por que em Efésios Paulo fala do conhecimento em
toda a sua altura, profundidade, comprimento e largura [Ef 3.18, 19].
Podemos pairar nas alturas sobre as asas do pensamento
especulativo; podemos mergulhar no abismo em busca de verdades
impenetrá veis; podemos explorar os oceanos em toda sua mais
ampla extensã o. Nã o obstante, diz Paulo, temos uma sabedoria
infinitamente elevada e profunda, em sua longitude e amplitude:
compreendermos o amor que Deus nos fez conhecer na pessoa de
seu Filho unigênito.
Consideremos a razã o por que os homens devem pregar
diariamente o elevado e inestimá vel mistério de que Deus se
manifestou em carne. Paulo afirma que este mistério provê uma
norma para o viver santo. Joã o diz a mesma coisa quando declara:
“Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive
pecando desde o princípio. Para isto se manifestou o Filho de Deus:
para destruir as obras do diabo” [1Jo 3.8]. Em consequência, quando
ouvimos que a redençã o nos foi obtida pela morte e paixã o de nosso
Senhor Jesus Cristo, é para que pudéssemos ser afastados deste
mundo; renunciemos nossas má s paixõ es e nos dediquemos
inteiramente a Deus. Daí lermos, respectivamente, em Pedro e em
Efésios que nosso Senhor nos redimiu para si, a fim de que
declaremos diariamente seu louvor, pois ele nos tirou deste mundo
com todas as suas mazelas [Ef 2.4-6; 1Pe 4.1, 2]. Por que, pois, Jesus
Cristo derramou seu sangue senã o para purificar-nos? E se somos
assim purificados, haveremos outra vez de conspurcar-nos, como
porcos que voltam a chafurdar no excremento e lama, uma vez que
já foram lavados?
Esse é o significado de Paulo aqui. Agora temos de explanar os
vá rios pontos que se encontram neste texto. Notamos a principal
intençã o, a saber, mostrar que a gló ria de Cristo apareceu a fim de
que, sendo separados do mundo, sejamos um povo santo; um povo
governado por Deus. Portanto, carecemos de encorajamento todos
os dias para o cumprimento de nosso dever. No entanto, Paulo,
havendo falado de escravos, declara que “Deus se manifestou a
todos os homens”. Isto é, Deus nã o escolheu apenas os grandes, os
nobres e os que sã o estimados; ele derramou sua misericó rdia sobre
os inferiores, sobre os rejeitados, os escarnecidos e os degradados.
Ele escolheu honrá -los, admitindo-os à categoria de seus filhos. É
nesse contexto que Paulo fala de “todos os homens”. Entã o vemos
quã o absurdos sã o aqueles obstinados que presumem explanar a
Santa Escritura; e que, verdadeiros quanto à forma,
equivocadamente mantêm que Deus quer que todos os homens
sejam salvos; uma vez que sua graça se manifestou para a salvaçã o
de todos; e, portanto, já que existe o livre-arbítrio, nã o existe eleiçã o
e ninguém foi predestinado para a salvaçã o.
Ora, se as bestas fossem capazes de falar, teriam de ser um pouco
mais engenhosas do que isso! Porque, tanto neste texto quando no
que já explanamos em Timó teo, [21] Paulo simplesmente quis dizer
que os grandes sã o também chamados por Deus, ainda que sejam
indignos; e os humildes, ainda que desprezados; nã o obstante todos
sã o adotados pelo Deus que estende sua mã o para recebê-los.
Naqueles dias, visto que os governantes e os magistrados eram
inimigos mortais do evangelho, Deus se manifestou para receber os
destituídos que jamais poderiam alcançar a salvaçã o. O apó stolo
ensina que nã o devemos fechar-lhes a porta; e que Deus, finalmente,
é capaz de escolher dentre seus membros, ainda que seu caso
parecesse sem esperança.
Assim, neste texto, havendo referido a míseros escravos que nem
mesmo eram classificados como homens, Paulo afirma que Deus nã o
fracassou em ser-lhes misericordioso, e que deseja que o evangelho
seja pregado à queles a quem nem sequer uma palavra foi dita.
Temos aqui um homem pobre a quem todos ignoram. Dificilmente
alguém lhe desejaria “bom dia”. Contudo, Deus se volve para ele
antes de todos e se lhe revela como Pai; ele o convida a ouvir; e nã o
pronuncia uma breve palavra de passagem, mas se detém com ele e
lhe diz: “Você pertence ao meu rebanho. Que minha palavra seja seu
alimento e vida espiritual para sua alma”. Visto que Deus já exibiu
tal benignidade para com a raça humana; visto que os que foram
abusados e vilipendiados, para quem ninguém olhava
favoravelmente, foram tomados, por assim dizer, no regaço de Deus;
foram tomados para que este fosse seu Pai e foram adotados como
seus filhos, quã o horrivelmente duro seria se nã o pudéssemos ser
aplacados por esta revelaçã o da bondade de Deus!
Julguemos, pois, o significado das palavras de Paulo, quando diz que
a graça de Deus “se manifestou plenamente aos homens”. No
entanto, notemos as palavras que ele anexa: “para nossa instruçã o”.
Pois há muitos que abusam vergonhosamente da bondade de Deus,
aproveitando toda oportunidade para a prá tica do mal. Por essa
razã o, Paulo insta-nos a nã o converter a liberdade tã o
amorosamente conquistada para nó s numa escusa para a
indulgência carnal [Gl 5.13]. De fato há muitos que se divertem com
Deus e pensam que tudo lhes é permitido, visto que já foram
redimidos por nosso Senhor Jesus Cristo. Isso é muitíssimo comum.
E há outros que permanecem indiferentes quando a mensagem da
misericó rdia de Deus lhes é proclamada. Esquecem tudo sobre a
tarefa à qual Deus os chama e sobre qual é o propó sito quando ele
põ e diante de nó s os tesouros de seu amor paternal. Em
contrapartida, Paulo nos diz que a graça de Deus se manifestou para
nossa instruçã o. Disto fica claro que nã o podemos separar a
santidade de vida da fé que permite que nos reclinemos em nosso
Senhor Jesus Cristo e a confiança na obediência que ele rendeu a
Deus seu Pai.
Portanto, nã o nos cabe ouvir a mensagem com que Deus nos
agraciou e quer reconciliar-nos na pessoa de nosso Senhor Jesus
Cristo? Seu propó sito é este: que odiemos nossos pecados e
queiramos muito mais retornar para ele, porquanto ele nã o quer
que vivamos perdidos e sigamos a vereda da destruiçã o e morte,
onde uma vez estivemos. Tal é o laço inquebrá vel entre a graça de
Deus e o viver íntegro. O dom divino da misericó rdia, longe de
reduzir-nos a um estado de demente confusã o no qual nã o podemos
distinguir o certo do errado, nos convence da necessidade de nos
guardarmos de todas as contaminaçõ es do mundo. Eis por que Paulo
nã o encontra um apelo mais premente e poderoso do que a
misericó rdia de Deus, à luz da qual ele pode dizer: “Meus amigos,
vejam quã o misericordioso Deus tem sido para com vocês. Essa
misericó rdia os despertou e acendeu em vocês a chama do amor
para com Deus”. Porque, para reiterar o que eu já disse, somos
monstruosamente ingratos se deixarmos de permanecer obedientes
a ele.
É isso que está implícito no versículo: “A graça de Deus se
manifestou para nossa instruçã o”. No entanto, aqui os pregadores
do evangelho devem acautelar-se. Se eles declaram que Deus, ao
enviar seu Filho para redimir-nos, se revela como o Pai de todos, de
modo que temos plena justiça mediante o perdã o de nossos pecados
— se dissermos isso e nada mais, sabemos o quanto as pessoas sã o
inclinadas para o mal e o quanto tentam subverter a graça de Deus e
suprimi-la. Fazer isso equivaleria dar rédea solta ao mal. Entã o,
estas duas coisas podem ser enfeixadas: arrependimento e fé. Assim,
quando nosso Senhor Jesus Cristo enviou seus discípulos, ele lhes
ordenou que pregassem a remissã o dos pecados atrelada ao
arrependimento; ele recusou separar uma da outra [Lc 24.47]. A
Escritura diz do casamento que o homem nã o separe o que Deus
uniu [Mt 19.6]. Quanto menos essa uniã o, que pertence à vida
espiritual, deve ser quebrada! Portanto, quando nos propomos a
anunciar a fé, devemos também anunciar o arrependimento. Nossa
mensagem é que Deus tem tido misericó rdia de nó s, perdoando
diariamente nossas ofensas e que somos justificados porque Jesus
Cristo nos reconciliou com o Pai; de modo que Deus nos tem como
justos ainda que sejamos míseros pecadores. Mas, enquanto
pregamos essa mensagem, devemos também adicionar que isso se
dá sob a condiçã o de que voltemos para Deus, como os profetas
proclamaram outrora.
Está escrito que Deus virá para salvar seu povo a fim de que o
remanescente de Jacó se afaste de toda iniquidade [Is 35.5, 8]. Visto
que Deus já pagou um preço tã o elevado para fazer-nos seus, nã o
convém que vivamos como bem nos apraz. Nosso Redentor quer ter
pleno direito sobre toda a nossa vida. Em consequência, lemos:
“renunciemos toda impiedade e desejos mundanos, vivamos nesta
presente era vidas santas, justas e só brias, enquanto aguardamos a
vinda deste grande Senhor, quando se manifestar em sua gló ria”.
Nã o bastava que o apó stolo dissesse que a gló ria de Deus, quando
fielmente proclamada, envolve instruçã o ou santidade de vida. Era
necessá rio discutir as implicaçõ es deste versículo — acima de tudo,
a necessidade de abandonar toda impiedade e desejos mundanos.
Paulo, numa palavra, mostra como, antes de Deus começar sua obra,
a natureza humana é profundamente pecaminosa, dada à impiedade
e apetites mundanos. Por impiedade, Paulo nã o quer dizer algum
tipo de superstiçã o, a sorte que faz os homens sá bios em seus
pró prios conceitos de modo que impingem idiotices como sendo
sabedoria de sua pró pria invençã o. Sã o obstinados, orgulhosos e
insolentes, destituídos de piedade. Por impiedade, Paulo salienta
mais o que fomos antes de Deus nos despertar para a veracidade de
sua Palavra. Nã o importa que impressõ es que busquemos dar, e qual
é o jogo do hipó crita, nã o há em nó s piedade real. Por exemplo, os
incrédulos gostam muito de exibir-se, demonstrando em seus rituais
uma profunda e fervorosa devoçã o. Todavia, entre os homens nã o
pode haver temor de Deus, a menos que sejam instruídos
apropriadamente. Também há paixõ es mundanas à s quais estamos
naturalmente sujeitos.
Devemos pesar cuidadosamente ambas estas coisas. Nã o podemos
discuti-las mais amplamente no momento; mas, ao encerrarmos,
devemos notar sucintamente o que Paulo quer que aprendamos da
doutrina do evangelho. Cabe-nos reconhecer o mal que jaz em nó s e,
uma vez feito isso, o odiemos. Esse é um ponto. O outro é este: os
homens nunca começarã o fazer o bem até que sejam recriados; até
que se tornem novas criaturas. Esta é obra de Deus; pois estamos
enganados se pensarmos que nossa disposiçã o natural é saudá vel.
Entã o Deus deve empregar o poder de seu Santo Espírito para
dominar as má s inclinaçõ es de nossa carne; de outro modo, seremos
deixados a consumir-nos em nossos pecados.
Agora fica claro que há dois pecados essenciais ou formas de mal:
menosprezo para com Deus, de modo que em nossa impiedade
deixamos de andar segundo sua vontade; e os desejos mundanos e
paixõ es nocivas que, até que Deus nos atraia a si, inevitavelmente
seguimos. É verdade que os incrédulos se persuadirã o facilmente de
que sã o maravilhosamente devotos. Quã o equivocados estã o!
Corretamente, pois, o profeta Isaías proclama que o Espírito do
temor de Deus é dado a nosso Senhor Jesus Cristo [Is 11.2]. Disto
aprendemos que só podemos obedecer realmente a Deus através da
fé. Daí, graças a todas as suas superstiçõ es, os infelizes incrédulos
lançam desdém contra Deus; fazem rodeios, mas nunca conseguem
aproximar-se dele exceto quando ele os atrai a si pela fé. Nossos
apetites mundanos também nos arrebatam; somos tã o afeitos à s
nossas má s inclinaçõ es, que nã o há em nó s fidelidade ou
integridade; nem bondade; nem brandura; nem pureza; nem
autocontrole. O mundo nos arremessa e nos agita até que Deus,
através de sua Palavra, reine em nó s e nos prontifique; até que
também ele nos dome mediante a açã o de seu Santo Espírito e nos
ensine a nã o nos portarmos com descontrole selvagem.
Isso, pois, é o que devemos apreender em primeiro lugar, se
queremos servir a Deus corretamente. Tal coisa nã o pode acontecer
até que os homens, envergonhando-se radicalmente, se ofereçam a
Deus e lhe roguem que ele os modifique a fim de que deixem de ser
o que outrora foram.
 
Oração
Agora nos prostremos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que no-los faça sentir
ainda mais agudamente. Que ele nos mostre continuamente sua
misericó rdia até que ele nos conduza ao seu reino; e, ao guiar-nos,
mais e mais mortifique nossos desejos pecaminosos, para que sejam
lançados para longe de nó s.
13. GRAÇA E GLÓRIA [Tito 2.11-14]
Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os
homens, educando-os para que, renegadas a impiedade e as paixões
mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e piedosamente,
aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso
grande Deus e Salvador Cristo Jesus, o qual a si mesmo se deu por nós,
a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar, para si mesmo, um
povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras.
 
Nesta manhã explicamos que, tã o logo somos informados da
bondade de Deus que nos é revelada na pessoa de nosso Senhor
Jesus Cristo, havemos de ser incitados a uma vida de santidade. Deus
reivindica justificadamente nossa posse, visto que ele já fez precioso
pagamento por nó s e, sobretudo, visto que, como já dissemos, ele
nos fez conhecer o propó sito de nossa redençã o. Como Zacarias diz
sucintamente nas palavras de seu câ ntico: “livres das mã os de
inimigos, o adorá ssemos sem temor, em santidade e justiça perante
ele, todos os nossos dias” [Lc 1.74, 75]. Ou, como escreve Paulo no
sexto capítulo de Romanos: “Porque o pecado nã o terá domínio
sobre vó s; pois nã o estais debaixo da lei, e sim da graça. Uma vez
libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça” [Rm 6.14, 18].
Como isto pode ser feito? Submetendo-nos à justiça de Deus. Aqui
nã o há força nem compulsã o: é uma submissã o que é melhor e mais
desejá vel que todos os domínios deste mundo. Pois, se o homem tem
de ter o livre-arbítrio a fim de gratificar seus apetites, é como se
estivesse mergulhado no mais profundo inferno, importunado e
arrastado pelo diabo segundo a vontade deste. Eis por que nossos
apetites estã o em inimizade com Deus; o pecado é nosso senhor e
faz mais estrago quando damos à nossa carne rédeas soltas.
Portanto, o ú nico caminho para sermos realmente livres é ceder o
controle a Deus e à sua justiça.
Entretanto, voltemos ao ponto que tocamos previamente, a saber,
nossa necessidade de abandonar toda impiedade e desejos
mundanos caso queiramos dedicar-nos a Deus. Agora sabemos que
nada se acha em nó s senã o iniquidade e que Deus nã o pode esperar
nada bom de nó s até que ele nos recrie. De outro modo, nã o
sabemos o que significa servir a Deus. Podemos pretextar ser mais
ou menos devotos, porém somos confusos e displicentes. Nã o temos
o menor prazer na verdadeira religiã o, a menos que Deus nos recrie
e nos transforme totalmente. Quanto aos incrédulos, de fato
parecem ter certo zelo para com a bondade, mas a Escritura nã o
pode mentir quando descreve os homens como rebeldes contra
Deus, pois vã o de encontro à sua vontade, e lançariam de si a canga,
se isso fosse possível. Por que eles confiam nas cerimô nias para
impor as coisas, se nã o escapam da mã o do Deus que seria seu juiz?
Se fossem bem sucedidos, seguramente desafiariam toda a
majestade e poriam toda a ordem de ponta cabeça. Assim, até que
Deus nos renove e nos conduza a si, permanecemos tã o ímpios que
viveríamos a vida das bestas, sem jamais pensar sobre o reino do
céu ou conhecer o que significa ter sido criado, tã o brutos seríamos
nó s.
Ora, visto que a impiedade é mais oculta, sendo um mal que supura
interiormente e nã o é tã o visível, Paulo adiciona as palavras desejos
mundanos , os quais dã o testemunho do que realmente jaz em nosso
íntimo — nosso desenfreado amor pelo mal. Em vez de permitirmos
que a natureza realize sua obra de guiar-nos a Deus, de modo que o
conheçamos e o contemplemos, somos piores que as bestas brutas.
Pois, embora os animais nã o possam distinguir entre certo e errado,
permanecem dentro de suas fronteiras e limitaçõ es. Embora
obedeçam a seus instintos naturais, ao menos repousam, uma vez
satisfeitas suas necessidades; e, uma vez hajam descansado, voltam
ao trabalho. Quando famintos, ingerem seu alimento; ou, senã o,
procuram-no. Entretanto, quã o deplorá vel é o homem, que tenta
ocultar seus instintos e sempre com atitudes falsas! Somos
temerá rios e impacientes em todas as nossas carências. Nã o
contentes com o repouso e com o conforto, somos felizes somente
quando semeamos confusã o e misturamos céu e terra. Em suma,
visto que vivemos emaranhados no aqui e agora, e visto que nunca
pensamos sobre o reino do céu, nã o poderíamos ser mais
depravados. Nã o há em nó s sequer uma gota de bondade, e, como
homens cegos, perseguimos nossos pró prios interesses. Estes visam
somente a este mundo, enquanto fomos criados para um fim muito
diferente. Nossa sorte seria muitíssimo desditosa se nã o
pudéssemos ver para além desta terra, onde sofremos tanta miséria,
tanta preocupaçã o, tanta tribulaçã o e tanta angú stia.
Os animais irracionais têm uma vida muito melhor. Somente temem
pelo presente, sã o imunes à preocupaçã o, nã o se deixam levar pela
ambiçã o e nã o podem prever a ocorrência de nenhum dano.
Diferentes dos homens, eles nã o sentem ciú mes uns dos outros; nã o
se preocupam pelo que porventura aconteça cem anos depois de sua
morte; só têm a ver com o alimento que está diante deles. Em
contrapartida, os homens se atormentam continuamente: e se Deus
nos abandonar, onde estaríamos? O mundo nos cerceia; é nosso;
estamos jungidos a ele — inclusive sepultados nele! Sem sentido, só
pensamos nesta vida transitó ria. Em consequência, vemos que, a fim
de aproximar-nos de Deus, temos que escapar da natureza que
herdamos de Adã o. Acima de tudo, temos de converter-nos em
novas criaturas. Eis por que Paulo primeiramente declara que
devemos renunciar à impiedade e aos desejos mundanos. Entã o, ele
segue descrevendo o propó sito essencial de tudo isso: vivamos no
presente século, sensata, justa e piedosamente .
Aqui, Paulo faz a vida cristã consistir de três coisas: santidade ou
reverência para com Deus, de modo que ele seja obedecido;
honestidade e probidade para com nossos semelhantes; e decência e
autodisciplina , de modo que nã o haja em nó s indisciplina, mas
sejamos temperantes e castos. Tal é a verdadeira perfeiçã o que Deus
demanda de nó s e a qual devemos almejar, caso queiramos ser
beneficiados enquanto passamos por esta vida. É verdade que a
Santa Escritura, como ficou dito, costuma mencionar somente duas
coisas quando ensina o que é a justiça perfeita. Justamente como a
lei inclui duas tá buas, assim a justiça consiste no serviço puro
prestado a Deus e na conduta íntegra e honesta para com nossos
semelhantes. Estas duas coisas sã o mui suficientes, mas a
autodisciplina ou sobriedade que Paulo descreve forma um terceiro
elemento que está indissoluvelmente vinculado aos outros dois.
Como podemos atingir o descanso espiritual que é requerido de nó s,
a menos que a sobriedade prevaleça? Ou, como podemos ser
pacientes em nossas afliçõ es? Previamente, Paulo estabelecera como
princípio bá sico o serviço a Deus e o amor que devemos ao nosso
semelhante. Todavia, nã o há contradiçã o no que agora ele anexa,
pois autodisciplina significa que o homem se controla como se fosse
um prisioneiro, de modo que nã o seja presa de seus prazeres, mas
dominado pela mã o Deus, submetendo-se, como Deus quer, ao seu
governo, e nã o à s suas pró prias inclinaçõ es.
Quando nossos coraçõ es sã o assim obedientes, temos aquela
sobriedade de que Paulo fala. Entã o vemos que, ao usar estas três
palavras, a intençã o de Paulo é mostrar que Deus nã o nos guia por
desvios e curvas, mas traça para nó s uma estrada segura e infalível,
contanto que nã o nos afastemos dela espontaneamente. Nã o
devemos ser como os que inventam devoçõ es solenes a fim de
agradar a Deus; eles se dã o a grandes lutas, mas termina resultando
em nada. Portanto, mantenhamo-nos na vereda certa, pois, como
Paulo deixa claro, os homens desperdiçam seu tempo quando se
extraviam por meio de sua imaginaçã o. O verdadeiro descanso
espiritual se encontra na certeza de que somente uma vida
governada pela lei de Deus lhe será aceitá vel.
Concernente à probidade, a palavra implica todas as formas de
conduta íntegra para como nosso semelhante; conduta que nos leva
a uma vida naturalmente honesta e justa, como Jesus Cristo mesmo
declara: “Fazei aos outros somente o que quereis que eles vos
façam” [Mt 7.12]. E, assim, quando tivermos negó cios com nosso
pró ximo, que nã o haja nenhuma fraude, má vontade ou crueldade;
nã o devemos recorrer ao furto ou buscar nosso pró prio lucro; nã o
devemos ser motivados por ambiçã o pessoal a fim de ludibriar
outros ou obter deles o melhor. Em vez disso, tentemos
compartilhar com nossos iguais, de modo que ninguém tenha
motivo de queixa contra nó s. Especialmente, nã o busquemos
beneficiar-nos, mas visemos ao que trará benefícios aos demais.
Para descrever a probidade numa palavra, significa dar a cada
pessoa o que é seu por direito. No entanto, a definiçã o de nosso
Senhor Jesus Cristo é ainda mais simples: fazer a todos o que
queremos que eles nos façam.
É claro, podemos argumentar infindavelmente sobre o que nos cabe
fazer. A esse respeito, nenhum de nó s necessita de conselho! De fato,
aquele que tem motivo para recorrer à lei buscará informaçã o sobre
como preparar seu processo tã o plausivelmente quanto possível, de
modo que possa defender seus direitos com mais eficá cia. Mas nã o
há ninguém, por mais ignorante ou obtuso, que nã o tenha
perspicá cia de dizer: “Isto me pertence!”. Naturalmente, ele pode
nã o ser capaz de defender seu caso tã o plenamente quanto de
explicar todos os seus direitos; mas, em alguma medida, ele é bem
capaz de dizer: “Isto é meu, e estou sendo esbulhado de meus
direitos!”. Por que, pois, somos tã o míopes que fracassamos em
manter os direitos de outrem? É porque somos conspurcados. Sem
dú vida, nossas pró prias tendências naturais propiciam nossa falta
de probidade. Se alguma causa geral nos é confiada, a qual nã o
suscita animosidade nem preconceito, somos bastante rá pidos em
dizer: “Isto é o que se deve fazer. Esse é o curso certo a tomar”. Nã o
carecemos de ser grandes alunos, nem temos de ir à s melhores
escolas a fim de julgar rá pida e decisivamente quando se põ e diante
de nó s um caso. Mas, quando ocorre algo que enviesa nosso
julgamento, perdemos todo o senso do que é direito.
Por isso devemos aprender que, para agradar a Deus, temos de viver
com nossos semelhantes, de tal maneira que nã o demos nenhum
motivo de queixa. Esse é um ponto. No entanto, há muitos que
labutam para agradar a Deus por meio de cerimô nias, como no
papado, onde se praticam muitas dessas coisas. Sua intençã o é
gratificar a Deus, todavia alguns sã o dados ao furto; outros, à fraude
ou malícia; enquanto outros ainda se deixam devorar pelo orgulho e
ambiçã o. Muitos querem que se cante uma missa a fim de redimir-
se, mas o que é isso senã o mera zombaria de Deus? Nã o é a uma
trivialidade como essa que Deus nos chama. Ao contrá rio, devemos
aprender a praticar o que é certo e fazer aquilo que é nosso alvo. Os
verdadeiros frutos que Deus requer e reconhece sã o estes: que
andemos retamente, assistindo aos que necessitam de nosso socorro
e abstendo-nos de toda injú ria e ofensa.
Em adiçã o à probidade há a santidade. E isso está certo, pois nã o
basta desfrutar da aprovaçã o dos homens e evitar prejudicar
alguém. Deus merece vir em primeiro lugar. Se as esposas, como já
se disse, devem estar sujeitas aos seus esposos, quanto maior, por
comparaçã o, é nosso dever para com Deus! As esposas sã o parceiras
de seus esposos, contudo devem-lhes respeito como sua cabeça e
também devem humilhar-se. Aqui, todavia, a questã o diz respeito a
nosso Senhor Jesus Cristo, que fez conosco um consó rcio espiritual,
um que é muito mais sagrado que todos os consó rcios que já foram
feitos. Todavia, se traímos nossa palavra empenhada, se alguns se
envolvem em superstiçã o e idolatria, intrometendo-se ou
espojando-se na imundícia papista, o que diremos? Naturalmente,
podem arguir que a ninguém ofendem. Ninguém talvez aqui em
baixo, mas a majestade de Deus é com isso profanada. Alguém pode
objetar: “Eu nã o furto”. Nã o obstante, você tem injuriado a Deus!
Paulo diz a mesma coisa [Rm 2.22, 23]. Portanto, temos que olhar
para nó s mesmos e, quando nos é dito que devemos viver retamente
entre os homens e nã o causar dano a ninguém, mas, antes, fazer-lhes
o bem, condenar estes míseros bobos que se ocupam com reles
ninharias e que buscam honrar a Deus com suas infindá veis
macaquices.
Tudo isso constitui um terrível equívoco. Por quê? Porque Deus
quer misericó rdia, e nã o sacrifício; ele requer retidã o, fé e juízo,
como diz por intermédio de seu profeta e como também declara
nosso Senhor Jesus Cristo [Is 56.1; Os 6.6; Mt 9.13; 12.7; 23.23].
Deus testa se o tememos ou nã o, vendo se andamos justamente e
vivemos inocentemente uns com os outros. Isso é o que ele
demanda.
Nã o obstante, Deus mesmo nã o deve ser ignorado. Devemos volver-
nos para ele e depositar toda a nossa confiança em Jesus Cristo, em
cujo nome devemos sempre invocar a Deus Pai, visto que a
necessidade nos compele e nos arrasta a cada minuto do dia. Temos
de glorificar a Deus, olhando para ele em cada bênçã o e certificando-
nos de que tiramos proveito de tudo o que nos é ordenado na
primeira tá bua, a qual devemos especialmente guardar. Temos
também de seguir o restante, pois a lei de Deus nã o pode e nã o deve
ser dividida em duas. Deveras há duas tá buas que devem ser
distinguidas, de modo que saibamos que o serviço de Deus ocupa o
primeiro plano, e que o amor para com os homens lhe é anexado.
Ainda assim, Deus nã o deu aos judeus uma parte de sua lei e a outra
aos gentios. Ele quis que todos a recebessem, pois ela é um todo
indiviso que ninguém pode licitamente separar. Como diz a
Escritura: “Maldito aquele que nã o confirmar as palavras desta lei,
nã o as cumprindo” [Dt 27.26].
É verdade que ninguém pode cumprir tudo o que Deus ordena —
longe disso! E ainda quando Deus nos guia por seu Santo Espírito,
somos sempre impedidos por nossa fraqueza. Nã o obstante,
devemos fazer da submissã o a Deus nosso alvo em todo o tempo e
em todas as coisas, visto que aquele que proibiu a imoralidade
também proibiu o roubo, no dizer de Tiago [Tg 2.11]. A majestade de
Deus é injuriada toda vez que nos entregamos ao pecado em
qualquer forma. Eis por que devemos aprender a combinar a
santidade com a probidade e a honestidade, e a viver entre os
homens sem causar-lhes injú ria, ofensa ou violência, para que a
Deus nã o se neguem seus direitos e nosso culto nã o deixe de ser
puro. No entanto, nã o devemos pensar que nó s mesmos nos
absolvemos se a esse respeito nossos iguais nã o nos condenam. Pois,
se diante dos homens ocultarmos nossos verdadeiros egos e nos
envergonharmos de seguir a Jesus Cristo, por sua vez ele nos negará
diante dos anjos do paraíso. Portanto, o corpo e a alma devem ser
dedicados a Deus — devemos estar certos disso. Se uma mulher
pretendesse fazer barganha com uma libertina, ela já seria
considerada imoral. Se um servo nã o só admitisse que seu senhor
fosse difamado, ou um filho a seu pai, mas também se juntasse com
seus difamadores como cú mplice, o que diríamos de tal traiçã o? Se
nos associamos com os perversos e dissimulamos de tal maneira
que pareçamos aprovar sua impiedade, seguramente traímos a
Deus. Daí, nã o nos gabemos quando os homens nos aplaudem ou
encobrem nossa impureza. Somos responsá veis por aquele que nos
condenar duas vezes mais, se buscamos mascarar sua verdade com
nossa hipocrisia e fú til impostura. Em suma, isso é o que este texto
tem a ensinar-nos.
Finalmente, há a palavra “sobriedade”. Como já foi dito, isso nã o
acresce nada de novo à lei de Deus, mas ilustra que sorte de
santidade e retidã o se acha implícita. Pois, se nos falta o
autocontrole, nã o podemos render-nos a Deus quando ele nos
enviar afliçõ es com o fim de nos disciplinar. Se meramente
definhamos sobre a terra, cercados por muitas misérias e
tribulaçõ es, acaso seremos capazes de cultuar nosso Deus e louvar
seu nome sem restriçã o e com a sobriedade de que Paulo fala? Se
corremos à s cegas como gado estourado, sentindo paixã o pela
dança, por câ nticos vulgares e escâ ndalos desse tipo — se tudo fosse
um caos, eu indago, como poderia alguém contentar-se em viver
pacificamente com sua esposa sem pô r em risco o casamento de
outro? Se ocorre a transgressã o, se o comportamento dissoluto e
desordenado é tolerado, se houver oportunidade, com certeza
vicejará a embriaguez e o adultério, e a fidelidade e a decência entre
os homens desaparecerã o. Haverá uma infindá vel e livre competiçã o
em que a brutalidade, o furto, a extorsã o e o banditismo correrã o à
solta. Portanto, o termo “sobriedade”, como a mençã o anterior de
Paulo à paciência, nada adiciona à lei. A intençã o do apó stolo é
simplesmente ver como Deus deve ser obedecido. Temos de lançar
fora tudo o que é supérfluo neste mundo, de modo que Deus nos
guie tranquilamente e nos governe.
A seguir, lemos que, enquanto vivemos vidas puras e só brias,
estamos aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória
de nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus. Isto é, Deus nos porá
em teste enquanto estivermos aqui na terra. Seu desejo é ver o que
de fato somos. Daí esta vida ser como um contínuo conflito no qual
Deus nã o nos deixa ociosos, mas nos testa para darmos prova segura
do temor e honra que lhe devemos. Ora, isto é muitíssimo ú til, visto
que todos nó s, bem o sabemos, nos queixamos de que Deus nã o nos
dá o que desejamos, mas faz exatamente o oposto; queremos que ele
nos conduza como gostaríamos, e que cada um seja seu pró prio
senhor.
Portanto, Paulo declara que durante esta vida transitó ria é justo que
Deus nos treine para seu serviço e teste nossa atitude para com ele.
Entretanto, com a passagem do tempo, nos cansamos. Daí sermos
ensinados a aguardar a esperança da vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo. Se estivermos prontos a servir a Deus, nã o devemos
preocupar-nos com o atual estado do mundo. Antes, contemplemos
a esperança que nos é dada, a saber, que o Filho de Deus virá para
julgar o mundo. Observemos, pois, em primeiro lugar, que Deus
deseja testar seu povo fiel, permitindo-lhe, ao longo da vida, que seja
atribulado e inquietado e passe por muitas afliçõ es. Quando
ocorrem eventos desfavorá veis, é como se Deus se esquecesse deles
e, aliá s, fosse seu inimigo. Entretanto, é indubitá vel que ele age com
boa razã o, para que, por esses meios, sejamos provados.
Quando nos é dado ouro ou prata, temos que saber se estes sã o
genuínos; quando ficamos em dú vida, nã o hesitamos em testá -los
pelo fogo. Acaso nossa fé, no dizer de Pedro, nã o é mais preciosa que
todos os metais perecíveis que sã o testados com tal cuidado [1Pe
1.7]? Em consequência, uma coisa tã o nobre como nossa fé deveria
permanecer em admiraçã o a Deus e, assim, ser bem e
verdadeiramente provada. Tal é o propó sito das afliçõ es que Deus
nos envia. Ele nã o quer que busquemos nossa pró pria vantagem,
mas quer que sirvamos até mesmo os ingratos que, em troca do bem
que tentamos fazer-lhes, nos pagam com o mal. Deus ordenou
eventos desse tipo, e está certo de agir assim. Esta é a primeira coisa
a termos em mente.
Pensemos também na brevidade de nossa vida, para que nã o
percamos o â nimo, pois sabemos o quanto somos débeis. Até mesmo
os que têm revelado algum desejo de dedicar-se a Deus e que têm
dado poucos passos adiante, pensam que já estã o autorizados a se
deter na metade da jornada quando se acham cansados. “Será
sempre assim?”, indagam. Nã o refletem sobre a fragilidade de nossa
vida. Se alguém tem apenas um curto trajeto a percorrer, entã o
recobra o â nimo; por mais exausto que se sinta e por mais fracas
que sejam suas pernas, ele coxeia até chegar em casa. E, mesmo que
um homem tenha viajado por dez ou doze dias, ao aproximar-se de
seu destino, ele celebra e se anima a continuar até o fim. Entã o,
quando vemos que nã o estamos longe do alvo que temos de
alcançar, por que nã o nos encorajamos a apressar, especialmente
quando o pró prio Espírito Santo nos impele?
Todavia, nã o basta reconhecer que a vida é curta e fugaz; que nosso
curso logo terminará e que, portanto, nã o necessitamos esmorecer.
Devemos também contemplar a esperança a que fomos chamados.
Por quê? A razã o de nã o nos dedicarmos arduamente a Deus é que
nã o vemos para nó s mesmos benefício nem lucro tangível. Se pelo
menos Deus estivesse lá para animar-nos! Ora, Deus nã o espera que
o sirvamos primeiro antes de nos abençoar. Nã o obstante, ele nã o
quer tornar nossa vida neste mundo fá cil demais, a ponto de
corrermos o risco de cair no sono. Lembremo-nos do que ele disse, a
saber, os que se interessam somente pelas coisas atuais, já
receberam seu galardã o [Mt 6.2, 5, 16]. Nosso Senhor, em
contrapartida, nos convida a fixar os olhos no reino do céu. Esta vida
é saturada de muitas angú stias e tribulaçõ es, que nos cercam de
todos os lados. Os sofrimentos que suportamos sã o estocadas da
espora pelas quais Deus nos aguilhoa, a fim de atrair-nos a si, volver
nossos pensamentos à s coisas celestiais e afastar-nos deste mundo.
Eis por que Paulo fala, particularmente aqui, da esperança. O que ele
sugere é que nã o devemos surpreender-nos se os homens sã o mais
que frios quando se põ em a servir a Deus. Essa é a razã o por que
seus olhos estã o fixados nas coisas terrenas, as quais sã o sua ú nica
preocupaçã o. Em vez de contemplar a vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo, nos desviamos dela; o mundo nos retém em sua escravidã o;
fascina-nos com suas seduçõ es e nos lesa de todo sentido.
Aprendamos, pois, que o ú nico modo de servirmos a Deus é
passarmos velozmente por este mundo, cô nscios de que ele nos
colocou na terra sob a condiçã o de transitarmos por ela como
estrangeiros e nã o fazer nela nosso ninho. E, embora ele nos
conceda períodos de descanso, sigamos em frente, enquanto
olhamos para ele e para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. É
certo que, até que alcancemos aquele alvo, por maior que nos pareça
ser, tudo dentro de nó s é vaidade.
A primeira regra de uma vida bem ordenada é compreender que
Deus nã o nos proveu de um perene alojamento aqui; ele quer que o
alcancemos na certeza da bendita vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo. Entã o, à palavra “esperança” Paulo anexa “a manifestaçã o da
gló ria de nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo”. É como se
Paulo dissesse: “Meus amigos, nã o pretendemos chegar como que
por acaso no reino do céu, na vaga esperança de que podemos
alcançá -lo. Sabemos quem nos fez esta promessa. Deus é fidedigno,
de modo que podemos confiar em sua fidelidade”.
Essa é uma coisa a notar. Quanto ao mais, temos uma firme certeza e
garantia. Como poderia ser de outra maneira? Lembremo-nos de
que nosso Senhor Jesus Cristo veio ao mundo. Acaso é uma coisa de
somenos importâ ncia que o Deus eterno redundasse em nada,
assumindo nossa natureza humana e o sofrimento da morte — uma
morte ignominiosa aos olhos dos homens, uma maldiçã o e
condenaçã o à vista de Deus? Assim, o Filho de Deus, a cabeça dos
anjos, a fonte da vida, a imagem viva do Deus a quem pertence toda
a gló ria e majestade, desceu e se fez um de nó s e levou em si todas as
enfermidades, exceto o pecado. De fato, nã o houve nele mancha
alguma, senã o que ele foi sujeito ao calor e ao frio e a todos os
demais sentimentos. Numa palavra, ele assumiu todas as nossas
fraquezas humanas e finalmente foi amaldiçoado por Deus, nã o por
sua pró pria conta, mas como o portador de nossos pecados. A
maldiçã o de Deus caiu sobre sua cabeça e ele veio a ser o principal
devedor, a fim de que fô ssemos inocentados. Achamos entã o que
Deus, havendo feito tais coisas, permitirá que sua paixã o e morte
sejam infrutíferas, se crermos nele, ou que ele, havendo sido
crucificado e agora estando no céu, nos abandonará , nó s que somos
seus membros? Sua morte e paixã o se destinam a ter seu pleno
efeito.
Estamos certos de que seremos açoitados por sentimentos de
desconfiança e de que diremos: “Como é possível que isto seja
assim? Nã o vejo o Filho de Deus: ele está escondido de nó s; contudo
sabemos que ele é o Salvador”. Quã o sem propó sito seria se ele nã o
aparecesse em sua gló ria! Sua morte e paixã o nã o passariam de um
empreendimento que ele tivesse insinuado! O que Deus ganharia
alterando o curso da natureza de tal modo que descesse à terra,
assumisse a forma de um pecador — ainda que pecador ele nã o
fosse — e se manifestasse em carne, se ele se recusasse a nã o mais
nos conhecer? Por que ele permitiria que tudo isso lhe escapasse,
enquanto nã o recebeu nenhum benefício? Abracemos, pois, a
salvaçã o que ele adquiriu para nó s, de modo que tenhamos a certeza
de que Cristo, nosso Senhor, se manifestará , ainda que agora nã o o
vejamos. Lembremo-nos também que Paulo adverte os colossenses
a nã o se admirarem se hoje definhamos no mundo e nada lucramos
servindo a Deus. Pois os crentes sã o angustiados quando veem os
perversos prosperando, enquanto eles mesmos sã o oprimidos com
dureza. Perguntam: “Onde Deus está ? Ele se esqueceu de nó s?”.
Todavia, Paulo nos aconselha a suportar pacientemente todas as
coisas, porque, como ele diz, nossa vida nã o está em nó s, e sim em
nosso Senhor Jesus Cristo [Cl 3.3].
Agora Jesus Cristo está na gló ria do Pai até que nos seja revelado no
ú ltimo dia. Entã o, diz Paulo, nã o desmaieis se vossa vida está oculta
e se vos assemelhais a á rvores no inverno. Quando as folhas caem, a
floresta parece seca e morta, mas a vida continua a existir em seu
interior. Recebei, pois, a nosso Senhor Jesus Cristo e confieis
plenamente nele, sabendo que vossa vida está enclausurada na dele.
Visto que ele ainda nã o se revelou, aguardemos com paciência e nã o
nos atormentemos se temos que enlanguescer-nos em meio a tanta
miséria e afliçã o.
Paulo, havendo falado desta era atual, em outro lugar descreve como
uma forma fugaz [1Co 7.31], nos reconduzindo ao nosso Senhor
Jesus Cristo e nos exortando a perseverar na esperança. Portanto, a
constâ ncia dos crentes está toda na esperança, pois é a esperança
que nutre nossa fé. Qual, pois, a diferença entre fé e esperança? Pela
fé nos aferramos à s promessas, nunca duvidando de que ele as
cumprirá . No entanto, nã o basta haver crido em Deus de uma vez
por todas. A fé deve ser sustentada constantemente, o que é possível
graças à esperança. Assim, a esperança age como guia da fé, de modo
que ela nã o fenece como algo que é de cará ter temporal — obrigado
e sujeito à decadência; ela persiste até o fim. É verdade que, no
ínterim, teremos muitas batalhas a enfrentar. Devemos lutar se
quisermos manter a esperança, e nã o desfalecer ou deixá -la escapar.
Podemos muito bem ser desencorajados por tal ensino, se nã o
formos firmemente convencidos de que, uma vez que Jesus Cristo,
que é nossa vida, ainda tem que se manifestar, entã o nossa vida está
a salvo e escondida nele; e embora nã o possamos vê-lo, os olhos da
fé estã o abertos. Conhecemos aquele cujas mã os retêm a fiança que
fizemos. Suponhamos que um homem estivesse exposto, em sua
pró pria casa, ao perigo de fogo, ao ataque hostil ou roubo, mas tinha
um lugar a salvo, em alguma parte, ou tinha um amigo em quem
podia confiar. Se ele lhe desse seu tesouro para mantê-lo a salvo, nã o
retrocederia sequer um minuto por dia para inspecioná -lo ou
classificá -lo peça por peça; entã o, descansaria satisfeito. Esse
homem se sentiria feliz em deixar tudo o que possuía nas mã os de
seu amigo, porque mesmo depois de um ano ainda confiaria nele.
Dá -se o mesmo com Deus. Ele vela cuidadosamente por nossa
salvaçã o, a qual, se deixada à nossa guarda, estaria em grande risco.
O diabo logo a arrebataria; Deus, porém, tem seus olhos postos nela
e a mantém a salvo. Ele é seu guardiã o. Como, pois, se poderia dizer
que o honramos se nã o depositamos nele a confiança de que ele a
guarda com firmeza e segurança?
Uma pessoa a quem algo é confiado e que fracassa em protegê-lo é
culpado de furto — furto da pior e mais vil espécie, visto que a
confiança foi traída. Portanto, porventura cremos que Deus pode ser
acusado de infidelidade, já que, tendo-se incumbido de nossa
salvaçã o, reiteradamente prometeu concretizá -la? Entã o, sempre
que formos tentados ao desâ nimo, ou sempre que nos sentirmos
abatidos e apá ticos, aprendamos a contemplar a vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo e a confiar na salvaçã o prometida que estará
pronta para nó s. É assim que devemos aplicar o ensino de Paulo.
Notamos que ele fala da “gló ria do grande Deus e de nosso Senhor
Jesus Cristo”. Ora, é importante nã o separar Deus Pai e seu Filho. O
apó stolo ensina claramente que Deus se manifestará na pessoa de
nosso Senhor Jesus Cristo, como quando ele diz que Deus entã o será
tudo em todos [1Co 15.28]. Devemos ser cuidadosos em nã o seguir
os que têm negado a Deidade de Jesus Cristo e que pensam nele
como algum deus recém-criado. Foi assim que se deu com aquele
odioso homem que foi punido nesta cidade. Prontamente confessava
que Jesus Cristo era Deus, porém mantinha que ele nem sempre fora
Deus, mas assumiu sua essência divina na criaçã o do mundo; e que
Deus o Pai o fez passar por um “alambique”, como ele o chamava;
entã o, quando nasceu no mundo, ele apareceu como Deus. Aí você
tem uma Deidade montada à s pressas! [22] Um grupo de pessoas tem
mantido este ponto de vista, e, como os hereges de outrora, tem se
armado com este versículo: “Oh!”, eles clamam, “Porque aprouve a
Deus que, nele, residisse toda a plenitude” [Cl 1.19]. Tais pessoas,
digo, fazem zombaria da Santa Escritura, pois Paulo insiste que
devemos pensar na majestade de Deus em termos unicamente de
Jesus Cristo. Como ele diz em outro lugar: “Porquanto, nele, habita
corporalmente, toda a plenitude da Divindade” [2.9]. Naquele
versículo, ele usa um termo grá fico com o intuito de ajudar-nos a
entender mais facilmente a essência infinita que está em Deus, [23] e
tornar nossa ingratidã o mais aversiva caso imaginemos Deus como
sendo outro além do que ele é em Jesus Cristo.
Em consequência, Paulo declara que, na vinda de Cristo, nó s
veremos a Deus em toda sua grandeza. Mas, por que ele fala da
grandeza de Deus? Porque, no presente, ela é diminuída por nossa
ignorâ ncia e nossa falta de confiança. É para vergonha nossa que
somos tã o estú pidos! De fato, com nossos lá bios declaramos
prontamente que Deus é grande, incompreensível e tã o elevado que
confunde todo pensamento. Temos prazer em confessar isso;
contudo, em todo tempo o tratamos com desdém. Ninguém confia
nele; e ele nã o pode arrancar de nó s obediência nenhuma que honre
sua majestade. Os homens ignoram seu reino celestial e se aferram
ardentemente à menor chance de lucro pessoal. Desafiam
abertamente a Deus e nã o levam em conta suas promessas no
evangelho. Em suma, os homens sã o tã o obstinados que só querem
rebaixar a Deus, e se nã o fô ssemos tã o complacentes, veríamos que
toda nossa vida tende a isso.
Assim, até que Deus nos atraia a si, nossa natureza busca somente
depreciar sua gló ria e, aliá s, se tal fosse possível, até extingui-la
completamente. Mas, diz Paulo, se cessarmos de cuidar das coisas
atuais e de entreter outros motivos mundanos, veremos a grandeza
de Deus. Nã o que Deus em si se fará maior, pois bem sabemos que
ele, em si mesmo, nã o aumenta nem diminui: significa apenas que o
veremos com olhos diferentes. Entã o, asseguremo-nos de que
nenhum de nó s seja envergonhado. Quanto aos perversos,
certamente o contemplarã o a despeito deles mesmos, e nã o verã o
nenhum outro Deus grande além daquele que é o nosso Redentor,
Jesus Cristo. Porque, como notamos no versículo já citado, ele se
acha tã o unido a Deus Pai que nele habita toda a plenitude da
Divindade. Seja como for, os perversos e os réprobos contemplarã o
este grande Deus e se sentirã o totalmente perdidos. De nossa parte,
resolvamos contemplar a grandeza de Deus pela fé. Os homens
dificilmente nã o tentarã o obliterá -la e em sua arrogâ ncia desafiarã o
a Deus, ridicularizarã o seu evangelho e de tal modo proclamarã o
seus sucessos que, em comparaçã o, os que andam em mansidã o
parecerã o como nada. Haverá hipó critas que dissimulam e buscam
tã o somente encobrir a gló ria de Deus. Muito embora vejamos tais
coisas, nã o obstante devemos atentar com os olhos espirituais da fé
na grandeza que está em Deus, até que, por fim, o vejamos face a
face e sejamos transformados naquela gló ria da qual já portamos
algum vestígio, visto que Deus reina em nó s mediante seu Santo
Espírito. Esse é o teor desta passagem. Consideraremos o restante
em uma oportunidade posterior.
 
Oração
Agora, prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que no-los faça sentir
mais intensamente; e, ao senti-los, de tal modo os odiemos que nos
acheguemos a ele ainda mais e cresçamos em seu temor.
Aprendamos a livrar-nos deste mundo e dos muitos embaraços que
impedem nossa obediência. Fixemos sempre nossos olhos em Jesus
Cristo, sabendo que, quando ele se manifestou uma vez para se
oferecer em sacrifício, assim também virá com todos os benefícios
de sua morte e paixã o, tomando-nos para si e confirmando a
salvaçã o que nos é revelada nele, para que ela se cumpra em nó s,
que somos membros de seu corpo.
 

14. O MANDATO DO PREGADOR [Tito 2.15-3.2]


Dize estas coisas; exorta e repreende também com toda a autoridade.
Ninguém te despreze. Lembra-lhes que se sujeitem aos que governam,
às autoridades; sejam obedientes, estejam prontos para toda boa
obra, não difamem a ninguém; nem sejam altercadores, mas cordatos,
dando provas de toda cortesia, para com todos os homens.
 
Já vimos por que o Filho de Deus se entregou à morte para nossa
redençã o. Foi para assegurar que seríamos um povo separado e
santificado. Porque, visto que ele nos resgatou da escravidã o a
Sataná s, é pró prio que honremos ao nosso Redentor, perseguindo a
justiça que ele revelou a nó s. Todavia, visto que esta doutrina parece
muito geral e visto que as pessoas prefeririam muito mais ouvir o
que lhes agrada, Paulo nos exorta com toda veemência com o intuito
de realçar este ponto. Se havemos de servir à igreja de Deus,
devemos exortar todos os que com tamanho custo foram redimidos
a que se devotem à prá tica do bem; e, uma vez que tenham sido
ensinados, devemos estimulá -los e admoestá -los.
Nã o basta simplesmente ensinar, a menos que haja também acicate
a despertar os retardatá rios. Paulo chega a dizer que devemos
repreender os que erram, e repreendê-los severamente. Visto que
há muitos que escarnecem da Palavra de Deus, ele requer que os
pregadores proclamem-na com autoridade, a fim de mostrar a que
Senhor eles servem e em nome de quem eles falam. Devem envidar
todo esforço para ver que sejam ouvidos com todo respeito e
humildade. Aí temos o primeiro tema de Paulo. Ele segue discutindo
nosso dever de obedecer aos magistrados e de comportar-nos
pacificamente. Os que se chamam crentes devem mostrar
moderaçã o; devem nã o só refrear-se de todo dano e agressã o, mas
devem suportar o sofrimento com paciência; devem também dar o
melhor que puderem para manter a harmonia e a fraternidade entre
si. Nem devem importunar os incrédulos, mas tentar ganhá -los com
gentileza. Isso é o que Paulo ensina em segundo lugar.
Ora, como já dissemos, nada disso é supérfluo. A intençã o de Paulo é
reforçar os pontos que elaborara previamente. Nó s nos entediamos
logo, se nã o nos disserem algo novo. Chegamos a crer que
desperdiçamos nosso tempo se nã o houver algo que instigue coceira
em nossos ouvidos e se todas as novidades que ouvimos nã o passam
de conto de fada. Contudo, ignoramos o fato de que necessitamos
manter na mente nosso dever, pois nã o podemos demonstrar que
conhecemos a vontade de Deus até que reajamos a ele e, assim,
mostremos que já fizemos boa proficiência na escola de Cristo. Sabe-
se muito bem que, ainda que instados a fazer a mesma coisa vez
apó s vez, nã o prestamos atençã o. Se fô ssemos deixados nesse
estado, o que ganharíamos por haver repetido a Palavra de Deus
três ou mesmo dez vezes mais? Daí, visto que os homens sã o
desordenadamente inclinados a receber de bom grado um
amontoado de conversaçã o inú til, Paulo os traz de volta à s coisas
que realmente edificam.
Entã o, ele se volta aos pastores cuja tarefa é guiar a igreja, dizendo:
“Eles nã o têm nada a ver com especulaçã o fú til. Deus espera que sua
Palavra seja proveitosa e sirva a um propó sito”. Como isso pode ser
feito? Lembrando cada indivíduo de seu dever, de modo que,
quando tivermos aprendido a graça que Deus tem para nó s e as
riquezas de sua mercê manifestas em nosso Senhor Jesus Cristo,
olhemos para nó s mesmos, a fim de que, em nossa ingratidã o, nã o
sepultemos a memó ria de redençã o. Ao vivermos vidas que sã o boas
e santas provaremos que somos o povo de Deus e membros de sua
família, visto que a ele agradou adotar-nos. Reitero que nã o basta
que os incumbidos do ensino façam isso e nada mais. Cada pessoa
que vai à igreja deve aprender a aceitar tudo o que é para seu bem. O
mesmo se aplica quando lemos a Santa Escritura. Em suma, sempre
que ouvirmos o que Deus fez a nosso favor, devemos lembrar-nos de
sua infinita bondade para conosco e, por nossa vez, deixar-nos
estimular a honrá -lo e servi-lo.
Em consequência, Paulo requer que o ensino seja seguido de
exortação . A palavra “exortar” significa que temos de ser
despertados de nossa letargia, pois sabemos que, se a Escritura for
meramente explanada, ela fenece e nã o somos atingidos até o
â mago. A menos que o ensino seja corroborado por meio de
exortaçã o, ele é frio e nã o consegue traspassar o coraçã o; no
entanto, quando há exortaçã o, refletimos mais seriamente sobre nó s
mesmos.
Há três tipos de exortaçã o. Em primeiro lugar, devemos repreender
os que sã o tã o displicentes que, mesmo quando os pressionamos
com firmeza, nã o se comovem. Portanto, tais pessoas devem ser
ameaçadas com o juízo de Deus e claramente instruídas de que Deus
punirá os que escarnecem de sua Palavra. Devemos tratá -las de tal
modo que consigam ver o poder e a autoridade da doutrina que têm
desprezado.
Em segundo lugar, notamos que, muito embora exista em nó s o
temor de Deus, nã o basta que queiramos ouvir e aprender o que a
Escritura contém; devemos também estar abertos ao ensino e ser
bastante mansos para aceitar os castigos que nos estã o reservados.
Por mais duros e rudes que eles possam ser, já que nã o podemos ser
atraídos a Deus de outro modo, nã o devemos tornar-nos
impertinentes ou mal-humorados. Se os homens nos irritarem e nos
tratarem mais severamente do que gostaríamos, nã o devemos
volver-nos contra a sã doutrina ou permitir que ela seja escarnecida.
Devemos continuar conservando o que Deus sabe ser-nos melhor.
Naturalmente, é possível que nos queixemos: “Olhem aqui, nã o basta
que tenhamos vindo para ser ensinados? Cada um pode decidir
consigo mesmo como se comportar. Nã o é certo que devamos ser
instados e açulados pela força. Esse nã o é o caminho certo”.
Dizemos, porém, que isso seria resistir a Deus, nã o aos homens!
Assim, os que dizem tais coisas mostram que nunca olharam
honestamente para suas consciências com o fim de descobrir o que
está ali. Aquele que realmente se conhece entende que Deus espera,
com razã o, que sejamos, respectivamente, exortados e repreendidos
por sua Palavra.
Diga-me, alguém pode conhecer a si mesmo melhor do que é
conhecido por Deus? Nada vemos com clareza, muito menos os
nossos pecados, como Joã o enfatiza [1Jo 1.8, 10]. Deus tem deles
uma visã o muito mais clara: pois, a cada pecado que é de nosso
conhecimento, Deus conhece cem! Ora, uma vez que Deus o vê,
quando tivermos aprendido as coisas que nos sã o boas, quando de
fato tiverem sido bem discutidas entre nó s a ponto de serem
totalmente familiares, ainda nã o será suficiente. Temos de ser
aguilhoados por exortaçõ es fortes e vigorosas; e também
repreendidos, como se tivéssemos enfermidade oculta. Visto que
nossas doenças costumam ser secretas, necessitamos que Deus
intervenha e esquadrinhe até a pró pria medula de nossos ossos.
Como o apó stolo escreve na carta aos Hebreus: “Porque a palavra de
Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois
gumes, e penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e
medulas, e é apta para discernir os pensamentos e os propó sitos do
coraçã o” [Hb 4.12]. Visto que temos uma Palavra de Deus tã o clara,
por que resistir ainda mais? Se o fizermos, esse é um sinal seguro,
como eu já disse, de que nunca pensamos seriamente sobre nó s
mesmos, mas fechamos nossos olhos aos nossos sentimentos e
somos como os hipó critas, só pedindo que haja condescendência
para conosco. Portanto, deveríamos atentar bem para as palavras de
Paulo. A Palavra de Deus nos é dada para guiar nossos passos.
Além disso, nã o basta que nos mostrem a vereda adiante de nó s,
pois somos indolentes e displicentes, e inclusive nossas boas
intençõ es logo se esfriam. Em consequência, precisamos ser atraídos
pela exortaçã o, de modo que, se acontecer de voltarmos as costas a
Deus ou nos desviarmos em algum ponto, há este segundo remédio
que acabamos de descrever.
Agora temos de mencionar um terceiro remédio. É quando Deus nos
ensina por meio de ameaças a dobrar nossa cerviz em submissã o a
ele. Eis como sua Palavra é mais bem usada, e também por que
devemos atentar paras os sermõ es e ler a Santa Escritura. Desta
maneira aprendemos o que Deus tem a ensinar-nos, de modo que
somos motivados a obedecer-lhe. Entretanto, caso isso nã o baste,
devemos ser dissecados em nosso íntimo e passar a detestar-nos.
Em suma, ninguém deve permitir-se cair no sono e, se isso ocorrer,
que consinta em ser despertado. É isso que temos de nos lembrar
aqui.
Quando Paulo diz a Tito que fizesse tudo isso com autoridade ou
comando , percebemos que nã o há como conceber um Mestre tã o
poderoso quanto Deus. Todavia, há muitos, como vemos hoje, que
sã o francamente rebeldes. Alegam com muita certeza que sã o
cristã os, mas, se a Palavra de Deus lhes é pregada, querem que Deus
se acomode a eles e se vergue à vontade deles. Poderíamos queixar-
nos deles diversas vezes antes que digam sequer uma palavra. Quem
eles pensam que sã o? Supondo que fossem governantes, ou, ainda
mais, tudo o que o mundo considera grandeza, eles têm de encurvar-
se diante da soberana majestade de Deus. Nã o obstante, quando
esses patifes vagabundos cometerem erro, nã o podem enfrentar
uma palavra afiada de ninguém. Dizem: “Isso nã o cabe a vocês
ordenar!”. Entã o, tampouco cabe a Deus, pois ele nos designou para
proclamar sua Palavra! Como fazemos isso? Por meio de sú plica, de
avisos e dos meios mais brandos, mas que nã o exclua o exercício da
autoridade. Devemos demonstrar que nossa palavra procede
daquele diante de quem todo joelho se dobrará e a quem toda
criatura renderá humilde obediência. Fora, pois, com os que nã o
podem suportar que a Palavra de Deus lhes seja pregada com toda
autoridade e comando! Que inventem um evangelho diferente!
Atentemos bem para o que Deus nos diz aqui, sabendo que ninguém
pode ensinar propriamente a Palavra de Deus, a menos que falem
imperativamente, como que dizendo: “Isto é assim. É dessa maneira
que devemos seguir em frente”.
Temos um Mestre que nã o suportará o escá rnio dos homens. Eu
mesmo nã o estou aqui por minha pró pria conta. Nada declaro por
mim mesmo. Nada adiciono que seja meu. Quando falo, faço-o em
nome de Deus. Portanto, por mais que os homens objetem, todos se
submeterã o; todo orgulho será abatido; nenhuma criatura erguerá a
cabeça ou olhará com olhar desafiante para aquele a quem grandes e
pequenos obedecerã o. Eis por que Paulo anexa a palavra “comando”
ou “autoridade”. Ora, se esta verdade realmente estiver estampada
em nó s, entã o nos beneficiaremos muito mais da Palavra de Deus.
Por que, pois, apó s ouvirmos muitos sermõ es continuaremos
sempre como estamos? É porque nã o vemos que nosso Senhor Jesus
Cristo está a nos chamar a si a fim de o honremos como ele merece;
nã o meramente em nossas cerimô nias externas, mas com a nossa
pró pria vida; e que ele domine nossos sentimentos e mantenha
cativos todos os nossos pensamentos, respectivamente, com a
mente e a vontade sob seu controle. Se nó s víssemos isso, decerto
nunca ouviríamos sequer uma palavra da Santa Escritura que nã o
nos fizesse bem. Como é, achegamo-nos à Escritura como bestas
mudas, e nosso Senhor nos dispensa precisamente como éramos
antes — isso é bem merecido. Entã o, aprendamos que, quando Deus
quiser que sua Palavra seja proclamada com autoridade, vamos com
reverência, humilhando-nos diante dele a fim de receber sem
contestaçã o tudo o que ele nos diz. E aferremo-nos à sua pró pria
Palavra a ponto de mostrar que estamos dispostos quando nos
apropriarmos dele como nosso Deus e Pai.
Neste ponto, o apó stolo diz a Tito: Ninguém te despreze . Embora
seja a Tito que ele fala, as palavras de Paulo dizem respeito a toda a
igreja, à qual ele diz: “Assegura-te de que a palavra que portas nã o
seja tida em desprezo”. Nã o podemos fazer isso em nosso pró prio
poder, pois há muitos que nã o suportam correçã o. Quanto mais sã o
ensinados — quanto mais tentamos todos os meios dados por Deus
para chamá -los de volta —, mais empedernidos ficam e piores se
tornam. A experiência nos mostra isso. Nã o obstante, devemos
demonstrar sempre, com autoridade, que fomos enviados por Deus.
Como Paulo diz quando desafia os arrogantes que sã o surdos a todas
as ameaças: “Mesmo assim, temos a espada já preparada para
exercer vingança sobre todos os que nos rejeitam e que nã o têm
obedecido ao nosso ensino” [2Co 10.5, 6]. Paulo nã o está se
referindo a uma espada material; ele tem em mente que Deus nã o
permitirá que sua Palavra seja rejeitada desta forma. Entã o ele fala
de uma espada que retemos em nossas mã os. Por quê? Porque
devemos ser julgados pela Palavra de Deus. Ainda que hoje a
ignoremos, no ú ltimo dia haveremos de sentir seu poder. Daí Paulo,
com boa razã o, advertir Tito de que nã o deveria permitir que
alguém o desprezasse. Com efeito, ele lhe diz: “Se os que te rodeiam
sã o rebeldes, e se nã o podes controlá -los, por mais que mostres que
falas como emissá rio de Deus e em seu nome, se persistirem
zombando de ti e seguindo em frente como antes, deves continuar
lembrando-os da maldiçã o que a impiedade deles aguarda”. É isso,
reitero, que se espera de nó s.
No ínterim, a liçã o geral para todos os cristã os, como eu já disse, é
que devemos fazer bom uso da Palavra de Deus, mostrando tal
respeito que tudo o que nos é dito seja recebido, por assim dizer,
com tremor. É verdade que a Palavra de Deus deve ser-nos doce e
deleitosa; contudo, devemos também ter aquele temor de que fala o
profeta: “Repousará sobre ele o Espírito do SENHOR , o Espírito de
sabedoria e de entendimento e de temor do SENHOR ” [Is 11.2].
Portanto, que todos nó s sejamos cuidadosos em nã o mostrar
desdém. Nã o há melhor maneira de mostrar quã o desesperançados
somos do que ridicularizando o que nos é ensinado no nome de
Deus e, acima de tudo, opondo-nos à queles que foram designados
ministros de sua Palavra. Contudo, quantos há que meramente
sacodem a cabeça ante o que lhes é anunciado nos sermõ es! Sentem
que, quando os ministros falam, ouvir é um esforço por demais
difícil, tã o longe estã o de crer no que ouvem e de obedecerem. Hoje
em dia, esta sorte de coisa é muitíssimo comum. O que, pois,
devemos fazer, senã o reconhecer tal majestade na Palavra de Deus,
para respeitarmos os que a ensinam, de modo que ninguém rejeite o
que lhes é dito? Pois todos os que desprezam nosso ensino — ensino
proclamado em nome de Deus — descobrirã o que nã o batalham
contra homens, mas contra Deus, que finalmente se manifestará do
lado oposto, visto que eles têm combatido a sua Palavra.
Passamos agora ao segundo tema principal, o qual Paulo discute
aqui. Ele insta os cristã os a que se sujeitem aos que governam, às
autoridades e obedeçam aos magistrados . A primeira coisa a notar é
quã o difícil era governar os judeus. Eram sempre sediciosos por
natureza; e, visto que Deus, segundo sua promessa, os escolhera
para serem seu povo e sua herança, sentiam-se injuriados se
forçados a submeterem-se aos governantes incrédulos. Vemos, em
contrapartida, que arrogâ ncia há em todos os homens, de modo que
nada os irrita mais do que se submeter a outrem. Entretanto, no
ínterim, sã o totalmente adeptos do uso de todas as promessas de
Deus como uma escusa conveniente. Pois quando a Escritura os
chama “herdeiros do mundo”, “filhos de Deus” e “sacerdó cio real”,
muitos se assenhoreiam dessas coisas para seus pró prios fins, como
se fossem isentos de toda servidã o. Dizem: “Espere, que bem existe
que Deus nos haja escolhido como seus filhos e fizesse de nó s
sacerdotes e reis, se temos de manter uma relaçã o mais estreita e
uma rédea mais curta?”. Portanto, os crentes devem ser advertidos
de que, muito embora Deus os haja soerguido a tal posiçã o de honra,
isso nã o visa a esta presente vida. Em vez disso, devemos contentar-
nos com o reino espiritual de nosso Senhor Jesus Cristo, sabendo
que eles já foram libertados da escravidã o a Sataná s e dos laços do
pecado e da morte, e que agora estã o livres para desfrutar a herança
que lhes foi preparada no céu. Esse é o teor da exortaçã o de Paulo
aqui.
Hoje, embora nã o tenhamos o mesmo motivo como os judeus
tiveram de recusar toda submissã o, este erro é tã o profundamente
radicado em todas as nossas mentes, que é bom que sejamos
refreados e domados. Pois, se nosso Senhor nã o deixasse claro que
esta tinha de ser nossa sorte, jamais aceitaríamos ser governados
por alguém, como a experiência nos comprova amplamente. Essa
também é a razã o por que têm ocorrido entre os homens tantas
revoluçõ es, que têm raciocinado desta maneira: “Eu tenho que me
submeter a este ou à quele? Nã o somos todos filhos de Adã o? Nã o
saímos todos da arca de Noé?”. Essas constituem o tipo de ideias
levianas que bem poderiam pô r em risco todo governo sobre a terra!
Ou, mais, os homens têm ensinado isto a si mesmos: “Este homem é
mais importante do que eu? Por que devo submeter-me a ele? Ele
deveria ser inferior a mim. Isso nã o está certo!”. Quando pensamos
desta forma sobre as pessoas, sempre achamos boas razõ es para
resistir. No entanto, uma vez entendamos plenamente a tese de
Paulo — de que o governo nã o existe para adequar-se aos caprichos
dos homens; que deriva de Deus e que os soberanos nã o governam
por acaso, mas pela determinaçã o divina — uma vez seja isso
entendido, a menos que queiramos fazer guerra contra Deus, só
podemos escolher uma vida tranquila, como Paulo declara no
décimo terceiro capítulo de Romanos [Rm 13.1, 2]. À luz do texto de
Paulo, aprendamos todos que, embora Deus nos tenha adotado
como seus filhos, nesta vida fugaz isso nunca pode ser pretexto para
que cada um seja seu pró prio senhor e nã o se submeta a mais
ninguém. Devemos contentar-nos com o fato de que Deus é nosso
Pai e que aguardamos em esperança pela herança que ainda está
oculta de nó s. Até que sejamos tirados deste mundo, esperamos por
ela com paciência.
No ínterim, que cada um se contente com seu pró prio estado
inferior. Que os que sã o pobres, de condiçã o humilde ou ultrajados à
vista do mundo, nã o busquem ser exaltados; que cada um aceite de
bom grado todas as providências que Deus preparar para eles. Que
os servos obedeçam aos seus senhores e à pessoa de seus
magistrados e a todos os que ministram justiça. Estejamos certos de
que tal serviço é aceitá vel a Deus. É verdade que aqueles que têm
sido elevados à honra nã o devem exercer sobre os demais um
senhorio orgulhoso, pois haverã o de responder a Deus se abusarem
de seus poderes. O mesmo vale para o rico que intimida seus irmã os
e os oprime cruelmente. Os magistrados, igualmente, que
ultrapassam o marco e que nã o sã o, como a Escritura os chama,
verdadeiros pastores do povo [Is 56.11; 63.11], finalmente
compreenderã o que sã o apenas como os demais homens. Como reza
o Salmo, foram representantes de Deus por certo tempo [Sl 82.1, 6],
mas descobrirã o que nã o passavam de vermes. Pois, uma vez
despidos daquela elevada condiçã o que ofuscou seus olhos,
terminarã o em putrefaçã o, pois Deus nã o lhes permitirá que se
exaltem sobre seus irmã os.
Seja como for, que todos os cristã os, sem distinçã o, aprendam que
Deus nã o os fez reis e sacerdotes para que, neste mundo, a realeza e
o sacerdó cio sejam para usufruto deles. Devemos aguardar em
esperança estas benesses espirituais. Quanto ao mais, no que diz
respeito ao mundo, devem permitir que Deus os guie como ovelhas e
que andem com toda a sinceridade do coraçã o. Porque, como eu já
disse, enquanto atentarmos somente para os homens, sempre
seremos assaltados por preocupaçã o, temos disposiçõ es tã o
irrequietas, que pouco se faz necessá rio para exasperar-nos e fazer-
nos lançar fora todo freio e canga.
Portanto, voltemos à injunçã o de Paulo aqui. Quando nos ordena
que se nos submetamos aos poderes e autoridades, ele nã o fala em
seu pró prio nome, e sim no de Deus. Ele provê uma explanaçã o mais
detalhada no texto já mencionado, o décimo terceiro capítulo de
Romanos. Ele argumenta que todos os poderes estã o fundados na
verdade de Deus, porque ele deseja que toda a humanidade seja
governada por um governo bom e ordeiro, e deseja mostrar que, por
sua pró pria mã o, por assim dizer, ele colocou homens com
autoridade e na cadeira da justiça. É prerrogativa de Deus outorgar a
espada e também desatar a espada do cinto, como quando humilha
os que antes empunhavam a espada da justiça. Ele lançará abaixo os
que se elevaram a grandes alturas. Entã o, que nos fique bem claro:
nã o mais nos enganemos com nossas especulaçõ es fú teis: “Por que
devo obediência à quele homem? Por que devo ser-lhe inferior? Por
que ele deve dominar sobre mim?”. Contra todos os nossos
protestos, Deus tem uma espada voltada para nossas escusas e
nossos estratagemas: esse é o seu beneplá cito. Nã o nos cabe
argumentar contra isso, uma vez que Deus nos persuadiu desta
verdade. É isso que Paulo quer que compreendamos.
Entã o se segue que somos grandemente fortalecidos em nossa
esperança da vida eterna se, neste mundo, as coisas nã o saem como
desejamos. Como seria se todos nó s fô ssemos pequenos príncipes?
Para nó s nã o haveria outro paraíso; a terra nos sustentaria e o céu
nada significaria para nó s. No entanto, quando o Senhor nos guia
através deste mundo, de tal modo que parecemos desprezíveis e
inferiores aos demais, somos instados a olhar para o alto com os
olhos da fé e a aguardar pelo que ainda está por vir. Ora, aos cristã os
se ordenou solenemente que obedecessem aos governantes e
autoridades, num tempo em que os que portavam a espada da
justiça eram incrédulos e inimigos de Deus. Nó s, por contraste,
somos privilegiados em ter os que governam sobre nó s como
herdeiros conosco da herança celestial. Visto que eles exercem a
mesma fé que nó s, temos ainda mais razã o para obedecer-lhes e
muito menos escusa se nos rebelamos contra eles. Se fô ssemos
governados pelos turcos, tiranos ou oponentes mortais do
evangelho, ainda teríamos a ordem de submeter-nos a eles. Por quê?
Porque essa é a vontade de Deus. Ora, se todos partilhamos da
mesma fé, acaso nã o estamos duplamente errados se nã o
obedecermos ou consentirmos em viver tranquilamente sob a canga
de Deus, a despeito do grande amor que ele tem para conosco?
Em todo caso, esta deve ser a regra invariá vel para todos nó s:
resistimos a Deus se nã o pudermos suportar ser governados por
qualquer governo que ele tenha estabelecido neste mundo. Pois
Paulo fala nã o só de submissã o, mas também de obediência
voluntá ria. À s vezes, como bem sabemos, os homens nã o resistem
ativamente porque é impossível, ou inú til, ou, pior, por medo do
perigo. No entanto, o apó stolo avança mais, insistindo que devemos
obedecer. A palavra que ele usa implica, como eu já disse, obediência
voluntá ria, conforme lemos em Romanos: “É necessá rio que estejais
sujeitos, nã o somente por causa do temor da puniçã o, mas também
por dever de consciência” [Rm 13.5]. E qual a razã o? Porque,
embora os magistrados nada tenham que mereça honra ou
obediência, a cadeira que ocupam foi ordenada por Deus. Portanto,
resistência nã o é algo que os injuria; ao contrá rio, injuria aquele que
os pô s ali e que deseja que sua imagem resplandeça neles.
Lembremo-nos, pois, que nã o só se requer de nó s a submissã o,
devemos também, de nossa parte, assegurar-nos de que se preserve
a ordem estabelecida por Deus na terra; que ninguém inveje os que
sã o maiores e que foram elevados a um lugar de distinçã o.
Se você perguntar por que, a resposta é que resistimos a Deus
sempre que incitamos problema e sediçã o. Agimos da mesma forma
quando nã o podem obedecer sinceramente, dizendo: “A humildade é
um sacrifício que Deus demanda de mim. Nã o me exaltarei, e creio
que mereço mais que qualquer outro, de modo que ele deve
obedecer a mim, e nã o eu a ele”. Deveríamos, reitero, agir assim com
todas essas coisas, sabendo que a vontade de Deus é que eu, em mim
mesmo, nada seja, senã o que devo conservar-me humilde e
abandonar toda altivez e orgulho, pois essa atitude pode ajudar-me
a seguir em frente. Até que alcancemos esse ponto, somos obrigados
a suportar dolorosa tribulaçã o; e, ainda quando pareçamos bastante
calmos, nã o rejeitando toda submissã o, seguramente estaremos
indispostos. É importante lembrar, pois, que os cristã os nã o devem
esperar até que sejam compelidos pela força a se submeter aos
magistrados. Devem se submeter conscientes de que Deus deseja
testar nossa humildade, vendo quã o prontamente nos sujeitamos ao
poder dos homens. Pois o poder foi ordenado por Deus, e ele retém
o domínio soberano. Quando obedecemos aos homens que
governam em concordâ ncia com sua vontade, entã o obedecemos
à quele que primeiramente os designou.
Entretanto, sejamos cô nscios de que Deus algumas vezes levantará
indivíduos que sã o indignos de qualquer honra. Por quê? Ele quer
mortificar-nos; porque, se o obedecêssemos como deveríamos, ele
nos faria dispostos a deixar-nos governar por ele e a aceitar sua
autoridade sobre nó s. Os que exercem justiça entre nó s devem ser
tidos como pequenos anjos; os reis e governantes deste mundo já
nã o nos oprimiriam com sua tirania e orgulho e refletiriam
esplendorosamente a imagem de Deus. No entanto, sucede que
empurramos Deus para longe de nó s; razã o por que ele tem de se
esquivar e retirar sua bênçã o, deixando que nos governem homens
que pervertem todo o direito e equidade. Este é um sinal de que
Deus removeu para longe de nó s sua graça, visto que, por conta de
nossa desobediência, nã o podemos suportar viver sob sua proteçã o.
Seja como for, devemos retroceder ao ponto de que nosso Senhor
bem sabe o que nos ajusta melhor. Uma vez que isso é assim, que
todos nó s vejamos bem que nos mantenhamos dentro de nossos
limites. Que o pobre curve a cerviz e saiba que Deus quis que ele
fosse subserviente. É isso que mostramos, a saber, que de fato
somos o rebanho de Deus; que nã o somos animais irracionais nem
tã o duros de manejar que nos recusamos a permitir que ele nos guie
como lhe apraz. Que ele de tal modo nos trate, que suportemos
nossa sorte com paciência, por mais humilde e por mais desprezível
aos olhos do mundo que ela seja.
A tudo isso Paulo anexa um requerimento adicional: estejam prontos
para toda boa obra. Em outras palavras, os que nã o podem conduzir-
se à obediência aos magistrados só buscam problema e confusã o.
Esta é a inferência a ser extraída da ordem que Deus determinou
para o mundo. Por que, além do mais, temos reis, governantes,
magistrados e juízes? É assim que os homens nã o devoram uns aos
outros como gatos e cã es; é assim que a justiça pode prevalecer, de
modo que os mais fortes nã o consigam seu pró prio caminho; de
modo que os pobres e humildes nã o sejam calcados aos pés e sejam
devorados. Eis por que a ordem da justiça foi estabelecida. Nã o se
pode negar que algumas vezes os incumbidos dessa
responsabilidade nem sempre cumprem seu dever: pode ser que
oprimam os bons e protejam os perversos. Nã o obstante, ter alguma
forma de governo sempre faz parte de nossos interesses.
Suponhamos que haja males seríssimos, como à s vezes é o caso —
queira Deus que nã o vejamos tal coisa à mã o! E suponhamos que
haja tiranos, indivíduos trapaceiros, líderes que se deixam
impregnar com perversidade, que pervertem a religiã o e cuja
cupidez nã o conhece limites. Mesmo assim, é melhor ter um mau
governo do que nã o ter absolutamente nenhum. Pois se nã o
existisse nenhum, ah!, que seria de nó s? Seria preferível que
desaparecêssemos num abismo sem fundo!
Em consequência, se estamos prontos para todas as boas obras,
daremos boas-vindas à ordem civil e só buscaremos obedecer aos
magistrados. Nesta passagem, contudo, Paulo tem algo mais em
mente. Havendo indicado o dever que temos para com nossos
superiores, ele nos informa que temos responsabilidade nã o só para
com eles, mas também para com os menos importantes. Nosso dever
é reconhecer o laço natural que de tal modo nos ata aos homens, que
ninguém pode dizer: “Nã o devo nada a este ou à quele homem. De
outro modo, eu me excluiria de toda a sociedade humana!”. E assim
todos nó s devemos ser criteriosos em ver que exerçamos nossa
parte, e façamos continuamente o que pudermos em prol de nossos
semelhantes. Daí a regra geral que Paulo estabelece: devemos estar
prontos para toda a boa obra.
Ele continua a explicar como isto deve ser feito: não difamem a
ninguém nem sejam altercadores. Em vez disso, devemos ser
imparciais e de comportamento brando; em suma, devemos mostrar
que queremos viver retamente e ser gentis a todos. Observemos, em
primeiro lugar — e isso deve ser suficiente como nossa conclusã o —
que estar pronto para todas as boas obras equivale a manter a
amizade com os que estã o juntos de nó s por aquele santo e
inquebrá vel vínculo do qual já falei. É ultrajante quando um homem
quer que os demais admirem suas virtudes, no entanto nã o se poupa
de pensar o pior dos demais. Nosso Senhor nã o quer nada disso. A
principal virtude que ele espera de nó s é que façamos nosso melhor,
cultivando a paz e a harmonia, de modo que demonstremos que
queremos que todos os homens sirvam a Deus com um só consenso.
Como, pois, podemos viver pacificamente entre nó s mesmos?
Suportando-nos uns aos outros.
Com certeza sempre temos falhas e imperfeiçõ es em nosso íntimo;
quando vemos Sataná s inventando seus ardis para semear discó rdia
entre nó s e, assim, abater-nos, certifiquemo-nos de que nã o temos
para com ele nenhuma obrigaçã o. Pratiquemos a paciência e nã o
promovamos lutas sempre que formos tentados a cometer erro; ao
contrá rio, que tenhamos sempre em mã os esta consideraçã o: A
menos que estejamos dispostos a suportar muitas ofensas, teremos
motivo de volver-nos para a má goa e para sentir-nos irritados, para
perder a cabeça e começar hostilidade. Em essência, Paulo nos
ensina que, para estarmos prontos para toda a boa obra, nã o
devemos buscar nossos pró prios interesses como naturalmente
costumamos fazer, mas que devemos tratar nossos semelhantes com
tolerâ ncia, de modo que, quando aborrecidos, sejamos capazes de
suprimir todos os pensamentos impulsivos e agressivos. Se
sofrermos dano, refreemo-nos daquela extrema severidade que
pedimos apenas para ser vingados. Este é o modo de manter a paz,
como aqui somos ensinados a fazer.
O apó stolo ainda nã o concluiu, pois ele acrescenta: mas cordatos,
dando provas de toda cortesia [ou, que mostrem toda gentileza para
com todos os homens]. As palavras “todos os homens” implicam que
os crentes devem se empenhar especialmente para conquistar os
que ainda sã o como animais irracionais e ainda nã o foram
conduzidos ao rebanho de nosso Senhor Jesus Cristo. Veja bem: eis
um incrédulo. De fato, ele é inimigo de Deus e se acha separado de
sua igreja. Nã o obstante, ele é apto à instruçã o. Minha tarefa é
explicar-lhe as coisas com brandura; de outro modo, ele nã o pode
ser conquistado por tais meios. Eu devo tentar levá -lo a Deus. Ora, se
temos de ser gentis com os incrédulos quando sã o totalmente
indomá veis e nã o se deixam vencer, e se este é o ú nico meio que nos
está aberto, que faremos com os que já sã o filhos de Deus? Haverã o
de nã o achar em nó s nenhuma gentileza? Portanto, mostremos que
pertencemos à escola daquele que nã o nos trata de nenhuma outro
modo senã o com benignidade. A menos que sejamos como nosso
Senhor Jesus Cristo neste aspecto, qualquer outra coisa que façamos
pode impressionar o mundo por sua exibiçã o de santidade, mas
diante de Deus nã o passa de imundícia.
Entã o, resolvamos conformar-nos à imagem e padrã o que Deus o Pai
provê para nó s, visto que foi uma pomba que desceu sobre nosso
Senhor Jesus Cristo. Este foi um símbolo visível de que, como
membros de seu corpo, devemos viver pacificamente sob ele. Que
todos nó s, pois, façamos como diz Isaías — ainda que ali ele fale
particularmente de Jesus Cristo [Is 42.3]. Se devemos ser como ele,
entã o nã o extingamos a vela que fumega, por mais que desejemos
que sua luz seja radiante. Ainda quando ela exale mera fumaça,
tentemos acendê-la antes que se apague de vez. Nã o devemos
esmagar a cana quebrada, mas marquemos os que sã o fracos e
frá geis; de modo que, com nosso apoio, muitos recobrem â nimo, se
incitem e de tal modo sejam atraídos a Deus que, com eles, nos
unamos a ele e nos mantenhamos fiéis a ele até o fim.
 
Oração
Agora nos prostremos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando a ele que nos faça senti-los
ainda mais sensivelmente. Que ele, que se agrada em governar em
nosso meio, nos ajude a crescer a cada dia em todas as graças de seu
Santo Espírito. Que mostremos que somos o povo adquirido por ele
e que nã o foi em vã o que nos reuniu a si; mas que, como ele nos
atraiu a si, também estejamos dispostos a ir a ele. E que nossas vidas
revelem que desejamos doar-nos totalmente ao seu serviço,
abandonando o mundo e anelando pela vida celestial à qual somos
diariamente chamados pela pregaçã o de seu evangelho.
 

15. DEUS É QUEM SALVA [Tito 3.3-5]


Pois nós também, outrora, éramos néscios, desobedientes,
desgarrados, escravos de toda a sorte de paixões e prazeres, vivendo
em malícia e inveja, odiosos e odiando-nos uns aos outros. Quando,
porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu
amor para com todos, não por obras de justiça praticadas por nós,
mas segundo a sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar
regenerador e renovador do Espírito Santo.
 
Vimos nesta manhã que Paulo ordenou a todos os crentes que
fossem gentis e brandos com todos os homens. Explicamos que isto
visava a encorajá -los a serem bondosos, de modo a poderem
suportar as falhas dos que ainda nã o haviam se iniciado na
verdadeira vereda da salvaçã o. Com o fim de reforçar esta liçã o,
agora ele acresce que, antes de Deus chamá -los, eram exatamente
como aqueles a quem ele tinha toda razã o em rejeitar. Nos dias
anteriores, bem que poderiam ter-se alegrado se outros se
mostrassem pacientes com eles. Com efeito, Paulo lhes diz que eles
têm um forte motivo para tratar os incrédulos com semelhante
gentileza.
Há em Gá latas outro versículo em que o apó stolo insta-nos a que
suportemos uns aos outros. Ele escreve: “guarda-te para que nã o
sejas também tentado” [Gl 6.1]. Pois, quando pensamos neles, de
fato teríamos que ser cegos se nã o entendêssemos que o errado nã o
deve ser tratado com extrema severidade. Por quê? Se eu necessito
de perdã o em virtude de minhas muitas falhas, mas nã o admito o
mesmo para meus semelhantes, que esperança há para mim? Isso
seria imperdoá vel. Entã o, asseguremo-nos de manter um olho em
nossas pró prias fraquezas e pecados. Isso nos impede de ser duros
demais, nã o perdoando e sendo inflexíveis quando censurarmos aos
que falham.
Paulo, contudo, vai ainda mais longe. Nã o só manda que os crentes
considerem sua situaçã o presente; de modo que, conhecendo bem
suas pró prias fraquezas, se mostrem gentis e benignos para com
todos os que sã o iguais a eles; também os lembra do que uma vez
foram e, assim, os leva mais adiante. Devemos atentar
cuidadosamente para seu ensino, pois muitas pessoas há que creem
que sã o justificadas enquanto sã o severas em sua condenaçã o de
outros. Certamente devemos censurar o mal sempre que nos
depararmos com ele e nunca favorecê-lo com lisonja. Mas essa nã o é
a ordem que temos de seguir: cada um deve começar consigo
mesmo. E, assim, se eu julgar corretamente os que sã o meus
semelhantes e ajudá -los a purgar seus pecados, antes de tudo tenho
que reconhecer e condenar meus pró prios pecados. Esta, pois, é a
regra que devemos seguir. Cada um deve ser seu pró prio juiz e jú ri,
e condenar a si pró prio antes de julgar seus semelhantes.
Tal como é, esquecemos tudo sobre nossos pró prios erros e nã o
queremos que ninguém os note. Pior, pensamos que temos de
ressarcir amplamente a Deus quando formos duros e severos com os
que erram e os deixamos entregues ao pecado, contanto que
deploremos o mal que vemos em nossos irmã os. Ao contrá rio,
somos ensinados aqui que, quando tivermos que repreender os
obstinados, nã o devemos pensar somente no que agora somos e nos
males que nos mancham, e entã o aprendermos a humildade e o
autocontrole; devemos também refletir que antes de Deus nos atrair
a si fomos desobedientes e merecedores de um tratamento tã o rude,
a ponto de nos envergonharmos profundamente e nos sentirmos
usurpados de toda esperança. Eis por que devemos ser bondosos
para com as pobres almas cegas, até que Deus as ilumine e as
tenhamos colocado na vereda certa.
Portanto, as palavras de Paulo nos lembram que devemos antes
suportar os ignorantes mais do que os que, embora conhecendo a
vontade de Deus, se desviam deliberadamente. Como assim? Os que
professam conhecer o evangelho, mas que francamente escarnecem
de toda virtude e vivem vidas vis e dissolutas, nã o merecem ser
poupados; nã o podem alegar ignorâ ncia, mas devem ser censurados
mais incisivamente. Se, em contrapartida, há pobres cegos entre o
povo, que nã o podem distinguir o preto do branco e que nunca
foram instruídos, devemos apiedar-nos deles e nã o pensar ser
estranho se, no ímpeto, forem difíceis de conquistar, pois nã o estã o
acostumados à canga.
Se tomarmos um potro que nada sabe de freio nem de sela, e nunca
usou ferradura, nã o podemos esperar dele o melhor, visto que a
natureza ainda nã o o domou para que se submeta ao senhorio do
homem. Esse é um há bito que virá com a prá tica. Ora, por natureza,
somos piores que os animais, pois somos indispostos e rebeldes;
Deus tem que mudar-nos a fim de nos conquistar para seu serviço.
Entã o, quando vemos os míseros incrédulos que nada sabem de
como servir a Deus, e desobedientes tanto em palavra quanto em
ato, devemos apiedar-nos deles e recordar que uma vez fomos
assim; e ainda seríamos, se Deus nã o exercesse em nosso favor sua
mercê e nã o nos renovasse por sua pró pria e livre bondade. Esta é a
mensagem de Paulo a nó s aqui. Temos de suportar os que nunca
conheceram ou provaram a Palavra de Deus; e até que os
ensinemos, devemos mostrar-nos gentis e pacientes para com eles.
Esse é um ponto.
Notemos ainda a razã o que Paulo fornece. Nó s também fomos
incrédulos; e, se naquele tempo houvéssemos sofrido tratamento
extremamente á spero e amargo, nã o o teríamos suportado.
Teríamos nos tornado mais duros e nã o melhores. Aqui, pois, vemos
os meios que Deus quer que usemos, se quisermos guiar à salvaçã o
as pobres almas perdidas. No entanto, há uma segunda razã o, a
saber, que nã o só vivemos extraviados, por assim dizer, por certo
tempo, mas teríamos continuado a extraviar-nos, se Deus nã os nos
convertesse. Pois quando os homens se convertem do mal para o
bem, tal mudança nã o vem de seu pró prio esforço ou impulso; ela
ocorre porque Deus estava em açã o. Entã o necessitamos
compreender que, pobres e miserá veis como uma vez fomos,
teríamos afundado nas profundezas da perversidade, nã o nos
tivesse Deus estendido sua mã o e nos atraído a si. Pois, se, desde o
nascimento físico, um homem nada é senã o um rebelde, ele se vê
obrigado a ir de mal a pior. Por isso, Deus estabelece as coisas
corretamente.
Em consequência, Paulo ensina que, antes de Deus lhes dar nova
vida, os crentes viviam em desobediência. Nã o só isso, mas se agora
há neles alguma bondade, nã o têm razã o para se gabarem, mas
devem considerar como ela veio a ser sua. “Deus nos salva”, Paulo
pergunta, “pelas obras que realizamos, ou nossa pró pria justiça?
Nada disso; foi tã o somente pela mercê de Deus”. Uma vez que isso é
assim, que abaixemos nossa vista e demos fim à nossa arrogâ ncia.
Ora, visto que isso é assim, devemos ser bondosos e gentis,
tolerantes para com as falhas daqueles a quem Deus nã o favoreceu
da mesma maneira. Em suma, essa é a mensagem deste texto.
No ínterim, olhemos mais detidamente o que Paulo diz: Pois nós
também, outrora, éramos néscios, desobedientes, desgarrados,
escravos de toda sorte de paixões e prazeres. Ao usar a palavra “nó s”,
ele tem em mente suavizar consideravelmente sua afirmaçã o; de
outro modo, poderia ter sido nociva se usasse a segunda pessoa —
“Vó s éreis néscios e desobedientes” — e se se tivesse excluído da
companhia deles. Isso teria sido mais indigesto para o estô mago.
Agora, porém, ele diz: “Muito bem, meus amigos, lembremo-nos do
que éramos antes de Deus nos haver tirado do abismo da descrença
onde uma vez vivíamos. Acaso nã o éramos néscios e rebeldes?
Portanto, durante todo o tempo, Deus teve que nos suportar,
porque, de nossa parte, esperá vamos que os homens fossem
pacientes para conosco. Portanto, hoje, façamos o mesmo em favor
dos que ainda nã o conhecem o que significa obedecer a Deus”. Eis,
pois, por que Paulo se inclui entre os ignorantes e os obstinados que
se deixam arrastar e levar por suas paixõ es diferentes.
No entanto, podemos perguntar se Paulo mesmo se comportara de
modo imoral ou era ébrio. Pois, ao falar dessas vá rias paixõ es, ele
une a alguém todo tipo de mal a que os homens sã o propensos antes
de Deus recriá -los pela açã o do Santo Espírito. Contudo, sabemos
que, mesmo antes de ser atraído ao evangelho, o apó stolo era
irrepreensível, havendo vivido de um modo tã o santo e honesto, que
se pensava que ele um fosse um pequeno anjo entre os homens. Nã o
obstante, nã o há nada de hipó crita em sua afirmaçã o de que fora
desobediente. Quando a Escritura fala do estado dos incrédulos a
quem Deus ainda nã o havia regenerado pela açã o de seu Santo
Espírito, isso descreve um grande volume de vícios. Nã o que todos
se deixam arrebatar por eles ou que eles sã o ó bvios em todos. Um
homem se deixará submeter a um; e outro a mais alguém; mas todos
terã o boa razã o para curvar a cabeça e permanecer condenados,
porque tudo neles está contaminado.
Por exemplo, alguns, ainda que nada saibam sobre Deus, nã o se
renderã o a todo tipo de pecado. Alguns que nã o se deixam tocar pela
ambiçã o se contentam em viver vidas limpas e honestas, sem invejar
os grandes deste mundo nem a ninguém mais, e expulsando-os de
sua mente. Um será lavrador e outro, comerciante; comerã o seu pã o
sem se deixar perturbar por nenhuma cupidez. Alguns se manterã o
limpos de imoralidade e outros levarã o vidas disciplinadas e só brias.
Mesmo assim, se olharmos detidamente para cada indivíduo, nã o
descobriremos em ninguém nenhuma boa semente ou boa raiz. E,
embora pareçam ter alguma virtude muito evidente, tudo é
corrupçã o à vista de Deus. Por quê? Porque o que é principalmente
necessá rio numa vida bem ordenada é andar com toda pureza de
coraçã o. Entã o, se os incrédulos se refreiam da imoralidade, isso nã o
se dá porque temam ofender a Deus e, assim, têm isso como seu
alvo; mas porque Deus os restringe por razõ es que sã o suas. Ele
busca salvar a raça humana da ruína, porém nã o porque ela mereça
ser tida como justa. Seja como for, embora os incrédulos nã o sejam
manchados por toda sorte de vício, e embora vejamos muitos entre
eles que vivem uma vida bem ordeira e um a quem os homens
admiram, em seu coraçã o há contaminaçã o que Deus condena, pois,
do maior ao menor, todos sã o, no dizer de Paulo, ignorantes,
insensíveis e obstinados, nada sabendo do que significa servir a
Deus.
E, assim, a despeito do fato de que Paulo nã o viveu uma vida pró diga
enquanto ainda era incrédulo e inimigo do evangelho, ele era
arrastado por muitos maus desejos, como ele mesmo confessa no
sétimo capítulo de Romanos. Ali ele diz que pensava de si mesmo
tã o elevadamente, que se considerava justo, pois nã o entendia o que
a lei queria dizer quando afirma: “Nã o cobiçará s” [Rm 7.7-9]. Ele se
contentava em ter a estima dos homens e em saber que nada fizera
de errado ou merecedor de culpa. Contudo, ele nã o havia examinado
sua consciência ou perscrutado seus pecados ocultos; ele era cego,
em vez de hipó crita; vivendo o tempo todo inflado e embebido com
orgulho. Era nisto que baseava sua justiça. No entanto, quando
compreendeu que a lei de Deus é mais que um có digo externo de
conduta suficiente para evitar a censura dos homens, mas que
deveria reformar todos os nossos pensamentos e sentimentos,
requerendo justiça perfeita digna dos anjos, entã o o apó stolo viu
que em seu interior nada havia senã o impureza. Entã o, ele nos diz
que renunciou até mesmo à justiça da lei que pensava possuir.
O que Paulo chama de justiça da lei nã o é a justiça de Deus exibida
na lei, mas a justiça que pensava haver alcançado e da qual se
alimentava equivocadamente. Portanto, ele se viu obrigado a rejeitá -
la como imunda e mero lixo, pois sem tal humildade ele nã o poderia
possuir a graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Neste texto, pois, ele
afirma que, como incrédulo, era como os demais homens — um
miserá vel, ignorante, enganado e levado por vá rias paixõ es. Ainda
que nã o se contasse entre os dissolutos e nã o desse nenhum
escâ ndalo por sua maneira de viver, e ainda que nã o pudesse ser
assinalado como malfeitor, nã o obstante acalentava em si muita
coisa que era perversa, como aqui ele reconhece.
Havendo resolvido esse problema, extraiamos desta passagem
algumas liçõ es saudá veis. Temos aqui uma ilustraçã o do que sã o os
homens antes de Deus os iluminar por seu Santo Espírito e fazer
deles novas criaturas. De fato, somos muito felizes por ser o que
somos, mas isso se deve ao fato de nã o nos conhecermos.
Certamente obedeceríamos o dito, “Despreze-se a si mesmo”, se nã o
fô ssemos cegos por nossa absurda presunçã o. Cada um de nó s é tã o
possesso do egoísmo, que ele nos fascina completamente e deixamos
de ver nossa pró pria depravaçã o. No entanto, aqui o Espírito Santo
pronuncia sentença nã o sobre dois ou três, mas sobre todos os filhos
de Adã o, sem exceçã o.
Neste ponto, já descobrimos o que somos por natureza até que Deus
nos transforme. Entã o, o que somos? Para começar, somos néscios.
Isso nã o é algo do que possamos ser imediatamente persuadidos!
Como bem sabemos, os homens creem que sã o sá bios. Esse é o
maior obstá culo que nos impede de ir a Deus, visto que nã o nos
permitimos ser governados por sua Palavra. Somos cheios de
indagaçõ es, de modo que só pensamos ser certo se Deus se mantiver
quieto ou, pior, se consentir conosco, como se toda a vantagem fosse
nossa. Em sua loucura, os homens sempre crerã o em sua pró pria
sabedoria; mas o que é bom em nó s, visto que aqui o Espírito Santo
decretou irrevogavelmente que todos nó s somos néscios até que
Deus nos ilumine por seu Santo Espírito? De fato, somos relutantes
em reconhecer isso, mas a Escritura ensina que Deus conhece todos
os pensamentos dos sá bios. E o que ele encontra, uma vez que os
conhece? Que eles sã o vaidades e mentiras [Sl 94.11]!
Portanto, há duas coisas a notar nesta passagem. Primeira, devemos
entender que, se há em nó s uma ú nica gota de entendimento correto
e pró prio, é porque ele é um dom especial do Espírito Santo. Nã o
podemos dar crédito a isso sem cometer sacrilégio, pois que
equivaleria usurpar de Deus o que lhe pertence. Em consequência, o
que faríamos do livre-arbítrio que os papistas louvam até os céus?
Pois sempre que se menciona o livre-arbítrio, interpretam-no como
uma qualidade racional que dá aos homens a sabedoria de escolher
o bem ou evitar o mal. [24] Aqui, ao contrá rio, Deus deixa claro que,
até que ele nos ajude a progredir em sua escola, nó s, juntamente
com o mais arguto dentre nó s, somos néscios. De modo que esse é o
fim de nossa estú pida arrogâ ncia. Devemos entender que, até que
Deus nos chame à sua verdade, somos destituídos de toda razã o e
sabedoria. Isso é suficiente para esse ponto.
Em segundo lugar, devemos compreender que nã o há outro modo
de andar com retidã o senã o nos desvencilharmos de todas as nossas
ilusõ es. Por quê? Aos nossos pró prios olhos, somos bons
administradores; contudo, Deus nos chama de néscios. Entã o, em
nossas assim chamadas devoçõ es, nos detemos a enganar-nos
pensando: “Isto me parece certo”. Podemos ter êxito satisfazendo os
homens; Deus, porém, nã o se contentará com isso. Aqui, pois, está a
segunda liçã o que deve ser extraída deste texto. Temos de parar de
confiar em nossas pró prias ideias e andar como Deus manda,
sabendo que tudo o que consideramos bom e que tem a aparência
de sabedoria e razã o, nã o passa de demência e erro à vista de Deus.
Paulo continua descrevendo todos os homens como desobedientes,
quer agora, quer no passado. Da mesma maneira como todos nó s
somos néscios, também todos nó s somos rebeldes. De fato, ele
envergonha a todos, retratando-os como saturados do mal. Para
começar, os homens sã o carentes de sabedoria; mas, pior ainda,
sabendo o que é bom e sendo aptos a traçar a diferença, sã o lascivos
e perversos; extraviam-se diretamente de onde Deus quer que
andem. Nã o somos meramente corruptos no coraçã o e, portanto,
cegos; somos tã o inclinados ao mal em todos os nossos apetites, que
abertamente resistimos aos mandamentos de Deus. Entã o, o que nos
é deixado? Podemos premiar o livre-arbítrio e todas as virtudes o
quanto quisermos; mas, até que Deus nos faça novos, ele é obrigado
a achar falha em nó s em todas as coisas. Nossa desobediência,
admitidamente, nem sempre é ó bvia: somos bons em nosso papel de
bajulador. Podemos fingir tã o bem que as pessoas ficam
impressionadas, e até mesmo nos persuadimos de que somos
devotados a Deus. No entanto, tudo nã o passa de ilusã o, até que
recebamos o novo coraçã o de que nos falam os profetas [Jr 32.39; Ez
11.19]. Nã o faria nenhum sentido se Deus nos desse um novo
coraçã o quando já fô ssemos sadios. Entã o, até que Deus o mude e o
renove, ele é embebido em iniquidade. É por isso que devemos ser
abatidos, de modo que busquemos de Deus a bondade que é sua.
Cessemos de bajular nosso pecado movidos de louco orgulho e
presunçã o.
A seguir, o apó stolo declara que os homens têm se extraviado e se
enganado. Portanto, permanecem cegos e miserá veis, até que Deus
os coloque na vereda da salvaçã o. Todos os fú teis conceitos de que
os homens se gabam sã o varridos. “Oh!”, dizem, “estou para ser
condenado e ninguém me diz por quê?” A resposta de Paulo é que
Deus reprova todos os que sã o complacentes, pois enganam a si
pró prios. É como se ele duplicasse a condenaçã o que pronunciou
previamente quando nos chamou de néscios. Portanto, nossa
necessidade é dupla: falhamos em percebê-la como loucos; e nos
recusamos a crer que ela precisa ser corrigida. Entã o, aqueles a
quem Deus graciosamente restaurou saibam que, se há neles uma
gota de bondade e virtude, nã o a trouxeram consigo desde o ventre
de sua mã e, nem foi herdada da carne e sangue. É um dom especial
de Deus.
Quanto à s palavras “diferentes paixõ es e prazeres”, Paulo nã o as
denomina de “muitas”; ele as denomina de “diferentes” ou
“diversas”. Esta é a razã o de sermos assaltados por sentimentos que
parecem ser contraditó rios. Por exemplo, um homem pode ser
miseravelmente devasso e ébrio; contudo, como é possível que
todas estas coisas existam juntas? Sã o vícios contrá rios uns aos
outros. Um homem que é dado à avareza pode definhar quase até a
morte. O alimento é consumido nele; é como se ele pudesse obtê-lo
de volta de seu estô mago! Ao mesmo tempo, ele é devasso e nã o se
preocupa com despesa, contanto que satisfaça sua luxú ria
desordenada. O mesmo se dá a um homem ambicioso ou ébrio, que
se afunda na depravaçã o e é indiferente como um animal irracional.
Ali você tem exemplos de erros tã o contrá rios entre si, que nã o se
harmonizam mais que fogo e á gua. Nã o obstante, há pessoas nas
quais todas essas paixõ es, por mais perversas que sejam, sã o
muitíssimo evidentes. É esse o significado de Paulo nesta passagem.
Somos afligidos nã o apenas por um ou outro vício; todos nó s temos
paixõ es conflitantes que surgem de uma ou de outra maneira e que
fazem guerra contra Deus. Assemelham-se a uma tempestade no
mar, onde as ondas se chocam umas contra as outras; é assim que se
dá com os nossos apetites.
Vemos, pois, quanta miséria se dá quando o diabo nã o só nos
escraviza e nos arrasta a cometer toda sorte de mal, mas também se
diverte conosco, como se fô ssemos símios sem disciplina e
autocontrole. Ele incita dissençã o entre nó s e espalha tal confusã o
que sofremos em nossas almas e corpos um infindá vel inferno.
Entã o, quando sentimos estas vis paixõ es atingindo ebuliçã o e
solavanco entre si, passamos a ver nossa miséria, até que Deus, em
sua infinita mercê, nos contemple e nos restaure a si. Lembremo-nos
uma vez mais que aqui Paulo nã o tem em vista uma só pessoa, mas
toda a humanidade.
Ele conclui o versículo descrevendo-os como vivendo em malícia e
inveja, odiosos e odiando uns aos outros. Isto nã o é algo visível em
todos os que vivem alienados de Deus e de sua Palavra. No entanto,
a raiz está sempre em nó s até que Deus nos desvencilhe dela. Donde
derivamos o genuíno amor para com o semelhante? Acaso nã o vem
de nossa consciência de que Deus é nosso Pai e de que devemos
viver associados e unidos uns com os outros? Entã o, os que têm
voltado suas costas para Deus nã o se preocuparã o com o amor para
com os outros. Mesmo os pagã os entendiam o problema do egoísmo
— isto é, os que eram mais perceptivos que os demais. Eu defendo
que esta é uma doença geral que afeta a todos, até que Deus os cure
dela. Todos nos amamos e nos tratamos bem. A que o egoísmo
conduz senã o ao ó dio para com os demais? Se eu me amo, vou
querer somente o que me beneficia; de modo que sinto-me obrigado
a injuriar a um homem e a fazer dano a outro. Assim também, os que
amam a si mesmos serã o arruinados pelo orgulho e ignorarã o seus
semelhantes, pois creem que sã o os ú nicos que possuem virtude,
sabedoria e tudo quanto é digno de encô mio.
Portanto, Paulo declara com razã o que os que amam a si mesmos
merecem ser odiados, visto que sã o saturados de malícia e inveja.
Acaso queremos ser amorosos e totalmente sinceros, de modo que
nã o nutramos má intençã o para com nossos semelhantes? Antes de
tudo, nosso Senhor tem que nos recriar mediante a açã o de seu
Santo Espírito. E acaso queremos ser livres de toda inveja? Entã o
olhemos para Deus, pois antes de tudo ele olhou para nó s, como
Paulo escreve em outro lugar: “mas agora que conheceis a Deus ou,
antes, sendo conhecidos por Deus” [Gl 4.9]. Se já fomos atraídos para
junto de Deus, ele deve ir adiante de nó s com sua graça. Lembremo-
nos, pois, quando nos sentirmos saturados de inveja e malícia,
merecemos tã o somente ó dio; e que, por nossa vez, odiaremos
nossos semelhantes, até que nosso Senhor nos atraia a si. Esta é a
insígnia que devemos portar: que nos humilhemos diante de Deus e
confessemos que, ao decidir iluminar-nos, ele demonstrou grande
piedade e infindá vel mercê. Pois, quando ele nos encontra, acaso nã o
estamos em um estado de completa desobediência, opondo-nos,
respectivamente, a ele e a tudo o que é bom?
Uma vez elaborado este ponto, Paulo agora escreve: Quando, porém,
se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor
para com todos, não por obras de justiça praticadas por nós. Ora, que
obras de justiça praticamos, exceto as que Deus pô s em nó s pela
açã o de seu Santo Espírito? É tã o somente sua graça que
resplandece aqui; de modo que tudo quanto os homens alegam em
prol de si mesmos deve redundar em nada. Essa é a segunda razã o
pela qual Paulo busca ensinar-nos a ser pacientes e suportar gentil e
brandamente os erros e imperfeiçõ es de nossos semelhantes; e,
acima de tudo, suportar à queles a quem Deus ainda nã o iluminou
com a fé de seu evangelho. Reiterando, as palavras de Paulo
comunicam uma verdade universal, a saber, que a fonte e princípio
de nossa salvaçã o está na mera bondade de Deus. Por “mera
bondade” excluo deliberadamente toda virtude que os homens
porventura pensam possuir. É verdade que mesmo os mais
ignorantes admitirã o — como de fato devem — que, se Deus nã o
fosse misericordioso para conosco, todos nó s estaríamos perdidos e
arruinados. Todos reivindicam para si alguma bondade, de modo
que nã o permitirã o que Deus receba todo o louvor; parte dele eles
guardam para si. Este é um equívoco geralmente cometido por todos
os homens.
Hoje, esse equívoco é comum entre os turcos, os judeus e os
papistas. É um artigo de sua fé que nã o podemos obter a salvaçã o, a
nã o ser ajudados pela mercê de Deus. Nã o obstante, entretêm a ideia
falsa e diabó lica de que devemos cooperar —, isto é, devemos estar
ativamente envolvidos, tornando-nos, por assim dizer, parceiros de
Deus. Daí, eles concebem as obras de preparaçã o. Entre os papistas
corre o dito de que, até que Deus tome a iniciativa, os homens nã o
podem ter mérito; pelo quê significam mérito de real valor. Por quê?
Porque Deus, dizem, deve dar o primeiro passo. Entretanto, temos
em nó s bons princípios e impulsos. Uma pessoa nã o pode querer o
que é bom, visto que seu coraçã o é contaminado. Todavia, ela pode
trazer consigo a disposiçã o de fazer o bem. Seu desejo pode nã o ser
forte, mas ela pode, de sua pró pria iniciativa, ter uma ou outra boa
disposiçã o que lhe permite dizer: “Eu desejo fazer o bem”. É assim
que os papistas veem estas coisas! [25] Dá -se o mesmo com os judeus
e com todos os que pensam como eles. Deus, de sua parte, afirma
que nã o leva em conta as obras dos homens quando decide chamar-
nos e mostrar-nos sua mercê. Paulo nã o diz que nossas obras podem
ter valor, e que Deus simplesmente tem que nos suprir do que nos
falta. Nenhuma parceria desse tipo é possível, pois isso seria tomar
de Deus uma porçã o de seu louvor. Os homens nã o podem receber
crédito pela menor coisa sem negá -lo a Deus. O apó stolo nã o dá
crédito a essa ideia a fim de humilhar nossa presunçã o, declarando
que nã o é por nossas obras, mas pela mercê de Deus.
Ao falar de “obras que temos praticado”, ele nos lembra de que Deus
de modo algum é nosso devedor, visto que ele já disse que somos
néscios, desobedientes, ludibriados e saturados de paixõ es ímpias, e
que o diabo de tal modo nos controla, que somos escravos do
pecado e da perversidade. Como podemos merecer algo, ou o que
podemos levar à presença de Deus que o ponha em obrigaçã o para
conosco? Eis como Paulo invectiva a néscia hipocrisia dos homens, a
qual os diverte sempre que reivindicam para si alguma bondade.
Como isso pode ser? É porque falham em olhar para seu interior. E
assim os mestres da doutrina papal tagarelam infindavelmente
sobre o livre-arbítrio, obras de preparaçã o e méritos. Isso se deve ao
fato de que sã o escarnecedores que nunca penetram suas pró prias
consciências. Imaginemos, pois, um patife devasso ou um ébrio
embebido em todas as sortes de males, que prega sobre as virtudes
tanto cardinais quanto divinas. No entanto, nem uma vez se
submetem a Deus de modo que clamem: “Quem sou eu? Que tipo de
homem eu sou?”. Paulo, pois, moteja dos homens por serem
deliberadamente cegos e por fecharem os olhos para sua
depravaçã o. Nã o obstante, somos ensinados que, se olharmos
fixamente para nó s mesmos, nã o podemos merecer para nó s sequer
um á tomo de louvor. Como reza a Escritura, nã o é pelas obras que
porventura tenhamos praticado.
Adiciona-se a frase em justiça, de modo que Paulo parece dizer:
“Quando os homens se gabam de algum bem feito, falham em pesá -
lo na balança de Deus, pois costumam confundir vício e virtude.
Deus pensa de outro modo, pois somente ele é competente para
julgar e somente seu veredicto é final. Ele declara que justiça é o
equivalente de obediência à lei, de modo que devemos ordenar
nossas vidas em tudo como ele manda. É assim que ele julga a
justiça”. Portanto, observemos o que nos é dito aqui. Deus quer nã o
só que andemos retamente diante dos homens, e sejamos
irrepreensíveis, mas também que sejamos puros e isentos de toda
inclinaçã o maligna. Ora, quem é capaz disso? Quando Paulo escreve
sobre obras praticadas em justiça, ele fala deliberadamente, pois ele
mostra com que facilidade os homens se iludem crendo que suas
virtudes põ em Deus como seu devedor, e o obrigam a atraí-los a si.
Na verdade, nunca conheceram nem de modo algum provaram a
justiça. E assim tudo deve ser atribuído à bondade de Deus e ao
amor que tem para com os homens.
Ao mencionar primeiro a bondade de Deus, Paulo busca demonstrar
que somos inimigos de Deus, até que ele se agrade de perdoar-nos
graciosamente.
É verdade que somos redimidos pelo sangue de nosso Senhor Jesus
Cristo, a quem Deus nã o poupou, em razã o do amor que ele nutria
para conosco. Como lemos no terceiro capítulo de Joã o: “Porque
Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito,
para que todo aquele que nele crê nã o pereça, mas tenha a vida
eterna” [Jo 3.16]. É importante entendermos quã o livre era seu
amor; porque, como já dissemos, com sua ingratidã o, os homens
fazem o má ximo que podem para obscurecer a gló ria de Deus. E
embora possam confessar que, sem o amor de Deus, estavam
totalmente perdidos, entã o se volvem e indagam: “Por que ele nos
amou? Pode ser que ele tenha achado alguma bondade em nó s. É
possível que tenhamos sido indignos, mas nã o fomos totalmente
excluídos, mesmo que nos faltasse o que leva Deus a chamar-nos a
si”. Entã o, a fim de despir os homens de seu fú til orgulho e humilhá -
los completamente, Paulo diz que é tã o somente o amor de Deus —
seu amor paternal — que nos redime. Declara ainda que havia em
Deus uma bondade maior que o predispô s a se reconciliar conosco e
a estender-nos sua mercê, a despeito do fato de que éramos maus e
corrompidos, e de tal modo o impedíamos que bem poderia tornar-
se nosso mortal inimigo. Esse é o ensino de Paulo aqui.
Agora nã o podemos explicar o restante do texto. Aprendemos que o
amor de Deus se revelou nã o só quando Cristo veio ao mundo e
assumiu a carne humana, mas também quando o evangelho foi
anunciado, de modo que incrédulos miserá veis pudessem partilhar
deste dom inestimá vel. Hoje, o amor de Deus é revelado quando nos
reunimos em seu rebanho e nos resgata de nossos horríveis
estresses a fim de que, como membros de sua casa e igreja,
pudéssemos ter a certeza da herança preparada para nó s no céu.
Uma vez, pois, tendo ouvido da livre bondade de Deus e do amor
paternal que vem dele, possamos assegurar-nos de que ele mostra o
mesmo para conosco hoje. Pois, quando o evangelho nos é
anunciado, é como uma lâ mpada que nos fornece luz, permitindo-
nos perceber o que antes estivera oculto. Até que passemos a
conhecer o beneplá cito de Deus, somos mais ou menos sepultados
nas trevas. No entanto, Deus é bondoso e gracioso, garantindo-nos
que está perto de nó s e quer abraçar-nos como seus filhos. Agora
que ele nos enviou sua Palavra e nos certificou de sua verdade, nã o
podemos nutrir dú vida de que já nos garantiu sua salvaçã o.
 
Oração
Agora prostremo-nos diante da majestade de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e pedindo-lhe que nos faça senti-los,
para que cada um de nó s aprenda a odiá -los. Que nó s nã o só os
condenemos com nossos lá bios, mas arrependamo-nos de nossa
malícia enquanto vivermos. Vejamos que a bênçã o de Deus nã o é
uma recompensa por nossa justiça, ou algo adquirido por nossos
pró prios esforços. É -nos dada de sua livre graça, a fim de que lhe
rendamos graças e nos devotemos a ele mais e mais, rogando-lhe
que continue sua obra em nó s até que ela esteja completada. No
ínterim, que todos nó s, de comum acordo, de tal maneira vivamos
que nã o mais erremos e nos extraviemos como míseros incrédulos,
mas andemos como filhos da luz e por nossas açõ es confirmemos a
mesma coisa.

16. NOVA VIDA EM CRISTO [Tito 3.4-7]


Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador,
e o seu amor para com todos, não por obras de justiça praticadas por
nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar
regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre
nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de que,
justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a
esperança da vida eterna.
 
Eu disse anteriormente que neste texto Paulo atribui como causa
ú nica de nossa salvaçã o a mera bondade de Deus; de modo que
devemos reconhecer com toda humildade que tudo o que temos
vem dele a fim de que ninguém jamais se glorie novamente em si
mesmo. Eis por que ele omite qualquer mérito que porventura os
homens pensem possuir, declarando que nada temos feito que
obrigue Deus a nó s, mas que obtemos a justiça quando ele decide
receber-nos em sua livre mercê. Agora Paulo explica como isso é
feito. É feito pela lavagem espiritual que Deus derramou sobre nó s
através de nosso Senhor Jesus Cristo. Assim somos purificados de
todas as nossas manchas, e Deus nos aceita porque lhe somos
agradá veis.
Aqui, Paulo mostra claramente a fonte de nossa salvaçã o, a saber, o
amor que Deus tem para conosco. Este é o ponto ao qual devemos
volver-nos sempre que perguntarmos como somos salvos da
maldiçã o que é nossa por natureza. Mas, visto que existe tal abismo
entre Deus e nó s, devemos ter algum meio pelo qual possamos mais
facilmente aproximar-nos dele. Nosso Senhor Jesus Cristo é o meio;
ele e todos os dons de seu Santo Espírito. É isto que agora vamos
discutir. Nã o obstante, é importante lembrar o elo entre a causa
principal e o que segue —, isto é, entre o amor de Deus que se nos
manifestou e o modo de obter esse amor e desfrutar a salvaçã o que
nos é oferecida.
Antes de tudo, porém, lemos que Deus derramou sobre nós a lavagem
da regeneração e renovação do Espírito Santo, por intermédio de
Jesus Cristo, nosso Senhor. É evidente que, para descobrir o meio de
nossa salvaçã o, temos que começar com o Filho de Deus, pois foi ele
que nos reconciliou com Deus seu Pai; que nos lavou com seu
sangue; que obteve para nó s a justiça mediante sua obediência; que
é nosso advogado e através de quem agora achamos graça. Foi ele
que nos trouxe o Espírito Santo e que nos assegurou de nossa
adoçã o pela qual somos feitos filhos e herdeiros de Deus. Portanto,
entendamos que devemos visualizar cada parte de nossa salvaçã o
em Jesus Cristo, e que nem sequer uma gota dela pode ser achada
em algum outro lugar.
No entanto, Paulo nã o insiste sobre esta ordem particular, como se
nada houvesse mais importante do que a lavagem a que ele se
refere. Aqui, seu alvo é simplesmente mostrar aos homens, de uma
maneira familiar, como podem unir-se a Deus e como podem ter
parte na salvaçã o que foi previamente descrita. Sabemos quã o
ignorantes somos e como Deus se condescendeu de nó s e nos
ensinou o que de outro modo nos estaria oculto. Pois tudo o que
tange à nossa salvaçã o está além de nossa compreensã o e nã o
podemos alcançar o ponto mais alto que nos faculte apreendê-la.
Estes sã o mistérios que nos sã o ininteligíveis. Quando nos falam do
reino espiritual de Deus, é como se ouvíssemos uma língua
desconhecida. Eis por que Paulo, por assim dizer, primeiro mastiga
esses bocados por nó s para que nos seja mais fá cil de entender.
Entã o ele declara que Deus, para nos salvar, derramou sobre nó s
uma lavagem. Em outras palavras, somos conspurcados e imundos
por natureza; nã o somos mais que imundícia e mau cheiro; somos
malditos à vista de Deus; de modo que ele deveria rejeitar-nos e
desprezar-nos e lançar-nos para tã o longe de si, que nos fosse
negada toda esperança.
Portanto, o primeiro ponto de Paulo é que somos tã o contaminados
e imundos, que só podemos ser detestá veis a Deus. Entã o, sem
dú vida, vangloriemo-nos o quanto quisermos! No que respeita à
nossa salvaçã o, busquemo-la em nossos pró prios méritos! No
entanto, tudo o que é sujo e contaminado é ofensivo a Deus, que é a
fonte de toda pureza. Entã o, visto que somos inteiramente imundos,
Deus se obriga a ser nosso inimigo. Como, pois, podemos obter seu
favor alegando nossa pró pria dignidade? Devemos concluir que é o
cú mulo da demência que os homens aleguem algum crédito no
tocante à sua salvaçã o, e que sejam ignorantes daquele amor puro e
ilimitado do qual o apó stolo fala.
Avaliemos a palavra “lavagem” que Paulo anexa à s palavras
“regeneraçã o” e “renovaçã o do Santo Espírito”. Indubitavelmente,
ele compreendia isto como uma referência ao batismo e buscou
retratar esta doutrina como em um espelho. Visto que somos
morosos para entender, Deus nã o se contenta em testificar no
evangelho que somos lavados e purificados pelo sangue de nosso
Senhor Jesus Cristo. Ele nos mostrou isso figuradamente,
representando o batismo como um sinal visível de que, quando
chegamos diante de Deus, só lhe apresentamos nossa má cula, e que
seu ofício é purificar-nos. É isso que nos cabe ver. Em consequência,
Paulo, em vez de dizer que nossos pecados sã o perdoados e que a
vida nos é oferecida, diz que Deus nos lavou e nos fez limpos. Com
estas palavras, ele nos traz de volta ao batismo no qual é mais fá cil
contemplar a graça que é posta diante de nó s aqui. Nã o obstante, é
ó bvio que esta lavagem nã o é algo feito visivelmente com á gua.
Como poderiam nossas almas ser purificadas por um elemento
terreno e perecível? A á gua nã o tem esse poder. Contudo, visto que
somos fracos, devemos começar com a á gua a fim de pô r as coisas
em lugar mais alto. Repito que devemos começar com a á gua, porém
nã o devemos deter-nos aí, pois este sinal que é feito visível a nó s
busca indicar-nos o Espírito Santo e ensinar-nos que é dele que o
batismo deriva sua eficá cia. Por esta razã o, embora Paulo empregue
a metá fora da á gua, ele deixa claro que nã o devemos depositar nela
nossa confiança, mas atribuir todo seu poder e perfeiçã o ao Espírito
Santo. Esse é o ponto.
Ao mesmo tempo, nos é mostrado que a graça nos foi dada pelo
Santo Espírito quando fomos batizados, a saber, regeneraçã o e
renovaçã o. [26] A palavra “regeneraçã o” significa que nascemos uma
segunda vez. Nã o que devamos emergir novamente do ventre da
mã e! Deus nos faz novas criaturas gravando em nó s sua imagem.
Pois, como filhos de Adã o, o que mais produzimos senã o a mais
direta maldiçã o? Portanto, Deus tem que nos transformar. Devemos
reconhecer que em nó s há tã o somente malícia; que somos
indispostos; que o que chamamos sabedoria nã o passa de mera
loucura; e que o livre-arbítrio é apenas abominá vel escravidã o ao
pecado. Mas, para reconhecer isto e para condenar-nos
imerecidamente, temos de ser formados de novo e transformados.
Eis o que significa regeneraçã o. Paulo explica isso falando de uma
novidade em nó s. A Escritura diz a mesma coisa, e comumente
afirma que devemos tornar-nos novos homens. Eis o que está
implícito: até que renunciemos tudo o que recebemos de nosso pai
Adã o, nã o somos mais que rebeldes contra Deus; saturados de
malícia, hipocrisia e maus desejos. Em suma, a natureza humana é
um poço de iniquidade, e permanece corrupta até que Deus decida
pô r as coisas nos trilhos.
No entanto, Paulo insiste que é nosso Senhor Jesus Cristo quem faz
tudo isto. Pois, como já dissemos, como poderia o Espírito de Deus
ser nosso se ele nã o nos fosse dado por aquele que possui em si a
plenitude do Espírito? Ora, a fim de sermos lavados, devemos
tornar-nos novas criaturas; e, assim, devemos ver que nossa
salvaçã o nã o depende de nó s, e sim nos é dada por intermédio de
nosso Senhor Jesus Cristo e em sua pessoa. Daí, no que diz respeito à
salvaçã o, saibamos que, como questã o de fato, se Deus nã o tivesse
compaixã o de nó s, teríamos permanecido perdidos e sem esperança.
Portanto, devemos considerar a mercê de Deus como a chave de
nossa salvaçã o e como sua pró pria fonte.
Mesmo assim, isso nã o bastaria para confirmar-nos em nossa
confiança. É verdade que as novas de que sem a misericó rdia de
Deus os homens estavam perdidos e perecendo lhes deu motivo de
glorificar a Deus e humilhar-se. Como poderiam nã o humilhar-se e
nã o extasiar-se ao descobrir o quanto devem a um Pai tã o
compassivo? Essa ú nica verdade seria mais que suficiente para
tornar os homens humildes e levá -los ao reconhecimento da
bondade de Deus. Igualmente, nossa confiança jamais poderia ter
sido tã o forte se Deus nã o houvesse se revelado a nó s, e se ele nã o
houvera exibido seu amor para conosco de uma forma tã o íntima.
Aprendamos, pois, a ir a nosso Senhor Jesus Cristo, que se vestiu
com nossa natureza para que o conheçamos mais de perto. Ele se fez
homem para que nã o necessitá ssemos buscá -lo ao longe a fim de
achá -lo. E assim somos lembrados do fato de nossa salvaçã o sempre
que ela seja uma questã o de confiança.
É verdade que Deus sempre conservaria nossa salvaçã o em suas
pró prias mã os, porque, se tivéssemos a incumbência de mantê-la,
ah!, o que seria dela? Mas, embora seja Deus quem preserva a nossa
salvaçã o, e embora, no dizer de Pedro, esteja no céu, ela é protegida
de todos os perigos deste mundo [1Pe 1.5]. De tal modo, Deus tem
testificado pessoalmente de sua veracidade, é como se sua certeza
fosse garantida. Como isso é possível? É porque Jesus Cristo se une a
nó s e nos chama “meus irmã os”. Redunda-se, pois, a isto: se formos
solidamente fundamentados em toda certeza; se, sem duvidar,
invocarmos a Deus; se estivermos certos de nossa adoçã o e de nossa
herança celestial, entã o, volvamo-nos para Jesus Cristo.
No entanto, notemos, como um ponto adicional, que nã o basta saber
meramente o nome de Cristo. Temos também de reconhecer seu
ofício e seu poder. Devemos, repito, entender por que o Pai celestial
no-lo enviou e os benefícios que ele nos trouxe. Eis por que Paulo
aqui descreve a lavagem pela qual somos renovados e feitos novas
criaturas. Jesus Cristo nã o veio vazio dos dons requeridos para a
saú de espiritual de nossas almas. A perfeiçã o completa do Espírito
Santo lhe foi dada para que ele distribuísse a cada um de nó s
segundo sua partilha e medida. A Escritura reza que “o Espírito de
Deus repousou sobre ele; o Espírito de sabedoria, pureza, juízo e
poder” [Is 11.2]. Numa palavra, nada há remotamente no tocante à
vida eterna que nã o encontramos em Jesus Cristo. Tampouco, como
foi dito, podemos aproximar-nos de Deus, exceto por intermédio de
nosso Senhor Jesus Cristo. Reiterando, visto que temos tal Mediador,
podemos estar certos de que Deus nos ama e nos reconhece como
seus filhos.
Se aprendermos como isso sucede, entã o podemos volver-nos ao
ensino de Paulo. Ele declara que Jesus Cristo, nosso Senhor, que por
sua morte e paixã o nos lavou; que derramou seu sangue, de modo
que todas as nossas manchas sã o purificadas e já nã o sã o visíveis a
Deus, seu Pai; que foi crucificado para obliterar o pecado e livrar-
nos da tirania que nos escravizava, agora nos comunica todas estas
coisas pela graça e pelo poder de seu Santo Espírito. Sua morte e
paixã o sã o para nosso proveito, porque, se nã o tivéssemos o Santo
Espírito de Jesus Cristo, ele teria sofrido em vã o. De fato, sua morte e
paixã o tinham o poder de salvar-nos, mas teríamos sido excluídos e
privados dela. Pois sua morte e paixã o, para produzirem fruto em
nó s, teriam que fazer-nos participantes de seu Santo Espírito. Eis a
liçã o que devemos aprender.
Talvez se devesse falar mais sobre estas coisas, mas algumas vezes
uma exposiçã o muito extensa só obscurece a verdade. Eis por que
tenho tentado nã o fazer mais que um breve sumá rio, de modo que
os mais ignorantes possam, com três palavras, entender onde devem
procurar a salvaçã o e os passos que os levam a ela. O que devemos
saber é que Deus o Pai tem tido compaixã o de nó s; que devemos ser
levados a Jesus Cristo e temos de entender como temos nele a
salvaçã o — isto é, como ele fez tudo o que era necessá rio para nossa
salvaçã o, a qual liberalmente derrama sobre nó s pelo poder e graça
de seu Santo Espírito.
Observemos agora o que Paulo diz sobre esta lavagem: que ele
derramou sobre nós ricamente. Em outras palavras, Deus nã o instilou
gota a gota, como se ele nos estivesse poupando, porém derramou
tal generosidade, que temos toda a razã o de sentir-nos satisfeitos.
Isto serve a um duplo propó sito. O primeiro é encorajar-nos a
exaltar e magnificar as riquezas de nosso Deus como merecem. Pois
embora nosso Deus continue a operar em nó s eficazmente, quase
nunca pensamos nisso. Agimos como homens confinados; em vez de
abrir a mente, o coraçã o e o pensamento para aceitar a graça que ele
nos oferece, somos apanhados pela incredulidade e pela ingratidã o.
Deus nã o pode achar em nó s nenhuma via nem qualquer abertura
que nos permita receber os dons de um valor tã o imenso. Em
consequência, Paulo se refere aqui à s abundantes riquezas que sã o
nossas em nosso Senhor Jesus Cristo. Se apreendermos a mercê de
Deus como revelada nele, ela terá bastante comprimento e largura
para encher-nos e plenamente satisfazer-nos.
O segundo propó sito de Deus é que nos desviemos de todas as
coisas fú teis nas quais depositamos nossa confiança. Como é
possível que repousemos em nosso Senhor Jesus Cristo?
Prontamente, o reconhecemos como nosso Salvador e como aquele
que nos reconciliou com Deus, mas também esperamos, vezes e
mais vezes, por outros auxílios. Os homens chegarã o a algum
extremo, pois nã o farã o de Jesus Cristo seu ú nico e verdadeiro alvo
ou admitirã o que a salvaçã o completa se encontra somente nele.
Segundo Paulo, é monstruosa ingratidã o recusarmos a benignidade
que nos é mostrada no Filho unigênito de Deus. Por que é assim?
Porque nele há tais riquezas que somente a mais profunda cupidez
pode nã o contentar-se com elas.
Entã o, essas sã o as duas razõ es por que Paulo emprega a palavra
“abundâ ncia” [ou, riqueza]. Havendo dito, pois, que Deus nos salvou,
o apó stolo anexa: a fim de que, justificados por graça, nos tornemos
seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna. Estas duas
sentenças — “Deus nos salvou” e “a fim de que nos tornemos
herdeiros segundo a esperança” — devemos tomá -las juntas. Em
primeiro lugar, somos informados de que, com respeito a Deus e a
nosso Senhor Jesus Cristo, nossa salvaçã o já está completa e além de
discussã o. Entretanto, enquanto existir o tempo, nó s a possuímos
somente em esperança: ainda nã o vemos seu cumprimento. Aqui,
pois, temos que notar dois pontos. Um é que, ao crer em Jesus Cristo,
já passamos da morte para a vida, como lemos no quinto capítulo de
Joã o [Jo 5.24]. Nã o devemos imaginar, como os papistas, que Jesus
Cristo já nos abriu a porta da salvaçã o e que nossa tarefa é entrar se
quisermos, ou que o que ele começou devemos completar. Estas sã o
blasfêmias ímpias e abominá veis. Sabemos que nossa salvaçã o já foi
consumada por nó s, certamente da parte de Deus. Nã o obstante,
ainda nã o a desfrutamos plenamente, pois nesta vida mortal temos
que lutar e sofrer tribulaçõ es e angú stias. É como se fô ssemos
cercados por mil mortes e afundados no mais profundo inferno.
E assim nossa salvaçã o estã o oculta, como lemos no oitavo capítulo
de Romanos [Rm 8.23]. Contudo, em todo o tempo permanecemos
herdeiros através da esperança; isto é, embora suportemos a
disciplina de Deus e sejamos cô nscios das fragilidades que podem
tornar-nos ansiosos e temerosos, nã o obstante estamos certos de
que Deus nã o muda, e uma vez ele nos escolheu e testificou de sua
adoçã o, a esperança que temos nele confirma e sustenta a certeza da
fé. Ainda quando esperamos, nossa herança já está sendo preparada
para nó s. Tudo o que nos resta é tomar posse dela quando chegar o
tempo.
A mensagem deste texto agora se faz clara; falta-nos pô -la em
prá tica. Assim, sempre que se mencionar a mercê de Deus,
compreendamos que a confiança em nossos pró prios méritos é
excluída e que toda vangló ria deve cessar. Em nó s mesmos, nada
possuímos de valor, e nada podemos levar a Deus, visto que tudo o
que possuímos vem dele. Lembremo-nos também de que nã o
poderemos compreender a bondade e o amor de nosso Deus, a
menos que estes sejam penhorados por Jesus Cristo. Esquivemo-nos
de toda especulaçã o profunda e elevada enquanto buscamos a
certeza da salvaçã o, pois há muitos indivíduos iludidos que nunca
ficam satisfeitos até que tenham percorrido céus e terra. Em vez
disso, olhemos para Jesus Cristo, pois Deus nos sustenta em nossa
fraqueza, levando-nos a confiar unicamente em seu Filho; de modo
que nã o tenhamos que percorrer distâ ncias infindá veis a fim de
achá -lo. Ele desceu a nó s e de fato chegou a ser inferior a qualquer
homem, como lemos no salmo 22: “Mas eu sou verme e nã o homem;
opró brio dos homens e desprezado do povo” [Sl 22.6]. O profeta
Isaías o descreve como desfigurado à semelhança de leproso [Is
52.14]. Por que isso se deu? Foi para que pudéssemos tomar posse
da graça que ele oferece. Por que ele veio a ser como nada? É
exatamente assim que Paulo o descreve [Fp 2.7]. Todavia, todos os
dias, continuamente, ele nos convida a si, intimamente e com toda
brandura e benignidade imaginá veis. Porque, em seu evangelho, ele
nã o nos ordena a vir, mas exorta e roga, como Paulo ressalta na
segunda carta aos Coríntios [2Co 5.20].
Nosso Senhor Jesus Cristo é mui gracioso para conosco. Ouvimos
diariamente que ele deseja fazer-nos membros de seu corpo, e
devemos ter sempre em mente o que ele disse: “Vinde a mim, todos
os que estais cansados e sobrecarregados” [Mt 11.28]. Uma vez que
isso é assim, nã o nos disponhamos a nos extraviar, mas tomemos
Jesus Cristo como nosso alvo, pois nã o podemos errar se formos a
ele. Reiterando, se sabemos que é através dele que somos
reconciliados com Deus o Pai, e somos feitos completamente justos,
entendamos também que ele nos outorga essas coisas por seu Santo
Espírito. Portanto, a coisa mais importante é que nos contentemos
com Jesus Cristo, sem nada adicionar à graça que ele nos trouxe. Nã o
devemos imitar os papistas que reconhecem Jesus Cristo como seu
Mediador, mas que, entã o, olham para seus santos como protetores
e advogados e reivindicam os méritos dos apó stolos e má rtires.
Consideram a expiaçã o de Jesus Cristo como nada, a menos que
possam adicionar-lhe suas pró prias miscelâ neas. Pensam em seus
méritos como um ensopado misto e nã o se contentam com o
perfeito alimento com o qual o Filho de Deus supre nossas almas,
lançam um ou dois saborosos condimentos de seu pró prio invento
que visa mais a seu pró prio paladar!
Nó s, de nossa parte, resolvamos viver satisfeitos com as riquezas da
bondade de Deus, as quais ele nos dá generosamente na pessoa de
seu Filho. Ao mesmo tempo, como já dissemos, lembremo-nos de
que Jesus Cristo somente nos distribui seus dons quando nos
tornamos participantes de seu Santo Espírito. Portanto, de que nos
serve que Cristo haja derramado seu sangue, se nã o formos lavados
nele por seu Santo Espírito, como diz Pedro em sua primeira carta
[1Pe 1.2]? De que nos serve que, ao morrer na cruz, Cristo haja
eliminado o pecado e a tirania da morte, se nã o nos unirmos a ele
pela graça de seu Santo Espírito? Entã o, roguemos ao nosso bom
Deus que nos ajude a desfrutar do que ele já conquistou para nó s
pela morte e ressurreiçã o de seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo,
para que os dons do Espírito Santo sejam derramados sobre nó s.
Como isso sucede? Primeiro, recebendo a luz da fé, pela qual
conhecemos a Deus como nosso Pai e nos asseguramos de sua
bondade para conosco. Entã o, também, recebendo o Espírito de
temor piedoso, pelo qual abandonamos nossas má s inclinaçõ es e
desejos e nos rendemos ao serviço daquele que deve ser nosso
Soberano. Necessitamos ainda do Espírito de poder e de confiança
para lutarmos contra todos os ataques de Sataná s e nos desviarmos
de toda provaçã o. Finalmente, devemos ter o Espírito de sabedoria a
guardar-nos contra as cavilaçõ es e astú cias de nossos inimigos. Eis
como seria, se a morte e a paixã o de nosso Senhor Jesus Cristo há de
nos beneficiar, e se sua ressurreiçã o há de exercer seu pleno efeito e
poder.
Agora temos de notar aquele testemunho que é dado de todas estas
coisas por nosso batismo; de modo que, quando nos sentirmos
vazios dos dons do Espírito Santo, nã o devemos nutrir dú vidas de
que eles nos serã o dados quando os pedirmos. Por quê? Deus nã o
nos frustra quando ordena o batismo como um sinal para nó s. Pois
ali temos um penhor de que ele nã o é mesquinho nem frugal para
conosco; mas, sabendo o que nos é ú til, derrama amplamente sobre
nó s todos os dons de que necessitamos e que nos faltam. Acaso
sentimos em nó s mesmos alguma fraqueza? Acaso uma nuvem
escura de ignorâ ncia nos cerca, de modo a nã o podermos apreender
as coisas espirituais? Olhemos para Deus e que nosso batismo nos
guie a ele; porque, como já foi dito, nosso Senhor nele testifica que
nada nos faltará enquanto o tivermos como nosso refú gio. Em
contrapartida, vejamos que meramente receber o batismo é de
nenhuma importâ ncia. Se tivermos apenas o sinal visível, mas nunca
sentirmos seu real efeito, ele só servirá para condenar-nos ainda
mais, e a culpa será nossa. Se algo sobre ele estiver errado, devemos
julgar nossa incredulidade mais severamente do que temos feito até
agora.
E assim Paulo atribui à lavagem do Espírito Santo o poder de nossa
renovaçã o e regeneraçã o. O que ele diz tem por alvo os crentes que
nã o recusam os dons de Deus, mas que abrem a boca para que ele a
encha, como o Salmo nos exorta a fazer [Sl 81.10]. Em consequência,
devemos reconhecer que os incrédulos se assemelham a uma jarra
que é hermeticamente fechada: Deus derrama seus dons, mas nã o os
aceitam, pois eles estã o firmemente selados e nã o há nenhuma
passagem. Ou, pior, sã o tã o duros como as rochas sobre as quais cai
a chuva em um dia, mas que ficam secas por dentro, porque sã o
duras demais. O mesmo se dá com os que rejeitam os dons de Deus;
mas, se abrirmos nossas bocas com fé, ficaremos satisfeitos.
Portanto, Paulo está certo quando diz aos crentes que Deus já lhes
derramou esta lavagem espiritual, e lhes permite participarem dela.
Voltemos agora ao pensamento final neste versículo: ele nos salvou .
Deveras estamos salvos, porque já nos tornamos herdeiros através
da esperança. Aqui, o apó stolo revela as bases de nossa salvaçã o e
nos mostra o que ela realmente é. Somos herdeiros de Deus.
Estritamente falando, nossa salvaçã o nã o é nossa, exceto via
herança. Nã o somos herdeiros por natureza, mas por adoçã o,
porquanto Deus se agrada em receber-nos como seus filhos.
Nascemos filhos da ira; isto é, somos malditos; e estamos tã o longe
de poder reivindicar a Deus como nosso Pai, pois somos rejeitados
por ele; nã o obstante, ele nos adota como seus. Como ele pode fazer
isso? Paulo nos convida a olhar para nosso Senhor Jesus Cristo, o
qual é realmente chamado o Filho unigênito de Deus. Isso é o que ele
é por natureza; a dignidade é sua por direito. Uma vez enxertados
em seu corpo e membros dele, também fomos adotados. É por este
meio que nos vem a herança do reino do céu. Somos herdeiros?
Entã o, somos salvos — no entanto, salvos mediante a esperança.
É isto que realmente devemos ter em mente, pois Deus nã o quer que
sejamos ociosos neste mundo. Embora ele já houvesse consumado
nossa salvaçã o na pessoa de seu Filho, nã o obstante ele quer guiar-
nos a ela segundo a ordem que ele já designou. Entã o, quando
recebemos a prova de seu beneplá cito e de tudo o que ele nos
oferece em seu evangelho, isso visa a que sejamos justificados por
sua graça somente e sejamos treinados em nosso combate contra
Sataná s. Essa é a batalha na qual Deus quer que nos digladiemos,
nã o por um dia, mas por uma vida inteira. Por isso devemos lutar
duramente para desvencilharmo-nos de todas as paixõ es, aspiraçõ es
e desejos, e até mesmo de nossa pró pria sabedoria. É
principalmente aqui que Deus quer testar nossa obediência,
instando-nos a que menosprezemos nossos mais queridos
pensamentos e a nã o sermos sá bios a nossos pró prios olhos. Em vez
disso, esforcemo-nos em submeter-nos totalmente a ele, de modo
que, seja aonde quer que nossos apetites nos arrastem, tenhamos
um freio a nos coibir; e assim, a despeito de nó s mesmos, morramos
para o ego e cedamos o controle a Deus e nã o à s nossas afeiçõ es.
Visto, pois, que Deus deseja que trilhemos este caminho todos os
dias de nossa vida, atentemos bem para o que lemos aqui sobre a
esperança. A razã o é que, embora sejamos informados de que somos
salvos, em todo o tempo o diabo conspira para destruir-nos e tem os
meios para efetuá -lo, a menos que sejamos preservados pelo
maravilhoso poder de Deus. Temos também ciência das misérias
que nos cercam. Tã o miserá veis sã o nossas vidas, que os incrédulos
parecem mais abençoados e vivem em melhores condiçõ es que os
filhos de Deus. Todas estas coisas podem ser vistas claramente.
Como resultado, bem que poderíamos sentir-nos completamente
desfalecidos, se nã o fô ssemos advertidos antecipadamente pelo que
Paulo diz neste texto, a saber, que somos herdeiros através da
esperança. De modo que somos confirmados na certeza de nossa
salvaçã o. Quando neste mundo formos ridicularizados pelos
incrédulos e sofrermos mil insultos e ataques, devemos aferrar-nos
à certeza de que somos aceitá veis a Deus. Reiterando, embora nossa
vida esteja oculta, e embora pareçamos quase perecer, sendo como
ovelhas levadas ao matadouro — como lemos no oitavo capítulo de
Romanos [Rm 8.36] — embora sejamos praticamente calcados sob a
planta dos pés, rejeitados pelo mundo e ridicularizados, nada disso
nos detém de aferrar-nos à fé na herança preservada para nó s no
céu. Por mais perdidos que nos sintamos, podemos estar certos de
que somos verdadeiramente salvos. Por quê? Porque nossa salvaçã o
está em boas e seguras mã os. Deus é o seu preservador.
Nã o obstante, nã o estamos cercados por tribulaçõ es de todos os
lados? Sim, mas jamais nos tornamos presas de Sataná s, já que Deus
estende seu poder para defender-nos. Além do mais, nosso Senhor
Jesus Cristo cumpre a tarefa que lhe foi designada, pois ele nos tem
tomado ao seu cuidado. Sabemos que ele prometeu que nenhum dos
os que lhe foram dados pereceria [Jo 6.39]; e visto que Deus é o
Todo-Poderoso, nossa salvaçã o é livre de todo perigo. Eis como
podemos ser confortados e como podemos desviar-nos de Sataná s,
do mundo e de todas as tribulaçõ es que nos assaltam. Em suma, já
podemos gloriar-nos na vida eterna, mesmo quando parecemos
estar à beira do precipício e prontos para cair nele, e somos
ameaçados a cada minuto do dia pela pró pria morte.
Ora, quando Paulo fala da vida eterna, é ó bvio que ele deseja que
sejamos tirados deste mundo ao qual somos tã o afeiçoados. Nã o há
um sequer que nã o queira viver e existir. Mas nã o sabemos como
escolher a vida que é real. Estamos embrenhados em sombras, como
pessoas que tomassem a lua entre seus dentes, como corre o dito.
Somos fascinados por essa ú nica palavra, “vida”; no entanto, tudo o
que fazemos é abraçar sua sombra, pois todos nó s estamos jungidos
a esta vida fugaz e o mundo nos envolve hermeticamente. E assim
escarnecemos continuamente da vida infindá vel à qual Deus nos
chama e a qual Jesus Cristo adquiriu para nó s. Lembremo-nos, pois,
que nos destinamos a passar por este mundo, e que aqui Paulo
aplica a espora, por assim dizer, insistindo conosco a que
busquemos a vida celestial e atravessemos este mundo sem nada a
nos deter. E visto que somos excessivamente fracos e nossas mentes
nã o podem subir tã o alto, que todos nó s ponhamos nossos olhos em
Jesus Cristo. E como lembramos que o Filho de Deus desceu à terra e
entã o nos recebeu na gló ria — havendo Deus feito nossos amigos os
pró prios anjos —, consideremo-nos simplesmente como peregrinos
neste mundo, pois nã o cessamos de ser cidadã os do céu, ao qual
somos guiados pela esperança.
Eis por que Paulo diz em outro lugar que já estamos sentados nas
regiõ es celestiais [Ef 2.6]. Como? Através da esperança! Vemos, pois,
que a esperança nã o é uma coisa inanimada ou alguma mísera
fantasia que acontece de concebermos. É um impulso tal do Espírito
Santo que, embora estejamos encerrados por este corpo perecível e
sintamos um grande peso suficiente para arrastar-nos ao inferno,
embora nossa vista seja dolorosamente empanada e escurecida e
embora toda nossa força nos falte, Deus ainda assim opera pelo
poder de seu Santo Espírito. Assim, ficamos suspensos no ar e somos
incapazes de prosseguir, sempre anelando la herança preparada
para nó s e sem duvidar de que a alcançaremos, porque nosso
Senhor Jesus Cristo entã o aparecerá , e a vida que agora nos está
oculta será revelada.
 
Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando que ele nos faça senti-los
intensamente. Que diariamente ele corrija os males e erros em
nosso íntimo, de modo que nos esforcemos unicamente por
obedecer aos seus santos mandamentos e tiremos deles mais e mais
proveito, até que nos desvencilhemos de todos os nossos pecados e
imperfeiçõ es e nos revistamos de sua justiça.
 

17. PROVEITOSAMENTE OCUPADOS [Tt 3.8-15]


Fiel é esta palavra, e quero que, no tocante a estas coisas, faças
afirmação, confiadamente, para que os que têm crido em Deus sejam
solícitos na prática de boas obras. Estas coisas são excelentes e
proveitosas aos homens. Evita discussões insensatas, genealogias,
contendas e debates sobre a lei; porque não têm utilidade e são fúteis.
Evita o homem faccioso, depois de admoestá-lo primeira e segunda
vez, pois sabes que tal pessoa está pervertida, e vive pecando, e por si
mesma está condenada. Quando te enviar Ártemas ou Tíquico,
apressa-te a vir até Nicópolis ao meu encontro. Estou resolvido a
passar o inverno ali. Encaminha com diligência Zenas, o intérprete da
lei, e Apolo, a fim de que não lhes falte coisa alguma. Agora, quanto
aos nossos, que aprendam também a distinguir-se nas boas obras a
favor dos necessitados, para não se tornarem infrutíferos. Todos os
que se acham comigo te saúdam; saúda quantos nos amam na fé. A
graça seja com todos nós.
 
Notamos previamente as instruçõ es que Paulo ordenou que Tito
observasse. Agora ele conclui, dizendo-lhe que atentasse para as
coisas boas e evitasse as questõ es inú teis que nã o podem edificar a
igreja de Deus. Ao mesmo tempo, insta-o a falar com tal autoridade
sobre as coisas que valem a pena, para que os ouvintes nã o sejam
deixados em dú vida, mas se assegurem completamente delas. Ele o
adverte a nã o se preocupar com questõ es fú teis e disputas sem
sentido que a ninguém podem beneficiar. Visto que os que buscam
atribular a igreja desejam ter a ú ltima palavra e estar no topo; e
visto que podiam persuadir os servos de Deus a ficar do seu lado,
Paulo insiste que fossem deixados sozinhos. Diz ele: “Os servos de
Deus nã o devem se desgastar com tratantes dessa estirpe”. Pois que
lucro há quando os homens se comportam tã o
desavergonhadamente e trazem condenaçã o sobre suas pró prias
cabeças? Nã o podem ser vencidos; é uma perda de tempo, pois o
diabo os possui e merecem ser entregues a uma mente réproba,
visto que lutam contra Deus e o desafiam movidos por malícia
deliberada.
Isso dito, o apó stolo exorta aos cretenses a que pratiquem o bem,
pois sabemos que havia entre eles muita indolência. A despeito dos
melhores esforços de mestres tã o importantes, nã o havia efeito
ó bvio em suas vidas; era como se nunca houvessem ouvido sequer
uma palavra do evangelho. Em consequência, Paulo lhes ordena que
se exercitem para que os homens vejam que eles tiraram proveito
da escola de Deus. É isso que Paulo tinha em mente nesta passagem.
Tratemos agora de cada pensamento em ordem. Paulo começa: Fiel é
esta palavra, e quero que, no tocante a estas coisas. Por “Fiel é esta
palavra”, o apó stolo realmente está advertindo os ministros do
evangelho, na pessoa de Tito, a nã o promover na igreja ideias
estranhas que sã o inteiramente insuportá veis. Devem ensinar o que
tem sido provado e testado, para que os filhos de Deus sejam
edificados e tenham uma fé infalível, em vez de crença leviana.
Consideremos o que Paulo está dizendo. Ele nã o está falando de
especulaçõ es que nã o têm nenhuma base na Santa Escritura, mas de
coisas que têm a ver com nossa salvaçã o — de fato, do que Deus quis
revelar-nos. Deixemos bem claro que nã o foi porque Deus tinha
ciú mes de nó s que ele ocultou as coisas que a Escritura nã o fez
conhecidas. Ele escolheu o que nos é bom e ú til. Entã o, vemos quã o
estú pidas sã o muitas pessoas que se sentem aborrecidas quando
nã o encontram embasamento na Escritura para as ideias a que
apelam. Perguntam: “Por que Deus nã o falou sobre isto? Por que
nada foi dito sobre isso? Por que esta ou aquela questã o foi deixada
sem soluçã o?”. Muito bem, mas Deus revelou as coisas que bem
sabia nos seriam necessá rias. Portanto, contentemo-nos em ouvir o
que ele diz e descobriremos que nada nos falta. Como seria se Deus
fosse incensar nossos tolos caprichos e encher nossos comichantes
ouvidos com vento? Que respeito teríamos nó s pela Palavra de Deus
se tudo o que ela fez foi ser alcoviteira de nossos apetites sem
sentido? Visto, porém, que achamos nela a verdade de nossa
salvaçã o, e visto que a conhecemos como sendo santíssima e
sacratíssima, aprendamos a manuseá -la e recebê-la com o devido
temor e humildade.
E, assim, quando Paulo descreve este dito como seguro e certo, ele
tem em mente manter-nos dentro dos limites e impedir-nos de
perambular como é nosso há bito, intrometendo-nos em coisas que
Deus nã o quis revelar. Mantenhamo-nos naquilo que sabemos ser
certo. Quanto ao resto, Paulo nos adverte a nã o ser ousados a ponto
de endossar coisas das quais somos ignorantes. Entã o, o que
devemos fazer? Nã o devemos olhar para nosso pró prio
entendimento e, assim, decidir como pensamos ser apropriado.
Devemos começar com o que Deus nos tem ensinado com seus
pró prios lá bios; de outro modo, no fim, nossa leviandade nos porá
em ridículo. De fato, os homens podem nos admirar por algum
tempo, como sucede com os gabolas que abrem bem suas penas
como pavõ es! No entanto, quando tudo é dito e feito, Deus ri de sua
arrogâ ncia. O mesmo se dará conosco se tentarmos conhecer mais
do que é permissível ou se asseverarmos coisas sobre as quais nada
conhecemos. Necessitamos de evidência só lida se quisermos
ajuizar-nos do que nos é ú til.
Portanto, estamos bem certos sobre a Santa Escritura? Entã o, nã o
mais formulemos as perguntas “por quê” ou “como”: basta-nos que
Deus haja falado. Vemos como isso se dá hoje. Alguns presunçosos
tentam mostrar-se inteligentes; sã o rá pidos em repreender a Deus
caso haja algo nã o claro e difícil para eles. Clamam: “Olhe aqui, nada
disso faz sentido para mim!”. Supondo que fossem os maiores
mestres do mundo, iriam além de todos os limites quando rejeitam a
palavra que Deus tem falado. É verdade que alguns brutos usam um
distintivo de erudiçã o e usam uma má scara de estudiosos. Dizem:
“Oh!, é difícil para o estô mago a ideia de que Deus salva alguns e
rejeita outros a seu bel-prazer; que ele dirija os negó cios do mundo
segundo sua vontade; que sua vontade é soberana e que nã o
podemos saber por que ele age desta maneira”. Muito bem, se para
você estas coisas sã o obscuras, aprenda a humilhar-se e a ser
paciente até que você seja apto a tirar proveito com a ajuda de Deus.
Nó s, de nossa parte, devemos aprender que, enquanto vivermos
neste mundo, vemos obscuramente, no dizer de Paulo [1Co 13.12], e
saboreamos apenas um pouco da verdade. Nó s nã o a temos em toda
sua plenitude até que sejamos transformados para a gló ria de Deus,
quando veremos face a face. No ínterim, esses chacais nã o ficam
satisfeitos com isso, e se fantasiam como poderosos estudiosos que
argumentam sua disputa com Deus. Paulo, ao contrá rio, mantém
curta nossa rédea, ensinando-nos que, quando tivermos clara
evidência da verdade de Deus, devemos segui-la e obedecê-la. Ele
demanda ainda que os ministros asseverem a verdade e nã o falem
hipocritamente dela; devem sustentar sua base por mais que os
homens murmurem e protestem. Se o mundo inteiro se erguer
contra eles e tentarem deter o progresso do evangelho, que
desafiem todos aqueles demô nios que se rebelem contra Deus, por
mais altaneiros e poderosos que sejam eles. Que aqueles cuja tarefa
é ensinar falem o que é seguro e concordem firmemente conosco.
Deus desafia o mundo e todos os seus demô nios e pronuncia
palavras que sã o autênticas. Entã o, que venham o que quiserem,
nada deve impedir-nos de declarar sua inerrante verdade com a
má xima clareza. Embora os homens pendam para cá e para lá , os
ministros de Deus nunca devem curvar-se aos seus desejos ou
afastar-se da verdade. É essa a mensagem de Paulo a nó s aqui.
Em suma, este texto ensina que todos os que proclamam a verdade
de Deus nã o preguem algo que nã o possam afirmar ser uma palavra
dita por Deus. Para o mesmo propó sito, devem observar restriçã o,
para que nã o gastem seu tempo com trivialidades. Qual a razã o?
Porque Deus nã o lhes revelou tais coisas; ele sabe o que é necessá rio
para nossa salvaçã o. E para todos os crentes há a advertência de que
nã o busquem conhecer coisas que nosso Senhor ocultou deles; pois
seremos enredados se sondarmos demais os domínios de nossa
imaginaçã o. Em vez disso, investiguemos o que é seguro e só lido.
Nã o nos afundemos na á gua onde nã o pudermos nadar. Mal
podemos andar em terra seca. O que nos acontecerá se saltarmos ao
mar? Temos suficiente habilidade para arrostar as ondas? Vamos
aonde Deus nos conservar a salvos. Em outras palavras, quando
Deus, através de sua Palavra, nos mostrar o caminho, aferremo-nos
a ele e nã o avancemos para além do que ele permite. Sigamos
sempre, iluminados por sua verdade, aonde ele nos levar, e
detenhamo-nos quando ele declinar mostrar-nos o que bem sabe
nã o nos fará bem.
Ao instruir Tito a certificar-se destas coisas, Paulo insiste sobre a
necessidade de autoridade. Portanto, Tito nã o deve vacilar quando
os homens resistirem a sua insistência e alegarem que estã o sendo
manobrados. Ele diz: “Embora as pessoas fiquem aborrecidas,
persiste com o teu trabalho”. Nossa preocupaçã o deve estar nas
coisas que edificam. Acima de tudo, devemos ser cô nscios do que
nosso Senhor manda e das verdades nas quais estamos envolvidos e
as quais devemos defender com invencível determinaçã o. E quando
os homens nos impedirem de ensinar como o Senhor manda,
resistamos firmes e proclamemos as coisas que sã o boas e ú teis a
todos. Desta maneira o apó stolo mostra o quanto sã o ingratos os
que nã o podem suportar ser edificados para seu pró prio bem, visto
que recusam a bênçã o que Deus lhes estende. Pois se nosso Senhor
falasse somente das coisas que sã o obscuras e além de nosso
alcance, poderíamos ter razã o de nos queixarmos que estivemos
gastando tempo com especulaçõ es que requeriam um trabalho
muito á rduo, o qual no fim nã o nos fez nenhum bem e nã o nos
deixou mais sá bios do que antes. Nesse caso, seria justo nos
sentirmos aborrecidos. No entanto, quando nosso Senhor se
condescende de nossa ignorâ ncia e nos ensina de um modo tã o
íntimo, como um pai instrui seus filhos ou como uma mã e acalenta
seu filhinho imaturo para que ele entenda — quando, repito, Deus
nos trata de uma maneira tã o graciosa e nos assegura que nã o existe
em sua Palavra nada supérfluo —, nada que nã o produza fruto para
nossa salvaçã o —, quando vemos isso, nã o deveríamos
naturalmente sentir-nos indispostos, caso deixemos de tirar
proveito dela?
Entã o, em contrapartida, Paulo diz aos pastores da igreja que nã o
busquem prosperidade ou fama quando realizarem seu trabalho, e
nã o almejem o que é popular ou bem aceito, mas o que beneficie a
todos. De outro lado, quando os crentes forem à igreja, nã o esperem
que suas pró prias fantasias sejam alimentadas; se os homens
planejam o que lhes agrada, tudo o que ganhariam seria vento!
Devemos pensar em nó s mesmos: “Isto é para meu pró prio bem;
portanto devo aceitá -lo”. Assim, temos de ser muito cuidadosos, pois
mais frequentemente do que gostaríamos, somos como invá lidos
que só querem beber quando deveriam comer, e estar de pé quando
deveriam estar ainda deitados no leito. Sinceramente, gostaríamos
de escapar de ser repreendidos por nossos pecados, e nã o temos
nenhum desejo, como corre o dito, de ser unhados onde nã o temos
coceira. Se somos instados à prá tica do bem, preferimos ser
deixados sozinhos; se recebemos reprimenda, fugimos para uma
paixã o; se nossas transgressõ es sã o trazidas à luz, rangemos os
dentes e nada teremos a dizer sobre elas. Assim, cada um de nó s é
suspeito de si mesmo e considera o que se requer dele — no
entanto, nã o segundo sua pró pria estima, pois corremos constante
risco de cometer erro. Deus deve ser nosso Juiz: somente ele é
competente para falar. Daí Paulo fincar o pé neste ponto: estas coisas
são proveitosas aos homens .
Agora passemos à pró xima questã o que o apó stolo suscita. Tito é
instruído a evitar discussões insensatas . A palavra subentende a
inclusã o de algo que incita conflito entre nó s. É verdade que
certamente devemos inquirir antes de aceitar uma doutrina como
certa. Como reza o bem conhecido provérbio: “Somente um tolo nã o
duvida de nada”. Portanto, nã o só é permissível que formulemos
perguntas com o fim de remediar nossa ignorâ ncia; isso é também
necessá rio. Por que, pois, Paulo usa a palavra como se fosse algo
ruim? “Discussõ es néscias” é o nome que ele lhes dá , significando,
como já dissemos, tudo o que incita porfia em nosso meio. Se indago
sobre algo que pode ser-me mostrado na Palavra de Deus e se aceito
o que me é dito com espírito manso e aberto ao ensino, esse nã o é,
estritamente falando, o tipo de indagaçã o que está implícita. Mas se
indago e objeto rispidamente à resposta que me é dada, de modo
que a discussã o segue perenemente, é isso que Paulo condena aqui.
Portanto, como bem sabemos, há pessoas que almejam alardear-se,
investigando problemas que nunca podem ser resolvidos.
Selecionam uma questã o que lhes permite dizer: “Eis aqui algo sobre
o qual vale a pena refletir. É impossível formular argumentos de um
modo ou de outro; mas nã o importa a soluçã o alcançada, sempre
tenho uma objeçã o sobressalente”. Os que agem assim sã o maus por
natureza. Portanto, formulo este ponto: quando se passa à sabedoria
de Deus, ele quer que estejamos seguros e certos. Com certeza as
coisas essenciais sã o a fé e a obediência. Nosso Senhor também quer
que tenhamos tranquilidade mental, mas permanecemos ansiosos e
estressados até que ele nos mostre o caminho da salvaçã o. Ora, visto
que Deus quer aliviar-nos, de modo que nossas mentes nã o mais se
sintam angustiadas, quando deliberadamente empilhamos questõ es
sobre questõ es, acaso nã o rejeitamos o precioso dom que Deus nos
está oferecendo? Também nã o profanamos sua santa Palavra
quando a tomamos como causa de porfia e controvérsia? Daí Paulo
efetivamente condenar tais açõ es, chamando-as de completamente
insensatas.
Nã o que isso seja sempre ó bvio, pois, como já se disse, os que fazem
perguntas aparentemente sérias e novas consideram isto um modo
inteligente de adquirir um nome para si. Pessoas sã o enganadas por
eles, tanto que alguém que é mais bem habilitado na prá tica da
tagarelice é justamente o mais altamente admirado. Por que, pois,
Paulo descreve todas essas questõ es como sendo insensatas? Sua
ideia de insensatez nã o é aquela que os homens imaginam. Por
insensatez, ele tem em vista tudo quanto é sem sentido,
insignificante e irrelevante. Entã o, deixemos que estes mestres
argutos excitem quantas disputas quiserem e sejam louvados por
suas sutis especulaçõ es. Nã o obstante, o Espírito Santo os chama
insensatos, porque nã o tentam edificar o povo de Deus nem se
preocupam com a salvaçã o das almas. De fato, Paulo provê um
exemplo do tipo de questõ es que ele tem em mente. Ele descreve
como néscios os que se ocupam com genealogias . Ora, há muitas
pessoas que gostam de provar quã o inteligentes sã o traçando o
nú mero de filhos nascidos em uma família e os vá rios ramos nos
quais mais tarde se separam. Certamente algumas vezes se fará
necessá rio tratar de genealogias; mas, ao fazer isso, devemos
exercer a moderaçã o. Houve muita razã o para Mateus e Lucas
relatarem como nosso Senhor Jesus Cristo descendeu de Abraã o. Na
verdade, Lucas retrocede a Adã o. Por quê? É assim que chegamos
saber que ele é realmente homem; e também que ele é a santa
semente prometida a Abraã o, a qual foi revelada mais plenamente a
Davi, uma vez o reino se viu estabelecido solidamente em sua mã o e
lhe foi dito que este seria eterno. Eis a sorte de genealogia que deve
ser explanada. No entanto, notamos quã o reservados foram os
Evangelistas sobre isso. Lucas fala dele como que à s pressas, de
modo a nã o ocupar tanto a nossa atençã o. Reiterando, Mateus se
move rapidamente através de sua narrativa, como se dissesse que
basta sabermos que nosso Senhor Jesus, que é chamado o Cristo,
descendeu da linhagem de Abraã o e de Davi. Mateus se contenta em
conhecê-lo como o Redentor que fora prometido desde os tempos
antigos aos santos patriarcas. O Espírito Santo, pois, mantém rédeas
firmes sobre nó s, a fim de nã o vaguearmos por pontos sem
importâ ncia. Esta é a maneira de Paulo enfatizar a necessidade de
retermos o que Deus tem ensinado com clareza. Por quê? Porque ele
sabe o que nos é necessá rio.
À s genealogias, Paulo anexa ainda contendas e debates [ou,
discussõ es e controvérsias], pois sempre que os homens intentam
fazer sua marca, necessariamente o vulcã o entra em erupçã o. O
interesse egoístico sempre leva a interminá vel porfia, quando os
homens passam a argumentar entre si, como Paulo nos lembra em
Filipenses [Fp 2.3]. Eis por que nunca devemos ser aferrados à s
nossas pró prias vontades e ao nosso senso de importâ ncia pessoal.
Nã o devemos tentar obter o melhor de nossos colegas; mas, em vez
disso, devemos buscar edificar uns aos outros. Os que sã o
responsá veis pelo ensino devem labutar fielmente até o fim, de
modo que ajudem os demais a progredir. Todos nó s devemos
empregar os dons que Deus nos deu, partilhando como membros do
ú nico corpo que temos recebido. Se esse for o padrã o pelo qual
vivemos, seguramente nã o haverá disputas entre nó s. Pois basta
obedecer à verdade, tendo Deus como nosso Mestre, a fim de que
grandes e pequenos tirem proveito dele: as mentes que sã o instá veis
e caprichosas certamente acenderã o uma fogueira. O diabo nã o tem
maiores deficiências do que os que tentam seguir à frente de todos.
Sã o pragas da pior espécie. Se um homem for conceituado, entã o
pode ter muita virtude; mas quando este vem para liderar a igreja
de Deus, seria preferível que fosse efeminado ou ébrio, pois os
pecados de um efeminado sã o peculiares a si pró prio; e o mesmo se
dá com o ébrio. Mas quando um homem é tã o malignamente
disposto a chamar a atençã o e a se promover, o diabo já venceu; e, a
menos que Deus, em sua grande bondade ponha as coisas nos
trilhos, tudo estará perdido.
Em consequência, havendo falado da necessidade de evitar questõ es
irrelevantes, Paulo acresce que devemos evitar controvérsia em
todas as suas formas, pois estas duas coisas devem seguir juntas,
como foi dito. Entã o, ele insta Tito a evitar um homem que é herege,
quando for advertido uma ou duas vezes. Isto se segue do que foi dito
previamente. Se nã o tivermos esta palavra de advertência, nã o
poderíamos pô r em prá tica o que ensinamos anteriormente; pois,
enquanto nã o me dispuser a edificar a igreja e a fazer isso com
intenso esforço, nã o posso impedir a excessiva curiosidade dos que
se extraviam ou os facciosos de instigar porfia e resistência franca. O
que, pois, devo fazer? Paulo me diz que devo agir decisivamente
contra os que sã o motivados por interesse pessoal e tentam impor-
se. Naturalmente, ainda que crêssemos neles, os argumentos ainda
seguiriam seu curso; e, supondo que suas bocas fossem fechadas,
ainda estariam prontos a retrucar, como aqueles que já perderam
todo senso de pudor. A experiência nos comprova isso. Nã o
obstante, nã o seria a melhor soluçã o isolá -los, rejeitá -los e restringi-
los de continuarem falando?
E assim há uma clara conexã o entre este ensino e o que foi
explanado previamente. No entanto, é necessá rio fazer aqui uma
importante distinçã o. Quando os servos de Deus se veem atraídos,
querendo ou nã o, a controvérsias, sã o tentados a apresentar vá rias
questõ es. É verdade que, se dada a escolha, antes devem proclamar
a vontade de Deus e simplesmente apresentar o que é bom e
proveitoso para a salvaçã o de todos. Mas, quando nã o lhes é
permitido fazer isso, quando sã o provocados e ameaçados com
vexame se deixarem de replicar, visto que estas coisas lhes sã o
impostas, entã o eles têm uma escusa genuína. Nã o obstante, Paulo
diz que nã o devemos permitir que sejam desviados do curso. Por
boa razã o, pois, Tito é instruído a evitar o homem que é herege, pois
o diabo está sempre pronto a incitar os homens a divergir de nosso
trabalho, e a aborrecer-nos, de modo a nã o termos tempo de ensinar
o povo e a edificá -lo como demandam.
Veja bem! Aqui está a Santa Escritura: queremos anunciá -la com
pureza e para o bem de todos. No entanto, o diabo tenta fechar-nos a
porta e instigar os intrometidos que querem nos distrair de tudo o
que é bom e necessá rio. Ora, se fosse assim que gastamos nosso
tempo, o que seria de nó s? Novas objeçõ es a cada dia; novos
argumentos em réplica — a verdade de Deus estaria escondida nas
trevas! Resolvamos, portanto, obedecer ao que nos é ordenado aqui
e deixemos os hereges sozinhos, uma vez tenhamos lhes ministrado
uma ou duas advertências.
Paulo pressupõ e que em primeiro lugar temos que reconhecer o
herege antes de expulsá -lo. Pois o que aconteceria se
condená ssemos todos aqueles por quem sentimos aversã o? É
preciso que em tais coisas haja discernimento. Quando Paulo fala de
hereges, ele distingue os que nã o dã o seu assentimento à verdade de
Deus; os que se apartam da unidade da fé e causam transtorno na
igreja. Lemos que é dito aos Filipenses, que, se os crentes nã o
concordam sobre algum ponto e nã o chegam a uma decisã o
unâ nime, devem ser razoá veis, promover a paz e a concó rdia, até
que Deus lhes ensine o que ainda nã o conhecem [Fp 3.15]. Nã o
podemos conhecer tudo; e alguns avançarã o adiante dos outros.
Portanto, aquele que é mais adiantado haverá de desprezar os
demais, justamente por que sabe mais? Inclusive pode suceder que
alguém que é muitíssimo versado na Santa Escritura, e a quem Deus
revelou muitos de seus mistérios, seja ignorante sobre um ponto
particular. Entã o, em tais casos temos a necessidade de suportar uns
aos outros. Alguém que nã o concorda conosco nã o deve ser
condenado como herege; pois hereges sã o os que se reú nem em
oposiçã o à Palavra de Deus e se desviam das verdades essenciais de
nossa fé — do que é chamado a substâ ncia de nosso cristianismo —,
e que, por suas açõ es, separam os outros do corpo de nosso Senhor
Jesus Cristo. Portanto, os que dispersam a igreja e perturbam a casa
de Deus, neste texto sã o intitulados hereges.
Quando Paulo escreve que devem ser advertidos, ele nã o está
falando meramente de advertências que podem ser ministradas
privadamente. Sua intençã o é que sejam incisivamente repreendidos
e condenados. Portanto, se hoje um homem se extravia, o mesmo
nã o é um herege ainda que haja errado. Eu diria que, por mais grave
seja seu erro, se isso nã o se deve simplesmente à inadvertência, o
mesmo deve receber reprimenda; e se a ofensa é grave, ele nã o deve
ser alvo de complacência. Seja como for, nã o há heresia quando nã o
há resistência franca e quando um homem nã o se exclui da unidade
dos crentes. Para que a heresia exista, deve haver uma cisã o dos
caminhos. Assim vemos que o homem que foi advertido
privadamente nã o é herege por causa disso. No entanto, se ele
resiste obstinadamente e nã o consegue voltar à razã o, isso deve ser
corretamente levado ao conhecimento pú blico. Eis a sorte de
advertência que o apó stolo tem em mente.
Entã o, quando se envidam esforços para conquistar um homem de
volta, e quando de modo algum se torna melhor, desafiando a Deus
abertamente, tã o somente buscando perturbar a igreja e agir por
mero despeito, devemos julgá -lo como um herege sem esperança.
Eis por que ele é aqui descrito como um homem arruinado . A
imagem é de um edifício que caiu em total decadência. Se houver
defeito numa casa, tudo bem, naturalmente ele será reparado. Se
houver buracos no teto, ou rachaduras numa parede, nó s os
tampamos e emendamos, de modo que tudo seja corrigido. Mas
quando a casa é uma completa ruína, por que a preocupaçã o? Será
uma perda de tempo, e o prejuízo será pior do que antes! Paulo diz
que uma pessoa que nã o sente o temor de Deus está arruinada. Um
homem pode errar em algum aspecto; mas, contanto que ainda
tenha em si alguma raiz do temor de Deus, finalmente se recuperará .
Da pró pria experiência sabemos que isto é procedente da parte dos
que têm ideias errô neas. Todo aquele que acalenta uma falsa crença,
mas que possui algum temor de Deus, seguramente, mais cedo ou
mais tarde, se recuperará , pois o fundamento permanece e a casa
pode ser outra vez edificada sobre ele. Todavia, quando alguém de
tal modo se encoleriza contra Deus, que seu egoísmo diabó lico o
arrasta, o que há para se lucrar? Portanto, cabe-nos julgar com todo
cuidado e reconhecer se um homem está ou nã o arruinado. O que
nos cabe fazer? Antes de tudo, ele deve ser instruído com brandura;
entã o, conduzido perante a igreja, como que na presença de Deus, e
advertido e castigado. Entretanto, se ele é empedernido e, no dizer
da Escritura, possui um espírito de amargura [Hb 12.15], de modo
que nada aceita do que lhe é dito, entã o esse é um homem
arruinado. Por quê? Porque nã o há nele o temor de Deus, o qual
pode servir de fundamento. Esse é o sentido de Paulo neste
versículo.
Ora, se aqueles cujo dever é pregar a Palavra de Deus sã o advertidos
a evitar os hereges, isso deve aplicar-se também a todo o corpo da
igreja. Pois, se um indivíduo fizer oposiçã o a um herege, o que pode
ele fazer? Certamente deve tentar o má ximo que possa reconduzi-lo
a Deus. Se há uma ovelha que se extravia, ela deve ser reconduzida
ao rebanho. Sim, mas se há um lobo, deve ser conduzido ao rebanho
a fim de dispersá -lo? Porventura nã o zomba de Deus quem diz,
como muitos fazem: “Ele é uma pobre ovelha. Deve ser
reconduzido”. Na realidade, como bem sabemos, ele é um lobo; ou,
melhor, um diabo, cujo alvo é destruir tudo. Entretanto, devemos
pretextar que nada está errado? Alegaremos que somos mais sá bios
que Deus? Se nã o pudermos entender isto, nosso Senhor será
vingado sobre nó s, pois nossa displicência e uma similar condenaçã o
cairã o sobre nó s. Nada mais será empreendido por aqueles que
querem ir além dos limites. Ora, se é errado ir longe demais na
conquista dos hereges, quando provam estar fora de toda esperança,
o que aconteceria se os recebêssemos em nossos lares, os
alimentá ssemos e fô ssemos mais amigos deles do que de qualquer
parente ou irmã o? Ou se os que administraram a justiça e que por
isso deveriam usar seus poderes para punir os hereges e expulsá -
los, clamasse protegê-los? Eles fariam de tudo para voltar ao nosso
meio e desafiar descaradamente a Deus sempre que surgir uma
oportunidade. Vejam! Eis um homem de autoridade no governo: na
verdade, ele alega sustentar o evangelho e recebe a Ceia de nosso
Senhor. Todavia, você outra coisa nã o é senã o um Judas! Você vê à
sua frente hereges que têm solapado a doutrina de Deus; lhes dá as
boas-vindas; os favorece! Que bem isso faz senã o poluir e devastar
todas as coisas? [27]
Eis como este texto de Paulo deve ser aplicado. Um herege, uma vez
advertido, como foi dito previamente, aconselhado com protestos
solenes, e como que na presença de Deus, deve ser afastado como
uma praga mortífera se persistir obstinadamente. Que ninguém
diga: “Responda: acaso a igreja nã o deve apiedar-se da pessoa que
crê e se arrepende?”. Claro que sim! Mas quando vemos alguns, cuja
boca e coraçã o Deus fechou, publicamente blasfemando e sem
demonstrar sinais de arrependimento, devemos reconduzir esses ao
rebanho? Nó s conhecemos os deveres requeridos dos verdadeiros
ministros do evangelho. Estes carecem de uma voz mansa e amorosa
para atrair ao rebanho os que sã o passíveis de ensino e dispostos a
aprender; mas devemos também expulsar os lobos e ladrõ es e usar
uma voz que grite contra todos os que dispersam o rebanho. Essas
sã o as tarefas de que os servos de Deus devem ocupar-se se fazem
adequadamente seu trabalho.
Paulo agora leva sua carta ao fim. Ele escreve: Agora, quanto aos
nossos, que aprendam também a distinguir-se nas boas obras. Ele faz
a mesma ênfase que fez previamente: que se empenhem em fazer o
bem. Aqui ele extrai um contraste com a absurda arrogâ ncia de
tantos que se orgulham em suas especulaçõ es argutas. “Oh!”, diz ele,
“suas teorias sã o excelentes, porém considere de que maneira os
filhos de Deus devem realmente distinguir-se. Isso se dá quando
mostram que têm feito proficiência na prá tica do bem e quando se
esforçam ao mesmo desempenho até o fim.” As palavras “que
aprendam” sugerem que, enquanto tinham mal gastado seu tempo,
se deixaram levar por néscio egoísmo e se preocuparam com
pensamentos fú teis. “Agora, porém”, diz Paulo, “devem mudar a
trajetó ria. Doravante vocês devem exceder em boas obras e nã o em
tagarelice sem proveito. Sua ansiedade e preocupaçã o de seguir em
frente devem ser descartadas, e cada um de vocês deve tentar com
determinaçã o servir ao seu pró ximo”.
Paulo toma “boas obras” tanto no sentido de esmola quanto de todos
os demais socorros que podemos prestar aos que necessitam de
nosso auxílio. Portanto, aprendamos a ser empregados com
proveito; e, embora no passado possivelmente tenhamos sido
indolentes e indiferentes, e talvez até mesmo parecêssemos com
aqueles a quem Paulo dirige sua carta aqui, doravante devemos
assegurar-nos de que o Senhor nos tem em sua escola e nos tem
mostrado tal graça que, transportados pelo amor para com ele, só
buscamos os melhores e mais estreitos laços com nossos
semelhantes. E, assim, cada um de nó s deve considerar que
permaneçamos em seu poder; e, segundo a habilidade que nos é
dada por Deus, que todos sirvamos uns aos outros. É assim que
mostramos que nã o recebemos o evangelho em vã o.
 
Oração
Agora prostremo-nos diante da face de nosso bom Deus,
reconhecendo nossos erros e rogando-lhe que no-los faça sentir
mais acentuadamente do que antes. Que ele nã o nos permita abusar
e profanar seu santo ensino interpretando seu significado
erroneamente; mas, ao contrá rio, edifiquemo-nos na fé de Jesus
Cristo, de modo que permaneçamos sempre nele e sejamos
diligentes na oraçã o e sú plica. Que toda nossa vida seja devotada à
prá tica do bem e a socorrer nossos semelhantes a fim de que
possamos mais e mais aprender o crescimento na graça de nossa
adoçã o que Deus nos confirma diariamente. E, ao vivermos como
irmã os uns com os outros, que o conheçamos como nosso Pai e
como aquele que nos recebe e nos adota como seus filhos.
LOUVADO SEJA DEUS

ORAÇÕES ANTES E DEPOIS DO SERMÃO


A liturgia genebrina de 1542 especificou para o culto matutino
dominical uma oraçã o por iluminaçã o pronunciada pelo ministro
antes do sermã o e uma série de oraçõ es de intercessã o
pronunciadas depois do sermã o. Calvino modelou sua oraçã o por
iluminaçã o naquela que ele já usara na igreja francesa de
Estrasburgo. À oraçã o intercessó ria seguia-se uma breve oraçã o
extemporâ nea com a qual concluía seus sermõ es, introduzida pelas
palavras “Assim todos dirã o...” (Textos no CO 23:741-42; 6:175-78.)
 
ORAÇÃO POR ILUMINAÇÃO
Invoquemos ao nosso bom Deus e Pai, visto que toda plenitude de
sabedoria e luz se encontra nele, para iluminar-nos
compassivamente por seu Santo Espírito na verdadeira
compreensã o de sua Palavra e para dar-nos a graça de recebê-la em
verdadeiro temor e humildade. Que sejamos ensinados por sua
Palavra a depositar somente nele nossa confiança e servi-lo e honrá -
lo como devemos fazer, de modo que glorifiquemos seu santo Nome
em todo nosso viver e edifiquemos nosso semelhante por meio de
nosso bom exemplo, rendendo a Deus o amor e a obediência que os
servos fiéis devem a seus senhores, e os filhos a seus pais, visto que
aprouve a ele receber-nos graciosamente entre o nú mero de seus
servos e filhos.
 
ORAÇÃO INTERCESSÓRIA
Onipotente Deus e Pai celestial, tu prometeste ouvir e responder
nossos pedidos que fazemos a ti no nome de teu amado Filho, Jesus
Cristo, nosso Senhor. Somos ensinados por ele e seus apó stolos a
nos reunirmos em seu nome, com a promessa de que estará entre
nó s e intercederá por nó s diante de ti, para que recebamos e
obtenhamos todas as coisas nas quais concordamos na terra.
Tu nos instas a orar primeiramente por aqueles a quem
estabeleceste sobre nó s, nossos líderes e governantes, e, a seguir,
pelas necessidades de todo o teu povo e de todos os homens em
todos os lugares. Portanto, confiando em tua santa verdade e em tua
promessa, estando reunidos aqui diante de ti no nome de Jesus,
amavelmente te rogamos, nosso Deus e Pai, em tua infinita mercê,
que perdoes nossas transgressõ es e que eleves nossos pensamentos
e desejos a ti, para que te invoquemos ardorosamente segundo tua
boa vontade e beneplá cito.
Portanto, oramos, ó Pai celestial, por todos os príncipes e senhores,
teus servos a quem confiaste a regra da justiça. Mui particularmente,
oramos pelos governantes desta cidade, para que os revistas com
teu Espírito, o ú nico que é gracioso e soberano, e diariamente
aumentes neles seus dons, para que, reconhecendo teu Filho Jesus
Cristo como Rei dos reis e Senhor dos senhores, com pleno poder no
céu e na terra, busquemos servi-lo e exaltar seu reinado em todos os
seus domínios, e para que, segundo a tua vontade, guiem e
governem seus sú ditos, os quais sã o a obra de tuas mã os e as
ovelhas de teu pasto. E para que nó s, teu povo, aqui e em todos os
lugares, sendo guardados em paz e tranquilidade, sirvam a ti em
santidade e justiça e, livres do temor de nossos inimigos, rendamos
louvor todos os nossos dias.
Oramos ainda, verdadeiro Pai e Salvador, por todos a quem tens
designado pastores de teu povo, os quais têm o cuidado das almas e
da administraçã o de teu santo evangelho. Guia-os e dirige-os por teu
Santo Espírito, para que sejam achados fiéis e verdadeiros ministros
de tua gló ria, esforçando-se sempre por conduzir as ovelhas
errantes e teimosas ao Senhor Jesus Cristo, nosso sumo Pastor e
supremo Bispo, para que diariamente prosperem e cresçam nele em
toda a justiça e santidade. Concede, além do mais, que todas as
igrejas sejam libertadas das bocas dos lobos vorazes e mercená rios,
os quais seguem seus pró prios desígnios e ambiçõ es e os quais nã o
exercem nenhum cuidado pela honra de teu santo nome e o bem-
estar de teu rebanho.
A seguir, oramos, mui gracioso Deus e misericordioso Pai, por todos
os homens em geral. Visto que desejas que todos os homens te
reconheçam como Salvador do mundo, pela redençã o conquistada
por nosso Senhor Jesus Cristo, que os que nã o te conhecem, vivendo
em trevas e cativos da ignorâ ncia e erro, possam, pela luz de teu
Santo Espírito e pela pregaçã o de teu Evangelho, ser conduzidos ao
caminho da salvaçã o, que é conhecer-te a ti, o ú nico Deus
verdadeiro, e Jesus Cristo, a quem enviaste. Que aqueles a quem já
visitaste com tua graça e iluminaste pelo conhecimento de tua
Palavra, cresçam em toda bondade, enriquecidos por tua bênçã o
espiritual, de modo que, juntos, possamos cultuar-te de todo o
coraçã o e voz, rendendo honra e louvor a Cristo, nosso Mestre, Rei e
Legislador.
De igual modo, ó Deus de toda consolaçã o, encomendamos-te todos
a quem visitas e castigas com a cruz e tribulaçã o, pela pobreza ou
prisã o, doença ou exílio, ou afliçã o do corpo e da mente. Que lhes
faças conhecido teu paternal amor e lhes assegures de que o castigo
deles visa à emenda de vida. E que, com coraçã o disposto se voltem
para ti e, uma vez feito isso, recebam teu conforto, sendo eles
libertados de todo estresse.
Finalmente, ó Deus e Pai, concede também que nó s, que ora estamos
reunidos aqui no nome de Jesus para ouvir a tua Palavra, possamos,
sem dissimulaçã o ou hipocrisia, reconhecer que, por natureza,
estamos perdidos; que merecemos tua puniçã o e que diariamente
acumulamos condenaçã o sobre nó s por nossas vidas miserá veis e
indisciplinadas. Ajuda-nos a ver que em nó s nada há de bom e que
carne e sangue jamais podem herdar o teu Reino. Que alegremente e
com só lida confiança nos submetamos ao nosso Senhor Jesus Cristo,
nosso ú nico Salvador e Redentor. E que ele de tal modo viva em nó s
que nosso velho Adã o, sendo entregue à morte, se erga para uma
vida nova e melhor, para o louvor e gló ria de teu nome.

[1]
Jerome D. Quinn, The Letter to Titus (Nova York: Doubleday, 1990), p. 13-14.
[2]
Detalhes bibliográ ficos sã o dados por Rodolphe Peter e Jean-François Gilmont,
Bibliotheca calviniana , 3 vols. (Genebra: Droz, 1991-2000), I, p. 274-77, 342-44.
[3]
Peter e Gilmont, Bibliotheca calviniana , II, p. 857-61. Em adiçã o aos dezessete sermõ es
em Tito, o volume somou cinquenta e quatro sermõ es em 1 Timó teo e trinta em 2 Timó teo.
Sobre a data, preservaçã o e transmissã o dos sermõ es de Calvino, veja T. H. L. Parker,
Calvin’s Preaching [A pregaçã o de Calvino] (Edinburgh, T. & T. Clark, 1992), p. 65-75, 163-
68.
[4]
Calvini opera quae supersunt omnia , ed. G. Baum, E. Cunitz e E. Reuss, 59 vols.
(Brunswick e Berlin: C. A. C. Schwetschke & Son, 1863-1900), 54:373-596. Ali citado como
CO .
[5]
Aqui e em outros lugares, Calvino usa o termo prestre para designar tanto sacerdotes
da Igreja Cató lico Romana quanto o ofício neotestamentá rio de “presbítero”, do qual deriva
tanto o prêtre francês como o priest inglês. Mais comumente, o Reformador traduz
“presbítero” como ancien (anciã o), enquanto seu termo preferido para um ministro da
Palavra e do Sacramento é pasteur (pastor). A palavra evesque (bispo), para a qual o
pregador já havia chamado a atençã o, semelhantemente, deriva do grego episkopos , e
designa a funçã o de supervisor mencionado em Atos 20.28. Ver-se-á que em seus sermõ es
em Tito Calvino fala de presbíteros como aqueles que detêm um ofício pedagó gico na
igreja. A distinçã o entre anciã os que ensinam e governam, que aparece pela primeira vez
nas Institutas de 1543 e é repetido no comentá rio sobre 1 Timó teo, nã o se encontra aqui.
Cf. Comentá rio de 1 Timó teo 5.17; Institutas IV.4.1, IV II.1,6.
[6]
Uma referência à doutrina cató lico-romana da Missa como um sacrifício, na qual o
corpo e o sangue de Cristo sã o reapresentados a Deus como uma oferenda pelo pecado em
favor dos fiéis, quer vivos, quer mortos.
[7]
O “mísero herege” de Calvino era o sá bio espanhol Miguel Serveto; antes do ano de
1531, atacou vigorosamente a doutrina da Trindade e que mais tarde renovou sua crítica
em seu livro Christianismi restitutio de 1553. Preso pela Inquisiçã o por heresia e
aprisionado na França, em abril daquele ano escapou, mas foi apreendido quatro meses
depois em Genebra. Ali, foi julgado, condenado e enviado à estaca em outubro de 1553. O
caso Serveto foi usado pelos membros do chamado partido Libertino, cuja influência em
Genebra chegou entã o ao seu auge, com o intuito de abalar Calvino e frustrar suas
tentativas de reforçar uma disciplina mais estrita tanto na igreja como na cidade. Nã o foi
até maio de 1555, três meses antes de o Reformador começar a pregar sobre Tito, que os
Libertinos se viram forçados a reconhecer a derrota. Além do mais, os ecos da controvérsia
com Serveto se encontram nos Sermõ es 7, 13 e 17.
[8]
O sacramento da Ceia do Senhor era celebrado em Genebra, nã o semanalmente como
Calvino teria preferido ( Institutas IV.17.43,46), mas trimestralmente, na Pá scoa,
Pentecostes, no primeiro domingo de setembro e no domingo mais pró ximo ao Natal. De
antemã o, tinha de ser feita a nota da celebraçã o, como aqui, no domingo anterior. Cf.
Sermã o 5 (datado de setembro de 1555).
[9]
Os candidatos ao sacerdó cio cató lico-romano sã o ungidos com ó leo durante o rito de
ordenaçã o, simbolizando a unçã o do Espírito Santo. Daí a referência a “sacerdotes
besuntados”. Cf. crítica de Calvino a tal prá tica nas Institutas IV.19.30-31.
[10]
Veja o sermã o vigésimo segundo em 1 Timó teo 3.1-4 (CO 53: 268-70).
[11]
O Interino de Augsburg era um documento preparado sob a instigaçã o do Santo
Imperador Romano, Carlos V, com vistas a assegurar o estabelecimento provisó rio entre as
confissõ es beligerantes em seus territó rios germâ nicos. Aprovado em junho de 1548 pela
Dieta de Augsburg, o Interino concedeu aos protestantes o princípio do matrimô nio clerical
e a comunhã o em ambas as espécies (pã o e vinho); mas, em contrapartida, mantiveram as
crenças e prá ticas tradicionais. Ele teve um efeito profundamente decisivo na opiniã o
protestante na Alemanha. Melanchthon, sucessor de Lutero, deu seu assentimento limitado;
outros, como Bucer, em Estrasburgo, recusaram-se a obedecer e escolheram o exílio
voluntá rio. Calvino sujeitou o documento à crítica em sua obra de 1549: O verdadeiro
método de reformar a Igreja , em que ele acusou os autores do Interino de “deixar-nos uma
metade de Cristo; de modo que nã o há nenhuma parte de seu ensino que nã o seja
obscurecida ou manchada por alguma nó doa de falsidade” (CO 7:591-92).
[12]
“Nariz de cera” era uma imagem desprezível empregada pelos apologistas cató lico-
romanos com o intuito de atacar vá rias leituras protestantes da Escritura, sendo o texto
sagrado vergado ou modelado para adequar-se aos preconceitos dos expositores
teoló gicos. Seu argumento era que somente o magistério oficial da igreja podia apresentar
uma interpretaçã o unificada e autorizada da Palavra escrita de Deus. A imagem, que parece
ser de origem medieval, é frequentemente citada por Calvino a fim de demonstrar a atitude
arbitrá ria de Roma para com a Escritura.
[13]
De um poema escrito em louvor a Zeus, por Epimênides de Cnossos (VII a.C.). A mesma
estrofe contém a linha citada por Paulo em seu discurso diante do Areó pago [At 17.28]:
“Nele vivemos, nos movemos e existimos”.
[14]
O grego de Tito 2.3 traz hieroprepeis , “conveniente com o que é sagrado”; “reverente”
(ESV).
[15]
Cf. Institutas III.10.4, onde sã o citados dois provérbios com este propó sito. Um,
atribuído a Cato, o Velho (“Cuidar exageradamente do vestuá rio equivale a cuidar pouco
demais da virtude”); aparece numa forma ligeiramente diferente em Ammianus
Marcellinus, Book of Deeds [Livro dos Feitos], XVI.5.2.
[16]
Veja o sermã o 41 em 1 Timó teo 5.11-15 (CO 53: 494-96).
[17]
Existem vá rias formas do provérbio. Cf. Ovídio ( Art of Love [A arte de amar], I.751):
“Aquele que ama nã o precisa temer o inimigo; fuja dos que você tem por amigos, entã o você
estará a salvo”. Cícero ( On Friendship [Da amizade], XXIV.90) atribui a Catã o um dito que
Erasmo também registra em seu Adages [Adá gios] (IV.3.76): “Alguns homens sã o mais bem
servidos por inimigos amargos do que por seus amigos de língua açucarada”.
[18]
Cf. Institutas , IV.20.4: “O fato de que sã o chamados deuses todos os que exercem a
funçã o de magistrados [Ê x 22.8; Sl 82.1, 6] é o título de nã o menos importâ ncia,
significando que eles têm um mandato de Deus, recebem dele sua autoridade e
representam plenamente sua pessoa, sendo em certo sentido seus substitutos”.
[19]
Aqui, Calvino faz uso um tanto livre do provérbio citado por Paulo em 1 Coríntios
15.33 (“As má s conversaçõ es corrompem os bons costumes”). Em geral, o dito é remontado
a uma comédia perdida de Menandro, Thais .
[20]
Veja, acima, o terceiro sermã o em Tito 1.4.
[21]
Veja o décimo terceiro sermã o em Tito 2.3-5 ( CO 53:147-54).
[22]
Diferentemente da referência anterior a Serveto (Sermã o 3, nota 3), esta é
inusitadamente detalhada. A despeito da aparente ortodoxia de certa fó rmula empregada
por ele, Serveto recusou-se a reconhecer Jesus Cristo como o Filho eterno, preexistente,
igual em essência e dignidade ao Pai. Defendia que ele era humano e tornou-se divino pela
açã o da Palavra eterna que, infundida no homem Jesus, elevou-o à divindade e vestiu-o com
carne celestial. O credo antitrinitá rio de Serveto, aliado ao molde geralmente panteísta de
seu pensamento, foi suficiente para condená -lo aos olhos de todos, com exceçã o dos mais
liberais de seus contemporâ neos. Calvino refutou publicamente o conceito de Serveto em
seu tratado de 1554, Defense of Orthodox Belief in the Holy Trinity [Defesa da fé ortodoxa na
Santa Trindade] ( CO 8: 433-644), e o fez novamente na ú ltima ediçã o de suas Institutas
(II.14.5-8).
[23]
Calvino está pensando no uso, em Colossenses 1.19 e 2.9, do verbo katoikein , “habitar,
assumir residência”.
[24]
A afirmaçã o cató lico-romana definitiva sobre o livre-arbítrio foi promulgada pelo
Concílio de Trento em seu decreto sobre a justificaçã o (janeiro de 1547). O Concílio
determinou que o livre-arbítrio, embora enfraquecido e diminuído em seus poderes pelo
pecado de Adã o, nã o se extinguiu e que, quando suscitado por Deus, era capaz de cooperar
com a açã o de Deus “a fim de preparar-se para a obtençã o da graça da justificaçã o”.
[25]
A noçã o de que a vontade humana nã o regenerada é capaz, em algum grau, de aspirar
ao bem era um artigo de fé entre os escolá sticos medievais e seus sucessores do século
dezesseis. Veja a longa crítica de Calvino nas Institutas II.2.27.
[26]
Como mostram as observaçõ es de Calvino que levam em conta o uso da á gua e como
ele deixa claro mais adiante em seu sermã o, o batismo em si nã o efetua a regeneraçã o e a
renovaçã o. Ele é um “sinal” da promessa de Deus de purificaçã o através do Espírito Santo e
da nova vida em Cristo. Como todas as promessas de Deus, ele é apropriado pela fé, a qual é
em si mesma um dom de Deus. Cf. Institutas IV.15.1-2,14-15.
[27]
O Reformador alude mais uma vez aos seus oponentes libertinos que, ao longo do
julgamento e detençã o de Serveto (agosto-outubro de 1553), pareceram, por razõ es
pessoais, ser simpá ticos ao prisioneiro. Aos olhos de Calvino, sua simpatia era equivalente a
conluio.

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