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Organizado por

MATTHEW Y. EMERSON
CHRISTOPHER W. MORGAN
R. LUCAS STAMPS

OS BATISTAS
E O RESGATE DA
TRADIÇÃO CRISTÃ
Em direção a uma
catolicidade batista
14

TENSÃO RACIAL, A TRADIÇÃO


BATISTA E A UNIDADE CRISTÃ

Walter R. Strickland II
Southeastern Baptist Theological Seminary

INTRODUÇÃO

A
catolicidade batista situa a identidade batista na tradição cristã mais
ampla. Este capítulo contribui com uma unidade permanente, ex-
plorando a desarmonia racial dentro da Convenção Batista do Sul
(CBS) e sua conexão com o desenvolvimento da Convenção Batista Nacio-
nal (CBN). Essa história transmite algumas dinâmicas que têm reforçado
a divisão racial dentro e no meio desses corpos eclesiásticos. Assim, essa
consideração serve como uma lição prática para se entender e perseguir a
unidade, ao mesmo tempo que permite a diversidade que honra a Cristo
dentro da vida batista. Estudar a relação entre os batistas do Norte e Na-
cionais também renderá princípios para forjar uma conexão mais próxima
entre os batistas e o corpo diverso de Cristo em geral.
A narrativa histórica é repleta de sucessos e fracassos, demonstran-
do o poder sútil de hábitos subconscientemente adotados de geração em
geração. Padrões diários herdados de famílias e amigos informam pres-
suposições que geram expectativas para que tudo se mantenha da forma
como está. Essa herança inclui uma matriz de ideias que deveriam ser
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biblicamente examinadas, a fim de afirmar o bem e o escape de padrões


e tendências indesejáveis de nossos ancestrais. Essa tarefa é assustadora-
mente difícil, porque se assemelha a descrever o conceito de sequidão a um
peixe. Consequentemente, escapar do estado de desunião racial entre os ba-
tistas, legado através das gerações, exigirá esforço intencional e sustentado.
Incontáveis batistas do Sul bem-intencionados deram início a uma
jornada de reconciliação com profunda convicção e grande entusiasmo,
mas encontraram frustração, devido aos passos lentos da mudança. O de-
sencorajamento é inescapável quando a complexidade da tensão racial é
simplificada demais e as soluções se provam infrutíferas. E a tensão racial
entre os batistas não irá diminuir até que uma confluência de fatores seja
tida como partes interconectadas. Pelo menos três áreas devem interagir, a
fim de buscar a unidade hoje: (1) sentimento individual, (2) envolvimen-
to institucional e (3) tradição teológica. O ensaio a seguir ilustra como as
estruturas denominacionais (ou seja, institucionais) alimentam a divisão,
na medida em que refletem tendências individuais endurecidas pela for-
tificação teológica. Apesar desses desenvolvimentos negativos, este ensaio
conclui com prescrições esperançosas para a reconciliação racial.

A MUDANÇA BATISTA DA ANTIESCRAVIDÃO: PRÉ-1845


Antes de a CBS ser estabelecida, os batistas se afastaram da postura pri-
mordial de antiescravidão que assumiram por ocasião do Primeiro Grande
Despertamento. Essa disposição antiescravidão foi oficialmente documen-
tada em 1785, quando o Comitê-Geral da Virgínia, lar de vinte mil dos 65
mil batistas da nação até então, afirmou que a escravidão era “contrária à
palavra de Deus”.1 Pouco tempo depois, os batistas dos estados de ambas
1 Eva Sheppard Wolf, Race and Liberty in the New Nation: Emancipation in Virginia from the Revolution to
Nat Turner’s Rebellion (Baton Rouge: Louisiana State University Press, 2009), p. 97. Ao mesmo tempo
que a Virgínia não representa um consenso, isso foi uma grande e tangível seção cruzada dos batistas do
Sul.
Tensão racial, a tradição batista e a unidade cristã | 5

as Carolinas e da Geórgia afirmaram declarações antiescravidão próprias,


endossando a emancipação gradual.2
Entre os batistas do Sul, essa postura antiescravidão começou a ruir
em 1790, depois de uma resolução sobre a emancipação gradual ter sido
adotada pela Associação Geral da Virgínia, mas fracassado em encontrar
aprovação geral por parte das associações batistas estaduais. Essa ocasião
marcou o início das ondulações pró-escravidão por toda a vida batista.3 De
1790 a 1831, as associações locais começaram a se dividir sobre a questão
da escravidão por todo o Sul. A onda mudou a respeito desse mister, com o
resultado da revolta fracassada de Dinamarca Vesey em 1822, e com a re-
belião homicida de Nat Turner de 1831. Essa mudança radical demonstra
o poder do ambiente político no discurso denominacional, na medida em
que os batistas que não eram da Virgínia permaneceram com seus irmãos e
começaram a mudar sua postura sobre a escravidão, como se os incidentes
de Vesey e Turner representassem seus próprios infortúnios.
Os batistas do Norte e do Sul atingiram um ponto de divisão depois
da Sociedade Local de Missões Batista Americana (SLMBA) e, posterior-
mente, a Convenção Trienal se posicionou contra os donos de escravos,
quando os batistas da Geórgia nomearam o dono de escravos James Reeve
para servir como missionário. Na retórica veemente da Convenção Anties-
cravidão Batista Americana, “os donos de escravos estão sob o ‘desprezo da
humanidade’ e o ‘desprazer de Deus’”.4 A Convenção de Nova York concla-
mou os batistas do Sul a “confessar diante do céu e da terra a iniquidade
de possuir escravos; e a admitir que não se tratava somente de infortúnio,
mas também de um crime”.5 Por causa desse mal, os batistas do Norte não
puderam “reconhecer [os donos de escravos] como irmãos consistentes em
2 H. Shelton Smith, In His Image, but... : Racism in Southern Religion, 1780-1910 (Durham, NC: Duke
University Press, 1972), p. 47.
3 Smith, p. 48.
4 McBeth, Baptist Heritage, p. 384.
5 McBeth, p. 384-85.
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Cristo”.6 Os batistas do Sul insistiram em que a SLMBA e seus irmãos do


Norte haviam violado o pacto de permanecer neutros a respeito da escra-
vidão e, em resposta, estabelecer seus próprios conselhos denominacionais
e missionários.

TENSÃO RACIAL ENTRE AS IGREJAS BATISTAS DO SUL: 1845–1865


O presidente inaugural da CBS, William Bullein Johnson, ofereceu uma
consideração pública para expressar o sentimento da nova convenção, en-
fatizando três pontos — primeiro, depois de articular a dor da divisão,
Johnson insistiu no argumento prévio de que os batistas do Norte tinham
violado a constituição das sociedades missionárias ao insistirem numa
posição específica a respeito da propriedade de escravos; segundo, ele rei-
vindicava que os batistas do Sul estariam retornando à obra missionária
batista original; terceiro, como ele se mostrava sensível a um novo corpo
que estava sendo apelidado de “convenção dona de escravos”, Johnson ar-
gumentou que o propósito da nova convenção não era “sustentar qualquer
forma de governo humano”, mas a “extensão do reino do Messias” (ou seja,
as missões).7 Apesar da explicação de Johnson, H. Leon McBeth, um his-
toriador simpático aos batistas do Sul, insiste em que a “escravidão era a
questão principal. [...] [Isso] é um fato histórico contundente”.8
O desenvolvimento da CBS destaca a convergência de dois desejos
genuínos entre os batistas do Sul. Por um lado, estava o desejo de levar o
evangelho àqueles que não o tinham ouvido; por outro, estava o desejo de
proteger a escravidão como uma instituição. Esses sentimentos, incorpora-
dos pela maioria dos batistas do Sul, foram institucionalizados por meio da
formação quase imediata de conselhos e políticas missionárias que permi-
tiam aos senhores de escravos serem apoiados e comissionados ao campo.
Em tempo, a má-formação teológica dos batistas do Sul, encorajada pelos
6 McBeth, p. 385.
7 E. Franklin Frazier, The Negro Church in America (Nova York: Schocken, 1964), p. 25.
8 McBeth, p. 382.
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cristãos que possuíam escravos, emergiu conforme os batistas do Sul co-


nectaram o valor do ser humano ao estado social e/ou ao estado espiritual
deles, considerando, paradoxalmente, os negros dignos tanto de sujeição
como de evangelização.
Essas pressuposições teológicas irreconciliáveis eram evidentes nas
igrejas batistas do Sul, com a crença na inferioridade negra refletida nas
práticas de adoração, a começar pela arrumação dos assentos. Era comum
para os negros se sentarem no fundo da igreja, frequentemente referido
como o “canto africano” ou “banco dos negros”. Nas igrejas maiores, os ne-
gros eram forçados a se sentar na galeria, chamada de “paraíso dos negros”.
Além disso, a prática da Ceia do Senhor confirmava uma antropologia
disfuncional por segregar racialmente os participantes, significando, assim,
uma suposta gradação ontológica entre o povo de Deus. Os adoradores,
rotineiramente, reuniam-se novamente na conclusão dos cultos matutinos,
e a autoridade do púlpito era mal aproveitada para ler os códigos escrava-
gistas — conjuntos de regras para os escravos com base na pressuposição
de que eles eram propriedades, e não pessoas.
Os cristãos negros responderam ao pecado estrutural e à disfunção
teológica na CBS de uma forma institucional própria. Na busca pela dig-
nidade na adoração comunitária, os negros, primariamente no Norte, mas
também um pouco no Sul, estabeleceram igrejas negras independentes e
o que se tornou conhecido como a “instituição invisível”, uma série de reu-
niões secretas exclusivas para negros.9 Leroy Fitts, historiador da religião,
reconhece três tipos de igrejas batistas públicas frequentadas por negros:
(1) igrejas mistas, (2) igrejas predominantemente negras sob liderança
branca e (3) igrejas separadas sob a liderança negra. Essas três formas de
9 “Instituições invisíveis”, também referidas como “portos silenciosos”, consistiam em encontros religiosos
secretos sustentados pelos africanos escravizados que eram escondidos da supervisão de seus donos.
A nomenclatura significa a natureza secreta desse empreendimento, pois essas reuniões eram ilegais e
desencorajadas pelos donos, que temiam revoltas. A fim de apaziguar esses donos, os negros continua-
ram frequentando as igrejas, prescritas por seus donos, que promoviam submissão e docilidade, mas
suplementavam a experiência de adoração deles com essas reuniões secretas. É importante perceber que
o desenvolvimento dessa estrutura invisível se dá em resposta ao racismo eclesiástico sistêmico.
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“fazer igreja” existiam simultaneamente, mas a tendência maior era a de


estabelecer igrejas separadas e exclusivas de negros.10
Segundo esse novo arranjo eclesiástico, os afro-americanos poderiam
orar e cantar juntos sem medo dos congregantes brancos, e, às vezes, eles
eram conduzidos por seus “parentes na carne”. Outrossim, o evangelho de
Jesus Cristo seria provavelmente menos utilizado como uma ferramenta
para manipular escravos; em vez disso, era uma mensagem de esperança —
tanto no presente como para o futuro.
Ao mesmo tempo que o movimento de igrejas negras independentes
mitigava o ferrão da opressão, a dinâmica racial era especialmente com-
plexa para as igrejas batistas negras que permaneceram nas associações do
Sul. Reter essas igrejas na CBS servia como um meio de controlar aque-
las congregações negras recém-estabelecidas. Apesar do distintivo batista
sustentado, havia muito da autonomia da igreja local, e as hierarquias
associativas regularmente tomavam decisões voltadas às congregações
negras, inclusive indicando ministros brancos.11 Em casos raros, as igre-
jas predominantemente negras eram entregues aos cuidados de ministros
negros, mas a estas também eram designados supervisores brancos, como
uma forma de salvaguardar temidas revoltas ou insurreições.

10 Leroy Fitts, “The Exodus of Black Baptists”, cap. 2, em A History of Black Baptists (Nashville: Broad-
man, 1985). Esse capítulo está focado na segunda categoria de Fitts, porque seu alvo é descrever a tensão
racial dentro da CBS que levou a uma nova estrutura denominacional, a CBN. As associações batistas
totalmente negras começaram a surgir nos idos de 1830, no embalo da rebelião de Nat Turner. Os
estimados 150 mil batistas negros em 1850 começaram a se diluir em associações independentes, espe-
cialmente depois que as relações entre negros e brancos começaram a se tornar mais tênues, quando os
batistas se dividiram em 1845 em relação à questão de escravidão. As primeiras igrejas batistas negras
no Sul precederam a fundação da CBS, que oferecia aos negros um precedente antes desse evento. A
primeira congregação batista negra foi fundada em 1758, sobre o aplainamento de William Byrd, em
Mecklenburg, na Virgínia, e a segunda, a Igreja Batista de Silver Bluff, foi fundada pelo famoso George
Liele em Silver Bluff, na Carolina do Sul. Embora a data de fundação da Igreja de Silver Bluff seja muito
incerta, estima-se que foi fundada entre 1773 e 1775, apesar de a pedra angular da igreja afirmar que foi
em 1750. No Oeste, as primeiras associações negras começaram a se formalizar depois, porque a tensão
racial estava muito menos pronunciada do que no Sul. Veja Anne H. Pinn e Anthony B. Pinn, Fortress
Introduction to Black Church History (Minneapolis: Fortress, 2001), p. 68-69.
11 Veja McBeth, The Baptist Heritage, p. 390. Para uma explicação ampliada ou para localizar os procedi-
mentos do Primeiro Encontro Trienal da Convenção Batista do Sul, 1846, veja a p. 22.
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As igrejas com liderança negra eram sistematicamente alijadas de


cooperar com suas associações, porque não lhes era permitido enviar re-
presentantes a encontros regulares. A exclusão da liderança negra em todos
os níveis da vida batista do Sul impediu a CBS de considerar as necessida-
des dos constituintes negros e alimentou o paternalismo entre os batistas
do Sul brancos. Em essência, as igrejas batistas do Sul negras eram tudo
menos independentes, e as estruturas denominacionais foram usadas como
um meio de sustentar o status quo.
Entre os batistas negros, a atividade desanimadora da CBS não era re-
legada ao governo da igreja ou à natureza da cooperação; ela se formalizou
segundo princípios teológicos que atendiam ao objetivo duplo de buscar a
“expansão do reino” por todo o mundo e escravizar os companheiros. Além
das características teológicas como uma abordagem revivalista ao pecado,
à conversão e ao arrependimento, a teologia batista do Sul sustentou um
dualismo antropológico que afirmava, simultaneamente, as práticas ecle-
siásticas opressoras e permitia aos batistas do Sul se sentirem altruístas
ao lidarem com os negros. A teologia pró-escravidão permitia o abuso dos
negros, ao mesmo tempo que lhes prometia liberdade na vida por vir. Na
prática, essa dicotomia teológica determinava que o corpo dos escravos per-
tencia aos seus donos terrenos, embora suas almas pertencessem a Deus.
A fé passada de brancos a negros foi cuidadosamente tutelada para
convencer os cristãos negros acerca desse dualismo. Para esse fim, as pas-
sagens da Escritura destacadas para os negros espelhavam a Bíblia do
Escravo Britânico. Essas Bíblias de escravos encorajavam os cativos a per-
manecerem dóceis, removendo 90% do Antigo Testamento, incluindo
passagens como aquelas de Êxodo retratando a libertação por Deus de seu
povo, que se encontrava na escravidão. Além disso, houve a eliminação de
50% do Novo Testamento, incluindo versículos como Gálatas 3.28, que in-
siste na unidade e na igualdade daqueles que estão em Cristo. Os versículos
que permaneceram destacavam a servidão, entre eles Efésios 6.5, que orde-
na: “Quanto a vós outros, servos, obedecei a vosso senhor segundo a carne”.
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Além dos textos seletivos incluídos nas Bíblias moduladas pelos es-
cravagistas e nos catecismos pró-escravidão (como um que era conhecido
como o Catecismo de Caper), algumas passagens eram comumente trans-
portadas para se apropriar da fé cristã com fins sociais. A maldição de Cam
(Gn 9.18-27) era usada para defender que Deus, e não os homens, inau-
gurara a instituição da escravidão humana. Além disso, argumentava-se
que a maldição de Noé selecionara os negros para o serviço perpétuo aos
brancos. Em Êxodo, a dependência constante de um escravo para com seu
senhor foi ilustrada por meio do retorno de Israel à servidão, depois de
sua libertação do Egito.12 Aos negros, também se ensinava que o silêncio de
Jesus a respeito da escravidão, a despeito de sua prevalência na sociedade
em que ele viveu, era uma afirmação dessa prática. A instrução do apóstolo
Paulo aos santos para que permanecessem na situação em que se encon-
travam quando Deus os chamou (1Co 7.20) foi mal aplicada à escravidão,
apesar da clara referência de Paulo à situação civil. Adicionalmente, o livro
de Filemom era uma fonte comum para defender o que era referido como
o “mandato paulino” para a escravidão. Esses ensinos eram idealizados para
se cultivar uma fé escatologicamente focada entre os negros, e eliminar o
desejo deles por equidade social e direito eclesiástico com os brancos.13
A fé cristã que os negros abraçaram não dependia do ataque da teo-
logia pró-escravidão sobre eles nas igrejas batistas do Sul. Ao mesmo
tempo que os batistas negros se agarraram aos fundamentos do pecado, do
arrependimento e da santificação, as igrejas negras independentes, especial-
mente a instituição invisível, serviram como pontos de encontro para forjar
uma tradição teológica que respondesse mais apropriadamente à condição
e às preocupações dos negros.14 Os temas teológicos do Segundo Grande
Avivamento encontraram, crescentemente, expressão única entre os afro-
-americanos. Em particular, Christopher Evans cita uma expressão mais
12 Lester Scherer, Slavery and the Churches in Early America: 1619-1819 (Grand Rapids: Eerdmans,
1975), p. 66. Alguns dos abusos foram encontrados no prédio escolar pré-Guerra Civil.
13 James H. Evans, We Have Been Believers (Minneapolis: Augsburg Fortress, 1992), p. 39.
14 Pinn e Pinn, Fortress Introduction, p. 12.
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igualitária de irmandade na comunidade cristã negra.15 Ademais, a forma-


ção da teologia afro-americana objetiva ser holística em escopo e não conter
dicotomia entre o sagrado e o secular, na medida em que a ressurreição
de Cristo transforma profundamente cada faceta da existência humana.
Os batistas negros também liam a Escritura com uma postura parti-
cipativa. Em contraste com a fé atribuída à leitura de muitos brancos, que
tendiam a ler o texto de forma mais analítica, os negros ensaiavam as his-
tórias bíblicas como se eles próprios fossem o povo de Deus. Por exemplo:

Os escravos começaram a se identificar com o povo hebreu e se declara-


ram participantes do drama escriturístico. A identificação deles com a
história estabelecia a identidade com o povo de Deus. Em particular, a
narrativa de Êxodo mantém um lugar de proeminência entre os relatos
do Antigo Testamento porque demonstra que a escravidão era contra a
vontade e a natureza de Deus. Como resultado do caráter imutável de
Deus, a promessa de libertação era certa, antes e agora, e essa suposição
floresceu na tradição cristã afro-americana.16

Assim, a adequada aplicação da história bíblica consistia em envolver


a participação na obra libertadora de Deus, nas próprias circunstâncias dos
negros. E essa crescente desassociação com os cristãos brancos preparou o
palco para uma migração em larga escala, seguindo a emancipação.

O ÊXODO NEGRO DA CONVENÇÃO BATISTA DO SUL: 1865–1895


O abuso que os batistas do Sul negros suportaram resultou em seu êxo-
do em massa da CBS, ao término da Guerra Civil. Antes da ratificação
15 Christopher H. Evans, Histories of American Christianity: An Introduction (Waco, TX: Baylor Univer-
sity Press, 2013), p. 81.
16 Walter R. Strickland II, “Methodological Development in African American Theology: The Influ-
ence of Past Historical Periods upon Contemporary Black and Womanist Thought”, em T&T Clark
Handbook of African American Theology, Antonia Michelle Daymond, Frederick L. Ware e Eric Lewis
Williams (orgs.) (Edinburgo, Reino Unido: T&T Clark, 2019), p. 225.
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da Décima Terceira Emenda, em 1865, o fato de as igrejas negras se des-


filiarem das igrejas brancas ou de suas associações era uma ocorrência
rara, mas, ao término da guerra, tornou-se a norma até mesmo no
Sul. Como Albert Raboteau declarou: “A ‘instituição invisível’ assumiu
uma forma visível”. As redes de congregações negras estabelecidas para
contra-atacar o abuso eclesiástico suportado nas igrejas brancas não
tinham mais de se ocultar.
A extensão da divisão entre batistas negros e brancos no Sul é ilus-
trada pela mudança demográfica entre os batistas da Carolina do Sul.
Em 1858, a Conferência Batista do Sul da Carolina do Sul contava com
29.211 membros de igreja negros; em 1874, eles eram 1.614.17 Ao mes-
mo tempo que os negros, em sua maioria, não permaneciam nas igrejas
lideradas por brancos, algumas igrejas negras permaneceram em suas as-
sociações batistas locais, em antecipação a uma nova dinâmica na relação
das raças, após a ratificação da Décima Terceira Emenda. Infelizmente,
as esperanças de uma nova igualdade não foram atualizadas na CBS. O
paternalismo estava bem vivo na vida batista, levando os negros a estabe-
lecer uma convenção própria.18

17 Albert J. Raboteau, Canaan Land: A Religious History of African Americans, Religion in American Life
(Oxford, Reino Unido: Oxford University Press, 2001), p. 68. Desenvolvimentos paralelos estavam
ocorrendo no metodismo. A igreja AME cresceu de um número modesto de vinte mil membros no
começo da Guerra Civil para quase quatrocentos mil em 1884. Veja C. Eric Lincoln e Lawrence H.
Mamiya, The Black Church in the African American Experience (Durham, NC: Duke University Press,
1990), p. 54. Outra denominação metodista predominantemente negra, a Igreja Episcopal Africana
Metodista Sião, cresceu em membresia de vinte mil para duzentos mil de 1860 a 1870, com o grande
volume de seu crescimento ocorrendo no Sul (Raboteau, Canaan Land, p. 68). Além disso, uma terceira
grande denominação metodista negra, a Igreja Episcopal Metodista Cristã, afirmou que sua membresia
excedia 103 mil pessoas em 1890 (Lincoln e Mamiya, Black Church, p. 63).
18 Um exemplo do paternalismo batista do Sul foi a Conferência de Fortress Monroe, em 1894. Esse
encontro dos delegados batistas do Norte e do Sul deveria amenizar as tensões remanescentes depois da
Guerra Civil, conforme ambos os lados teriam continuamente violado limites geográficos estabelecidos
no plantio de igrejas e em outros esforços missionários. Dos três acordos a partir da conferência, dois
envolviam o ministério com os batistas negros. Dado que dois terços da agenda da conferência diziam
respeito a esse assunto, é razoável que os delegados das igrejas batistas negras tivessem sido convidados
— mas nenhum deles foi. Essa mentalidade de “o pai sabe mais” permeou a disposição dos batistas do
sul em relação aos batistas negros. Essa flagrante falta de representação foi um dos fatores motivadores
primários por trás da formação da Convenção Batista Nacional, em 1895.
Tensão racial, a tradição batista e a unidade cristã | 13

UMA CONVENÇÃO NACIONAL PARA OS BATISTAS NEGROS: 1895


A formação da Convenção Batista Nacional (CBN) dos EUA marcou a
formalização de um cisma profundo entre os batistas brancos e os batistas
negros que ainda tinha de ser superado. Como a suposta superioridade
branca era inerente aos estatutos e aos sentimentos mantidos na CBS,
os cristãos negros estabeleceram um lugar para orar, cantar, pregar e co-
mungar sem o cobertor opressor da inferioridade. Esse alvo construtivo de
estabelecer a CBN está claro no relato do então presidente da convenção,
Elias Camp Morris, em 1899:

Desejo repetir o que disse em algumas outras ocasiões: que essa Socie-
dade [denominação] não possui má vontade em relação a qualquer outra
organização cristã no mundo. Ela busca estar em termos amigáveis com
todos, e a acusação de que essa organização objetiva traçar a linha da cor
e, assim, criar preconceitos nos cristãos “negros” contra os cristãos “bran-
cos” é desprovida de qualquer fundamento.19

Entre 1890 e 1906, a membresia da igreja aumentou de 2,6 para 3,6


milhões entre os afro-americanos que frequentavam largamente as igrejas
negras independentes sem vínculo com denominações brancas. Em 1906,
a Convenção Batista Nacional reivindicou mais de dois milhões de congre-
gantes e já representava mais de 61% de todos os negros que iam à igreja
na América.20

FORTALECENDO A DIVERGÊNCIA
A consequência esmagadora do denominacionalismo racializado é que
cada convenção tem sido condicionada a zelar pelos interesses de seu gru-
po cultural dominante. Essas dinâmicas complicam a reconciliação racial
19 Elias Camp Morris, Sermons, Addresses and Reminiscenses and Important Correspondence, with a Picture
Gallery of Eminent Ministers and Scholars (Nashville: National Baptist Publishing Board, 1901), p. 93.
20 Paul Harvey, Through the Storm and Through the Night: A History of African American Christianity, The
African American Experience Series (Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2001), p. 72.
14 | OS BATISTAS E O RESGATE DA TRADIÇÃO CRISTÃ

de ambas as denominações, e reprimem a rica catolicidade. No todo, a


existência de duas estruturas denominacionais gera dificuldade para a re-
conciliação racial porque as estruturas não são neutras — elas influenciam
o povo que existe em seu interior.
Um desafio provocado pelas estruturas denominacionais racializadas
é que as amadas tradições de adoração comunitárias e os procedimentos
operacionais produzem uma pedra de tropeço, pois a alegação “a forma se-
gundo a qual sempre fizemos isso” é vista como mais valiosa do que forjar
uma nova forma de mutualidade entre os corpos estabelecidos. Conven-
ções segregadas deixam pontos de partida limitados para se trabalhar em
prol da unidade racial, porque suas estruturas foram firmadas no meio da
dissensão racial. Entre os que investiram em reconciliação racial, o status
quo força a seguinte pergunta paralisante: a partir de que lado começo a
trabalhar em prol da unidade? Isso em si resulta na perda do desejo pela
unidade por parte dos indivíduos apaixonados, pois acabam por trabalhar
contra uma cultura institucionalizada.
As disposições basilares de cada convenção estabeleceram um curso
para a dissonância entre as duas. Em seus primórdios, os idealizadores da
CBS acreditavam que tinham em mente o alvo singular de “expandir o rei-
no do Messias”. A esperança genuína deles era expandir o Reino de Deus,
proclamando verbalmente Jesus como Senhor. Em contraste, os fundado-
res da CBN visavam promover a saúde espiritual dos negros e desenvolver
habilidades e traços de caráter entre eles, a fim de asseverar sua plena hu-
manidade numa nação marcada pela injustiça racial.21 Enquanto ambas as
convenções estavam convencidas de realizar a obra “cristã”, acusações de
truncar o evangelho ou confundi-lo desnecessariamente com preocupações
sociais complicaram de forma contínua a reconciliação.
Uma dinâmica significativa no jogo é a necessidade de os cristãos negros
de “lançar todas as suas ansiedades” sobre o Senhor, e olhar para os recursos
da fé para se envolver com seus problemas. Em contraste, os cristãos brancos
21 Pinn e Pinn, Fortress Introduction, p. 77.
Tensão racial, a tradição batista e a unidade cristã | 15

poderiam lançar algumas de suas ansiedades, particularmente as preocu-


pações sociais, em outras instituições como o governo, porque isso teria,
de forma consistente, os melhores interesses em mente. Então, os cristãos
brancos buscaram manter o evangelho puro olhando para a fé, para fazer o
que nenhuma outra entidade poderia fazer, ou seja, salvar almas. Essa di-
vergência a respeito do escopo da obra da fé produz dissonância entre as
denominações, o que, definitivamente, causa desarmonia.
As entidades denominacionais também contribuem para a miopia
teológica e metodológica, perpetuando, assim, a desunião. Ambas as con-
venções mantêm seminários nos quais o clero pode ser bem-sucedido em
suas buscas educacionais sem envolver, de forma sincera, os irmãos e ir-
mãs de outras denominações batistas. Além disso, a insularidade teológica
dos seminários é transmitida pelas casas publicadoras denominacionais,
que tendem apenas a considerar as necessidades de um eleitorado racia-
lizado. Essas dinâmicas institucionais formam uma barreira estrutural
para a união, e têm consequências contemporâneas duradouras e de difícil
quantificação. As convenções estabelecidas para atender a um segmento
racializado do povo de Deus providenciaram um local para encorajar as
inclinações raciais individuais, promoveram a insularidade institucional e
a miopia teológica generalizada em ambos os contextos. A pergunta que se
impõe é: para onde vamos a partir daqui?

POR UMA CATOLICIDADE BATISTA


O problema racial no século XXI tem pouco a ver com o desmantelamen-
to da suposta superioridade branca, e muito a ver com a compreensão da
dinâmica que permitiu o apodrecimento das feridas do racismo por tantas
gerações. Ao mesmo tempo que inclinações individuais sempre serão uma
questão de contenção, a contenda racial contemporânea é frequentemen-
te causada por aqueles que participam, de forma anônima, de estruturas
sociais racializadas e fracassam em se opor a pessoas racistas. A vida deno-
minacional não é diferente: grandes denominações como a CBN e a CBS
16 | OS BATISTAS E O RESGATE DA TRADIÇÃO CRISTÃ

operam com um senso de autossuficiência, raramente olhando para fora de


si mesmas para dispor de recursos. Isso deixa certa tensão entre as deno-
minações desengajadas, na medida em que as estruturas isolam pessoas e
as tendências raciais implícitas raramente são desafiadas.
Uma confluência de inclinações raciais que levam a sentimentos de
superioridade e independência estrutural alimenta a falsa suposição de que
não há nada para ser ganho com a interação de uma com a outra. A solução
para a tensão racial na vida batista, entretanto, não é destruir ambas as
denominações e criar uma nova estrutura unida. Em vez disso, o trabalho
deve ser feito dentro das estruturas existentes, a fim de posicioná-las de
modo a servir a um círculo maior e eliminar as tensões entre as convenções.
Isso envolve lidar com as tendências individuais, com a insularidade estru-
tural e com a miopia teológica.
Ao mesmo tempo que as nuances de cada obra da denominação pela
unidade garantem sua própria exploração ampliada, os passos seguintes em
relação à catolicidade são aplicáveis a vários grupos cristãos, com a CBN
e a CBS em primeiro plano. Os passos seguintes assumem que a CBS do
século XXI não compartilha os sentimentos dos fundadores da denomina-
ção, a respeito da posse de escravos.22 Esses passos também assumem que
a CBN não acolhe uma aversão intencional pelos batistas do Sul, ou pelos
brancos em geral. Em vez disso, esses passos assumem que as estruturas
denominacionais correntes inibem os relacionamentos necessários para su-
perar tendências individuais e teológicas que surgem do isolamento. Essas
reflexões podem ser frutíferas para alimentar a unidade racial dentro de
cada denominação, mas também buscam uma catolicidade mais robusta
entre a CBN e a CBS.

Viés individual
A tensão racial começa, comumente, pelo viés individual. O racis-
mo e o viés são características distintas no panorama racial. O racismo é
22 Veja a resolução da CBS de 1995 sobre reconciliação racial.
Tensão racial, a tradição batista e a unidade cristã | 17

evidente e intencional, enquanto o viés é mais facilmente esquecido porque


seus proponentes não desejam promover sentimentos racistas. Apesar da
intenção das pessoas, contudo, as consequências do racismo e do viés são
reais. O dano do viés racial é frequentemente não reconhecido porque fal-
samente se iguala ao racismo intencional, que a maioria dos cristãos deseja
eliminar de suas vidas.
Em 1Coríntios 13, Paulo apela aos crentes, o que também se apli-
ca a toda a humanidade, dizendo que eles enxergam “como em espelho,
obscuramente” (13.12) e são “meninos” (13.11) em sua existência terrena.
A limitação humana surge de nossa particularidade como seres que têm
corpo. Cada pessoa vem de uma localização geográfica em particular, de
um estado socioeconômico, de um nível de educação, de um momento
específico e de um pano de fundo racial. Cada uma dessas características
“obscurece a lente” a algumas realidades terrenas, ao mesmo tempo que
torna as pessoas bem conscientes de outras circunstâncias. Nossos pontos
cegos se tornam vieses, e são acentuados quando a possibilidade de haver
um ponto cego é negada. Essas limitações são essenciais ao que quer dizer
“ser humano”.
Além disso, os vieses individuais são amplificados em comunidade. O
adágio antigo é verdadeiro: aprendemos mais do que ensinamos. Quanto
mais homogêneo for o grupo social, mais provável é que seus pontos cegos
se sobreponham. Um grupo de pessoas uniformemente cegas tende a negar
qualquer coisa que se diga naquela área de cegueira. Ambientes homogê-
neos exacerbam os pontos cegos, apoiando suposições casuais e fracassando
em situá-los numa estrutura explicitamente bíblica. Em consequência,
negar um ponto cego pessoal é negar o próprio conceito de humanidade,
razão pela qual a pergunta não deveria ser “eu tenho um viés?”, mas, sim, “de
que forma sou enviesado?”.
Dentro de cada denominação, as normas culturais e operacionais
apoiam o status quo estimado. Por exemplo, dentro de cada convenção, a
dinâmica existe em tudo, dos estilos de pregação e adoração a questões
18 | OS BATISTAS E O RESGATE DA TRADIÇÃO CRISTÃ

de governança controlando a distribuição de fundos entre os missioná-


rios. Cada denominação cresceu acostumada a cuidar dos negócios à sua
própria maneira. Essas dinâmicas alimentam um orgulho denominacional
saudável, ainda que também possam ter consequências negativas. Como as
convenções cresceram acostumadas a “ter tudo feito de determinada forma”,
uma conclusão tácita de que outras práticas denominacionais são inferiores
pode desenvolver-se. Essa atitude é intensificada pelas dinâmicas raciais na
América, que, sistematicamente, distanciam as raças umas das outras. Um
ar de superioridade se agiganta, porque há poucos relacionamentos raciais
para inverter os prejulgamentos. Em essência, as linhas denominacionais
minimizam a possibilidade de haver reconciliação racial, em razão do viés
individual e de sua natureza acentuada numa comunidade homogênea.

Soluções ao racismo individual


Como todas as pessoas “veem apenas em parte”, irmãos e irmãs que
veem a Palavra de Deus e o mundo a partir de diferentes perspectivas
precisam uns dos outros. O orgulho tenta cada pessoa a assumir que vê
objetivamente, e que os outros veem de modo obscuro, como se fosse
através de um vidro. Infelizmente, o povo de Deus raramente colhe os
benefícios do aprimoramento mútuo entre irmãos e irmãs de diversas
etnicidades. Igrejas e denominações segregadas sustentam posições diver-
sas (ainda que biblicamente permissíveis) num alcance de assuntos que
alimentam momentos constrangedores e desentendimentos inevitáveis.
E, apesar de alguns momentos desconfortáveis, o valor do autodesloca-
mento deve ser entendido como um passo necessário rumo à superação
de pontos cegos e vieses.
Ao mesmo tempo que ninguém vê com pura objetividade, o povo de
Deus pode identificar continuamente a bagagem que as pessoas são incli-
nadas a adicionar ao evangelho; como resultado dessa obra, o evangelho de
Jesus Cristo tornar-se mais claro. Como Provérbios 27.17 declara: “Como
o ferro com o ferro se afia, assim, o homem, ao seu amigo”. É evidente
Tensão racial, a tradição batista e a unidade cristã | 19

que o ferro afia o ferro com grande eficácia, pelos limites da diferença. E
a dinâmica do aprimoramento mútuo é mais bem-ilustrada na beleza do
casamento. Dois pecadores unem-se e são refinados e santificados ao longo
do tempo. E, apesar dos momentos difíceis, no todo os crentes prezam a
oportunidade de ser santificados e sustentar a aliança do casamento diante
de Deus. Infelizmente, muitos cristãos americanos têm comprado a ideia
da norma de segregação no país e, quando a conversa se torna descon-
fortável pelas linhas raciais, os cristãos em geral tendem a expressar seu
comprometimento com as normas culturais americanas de segregação, e
não a promover o evangelho da unidade.
A inabilidade da igreja em perseguir a reconciliação racial revela um
buraco cavernoso em nosso entendimento da santificação. Na América, a
batalha pela reconciliação racial é um primeiro teste de tornassol para a
maturidade espiritual. Um corpo de crentes que adora além das linhas ra-
ciais e expressa o “uns aos outros” do Novo Testamento esboça um quadro
maravilhoso da habilidade do evangelho em superar a divisão. Além disso,
um povo genuinamente multicultural atendeu ao chamado do apóstolo
Paulo em Filipenses 2.3-5: “Nada façais por partidarismo ou vanglória,
mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mes-
mo. Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também
cada qual o que é dos outros. Tende em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus”.
As pessoas, nos espaços multiétnicos, podem colocar Cristo de uma
forma que supera a bagagem histórica, cura os ressentimentos e força os
crentes a pensar no lugar alheio. Isso requer o perdão e a paciência exem-
plificados em Cristo. Os cristãos têm um exemplo sobrenatural, nele, de
alguém que resistiu à retaliação e absorveu o golpe final do pecado, com o
propósito de encerrar o ciclo de rompimento e feridas. Altruísmo como o
de Cristo é necessário para buscar, intencionalmente, irmãos e irmãs dife-
rentes, a fim de expor os vieses e superar a tensão racial, tudo em prol do
avanço do reino de Deus.
20 | OS BATISTAS E O RESGATE DA TRADIÇÃO CRISTÃ

Insularidade estrutural
As estruturas não são neutras; elas exercem uma força moldadora e
ajudam a diagnosticar atividades que se revelam contrárias aos seus alvos
declarados. Como uma cadência no pano de fundo, alguns que aderem
intencionalmente a uma estrutura seguem uma maioria. Outros se con-
formam subconscientemente, mas é importante perceber que as estruturas
resistem a mudanças porque as pessoas que as sustentam têm investido
muito nelas. Em sentido real, as estruturas sugerem quem pode participar
alegremente de uma denominação no longo prazo. As estruturas — com-
preendendo o programa, o currículo e os ministérios — são frequentemente
construídas por aqueles que sempre têm sido os beneficiários do sistema.
Se os que tomam a decisão compartilham um conjunto quase uniforme de
preocupações que é moldado por uma experiência similar, aqueles que, da
mesma forma, compartilham essa experiência contarão com maior apoio
das estruturas montadas.
Se, por exemplo, a CBN e a CBS estiverem preparadas para servir a
um círculo mais amplo, suas estruturas terão de ser reexaminadas, pois,
conforme as instituições refinam seus objetivos, suas práticas, políticas e
seus procedimentos deverão seguir o exemplo. Assegurar que os sistemas
apoiem o escopo total de uma visão é imperativo, porque as estruturas po-
dem servir com excelência a uma simples demografia, mas de uma forma
míope, sem levar em consideração outros grupos. Além disso, as estruturas
são enganosas, e aquelas que perpetuam a miopia espiritual podem fazer
isso sem ao menos se dar conta. Isso exige um representante de um grupo
demográfico vulnerável, a fim de identificar a vulnerabilidade daquele gru-
po dentro de uma organização.

Soluções a tendências sistêmicas


Alinhar estruturas institucionais com uma visão expandida que in-
clui servir àqueles que estão além do círculo histórico de alguém demanda
esforço. Deve-se assegurar que os novos esforços não representem meras
Tensão racial, a tradição batista e a unidade cristã | 21

manias transitórias e que a relevância de novas iniciativas deve ser de-


monstrada, à luz da missão estabelecida de uma denominação. Dentro das
instituições cristãs, é imperativo que a reconciliação racial seja demons-
trada como um alvo bíblica e teologicamente inspirado, e não motivado
por pressão política ou social. Aos indivíduos que constituem a instituição,
deve-se mostrar como essa dimensão adicional se encaixa na Escritura. Se
houver cuidado apropriado na execução desse passo, os membros de uma
denominação abraçarão esse tema bíblico essencial. Dessa forma, a aplica-
ção nos esforços pessoais e coletivos fluirá naturalmente.
Nas organizações complexas, é importante não limitar os esforços
de diversidade a uma pessoa só ou a um ofício. Ao mesmo tempo que esse
é um caminho mais árduo, descentralizar os esforços revela-se bem mais
eficaz do que um modelo centralizado que produz resultados mensurá-
veis mais rapidamente. Embora eventos e esforços isolados para apoiar
o novo alvo sejam importantes, as mudanças mais duradouras ocorrem
quando cada indivíduo, em todos os ofícios, é treinado para executar seu
papel ao servir a uma demografia mais ampla. Uma iniciativa de toda
a denominação redesenha a imagem do sucesso na minúcia de toda a
organização, gerando um impulso consistente para a transformação da
insularidade sistêmica.
Por sua graça, Deus garantiu aos crentes os recursos para superar
as limitações; em adição à Escritura e ao Espírito Santo, ele nos deu uns
aos outros. Por essa razão, quando estruturas organizacionais e políticas
são criadas ou examinadas, é ideal contar com a participação de represen-
tantes dos grupos que a organização espera apoiar. O escopo cumulativo
da visão limitada de cada indivíduo provê mais chances de que cada de-
mografia será considerada nas decisões tomadas. As organizações serão
pressionadas mais duramente para criar um ambiente no qual vários
tipos de pessoa possam florescer, se as práticas, as políticas e os procedi-
mentos não forem examinados para assegurar que todos se beneficiem do
status quo, e não apenas a maioria.
22 | OS BATISTAS E O RESGATE DA TRADIÇÃO CRISTÃ

Viés teológico
Os efeitos das comunidades homogêneas se estendem à leitura da
Escritura e à formulação teológica. Os leitores da Escritura frequentemen-
te abordam essa tarefa como qualquer outra, como pessoas egoístas que
privilegiam seus achados em detrimento das percepções de outras. O re-
sultado é que ler a Bíblia e fazer teologia num grupo homogêneo limitam
a habilidade do ser humano para entender tudo que Deus está fazendo
na Escritura. O texto bíblico é bem mais rico e mais maravilhosamente
complexo do que qualquer grupo individual e homogêneo possa discernir.
Ainda assim, em seminários afiliados denominacionalmente, a homogenei-
dade dos intérpretes bíblicos é comum.1
Os batistas do Sul contemporâneos tendem a minimizar o papel do
contexto (denominacional ou qualquer outro) na leitura da Bíblia e na teo-
logia porque, historicamente, os cristãos progressivos inflaram o lugar do
contexto acima da própria Escritura. Para evitar o mesmo erro, os evangé-
licos podem insistir que a teologia e o estudo da Bíblia são realidades não
culturais. Mas as realidades contextuais sempre estiveram ali, influenciando
a leitura da Escritura e a teologia, bem como outras práticas cristãs como o
discipulado e a educação. Portanto, um contexto particular tem-se tornado
inerente a cada denominação. A pergunta é: qual contexto é o dominante?
A cultura mais popular ou influente numa denominação tende a se tornar
a linha básica ou a medida a partir da qual todas as culturas são julgadas.
Dessa forma, essa cultura dominante é considerada, de forma equivocada,
culturalmente neutra.2 Na missão de evitar o cativeiro cultural na leitura
da Escritura ou no processo de fazer teologia, pode parecer vantajoso para
cada cristão alinhar-se com a cultura dominante em sua denominação —
porque aquela cultura é tida como normal.
1 Essa observação não tem por objetivo criticar a existência de seminários denominacionais, mas, sim,
reconhecer que eles podem tornar-se, facilmente, câmaras de eco que não mais equipam os alunos a
servir a todo o povo de Deus.
2 É importante perceber que a cultura dominante não é sempre a cultura dominante dos Estados Unidos
como um todo, mas, sim, a cultura dominante dentro da instituição em questão.
Tensão racial, a tradição batista e a unidade cristã | 23

Porém, ser parte da cultura “normal” pode alimentar uma visão in-
flada de si mesmo que produz uma forma subconsciente (ou, às vezes, até
mesmo consciente) de supremacia cultural. A perspectiva cultural “normal”
é, então, afirmada na interpretação bíblica, organizacional e cultural. Uma
tentação para aqueles que incorporam a cultura “normal” é tentar julgar
a validade de culturas não dominantes. É comum para as culturas mi-
noritárias serem aceitas na medida em que suas contribuições bíblicas e
teológicas combinam com a cultura dominante. Denominacionalmente, o
efeito é variado. Primeiro, esse fenômeno gera uma teologia que interage
apenas com as inquirições de um grupo cultural dominante em particu-
lar, ao mesmo tempo que se disfarça de uma teologia “universal” de todos
os povos. Segundo, porque a formulação teológica denominacional pode
tornar-se paroquial, e a teologia pode tornar-se um meio de justificar a ati-
vidade denominacional em vez de estabelecer um curso bíblico de ação.

Soluções ao viés teológico


Aprender a estimar uma tradição, ainda que se olhe para além de seus
vieses teológicos, é uma habilidade necessária para o teólogo que serve em
um contexto denominacional. Talvez pela primeira vez o povo de Deus é
capaz de obter uma perspectiva mais completa de como Deus está traba-
lhando em seu mundo quando vê que a cosmovisão cristã é suficientemente
robusta para interagir com toda a vida em qualquer contexto — esse é um
empreendimento teológico.
Pessoas de diferentes contextos formulam perguntas únicas e trazem
diferentes experiências à mesa. Conforme grupos diversos cercam a Palavra
de Deus — a fonte da verdade — e se submetem à sua reivindicação em
suas vidas, o Espírito Santo cultiva a sabedoria bíblica em cada indivíduo,
a fim de interagir com as circunstâncias da vida à luz do Senhor ressurreto.
Ao surgirem fardos por todas as linhas da diferença, novas oportunidades
aparecem no processo de fazer teologia em prol de outros, de modos que
iluminam as implicações da Escritura na vida de cada participante.
24 | OS BATISTAS E O RESGATE DA TRADIÇÃO CRISTÃ

CONCLUSÃO
A história dá testemunho do desenvolvimento da CBN e da CBS.
Embora essas entidades paralelas tenham surgido de circunstâncias peca-
minosas, a esperança do evangelho oferece um caminho futuro para essas
denominações — e a outras que se tenham tornado insulares. Nos dias
que correm, ambos desejam enfrentar o legado de racismo na América, em
busca de vieses nos níveis individuais, estruturais e teológicos. A interconec-
tividade dessas dinâmicas exige que os líderes de ambas as denominações
não se acomodem em falar apenas a alguns, mas, sim, a todos. Enquanto o
raciocínio do mundo pela busca da unidade racial é acompanhado de um
tom punitivo carregado de culpa, os crentes são conduzidos pela oração de
Cristo por catolicidade, para que todos sejamos um ( Jo 17.21).
A Pro Nobis Editora nasceu da visão de servir à igreja
brasileira mediante a literatura cristã de qualidade.
O ministério da Pro Nobis tem por alvo especial ajudar os
batistas brasileiros na missão de edificar a igreja e anunciar
o Evangelho ao mundo. Para tanto, o conhecimento de suas
raízes históricas e herança teológica é fundamental. Existem
excelentes editoras evangélicas no Brasil, com as quais
juntamos forças nesse trabalho de servir ao povo de Deus.

Mas por que Pro Nobis? Trata-se de uma expressão em


latim que significa POR NÓS. Na tradição cristã, essa
expressão se relaciona com a obra de Jesus Cristo em
nosso favor. A cruz é o símbolo maior e mais sublime da
fé cristã, o coração do Evangelho. O Deus Trino fez uma
aliança de redenção em favor de seu povo eleito, salvo
pelo sangue do Cordeiro. Nosso alvo é edificar a igreja para
que ela prossiga na missão de proclamar “o evangelho das
insondáveis riquezas de Cristo” (Ef. 3.8).

Acesse o site e acompanhe nosso ministério:


www.pronobiseditora.com.br

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