Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Beate Ego
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no judaísmo,
no cristianismo
e no islamismo
ABRAÃO
no judaísmo,
no cristianismo
e no islamismo
Christfried Böttrich
Beate Ego
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no judaísmo,
no cristianismo
e no islamismo
Tradução:
Milton Mota
Título original:
Abraham in Judentum, Christentum und Islam
© Vandenhoeck & Ruprecht GmbH & Co. KG
Christfried Böttrich; Abraham in Judentum,
Christentum und Islam, Göttingen 2009
Theaterstraße 13, 37073
Göttingen, Germany
ISBN 978-3-525-63398-4
Böttrich, Christfried.
Abraão no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo / Christfried
Böttrich, Beate Ego, Friedmann Eissler ; tradução Milton Mota. -- São
Paulo : Edições Loyola, 2013.
Título original: Abraham in Judentum, Christentum und Islam.
Bibliografia
ISBN 978-85-15-03959-3
1. Abraão (Patriarca bíblico) I. Ego, Beate. II. Eissler, Friedmann.
III. Título.
12-12429 CDD-222.11092
ISBN 978-85-15-03959-3
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2013
SUMÁRIO
PREFÁCIO —————————————————————— 7
ABRAÃO
no judaísmo ———————————————————— 9
1. INTRODUÇÃO: O AMIGO DE DEUS ——————————— 9
2. A TRADIÇÃO BÍBLICA DE ABRAÃO ———————————— 11
3. A FIGURA DE ABRAÃO NOS TEXTOS
NÃO BÍBLICOS DO ANTIGO JUDAÍSMO —————————— 18
ABRAÃO
no cristianismo —————————————————— 53
1. INTRODUÇÃO: UMA VELHA
HISTÓRIA EM NOVA PERSPECTIVA ———————————— 53
2. ABRAÃO NOS ESCRITOS DO NOVO TESTAMENTO —————— 57
3. ABRAÃO NA TRADIÇÃO CRISTÃ ————————————— 88
4. PERSPECTIVA: ACESSOS COMUNS A ABRAÃO ———————— 95
5. BIBLIOGRAFIA (SELEÇÃO) ——————————————— 98
ABRAÃO
no islamismo ——————————————————— 101
1. INTRODUÇÃO: COMO O
ISLAMISMO NARRA SOBRE ABRAÃO ——————————— 101
2. ABRAÃO NO ALCORÃO ———————————————— 110
3. ABRAÃO NA TRADIÇÃO PÓS-ALCORÃO —————————— 145
4. UMA PERSPECTIVA: ECUMENISMO ABRAÂMICO? —————— 156
5. BIBLIOGRAFIA (SELEÇÃO) ——————————————— 161
7
PREFÁCIO
É difícil a relação entre judeus, cristãos e muçulmanos. Mas eles po-
dem haurir de uma fonte em comum: o rico tesouro das grandes
narrativas bíblicas. Eles confessam um Deus único, que criou o céu
e a terra. Em sua história, eles se entrelaçam e se inter-relacionam
com frequência. No entanto, quanto maior a proximidade, mais ni-
tidamente também se formam os conflitos, como sabemos. A longa
história das relações judaico-cristão-mulçumanas foi frequentemen-
te acompanhada por demarcações e hostilidades, por pogroms, cru-
zadas, genocídios e atos terroristas. Evidentemente houve também
períodos de convivência pacífica. A época áurea da espantosa sim-
biose judaico-islâmica na Espanha dos séculos XI/XII, por exemplo,
se inscreveu de modo inesquecível nos anais da história europeia.
Personalidades individuais foram capazes de transpor os abismos
das diferenças religiosas. Mas a vasta massa de fiéis continuou a ter
dificuldades para ver irmãos e irmãs em seus semelhantes. As expe-
riências de conflitos seculares têm um peso muito grande. Por isso,
o entendimento comum é mais urgente do que nunca neste nosso
mundo com interconexões cada vez mais estreitas.
Tanto a assimetria das relações quanto a diferença estrutural das
três religiões abraâmicas revelam ser uma dificuldade especial nessa
convivência. As inter-relações têm proporções diversas e pesos dife-
rentes. As categorias teológicas de uma religião não são simplesmen-
te compatíveis com as da outra. Todavia, para além da necessidade
pragmática de encontrar uma convivência pacífica em nosso mundo
moderno, ameaçado, há também uma ampla base de semelhanças
teológicas. Há décadas os cristãos e judeus têm avançado bastante
no reconhecimento desse fato. Em contrapartida, o diálogo com o
islamismo é totalmente incipiente. Mas aqui falta principalmente
ampliar, numa base de conhecimentos gerais e evidentes, o saber es-
pecial das poucas pessoas envolvidas num diálogo.
É nesse ponto que este livro gostaria de dar uma contribuição.
O pressuposto mais importante para todo encontro consiste em le-
var em conta um ao outro e obter conhecimento um do outro. Isso
se revela de especial importância justamente onde as três religiões
8 abraâmicas acolhem tradições comuns, pois o livro se ocupa com as
figuras marcantes das narrativas bíblicas que são igualmente signifi-
cativas entre judeus, cristãos e muçulmanos. Nisto a tradição judai-
co-veterotestamentária adquire importância fundamental. Tanto os
escritos do Novo Testamento como também as obras da teologia que
começa no século II remetem a ela. O Alcorão e a tradição islâmica
a ele conectada retomam tradições judaicas e várias tradições cristãs
e lhes dão nova forma. Essas linhas deverão se tornar visíveis aqui.
Trata-se, nesse processo, tanto das semelhanças que são definidas pe-
lo material comum quanto das diferenças que são influenciadas pelo
contexto de cada comunidade religiosa.
Ao mesmo tempo, as grandes figuras das tradições se vinculam
a importantes campos temáticos. Este livro sobre Abraão é dedicado à
fundamental questão sobre o significado da crença em Deus.
A experiência nos diz que o medo do estranho é maior onde não
o conhecemos ou o conhecemos apenas vagamente. Portanto, se este
livro puder transmitir conhecimentos fundamentais, teremos dado
um passo importante para o entendimento comum. Nesse processo,
o olhar sobre a crença do outro e sobre o que lhe é importante faz
nossa própria tradição reaparecer numa luz inteiramente nova. Este
livro pretende ser um estímulo para isso.
As três partes do livro foram escritas com toda a necessária ex-
pertise em teologia judaica, cristã e islâmica, mas de um ponto de vista
cristão comum. O público leitor almejado será muito provavelmente
um grupo predominantemente cristão. No entanto, damos priori-
dade ao esforço de fazer justiça, tanto quanto possível, à compreen-
são que os judeus, cristãos e muçulmanos têm de si mesmos. Pois,
apesar de toda a busca por semelhanças, não se pode tratar de apagar
as fronteiras para criar uma grande uniformidade. Ao contrário, a
atenção imparcial de uns aos outros deve também possibilitar uma
conversa instruída e construtiva.
Nada mais apropriado do que promover um diálogo inter-religio-
so a partir da figura de Abraão. As três religiões “abraâmicas” se reen-
contram em seu nome para um diálogo. A antiga promessa de bênção,
que em todas as três religiões vincula Abraão ao mundo das nações,
também fortalece a esperança numa convivência nova, liberta.
Beate Ego 9
ABRAÃO
no judaísmo
1
INTRODUÇÃO: O AMIGO DE DEUS
ABRAÃO
no judaísmo
povo antes de todos os outros e o distingue radicalmente deles.
Esses temas foram amplamente discutidos nos estudos do An-
tigo Testamento, mas não podem ser desenvolvidos aqui. É, antes, o
Abraão como figura literária que deve estar no centro do interesse de
nossas explanações. Após um panorama sobre os textos bíblicos de
Abraão e uma breve reflexão sobre a história de sua gênese, deverão ser
apresentados principalmente os temas fulcrais da tradição de Abraão
do judaísmo antigo. Como o espaço dado aqui não permite analisar
detalhadamente todos os textos, vamos escolher ênfases diversas e ilu-
minar suas diferentes facetas. Um capítulo final apontará alguns ou-
tros temas da tradição abraâmica do judaísmo antigo e tentará resumir
suas linhas essenciais. Abraão aparece como representante do conheci-
mento verdadeiro de Deus e como um tipo de “figura limítrofe”, que
se encontra entre Israel e o mundo das nações; nele se espelha tanto a
crença de Israel em Deus como também sua relação com as nações.
2
A TRADIÇÃO BÍBLICA DE ABRAÃO
ABRAÃO
no judaísmo
vida; no entanto, com Abrão retorna ao mundo a bênção, que a partir
dele se propaga para o mundo das nações.
Sem questionamento, sem hesitação e sem dúvida, Abrão, junta-
mente com sua mulher, Sarai, seu sobrinho Lot e seus servos, se põe a
caminho, em direção à terra até então desconhecida. Chegando a Canaã,
Abrão vai primeiramente até Siquém. Deus promete essa terra a seus
descendentes; Abrão reage a isso construindo um altar para Deus e in-
vocando seu nome. Por fim, passando por Betel, onde também ocorre a
construção de um altar, Abrão deslocou-se até o sul da região, de modo
que ele, por assim dizer, simbolicamente atravessou o país todo.
Nessa abertura da narrativa de Abraão são explicitados os temas
centrais da história bíblica de Abraão, da descendência e da terra;
pela temática “descendência”, também Sarai, a esposa de Abrão, é,
ao mesmo tempo, indiretamente envolvida como figura fundamen-
tal da ação. O primeiro tema determinante da narrativa bíblica de
Abraão é o cumprimento da promessa da descendência. A promessa
de Deus no início da narrativa segundo a qual ele pretende fazer de
Abrão um grande povo enfrenta alguns obstáculos. Com base em
Gênesis 11,30, já sabemos da esterilidade de Sarai; além disso, ao
sair de Harran, Abrão já está com 75 anos. Mas a situação se agravará
ainda mais a seguir: um período de fome obriga Abrão a ir com sua
mulher para o Egito, o celeiro da Palestina. Lá, a condição da futura
matriarca é ameaçada pelo faraó, que cobiça Sarai por causa de sua
beleza. Abrão, para defesa própria, alega que Sarai é sua irmã, a qual
é, de fato, levada para a corte do faraó. Deus, no entanto, resgata Sa-
rai. Agora, Abrão e Sarai, com ricos presentes, deixam o Egito e no-
vamente sobem para Canaã (12,10-20). As opiniões diferem quanto
a essa narrativa: enquanto alguns intérpretes pretendem descobrir
aqui a pouca fé de Abrão, até mesmo sua covardia, outros veem a
narrativa como uma prova da inteligência e da astúcia do patriarca.
Se seguimos o fio narrativo da promessa de descendência, ve-
mos, então, que a história em Gênesis 15 desempenha um papel ex-
traordinário. Deus responde à queixa de Abrão com a promessa de
que sua descendência será tão numerosa quanto as estrelas no céu;
Abrão confia na palavra divina, e isso lhe “é imputado como justiça”
(Gn 15,6). O caráter apropriado e correto de sua conduta é, portanto,
14 reconhecido por Deus. Abrão se torna o “pai da fé” e o protótipo de
uma existência que agrada a Deus.
Beate Ego
ABRAÃO
no judaísmo
prime com suas próprias palavras o lado transcendente do evento: a
criança desejada é um presente de Deus!.
Em face dessa história, aquilo que se narra a seguir tem efeito de
um balde de água fria: depois da desunião entre Isaac e Ismael (21,9-
21), Abraão deve sacrificar seu amado filho Isaac por ordem de Deus
e assim demonstrar sua incondicional obediência à palavra divina.
Somente no último minuto Isaac é salvo pela intervenção de Deus,
e são sobretudo a fé e a confiança de Abraão que devem ser realçadas
nessa narrativa (Gn 22). Depois da morte de Sara, Abraão se casa
com Qeturá, que se tornará mãe de seis filhos, os quais, juntamente
com seus descendentes, se tornam progenitores de povos que habi-
tam as regiões desérticas (25,1-6).
O segundo tema fundamental, o tema da terra, é desdobrado
após a abertura em Gênesis 12,1-9 com a história da separação de
Lot. Visto que a terra tinha se tornado muito pequena para Abraão
e Lot e seus rebanhos, Lot se separa de Abraão e passa a morar em
Sodoma, na região ainda frutífera naquela época junto ao Mar Morto
(Gn 13,6-12). A coisa mais notável nessa narrativa é a generosida-
de de Abraão, pois ele deixa a terra mais produtiva para o sobrinho.
No final da narrativa, ocorre outro reforço da promessa da terra (Gn
13,14-18). Depois da peculiar história da firmação de aliança entre as
metades dos animais, em que Deus novamente promete a Abraão a
futura posse da terra (Gn 15,13), o tema da posse da terra também
vem à baila em Gênesis 21,22-34: por causa do direito a um poço,
ocorrem confrontações com os servos do rei filisteu Abimeleque;
mas Abraão consegue dirimir as rixas mediante um acordo contra-
tual, criando com isso uma base de vida próspera para as duas par-
tes. Além disso, a temática da terra aparece também em Gênesis 23:
Abraão adquire a caverna de Makpelá em Hebron de seu proprietário
original, um hetita, para ali enterrar sua esposa Sara, que havia fale-
cido nesse meio-tempo. Com isso ele se torna proprietário legal de
uma porção, ainda que pequena, da terra prometida.
Por fim, a história de Abraão contém outras narrativas que estão
vinculadas à figura de Lot. Depois de ter se estabelecido junto ao Mar
Morto, Lot é capturado numa confrontação militar de diferentes reis
e levado com todos seus bens para o norte do país. Assim que Abraão
16 tem notícia dessa história, ele corre para salvar seu sobrinho. Depois
de seu retorno, ele se encontra com Melquisedeque, o sacerdote da
cidade de Shalêm, que abençoa Abraão. Este, por sua vez, reconhece
Beate Ego
ABRAÃO
no judaísmo
que o ciclo narrativo Abraão-Sara, que no sentido mais amplo gira em
torno do nascimento do filho desejado (Gn 12*.16*.18*.21*), como
também o ciclo narrativo Abraão-Lot (Gn 13*.18*.19*) pertenciam às
partes mais antigas dessa história, que derivam do período pré-exílico.
Com o passar do tempo, essa base foi “enriquecida” por outras narrati-
vas, como, por exemplo, a história da ancestral na corte de Abimeleque
(Gn 20). É de importância decisiva a ligação do material com o assim
chamado escrito sacerdotal, que nasceu como reação à experiência do
exílio de Israel. As narrativas individuais são unidas por genealogias e
dados temporais sucintos numa estrutura genealógica e cronológica
mais ampla e teologicamente preenchida. No âmbito textual de que
tratamos, essa “teologização” se mostra de modo especialmente claro
na tradição da aliança firmada com Abraão e na circuncisão (Gn 17).
Esse capítulo, ao lado de Gênesis 23, é a única narrativa sacerdotal em
toda a tradição de Abraão; à parte isso, essa camada contém apenas
notas escassas (Gn 12,4b.5; 16,1a.3.15; 21,1b-5; 25,7-11a). Algumas
partes da tradição de Abraão são subordinadas àquela grande corren-
te teológica chamada “deuteronomística” nos estudos sobre o Antigo
Testamento. Ela foi supostamente inserida no texto apenas quando o
escrito sacerdotal foi vinculado à obra histórica deuteronomística (Gn
15,6; 18,19; 22,15-18; 26,3b-5).
Nesse crescimento da tradição de Abraão se espelha também
uma parte da história de fé de Israel. Isso pode ser desdobrado exem-
plarmente na narração da aliança e da circuncisão: se a promessa a
Abraão, que também inclui as gerações seguintes, pode ser designada
pelo termo “aliança” (em hebraico berit) e ser, além disso, conectada
a um sinal, então fica claro que as tradições existentes são, de certo
modo, ajustadas à situação atual: no tempo do exílio, Israel se en-
contrava numa situação de crise, pois em face da perda do reinado,
do templo e da terra surgiram fortes dúvidas sobre até que ponto
YHWH estava do lado de seu povo. A narrativa em Gênesis 17 pode
ser perfeitamente entendida como atenuação dessa crise de fé. Na
remissão à pré-história e ao progenitor de Israel, apresenta-se a re-
lação especial entre Deus e Israel como uma aliança, uma relação
que experimenta, por meio de um sinal corpóreo, uma simbolização
direta. Outro exemplo para essa “atualização” da tradição de Abraão
18 e de seu ajuste aos valores do presente é representado pela estilização
de Abraão como uma figura fiel à lei divina, sobre a qual falaremos
Beate Ego
3
A FIGURA DE ABRAÃO NOS TEXTOS
NÃO BÍBLICOS DO ANTIGO JUDAÍSMO
ABRAÃO
no judaísmo
Várias fontes, que são também em parte bastante distintas, de-
sempenham um papel decisivo nesse processo de tradição. Como
fontes mais importantes devemos inicialmente citar aquelas obras
que recontam de modo relativamente livre os conteúdos bíblicos e
que são chamadas pelos estudiosos de rewritten Bible. Aqui se devem
indicar em primeiro lugar o assim chamado Livro dos jubileus, que
surgiu no contexto da revolta macabeia, ou as Antiguidades bíblicas e
o Apocalipse de Abraão: essas duas últimas obras podem ser datadas
na década após a destruição do segundo templo no ano 70. Uma
re-narração das narrativas bíblicas encontra-se também nas Antigui-
dades judaicas do historiógrafo Josefo (cerca de 38-100 d.C.), que foi
testemunha contemporânea da guerra judaica contra os romanos e
da destruição do templo de Jerusalém (66-70 d.C.).
Mas, enquanto os textos da rewritten Bible foram compostos em
hebraico ou aramaico, Josefo escreveu sua obra em grego. Isso tam-
bém está ligado especialmente à intenção desse autor: Josefo era ini-
cialmente comandante na guerra judaica contra Roma. Depois de sua
detenção na batalha de 67 d.C., ele viveu e trabalhou no acampamento
do general Vespasiano ou de seu sucessor Tito. Ele foi com este último
para Roma depois da vitória dos romanos; lá ele obteve a cidadania
romana, como também uma pensão da casa imperial. Em Roma ele
compôs suas obras. Escrevia principalmente para as pessoas instruídas
de Roma, às quais ele queria mostrar que seu próprio povo possuía
um alto nível cultural e não era de modo algum um povo formado
por fanáticos violentos — como talvez os ataques dos zelotas fizessem
pensar. Para a apresentação da figura de Abraão é de principal impor-
tância sua obra Antiquitates judaicorum, as Antiguidades judaicas, que foi
publicada no início da década de 90 em Roma.
A obra do judeu filósofo da religião Fílon, que viveu na virada
dos séculos I a.C/I d.C. na Alexandria egípcia (20 a.C. a 40 d.C.), tam-
bém é marcada por um interesse apologético. Havia nessa cidade uma
grande comunidade da diáspora judaica. Fílon escreveu dois grandes
tratados sobre nosso tema, a saber, Sobre Abraão (De Abrahamo) e Sobre
a peregrinação de Abraão (De migratione Abrahami). Outras referências à
figura de Abraão se encontram, em contexto secundário, em sua obra
Sobre as virtudes (De virtutibus), § 212-217. É característico das exegeses
20 bíblicas de Fílon o fato de ele expor tanto o significado literal como
também o significado alegórico dos textos. Para a tradição de Abraão
Beate Ego
ABRAÃO
no judaísmo
texto de que Abraão é avô não apenas de Jacó, mas também de Esaú,
abre-se, além disso, outra linha genealógica.
Esse papel de Abraão como pai de muitas nações, que é indicado
na tradição bíblica, recebe formas totalmente diferentes nas diver-
sas tradições do judaísmo antigo e da Idade Média. Um olhar sobre
as tradições mais antigas do período helenístico mostra inicialmente
que tal visão não encontrava aprovação unânime.
Aqui são instrutivas, em primeiro lugar, as declarações sobre a
circuncisão no Livro dos jubileus. De um modo semelhante ao relato
bíblico em Gênesis 17, Deus ordena a Abraão circuncidar todos os
filhos no oitavo dia. A circuncisão é aqui ligada à ideia dos anjos ou
demônios. Israel, cuja tarefa é circuncidar os filhos no oitavo dia, é
protegido pelos anjos, ao passo que Deus entregou aos demônios os
outros povos, que também estavam sob sua esfera de poder. Além
disso, o narrador salienta aqui o tema que já soou no texto bíblico se-
gundo o qual todo aquele que não observa o mandamento da circun-
cisão merece a morte. Enquanto o texto bíblico relaciona esse manda-
mento aos membros do povo de Israel e relata de modo bastante geral
que Ismael, com quem Deus não estabelece nenhuma aliança e que,
no entanto, está sob a bênção divina e também foi circuncidado (Gn
17,20 s.25 s.), o Livro dos jubileus explicitamente exclui do evento da
promessa divina esse descendente, como também o neto de Abraão
Esaú, nascido mais tarde; o Livro dos jubileus também salienta que
Deus não se “aproximou” deles e não os elegeu. Todos os povos que
não Israel são dominados por demônios (Livro dos jubileus, 15,26-32).
Como Karl-Josef Kuschel mostrou claramente, Abraão é aqui ine-
quivocamente reivindicado como propriedade de Israel e apenas seus
descendentes são considerados receptores da bênção divina. Com isso
o papel de ser pai de muitas nações é parcialmente relativizado.
O contexto em que surgiu o Livro dos jubileus torna compreensí-
vel essa atitude negativa para com os outros povos, que praticamente
os demoniza. O judaísmo dessa época estava profundamente divi-
dido: enquanto uma parte se abria para a cultura helenística, outro
círculo defendia uma posição mais conservadora, que salientava a
posição especial de Israel e a importância da Torá. Depois de uma re-
belião conduzida pela família dos macabeus, houve finalmente uma
22 confrontação ativa com o poder de ocupação grego. O judaísmo con-
servador se encontrava na defensiva e tinha de se separar ostensiva-
mente de todos os estrangeiros.
Beate Ego
ABRAÃO
no judaísmo
torno de Cartago), teriam — como diz Josefo referindo-se a Alexan-
dre Polihistor e Cleodemos — conduzido uma batalha com Heracles
contra a Líbia e certo Anteu. Esse Heracles, por sua vez, se casou com
a filha de Afras, gerando com ela o filho Diodoro. Este, por seu turno,
tornou-se pai de Sophax, que deu nome ao povo dos sofacos. Ainda
que os contextos geográfico e etnográfico destas informações não pos-
sam ser todos esclarecidos aqui, fica claro que as relações de parentesco
de Abraão são bastante expandidas se comparadas com as da Bíblia.
Ao contrário dos dados bíblicos, o parentesco de Abraão vai além dos
povos vizinhos imediatos da Palestina, pois agora ele também é vin-
culado aos povos da África. Essas breves informações sobre o paren-
tesco de Abraão retomam, além disso, materiais de lendas antigas.
Pois Anteu é conhecido como gigante líbio e filho de Poseidon e Gaia
da mitologia grega. Ele dispõe de forças sobre-humanas, que são cons-
tantemente renovadas por sua mãe, a Terra. Apenas depois de erguê-
lo no ar, Heracles conseguiu matá-lo e então se casou com a viúva,
Tinge. Além disso, o rei Juba da Mauritânia, que viveu entre cerca de
50 a.C. e 23 d.C., segundo o que ele próprio diz em sua crônica oficial
da corte, também descenderia de Sofax e Diodoro. Quando essa his-
tória é então ligada ao parentesco de Abraão, fica inicialmente clara sua
lealdade ao mundo grego. A breve notícia em Josefo ganha um ápice
especial pelo fato de que Hércules, conhecido até hoje por suas forças
sobrenaturais, recebe na luta um apoio do parentesco de Abraão. Isso
exprime indiretamente a força do clã de Abraão. A história serve, com
isso, para aumentar o prestígio do autor.
Josefo, que compôs seus escritos quase 200 anos após o autor
do 1° Livro dos Macabeus, tem menos interesse político do que di-
plomático. Depois dos distúrbios da guerra romana, o que lhe im-
portava era descrever o lado amistoso e humano de seu povo e sua
profunda conexão especialmente com o mundo “ocidental”. Como
Martin Hengel mostrou em sua obra Judaísmo e helenismo, essas cons-
truções de história étnica eram bastante difundidas na Antiguidade,
quando cidades não gregas, sobretudo na Ásia Menor, postulavam
relações de parentesco com os gregos.
Também em épocas posteriores, as pessoas provavelmente fize-
ram, mediante tais construções narrativas de relações de parentesco,
24 declarações sobre a relação com outras etnias ou culturas ou grupos
religiosos. É nesse sentido que é interpretada, por exemplo, a narrativa
Beate Ego
ABRAÃO
no judaísmo
transborda de bênção.
ABRAÃO
no judaísmo
A história da juventude de Abraão, com o tema do reconheci-
mento do Deus único, foi retomada na época após a destruição do
segundo templo no ano 70 d.C. em outras tradições do judaísmo an-
tigo. Aqui é inicialmente o Apocalipse de Abraão que desempenha um
papel importante. Esse texto provavelmente remonta a um original
em língua semítica e hoje está conservado apenas na tradição eslavo-
eclesiástica. Em comparação com a tradição provavelmente 200 anos
mais velha do Livro dos jubileus, essa narrativa já é interessante apenas
porque contém uma explicação de como Abraão pôde afinal chegar
ao conhecimento do Deus único. Com isso um vazio narrativo do
Livro dos jubileus é, de certo modo, preenchido.
Nessa narrativa de leitura divertida, o caminho de Abraão ao
Deus único é descrito como um processo de várias etapas. Primeira-
mente, Abraão se confronta com a natureza das imagens dos ídolos.
O fato de elas terem sido criadas de material perecível, destrutível
leva o jovem Abraão a duvidar do poder desses deuses em geral. Isso
é plasticamente ilustrado em algumas cenas: numa primeira cena
Abraão descreve que, ao entrar no templo, descobriu que a cabeça
de Marumat, esculpida de pedra, tinha caído no chão. Sem nenhuma
cerimônia um novo corpo é fabricado, sobre o qual a velha cabeça é
encaixada; o corpo do velho Marumat é simplesmente jogado fora.
A essa se segue outra história que demonstra a materialidade e, com
isso, a efemeridade das figuras divinas: quando Abraão quer levar
cinco figuras divinas da oficina de seu pai para o mercado, três de-
las caem de cima do burro e se quebram. Sem nenhuma cerimônia,
Abraão se despoja dos restos lançando-os no rio. Por isso Abraão aos
poucos começa a duvidar do poder dos deuses. Como esses seres po-
dem ajudar se não são sequer capazes de ajudar a si mesmos? Abraão
comunica essa ideia ao seu pai, que fica bastante furioso.
Segue-se um episódio final sobre o tema da impotência das ima-
gens divinas, que realmente as faz parecer ridículas: a pequena figura
de madeira de Barisat cai nas lascas que Abraão usa para o fogo do
fogão. Em tom de provocação, ele encarrega a figura de vigiar o fogo,
mas este a queima. Depois dessa experiência, Abraão se dirige ao seu
pai cheio de ironia elogiando o amor de Barisat, que pelo pai se jo-
gou no fogo. O pai em sua ingenuidade realmente louva a força de
28 Barisat e anuncia: “Hoje quero fazer ainda outro, e que amanhã ele
prepare minha refeição” (Apocalipse de Abraão 5,12-14).
Essas experiências negativas com a materialidade das estátuas de
Beate Ego
ABRAÃO
no judaísmo
céu também é seu guia, dirigente e arquiteto. De acordo com isso, os
homens, pela observação do céu, chegariam obrigatoriamente, por
assim dizer, à ideia de um ser superior.
No entanto, o que é típico do Apocalipse de Abraão é o fato de que
o conhecimento filosófico de Deus por Abraão é integrado à per-
cepção da autorrevelação de Deus e à imagem de um Deus pessoal.
Abraão é o filósofo pensante e, além disso, está numa relação direta
com seu Deus. Depois de ter conhecido, por meio do pensamento
racional, que só pode haver uma divindade como princípio de todo
ser, Abraão lhe pede que se revele, e então cai — como diz nosso
texto — “a voz do potente numa torrente de fogo do céu”. Abraão é
chamado pelo nome, a voz se dá a conhecer como “Deus dos deuses”
e como criador e exorta Abrão a abandonar a casa paterna. Tão logo
ele satisfaz esse desejo, um som de trovão queima o pai e sua casa,
deixando no lugar apenas uma cratera com uma profundidade de 40
cúbitos (Apocalipse de Abraão 1-9 início; citado segundo Philonenko-
Sayar/Philonenko, 421 ss.).
Com isso termina essa parte da narrativa. A segunda parte do
Apocalipse de Abraão narra uma viagem de Abraão ao céu, na qual este
se familiariza com os mistérios da história. O tema da viagem no céu
aproxima Abraão de Henoc, conferindo ao seu saber uma autoridade
totalmente especial.
Se, nessa viagem ao céu, Abraão contempla os mistérios da cria-
ção e a história futura de Israel, então também se revela para ele a re-
levância histórico-teológica de seu conhecimento do Deus único: pois
Abraão vê no mundo celeste a “imagem do ídolo do ciúme” (Apocalipse
de Abraão 25,1). Visto que o narrador explicitamente diz que essa ima-
gem se assemelha à imagem divina entalhada em madeira pelo pai de
Abraão, então essas declarações podem ser compreendidas no sentido
de que Abraão passa a saber aonde leva a adoração dessa imagem divi-
na, ou seja, à destruição do templo. Desse modo, a polêmica dos ídolos
é integrada ao plano histórico-teológico. A adoração dos ídolos não é
de modo algum uma época há muito terminada da história inicial do
povo; ela tem antes uma relação direta com a atualidade no que tange
ao passado imediato do narrador, pois ela é responsável, em última
análise, pela destruição do templo de Jerusalém.
30 Essa observação produz uma ênfase totalmente singular de nos-
so tema: se até agora — seguindo os paralelismos citados acima —
Beate Ego
ABRAÃO
no judaísmo
Deus e desenvolve a doutrina da creatio ex nihilo. Também na moder-
na filosofia judaica Abraão é, por fim, considerado modelo do verda-
deiro conhecimento de Deus e de uma vida religiosa perfeita.
ABRAÃO
no judaísmo
entre a conquista selêucida em 200 a.C. e a revolta macabeia, Abraão
superava “a todos em nobreza e sabedoria”. Por ordem de Deus, ele
emigrou para a Fenícia, onde ensinou aos fenícios o “curso do sol e
da lua e toda outra sabedoria” para agradar a seu rei. Em sua estada no
Egito, que nessa renarração da tradição de Abraão vem apenas depois
do episódio da salvação de Lot (cf. Gn 14), conta-se que Abraão ins-
truiu os sacerdotes de Heliópolis em diversas coisas, mas sobretudo
na astrologia. Diz-se explicitamente que essa astrologia não foi uma
invenção dos egípcios, mas dos babilônios, e a verdadeira autoria re-
montava, contudo, a Henoc (Eusébio, Praeparatio evangelica 9, 17, 2-9;
citação segundo Walter, 141 s.).
Supostamente essa informação representa uma reação à notícia
transmitida por Heródoto de que os sacerdotes de Heliópolis eram
os homens mais sábios do Egito e os egípcios, por sua vez, os mais
sábios em geral. Como mostrou Martin Hengel, há aqui uma modi-
ficação do pensamento registrado em Heródoto, Platão e sobretudo
em Hecateu de que os gregos foram instruídos pelos egípcios. Se
Abraão se torna o mestre dos (fenícios e) egípcios, então, ao mesmo
tempo, a tradição bíblica prova ser a mais antiga sabedoria dos ho-
mens. Com esses construtos, Pseudo-Eupolemos encontrou inúme-
ros sucessores: por exemplo, o historiador Alexandre Polihistor re-
lata que Abraão, segundo os dados do historiógrafo Artapanos, lecio-
nou astrologia no Egito durante vinte anos (transmitido em Eusébio,
Praeparatio evangelica 9, 18, 1). Supostamente a passagem — de difícil
compreensão e conservada apenas em fragmentos — do Apócrifo de
Gênesis, segundo a qual Abraão leu em voz alta o livro de Henoc para
os egípcios, aluda a essas tradições; como mostra sobretudo o Livro
astronômico de Henoc, é justamente a figura de Henoc que deve ser
vinculada a conhecimentos astrológicos. Por fim, Josefo também re-
flete essa concepção (Antiguidades judaicas I 9,3).
Quão cintilante e belo o aspecto de sua face e quão (3) […e] q[uão]
fino o cabelo de sua cabeça, quão amáveis seus olhos e quão encanta-
dor seu nariz e toda a irradiação (4) de seu semblante [e] quão gracio-
so seu busto e quão bela sua (pele) branca. Seus braços, quão belos,
e suas mãos, quão (5) perfeitas! E (quão) [atraente?] todo o aspecto
de suas mãos! Quão suaves as palmas de suas mãos e quão longos e
delgados todos os dedos de suas mãos. Suas pernas — (6) quão belas!
E quão perfeitas suas coxas! Nenhuma das virgens ou noivas que en-
tram na câmara nupcial é mais bela do que ela. Sua beleza está acima
de todas as mulheres, sua beleza supera todas. E com toda essa beleza
está (unida) muita sabedoria, e tudo o que ela tem (8) é encantador
(Apócrifo do Gênesis 20,3-8; citado segundo Maier I, 219).
ABRAÃO
no judaísmo
de Gênesis Abraão aparece numa luz totalmente diferente, inequivoca-
mente positiva. Pois no Apócrifo de Gênesis as relações se apresentam do
seguinte modo: logo no início da narrativa ouvimos que Abraão, na
noite em que vai para o Egito com Sara, tem um sonho em que vê um
cedro e uma bela tamareira que crescem, ambos, de uma mesma raiz.
Quando alguns homens se aproximam para derrubar o cedro e deixar
apenas a tamareira, esta implora aos homens que não façam nada de
mal ao cedro; pois ambos — o cedro e a tamareira — eram da mesma
raiz. Por causa dessa intervenção corajosa da tamareira, o cedro é pou-
pado do destino ameaçador. Depois de acordar bastante inquieto pelo
sonho, Abraão oferece a seguinte interpretação para ele: o sonho indica
uma situação em que ele será morto, mas Sara permanecerá viva (Apó-
crifo de Gênesis 19,19). Por isso Abraão pede à sua mulher que finja que
ele é seu irmão para que ele seja salvo. Os sonhos na Antiguidade, em
geral, eram remetidos a revelações divinas, motivo pelo qual Abraão se
sente claramente aliviado com esse sonho. Ele não age por egoísmo e
interesse próprio ao instruir Sara a se passar por sua irmã, mas, de certo
modo, o faz sob autorização divina.
A continuação da ação confirma que Abraão foi totalmente rea-
lista em sua avaliação da periculosidade da situação no Egito. Pois,
enquanto em Gênesis 12 se diz concisamente que Sara foi levada
para o palácio do faraó, o Apócrifo de Gênesis narra expressamente que
o faraó pretende matar Abraão (cf. 20,9). Depois disso, tal como foi
instruída, Sara finge que ele é seu irmão. Desse modo, Abraão é pou-
pado, quando ela é levada à corte do faraó. O Apócrifo de Gênesis não
diz que o faraó presenteou ricamente Abraão depois da entrega de
Sara, de sorte que não pode haver a mínima suspeita de que Abraão
possa ter obtido vantagens financeiras da situação.
Enquanto a narrativa bíblica nada nos fala sobre a vida interior
de Abraão, mas logo narra que Deus ataca o faraó com severas pragas,
no Apócrifo de Gênesis abre-se uma janela que possibilita um olhar para
a alma de Abraão, de modo que percebemos claramente a estreita re-
lação de Abraão com Sara, como também sua confiança na proteção
de Deus. Pois imediatamente após o “arrebatamento” de Sara Abraão
se volta para Deus com uma oração suplicando que ele lhe faça justi-
ça em relação ao faraó, “para que ele esta noite não tenha forças para
36 macular minha esposa” (Apócrifo de Gênesis 20,15). A intensidade da
oração é sublinhada pelo tema do choro. Abraão chora quando Sara é
Beate Ego
ABRAÃO
no judaísmo
A piedade de Abraão não se exprime apenas em seu conhecimento
de Deus e em suas orações, mas também se manifesta em sua obser-
vância da Lei. Ainda antes de a Torá ser entregue no Sinai, ele tinha
uma conduta de acordo com as regras da Halakhá e vivia em con-
formidade com a Torá. No “Elogio dos antepassados” — o registro
extrabíblico mais antigo — no escrito sapiencial de Jesus Sirac (fim
do século II a.C.), diz-se que Abraão observou a lei do Altíssimo.
Também em Qumran é conhecida essa concepção, quando o Escrito
de Damasco 3,2 descreve Abraão não apenas como um devoto à Torá,
mas também como professor da Lei.
Essas afirmações podem inicialmente surpreender, pois as tradi-
ções bíblicas à primeira vista não parecem apontar nessa direção. Mas,
se olharmos com mais precisão para os textos bíblicos e seu entorno
histórico-tradicional, descobriremos dados totalmente diferentes. O
ponto de partida para esta observação é uma pequena nota em Gênesis
26,3b-5, em que a história de Abraão é vinculada à história de Isaac.
Aqui, Isaac, apesar de uma calamidade de fome, é exortado por Deus
a permanecer na terra, onde ele receberá a bênção de Deus. Isaac se
torna — assim diz Gênesis 26,3-5 — o portador da promessa apenas
por causa de sua ascendência. Uma vez que Abraão foi obediente “à
voz de Deus” e guardou “seus estatutos, mandamentos, seus decretos
e sua lei”, Isaac e sua descendência serão abençoados (Gn 26,3b-5).
Sem dúvida, essas declarações sobre a obediência de Abraão podem ser
perfeitamente relacionadas à sua obediência à ordem divina de aban-
donar sua família (ver Gn 12) ou de oferecer seu filho em sacrifício
(Gn 22; ver também a conclusão: 22,15-18). Mas o decisivo é que o
estilo linguístico em Gênesis 26,3- 5 indica nitidamente a linguagem
e a teologia daquele grupo de pensadores teológicos que são conheci-
dos, na terminologia especializada, como deuteronomistas. Esse gru-
po, que atuou na época após o exílio do povo, entende por “comandos,
decretos e instruções” concretamente o mandamento divino, tal como
foi revelado no Sinai (Dt 4,1.5.8.44; 5,1; 31; 6,1). Nesse contexto in-
tertextual, fica claro que em Gênesis 26,3-5 a obediência de Abraão,
que em algumas narrativas ganha uma expressão plástica, se volta para
o universal e é designada com conceitos que a interpretam, de forma
totalmente geral, como o cumprimento do mandamento divino.
38 Gênesis 18,19 dá um passo a mais: segundo esse trecho, a tarefa
de Abraão consiste em que “prescreva a seus filhos e à sua casa depois
dele que observem o caminho de YHWH, praticando a justiça e o
Beate Ego
ABRAÃO
no judaísmo
Abraão foi o verdadeiro fundador da festa dos Tabernáculos. Como
expressão de sua felicidade pelo nascimento do filho, ele constrói
um altar e também, na proximidade do altar, “tendas para si e seus
escravos” (Livro dos jubileus 16,21), de modo que ele foi o primeiro
a celebrar a festa dos Tabernáculos na Terra. Tal como a festa das
Semanas, isso também está atestado nas tábuas celestes.
Por fim, os textos também permitem concluir que Abraão obser-
vou a festa da Páscoa. Pois a narrativa sobre o atamento de Isaac termi-
na com uma etiologia da festa, segundo a qual Abraão celebrou uma
festa de sete dias e que ele a chamou festa do Senhor (Livro dos jubileus
18,18). Essa festa também está inscrita nas tábuas celestes. Embora a
data do atamento de Isaac não seja explicitamente citada no Livro dos
jubileus, podemos inferir indiretamente que ela ocorreu no dia 14 de
Nissan (ver Livro dos jubileus 18,3 em conexão com 17,15), o dia em
que, segundo 49,2 s., também se devia oferecer o sacrifício da Páscoa
(ver Ex 12,5 s.). Em todo caso, fica claro que Abraão seguia todas as
festas principais do judaísmo. Para a compreensão do Livro dos jubileus,
isso não é nenhum anacronismo. As determinações individuais for-
mam, antes, uma grandeza supratemporal, pois elas foram registradas
nas tábuas celestes ainda antes da revelação no Sinai para Moisés.
As afirmações no Livro dos jubileus sobre a circuncisão mostram
que o livro, com sua referência a Abraão, não apenas se dirige para
fora, mas também busca traçar limites no âmbito intrajudaico. Pois
após o autor ter representado a circuncisão no oitavo dia como um
mandamento que, tal como as leis sobre as festas, também foi grava-
do nas tábuas celestes, e assim representa uma grandeza supratem-
poral (Livro dos jubileus 15,25), o narrador termina suas declarações
com um olhar sombrio em relação ao futuro de Israel. Visto que
os filhos de Israel não circuncidaram seus meninos, Deus não pode
mais perdoá-los (Livro dos jubileus 15,44–34). Quando nos lembra-
mos de que a temática da apostasia da circuncisão era virulenta justa-
mente na época da reforma helenística, percebemos que não é difícil,
com base nessa seção, reconstruir a inserção histórica e ideológica do
Livro dos jubileus. Pois os livros dos Macabeus falam não apenas de
uma proibição da circuncisão sob Antíoco IV, mas também narram
a prontidão com que muitos judeus seguiram essa ordem do gover-
40 nante selêucida. Além disso, nessa época o costume do epispasmos
— uma intervenção cirúrgica com que se tentava anular a circun-
cisão e refazer o prepúcio — parece ter tido certa difusão (ver 1Mc
Beate Ego
ABRAÃO
no judaísmo
uma “limitação” da problemática. Assim, o midrash já identifica Hagar
com Qeturá (por exemplo, BerR 61,4), a terceira mulher de Abraão,
que teria se casado com ela após a morte de Sara (Gn 25,1). Assim, o
número das mulheres estrangeiras de Abraão é reduzido a um míni-
mo. Em relação à problemática da bigamia, é compreensível por que
o midrash Bereshit Rabba 45 (45,4) salienta que Abraão teve relações
sexuais com Hagar apenas uma vez e que ela ficou grávida logo na
noite de núpcias. Isso mostra claramente que ele, de fato, obedeceu
apenas aos comandos da necessidade. O midrash tardio Pirqe de Rabbi
Elieser esclarece as relações familiares de Abraão ao interpretar expres-
samente que Abraão rompeu com Hagar.
Uma concepção totalmente diferente da devoção de Abraão às
leis é encontrada no filósofo helenista Fílon, que — como já explica-
mos — viveu na Alexandria nas décadas em torno da virada dos sécu-
los I a.C./I d.C. Segundo Fílon, os patriarcas — e, portanto, também
Abraão — são corporificações da lei não escrita. Esse pensamento já
se encontra nitidamente no título total de seu escrito “Sobre Abraão”,
que é: “Descrição da vida do sábio que, por instrução, alcançou a
perfeição, ou: o livro das leis não escritas, ou: Sobre Abraão”. Abraão
e com ele outros pios da pré-história são descritos como “mode-
los” das leis, que, “seguindo apenas a voz interna e instruídos por
si mesmos, aderiram à ordem da natureza e, na convicção de que a
própria natureza é o mais antigo estatuto, como ela na verdade o é,
realizaram sua vida na mais bela legalidade” (§ 5-6; citado segundo a
tradução de Cohn I, 96 s.).
Fílon tem, portanto, um conceito de lei totalmente diferente
daquele do judaísmo, representado pelo Livro dos jubileus ou pela li-
teratura rabínica. Pois, enquanto nesses textos a lei representa uma
grandeza que separa Israel dos povos, Fílon, que se empenha por
uma síntese entre Israel e o mundo grego, vê na lei uma grandeza
universal. Ela permeia toda a criação e pode, por princípio, ser com-
preendida por qualquer pessoa pelo conhecimento da estrutura espi-
ritual básica do mundo. Essa tendência universal também se mostra
em Fílon no fato de que temas como “terra”, “aliança” ou “circun-
cisão” em sua renarração da história de Abraão não merecem aten-
ção especial. No entanto, seria errôneo querer concluir disso que o
42 Abraão de Fílon volta-se totalmente para o universal. Na primeira
parte de sua investigação sobre o significado das leis — como mos-
Beate Ego
E o Senhor sabia que Abraão era fiel em todas as suas aflições, pois
Ele já o havia tentado com sua terra e pela fome. E o havia tentado
com a riqueza dos reis. E o havia tentado de novo por meio de sua es-
posa, quando ela foi tirada dele, e pela circuncisão. E o havia tentado
por meio de Ismael e Hagar, sua serva, quando ele os mandou embo-
ra. E em tudo em que ele o tentou, ele se provou fiel. E sua alma não
se impacientou, e ele não demorou a agir, pois ele foi fiel e amante do
Senhor (Livro dos jubileus 17,17 s.; citação segundo Berger, 418).
ABRAÃO
no judaísmo
de Abraão com seu compromisso pela fé no Deus único (Livro dos
jubileus 11,16–12,31), de outro, o atamento de Isaac (18,14ss.).
A literatura rabínica segue esse modelo. De forma bastante con-
cisa se diz na mishná Avot 5,3: “Por dez tentações nosso pai Abraão foi
tentado e ele resistiu a todas, para mostrar quão grande era o amor de
nosso pai Abraão”. Outros midrashim explicitam as dez tentações. Se
esse material não pode ser oferecido aqui detalhadamente, podemos
— com referência ao trabalho de Gabrielle Oberhänsli-Widmer —
dizer resumidamente que, em geral, nas fontes pertinentes (por exem-
plo, ARN A 33,2; ARN 36,5; MTeh 18,25 e PRE 26-31) são citados os
seguintes elementos, todavia nem sempre nesta mesma ordem:
extremo. Satã, que iniciou o teste, tenta com todas as forças impedir
o atamento de Isaac, pois quer fazer que Abraão fracasse. Os anjos,
por sua vez, que do mundo celeste observam todo o evento, desatam
a chorar por pura compaixão por Abraão e Isaac (BerR 55,4-56,10).
Além disso, outros textos rabínicos, incluindo também tradições tão
antigas quanto a Mekhilta de Rabbi Yishmael, Pisha 7 para Êxodo 12,13
ou Pisha 11 para Êxodo 12,23 pressupõem que Isaac foi realmente
sacrificado. O midrash tardio Pirqe de Rabbi Elieser 31 também atesta a
subsequente ressurreição de Isaac:
ABRAÃO
no judaísmo
— como já durante a época dos macabeus. O intento da literatura
rabínica, que teve de processar esses eventos históricos traumáticos,
era fortalecer a justeza dessas ações e assim consolidar a identidade
do povo e sua ligação à Torá.
4
RESUMO E PERSPECTIVA:
ABRAÃO COMO FIGURA DE LEMBRANÇA E
COMO FUNDAMENTO DA ESSÊNCIA DE ISRAEL
Ela lhe promete “alegria, vida e força”, se Abraão agarrar sua mão. Com
efeito, o patriarca aceita essa negociação, mas a situação muda com-
pletamente de figura, pois agora a morte agarra sua alma; em seguida,
o arcanjo Miguel juntamente com outros anjos sepultam o corpo de
Abraão em Mamrê. Mas os anjos escoltam “sua alma preciosa” ao céu
e, nesse percurso, cantam o “Três vezes santo” ao “Senhor, Deus do
universo” (citação segundo a tradução de Janssen, 253 ss.).
Abraão, portanto, também nas tradições do judaísmo inicial, é
desenhado geralmente como figura ideal, mas essas tradições se dife-
renciam entre si porque, com base em distintas concepções de valor,
definem diferentemente seus ideais. Desse modo, há representações
de Abraão que, em parte, são nitidamente diferentes entre si: se o mi-
drash salienta sua emocionalidade e pode até mesmo fazê-lo chorar,
Fílon valoriza a compostura de Abraão: nem mesmo situações tão
difíceis como o sequestro da esposa ou o dever de oferecer o filho
amado levam Abraão a perder o controle sobre seus sentimentos (So-
bre Abraão § 170.74 s.). Fílon mostra, com isso, que foi influenciado
pelas concepções de mundo da filosofia estoica, que considerava a
serenidade uma das supremas virtudes humanas.
A relação de Abraão com a astrologia também é descrita de modo
igualmente controverso: enquanto os historiadores judaicos podem
representar Abraão como inventor e mestre do saber astrológico, no
Livro dos jubileus há um repúdio total a tais concepções. Pois ele explica
expressamente que Abraão, na observação dos astros, chega à conclu-
são de que todos eles estão nas mãos de Deus. Portanto, uma investi-
gação das estrelas e de suas regularidades é obsoleta (Livro dos jubileus
12,17 s.). Essa relação mais distanciada com a astrologia, que lembra
um pouco o “Livro dos vigilantes” do Henoc etíope (8,3), pode ser bem
explicada no contexto da intenção do Livro dos jubileus, para o qual é
importante um distanciamento da cultura grega. A tradição do Livro
dos jubileus, em que ocorre uma expressa marginalização de Ismael e
Esaú, mostra, além disso, que a ideia de que Abraão também desem-
penha um papel importante para o mundo dos povos não foi, de modo
algum, positivamente aceita em todas as tradições do judaísmo antigo;
ao contrário, vê-se aí, quando se considera a totalidade dos textos, uma
posição completamente ambivalente.
Abraão — como mostram nitidamente nossos textos — repre- 47
senta para o judaísmo uma “figura da lembrança” com a qual se vin-
ABRAÃO
no judaísmo
culam inúmeras tradições, amiúde totalmente diferentes. Nisto, o
processo da formação da tradição pode ser perfeitamente comparado
com o processo da memória individual: como pesquisas recentes da
psicologia da memória mostraram, a memória nunca armazena um
conteúdo de lembrança “em si”. A lembrança é, antes, algo vivo e
sempre se constitui de novo na relação com a posição individual e
supraindividual da pessoa que se lembra.
Mas em Abraão não se espelha apenas a autoimagem de Israel ou
de determinados grupos dentro do judaísmo. Em Abraão também se
funda, por assim dizer, a existência de Israel. A tradição bíblica já vê
em Abraão uma garantia do bem-estar de seus descendentes, quando
Gênesis 26,5 informa que Isaac será abençoado porque Abraão ouviu
a voz de Deus. Um pensamento semelhante, mas agora voltado para
o coletivo, encontra-se em 2 Reis 13,23, quando se diz que Deus se
compadece de Israel “por causa de sua aliança com Abraão, Isaac e
Jacó”; e na “oração de Azarias”, nos suplementos ao livro canônico de
Daniel, os jovens em seu pedido a Deus para que os salve da morte
referem-se à promessa de Deus feita a Abraão, Isaac e Jacó (adições
a Daniel 3,10).
Assim, na tradição bíblica e nos apócrifos já está presente uma
base para uma concepção que então deverá desempenhar um papel
importante especialmente na teologia rabínica da época após a des-
truição do Templo de Jerusalém. Os sábios de Israel desenvolveram
a concepção da zekhut de Abraão, do mérito de Abraão; a ela se ligou,
de modo bastante geral, o discurso sobre o mérito dos patriarcas. Os
méritos especiais que Abraão, mas também os outros patriarcas, ad-
quiriram beneficiarão, em última análise, as gerações subsequentes.
Desse modo, os textos rabínicos, muitas vezes por meio de associações
de palavras-chave, estabelecem conexões bastante ousadas. Citemos
aqui apenas alguns exemplos do midrash Bereshit Rabba: porque Abraão
rachou a madeira (Gn 22,3), Deus mais tarde rachou o mar para Israel
(Ex 14,21; assim Bereshit Rabba 55,8); porque Abraão partiu para Moriá
no terceiro dia (Gn 22,4), Deus se revelou no terceiro dia para dar a
Torá (Ex 19,16); no terceiro dia os que estavam no exílio também re-
tornaram (Esd 8,15); por causa de Abraão, Deus ressuscitará os mortos
no terceiro dia (Os 6,2; assim Bereshit Rabba 56,1). Mas o atamento de
48 Isaac também estará do lado de Israel no juízo final e na ressurreição
dos mortos (Bereshit Rabba 56,1). Esses pensamentos influenciam até
Beate Ego
hoje a liturgia de Israel, pois na festa de Ano Novo, em que Israel pede
o perdão dos pecados, há referência, nas assim chamadas orações de
sikhronot, aos episódios no monte Moriá, para que Deus esvazie sua
ira “de seu povo, de sua cidade e de sua herança” (citação segundo a
tradução do livro de orações Safa Berura, 95 ss.).
Então fica claro: Abraão não é apenas uma figura de lembrança,
mas, graças à sua atuação, o Israel que reza pode até hoje contar com
a graça de Deus. Por conseguinte, Abraão é uma parte integrante não
só do passado, mas também do futuro do povo de Deus.
5
BIBLIOGRAFIA (SELEÇÃO)
5.1. FONTES
BERGER, Klaus. Das Buch der Jubiläen, JSHRZ II/3, Gütersloh, 1981.
BÖRNER-KLEIN, Dagmar. Pirke de-Rabbi Blieser. Nach der Edition
Venedig 1544 unter Berücksichtigung der Edition Warschau 1852,
Studia Judaica 26, Berlin, 2004.
COHN, Leopold et al. (orgs.). Philo von Alexandria, Über Abraham, in:
Die Werke in deutscher Übersetzung I, Berlin, 21962, 91-152.
———. Philo von Alexandria, Über Abrahams Wanderung, in: Die
Werke in deutscher Übersetzung V, org. Leopold Cohn et al., Berlin,
2
1962, 152-213.
———. Philo von Alexandria, Über die Tugenden, in: Die Werke in
deutscher Übersetzung II, Berlin, 21962, 313-377.
DIETSFELBINGER, Christian. Pseudo-Philo: Antiquitates Biblicae,
JSHRZ II/2, Gütersloh, 1975.
GOLDSCHMIDT, Lazarus (org.). Der Babylonische Talmud. Neu über-
tragen, 12 vols., Berlin, 1981.
JANSSEN, Enno. Testament Abrahams, JSHRZ III/2, Gütersloh, 1975,
193-256.
PHILONENKO-SAYAR, Belkis, PHILONENKO, Marc. Apokalypse
Abrahams, JSHRZ V/5, Gütersloh, 1982, 415-460. 275-575.
WALTER, Nikolaus. Fragmente jüdisch-hellenistischer Historiker, JSHRZ 49
I/2, 91-163, Gütersloh, 1980.
ABRAÃO
no judaísmo
WÜNSCHE, August (org.). Der Midrasch Bereschit Rabba, Leipzig, 1881.
ABRAÃO
no judaísmo
OBERHÄNSLI-WIDMER, Gabrielle. Biblische Figuren in der rabbinischen
Literatur. Gleichnisse und Bilder zu Adam, Noach und Abraham
im Midnisch Bereschit Rabba, Judaica et Christiana 17, Bern et
al., 1998.
RAD, Gerhard von. Das erste Buch Mose. Genesis, ATD 2/4, Göttingen,
12
1984.
REED, Annette Yoshiko. Abraham as Chaldaen Scientist and Father of
the Jews: Josephus, Ant. 1.154-168, and the Greco-Roman Dis-
course about Astronomy/Astrology, Journal for the Study of Judaism
35, 2004, 119-157.
REMAUD, Michel. À cause des peres. Le “mérite des pères” dans la tradi-
tion juive, Collection de la Revue des Etudes Juives, Paris/Louvain,
1997.
RUBINKIEWICZ, Ryszard. La vision de l’histoire dans l’Apocalypse
d’Abraham, ANRW 11.19.1, Berlin/New York, 1979, 137-151.
SANDMEL, Samuel. Philo’s PIace in Judaism. A Study of Conceptions
of Abraham in Jewish Literature, Augmented Edition, New York,
1971.
SAUER, Georg. Abraham — tragende Gestalt der Frömmigkeit, Theolo-
gische Zeitschrift 47, 1991, 291-298.
SIEGERT, Folker. “Und er hob seine Augen auf, und siehe.” Abraha-
ms Gottesvision (Genesis 18) im hellenistischen Judentum, in: R.
KRATZ, G. NAGEL (orgs.), “Abraham, unser Vater”. Die gemeinsa-
men Wurzeln von Judentum, Christentum und Islam, Göttingen
2003, 67-85.
SIKER, Jeffrey S. Abraham in Graeco-Roman Paganism, Journal for the
Study of Judaism in the Persian, Hellenistic and Roman Period 18, 1987,
188-208.
SCHMITZ, Rolf P. Abraham II. Abraham im Judentum, TRE I, 1977,
382-385.
SETERS, John van. Abraham in History and Tradition, New Haven/Lon-
don, 1975.
SPIECKERMANN, Hermann. “Ein Vater vieler Völker”. Die Verheißun-
gen an Abraham im Alten Testament, in: R. KRATZ, G. NAGEL
(orgs.), “Abraham, unser Vater”. Die gemeinsamen Wurzeln von Ju-
dentum, Christentum und Islam, Göttingen, 2003, 8-21.
52 WALTER, Nikolaus. Fragmente jüdisch-hellenistischer Historiker, JSHZR
I/2, Gütersloh, 1980.
Beate Ego
“Abraham”, Welt und Umwelt der Bibel 30, 2003 (34 — árvore genealó-
gica, em que se ressalta nitidamente a relação com as nações; 46:
Dura Europos, 50: Bet Alfa).
APPEL, Katrin. Abraham als Dreijähriger im Feuerofen des Nimrod,
Kairos 25, 1983, 36-40.
GUTMANN, Josef. Buchmalerei in jüdischen Handschriften, München,
1978 (Fig. 25: “Abraão na fornalha” segund o Leipziger Machsor
de Oberrhein, cerca de 1320-1330).
KANAEL, Baruch. Die Kunst der antiken Synagoge, München/Frankfurt,
1961 (85: Bindung Isaaks in der Synagoge von Bet Alfa).
KESSLER, Edward: The ‘Aqedah in the Early Synagogue Art, in: Lee I.
LEVINE, Zeev WEISS (orgs.). From Dura to Sepphoris. Studies in
Jewish, Art and Society in Late Antiquity. Journal of Roman Archaeol-
ogy. Supplement Series 40, 73-82 (artigos sobre as diversas repre-
sentações, com cópias em preto e branco).
KRAELING, Carl H. The Synagogue, New Haven, 1956 (“Abraão nos
murais de Dura Europos”; plate LI: Abraão como imagem total;
plate LXXVIII: Atamento de Isaac ao lado da representação do tem-
plo sobre a arca da Torá).
LEVINE, Lee I., WEISS, Zeev (orgs.): From Dura to Sepphoris. Studies
in Jewish Art and Society in Late Antiquity, Journal of Roman Ar-
chaeology. Supplement Series 40, Fig. 10 (“Atamento de Isaac” num
mosaico da sinagoga de Sepphoris)
STÄHLI, Hans Peter. Antike Synagogenkunst, Stuttgart, 1988 (63: “Ata-
mento de Isaac” na sinagoga de Bet Alfa).
Christfried Böttrich 53
ABRAÃO
no cristianismo
1
INTRODUÇÃO:
UMA VELHA HISTÓRIA EM NOVA PERSPECTIVA
ABRAÃO
no cristianismo
bitual, são expressamente citadas e que vivem como “estrangeiras” no
povo de Deus (Tamar, Raab, Rute e a mulher de Urias). Com Abraão
já está dada desde o início essa “perspectiva dos povos”.
No judaísmo da época de Jesus, toda criança sabe o que é narra-
do em Gênesis 12–25 acerca do primeiro dos três “patriarcas”. Abraão
é uma das figuras mais populares da piedade judaica. As pessoas do
mundo helenístico não estão menos familiarizadas com sua histó-
ria. Autores não judeus também de vez em quando se referem a ele.
Quem participa do serviço na sinagoga ouve as leituras e interpreta-
ções dos capítulos correspondentes. Na diáspora, a tradução grega da
Bíblia hebraica, a Septuaginta, torna as narrativas acessíveis para um
novo e vasto público. Portanto, se Jesus vem a falar de Abraão, ele não
precisa primeiramente dar uma longa explicação do que quer dizer.
Bastam alusões. Algo semelhante se passa mais tarde com o apóstolo
Paulo. Naturalmente, ele pode pressupor o conhecimento das nar-
rativas bíblicas quando emprega Abraão em seus argumentos com as
comunidades na Galácia e em Roma. Todos eles, incluindo os não
judeus na comunidade cristã, estão inteirados sobre Abraão.
Isso explica por que as menções a Abraão são tão esporádicas no
Novo Testamento. Referências mais extensas encontram-se apenas
na fala de Estêvão (At 7,2–8.16) e numa série de modelos da fé apre-
sentada pela epístola aos Hebreus (Hb 11,8-19). Mas normalmente
a história de Abraão é adotada no Novo Testamento apenas seleti-
vamente. Nisto, a promessa de Deus (Gn 15) e o atamento de Isaac
(Gn 22) aparecem como os dois episódios mais importantes. Além
disso, Paulo retoma ainda a história do conflito entre Sara e Hagar
(Gn 16 e 21). Isso tudo, no entanto, concerne a somente uma peque-
na seção da narração dinâmica e de múltiplas camadas que vemos em
Gênesis 12–25, para não falar dos inúmeros escritos e interpretações
sobre Abraão do judaísmo primitivo!
No centro das menções neotestamentárias está, de modo quase
exclusivo, o interesse na promessa que Abraão recebe de Deus: Deus
lhe promete terra, rica descendência e bênção. Para o cristianismo
primitivo, a promessa da terra desempenha apenas um papel secun-
dário. A promessa da descendência, ligada à promessa de “bênção
para as nações”, desenvolve uma fascinação totalmente nova: já não se
56 encontra presente aqui o motivo decisivo para também poder incluir
não judeus na comunidade cristã? Não é justamente essa promessa
original de Deus que pode exibir uma idade maior e uma dignidade
Christfried Böttrich
ABRAÃO
no cristianismo
do período helenístico. A interpretação alegórica parte da ideia de que
o texto tem por base um sentido mais profundo oculto, que é preciso
descobrir com auxílio de uma chave determinada. Para os autores do
cristianismo primitivo, essa chave é o “evento de Cristo”, que desde
muito já estava resolvido em Deus e, por isso, também sempre esteve
presente na história do povo de Deus, Israel. Disso resulta a convic-
ção: tudo o que essas narrativas do Antigo Testamento comunicam já
aponta para Jesus Cristo! Podemos julgar essa leitura dos textos como
uma monopolização deles ou como uma expropriação dos “proprietá-
rios” originais dessas narrativas — e muitas vezes ela foi isso mesmo.
Por outro lado, não podemos avaliar a antiga interpretação bíblica com
critérios e conhecimentos modernos. E o judaísmo daquela época não
se comporta de modo diferente no aspecto metodológico. Assim, a
exegese do Antigo Testamento ocupa intensamente judeus e cristãos
por séculos a fio, ainda que nisto as divergências tenham aparecido
com mais força do que o elemento conector do objeto comum. No
entanto, apesar de todas as interpretações errôneas e dos atos falhos,
a referência ao povo de Deus continuou sendo para os cristãos uma
parte irrenunciável de sua própria identidade.
Por isso, o cristianismo desde sempre não viu Abraão simples-
mente como um “arameu errante” (Dt 26,5) de um passado lon-
gínquo, mas como um portador da esperança que para os cristãos
se cumpriu em Cristo. Por isso, Abraão não é uma figura que eles
poderiam observar e descrever com interesse distanciado. Ao contrá-
rio, Abraão representa a história da qual procede a fé cristã e que une
todos os cristãos indissoluvelmente ao povo de Deus, Israel.
2
ABRAÃO NOS ESCRITOS DO NOVO TESTAMENTO
ABRAÃO
no cristianismo
por meio de passagens hínicas, que refletem teologicamente sobre a
marcha dos acontecimentos. Tem um peso especial o assim chamado
“Magnificat”, aquele hino de louvor que Maria entoa em seu encontro
com Elisabete (Lc 1,46-55). O que realmente apenas deveria descrever
a feliz expectativa de uma mãe galileia torna-se repentinamente um
manifesto de grandes expectativas salvíficas com matiz político e desá-
gua na conclusão: “Veio em socorro de Israel, seu servo, lembrando-se
de sua misericórdia, como dissera aos nossos pais, a Abraão e sua des-
cendência para sempre”. Aqui se exprime a convicção de que as pro-
messas a Abraão ainda não se cumpriram totalmente, o que agora, no
entanto, com o nascimento da criança se move para uma proximidade
palpável. Algo análogo se aplica ao assim chamado “Benedictus”, um
hino de louvor com que Zacarias celebra a recuperação da fala no dia
da circuncisão de seu filho, João (Lc 1,68-79). Nisto se atribuem coisas
à criança que deveriam sobrecarregar desesperadamente o rebento de
uma família sacerdotal média. O cerne é a salvação para Israel que se
insinua com seu nascimento: pois Deus criou salvação por meio dessa
criança, “… e se lembrou da sua aliança santa, do juramento que fize-
ra a Abraão, nosso pai, de conceder-nos que, libertados das mãos dos
nossos inimigos, o servíssemos sem temor, em santidade e justiça sob
seu olhar, ao longo dos nossos dias…” (Lc 1,73-75). Aqui também pa-
rece ter ficado da aliança de Deus com Abraão alguma coisa aberta que
só agora é cumprida. As palavras de Zacarias permanecem totalmente
na moldura do povo de Deus. Mas o público leitor de Lucas já sabe
naturalmente até onde se estende o horizonte aqui.
Nos Atos dos Apóstolos, os diversos discursos e pregações têm
uma função semelhante à dos hinos do evangelho na moldura da his-
tória do nascimento. Eles flanqueiam as narrativas dramáticas da difu-
são do evangelho mediante reflexões teológicas correspondentes. Um
dos primeiros discursos é feito por Pedro, que, depois de um milagre
de cura no distrito do templo, se dirige à multidão que se junta (At
3,12-26). Depois de ter se referido no começo ao “Deus de Abraão, de
Isaac e de Jacó, o Deus de nossos pais”, ele guia o final de seu discurso
para o tema da promessa: “Vós sois os filhos dos profetas e da Alian-
ça que Deus concluiu com vossos pais, quando disse a Abraão: ‘Em
tua descendência, todas as famílias da terra serão abençoadas’” (Gn
60 12,3/22,18). Portanto, essa promessa da bênção cumpre-se agora nessa
geração — mais precisamente pelo “servo de Deus (Jesus Cristo)”,
Christfried Böttrich
com que Pedro termina. Mais claro ainda é Estêvão em sua pregação
(At 7,1-53). Esta começa imediatamente com uma lembrança daquela
promessa que outrora fez Abraão sair de sua pátria e, em seguida, de-
senvolve a exposição da história toda de Israel como uma história da
revolta justamente contra essa promessa fundamental: “… vós sempre
resistis ao Espírito Santo; como o fizeram vossos pais, assim também
vós!”. Nisto já se pode ouvir o tom polêmico de uma controvérsia que
gira em torno de saber se Jesus Cristo é parte ou não dessa história de
promessa e esperança. Pela primeira vez tal controvérsia termina com
a morte de um dos disputantes.
Fica reservado ao apóstolo Paulo fornecer argumentos exegéticos.
Para ele não pode haver dúvida: a promessa em que Abraão confia-
va tão inabalavelmente refere-se à bênção que por “sua descendên-
cia” chega aos povos — e isso significa uma descendência totalmente
especial: Cristo (Gl 3,16)! No nível narrativo, ele vê essa promessa
como cronologicamente anterior à aliança da circuncisão entre Deus
e Abraão (Gn 17) e muito mais anterior à firmação da aliança no Sinai
com a entrega da Torá — e disso ele conclui a primazia dessa promessa
em relação a todos os outros eventos salvíficos na história de Israel.
Mas ainda falaremos mais detalhadamente disso em outro contexto.
ABRAÃO
no cristianismo
também a vida do patriarca Jacó. Nesse sentido, há sobretudo um sig-
nificado teológico no fato de Israel se referir a Abraão como “seu pai”,
pois soa nisso não uma conexão de descendência, mas, primariamente,
o elemento de uma relação singular com Deus.
ABRAÃO
no cristianismo
a Abraão!”. São palavras exageradas especialmente porque os destina-
tários desse discurso de ameaça são, como em Mateus, “fariseus e sa-
duceus”. O privilégio da filiação a Abraão não fundamenta nenhuma
salvação automática. Com a invocação a Abraão, as pessoas não podem
simplesmente se eximir do dever de produzir “frutos dignos da con-
versão”. A passagem de Lucas 3,10-14 expõe o que se deve entender
aqui: trata-se da justiça social, que exige uma ação com foco e engaja-
mento. Depois de o Batista, logo no início, ter dado ao seu público o
título pouco lisonjeiro “crias de víboras”, ele o insulta mais uma vez
no final com palavras duras: Deus não tem necessidade de se contentar
com duvidosos “filhos de Abraão”. Ele pode a todo momento recrutar
outros candidatos — até mesmo das primeiras pedras à disposição, ele
pode suscitá-los! Isso não é apenas uma fala grosseiramente hostil; ao
contrário, ela tem uma agudeza teológica, pois diz concisamente: o
privilégio da filiação a Abraão não é medido apenas com base na su-
cessão biológica. Ao contrário, trata-se de confiar em Deus tal como
Abraão, e vivificar essa confiança cotidianamente. Com isso, o Batista
mostra que ele entende a dignidade da filiação a Abraão ante um hori-
zonte muito mais vasto do que o faz seu público.
ABRAÃO
no cristianismo
curso apaixonado em defesa de que os não judeus também têm acesso
a Deus por causa de sua fé em Cristo e se tornam membros plenos
da comunidade cristã, Paulo se refere preferencialmente a Abraão.
Ele faz da história do patriarca o ponto de Arquimedes em que sua
argumentação começa.
Até aqui tudo bem. Mas agora surge para Paulo um problema de
peso teológico bastante considerável, pois a circuncisão não significa
algo de menor importância, que se poderia regular pragmaticamente.
Em todo caso, ela é ordenada na Torá, a instrução de Deus. É consi-
derada o sinal da aliança, que Deus em Gênesis 17 firmou novamente
com Abraão. No Sinai, ela se manifesta pela entrega da Torá mais uma
vez como uma marca de identidade eminente do povo de Deus. Na
véspera da rebelião dos macabeus (meados do século II a.C.), muitos
pios sofrem o martírio, porque insistem na circuncisão de seus filhos.
Com razão os contemporâneos judeus reagem com grande suscetibili-
dade quando um fariseu como Paulo, de repente, começa a relativizar
o significado da circuncisão! Ele não está com isso pondo em questão
a validade da Torá? Há aqui necessidade de um esclarecimento. Como
se posiciona a Torá em relação à promessa de Deus a Abraão?
Paulo resolve esse problema com auxílio de um esquema histó-
rico-salvífico, em que ele tem em mente o princípio muito difundido
na Antiguidade de que “o mais antigo é melhor”. Ao mesmo tempo
ele se serve das ideias de herança e execução de testamento. A promes-
sa a Abraão seria então o testamento que garante o acesso das nações
a Deus. Ela foi escrita em Abraão e “suas sementes/descendentes”.
Habitualmente, “semente”, tanto em hebraico quanto em grego, atua
como conceito coletivo, que abarca toda a descendência. No entanto, é
de modo totalmente consciente que Paulo usa o conceito no singular:
“Foi a Abraão que as promessas foram feitas, e à sua descendência.
Não se disse: e às descendências, como se se tratasse de muitas, mas
é de uma só que se trata: é à tua descendência — isto é, Cristo”. Essa
é, portanto, exatamente aquela linha que a árvore genealógica de Jesus
também traça no evangelho de Mateus. Só que Paulo a intensificou
mais nitidamente: toda a história do povo de Deus corre desde Abraão
até aquele descendente já mirado por Deus: isto é, Cristo. Com ele
o testamento — a promessa da bênção para as nações — é executa-
do. Mas qual papel ainda resta para a Torá? No tempo entre Abraão
e Cristo, Paulo lhe pode atribuir apenas a função de regulamentação
transicional. Com auxílio dos dados numéricos na Escritura, ele faz as
contas: a Torá foi revelada apenas 430 anos após Abraão! Além disso
— e aqui ele se refere a tradições judaicas de sua época — ela foi trans-
mitida a Moisés por anjos. Ela não pode competir com a promessa 67
de Abraão em idade e imediatez, ou seja, em dignidade e categoria:
ABRAÃO
no cristianismo
“Eis, portanto, meu pensamento: um testamento em regra foi primei-
ro firmado por Deus (a saber, a promessa). A Torá, vinda quatrocen-
tos e trinta anos mais tarde, não o invalida, de modo que ela (a Torá)
tornasse inoperante a promessa”. Um pouco mais tarde (Gl 3,23-26),
Paulo ainda descreve a Torá como um “pedagogo”, que vigia e conduz
o menor, até que ele atinja a idade necessária para tomar posse de sua
herança e poder agir com responsabilidade própria. “Assim a Torá se
tornou nosso pedagogo, para nos conduzir a Cristo”.
O novo acesso a Deus constitui-se na pertença a Cristo, que tem
no batismo sua origem biograficamente determinável. Na seção se-
guinte, Paulo trata disso de maneira afiada. No batismo a perspectiva
da “filiação a Abraão” se estende à “filiação a Deus” que é franqueada
por Cristo a todos os homens: “Pois todos vós sois, pela fé, filhos
de Deus, em Jesus Cristo. Sim, vós todos que fostes batizados em
Cristo vos revestistes de Cristo. Não há mais nem judeu nem gre-
go; já não há mais nem escravo nem homem livre, já não há mais o
homem e a mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo. E se
pertenceis a Cristo, é porque sois a descendência de Abraão; segundo
a promessa, vós sois herdeiros” (Gl 3,26-29). A relação imediata de
Abraão com seu Deus também beneficia todos aqueles que por meio
de Cristo encontram o caminho ao Deus de Abraão.
Nesse contexto também se relativizam os tons críticos à Torá,
que desempenha um papel fundamental na crença e na vida de Israel
e à qual Paulo se atém radicalmente! Não importa para Paulo jogar
a Torá contra a promessa de Abraão. Seu argumento é crítico apenas
porque seus adversários na Galácia afirmam que um mandamento
da Torá (a circuncisão) deve ser cumprido como uma precondição
para o acesso a Deus. Mas o cumprimento de instruções divinas ja-
mais foi condição para a salvação! Deus se volta espontaneamente
para todo o mundo das nações. Ele funda uma aliança com Israel e
revela-se para todos os homens em Jesus Cristo. Esses são os eventos
salvíficos decisivos. É isso que Paulo tem em vista — ainda que ele
ocasionalmente, no calor da batalha, jogue fora a criança com a água
do banho. O fato de os teólogos da Igreja Antiga terem pensado que
podiam encontrar em Paulo uma rejeição por princípio da Torá já é
parte da história de sua recepção e são “outros quinhentos”.
68 2.2.2.2. Abraão e suas duas mulheres: Gálatas 4,21-31
Christfried Böttrich
ABRAÃO
no cristianismo
mulher principal ou da esposa legítima, isto é, da mulher livre, é tam-
bém o portador da promessa e herdeiro de Abraão.
Na segunda seção, Paulo presta contas de seu acesso ao texto do
ponto de vista metodológico. “Mas isso é dito alegoricamente. Pois
essas duas mulheres são as duas alianças…”. Ele usa o método da
exegese alegórica que foi desenvolvida até a máxima maestria pelo
filósofo religioso judeu Fílon de Alexandria e já tinha sido testada
na interpretação da Torá (incluindo a história de Abraão). Desde o
início, portanto, não se trata de deduzir da história conexões histo-
ricamente corretas, genealogicamente exatas. Ao contrário, se Paulo
interpreta Hagar como símbolo do judaísmo atual, mas Sara como
símbolo da comunidade cristã, ele vira de ponta-cabeça as relações
genealógicas! Todavia, isso não é incomum para a interpretação ale-
górica. Ela pressupõe que o texto signifique uma coisa diferente do
que quer dizer literalmente na primeira leitura. Na história não se
trata, portanto, do conflito de duas mulheres, nem de suas esperan-
ças e seus desesperos, de sua rivalidade e suas humilhações mútuas.
Não se trata da disputa legal sobre quem é o herdeiro legítimo. Ao
contrário, tudo é narrado apenas para apresentar duas alianças di-
ferentes por meio das duas mulheres. Sara representa a aliança da
promessa, que Deus firma com Abraão. Hagar representa a aliança
do Sinai, cujo certificado se encontra na Torá. Paulo dá continuidade
a esse simbolismo das duas alianças. À aliança do Sinai corresponde a
Jerusalém atual, que vive em escravidão com seus filhos. À aliança da
promessa corresponde a “Jerusalém do alto”, cuja característica mais
eminente é a “liberdade”. As fundamentações não podem ser total-
mente convincentes nem mesmo na estrutura da interpretação ale-
górica. Mas a linha básica é clara: a aliança da promessa de Deus com
Abraão vale para todos os homens, sem precondições, enquanto a
aliança do Sinai recua para trás desse cuidado primário, fundamental
da parte de Deus. O fato de isso colar uma etiqueta da “escravidão”
na Torá soa totalmente insuportável para a compreensão judaica, pois
os sábios de Israel sempre salientaram: “não há nenhum indivíduo
livre além daquele que se ocupa com o estudo da Torá!” (mAv 6,2).
Mas nessa interpretação é preciso lembrar-se do ponto de partida:
trata-se do acesso dos não judeus a Deus — e apenas por causa desse
70 interesse Paulo põe a Torá na segunda posição para que o significado
da promessa a Abraão sobressaia com muito mais clareza.
Christfried Böttrich
ABRAÃO
no cristianismo
Paulo. Naturalmente, não podemos hoje, no diálogo judaico-cristão,
lidar com a história de Abraão tal como Paulo. É a própria experiência
pessoal de fé que inicialmente determina o acesso a um texto, e as tra-
dições existentes sempre interagem com a respectiva realidade da fé —
isso se aplica igualmente à exegese bíblica tanto judaica quanto cristã.
E, assim como Paulo justamente em Gálatas 4,30 se encontra com seus
colegas exegetas judeus, há também hoje, num diferente espectro de
métodos, não menos contatos entre a exegese judaica e a cristã.
ABRAÃO
no cristianismo
Num último passo argumentativo, Paulo reflete mais uma vez
sobre a analogia entre a crença de Abraão na promessa de Deus e a
crença da comunidade cristã no Cristo ressuscitado. Mas aqui ele vai
além das explanações efetuadas na carta aos Gálatas. O iniciador da
argumentação é a citação de Gênesis 17,5: “Eu fiz de ti o pai de um
grande número de nações”, o que um pouco mais tarde é ainda salien-
tado por Gênesis 15,5: “Sua descendência será tão numerosa (quanto
as estrelas no céu)”. Com forte contundência, Paulo salienta: “Ele não
fraquejou na fé, ao considerar o seu corpo — era quase centenário — e
o seio materno de Sara, ambos já atingidos pela morte”. Em face da
fertilidade quase extinta, tanto a dele quanto a de Sara, Abraão confia
na força criadora de Deus, isto é, no Deus “que faz viver os mortos e
chama à existência o que não existe”. É exatamente essa fé que Paulo
no final também atesta para os romanos como os “que creem naquele
que, dentre os mortos, ressuscitou Jesus, nosso Senhor, o qual foi en-
tregue por nossas faltas e ressuscitado para nossa justificação”.
Segundo essas explanações, “filhos de Abraão” são todos os que
creem no Deus de Abraão como pai de Jesus Cristo. Paulo visa, com
isso, aos gentio-cristãos e aos judeu-cristãos na comunidade cristã.
Ambos os grupos têm o mesmo status diante de Deus. Os gentio-
cristãos não ficam em nada atrás dos cristãos judeus. Não se deve
lhes impor exigências adicionais. Ambos são “filhos de Abraão” por
causa de sua fé comum. Mas como ficam os judeus que não con-
fessam Cristo como Messias e Kyrios? Paulo trata dessa questão em
Romanos 9–11.
Os capítulos 9–11 da carta aos Romanos são algo como uma pedra de
toque para aquilo que Paulo desenvolveu até então para a justificação
do homem perante Deus. Se o caminho para Deus passa, indiferen-
ciadamente para todas as pessoas, pela crença em Cristo, então Israel,
fora da comunidade cristã, não estaria separado de Deus? Eis uma con-
tradição que se deixa resolver facilmente. Pois uma coisa está fora de
questão: a eleição de Israel continua vigente (Rm 9,4-5): “eles que são
74 os israelitas, a quem pertencem a adoção, a glória, as alianças, a lei, o
culto, as promessas e os pais, eles enfim dos quais descende o Cristo”.
Deus não repudiou seu povo nem anulou sua aliança. No entanto, a
Christfried Böttrich
ABRAÃO
no cristianismo
ele salientará expressamente que a eleição de Deus é irrevogável e que
todo o Israel será salvo. Mas por causa dos não judeus, ele exagera o
fator da eleição, ela é assunto exclusivo de Deus, que não se deixa por
nada, nem mesmo pela aliança com Israel, limitar-se em sua liberdade
de considerar justa a fé dos povos em Cristo.
Ao mesmo tempo, Paulo experimenta toda a força da realidade da
separação atual — e sofre com ela. Essa realidade não pode ser mini-
mizada nem eliminada com interpretações. Ele começou toda a passa-
gem em Romanos 9,2 com as palavras: “Trago no coração uma grande
tristeza e uma dor incessante. Sim, eu desejaria ser anátema, ser eu
mesmo separado do Cristo, por amor de meus irmãos, os da minha
raça segundo a carne”. Nisto fica claro: não se trata aqui de meros
jogos intelectuais. Para aqueles que encontram o caminho para Deus
pela fé em Cristo a relação com Israel é um problema existencial. Foi-
lhes dado lutar pela determinação dessa relação — e em última análise
deixar para Deus a solução. Qualquer resposta definitiva, seja na deli-
mitação ou no apagamento dos limites, seria uma redução inaceitável.
No auge desse capítulo, Paulo desenvolve uma imagem impres-
sionante (Rm 11,17-24). O povo de Deus se assemelha a uma velha
oliveira em que são enxertados ramos de um exemplar selvagem.
Não importa se a imagem é correta em termos de horticultura —
todo o interesse repousa nesses ramos outrora selvagens (as nações).
Esses ramos ganham agora parte “na raiz e na seiva da velha oliveira”.
Mas a quem ou ao que se refere essa raiz? Evidentemente Paulo está
pensando de novo na promessa que foi dada a Abraão. Então ele sai
da imagem e fala diretamente aos gentio-cristãos em Roma: “Mas se
te gloriares: não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti”. Mas a úl-
tima palavra ainda não foi dita sobre aqueles ramos hereditários, que
por um momento tiveram de dar lugar aos novos ramos. Por isso,
permanece decisivo apenas o agradecimento dos ramos silvestres por
seu “enobrecimento”. Tudo o mais não é assunto seu.
Abraão, em todo caso, não serve como advogado para critérios
de exclusão, ainda que seu exemplo não signifique nada menos que
o apagamento de diferenças na atitude em relação a Deus. Paulo
luta pela aceitação da ampliação do círculo dos filhos de Abraão com
Cristo. Ele se conforma com o fato de essa ampliação também causar
76 nossas delimitações. Mas ele se guarda de desenvolver disso um sis-
tema. A tônica está não sobre o julgamento dos outros, mas sobre o
Christfried Böttrich
ABRAÃO
no cristianismo
a isso. Seu mal-entendido encontra-se em outro nível. A resposta de
Jesus conduz a ele: “Aquele que comete o pecado é escravo do peca-
do”. O pecado e, portanto, o distanciar-se de Deus são sempre concre-
tos. E a “liberdade” não é uma abstração, mas também deve ser uma
experiência relacionada a uma situação. O momento é agora definido
pela experiência de uma controvérsia hostil, que separa de Deus. “Eu
sei que sois a descendência de Abraão. Mas procurais me fazer morrer
… E vós fazeis o que ouvistes junto do vosso pai.” A rejeição, indo até
a ameaça de morte, não pode ser de Deus. Mas o apelo não é ouvido.
Os interlocutores, imperturbáveis, insistem: “O nosso pai é Abraão”.
Mas agora eles devem ouvir a contraposição: “Se sois filhos de Abraão,
fazei, então, as obras de Abraão!”. As “obras” de Abraão? Em que se
está pensando aqui? Trata-se de sua firmeza nas provações (Gn 22), ou
sua confiança (Gn 15) é entendida como uma espécie de obra? Nem
uma coisa nem outra — pois para o evangelista se trata apenas de um
fato: cumpre conhecer a “verdade” (e, com isso, o próprio Cristo), e
nisto Abraão é modelo. Abraão conheceu o que Deus queria dele. Os
adversários, no entanto, não compreendem as palavras de Jesus e o
rechaçam. Jesus replica: “Mas vós fazeis as obras do vosso pai!”. Agora
a situação se torna hostil. Os atacados se defendem: “Nós não nasce-
mos da prostituição! Temos um só pai, Deus!”. Imperceptivelmente,
a conversa escalou para uma brusquidão cada vez maior e agora atinge
seu ponto alto: “Se Deus fosse o vosso pai, vós me teríeis amado …
O vosso pai é o diabo, e vós estais determinados a realizar os desejos
do vosso pai!”. A referência à filiação de Abraão vê-se repentinamente
confrontada com a acusação da filiação ao diabo!
Nesse ponto a disputa muda de direção. Se até agora Jesus se
encontrava na ofensiva, e seus adversários na posição de defesa, estes
agora invertem a lança e empurram Jesus para a defensiva. Pois sua
acusação foi grave. No plano da história de sua recepção, ela teve
consequências desastrosas e, durante séculos, foi sempre instrumen-
talizada como expressão barata para demonizar concidadãos judeus.
Mas, no contexto de nosso texto, essa expressão está bem longe de
qualquer generalização. Ela nasce da situação de um conflito atual,
doloroso e deve simplesmente explicar a origem dessa veemente re-
jeição, incluindo a intenção de morte. Ela é a tentativa desesperada
78 e infeliz de encontrar motivos de uma parte ser causa de derrota da
outra. De acordo com isso, a rejeição que Jesus sofre não sucede
por responsabilidade própria. No pano de fundo está um poder que
Christfried Böttrich
ABRAÃO
no cristianismo
Deus “no início” (Jo 1,1). Com isso, num nível teologicamente denso,
se pressupõe a preexistência de Jesus — o que os interlocutores (que já
se tornaram adversários) só podem compreender como blasfêmia. Em
seguida a isso, voam as primeiras pedras.
Em Abraão se torna visível não apenas a atenção de Deus para
com o mundo das nações. Em suas “obras”, isto é, em seu conhe-
cimento de Deus, também se dividem as opiniões. João não pensa
em categorias de um “ranqueamento”, mas na forma de oposições.
Isso corresponde à sua experiência cotidiana. Mas tal experiência se
modifica com o tempo. O que os judeus e cristãos vivenciaram em
faltas mútuas resulta hoje numa percepção totalmente nova da mise-
ricórdia de Deus, que vale para todos os filhos de Abraão e não está
sujeita a nenhuma censura humana.
2.3.1. Critérios da fé
Com sua referência a Abraão, Tiago 2,21-23 segue uma tradição que
foi muito difundida no judaísmo primitivo. Para fins de instrução
os modelos do passado são alinhados nas assim chamadas séries de 81
paradigmas, em que Abraão é sempre citado com sua “resistência na
ABRAÃO
no cristianismo
provação” (Gn 22). Sirácida 44,19-21, por exemplo, salienta em seu
“elogio dos antepassados” (44–50): “E na prova ele foi encontrado
fiel”. Mais nítido ainda é o contexto em 1 Macabeus 2,52: “Não foi
Abraão fiel na prova, e não lhe foi isso imputado como justiça?”.
Isso é seguido por Tiago 2,21-23: “Porventura não foi pelas obras
que nosso pai Abraão foi justificado quando ofereceu sobre o altar
seu filho Isaac?… e se cumpriu a escritura que diz: E creu Abraão
em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça (Gn 15,6) e ele foi
chamado ‘amigo de Deus’”. Não se pode imaginar uma distinção
maior do que essa! No entanto, o título “amigo” não se origina da
própria narrativa bíblica sobre Abraão. É apenas em retrospecto que
ele é atribuído a Abraão em diversos contextos (Is 41,8; 2Cr 20,7).
Na literatura do judaísmo primitivo, “Abraão, o amigo de Deus” já
tinha se tornado uma fórmula fixa. Aqui, portanto, Tiago 2,23 está
seguindo um uso linguístico difundido.
E a carta aos Hebreus retoma essa linha. Sua grande série de pa-
radigmas para a fé dos ancestrais, resumida sob a expressão “nuvem
de testemunhas” (Hb 11,1–12,3), inclui Abraão e Sara em Hebreus
11,8-19. São salientadas sua saída para um lugar incerto, a confian-
ça na promessa da descendência apesar da idade avançada e a sua
resistência na provação. A explicação no início da série (Hb 11,1)
sobre o que é a fé parece ter sido obtida com Abraão: “a fé é o firme
fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não
se veem”. O exemplo detalhado de Abraão atinge o ponto alto com
a referência a Gênesis 22: “Pela fé, Abraão, posto à prova, ofereceu
Isaac; oferecia o filho único, embora houvesse recebido as promessas
e lhe houvessem dito: É por Isaac que te será garantida uma descen-
dência. Mesmo a um morto, pensava ele, Deus é capaz de ressusci-
tar; por isso, numa espécie de prefiguração ele também o recobrou”.
Essa prefiguração se refere a Cristo. Portanto, a fé de Abraão é usada
diretamente como modelo da fé na ressurreição de Jesus.
Na assim chamada Primeira epístola de Clemente, uma carta da
comunidade cristã de Roma para a comunidade cristã em Corinto
(cerca de 96), há uma série de paradigmas (1Clemente 9,2–12,8), que
apresenta os servos perfeitos de Deus. Mais uma vez, Abraão ganha
amplo espaço (1Clemente 10,1-7). Inicialmente se trata de sua obe-
82 diência, da saída de sua pátria e de sua confiança. O ponto alto é no-
vamente o atamento de Isaac: “Por sua fé e sua hospitalidade foi-lhe
Christfried Böttrich
ABRAÃO
no cristianismo
proféticos. Como Abraão já teve uma visão do tempo salvífico, ele
vê também “o dia” do messias. Aqui se retoma a tradição judaica,
que é vinculada à cristologia. Ele pertence, como patriarca na fé, à
comunidade do povo de Deus de Israel e ao mundo das nações. Ele
não é nem um “pagão santo” nem “justo na antessala”, mas já uma
testemunha de Cristo.
ABRAÃO
no cristianismo
tativamente por Jesus em Lucas 20,37-38 tem outro sentido. Ela, de
um lado, exprime a fidelidade de Deus, que fica ao lado de seu povo
e não se despede secreta e silenciosamente da história. De outro, ela
torna os patriarcas as primeiras e mais eminentes testemunhas da
esperança na ressurreição. A eles, e sobretudo a Abraão, os justos
portanto reencontrarão!
ABRAÃO
no cristianismo
têm em comum, como também levarão consigo ricos presentes. E,
como não poderia ser diferente, com essa imagem do início do tem-
po da salvação já logo se vincula também a imagem de um grande
banquete em comum (Is 25,6). Na época do Novo Testamento, são
antes alusões que conferem os primeiros contornos a esse quadro de
esperança. E tanto mais fortes são as cores com que ele é pintado na
literatura rabínica.
Mais uma vez, os patriarcas aparecem como o “núcleo duro”
dessa mesa-redonda do final dos tempos. Isso só pode ter um sen-
tido: eles são considerados as figuras-símbolo da esperança numa
humanidade unida na fé em Deus! Os evangelistas Mateus e Lucas
vêm a falar disso, usando quase as mesmas palavras, mas em con-
textos diferentes. Mateus insere a correspondente palavra de Jesus
na parte final da história sobre o centurião de Cafarnaum (Mt 8,5-
13): “Em verdade vos digo que a ninguém encontrei em Israel com
tamanha fé. Também vos digo que muitos virão do oriente e do
ocidente, e reclinar-se-ão à mesa de Abraão, Isaac e Jacó, no reino
dos céus; mas os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores;
ali haverá choro e ranger de dentes!” (Mt 8,10-12). Lucas conclui de
modo semelhante uma passagem que começa pela pergunta sobre
quantas pessoas serão salvas (Lc 13,22-30): “Ali haverá choro e ran-
ger de dentes quando virdes Abraão, Isaac, Jacó e todos os profetas
no reino de Deus, e vós lançados fora. Muitos virão do oriente e
do ocidente, do norte e do sul, e reclinar-se-ão à mesa no reino de
Deus. E assim, há últimos que serão primeiros, e há primeiros que
serão últimos” (Lc 13,28-30).
Inconfundivelmente, a mensagem, que projeta uma grande ima-
gem de esperança, se move para o horizonte das ameaças do julga-
mento. O acesso de uns está em contraste com a exclusão de outros.
Ao menos, a sequência se inverte, tal como em Lucas. A humanida-
de unida, afluindo dos quatro pontos cardeais, não é, portanto, uma
assembleia completa. Ela só é unida sob a profissão de fé conjunta
no Deus único. E quem não compartilha essa profissão de fé não é
cobrado disso nem generosamente ignorado. Não se trata de uma
conciliação universal que é pintada aqui. A pertença também tem um
lado inverso. Em todo caso, os pais, com Abraão no topo, não repre-
88 sentam o grande nivelamento, mas o grande convite. Eles mantêm a
porta aberta tanto quanto possível. Mas ninguém é obrigado a entrar.
Christfried Böttrich
3
ABRAÃO NA TRADIÇÃO CRISTÃ
ABRAÃO
no cristianismo
(Sermões 130,3): “A promessa dada a Abraão está cumprida. E daqui-
lo que vemos haurimos a fé naquilo que não vemos”. Um problema
difícil é representado pela história de Abraão e Sara no Egito. Abraão,
por exemplo, mentiu quando fez Sara passar por sua irmã? Então,
com muitos argumentos, segue-se a tentativa de reabilitar Abraão
— especialmente por Agostinho, que, de resto, em sua ética rejeita
categoricamente toda forma de mentira. A riqueza com que Abraão
retorna do Egito demonstra ambiguidade. Ele, ao partir, não tinha
justamente se desligado de todos os vínculos materiais? Por isso, sua
nova riqueza não é apenas expressão da bênção divina, mas também
causa da separação de Lot. Mas aqui os exegetas utilizam, ao mesmo
tempo, a oportunidade de louvar a humildade de Abraão, que deixa
para Lot a melhor parte da terra. É interessante o recurso alegórico à
história da guerra dos reis em que Lot se enreda: porque abandona
a virtude de Abraão, ele cai na licenciosidade de Sodoma; os quatro
reis agressores representam os prazeres da vida, os cinco reis atacados
representam os cinco sentidos humanos; o fato de Abraão reunir 318
servos para a ação de salvamento indica, numa simbologia numérica,
a cruz de Cristo; mais tarde, os 318 Padres do Concílio de Niceia
(325) são relacionados aos 318 servos de Abraão, pois eles ajudam na
vitória da fé contra a heresia. Grande interesse desperta a figura de
Melquisedeque, que, como tipo de Cristo, já oferece, num sentido
sacramental, o pão e o vinho. No que diz respeito à aliança de Deus
com Abraão, os Padres estão amplamente de acordo com Paulo, que
enfatiza Gênesis 15,6. Outro problema moral aparece com a figura
de Hagar; novamente é necessário um grande dispêndio argumenta-
tivo para defender Abraão contra a acusação de dúvida ou devassidão:
“Ele se serviu dela para gerar descendentes, não pela luxúria; com
isso, não foi injusto para com sua mulher, mas, antes, lhe obede-
ceu”, observa Agostinho (Cidade de Deus 16,25). E Ambrósio (Sobre
Abraão 1,3) acrescenta: “Não esqueçamos que Abraão viveu antes do
período da lei mosaica e do Evangelho: o adultério ainda não parecia
ser proibido”. De resto, predomina a leitura da história paulina em
Gálatas 4. Os Padres compreendem a aliança da circuncisão como
reforço adicional da aliança da promessa e ao mesmo tempo estabe-
lecem uma referência tipológica ao batismo cristão como “a circun-
90 cisão não feita por mãos”. O riso de Abraão e Sara é interpretado
positivamente; Ambrósio (Sobre Abraão 2,11) está seguro: “O riso ex-
Christfried Böttrich
prime a alegria do justo […]. Esse riso não foi o riso de uma pessoa
em dúvida, mas de um crente”. O sacrifício de Isaac ganha o caráter
de uma previsão do autossacrifício de Cristo, e aí se discute sobre-
tudo a questão de como devemos entender a tentação por parte de
Deus: o demônio tenta o homem para destruir sua fé; Deus, porém,
o tenta para fortalecer sua fé.
As asserções sobre Abraão no Novo Testamento também passam
por uma ampla interpretação, que, seguindo o exemplo de Paulo, co-
loca no centro a relação entre Abraão e Cristo. Aqui, rapidamente se
infiltra uma polêmica fortemente antijudaica na interpretação dos Pa-
dres. A bênção para as nações é ligada a uma rejeição de Israel; a Igreja
de judeus e não judeus entra no lugar do povo de Deus, Israel. Aqui foi
primeiramente necessária a dolorosa experiência de um desencontro
de 2000 anos para ver em Abraão não o acusador de Israel, mas redes-
cobrir nele o progenitor comum na fé de judeus e cristãos.
ABRAÃO
no cristianismo
nas categorias do pensamento filosófico, pode se referir gratamente
a Abraão. Parece inusual aquela visão do patriarca que o apresenta
como “atleta do amor divino”. No contexto, encontra-se aí o pensa-
mento da vida cristã como uma competição (1Cor 9,25-26). Basílio
de Selêucia (Orationes 7) desenvolve essa comparação em relação a
Abraão: “A competição da fé fez o bebê vir ao mundo e ao amor de
Deus abriu o estádio”.
Mas é a descrição de Abraão sob o título de “pai” que ocupa o
maior espaço. Ao mesmo tempo, esse espaço designa o campo vasto
e conflituoso da pergunta sobre quem poderia ser considerado “fi-
lho” legítimo daquele “pai”. A fórmula concisa “Abraão, pai de todos
nós” (Rm 4,16) carrega não apenas a ideia do convite, mas também
a de pretensões rivais. Em todo caso, a Igreja dos primeiros tempos
não seguiu a exigência de um Marcião, que queria ver o Deus de
Abraão e o Pai de Jesus Cristo radicalmente separados um do outro.
Ireneu (Contra as heresias IV 8,1) escreve a respeito: “Quem contesta a
salvação de Abraão e cria para si outro Deus além daquele que deu a
promessa a Abraão está fora do reino de Deus e destituído da herança
da imperecibilidade”.
ABRAÃO
no cristianismo
Essa história se tornou um dos pontos de apoio bíblicos mais
importantes para a teologia da Trindade dos séculos posteriores. É
uma peça de teologia narrativa da Trindade que os Padres “desco-
brem” aqui. Com isso Abraão é chamado como testemunha, para
conceber a unidade de Deus na trindade.
meu fim/levar minha alma ao seio de Abraão. /…”. Numa das canções
mais belas e populares, Joachim Neander (1680) canta em EG 317,5 a
comunidade com Israel: “Louva o Senhor, o que há em mim, louva o
nome. /Tudo o que tem alento/louva com a semente de Abraão./…”.
Por fim, Abraão é novamente considerado por Philipp Spitta (1833)
em EG 137,3 com a dupla referência a Gênesis 15 e 22: “Dá-nos a
certeza/ sólida e firme de Abraão/que vence todas as dúvidas/e todos
os obstáculos;/que não confia só na aliança da graça/alegre e imóvel,/
mas a toda hora /põe o amado aos pés de Deus”. No entanto, não
são acionadas aí mais do que lembranças pontuais da figura bíblica de
Abraão. O Abraão exemplarmente pio serve para admonição e para a
confirmação da autoimagem da comunidade cristã.
Como modelo da fé, Abraão (como muitos outros justos do An-
tigo Testamento) também entra então na série dos “santos”. Diver-
sos calendários cristãos indicam dias em que se deve lembrar dele.
Encontramos aí, por exemplo, os dias 8 ou 9 de outubro, o 20 de
dezembro, o terceiro domingo de Advento ou o segundo domingo
antes da festa da Transfiguração.
ABRAÃO
no cristianismo
história de Abraão é sempre ilustrada, em manuscritos bíblicos, por
ciclos pictóricos, que podem abranger de 3 a 18 cenas. Além disso,
é popular a figura de Abraão como uma figura sentada, que segura
em seu seio as almas dos justos no paraíso (Lucas 16,22-23). Mas a
maior difusão coube, mais precisamente no Oriente, à “filoxenia”, a
cena da hospitalidade de Abraão (Gn 18). Como os Padres veem nos
mensageiros de Deus uma aparição do Deus trino, esse tipo pictóri-
co desenvolveu-se para se tornar a maneira preferida de representar
figurativamente a Trindade — o que, em face da regra de que o Deus
Pai não deve ser reproduzido, ofereceu uma possibilidade bem aceita
de realização iconográfica. Aqui Abraão e Sara entram em segun-
do plano ou desaparecem por completo da cena. Tudo se concentra
apenas na sutil interação dos três anjos como uma reprodução da
comunicação intradivina.
4
PERSPECTIVA: ACESSOS COMUNS A ABRAÃO
Trifão, nunca haverá outro Deus, nem jamais houve desde a eter-
nidade outro Deus senão aquele que fez e ordenou este universo.
Além disso, cremos que nosso Deus não é diferente do vosso, que
Ele é, antes, o mesmíssimo que conduziu vossos pais para fora do
Egito “com mão forte e braço estendido”. Também não deposita- 97
mos nossa esperança em nenhum outro Deus — não há outro —,
mas no mesmo que vós, no Deus de Abraão, Isaac e Jacó (11,1).
ABRAÃO
no cristianismo
Então ocorre a mudança decisiva. Para Justino, essa perspecti-
va universal significa não apenas o acesso das nações a Deus, mas
também a exclusão de Israel da salvação. “Vós vos enganais se pen-
sais que, porque descendeis de Abraão segundo a carne, herdareis
de qualquer maneira o bem […]” (44,1). “Também a respeito dos
descendentes de Abraão, que vivem segundo a lei e que até a morte
não creem em nosso Cristo, eu contesto que sejam bem-aventurados
[…]” (47,5). Nisso se baseia o que na Igreja antiga encontra ampla
difusão como “doutrina da deserdação”: “O Israel verdadeiro, espiri-
tual … este somos nós …” (11,5). A Igreja reivindica afastar Israel e
entrar em seu lugar como novo povo de Deus. Com o tempo se de-
senvolve um gênero de tratados teológicos que sob o título “Contra
os judeus” defendem polemicamente essa reivindicação. Mas esses
textos dispostos como diálogos fictícios estão longe de uma “con-
versa”! Seu resultado está estabelecido de antemão. Abraão se torna
acusador do “interlocutor” judeu.
Um diálogo digno desse nome começa apenas 1800 anos após
Justino ter dado seus primeiros passos hesitantes. Foi preciso pri-
meiramente o susto da Shoah para aprender a ler a tradição bíblica
com outros olhos e despedir-se definitivamente da velha doutrina
da deserdação. Com a resolução sinodal da Igreja Evangélica na Re-
nânia “Para a renovação da relação entre cristãos e judeus”, de 1980,
começa uma série de pronunciamentos eclesiais oficiais em que a “a
eleição permanente de Israel” serve como ponto de partida para uma
nova percepção do judaísmo. É inequívoco o despertar para uma con-
versa que tem novamente como patrono o pai Abraão.
Em setembro de 2006 ocorreu em Schwerin um congresso das
duas Igrejas Evangélicas de Mecklenburg e Vorpommern. O lema
era: “e Abraão riu”. Durante os preparativos, houve uma acalorada
discussão sobre a escolha precisamente desse lema, em que os críti-
cos diziam: a situação das pessoas em nosso Estado realmente é apro-
priada para proclamar alegria? E de resto Abraão (segundo Gn 17,17)
não ri apenas porque a promessa de Deus de algum modo parece
risível a ele, um homem de cem anos? Esse riso não tem sobretudo
o tom de ceticismo? A equipe de preparação acrescentou então ao
98 lema uma espécie de subtítulo: “A vida no vento contrário”. Mas se
manteve o riso de Abraão contra as reservas e objeções. E por que
não? A confiança diante de situações difíceis é uma coisa séria, sem
Christfried Böttrich
5
BIBLIOGRAFIA (SELEÇÃO)
ABRAÃO
no cristianismo
Berlin, 1995, 20-222 (= 2.1. Abraham).
FOWL, Stephan. Who Can Read Abraham’s Story? Allegory and Inter-
pretive Power in Galatians, JSNT 55, 1994, 77-95.
GÄDE, Gerhard. Bevor Abraham wurde, bin ich (Joh 8,58). Überlegun-
gen zur Biblischen Theologie im Zeitkontext des Verstummens
Gottes, ZKTh 126, 2004, 297-325.
GÖRG, Manfred. In Abrahams Schoss. Christsein ohne Neues Testa-
ment, Düsseldorf, 1993.
GRAßER, Erich. Der ruhmlose Abraham (Röm 4,2). Nachdenkliches
zu Gesetz und Sünde bei Paulus, in: Paulus, Apostel Jesu Christi.
Festschrift G. Klein, org. M. Trowitzsch, Tübingen, 1998, 3-22.
HEITHER, Theresia, REEMTS, Christiane. Biblische Gestalten bei den
Kirchenvätern. Abraham, Münster, 2005.
HENNIG, John. Zur Stellung Abrahams in der Liturgie, ALW 9, 1966,
349-366.
KÄSEMANN, Ernst. Der Glaube Abrahams in Röm 4, in: ID., Paulini-
sche Perspektiven, Tübingen, 1969, 140-177.
KANNEMANN, Horst. Kinder Abrahams. Die Bedeutung des rhei-
nischen Synodalbeschlusses für das Verhältnis von Christen und
Muslimen, in: “… um seines Namens willen”. Christen und Juden
vor dem Einen Gott Israels — 25 Jahre Synodalbeschluss der Evan-
gelischen Kirche im Rheinland “Zur Erneuerung des Verhältnisses
von Christen und Juden”, Neukirchen-Vluyn, 2005, 134-150.
KUSCHEL, Karl- Josef. Streit um Abraham. Was Juden, Christen und
Muslime trennt — und was sie eint, Düsseldorf, 2002.
NICKELSBURG, George W. E. Abraham the Convert: A Jewish Tra-
dition and Its Use by the Apostle Paul, in: Biblical Figures outside
the Bible, org. M. E. STONE, T. A. BERGREN, Harrisburg 1998,
151-175.
PETERSON, Erik. Der Gottesfteund. Beiträge zur Geschichte eines re-
ligiösen Terminus, ZKG 42, 1923, 161-202.
PICHLER, Josef. Abraham, in: Alttestamentliche Gestalten im Neuen Testa-
ment, org. M. Öhler, Darmstadt, 1999, 54-74.
ROLOFF, Jürgen. Abraham im Neuen Testament. Beobachtungen zu
einem Aspekt Biblischer Theologie, in: Exegetische Verantwortung in
der Kirche. Aufsätze, org. M. KARRER, Göttingen, 1990, 231-254.
100 SIKER, Jeffrey S. Abraham in Graeco-Roman Paganism, JSJ 18, 1987,
188-209.
Christfried Böttrich
ABRAÃO
no islamismo
1
INTRODUÇÃO:
COMO O ISLAMISMO NARRA SOBRE ABRAÃO
ABRAÃO
no islamismo
ciou, como Abraão, Moisés e igualmente Jesus e Maomé, que não
trazem nada de novo, mas a confirmação da mesma mensagem (Sura
5,44-49). A parte pessoal do profeta tende a zero, pois ele é apenas um
ser humano e sua tarefa, comparável a um porta-voz, não é nada mais
do que a “transmissão” (Sura 18,110; 3,20).
A unidade da revelação é garantida pela concepção de um “escri-
to original no céu” junto a Deus (umm al-kitab, Sura 43,4), do qual,
como quintessência da vontade de Deus e de sua correta orientação,
porções, por assim dizer, foram “enviadas para baixo” (ou: descidas)
aos profetas, como diz o termo para o processo da revelação (tan-
zil, nuzul). As situações históricas especiais desempenham um papel
aqui, na medida em que elas determinam diferentemente o ensejo e
os destinatários. Mas a reação notavelmente uniforme dos homens
abordados na maioria dos casos e a peculiar retrorreferência à uni-
dade de conteúdo da revelação se fazem sentir até na organização
formal das histórias proféticas no Alcorão, que podem aparecer em
círculos quase esquemáticos (por exemplo, Sura 7,59-137). Então,
segundo a visão islâmica, não há apenas um parentesco, por assim
dizer, histórico-genético entre as chamadas religiões abraâmicas, mas
também se deve pressupor a identidade essencial de seus conteúdos
centrais! O que a Torá de Moisés é para os “filhos de Israel” e o que
continha o Saltério de David (Zabur), o Evangelho (sempre no sin-
gular, Indschil) o traz por meio de Jesus para os cristãos; e o Alcorão
árabe (Sura 12,2; 43,3) — revelado a Maomé — anuncia a mesma
velha mensagem em linguagem árabe para a nação dos árabes.
A compreensão da unidade original das “religiões abraâmicas”
tem por consequência o fato de o profeta Maomé já ser exortado por
Deus no Alcorão a, no caso de uma dúvida sobre a revelação, indagar
àqueles “que leem a Escritura antes de ti” (Sura 10,94), ou seja, aos
judeus e cristãos. Indiquemos apenas de modo marginal que esse fato
notável naturalmente também lança uma luz sobre os conhecimentos
prévios dos destinatários: o anúncio corânico ocorre em constante re-
trorreferência às revelações anteriores e pressupõe, nas frequentes for-
mulações “Menciona no Livro … (Maria, Abraão, Moisés etc.)” (Sura
19,16.41.51) ou “Notaste a história de …?” (Sura 20,9; 51,24; 79,15),
um substancial saber prévio dos conteúdos subsequentes.
104 O fundamental reconhecimento das revelações anteriores deve,
portanto, ser levado em conta em todos os trabalhos hermenêuticos
sobre o Alcorão; ele encontra sucinta expressão teológica na afirma-
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no islamismo
cação de Deus ao homem já está presente na criação; o homem foi
criado “na melhor forma” (Sura 95,4) e, como governador de Deus
na terra (khalifa, Sura 2,30), provido de uma posição que ele não pode
perder. Podem ocorrer fraquezas e extravios e há, de fato, inúmeras
“quedas em pecado”, como já mostra a falta de Adão (Sura 2,36-38),
mas não o pecado original que tivesse acarretado um enredamento
fundamental na culpa e, com isso, tornado necessária “uma história
da salvação”. Deus sempre se volta misericordiosamente para os pe-
nitentes, essa correta orientação poupa uma “redenção”.
Por isso, é coerente que as missões proféticas sejam, na visão
islâmica, retornos da dedicação de Deus, que de novo chamam o
homem para o “caminho reto” e devem, assim, reparar os danos cau-
sados. Trata-se, de certo modo, de medidas individuais, que, sem
dúvida, têm suas consequências históricas, mas que, no total, não se
deixam integrar numa história da revelação global, voltada para um
propósito. Por causa das faltas humanas, há uma série de histórias,
que sempre devem ser remontadas a uma só ordem de tempos prime-
vos. Por isso, a história não é pensada em categoria como “promes-
sa e cumprimento”, mas é atualizada como anunciação em histórias
exemplares de revelações anteriores e missões proféticas. Exempla
em vez de historia — assim se explica o conspícuo desinteresse do Al-
corão pelos contextos históricos, para não falar das localizações, por
exemplo, das narrativas proféticas na história da revelação. Isso não
contradiz o fato de o próprio Maomé como “selo dos profetas” cum-
prir uma função profética (Sura 33,40), nem o fato de sua vinda, com
base na Sura 61,6, ser considerada cumprimento de um anúncio de
Jesus (que está tradicionalmente localizado no evangelho de João:
Jo 14,26; 15,26-27). Pois ambas as coisas não são mais, nem diferen-
tes, do que a “religião” (din) original posta na criação; pelo contrário:
esta é restaurada pelo modelo perfeito e infalível de Maomé.
ABRAÃO
no islamismo
sobre Abraão — ele é citado pelo nome 69 vezes (contra 300 na Bí-
blia) em 220 versos — não desenvolvem uma imagem sistemática de
Abraão, mas querigmática, portanto correspondente às situações de
anunciação nas quais se encontrava o próprio Maomé e nas quais ele
devia se afirmar como profeta enviado por Deus. Nisto é palpável a
viva dinâmica do debate oral, que está documentado numa abundância
de instantâneos fixados por escrito de situações conversacionais con-
cretas. Eles mostram — ainda que naturalmente, via de regra, esteja
preservada apenas uma metade do discurso, enquanto a outra metade
deva ser, se necessário, reconstruída — o próprio Maomé no processo
do debate. Ele reage a ataques, acolhe argumentos, ajusta a direção do
ataque discursivo e, além disso, traz para o campo de batalha os prota-
gonistas proféticos como modelos e precursores dele mesmo. Há uma
dependência mútua, uma relação de influência entre profeta e desti-
natário, entre Maomé e seu público ouvinte, o que pode ser provado
no trabalho exegético minucioso e pode ser percebido, por alto, no
desenvolvimento das histórias proféticas corânicas.
Está claro que, sob essas circunstâncias, a biografia do profeta ga-
nha importância especial para a interpretação dos textos. Quem tem
intenção de compreender o Alcorão deve ter ao seu lado a Sira, nome
dado à biografia do profeta. A quem se dirigia o anúncio e em que
situação? Quem eram os primeiros ouvintes, quais eram a circunstân-
cias de cada revelação? Essas questões não são insignificantes se leva-
mos em conta que Maomé, sem dúvida, tratou os politeístas de Meca
de modo diferente de como tratou os judeus de Medina ou os primei-
ros fiéis da comunidade mulçumana em rápido crescimento.
Não podemos aqui recontar a biografia de Maomé. Mas a pre-
sente exposição tenta incluir considerações biográfico-políticas so-
bretudo com vistas à gênese provável ou possível dos textos. Portan-
to, ela não fornece, como se tem tentado até aqui, uma sinopse de
todos os textos de Abraão do Alcorão, para assim narrar algo como
uma história islâmica fechada de Abraão. (Recomendamos a quem
busca isso começar pela seção 3, em que são recontados os episódios
mais importantes da narrativa sobre Abraão pós-Alcorão das “Histó-
rias dos Profetas”.) Escolhemos, antes, a variante mais trabalhosa —
e, por isso, raramente e também apenas rudimentarmente empreen-
108 dida — de nos orientarmos pelo desenvolvimento histórico provável
dos textos. Quanto aos paralelos, selecionamos, via de regra, a versão
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no islamismo
fia do Profeta, a Sira an-nabawiya de Ibn Ishaq (morto em 768) na re-
censão de Ibn Hischam (morto em 833), que é acessível em edições
populares. Ela é a principal fonte para a vida de Maomé.
Nas seis coletâneas canônicas sunitas das Tradições sobre o Pro-
feta (coletâneas de Hadith; al-kutub as-sitta) a recepção do Alcorão islâ-
mica está, por assim dizer, documentada em todas suas ramificações.
Há um rico material sobre todos os âmbitos da vida religiosa, inter-
pretado e legitimado por asserções e ações de Maomé. Tematicamente
divididos em “livros”, os ditos e as cenas em geral curtas da vida do
profeta — que para sua autenticação são introduzidos pelos nomes de
quem os transmite — constituem a forma básica da Sunna. As com-
pilações, consideradas obrigatórias ao lado do Alcorão para os sunitas,
derivam essencialmente do século IX; formas iniciais podem ser data-
das no final do século VIII, portanto sempre ainda cerca de 150 anos
após a morte do Profeta. Apenas partes delas foram traduzidas para o
inglês e apenas algumas seleções foram traduzidas para o alemão.
Fontes extracorânicas também foram acolhidas em grande quan-
tidade na historiografia islâmica, que, por exemplo, nos “Anais” do
já citado Tabari (em 38 volumes, também publicados e comentados
em inglês), pela primeira vez localizam geográfica e temporalmente
a história de Abraão.
As “Histórias dos profetas” (Qisas al-anbiya) populares e até hoje
bastante apreciadas, que remontam ao “contador de histórias” do
islamismo primitivo e transmitem instrução na forma de histórias
exemplares, trazem num contexto mais ou menos sistemático os epi-
sódios corânicos dispersos juntamente com tradições extracorânicas,
na maioria judaicas e cristãs. As figuras dos profetas, como modelos
morais e modelos do próprio Maomé, se tornam temas de pieda-
de popular e se aproximam dos ouvintes de modo divertido e com
alegria narrativa. Talvez a mais conhecida coletânea desse tipo, com
certeza a mais difundida, sejam as Ara’is al-madschalis (“As noivas das
reuniões” ou “Sermões edificantes, como noivas adornadas para as
núpcias”) do persa Ahmad b. Muhammad an-Naisaburi de Nischa-
pur, chamado ath-Tha’labi (morto em 1035).
Cumpre ainda fazer algumas observações formais. Os nomes e
conceitos árabes são empregados como se costuma usá-los em alemão
110 ou são reproduzidos numa escrita bastante simplificada. A tradução
do Alcorão segue — com pequenas exceções que levam em conta
nuanças especiais do texto, mas não são marcadas separadamente — a
Friedmann Eissler
2
ABRAÃO NO ALCORÃO
Isso não é assim por acaso. Não importa o que concebamos por
“folhas”, trata-se de coisas escritas. Portanto, a prioridade da palavra
dada, do escrito revelado é evidente. Então há notícias sobre o profeta,
e o decisivo é que ele pode apresentar uma revelação escrita. Isso é
documentado aqui no período de Meca inicial. O profeta individual
recua para trás da mensagem que, é verdade, deve ser sempre trans-
mitida de novo, mas nunca se modifica.
O conteúdo da mensagem é deduzido das Suras anteriores. O 111
tema predominante de Maomé no período de Meca foi chamar os
homens para a conversão ao Deus único, verdadeiro. Afastar-se dos
ABRAÃO
no islamismo
deuses falsos, voltar-se para o Deus único e, com isso, ao mesmo
tempo, despertar da indiferença egoísta e da injustiça social: esse
deve ter sido o conteúdo de sua pregação arrebatadora, que foi, antes
de tudo, uma pregação sobre o julgamento. Esse também deve ter
sido, como pensam os exegetas posteriores, o conteúdo das “folhas”,
que além de Abraão também foram dadas a Moisés. Nelas também
devia estar contida sabedoria prática, como diz Qurtubi:
Um homem sábio deve ter três horas: uma hora em que fala com seu
Senhor; uma hora em que presta contas a si mesmo e medita sobre a
criação de Deus; e uma hora que ele emprega para comer e beber.
ABRAÃO
no islamismo
o Senhor dos céus e da terra, os quais criou, e eu sou um dos teste-
munhadores disso. (57) Por Deus que certamente tenho um plano
contra vossos ídolos, logo que tiverdes partido…”. (58) E os redu-
ziu a fragmentos, menos um grande entre eles, para que pudessem
se voltar para ele. (59) Perguntaram, então: “Quem fez isto com os
nossos deuses? Ele deve ser um dos iníquos”. (60) Disseram: “Ouvi-
mos um jovem a mencioná-los (de modo depreciativo); é chamado
Abraão”. (61) Disseram: “Trazei-o à presença do povo, para que tes-
temunhem”. (62) Perguntaram: “Foste tu, ó Abraão, que fizeste isso
aos nossos deuses?” (63) Respondeu: “Não! Foi aquele grande entre
eles. Interrogai-os, pois, se é que podem falar”. (64) E confabula-
ram, dizendo entre si: “Em verdade, vós sois os injustos”. (65) Logo
voltaram às velhas ideias: “Tu bem sabes que eles não falam”. (66)
Ele disse: “Porventura adorareis, em vez de Deus, quem não pode
beneficiar-vos ou prejudicar-vos em nada? (67) Que vergonha para
vós e para o que adorais, em vez de Deus! Não compreendeis?”.
ABRAÃO
no islamismo
lumidade para Abraão!”. (70) Intentaram conspirar contra ele, mas
Nós os fizemos os maiores perdedores.
(99) Ele (Abraão) disse: “Vou para o meu Senhor; Ele me guiará.
(100) Ó meu Senhor, agracia-me com um filho que figure entre os
virtuosos!”. (101) E lhe anunciamos o nascimento de um menino
dócil. (102) E quando este chegou à idade em que podia correr com
ele, seu pai lhe disse: “Ó filho meu, vejo em sonho que te oferecia
em sacrifício; que opinas?”. Respondeu-lhe: “Ó meu pai, faze o que 117
te foi ordenado! Encontrar-me-ás, se Deus quiser, entre os perseve-
ABRAÃO
no islamismo
rantes”. (103) E quando ambos haviam se submetido (aslamā) e ele
o havia deitado sobre o lado da testa, (104) então Nós o chamamos:
“Ó Abraão, (105) já realizaste a visão!”. Em verdade, assim recom-
pensamos os benfeitores. (106) Certamente que esta foi a prova clara.
(107) E o resgatamos com outro grandioso animal de sacrifício. (108)
E fizemos sua história passar para a posteridade. (109) “Que a paz es-
teja com Abraão!” (110) Assim recompensamos os benfeitores. (111)
Porque é um dos Nossos servos fiéis. (112) E ainda lhe anunciamos
Isaac como um profeta entre os virtuosos. (113) E o abençoamos, a
ele e a Isaac. Entre os seus descendentes há benfeitores, e outros que
são verdadeiros iníquos para consigo mesmos.
ABRAÃO
no islamismo
tema, é uma peça de aprendizado da obediência confiante. E se havia
provas na vida de Abraão, elas há muito parecem superadas pela con-
fiança inabalável em Deus. Seu brilho superior ofusca o drama que se
oculta por baixo. Mas não só o pai é soberano e já purificado. O filho,
por assim dizer, com direitos iguais, é incluído nessa categoria. E isso
é a outra coisa que logo chama a atenção. O filho aparece como uma
pessoa religiosamente madura; desde o início, é decisão sua oferecer-
se como vítima, como a tradição rabínica já o havia sublinhado. Bem
ponderado e humilde, ele se submete à vontade de Deus: “Ó meu pai,
faze o que te foi ordenado” (v. 102). Sua pia serenidade também não
é perturbada nem posta em dúvida pela monstruosidade da exigência
de Deus; ao contrário, ambos, pai e filho, “haviam se submetido” (v.
103). A palavra árabe (aslamā) aponta para o que mais tarde foi in-
terpretado pelo islamismo: o pai, como o filho, seguiram a orientação
correta — essa é contraparte teológica do v. 99 inicial —, submeteram-se
à vontade de Deus e, assim, se tornaram “muçulmanos”.
Abraão deita o filho com a testa sobre o chão — não preso a um
altar, mas sobre o chão como o animal sacrifical na grande festa do
sacrifício —, realizando assim a visão do sonho. O atamento do filho
começa aqui a se tornar protótipo do id al-adha, a festa do sacrifício
islâmica, que é celebrada no décimo dia do mês Dhu ’I-Hiddscha
no final dos ritos de peregrinação em Meca e nos arredores. Isso se
torna especialmente nítido na ligação com a tradição posterior, por
exemplo, no historiador Wadih al-Ya’qubi no século IX.
Isso também retira toda relevância do “Darhöhung” (“ofertar
para o alto”), como Buber e Rosenzweig traduzem a expressão para
o holocausto bíblico (’ola), que no relato bíblico é um importante
leitmotiv. Pela queima, o holocausto transporta o animal totalmente
para a esfera divina e, no texto hebraico de Gênesis 22, põe no cen-
tro a relação entre Abraão e Deus no tema da entrega do filho. Aqui
está tudo em jogo, todo o lado material passa para segundo plano
na “oferta” global, perfeita, irreversível “ao alto” para Deus, mesmo
daquilo de concretamente carnal que tinha sido graciosamente con-
cedido. Nada mais resta. Mas então tudo é dado.
O Alcorão foca muito mais no ato de obediência, na efetuação,
na realização do que foi ordenado na revelação onírica. Abraão “reali-
120 zou”, e essa ação correta é recompensada. Deus intervém e impede o
sacrifício do filho, ao resgatá-lo com um “grande (grandioso) animal
de sacrifício”. O Alcorão não o diz, mas devia se tratar de um carneiro
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no islamismo
evocou associações com os ritos de peregrinação, que são constituti-
vamente relacionados a Abraão e Ismael (Sura 2,124-128; 3,95-97; a
esse respeito, cf. também 2.8.2.). Ademais, isso foi apoiado por uma
ligação corânica de palavras-chave, que partindo da Sura 21,85 (reve-
lada mais tarde) permitiu ver no “perseverante” do v. 102 ninguém
menos do que Ismael. Se aí Ismael foi designado como alguém que
pode suportar muito, como um homem paciente, então o emprego
da mesma palavra aqui fará referência à mesma pessoa.
Diante disso o outro lado pôde dizer que Isaac foi chamado de
“virtuoso” no v. 112 e que isso corresponde ao pedido de Abraão no
v. 100, portanto outra associação de palavras-chave, constituindo nesse
caso até mesmo uma moldura para toda a história. Aqui foi especial-
mente importante o argumento de que o tom no v. 112 não está sobre
o nome Isaac, mas sobre o acusativo de estado “(nós o anunciamos)
como um profeta”. Isso significa que aqui não é de modo algum anuncia-
do o nascimento de Isaac, mas sim que a este é prometido o profetis-
mo como recompensa por sua obediência! Isso poderia ser comparado
à Sura 19,53, em que Aarão é prometido ou dado a Moisés como pro-
feta — o que não pode ser um anúncio de nascimento, já que Aarão
era o mais velho dos dois. De acordo com essa interpretação, Isaac é
apreciado e honrado por sua paciência e sua perseverança na prova.
Seja como for, não se pode dizer claramente de que filho se
trata. Nos primeiros trezentos anos da história islâmica, a maioria
dos eruditos, em concordância com a Bíblia, foi da opinião de que o
“sacrificado” se refere a Isaac (assim, por exemplo, Tabari, morto em
923). Mas há muito a identificação com Ismael se tornou tão natural
que o mero questionamento a respeito provoca estranheza.
Não se pode ignorar que uma delimitação polêmica em relação
aos judeus desempenha um papel considerável nesse tópico. Os ju-
deus mentem — uma frase estereotipada da literatura de comentá-
rios. E isso fala em favor de Ismael como “sacrificado”. A preferência
por Ismael está historicamente ligada à transformação por que passou
o material bíblico e que se manifesta especialmente nas narrativas so-
bre Abraão. As tradições de fundo judaico e cristão, as assim chama-
das Isra’iliyyat, foram cada vez mais rejeitadas no decorrer do tempo e
expulsas da memória coletiva, em que especialmente os muitos pri-
122 meiros convertidos as haviam inscrito; as tradições árabe-islâmicas,
centradas em Meca, ganharam peso cada vez maior.
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no islamismo
nessa exclusividade apenas na Sura 2 (principalmente v. 124-129) no
início do período de Meca, não aparecendo antes nem jamais depois.
Ismael se encontra, portanto, no contexto de uma confrontação histó-
rica dramática de modo especial para a islamização da tradição bíblica;
alguns até mesmo viram aqui — evidentemente da perspectiva “oci-
dental” — um tipo de sacrifício de Isaac: Maomé, em sua reinterpre-
tação da história bíblico-judaica, “sacrifica” Isaac por causa de Ismael,
que ele, em seus textos, por assim dizer, busca da expulsão e, com
isso, delineia o islamismo como legítima restauração da fé original em
Deus desconsiderando judeus e cristãos.
A partir disso, a construção genealógica da linha Abraão-Ismael-
árabes foi obrigatória do ponto de vista islâmico. Mas ela ainda não foi
coisa da primeira geração. Aqui, à pretensão judaico-cristã à descen-
dência de Abraão opôs-se o argumento estritamente não genealógico
de que tal pretensão não existe por causa da descendência, mas sim por
causa da fé, de quem emula seu modelo (ver Sura 3,68; cf. Jo 8,39). No
entanto, isso poderia atestar justamente o peso do desenvolvimento
interior de Maomé e da esboçada instrumentalização do primeiro filho
de Abraão, pois chama a atenção o fato de Ismael originalmente não
se encontrar em vínculo algum com uma tribo árabe, nem mesmo na
forma, por exemplo, de nomes de profeta do árabe antigo. Ismael — um
nome de origem não árabe e incomum na época pré-islamismo — é,
como ouvimos, citado juntamente com figuras bíblicas. Isso faz pen-
sar. Se Ismael foi visto como progenitor dos árabes pelos parentes de
Maomé e pelo próprio Profeta, ele, com certeza, deveria ter recebido
uma descrição totalmente diferente, mais eminente, já nas primeiras
Suras. Mas até hoje não se apresentou nem um único registro pré-
islâmico de emprego árabe do nome. De resto, só dois “Ibrahim” se
tornaram conhecidos — ambos eram cristãos.
(74) Quando Abraão disse a Azar, seu pai: “Tomas os ídolos por
deuses? Eis que te vejo a ti e a teu povo em evidente erro”. (75) E
assim Nós mostramos a Abraão o reino dos céus e da terra — para
que ele se contasse entre os persuadidos. (76) Quando a noite o en-
volveu, viu uma estrela. Ele disse: “Eis aqui meu Senhor!”. Porém,
quando esta desapareceu, disse: “Não adoro os que desaparecem”.
(77) Quando viu despontar a lua, disse: “Eis aqui meu Senhor!”. Po-
rém, quando esta desapareceu, disse: “Se meu Senhor não me guiar,
contar-me-ei entre os extraviados”. (78) E quando viu despontar o
sol, exclamou: “Eis aqui meu Senhor! Este é maior!”. Porém, quan-
do este se pôs, disse: “Ó povo meu, não faço parte da vossa idolatria!
(79) Eu volto minha face a Quem criou os céus e a terra, como
adepto da fé verdadeira e não me conto entre os idólatras”.
ABRAÃO
no islamismo
profeta, para a partir daí introduzir no conflito argumentos novos
com uma pretensão mais fortemente racional. Quem não seguiu a
palavra deve agora ser conquistado por motivos racionais.
A seção contém três passos. Em primeiro lugar, há a disputa, de-
pois a iniciativa de Deus (“E assim Nós mostramos”) e, em terceiro,
o caminho de Abraão até o conhecimento sobre Deus. Segundo essa
inserção, o próprio Deus prepara o conhecimento “natural” sobre
Deus, de modo que Abraão mais segue as instruções de Deus do
que seu próprio impulso. Num interessante cruzamento, o conhe-
cimento com base na criação e na direção divina é, portanto, inter-
relacionado. Agora Abraão, novamente em três passos, é conduzido
ao objetivo que, por fim, por convicção própria, o torna um “adepto
da fé verdadeira” (hanif).
Do curso dos astros ele deduz a verdade da fé no Deus único; a
busca vai de uma estrela, passa pela lua e chega ao sol. Um dado real-
mente emocionante aqui é o sobe e desce não só dos astros, mas tam-
bém do caminho da fé de Abraão. Ele inicialmente reconhece, a respei-
to da estrela, e depois dos astros sempre mais claros, impressionantes
e com brilho mais forte: “Eis aqui meu Senhor!”. No entanto, a per-
cepção da inconstância e da efemeridade desses pretensos “Senhores”
o incomoda, a ele que busca a Deus; então Abraão, depois da primeira
decepção, é tomado por uma incerteza, que resulta na renúncia à cren-
ça nos astros mantida por seu próprio povo. Abraão não era incólume
à dúvida, o que mais tarde é novamente mostrado na pergunta que
Deus lhe dirige (Sura 2,260): “Acaso ainda não crês?”, ao que o profeta
responde: “Sim, mas (eu pergunto) para tranquilizar meu coração”.
Abraão encontra essa tranquilidade na Sura 6, quando, ao ob-
servar a “natureza” das coisas, reconhece que por trás de todos os
fenômenos mundanos oculta-se a atividade criadora do Deus único.
Nada que é criado, nem mesmo o sol, pode agir por si só, manter-
se e, por isso, reivindicar poder. Não faz sentido, sendo até mesmo
“contra a natureza”, prestar honras às coisas criadas, honras que ca-
bem exclusivamente ao criador, sem cuja vontade nada acontece.
Por isso, Abraão resolve voltar sua face totalmente a quem criou
os céus e a terra. Esse é um estado de coisas essencial. Pois esta é a
única consequência possível, e ao mesmo tempo necessária, que o
126 homem pode tirar tanto do fato de ser Deus o criador quanto de seu
domínio sobre cada momento: que ele se volte para Ele e apenas para
Ele e lhe preste todas as honras. Contemplar Deus e nada mais, esse é
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no islamismo
Que me dará a morte e então me ressuscitará.
E Que, espero, perdoará as minhas faltas, no Dia do Juízo.
O corte causado pela Hégira (622 d.C.) foi em muitos aspectos tão
sério para a primeira comunidade mulçumana que o traslado de
Meca para Yathrib — chamada mais tarde Medina, “a cidade” (do
profeta) — se tornou o ano zero da era islâmica. Com efeito, o ponto
de virada decisivo na biografia de Maomé marca, em retrospecto, a
virada das eras dessa religião mundial incipiente. No início isso não
foi previsível, pois a situação de Maomé era tudo menos promissora.
O que geralmente é chamado de expulsão foi, sim, o processo ab-
solutamente doloroso em que um pregador insultado, perseguido
se desligou de todos os laços que lhe eram familiares; no fundo, foi
o rompimento trágico com a obra de toda sua vida até então. O fato
de Maomé ter encontrado em Yathrib/Medina outras circunstâncias,
essencialmente mais favoráveis para sua causa, foi possibilitado pelo
desenvolvimento de uma religião politicamente bem-sucedida e que
se apoiava não mais na origem tribal, mas na identidade religiosa.
O arauto escarnecido do Juízo iminente no ambiente do politeísmo
de Meca tornou-se a autoridade religiosa e também, cada vez mais,
política de uma comunidade em rápido crescimento na confrontação
com o judaísmo predominante em Medina. O novo tempo tornou
possíveis e necessárias novas ênfases na pregação, mas a mensagem
continua, no cerne, a mesma. O discurso sobre o Juízo com suas
imagens apocalípticas entra em segundo plano no horizonte de no-
vas exigências políticas e sociais. O arranjo da vida privada e pública
da crescente umma (a comunidade dos muçulmanos) exige cada vez
mais regulamentos legais, o que se expressa no caráter e nos conteú-
dos das revelações de Medina. A “encarnação” do islamismo num
“Estado” acarretou ataques cada vez mais claramente formulados
contra aqueles que eram adversários reais ou percebidos como tais.
A figura de Abraão exerce um papel fundamental nesse proces-
so da identificação e da imagem político-religiosas. Se os primeiros
aproximadamente dezoito meses em Medina passaram totalmente
sem revelações, elas recomeçam com a Sura 2 no ano 624 com uma 129
abundância de instruções legais, teológicas e cultuais para a jovem co-
munidade, entre outras coisas com algumas perícopes sobre Abraão,
ABRAÃO
no islamismo
que constituem o núcleo da Sura mais longa do Alcorão.
Uma observação prévia lança uma luz sobre a situação alterada
depois do ano 622: em Meca, Abraão representava o conflito com o
povo e o desligamento do que era velho, simbolizado na Hégira, na
separação física de Meca. Em Medina, o patriarca, inversamente, re-
presenta mais e mais o renovado movimento de voltar-se para Meca,
a resoluta rememoração de uma encenação islâmica da religião cen-
trada no santuário da Caaba, em face de — e desconsiderando — ju-
deus e cristãos.
(124) E (lembrai) quando Abraão foi testado por seu Senhor com
certos mandamentos, que ele observou. Ele (Deus) disse: “Farei de
ti um modelo (imam) para os homens”. Ele (Abraão) perguntou: “E
também o serão os meus descendentes?”. Ele disse: “Minha pro-
messa não se estende aos injustos”.
ABRAÃO
no islamismo
(125) Nós estabelecemos a Casa como parada e local de segurança
para os homens e (dissemos): “Adotai a Estância de Abraão por ora-
tório!”. E estipulamos a Abraão e a Ismael, dizendo-lhes: “Purificai
Minha Casa para os que a contornam e que (lá) se recolhem para
adoração e se curvam (perante Deus) e se prostram”. (126) E quando
Abraão disse: “Ó Senhor meu, faze que esta cidade seja de paz, e
agracia com frutos os seus habitantes que creem em Deus e no Dia
do Juízo Final!”. Ele (Deus) disse: “Darei aos incrédulos um des-
frutar transitório e depois os condenarei ao fogo (do inferno). Que
funesto destino!”. (127) E quando Abraão e Ismael levantaram os ali-
cerces da Casa (exclamaram): “Ó Senhor nosso, aceita-a de nós. Pois
Tu és Oniouvinte, Onisciente. (128) Ó Senhor nosso, permite que
sejamos submissos (muslimina) a Ti e que surja, da nossa descendên-
cia, uma comunidade submissa a Ti (umma muslima). Ensina-nos os
nossos ritos e absolve-nos, pois Tu és o Remissório, o Misericordio-
so. (129) Ó Senhor nosso, faze surgir, dentre eles, um Mensageiro,
que lhes transmita as Tuas leis e lhes ensine o Livro, e a sabedoria, e
os purifique. Pois Tu és o Todo-Poderoso, o Sapientíssimo”.
Abraão esteve ali, e com ele seu filho Ismael, que aqui pela primeira
vez — e depois não mais no Alcorão — é citado diretamente em co-
nexão com a Caaba. Ambos têm em comum uma importante função
no que tange à inicialização cultual, que é circunscrita por purifica-
ção e fundação. A sequência — primeiro purificar, depois construir?
— não deve nos causar problemas, especialmente porque o “levantar
os alicerces” também pode ser entendido no sentido de que o lugar
é “elevado” pela purificação religioso-espiritual, por assim dizer, é
alçado a um novo nível. Por causa dessa passagem, Abraão e, com
ele, Ismael são considerados os construtores da Caaba. Em todo caso:
se a purificação é ressaltada (ver Sura 22,26), então se pressupõe que
o lugar já era um santuário antes de Abraão, de sorte que não sur-
preendem as tradições islâmicas que remetem a fundação da Caaba
a Adão. Talvez inicialmente Maomé fosse da opinião de que Abraão
construiu a Caaba, mas depois tenha reconhecido que devia se tratar
de sua purificação no sentido do restabelecimento do verdadeiro cul-
to. Isso corresponde mais ao seu papel de libertar o lugar de Abraão
da idolatria dos pagãos e reconduzi-lo ao monoteísmo.
São citados os rituais mais importantes do Hajj, sendo descritos
mais detalhadamente na Sura posterior, 22,26-33:
ABRAÃO
no islamismo
longínquo. (32) Tal será. Contudo, quem enaltecer os ritos de
Deus, saiba que isso exprime a piedade no coração. (33) Neles (os
animais) tendes benefícios, até um tempo prefixado; então, seu
lugar de destino será a antiga Casa.
ABRAÃO
no islamismo
aos textos fulcrais da autocompreensão islâmica, que se manifesta
especialmente na interpretação essencialmente ritual, menos espiri-
tual, dessa narrativa.
O Hajj é concluído com outra breve estada em Meca e o retorno
para Mina, onde os peregrinos, segundo a maneira prescrita, em três
dias seguidos, devem executar o apedrejamento das três “estelas do
diabo” ao pôr do sol.
A visita ao túmulo do profeta em Medina, logo depois das ceri-
mônias em Meca, é, às vezes, desaprovada por ortodoxos rigorosos,
mas a maioria dos peregrinos não quer perder a chance de extrair
força nova e inspiração espiritual da proximidade do profeta.
ABRAÃO
no islamismo
colherá o que mereceu e vós colhereis o que merecerdes, e não
sereis responsabilizados pelo que eles costumavam fazer.
ABRAÃO
no islamismo
porque é Compassivo e Misericordioso para a humanidade. (144)
Vimos-te voltar o rosto para o céu; portanto, queremos fornecer-te
uma direção de oração que te satisfaça. Volta teu rosto na direção
dos lugares de oração protegidos (tradução de Paret: dos lugares de
culto sagrados) (al-masdschid al-haram)! E vós, onde quer que vos en-
contreis, voltai vosso rosto nessa direção. Aqueles que receberam a
Escritura bem sabem que isto é a verdade de seu Senhor; e Deus não
está desatento a quanto fazem. (145) Ainda que apresentes quais-
quer sinais para aqueles que receberam a Escritura, jamais adotarão
tua direção de oração; nem adotarás a deles; nem tampouco eles
seguirão a direção de oração de cada um mutuamente. Se te ren-
desses aos seus desejos, apesar do conhecimento que tens recebi-
do, contar-te-ias realmente entre os iníquos. (146) Aqueles a quem
concedemos a Escritura, conhecem-no [= o Livro, o Alcorão]
como conhecem a seus próprios filhos. Mas uma parte deles oculta
a verdade, embora (a) saibam. (147) (Esta é a) Verdade emanada de
teu Senhor. Não sejas um daqueles que dela duvidam! (148) Cada
qual tem um objetivo para o qual se dirige. Então disputais pelas
boas coisas! Onde quer que vos acheis, Deus vos fará comparecer,
a todos, perante Ele, porque Deus é Onipotente. (149) Para onde
quer que vás, orienta teu rosto para os lugares de oração protegidos,
porque isto é a verdade do teu Senhor e Deus não está desaten-
to a quanto fazeis. (150) Para onde quer que vás, orienta teu rosto
para os lugares de oração protegidos. Onde quer que estejais, voltai
vossos rostos na direção deles, para que ninguém, salvo os iníquos,
tenha argumento contra vós. — Não temais! Temei a Mim, a fim de
que Eu complete meu favor a vós, para que sejais guiados.
ABRAÃO
no islamismo
no centro do Haram asch-scharif de Jerusalém — o lugar da subida
de Maomé ao céu. Pois aqui, no umbigo do mundo, se completará
a história do mundo e terá início o evento escatológico. Ao mesmo
tempo, no entanto, Jerusalém, como o “terceiro dos distritos sagra-
dos”, é posta depois dos dois santuários em Meca e Medina, pois a
salvação agora não vem mais de Sião ou “dos judeus” (Jo 4,22). O
atamento do filho como evento em Meca torna-se um evento cons-
titutivo, a lenda de fundação da autocompreensão islâmica, que vê na
execução dos ritos que presentificam esse evento o cumprimento da
existência e da adoração divina numa só coisa.
No tempo de Meca, Maomé e seus fiéis seguidores puderam
juntar as duas direções de oração, ou seja, orar ao mesmo tempo
voltados para a Caaba e, por assim dizer, na prolongação, para Jeru-
salém. Isso em Medina já não era possível geograficamente, pois as
pessoas deviam se voltar para o norte ou para o sul. Assim, no signo
de Abraão foi realizado o afastamento teológico de Abraão e, com
isso, ao mesmo tempo o Islã foi apresentado independentemente do
judaísmo e do cristianismo como a religião da revelação original.
O complexo do haram atual mostra quanto a decisão teológica
também foi influenciada pela topografia de Meca: se as pessoas, par-
tindo das duas entradas “Portão de Abraão” e “Portão do Profeta”,
situados diretamente em frente um do outro, se dirigem umas às
outras, elas se encontram na Caaba. O pensado eixo pelos dois por-
tões se encontra perpendicularmente à direção para Jerusalém. Essa
é a única disposição arquitetônica possível que deixa Jerusalém total-
mente fora de consideração — uma asserção teológica esculpida em
pedra (H. Josua). Seu significado também pode ser notado no fato
de que os muçulmanos, já na época pré-islâmica, eram chamados ahl
al-qibla, “as pessoas da direção de oração (para a Caaba)”. O próprio
Maomé deve ter marcado a qibla com um tronco de palmeira ou uma
pedra; depois de sua morte, seu cajado, com o mesmo propósito, foi
enfiado no muro da mesquita.
Assim, a Caaba se encontra no centro do movimento infinito
de círculos concêntricos daqueles que, cinco vezes ao dia em todo o
mundo, se inclinam em direção a Meca e voltam seu olhar em oração
para esse centro.
142 2.9. ARGUMENTUM PAULINUM:
ABRAÃO COMO ADEPTO DA FÉ VERDADEIRA (HANIF)
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no islamismo
tum paulinum, que Maomé retoma a seu modo. No entanto, devemos
ver que a analogia não tem longo alcance. Os documentos do assim
chamado Antigo Testamento são submetidos a uma releitura cristã,
mas Paulo, como também os outros autores neotestamentários es-
tavam certos de que as próprias Escrituras não caem, numa crítica
fundamental, sob o julgamento geral de falsidade ou corrupção, mas
que, ao contrário, é preciso se ater a elas e lutar por uma interpretação.
Por isso, nas extraordinárias ênfases neotestamentárias da recepção de
Abraão se incluem, além da reivindicação do patriarca no sentido de
protótipo e modelo da fé cristã, a consciência e a reflexão da ligação
histórica e teológica com Israel (cf. Rm 9–11). O “Antigo Testamen-
to” foi e seguiu sendo a Sagrada Escritura da Igreja em crescimento,
enquanto a Bíblia, a despeito de todo reconhecimento histórico-re-
velacional, se tornou teologicamente supérflua para o Alcorão, justa-
mente pela “islamização” de Abraão (ver supra 2.8.).
Supôs-se que Maomé no período tardio de Meca identificou
sua fé cada vez mais intensamente com a fé do hanif Abraão e, por
isso, lhe conferiu o termo hanif, hanifiyy, antes de usar em Medina o
conceito de “Islã” para isso, um conceito que tivera inicialmente um
significado essencialmente diferente.
Na Sura 4,125 eles se fundem (cf. também supra 2.7.):
ABRAÃO
no islamismo
provavelmente devia saber — conforme o Hadith — que “nenhuma
alma deve carregar o favor de outra” (Sura 53,38; cf. 17,15; 35,18; 39,7;
6,164; 2,48), como se encontra no escrito de revelação de Abraão, nas
“folhas de Abraão”. (A tradição estava convicta de que as Suras 53,38-
56 se encontravam escritas nas “folhas de Abraão e Moisés”.)
A discussão é ainda mais drástica na Sura 9, que foi a penúltima
a ser revelada. Vejamos a Sura 9,113-114:
3
ABRAÃO NA TRADIÇÃO PÓS-ALCORÃO
ABRAÃO
no islamismo
O pai Azar construía imagens de ídolos; ele era, por assim dizer, um
comerciante de objetos sagrados. O jovem Abraão devia entrar no
negócio e vender ídolos, mas ficou pouco entusiasmado com essa
perspectiva. Por isso, ele costumava pegá-los e dizer: “Quem compra
o que não prejudica nem beneficia?”. Isso naturalmente não atraía
muitos compradores, de modo que a mercadoria ficava encalhada.
Ele ridiculariza as figuras e as pessoas que se aferravam ao seu enga-
no. Ele discutia com as pessoas e chamava seu pai para sua própria
religião, como está relatado na Sura 6,80-83 e 19,42-48. O pai não
seguiu o chamado. Em seguida, Abraão tornou pública sua religião e
a pregou, tal como lemos na Sura 26,75-83.
Esses eventos não puderam permanecer ocultos ao poderoso
Nimrod, razão pela qual intimou Abraão. Ele o fez explicar que tipo
de Deus é esse que deve ser adorado acima de todos. “Ele é meu
Senhor, que dá a vida e a morte”, respondeu Abraão, a que o gover-
nante respondeu: “Eu dou a vida e a morte!”. A resposta de Abraão
foi simples (Sura 2,258): “Deus traz o sol do Oriente; então traze-o
do Ocidente!”. Em seguida o Alcorão diz que esse regente, que era
incrédulo, ficou estupefato.
Não poucos homens de seu povo seguiram Abraão e sua fé por causa
da salvação milagrosa. Entre eles estavam Lot, Haran, Nahor, Betuel
e alguns outros; também Sara se encontrava entre eles. Diz-se que
Abraão fez a Hégira para seu Senhor. Passando por Haran e Egito,
ele entrou na Terra Santa. Essa região é chamada Scham em árabe.
Abraão casou-se com Sara e a fez passar por sua irmã no Egito, para
salvar a própria vida.
ABRAÃO
no islamismo
de todas as pessoas”.
chão, do qual jorrou uma fonte. Então eles foram salvos e desfruta-
ram água fresca, que todos os hóspedes de Deus, como os peregrinos
são chamados, desfrutam e avaliam como terapêutica.
Gabriel anunciou a construção da casa de Deus pelo filho e seu
pai. Assim os dois, Hagar e Ismael, permaneceram ali, e a tribo de
Dschurhum da Arábia antiga se estabeleceu. Eles foram os primeiros
habitantes de Meca, de cujo seio Ismael escolheu uma esposa, depois
da morte de Hagar. Assim Ismael se tornou árabe e pai dos árabes.
3.6. A CAABA
Abraão pediu permissão a Sara para visitar seu filho. Quando ele che-
gou, Hagar já havia morrido. A mulher de Ismael o recebeu e lhe
lavou a cabeça e os cabelos. Para isso, ela trouxe a pedra Maqam (que
até hoje marca o “lugar de Abraão”) e a colocou uma vez à direita dele,
uma vez à esquerda, para que ele apoiasse o pé. Nisto, as pegadas do
patriarca ficaram gravadas profunda e permanentemente na pedra.
A Caaba era, inicialmente, um tesouro celeste, uma das pedras
preciosas do Paraíso. Setenta mil anjos entravam e saíam diariamen-
te. Quando Adão foi lançado fora do Paraíso, ele tocou justamente
a terra onde hoje se encontra a Caaba. Justamente ali também foi
baixada a Pedra Negra, cintilante como uma pérola branca (ela só se
tornou preta mais tarde). Adão já devia realizar a peregrinação aqui,
e, a seu pedido, Deus lhe prometeu que tomaria como amigo um
profeta de sua descendência e lhe incumbiria tudo o que dizia res-
peito aos lugares de adoração e a seus ritos.
Depois desses primórdios na época de Adão, a Caaba foi salva
do dilúvio ao ser elevada ao quarto céu. Desde então o lugar esteve
vazio, até os dias de Abraão. Deus lhe inspirou: “Constrói uma casa
para mim na terra!”. E ele lhe enviou uma nuvem no tamanho da
Caaba, que foi na frente dele, até conduzi-lo ao lugar da casa. Assim
Abraão começou a construir a casa, e Ismael lhe passava as pedras
para isso (cf. Sura 2,125-129; ver supra 2.8.2.1.). Embora Abraão fos-
se hebreu e Ismael árabe, eles podiam se fazer entender. Os dois
construíram a Caaba com pedras de cinco montes: o Sinai (lugar da
revelação a Moisés), o Monte das Oliveiras (Jerusalém), o Líbano e o 151
Dschudi; os fundamentos foram construídos com pedras do monte
ABRAÃO
no islamismo
Hira, o lugar da primeira revelação a Maomé. Com a Pedra Negra
como “sinal para os homens”, a construção foi concluída.
A pedido dos dois, Deus lhes mostrou os ritos enviando Ga-
briel, que os instruiu em todos os detalhes. Por causa da importância
dos ritos, citamos aqui o texto das Histórias dos profetas de Tha’labi:
ABRAÃO
no islamismo
filho diz: “Ó meu pai, joga-me na pedra, pois quando vês meu rosto
tens compaixão de mim e és tomado pela bondade de coração; então
isso te impede de executar a ordem de Deus”. Abraão faz como está
escrito na Sura 37,103: “Quando ambos haviam se submetido e ele o
tinha baixado sobre a testa”.
Mais uma vez Abraão posiciona a faca, dessa vez sobre a nuca,
mas ela escorrega e vira tão rápido como um raio, com a lâmina
para cima. Então o chamado de Deus irrompe no meio do horror:
“Abraão, já realizaste a visão!” (Sura 37,105). Deus diz a palavra re-
dentora: “Vê, aqui está teu animal para o abate, um resgate para teu
filho. Sacrifica-o no lugar dele”.
Então Abraão ergue o olhar, e ali está Gabriel com um carneiro,
de grandes olhos, branco e com chifres. O carneiro louva a Deus:
“Deus é grande!”, e Abraão e seu filho também dizem: “Deus é gran-
de!”. O verso na Sura é: “E o resgatamos com um grandioso animal
de sacrifício” (Sura 37,107).
Abraão solta seu filho, pega o carneiro, leva-o ao lugar do aba-
te em Mina e o sacrifica. Este é o início do islamismo. Mas a cabeça
do carneiro é dependurada com os chifres na calha da Caaba, onde
ela seca.
Depois se relata que Satã tenta várias vezes afastar os dois de sua
obediência a Deus. Assumindo a forma de um homem, ele aparece
primeiramente para a mãe do jovem e lhe explica que os dois não fo-
ram de modo algum juntar lenha como ela supõe. Quando percebe
que Deus ordenou algo inconcebível, ela, no entanto, não se deixa
persuadir: “Se isso lhe foi ordenado, ele fez bem em se curvar à or-
dem de seu Senhor e se submeter a Ele”.
Depois desse primeiro fracasso, Satã corre ao encontro do jo-
vem, alcança-o e também lhe comunica numa troca de palavras que
o pai não quer juntar lenha, mas sacrificá-lo. “Por quê?”, pergunta
Ismael. “Ele afirma que Deus lhe ordenou isso”. Então diz o jovem:
“Que ele, então, faça o que Deus ordenou. Eu ouço e obedeço à
ordem de Deus”. Por fim, Satã se acerca do pai: “Onde pretendes ir,
mestre?”. Ele diz: “Pretendo descer nesse desfiladeiro, para executar
uma tarefa”. Satã retruca: “Por Deus! Eu vi que Satã apareceu para ti
em sonho e lhe ordenou que sacrificasse teu filho”.
154 Então Abraão o reconhece e diz: “Afasta-te de mim, amaldiçoa-
do! Por Deus, vou cumprir a ordem de meu Senhor”. Então o diabo
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no islamismo
noturna juntamente com um hóspede. Às vezes ele andava duas mi-
lhas ou mais para encontrar um hóspede. Sua hospitalidade conti-
nuará até o Dia da Ressurreição.
Ele é aquele a quem foi dada orientação correta antes de atingir
a maturidade.
Ele é o capitão (imam) dos que confessam o Deus único. Ele
recebeu uma imbatível capacidade para argumentar em favor do mo-
noteísmo. Por isso, ele chamava os homens para a verdade com argu-
mentos (racionais) desde sua juventude até a velhice (Sura 6,83).
Ele foi o primeiro que Deus chamou hanif e muslim (Sura 3,67).
Abraão foi o primeiro a ser circuncidado. Alguns transmitem a
idade de 120 anos quando Abraão se circuncidou a si próprio com o
machado.
Foi o primeiro cujos cabelos embranqueceram.
Foi o primeiro que realizou os ritos de peregrino, pois foi ouvi-
do quando pediu: “Mostra-nos nossos ritos” (Sura 2,128).
Ele foi o primeiro a oferecer o sacrifício animal junto à Caaba ao
fim da festa da peregrinação.
Ele é aquele que no dia da ressurreição está vestido com uma
túnica branca, e um púlpito (minbar) é colocado para ele à direita do
trono do Misericordioso.
Ele foi o primeiro que aparou o bigode, cortou as unhas, raspou
os pelos pubianos, arrancou os pelos das axilas, usou um palito de
dentes, penteou os cabelos, enxaguou a boca, passou água pelo nariz
e lavou com água as partes privadas do corpo depois de evacuar.
Ele foi o primeiro a emigrar por causa de Deus.
Deus tornou seu maqam (lugar) a direção de oração (qibla) para
os homens (Sura 2,125).
Deus o instituiu como imã da humanidade (Sura 2,124; 60,4).
Por isso Deus ordenou a Maomé, o melhor de todos os profetas,
e à sua comunidade (umma), a melhor de todas as comunidades, se-
guir a religião de Abraão (Sura 16,123; 2,135).
Deus o chamou de brando, penitente e sensível (Sura 11,75).
Brando é aquele que controla sua ira. Sensível é aquele que suspira
fundo, quando se fala de pecados. Penitente é aquele que busca refú-
gio com o coração em seu Senhor.
156
4
Friedmann Eissler
UMA PERSPECTIVA:
ECUMENISMO ABRAÂMICO?
ABRAÃO
no islamismo
A realidade das diferentes imagens de Abraão, que são expressão
de compreensões fundamentais da fé, pode carregar os fardos de um
“ecumenismo abraâmico” que reúna e concentre em si todos esses
aspectos?
A ideia de um ecumenismo abraâmico é relativamente nova. Ela
está estreitamente relacionada à vida e à obra do orientalista e grande
místico francês Louis Massignon. Louis Massignon nasceu em 1883
em Nogent-sur-Marne na proximidade de Paris, seu pai era artista
e médico. Em maio de 1908, o talentoso jovem vivenciou no Tigre,
no atual Iraque, uma virada em sua vida. Na viagem de volta de um
empreendimento arqueológico, ele foi detido pela polícia turca, pois
carregava fotografias bastante comprometedoras. Ele sabia que podia
ser condenado à morte. Preso novamente depois de uma tentativa de
fuga, ele pegou malária. Tudo parecia perdido. Então ele vivenciou
o que mais tarde seria chamado de a “visita do estranho”, uma in-
tensa experiência espiritual-mística, que lhe inspirou nova confiança,
lhe deu novamente coragem e o fez retornar à fé (católico-romana).
Ele foi salvo pela intervenção de amigos árabes, que o acolheram em
casa e temiam por sua vida por causa da doença. Eles oraram por ele;
ele ficou são. A experiência dessa dedicação dos amigos muçulmanos
por ele, da hospitalidade, que ele vivenciou com eles, e a alegria da
nova dádiva da vida — tudo isso se aglutinou na vida de Massignon
formando um chão de raízes para a ideia de um ecumenismo abraâ-
mico. A mediação que o islamismo exerceu para o francês em relação à
sua descoberta da identidade pessoal como cristão católico tornou-se,
mais tarde, uma constante básica do pensamento de Massignon, mais
precisamente nas duas direções.
No início, portanto, uma vivência totalmente pessoal, individual.
Massignon escreveu mais tarde uma obra pioneira sobre o misticis-
mo islâmico. Isso não causa admiração, pois ele procurou e também
pessoalmente trilhou o caminho místico da unidade, do amor. Aí não
se trata primordialmente de doutrina, mas do amor cristão mediador,
vicário; trata-se da oração intercessora pelos muçulmanos. Massignon
falava, nesse contexto, da vicariedade que os cristãos poderiam e de-
veriam assumir, para amar os muçulmanos “levando-os para casa”.
Para ele, “Para casa” significa de volta aos braços de Deus.
158 Louis Massignon se tornou um célebre e apaixonado islamita,
sendo, ao mesmo tempo, um homem profundamente pio com boas
ligações com a hierarquia católica. Sua relação de amizade com mon-
Friedmann Eissler
Ela olha com “sincero respeito esses modos de agir e viver, esses
preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos
daqueles que ela própria [a Igreja] segue e propõe, todavia refletem
não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens”.
ABRAÃO
no islamismo
Olaf Schumann o expressa concisamente de modo tal que seria
impossível encontrar formulação mais apropriada: “É difícil preten-
der buscar pontos em comum no nome Abraão que unam o judaís-
mo, o cristianismo e o islamismo caso não queiramos nos contentar
com o símbolo de um mero monoteísmo, atrás do qual o olhar do
crente que busca não encontra senão vazio”. — Ele continua dizendo
que a pesquisa histórico-tradicional mostrou que “sob referência a
Abraão, cada uma das três religiões surge com a pretensão de ser a
única que guia à fé ‘verdadeira’. Diante da pergunta sobre o conteúdo
específico do que é entendido por ‘fé’, as respostas foram, entretanto,
fundamentalmente diferentes. Em que sentido Abraão é então o ‘pai
da fé’?” (Schumann, 54).
A referenciação das três grandes tradições religiosas a Abraão é,
evidentemente, tão diversificada que a afirmação de um ponto comum
fundamental é ou apenas um invólucro sem conteúdo ou, em nome
de uma figura-símbolo comum, necessita de uma nova construção
própria, para além do que está vigente em cada uma das comunida-
des de fé. Fica nítido que o conceito de um ecumenismo abraâmico
deve sempre, de um modo ou de outro, proceder com reducionismo
e eurocentrismo, isto é, ele será essencialmente marcado por uma
interpretação bíblica crítico-histórica moderna e de orientação ainda
existencialista. Pois aqui, de uma maneira ou de outra, um Abraão
despido de todos os adornos aparentemente casuais ou incômodos
é posto num lugar de verdade original, que, todavia, não é histórico
nem também verificável como tal nas histórias de fé das comunidades
religiosas vitais. Ao contrário, ele é abstrato na medida em que aquela
“verdade original” é não só diferente de suas diversas manifestações,
mas também é separada delas de tal modo que a diferença e a oposi-
ção concretas das tradições são compreendidas como meras formas de
expressão de uma única e mesma transcendência divina. A concorrência
factual das pretensões de verdade inerentes às religiões concretamente
vividas por cristãos, judeus e muçulmanos é, mediante uma afirma-
da convergência de linhas enunciativas tão diferentes, não só relativizada,
como também simplesmente negada, porque deve harmonizar o que
não pode oferecer oposição. O objetivo é, portanto, uma harmonização
no nível supraordenado, para assim supostamente fomentar o diálogo
160 no nível das diferenças, que é visto como externo e temporário. Abraão
pode representar aquilo que, de antemão, é considerado aceitável nos
planos religioso, moral, ético e humano. Abraão é instrumentalizado.
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no islamismo
aberto e tolerante age, muito ao contrário, como uma espécie de “fria
uniformização”, como se expressou Gebhard Löhr.
Tudo isso corrobora a tese de que a tolerância inter-religiosa teria
justamente de se mostrar no fato de não submeter a religião do outro à
cama de Procusto de pontos em comum que só podem ser alcançados
com redução e abstração, mas de aceitá-la e respeitá-la como modo
de crença e de vida essencial. E isso no intuito de buscar e formar
caminhos da exitosa convivência social que se constroem justamente
sobre essa aceitação e esse respeito! Isso exclui escancarar velhos fos-
sos e cimentar muros existentes. Não se pode tratar de autoafirmação;
pede-se, antes, uma audição aberta, pede-se que o outro tenha per-
missão de falar, para perceber a autêntica compreensão que ele tem de
si próprio, que, em grande medida, não é apenas um reflexo de meu
modo de crença apenas numa forma diferente ou inusual. Não se trata
de menos, mas de mais respeito. O respeito deve, com vistas à posi-
cionalidade da interpretação religiosa da vida, ir além do que a ideia de
um ecumenismo abraâmico até agora conseguiu exprimir.
Com Abraão é possível exercitar isso, pois Abraão, é verdade, di-
ficilmente se presta ao ecumenismo inter-religioso, mas ele inaugura
um espaço de hospitalidade e abrigo, que é aberto de diferentes lados.
Ele fornece espaço para o encontro humano em estima recíproca, para
a conversa atenciosa, para a exploração amistosa no terreno próprio e
no alheio, para o impulso engajado da percepção da responsabilidade
conjunta na superação das tarefas que estão diante de nós.
“O Rabi Abbahu disse: a tenda de nosso pai Abraão tinha acessos
abertos de todos os lados” (midrash Bereschit Rabba 48,9).
5
BIBLIOGRAFIA (SELEÇÃO)
5.1. FONTES
BUBENHEIM, A. F., ELYAS, N. Der edle Qur’ān und die Übersetzung sei-
ner Bedeutungen in die deutsche Sprache, Madina/Saudi Arabien, 2002.
162 Ibn Ishaq. Das Leben des Propheten, aus dem Arabischen übertragen und bear-
beitet von Gemot Rotter, Kandem, 1999. (Contém a tradução de apro-
ximadamente um quarto do texto árabe transmitido.)
Friedmann Eissler
ABRAÃO
no islamismo
GRIFFTH, Sidney. Sharing the Faith of Abraham: the ‘Credo’ of Louis
Massignon, ICMR 8, 1997, 193-210.
ISLAMISCHES ZENTRUM HAMBURG. Geschichten der Propheten aus
dem Qur’an, Übersetzung und Überarbeitung Halima Krausen, Hamburg
1403/1982.
JOSUA, Hanna Nouri. Ibrahim, Khalil Allah. Eine Anfrage an die Abra-
hamische Ökumene, Proefschrift ter verkrijging van de graad van
Doctor in de Godgeleerdheid aan de Evangelische Theologische Fa-
culteit te Heverlee (Leuven), België, 2005 (apresentação, análise e
apreciação da “teologia de Abraão” islâmica corânica e pós-côranica).
KLAPPERT, Bertold. Abraham eint und unterscheidet. Begründungen und
Perspektiven eines nötigen “Trialogs” zwischen Juden, Christen
und Muslimen, Rhein Reden. Texte aus der Melanchthon-Akade-
mie Köln 1, 1996, 21-64.
KRUPP, Michael. Den Sohn opfern? Die Isaak-Überlieferung bei Juden,
Christen und Muslimen, Gütersloh, 1995.
KUNDERT, Lukas. Die Opferung/Bindung Isaaks, Bd. I: Gen 22,1-19 im
Alten Testament, im Frühjudentum und im Neuen Testament, Bd. II:
Gen 22 in frühen rabbinischen Texten, WMANT 78/79, Neukirchen-
Vluyn, 1998.
KUSCHEL, Karl-Josef. Streit um Abraham. Was Juden, Christen und
Muslime trennt — und was sie eint, 2. Aufl. der ungek. Taschen-
buchausgabe, 1996, München, 1997.
———. Juden — Christen — Muslime. Herkunft und Zukunft, Düssel-
dorf, 2007.
LINGS, Martin. Muhammad. Sein beben nach den frühesten Quellen,
aus dem Englischen übersetzt von Shukriya Uli Full, Kandern,
2000 (ed. inglesa original 1983).
LÖHR, Gebhard. Das indische Gleichnis vom Elephanten und den
Blinden und seine verschiedenen Deutungen. Zum Problem in-
terreligiöser Toleranz und des interreligiösen Dialogs, ZfMR 79,
1995, 290-304.
MASSIGNON, Louis. Les trois prières d’Abraham, Institut international
de recherches sur Louis Massignon, Paris, 1997.
MOLTMANN, Jürgen. Kein Monotheismus gleicht dem anderen. Des-
truktion eines untauglichen Begriffs, Evangelische Theologie 62,
2002, 112-122.
164 NAGEL, Tilman. Islam. Die Heilsbotschaft des Korans und ihre Konse-
quenzen, Westhofen, 2001.
Friedmann Eissler