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Crítica do Direito à Moradia e das

Políticas Habitacionais
R afael Lessa V. de Sá Menezes
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Crítica do Direito à Moradia e das
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Políticas Habitacionais
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Para Ligia
“Horrorizais-vos por querermos suprimir a proprieda-
de privada. Mas na vossa sociedade existente, a pro-
priedade privada está suprimida para nove décimos dos
seus membros; ela existe precisamente pelo facto de não
existir para nove décimos”.
(Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido
Comunista)
Prefácio

Rafael Lessa V. de Sá Menezes é um defensor público, atuante e inserido


na defesa das populações mais vulneráveis da cidade de São Paulo, espe-
cialmente, a população em situação de rua. Para além de sua expressiva
qualificação técnica, tem sido um lutador intransigente e incansável para
que haja respeito à dignidade humana de um segmento que sofre cotidianas
violações em seus direitos.
Neste livro, Rafael traz análises e reflexões de forma oportuna e atual de
como o sistema sociometabólico do capital determina os limites da luta pelo
direito à moradia, desvenda os mecanismos jurídicos para a domesticação dos
conflitos de classe, traz as contradições do Programa Minha Casa Minha Vida
e, ainda, aponta experiências que contribuem para enfrentar de forma mais
efetiva o problema da habitação da população em situação de rua.
É um trabalho denso de reflexões e críticas, consistentes e comprometidas
com a efetivação dos direitos dos mais excluídos, apontando, ao longo dos ca-
pítulos, novos conhecimentos que estimulam avaliar nossas práticas, analisar o
atual momento de rebaixamento da democracia e de perdas e retrocessos dos
direitos sociais e repensar estratégias de ações futuras.
Sua análise vai se encaminhando a partir dos conflitos no interior das
classes sociais e do contexto das hegemonias presentes, com base nas situa-
ções concretas, possibilitando um olhar à frente das ilusões jurídicas, identi-
ficando assim, as limitações de um judiciário comprometido com a agenda e
os interesses do capital.
A propriedade privada da terra urbana, como um dos pilares da acumulação
do capital na cidade, tem sido invariavelmente protegida pelo judiciário em de-
trimento da função social da propriedade e do direito à moradia. Dessa forma,
na minha trajetória de atuação na área de habitação, em centenas de ações de
reintegrações de posse na cidade de São Paulo, tem sido observado que o direito
à propriedade prevalece sobre o direito à moradia, na quase totalidade das de-
cisões judiciais. Muitas vezes, para a defesa da propriedade privada há decisões
que sobrepõem até os limites da lei.

IX
Como não existe política fundiária e de inclusão para contribuir na inserção A experiência trazida pelo programa “Casa Primeiro” (Housing First)
das classes populares nas cidades, e que deem respostas concretas às demandas, – que coloca a casa como o primeiro passo articulado a outras políticas
os problemas urbanos vão se acumulando cada vez mais nas cidades brasileiras. sociais da assistência, para saída da situação de rua – é uma contribuição
Outro aspecto interessante destacado por Rafael diz respeito à mobilização importante, para dar luz sobre o tema e avançar as propostas de moradia
social engendrada por movimentos populares de moradia, os quais demanda- para este segmento social. Pensar a casa como primeiro passo para a saída
ram e fizeram com que o direito à moradia fosse reconhecido na Constituição da rua provoca também a reflexão sobre os motivos da baixa efetividade
Federal como um direito social. Em consequência, houve a aprovação do Esta- dos programas assistenciais a ela destinados. Essa perspectiva de atendi-
tuto da Cidade, a criação do Ministério das Cidades, a realização das Conferên- mento habitacional como primeiro passo, devo dizer a partir de minha
cias Nacionais das Cidades, a instituição do Fundo Nacional de Habitação de experiência, que é uma política pública acertada, porque são frequentes os
Interesse Social, entre outras legislações urbanas, bem como, a institucionali- relatos de homens e mulheres que vivem nessa situação a respeito das difi-
zações de espaços públicos para a defesa do direito à cidade, que de certa forma culdades de acessar a moradia no mercado imobiliário. Apesar de acesso a
também foram capturadas pela agenda do capital. Apesar desses avanços no ar- um trabalho regular, o rendimento mensal tem sido insuficiente para alugar
cabouço legal, na estrutura institucional e nos mecanismos de participação não um quarto em cortiço precário, cujo valor de locação mensal se aproxima
resultou na melhoria esperada das condições de vida urbana dos trabalhadores do valor de um salário-mínimo na região central da cidade ou de moradia
mais pobres. Essa situação explicita a prevalência dos mecanismos do mercado na periferia, onde o valor da locação é relativamente menor, mas elevada a
imobiliário e de como são inaptas à aplicação das legislações urbanísticas, não despesa com transporte.
por acaso, como parte estrutural da reprodução do capital. Essa situação de precarização e de rebaixamento salarial faz com que, a cada
O autor mostra que a disputa sobre a efetivação do direito à cidade é um dia, mais pessoas fiquem em situação de rua, mais dependentes de políticas as-
embate entre as classes, em que, muitas vezes, os trabalhadores que desejam sistenciais, pouco efetivas, deixando-as em um círculo sem saída. O valor pago
ver suas necessidades básicas efetivadas são capturados pela linguagem e pela força de trabalho ao trabalhador é insuficiente para sua subsistência.
gramática do direito. Na reflexão sobre proposta de moradia para população em situação de
Com o abandono do Governo Federal ao Plano Nacional de Habitação de rua, Rafael destaca que não pode ser feito na lógica da propriedade privada
Interesse Social (PlanHab), para dar lugar ao Programa Minha Casa Minha – moradia como mercadoria – mas é necessário avançar no direito à moradia
Vida, emergiu a instrumentalização do sistema sociometabólico do capital no como um serviço público com fornecimento universal da habitação, indepen-
Estado, fortalecendo a concepção da moradia e a cidade como mercadorias. dente de contrapartida financeira, com programas perenes de atendimento
Assim, este Programa produziu expressivo número de unidades habitacionais, para esse segmento social.
implementado na lógica da eficiência capitalista, reproduziu a segregação espa- Todo o percurso da análise critica mostrou que o sistema jurídico é mais efi-
cial nas cidades e favoreceu a especulação imobiliária, deixando uma profunda caz na proteção do setor que utiliza da propriedade imobiliária para acumulação
cicatriz na agenda do direito à cidade. A luta por uma cidade mais igualitária e rentabilização, do que do direito à moradia. Enquanto a política habitacional
com inserção social pelo acesso à moradia, pautada pela agenda da reforma estiver focada na produção de casas para o mercado e não para solucionar o
urbana foi derrotada. problema da exclusão habitacional, as necessidades habitacionais dos trabalha-
Nesse momento, de crescente aumento do número de pessoas em situação dores de baixa renda e os problemas urbanos continuarão crescendo.
de rua em todo Brasil, é de extrema pertinência a reflexão trazida pelo Rafael Este livro traz o desafio para as organizações populares, considerando que
sobre a questão habitacional. O contexto de sociedade meritocrática e da mer- o custo da moradia para os trabalhadores de baixíssima renda é uma barreira
cantilização da moradia e dos territórios nas cidades, esta população é estigma- intransponível. É essencial retomar o enfrentamento das contradições da rela-
tizada e não reconhecida como parte do déficit habitacional. ção capital e trabalho para a efetivação de política pública de habitação para

X XI
os mais pauperizados. E, também, se não houver tensionamento social não será
rompida a lógica jurídica reformista e subserviente da reprodução do capital.
Sumário
A leitura de cada capítulo do livro trouxe novos conhecimentos e aprendi-
zados, além de indignação pelas reflexões críticas que me fizeram compreender,
como educador popular, muitas lições do grande mestre Paulo Freire. Aqui, des-
Prefácio......................................................................................................... IX
taco a Pedagogia da Indignação – cartas pedagógicas e outros escritos (2000) ...
os militantes progressistas precisam, quixotescamente até, opor-se ao discurso domes- Introdução.................................................................................................... 1
ticador que diz que o povo quer cada vez mais menos política, menos conversa e mais
resultados; ... Lidar com a cidade, com a polis, não é uma questão apenas técnica, Capítulo 1. A Crítica do Direito e dos Direitos Humanos....................... 7
mas sobretudo política; ... A denúncia e o anúncio criticamente feito no processo da 1.1. A Ilusão Jurídica.................................................................................. 7
leitura do mundo dão origem ao sonho por que lutamos. 1.2. Alicerces da ordem sociometabólica do capital e
Vejo que as contribuições trazidas por este livro são instigantes e essenciais transformação social.................................................................................... 17
para todos que lutam pelo direito à cidade, direito à moradia, reforma urbana e 1.3. Análise do sistema de direito – sobre o direito à moradia................... 28
justiça social. Capítulo 2. A Característica Concomitância entre Enunciação e
Ineficácia do Direito à Moradia.................................................................. 37
2.1. O papel das garantias de direito à moradia.......................................... 37
Luiz Kohara 2.2. Direito à moradia como direito social................................................. 46
Doutor em arquitetura e urbanismo e pós-doutor em sociologia urbana. 2.3. O papel da lei e de seus conflitos de interesse na
Membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. produção habitacional................................................................................ 58
2.4. Por trás da ideologia: da ineficácia jurídica ao horizonte da
transformação radical................................................................................. 66

Capítulo 3. Políticas Públicas de Acesso à Casa Própria – O


Programa Minha Casa, Minha Vida.......................................................... 81
3.1. Preliminarmente: o pressuposto da propriedade privada e a
terra cativa no Brasil.................................................................................. 81
3.2. Do Projeto Moradia ao Programa Minha Casa, Minha
Vida: o sonho da casa própria como ideologia para o
desenvolvimento capitalista........................................................................ 95
3.3. Linhas Gerais do Programa Minha Casa, Minha Vida........................ 101
3.3.1. O papel lateral dos Municípios e da participação
popular no PMCMV............................................................................... 115
3.3.2. O subsídio e o crédito no PMCMV – papel do Estado e
dos fundos públicos................................................................................. 126
3.3.3. Experimentos de movimentos sociais no PMCMV....................... 155

XII XIII
3.4. Alienação fiduciária como instrumento jurídico de
controle fundiário....................................................................................... 158
Introdução
3.5 Algumas conclusões sobre a política habitacional da
“casa própria”............................................................................................. 162

Capítulo 4. Direito à Moradia para Além da Propriedade Privada?........ 167 Pessoas sem-teto e pessoas em situação de rua circulam pela cidade tentando
4.1. Crítica da noção jurídica de segurança da posse.................................. 167 vender sua força de trabalho e encontrar meios para sua subsistência. São al-
4.2. Renda da Terra e Acesso à Habitação Via Locação............................ 180 gumas das parcelas mais pauperizadas da população. Ao redor delas há muitos
4.3. Programas públicos de aluguel social e locação social – a imóveis vazios e empoeirados à espera de compradores ou inquilinos. Mas tam-
experiência recente da cidade de São Paulo............................................... 192 bém esperam valorização decorrente de melhoramentos no entorno – é o que
se costuma chamar especulação imobiliária. Pelos jornais, governos anunciam a
Capítulo 5. Pessoas em Situação de Rua e a Questão da Habitação....... 203 construção de milhares ou milhões de imóveis para combater o “déficit habita-
5.1. Sobre as pessoas em situação de rua ................................................... 203 cional”, mas ainda assim não chegam perto de resolver o problema da moradia.
5.2. Entre Habitação e Assistência Social.................................................. 210 O que separa aquelas pessoas em situação de rua dos imóveis vazios?
5.3. Acesso à Habitação pela População em Situação de Rua?................... 222 A habitação é uma necessidade humana básica e precisa ser dia-a-dia satis-
Conclusões................................................................................................... 229 feita para a reprodução da própria vida humana. Como alimentar-se e respirar,
habitar, com todas as suas funções, é condição para a continuidade da vida hu-
Bibliografia................................................................................................... 233 mana. Em nossas sociedades, organizadas para fazer funcionar o sociometabo-
lismo do capital, uma série de mediações separa cada ser humano do teto onde
possa satisfazer as suas necessidades habitacionais. Estas, como outras necessi-
dades humanas, são historicamente moldadas e dependem do grau de avanço
técnico da sociedade. Mas dependem também e sobretudo das relações sociais
estabelecidas em tais sociedades.
Neste livro, resultado de uma tese de doutorado que defendi na Faculdade
de Direito da USP, Largo de São Francisco, em 2016, pretende-se examinar as
principais mediações jurídicas e de políticas públicas que promovem ou impe-
dem o acesso à habitação.
O direito se ergue sobre a base econômica da sociedade, sendo específico a
cada organização econômico-social. No contexto atual, a base econômica da
sociedade se apoia na apropriação do tempo do trabalhador pelos capitalistas.
Isto é necessário para a produção. Mas também a apropriação do espaço em ge-
ral é necessária para a circulação, para manter os complexos e funcionais meca-
nismos de poupança, especulação, crédito e renda. A produção do espaço e da
habitação seguem lógicas próprias, dependentes dos processos de acumulação,
expansão e reprodução do capital. Todas estas relações determinam especifica-
mente o direito tal qual o conhecemos.

XIV 1
Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

O direito reflete, assim, as necessidades do próprio sociometabolismo do ca- Nesta linha, as principais questões a serem analisadas no presente livro
pital. Não se trata de uma forma neutra de resolução de conflitos, mas de um são: a) o modo pelo qual garantias jurídicas e políticas públicas asseguram o
conjunto de mecanismos que seleciona os conflitos que devem ser solucionados direito à moradia, em contraste com uma realidade em que as necessidades
e que impõe soluções que em seu conjunto devem ser, no limite, funcionais à habitacionais das populações de baixa renda apenas se efetivam na medida
base material e ao sociometabolismo do capital. Portanto, qualquer reivindica- em que se enquadrem na ordem sociometabólica do capital; b) como o de-
ção jurídica de movimentos sociais esbarrará em limites muito claros, limites senvolvimento e a expansão espacial do capitalismo influenciam a escassez
que basicamente são os que balizam a reprodução do sistema sociometabólico de imóveis para habitação e como a mercantilização (prevalência do valor
do capital como um todo. de troca) impede o acesso das pessoas ao valor de uso dos imóveis, mesmo
Estes limites levam direitos humanos a serem caracteristicamente inefetivos com todas as garantias de direito à moradia juridicamente consagradas; c)
– e este é o caso do direito à moradia. Direto ao ponto: a inefetividade de direi- como o direito à moradia e a regulação urbanística da cidade se subordinam
tos é inerente ao direito. Com isto fica claro que a legalização de movimentos aos imperativos do sociometabolismo do capital, em especial ao regime da
sociais é antes funcional do que disfuncional aos imperativos jurídicos: a lega- propriedade privada e da posse exclusiva; d) como a exclusão social está
lização impõe a linguagem jurídica, impõe o terreno e as armas jurídicas para intimamente ligada à espoliação das classes trabalhadoras e, na seara da
lidar com os conflitos. As demandas sociais se tornam direitos solenemente habitação, as especificidades no modo como ocorre esta espoliação; e) como
enunciados, podendo ocasionar a domesticação do conflito de classes. Esta é a as reivindicações jurídicas das lutas sociais que são absorvidas pelo direito
função primordial da legalização – e ela tem sido uma estratégia bem-sucedida e tendem a levar à mitigação, cooptação, acomodação ou cooperação dos
há um bom tempo. Por isso, a luta pela habitação deve aparecer apenas como movimentos sociais; f) se e como as contradições mais pulsantes da questão
luta pelo direito à moradia. da habitação, quando ativadas e formuladas como reivindicações jurídicas,
Mas contradições não são domesticáveis, elas existem e podem ser explo- podem ser propostas para uma renovada dinâmica social, para além do so-
sivas apesar de todos os mecanismos de “resolução de conflitos”. Por isso, as ciometabolismo do capital.
lutas sociais de transformação radical continuam possíveis. A formulação de Todos estes pontos perpassam os cinco capítulos nos quais o livro está or-
demandas sociais em forma de demanda jurídica representa à primeira vista ganizado: no primeiro, se trata do método de estudo crítico do direito e dos
uma armadilha, mas a continuidade da luta depois de se cair nesta armadilha é direitos humanos; no segundo capítulo, das garantias de direito à moradia; no
decisiva para o horizonte de transformação radical. As reivindicações jurídicas terceiro, das políticas públicas habitacionais focadas em aquisição da “casa pró-
podem divisar um horizonte para além do direito. Isto ocorre quando há nelas pria”, isto é, apoiadas na aquisição da propriedade via financiamento imobi-
elementos que perturbem o domínio da ideologia jurídica e que tendam a sola- liário e subsídio estatal, com foco especial no Programa Minha Casa, Minha
par os alicerces do sociometabolismo do capital. Vida; no quarto capítulo, se trata de acesso à habitação via aluguel público ou
A compreensão crítica do fenômeno jurídico passa pelo exame dos seus privado; no quinto e último capítulo, das políticas de habitação para pessoas em
próprios termos e dos fundamentos materiais destes. Passa também pelo modo situação de rua.
como demandas sociais acabam sendo “capturadas” pelo direito, traduzidas O primeiro capítulo é dividido em três partes: a parte 1 trata das reivindica-
para certos modos restritos de expressão. O estudo crítico do direito, além de ções jurídicas dos movimentos sociais, das ilusões que as lutas jurídicas criam e
buscar desvendar a essência por detrás das aparências, além de reinserir o obje- do possível elo entre a perspectiva de longo alcance da revolução social e a de
to na totalidade da sociedade que o produziu, deve também examinar o tipo de alcance mais restrito da luta jurídica; a parte 2 aponta os diversos alicerces do
reivindicação que pode cumprir o papel de desestabilizar as estruturas jurídicas sociometabolismo do capital e explicita como a questão da mudança social deve
de opressão e dominação. Desta maneira, explicita-se o objeto estudado e as ser entendida numa perspectiva ampla, para além da ênfase exclusiva na políti-
suas possíveis transformações. ca; a parte 3, por fim, demonstra o modo pelo qual o direito (normas, tribunais,

2 3
Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

políticas públicas, etc.) reflete a separação real entre o trabalhador e seus meios habitação via “locação social” ou “aluguel social”, com foco especial naqueles
de subsistência, especificamente a habitação. desenvolvidos na cidade de São Paulo desde o início do século XXI.
O segundo capítulo é dividido em quatro partes: a parte 1 descreve um Finalmente, o quinto capítulo desenvolve a tese central deste livro, a partir
conjunto de normas e instituições de direito à moradia, a nível nacional e inter- da análise de políticas públicas de habitação para pessoas em situação de rua.
nacional, bem como o papel real que estas conquistas têm jogado nos conflitos Examina-se, assim, as características das pessoas em situação de rua, as políti-
sociais; a parte 2 se apoia numa análise histórica sobre a cidade de São Paulo do cas de direito assistencial prevalecentes no atendimento delas e as abordagens
início do século XX, onde o incipiente capitalismo já explicitava que a “questão do tipo “casa primeiro” para lidar com as exclusões múltiplas destas pessoas. A
da habitação” deveria estar subordinada aos imperativos da acumulação capita- partir deste quadro, os programas do tipo “casa primeiro” serão apontados como
lista (no caso, dependente, periférica), sem qualquer problematização do valor um tipo de política habitacional que pode pavimentar um caminho para além
de troca imposto pelas “leis do mercado” e pelos interesses das classes domi- do sociometabolismo do capital.
nantes, explicitando, assim, o papel da lei ou do ordenamento jurídico nas lutas
sociais; a parte 3 tematiza as mudanças jurídicas do século XX, como o surgi-
mento dos direitos sociais e a guinada pós-positivista, explicitando as limitações
de princípios como o da função social da propriedade; por sim, na parte 4, se
discute se a ineficácia do direito à moradia é incontornável em qualquer sentido
e, em sendo, enfrenta o problema de quem seriam os sujeitos da transformação
social radical no contexto atual.
O terceiro e mais longo capítulo do trabalho faz uma detalhada análise da
principal política de habitação existente no Brasil, o Programa Minha Casa,
Minha Vida (PMCMV). O ponto de partida é uma análise do pressuposto da
propriedade privada, que sustenta a ideologia da “casa própria” e fundamenta
as especificidades das políticas públicas para suprimento de habitação para a
população de baixa renda, as parcelas mais pauperizadas da classe trabalhadora.
As políticas públicas são analisadas como instrumentos jurídicos de atuação
estatal, sujeitas, por isso, a todos os limites do direito capitalista explicitados nos
capítulos anteriores. Analisa-se, ademais, a centralização do PMCMV no go-
verno federal, o papel central do empresariado da construção civil e do mercado
imobiliário no desenho do programa, as pequenas e contestáveis conquistas dos
movimentos sociais, a alienação fiduciária como instrumento de apropriação e
controle fundiário e o papel do subsídio e do crédito na sustentação e funcio-
nalização do PMCMV.
O quarto capítulo tem três partes e o seu mote são os meios de aceso à habi-
tação que não sejam pela aquisição da propriedade privada: na primeira parte,
realiza-se uma crítica ao instituto da segurança da posse; na parte 2, estuda-
-se a natureza da renda fundiária urbana e a questão do acesso à habitação
via locação privada; na parte 3, são analisados programas públicos de acesso à

4 5
Capítulo 1.
A Crítica do Direito e dos Direitos Humanos

“A melhor vontade jurídica não impedirá que a luta de


classes subverta irremediavelmente o direito”.
(B. Edelman, A legalização da Classe Operária)

1.1. A Ilusão Jurídica


O direito tem exercido grande influência em movimentos sociais em geral e,
especificamente, em movimentos sociais que lutam por habitação. De fato, estes
movimentos, ao lutarem no contexto político e social em que estão imersos,
têm frequentemente buscado que suas demandas sejam asseguradas em normas
jurídicas. Nas lutas por habitação, busca-se que seja assegurado ou efetivado o
“direito à moradia”. Com isso, se espera tornar a necessidade social da habita-
ção uma obrigação com força vinculativa, obrigando Estado e particulares. Este
passa a ser um objetivo a ser alcançado – a vinculação jurídica para satisfazer
uma necessidade.
Assim, a inscrição da moradia em normas legais, constitucionais e até in-
ternacionais, bem como sua efetivação, tem sido um objetivo, uma bandeira de
luta dos movimentos de moradia. Mas deve-se colocar a questão em perspectiva
crítica: as conquistas jurídicas destes movimentos têm levado à satisfação das
necessidades habitacionais? O que se está a assegurar quando se consolidam em
normas jurídicas os avanços das lutas sociais?
Para enfrentar estas questões, tratemos, primeiramente, a questão do méto-
do. Tratemos sobre o caminho a seguir para a reflexão crítica. Segundo Michel
Miaille, um pensamento crítico não descreve simplesmente certo acontecimen-
to social, mas o reinsere na totalidade da sociedade que o produziu, tornando
o objeto estudado “prenhe de todas as determinações que o produziram e de
todas as transformações possíveis que podem afectá-lo”1. Ora, bem examinadas

1 M. MIAILLE, Introdução Crítica ao Direito, 2005, p. 23.

7
Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

as determinações do sistema jurídico, logo se percebe que elas decorrem, pri- Os direitos humanos passam a veicular cada vez mais os anseios das lutas
meiramente, da base material. Como dizia Karl Marx, a totalidade das relações sociais. Mas, na tradição do pensamento marxista, as diversas necessidades hu-
de produção “constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a manas não podem ser realizadas a não ser que seja superado o sistema socio-
qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem for- metabólico do capital e, portanto, os próprios direitos humanos. Era o próprio
mas sociais determinadas de consciência”2. Estas formas sociais de consciência, Marx que argumentava, ao tratar da “questão judaica”, que “somente a crítica
então, passam também a influenciar reciprocamente o direito. Isto informa a à emancipação política mesma poderia constituir a crítica definitiva à questão
investigação crítica do direito: a visão da totalidade social, o exame das deter- judaica e sua verdadeira dissolução na ‘questão geral da época’”4. Mutatis mutan-
minações dialéticas em questão e o desvendar da essência por trás das aparên- di, somente a crítica ao direito e aos direitos humanos pode constituir a crítica
cias na sociedade capitalista. definitiva às conquistas jurídicas.
Pois bem. Os movimentos sociais têm avançado em garantir direitos em Vejamos o argumento de Marx. A mera emancipação política apenas re-
diplomas nacionais e internacionais. Mas para onde esta garantia ampla de duz o ser humano “a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta
direitos tem levado a luta destes movimentos? Basicamente, o enquadramento independente”5. Ela não supera a alienação religiosa, não supera a religião,
jurídico – e também o enquadramento político, mas isto é outra história – tem apenas consagra a liberdade de religião6. Numa passagem crucial: “nenhum
por efeito restringir as lutas destes movimentos a limites previsíveis e controlá- dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem
veis juridicamente. Os movimentos devem se amoldar aos modos juridicamente como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao
consagrados de efetivação das necessidades sociais. Com isso, estes movimentos seu interesse privado e separado da comunidade”7. Assim, pode haver avanços
sociais podem ser controlados e aplacados (muitas vezes com recurso ao poder substanciais em pautas específicas (por exemplo, a emancipação política dos
punitivo, mas também por acomodação e cooptação jurídica). A alternativa a judeus), mas enquanto não se superar o sistema capitalista de produção, estes
este quadro seria que tais movimentos continuassem a lutar para além das ga- avanços não levarão à emancipação humana8. É dizer, uma análise crítica da
rantias jurídicas. Neste estágio, a “luta por direitos” pode começar a ativar con- questão da emancipação política leva, a partir da análise da totalidade da socie-
tradições sociais de longo alcance. As tensões com a ordem sociometabólica do dade que a produz, à constatação dos limites daquela emancipação. Da mesma
capital se acumulam e esta ordem tenta adaptar o conteúdo as reivindicações ao maneira, para decifrar o direito à moradia, é necessário examinar a totalidade
seu funcionamento, à forma jurídica. Isto é possível porque, como aponta Marx, da sociedade que produz este direito.

“As formas jurídicas em que essas transações econômicas aparecem


como atos de vontade dos participantes, como expressões de sua von-
tade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta à parte
4 K. MARX. Sobre a Questão Judaica, 2010, p. 36.
individual por meio do Estado não podem, como simples formas, deter-
5 Idem, p. 52.
minar esse conteúdo [das transações que se efetuam entre os agentes da
6 Idem, p. 53, onde se lê que “Consequentemente o homem não foi libertado da religião. Ele ganhou a
produção]. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo é justo contanto que
liberdade de religião. Ele não foi libertado da propriedade. Ele ganhou a liberdade de propriedade. Ele
corresponda ao modo de produção, que lhe seja adequado” 3. não foi libertado do egoísmo do comércio. Ele ganhou a liberdade de comércio”.
7 Idem, p. 50. Os “direitos humanos” tratados por Marx são aqueles que a doutrina dos direitos
humanos viria a chamar de direitos de “primeira geração”, os direitos civis e políticos (não se cogitava
das categorias de direitos econômicos, sociais e culturais, muito menos como englobadas pela ideia de
“direitos do homem”).
2 K. MARX, Contribuição à Crítica da Economia Política, 2008, p. 47.
8 Neste sentido, G. LUKÁCS, O jovem Marx. Sua evolução filosófica de 1840 a 1844, 2009, p. 167,
3 K. MARX, O Capital – Crítica da Economia Política. O Processo Global de Produção Capitalista, Livro observa que “Marx anuncia aqui [n’A Questão Judaica], com toda clareza, a compreensão de que a
III, Tomo I, 1986, p. 256. emancipação política (ou seja, a revolução burguesa) cria apenas uma democracia formal, que proclama

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

E isto foi feito já em grande medida por Engels em “A Questão da Habita- mente diferente, que abrangesse todo o quadro de referências e as ‘mi-
ção”, com base na mesma linha de argumentação: croestruturas’ que constituem a sociedade.”12

“A chamada falta de habitação, que hoje em dia desempenha na impren- Claramente, esta linha de argumentação coloca sempre como horizonte a
sa um papel tão grande, não consiste no facto de a classe operária em superação do sistema sociometabólico do capital e pouco ou nada acrescenta à
geral viver em casas más, apinhadas e insalubres... ela atingiu de uma questão sobre o que fazer enquanto este for o sistema sociometabólico realmen-
forma bastante parecida todas as classes oprimidas de todos os tempos. te existente. Que fazer quando as necessidades sociais são balizadas por este
Para pôr fim a esta falta de habitação, há apenas um meio: eliminar a sistema? Neste sentido, um desafio para a reflexão crítica é encontrar o elo, se
exploração e opressão da classe trabalhadora pela classe dominante.”9
algum, entre a perspectiva de longo alcance (a revolução social) e a de alcance
mais restrito (a luta por direitos ou a luta política).
Em outro trecho da mesma obra, Engels afirma que esta mesma linha de
A ilusão jurídica de que pode haver transformação radical por meio de solu-
raciocínio se aplica a qualquer outra questão social ligada aos trabalhadores:
ções engendradas pelo direito deve ser desde logo descartada. Deve-se atentar
“Enquanto o modo de produção capitalista existir, será disparate pre- para o papel que o direito pode ter num contexto de transformação radical –
tender resolver isoladamente a questão da habitação ou qualquer outra este papel pode ser apenas o de um direito evanescente, não de um direito que
questão social que diga respeito à sorte dos operários. A solução reside, se transmuta em novo direito. De fato, “o direito é uma mentira, uma ilusão. No
sim, na abolição do modo de produção capitalista, na apropriação pela entanto, é uma mentira tão poderosa que não pode ser negligenciada. É uma
classe operária de todos os meios de vida e de trabalho.”10 ilusão tão presente que não pode ser olvidada”13. Daí a necessidade de se refletir
sobre o papel do direito quando se pensa na transformação social radical. Isto
Nos dias de hoje, a linha de argumentação continua com o mesmo poten-
porque “o mundo jurídico não pode... ser verdadeiramente conhecido, isto é,
cial explicativo quando se trata de lutas sociais específicas. Ela foi adotada, por
compreendido, senão em relação a tudo o que permitiu a sua existência e no seu
exemplo, por István Mészáros no texto “A liberação das mulheres: a questão da
futuro possível”14. Para além do conhecimento da totalidade da sociedade que
igualdade substantiva”11, em que afirma que
produziu os direitos humanos, é necessário projetar as transformações possíveis
“Não se poderia encontrar nenhum ‘espaço especial’ para a emancipa- que podem afetar as necessidades dos trabalhadores. Nesta projeção se explici-
ção das mulheres no referencial dessa ordem socioeconômica. Por isso, tam os próprios limites do direito e o papel dos direitos humanos.
o ‘poder nas mãos das mulheres’ teria de significar poder nas mãos de Ora, é com base no estudo das reivindicações de movimentos sociais urba-
todos os seres humanos ou nada, exigindo o estabelecimento de uma nos que se deve buscar descobrir os caminhos e as implicações de um “direito
ordem de produção e reprodução sociometabólica alternativa radical- à moradia” (assim como de um “direito à cidade”) colocado como bandeira de
luta, e não o contrário. Como coloca D. Harvey tratando do “direito à cidade”
de Henri Lefebvre,
direitos e liberdades que não podem existir realmente na sociedade burguesa”. Este entendimento é “se, como aconteceu na última década, a ideia do direito à cidade passou
essencial para a tese desenvolvida neste trabalho, que se apoia na noção de que as garantias jurídicas
convivem com uma inerente inefetividade na sociedade burguesa.
por certo ressurgimento, não é para o legado intelectual de Lefebvre que
9 F. ENGELS. Para a Questão da Habitação, 1873, Primeira Seção, disponível em https://www.marxists.
org /portugues/marx/1873/habita/cap01.htm, acesso em 17 jan. 2016.
12 Idem, pp. 286-287.
10 F. ENGELS. Para a Questão da Habitação, 1873, Segunda Seção, disponível em https://www.marxists.
org /portugues/marx/1873/habita/cap02.htm, acesso em 17 jan. 2016. 13 M. ORIONE GONÇALVES CORREIA, Que Fazer, 2013, p. 559.
11 I. MÉSZÁROS, Para Além do Capital, 2002, pp. 267 e seguintes. 14 M. MIAILLE, Introdução Crítica ao Direito, 2005, p. 23.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

nos devemos voltar em busca de uma explicação (por mais importante um exemplo de como estas relações sociais podem criar uma verdadeira evacu-
que esse legado possa ser). O que vem acontecendo nas ruas, entre os ação urbana, deixando-se para trás toda a infraestrutura existente e milhões de
movimentos sociais urbanos, é muito mais importante... a ideia do di- moradias vazias e, ao mesmo tempo, pessoas sem teto, em razão de uma dinâmi-
reito à cidade não surge fundamentalmente de diferentes caprichos e ca econômica apoiada na prevalência cega da propriedade privada17. A cidade,
modismos intelectuais (embora eles existam em grande número, como
que tinha 1,8 milhões de habitantes na década de 1970, contava em 2013 ape-
sabemos). Surge basicamente das ruas, dos bairros, como um grito de
nas 701.000 habitantes. Mais de 70.000 edifícios estavam abandonados e mais
socorro e amparo de pessoas oprimidas em tempos de desespero”15.
de 30.000 casas vazias. Nem por isso a cidade deixa de ter pessoas em situação
O “direito à cidade” aparece aí claramente como bandeira de luta dos de rua: em 2011, contava-se mais de 19.000 pessoas nesta situação. Ainda mais,
movimentos sociais urbanos16, não como mero direito posto. Isto pode gerar execuções hipotecárias e execuções fiscais não deixaram de ser comuns, mesmo
certa confusão sobre os papéis que pode desempenhar o discurso jurídico. O com a grande quantidade de imóveis vazios. Nestes contextos, o direito é ativa-
que se tem verificado no contexto de hegemonia do sistema sociometabólico do para assegurar certo modo de distribuição da habitação, não para resolver a
do capital é que as reivindicações da classe trabalhadora, mais cedo ou mais falta de acesso à habitação. A escassez imobiliária é juridicamente sustentada,
tarde, esbarraram nos alicerces deste sistema. O choque apenas não ocor- mesmo que haja abundância de imóveis. Estes permaneceram vazios até pode-
rerá se houver acomodação destas reivindicações dentro do sistema. Tratar rem ser integrados ao sistema econômico hegemônico.
reivindicações como direito pode facilitar a acomodação – discursivamente, Este singelo exemplo aponta para a sacralidade de certo modo de acesso
estas reivindicações já chegam prontas para ser capturadas pelos solenes ins- à habitação sob as relações sociais vigentes, o modo de acesso via aquisição
trumentais jurídicos. O capitalismo se adapta a muitas demandas das classes da propriedade privada. O que impede o acesso à habitação por todos são
trabalhadoras e já estamos a meio caminho andado quando a demanda apa- estas relações sociais, não a falta de imóveis para moradias. O direito reflete
rece formulada como um “direito”. e protege, então, necessidades especulativas do próprio sociometabolismo do
Mas se o “direito humano à habitação” aparece como uma queixa e como capital. Neste sentido, o direito não é uma “forma de solução de conflitos”,
uma exigência, a abordagem imanente do sistema de direito deve captar isso e mas uma forma de solução de certos e determinados conflitos e um ocultador
formular a questão: por que esta exigência não se realiza, embora seja aceita nos seletivo de outros conflitos18.
mais elevados diplomas jurídicos? São as necessidades do sistema sociometabó- Elucida-se a natureza do direito. O “direito à moradia” não se confunde
lico do capital como um todo que sustentam uma característica inefetividade do com a necessidade humana de habitação. A luta pela produção e reprodução
“direito humano à habitação”. de condições de humanidade não alienada busca a satisfação desta necessida-
De fato, a questão da “falta de habitações” nos centros urbanos contemporâ- de humana básica. Na luta social, intencionalmente ou não, ela toma a forma
neos não diz respeito à impossibilidade material de construir moradias suficien- de uma reivindicação (política ou jurídica) por um direito ou pela efetivação
tes para todos, mas a relações sociais que impõem certa maneira de acesso (ou deste direito. Mas se ela passa a ser efetivamente mediada pelo direito, está aí
não acesso) às moradias existentes. A cidade de Detroit, nos Estados Unidos, é sua tragédia: passa a estar inexoravelmente adstrita aos limites jurídicos e não

15 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2014, p. 13 e 15.


16 Idem, p. 11, que aponta que o “direito à cidade”, em Lefebvre, “era ao mesmo tempo uma queixa e uma
17 A respeito, vide http://www.nytimes.com/2012/11/11/magazine/how-detroit-became-the-world-
exigência. A queixa era uma resposta à dor existencial de uma crise devastadora da vida cotidiana
capital-of-staring-at-abandoned-old-buildings.html?pagewanted=all&_r=0, acesso em 9 mai. 2015
na cidade. A exigência era, na verdade, uma ordem para encarar a crise nos olhos e criar uma vida
e http://www.huffingtonpost.com/2012/05/17/michigans-campaign-to-end-homelessness-numbers-
urbana alternativa que fosse menos alienada, mais significativa e divertida, porém, como sempre em
decreasi ng-statewide-and-detroit_n_1524397.html, acesso em 9 mai. 2015.
Lefebvre, conflitante e dialética, aberta ao futuro, aos embates (tanto temíveis como prazerosos), e à
eterna busca de uma novidade incognoscível”. 18 M. ORIONE GONÇALVES CORREIA, Que Fazer, 2013, p. 538.

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poderá se realizar senão para além destes limites – e, portanto, para além do tematizam e buscam a universalização da igualdade formal, têm implicações
sociometabolismo do capital. morais, culturais, jurídicas, etc, e isto implica num salto qualitativo no interior
A análise crítica deve elucidar o que um direito promete e o que ele nega. do capitalismo. No fundo, isto tem consolidado o direito, não o superado. Mas
E tudo o que ele nega só se explicita quando se dá a devida atenção à totalida- as contradições do sistema capitalista continuam latentes.
de da sociedade que produziu o direito e, especificamente, à “coerência orgâ- Deve-se rejeitar que haja necessária antinomia entre estas duas formas de
nica do direito”19. Esta coerência orgânica pretende consagrar ilusoriamente ver as “conquistas parciais” das classes trabalhadoras. Conquistas das classes
uma coerência orgânica da sociedade, que, na essência, está cindida em clas- trabalhadoras que levam a acomodações sob o sociometabolismo do capital não
ses. Para manter aquelas ilusões, devem existir instrumentos e instituições implicam em nenhum fim da história e as contradições reais continuam a ser
para resolução de conflitos e para a recondução de tudo a sua base (material) o motor dos conflitos sociais. Estas conquistas implicam em adaptações da es-
adequada. O direito nega, em primeiro lugar, o conflito de classes como um trutura jurídica. Mas os conflitos sociais – e o conflito social mais elementar, o
conflito digno de ser tematizado. Nesta toada, negará também os conflitos conflito de classe – persistem.
relacionados ao despojamento do trabalhador dos seus meios de subsistência, O elo entre a perspectiva de longo alcance da revolução social e a de
como será detalhado adiante. alcance mais restrito da luta jurídica está na própria permanência da explo-
Numa leitura inicial, a perspectiva marxista apontará que lutas sociais por ração capitalista – e, portanto, das suas contradições – que as conquistas
liberdade ou igualdade burguesa não são lutas tendentes a alterar o sistema de jurídicas não rompem. Daí a plausibilidade de se conceber algum tipo de luta
reprodução sociometabólico do capital. Trata-se de lutas que apenas conseguem jurídica que possa ser levada a cabo sem ilusões e com o horizonte de rompi-
“conquistas parciais” que podem apenas arranhar a reprodução do capital e, mento do sistema jurídico.
não raro, têm até mesmo o condão de assegurar a continuidade desta reprodu- Como já apontado, é inerente ao sistema sociometabólico do capital a ine-
ção. Lenin, entendia mesmo que estas lutas eram levadas a cabo por “operários fetividade crônica dos direitos humanos. Isto porque é necessário a este sistema
aburguesados”, por uma “aristocracia operária”, por “verdadeiros agentes da o despojamento do trabalhador dos seus meios de subsistência e produção. A
burguesia no seio do movimento operário, capatazes-operários da classe dos ca- contradição aí instaurada – na verdade uma contradição na base com expressão
pitalistas (“labor lieutenants of the capitalist class”), verdadeiros propagandistas no direito – é um combustível permanente para as lutas sociais.
do reformismo e do chauvinismo”20. As “reivindicações jurídicas” podem ser negações determinadas das deman-
Mas as “conquistas parciais” das lutas sociais são ambíguas, ora aparecem das sociais. Tais reivindicações podem conservar algo da contradição dialética
como conquistas que arrefecem a luta de classes por meio de concessões jurídi- existente na base. O direito formula o despojamento como inefetividade, su-
cas a parcelas das classes trabalhadoras, que passam até mesmo a apoiar (tácita gerindo que ele próprio possa efetivar as necessidades reais. Mas a efetivação
ou ostensivamente) o sociometabolismo do capital e seus instrumentos de tutela universal das necessidades humanas (inclusive das habitacionais) só pode se dar
jurídica; ora aparecem como avanços que melhoram as condições materiais da com a superação do pressuposto de despojamento do trabalhador de seus meios
classe trabalhadora e que podem impulsionar a luta em direção a uma trans- de produção e de subsistência - portanto, com a superação do sociometabolismo
formação mais profunda do sistema sociometabólico do capital. Nesta última do capital e do próprio direito tal qual o conhecemos.
forma de ver, mais efetividade dos direitos humanos implicaria em novos pata- Ao mesmo tempo que determinado sistema jurídico se eleva sobre a base
mares a partir dos quais as lutas sociais seriam travadas. Lutas sociais como as material de acordo com as necessidades da reprodução do capitalismo, o pró-
dos movimentos feministas e as dos movimentos negros, por exemplo, quando prio direito pode vir a ser ativado para finalidades que divergem daquelas que
inicialmente o puseram. Tal ativação ocorre nas lutas sociais, quando estas
19 B. EDELMAN. A legalização da Classe Operária, 2016, p. 20. lutas incidem sobre as contradições da base material subjacente, expressan-
20 V. I. LENIN, O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo, 2011, p. 115. do as reivindicações como direito – e isto tem sido frequentemente feito por

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meio dos direitos humanos. Ao fazerem isto, as lutas sociais geram tensões e 1.2. Alicerces da ordem sociometabólica do capital e
forçam os limites do direito, que invariavelmente reagirá para recompor-se,
para manter a reprodução social em seu lugar, eventualmente absorvendo sob
transformação social
a forma jurídica as reivindicações. E então estas padeceram de inefetivida- Ressalte-se o caminho ou método do pensamento crítico: reinserir o objeto
de, mas dentro do direito. A crítica jurídica pretende, justamente, explicitar estudado na totalidade da sociedade que o produziu e divisar as transforma-
quando aquelas contradições aparecem e como elas apontam para possíveis ções possíveis que podem afetá-lo. O sociometabolismo do capital envolve todo
transformações sociais. o complexo da exploração capitalista direta, salário, mais-valia e lucro indus-
O ponto de partida aqui é esta ambiguidade dos direitos humanos: do ponto trial, bem como das correlativas atividades pelas quais o trabalho socialmente
de vista estatal e internacional, aparecem como direitos funcionais à reprodu- produzido é repartido nas formas de lucro comercial, juro, renda e tributo. A
ção do direito e da política, descolados da realidade de persistente e crescente exploração capitalista, segundo a teoria do valor, ocorre porque, após entregar
disparidade entre os ganhos do trabalho e os do capital21. Já no plano da luta trabalho necessário ao capitalista, o trabalhador é obrigado a entregar traba-
social, os direitos humanos aparecem como uma questão de grande relevância lho excedente. Este trabalho excedente, cujo valor é a mais-valia, pertence ao
para os movimentos sociais22, e nesta seara explicitam seus limites enquanto capitalista em razão de uma série de relações sociais que legitimam esta opera-
“direitos” e aparecem também como discurso político, como instrumento de ção. Na obrigação de entregar trabalho excedente, na atribuição do produto ao
luta emancipatória e de incitação de contradições no interior do próprio sistema capitalista e no pagamento do salário começa a se erguer o sistema jurídico tal
jurídico. Como tais, os direitos humanos podem aparecer como bandeiras táti- qual o conhecemos.
cas em lutas cuja finalidade última é atingir os alicerces do modo de produção A crítica aos direitos humanos parte da reflexão sobre os alicerces do siste-
capitalista. Pode-se dizer que, ao aparecer como bandeira de luta política, o ma sociometabólico do capital e envolve a reflexão sobre os horizontes de sua
discurso dos direitos humanos encampado nas lutas sociais reflete, no direito, transformação radical. A delimitação de quais sejam estes alicerces é a primeira
as contradições reais. Neste sentido, olhar para os movimentos sociais e para as tarefa da crítica, mais ou menos no sentido do que indica David Harvey quando
suas demandas pode explicitar cooptação, capitulação ou acomodação a dado aponta que “A exposição clara de como as práticas dominantes funcionam deve
contexto, mas mostra também as contradições reais a marcar o caminho das ser o foco da teorização radical”23.
transformações sociais futuras. A crítica às experiências ditas socialistas do século XX e das diversas
lutas sociais por direitos deve partir de uma observação teórica básica: as
diversas dimensões da vida social, material e espiritual não podem ser revo-
lucionadas automaticamente a partir de uma ou outra mudança tida como
21 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 127, já descrevia este descolamento: “O “central” e “decisiva”, a qual desencadearia necessariamente o revoluciona-
desenvolvimento social subsequente, fez com que a lei adquirisse a forma de uma legislação mais ou
menos abrangente. Quanto mais complexa essa legislação se torna, tanto mais sua forma de expressão mento centrífugo de todo o tecido social. Carece de sentido prático a enun-
se distancia daquela em que são expressas as condições econômicas habituais da vida em sociedade. ciação de que esta ou aquela medida levará à superação do sistema socio-
Ela aparece como um elemento autônomo, que não justifica sua existência e a fundamentação de seu
aprimoramento pelas relações econômicas, mas por razões próprias, intrínsecas, como o ‘conceito
metabólico do capital – e carece muito mais de sentido prático a discussão
de vontade’. Os seres humanos esquecem que seu direito descende das condições econômicas vitais, sobre que medida “revolucionária” (tomada do poder estatal, apropriação
assim como esqueceram que eles próprios descendem do reino animal”. Agora, o movimento da dos meios de produção, etc.) seria esta.
autonomização é típico do direito, não é estranho a ele; assim, não há contradição entre a inefetividade
do direito e sua consagração formal. As garantias são consagradas na esfera autônoma, abstrata,
formal e a tentativa de efetivá-las juridicamente é vã se não há as condições materiais para tanto. De
fato, a inefetividade dos direitos nos dizem muito sobre a realidade das quais são expressão.
22 I. MÉSZÁROS, Marxismo e Direitos Humanos, 2008. 23 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 195.

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Deve-se admitir, isto sim, a complexidade da questão da transição para o ção e de meios de subsistência, o que os obriga a vender sua força de trabalho;
socialismo ou da transformação social radical. O socialismo aparece no pensa- passando pela acumulação primitiva de capital, pelas condições para a circula-
mento marxiano, em primeiro lugar, como a negação determinada do sistema ção de mercadorias num mercado livre, pela propriedade fundiária da terra ur-
capitalista de produção, como aquilo que se descortina teoricamente com a bana e rural, pelo contrato de trabalho, pela existência de agentes financeiros,
análise das contradições deste sistema. Por isso a revolução social preconizada do Estado, das instituições jurídicas, etc. Não se pode aceitar, assim, que apenas
por Marx não pode ser pensada apenas como revolução econômica ou como re- no direito do trabalho esteja “todo o mistério do direito burguês”27. Para além do
volução política. Ela é, como dito, a negação determinada do sistema capitalis- contrato de trabalho e do direito de propriedade na esfera da produção, aqueles
ta, e só pode sê-lo em todos os seus aspectos – aspectos materiais, econômicos, outros alicerces da ordem sociometabólica escondem igualmente o mistério do
morais, sociais, jurídicos, políticos, etc, em suma, como a transformação radical direito burguês. O “direito à moradia”, por exemplo, esconde justamente por
de todos os domínios reprodutivos que sustentam o sistema sociometabólico do trás de suas promessas o despojamento das classes trabalhadoras e a separação
capital24. Este sistema se assenta em diversos alicerces, em variados domínios destes dos seus meios de subsistência, condição alheia à produção e, no entanto,
reprodutivos, sendo o alicerce fundamental a apropriação privada do tempo de necessária para a ela.
trabalho excedente pelo proprietário dos meios de produção25. Mas este alicerce Estes alicerces não são historicamente imutáveis e se adaptam às mais di-
também só se sustenta em uma relação de implicação mútua com os alicerces ferentes condições espaço-temporais. De qualquer modo, a superação do so-
relacionados à distribuição ou circulação da riqueza produzida. Realmente, ciometabolismo do capital significa a transformação radical de cada um deles,
de cada uma das esferas reprodutivas28. Na seara econômica, deve-se compre-
“a dinâmica da exploração de classe não se restringe ao local de tra- ender que “não é que produção, distribuição, troca e consumo são idênticos,
balho. Todo um conjunto de economias da expropriação e de práticas
mas que todos eles são membros de uma totalidade, diferenças dentro de uma
predatórias, como as dos mercados imobiliários... constitui um caso a
unidade”29. Daí porque a própria superação do modo de produção capitalista
ser levado em consideração. Essas formas secundárias de exploração
são basicamente organizadas por comerciantes, proprietários de terras exige a reformulação de cada um dos membros desta totalidade/unidade. “Uma
e financistas e seus efeitos são basicamente sentidos no local onde se produção determinada, portanto, determina um consumo, uma troca e uma
vive, e não na fábrica. Essas formas de exploração são e sempre foram distribuição determinadas, bem como relações determinadas desses diferentes
vitais para a dinâmica geral da acumulação de capital e para a perpe- momentos entre si. A produção, por sua vez, certamente é também determi-
tuação do poder de classe”26. nada, em sua forma unilateral, pelos outros momentos”30. As diversas determi-

Ao lado daquele alicerce “central”, outros alicerces indissociáveis sustentam


este sistema, a começar pelo despojamento dos produtores de meios de produ-
27 B. EDELMAN, A Legalização da Classe Operária, 2016, p. 21.
28 Mas não se deve entender com isto que todas as esferas reprodutivas deveriam ser revolucionadas ao
mesmo tempo. De fato, Marx, no Prefácio de 1859 da Contribuição à Crítica da Economia Política, já
24 Em I. MÉSZÁROS, A Teoria da Alienação em Marx, 2006, p. 108, lê-se que a própria noção de pontuava que “Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade
produção ou “atividade humana produtiva” não pode ser tida apenas como “produção econômica’”. entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua
Em Marx, a economia é o “determinante último”, mas “é também um ‘determinante determinado’: expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até
ela não existe fora do complexo sempre concreto e historicamente mutável de mediações concretas, então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves.
inclusive as mais ‘espirituais’”. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica
transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura” (K. MARX,
25 Pode-se dizer que esta é a característica descritiva mais básica do capitalismo, relacionando-se à falta
Contribuição à Crítica da Economia Política, 2008, pp. 47/48).
de controle dos produtores diretos sobre os produtos do seu trabalho e à prevalência do imperativo da
trocabilidade universal. Mas está longe de ser o alicerce único. 29 K. MARX. Grundrisse, 2011, p. 53.
26 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, p. 230. 30 Idem, p. 53.

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nações só podem ser alteradas se todas as relações e mediações31 são superadas -capitalistas (...) pois não são capazes de romper a forma jurídica do sujeito de
num novo modo de existência econômico e social. direito”35. É dizer, a transformação social radical não poderá se dá por meio de
Dentre os sustentáculos do sociometabolismo do capital está a contínua medidas jurídicas ou da alteração do conteúdo do direito em favor da classe tra-
transformação do cenário urbano, o que tem clara implicação nas condições de balhadora. Realmente, uma abstração como os direitos sociais jamais poderia
habitação das classes trabalhadoras. O movimento inquieto do capital precisa romper a forma jurídica, a qual só pode ser superada pelo própria superação do
alterar continuamente o urbano. Como aponta D. HARVEY, sistema sociometabólico do capital como um todo. Um direito consagrado abs-
tratamente em diplomas legislativos não rompe este sistema, mas o confirma. O
“se a urbanização é tão crucial para a história da acumulação do capital seu rompimento continua a ser matéria dependente das contradições reais e da
e se as forças do capital e seus inumeráveis aliados devem mobilizar-se
viabilidade de os trabalhadores superá-las na luta de classes.
sem descanso para revolucionar periodicamente a vida urbana, então
Flávio Roberto Batista, em análise “sobre a possibilidade de que o direito
uma luta de classes de algum tipo, não importa se explicitamente reco-
nhecida como tal, está inevitavelmente envolvida”.32 contribua para a emancipação humana e em que termos”, deixa algumas pistas
sobre o assunto e, em especial, aponta a importância da mobilização popular e
Neste sentido, David Harvey aponta para a necessidade de uma (mais) so- dos movimentos sociais, as quais poderiam conter o avanço da lógica “exclu-
fisticada compreensão sobre o modo como ocorre a transformação social, que dente, exploradora e punitiva” do neoliberalismo. O autor aponta que
guiaria movimentos anticapitalistas ao objetivo fundamental de “assumir o co-
“Os direitos sociais somente podem ser aliados da luta emancipa-
mando social sobre a produção e distribuição de excedentes”33. Esta fórmula
tória na medida em que forem radicalmente universalizados, o que
sintética não deve levar a enganos sobre a complexidade das questões postas
significa implementar sua distribuição genérica sem qualquer forma
para esta luta, nem sobre os obstáculos que serão erguidos pelo sistema sociome- de contrapartida. O fim do modo de produção capitalista é o fim da
tabólico do capital – com especial relevo, no que interessa neste trabalho, para garantia da subsistência apenas por meio da troca de força de traba-
os obstáculos jurídicos – para evitar qualquer transformação radical. lho por salário, e a única forma que o direito tem de ajudar nessa luta
No estudo do direito, deve-se abandonar “o modelo da crítica político-ideo- consiste em solapar a lógica da equivalência, inserindo mecanismos
lógica dos interesses protegidos ou da classe a quem aproveita a instituição dos essencialmente não comportados pela forma. A luta pela inserção de
direitos sociais”34. O direito não pode ser tomado de assalto pela classe traba- tais mecanismos, entretanto, devolve a questão para sua verdadeira
lhadora e servir como instrumento para inverter a hegemonia de classe. Nem seara: a política e a economia”36.
os direitos humanos, nem mesmo os direitos sociais, “podem ser direitos anti-
A análise é certeira do ponto de vista da crítica jurídica. No entanto, parece
sobrevalorizar as contradições e as lutas nas searas política e econômica. Com
31 Segundo I. MÉSZÁROS, Estrutura Social e Formas de Consciência, 2009, p. 192, há mediações
primárias, as quais são “necessárias para todas as formas viáveis de reprodução”, que se distinguem isso, remete o problema a outros domínios superestruturais, nos quais, como no
das mediações secundárias, específicas do contexto histórico do capitalismo. Assim, por exemplo, direito, formulações ambíguas apenas refletirão contradições reais. A questão
é uma mediação primária ou de primeira ordem “a regulação do processo de trabalho por meio do
da sobrevalorização da política foi abordada anteriormente por mim com base
qual o necessário intercâmbio da comunidade com a natureza possa produzir os bens necessários
para a satisfação humana, como também as ferramentas de trabalho, empreendimentos produtivos na leitura de István Mészáros37:
e conhecimento apropriados pelos quais o próprio processo reprodutivo passa a ser mantido e
aprimorado”, enquanto que a regulação do trabalho especificamente capitalista é uma mediação
secundária ou de segunda ordem. Estas é que são transformadas.
32 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2014, p. 209. 35 Idem.
33 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 185. 36 F. R. BATISTA. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais, 2013, p. 265.
34 F. R. BATISTA. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais, 2013, p. 258. 37 R. MENEZES. Crítica dos Direitos Humanos à Luz da Leitura de István Mészáros, 2013, pp. 35-37.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

“não é que a solução para a questão da alienação jurídica seja meramen- líticas, quanto como questões econômicas ou como questões jurídicas, ou ainda
te a ‘luta política’. Tal solução remete circularmente de um problema a como envolvendo algumas ou todas estas questões ao mesmo tempo.
outro, pois a superestrutura política possui suas próprias contradições Trocando em miúdos, a superação do modo de produção capitalista exige
e conflitualidades, apresentando também potencialidades emancipató- o revolucionamento estrutural e superestrutural, não apenas nas searas eco-
rias que contrastam com suas instituições separadas e abstratas, como
nômica e política, mas em todos os domínios reprodutivos. Primeiro porque
se vê na dinâmica dos partidos socialistas e trabalhistas que se tornam
estas tais “searas” sequer existem por si enquanto coisas a serem revolucio-
partidos parlamentares38, e com práticas restringidas de acordo com os
imperativos do sistema sociometabólico do capital. Não obstante a visão nadas: elas são, antes de tudo, abstrações úteis para o pensamento, tanto
de totalidade que deve apoiar uma perspectiva crítica de análise, fre- quanto o é a seara jurídica (no máximo, há instituições a serem radicalmente
quentemente a assertiva de que se deve buscar na luta política soluções transformadas para se adaptarem às novas exigências materiais). Segundo, o
para as questões jurídicas são um meio pelo qual (voluntária ou involun- que será objeto de revolucionamento serão as relações sociais, e um tal revo-
tariamente) se deixa de examinar com o devido rigor os problemas da lucionamento só pode se dar se atingir as relações sociais como um todo, não
superestrutura jurídica. apenas esta ou aquela seara (abstrata) da reprodução social. A suprassunção
István Mészáros trata esta questão de modo muito direto: ‘Claramen- das contradições reais é a superação da política alienada, do direito e do modo
te, no entanto, isso está muito longe de ser simplesmente uma questão de produção capitalista.
política, apesar das preconcepções sectárias reducionistas e, em última Observe-se como a questão da habitação é tratada numa perspectiva que
análise, autoderrotistas defendidas nesse sentido. A ênfase exclusivista defende forçar internamente a política:
na política, ao custo das estratégias muito mais amplas de transformação
estruturalmente viável a ser historicamente sustentada em todos os domí- “Padrões de habitabilidade mais elevados que implicam a existência de
nios reprodutivos, não pode ser uma abordagem viável a essas questões, serviços de consumo coletivo material e culturalmente adequados para a
não importa quão importante seja o papel que a intervenção política ra- reprodução dos trabalhadores só serão atingidos quando estes consegui-
dical deva inicialmente desempenhar no processo emancipatório geral, rem desenvolver canais de reivindicação vigorosos e autônomos, tanto
especialmente na época de ruptura com a pressão da política alienada no que se refere às condições de trabalho como os que dizem respeito às
sobre a mudança societal.’”39 (grifei) melhorias urbanas. Neste sentido, o adequado em relação à reprodução
da força de trabalho não decorre apenas do grau de desenvolvimento
Ou seja, a “superestrutura política” também apresenta suas próprias limita- das forças produtivas mas, sobretudo, da capacidade que apresentarem
ções no contexto do sistema sociometabólico do capital e é mais um dos do- as classes trabalhadoras de se apropriar de uma parcela da riqueza gerada
mínios reprodutivos em que as lutas pela superação deste são levadas a cabo. pela sociedade. Em outras palavras, decorre do grau de organização das
É dizer, a transformação social radical implica também a superação da política diferentes classes e camadas sociais que se confrontam na arena social
existente. E as contradições reais podem ser expressas tanto como questões po- numa determinada conjuntura histórica”40.

Igualmente, para Guilherme Boulos, líder do MTST, para a solução dos pro-
38 I. MÉSZÁROS, O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico, 2007, p. 276 e seguintes, discute a questão
da alternativa ao parlamentarismo e assevera que “alguns dos partidos mais importantes, bem como blemas habitacionais que levam às ocupações urbanas de prédios e terrenos não
bem-sucedidos, do ponto de vista eleitoral, da esquerda radical, constituídos no interior da estrutura utilizados, “a receita é política”:
da Terceira Internacional, em condenação impetuosa e explícita do fracasso histórico irreparável
da Segunda Internacional Socialdemocrata, seguiram – dessa vez realmente no devido tempo – o
“Combater a especulação imobiliária com regulação de mercado, tirar
mesmo caminho desastroso dos partidos que implacavelmente denunciaram e descartaram. Neste
sentido, basta pensar na ‘via parlamentar ao socialismo’ que os partidos comunistas italiano e o controle da política urbana das mãos de grandes empreiteiras e de-
francês seguiram”.
39 I. MÉSZÁROS, Estrutura Social e Formas de Consciência II, 2011, p. 136. 40 L. KOWARICK, A espoliação Urbana, 1979, p.73.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

senvolver uma estratégia de desapropriação de terras que recupere a ca- trabalhador dos seus meios de subsistência. A alocação universal tem o poten-
pacidade o poder público de planejar a política habitacional. Esses são cial efeito de “liberar aqueles que não são proprietários dos meios de produção
importantes passos para quem quiser de fato acabar com as ocupações da obrigação de vender sua força de trabalho a qualquer capitalista”43. A sua
urbanas no Brasil”. implementação (garantia e efetivação) na via jurídica (não pela via jurídica,
mas na via jurídica) apenas poderia ocorrer num contexto em que houvesse
Todas estas propostas e outras dentro da luta jurídica e política são bem-
explosivas contradições reais - que também teriam suas expressões econômicas
-vindas e devem ser empunhadas e defendidas. Mas o que deve ficar claro é se
e políticas - que poderiam levar à superação do sociometabolismo do capital e,
elas estão ligadas a propostas de longo alcance, a propostas que explicitem os
por isso mesmo, do próprio direito.
limites e atinjam os alicerces do direito.
Mas para chegar a esta proposta seminal, Batista realiza um salto teórico da
Não deve haver dúvida quanto à crucial importância – a centralidade
análise da forma jurídica para um campo não reconhecido como jurídico no in-
mesmo – das searas política e econômica neste processo. Seria mesmo des-
terior de seu enquadramento teórico – daí remeter a questão às searas política e
necessário lembrar, dadas as premissas deste trabalho, que há uma sobrede-
econômica. O próprio autor recorre à Tese XI sobre Feuerbach44, de Marx, para
terminação da seara econômica. Mas isto diz pouco sobre os desafios para
sustentar este salto. Mas não há que se saltar a lugar nenhum: a reflexão sobre a
a transformação social radical e diz menos ainda para a análise do direito à
margem, sobre o limite, nada mais é do que a reflexão sobre a negação determi-
moradia e das políticas habitacionais.
nada do objeto sobre o qual se reflete. Estamos na seara da crítica do direito. Ao
O que se deve frisar, porém, é que, após as experiências socialistas do século
se refletir numa perspectiva de totalidade, não se pode divisar soluções em ou-
XX, qualquer pauta de transformação radical tem que passar pela crítica à ên-
tras searas abstratas, igualmente restritas, específicas, contextuais45. As teorias
fase exclusivista na política. Esta ênfase equivale a desprezar outras formas que
da “forma jurídica” tendem a passar ao largo destas questões. Daí desvelarem o
sustentam o sociometabolismo do capital, como se a tomada do poder estatal e
papel estrutural do direito no contexto capitalista, mas muito pouco acrescen-
o controle dos meios de produção pelo Estado, por si só, pudessem conduzir ao
tarem sobre as contradições refletidas no direito e sobre o elo entre a luta social
objetivo de transferir o controle da produção ao produtor direto41.
imediata e a perspectiva da transformação social radical46.
Assim, na seara da crítica ao direito, deve-se reconhecer as contradições re-
Transformações jurídicas só podem ser corretamente examinadas partindo
ais que se refletem no sistema jurídico – e o modo específico de aparição destas
da análise do próprio sistema de direito no seu contexto e atentando às media-
contradições no direito é pela seleção do que deve ser juridicamente tutelado
e do que deve ser juridicamente reprimido, bem como dos campos de “liber-
43 F. R. BATISTA. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais, 2013, p. 263.
dade” de ação (em regra campos destinados à ação do capital). Mesmo porque
44 “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-
conhecer os alicerces do capitalismo envolve conhecer também sua expressão lo”, K. MARX, Teses Sobre Feuerbach, 1845, disponível em https://www.marxists.org/ portugues/
jurídica42 e vice-versa. marx/1845/tesfeuer.htm, acesso em 28 mai. 2016.
O próprio Flávio Roberto Batista o demonstrou ao investigar as margens, os 45 Daí a importância de se divisar precisamente, por um lado, o direito como expressão específica do
limites do direito: a alocação universal é uma demanda que fomenta a contra- capitalismo e, por outro lado, o direito que aparece como discurso político – neste caso, pode haver
uma tentativa de uso do discurso jurídico para além da superestrutura jurídica, contra a superestrutura
dição real do sistema capitalista, já que atinge alguns dos alicerces deste modo jurídica. Há aí um procedimento teórico que explora as margens, os limites do direito, mas não há
de produção, especificamente o princípio da equivalência e o despojamento do porque saltar sem mais para a seara política ou econômica. A perspectiva da totalidade exige que os
limites de todas estas searas sejam explicitados.
46 Para ficar na principal referência teórica sobre o assunto, E. B. PASUKANIS. A teoria geral do direito
41 Explicitando o malogro da experiência soviética e a superação do capitalismo sem superação do
e o marxismo, 1989, sequer poderia ter enfrentado este problema, que não estava posto em sua época.
capital, reporta-se à grandiosa obra I. MÉSZÁROS, Para Além do Capital, 2002.
Na verdade, o problema que ele buscava enfrentar era oposto, dizia respeito justamente às tendências
42 B. EDELMAN, A Legalização da Classe Operária, 2016, p.10, afirma que “o direito é um posto de do socialismo real de se valer do direito para transformar o modo de produção. Retrospectivamente,
observação insubstituível para ‘ler’ a evolução do mundo, atualizar suas forças secretas”. os limites desta abordagem são explícitos. Porém, há uma grande distância entre um Estado que, sob o

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ções primárias e secundárias em questão. Contradições e movimentos dialéti- se contrapõe à abordagem da “forma jurídica”49. Nem uma, nem outra. A crítica
cos não repercutem apenas nas teorias políticas e econômicas, mas também no sobre “a classe a quem aproveita” também remete, à sua maneira, a discussão
direito – como elemento extrínseco, não interno à dogmática jurídica, como para a seara política, desprezando as mediações próprias do direito. O que se
aponta M. ORIONE: preconiza aqui é que as contradições reais que têm expressão jurídica sejam
analisadas enquanto tais, mediante uma metodologia de avaliação do próprio
“Não há que se deixar de lado a importância que a luta pelos direitos as- sistema jurídico em questão. Há problemas habitacionais? Como eles se expres-
sume no mundo atual, mais do que a própria aquisição dos direitos e sua
sam juridicamente? Qual o papel do direito na manutenção e na superação
introdução em um sistema específico. Este é um dado em que a dialética
destes problemas? Como a transformação social radical resolverá este problema
está presente, como elemento extrínseco e não interno ao direito” 47.
e superará as soluções jurídicas parciais? O ponto de partida para responder a
Esta é uma observação importante para evitar o entendimento equivocado estas perguntas é a ideia de que
de que o materialismo histórico dialético poderia servir para manusear catego-
“O controle do domínio jurídico é obviamente o primeiro passo ne-
rias jurídicas internamente ao direito. O ponto foi desenvolvido por M. ORIO-
cessário na trilha para uma transformação social duradoura qualitativa.
NE: o método específico do direito é o positivismo jurídico e Mas não deve permitir que se converta, como convém às personificações
herdadas ou novas do capital, em uma variante nova de ilusão jurídica
“o nosso papel, enquanto juristas, não seria usar apenas materialmente
adotada de maneira esperançosa”50.
a dialética negando o direito, mas negar o direito constantemente pelos
seus conceitos e classificações ordenadoras da realidade, segundo o ato
Com este alerta, deve-se apontar as duas tarefas elementares da crítica dos
de poder (e, portanto, negar a ideologia do direito). Mais do que isto:
direitos humanos: primeiro, realizar a análise e a crítica dos institutos jurídicos
por esta atitude demonstrar que as contradições do direito são típicas
contradições do capitalismo em si”48. em seus próprios termos51, confrontando-os com o fundamento material que
os engendram. Isto cumpre aquela diretriz apontada por David Harvey de que
As contradições reais da sociedade capitalista podem aparecer nas mais “A exposição clara de como as práticas dominantes funcionam deve ser o foco
diversas formas sociais. A proposta de alocação universal, por exemplo, nada da teorização radical”52. Segundo, analisar quais demandas sociais alcançam
mais é do que uma proposta de alteração na base com reflexo no direito, com expressão no direito e explicitar como as limitações jurídicas restringem estas
uma formulação jurídica. Tal proposta aciona contradições latentes do siste- demandas. Tudo isto só pode ser feito por meio do exame cuidadoso do próprio
ma sociometabólico do capital, com impactos em diversas esferas reproduti- sistema de direito:
vas. Por isso mesmo, poderia ser uma das medidas a sustentar um processo de
transformação social radical.
É preciso pontuar que esta perspectiva está longe de implicar um retorno à
crítica do tipo “da classe a quem aproveita a instituição dos direitos sociais”, que 49 Estas duas abordagens têm como apoio teórico, respectivamente, P. I. STUCKA, Direito e Luta de
Classes, 1988 e E. B. PASUKANIS, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, 1989.
50 I. MÉSZÁROS, Estrutura Social e Formas de Consciência, 2009, p. 299.
51 Neste sentido, M. ORIONE GONÇALVES CORREIA, Que Fazer, 2013, p. 537, entende que na
argumento de instaurar o socialismo, se vale do direito para isto, e movimentos sociais de explorados e
análise crítica “deve-se usar dos conceitos típicos do positivismo jurídico (inclusive pós-positivismo).
excluídos de todos os tipos que buscam incitar as contradições nas diversas searas reprodutivas, inclusive
Portanto, a crítica pressupõe o domínio do positivismo jurídico, mas não se esgota em exercícios
na jurídica. Não se pode usar a mesma lente de análise para realidades absolutamente distintas.
da utilização da forma jurídica. O exercício no sentido de melhorar, transformar pelo direito não é
47 M. ORIONE GONÇALVES CORREIA, Que Fazer, 2013, p. 559. possível, já que tudo que é tocado pelo direito tende a retomar a ordem já estabelecida”.
48 Idem, p. 537. 52 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 195.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

“separar a teoria geral do direito da prática teórica do direito, produz - “o próprio conhecimento da ideologia remete para a produção dos efeitos que
efeitos teóricos e práticos incalculáveis: o abandono ao direito do próprio ela engendra” e “o conhecimento concreto” do funcionamento da ideologia ju-
terreno que ele reivindica. A ignorância política do seu trabalho ‘teórico’ rídica “é o próprio conhecimento teórico da ideologia”54. E ao destrinchar esta
deixa, no fim de contas, o direito livre de se perpetuar na sua própria ideologia se verá que as classes trabalhadoras devem se tornar proprietárias,
ilusão que se torna a nossa”53.
pois, enredadas nos circuitos da propriedade, estão sob controle mais estrito
Para concluir este ponto, deve-se apenas deixar expresso aquilo que está já no sociometabolismo do capital; devem obter crédito público ou privado para
pressuposto: não se está a afirmar que se pode revolucionar o capitalismo a par- adquirir bens de consumo e bens duráveis, ainda que via microcrédito, pagando
tir de normas de direito, que conquistas jurídicas podem levar à superação do os devidos juros, se necessário por décadas; devem pagar aluguel aos senhorios
sociometabolismo do capital. A transformação social radical decorre de contra- para remunerar a propriedade privada. Por trás disto tudo: as classes traba-
dições reais e da luta de classes. O que é transformador é aquilo que decorre de lhadoras devem continuar despojadas dos seus meios de subsistência, os quais
tais contradições e instaura renovadas relações sociais. O papel do materialismo devem ser adquiridos via mercado.
histórico dialético nesta seara está em desvendar estas contradições e apontar, A questão está em explicitar que direito há. Por que o direito à moradia é
no momento adequado de transição, o surgimento das alternativas. tal e qual em dado momento; não só saber como as regras do direito à moradia
funcionam juridicamente (apenas isto é insatisfatório), mas saber porque as re-
gras são estas neste contexto55. Analisa-se, assim, quanto ao direito à moradia,
1.3. Análise do sistema de direito – sobre o o seu modo específico de existência legal, como ele é mediado pelo contrato,
direito à moradia pelo sujeito de direito, pela propriedade privada, pela renda, pela locação, pelo
crédito e pela alienação fiduciária.
Diante deste quadro, para se analisar o direito à moradia, deve-se expor Com tudo isto se realiza a primeira tarefa elementar da crítica jurídica, a
como ele é garantido e qual a sua efetividade. Deve-se expor o quadro jurídico análise e a crítica dos institutos jurídicos em seus próprios termos. A segunda
geral em que a habitação é realizada ou deixa de sê-lo, bem como explicar as tarefa elementar deve explicitar como as limitações do direito restringem as de-
razões de ser ou não realizada. mandas sociais. No que tange à habitação, é necessário examinar os principais
Dois passos neste percurso: no primeiro, a análise dos aspectos legislativos, pressupostos do modo capitalista de produção e os sistemas jurídico e político
formais, dogmáticos e de políticas públicas (esta última com importância cru- que se erguem sobre eles.
cial quando se trata de direitos sociais); no segundo, confrontando o direito à Os principais pressupostos do modo capitalista de produção56 podem ser ex-
moradia com demandas sociais e com limites econômicos, legais e institucio- postos a partir de duas cisões: a cisão entre o trabalhador e os meios de produ-
nais para a sua implementação. ção; a cisão entre o trabalhador e os meios de subsistência. Para fins de análise
Por mais que a análise transite por diversos contextos históricos, ao se anali-
sar as lutas sociais, deve-se ter em conta sua formação social específica – e neste 54 B. EDELMAN, O Direito Capitado pela Fotografia, 1976, p. 20.

trabalho o foco é a sociedade brasileira urbana no século XXI, com sua inserção 55 MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 3ª Ed. Lisboa: Estampa, 2005, p. 23, apud F. R.
BATISTA, Os limites do bem-estar no Brasil, 2015, p. 614, “Porque, em definitivo, trata-se de saber
periférica no capitalismo global. porque é que dada regra jurídica, e não dada outra, rege dada sociedade, em dado momento. Se a
Conhecer internamente as garantias internas e internacionais e as políticas ciência jurídica apenas nos pode dizer como essa regra funciona, ela encontra-se reduzida a uma
públicas habitacionais (Programa Minha Casa, Minha Vida, Locação Social, tecnologia jurídica perfeitamente insatisfatória”.

Aluguel social, etc.) é conhecer teoricamente a ideologia do direito à moradia 56 Segue-se aqui a análise de K. MARX, que contrapõe ao modo de produção capitalista o modo de
produção feudal, no qual os meios de produção e de subsistência estão imediatamente sob a posse do
trabalhador, sendo este alienado não diretamente, economicamente, mas por meio de relações sociais
53 B. EDELMAN, O Direito Capitado pela Fotografia, 1976, p. 20. específicas de dominação.

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do direito à moradia, este último pressuposto deve ser mais bem compreendido. que a fome no mundo não está relacionada à falta de alimentos58. A exclu-
De forma elementar: são habitacional é funcional ao modo de produção capitalista. Trata-se de
fenômeno por meio do qual o trabalhador é privado de um dos seus meios de
“os trabalhadores vendem no mercado sua capacidade de trabalho, ou subsistência, pelo qual o valor da força de trabalho pode ser mantido alto o
força de trabalho, e são pagos pelo valor dessa força de trabalho. Essa
suficiente e baixo demais.
é uma troca de equivalentes, porque o valor da força de trabalho é, por
O relativo “enriquecimento” das classes trabalhadoras no século XX não
suposto, alto o suficiente para garantir que a classe trabalhadora possa se
reproduzir (e vender força de trabalho novamente no período seguinte), retirou do capitalismo suas características fundamentais e nem anulou a con-
mas baixo demais para permitir que os trabalhadores, como classe, ame- tradição social fundamental que é a luta de classe, a oposição entre trabalha-
acem o monopólio capitalista dos meios de produção” 57. dores explorados e capitalistas. De fato, com o desenvolvimento do capitalismo,
muitos trabalhadores se tornam proprietários dos mais diversos bens, entre eles
Alto o suficiente, porém baixo demais: o sociometabolismo do capital não imóveis para habitação. Trabalhadores se tornam até mesmo especuladores e
pode permitir que o valor da força de trabalho em geral escape destes limites. rentistas no mercado imobiliário. Porém, por mais “posses” e “propriedades”
Para isto, toda o imenso sistema jurídico é ativado para manter o despojamento que um trabalhador assalariado detenha, a produção da riqueza social continua
dos trabalhadores dos seus meios de subsistência, aos quais poderão ter acesso subordinada ao sociometabolismo do capital, à extração de mais-valia na pro-
no mercado após receber o salário. A subsistência, num contexto em que não dução. Mesmo os trabalhadores mais bem remunerados, caso queiram manter
há exploração nem excedente, pode ser definida como igual ao produto total sempre o seu padrão de vida, deverão colocar à venda sua força de trabalho no
produzido pelo trabalho, que então é apenas o necessário (não há trabalho ex- mercado para continuar a receber seus altos salários. O acesso aos meios de
cedente). No contexto capitalista, a subsistência é mediada por relações espe- subsistência, mesmo os mais supérfluos, é pautado pelas relações de troca capi-
cíficas, voltadas e viabilizar a venda da força de trabalho para a produção. As talistas e pela subsistência por meio da venda da força de trabalho.
necessidades dos trabalhadores são todos os bens e serviços por elas requeridos
em dado estágio de desenvolvimento social.
O contexto atual se caracteriza pela expansão generalizada do modo de pro-
dução capitalista e, na produção da habitação, a questão aparece assim tam- 58 Como explica Jean Ziegler, há uma financeirização da alimentação no mundo, “São vários os
bém: ela tende a ser realizada por meio de trabalho alienado, especificamente mecanismos que matam. A primeira explicação é a especulação nas bolsas de commodities com
alimentos como trigo, arroz e milho, que correspondem a 75% do consumo mundial de alimentos.
capitalista, assim como sua distribuição segue principalmente os imperativos Após a crise financeira iniciada em 2008, com a quebra dos mercados de ações, os grandes bancos
do sociometabolismo do capital. E um destes imperativos é justamente manter e os hedge funds (fundos de investimento de perfil muito agressivo) migraram para as bolsas de
commodities, especialmente para as matérias-primas agrícolas. Aqui só é possível ganhar, porque
certos e determinados modos de acesso aos meios de subsistência que permitam
todos somos obrigados a comprar alimentos. Essa especulação, que infelizmente é legal, produz lucros
a exploração contínua da força de trabalho. astronômicos para os fundos e mortes nas favelas. Nos últimos dois anos, o preço do milho no mercado
De fato, o funcionamento do modo de produção capitalista exige a produção mundial aumentou 63%. A tonelada de trigo dobrou. E a tonelada de arroz das Filipinas subiu de U$
110 para U$ 1,2 mil. Isso gera um lucro tremendo para derivativos oferecidos pelos bancos. Ao mesmo
de exclusões múltiplas, dentre elas a exclusão habitacional. O direito contribui tempo, há 1,2 bilhão de pessoas no mundo que vivem em pobreza extrema, segundo o Banco Mundial.
decisivamente para esta exclusão. Elas devem comprar comida com menos de U$ 1 por dia. Quando os preços explodem, os mais pobres
O fato observável e a ser explicado é que a exclusão habitacional tende não conseguem comprar os alimentos. No início do ano, estive numa favela em Lima, no Peru. Fiquei
um dia no depósito onde se vendia arroz. Ninguém comprava um quilo de arroz. Todos compravam
a estar relacionada não à falta de imóveis habitáveis, mas às relações sociais um copo de arroz, era o máximo que podiam pagar e essa seria a refeição das crianças para o dia.
que pressupõem e consolidam esta exclusão, assim como evidências apontam Esses especuladores de alimentos devem ser colocados diante de um tribunal internacional por crime
contra a Humanidade. São diretamente responsáveis pela morte de milhares de pessoas”, entrevista
disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/07/13/uma-crianca-que-morre-de-
57 SAAD FILHO, Alfredo. Salários e exploração na teoria marxista do valor, 2001. fome-hoje-assassinada-diz-jean-ziegler-503352.asp, acesso em 03 jun. 2015.

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Neste ponto, cabe se debruçar sobre a afirmação de Marx de que “o traba- No contexto atual, o ser humano em geral se defronta com um sistema
lhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz”59. Como afir- econômico que o aliena. O trabalhador sofre diretamente os impactos deste
ma Harvey, certamente o efeito político desta afirmação não escapava a Marx. sistema com a alienação do produto do seu trabalho ao proprietário dos meios
Tecnicamente, a afirmação de Marx quer dizer que, com a expansão capita- de produção. O resultado é a concentração de riqueza nas mãos das diversas
lista, o capital variável tende a ser cada vez menor que o capital constante. O personificações do capital. É dizer, a riqueza se reproduz cada vez mais e torna
trabalhador fica cada vez mais pobre diante da riqueza social total produzida, o ser humano cada vez mais pobre, mais alienado, mais subordinado à repro-
que serve não para o desfrute do trabalhador, mas para a reprodução infinita dução infinita do capital. De fato, as evidências apontam para o empobreci-
do próprio sistema. Vale atentar para a continuação do já citado trecho nos mento relativo do trabalhador em nome da consistente reprodução do sistema
Manuscritos de Paris: “O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais ba- – o que tem sido traduzido no debate econômico atual, mesmo na esteira das
rata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas obras de autores não marxistas como Thomas Piketty62, como crescimento da
(Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos ho- desigualdade social e de renda, tendência observada ao longo de praticamente
mens (Menschenwelt).”60 todo o século XX, apesar do aumento absoluto do nível de vida de parcelas da
Aliás, esta constatação de concomitante pauperização e aumento da riqueza classe trabalhadora.
social vem desde Hegel e ultrapassa Marx, como observa Vladimir Safatle: Há uma tendência a concluir que este “enriquecimento” de alguns traba-
lhadores, ou seja, a formação de “classes médias” e de seus estratos superiores
“Para ele [Hegel], esta tendência de aumento das desigualdades e da teria “amortecido” a luta de classes, uma vez que muitos proletários teriam
pauperização, tendência que o leva a afirmar que por mais que a so-
aderido ao Estado capitalista para a manutenção deste sistema e de seu con-
ciedade civil seja rica, ela nunca é suficientemente rica para eliminar a
forto material, inclusive com acesso a sofisticados bens de consumo e, para o
pobreza, é um problema que exigiria o recurso a um conceito de Estado
justo. Adorno sabe disto. Tanto que afirmará: que diz respeito a este trabalho, à segurança de uma habitação ou duas para
morar e especular, com todas as proteções jurídicas ao dispor do proprietário
‘O livre jogo de forças da sociedade capitalista, cuja teoria econômi-
privado. Porém, estruturalmente, a sociedade se organiza ainda contrapondo
ca liberal Hegel aceitara, não possui nenhum antídoto para o fato de a
capital e trabalho. Isto leva a que as decisões centrais da vida social sejam
pobreza, do ‘pauperismo’, segundo a terminologia de Hegel atualmente
em desuso, aumentar com a riqueza social; menos ainda poderia Hegel
tomadas de acordo com esta contraposição. Assim, o despojamento do tra-
imaginar uma elevação da produção que faria troça da afirmação de que balhador de seus meios de subsistência continua a ser um pressuposto funda-
a sociedade não seria suficientemente rica em mercadorias. O Estado é mental do sociometabolismo do capital.
solicitado desesperadamente como uma instância para além desse jogo A análise do sistema de direito deve partir destas premissas. Assim como os
de forças’ (T. ADORNO, Três Estudos Sobre Hegel).”61 tribunais trabalhistas refletem no contrato de trabalho e na propriedade pri-
vada dos meios de produção a separação real entre o trabalhador e seus meios
59 K. MARX. Manuscritos Econômico-filosóficos, 2004, p. 80. de produção63, constata-se que o direito, os tribunais e as políticas públicas
60 Idem. Dois parágrafos depois, Marx insistirá na formulação, p. 81, “quanto mais o trabalhador se habitacionais refletem em seus mecanismos jurídicos a separação real entre o
desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd)
trabalhador e seus meios de subsistência, especificamente a habitação.
que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos
[o trabalhador] pertence a si próprio. É do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Enquadrada no direito, a habitação é mediada pela troca de equivalentes;
Deus, tanto menos ele retém em si mesmo.” se submete às leis do mercado; bens imóveis aparecem como reserva de valor
61 V. SAFATLE. Os deslocamentos da dialética, introdução à edição brasileira de “Três estudos sobre
Hegel”, de T. ADORNO, disponível em https://www.academia.edu/5569939/Os_deslocamentos_da_
62 Em especial T. PIKETTY, O Capital no Século XXI, 2014.
dial%C3%A9tica_introdu%C3%A7%C3%A3o_%C3%A0_edi%C3%A7%C3%A3o_brasileira_dos_
Tr%C3%AAs_estudos_sobre_Hegel_de_Adorno, acesso em 3 jun. 2015. 63 Vide B. EDELMAN, A Legalização da Classe Operária, 2016, p. 31.

32 33
Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

para seus proprietários, o que interessa aí é se eles poderão ser adequada fon- Neste sentido, deve-se adentrar em questões sobre o modo como imóveis não
te de renda, juro ou lucro, independentemente de considerações sobre direitos utilizados poderiam ser retirados do mercado para servirem às necessidades de
alheios; ao adquirente ou ao inquilino de um bem imóvel, por outro lado, em- habitação das populações de baixa renda.
bora o valor de uso deste seja de grande relevância social, o que lhes é decisivo Um critério para verificar a possibilidade de uma proposta desestabilizar
é se podem pagar a prestação ou o aluguel, é isto que estará decisivamente na os alicerces da ordem capitalista é examinar se as reivindicações jurídicas
esfera jurídica; aí, a sua capacidade de pagar vem, absolutamente, antes da sua das classes trabalhadoras contêm “um elemento desestabilizador, que ‘per-
necessidade de morar. Na prática, em nosso contexto, há imóveis em número turbe’ a quietude do domínio da ideologia jurídica”, como aquele presente
suficiente para suprir as necessidades sociais de habitação64, mas o sociome- na proposta de Engels que,
tabolismo do capital tem exigências anteriores que colocam a satisfação das
necessidades como condicionadas à própria reprodução do capital. “após analisar a tradicional reivindicação jurídica do movimento sin-
dical em favor de um salário ‘justo’, sugere a sua substituição pela rei-
Assim, elucidar a inevitável e persistente inefetividade do direito à mo-
vindicação de posse dos meios de produção pelos trabalhadores. Ora,
radia passa por desvendar as principais determinações de tal direito no con-
essa reivindicação é incompatível com o direito burguês, revela os seus
texto atual. Tais determinações estão ligadas especialmente às questões do limites e demonstra a necessidade de sua abolição”66.
intercâmbio de mercadorias, da propriedade privada do solo urbano, da fi-
nanceirização e da acumulação do capital. A importância de tal estudo é São estes os elementos metódicos básicos para a análise do direito à moradia
dupla: contribuir para o exame de tal direito numa perspectiva crítica, ou neste trabalho.
seja, confrontando as formulações jurídicas com a realidade em que se as O controle capitalista sobre o produto do trabalho, sobre os seus meios de
formula; avaliar propostas de efetivação de tal direito e verificar se alguma distribuição e sobre a composição do produto nacional leva à forma específi-
delas poderia desestabilizar os alicerces da ordem capitalista, se alguma delas ca do direito e da política pública de habitação. Outras formas de realizar as
torna este “direito humano” uma força material das classes trabalhadoras65. necessidades dos trabalhadores só poderiam ser levadas adiante por meio de
confrontação, composição ou alteração do sistema sociometabólico do capital.
64 No Brasil, o Censo 2010 do IBGE indicou que dos Domicílios particulares permanentes, 86% estão A análise crítica do sistema de direito à moradia apontará se alguma reivindica-
ocupados, 1,3% estão fechados, 5,8% são de uso ocasional e 9% estão vagos. Em números absolutos,
isto significa que o número de domicílios vagos no Brasil chega a 6,07 milhões (http://censo2010.
ção jurídica pode cumprir o papel de perturbar a quietude da ideologia jurídica,
ibge.gov.br/apps/atlas/, acesso em 10 abr. 2015). Em contraste, o déficit habitacional, em 2010, era explicitando com isso as contradições reais da sociedade capitalista.
calculado como sendo de 5,8 milhões de famílias (http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/produtos-e-
servicos1/2742-deficit-habitacional-no-brasil-3, acesso em 18 jan. 2015). O confronto destes dados
foi feito pela própria agência de notícias governamental, como se vê em www.brasil.gov.br/noticias/
arquivos/2012/12/13/numero-de-casa-vazias-supera-deficit-habitacio nal-do-pais-indica-censo-2010.
Aí se lê que “esse déficit habitacional foi calculado pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil
de São Paulo (Sinduscon-SP) com base em outro levantamento do IBGE, a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad). O déficit soma a quantidade de famílias que declaram não ter um
teto, que habitam em locais inadequados ou que compartilham uma mesma moradia e pretendem se
mudar. Não leva em conta as famílias que vivem em casas adequadas de aluguel”.
65 Neste ponto, não se pode confundir estas propostas com soluções ilusórias “dentro” do direito. Tais
propostas se inserem num quadro em que se propõe a reconstrução qualitativa da superestrutura,
parelha ao revolucionamento da base material em direção ao controle direto da produção pelos
produtores associados. Uma discussão mais aprofundada do assunto foi feita por mim em minha
dissertação de mestrado, R. MENEZES, Crítica dos Direitos Humanos à Luz da Leitura de István
Mészáros, defendida em 13/11/2013 na Faculdade de Direito da USP (http://www.teses.usp.br/teses/ 66 Como explicita M. BILHARINO NAVES, Prefácio a f. ENGELS e K. KAUTSKY, Socialismo
disponiveis/2/2140/tde-04042014-143450/pt-br.php). Jurídico, 2012, edição digital, p. 15.

34 35
Capítulo 2.
A Característica Concomitância entre
Enunciação e Ineficácia do Direito à Moradia

“Este é um exemplo contundente de como a burguesia


resolve a questão da moradia na prática. Os focos de
epidemias, as covas e os buracos mais infames em que
o modo de produção capitalista trancafia nossos traba-
lhadores noite após noite não são eliminados, mas ape-
nas transferidos para outro lugar! A mesma necessidade
econômica que os gerou no primeiro local também os
gerará no segundo. E, enquanto existir o modo de pro-
dução capitalista, será loucura querer resolver isolada-
mente a questão da moradia ou qualquer outra questão
social que afete o destino dos trabalhadores. A solução
está antes na abolição do modo de produção capitalista,
na apropriação de todos os meios de vida e trabalho
pela própria classe trabalhadora.”
(Friedrich Engels, Sobre a Questão da Moradia)

2.1. O papel das garantias de direito à moradia


O direito à moradia tem ampla previsão normativa nacional e internacional.
A sua enunciação é quase tão amplamente realizada quanto a sua inefetividade.
Explicitar a razão desta disparidade entre enunciação e efetividade é a finali-
dade deste livro. Vejamos a amplitude da normativa. No âmbito internacional,
este direito está previsto na Declaração Universal de Direitos Humanos, de
1948, art. XXV, item 01:

“Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-


-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direi-

37
Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

to à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhi- “Em conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no ar-
ce ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias tigo 2, os Estados-partes comprometem-se a proibir e a eliminar a dis-
fora de seu controle”. criminação racial em todas as suas formas e a garantir o direito de cada
um à igualdade perante a lei, sem distinção de raça, de cor ou de origem
A Declaração Universal de Direitos Humanos é um documento fundante nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos: (...)
da vigente ordem jurídica internacional, que nada mais é do que a superestru- e) direitos econômicos, sociais e culturais, principalmente: i) direitos ao
tura do sociometabolismo global do capital. Este reconhecimento do direito à trabalho, à livre escolha de trabalho, a condições equitativas e satisfa-
moradia – e também de outros direitos que expressam necessidades básicas dos tórias de trabalho, à proteção contra o desemprego, a um salário igual
trabalhadores – foi certamente um avanço na luta jurídica. Mas isto não sig- para um trabalho igual, a uma remuneração equitativa e satisfatória; ii)
direito de fundar sindicatos e a eles se afiliar; iii) direito à habitação;
nificou a satisfação mundial das necessidades habitacionais dos trabalhadores.
iv) direitos à saúde pública, a tratamento médico, à previdência social e
A Declaração de 1948 e os Pactos67 de 1966 conformam o arcabouço nor-
aos serviços sociais; v) direito à educação e à formação profissional; vi)
mativo básico do sistema universal de direitos humanos. E um dos tratados de direito à igual participação nas atividades culturais”.
1966, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no art.
11, item 1, dispôs que: Igualmente, na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, em artigo que trata especi-
“Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda
ficamente da mulher que vive em zona rural, art. 14.2, item h:
pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, in-
clusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a “Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar
uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes a discriminação contra a mulher nas zonas rurais, a fim de assegurar, em
tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, condições de igualdade entre homens e mulheres, que elas participem no
reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação in- desenvolvimento rural e dele se beneficiem, e em particular assegurar-
ternacional fundada no livre consentimento”. -lhes-ão o direito a: (...) h) gozar de condições de vida adequadas, par-
ticularmente nas esferas da habitação, dos serviços sanitários, da eletri-
Aqui, o direito já aparece enunciado como “moradia adequada”, uma qua- cidade e do abastecimento de água, do transporte e das comunicações”.
lificação que reconhece que há certos tipos de moradias inadequadas, as quais
seriam incompatíveis com a garantia jurídica em questão. É dizer, vai além da Além disso, o direito à moradia também está previsto na Convenção sobre
mera previsão do direito à moradia da Declaração de 1948, agora a garantia os Direitos da Criança, de 1989, art. 27, item 03:
internacional é de moradia adequada. Mais um avanço em nível internacional
na luta jurídica pela moradia, agora por meio de um tratado que, em 2016, conta “Os Estados Partes, de acordo com as condições nacionais e dentro
com 164 Estados68. de suas possibilidades, adotarão medidas apropriadas a fim de ajudar
os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo esse
Tratados específicos também veicularam o direito à moradia. Veja-se a Con-
direito e, caso necessário, proporcionarão assistência material e pro-
venção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
gramas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao ves-
Racial, de 1965, art. V: tuário e à habitação”.

67 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Como se vê, em todos estes tratados internacionais, que tratam de direi-
Sociais e Culturais.
tos de grupos com vulnerabilidades específicas, o direito à moradia aparece
68 https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-3&chapter=4&lang= previsto como um direito social, em regra em conjunto com outras necessi-
en, acesso em 20 mai. 2016.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

dades básicas expressas também como direitos sociais a serem assegurados A segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Huma-
pelos Estados aderentes. nos, em 1996, reafirmou o “compromisso com a total e progressiva realiza-
Além disso, diplomas internacionais mais específicos também enunciaram o ção do direito a moradias adequadas, conforme estabelecido em instrumen-
direito à moradia: a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver, tos internacionais”. Estabeleceu também que, com “a participação dos nossos
decorrente da Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos parceiros públicos, privados e não-governamentais, em todos os níveis” se
de 1976, dispõe, nas Seções II.1 e III.8, respectivamente, que busca assegurar a garantia legal de posse, a “proteção contra discriminação e
igual acesso a moradias adequadas, a custos acessíveis, para todas as pessoas
“A melhoria da qualidade de vida dos seres humanos é o primeiro e mais e suas famílias”. Interessante notar que o contexto desta segunda conferência
importante objetivo de qualquer política de assentamento humano. Estas
é completamente diferente do da primeira, os Estados sociais estavam crise, o
políticas devem facilitar a melhoria rápida e contínua da qualidade de
Estado soviético se desmantelara, o neoliberalismo avançava em todo o mun-
vida de todas as pessoas, começando com a satisfação das necessidades
básicas de alimentação, abrigo, água limpa, emprego, saúde, educação, do. Sintomaticamente, os parceiros privados e não-governamentais aparecem
formação, segurança social, sem qualquer discriminação no que se refere como agentes importantes, ao lado do Estado, para assegurar a segurança na
a raça, cor, sexo, língua, religião, ideologia, origem nacional ou social ou posse e o acesso a moradia adequada.
outras causas, no quadro da liberdade, dignidade e justiça social”; Outro documento decorrente desta segunda Conferência foi a “Agenda Ha-
“Abrigo e serviços adequados são um direito humano básico, que obriga
bitat”, na qual diversos parágrafos se referem aos direitos humanos e ao direito
os governos a garantir a sua realização para todas as pessoas, a começar à moradia, em especial o parágrafo 61, onde se lê:
pela assistência direta aos menos favorecidos através de programas de
“Desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em
autoempoderamento e ação comunitária. Os governos deveriam se es-
1948, o direito à habitação adequada tem sido reconhecido como um
forçar para remover todos os obstáculos que impedem a realização desses
componente importante direito a um padrão de vida adequado. Todos
objetivos. De especial importância é a eliminação da segregação social
os Governos, sem exceção, têm responsabilidades no setor habitacional,
e racial, inter alia, através da criação de comunidades diversificadas, que
conforme exemplificado pela criação de agências ou ministérios de habi-
misture diferentes grupos sociais, ocupações, habitações e instalações”69.
tação, pela alocação de fundos e por suas políticas, programas e projetos
para o setor. A provisão de moradia adequada para todos exige ação não
Neste documento, mais específico, já se vê a preocupação em enunciar o
somente por parte de Governos, mas de todos os setores da sociedade,
direito à moradia ligado a uma concepção ampla de qualidade de vida, não res-
incluindo o setor privado, organizações não governamentais, comuni-
tringindo o conceito apenas ao fato de se estar sob um teto, detalhando a noção dades e autoridades, além de organizações parceiras e entidades da co-
de moradia adequada que fora prevista no pacto social de 1966. Não só habita- munidade internacional. Dentro do contexto geral de uma abordagem
ção, mas habitação digna, num contexto com qualidade de vida. As garantias facilitadora, Governos devem empreender as ações apropriadas de forma
jurídicas avançam mais ainda no reconhecimento do direito à moradia. Estes a promover, proteger e garantir a realização progressiva e total do direito
avanços ocorrem num contexto de amplo otimismo – nos países de capitalismo à habitação adequada.” 70
avançado – quanto ao Estado Social, provedor dos direitos mais básicos para
toda a população. 70 A tradução não oficial está disponível em http://www.empreende.org.br/pdf/Programas%20e%20
Pol%C3%ADticas%20Sociais/Agenda%20Habitat%20para%20Munic%C3%ADpios.pdf, acesso em
21 mai. 2016. No original, disponível em http://www.ohchr.org/Documents/Publications/FS21_rev_1_
Housing_en.pdf, acesso em 21 mai. 2016, se lê: “Since the adoption of the Universal Declaration of
69 Tradução livre do documento em inglês disponível em http://unhabitat.org/the-vancouver- Human Rights in 1948, the right to adequate housing has been recognized as an important component
declaration-on-human-settlements-from-the-report-of-habitat-united-nations-conference-on- of the right to an adequate standard of living. All Governments without exception have a responsibility
human-settlements-vancouve r-canada-31-may-to-11-june-1976/, acesso em 9 abr. 2015. in the shelter sector, as exemplified by their creation of ministries of housing or agencies, by their

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

O texto da “Agenda Habitat” colocará nos parágrafos seguintes uma série em consulta com as populações afetadas, formular e adotar políticas ha-
de avançadas garantias sobre desenvolvimento sustentável de assentamentos bitacionais apropriadas e implementar estratégias e planos efetivos para
humanos, eficiência de mercados habitacionais, cooperação internacional, polí- solucionar esses problemas.” 71
tica de habitação, etc. No já referido artigo 61, enuncia regras não exaustivas as
Nos dois últimos documentos mencionados, como é típico no direito in-
ações que o poder público deve realizar:
ternacional, tanto mais quando se trata de recomendações de agências inter-
(a) Garantia, em termos de habitação, que a lei proíba quaisquer formas nacionais e não de tratados diretamente assinados pelos Estados, as garantias
de discriminação e assegure a todas as pessoas proteção igual e eficaz são formuladas sem a força vinculativa de direitos subjetivos imediatamente
contra discriminação de qualquer tipo, como raça, cor, sexo, língua, re- exigíveis72 – daí a explícita previsão de “progressiva realização”, muito comum
ligião, opiniões políticas ou outras, origem social ou nacional, proprie- quando se trata de direitos sociais. Mesmo com esta limitação, ali estava asse-
dade, nascimento ou outro status. (b) Garantias legais de segurança da gurado o direito à moradia com amplo detalhamento sobre seu alcance, mais
posse e igual acesso à terra para todos, incluindo mulheres e pessoas um grande avanço na luta jurídica por moradia.
vivendo na pobreza, além de proteção eficaz contra despejos forçados
contrários à lei, considerando os direitos humanos, e que os desabrigados
não devem ser penalizados pela sua condição. (c) Adoção de políticas
voltadas para tornar as moradias habitáveis, acessíveis e a custos bai-
xos e viáveis – inclusive para aqueles que não são capazes de garantir
71 Tradução não oficial está disponível em http://www.empreende.org.br/pdf/Programas%20e%20
habitações adequadas por seus próprios meios, dentre outras ações: (i) Pol%C3%ADticas%20Sociais/Agenda%20Habitat%20para%20Munic%C3%ADpios.pdf, acesso
Aumento da oferta de moradias de custos acessíveis por meio de medi- em 21 mai. 2016. No original, disponível em http://www.ohchr.org/Documents/Publications/FS21_
das regulatórias e incentivos de mercado; (ii) Aumento da capacidade rev_1_Housing_en.pdf, acesso em 21 mai. 2016, se lê: “These actions include, but are not limited to:
(a) Providing, in the matter of housing, that the law shall prohibit any discrimination and guarantee
de compra através da provisão de subsídios e aluguel e outras formas de
to all persons equal and effective protection against discrimination on any ground such as race,
assistência à habitação para pessoas vivendo na pobreza; (iii) Apoio a colour, sex, language, religion, political or other opinion, national or social origin, property, birth or
programas comunitários, cooperativistas, de aluguel sem fins lucrativos other status; (b) Providing legal security of tenure and equal access to land for all, including women
e de moradia própria; (iv) Promoção de serviços para os desabrigados and those living in poverty, as well as effective protection from forced evictions that are contrary to
the law, taking human rights into consideration and bearing in mind that homeless people should
e outros grupos vulneráveis; (v) Mobilização de recursos financeiros
not be penalized for their status; (c) Adopting policies aimed at making housing habitable, affordable
inovadores e outros recursos – públicos e privados – para habitação e and accessible, including for those who are unable to secure adequate housing through their own
desenvolvimento comunitário; (vi) Criação e promoção de incentivos means, by, inter alia: (i) Expanding the supply of affordable housing through appropriate regulatory
de mercado para estimular o setor privado a atender à necessidade de measures and market incentives; (ii) Increasing affordability through the provision of subsidies and
rental and other forms of housing assistance to people living in poverty; (iii) Supporting community-
aluguéis e habitações próprias a preços acessíveis; (vii) Promoção de pa-
based, cooperative and non-profit rental and owner-occupied housing programmes; (iv) Promoting
drões de desenvolvimento espacial sustentável e sistemas de transporte supporting services for the homeless and other vulnerable groups; (v) Mobilizing innovative financial
que melhorem a acessibilidade a produtos, serviços, áreas de lazer e ao and other resources - public and private - for housing and community development; (vi) Creating and
trabalho. (d) Monitoramento eficaz e avaliação das condições de habi- promoting market-based incentives to encourage the private sector to meet the need for affordable
rental and owner-occupied housing; (vii) Promoting sustainable spatial development patterns and
tação, incluindo a dimensão do déficit e da inadequação habitacional e,
transportation systems that improve accessibility of goods, services, amenities and work; (d) Effective
monitoring and evaluation of housing conditions, including the extent of homelessness and inadequate
housing, and, in consultation with the affected population, formulating and adopting appropriate
allocation of funds for the housing sector and by their policies, programmes and projects. The provision
housing policies and implementing effective strategies and plans to address those problems”.
of adequate housing for everyone requires action not only by Governments, but by all sectors of society,
including the private sector, nongovernmental organizations, communities and local authorities, as well 72 Não se adentrará nas filigranas jurídicas da internalização do direito internacional. Basta mencionar
as by partner organizations and entities of the international community. Within the overall context of que, no Brasil, após Emenda Constitucional nº 45, de 2004, tratados internacionais adquirem força
an enabling approach, Governments should take appropriate action in order to promote, protect and constitucional se aprovados por rito similar ao de emenda constitucional. Tratados anteriores teriam
ensure the full and progressive realization of the right to adequate housing.” força supralegal, mas infraconstitucional, segundo entendimento do STF (RE 466.343-SP).

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Também se previu disposição relativa a direito à moradia na Agenda 21 so- onde podem ser encaminhadas as questões do direito à moradia, e tudo isso
bre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992. No Capítulo 7 (Promoção do com abrangência global.
Desenvolvimento Sustentável dos assentamentos humanos), item 6, lê-se que No âmbito interno, o direito à moradia também tem farta enunciação. Está
previsto na Constituição Federal do Brasil no art. 6º, num rol não exaustivo
“O acesso a habitação segura e saudável é essencial para o bem-estar de direitos sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação,
físico, psicológico, social e econômico das pessoas, devendo ser par-
o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
te fundamental das atividades nacionais e internacionais. O direito a
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
habitação adequada enquanto direito humano fundamental está con-
sagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Constituição”. Esta redação foi dada pela Emenda Constitucional n. 26, de 14
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Apesar fev. 2000, incluindo no rol originário o direito à moradia. Antes da previsão ex-
disso, estima-se que atualmente pelo menos 1 bilhão de pessoas não pressa, já se entendia que o direito à moradia decorria da proteção à dignidade
disponham de habitações seguras e saudáveis e que, caso não se tomem humana e da meta de construção de uma sociedade justa, livre e igualitária75.
as medidas adequadas, esse total terá aumentado drasticamente até o Este direito também está previsto em diversos diplomas legais76 e infrale-
final do século e além.” gais77, com destaque para o Estatuto da Cidade, lei 10.257/2001, e para os planos
diretores municipais.
Ainda, diversas resoluções sobre o assunto foram adotadas por órgãos da Assim, como se pode observar, não é por falta de garantia legislativa na-
ONU, como, por exemplo, a Resolução 2000/201373 (E/CN.4/2000/13, 17 abr. cional e internacional que há pessoas em situação de rua, pessoas sem-teto e
2000) da Comissão de Direitos Humanos, sobre direito das mulheres à pro-
priedade igualitária, acesso e controle sobre a terra e sobre direitos iguais à
propriedade e à moradia adequada; as Resoluções 1997/19 (E/CN.4/Sub.2/ 75 O. SERRANO JUNIOR, O Direito Humano Fundamental à Moradia Digna, 2012, p. 86.
RES/1997/19), 1998/15 (E/CN.4/Sub.2/RES/1998/15) e 1999/15 (E/CN.4/Sub.2/ 76 Tratando diretamente da garantia à habitação ou a especificando, mencione-se, exemplificativamente,
RES/1999/15), da Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção o decreto-lei 9.760/1946, que dispõe sobre os bens imóveis da União; a lei 4.591/1964, que dispõe sobre
o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias; Decreto-lei 271/1967, que dispõe sobre
de Minorias, sobre o direito das mulheres a moradia adequada, à terra e à pro- o loteamento urbano e responsabilidade do loteador; lei 6767/1979, que dispõe sobre o Parcelamento
priedade, e sobre o mulheres e direito ao desenvolvimento; e a resolução 42/1 do Solo Urbano; a lei 10.188/2001, que criou o Programa de Arrendamento Residencial e institui o
(E/CN.6/1998/12), da Comissão sobre a Condição Jurídica e Social da Mulher, arrendamento residencial com opção de compra; a lei 9.636/1998, que dispõe sobre a regularização,
administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União; lei 11.124/2005, que
ligada ao Conselho Econômico e Social da ONU, sobre direitos humanos e dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional
discriminação nos direito fundiário. de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS; lei 11.445, de 05
de jan. de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; Medida Provisória n.
Institucionalmente, a ONU possui uma agência especializada para a ques-
2.220, de 04 set. 2001, que dispõe sobre a concessão de uso especial de que trata o § 1o do art. 183
tão da habitação, o Programa das Nações Unidas para Assentamentos Hu- da Constituição, cria o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU; a lei 11.977/2009,
manos (Habitat), ligada à Assembleia Geral. Possui também uma Relatoria que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de
assentamentos localizados em áreas urbanas.
Especial para o Direito à Moradia Adequada74, ligada ao Conselho de Direitos
77 Tratando diretamente da garantia à habitação ou a especificando, mencione-se, na seara infralegal,
Humanos. Assim, a luta jurídica também logrou forjar espaços institucionais exemplificativamente, o provimento 44/2015 do CNJ, que estabelece normas gerais para o registro
da regularização fundiária urbana; as resoluções CONAMA nº 369/2006, que dispõe sobre os casos
excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam
a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente-APP; Ministério
das Cidades nº 127, de 16 set. 2011, que deliberou que as obras e empreendimentos que envolvam
73 Esta Subcomissão atualmente está ligada ao Conselho de Direitos Humanos e se chama Subcomissão
recursos federais voltados ao desenvolvimento urbano que ensejem reassentamentos, especialmente
para a promoção e proteção dos direitos humanos.
as intervenções previstas na Matriz de Responsabilidade da Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016,
74 http://www.ohchr.org/EN/Issues/Housing/Pages/HousingIndex.aspx. garantam o direito à moradia e à cidade no seu processo de implantação.

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pessoas vivendo em condições habitacionais inadequadas. Qual seria, então, o igualdade material, os direitos que exigem do Estado prestações aos trabalha-
papel de toda esta positivação? O papel central é o seguinte: a captura, pelo di- dores para evitar que vivam na pobreza e na miséria decorrentes das tendências
reito, da luta pelas necessidades básicas dos trabalhadores, especificamente, da do capital de absorver as riquezas sociais para sua reprodução e de manter os
luta pelo direito à moradia. Numa análise sobre outro ramo do direito, o direito trabalhadores nos níveis de subsistência. Reivindicações sociais são reconheci-
do trabalho, Bernard Edelman chegou à seguinte conclusão: das como direitos pelo Estado. As classes trabalhadoras conquistam e aderem
ao poder estatal. O que viabiliza esta guinada e o desenvolvimento de um Es-
“Sem voz ou, quando toma a palavra, acusada de anacronismo – ao tado social capitalista é um contexto específico de massificação do consumo e
lado de Lenin e Marx, o que não é tão mal –, acusada de espontane-
da produção de bens de consumo. Os primeiros direitos sociais surgem como
ísmo – ao lado de Mao –, ‘presa’, capturada nas categorias jurídicas,
estímulo à ampliação do mercado consumidor, sob a bandeira do combate às
esmagada pela ideologia, pela tecnicidade, pelo economicismo, ela é
obrigada a negociar, a exprimir-se na linguagem do ‘comedimento’, da crises capitalistas de superprodução. Mas o crescimento do mercado consumi-
ordem e do direito”78. dor80 apenas expandirá o universo sobre o qual as crises se abatem. Há uma
mudança profunda: se a questão social era estranha ao Estado liberal e com ela
A captura pela linguagem do comedimento se dá potencialmente sempre se lidava essencialmente por meio da caridade ou da repressão, com o Welfare
que haja algum tipo de conflito de classe que se busca conter: na venda da força State a questão social passa a ser atribuição do Estado enquanto promoção de
de trabalho, o direito do trabalho/direito sindical é o terreno adequado em que certo nível de subsistência para as classes trabalhadoras. O Estado passa a ser
deve negociar; a condição para a venda da força de trabalho é o despojamento garantidor não apenas da “paz” na produção, mas também de um mercado con-
do trabalhador, e os conflitos neste terreno também são abduzidos para a arena sumidor ampliado essencial à circulação.
especificamente jurídica. É dizer, a captura para a gramática do direito cria A partir deste patamar é que as condições mínimas de dignidade viáveis em
uma arena específica para o embate entre as classes e define as armas que cada dado momento e lugar são reconhecidas e asseguradas como “direito social”.
participante do embate pode usar. As classes se diluem em sujeitos de direito e Apenas nestes limites é que se pode dizer que há juridicidade destes direitos
até mesmo em sujeitos de direitos coletivos. Também a luta pela habitação deve sociais: enquanto estes estejam reconhecidos e efetivados nos limites do que
se limitar a ser uma luta jurídica pelo direito à moradia. a reprodução do capital suporta em dado contexto (tempo e lugar); para além
disso, se está no terreno da utopia concreta81 ou da luta política, não mais no
terreno da juridicidade.
2.2. Direito à moradia como direito social
o direito à paz). Estes últimos tratam de interesses da humanidade como um todo, de povos, ou de
Os assim chamados direitos humanos de segunda geração79 aparecem histo- interesses intergeracionais.
ricamente como resposta aos problemas sociais da expansão do capitalismo no 80 Como observa F. R. BATISTA, Os limites do bem-estar no Brasil, 2015, p. 624, “A criação do mercado
século XIX. São eles os direitos sociais, econômicos e culturais, os direitos da consumidor interno ocorre como garantia de emprego a quem pode trabalhar e de renda a quem
não pode. Por isso o Estado social se constitui pelo patrocínio de políticas de pleno emprego com
condições ótimas de trabalho, donde o crescimento também dos direitos trabalhistas junto com os
78 B. EDELMAN, A legalização da classe operária, 2016, p. 141. níveis de emprego, e pela criação de um om sistema de previdência e assistência social, de modo a
redistribuir renda para o consumo”.
79 A Teoria Geracional dos direitos humanos foi desenvolvida por Karel Vasak e é tida atualmente como
uma teoria didática da história dos direitos humanos. Ela distingue três gerações (ou dimensões) de 81 No sentido apontado por A. L. MASCARO. Utopia e Direito – Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da
direitos: os direitos humanos de 1ª geração, que trazem como bandeira o direito à liberdade, na voz Utopia, 2008, pp. 14, 113, 114 e 160, lendo E. Bloch, cujo “mote é bastante diverso da utopia tomada
dos direitos civis e políticos; os direitos humanos de 2ª geração, que promovem o valor da igualdade tradicionalmente pela filosofia e pela política”. Daí a distinção entre utopia abstrata (apoiada no
e referem-se, sobretudo, aos direitos econômicos, sociais e culturais; e os direitos humanos de 3ª idealismo, no imaginário, no não-lugar, no inexistente, como a Utopia de Thomas Morus) e utopia
geração, que tomam como vetor o valor da solidariedade e envolvem os direitos difusos (em especial concreta (a qual parte da atividade humana, da realidade e de suas contradições dialéticas, das quais
o direito ao desenvolvimento, o direito à autodeterminação dos povos, o direito ao meio ambiente, se descobre as possibilidades efetivas). Daí ser “a utopia concreta... uma práxis voltada ao amanhã”.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Os direitos humanos de segunda geração não podem tocar no despojamento aquecimento e iluminação, facilidades sanitárias, meios de armazena-
do trabalhador, na liberdade e igualdade para a venda da força de trabalho. Os gem de comida, depósito dos resíduos e de lixo, drenagem do ambiente
seus limites são justamente o nível de despojamento adequado à exploração da e serviços de emergência.
mão de obra num dado contexto. c. Custo acessível. Os custos financeiros de um domicílio associados à
Com o surgimento dos “direitos sociais”, o direito à moradia é uma das ne- habitação deveriam ser a um nível tal que a obtenção e satisfação de
cessidades que passa a ser definida como tal. A habitação, como outras neces- outras necessidades básicas não sejam ameaçadas ou comprometidas.
sidades básicas de subsistência humana, passa a ser assegurada como norma Passos deveriam ser tomados pelos Estados-partes para assegurar que a
jurídica estatal, passa a ser uma obrigação do Estado, obrigação de proteção, de porcentagem dos custos relacionados à habitação seja, em geral, men-
surado de acordo com os níveis de renda. Estados-partes deveriam es-
promoção e de regulação. E as normas jurídicas evoluem paulatinamente, no
tabelecer subsídios habitacionais para aqueles incapazes de arcar com
âmbito internacional e interno, até ser assegurada não apenas a habitação, mas
os custos da habitação, tão como formas e níveis de financiamento
a habitação digna e os correlatos direitos que permitem a sua existência. Neste habitacional que adequadamente refletem necessidades de habitação.
sentido, o Comentário Geral n.º 4, do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais De acordo com o princípio dos custos acessíveis, os possuidores deve-
e Culturais, sobre o direito a uma habitação condigna, que parte da noção de riam ser protegidos por meios apropriados contra níveis de aluguel ou
que tal direito “não deveria ser interpretado em um sentido estreito ou restrito aumentos de aluguel não razoáveis. Em sociedades em que materiais
que o equipara com, por exemplo, o abrigo provido meramente de um teto sobre naturais constituem as principais fontes de materiais para construção,
a cabeça dos indivíduos ou julga o abrigo exclusivamente como uma mercado- passos deveriam ser tomados pelos Estados-partes para assegurar a dis-
ria”. O Comentário, então, define os elementos básicos de adequabilidade de ponibilidade desses materiais.
uma moradia em qualquer contexto: d. Habitabilidade. A habitação adequada deve ser habitável, em ter-
mos de prover os habitantes com espaço adequado e protegê-los do
“a. Segurança legal de posse. A posse toma uma variedade de formas, in- frio, umidade, calor, chuva, vento ou outras ameaças à saúde, ris-
cluindo locação (pública e privada) acomodação, habitação cooperativa, cos estruturais e riscos de doença. A segurança física dos ocupantes
arrendamento, uso pelo próprio proprietário, habitação de emergência deve ser garantida. O Comitê estimula os Estados-partes a, de modo
e assentamentos informais, incluindo ocupação de terreno ou proprie- abrangente, aplicar os Princípios de Saúde na Habitação, preparado
dade. Independentemente do tipo de posse, todas as pessoas deveriam pela OMS, que vê a habitação como o fator ambiental mais freqüen-
possuir um grau de sua segurança, o qual garanta proteção legal contra temente associado a condições para doenças em análises epidemio-
despejos forçados, pressões incômodas e outras ameaças. Estados-partes lógicas, isto é, condições de habitação e de vida inadequadas e de-
deveriam, conseqüentemente, tomar medidas imediatas com o objetivo ficientes são invariavelmente associadas com as mais altas taxas de
de conferir segurança jurídica de posse sobre pessoas e domicílios em mortalidade e morbidade.
que falta proteção, em consulta real com pessoas e grupos afetados.
e. Acessibilidade. Habitações adequadas devem ser acessíveis àqueles
b. Disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infra-estrutura. com titularidade a elas. A grupos desfavorecidos deve ser concedido
Uma casa adequada deve conter certas facilidades essenciais para saú- acesso total e sustentável para recursos de habitação adequada. As-
de, segurança, conforto e nutrição. Todos os beneficiários do direito sim, a grupos desfavorecidos como idosos, crianças, deficientes físicos,
à habitação adequada deveriam ter acesso sustentável a recursos na- os doentes terminais, os portadores de HIV, pessoas com problemas
turais e comuns, água apropriada para beber, energia para cozinhar, crônicos de saúde, os doentes mentais, vítimas de desastres naturais,
pessoas vivendo em áreas propensas a desastres, e outros deveriam ser
assegurados um patamar de consideração prioritária na esfera habita-
MASCARO ainda aproxima E. Bloch de E. B. Pachukanis ao afirmar que ambos comungam da visão
do “caráter utópico da sociedade sem Estado e sem direito e, portanto, sem dominação institucional”.
cional. Leis e políticas habitacionais deveriam levar em conta as ne-

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

cessidades especiais de habitação desses grupos. Internamente, muitos judiciais82 e ao papel da interpretação, enfim, mais adaptado a novos tempos
Estados-partes, aumentando o acesso a terra àqueles que não a pos- capitalistas. Será que esta “evolução do direito” pode levar a romper as dificul-
suem ou a segmentos empobrecidos da sociedade, deveriam constituir dades de satisfação das necessidades habitacionais dos trabalhadores? Senão
uma meta central de políticas. Obrigações governamentais precisam vejamos. Princípios como o da função social da propriedade estabelecem limi-
ser desenvolvidas, objetivando substanciar o direito de todos a um lu-
tes ao direito de propriedade, rejeitando a concepção que este seria um direito
gar seguro para viver com paz e dignidade, incluindo o acesso para o
absoluto. Por este meio, seria possível resolver o problema da falta de habitação?
terreno como um direito reconhecido.
Uma perspectiva mais principiológica no direito levaria a uma aceitação maior
f. Localização. A habitação adequada deve estar em uma localização que do direito à moradia, a uma maior implementação das necessidades habitacio-
permita acesso a opções de trabalho, serviços de saúde, escolas, creches
nais pela via jurídica? A resposta categórica é não.
e outras facilidades sociais. Isso é válido para grandes cidades, como
Primeiro, observe-se como a doutrina jurídica vê a função social da proprie-
também para as áreas rurais, em que os custos para chegar ao local de
trabalho podem gerar gastos excessivos sobre o orçamento dos lares po- dade. A função social da propriedade, especificamente, é conceito que afeta
bres. Similarmente, habitações não deveriam ser construídas em locais a propriedade a uma função que transcende os poderes do proprietário (usar,
poluídos nem nas proximidades de fontes de poluição que ameacem o gozar, dispor e reaver). Foi desenvolvida inicialmente por Leon Duguit, antes
direito à saúde dos habitantes. mesmo de os direitos sociais serem aceitos como tais na doutrina jurídica e na
g. Adequação cultural. A maneira como a habitação é construída,
legislação. Este autor contestava a noção de propriedade como direito subjetivo
os materiais de construção usados e as políticas em que se baseiam (individualista) e a via como função social. Atualmente, a doutrina civilista
devem possibilitar apropriadamente a expressão da identidade e di- moderna entende haver uma “constitucionalização do direito civil”, com a sub-
versidade cultural da habitação. Atividades tomadas a fim do de- missão das regras do direito privado à dignidade da pessoa humana.
senvolvimento ou modernização na esfera habitacional deveriam Porém, as ideias refletem a realidade e não o contrário, por isso, positiva-
assegurar que as dimensões culturais da habitação não fossem sa- mente, a propriedade continua sendo prevista como um direito. A doutrina
crificadas, e que, entre outras, facilidades tecnológicas modernas
sejam também asseguradas.”
82 Veja-se, quanto a estas, como a função social e o direito à moradia podem ser implementados por
um Tribunal: APELAÇÕES CÍVEIS. EMBARGOS DE TERCEIRO. DIREITO A MORADIA.
Nada mais compreensivo e inclusivo. Articula-se o direito à moradia ao di- DIREITO SOCIAL MÍNIMO. GARANTIA FUNDAMENTAL. ENTRECHOQUE COM
reto à cidade e à regulação urbanística, à segurança, habitabilidade e padrões DIREITO DE CRÉDITO. GARANTIA POR LEI ORDINÁRIA. PREVALÊNCIA. A função social
da propriedade transcende não só à própria lei substantiva, mas também ao próprio direito individual,
culturais plurais. Mas a garantia jurídica à habitação é apenas mais uma no notadamente o direito de crédito. O direito à moradia de uma comunidade, como mínimo social,
ordenamento, deve conviver e ser ponderada com outras garantias, com a li- possui prevalência sobe o direito de crédito de instituição financeira. Apelações do banco improvidas
berdade, a igualdade, a propriedade privada e o livre trânsito de mercadorias e providas as apelações dos embargantes. Sucumbência redimensionada. (acórdão do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível Nº 70016616682, Décima Nona Câmara Cível, Relator
– inclusive das que servem à habitação. A equação não fecha. A inefetividade Guinther Spode, Julgado em 10/10/2006). Esta decisão foi logo em seguida cassada pelo Tribunal,
crônica dos direitos sociais passa a ser típica do novo contexto de garantias ju- AgRg no REsp 974504(2007/0188692-3 - 21/09/2015), Decisão Monocrática- Ministra MARIA
rídicas sociais. Direto ao ponto: os direitos sociais não superam as necessidades ISABEL GALLOTTI, com base em um precedente técnico: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.
HIPOTECA. EFETIVAÇÃO ANTERIOR À AQUISIÇÃO DO IMÓVEL. EFICÁCIA.
sociais dos trabalhadores, antes, as consolidam e criam uma arena própria para PREQUESTIONAMENTO DE TEMA CONSTITUCIONAL. DESCABIMENTO. I - Salvo nos
a sua discussão, a arena do direito. casos de aquisições feitas através do Sistema Financeiro de Habitação, com vistas à obtenção da casa
própria, o instituto da hipoteca deve ser prestigiado. Principalmente se o gravame é efetivado antes
A doutrina jurídica romano-germânica, na segunda metade do século XX, da celebração da compra e venda. II - Os embargos de declaração se prestam a expungir do julgado
passou por alterações principiológicas e pretendeu produzir um direito mais eventuais omissão, obscuridade ou contradição, não se caracterizando meio próprio à discussão de
aberto à moral e à política, menos positivista, e também mais atento às decisões matéria constitucional, ainda que para fins de prequestionamento. Embargos de declaração acolhidos
com fins aclaratórios, sem modificação do julgado.

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jurídica descreve bem este fenômeno: “Estamos em crer que, ao lume do Não há na Constituição critérios similares para a função social da proprie-
direito positivo constitucional, a propriedade ainda está claramente confi- dade urbana. Apenas em 2001, o Estatuto da Cidade veio a estabelecer que:
gurada como um direito que deve cumprir uma função social e não como
sendo pura e simplesmente uma função social, isto é, bem protegido tão só “Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
na medida em que a realiza”83. Ou seja, o direito de propriedade deve cum-
diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quan-
prir uma função social.
to à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das ativida-
Segundo ponto, o legislativo. As coisas ficam mais claras: há limites tam- des econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.”
bém na função social. Aliás, ela nada mais é do que enuncia seu próprio
nome, uma das funções da sociedade em que impera o sociometabolismo do Mas o dispositivo ainda é vago, necessitando de regulamentação municipal
capital. No Brasil, a função social da propriedade rural foi estabelecida na (ou estadual no caso de metrópoles). Apenas em 2013 a cidade de São Paulo,
própria Constituição Federal, prevendo-se critérios objetivos para a verifica- pioneiramente, cria um “Departamento de Controle Função Social da Proprie-
ção de sua observância: dade-DCFSP”, na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, quando
iniciará a aplicação do IPTU progressivo. Este prevê que em caso de descumpri-
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins
mento de obrigações de “parcelamento, edificação ou utilização compulsórios”
de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função
(artigo 5º do Estatuto da cidade), “o Município procederá à aplicação do impos-
social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária,
com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até to sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tem-
vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será po, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos”
definida em lei. (...) (artigo 7º do Estatuto da cidade). Passados os 5 anos, possível a desapropriação
com títulos da dívida pública. É dizer, a propriedade privada continua prote-
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural aten-
de, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabeleci- gida, mesmo sem cumprir por anos a função social, já que a desapropriação se
dos em lei, aos seguintes requisitos: realiza com indenização com títulos da dívida pública. A “sanção” não importa
em prejuízo financeiro direto ao proprietário descumpridor da função social.
I - aproveitamento racional e adequado;
O Estatuto da Cidade resultou de lutas sociais por uma cidade mais inclu-
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação siva, tendo nele sido positivada uma “estratégia de regulação distributivista do
do meio ambiente; solo”, centrada em instrumentos que deveriam permitir o acesso da população
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; de baixa renda à terra urbanizada, “como as ZEIS de vazios e os instrumentos de
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
sanção à retenção especulativa de terrenos em áreas bem localizadas e a chama-
trabalhadores. da ‘gestão social da valorização mobiliária, que incluía o estabelecimento de ins-
trumentos para captura de mais-valias imobiliárias para fundos públicos”84. Mas
Observe-se que o direito de propriedade continua protegido mesmo quando o contexto de sua aprovação era o do auge do neoliberalismo no Brasil, o qual
não cumpre uma função social: a desapropriação decorrente da improdutivida- não foi revertido nos governos subsequentes do PT (Partido dos Trabalhadores).
de do latifúndio garante a indenização ao proprietário, o que nada mais é do Fato é que diversos princípios adotados no “Estatuto” decorreram de propostas
que uma proteção ao mero título jurídico sobre a terra.

84 R. ROLNIK. 10 anos do Estatuto da Cidade: Das Lutas pela Reforma Urbana às Cidades da Copa do
83 C. A. BANDEIRA DE MELLO, Elementos de Direito Administrativo. São Paulo, Malheiros, 1987, p. 41. Mundo, 2013.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

de movimentos sociais relacionados à luta da Reforma Urbana85, princípios cuja Os princípios previstos no artigo 2º do Estatuto da Cidade buscavam jus-
efetivação, entretanto, encontrariam diversos obstáculos no contexto de políti- tamente efetivar as propostas deste movimento pela Reforma Urbana. Estes
cas de viés neoliberais. É neste sentido que observa Rolnik que princípios são chamados “diretrizes gerais” no referido artigo, que assim dispõe:

“enquanto o movimento pela Reforma Urbana procurava fomentar Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvi-
o debate em torno da desmercantilização do solo urbano, em várias mento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante
cidades brasileiras, Planos Estratégicos desenhados para reposicionar as seguintes diretrizes gerais:
as cidades no âmbito da competição global pela atração de investi-
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito
mentos internacionais, plataforma neoliberal de resposta a crise, era
à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura
também experimentada”86.
urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para
as presentes e futuras gerações;
O Estatuto trazia vitórias jurídicas que deveriam se submeter a um contexto
econômico-social bastante restritivo: II – gestão democrática por meio da participação da população e de as-
sociações representativas dos vários segmentos da comunidade na for-
“Com a crise da dívida no Terceiro Mundo, no início dos anos 80, o mulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos
frágil padrão de financiamento das cidades até então constituído, ruiu. de desenvolvimento urbano;
Nessa ocasião, ocorre um importante aumento da influência e do poder III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais se-
de barganha das instituições multilaterais nas políticas públicas dos pa- tores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao in-
íses em crise. A ação do BID e do Banco Mundial deixa de ser realizada teresse social;
em termos de recomendações e passa à intervenção mais ativa, como
parte das exigências dos acordos de renegociação da dívida, protagoni- IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição
zados pelo Fundo Monetário Internacional. A reforma do sistema habi- espacial da população e das atividades econômicas do Município e
tacional, a descentralização das políticas públicas, a criação de fundos do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir
de financiamento onerosos e o “ajuste fiscal das cidades” foram partes as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o
importantes das reformas estruturais dos anos 80. Esse último pretendeu meio ambiente;
corrigir as “distorções” de preços dos serviços públicos (que passariam a V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e servi-
cobrar seu custo real), realizar cortes nos subsídios e ampliar as taxas e ços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às
impostos urbanos”87. características locais;
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;

85 Sobre o Movimento Nacional para a Reforma Urbana, vide N. SAULE JR e K. UZZO, A trajetória c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequa-
da reforma urbana no Brasil, disponível em http://www.redbcm.com.br/arquivos/bibliografia/a%20 dos em relação à infra-estrutura urbana;
trajectoria%20n%20saule%20k%20uzzo.pdf, acesso em 05 jun. 2016.
d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam fun-
86 R. ROLNIK. 10 anos do Estatuto da Cidade: Das Lutas pela Reforma Urbana às Cidades da Copa do
Mundo, 2013, p. 10. cionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-es-
87 P. FIORI ARANTES, O Ajuste Urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades,
trutura correspondente;
2006, p. 66.

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e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutili- XVI – isonomia de condições para os agentes públicos e privados na
zação ou não utilização; promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de ur-
banização, atendido o interesse social.
f) a deterioração das áreas urbanizadas;
XVII - estímulo à utilização, nos parcelamentos do solo e nas edificações
g) a poluição e a degradação ambiental;
urbanas, de sistemas operacionais, padrões construtivos e aportes tecno-
h) a exposição da população a riscos de desastres (Incluído dada pela Lei lógicos que objetivem a redução de impactos ambientais e a economia
n.º 12.608, de 2012); de recursos naturais.”
VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e ru-
rais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e A legislação consolida lutas sociais e busca reduzi-las a disputas no âmbito
do território sob sua área de influência; jurídico, o que muitas vezes acaba apenas por ritualizar os movimentos de lutas
sociais e as políticas públicas de distribuição de riqueza. O que há de fato é um
VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de
urbanismo que distribui status, poder e riqueza sob os influxos do sociometabo-
expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental,
social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; lismo do capital. Ronaldo Coutinho vai direto ao ponto e observa que:

IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo “Não há, em tese, dúvida sobre a intenção e o mérito do Estatuto da
de urbanização; Cidade, na medida em que a referida Lei assenta na premissa de que a
X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e fi- noção jurídica de propriedade privada hoje não comporta mais em si
nanceira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, mesma os pressupostos de uma visão unívoca e absoluta, eis que há ex-
de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a pressiva parcela de juristas de acordo com a noção de que a propriedade,
fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais; como bem de produção, não deve ser simplesmente puro objeto de apro-
priação privada, mas sim deve reverter à coletividade os benefícios de
XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha re- sua funcionalidade. Em princípio, portanto, os instrumentos urbanísti-
sultado a valorização de imóveis urbanos; cos referidos no Estatuto da Cidade representariam o arcabouço jurídico
XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural de garantia do direito difuso à cidade, entendido este como a construção
e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico de uma cidadania participativa e democrática.
e arqueológico; Contudo, o que permanece intocado nessas abordagens é a lógica subja-
XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada cente intrínseca à produção e à reprodução capitalista do espaço, lógica
nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com que está na própria origem do processo de acumulação do capital, ca-
efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou cons- racterizado pelo desenvolvimento desigual e combinado das forças pro-
truído, o conforto ou a segurança da população; dutivas e pela contradição fundamental da qual deriva a sociabilidade
própria do capitalismo.”88
XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por po-
pulação de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais Assim, o sociometabolismo do capital é que condiciona o desenvolvimento
de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situ-
dos direitos sociais de segunda geração, assim como o desenvolvimento do
ação socioeconômica da população e as normas ambientais;
pós-positivismo jurídico e de sua abertura hermenêutica para além do es-
XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do trito positivismo kelseniano. Se a doutrina jurídica passa a reconhecer que
solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e
o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais;
88 R. COUTINHO. A Mitologia da Cidade Sustentável no Capitalismo, 2011, p. 18-19.

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o direito de propriedade não é um direito absoluto, em nível estrutural, este sobre as relações econômicas – bastante visíveis – a moldar a dinâmica das
reconhecimento ocorre para evitar a concentração monopolista da proprie- cidades e da habitação.
dade dos meios de produção. No limite, visa a preservar a própria reprodução A cidade de São Paulo, cuja expansão urbana foi estudada em detalhes por
sociometabólica do capital. É o próprio estágio de desenvolvimento das forças Rolnik90, é um exemplo de como o uso de regras urbanísticas pelas classes do-
produtivas e de acumulação do capital que dita os limites de implementação minantes demarcou localmente as regiões para esta habitar e frequentar e as
dos direitos sociais. As contradições sociais são mantidas com sucesso sob regiões dos “outros”, dos excluídos da “cidade formal” ou “cidade legal”. O sur-
controle jurídico e político. gimento desta, na verdade, se deu à revelia da legislação urbana, que servia para
modelar e regular o acesso às áreas urbanas mais centrais, daí a contraposição
entre “cidade ilegal” e “cidade legal”. Esta contraposição mostra como o direito
2.3. O papel da lei e de seus conflitos de interesse na é instrumento mobilizado para assegurar a cisão de classe.
produção habitacional As classes trabalhadoras eram excluídas primeiramente pelas leis de merca-
do, uma vez que não possuíam recursos para a aquisição de terras e moradias
Todas as garantias de direito à moradia, mais os elevados princípios jurídicos nas regiões centrais. Tal exclusão se consolidava com uma legislação urbanís-
e o aparato judicial existentes, deveriam servir para implementar a habitação tica que impunha padrões e regras de ocupação com a finalidade de garantir
para quem não tem. Mas o ordenamento jurídico, visto como um todo, tem o padrão de vida dos grupos formuladores da lei. Os espaços que “sobravam” é
cuidado de manter o despojamento do trabalhador e o espaço para acumulação que acabavam sendo ocupados por populações de baixa renda. Observar o de-
e expansão do capital nos níveis necessários à reprodução deste. senvolvimento da cidade de São Paulo é de grande relevância para compreender
Raquel Rolnik, analisando a legislação urbana de São Paulo no início da sua dinâmicas capitalistas de expansão urbana, já que se tratou de um exemplo de
industrialização, explicitou a existência daquilo que ela chamou uma “teia nor- crescimento impulsionado pela industrialização, que atraiu massas de trabalha-
mativa” que tinha como efeito principal não efetivar direitos, mas discriminar dores à cidade ao longo do século XX.
espaços de poder e de exclusão: A expansão da cidade de São Paulo para além da zona central se deu em
grande medida à margem da legislação urbanística, mas não à margem das “leis
“Uma teia invisível e silenciosa se estende sobre o território da cidade: a
de mercado”: os interesses de empreendedores imobiliários e as necessidades de
legislação urbana, coleção de leis, decretos e normas que regulam o uso
e ocupação da terra urbana. Mais do que definir formas de apropriação expansão do capitalismo industrial determinaram a expansão da cidade. Esta
do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular o expansão seguia um padrão típico no qual o custo da moradia estava excluído
desenvolvimento de cidade, a legislação urbana atua como linha demar- ou era diminuto no custo da reprodução da força de trabalho91. Dito de outro
catória, estabelecendo fronteiras de poder”89. modo, a autoprodução das moradias pelos trabalhadores levava a que custos
com habitação fossem em grande parte excluídos do salário. Sobre esta questão,
Realmente, a lei e o direito, historicamente, têm servido como mais um observa Flávio Villaça:
instrumento das classes dominantes para manter privilégios e impor interes-
ses. Com alcance menor, possível na medida em que tal seja comportado pelos “cabe destacar o papel da habitação nos custos de reprodução da força de
imperativos de reprodução do sistema sociometabólico do capital, serve como trabalho. Quanto menos da riqueza social for gasto para vestir, alimen-
instrumento distributivo da riqueza socialmente produzida. A “teia invisível
e silenciosa”, na verdade, nada mais é do que o sistema jurídico que se ergue 90 Vide, por exemplo, R. ROLNIK. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-
1936), 1999, e R. ROLNIK. A cidade e a Lei. Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São
Paulo, 1997.
89 R. ROLNIK. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-1936), 1999, p. 2. 91 F. VILLAÇA, O que todo cidadão precisa saber sobre habitação, 1986, p. 7.

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tar, cuidar da saúde e abrigar o trabalhador, tanto maior a parcela dessa que amedrontava as elites e servia como pretexto para legislações com viés
mesma riqueza que sobrará para entrar no circuito da acumulação geran- segregacionista. Não era nenhuma novidade criada no contexto do capitalismo
do lucros. O valor da parcela da riqueza social dispendida para sustentar periférico brasileiro: no Século XIX, Engels já descrevia claramente o modo
e reproduzir o trabalhador, para a reprodução da força de trabalho, é o como ocorrera movimento similar na Inglaterra industrial:
chamado ‘custo de reprodução da força de trabalho’. Grande parte desse
custo é pago com o salário do trabalhador, de maneira que quanto mais “As modernas ciências da natureza demonstraram que os chamados
alto seu padrão de vida, inclusive seu padrão de habitação, maior terá ‘bairros maus’ onde os operários estão apinhados são os focos de todas as
que ser o seu salário. Nem sempre é possível a burguesia rebaixar ao epidemias que de tempos a tempos afligem as nossas cidades. A cólera,
máximo os níveis de exploração do trabalhador (reduzir ao máximo o o tifo e a febre tifóide, a varíola e outras doenças devastadoras espalham
custo de reprodução da força de trabalho). Em alguns casos, em virtude os seus germes no ar pestilento e na água contaminada destes bairros
da organização e da força política conseguidas pela classe trabalhadora, operários. Quase nunca de lá desaparecem, desenvolvendo-se, logo que
ela não consegue fazê-lo. Em outros casos, entretanto, havendo traba- as circunstâncias o permitem, em grandes epidemias e, ultrapassando
lhadores sobrando e sendo precário seu nível de organização política, a então os seus focos, vão atingir também as partes da cidade mais are-
burguesia pode conseguir aumentar o nível de exploração da força de jadas e sadias habitadas pelos senhores capitalistas. A dominação dos
trabalho através de vários estratagemas. Um deles... é através da redução capitalistas não pode permitir-se impunemente o prazer de gerar doen-
das condições de vida urbana e de moradia.” ças epidémicas entre a classe operária; as suas consequências recaem
também sobre eles próprios e o anjo exterminador desencadeia a sua
Na dinâmica econômica que moldava a cidade de São Paulo e delimitava fúria entre os capitalistas de forma tão brutal como entre os operários.”
os espaços do capital e do trabalho, inicialmente, a regulação urbanística não
teve como excluir completamente vilas e cortiços das regiões centrais92. Isto A saúde pública se torna um problema para as pessoas e uma solução para o
porque, primeiro, “a cidade não é resultado da aplicação inerte do modelo movimento do capital:
contido na lei”, mas sim “conseqüência da relação que a legalidade urbana es-
tabelece com o funcionamento concreto dos mercados imobiliários que atuam “A partir do momento em que isto ficou comprovado cientificamente, os
humanitários burgueses inflamaram-se numa nobre emulação a favor da
na cidade”93. Em conjunto com isto, o afluxo populacional para a cidade e as
saúde dos seus operários. Fundaram-se sociedades, escreveram-se livros,
necessidades habitacionais desta mão-de-obra industrial não eram acompa-
surgiram propostas, foram debatidas e decretadas leis para acabar com
nhadas pela legislação. as fontes das epidemias, que sempre regressam. Foram investigadas as
Mas quando o espaço das cidades começou a ser disputado com mais in- condições de habitação dos operários e feitas tentativas para remediar
tensidade para a própria reprodução do capital, a burguesia não tardou em re- os males mais gritantes. Nomeadamente em Inglaterra, onde se situava
lacionar a “questão urbana” e a “questão habitacional” à “questão sanitária”, a maioria das grandes cidades e onde, portanto, o fogo com mais vio-
lência pressionava os grandes burgueses, foi desenvolvida uma grande
actividade. Foram nomeadas comissões governamentais para investigar
92 Observa R. ROLNIK. A cidade e a Lei. Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo, as condições sanitárias das classes trabalhadoras; os seus relatórios, que,
1997, p. 123, que “As configurações das vilas e cortiços, formas de ocupação intensas dos miolos
de quadras com espaços individualizados diminutos, contrariava por completo os regulamentos
pela sua exactidão, carácter completo e imparcialidade, distinguindo-se
municipais de construção, que definiam desde 1886 as dimensões mínimas dos ‘cortiços, casas de honrosamente de todas as fontes continentais, serviram de base a novas
operários e cubículos. De acordo com o Código Municipal, exigia-se uma frente mínima de terreno leis mais ou menos incisivamente interventoras.”94
de 15 metros, e a separação de cada fileira de casas por 5 metros no mínimo. A área mínima de cada
cômodo deveria ser de 7,5 metros quadrados, com uma latrina para cada duas habitações e uma área
livre de 30 metros quadrados à frente de cada habitação”.
93 R. ROLNIK. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-1936), 1999, p. 2. 94 F. ENGELS. A Questão da Habitação, 1873, Segunda Seção.

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E também em São Paulo a questão da saúde dos moradores de cortiços pas- apropriar-se com sua lógica própria da riqueza social produzida pelo trabalho
sou a interessar enormemente aos “humanitários burgueses” e a intervenção nas indústrias que surgiam na região. Como observa Rolnik:
na cidade e nos locais de habitação das classes operárias foi dura. Em 1894, o
primeiro Código Sanitário do Estado proibia a habitação coletiva e determina- “Ao que tudo indica, sem resolver nem de longe o problema da moradia
operária, a lei de 1900 solucionava o problema de um certo grupo de
va o desaparecimento das existentes. De acordo com esta legislação, “as casas
empreendedores, entre eles industriais interessados em construir casas
subdivididas e as vilas operárias – que só podem agrupar-se em conjuntos de até
de aluguel para os operários, garantindo para eles, empreendedores, a
seis moradas – deveriam ficar fora da aglomeração urbana”95. No mesmo ano, possibilidade de um investimento de alta rentabilidade, em pleno wild
uma “Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no west... Além de permitir possibilidades seguras de retorno para gran-
Distrito de Santa Ifigênia” constatava a existência de 65 cortiços numa área de des investimentos, a forma de expansão clandestina era de interesse de
14 quadras96. A “solução” encontrada para o problema foi a segregação: empre- massas de imigrantes, na medida em que representava um dos meios
sários seriam incentivados a “construir casas operárias ‘higiênicas’ em terrenos disponíveis para sua ascensão social. A demanda era, desta forma, aco-
situados num raio de 15 quilômetros da cidade”97. modada, de tal sorte que as únicas pressões e reclamações por parte dos
Nos debates na Câmara Municipal para a viabilização destas habitações po- operários diziam respeito ao alto custo dos aluguéis pagos por opções
pulares (que deram origem à lei 498/1900, que estabeleceu prescrições para a precárias de moradia”99.
construção de casas de habitação operária), sobressaiam as “leis do mercado”,
Interessante notar que entre os empreendedores havia industriais que tam-
ou seja, a necessidade de equacionar o valor das habitações operárias com o
bém tornavam empreendedores, num movimento que revela um fenômeno tí-
nível dos salários percebidos (que determinava a capacidade de pagamento da
pico do capitalismo: o investimento de excedentes produtivos em outras ati-
contraprestação dos operários pela habitação) e com o preço da terra na cidade
vidades rentáveis, gerando novos mercados interligados à extração direta de
(que seria determinante para a localização dos empreendimentos). Neste sen-
mais-valia. Segundo Marx, o capitalista individual é compelido pelas leis da
tido, “havia um pressuposto de que um negócio rentável de casas operárias re-
concorrência a reinvestir parte da mais-valia na própria produção. Isto, no Li-
queria uma utilização mais intensa do lote e uma localização fora da ‘cidade’”98.
vro I d’O Capital (que faz abstração dos diversos atores sociais que reivindicam
Importante aqui ressaltar o papel que a legislação urbanística tem sobre a
sua parcela na produção social capitalista), aparece claramente. Como explica
habitação – o urbanismo funciona, como já apontado, como marcador de rique-
Harvey100, Marx elabora no Livro I um modelo no qual há apenas trabalhador
za, status e poder. Nos debates que originaram a lei acima mencionada, estava
e capitalista, este comprando força de trabalho e pagando salário àquele na me-
em questão a possibilidade de a especulação imobiliária atuar lucrativamente
dida em que se apropria do produto do trabalho excedente. Pois bem, neste mo-
em duas frentes: tanto na área central, preservada para os espaços “diferen-
delo, o capitalista, ao se apropriar do produto do trabalho excedente, reinveste
ciados e exclusivos” das elites, como nas áreas periféricas, onde podia obter
uma parte na própria produção e usa o restante para consumo próprio101. Mais
sua parcela de lucratividade fornecendo moradia às classes operárias. E neste
caso, é claro, o interesse, não era o direito à moradia e nem mesmo a solução da
99 Idem, p. 126
“questão da habitação” pela satisfação das necessidades dos trabalhadores, mas
100 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 253, ao tratar da acumulação capitalista,
a lucratividade do negócio imobiliário, que se constituía como mercado para
expõe os pressupostos do modelo de Marx no Livro I, sendo um destes pressupostos que “a divisão
do mais-valor entre juro, lucro do capital mercantil, renda e impostos não tem nenhum impacto...
95 R. ROLNIK. A cidade e a Lei. Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo, 1997, p. 123. Quando eles são abandonados, como ocorre no Livro II, os resultados são diferentes”.

96 Idem. 101 Como expõe K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, pp. 667 e 816, respectivamente, há um imperativo
do sistema sociometabólico para que o mais-valor seja reinvestido: “Apenas como capital personificado
97 Idem, p. 124.
o capitalista tem um valor histórico e dispõe daquele direito histórico à existência de que, como diz
98 Idem, p. 125. o espirituoso Lichnovski, nenhuma data não dispõe. Somente nesse caso sua própria necessidade

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concretamente – para onde a análise de Marx certamente se dirigia no ina- como um ramo capitalista próprio. De fato, a acumulação de capital é um me-
cabado Livro III d’O Capital – o quadro se complexifica, pois, ao se apropriar canismo para expansão do próprio capital e do capitalismo.
do produto do trabalho excedente, o capitalista também paga impostos, paga Deve-se apontar ainda o interesse do capitalista individual na existência de
aluguéis, paga juros bancários, assim como pode, por si só ou por terceiros rein- moradias a preços acessíveis. Não precisassem os trabalhadores pagar aluguel
vestir o excedente em outros ramos produtivos102. O que importa no momento ou parcelas de um financiamento imobiliário, mantidas todas as condições da
é este reinvestimento de excedentes produtivos em outras atividades lucrativas: produção, o custo da mão-de-obra baratearia, o trabalho excedente aumenta-
a expansão do capitalismo pela acumulação do capital se dá em boa medida por ria e, assim, a mais-valia apropriada pelo capitalista também. Indiretamente, o
este meio. A produção de habitações, desde a “revolução industrial”, é um dos investimento do excedente produtivo em habitação pode implicar na possibili-
ramos por excelência em que este investimento se dá, mesmo porque isto tem dade de aumento da parcela do trabalho excedente apropriada pelo capitalista
sérios impactos na própria reprodução do sistema produtivo, já que a habitação (embora esta não seja uma consequência necessária, dependendo em geral do
é uma necessidade básica para subsistência do trabalhador. modo como se forma o mercado habitacional).
O investimento de excedentes produtivos em habitação aparece como re- A construção de moradias para as classes trabalhadoras não visa, assim, a
sultado da acumulação de capital e da necessidade de sua aplicação produtiva, resolver a “questão da habitação”. O seu efeito pode ser aperfeiçoar a extração
desenvolvendo uma “indústria da construção civil” e um mercado habitacional da riqueza produzida pelo trabalho. Para pagar a habitação, o operário precisa
comprometer uma parte de seu salário, donde este precisa ser mais elevado do
que seria no caso de o trabalhador ter sua própria moradia. Como se verá adian-
te, na questão da manutenção do despojamento do trabalhador da sua habita-
transitória está incluída na necessidade transitória do modo de produção capitalista. Ainda assim,
porém, sua força motriz não é o valor de uso e a fruição, mas o valor de troca e seu incremento.
ção, prevalecem funcionalidades do sociometabolismo do capital (relacionadas
Como fanático da valorização do valor, o capitalista força inescrupulosamente a humanidade à ao crédito e à renda), ao invés do simples interesse do capitalista individual em
produção pela produção e, consequentemente, a um desenvolvimento das forças produtivas sociais pagar um salário menor.
e à criação de condições materiais de produção que constituem as únicas bases reais possíveis de
uma forma superior de sociedade, cujo princípio fundamental seja o pleno e livre desenvolvimento Poder-se-ia pensar que no início da industrialização brasileira não havia
de cada indivíduo. O capitalista só é respeitável como personificação do capital. Como tal, ele qualquer “direito à moradia” garantido e que a evolução jurídica e legislativa
partilha com o entesourador o impulso absoluto de enriquecimento. Mas o que neste aparece como
levaria a uma alteração neste quadro de descaso com os trabalhadores mais
mania individual, no capitalista é efeito do mecanismo social, no qual ele não é mais que uma engrenagem.
Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista converte em necessidade o aumento progressivo do pauperizados. A ocupação urbana aprofundaria, ao longo do século XX, o
capital investido numa empresa industrial, e a concorrência impõe a cada capitalista individual, como leis padrão de periferização e informalidade. O Brasil aderiu a todos os tratados
coercitivas externas, as leis imanentes do modo de produção capitalista. Obriga-o a ampliar continuamente
seu capital a fim de conservá-lo, e ele não pode ampliá-lo senão por meio da acumulação progressiva”;
internacionais mencionados anteriormente. Mas a garantia jurídica não im-
“Acumulai, acumulai! Eis Moisés e os profetas! ‘A indústria provê o material que a poupança acumula’. plica em efetividade.
Portanto, poupai, poupai, isto é, reconvertei em capital a maior parte possível do mais-valor ou do Até aqui, é certo dizer que a “questão da habitação” esteve subordinada a
mais-produto! A acumulação pela acumulação, a produção pela produção: nessa fórmula, a economia
clássica expressou a vocação histórica do período burguês”. O imperativo da acumulação requer que problemas da acumulação capitalista, sem qualquer problematização do valor de
uma parte do mais-produtor seja transformada em capital”. troca imposto pelas “leis do mercado” e pelos interesses das classes dominantes.
102 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 96, discutindo a questão do reinvestimento capitalista, O papel da lei na produção habitacional estava voltado a otimizar a reprodução
chega a colocar que os capitalistas “têm a capacidade de escolha sobre no que vão reinvestir: podem do capital. Indo mais fundo: o papel da lei era reconhecer as necessidades dos
reinvestir na expansão da produção ou podem usar sua riqueza para comprar ativos, como ações e
títulos, propriedades, objetos de arte ou participações em alguma empreitada especulativa, como uma investidores capitalistas e viabilizar a segurança jurídica aos seus investimentos,
empresa de equidade privada, um fundo de cobertura ou algum outro instrumento financeiro a partir seja por meio de flexibilização de parâmetros urbanísticos, seja por meio da
dos quais podem realizar ganhos de capital”. A rigor, a capacidade de escolha não é completa, pois
depende bastante dos imperativos de reprodução do próprio sistema sociometabólico do capital, mas
não fiscalização da expansão urbana da cidade. A não regulação era um espa-
o que se deve reter é a existência de alguma margem para a expansão do próprio capitalismo. ço de liberdade juridicamente demarcado. O direito era mobilizado pela classe

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dirigente para manter o controle do acesso da classe trabalhadora ao espaço rece primeiramente como um negócio, de modo que imóveis para habitação são
urbano. Esta não poderia ter qualquer ingerência no processo de acumulação do produzidos tendo em vista o valor de troca. Em suma, o que aparece e controla
capital, que determinava a construção de habitações no interesse personificado a produção da habitação é a mercantilização. O valor de troca da habitação
por aquela outra classe, pautado pela acumulação do capital e pela necessidade prevalece sobre o valor de uso104. Não à toa, políticas urbanas e habitacionais
de sua aplicação produtiva. levadas a cabo pelo Banco Mundial no período neoliberal buscam fazer preva-
Este processo de exclusão habitacional tem se perpetuado, apesar de todas as lecer as relações de propriedade, o valor de troca e o sistema de crédito:
conquistas jurídicas que levaram à consagração do direito à moradia em nível
nacional e internacional. Em razão disso, aquilo que aparece como avanço na “Assim, no caso da habitação, o parâmetro mais importante passa a
ser a renda familiar e não mais o estudo dos espaços necessários para
luta jurídica, pode não significar coisa alguma na satisfação das necessidades
abrigar adequadamente uma família105. Contrariando o que havia sido
dos trabalhadores. A positivação pode avançar o quanto for, ela refletirá, no
proposto pelos arquitetos modernos – os quais definiram, a partir do
limite, apenas o modo como a base econômica subjacente distribui a riqueza estudo das necessidades da vida moderna, como deveria ser o espaço
social. Este quadro de análise só ficará completo após o estudo das políticas habitacional mínimo –, a nova matriz postula que qualquer considera-
públicas de habitação, que será feito nos capítulos 3 a 5, e com a reflexão sobre ção sobre a qualidade do espaço é secundária, pois deve se submeter à
qual destas políticas pode significar romper com as barreiras da propriedade
privada à moradia.
se exacerba, uma vez que a diferenciação de classes e a possibilidade de cada uma delas apropriar-se
de áreas desigualmente valorizadas fazem com que a balança penda invariavelmente para o lado dos
2.4. Por trás da ideologia: da ineficácia jurídica ao dominantes, que podem comprar terras nas áreas mais privilegiadas. Caberia ao Estado regulamentar
o uso e a ocupação do solo, de tal forma a evitar tal desequilíbrio, restringir a supervalorização
horizonte da transformação radical especulativa e garantir o acesso democrático à cidade a uma maior parcela da sociedade. Ocorre
que quem alavanca a valorização da terra e dos imóveis nas cidades capitalistas é, paradoxalmente,
o próprio Estado. O que dá valor à terra urbana é sua localização, definida pela disponibilidade de
O que está por trás das garantias jurídicas, da lei/ordenamento jurídico, dos infraestrutura (VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Nobel, 2000): um lote é
princípios jurídicos e das decisões judiciais é o contexto capitalista em que se mais caro porque há “mais cidade” em torno dele, ou seja, avenidas e transporte público para acessá-
lo, serviço de esgoto, água, luz, coleta de lixo. Porém, quem produz a infraestrutura é o Estado. Aí
coloca a questão da habitação. Este contexto explica o papel cumprido pelo di- reside a contradição fundamental da cidade capitalista: um imóvel só tem valor em função de uma
reito. A produção do espaço em geral e a produção da habitação em particular complexa malha de infraestrutura, que é construída com investimentos públicos. Assim, a valorização
são regidas pelos processos de apropriação e dominação e sobre estes processos de um terreno decorrente do investimento coletivo, público, é apropriada individualmente por
aqueles que possam “pagar pela localização” (DEÁK, Csaba. O mercado e o Estado na organização
se ergue o sistema jurídico103. espacial da produção capitalista. Espaço & Debates, 28 pp.18-31, São Paulo: NERU, 1989). Por isso,
Numa primeira análise, a habitação se mostra como necessidade básica para o papel do Estado supostamente deveria ser o de regular e mediar esse antagonismo entre mercado e
a subsistência, como utilidade para a moradia do trabalhador, portanto, como sociedade: garantindo uma produção homogênea de infraestrutura, evitando a exclusão das parcelas
populacionais de menor renda, construindo equipamentos acessíveis por todos, e recuperando, com
valor de uso. Mas no sociometabolismo do capital, a construção de casas apa- tributos, parte do lucro obtido pelo mercado em decorrência de investimentos públicos, a chamada
‘mais-valia urbana’.”
104 H. LEFEBVRE, A revolução urbana, 1999, p. 171, menciona o papel que passa a ter o usuário
103 J. S. WHITAKER FERREIRA, São Paulo: cidade da intolerância ou urbanismo ‘à brasileira’, 2011,
das habitações concebidas e executadas por técnicos (urbanistas, arquitetos, etc.) a serviço da
disponível em http://cidadesparaquem.org/textos-acadmicos/2013/2/13/so-paulo-cidade-da-intolern
trocabilidade, “O usuário? Quem é? Tudo se passa como se os componentes, os ‘agentes’, as autoridades
cia-ou-o-urbanismo-brasileira, acesso em 09 jul. 2015, observa não o papel do direito, mas do Estado
afastassem de tal modo o uso em proveito da troca, que esse uso se confundisse com a usura. A partir
na produção urbana, mas o argumento pode ser adaptado se se pensa nas mediações de segunda
daí, como o usuário é considerado? Como um personagem muito repugnante que emporcalha o que
ordem do direito e da política: “A produção do espaço urbano responde a uma lógica na qual se
lhe é vendido novo e fresco, que deteriora, que estraga, que felizmente realiza uma função: a de tornar
relacionam fundamentalmente o Estado, o mercado e a sociedade civil. A tensão existe no fato de
inevitável a substituição da coisa, de levar a obsolescência a contento. O que muito pouco o desculpa”.
que o mercado procura obter lucro por meio da valorização fundiária e imobiliária, enquanto que a
sociedade civil interessa-se mais pelo valor de uso da terra urbana. Na cidade capitalista, tal tensão 105 BANCO MUNDIAL, Housing: Report on sectorial policy, Washington, 1975, p. 4.

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capacidade de pagamento do futuro morador. Trata-se, aqui, da passa- Neste ponto, deve-se observar que a terra urbana (ou os chamados bens
gem do espaço mínimo para o custo mínimo. Tal prevalência da lógica imóveis) não tem inerentemente o caráter de mercadoria. Claro, as coisas ad-
mercantil sobre o valor de uso levou o Banco Mundial, por exemplo, a quirem o caráter de mercadoria em contextos muito específicos, em razão de
apoiar a produção de moradias cuja área construída por habitante era relações sociais específicas.
menor que a de celas prisionais...”106
Mas, considerando-se o universo das mercadorias produzidas no contex-
Esta reestruturação visava a permitir a expansão da acumulação capita- to capitalista, a terra tem ainda um caráter bastante peculiar com relação às
lista, inclusive pela “redução dos padrões habitacionais e urbanos”, redefi- outras: segundo Karl Polanyi109, a terra é uma mercadoria fictícia, porque ela
nindo “o que é necessário para o trabalhador do Terceiro Mundo reproduzir não é criada pelo trabalhador para ser levada ao mercado. O seu caráter de
sua força de trabalho, o que, no limite, contribui para deprimir ainda mais mercadoria é criado por meio de específicas e complexas relações sociais. Mas
seus baixos salários” 107. como tudo o que é fictício no capitalismo, a mercadoria fictícia também tem
A prevalência do valor de troca leva à aquisição especulativa de moradias, efetividade e funcionalidade específica: transformar um bem não imediatamen-
isto é, a aquisição de imóveis não para servir diretamente à habitação, mas para te produzido pelo ser humano (portanto, no sentido marxista, sem valor) em
servir à expansão do capital e à valorização do valor e, quando menos, à busca mercadoria. As relações sociais impõem um valor de troca até mesmo à terra
por renda e entesouramento – o que também cumpre as devidas funções no nua, onde se pode ver apenas o trabalho circundante como pressuposto de uma
sociometabolismo do capital, como se verá mais adiante. avaliação monetária da mesma.
D. Harvey afirma que já “a partir do século XVIII, você tem a construção As garantias jurídicas aparecem como ideologia quanto se explicita a posi-
de casas especulativa – os terraços georgianos que eram construídos e vendidos ção do direito no contexto capitalista: a classe dirigente molda o sistema jurídi-
posteriormente”. A partir de então, o desenvolvimento do mercado imobiliário co de acordo com os imperativos do sistema sociometabólico do capital. Daí a
implica que as casas se tornem “valores de troca para os consumidores na forma prevalência da mercantilização na questão habitacional, a prevalência do valor
de poupança”. Em suma, é possível transformar a habitação numa reserva de de troca sobre o valor de uso das moradias.
valor e também numa fonte de extração de renda. Para Harvey, “isso levanta a É antes a lei do valor e a institucionalidade jurídica, mais do que a dispo-
questão: é uma boa ideia permitir que o valor de uso na habitação, que é crucial nibilidade de espaços habitáveis, que será decisiva para a “escassez” de imóveis
para as pessoas, seja definido por um sistema de valor de troca louco?”108. num contexto capitalista, impedindo o acesso das pessoas ao valor de uso destes

106 P. FIORI ARANTES, O Ajuste Urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades, 2006, p. 65.
um bem... Assim, cerca de 30 anos atrás, as pessoas começaram a usar a habitação como uma forma
107 Idem. de ganho especulativo. Você podia comprar uma casa e ‘virá-la’ – você compra uma casa por 200 mil
livras e depois de um ano você recebe 250 mil libras por ela. Você ganhou 50 mil libras. Então, porque
108 R. BURTENSHAW e A. ROBINSON, A importância da imaginação pós-capitalista. Entrevista com
não fazê-lo? O valor de troca assume o comando. E assim você tem esse boom especulativo. No ano
David Harvey, in http://www.ihu.unisinos.br/noticias/523134-a-importancia-da-imaginacao-pos-
2000, depois do colapso dos mercados acionários globais, o capital excedente começou a fluir para a
capitalista-entrevista-com-david-harvey, acesso em 10 mai. 2014. Vale a transcrição do trecho
habitação. É um tipo interessante de mercado. Se eu comprar uma casa, então os preços da habitação
completo diz: “Todas as mercadorias devem ser entendidas como tendo um valor de uso e um valor
sobem, e você diz: ‘Os preços da habitação estão subindo, eu deveria comprar uma casa’. E, então,
de troca. Se eu tenho um bife, o valor de uso é que eu posso comê-lo, e o valor de troca é o quanto
aparecem outras pessoas. Você tem uma bolha imobiliária. As pessoas são atraídas, e ela explode.
eu tive que pagar por ele. Mas a habitação é muito interessante, nesse sentido, porque, como um
Então, de repente, muitas pessoas descobrem que não podem mais ter o valor de uso do imóvel, porque
valor de uso, você pode entendê-la como abrigo, privacidade, um mundo de relações afetivas com as
o sistema de valor de troca o destruiu. Isso levanta a questão: é uma boa ideia permitir que o valor de
pessoas, uma grande lista de coisas para as quais você usa uma casa. Mas depois há a questão de como
uso na habitação, que é crucial para as pessoas, seja definido por um sistema de valor de troca louco?”
você consegue essa casa. Antigamente, as casas eram construídas pelas próprias pessoas, e não havia
absolutamente nenhum valor de troca. Depois, a partir do século XVIII, você tem a construção de 109 POLANYI, KARL. The Great Transformation, New York: Octagon Books, 1944, apud F. OBENG-
casas especulativa – os terraços georgianos que eram construídos e vendidos posteriormente. Assim, ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 325, que
as casas se tornaram valores de troca para os consumidores na forma de poupança. Se eu comprar explicam que “The distinctive feature of a ‘fictitious commodity’ is that its provision and distribution
uma casa e pagar a hipoteca sobre ela, eu posso acabar como proprietário da casa. Então, eu tenho is ‘embedded’ in complex social relationships”.

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imóveis. Esta é a razão da “ineficácia” do direito à moradia – é dizer, a ineficácia ada na automediação consciente de seus indivíduos sociais”111. Um renovado
do direito é inerente ao direito, não lhe é estranho. Daí a característica conco- sistema sociometabólico apoiado na atividade autodeterminada dos indivídu-
mitância entre a enunciação e a ineficácia do direito à moradia. os livremente associados é cada dia mais uma necessidade histórica diante da
Diante deste quadro, surgem as seguintes questões: como os movimentos destrutividade do capital112. Identificar os sujeitos da transformação social é
sociais se relacionam com o direito, qual o horizonte de transformação so- identificar também de onde podem surgir as alternativas discursivas.
cial radical e quais movimentos sociais são os sujeitos desta transformação? Quais seriam os sujeitos da transformação social radical nos dias de hoje?
Estariam os sujeitos das lutas sociais completamente rendidos à ideologia Harvey é extremamente otimista sobre a questão da origem do movimento po-
jurídica? Os pressupostos para esta discussão já ficaram claros no capítulo lítico anticapitalista. Segundo ele, tal movimento poderia surgir
anterior: o direito pretende que a luta pela habitação deve se limitar a ser
uma luta jurídica. “nos processos de trabalho, em torno de concepções mentais, na rela-
ção com a natureza, nas relações sociais, na concepção de tecnologias e
A resposta clássica a este problema tem sido a luta política. Ora, isto tam-
formas de organização revolucionárias, na vida diária ou nas tentativas
bém já foi problematizado anteriormente: a política tal qual a conhecemos,
de reformar as estruturas institucionais e administrativas, incluindo a
com sua institucionalidade, captura igualmente a luta social para limites es- reconfiguração dos poderes do Estado”113.
tabelecidos pelo sociometabolismo do capital. Dito de outro modo, o sistema
político se ergue, como o sistema jurídico, sobre a base material existente110. Com esta proposição, Harvey vai além da visão clássica marxista acerca do
Só se poderia falar em uma política alternativa numa base também alternati- sujeito da revolução, segundo a qual este sujeito seria o proletário, o produtor
va, revolucionada. Portanto, saltar do problema da luta jurídica para o campo direto separado dos meios de produção e alienado do produto de seu trabalho.
da luta política é ilusório – deve-se olhar, isto sim, para a base, para as con- Já em Harvey, todo tipo de movimento, não apenas o movimento operário com
dições materiais para a superação do sociometabolismo do capital e para as suas lutas trabalhistas, poderia ser um movimento político anticapitalista, des-
alternativas que daí surgirão. de que incorporasse a finalidade última de transferir o comando social sobre a
A transformação social radical é tema básico da crítica e a crítica jurídica produção e distribuição de excedentes para os produtores diretos.
também deve atentar a ele, tendo em vista que o projeto socialista não pode se Trata-se de uma proposição ousada e até hoje apoiada apenas debilmente
definir “simplesmente nos termos de dizer não ao controle sistêmico do capital” pela prática política efetiva. De fato, a autoenunciação de um movimento
e “não pode constituir uma alternativa viável... a não ser que seja com sucesso (estudantil, ecológico, feminista, trabalhista, teológico, jurídico...) como an-
e articulado de maneira positiva... com seu próprio tipo de reciprocidade base- ticapitalista não é raro. Mas a prática revolucionária de tais movimentos cor-
responde às bandeiras que eles carregam? Em outros termos, o quanto estes
110 I. MÉSZÁROS, Para Além do Capital, 2002, p. 514, aponta como as experiências soviética, baseadas movimentos conseguem avançar para atingir os alicerces do sistema sociome-
numa ênfase exclusivística na “transformação política”, “só puderam sublinhar dolorosamente tabólico do capital e construir alternativas viáveis a tal sistema? Estas ques-
que, como coloca Marx, a forma econômica específica pela qual o trabalho excedente não pago é
tões são muito mais complicadas e Harvey parece não ter respostas prontas
sugado dos produtores diretos determina a relação dos governantes e governados, já que ela emerge
diretamente da própria produção e, por sua vez, reage sobre ela como elemento determinante para elas. O que este autor em primeiro lugar pretendia com tal formulação
(Marx, O Capital, vol. 3, p. 772). Nesse sentido, as razões para o trágico fracasso histórico de mais era criticar o unilateralismo das experiências socialistas do século XX, que
de sete décadas de poder soviético devem ser buscadas, para que sejam evitadas no futuro, tanto
na modalidade experimentada de “sugar o trabalho excedente não pago dos produtores diretos”
como na dura realidade do historicamente conhecido Estado pós-revolucionário como ‘elemento 111 I. MÉSZÁROS, Estrutura Social e Formas de Consciência II, 2011, p. 140.
determinante’. Este, ao invés de liberar as forças de tomada de decisão autônomas, pelas quais, no
112 Neste sentido, I. MÉSZÁROS, O Século XXI. Socialismo ou Barbárie, 2003, p. 22. E para um desenvolvimento
devido tempo, o Estado poderia ‘fenecer’, impôs implacavelmente à sociedade o sistema do capital
amplo desta temática, vide I. MÉSZÁROS. Para Além do Capital, 2002, pp. 605 e seguintes.
pós-capitalista de extração do trabalho excedente, perpetuando, com consequências desastrosas, uma
‘relação de governantes e governados’”. 113 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 185.

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desprezavam aspectos cruciais da reprodução sociometabólica do capital, as Depois, há aqueles que foram privados de seus bens, seu acesso aos meios
quais foram incapazes de lidar com a multiplicidade dos desafios postos para de sobrevivência, de sua história, cultura e formas de sociabilidade, a fim
a transformação social. Tais experiências não teriam sido capazes de se mover de abrir espaço (às vezes literalmente) para a acumulação do capital”116.
de uma esfera de atividade para a outra:
Esta definição tem a virtude de explicar minimamente o fato de que não-
“As tentativas anteriores de criar uma alternativa comunista ou so- -operários (para usar uma oposição à expressão clássica) se mobilizem contra o
cialista fracassaram fatalmente em manter o movimento a dialética sistema sociometabólico do capital. Os não-operários, como se sabe, podem tra-
entre as diferentes esferas de atividade e também não abraçaram as balhar no comércio, em atividades reprodutivas e formam o exército industrial
imprevisibilidades e incertezas no movimento dialético entre as es- de reserva, sendo essenciais para a reprodução do sistema, que se desenvolve
feras. O capitalismo tem sobrevivido precisamente por manter esse tanto pela mobilidade do capital e do trabalho, compensando superpopulações
movimento dialético e por aceitar as inevitáveis tensões, incluindo relativas e salários altos demais, como pela mecanização.
as crises, que dele resultam”114.
Lefebvre, segundo Harvey, “ao invocar a ‘classe trabalhadora’ como agente
da transformação revolucionária ao longo de seu texto” estaria “sugerindo ta-
Segundo Harvey, o movimento político deveria se mover de uma esfera para
citamente que a classe trabalhadora revolucionária era formada por trabalha-
outra constantemente, de modo a se reforçar mutuamente. As dificuldades des-
dores urbanos, e não exclusivamente por operários fabris”117. Assim, Lefebvre
tes movimentos, na prática, são óbvias, em especial em razão dos imperativos
se aproximava de uma visão que via complexidades e fragmentariedades nas
impostos na vida dos indivíduos no sistema sociometabólico do capital: já é
classes trabalhadoras.
reduzida a capacidade de mobilização individual para lutar por demandas que
A crítica de Harvey se torna ácida ao relembrar o modo como certos movi-
atingem imediatamente os interesses dos indivíduos em questão, que dirá para
mentos lidaram com a questão da luta de classe:
se mover de uma esfera a outra. Trata-se de uma proposta teoricamente inte-
ressante, mas cuja efetividade prática constitui um grande desafio. Sem dúvida, “A fixação no trabalho na fábrica como o locus de ‘verdadeira ‘consciên-
não se poderia pensar, nos dias atuais, no clássico partido centralizado e porta- cia de classe e luta de classes revolucionária foi sempre muito limitada,
dor da “síntese” dos interesses da classe trabalhadora, apto a agir em nome des- se não equivocada (esquerdistas têm ideias erradas, também!). Aqueles
ta em direção aos objetivos revolucionários. As transformações sociais radicais que trabalham nas florestas e campos, no ‘setor informal’ do trabalho
deverão passar em alguma medida pelo caminho indicado por Harvey. intermitente nos becos das fábricas, nos serviços domésticos ou no setor
O otimismo de Harvey continua com a definição do sujeito revolucionário de serviços em geral e o vasto exército de trabalhadores empregados na
para muito além da definição clássica marxista: descontentes e alienados seriam
protagonistas de um movimento anticapitalista na medida em que concebem 116 Idem, p. 195.
“o atual caminho de desenvolvimento capitalista como uma via que leva a um 117 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2014, pp. 16 e 17. Continua o autor a afirmar que “no mínimo, a
beco sem saída, se não a uma catástrofe para a humanidade”115. E é a partir daí lógica por trás da posição de Lefebvre tem se intensificado em nossa época. Em grande parte do
mundo capitalista, as fábricas ou desapareceram ou diminuíram tão drasticamente que dizimou-
que o autor conceitua dois grandes grupos de “destituídos e despossuídos”: se a classe operária industrial clássica. O trabalho importante em permanente expansão de criar
e manter a vida urbana é cada vez mais realizado por trabalhadores precários, quase sempre em
“Há aqueles que são despossuídos dos frutos de seu poder criativo num jornadas de meio expediente, desorganizados e com salários irrisórios. O chamado ‘precariado’
processo de trabalho sob o comando do capital ou do Estado capitalista. substituiu o ‘proletariado’ tradicional. Se viermos a ter algum movimento revolucionário em nossa
época, pelo menos em nossa parte do mundo (em oposição à China, em processo de industrialização),
o problemático e desorganizado ‘precariado’ terá de ser levado em conta. O grande problema político
consiste em saber como grupos tão desorganizados poderiam se auto-organizar de modo a constituir
114 Idem.
uma força revolucionária. E parte do trabalho consiste em entender as origens e natureza de suas
115 Idem, p. 194. queixas e exigências”.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

construção civil ou nas trincheiras (muitas vezes literalmente) da urba- sado. Reivindicar e organizar as cidades para as lutas anticapitalistas é
nização não podem ser tratados como atores secundários... eles têm ple- um grande ponto de partida”121.
na consciência de suas condições de exploração e estão profundamente
alienados por sua existência precária e muitas vezes revoltados com o O que se deve frisar aqui é que Harvey identifica uma diferença entre as
policiamento brutal de suas vidas diárias pelo poder estatal”118. lutas contra a exploração do trabalho e as lutas contra o desapossamento (pro-
cessos de acumulação capitalista essenciais para a sobrevivência do sociometa-
E a crítica à “esquerda tradicional” continua, uma vez que esta erraria ao bolismo do capital, como se detalhará adiante neste trabalho). Se na história da
“ignorar os movimentos sociais que ocorrem fora das fábricas e minas”. Para acumulação primitiva “houve todo tipo de luta contra as expulsões e as expro-
Harvey, “A consciência de classe é produzida e veiculada tanto nas ruas, bares, priações forçadas”, Harvey reflete sobre “qual forma de luta de classe constitui
pubs, cozinhas, capelas, centros comunitários e quintais dos subúrbios da classe ou constituirá o cerne de um movimento revolucionário contra o capitalismo
trabalhadora como nas fábricas”. E recorre a um exemplo histórico para reforçar num dado lugar e num dado momento”.
sua posição, lembrando que “Os dois primeiros decretos da Comuna de Paris De fato, historicamente, muitas mobilizações sociais se reivindicam anti-
de 1871 foram, curiosamente, a suspensão do trabalho noturno nas padarias capitalistas e apresentam pautas das mais variadas, certamente, na avaliação
(uma questão de processo de trabalho) e uma moratória sobre os pagamentos de dos envolvidos, com potencial para atingir as estruturas do sistema sociome-
aluguel (uma questão de vida urbana diária)”119. A questão da habitação, uma tabólico do capital. Mas para isto é preciso que se esteja a enfrentar algum de
questão de subsistência, não de produção, aparece como central num dos mais seus pilares. Assumindo que um destes pilares é formado pelo complexo infra
importantes movimentos populares. e superestrutural sobre a propriedade dos bens imóveis, deve-se concluir, com
Não há dúvida sobre a existência alienada destes trabalhadores no contexto Harvey, que as “lutas políticas contra a acumulação por desapossamento são tão
capitalista, muito embora possam não ser operários “clássicos”, por assim dizer. importantes quanto os movimentos proletários mais tradicionais”, de modo que
Porém, o que não resta claro é como seria equacionado o problema da organi- deveria haver uma “relação orgânica” entre as formas de resistência à explora-
zação destes sujeitos sociais em direção a uma transformação social radical. Em ção do trabalho e ao desapossamento122.
“Cidades Rebeldes”, Harvey enfrentou esta dificuldade sobre o potencial revolu- Assim, os movimentos de luta urbana são potenciais sujeitos de uma profun-
cionário de movimentos urbanos, dando especial foco ao estudo de movimentos da transformação social:
que surgiram na “Guerra da Água”, na Bolívia, contra privatizações neoliberais
dos recursos naturais do povo boliviano120. Mas ainda aí, não há respostas fe- “A cidade é tanto um lugar de movimentos de classe como a fábrica e
chadas e definitivas, se está ainda a tatear como trabalhadores urbanos têm se precisamos aumentar nossa visão pelo menos a esse nível e a essa di-
organizado e buscado lutar contra a dominação capitalista. E o horizonte é que mensão da organização e prática política, em aliança com a vasta gama
um movimento desses possa abrir de movimentos rurais e camponeses, se alguma grande aliança para a
mudança revolucionária está para ser construída”123.
“caminho ao florescimento humano universal, para além das coerções
da dominação de classe e das determinações mercantilizadas do merca- Neste argumento, parece bastar que o movimento social incorpore em sua
do. O mundo da verdadeira liberdade só começa, como insistia Marx, pauta de luta a finalidade última de transferir o comando social sobre a pro-
quando essas coerções materiais forem definitivamente relegadas ao pas- dução e distribuição de excedentes para os produtores diretos. Porém, esta é

118 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 196. 121 Idem, p. 272.


119 Idem, p. 197. 122 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 298.
120 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, pp.250 e seguintes. 123 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 197.

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uma visão excessivamente subjetivista da luta social. A transformação social da população mundial, junto com a concomitante frustração do potencial
depende de pautas objetivas e não de mera enunciação do movimento social de do pleno desenvolvimento das capacidades e forças criativas humanas”; (ii)
que é anticapitalista. os “perigos da degradação ambiental e das transformações ecológicas des-
Em “Cidades Rebeldes”124, Harvey aprofundará esta questão numa pers- controladas”; (iii) a compreensão da “trajetória do desenvolvimento capita-
pectiva mais objetiva, questionando se as lutas pela cidade e na cidade “de- lista”, que se baseia na lei da acumulação infinita do capital, uma lei sim-
vem ser consideradas fundamentais para a política anticapitalista”125. Buscan- plesmente impossível de ser mantida; Harvey questiona se “os movimentos
do superar o ponto de vista que separa ou subordina os movimentos sociais sociais de base urbana podem desempenhar um papel construtivo e deixar
urbanos a movimentos que surgem diretamente no processo produtivo, os sua marca na luta anticapitalista nessas três dimensões”. Sua resposta envol-
únicos que teriam possibilidade de realizar a luta anticapitalista e a revolução ve a ampliação do tradicional entendimento da luta de classes como restrita
social126, o autor formula de maneira mais acurada a necessidade de se pensar ao terreno da produção, à fábrica, onde se produziria a mais-valia. O autor
a luta anticapitalista de maneira ampla – como Marx teria exposto no segun- lembra incansavelmente que “não foram os trabalhadores fabris que gera-
do volume d’O Capital: ram a Comuna de Paris” e entende que a luta social poderia ser “ao mesmo
tempo de classes e pelos direitos de cidadania no lugar onde as pessoas
“a circulação do capital compreende três processos distintos: o do di- trabalhadoras viviam”.
nheiro, o produtivo e o das mercadorias. Nenhum processo circulatório
Obviamente, há uma tensão neste argumento, mas isto reflete uma tensão
pode sobreviver, ou mesmo existir, sem os outros: eles se misturam e
das próprias lutas sociais, que por vezes se restringem a conquistas jurídicas,
se codeterminam mutuamente. O controle dos trabalhadores ou cole-
tivos comunitários em unidades de produção relativamente periféricas mas deixam sempre como resultado sujeitos ainda alienados e, portanto, po-
raramente consegue sobreviver – apesar de toda a esperançosa retórica tencialmente prontos para levar a luta adiante. De qualquer modo, é fato que a
autonomista, autogestionária e anarquista – diante de um ambiente fi- dominação de classe especificamente capitalista vai bem além da produção: ga-
nanceiro e de um sistema de crédito hostis e das práticas predatórias do nhos salariais podem ser recuperados “pelo conjunto da classe capitalista como
capital mercantil”127. um todo pelos comerciantes e proprietários, nas condições atuais, mais impie-
dosamente ainda pelos agiotas, banqueiros e financistas”129.
A conclusão é que “a abolição da relação de classe na produção depende da De fato, Harvey observa que “a própria urbanização é produzida”, trabalha-
abolição dos poderes de que a lei capitalista do valor dispõe para ditar as con- dores “participam de sua produção, e seu trabalho gera valor e mais-valia”. Daí
dições da produção por meio do livre comércio no mercado mundial”128. E estes que o horizonte de transformação social deve levar em conta também as lutas
poderes se apoiam em diversos alicerces, como já se apontou acima. urbanas, pois aí também se reproduz a dominação capitalista, aí estão alguns de
Identificando como questões fundamentais de uma agenda política seus alicerces fundamentais.
transformadora (i) o “esmagador empobrecimento material de grande parte

124 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, pp. 209 e seguintes.


129 Idem, pp. 228-231. Sobre a Comuna de Paris, às pp. 217-218, o autor observa que “ela é reivindicada
125 Idem, p. 216. (primeiro por Marx, e depois mais enfaticamente por Lenin) como uma ‘insurreição proletária’, e não
126 Idem, p. 217. Assim, por exemplo, “o movimento de trabalhadores de imigrantes desorganizados [nos como um movimento revolucionário muito mais complexo – animado tanto pelo desejo de reclamar
Estados Unidos, a pretexto de proposta no Congresso Americano para criminalizar imigrantes sem a própria cidade de sua apropriação burguesa como pela almejada liberação dos trabalhadores do
documentos] em 2006 era basicamente para reivindicar direitos, e não a revolução”, trabalho penoso que lhes é imposto pela opressão de classe em seus locais de trabalho. Considero
simbólico que as duas primeiras ações da Comuna de Paris tenham sito a abolição do trabalho
127 Idem, p. 221.
noturno nas padarias (uma questão trabalhista) [ademais, principalmente, uma conquista jurídica] e
128 Idem, p. 221. a imposição de uma moratória aos aluguéis (uma questão urbana)”.

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Ainda, o risco de captura destas lutas pelo direito ou pela política não é como aparecem as garantias jurídicas de direito à moradia, explicitando-se a
nada desprezível: inefetividade crônica deste direito em contraste com os papéis reais do direito.
Nos três capítulos, esta inefetividade aparecerá por meio da análise de políticas
“há um problema de enorme importância nesse cenário supostamente públicas de habitação. A reflexão sobre os horizontes de transformação radical
cor-de-rosa de desenvolvimento da luta anticapitalista.... qualquer movi-
do direito será feita no último destes capítulos.
mento anticapitalista deslanchando ao longo de sucessivas rebeliões ur-
banas precisa ser consolidado a certa altura dos acontecimentos, em um
nível muito mais alto de generalidade, a fim de que tudo não retroceda,
ao nível do Estado, a um reformismo parlamentar e constitucional que
pode fazer pouco mais do que reconstruir o liberalismo nos interstícios
de um prolongado domínio imperialista””130.

Neste sentido, é importante saber se a própria luta por habitação dos “sem-
-teto” poderia atingir algum dos alicerces do sistema sociometabólico do capital.
Este é o elemento objetivo que precisa ser analisado no estudo das transforma-
ções sociais e da luta pela habitação. E esta luta por habitação pode, inclusive,
expressar-se juridicamente, confrontando o direito internamente ao problema-
tizar certos alicerces do capitalismo.
Assim, em consonância com a visão de que há diversos alicerces da or-
dem sociometabólica do capital, é possível afirmar que os sujeitos da revolução
são também múltiplos. Deve-se, porém, adotar um critério mais objetivo para
esta identificação, isto é, não apenas identificando intenções anticapitalistas
dos movimentos, mas pautas e ações objetivas que efetivamente contribuam
para aprofundar as contradições do sistema sociometabólico do capital e para
a finalidade de transferir o comando social sobre a produção e distribuição de
excedentes para os produtores diretos. Enfim, não se trata de uma mera identi-
ficação ideológica, mas de identificar pautas transformadoras.
Diante do quadro delineado nos diversos tópicos deste capítulo, fica claro
que não se tem conseguido confrontar o poder do capital para a satisfação das
necessidades habitacionais, estando estas necessidades subordinadas simples-
mente aos imperativos da acumulação capitalista. O direito à moradia aparece,
assim, como mera enunciação vazia, incapaz de realizar as necessidades reais
daqueles alijados de habitação digna. Isto apesar de haver uma quantidade de
imóveis suficiente para suprir as necessidades de moradia adequada da popula-
ção. Na verdade, a ineficácia é inerente ao direito. Foi visto no presente capítulo

130 Idem, p. 268.

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Capítulo 3.
Políticas Públicas de Acesso à Casa Própria
– O Programa Minha Casa, Minha Vida

“Num regime de terras livres, o trabalho tinha que


ser cativo, num regime de trabalho livre, a terra ti-
nha que ser cativa”
(José de Sousa Martins, Expropriação e Violência – a
questão política no campo)

3.1. Preliminarmente: o pressuposto da propriedade


privada e a terra cativa no Brasil
Este capítulo analisa os principais mecanismos estatais que buscam efe-
tivar o direito à moradia da população de baixa renda. Realizando-se uma
crítica imanente destes mecanismos mesmos, pretende-se explicitar as suas
limitações, as quais são inerentes ao próprio contexto social em que são enun-
ciados e implementados.
Caracteristicamente, os principais mecanismos estatais de acesso à ha-
bitação tomam a forma de políticas públicas, as quais organizam a ação do
Estado para a realização de direitos. As políticas públicas podem ser defi-
nidas como o conjunto de decisões, normas e ações governamentais que
visam a organizar a alocação de recursos estatais. Como tais, se amparam
nos sistemas jurídico e político.
As políticas públicas habitacionais existentes visam a promover certo modo
de organização e produção de habitação, mais ou menos atrelados aos impera-
tivos de reprodução do capital. Como deverá ficar claro, a questão da satisfação
das necessidades habitacionais da população de baixa renda aparece como ide-
ologia nestas políticas e não pode realizar-se.
As principais políticas públicas habitacionais se baseiam na aquisição da
propriedade privada, no “sonho da casa própria”. Isto não é acidental: por este

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

meio o trabalhador se vincula no espaço e no tempo, ao local de habitação e a aqui, por seu valor real –, é evidente que a lei da apropriação ou lei da
um crédito imobiliário em regra pago em décadas. propriedade privada, fundada na produção e na circulação de merca-
A propriedade privada tornou-se um dos principais institutos jurídicos do dorias, transforma-se, obedecendo a sua dialética própria, interna e
sistema sociometabólico do capital, basicamente porque i) é por meio dela que inevitável, em seu direto oposto. A troca de equivalentes, que aparecia
como a operação original, torceu-se ao ponto de que agora a troca se
o capitalista reivindica e sustenta a posse dos meios de produção e do produto
efetiva apenas na aparência, pois, em primeiro lugar, a própria parte do
do trabalho; ii) por meio dele se define a própria condição do proletário, aquele
capital trocada por força de trabalho não é mais do que uma parte do
que não tem a propriedade de seus meios de subsistência e que, por isso mesmo, produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente; em segundo
sendo proprietário de sua força de trabalho, a vende ao capitalista por um sa- lugar, seu produtor, o trabalhador, não só tem de repô-la, como tem de
lário; iii) as trocas em geral que viabilizam a produção capitalista são mediadas fazê-lo com um novo excedente. A relação de troca entre o capitalista
pela propriedade privada, ou seja, o instituto está nos extremos de toda relação e o trabalhador se converte, assim, em mera aparência pertencente ao
de troca de mercadorias – é o proprietário da mercadoria que tem a faculdade processo de circulação, numa mera forma, estranha ao próprio conte-
de aliená-la no mercado e ao fazê-lo o comprador passa a se revestir da qualida- údo e que apenas o mistifica. A contínua compra e venda da força de
de de proprietário; iv) o instituto está por trás do título jurídico que permite ao trabalho é a forma. O conteúdo está no fato de que o capitalista troca
proprietário extrair renda ou juros com base neste título. continuamente uma parte do trabalho alheio já objetivado, do qual ele
não cessa de se apropriar sem equivalente, por uma quantidade maior
Outros institutos jurídicos também são centrais para o sistema sociometabó-
de trabalho vivo alheio. Originalmente, o direito de propriedade apa-
lico do capital, em especial igualdade e liberdade131. Apenas o trabalhador livre
receu diante de nós como fundado no próprio trabalho. No mínimo
das amaras feudais pode dispor de sua força de trabalho no mercado e apenas esse suposto tinha de ser admitido, porquanto apenas possuidores de
aparecendo como igual perante o capitalista o trabalhador pode firmar com mercadorias com iguais direitos se confrontavam uns com os outros,
este um contrato de compra e venda desta força de trabalho. mas o meio de apropriação da mercadoria alheia era apenas a aliena-
Todo este aparato jurídico – propriedade privada, liberdade, igualdade – es- ção [Veräußerung] de sua mercadoria própria, e esta só se podia pro-
tabelece aparências com base na qual funciona o sistema do capital. Marx ex- duzir mediante o trabalho. Agora, ao contrário, a propriedade aparece
põe, a partir da análise da troca de equivalentes, como esta, junto com o direito do lado do capitalista, como direito a apropriar-se de trabalho alheio
de propriedade, aparece na prática capitalista de forma bastante distinta do que não pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como impossibili-
preconiza a teoria liberal: dade de apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre propriedade
e trabalho torna-se consequência necessária de uma lei que, aparente-
“na medida em que cada transação isolada obedece continuamente à mente, tinha origem na identidade de ambos”132.
lei da troca de mercadorias, segundo a qual o capitalista sempre com-
pra a força de trabalho e o trabalhador sempre a vende – e, supomos A relação de troca entre o capitalista e o trabalhador é mera aparência per-
tencente ao processo de circulação e, na essência, o capitalista se apropria do
131 Como apontava K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, pp. 25-251, “A esfera da circulação ou da troca de trabalho alheio não pago. O direito de propriedade moldado pelo sociometabo-
mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro lismo do capital institui o “direito a apropriar-se de trabalho alheio não pago
Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade
ou de seu produto” para o capitalista e a “impossibilidade de apropriar-se de seu
e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força
de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos próprio produto” para o trabalhador.
mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum
a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de
mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é
seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação
mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. 132 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, pp. 801 e 802.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Mas atenção também ao que está pressuposto nesta passagem, aos meios de Num contexto de hegemonia do capital, o sociometabolismo imposto por
subsistência, dentre eles a habitação. Como já observado, um dos alicerces do este exige que a satisfação das necessidades básicas dos trabalhadores se dê
modo de produção capitalista é a existência de um razoável número de traba- apenas após a disponibilização de força de trabalho135 no mercado. Assim, há
lhadores despojados dos meios para a reprodução das suas condições de vida, uma tendência irrefreável para despojar os trabalhadores de suas necessidades
para sua subsistência133 – aliás, o único meio de que dispõem estes trabalhadores básicas, como da necessidade de habitação, mas também da necessidade de
é a sua própria força de trabalho, mas os mesmos são despojados mais e mais água, comida, vestimenta, e também a necessidade de leitura, teatro, veículos
dos meios de produção e de subsistência. A maneira de adquirir estes meios de automotores, shoppings centers e conexão à internet. Os bens que satisfazem
subsistência tende a se submeter a uma forma hegemônica no capitalismo: o estas necessidades, no contexto atual, são produzidos e distribuídos sob os im-
trabalhador vende sua força de trabalho ao capitalista, recebe em troca o salário perativos capitalistas e quem não tenha condições de adquiri-los por esta via
e com este adquire no mercado os bens necessários para sua subsistência134. O estará fadado à exclusão social. Assim, a satisfação de cada uma destas necessi-
direito de propriedade atua em todo o processo viabilizando as várias formas de dades exige a troca de equivalentes, e a mediação em regra é feita pelo dinheiro,
troca que sustentam o capitalismo. E ele submete também o modo de aquisição equivalente universal. Para obter este equivalente, os trabalhadores precisam
dos meios de subsistência. vender a um capitalista sua única mercadoria, a força de trabalho – por meio
desta operação o proprietário da força de trabalho vende por um determinado
período136 a si mesmo, coloca-se à disposição do capitalista.
133 Idem, p. 245. Marx observa que “Suas condições históricas de existência [do capital] não estão de
modo algum dadas com a circulação das mercadorias e do dinheiro. Ele só surge quando o possuidor A compreensão da exclusão habitacional passa pelo entendimento desta di-
de meios de produção e de subsistência encontra no mercado o trabalhador livre como vendedor nâmica capitalista: neste sistema, faz todo sentido que não haja a plena efeti-
de sua força de trabalho, e essa condição histórica compreende toda uma história mundial.” E em
Manuscritos Econômico-filosóficos, 2004, p. 81, K. Marx já observava que, pelo lado do trabalhador,
vação de um “direito à moradia” universal, assim como faz todo o sentido que
“a objetivação tanto aparece como perda do objeto” que ele, o trabalhador, “é despojado dos objetos milhões de habitações sejam mantidas vazias, como reservas de valor especula-
mais necessários não somente à vida, mas também dos objetos do trabalho. Sim, o trabalho mesmo tivas para seus proprietários, ainda que haja outras milhões de pessoas sem-teto.
se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais
extraordinárias interrupções.” No Brasil, o Censo 2010 do IBGE137 indicou que dos Domicílios particulares
134 Idem, pp. 245-246. Marx aponta que “Para sua manutenção, o indivíduo vivo necessita de certa permanentes, 86% estão ocupados, 1,3% estão fechados, 5,8% são de uso oca-
quantidade de meios de subsistência. Assim, o tempo de trabalho necessário à produção da força de sional e 9% estão vagos. Em números absolutos, isto significa que o número
trabalho corresponde ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência, ou, de domicílios vagos no Brasil chega a 6,07 milhões. O déficit habitacional138,
dito de outro modo, o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à
manutenção de seu possuidor. Porém, a força de trabalho só se atualiza [verwirklicht] por meio de sua
exteriorização, só se aciona por meio do trabalho. Por meio de seu acionamento, o trabalho, gasta-se
determinada quantidade de músculos, nervos, cérebro etc. humanos que tem de ser reposta. Esse gasto 135 Idem, p. 242. Aí, Marx define força de trabalho ou capacidade de trabalho como “o complexo
aumentado implica uma renda aumentada. Se o proprietário da força de trabalho trabalhou hoje, [Inbegriff] das capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade [Leiblichkeit], na
ele tem de poder repetir o mesmo processo amanhã, sob as mesmas condições no que diz respeito personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de
a sua saúde e força. A quantidade dos meios de subsistência tem, portanto, de ser suficiente para qualquer tipo”.
manter o indivíduo trabalhador como tal em sua condição normal de vida. As próprias necessidades 136 Idem, p. 242.
naturais, como alimentação, vestimenta, aquecimento, habitação etc., são diferentes de acordo com
o clima e outras peculiaridades naturais de um país. Por outro lado, a extensão das assim chamadas
137 http://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/, acesso em 10 abr. 2015.
necessidades imediatas, assim como o modo de sua satisfação, é ela própria um produto histórico e, por 138 O déficit habitacional é calculado no Brasil desde 1995 pela Fundação João Pinheiro, tendo sido adotada
isso, depende em grande medida do grau de cultura de um país, mas também depende, entre outros oficialmente pelo governo federal (http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/produtos-e-servicos1/2742-
fatores, de sob quais condições e, por conseguinte, com quais costumes e exigências de vida se formou deficit-habitacional-no-brasil-3, acesso em 18 jan. 2015). Como esclarecido no documento sobre o déficit
a classe dos trabalhadores livres num determinado local. Diferentemente das outras mercadorias, a habitacional de 2013, “A partir do conceito mais amplo de necessidades habitacionais, a metodologia
determinação do valor da força de trabalho contém um elemento histórico e moral. No entanto, a desenvolvida pela FJP trabalha com dois segmentos distintos: o déficit habitacional e a inadequação
quantidade média dos meios de subsistência necessários ao trabalhador num determinado país e num de moradias. Como déficit habitacional entende-se a noção mais imediata e intuitiva da necessidade de
determinado período é algo dado”. construção de novas moradias para a solução de problemas sociais e específicos de habitação detectados em

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em 2010, era calculado como sendo de 5,8 milhões de famílias139. Mas aqueles à reprodução da vida do trabalhador e postas no mercado devem ser tidas como
imóveis desocupados cumprem funções específicas no sistema sociometabólico abarcadas pela noção de consumo diário. Assim, a habitação, desde que posta
do capital, conforme se verá ao longo deste trabalho. no mercado, está também englobada no que é diariamente consumido pelo tra-
Como afirma Marx, no Livro II de O Capital, “O trabalhador assalariado balhador – e aqui nada importa que o pagamento seja feito por ele ao senhorio/
vive apenas da venda da força de trabalho. Sua subsistência – sua autossub- proprietário numa data específica do mês; também a alimentação pode ser obti-
sistência – requer o consumo diário”. Daí porque seu pagamento tem “de ser da de uma só vez para consumo paulatino, e nem por isso deixa de ser abarcada
repetido constantemente em prazos relativamente curtos, para que ele possa na noção de consumo diário.
repetir as compras necessárias para sua autossubsistência”. Ainda, no sentido Para que o trabalhador possa repetir o consumo de habitação, necessário
acima já indicado, para sua subsistência, deve receber o salário constantemente, “em prazos rela-
tivamente curtos”. As necessidades de moradia são então satisfeitas por meio
“para que a massa dos produtores diretos, os trabalhadores assalaria- de pagamento de aluguel ou de uma prestação de financiamento imobiliário.
dos, possa realizar a operação T-D-M, é preciso que ela encontre cons-
Apenas no caso de o trabalhador possuir um imóvel como patrimônio (fami-
tantemente os meios de subsistência em forma comprável, isto é, em
liar ou adquirido pelo próprio trabalhador), não haverá consumo de habitação
forma de mercadorias. Essa situação requer um alto grau de circulação
dos produtos como mercadorias e, portanto, do desenvolvimento da nos termos aqui postos, ou seja, como comprometimento de parcela do salário
produção mercantil.”140 percebido. Mas nem sempre acontece de os meios de subsistência estarem
disponíveis no mercado, de modo que isto afeta o aspecto salarial, ou melhor,
Para o que interessa neste ponto do trabalho, no caso da habitação, em o valor dos meios de subsistência. A habitação, não estando no mercado, será
regra, a autossubsistência do trabalhador requer também o consumo diário. Ao consumida pelo trabalhador do modo que for: habitando junto a parentes,
pensar em consumo diário, imediatamente se pensa no consumo de alimentos, amigos, conhecidos, superpopulando habitações e até mesmo abrigando-se
de água, de transporte até o trabalho. Mas todas as funções básicas necessárias sob pontes e viadutos.
De qualquer modo, o desenvolvimento do capitalismo exige que sejam cria-
das estas condições de despojamento do trabalhador dos seus meios de produ-
certo momento. A inadequação de moradias, por outro lado, reflete problemas na qualidade de vida
dos moradores: não está relacionada ao dimensionamento do estoque de habitações e sim às suas ção e de subsistência. O modo como isto se deu no desenvolvimento do capita-
especificidades internas. Seu dimensionamento visa o delineamento de políticas complementares lismo brasileiro, de inserção periférica no capitalismo mundial, deve ser olhado
à construção de moradias, voltadas para a melhoria dos domicílios. O déficit habitacional é calculado
como a soma de quatro componentes: (a) domicílios precários; (b) coabitação familiar; (c) ônus excessivo com
mais de perto.
aluguel urbano; e (d) adensamento excessivo de domicílios alugados. Os componentes são calculados de Como explica Marx,
forma sequencial, em que a verificação de um critério está condicionada à não ocorrência dos critérios
anteriores. A forma de cálculo garante que não há dupla contagem de domicílios, exceto pela coexistência “as mesmas circunstâncias que produzem a condição fundamental da
de algum dos critérios e uma ou mais famílias conviventes secundárias que desejem constituir novo
domicílio” (grifos nossos), In http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman /cei/deficit-habitacional/596-
produção capitalista – a existência de uma classe de trabalhadores assa-
nota-tecnica-deficit-habitacional-2013normalizadarevisada/file, acesso em 18 jan. 2015. lariados – exigem que toda produção de mercadorias se transforme em
139 O confronto destes dados foi feito pela própria agência de notícias governamental, como se vê em www. produção capitalista de mercadorias. À medida que esta última se desen-
brasil.gov.br/noticias/arquivos/2012/12/13/numero-de-casa-vazias-supera-deficit-habitacio nal-do-pais- volve, ela exerce um efeito destrutivo e dissolvente sobre todas as formas
indica-censo-2010. Aí se lê que “esse déficit habitacional foi calculado pelo Sindicato da Indústria da anteriores de produção, que, voltadas preferencialmente à satisfação das
Construção Civil de São Paulo (Sinduscon-SP) com base em outro levantamento do IBGE, a Pesquisa necessidades imediatas do produtor, só convertem em mercadorias as
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). O déficit soma a quantidade de famílias que declaram não
ter um teto, que habitam em locais inadequados ou que compartilham uma mesma moradia e pretendem sobras do que foi produzido”141.
se mudar. Não leva em conta as famílias que vivem em casas adequadas de aluguel”.
140 K. MARX, O Capital – Livro II, 2014, pp. 117/118. 141 Idem, p. 118.

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Estas transformações históricas são os pressupostos para a circulação do um ‘preço suficiente’ pelas terras desocupadas para torna-las inacessíveis aos
capital em um sistema capitalista de produção. O desenvolvimento da pro- imigrantes recentes”146.
dução implica também no desenvolvimento de um mercado habitacional. A Assim, segundo Holston,
habitação passa a aparecer também como mercadoria – aliás, neste sistema de
produção, tendencialmente, toda a produção de mercadorias se torna produ- “se tivessem um preço alto o bastante, os imigrantes teriam de traba-
lhar em troca de salários durante algum tempo antes de comprar terras
ção capitalista de mercadorias.
para trabalhar por conta própria. Esse trabalho assalariado produziria
O papel da propriedade privada na expansão do capitalismo e na manuten-
lucros para financiar o emprego de mais trabalhadores. Quando ti-
ção dos espaços de poder e de exclusão deve ser frisado. É emblemático o caso vessem ganhado dinheiro suficiente para se tornar proprietários in-
da Austrália, que inspirou a classe agrária brasileira do século XIX a estabelecer dependentes, os rendimentos das vendas das terras subsidiariam mais
regime similar de exclusão social, juridicamente fundada, da terra. Segundo imigração, que renovaria o fornecimento de mão de obra, reduziria os
James Holston, o teórico inglês da colonização, Edward Gibbon Wakefield, salários e assim criaria o que Wakefield chamava de ‘um sistema autos-
“desenvolveu suas teorias em resposta aos esforços fracassados dos capitalistas sustentável’ de colonização.”147
britânicos em reter trabalhadores nos assentamentos de imigrantes que finan-
ciaram na Austrália”142. Neste país, os trabalhadores eram “importados” a alto Karl Marx, no peculiar148 último capítulo do Livro I d’O Capital, tratou das
custo e logo conseguiam “abandonar seus empregadores para se tornar produ- teses sobre a colonização de Wakefield para desvendar o segredo da acumula-
tores independentes em pequenas porções de terra baratas ou gratuitas e assim ção primitiva do capital. Interessante anotar inicialmente a observação de D.
competir com os que haviam subsidiado sua imigração”143. Harvey, de que Marx tratou
Diante desta situação, deveria haver um modo de tornar o trabalhador “li-
“não da experiência colonial real e dos prognósticos das lutas revolucio-
vre” para vender sua força de trabalho como um igual ao explorador144. As nárias anticoloniais (a expropriação dos senhores coloniais pela massa
amarras feudais não existiam na Austrália – ao contrário, o que existiam eram do povo colonizado), mas das teorias da colonização elaboradas por um
imensas porções de terras livres para serem ocupadas e exploradas. Mas o ca- homem chamado Wakefield, que nunca figurou entre os grandes econo-
pitalismo “depende fundamentalmente de uma mercadoria capaz de produzir mistas políticos de todos os tempos e escreveu seu livro sobre coloniza-
mais valor do que aquele que ela tem, e essa mercadoria é a força de trabalho”145.
O desenvolvimento do capitalismo na Austrália dependeria da liberdade do
146 J. HOLSTON. Cidadania Insurgente, 2013, p. 174.
trabalhador. Wakefield, então, em 1829, “propôs estancar essa hemorragia de
147 Idem, p. 174.
trabalho e lucros encerrando as concessões gratuitas de terras e estabelecendo
148 Segundo D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 278 e seguintes, “Os capítulos 24 e
25 d’O Capital apresentam uma nítida mudança de tom, conteúdo e método. Para começar, eles vão
de encontro ao pressuposto central do resto do livro, estabelecido no capítulo 2, em que Marx aceita o
mundo teórico de Adam Smith de trocas atomísticas realizadas no mercado; nesse mundo, a liberdade,
a igualdade, liberdade e Bentham reinam de tal modo que todas as trocas de mercadoria ocorrem num
ambiente não coercitivo de instituições liberais e perfeito funcionamento”. Marx usa a análise imanente
142 J. HOLSTON. Cidadania Insurgente, 2013, p. 174. para desconstruir os argumentos dos economistas clássicos – desconstruir “em seus próprios termos”
143 Idem, p. 174. estas teses, como explica Harvey. Mas também usou criticamente suas poderosas abstrações para
penetrar a dinâmica real do capitalismo e revelar as origens das lutas em orno da duração da jornada de
144 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 278, lembra que os trabalhadores “são livres
trabalho, das condições de vida do exército industrial de reserva e coisas do gênero. A análise do Livro I
apenas no duplo sentido de ser capazes de vender sua força de trabalho para quem quiserem, ao
pode ser lida como um relato sofisticado e condenatório de que ‘não há nada mais desigual do que tratar
mesmo tempo que são obrigados a vender essa força de trabalho para viver, porque foram libertados e
desiguais como iguais”. A ideologia da liberdade de troca e da liberdade de contrato nos ludibria a todos”.
liberados de todo e qualquer controle sobre os meios de produção!”
Já nos capítulos 24 e 25, a finalidade é “esmiuçar a história da acumulação primitiva do século XVI em
145 Idem, p. 279. diante e investigar como esses processos foram postos em movimento”.

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ção enquanto cumpria pena na prisão de Newgate por tentar seduzir a capital”153. Marx critica ferrenhamente Wakefield para revelar a posição do as-
filha de uma família rica” 149. salariado e do trabalhador livre no sistema sociometabólico do capital:

Como explica Harvey, o tal do Wakefield “achou-se na companhia de pri- “O assalariado de hoje se torna, amanhã, um camponês ou artesão inde-
sioneiros prestes a ser enviados para a Austrália, e isso, é claro, levou-o a pensar pendente, que trabalha por conta própria. Ele desaparece do mercado de
sobre o papel da Austrália no esquema geral das coisas”150. De fato, a Austrália, trabalho, mas... não retorna à workhouse. Essa constante transformação
como o Brasil, era uma gigantesca região geográfica para a qual o capitalismo dos assalariados em produtores independentes, que trabalham para si
europeu, em especial o inglês, se expandia investindo os excedentes que não mesmos em vez de trabalhar para o capital, e enriquecem a si mesmos
em vez de enriquecer o senhor capitalista, repercute, por sua vez, de
puderam ser incorporados à própria economia inglesa.
uma forma completamente prejudicial sobre as condições do mercado
Segundo Harvey, Wakefield “sabia pouco do que estava acontecendo na
de trabalho. Não só o grau de exploração do assalariado permanece
Austrália, mas viu algo que Marx considerou de grande importância, por- indecorosamente baixo. Este último ainda perde, junto com a relação
que significava uma refutação esmagadora de Adam Smith”: reconheceu de dependência, o sentimento de dependência em relação ao capitalista
que se poderia “levar para a Austrália todo o capital existente no mundo abstinente. Daí surgem todos os males que nosso E. G. Wakefield descre-
(dinheiro, instrumentos de trabalho, materiais de todos os tipos); no entan- ve de modo tão corajoso, eloquente e pungente”154.
to, se não conseguimos encontrar trabalhadores ‘livres’ (no duplo sentido
da palavra!) para trabalhar para nós, não podemos ser capitalistas”151. Nos Marx, então, afirma que este modelo foi um retumbante fracasso, já que
próprios termos de Marx: o fluxo migratório se desviou da Austrália para os Estados Unidos155, onde
em 1862 foi editado o Homestead Act, segundo o qual a propriedade de 1
“Wakefield descobriu nas colônias que a propriedade de dinheiro, meios acre de terra seria adquirida por quem a cultivasse por cinco anos. Wakefield
de subsistência, máquinas e outros meios de produção não confere a confrontara aquilo que concebeu como o sistema australiano com o sistema
ninguém a condição de capitalista se lhe falta o complemento: o tra- agrário dos Estados Unidos, que considerava livre demais, aumentando dema-
balhador assalariado, o outro homem, forçado a vender a si mesmo vo-
siadamente o preço do trabalho156. O que interessa neste ponto é que, através
luntariamente. Ele descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma
da análise de Wakefield, Marx explicita que “o modo capitalista de produção
relação social entre pessoas, intermediada por coisas.”152
e acumulação – e, portanto, a propriedade privada capitalista – exige o ani-
Deve-se frisar: o capital não é uma coisa, como pensa a “cabeça do eco- quilamento da propriedade privada fundada no trabalho próprio, isto é, a
nomista político”, mas uma relação social entre pessoas. Daí que “os meios de expropriação do trabalhador”157.
produção e de subsistência, como propriedades do produtor direto, não são

153 Idem, p. 837.


149 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 288. 154 Idem, p. 839.
150 Idem. 155 Idem, p. 843.
151 Idem. 156 Observa D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 288, que “Como Wakesfield predisse
corretamente, os Estados Unidos teriam de recorrer às táticas brutais da pré-história do capitalismo
152 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 836. Vale ler a continuação do trecho de Marx pela ironia
se quisessem que o sistema continuasse vivo no país. A luta entre o ‘trabalho livre’ na fronteira e o
característica adotada: “O sr. Peel, lastima ele, levou consigo, da Inglaterra para o rio Swan, na Nova
controle crescente da política agrária por interesses privados (em particular as ferrovias), assim como
Holanda, meios de subsistência e de produção num total de £50 mil. Ele foi tão cauteloso que também levou
a retenção das populações imigrantes como trabalhadores assalariados nas cidades, eram aspectos
consigo 3 mil pessoas da classe trabalhadora: homens, mulheres e crianças. Quando chegaram ao lugar de
vitais da acumulação”.
destino, “o sr. Peel ficou sem nenhum criado para fazer sua cama ou buscar-lhe água do rio”. Desditoso sr.
Peel, que previu tudo, menos a exportação das relações inglesas de produção para o rio Swan!”. 157 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 844.

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As ideias de Wakefield tiveram grande influência no Parlamento Britânico fortemente a expansão urbana no século XX, período de intensa expansão
e na política agrária inglesa158, e por este meio estas teses chegam também ao geográfica capitalista no país.
Brasil159. A destinação das terras após a independência era uma discussão can- Com a Lei de Terras a propriedade da terra passa já a estar subordinada à
dente no Brasil. As experiências dos EUA e da Austrália eram discutidas pelos lógica do valor de uso/valor de troca. A terra adquire o estatuto de mercadoria
legisladores brasileiros quando dos debates para o que veio a resultar numa lei e a legislação formaliza ao extremo este estatuto, determinando que a transmis-
de reforma agrária e trabalhista em 1843, que tinha como objetivos: a) “criar são da mesma só é reconhecida pela lei com o registro no cartório de imóveis
condições nas quais o trabalho livre europeu substituiria o trabalho escravo competente. Este regime foi mantido pelo Código Civil de 2002, que regula a
nas lavouras”; b) “financiar essa substituição com fundos gerados pela venda de matéria atualmente:
terras e regularização de títulos, cujo custo seria distribuído entre todos os pro-
prietários de terras”; c) e “trazer ordem ao caos dominante na ocupação da terra “Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro
do título translativo no Registro de Imóveis. § 1º Enquanto não se regis-
ao distinguir as posses públicas das privadas e desenvolver um regime fundiário
trar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono
legal sob a autoridade do governo central”160.
do imóvel. § 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria,
A lei adotou as diretrizes de Wakefield, impondo que as terras da Coroa a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o
poderiam ser vendidas apenas em lotes maiores que 2.688 acre, o que manteria adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”.
os preços das terras elevados e inacessíveis a pequenos proprietários161. Outras
duas medidas reforçavam esta finalidade de obstar o acesso de pequenos pro- Este regime jurídico procura desvincular a posse da propriedade, sendo mi-
prietários às terras: a criação de um imposto anual sobre a propriedade privada tigado apenas pelo reconhecimento do instituto da usucapião, pelo qual se ad-
e a proibição de que “imigrantes subsidiados comprassem, arrendassem ou alu- quire a propriedade pela posse prolongada no tempo. A usucapião protege o
gassem ou de qualquer forma obtivessem o uso da terra por três anos, a não ser proprietário por ao menos 5 anos, podendo o prazo chegar até a 15 anos. Acima
que pagassem integralmente as despesas de sua imigração”162. de tudo, o instituto da propriedade buscava proteger a circulação formal da ter-
Após, a partir da edição da Lei de Terras, em 1850 (mesmo ano da Lei ra e preparava o terreno para a imigração e para a abolição da escravização dos
Euzébio de Queiroz, que proibia o comércio de pessoas escravizadas), a única negros. É discutível se o formalismo da transferência da propriedade tem efeitos
forma legal de posse da terra passa a ser a compra devidamente registrada em positivos sobre o sistema sociometabólico do capital em geral, mas o mesmo
cartório de imóvel – passa a ser a propriedade privada, que apenas poderia fazia todo o sentido naquele momento histórico, em que as condições gerais
ser transferida solenemente. Esta forma de aquisição da propriedade da terra, para o desenvolvimento capitalista estavam sendo estabelecidas, não sem con-
prevista numa lei do período pré-capitalista no Brasil (em que este país se tradições próprias relacionadas aos interesses das classes dominantes de então.
inseria já como periferia do capitalismo mundial em expansão), influenciará De qualquer modo, a terra adquire o estatuto de mercadoria, podendo circular
apenas por meio de atos solenes, criando condições para o despojamento dos
trabalhadores de seus meios de produção e de subsistência.
158 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 289. A edição da lei de terras significou um abandono apenas parcial das ideias
159 Segundo J. HOLSTON. Cidadania Insurgente, 2013, p. 422, “Wakefield se tornou conhecido nas de Wakefield: “ao mesmo tempo que parecia estimular a pequena propriedade
décadas de 1830 e 1840 e foi citado no trabalho de Jonh Stuart Mills como uma autoridade em
colonização. Ele foi notoriamente criticado por Marx, que dedicou o último capítulo de O Capital a independente, a lei mantinha o princípio fundamental de Wakefield de que os
derrubar suas teorias sobre as ‘manufaturas de trabalhadores assalariados nas colônias’”. imigrantes não deveriam ter acesso fácil à terra”163. Isto era feito mantendo-se o
160 J. HOLSTON. Cidadania Insurgente, 2013, p. 175. obstáculo de que “o Estado deveria vender, e não conceder [como chegou a ser
161 Idem.
162 Idem, p. 175/176. 163 J. HOLSTON. Cidadania Insurgente, 2013, p. 180.

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feito nos Estados Unidos], terras públicas”, e também pela extinção do instituto elementares para o capitalismo brasileiro e para o regime fundiário, mantidas
da posse como forma legítima de propriedade fundiária, inclusive criminalizan- ao longo da história, elas estabelecem os limites para as políticas públicas de
do a sua prática – com isso, “a lei eliminava a forma costumeira, se não a única, habitação atuais, às quais se passa a analisar.
de os pobres adquirirem terras”164.
Como observava Karl Marx,
3.2. Do Projeto Moradia ao Programa Minha Casa,
“A natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de Minha Vida: o sonho da casa própria como ideologia
um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de trabalho, de
outro. Essa não é uma relação histórico-natural [naturgeschichtliches], para o desenvolvimento capitalista
tampouco uma relação social comum a todos os períodos históricos, mas
é claramente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o No Brasil, desde o início dos governos petistas em 2003, houve intensa dis-
produto de muitas revoluções econômicas, da destruição de toda uma puta sobre qual modelo de política habitacional seria adotado. Grosso modo, os
série de formas anteriores de produção social”165. dois modelos em disputa eram: 1) o modelo do estímulo ao mercado, por meio
do qual o governo atuaria para fomentar um ambiente favorável à produção em
Nas condições pré-capitalistas do Brasil, inserido já no contexto capitalista massa de mercadoria habitacional, se necessário por meio de subsídios públicos;
mundial numa trajetória de desenvolvimento dependente periférico, a acumu- 2) e o modelo do planejamento urbanístico-habitacional, pelo qual o Estado,
lação primitiva exigia um sistema jurídico que consagrasse a propriedade pri- nos três níveis, deveria ter um papel indutor da produção de moradia, através
vada da terra e toda a terra como propriedade privada, apta a transformar-se da articulação de políticas urbanas, fundiárias e habitacionais. Os dois modelos
em mercadoria. O direito aparece aí a serviço da acumulação primitiva e da divergem quanto a finalidades específicas no âmbito do direito e da política,
expansão capitalista para além da Europa, em especial para além da Inglaterra, embora não quando ao modo de produção capitalista. A seguir, se descreve
que precisava aplicar seus excedentes produtivos e sustentar seu próprio desen- como aquele primeiro modelo prevaleceu diante dos imperativos da expansão e
volvimento em bases imperialistas. reprodução do capital no país.
Quando o trabalho “livre” surgir definitivamente o Brasil com a abolição Na primeira década do século XXI, intensa produção legislativa e insti-
da escravização de negros, a terra já será cativa – como afirmou Martins, tucional sobre o direito à moradia teve lugar: em 2000 é constitucionalizado
“num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo, num regime o direito à moradia (passa a ser previsto no artigo 6º da CF como direito so-
de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”166. Assim, o direito em geral cial167) e em 2001 é aprovado o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01). A partir
e o instituto da propriedade privada em particular aparecem como decisi- de 2003, com o primeiro governo Lula, começava-se a colocar em prática –
vos na formação do capitalismo brasileiro, liberando os trabalhadores para o não sem ambiguidades – uma perspectiva que concebia a política habitacional
trabalho assalariado, afastando-os (ou buscando afastá-los) da terra “livre”. como íntima e indissociavelmente ligada à política urbana e fundiária (mode-
A propriedade privada é usada para produzir exclusão social e para fabri- lo do planejamento urbanístico-habitacional). Esta perspectiva fora desenvol-
car as condições básicas para o desenvolvimento do capitalismo, em especial vida antes de o PT assumir a presidência da república, no Instituto Cidadania,
a despossessão da terra e dos demais meios de subsistência e produção, um que, a pedido de Lula, desenvolveu o “Projeto Moradia”, que “enfatizava o
típico processo de espoliação pré-capitalista. Assentadas as bases jurídicas

164 Idem. 167 Constituição Federal, Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
165 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 244.
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda
166 J. S. MARTINS. Expropriação e Violência (a questão política no campo), 1980, p. 32. Constitucional nº 90, de 2015)

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caráter urbanístico da questão da moradia, ou seja, a impossibilidade de sepa- uma estratégia de longo prazo para equacionar as necessidades habitacionais do
rar uma proposta de habitação de uma proposta para as cidades e propunha, país, direcionando da melhor maneira possível os recursos existentes e a serem
entre outros aspectos, a criação do Ministério das Cidades e da Habitação”168. mobilizados”172. O plano apresentava “uma estratégia nos quatro eixos estrutu-
Como observou R. ROLNIK, radores da política habitacional: modelo de financiamento e subsídio; política
urbana e fundiária; arranjos institucionais e cadeia produtiva da construção
“A proposta política habitacional do governo já estava esboçada desde a civil”173. A partir destes eixos, se buscaria “implementar um conjunto de ações
campanha eleitoral. O chamado Projeto Moradia fazia parte de um con-
capazes de construir um caminho que permita avançar no sentido de atingir
junto de propostas do Instituto Cidadania, coordenado por Lula, tendo
o principal objetivo da PNH [Política Nacional de Habitação]: universalizar o
em vista a construção de uma política de desenvolvimento para o país
que associasse o enfrentamento da questão social ao crescimento eco- acesso à moradia digna para todo cidadão brasileiro”174.
nômico e à geração de empregos... Lançado em 2000, o projeto propôs Ocorre que antes do lançamento do Plano Nacional, em 2009, o governo fe-
a criação do Sistema Nacional de Habitação, formado pelos três entes deral lança um programa mais específico e desvinculado do Plano e da Política
da federação, que atuariam de forma estruturada sob a coordenação Nacional de Habitação em elaboração: o Programa Minha Casa, Minha Vida
do novo Ministério das Cidades. O controle social seria exercido pelo (PMCMV). Este programa inicialmente previa a construção de um milhão de
Conselho Nacional das Cidades e por órgãos semelhantes nos estados moradias para pessoas de baixa renda e famílias nas faixas de renda de até 10
e municípios, aos quais caberia gerir fundos de habitação que deveriam salários mínimos, tendo sido ampliado posteriormente. Na prática, foi este pro-
concentrar recursos orçamentários para subsidiar moradia para a popu- grama que passou a moldar a política habitacional do governo federal, ofuscan-
lação de baixa renda”169.
do o Plano Nacional de Habitação, que seria divulgado – então praticamente
natimorto – em dezembro de 2009, meses depois do lançamento do PMCMV.
No primeiro ano de governo, 2003, foi criado o Ministério das Cidades, com
Neste sentido apontou Nabil Bonbuki:
atribuição de “formular a política urbana em nível nacional e fornecer apoio
técnico e financeiro a governos locais, integrando as arenas institucionais das Ao publicizar o novo programa [Minha Casa, Minha Vida] antes de
políticas federais de habitação, saneamento e transportes”170; em 2004, a Políti- apresentar o Plano Nacional de Habitação (PlanHab) uma estratégia
ca Nacional de Habitação é aprovada pelo aprovada pelo Conselho das Cidades; de longo prazo para equacionar o problema habitacional, formulada e
em 2005 surge o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social; também debatida por ano e meio, sob a coordenação da Secretaria Nacional de
em 2005 é aprovada a lei 11.124/05, que instituiu o Fundo Nacional de Habita- Habitação, que estava pronta para ser publicada em janeiro de 2009, o
ção de Interesse Social (FNHIS), cujo funcionamento iniciou em 2006171; em governo perdeu uma excelente oportunidade para mostrar como uma
2003 é realizada a Conferência Nacional das Cidades e em 2004 é instituído o ação anticíclica poderia se articular com uma estratégia estrutural para
Conselho Nacional das Cidades em 2004, como órgão consultivo e deliberativo. atacar um problema brasileiro crônico, no âmbito de um projeto nacio-
nal de desenvolvimento com inclusão social175.
Finalmente, já no segundo governo Lula, em agosto de 2007, começa a ser
elaborado o Plano Nacional de Habitação, que tinha como objetivo “formular

A política de subsídios previa um mix de recursos não onerosos do Orçamento Geral da União (OGU)
168 MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, pp. 6 e seguintes.
e do FGTS para viabilizar o crédito e o acesso à moradia digna para a população de baixa renda”.
169 R. ROLNIK. Guerra dos Lugares, 2015, p. 295.
172 BRASIL, Plano Nacional de Habitação, 2009, p. 9.
170 Idem, p. 294.
173 Idem.
171 Idem, p. 295-296, afirma que o Fundo Nacional de Habitação era “bandeira do movimento de moradia
174 Idem.
que tramitava desde 1991 no Congresso Nacional. Inspirado no modelo do Sistema Único de Saúde,
esse projeto de lei propunha um sistema federativo de articulação de orçamentos sob controle social. 175 N. BONDUKI, Do Projeto Moradia ao programa Minha Casa, Minha Vida, 2009, p. 108.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Como será detalhado adiante, o PMCMV tem um viés de construção em cesso histórico recente das políticas urbanísticas e têm íntima relação com os
massa de unidades habitacionais, distanciando-se da articulação em quatro ei- modelos de política habitacional de estímulo ao mercado ou de planejamento
xos176 proposta no Plano Nacional de Habitação – é dizer, os eixos política ur- urbanístico-habitacional. O único sentido comum que pode haver, nestes casos,
bana e fundiária e arranjos institucionais foram deixados de lado pelo programa é a reprodução economicamente sustentada do mercado habitacional, realizan-
Minha Casa, Minha Vida. Por outro lado, os eixos sobre financiamento e cons- do o papel destinado ao Estado sob o sociometabolismo do capital.
trução civil se apoiou em aparatos jurídico e institucional bastante eficientes No mais, este eixo “arranjos institucionais” criava estratégias que o alinha-
para a produção em massa da mercadoria habitação. vam a propostas do movimento da Reforma Urbana:
No Plano Nacional de Habitação, o eixo política urbana e fundiária buscava
“facilitar e baratear o acesso à terra urbanizada para Habitação de Interesse “1. Fortalecer o setor público e explicitar os papéis e competências de
cada nível de governo no SNHIS;
Social (HIS)”177 e se apoiava em três fatores básicos: “a) capacidade de amplia-
ção e disponibilização de terra urbanizada bem localizada para a provisão de 2. Fortalecer os agentes não estatais para exercerem seu papel no SNHIS;
habitação de interesse social; b) estratégias de estímulo à cadeia produtiva da 3. Garantir o controle social e participação da sociedade na implemen-
construção civil e; c) fomento ao desenvolvimento institucional dos agentes tação da política e dos planos nas três esferas federativas;
envolvidos no setor habitacional, especialmente os setores públicos municipal e
4. Criar o Índice de Capacidade Institucional Habitacional e de Ges-
estadual”178. Os instrumentos básicos que poderiam fazer trilhar este caminho tão Urbana para bonificar com maior acesso aos recursos federais
seriam instrumentos de política urbana com vocação para reprimir o uso espe- os entes federativos que se qualificarem para gerir adequadamente o
culativo da terra urbana e o não cumprimento da função social da propriedade, setor habitacional;
cuja aplicação caberia em especial aos Municípios. Alguns destes instrumentos
5. Capacitar os vários agentes do SNHIS para garantir repertório co-
estão previstos no Estatuto da Cidade, mas têm aplicação praticamente residual, mum, agilidade e qualidade na implementação do PlanHab;
prevalecendo uma urbanização de “livre mercado”, sem planejamento estatal.
Já o eixo “arranjos institucionais” buscava articular “ações com um sentido 6. Instituir o Sistema de Informações da Habitação a partir do cadastro
nacional CadÚnico, completado com informações para a gestão e ava-
comum” entre os diversos entes governamentais. No Plano, a noção de arranjo
liação da política habitacional;
institucional é restrita, voltada apenas aos agentes envolvidos na política pú-
blica179. A ideia de “ações com um sentido comum” despreza os interesses em 7. Criar um sistema de monitoramento e avaliação que permita o contro-
conflito, interesses alinhados com modelos distintos de política habitacional le dos resultados e a revisão periódica do PlanHab.”181
e de desenvolvimento urbano180. Estas concepções diversas marcaram o pro-
Como já observado, no início do governo Lula, houve abertura institucio-
nal para a concepção da política habitacional como intimamente relacionada
176 Quais sejam, modelo de financiamento e subsídio; política urbana e fundiária; arranjos institucionais; à política urbana e fundiária. Porém, em 2005, a governabilidade petista levou
e cadeia produtiva da construção civil.
à entrega do Ministério das Cidades ao Partido Progressista (PP), estancan-
177 BRASIL, Plano Nacional de Habitação, 2009, p. 13.
do os avanços do movimento da reforma urbana e colocando em xeque a
178 Idem, p. 6.
concepção de vinculação entre política habitacional e política fundiária e
179 Ao contrário da concepção de arranjo institucional de Dallari Bucci, para quem “O arranjo institucional
é a expressão formalizada da política pública, com uma dimensão sistemática” (Fundamentos para uma
Teoria Jurídica das Políticas Públicas, 2013, p. 23) ou o “marco geral de ação, incluindo uma norma
instituidora” (Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas, 2013, p. 179). (defendido por movimentos sociais e populares, por urbanistas próximos a estes e pelo já mencionado
Instituto Cidadania, que elaborara a base programática do programa de governo nesta área).
180 Os modelos de desenvolvimento urbano em disputa são o modelo do empreendedorismo das cidades
(defendido pelas forças de mercado, construtoras, incorporadoras, bancos) e o modelo da reforma urbana 181 BRASIL, Plano Nacional de Habitação, 2009, p. 108.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

urbana. Perde fôlego aí a proposta de elaboração de um Plano Nacional de A parti dali, seria privilegiada a implementação do Programa Minha Casa,
Desenvolvimento Urbano182. Minha Vida, com a derrocada da busca por articulação entre política habita-
A governabilidade estava ligada à tentativa do petismo de realizar mudanças cional e urbana. O que prevaleceria seria a agenda do mercado de construção
sociais sem enfrentar diretamente os interesses das classes dominantes no Bra- civil e imobiliário, tendo havido, como será detalhado a seguir, centralização no
sil183. André Singer analisou a “inserção social” de trabalhadores pobres no Bra- nível federal da política habitacional, que passava ase apoiar na produção em
sil como o projeto principal do governo Lula, pensando-a como um reformismo massa da mercadoria habitação.
fraco em prol do que ele chama de “subproletariado” (que nada mais é do que
a parcela mais pauperizada dentre a população de baixa renda), em prol da
“redução da sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permenente”184. E
3.3. Linhas Gerais do Programa Minha Casa, Minha Vida
este projeto petista de “inserção social” dos trabalhadores pobres, ao contrário O Programa Minha Casa, Minha Vida é uma política pública do governo
do indicado na obra, está longe de ser incompatível com as políticas neoliberais federal voltada à construção de unidades habitacionais para a “população de
– não se trata, como pretende Singer, de um mero “caminho intermediário ao baixa renda”, isto é, para as parcelas pauperizadas das classes trabalhadoras.
neoliberalismo da década anterior”185, mas da viabilização da continuidade do Lançado em 2009, o programa construiu, segundo fontes oficiais, 2,6 milhões
neoliberalismo no capitalismo periférico, ou, dito de outro modo, da continui- de moradias em todo o país, pretendendo-se ainda construir mais 2 milhões nos
dade da inserção periférica do Brasil no neoliberalismo global. anos subsequentes, contemplando mais de 9,2 milhões de pessoas186. O progra-
A “inserção social” dos trabalhadores pauperizados ocorre num contexto de ma anunciadamente visa a implementar o direito à moradia para a população
hegemonia global do projeto neoliberal, do qual o Brasil aparece como depen- de baixa renda por meio da aquisição de título de propriedade via financiamen-
dente. O processo que ocorre no Brasil se trata mais de uma “inserção social” to imobiliário. Tem incidência principal em áreas urbanizadas, embora preveja
via mercado (ao invés de apoiada em acesso universal a direitos), ocasionando também, ao lado do Programa Nacional de Habitação Urbana, o Programa Na-
uma ampliação de mercados capitalistas estimulada pelo Estado – uma das ca- cional de Habitação Rural187.
racterísticas mais evidentes do neoliberalismo é justamente que o Estado deve Pelas regras do programa, os beneficiários devem estar em três faixas de
ser mínimo, com funções específicas como promover e estimular soluções de renda familiar: a) até R$ 1.800,00 (Faixa 1); b) de R$ 1.800,01 até R$ 2.350,00
mercado para as necessidades sociais. (faixa 1,5); c) de R$ 2.350,01 a R$ 3.600,00 (Faixa 2); de d) de R$ 3.600,00 até
A questão habitacional continuou a ser objeto de disputa dentro do gover- R$ 6.500,00 (Faixa 3). A primeira faixa de renda (faixa 1) é quase completa-
no, mas, como ficou mais claro no ano 2009, a vertente que se hegemonizou mente subsidiada, podendo ser custeado até 90% do valor do imóvel. As faixas
privilegiou não os eixos do Plano Nacional de Habitação (que incluía aquela 1,5 e 2 também são subsidiadas, enquanto a não conta com subsídios, mas com
vinculação entre política habitacional e política urbana e fundiária), mas o Pro-
grama Minha Casa, Minha Vida. A divulgação do Plano Nacional, em 2009,
soou como um último suspiro de um movimento que perdia paulatinamente 186 http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2016/03/minha-casa-minha-vida-chega-a-3a-fase-com-2-
espaço no governo petista. milhoes-de-novas-moradias-ate-2018 e http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2015/09/minha-casa-
minha-vida-entregou-2-4-milhoes-de-moradias, consultas em 26/05/2016.
187 Art. 1º, incisos I e II, da Lei nº 11.977/2009. Sobre a origem deste programa, como aponta R.
ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 301, “ainda em 2009, movimentos de sem-terra, envolvidos na
182 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, pp. 62 e 63. luta pela reforma agrária, também pressionaram o governo e conseguiram aprovar uma modalidade
183 A. SINGER, Os Sentidos do Lulismo, 2012. de casas para suas cooperativas e pequenos produtores de agricultura familiar – o PNH-Rural – que
também [como o MCMV-Entidades] obteve 500 milhões de reais para a construção de casas. Desde
184 Idem, p. 168.
o lançamento do programa, MCMV-Entidades e PNH-Rural representam, juntos, 1% do total de
185 Idem, p. 13. unidades e recursos do MCMV”.

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taxas de juros mais baixas do que as dos financiamentos imobiliários existentes O problema do déficit habitacional, da maneira como é colocada pelo
no mercado. Portanto, o programa tem incidência em diversas faixas de renda PMCMV, é um problema aparente, já que a escassez de imóveis é criada via
das classes trabalhadoras, sendo de maior interesse para este trabalho analisar mercado e protegida pelo direito e pela política. Não à toa, o déficit habitacional
o papel do mesmo na “inserção habitacional” da população de baixa renda, é menor do que o número de domicílios fechados/imóveis vazios no país191. Estes
aquelas público alvo da “Faixa 1”. números dependem da demanda monetária e das massas salariais existentes,
Como já apontado, este programa suplantou o Plano Nacional de Habita- não da quantidade de imóveis. Mais do que incapaz de resolver o “déficit habi-
ção, que vinha sendo gestado no Ministério das Cidades e, dos quatro eixos tacional”, as classes dominantes instituem com sucesso mecanismos institucio-
previstos pelo plano (modelo de financiamento e subsídio; política urbana e nais e legais para apartar as pessoas sem-teto dos imóveis vazios192. Engels, no
fundiária; arranjos institucionais; e cadeia produtiva da construção civil), deu século XIX, já observava que “existem conjuntos habitacionais suficientes nas
especial ênfase ao modelo de financiamento e subsídio e ao incentivo da cadeia metrópoles para remediar de imediato, por meio de sua utilização racional, toda
produtiva da construção civil. Daí se identificar um desequilíbrio conceitual e a real ‘escassez de moradia’”193. Porém, para o autor, acomodar trabalhadores
teórico entre o PMCMV e o Plano Nacional de Habitação, já que “a execução sem teto, em situação de rua ou habitantes de moradias indignas nos imóveis
das diretrizes do PlanHab através do Programa Minha Casa Minha Vida levou vazios só seria possível com a conquista do poder política pelo proletariado194.
a uma série de distorções entre a intenção original e o resultado real”188; levou Pouco mudou desde então.
a uma defasagem entre a política de habitação e a política fundiária; e levou à Voltando ao Plano Nacional de Habitação, Ermínia Maricato afirma que
priorização, pelo PMCMV, da expansão da indústria da construção civil em de- este retomava uma necessária articulação para equacionar a questão da habita-
trimento do combate ao déficit habitacional189. Apesar disso, o combate a este ção, mas que “o lançamento do programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV),
déficit continuou sendo o a justificativa e o mote do programa. em março de 2009, também o ignorou na maior parte”195. Diz a urbanista que
Ocorre que o próprio problema do déficit habitacional não pode sequer ser
enunciado pelo Estado capitalista senão como mistificação: “é importante constatar ainda que já havia uma proposta de política
habitacional construída pelos movimentos sociais que deu origem ao
“Bolaffi expõe, por exemplo, os curiosos malabarismos dos quais a classe FNHIS (Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social), que se di-
dominante e obrigada a lançar mão para, em seu discurso, dizer que está ferenciava bastante do PMCMV... ela instituiria, se seguisse a proposta
resolvendo o problema da habitação. Inicialmente Bolaffi mostra que
não tem cabimento falar-se em “déficit” habitacional numa economia de 191 Como já observado neste trabalho, item 3.1, o Censo 2010 do IBGE (http://censo2010.ibge.gov.br/
mercado, da mesma maneira que, a não ser transitoriamente, não tem apps/atlas/, acesso em 10 abr. 2015) indicou que dos Domicílios particulares permanentes, 9% estão
cabimento falar-se de “déficit” de automóveis ou televisores. Do ponto vagos, o que significa, em números absolutos, 6,07 milhões de imóveis vazios. O déficit habitacional,
de vista da economia política vigente, diz Bolaffi, o Brasil possui exata- em 2010, era calculado como sendo de 5,8 milhões de famílias (levantamento do Sindicato da
Indústria da Construção Civil de São Paulo - Sinduscon-SP, conforme www.brasil.gov.br/noticias/
mente o número de habitações para o qual existe uma demanda mone- arquivos/2012/12/13/numero-de-casa-vazias-supera-deficit-habitacional-do-pais-indica-censo-2010,
tária... Isso não quer dizer que o problema não exista. Quer dizer entre- acesso em 10 abr. 2010).
tanto que a burguesia não pode enunciá-lo corretamente pois se o fizesse 192 Exemplo das reintegrações de posse multitudinárias são a do Pinheirinho e a da Vila Soma, tendo
teria que reconhecer ao mesmo tempo sua incapacidade de resolvê-lo.”190 ambos os casos sido levados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em razão das violações
de direito que ocasionaram ou que podem ainda ocasionar. Para as autoridades brasileiras, porém,
estas reintegrações seguiram seu curso normal. Estes exemplos mostram apenas a face mais conflituosa
do imenso aparato jurídico de exclusão de pessoas e de proteção de propriedades existente.
188 P. NASCIMENTO NETO et al., Housing Policy: A Critical Analysis on the Brazilian Experience, 2012, p. 65. 193 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 56.
189 Idem. 194 Idem.
190 F. VILLAÇA, O que todo cidadão precisa saber sobre habitação, 1986, p. 5. 195 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 63.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

original, um sistema descentralizado de investimentos em habitação, re- 6015/73), para instituir o sistema de registro eletrônico; e sobre a reforma da
presentado por fundos e conselhos estaduais e municipais, que teriam regularização fundiária.
autonomia para aplicação dos recursos repassados por meio do Fundo A desconexão entre os capítulos da lei, em especial entre os capítulos I e III,
Nacional. Seguindo sua característica ambígua, o governo Lula respon- esconde menos do que revela. Como apontado especialmente no item 2.3 deste
deu, de certo modo, com o FNHIS para os movimentos sociais e com
trabalho, não se pode discutir o acesso de pessoas de baixa renda a habitação
o PMCMV para os empresários, sendo que o primeiro, gerido por um
sem se discutir o modo pelo qual a terra urbana é produzida e distribuída. O
conselho que tem a participação de representantes da sociedade, maneja
recursos bem menos expressivos do que o segundo”.196 PMCMV, apesar de sua lei de regência ter um capítulo inteiro voltado para a
regularização fundiária, se consolidou como mero programa de produção em
Mas apenas em diferente contexto socioeconômico a realidade poderia ser massa de moradias.
outra da apontada por Maricato. Anteriormente, o Governo desenvolvera o Como logo se explicitaria, o programa tinha as finalidades macroeconômi-
PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) 1, de 2007, que tinha por fina- cas como as mais proeminentes, tendo sido lançado antes como resposta à crise
lidade a urbanização de assentamentos precários (favelas e áreas urbanas degra- econômica mundial que se iniciou em 2008200, do que como mecanismo efetivo
dadas), o qual incidiria mais no desenvolvimento urbano do que o PMCMV197. para a satisfação das necessidades habitacionais das classes trabalhadoras. Esta
Aquele programa, focado em urbanização, buscava impulsionar o melhor apro- crise econômica mundial se desenvolvia numa ponta do capital financeiro in-
veitamento da infraestrutura urbana já existente e subutilizada – mas não in- ternacional que não atingia com vigor o Brasil. Aí, estavam dadas as condições
cidia sobre o aspecto da produção habitacional. Por outro lado, o PMCMV para o investimento de excedentes de capital – a economia tinha estoque mo-
“retoma a política habitacional com interesse apenas na quantidade de mora- netário suficiente e as empresas de construção civil estavam capitalizadas com
dias, e não na sua fundamental condição urbana”198. Fato é que o Programa um estoque de terras e com mão de obra farta.
Minha Casa, Minha Vida decorreu de condições objetivas bem específicas para Assim, o programa anunciava destinar-se aos “trabalhadores de mais baixa
a expansão produtiva de excedentes monetários nacionais e internacionais no renda”, mas seu desenho concreto passou longe de solucionar a questão habita-
país – em específico, a existência de certo volume de capital monetário (gerido cional para estes trabalhadores. Como observei em outro trabalho,
pelo Estado brasileiro) e de um farto banco de terras pertencentes à indústria
“A exposição de motivos da medida provisória 459/2009, que originou
da construção civil199.
a lei 11.977/2009, já explicitava que o programa compunha ‘parte signi-
A lei 11.977/2009 (originada da Medida Provisória 459/2009), que “Dispõe
ficativa do mosaico de ações do Governo para combater o déficit habi-
sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fun- tacional e a crise econômico-financeira global’ e que ‘De fato, diante
diária de assentamentos localizados em áreas urbanas”, é o diploma jurídico que do cenário de crise financeira mundial com o recrudescimento de seus
organiza o programa, que foi previsto no capítulo I, enquanto os capítulos II e impactos negativos sobre a atividade econômica, renda e nível de empre-
III trouxeram previsões, respectivamente, sobre a lei de registros públicos (lei go do País é premente a necessidade de adoção de medidas de natureza
anticíclicas no curto prazo, principalmente aquelas que possam garantir
a melhoria da qualidade de vida da população de baixa renda e a manu-
tenção do nível de atividade econômica’ (E.M. Interministerial 33/2009/
196 Idem. MF/MJ/MP/MMA/MCidades, itens 1 e 2, disponível em http://www.pla-
197 Idem, p. 74. nalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Exm/EMI-33-MF-MJ-MP-
198 Idem, p. 75. -MMA-Mcidades-09-Mpv-459.htm). Mas, ao mesmo tempo, afirmava
199 Este banco de terras levou a que incorporadoras escolhessem onde construir os imóveis do PMCMV,
e a escolha óbvia foi pelos terrenos nas “franjas das cidades”, deixando os terrenos mais centrais,
aqueles mais valorizados, como reservas de valor. 200 BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social no Brasil, Volume 3, 2014, p. 118.

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buscar a facilitação do acesso à moradia própria para as famílias de baixa ordenamento territorial e fundiária destinada a disponibilizar terra
renda201. Lê-se na exposição de motivos um diagnóstico correto sobre o para moradia popular. O resultado é um extraordinário aumento no
déficit habitacional (de que ele ‘se concentra no segmento populacional preço de terras e imóveis.
de baixa renda, em razão da dificuldade dessa população em acessar fi-
O programa Minha Casa Minha Vida, formulado como política indus-
nanciamento e outros mecanismos de aquisição de moradia que deman-
trial – e com grande apelo eleitoral - tem ignorado as conquistas no
dem comprovação, regularidade e suficiência de renda, da decadência
campo do direito à cidade, do direito à moradia e no campo da cidada-
do SFH nos anos 80 e do fenômeno da urbanização mais acelerada da
nia... O financiamento diretamente para as construtoras, como estímu-
última década’), porém, a medida provisória, depois transformada na lei
lo à produção habitacional de mercado, se transformou em um enorme
11.977/2009, previu mecanismos que podem ser considerados restritos
mecanismo de transferência de subsídios públicos, do orçamento estatal,
demais para atingir a população de mais baixa renda, onde se concentra
para o preço da terra e dos imóveis em uma conjuntura sem controle
o déficit habitacional.”202
algum sobre o processo de especulação imobiliária”203.
A mencionada exposição de motivos adota o discurso do ataque ao déficit
No mesmo sentido, Nabil Bonduki observa que o enfrentamento do déficit
habitacional como um artifício para legitimar o programa, que tem a finalidade
habitacional por meio de subsídios públicos para a construção de moradias
objetiva – também declarada – de aquecer o mercado da construção civil, com
leva à elevação do “custo das moradias populares, mesmo se informais, e a
alguns efeitos laterais sobre o problema de habitação da parcela empobrecida da
‘sugar’ as unidades de habitação social, produzidas com subsídio, para quem
classe trabalhadora. A economia passa a ter um maior estoque de habitações
dele não tem necessidade, como aconteceu em toda a história da produção
disponível, mas isto não necessariamente implica numa melhoria nos níveis de
pública”204. O impacto principal deste aumento de custos se dá justamente
subsistência dos trabalhadores, já que todo este estoque estará submetido ao
sobre a população de baixa renda, tratando-se, na essência, de um mecanismo
sociometabolismo do capital. As finalidades econômicas do programa são bem
de manutenção das bases para a reprodução desta. Os mecanismos de preço
marcadas, voltadas à expansão do mercado de construção civil e do mercado
no mercado da terra atuam para manter estas bases. E os bilionários subsídios
imobiliário no país. A urbanista Raquel Rolnik observa que
estatais foram um dos principais fatores de aumento do preço da terra urbana
“a política habitacional atual é concebida e praticada como elemento desde o início do programa.
de dinamização econômica para enfrentar uma possível crise e gerar O PMCMV oferece subsídios para trabalhadores de mais baixa renda, que
empregos, colocando-se de forma desarticulada com uma política de precisam pagar apenas o valor básico de prestação para a Caixa Econômica
Federal, o agente financeiro do programa205. Mas este programa não possui
201 Quando editada a MP 459/2011, esta previa atendimento às famílias com renda até 10 salários mecanismos de regulação do mercado de terra que evite a apropriação destes
mínimos, que na época equivalia a R$ 4.650,00. A subvenção econômica prevista inicialmente para subsídios, por vias transversas, pelas classes capitalistas. O aumento do preço da
o programa, de 2.500.000.000,00 (dois bilhões e quinhentos milhões de reais), estava destinada para
famílias com renda de até 6 salários mínimos (na época, R$ 2.790,00). No decreto 7499/2011, previu-
terra urbana é um mecanismo básico de apropriação dos subsídios habitacionais
se que a subvenção se destinava às famílias com renda mensal de até R$ 3.100,00 – o salário mínimo,
então, era de 545,00 reais, de modo que o novo valor previsto era inferior a 6 salários mínimos
203 R. ROLNIK, Crescimento Econômico e Desenvolvimento Urbano: por que nossas cidades continuam tão
(3.270,00 reais). Não se previa mais a renda do programa atrelada a salários mínimos, de modo que
precárias?, 2011, p. 14)”.
os reajustes deste não gerasse impactos no programa. Com o decreto 7.825 out. 2012, o valor foi
para 3.275,00 reais, e então 6 salários mínimos já valiam 3.732,00 reais. Desde então não houve 204 N. BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 3, 2014, p. 112. O autor também afirma,
reajuste no limite para a concessão da subvenção, apesar de alterações no salário mínimo. Observe-se à p. 120, que “ao elevar significativamente a demanda por terras aptas para a produção habitacional
que o programa criou três faixas de renda, sendo que apenas a primeira pode ser considerada como para o mercado, o programa gerou valorização do preço dos terrenos e glebas e especulação imobiliária,
população de baixa renda: até R$ 1.600 (faixa 1), até R$ 3.100 (faixa 2) e até R$ 5 mil (faixa 3). o que prejudicou, sobretudo, os empreendimentos na faixa social cujos tetos eram insuficientes para
pagar os abusivos valores fundiários gerados pelo processo especulativo deflagrado”.
202 R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política
pública de habitação de interesse social, 2016, p. 274-275. 205 A prestação é limitada a 5% da renda familiar.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

do governo pelos proprietários fundiários. E a apropriação da valorização fundi- às margens das cidades, em lugares que não apenas são distantes dos
ária é um mecanismo básico de acumulação no contexto capitalista brasileiro. territórios privilegiados, mas também são homogêneos do ponto de vista
O arranjo financeiro do PMCMV “implica a transferência de riscos para as social. Se o programa passou a atingir uma camada da população que
instituições públicas, ao mesmo tempo que mantém os lucros – geralmente au- historicamente não era atendida pelas iniciativas federais na área habi-
tacional, não chegou a interferir no lugar tradicionalmente ocupado por
mentados por subsídios indiretos – com agentes privados, reiterando os padrões
ela nas cidades, reproduzindo o padrão periférico”208.
históricos de apropriação de fundos públicos por atores privados no país”206.
Com isso, o direito é mobilizado com sucesso pelo PMCMV para atingir as Ao invés de ocupar um terreno e realizar a construção da moradia por meios
finalidades de investimento de excedentes de capital e de incentivo ao mercado próprios, os trabalhadores pobres passam a estar inseridos num circuito formal
imobiliário e de construção civil. de compra e venda da mercadoria moradia, tornando-se proprietários de sua
O PMCMV se revela instrumento eficaz para fornecimento de compensação moradia. Ou melhor, têm uma expectativa de se tornarem proprietários - ime-
social e meio de subsistência ao trabalhador, o que interfere na massa salarial diatamente, se tornam detentores de direitos de aquisição. Tão logo quanto as
total. Uma parcela desta massa salarial é destinada, por meio do programa, à necessidades da vida se imponham, o trabalhador venderá seu imóvel e o con-
aquisição da mercadoria habitação. Há uma tendência de médio/longo prazo a junto de negócios com estes imóveis conformará mercados imobiliários formais
que não haja qualquer efeito redistributivo relevante, já que os subsídios forne- e informais para trabalhadores pauperizados. Os sujeitos de direito continuarão
cidos pelo governo são em grande parte absorvidos pela economia de mercado. exercendo sua igualdade e liberdade no mercado imobiliário.
Tendo em vista a crescente escassez207 de terrenos até mesmo nas periferias das Esta questão do preço da terra poderia ser enfrentada pelo poder público ar-
grandes cidades, a própria distribuição espacial dos imóveis já leva a um efeito ticulando a política habitacional com uma política urbana e fundiária voltada a
socialmente regressivo, antidistributivo. evitar o uso especulativo da terra e a reprimir a propriedade sem função social.
Do ponto de vista dos compradores, da população de mais baixa renda, o Esta articulação estava prevista no Plano Nacional de Habitação, mas foi igno-
recurso ao subsídio estatal se torna incontornável para o acesso à habitação por rada pelo PMCMV. Isto em razão das exigências básicas do sociometabolismo
meio de aquisição da propriedade privada. Na dinâmica econômica existente, do capital no contexto de inserção global dependente do Brasil. Alternativas
as regiões periféricas das cidades seriam, de um modo ou de outro, ocupadas para a produção de moradia, como “lotes urbanizados complementados com o
pelos trabalhadores mais pobres. O que o PMCMV faz é transformar este pro- financiamento de material de construção e assistência técnica” foram ofusca-
cesso numa oportunidade de negócios para incorporadoras, construtoras e de- dos pela produção em massa de unidades habitacionais de um programa que
mais empresas do ramo imobiliário, que agora podem lucrar com a construção contou de início com 2% do orçamento geral da União (26 bilhões de reais) em
de imóveis para os trabalhadores de mais baixa renda, seguindo o padrão de subsídios, patamar que seria atingindo apenas em alguns anos de acordo com o
localização historicamente consolidada para o assentamento desta população: Plano Nacional de Habitação:
“Dentre as diferentes faixas de renda atendidas pelo programa, os con- “Assim como fez o BNH durante o regime militar, [o PMCMV] fixou-
juntos da faixa 3 são os que mais se aproximam das áreas centrais mais -se exclusivamente na produção de unidades prontas, alternativa que
bem equipadas das cidades, enquanto os empreendimentos para faixa atendia as demandas do setor de construção civil, mas que relegou
1 estão claramente dispersos pelas periferias mais afastadas, próximos outras modalidades de enfrentamento do déficit habitacional. Além
do financiamento e subsídio a unidades prontas, o plano [nacional de
206 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 309. habitação] havia previsto um leque de programas habitacionais a cus-
207 A escassez cresce porque o preço da terra aumenta, ocasionando maior poupança imobilizada.
Com a valorização, o proprietário ou possuidor passa a ter mais interesse na proteção jurídica da
propriedade ou posse. 208 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 312.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

tos unitários mais reduzidos e podiam dialogar melhor com o processo individual é um ativo que pode alavancar outros ativos e que permite acesso a
popular de produção da moradia (como lotes urbanizados complemen- crédito bancário, já que o imóvel pode ser dado como garantia. O processo de
tados com o financiamento de material de construção e assistência financeirização pode, assim, ampliar-se, com a tomada de imóveis como garan-
técnica), com potencial de atender um número maior de famílias a um tia. Quando necessário, utiliza-se todo o instrumental jurídico para expropriar
custo unitário mais baixo, alternativa muito apropriada para municí-
os inadimplentes (este ponto será mais desenvolvido adiante no tópico “aliena-
pios médios e pequenos”209.
ção fiduciária como instrumento jurídico de controle fundiário”)
Como já observado, a lei que instituiu o programa210 dedicava um capítulo Se ao invés da regularização prevista no capítulo III da Lei 11.977/2011 se
à regularização fundiária, a qual teria impacto urbanístico nos assentamentos buscasse regularizar imóveis urbanos sem assentamento humano, ou seja, imó-
precários existentes. Mas a regularização fundiária não tinha a mesma escala veis urbanos que não cumprem qualquer função social, nem mesmo a função
do PMCMV e, grosso modo, se volta à titulação da terra para favorecer a inser- elementar de servir de habitação (seja via domínio por proprietário ou por loca-
ção do imóvel no mercado. A lei 11.977/2009 foi, em primeiro lugar, o instru- ção), poderia a política pública ter escancarado o problema central que impede
mento legal para viabilizar a produção massiva de unidades habitacionais por o acesso à habitação pela população de baixa renda. Isto porque o maior empe-
meio do PMCMV; lateralmente, trata da regularização urbanística de imóveis cilho para o acesso à moradia digna está longe de ser a titulação da terra urbana
urbanos, criando um procedimento altamente burocratizado e intrincado que - o maior empecilho é, na verdade, o modo como o ordenamento jurídico sobre
visa, ao fim e ao cabo, conferir a titulação individual a imóveis em assenta- o assunto protege a propriedade em detrimento das necessidades básicas da po-
mentos urbanos irregulares – ou seja, inserir no mercado formal os imóveis pulação de baixa renda. Mas este tipo de solução não poderia ser abarcado pelo
existentes nestes assentamentos. No fundo, tem a finalidade de expandir o sociometabolismo do capital, por mais otimismo que se possa dar à luta por um
mercado imobiliário por meio da formalização e titulação dos imóveis existen- “direito à cidade” para todos.
tes. O alcance desta regularização é restrito em nosso contexto, já que o mer- De qualquer modo, mantidas as demais variáveis do sistema, a produção em
cado de crédito no país não alcança as parcelas da população que dariam estes massa de unidades habitacionais e também a regularização fundiária tendem a
imóveis como garantia. Na prática, porém, a produção em massa de habitações facilitar a acumulação capitalista e financeira.
é muito mais eficiente e a burocrática regularização fundiária desenhada na lei A lei n.º 11.977/2009 foi posteriormente alterada pelas leis n° 12.424, de
é implementada em escala muito menor. 16 jun. 2011 (originada da Medida Provisória n.º 514, de 1º.12.2010), e n.º
A respeito da inserção no mercado formal, os maiores beneficiários seriam 12.722, de 3 out. 2012 (originada da Medida Provisória n.º 570, de 14.5.2012),
as agências de crédito/bancos, que poderiam expandir empréstimos a trabalha- as quais trouxeram alterações pontuais ao texto original, sendo pertinente
dores pauperizados tomando os imóveis como garantias. O fato de o estímulo ressaltar o seguinte.
à construção civil ser mais eficiente decorre de um específico contexto de ca- A lei n.º 12.722, de 3 out. 2012, tinha como escopo principal alterar a lei
pitalização deste setor via capital monetário gerido pelo Estado. Num contex- 10.836/2004 (lei do bolsa família), mas previu também alterações esparsas na
to um pouco diferente, mas no qual os capitalistas esperavam potencializar o lei 11.977. Por exemplo, revogou o Art. 82, que autorizava “o custeio, no âmbito
desenvolvimento por meio de reformas jurídicas, houve regularização massiva do PMCMV, da aquisição e instalação de equipamentos de energia solar ou que
em Lima, Peru, no período Fujimori, com se detalhará no capítulo 4. A ideia contribuam para a redução do consumo de água em moradias”. Parece fora de
por trás da titulação era a de dinamizar toda a economia local: a propriedade propósito a referida revogação, exceto se se olha da perspectiva da redução de
custos do empreendedor (o uso das soluções convencionais locais de energia e
água, a critério do empreendedor/incorporador, barateia o custo da obra) e da
209 N. BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 3, 2014, p. 118-119. restrição das hipóteses de custeio do programa, que se volta menos a soluções
210 Lei 11.977/2009. inovadoras do que à viabilização econômica da produção massiva de habitações

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padronizadas e de baixo custo. O sociometabolismo do capital no Brasil não do atributo da trocabilidade, o mesmo pode ser levado ao mercado pelo mutu-
comporta este tipo de solução ambiental e tecnológica senão a custos elevados ário. Quando o imóvel ainda não está quitado, o que se negocia são os direitos
demais para este tipo de programa. de aquisição do imóvel. Estes direitos podem ser adquiridos por qualquer pessoa,
A mesma lei n.º 12.722 incluiu também o Art. 82-D e parágrafos, dispondo sem necessidade de passar pelos processos de seleção do programa habitacional.
que “No âmbito do PMCMV, no caso de empreendimentos construídos com re- Daí advém a necessidade da regra. Porém, a norma é extremamente mal dese-
cursos do FAR211, poderá ser custeada a edificação de equipamentos de educa- nhada, focando na sanção ao indivíduo que eventualmente transfira seu con-
ção, saúde e outros complementares à habitação, inclusive em terrenos de pro- trato a terceiros, ao invés de estabelecer mecanismos que evitem este expedien-
priedade pública, nos termos do regulamento”. Esta é uma importante previsão te em caso de dificuldades financeiras e apurem as razões da transferência. A
de caráter urbanístico, mas não há notícia de que venha sendo implementada. norma é efetiva para evitar que especuladores individuais ingressem no sistema
Observe-se que esta previsão foi incorporada bem depois do início da fase 2 do de financiamento pela via da inscrição regular em nome próprio. Porém, não
PMCMV (iniciou-se em março de 2010), na lei n.º 12.722/2012, originada da resguarda mutuários que tenham dificuldades financeiras e precisem transferir
Medida Provisória n.º 570, de 14/5/2012. Deve-se apontar, ainda, como a Ex- o contrato a terceiros. Mais adequado à realização do direito à moradia – porém
posição de Motivos Interministerial n.º 00014/2012 MDS MEC MF MP SAE, mais “custoso” para o Estado num programa que visa a construção massiva
disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Exm/ de moradias – seria conceber, por exemplo, programas de refinanciamento ou
EMI-014-MDS-ME C-MF-MP-SAE-Mpv-570-12.doc ignora completamente a segurança contra desemprego214 e programas de assistência social. Porém, a lei
alteração aqui referida, não a mencionando. Neste aspecto, uma garantia pre- simplesmente exclui o beneficiário que revender seu imóvel.
vista pela política pública não é implementada porque o desenho da política É claro: todas as alterações referidas aperfeiçoam o PMCMV como um pro-
não é feito, primordialmente, para garantir a qualidade urbanística dos bairros grama voltado à dinamização dos mercados de construção civil e imobiliário.
destinados às populações de baixa renda. Em trabalho anterior215, anotei que
Por outro lado, a lei 12.424/2011 fez alterações operacionais nos fundos do
programa, mudou normas de regularização fundiária e introduziu diversas ou-
tras alterações, dentre as quais cabe frisar a do artigo 13, par. 1º, que prevê que
O Secretário de habitação à época justificava o aumento afirmando que “Não é justo uma pessoa
“A subvenção econômica do PNHR será concedida uma única vez por imóvel e adquirir o imóvel subsidiado e repassá-lo a terceiros enquanto há famílias necessitando de moradia. É
por beneficiário”, impedindo sub-rogações contratuais “que permitam a trans- um desrespeito com o suplente e com as famílias necessitadas” (http://www.portoferreirahoje.com.br/
noticia/2012/01/22/mutuarios-nao-poderao-ven der-casas-da-cdhu-antes-de-10-anos/, acesso em 18
ferência das subvenções concedidas” não apenas para o cidadão, mas também dez. 2015). Fora do período de 10 anos, a CDHU exige ainda a anuência para a venda.
para o imóvel212. Esta previsão busca evitar a aquisição especulativa de imóveis 214 No âmbito do programa, está previsto o restritivo FGHab (Fundo Garantidor da Habitação Popular),
por pessoas de baixa renda213. De fato, sendo o imóvel uma mercadoria, dotada que tem “por finalidade conceder as seguintes garantias: Quitação total ou parcial do saldo devedor
do financiamento habitacional em caso de Morte; e Invalidez Permanente (MIP) do comprador ou
dos compradores [desde que não esteja recebendo auxílio-doença]; Pagamento de despesas para
211 Pontue-se que o FAR é o Fundo de Arrendamento Residencial, o qual recebeu recursos do Orçamento
recuperação de Danos Físicos no Imóvel (DFI); Concessão de empréstimo ao comprador ou aos
Geral da União para viabilizar a construção de unidades habitacionais pelo PMCMV.
compradores para pagamento de prestações do financiamento habitacional em caso de desemprego
212 Exposição de Motivos Interministerial nº 00008/2010/MCIDADES/MF/MP/MJ, item 4, f, disponível e redução temporária da capacidade de pagamento. O valor do FGHab vai de 2% a 7,14% sobre o
em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Exm/EMi-8-MCIDADES--MF-MP- valor da prestação e deve ser pago junto com a prestação habitacional. Esse valor pode ser reajustado
MJ-MPv51 4-10.htm. conforme o aumento da idade, mas não pode ultrapassar 7,14%.” Fonte: http://www.caixa.gov.br/
downloads/habitacao-minha-casa-minha-vida/Contrato_Financiamento_P MCMV.pdf, acesso em
213 Norma similar está prevista em São Paulo no âmbito dos programas financiados por meio da Companhia
30 dez. 2015. Deve-se observar que este fundo garantidor não paga as prestações, ele cobre o mutuário
de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – CDHU. A Lei nº. 12.276, de
por até 36 meses, com a prorrogação das prestações que deveriam ser pagas.
21 fev. 2006 regulamenta especificamente a alienação dos imóveis financiados pela CDHU no curso
do contrato de financiamento. Previa inicialmente o prazo de 2 anos a partir do qual o mutuário 215 R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política
poderia alienar o imóvel. Foi alterada pela lei nº 14.672/2011, que aumentou este prazo para 10 anos. pública de habitação de interesse social, 2016, p. 268.

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“os critérios que têm sido aplicados para a construção de unidades no e sobre a efetivação do direito à moradia adequada”219. Neste sentido, o progra-
Minha Casa, Minha Vida são mais critérios de mercado (com a escolha ma em si evita medidas como o controle do preço da terra e dos aluguéis. A
da localização dos imóveis sendo feita pelas empresas em regime de li- inefetividade do “direito à moradia” se articula, assim, com a inefetividade do
vre concorrência) (MARICATO, 2014, p. 76)216 do que critérios sociais “direito à cidade”.
(que envolveria a intervenção pública na disponibilidade de terrenos,
em especial por meio de instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cida-
de217). O impacto de tal conformação no déficit habitacional deverá ficar 3.3.1. O papel lateral dos Municípios e da participação
evidente quando houver divulgação de novos dados sobre estes (MARI- popular no PMCMV
CATO, 2014, p. 77)218.”
A regulação urbanística e as garantias jurídicas de direito à moradia e de
No mesmo trabalho referido, indiquei que “a ideia de que esteja havendo direito à cidade apenas podem ser implementadas se estiverem de acordo com
um combate ao déficit habitacional” seria um “mito institucional” a respeito o sociometabolismo do capital. Bem examinando, as cidades se estruturam
do PMCMV, “cujas regras são aplicadas cerimonialmente para a produção em como máquinas do capitalismo que deglutem os trabalhadores todos os dias,
massa de moradias sem maiores considerações sobre o desenvolvimento urbano deles extraem a mais-valia para a digestão do capital e, no final do dia, os de-
volve às suas vidas de subsistência em periferias precarizadas. As cidades são
o fundamento espacial para a reprodução diuturna da exploração capitalista.
216 Nota em R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais
O ser humano cria a cidade capitalista para subordinar as forças da natureza,
para uma política pública de habitação de interesse social, 2016, p. 268: “A autora afirmava na época mas a cidade capitalista se impõe sobre o ser humano para subordinar suas
que [rectius] “A maior parte da localização das novas moradias – grandes conjuntos, sendo alguns forças à reprodução do sistema sociometabólico do capital. No contexto atual,
verdadeiras cidades – será definida nos municípios e metrópoles por agentes do mercado imobiliário
sem obedecer a uma orientação pública, mas à lógica do mercado... Interesses privados desarticulados sem solução para os problemas daí advindos, as cidades buscam inserção no
podem definir a localização da maior parte do 1 milhão de moradias do PMCMV, já que dificilmente capitalismo global, em que a financeirização pauta o desenvolvimento perpe-
as prefeituras e câmaras municipais, além da própria Caixa Econômica Federal, o grande agente
tuador das desigualdades habitacionais e do modo de extração de mais-valia
unificador da aprovação dos projetos, deixarão de atender apelos para a aprovação de uma construção
de porte. Pelo menos essa não é a tradição no Brasil” da população de baixa renda.
217 Nota em R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para Esta população de baixa renda, que não habita mediada pelo direito de pro-
uma política pública de habitação de interesse social, 2016, p. 268: “A autora afirma que ‘Há quase priedade ou por outro título jurídico regular, aparece como estando na “ilega-
quatro décadas é feita a crítica sobre a má localização dos conjuntos habitacionais populares e
sobre a sua causa, que é a disputa pela renda imobiliária. Esses estudos produziram um sem-número
de livros e teses que se referem à injustiça urbana, segregação territorial, produção de moradia
219 R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política
informal, extensão horizontal urbana e insustentabilidade, especulação imobiliária, que deriva das
pública de habitação de interesse social, 2016, p. 269, onde observei neste trabalho que “como observam
características patrimonialista da sociedade brasileira. Há base legal para enfrentar esse problema.
Rowam e Meyer, há dois meios para uma organização resolver os conflitos entre as regras cerimoniais
A função social da propriedade prevista na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade
e a eficiência: a separação (já que os esforços por coordenar e controlar as atividades nas organizações
(Lei 10.257/2001) nasceu da crítica referida acima. Mas apesar da base legal para fazer mudanças, a
institucionais levam a conflitos e à perda de legitimidade, se separam os elementos da estrutura das
propriedade fundiária e imobiliária continua a fomentar a desigualdade social e urbana. A geração e
atividades, ademais de separá-los uns dos outros) e a lógica da confiança e da boa-fé (quanto mais
captação da renda fundiária e imobiliária continua a orientar o crescimento e a falta de controle sobre
se deriva a estrutura de uma organização de mitos institucionalizados, mais se mantém a exibição
o uso e ocupação do solo no Brasil’.”
de confiança, satisfação e boa-fé, interna e externamente) (MEYER e ROWAN, 1999, pp. 98 e 99).
218 Nota em R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para Ao que parece, o mecanismo da separação tem aparecido no PMCMV, o qual produz habitações
uma política pública de habitação de interesse social, 2016, p. 268: “De qualquer modo, esta constatação em massa, mas descuida de uma visão totalizante da questão habitacional e do direito à moradia
inicial vai de encontro ao que N. BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social, Vol. 3, 2014, p. 122, conclui, adequada. A propaganda oficial, no sentido de que tem atingido as metas do programa e de que está
no sentido de que, apesar de produzir em massa unidades habitacionais, ‘a distribuição regional foi aumentando numericamente as novas metas apenas ajudam a consolidar o mito de que o programa é
desequilibrada. Enquanto no Nordeste as unidades contratadas representaram 10,3% do déficit suficiente para o enfrentamento do déficit habitacional, quando, na verdade, a questão da habitação
habitacional da Faixa 1 (até 3 salários mínimos), no Sudeste essa porcentagem alcançou apenas 6,1%’.” tem sido mal equacionada com o programa.”

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lidade”. São pessoas que podem até mesmo possuir empregos formais, mas que, e transferindo para construtoras e para o banco público Caixa Econômica
sem alternativa legal, “invade terra para morar. As terras que não interessam Federal decisões da maior relevância, como a localização dos imóveis e os
ao mercado imobiliário e são ocupadas pela população de baixa renda são exa- parâmetros construtivos destes.
tamente as áreas de ecossistema frágil, sobre as quais incide a legislação de Como visto, até quando do lançamento do PMCMV, a política habitacional
proteção ambiental”220. era objeto de disputas, contradições e ambiguidades no governo, as quais foram
Se para alguns a propriedade não chega, para outros ela exacerba, ultra- resolvidas com a derrocada do Plano Nacional de Habitação e da concepção
passando os muros da habitação e buscando a privatização de todo o contexto por ele veiculada de articulação entre política habitacional e política urbana. A
urbano em que se insere a moradia: prevalência do PMCMV marcou a hegemonia das forças de mercado nas polí-
ticas habitacionais, o que exigia que os instrumentos de participação popular
“a ilegalidade da propriedade da terra urbana não diz respeito só aos fossem relegados a segundo plano. Além disso, exigia a estabilidade de um pro-
pobres. Os loteamentos fechados que se multiplicam nos arredores das
grama centrado no governo federal, sem que os Municípios desempenhassem
grandes cidades são ilegais, já que o parcelamento da terra nua é regido
papel relevante na implementação das políticas.
pela Lei Federal 6.766/79, e não pela lei que rege os condomínios, a Lei
4.591/64. O primeiro e mais famoso dos condomínios – Alphaville, em Isto fica bastante claro no papel das construtoras e incorporadoras na defini-
Barueri, região metropolitana de São Paulo – tem parte de suas mansões ção da localização dos empreendimentos, levando-os para periferias distantes,
construídas sobre terras da União. Juízes, promotores do Ministério Pú- não dotadas de infraestrutura urbana. Isto está em total dissonância com a
blico, autoridades de todos os níveis de governo moram em loteamentos imposição legal de que seria o Plano Diretor elaborado participativamente no
fechados. Eles usufruem privadamente de áreas verdes públicas e tam- âmbito municipal, de que este Plano Diretor daria a orientação de crescimento
bém vias de trânsito fechadas intramuros” 221. das cidades223. Sobre a participação social, Como observei alhures,

A mobilização do direito e da política não raro é necessária para viabilizar o “constata-se que não há uma só palavra na lei 11.977 sobre ‘participação
desenvolvimento conforme os imperativos de reprodução do capital: social’. De fato, tal lei deixa de trazer uma parte principiológica em seu
bojo, razão pela qual seria de se esperar que o programa se remetesse às
“Para viabilizar a privatização do patrimônio público quando ele se torna normas principiológicas já existentes (Neste sentido, mencione-se como
um produto irresistível ao mercado de alta renda, algumas prefeituras e normas básicas (princípios e regras) de participação popular o quanto
câmaras municipais não titubearam em se mancomunar para aprovar previsto no Estatuto da Cidade: Art. 2º, II; art. 4º, III, f e § 3º; Art. 40.
leis locais que contrariam a lei federal [de loteamentos]” 222. § 4º I; Art. 45) no ordenamento jurídico relacionado ao urbanismo e
à habitação social, em especial no Estatuto das Cidades e nos diversos
E justamente este tipo de mobilização do direito e da política foi levada Planos Diretores Municipais existentes. Isto tampouco ocorreu, tendo o
a cabo no PMCMV para retirar das cidades o poder que pretendia lhes dar programa desenvolvido sua engenharia institucional própria alheia aos
o Estatuto da Cidade. Realmente, o movimento da reforma urbana vem pre- instrumentos de participação social, voltada ao incentivo do mercado de
conizando o fortalecimento dos Municípios para atendimento habitacional e trabalho e da construção civil.” 224
desenvolvimento urbanístico. O PMCMV, no entanto, traçou caminho com-
pletamente oposto, centralizando no governo federal a política habitacional

220 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 185.


223 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, p. 76.
221 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 185/186.
224 R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política
222 Idem, p. 186. pública de habitação de interesse social, 2016, p. 280.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Agora, esta principiologia participativa, na verdade, é uma conquista jurídi- aos requisitos estabelecidos pelo Poder Executivo Federal, observado o
ca bastante controlada, pois respectivo plano diretor, quando existente (...)”

“a criação de mecanismos de participação local e inúmeros conselhos, Já o decreto regulamentador desta lei, simplesmente repete o dispositivo le-
apesar de seu limitadíssimo poder de acesso a fundos públicos, preten- gal, deixando ampla liberdade ao agente de mercado e tornando despicienda a
de criar um sentido de legitimidade para o novo governo. Advoga-se própria existência do Plano Diretor:
uma participação restrita (aos problemas ‘da comunidade’), mediada por
ONGs, e, sobretudo, apaziguada. Como afirmou o então presidente do “Art. 6º Para a implantação de empreendimentos no âmbito do
BID, Enrique Iglesias, a nova ‘good order’ é, ao fim, a superação da antiga PNHU deverão ser respeitados os seguintes requisitos, observada a
‘cultura política confrontacional’, em nome de uma ‘nova cultura cívica regulamentação do Ministério das Cidades: I - localização do terreno
mais desiludida e mais pragmática, menos impaciente e mais madura, na malha urbana ou em área de expansão que atenda aos requisitos
menos inclinada ao conflito e mais disposta à busca de convergências’. estabelecidos pelo Ministério das Cidades, observado o respectivo
plano diretor, quando existente”.
Trata-se de um paradigma da cidade em que a política seja proscrita e
a pólis, negada. Como afirma Carlos Vainer, ‘banir a política da cidade
Com isso, como já apontado, o programa levou à reprodução do padrão de
competitiva e pacificada’ é um projeto no qual a ‘eliminação da esfera
pública local, transformada em espaço de exercício de um projeto em- expansão urbana brasileiro: os proprietários de terra (agora em grande medida
presarial (...), conduz à destruição da cidade como espaço da política, incorporadoras e construtoras, como se verá adiante) deixam as terras mais
como lugar de construção da cidadania’. Nos termos de Annik Osmont, próximas do centro ociosas, construindo nas periferias sem infraestrutura ur-
persegue-se um poder estável, desembaraçado dos aspectos incontrolá- bana; com o desenvolvimento da infraestrutura em direção a estas periferias,
veis e conflituosos da política – desembaraçado, no limite, de qualquer as terras intermediárias, que ficaram ociosas, serão valorizadas. Historicamente
compromisso com a democracia real –, uma administração estritamente este modelo de expansão patrimonialista e especulativo incluía a autoconstru-
técnica, capaz de promover um ambiente favorável aos negócios, trans- ção de moradias pelos próprios trabalhadores nas regiões periféricas da cidade:
parência nos processos, utilização eficaz de recursos e paz civil”225.
“Francisco de Oliveira forneceu a chave explicativa para a gigantesca
Mas nem mesmo a participação social restrita do Estatuto da cidade seria prática da autoconstrução da moradia ilegal (uma espécie de produção
contemplada. Dentro da malha urbana, a arquitetura institucional do PMCMV doméstica) pelos trabalhadores ou pela população mais pobre de um
dava aos agentes de mercado o poder de decidir o modo pelo qual as cidades modo geral. Ela está no rebaixamento do custo da força de trabalho,
iriam crescer. A Medida Provisória 514/2010, neste sentido, a pretexto de regu- que ocupa seus fins de semana (horários de descanso) na construção da
lamentar a questão e, na verdade, deixando ampla margem para a decisão dos casa. Essa prática contribuiu para a acumulação capitalista durante todo
agentes privados, acrescentava o artigo 5º-A à lei do PMCMV226, dispondo que período de industrialização no Brasil, particularmente de 1940 a 1980
quando o país cresceu a taxas aproximadas de 7% ao ano e o processo de
“Para a implantação de empreendimentos no âmbito do PNHU [Progra- urbanização cresceu 5,5% ao ano (IBGE). À industrialização com baixos
ma Nacional de Habitação Urbana], deverão ser observados: I - locali- salários correspondeu a urbanização com baixos salários”227.
zação do terreno na malha urbana ou em área de expansão que atenda
A autoconstrução é “uma alquimia que serve para reproduzir a força de
trabalho a baixos custos para o capital”, ela “acirra ainda mais a dilapidação

225 P. FIORI ARANTES, O Ajuste Urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades, 2006, p. 69.
226 Lei 11.977/2009. 227 E. MARICATO, Cidades no Brasil: Neo-desenvolvimentismo ou crescimento periférico predatório?, 2015, p. 10.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

daqueles que só têm energia física para oferecer a um sistema econômico que de ca deliberada que contradizia toda a legislação urbanística aprovada no período
per si já apresenta características marcadamente selvagens”228. Na atualidade, anterior, em especial o Estatuto da Cidade. Por isso os empresários
embora a autoconstrução continue a ocorrer, o processo geral ganha eficiência
capitalista com empresas (construtoras, incorporadoras) implementando o mes- “desde os primeiros momentos... não jogaram o peso de sua represen-
tação nos conselhos participativos - de habitação ou das cidades nos
mo modelo de expansão segregador229. A isso se acrescenta substancial volume
três níveis de governo – e buscaram ligação direta com a Presidência
de subsídios estatais supostamente voltados a realizar o direito à moradia de
da República e a Casa Civil. O Cndes (Conselho Nacional de Desen-
trabalhadores pauperizados. volvimento Econômico e Social), criado para atuar em relação direta
Prevaleceu, com isso, aparência de que não existiria com a presidência, abriu espaço para tanto. De um lado, a profusão de
conselhos – sobre diversos temas, em vários níveis da federação – ocu-
“por parte dos que detêm o poder político nos vários níveis de gover-
pou as lideranças sociais que tiveram atendidas suas demandas fragmen-
no e no setor privado, uma compreensão clara da dimensão fundiá-
tadas por movimentos e regionalmente. Por outro lado, os empresários
ria, urbana, arquitetônica e ambiental da política habitacional, que
emplacaram suas propostas no PMCMV, que há muito estavam sendo
ainda é tratada, por muitos, como uma mera questão de produção
ensaiadas, diretamente com o Planalto Central. Dessa forma, o governo
de unidades habitacionais ou de geração de crescimento econômico,
atendeu aos diversos interesses, enquanto que uma visão mais sistêmica
emprego e crédito”230.
da Política Urbana e Metropolitana foi esquecida”232.

Na verdade, decisões deliberadas levaram a que a política habitacional bra- Ocorre que o Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001) estabeleceu diretrizes
sileira ficasse submetida à política econômica anticíclica, desenvolvida como para o desenvolvimento urbano que pretendiam dar aos Municípios papel muito
resposta à crise econômica mundial com medidas para incentivar o desenvol- mais relevante do que o que tem sido reservado a eles na política pública habita-
vimento capitalista do país. A arquitetura institucional do programa teria que, cional do governo federal. Por trás desta proposta, que vinha do movimento de
de saída, para viabilizar o protagonismo do mercado231, excluir a participação reforma urbana, estava a ideia de que alguns municípios poderiam avançar em
popular e eventual poder de decisão dos municípios. Isto foi uma escolha políti- propostas do movimento quando tivessem gestões progressistas à frente. Porém,
a organização do PMCMV centralizou recursos e tirou poder decisórios do Mu-
228 L. Kowarick, A Espoliação Urbana, 1979, p. 62. nicípios, contrariando a própria legislação vigente (que eram resultado de lutas
229 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 314, aponta que “Apesar dos muitos bilhões de reais em do movimento de reforma urbana). No PMCMV, basicamente, ao Município
subsídios públicos, o programa MCMV não impacta a segregação urbana existente. Pelo contrário, cabe indicar a demanda para imóveis que forem construídos em seu território.
apenas a reforça, produzindo novas manchas urbanas multifuncionais ou aumentando a densidade
populacional de zonas guetificadas já existentes. A intensa produção de moradia sem cidade ao longo
Um dos principais instrumentos criados pelo Estatuto das cidades é o Plano
de décadas de urbanização intensa acabou por gerar ampla segregação e uma série de problemas diretor, definido como instrumento básico da política de desenvolvimento e ex-
sociais que trouxeram ônus significativos para o poder público nas décadas seguintes, fenômeno que pansão urbana (artigo 40). O próprio nome do instrumento já revela a intenção
está se repetindo novamente”.
do legislador, que encampava as propostas do movimento da reforma urbana:
230 N. BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 3, 2014, p. 107.
dar ao Município instrumento eficaz e abrangente que orientasse o desenvolvi-
231 A consequência da arquitetura financeira do programa, segundo R. ROLNIK, Guerra dos Lugares,
2015, pp. 310-311, foi a “construção de megaempreendimentos padronizados inseridos nas piores
mento urbano com base no planejamento territorial, no atendimento à função
localizações da cidade, isto é, onde o solo urbano é mais barato” e “De acordo com representantes de social da propriedade233 e na participação popular.
construtoras de grande porte... a escala é uma condição para a lucratividade no contexto do programa:
foi afirmado que, com taxas de retorno inferiores a 15%, só vale a pena construir empreendimentos
232 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 90.
de faixa 1 com mais de seiscentas unidades habitacionais. Embora apresentem impactos urbanísticos
desastrosos, os grandes conjuntos possibilitam significativos ganhos de escala para as construtoras, 233 Como já apontado neste trabalho, o próprio cumprimento da função social da propriedade tem
ampliando sua margem de lucro”. como parâmetros o estabelecido no Plano Diretor, conforme disposição do Estatuto da Cidade: Art.

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À União, o Estatuto da Cidade reservou (Art. 3º, III) a promoção “por ini- instrumentos urbanísticos que eles regulamentaram, cabe ao governo
ciativa própria e em conjunto com os Estados, o Distrito Federal e os Municí- federal, ainda mais quando conta com um mecanismo poderoso de indu-
pios, programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacio- ção – recursos fartos para subsídio -, estimular a implantação dos novos
nais, de saneamento básico, das calçadas, dos passeios públicos, do mobiliário empreendimentos em locais mais adequados e que gerem menor custo
urbano, social e ambiental. O PlanHab propôs incentivar, com priori-
urbano e dos demais espaços de uso público”234. O dispositivo aí está porque a
dade no acesso aos recursos, os municípios que estruturassem institu-
União historicamente tem mais capacidade financeira e institucional para rea-
cionalmente e que adotassem políticas fundiárias e urbanas voltadas a
lizar este tipo de programa. Ocorre que o PMCMV contraria a ratio do Estatuto garantir a função social da propriedade, como a instituição do imposto
ao reservar papel desprezível aos Municípios235. Apenas para ficar com alguns progressivo para combater os imóveis ociosos e subutilizados. Isso, po-
exemplos de normas que explicitam esta ratio, o Estatuto da cidade prevê (art. rém, ainda não foi levado adiante no PMCMV”.
2º) que “A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”, tendo como uma das Certo é que o combate à retenção de áreas urbanas ociosas dependia de pro-
diretrizes gerais “XIII – audiência do Poder Público municipal e da população atividade especial dos Municípios, com busca por capacitação técnica e vontade
interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades política para enfrentar interesses fundiários historicamente consolidados. Mas
com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou cons- nenhum poder foi dado aos Municípios para direcionar o programa neste ou
truído, o conforto ou a segurança da população”. naquele caminho, já que a centralização na União reproduziria o sociometabo-
A lei 11.977/2009 chegou a prever como critério de prioridade para atendi- lismo do capital de maneira mais eficiente.
mento “a implementação pelos Municípios dos instrumentos da Lei no 10.257, Por outro lado, o Estatuto da Cidade previu uma série de regras sobre par-
de 10 jul. 2001, Estatuto da Cidade], voltados ao controle da retenção das áreas ticipação popular, cabendo destacar o seguinte: uma das diretrizes previstas
urbanas em ociosidade” (art. 3º, § 1º). O decreto regulamentador 7499/2011 no artigo 2º é a da “gestão democrática por meio da participação da popula-
apenas repetiu a redação deste dispositivo no art. 4º, III. Não há ainda pesqui- ção e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na
sas que permitam verificar a efetividade do dispositivo. Porém, pelo padrão de formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de
desenvolvimento dos empreendimentos habitacionais, é possível prever que este desenvolvimento urbano”; o artigo 4º prevê como instrumento de planejamento
critério de prioridade não foi observado ou, no máximo, como sói ocorrer, foi municipal a “gestão orçamentária participativa” e dispõe que todos os instru-
observado apenas formalmente pelos Municípios, aprovando Planos Diretores mentos previstos que demandem “dispêndio de recursos por parte do Poder
pré-fabricados. Ademais, caso quisesse dar efetividade real ao dispositivo, o go- Público municipal devem ser objeto de controle social, garantida a participação
verno teria desenhado o mesmo como requisito para acesso aos recursos: de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil”.
Há ainda previsão de participação popular em operações consorciadas (ar-
“Embora esteja claro que a localização adequada dos projetos depende tigo 32)236 e na elaboração e fiscalização de implementação do plano diretor
muito dos municípios, de seus planos diretores, e habitacionais e dos

39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos
cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, 236 Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para aplicação de
respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei. operações consorciadas.
§ 1o Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas
234 Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015, Estatuto da Pessoa com Deficiência.
pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes
235 Nem mesmo o Ministério das Cidades teve papel central na definição das diretrizes do programa, que e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas
foi gestado e efetivado pela Casa Civil da Presidência da República. estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental.

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(artigo 40, § 4º, I)237. Por fim, o capítulo IV do Estatuto é dedicado à gestão vez que eles receavam que fosse repetida a experiência dos conjun-
democrática da cidade e veicula disposições sobre a gestão orçamentária par- tos habitacionais do período BNH. Sites na internet trazem também
ticipativa e vincula a aprovação do plano plurianual, da lei de diretrizes orça- entrevistas e artigos críticos ao PMCMV formulados por urbanistas
mentárias e do orçamento anual à realização de debates, audiências e consultas e profissionais ligados ao Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB),
argumentando sua pouca articulação com o planejamento urbano e
públicas (artigo 44); prevê, também, que “Os organismos gestores das regiões
apontando a ausência de mecanismos institucionais e incentivos para
metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa par-
financiamento de reformas de moradias subutilizadas.”239.
ticipação da população e de associações representativas dos vários segmentos da
comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno De fato, observa-se no PMCMV pouca margem para mudanças de rumo
exercício da cidadania” (artigo 45). que possam comprometer a sua finalidade efetiva, qual seja, estímulo econô-
Neste sentido, sendo o PMCMV uma política habitacional com óbvios im- mico por meio de produção em massa de unidades habitacionais. As reivindi-
pactos urbanísticos, os conselhos participativos de habitação ou das cidades238 cações participativas são descartadas porque envolveriam tempo de matura-
nos três níveis de governo deveriam ter participação assegurada nas decisões ção incompatível com a necessidade de dar respostas imediatas ao contexto
sobre os investimentos, sobre os padrões de construção, sobre a localização do econômico240. Pontualmente, algumas sugestões de movimentos sociais ou
empreendimento. Fato é que, para viabilizar a mais livre reprodução do capital, profissionais da área são incorporadas, desde que não tenham impacto rele-
houve uma deslegitimação aberta das instâncias participativas, bem como de vante no desenho geral do programa241.
movimentos sociais e de profissionais da área, consolidada pelos próprios arran- Intencionalmente, o programa desprezou toda a regulamentação jurídica
jos institucionais do programa. Neste sentido, sobre a participação popular e também sobre o papel dos Municípios na formu-
lação e implementação da política habitacional e urbana. Assim, não é à toa
“Com relação aos grupos organizados na sociedade, pode-se afirmar
que o PMCMV não tenha impacto redistributivo relevante e esteja a reproduzir
que se os empresários da construção civil tiveram participação nas ne-
gociações em torno do desenho do programa, o mesmo não ocorreu padrões históricos de desigualdade242 e exclusão. Basicamente, a quantidade de
com os segmentos populares. Logo após o lançamento do programa, imóveis vazios e de terrenos ociosos continua sem solução e o padrão de expan-
representantes dos movimentos sociais no Conselho Nacional das Ci- são periférica das cidades se consolida.
dades reclamaram da ausência de discussão sobre as medidas anuncia- O programa federal de habitação descumpre abertamente as normas so-
das. O conselho gestor do FNHIS se manifestou na mesma direção, bre a função social da cidade e despreza possíveis políticas para reprimir o
afirmando não ter sido ouvido no processo de formulação dessa políti- descumprimento da função social da propriedade, atendendo aos interesses
ca. Em vários fóruns e em sites na internet, os movimentos sociais par-
ticipantes desses colegiados demonstraram preocupação com proble- 239 M. R. LOUREIRO et al., Democracia, Arenas Decisórias e Políticas Públicas: o Programa Minha Casa
mas contidos no desenho do programa, declarando que a construção Minha Vida, 2013, pp. 22-23.
das unidades precisava estar associada à política urbana que garantisse 240 Ao contrário, o já mencionado Plano Nacional de Habitação, que foi colocado de lado pelo PMCMV,
o acesso a serviços públicos, como saúde, educação transporte, uma previa um planejamento de médio/longo prazo, até 2023.
241 M. R. LOUREIRO et. al., Democracia, Arenas Decisórias e Políticas Públicas: o Programa Minha Casa
Minha Vida, 2013, pp. 27-28.
237 “No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes
242 Como observa M. P. DALLARI BUCCI. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas,
Legislativo e Executivo municipais garantirão:
2013, p. 13: “As estruturas da desigualdade podem ser, se não modificadas, bastante perturbadas
I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações
na sua inércia conservadora, mediante processos jurídicos institucionais bem articulados”. A
representativas dos vários segmentos da comunidade”.
observação é precisa no sentido em que indica que as estruturas não podem ser modificadas, podem
238 Sobre experiências de diversos Conselhos de Habitação e Desenvolvimento Urbano, vide no máximo ser perturbadas por arranjos na superestrutura jurídica e política. O PMCMV sequer
CYMBALISTA, Renato (ed.), Conselhos de Habitação e Desenvolvimento Urbano, 2000. pretendeu ir neste sentido.

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mais imediatos da política macroeconômica e dos mercados de construção dos subsídios pelos preços de mercado. Por isso, a questão precisa ser colocada
civil e imobiliário. em perspectiva mais ampla. Os movimentos sociais têm uma conquista jurídica,
mas estão longe de conquistar efetivamente habitação para os sem-teto.
3.3.2. O subsídio e o crédito no PMCMV – papel do Estado e Deve-se pontuar que o subsídio está longe de ser uma medida antimercan-
tilizadora, sendo, ao contrário, um instrumento para permitir o acesso a e a
dos fundos públicos
criação de mercado nas faixas de renda mais baixas da população – é dizer, para
O direito é um dos instrumentos voltados à repartição, pelo Estado, dos fru- a inclusão nos circuitos de propriedade formal, renda e crédito da população de
tos do trabalho socialmente realizado. Neste caso, a repartição é feita de modo baixa renda. Com isso, o programa está afinado com o que há de mais atual no
formal e ritualístico. Na seara da habitação social, o direito tem servido tanto a capitalismo contemporâneo: a criação de mercados, inclusive financeiros, para
movimentos sociais que buscam consagrar juridicamente normas para diminui- os pobres. Como apontado por Raquel Rolnik,
ção de desigualdades sociais; como tem servido ao mercado para ampliar e sofis-
“Na década de 1980 surgiu um novo paradigma de financiamento que,
ticar sua atuação (em especial por meio de mecanismos financeiros243) e garan- aparentemente, seria capaz de atender aos mais pobres através da ex-
tir suas intervenções e rentabilidade na construção de moradias. O PMCMV pansão de um crédito pequeno, informal e gerador de renda: o microfi-
representou, no período histórico recente, a vitória desta última perspectiva nanciamento. Os investidores financeiros privados foram convencidos
sobre aquela e a prevalência de um modelo econômico de expansão capitalista da lucratividade do microfinanciamento e passaram a encarar os pobres
por meio de incentivos estatais. Dentre os mais importantes mecanismos para como ‘bancáveis’ (...) Na realidade, a concepção de combate à pobreza
incentivar esta expansão estão as políticas de melhoria e de garantia de renda presente nesse modelo está centrada na promoção do empreendedoris-
das populações de baixa renda, por meio do aumento real do salário mínimo e mo e não na distribuição de renda, na abertura de oportunidades e na
de programas de transferência de renda244; assim como estão os subsídios forne- igualdade. O modelo de mitigação da pobreza é, assim, ao mesmo tempo,
centrado nos pobres e contra o sistema de bem-estar (...)”245.
cidos a esta população de baixa renda para aquisição de imóveis e a viabilização
de acesso a crédito também para aquisição de imóveis. Estes dois últimos meca-
As políticas de microcrédito são voltadas, assim, à abertura de novos merca-
nismos foram implementados pelo Programa Minha Casa, Minha Vida.
dos capitalistas. Trata-se de um multiplicador de desigualdades e de exploração
Sem os subsídios conferidos pelo governo federal por meio do PMCMV, di-
e de um mecanismo que permite a diferenciação meritocrática e a ascensão
ficilmente indivíduos da faixa de renda 1 (renda até 1.800 reais) teriam acesso
social entre os pobres. O PMCMV não é um programa de microcrédito246, mas
a programas de financiamento habitacional, os quais, aplicados pelos agentes
tem o mesmo efeito de abertura de mercados buscado por estes – a expansão das
financeiros, buscam as parcelas de renda com maior capacidade de pagamento
fronteiras do mercado imobiliário, formal, acessível ao sistema financeiro. Neste
e endividamento. Nesta perspectiva, trata-se de uma política pública indispen-
sentido, realiza uma das principais bandeiras dos governos petistas, a inclusão
sável e o discurso jurídico é e continuará sendo mobilizado por movimentos
social via mercado de consumo – no caso, consumo de habitação.
sociais como instrumento para a continuidade destes subsídios públicos à habi-
Diante deste quadro, a habitação aparece como direito social universal atri-
tação. Porém, como deve ter ficado claro acima, aquilo que é dado como subsí-
buído a todos os sujeitos de direito e, ao mesmo tempo, como uma mercadoria
dio por um lado, deixa de ter maior efeito prático quando, por outro lado, não
cujo acesso precisa ser viabilizado por uma intervenção pontual do Estado, fo-
há mecanismos efetivos para reprimir a especulação imobiliária e a absorção

243 Sobre o assunto, vide M. FIX, Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil, 2011. 245 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 131.
244 Como já mencionado, A. SINGER, Os Sentidos do Lulismo, 2012, expõe que estas foram duas das 246 Este normalmente é um empréstimo de pequeno valor concedido a empreendedores sem acesso ao
principais marcas dos governos Lula (2003-2010). sistema financeiro tradicional e que não podem prestar garantias.

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calizando-se na faixa de baixa renda não atendida espontaneamente pelo livre outro modo, não seria acessível250 a esta parcela da classe trabalhadora. Ade-
mercado. Este tipo de intervenção é coerente com os papéis do Estado no con- mais, com a satisfação da necessidade habitacional, o capitalismo pode apro-
texto neoliberal, em específico como o de promover uma estrutura institucional fundar a extração de mais-valia. Certo é que o PMCMV direciona o salário
adequada às práticas de mercado e criar e fomentar estas estruturas onde elas indireto dos trabalhadores para incentivo do setor de construção civil e para a
não existem. Neste sentido, HARVEY anota que realização da necessidade de habitação nos termos do programa.
O programa pode vir rebaixar a massa salarial paga diretamente ao traba-
“O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político- lhador – mas esta conclusão não é imediata porque em geral se considera que
-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser mais bem
a autoconstrução de moradias no Brasil, modo mais difundido de acesso dos
promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras
mais pobres à habitação251, também tenha contribuído para o rebaixamento dos
individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por
sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. salários, já que o trabalhador empregava seus próprios esforços (por vezes em
mutirões, frequentemente com parentes e conhecidos que se ajudavam mutua-
O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apro-
mente) para construir sua habitação. A habitação, diz Oliveira,
priada a essas práticas [neoliberais]; o Estado tem de garantir, por exem-
plo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer “bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não pago, isto
as estruturasse funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas é, supertrabalho. Embora aparentemente esse bem não seja desapro-
para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se ne- priado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a
cessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. Além taxa de exploração da força de trabalho – de que os gastos com habita-
disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a ins- ção são um componente importante – e para deprimir os salários reais
trução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na aparência, uma
estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado”247. sobrevivência de práticas de ‘economia natural’ dentro das cidades,
casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalis-
Certamente, os subsídios do PMCMV estão inseridos num contexto de es- ta, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração
tímulo econômico, de criação de mercados e de inserção social via consumo248. da foça de trabalho”252.
Para além do imediato efeito econômico de aquecimento da economia, o bene-
ficiário do programa passará a ser proprietário de um ativo, o que conformará Nestes casos, parte do salário individual poderia ou não ser usada para aqui-
em breve um mercado imobiliário ampliado e poderá permitir que o imóvel sição de materiais de construção ou mesmo para a remuneração de mão-de-
possa servir de garantia a novos endividamentos249.
Os subsídios para habitação da faixa 1 (renda até 1.600 reais) aparecem 250 Com a valorização do preço da terra causada em parte pelo próprio PMCMV, torna-se cada vez mais
como salário indireto, viabilizando o acesso à mercadoria imobiliária que, de difícil o acesso à terra urbana por pessoas nestas faixas de renda, já que a carestia da habitação se
generaliza (tanto para aquisição, como para aluguel) e a mobilização de instrumentos jurídicos para
a proteção da posse de imóveis ociosos contra ocupações torna-se mais importante a proprietários
fundiários para defesa do patrimônio valorizado.
251 F. DE OLIVEIRA, Crítica à Razão Dualista, 2003, p. 59, descreveu já em 1972 (o texto publicado
247 D. HARVEY, Neoliberalismo, 2014, p. 12.
em 2003 decorre de um artigo publicado nos anos 70) o fenômeno da autoconstrução: “Uma não-
248 G. DUMÉNIL e D. LÉVY, A Crise do Neoliberalismo, 2014, p. 16, afirma que numa das facetas do insignificante porcentagem de residências das classes trabalhadoras foi construída pelos próprios
neoliberalismo estão os “mecanismos macroeconômicos, cujas principais variáveis são o consumo e o proprietários, utilizando dias de folga, fins de semana e formas de cooperação como o ‘mutirão’”.
investimento, o comércio externo e as dívidas doméstica e externa da economia dos Estados Unidos”.
252 F. DE OLIVEIRA, Crítica à Razão Dualista, 2003, p. 59. Note-se que, na época em que o texto
249 Observe-se que, no contexto brasileiro, uma norma de cunho garantista, a saber, a proteção ao bem foi escrito – década de 1970 – o fenômeno da “desapropriação” pelo setor privado não tinha ainda
de família (8.009/90), que dispõe sobre a impenhorabilidade dobem de família), ainda impede a encontrado seu suprassumo nos países subdesenvolvidos, consistentes nas políticas de titulação das
operacionalização de operações de crédito com o único imóvel do indivíduo sendo dado como garantia. moradias irregulares.

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-obra253. Quando este não era o caso – tipicamente tratando-se de trabalhado- milhões de financiamentos habitacionais concedidos através do BNH,
res de mais baixa renda com precariedade habitacional extrema – a subsistência entre 1970 e 1986, tenha se dirigido aos setores de menor renda”255.
habitacional estava, aí sim, completamente excluída do salário individual even-
tualmente recebido. No PMCMV, dados de 2015 mostram que a quantidade de imóveis entre-
Como, por um lado, a autoconstrução já implicava no rebaixamento da mas- gues para a faixa de renda mais baixa (faixa 1) é também maior do que a quan-
sa salarial e, de outro lado, os próprios subsídios do programa levam ao aumento tidade entregue para a faixa 2:
do preço da terra urbana e dos aluguéis, a conclusão sobre um ainda maior “Com rendimento mensal de R$ 300, a auxiliar de cozinha integra a
rebaixamento da massa salarial no programa Minha Casa, Minha Vida exige principal faixa de renda do Minha Casa Minha Vida, que beneficia fa-
estudos mais aprofundados que fogem ao alcance deste trabalho. mílias com ganho bruto de até R$ 1,6 mil por mês. O MCMV contratou
Poderia se supor que um programa público de construção de moradias aliado a construção de 1,7 milhão de unidades nessa faixa de renda desde 2009,
à política de valorização salarial dos governos petistas levaria a uma considerá- tendo entregado 778.651 das 958,7 mil já construídas.
vel melhoria de vida das parcelas empobrecidas das classes trabalhadoras. Não Já na Faixa 2, aquela que atende a famílias com renda mensal bruta de
há ainda dados habitacionais suficientes que permitam realizar avaliação mais até R$ 3,2 mil, o número de unidades entregues soma 1,3 milhão de
pormenorizada sobre a exclusão habitacional. De outro lado, seria necessária um total de mais de 1,4 milhão construídas. Nessa faixa de renda, os
uma pesquisa de maior alcance para apurar se os contemplados pelo programa recursos financiados diretamente pela União somam R$ 27,4 bilhões e o
tiveram melhoria ou piora no nível de subsistência. Certo é que, dado o desenho que foi investido por meio do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
geral do programa, em especial o fato de se se apoiar em propriedade priva- (FGTS) atingiu R$ 149,4 bilhões.
da, crédito e subsídio estatal para promoção do acesso ao mercado imobiliário, Na Faixa 3, que abarca a renda entre R$ 3,2 mil e R$ 5 mil em ganho bru-
tendencialmente será mantida a exclusão habitacional, independentemente do to por mês por família, foram entregues 192.530 unidades habitacionais de
número de imóveis construídos. 299,2 mil concluídas. A União subsidiou com recursos próprios R$ 797,6
milhões. Outros R$ 2,7 bilhões foram financiados pelo FGTS.”256
Capital monetário gerido pelo Estado e subsídio
O FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) foi o “principal funding Como se verifica, o número de unidades entregues para a faixa 2 é quase o
do BNH”254 e continua sendo a principal fonte de recursos para a política habi- dobro dos entregues para a faixa 1, na qual se concentra a maior parte do déficit
tacional do governo federal. Ocorre que, por se tratar de um fundo financeiro, habitacional. Segundo dados da Fundação João Pinheiro, há
as decisões sobre o mesmo devem se submeter à lógica de rentabilidade. Com
isso, fortalece-se a dimensão financeira “concentração do déficit habitacional na faixa ‘até três salários mínimos’
em 2009: 90,1%. A categoria ‘mais de três a cinco’ compreende 7,0% das
“ao subordinar as decisões sobre para quem, onde, como e de que for- famílias, a ‘mais de cinco a dez’, 2,4% e a ‘mais de dez’, 0,5%. Assim, as
ma investir em habitação à necessidade de remuneração dos recursos famílias com renda até cinco salários mínimos totalizam 97,1% do déficit
deste fundo. Isso explica, em parte, por que apenas 30% do total de 4,5 habitacional urbano”257.

253 N. BONDUKI, Origens da Habitação Social no Brasil (1930-1945): O Caso de São Paulo, 1994, p.
255 Idem.
258, descreve a autoconstrução como aquela que é “edificada sob gerência direta do seu proprietário
ou morador: adquire ou ocupa o terreno; traça, sem apoio técnico, um esquema de construção; 256 http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2015/09/minha-casa-minha-vida-entregou-2-4-milhoes-de-
viabiliza a obtenção dos materiais; agencia a mão de obra, gratuita e/ou remunerada informalmente; moradias, acesso em 26 dez. 2015.
e constrói sua casa”.
257 MINAS GERAIS. Fundação João Pinheiro. Déficit Habitacional no Brasil. 2009. Disponível em
254 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 284. http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/185-deficit-habitacional-200 9.

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Mas o foco dos agentes financeiros é a rentabilidade, não o déficit habita- com recursos do FGTS. Este, além de ser um fundo de poupança compulsória
cional. Desde os tempos do BNH, o locus privilegiado de “formulação e imple- dos próprios trabalhadores, tem em seu Conselho Curador as centrais sindicais
mentação da política habitacional” é o setor financeiro nacional, que também criadas com a redemocratização do Brasil – segundo ROLNIK, “esse desenho
se estruturou e se mantém em grande medida para desenvolver um mercado é fundamental para compreendermos o entrelaçamento político entre o capital
imobiliário e uma indústria de construção civil, que funcionam como “motores financeiro e a nova liderança sindical nos anos 1990 e 2000”261.
do próprio setor financeiro”258. Ainda hoje, a Caixa Econômica Federal (CEF) Assim, no setor habitacional brasileiro, o capital monetário é em grande
funciona, na prática, como órgão de organização financeira da política habita- parte administrado pelo Estado, por meio da Caixa Econômica Federal (banco
cional, praticamente como um substituto do BNH, gerenciando grande parte público). Mas os subsídios e os juros baixos viabilizados por esta intervenção
dos recursos destinados à habitação no país. O papel da CEF não se restringe estatal na economia estão longe de realizar uma proudhoniana “justiça eterna”.
apenas a conceder o financiamento, assumindo relevante papel já que Engels já criticava no século XIX as teses de que o rebaixamento das taxas de
juro a zero por meios jurídico-legais levaria a resolver a questão da habitação. O
“também tem influenciado o desenho do programa, pois além de con- proudhonista Arthur Mülberger escrevera:
tratar a operação financeira e acompanhar a execução das obras pelas
empresas construtoras, estabelece os critérios técnicos para sua opera- “Suponhamos agora que a produtividade do capital realmente seja agar-
cionalização e execução... [e tem] papel decisivo na gestão operacio- rada pelos chifres, como cedo ou tarde deverá acontecer, por exemplo,
nal do PMCMV, na medida em que é responsável pela concessão do mediante uma lei de transição que fixe o juro de todos os capitais em
financiamento tanto ao usuário quanto às construtoras e incorporado- 1%, nota bene, com a tendência de aproximar também essa porcentagem
ras e pela aprovação do projeto do ponto de vista técnico, jurídico e cada vez mais do marco zero, de modo que, ao final, não se pagará nada
econômico-financeiro”259. além do trabalho necessário à transação do capital. Como acontece com
todos os demais produtos, naturalmente também a casa e moradia estão
Os defensores da financeirização pretendem a modernização do sistema fi- contidos no quadro dessa lei. [...] O proprietário mesmo será o primeiro
nanceiro do Brasil, com a expansão de instrumentos como fundos de inves- a estender a mão para a venda, dado que do contrário sua casa não seria
timento imobiliário e certificado de recebíveis imobiliários, os quais suposta- utilizada e o capital nela investido simplesmente não serviria de nada”262.
mente levariam a maiores investimentos – inclusive estrangeiros – no setor.
Tentou-se esta modernização ainda na década de 90 para consumo de imóveis O desentendimento sobre o papel da lei e do direito no capitalismo é pleno em
para habitação. Para os defensores deste modelo, “a melhor política de habita- Mülberger. Este espera reduzir a nada o capital investido por meio de uma legis-
ção social que se poderia fazer era desenhar um marco regulatório confiável lação de transição, desprezando que o direito é determinado pela base do sistema
para o setor imobiliário, com o objetivo de atrair investidores em potencial e fo- sociometabólico do capital. Fosse possível realizar aquela proeza – reduzir a nada
mentar a oferta habitacional através de relações de mercado”260. Mas o mercado o capital por meio de lei – esta simplesmente deixaria de ser direito e se tornaria
habitacional para baixa renda, apesar destas pretensões, continuou dependente alguma quimera. Para chegar a isto, os proudhonistas precisam apenas reprovar
de incentivo público. Assim, no que tange ao atendimento habitacional para a “produtividade do capital”, que nada mais é do que a “apropriação do trabalho
faixas de baixa renda, o principal meio de financiamento atual é o do PMCMV, não pago de trabalhadores assalariados”263. Engels esclarece que

258 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 282. 261 Idem, p. 285.
259 M. R. LOUREIRO et. al., Democracia, Arenas Decisórias e Políticas Públicas: o Programa Minha Casa 262 A. MÜLBERGER, Die Wohnungsfrage, in Der Volksstaat, Leipzig, n. 13, 14 fev. 1872, p. 3, apud F.
Minha Vida, 2013, p. 23. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, pp. 56-57.
260 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 287. 263 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 57.

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“A redução e, por fim, a abolição da taxa de juros realmente não seria de sustentação do capitalismo265. Marx não chegou a publicar as partes de O
de modo algum capaz de ‘agarrar pelos chifres’ a assim chamada ‘produ- Capital que tratavam especificamente de juros, crédito e finanças. Ele deixou
tividade do capital’, mas apenas regulamentaria de maneira diferente a apenas manuscritos, que foram depois revistos e publicados por Engels. As
repartição entre os capitalistas individuais do mais-valor não pago que partes seções V e VI do Livro III da obra tratam mais diretamente do assunto.
é tirado da classe trabalhadora, não assegurando nenhuma vantagem
Trata-se, aí, do capital monetário.
ao trabalhador em relação ao capitalista individual, mas tão somente ao
O dinheiro já aparecera desde a seção 1 do Livro 1 de O Capital, e ali apa-
capitalista individual em relação ao rentista”264.
rece como o equivalente universal, como expressão do valor de todas as outras
No contexto brasileiro, subsídio e juros baixos não são benesses legalmente mercadorias, como forma de valor universal. Mas este equivalente universal
previstas para realizar o direito à moradia dos mais pobres, são benefícios legais tem um caráter fetichista, pois esconde o trabalho necessariamente existente
para os capitalistas dos setores de construção civil e imobiliário em relação ao em todas as mercadorias. No livro III, a argumentação retoma o conceito de
Estado gestor do capital monetário. Por meio dos instrumentos do subsídio e do fetichismo do dinheiro, afirmando, agora, que “No capital portador de juros, a
crédito habitacional, o Estado brasileiro realiza a transferências de parcela da relação-capital atinge sua forma mais alienada e mais fetichista... a figura feti-
mais-valia (via recursos do tesouro nacional) e dos salários (via parcelas pagas chista do capital e a concepção do fetiche capital está acabada”266. O dinheiro,
pelos trabalhadores) para promover a expansão dos mercados imobiliário e de aí, esconde a vocação do próprio capital de acumulação infinita e faz o capita-
construção civil brasileiros, assegurando a manutenção e a expansão geográfica lista acreditar e perseguir a acumulação ilimitada de dinheiro.
do conjunto de ganhos do capital (juro, renda, lucro). O juro é o preço ou o valor de troca do capital monetário. Porém, ao con-
O desenho do PMCMV e sua efetivação não levam à redução do valor da trário do preço das mercadorias, que se aproximam do valor quando oferta
força de trabalho por meio da realização do meio de subsistência habitação. Os e demanda estão em equilíbrio, o juro não tem valor algum do qual possa se
efeitos do programa podem mesmo ser contrários a isto, com aumento do déficit aproximar. A taxa de juro é determinada, portanto, pela oferta e demanda
habitacional, independentemente do número de imóveis construídos. de capital monetário267.
A irracionalidade do capital monetário e o papel do crédito na espoliação urbana
265 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 286, citando K. MARX, O Capital – Livro I,
O que deve ser frisado neste ponto é que por meio dos instrumentos do 2013, p. 824 a 826, diz que “não podemos entender esse papel crucial do Estado como força organizadora
subsídio e do crédito habitacional, o Estado capitalista brasileiro realiza a e como promotor do sistema colonial sem reconhecer a importância tanto da dívida nacional quanto
transferências de parcela do trabalho excedente para assegurar a expansão do do sistema de crédito público como meios pelos quais o poder do dinheiro pode começar a controlar
o poder do Estado. A fusão do poder do dinheiro com o poder estatal a partir do século XVI é
mercado imobiliário brasileiro, assegurando a manutenção e a expansão geo- assinalada pelo advento de um ‘moderno sistema tributário’ e de um sistema internacional de crédito.
gráfica do conjunto de ganhos do capital (juro, renda, lucro). Pouco muda se o Os ‘bancocratas, financistas, rentistas, corretores, stockjobbers [bolsistas]’ etc. que povoaram esse
sistema passaram a desempenhar importantes funções de poder. O sistema colonial permitia que ‘os
crédito é gerido pelo Estado ou por agentes privados, a função (e a disfunção)
tesouros espoliados fora da Europa diretamente mediante o saqueio, a escravização e o latrocínio’
dele será a mesma. fossem levados ‘à metrópole’, onde ‘se transformavam em capital’, ao mesmo tempo que a dívida
O sistema de crédito é um dos principais meios para acesso à habitação. pública se tornava ‘uma das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva.’”
Isto ocorre em razão dos elevados preços dos bens imóveis que servem à habi- 266 K. MARX, O Capital – Crítica da Economia Política. O Processo Global de Produção Capitalista, 1986,
p. 293-294.
tação – e o próprio sistema de crédito pode implicar em elevação ainda maior
267 Neste sentido, D. HARVEY, Para Entender o Capital – Livros II e III, 2014, p. 169, afirma que o preço
destes preços. Antes disso, o sistema de crédito é um dos principais pilares
(valor de troca) do capital monetário é chamado de juro, e o ciclo do capital monetário aparece
agora como a circulação do capital portador de juros. Não há, no entanto, nenhuma ‘taxa natural
de juro’ do tipo proposto pela teoria burguesa. Devemos lembrar que Marx considerava o preço
‘natural’ (o preço das mercadorias quando a oferta e a demanda estão em equilíbrio no mercado) uma
264 Idem, p. 58. aproximação do valor. Nesse caso, porém, o ‘preço natural’ não pode existir”. Para Harvey, há uma

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A questão que se coloca no estudo do capital monetário é sobre a sua relação produção e realização de imóveis). Esse é o ponto em que a taxa de juro e a taxa
com o capital industrial – a relação entre juro e lucro. Segundo Harvey, a taxa de lucro se interseccionam e interagem de maneira extremamente significativa
de juro é fixada pela concorrência entre capitalistas industriais e capitalistas e, muito frequentemente, especulativa”273.
monetários268, sendo que, no contexto capitalista, o capital monetário depende No que se refere à questão do crédito no setor habitacional para pessoas
da existência do capital industrial (“capital produtivo”)269. Mas “a oferta global de baixa renda (basicamente o PMCMV) – não há “um processo de ‘finan-
de dinheiro é ilimitada, porque é feita apenas de números”270 e isto leva às crises ceirização’, na medida em que nem a formação de um mercado secundário
monetárias e comerciais: “Relações de concessão de empréstimos podem fugir de hipotecas, nem a participação mais intensa de fundos e veículos finan-
do controle e produzir cada vez mais dinheiro em forma de crédito (a prolife- ceiros ocorreram”274. Nos limites do capitalismo periférico brasileiro, uma
ração de títulos de crédito). Isso confere necessariamente um caráter fictício a tímida busca por financeirização acabou por ocorrer apenas na capitaliza-
todos os mercados de crédito”271. ção das empresas do setor imobiliário e, no que se refere ao financiamento
Este caráter fictício dos mercados de crédito, como a irracionalidade da de- do consumo de imóveis, o papel principal coube ao próprio governo, ao
terminação da taxa de juro272, não significam a inutilidade prática do capital FGTS e à Caixa Econômica Federal.
monetário – basta olhar para os efeitos práticos da crença religiosa na organi- Grandes empresas construtoras e incorporadoras do Brasil receberam apor-
zação social para compreender a função efetiva do fetiche e da alienação. Este tes de capital estrangeiro no período anterior ao PMCMV275. E o mais impor-
capital pode tanto impulsionar a oferta (o banco disponibiliza dinheiro para o tante passo que estas companhias deram foi investir em reservas fundiárias,
empreiteiro construir imóveis), como pode impulsionar a demanda (o banco comprando terras baratas para posterior investimento. A compra de terras ba-
empresta dinheiro para o consumidor comprar imóveis). Harvey aponta que ratas para esperar a sua valorização e para servir de reserva financeira é um
“isso pode se tornar um circuito fechado (uma bolha de ativos, digamos, na instrumento básico do patrimonialismo brasileiro – mantêm-se imóveis ociosos
à espera de investimentos públicos no entorno que os valorizem. Com as cons-
trutoras e incorporadoras capitalizadas, este movimento ganha escala impres-
profunda mudança conceitual no livro III de O Capital, já que Marx passa a explicar a taxa de juro sionante: 9 empresas do setor listadas na Bovespa concentravam, em 2014, “100
a partir da oferta e da demanda de capital monetário, quando, no livro II, oferta e demanda seriam
sempre “particularidades” que “não explicam nada quando estão em equilíbrio” (p. 169). Por escapar bilhões de reais (37 bilhões de dólares) em terra, o que representa quase 620
aos limites deste trabalho, não me ocuparei aqui desta suposta mudança conceitual. mil quilômetros quadrados de solo urbano, em várias cidades do país”276. Isto
268 D. HARVEY, Para Entender o Capital – Livros II e III, 2014, p. 170. terá impacto no preço da terra urbana pelo aumento da procura, assim como os
269 Idem, p. 171-172, afirma que “Segundo Marx, a ambição de muitos capitalistas industriais na subsídios estatais do PMCMV levarão a mais um movimento de alta do preço
Inglaterra frequentemente era trabalhar na produção até poderem se tornar rentistas ou financistas, da terra e de valorização destes terrenos – estes subsídios, assim, acabam por ser
e então poder mudar para uma propriedade rural e viver confortavelmente de renda. Mas se todos
procurassem viver do juro ou da renda e ninguém produzisse mais-valor, observa Marx, a taxa de juro absorvidos pelo mercado imobiliário pelo aumento do preço da terra.
cairia a zero, e o lucro potencial sobre o reinvestimento da produção atingiria altitudes inéditas (C3,
501). Encontra-se aqui ao menos um ponto em que a circulação do capital portador de jutos tem de se
submeter à produção de mais-valor. 273 D. HARVEY, Para Entender o Capital – Livros II e III, 2014, p. 173.
270 Idem, p. 172. 274 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 290.
271 Idem. 275 Idem, p. 290-291: “A Cyrela, por exemplo, empresa familiar fundada em São Paulo em 1962, associa-se
em 1996 à IRSA, incorporadora argentina da qual participava George Soros, par criar a Brazil Realty.
272 Idem, p. 175, se vale de uma analogia interessante, afirmando que “a irracionalidade e o caráter
Parte da Gafisa, empresa também familiar que atuava no Rio de Janeiro desde 1954, é comprada pela
contraditório do juro sobre o capital têm de ser considerados no sentido... [da] teoria do número.
GP Investments em 1997. A GP Investments... mobilizou investidores em todo o mundo para gerenciar
Só assim podemos então ver como formas fictícias são produzidas e com que efeito, de modo muito
o capital e/ou controlar cinquenta companhias lationo-americanas, principalmente brasileiras, dos
semelhante a como [o número] π [número irracional igual a 3,14159265359...; na matemática, número
setores imobiliário e de varejo, e também de logística e telecomunicações”.
irracional é o número real que não pode ser escrito como uma fração de numerador inteiro e de
denominador inteiro diferente de zero] pode ser usado na engenharia”. 276 Idem, p. 292.

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Um dos aspectos mais preocupantes do PMCMV é que os mecanismos de proporções modestas”278. Esta foi a base dos domínios da oligarquia inglesa e
mercado levarão certamente, em poucos anos, a uma nova onda de exclusão os capitalistas burgueses “favoreceram a operação, entre outros motivos, para
habitacional e à formação de um mercado imobiliário de baixa renda com imó- transformar o solo em artigo puramente comercial, ampliar a superfície da
veis construídos via PMCMV. Aqueles que não puderem pagar pelas prestações grande exploração agrícola, aumentar a oferta de proletários absolutamente
(o financiamento é de 10 anos para a faixa 1 e de até 30 anos para as faixas livres, provenientes do campo etc.”279
2 e 3) poderão vir a ter os imóveis retomados pela Caixa Econômica Federal Já a propriedade comunal, também foi usurpada nos séculos XV e XVI,
ou venderão seus imóveis terceiros no mercado, migrando para o aluguel ou “em geral acompanhada da transformação das terras de lavoura em pasta-
assumindo a condição de sem-teto. O processo de expansão do capital a que se gens... Nessa época, porém, o processo se efetua por meio de atos individuais
assiste está intimamente aliado ao processo de espoliação ou desapossamento de violência, contra os quais a legislação lutou, em vão, durante 150 anos”
do trabalho alheio: os mecanismos jurídico-financeiros permitem cada vez com 280
. No século XVIII, a peculiaridade é que a própria lei281 é o veículo para a
mais sofisticação a extração da renda do trabalho por meio do crédito e a repro- expropriação das terras:
dução perpétua do capital.
Sobre a espoliação urbana, observe-se que, no contexto europeu, Marx des- “O progresso alcançado no século XVIII está em que a própria lei se
torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo, embora os gran-
vendou como o desmantelamento das relações feudais de produção permitiram
des arrendatários também empreguem paralelamente seus pequenos e
liberar o trabalhador camponês para que se transformasse em trabalhador assa-
independentes métodos privados. A forma parlamentar do roubo é a
lariado e, assim, servisse à reprodução do próprio capital. A base desta liberação das “Bills for Inclosures of Commons” (leis para o cercamento da terra
foi a expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural: comunal), decretos de expropriação do povo, isto é, decretos mediante
os quais os proprietários fundiários presenteiam a si mesmos, como
“Na história da acumulação primitiva, o que faz época são todos os
propriedade privada, com as terras do povo. Sir Francis Morton Eden
revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em for-
refuta sua própria argumentação espirituosa de advogado, na qual pro-
mação, mas, acima de tudo, os momentos em que grandes massas hu-
manas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsis-
tência e lançadas no mercado de trabalho como proletários absoluta- 278 Idem, p. 795.

mente livres. A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor 279 Idem, p. 796.
rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo. Sua história 280 Idem, p. 796.
assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias 281 Sobre ser a própria lei o veículo para a expropriação das terras, deve-se observar que aí não está presente
fases em sucessão diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na ainda a forma jurídica própria ao capitalismo, mas uma protoforma jurídica. Neste sentido, explica
Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropria- M. ORIONE, Dilma e a Vaca Profanada, In http://blogdaboitempo.com. br/2015/01/28/dilma-e-a-vaca-
profanada/, acesso em 15 jun. 2015, que “a universalização da aparência de liberdade e igualdade, como
ção se apresenta em sua forma clássica”277. condição indispensável à lógica de produção e circulação do capital, não se realiza sem a presença do
estado. O estado é, pois, na sua mais acabada estruturação, forma típica do capitalismo. Logo, estado ou
Na Inglaterra, a Revolução Gloriosa de 1689, “conduziu ao poder, com direito evoluíram no tempo e possuem características incipientes nos modos de produção anterior. No
entanto, a mais bem-acabada manifestação de ambos somente pode-se dar no capitalismo. Merecem, pois,
Guilherme III de Orange, os extratores de mais-valor, tanto proprietários fun-
ser considerados como forma típica do capitalismo neste sentido. Em outro momento da humanidade,
diários como capitalistas. Estes inauguraram a nova era praticando em escala outras figuras que não se confundem com a atual de estado ou direito apareceram. No entanto, para a
colossal o roubo de domínios estatais que, até então, era realizado apenas em universalização da figura do sujeito de direito e de seus correlatos discursos de igualdade e liberdade,
forma estatal e jurídica coincidem e são indispensáveis ao advento e andamento do capitalismo. Em
se tratando de formas históricas, não existiram antes (mesmo que existissem suas protoformas) e não
existirão eternamente, compondo outro modo de produção. Logo, são apenas formas transitórias, como
o devem ser à luz do materialismo histórico-dialético. Não se tratam de formas transcendentais, eternas
277 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 787. – que sempre teriam existido e que, inexoravelmente, sempre existirão.”

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cura apresentar a propriedade comunal como propriedade privada dos sassínio para roubar, em suma, a violência... Na realidade, os métodos
latifundiários que assumiram o lugar dos senhores feudais, quando exi- da acumulação primitiva podem ser qualquer coisa, menos idílicos...
ge ‘uma lei parlamentar geral para o cercamento das terras comunais’, a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade
admitindo, com isso, ser necessário um golpe de Estado parlamentar com traços de sangue e fogo.”286
para transformar essas terras em propriedade privada, e, por outro
lado, quando reivindica ao poder legislativo uma ‘indenização’ para os Uma das condições básicas para o surgimento do capitalismo, a acumulação
pobres expropriados”282. de riqueza por algumas pessoas, aliado ao despojamento de muitas outras, não
está relacionada a aspectos morais individuais como a avareza e a prodigalidade,
Esta indenização nada representará para a sorte dos camponeses, que mas à acumulação de capital por meio da espoliação. David Harvey, analisando
comporão as crescentes fileiras do exército industrial nas cidades, dispondo o argumento de Marx e refletindo sobre o contexto atual do capitalismo, faz o
de sua força de trabalho no mercado, pressuposto básico para o desenvolvi- seguinte questionamento: “uma vez que o capitalismo passou pela acumulação
mento do capitalismo. No final do século XIX o salário destes trabalhadores primitiva, e uma vez que a pré-história acabou e surgiu uma sociedade capita-
era tão baixo que a sua subsistência só era possível com o complemento da lista madura, os violentos processos que ele descreve tornam-se insignificantes
assistência oficial aos pobres283. e desnecessários ao modo como o capitalismo funciona?”287.
Marx observa que se o trabalhador pode acumular para si mesmo – “o que Sobre a explicação de Marx da acumulação primitiva, Harvey aponta que
ele pode fazer na medida em que permanece como proprietário de seus meios nem todos os momentos desta acumulação primitiva foram violentos, tendo
de produção –, a acumulação capitalista e o modo capitalista de produção são havido momentos em que “as populações eram menos forçadas a sair da terra
impossíveis”. Isto porque falta o capital variável, falta “a classe dos trabalhadores do que atraídas pelas possibilidades de emprego e pelas perspectivas de uma
assalariados, imprescindíveis para esse fim”284. Marx desfaz, assim, o “conto de vida melhor oferecidas pela urbanização e pela industrialização”288. Pode-se
fadas” da acumulação por uma “elite laboriosa, inteligente e sobretudo parci- problematizar se não há violências pressupostas nestas “perspectivas de uma
moniosa”, que se contraporia à “súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham vida melhor”. É dizer, provavelmente a “vida melhor” prometida nos centros
e ainda mais”285. Nesta versão, estes, apesar de trabalharem duramente, nada urbanos capitalistas corresponde via de regra a uma realidade concreta: a vida
conseguem acumular para si em razão de sua própria incapacidade para econo- é de fato materialmente melhor aí em razão da dinâmica capitalista de produ-
mizar. Marx, porém, observa que ção e distribuição da riqueza, que tem como efeito também deixar o campo em
condições de vida tão miseráveis que a vida mais degradante nas cidades se
“São trivialidades como essas que, por exemplo, o sr. Thiers, com a
solenidade de um estadista, continua a ruminar aos franceses, outrora torna mais atraente.
tão sagazes, como apologia da proprieté. Mas tão logo entra em jogo Assim, esta “perspectiva de uma vida melhor” deve ser vista para além da
a questão da propriedade, torna-se dever sagrado sustentar o ponto aparência: ela é, em regra, a ideologia por trás do desapossamento do campo,
de vista da cartilha infantil como o único válido para todas as faixas da concentração do capital nas cidades e no despojamento das massas para dis-
etárias e graus de desenvolvimento. Na história real, como se sabe, o ponibilizar mão de obra no mercado. Esta “perspectiva de uma vida melhor” foi
papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o as- boa parte da história da migração para as regiões industriais no Brasil do século
XX. O que interessa aqui é: o desapossamento e a correspondente acumulação

282 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 796.


283 Idem, p. 799. 286 Idem, p. 785 a 787.
284 Idem, p. 837. 287 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 280.
285 Idem, p. 785. 288 Idem, p. 291.

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continuam a ocorrer no regime capitalista, aparecendo como movimentos de ria deixado de existir há muito tempo, se não tivesse se engajado em novos ciclos
reorganização da acumulação e do capitalismo. A história da acumulação pri- de acumulação primitiva, sobretudo por meio da violência do imperialismo”291.
mitiva teria mais nuances do que as focalizadas por Marx no estreito espaço dos Esta interpretação de que Rosa via um erro em Marx também foi adotada por
últimos capítulos do Livro I d’O Capital. Tadeusz Kowalik numa introdução à edição de The Accumulation of Capital da
Harvey identifica em Rosa Luxemburgo a introdução deste tema, quando a Routledge Classics, que afirmou que “Marx estava, segundo ela, errado quando
autora afirmava que o capitalismo se assentaria em duas formas de exploração: apenas ressaltou o papel crucial do poder político e da violência nas fases ini-
ciais da assim-chamada acumulação primitiva do capital. Na verdade, o poder
“uma diz respeito ao mercado de mercadorias e ao lugar onde o mais-va- político não é nada mais do que um veículo do processo econômico”292.
lor é produzido – a fábrica, a mina, o latifúndio agrícola. Vista por esse
O que interessa aqui é compreender que os processos de acumulação colo-
prisma, a acumulação é um processo puramente econômico, cuja fase
nial/imperialista e de acumulação por desapossamento (via sistema de crédito,
mais importante é a transação entre o capitalista e o trabalhador assala-
riado. [...] Aqui, ao menos formalmente, prevalecem a paz, a propriedade expropriação de populações, cercamento de propriedades, etc.) são próprias
e a igualdade, e a aguda dialética da análise científica [e, segundo ela, do capitalismo e cumprem função muito semelhante à que Marx atribuiu à
essa foi a principal realização de Marx n’O Capital] era necessária para acumulação primitiva. O que Harvey chama de processo de acumulação por
revelar como o direito de propriedade, no curso da acumulação, torna-se desapossamento (para não usar a nomenclatura de acumulação primitiva para
apropriação da propriedade de outrem, e como a troca de mercadoria se um processo atual) continua a ocorrer e é estrutural ao capitalismo293, é um dos
transforma em exploração e a igualdade, em domínio de classe... O outro seus modos de expansão e de sustentação.
aspecto da acumulação... diz respeito às relações entre o capitalismo e os O desapossamento é um tipo de espoliação urbana. L. Kowarick trabalha
modos não capitalistas de produção, que começam a surgir no cenário com este último conceito:
internacional. Seus métodos predominantes são a política colonial, um
sistema de crédito internacional – uma política de esferas de interesse
– e a guerra. A força, a fraude, a opressão e o saque são patrocinados by taking them together. ‘Sweating blood and filth with every pore from head to toe’ characterises
abertamente, sem nenhuma tentativa de disfarce, e é necessário certo not only the birth of capital but also its progress in the world at every step, and thus capitalism
esforço para descobrir, nesse emaranhado de violência política e dispu- prepares its own downfall under ever more violent contortions and convulsions” – em tradução
livre, “Na realidade, o poder politico não é mais do que um veículo para o processo econômico. As
tas de poder, as leis inexoráveis do processo econômico.”289
condições para a reprodução do capital proporcionam a ligação orgânica entre esses dois aspectos
da acumulação de capital. O curso histórico do capitalismo só pode ser apreciado ao tomá-los em
Haveria, então, uma “conexão orgânica” entre estes sistemas de exploração conjunto. ‘Transpirar sangue e imundície com todos os poros da cabeça aos pés’ caracteriza não só o
e acumulação. Os dois são dependentes entre si para existir da maneira em nascimento de capital, mas também o seu progresso no mundo a cada passo, e, assim, o capitalismo
prepara a sua própria queda sob contorções e convulsões cada vez mais violentas.”
que existem e, juntos, possibilitam conhecer o curso histórico do capitalismo290.
291 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 292.
Neste sentido, “Marx estava errado, diz ela, em situar a acumulação primitiva
292 Tradução livre, introdução de Tadeusz Kowalik a R. LUXEMBURG, The Accumulation of Capital.
num ponto antediluviano, numa pré-história do capitalismo. O capitalismo te- Rotledge: Londres, 2003, p. XIII.
293 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 292, aponta que “os processos específicos
de acumulação que Marx descreve – a expropriação das populações rurais e camponesas, a política
289 R. LUXEMBURGO. A Acumulação do Capital, 2ª Ed., São Paulo: Nova Cultura, 1985, apud D.
de exploração colonial, neocolonial e imperialista, o uso de poderes do Estado para realocar recursos
HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 292.
para a classe capitalista, o cercamento de terras comuns, a privatização das terras e dos recursos do
290 Esta a conclusão de R. LUXEMBURG, The Accumulation of Capital, disponível em https://www. Estado e o sistema internacional de finança e crédito, para não falar dos débitos nacionais crescentes
marxists.org/archive/luxemburg/1913/accumulation-capital/ch31.htm, no trecho logo após aqueles e da continuação da escravidão por meio do tráfico de pessoas (especialmente mulheres) – todos esses
citados na nota anterior, a saber, “In reality, political power is nothing but a vehicle for the economic traços ainda estão entre nós e, em alguns casos, parecem não ter sido relegados ao segundo plano,
process. The conditions for the reproduction of capital provide the organic link between these two mas, como o sistema de crédito, o cercamento de terras comuns e a privatização, tornaram-se ainda
aspects of the accumulation of capital. The historical career of capitalism can only be appreciated mais proeminentes”.

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“O chamado ‘problema’ habitacional deve ser equacionado tendo em timação (jurídica e política) dos processos de expropriação por desapossamento
vista dois processos interligados. O primeiro refere-se às condições de e de espoliação urbana.
exploração do trabalho propriamente ditas, ou mais precisamente às No que tange ao movimento do capital monetário e financeiro, a expansão
condições de pauperização absoluta ou relativa a que estão sujeitos os do capitalismo se dá com o reinvestimento do excedente produtivo, não sem
diversos segmentos da classe trabalhadora. O segundo processo, que
que sucessivas crises orientem o fluxo destes excedentes295. Segundo D. Harvey,
decorre do anterior e que só pode ser plenamente entendido quando
“houve centenas de crises financeiras ao redor do mundo desde 1973, em com-
analisado em razão dos movimentos contraditórios da acumulação do
capital, pode ser nomeado de espoliação urbana: é o somatório de extor- paração com as muito poucas entre 1945 e 1973, e várias foram baseadas em
sões que se opera através da inexistência ou precariedade dos serviços de questões de propriedade ou desenvolvimento urbano”296. De fato,
consumo coletivos que se apresentam como socialmente necessários em
relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapida- “Estas crises, quando impactam as questões de propriedade e desenvol-
ção que se realiza no âmbito das relações de trabalho”294. vimento urbano, envolvem a eclosão de um processo de aplicação de
excedentes produtivos em mercados imobiliários, que leva à especulação
E continua apontando o papel central do Estado neste processo de espoliação: com os preços dos imóveis – preços de venda e compra e de aluguel, afe-
tando, decisivamente, a qualidade das moradias das classes mais pobres.
“Em ambos os processos o papel do Estado é fundamental. Em primei- Este movimento se sustenta até um momento em que os excedentes não
ro lugar, por criar o suporte de infraestrutura necessário à expansão mais podem sustentar o aumento dos preços e há, então, uma “correção”
industrial, financiando a curto ou a longo prazo as empresas e por destes preços, com perdas generalizadas.”297
agir diretamente enquanto investidor econômico. Ademais, por ser o
agente que tem por encargo gerar os bens de consumo coletivo ligados Estes fenômenos implicam que: i) do ponto de vista do trabalhador, eco-
às necessidades da reprodução da força de trabalho. Em segundo lugar nomias obtidas por meio da venda da força de trabalho sejam perdidas nos
por manter a ‘ordem social’ necessária à realização de um determinado momentos de crise com a desvalorização do preço do imóvel, algo que tem
modelo de acumulação” um efeito direto inicial diminuto para o trabalhador que usa o imóvel como
moradia e não paga por ele, mas que afeta duramente o trabalhador enredado
Sobre “ter o encargo de gerar os bens de consumo coletivo ligados às ne- num financiamento bancário de muitos anos para a aquisição do imóvel; há aí
cessidades da reprodução da força de trabalho”, observe-se que a neolibera-
lização prega justamente que o mercado pode cumprir esta função; a confi-
guração do Programa Minha Casa, Minha Vida deixa clara esta mudança 295 Sobre a relação entre a questão do excedente e a expansão urbana, HARVEY, David. The Right to
the City. New Left Review 53, September-October 2008, afirma que “From their inception, cities
da função estatal no que se refere aos direitos sociais – fenômeno conhecido have arisen through geographical and social concentrations of a surplus product. Urbanization has
como mercantilização dos direitos sociais, que não poderia ter sido descrito always been, therefore, a class phenomenon, since surpluses are extracted from somewhere and
from somebody, while the control over their disbursement typically lies in a few hands. This general
plenamente em 1979 por Kowarick. situation persists under capitalism, of course; but since urbanization depends on the mobilization
O que continua constante e é estrutural ao capitalismo é o papel do Estado of a surplus product, an intimate connection emerges between the development of capitalism and
– e também do direito, na manutenção da ‘ordem social’ necessária ao modelo urbanization... The perpetual need to find profitable terrains for capital-surplus production and
absorption shapes the politics of capitalism”. O autor, ademais, se questiona e argumenta o seguinte:
de acumulação vigente. Para manter a ‘ordem social’, o Estado mantém as ins- “How, then, has the need to circumvent these barriers and to expand the terrain of profitable activity
tituições necessárias ao direito e à política e participa definitivamente na legi- driven capitalist urbanization? I argue here that urbanization has played a particularly active role,
alongside such phenomena as military expenditures, in absorbing the surplus product that capitalists
perpetually produce in their search for profits”.
296 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 14.
294 L. KOWARICK. A Espoliação Urbana, 1979, p. 59. 297 R. MENEZES, Habitar a Cidade do Neoliberalismo, 2015, p. 157.

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espoliação do trabalhador, com especial ênfase na manutenção do seu despoja- Estas crises associadas a problemas nos mercados imobiliários, “tendem a
mento dos meios de subsistência, mantendo-se sua liberdade e igualdade para ser mais duradouras do que as crises curtas e agudas que, às vezes, abalam os
vender sua força de trabalho no mercado; ii) do ponto de vista dos trabalhado- mercados de ações e os bancos diretamente”. Isto porque “os investimentos no
res298 rentistas ou que utilizam a compra de imóvel como poupança ou reserva espaço construído são em geral baseados em créditos de alto risco e de retorno
de valor, a crise é um momento avassalador para esta poupança; também aqui demorado: quando o excesso de investimento é enfim revelado (como acon-
há um processo de espoliação voltado à reorganização do capital; iii) do ponto teceu recentemente em Dubai), o caos financeiro que leva muitos anos a ser
de vista dos especuladores capitalistas, estas ocasiões são momentos em que produzido leva muitos anos para se desfazer”301.
os excedentes “investidos” nos imóveis são dirigidos para outros locais ou para Conclui Harvey, portanto, que não há “nada de original no colapso atual [na
outros ramos da economia. Os capitalistas são afetados de acordo com as leis crise financeira de 2009], além do tamanho e alcance. Também não há nada
da concorrência: para alguns, partes expressivas de seus excedentes produtivos de anormal sobre seu enraizamento no desenvolvimento urbano e no mercado
investidos em imóveis se dissolverão; outros sairão como “ganhadores” e conti- imobiliário”. Neste contexto, aprofunda-se a contradição entre o processo de
nuarão como personificações do capital espoliante. Mas o grande vencedor é o produção social do espaço e sua apropriação privada302 – ou seja, primeiro, a
sistema sociometabólico do capital: este pode continuar a reproduzir a riqueza apropriação individual aparece como negação determinada da produção social
conforme sua lógica própria. Como observa Harvey, “o impacto redistributivo do espaço; segundo, no próprio processo de produção do espaço são extraídos
da perda dos investimentos em imóveis de milhões de pessoas e os enormes excedentes produtivos e coloca-se o espaço produzido no circuito do mercado.
ganhos em Wall Street aparecem como um caso contemporâneo de forte preda- Num período de “desenvolvimento”, o mercado de crédito se expande para que
ção e roubo legalizado típico da acumulação por desapossamento”299. massas de trabalhadores se endividem e adquiram imóveis; depois, num período
A economia mundial é fortemente dependente do mercado imobiliário como de crise, se aceleram os processos de acumulação por desapossamento.
locus para o investimento seguro de excedentes produtivos. Por isso se pode di- Para que o espaço socialmente produzido possa submeter-se à apropriação
zer que há aí um pilar estrutural do capitalismo. Crises neste mercado tendem a privada, a mediação jurídica da propriedade privada se impõe. Como observa
afetar inevitavelmente toda a economia, como a primeira crise em escala global Ana Fani Carlos, “a produção do espaço se realiza sob a égide da proprieda-
do capitalismo no pós-Segunda Guerra, que “começou na primavera de 1973, de privada do solo urbana... deste modo, o espaço entra no circuito da troca,
seis meses antes de o embargo árabe sobre o petróleo elevar os preços do barril”. generalizando-se na sua dimensão de mercadoria”303.
Esta crise, segundo Harvey, “originou-se em um crash do mercado imobiliário As crises são uma forma de reorganização do capital, que ocorre por meio
global, que derrubou vários bancos e afetou drasticamente não só as finanças de espoliação do trabalho pelo capital, para a autoalimentação deste e con-
dos governos municipais (como o de Nova York, que foi à falência técnica em tinuidade da reprodução capitalista. Trata-se de um processo de acumulação
1975, antes de ser finalmente socorrido), mas também as finanças do Estado de por desapossamento e questões habitacionais não raro estão envolvidas neste
modo mais geral”300. processo, seja por meio do sistema de crédito e suas execuções hipotecárias, seja
por meio de políticas de segurança da posse excludentes de populações pobres e
de formas alternativas de acesso à terra.
Assim como “as violentas contradições exibidas no movimento superficial
298 Deve-se lembrar que, quando analisou brevemente “os efeitos das crises sobre a parcela mais bem [do capital, foco de atenção dos economistas burgueses,] só podem ser anteci-
remunerada da classe trabalhadora”, foi o próprio K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, que se referiu
a esta “parcela” como uma aristocracia, não se tratando de uma invenção de correntes marxistas do
século XX. 301 Idem.
299 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 298. 302 R. COUTINHO. A Mitologia da Cidade Sustentável no Capitalismo, 2011, p. 21.
300 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 14. 303 A. F. A. CARLOS. O espaço Urbano: novos escritos sobre a cidade, 2004, p. 91.

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padas e entendidas por meio de um estudo das dinâmicas subjacentes que pro- conceito jurídico de segurança da posse, como se verá adiante) para, no limite,
duzem as formas do fetiche e sustentam as intervenções fetichistas nas leis de estimular o mercado de crédito. Busca-se com isso homogeneizar os institutos
movimento do capital”304, também as antinomias, inefetividades e divergências jurídicos, transformar em propriedade privada comercializável as diferentes for-
de todo o tipo do direito devem ser compreendidas no interior de dinâmicas que mas de posse, de modo a expandir o sistema de crédito e ampliar globalmente
produzem a ideologia jurídica a partir das leis de movimento do capital. os locais disponíveis para aplicação lucrativa de excedentes.
O sistema de crédito, com toda a sua regulamentação jurídica, é um meca- Deve ficar claro o papel dos bancos e do sistema de crédito como organiza-
nismo de acumulação por desapossamento: dores da acumulação e da expansão do capitalismo. Este papel só se efetiva em
meio ao complexo sistema sociometabólico que transforma o trabalho realizado
“o renascimento dos mecanismos de acumulação por desapossamen- pelo trabalhador assalariado em salário, lucro, renda juros e impostos. Harvey
to foi particularmente visível no papel cada vez maior do sistema de
faz uma observação crucial sobre os juros bancários:
crédito e das apropriações financeiras, em cuja última onda milhões de
norte-americanos perderam suas casa por execução hipotecária. Gran- “Ficaríamos surpresos se nos informassem que o dinheiro original que
de parte dessa perda de recursos aconteceu nos bairros mais pobres e depositamos numa caderneta de poupança por 5% de juros, por exem-
teve implicações particularmente sérias para as mulheres e populações plo, não nos pertence mais depois de alguns anos. No que nos diz respei-
afro-americanas em cidades mais antigas, como Cleveland e Baltimore. to, o capitalismo parece ser capaz de botar seus próprios ovos de ouro.
Enquanto isso, os banqueiros de Wall Street – que nos anos prósperos Mas é legítimo perguntar de onde vêm s 5%, e, se Marx está certo, eles
ficaram imensamente ricos com o negócio – ganham bônus enormes só podem vir da mobilização e da apropriação do mais-valor de alguém,
mesmo quando perdem o emprego por causa das dificuldades financei- em algum lugar. É inquietante pensar que esses 5% talvez venham da
ras. “O impacto redistributivo da perda dos investimentos em imóveis de exploração cruel de trabalho vivo na província de Cantão, na China.
milhões de pessoas e os enormes ganhos em Wall Street aparecem como Nossa superestrutura legal insiste em preservar os direitos originais de
um caso contemporâneo de forte predação e roubo legalizado típico da propriedade, assim como o direito de usar esses direitos para ter lucro.
acumulação por desapossamento.”305 Mas os direitos de propriedade resultam do poder de classe do capital de
extrair e manter o controle dos excedentes, porque a foça de trabalho se
Trata-se de um mecanismo pelo qual o capitalismo, por meio de seu sistema tornou, por processos históricos específicos, uma mercadoria comprada
financeiro, acumula excedentes produtivos para viabilizar a continuidade do e vendida no mercado de trabalho. O que Marx diz aqui implica que
sistema sociorreprodutivo vigente. Nada mais prático que valer-se de normas e para desafiar o capitalismo, é necessário desafiar não apenas a noção de
instituições jurídicas para fazer valer o sagrado direito de propriedade: concede- direitos, o modo como as pessoas pensam sobre os direitos e a proprieda-
-se crédito por meio de contrato de mútuo, o qual extrai o salário do trabalha- de, mas também os processos materiais por meio dos quais os excedentes
dor a pretexto de que realize suas necessidades habitacionais; caso não pague, são criados e apropriados pelo capital”306.
o contrato está garantido por alienação fiduciária, basta comprovar em Juízo a
inadimplência e a propriedade se consolida para o agente financeiro. Realmente, o direito garante a remuneração do capital bancário. No Brasil,
Um dos sintomas de que a habitação é um excelente meio para escoar os ex- o constituinte tentou limitar os abusivos juros bancários no artigo 192, par. 3º
cedentes via financeirização se vê nos esforços do Banco Mundial para expan- da Constituição Federal: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e
dir a titulação da terra em países subdesenvolvidos (recorrendo, se o caso, ao quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão
de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano”. E o dispositivo
ia fundo “a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura,
304 D. HARVEY, Para Entender o Capital – Livros II e III, 2014, p. 170.
305 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 298. 306 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 240.

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punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Mas O direito garante também a acumulação crescente de propriedades, gerando
a realidade não se dobrou à vontade do constituinte de submeter os agentes um sistema de rentismo cada vez mais ampliado no capitalismo “avançado”.
financeiros. O STF entendeu que a norma não era autoaplicável, necessitando Tudo sob beneplácito jurídico, já que a irracionalidade do capital monetário é
de lei complementar (súmula 648 - A norma do § 3º do art. 192 da Constitui- funcional ao capitalismo. Em que sentido é funcional ou alicerce do capitalis-
ção, revogada pela EC 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, mo? Conforme expõe Harvey, o sistema de crédito é
tinha sua aplicabilidade condicionada à edição de lei complementar). O cons-
tituinte derivado deu o golpe de misericórdia na “norma” com a EC 40/2003, “uma espécie de sistema nervoso central por meio do qual a circulação
total do capital é coordenada. Ele permite a realocação do capital mo-
revogando inteiramente o dispositivo. O sistema financeiro é livre para espoliar
netário entre as atividades, firmas, setores, regiões e países. Promove a
e acumular à taxa de juros que entender “tecnicamente” aplicável. Todo o gi-
articulação de diversas atividades, uma divisão incipiente do trabalho e
gantesco sistema jurídico viabiliza os processos materiais do sociometabolismo uma redução nos tempos de rotação. Facilita a equalização das taxas de
do capital. A transação legal aparece como mediação crucial na interação entre lucro e arbitra entre as forças que contribuem para a centralização e des-
a produção e o crédito. Mas, como forma, ela a expressa, não a determina, con- centralização do capital. Ajuda a coordenar as relações entre os fluxos
forme lição de Marx já mencionada: de capital fixo e capital circulante. A taxa de juros reduz os usos atuais
em contraposição às exigências futuras, enquanto formas de capital fic-
“As formas jurídicas em que essas transações econômicas aparecem tício vinculam os fluxos do capital monetário atual com a antecipação
como atos de vontade dos participantes, como expressões de sua vontade dos frutos futuros do trabalho”.309
comum e como contratos cuja execução pode ser imposta à parte indi-
vidual por meio do Estado não podem, como simples formas, determinar Em razão de todas estas funções, no setor da habitação, “qualquer aumento
esse conteúdo. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo é justo contanto no fluxo de crédito para a construção de moradias” é “atualmente de pouco pro-
que corresponda ao modo de produção, que lhe seja adequado.”307 veito sem um aumento paralelo no fluxo das finanças hipotecárias para facilitar
a aquisição de moradias”. No Brasil, a alienação fiduciária, não a hipoteca, é o
O direito é manejado para que se adeque ao modo de produção capitalista.
instrumento jurídico mais utilizado hoje, dando maior eficiência institucional
Este se encontra num estágio de “financeirização”, isto é, um estágio de cres-
em caso de necessidade de retomada do imóvel do mutuário inadimplente. E o
cente poder do capital financeiro, que, para alguns, inclusive, suplanta o capital
complexo de subsídios, créditos e contratos de financiamentos é essencial para
produtivo – a relação, em verdade, é dialética, já que um não existe sem o outro.
permitir o funcionamento do Programa Minha Casa, Minha Vida.
Não à toa, o aparecimento da terra como propriedade privada e como valor de
O desenvolvimento do mercado financeiro da habitação é a degenerescência
troca leva ao desenvolvimento também de um mercado de crédito, enredando
do “direito à moradia”. A expansão do capital financeiro tem uma fórmula para
a questão da habitação nos circuitos da financeirização. Exemplo histórico do
o desenvolvimento imobiliário e habitacional: a titulação da propriedade e a sua
desenvolvimento do mercado de crédito é o do início da aceitação, por parte
transformação em ativo financeiro. Os processos de titulação não levam à “se-
dos bancos, de imóveis urbanos “como garantia de empréstimos a fazendeiros
gurança da posse” dos trabalhadores, à segurança no acesso aos meios de sub-
de café”, em 1900308.
sistência do trabalhador, mas à segurança da acumulação capitalista. O desen-
volvimento do mercado imobiliário, a formação de grandes empresas de cons-
307 K. MARX, O Capital – Crítica da Economia Política. O Processo Global de Produção Capitalista, 1986, p. 256.
trução e incorporação, mediadas pelo mercado financeiro, é que é a finalidade
308 R. ROLNIK. A cidade e a Lei. Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo, 1997,
última da expansão da titulação. Esta é uma estratégia de espoliação dos ativos
p. 25, citando MELLO, Marcus André B.C. de. “O estado, o boom do século e a crise de habitação.
Rio de Janeiro e Recife (1937-1946) In GOMES, Ana Fernandes e Marco Aurélio F. (org.). “Cidade e
História: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX, Salvador, UFBA, 1992, p. 147. 309 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 374.

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territoriais que estão nas mãos dos mais pobres, um processo de acumulação por rado, no que diz respeito à habitação, pelo financiamento da dívida dos
desapossamento que se aprofunda no período neoliberal310. A transformação empreendedores, assim como dos compradores. As instituições finan-
de propriedades coletivas em títulos individuais inequívocos permite expandir ceiras controlavam tanto a oferta quanto a demanda por habitação!”312
a fronteira do capitalismo para outros territórios e aplacar crises alhures. Cria,
Ora, se o controle e a demanda por habitação são controlados por institui-
ainda, novas carências materiais ao retirar destas populações a habitação como
ções financeiras, não pode haver nada mais secundário do que um “direito à
meio de subsistência, de modo a torna-las “livres” para trabalhos produtivos no
moradia” ou “direito à moradia”.
esquema do sociometabolismo do capital. A funcionalidade dos programas de
A Relatora Especial sobre direito à moradia da ONU, em análise a partir da
habitação é plena ao se apoiar no sistema de crédito.
realidade de diversos países, apontou que
Associado à prevalência do valor de troca e da dimensão de mercadoria
das habitações, desenvolve-se um sistema de crédito para permitir que as “Políticas de habitação têm de maneira crescente se reduzido a siste-
classes trabalhadoras tenham acesso a tais imóveis - e é o próprio desenvol- mas de financiamento de habitação. O atual paradigma predominan-
vimento deste sistema de crédito impulsiona os preços para cima e implica, te das políticas de habitação sustenta que os mercados financeiros
num círculo vicioso, em mais dependência dos assalariados do sistema de de habitação, se bem concebidos e regulados, pode fornecer acesso
crédito para ter acesso à habitação em forma de propriedade. O capital mo- a uma habitação condigna para todos os segmentos da sociedade. O
netário se autorreproduz. financiamento habitacional também se tornou um pilar central dos
Como esclarece Harvey sobre o processo de aumento do crédito em geral mercados financeiros globais, fundamental para o desenvolvimento
do sector financeiro no país e a nível internacional. 63. Três princi-
que ocorreu nos EUA, “a lacuna entre o que o trabalho estava ganhando e o
pais mecanismos de financiamento de habitação (empréstimos hipo-
que ele poderia gastar foi preenchido pelo crescimento da indústria de cartões
tecários sub-prime, os subsídios da oferta e microfinanças de habi-
de crédito e aumento do endividamento. Nos EUA, em 1980 a dívida familiar tação) foram promovidos para facilitar especificamente o acesso das
agregada era em torno de 40 mil dólares (em dólares constantes), mas agora é famílias de baixa renda ao financiamento habitacional, promovendo
cerca de 130 mil dólares para cada família, incluindo hipotecas...”311 a propriedade de imóveis para habitação. Estas políticas têm sido im-
Especificamente no que diz respeito às habitações postas no mercado imobi- plementadas no contexto de uma mudança do papel do Estado de
liário, Harvey explica que fornecedor de habitação a preços acessíveis para facilitador dos mer-
cados financeiros e habitação. 64. Tendo examinado o impacto des-
“Instituições financeiras como Fannie Mae e Freddie Mac foram pres- tas políticas em várias regiões do mundo, o ponto de vista do Relator
sionadas politicamente para afrouxar os requerimentos de crédito para Especial é de que eles falharam enormemente na promoção do acesso
todos. As instituições financeiras, inundadas com crédito, começaram à moradia adequada para os pobres. As evidências indicam que as
a financiar a dívida de pessoas que não tinham renda constante. Se isso políticas de habitação com base exclusivamente em facilitar o acesso
não tivesse acontecido, então quem teria comprado todas as novas casas ao crédito para a casa própria são incompatíveis com a plena realiza-
e condomínios que os promotores de imóveis com financiamento esta- ção do direito à moradia adequada das pessoas que vivem na pobreza,
vam construindo? O problema da demanda foi temporariamente supe- deixando de fornecer soluções de habitação digna, acessíveis e bem
localizadas aos pobres. 65. Políticas de financiamento habitacional
baseadas em crédito são inerentemente discriminatória contra famí-
310 Grosso modo, esse “é um novo estágio do capitalismo que surgiu na esteira da crise estrutural da
década de 1970. Ele expressa a estratégia das classes capitalistas aliadas aos administradores de alto
escalão, especificamente no setor financeiro, de reforçar sua hegemonia e expandi-la globalmente,
conforme G. Duménil e D. Lévy, A Crise do Neoliberalismo, 2014, p. 11.
311 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 22. 312 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 22.

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lias de baixa renda, e no seu melhor aumentam a acessibilidade da 3.3.3. Experimentos de movimentos sociais no PMCMV
habitação para grupos de alta e média renda”313.
Movimentos sociais conseguiram reservar uma parcela do PMCMV para
O sociometabolismo do capital não pode oferecer mais do que discrimina- a construção de imóveis por meio de suas próprias organizações e para a re-
ção, por mais bem intencionadas que sejam as garantias jurídicas. Exemplos qualificação de imóveis. Trata-se das modalidades do PMCMV-Entidades e
trágicos disso são as políticas de habitação social desenvolvidas no Brasil, as PMCMV-Requalificação de imóveis. Ambas as modalidades são residuais se
quais, embora inicialmente destinadas às populações de baixa renda, acabam se comparadas com a modalidade principal314. Deve-se examinar mais de perto o
desvirtuando e atendendo a faixas mais altas de renda, excluindo em especial alcance destas “conquistas”.
as faixas de renda entre 0 e 3 salários mínimos, cuja situação de vulnerabilidade A primeira modalidade se destina a famílias com renda até três salários
social é agravada por múltiplos aspectos, a começar pela exclusão habitacional. mínimos e é custeada pelo Fundo de Desenvolvimento Social – FDS315. Um
Por questões como esta que a recomendação 8 do relatório em questão preco- dos benefícios conseguidos pelos movimentos foi a previsão de “recursos para a
nize a mistura dos sistemas de posse, incluindo um setor de habitação pública aquisição de terras previamente à aprovação dos projetos”316. A construção dos
não ligado a mercados liberalizados ou esquema de aluguéis regulados ou com imóveis deve ser feita por meio de entidades sem fins lucrativos, como coopera-
limitação de renda. tivas e associações.
Dito diretamente, o “direito à moradia” subordina-se às regras do sociome- Um dos principais efeitos desta modalidade do programa é a burocratização
tabolismo do capital, e apenas se realiza na medida em que este permite. Assim, dos movimentos sociais, que passam a despender grandes energias para cons-
tal direito, sancionado pelo Estado, não passa de retórica vazia à luz do desen- truir imóveis, tendo que passar por todas as etapas formais normalmente rea-
volvimento real do capitalismo, em que as “moradias” são construídas para se- lizadas profissionalmente pelas construtoras. No contexto geral já explicitado
rem mercadorias, constantemente tratadas como um “investimento” até mesmo acima, em que avanços urbanísticos demandariam luta social, aparece como
pelas populações de baixa renda. Mais amplamente, no que tange à regulação muito conveniente ao mercado imobiliário que os movimentos sociais estejam
urbanística e à regulação do mercado de terra, este processo de financeirização dedicados a esta produção habitacional.
transfere drasticamente o poder de decisão para os agentes econômicos, em Como observou ROLNIK,
detrimento dos agentes estatais e dos processos democráticos e participativos de
decisão. Especificamente no que tange à habitação, esta passa a aparecer cada “embora em pequena escala e com grandes dificuldades para operar um
vez mais como um ativo financeiro, fragilizando políticas sociais. programa desenhado para construtoras, movimentos sociais obtiveram
Para concluir este tópico: a questão da habitação depende da propriedade pri- ganhos relevantes com o MCMV no sentido de atender às suas bases,
vada no contexto do sociometabolismo do capital. A acumulação por desposses- compostas principalmente por famílias em busca de uma moradia...
Assumindo uma parcela pouco significativa das moradias produzidas e
são e o sistema de crédito são alicerces básicos deste sistema. No Brasil, dito nos
utilizando, sobretudo, sua representação nos conselhos, os movimentos
dias de hoje “país em desenvolvimento”, a insuficiência do sistema de crédito pri-
passaram a integrar o jogo do controle da distribuição dos ativos polí-
vado leva à centralidade do Estado na administração do crédito para programas
habitacionais. Tal é feito por meio do banco público Caixa Econômica Federal.
A espoliação necessária à expansão do capital precisa do sistema de crédito – e
pouco importa se ele é gerido pelo Estado ou por agentes financeiros privados. 314 Como já apontado neste trabalho, R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 301, aponta que “Desde
o lançamento do programa, MCMV-Entidades e PNH-Rural representam, juntos, 1% do total de
unidades e recursos do MCMV”.
313 Tradução livre do trecho de ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Relatório da Relatora
315 Este fundo foi instituído pela lei n. 8.677/1993 e regulamentado pelo Decreto 1081/1994.
Especial para o Direito à Moradia Adequada, 10 ago. 2012, A/67/286, disponível em http://www.
ohchr.org/Documents/Issues/Housing /A-67-286.pdf, acesso em 25 mar. 2016. 316 N. BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 3, 2014, p. 122

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ticos do governo, juntamente com lideranças e grupos partidários que Estado, como se vê com a abertura de inquérito civil pelo Ministério Público
compõem sua base”317 do Estado de São Paulo320, pelo mesmo argumento, fundando o entendimento
em suposta afronta ao princípio da isonomia. A questão virou objeto da disputa
Como não há margem de lucro na construção destes imóveis, a qualidade palaciana em 2016: a presidente Dilma Rousseff, às vésperas do seu afastamento
dos mesmos tende a ser maior do que as do PMCMV-Construtoras. Um dos da presidência, editou portaria autorizando a Caixa Econômica Federal a con-
imóveis construídos pelo MTST em Taboão da Serra explicita isto: os aparta- tratar 11.250 unidades. Um dos primeiros atos do governo interino foi revogar
mentos têm até 63 metros quadrados (3 quartos), enquanto os da modalidade a portaria, sob argumento de “liberar amarras ideológicas e a burocracia que
construtoras em regra o mínimo de 39,6 metros quadrados (na fase 1 do progra- dificultam a execução das obras”321. O governo interino se revela mais afeito à
ma a área mínima era de 42 metros quadrados). repressão do que à cooptação.
Fato é que, no desenho geral da política pública, os movimentos sociais A outra proposta emplacada por movimentos sociais foi o PMCMV-Requali-
aparecem, por um lado, como meros concorrentes das construtoras, dispu- ficação de imóveis urbanos. Deve-se observar que já o art. 1º da Lei 11.977/2009
tando com elas recursos, terrenos e material de construção; por outro, como previa que “O Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV tem por finali-
meros gestores de recursos, uma vez que a construção em si, embora também dade criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades
possa ser feita pelo sistema de mutirão, não raro é realizada por meio da con- habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de
tratação... de uma construtora! habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00”, preven-
Os movimentos sociais, assim, conquistam o direito de construir suas pró- do ainda a “aquisição de imóveis conjugada com a execução de obras e serviços
prias moradias por meio de construtoras que contratam. Certamente, não pare- voltados à recuperação e ocupação para fins habitacionais, admitida ainda a
ce ser o tipo de conquista que vá emancipar a classe trabalhadora. Mas é o tipo execução de obras e serviços necessários à modificação de uso”. Tal modalidade
de vitória jurídica que se reserva às lutas por direitos: no limite, o movimento do programa por si só se aproximaria de finalidades urbanísticas e poderia ser
social se torna um aparelho gestor da falta de moradias318. O movimento social levada a cabo em conjunto com outros instrumentos para recuperar imóveis
é capturado pelo direito, mais ou menos como o sindicato se torna aparelho urbanos abandonados. Porém, ela praticamente não saiu do papel.
ideológico do Estado, “um aparelho que ‘gere’ a classe operária: planejamento, Em 2012,
eficiência, ordem e subordinação, são as palavras-chave da tecnoestrutura”. A
luta passa a se dar cada vez mais no terreno jurídico, na arena das políticas “em reunião realizada em agosto de 2012 em São Paulo, organizada pelo
públicas – as armas da luta são dadas pelo direito e pela política. As energias Sindicato de Corretores de Imóveis (CRECISP), com a participação de
do movimento são gastas para construir moradias. Não se pode mais dizer que sindicatos de engenheiros e arquitetos, além de numerosos movimentos
haja movimento de transformação social radical se a luta é brecada neste ponto. populares por moradia, [criticou-se a] falta de mecanismos institucionais
Mesmo sendo este um eficaz instrumento de captura e cooptação da classe e de incentivos para financiamento de reformas de moradias subutiliza-
das e demandam que o PMCMV incorpore a ‘inclusão e melhoria de
trabalhadora, o combate ideológico de direita à modalidade MCMV-Entidades
imóveis existentes’”322
é realizado pela via imprensa, como se verifica na Folha de São Paulo, que
acusou as entidades de “furar a fila” do atendimento habitacional319; e pelo
320 http://www.mpsp.mp.br/portal/pls/portal/!PORTAL.wwpob_page.show?_docname=2553127.PD F,
317 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 309. acesso em 06 jan. 2016.
318 B. EDELMAN, A legalização da classe operária, 2016, p. 123. 321 http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1772207-ministro-revoga-construcao-de-11250-uni
dades-do-minha-casa-minha-vida.shtml, acesso em 27 mai. 2016.
319 A urbanista Raquel Rolnik escreveu texto em resposta ao editorial da Folha, http://www1.folha.uol.
com.br/ colunas/raquelrolnik /2014/12/1555744-onde-mora-a-ideologia.shtml, acesso em 06 jan. 2016, 322 M. R. LOUREIRO et. al., Democracia, Arenas Decisórias e Políticas Públicas: o Programa Minha Casa
em texto intitulado “Onde Mora a Ideologia?”. Minha Vida, 2013, p. 27.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Mas esta continuou sendo uma das principais demandas não atendidas pelo direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou
programa. Deve-se observar que, na ausência de instrumentos urbanísticos promessa de venda de imóveis; IV - alienação fiduciária de coisa imóvel.”
de repressão ao uso especulativo destes imóveis degradados, o único meio dis-
ponível ao poder público seria a desapropriação dos mesmos para destinação A alienação fiduciária passou a ser mais comumente usada porque dá uma
a habitação social. Somada à requalificação, esta modalidade do programa é vantagem jurídico-institucional ao agente financeiro: a propriedade, juridica-
completamente proibitiva. Tal modalidade seria melhor aproveitada se os Mu- mente, é deste, não da parte tomadora do empréstimo. Isto significa que, em
nicípios implementassem o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios caso de inadimplência, a propriedade “se consolida” nas mãos do emprestador,
e o IPTU progressivo. Mas isto seria possível apenas se a finalidade fosse aplacar que pode retomá-la rapidamente com uma ordem judicial ou até mesmo pela
as necessidades habitacionais dos trabalhadores, ao invés de promover o abs- via extrajudicial, junto ao cartório de imóveis324. Ela difere da garantia hipote-
trato “direito à moradia”. Mesmo a busca por aplacar “exclusões sociais” pode cária, que exige uma demanda judicial para apurar o saldo devedor, podendo
ser funcional à continuidade da reprodução do capitalismo em dado momento. levar anos para o imóvel ir a hasta pública. Após, com a arrematação do bem, o
O efeito principal das propostas que buscam aplacar estas “exclusões sociais” é adquirente deve socorrer-se do judiciário para desocupar o bem.
aceitar o terreno da luta jurídica, os limites dos sistemas jurídicos e políticos. O A alienação fiduciária agiliza o processo de despojamento. Esta é a sua as-
que fica claro com os experimentos aqui mencionados é que a única participa- túcia: fazer aparecer juridicamente a necessidade premente do sociometabolis-
ção social possível é a dos capitalistas, das personificações do capital323. mo do capital, a necessidade de uma forma mais eficiente de desapossamento.
Marx, falando do dinheiro emprestado pelo capitalista prestamista ao capitalis-
ta industrial diz:
3.4. Alienação fiduciária como instrumento jurídico de
“O primeiro dispêndio, que transfere o capital das mãos do prestamista
controle fundiário para as do mutuário, é uma transação jurídica, que nada tem a ver com
o processo real de reprodução, mas apenas o encaminha. O reembolso,
O acesso ao financiamento imobiliário tem sido feito principalmente por que transfere novamente o capital refluído das mãos do mutuário para
meio de alienação fiduciária do imóvel. O não pagamento das parcelas do as do prestamista, é uma segunda transação jurídica, o complemento da
financiamento ocasiona a consolidação da propriedade para o agente finan- primeira; uma encaminha o processo real, a outra é um ato posterior a
ciador. A alienação fiduciária é definida como sendo “o negócio jurídico pelo esse processo. Ponto de partida e ponto de retorno, entrega a restituição
qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transfe- do capital emprestado, aparecem assim como movimentos arbitrários,
rência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel” (art. mediados por transações jurídicas e que ocorrem antese depois do movi-
22, Lei 9.514/97). mento real do capital, e que nada têm a ver com o próprio. Para este, se-
Observe-se que a Lei 9.514/97 dispõe que ria indiferente se o capital pertencesse de antemão ao capitalista indus-
trial e, por isso simplesmente refluísse para ele como sua propriedade.”
“Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão
ser garantidas por: I - hipoteca; II - cessão fiduciária de direitos credi- Pode-se dizer o mesmo do desapossamento jurídico: é indiferente se a pro-
tórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis; III - caução de priedade pertence de antemão ao mutuário ou ao mutuante. Ao capital interes-
sa que o processo possa se dar da maneira mais célere possível e foi isso que a
introdução da alienação fiduciária pretendeu promover no Brasil.
323 Isto está na própria genética do programa, como expõe R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 301:
“o ‘pacote’ foi elaborado pelo governo em diálogo direto com os empresários e investidores envolvidos
e, inicialmente, tinha como objetivo salvar as empresas da débâcle e, ao mesmo tempo, funcionar como
medida contracíclica para garantir empregos e crescimento num cenário internacional desfavorável”. 324 Conforme artigos 26 e 27 da Lei 9.514/97.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Isto deixa especialmente vulneráveis os beneficiários da faixa 1, que tendem contas de água, luz e gás327. Deve-se, ainda, pensar nos gastos com transportes
a ter rendimentos mais instáveis e mais influenciados pela inflação. Garantias que pesarão sobre estes trabalhadores, tendo em vista a localização periférica
de refinanciamento da dívida em caso de comprovada dificuldade financeira das moradias, distantes de locais de trabalho.
sequer foram previstas. No mais, como já apontado, o programa deixou de pre- Em termos históricos, assiste-se a “mais do mesmo”, conforme se lê na crítica
ver mecanismos para evitar compra e venda especulativa dos imóveis, podendo de L. Kowarick aos programas habitacionais da década de 1970:
o comprador passar estes ao mercado sem qualquer restrição antes mesmo de
ser finalizado o financiamento (observe-se que os prazos de financiamento vão “as agências governamentais têm empregado vultuosos recursos no fi-
nanciamento das habitações. Contudo, a imensa parcela dos montantes
de 10 a 30 anos325; na verdade, a única restrição é a impossibilidade pessoal de
empregados segue uma lógica de financiamento ditada pela lei do lucro,
ser beneficiado novamente pelo programa).
destinando-se aos estratos de renda que podem pagar o preço de merca-
Num contexto de mercado, a própria previsão contratual entre agente fi- do da construção habitacional”.
nanciador e mutuário vedando a alienação do imóvel antes do fim do financia-
Até mesmo os programas que se destinam para a assim chamada deman-
mento ou dentro de determinado prazo é altamente problemática, já que acaba
da de ‘interesse social’, não só são quantitativamente pouco expressivos,
gerando um “mercado ilegal” destes imóveis. Isto tem ocorrido há tempos em
como também, frequentemente, as camadas que deveriam ser beneficia-
São Paulo, onde tanto COHABs (companhias municipais de habitação) como das não têm condições de amortizar as prestações previstas pelas fanta-
CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado siosas soluções oficiais. O resultado é que as habitações ou ficam vazias
de São Paulo) movem reiteradamente ações judiciais para retomar imóveis de ou acabam sendo transferidas para os grupos de renda mais elevada en-
pessoas que os adquirem via “contratos de gaveta”, indo contra as regras contra- quanto que as pessoas a quem se destinavam os programas subsidiados
tuais que dificultam a alienação do imóvel a terceiros (a CDHU impede a venda pelo poder público acabam voltando às suas condições originais de mo-
nos primeiros 10 anos de financiamento e exige sua anuência; a COHAB-São radia, que, aliás, são aquelas que a imensa parcela da classe trabalhadora
Paulo exige autorização formal para a venda do imóvel). precisa adotar para continuar se reproduzindo nas cidades”328.
Uma das causas da inadimplência diz com o comprometimento da renda das
pessoas de baixa renda com o crédito imobiliário e com os gastos com o imóvel. Certamente, o PMCMV poderia levar à redução do valor da força de tra-
Mesmo que o valor que a faixa 1 de renda tenha que pagar seja de apenas 5% balho, por meio da realização do meio de subsistência habitação. Porém, a efe-
da renda – o que não é nada desprezível para quem está nos estratos mais baixos tivação do programa deixa clara a inviabilidade desta realização. A necessida-
desta faixa de renda326 – outro aspecto que pesa para estas pessoas é a neces- de habitação não pode efetivar-se para todos os trabalhadores sem alterações
sidade de arcar com novos gastos decorrentes da moradia própria, em especial estruturais e o PMCMV é mais um mecanismo que supostamente combate o
as taxas condominiais e outras despesas de manutenção do imóvel. Segundo “déficit habitacional”, quando, na verdade, apenas viabiliza a reprodução do
Raquel Rolnik, a prestação pode chegar a representar 17% da renda na faixa 1 sociometabolismo do capital de acordo com o específico contexto em que este
e, “quando se adiciona o valor da taxa condominial, o comprometimento médio sem encontra. É dizer, o programa consolida a hegemonia da propriedade pri-
já dá um primeiro salto, passando para quase 40% da renda nessa faixa”, sendo vada (do “sonho da casa própria”) e o faz valendo-se da alienação fiduciária.
que o comprometimento pode chegar a 77% da renda quando se incluem as
327 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 314-315. Em outro texto, R. ROLNIK, http://raquelrolnik.
wordpress.com/2012/09/19/minha-casa-minha-divida/, acesso em 07 dez. 2014, afirma que “Uma
família que compromete parte considerável de sua renda no pagamento de um imóvel corre o risco
325 Na faixa 1, o prazo é de 10 anos. Nas demais faixas, o prazo pode ser de até 30 anos. de ter que rebaixar suas condições de vida – alimentação, saúde e educação, por exemplo – para
conseguir pagar as prestações”.
326 Como se sabe, famílias de menor renda concentram seus gastos nos itens de consumo mais essenciais
à subsistência. 328 L. KOWARICK, A Espoliação Urbana, 1979, p. 60.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Aquela hegemonia decorre das necessidades de expansão do capitalismo, de de mercados). Este modo de inclusão social visa a preservar e ampliar os espa-
expansão global da propriedade privada (e de sua trocabilidade) para permitir o ços de reprodução do capital.
mais livre trânsito financeiro. A alienação fiduciária garante a retomada rápida Assim, no âmbito do PMCMV, identifica-se claramente a mercantilização
do imóvel pelo agente financeiro, que logo poderá comercializá-lo novamente e da questão habitacional. Um serviço público de acesso universal à habitação
continuar a extração de juro sobre o capital. não estava em questão e não poderia estar – o que interessa primordialmente à
política pública é otimizar a reprodução do capital. Mediante a comprovação da
ausência de recursos para pagar por uma habitação, se acessa o crédito e o sub-
3.5 Algumas conclusões sobre a política habitacional da sídio estatal focalizado. Os subsídios aparecem aí com caráter compensatório,
“casa própria” como resposta a carências pela via da inclusão dos pobres no mercado.
Apontou-se que uma das funções do Estado, para a doutrina neoliberal, é a
Deve ficar claro que, no que tange ao direito à moradia, a política pública de criação de mercados nos casos em que tais mercados inexistem. No que se
realmente existente no Brasil é, na verdade, uma política voltada ao estímulo refere à habitação para a população de baixa renda, o Estado brasileiro, com o
e expansão do capitalismo local, da construção civil e do mercado imobiliário. Programa Minha Casa, Minha Vida, desenvolveu justamente um programa de
O Programa Minha Casa, Minha Vida apareceu como uma das propostas para criação de mercado para esta parcela da população, buscando a sua inserção nos
enfrentar a crise internacional e teve como efeito prático enterrar de vez as dis- circuitos imobiliários formais, consolidando o projeto dos governos petistas de
cussões sobre um Plano Nacional de Habitação. Como aponta Rolnik, inclusão social pelo consumo330.
Assim, não se está diante de um programa cuja finalidade seja a efetivação
“De pacote de salvamento de incorporadoras financeirizadas, o MCMV
universal de um direito social ou que se articule num conjunto de políticas
transformou-se na política habitacional do país, baseada no modelo
único de promoção da casa própria, acessada via mercado e crédito hi- típicas de Welfare State. Ao contrário, o programa privilegia o aspecto macroe-
potecário. Abortou-se, assim, a incipiente construção de uma política conômico e o desenvolvimento capitalista (com as marcas do desenvolvimento
habitacional diversificada, aderente às especificidades locais e sob con- periférico), consagrando a liberdade de circulação do capital como marca deste
trole social, aposta dos movimentos sociais e dos militantes da reforma desenvolvimento. Por outro lado, desestimula intervenções urbanas/urbanísti-
urbana no início do governo Lula”329. cas, consagrando a propriedade privada e a sua livre alienação.
O PMCMV reproduz a segregação espacial das cidades brasileiras, dando
O programa tem diversos problemas em seus arranjos institucionais quan- eficiência capitalista ao modo tradicional de expansão destas cidades e de es-
do se trata de articular política urbana e fundiária e política de habitação. peculação imobiliária – ocupação de periferias cada vez mais distantes, sem
Mas não se pode dizer que sejam problemas despropositados. Ao invés disso, infraestrutura, pelos trabalhadores de menor renda. O papel do direito e da
trata-se de consequência da implementação de um modelo de política habi- política é marcante neste processo, em especial pelos espaços de liberdade de
tacional de estímulo ao mercado, em detrimento de um modelo de planeja-
mento urbanístico-habitacional. Esta prevalência se amolda bem ao papel do
330 A inclusão social pelo consumo foi a marca do governo Lula. Uma interpretação sobre as possíveis
Estado no período neoliberal, ao qual cabe criar mercados onde não existem consequências deste modo de inclusão social é dada por G. BOULOS, De que Lado Você Está, 2015, p.
e realizar a inclusão social de maneira pontual, por meio de compensações 13, discutindo o modelo conciliatório e despolitizador do governo Lula, observa que “Uma ascensão
sociais e da inclusão dos pobres no mercado de consumo (criação e ampliação social pelo consumo cria consumidores, que pensam com a cabeça de consumidores. O discurso
individualista e meritocrático, que abomina a solidariedade, não é nenhum intruso aí. Por isso, não
surpreende tanto assim o forte discurso antipetista entre beneficiários do ProUni, diagnosticado
durante a campanha de 2014. A estratégia da conciliação foi despolitizadora e bloqueou a criação
de uma base social duradoura de defesa do projeto”. Neste sentido, uma ascensão social pelo
329 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 309. reconhecimento de direitos poderia ter criado cidadãos, mas não foi este o caso do período lulo-

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

mercado - espaços em que o direito incide apenas como regulador de processo, na propriedade privada e na renda patrimonial, num tipo de atuação desconec-
como esqueleto de políticas públicas de incentivo a mercados e como meio de tada da cartilha vigente sobre o papel do Estado.
contenção de propostas de planejamento urbanístico e de reivindicações de De qualquer modo, a concepção jurídica de direito à moradia não poderia
movimentos populares, as quais podem até ser garantidas em normas positivas, ser implementada universalmente no contexto da reprodução sociometabólica
mas que só podem ser efetivadas na medida em que permitam a reprodução do capital, em que as garantias jurídicas de direitos sociais devem servir, no
do sistema sociometabólico e o controle social. Ademais, o PMCMV é peça máximo, à subsistência básica dos trabalhadores mais pauperizados, é dizer, à
central no projeto petista de inclusão via mercado, consolidando o papel dos manutenção da separação entre trabalhador e meio de subsistência.
indivíduos como sujeitos de direito livres e proprietários não só de sua força O controle exclusivo do capitalismo, via Estado, sobre o conjunto dos fru-
de trabalho, mas de um bem que pode ser dado em garantia num mercado de tos do trabalho, determina a forma específica da política pública de habitação
crédito desenvolvido. vigente. Outras maneiras de realizar as necessidades habitacionais das pessoas
A conclusão inevitável é que o PMCMV não necessariamente implica numa e de evitar o uso especulativo da terra poderiam ser levadas adiante por meio
melhoria dos níveis de subsistência da população de baixa renda. Administrar de conquistas dos trabalhadores nos marcos do sistema sociometabólico do ca-
um financiamento de pelo menos dez anos, residindo em local periférico, em pital – mas as discussões sobre elas só podem se dar conforme estes marcos, no
geral sem infraestrutura social básica, deve levar ao agravamento da situação terreno da legalidade e das políticas públicas. No mesmo sentido em que obser-
individual. O desenvolvimento das regiões periféricas da cidade onde se encon- vou B. Edelman sobre os sindicatos, pode-se dizer que, também no campo da
tram estes imóveis, com a expansão de serviços sociais públicos, não será ime- habitação social, “a burguesia tentou – e, de certo modo conseguiu – negar às
diato. Os mecanismos de mercado continuarão a excluir a população de baixa massas qualquer palavra e qualquer existência fora da legalidade”331. Apenas a
renda, em especial quando se consolidar um mercado destes imóveis destinados superação deste sistema e do próprio direito à moradia permitiria falar em aces-
aos trabalhadores mais pauperizados. so do trabalhador à habitação sem a mediação da venda da força de trabalho.
Tanto o Projeto Moradia, que embasaria o Plano Nacional de Habitação,
como o PMCMV, mobilizam a linguagem da realização do direito à moradia
para a população de baixa renda. São políticas que seguem modelos com dife-
renças marcantes – o modelo do planejamento urbanístico-habitacional e o mo-
delo do estímulo ao mercado. A disputa entre aqueles modelos se dá nos marcos
do sistema sociometabólico do capital e, por isso, ambas podem mobilizar a lin-
guagem do direito à moradia. A diferença é que, para o modelo de estímulo ao
mercado, alinhado ao modelo capitalista neoliberal, os direitos sociais, dentre
eles o direito à moradia, devem ser tratados como instrumentos de controle do
acesso da classe trabalhadora aos meios de subsistência elementares; ou como
bens a serem distribuídos por meio de um mercado capitalista. O PMCMV
justamente permite o acesso à habitação via mercado e mantém o trabalhador
vinculado a um financiamento garantido por alienação fiduciária. Já o modelo
de planejamento urbanístico-habitacional exigiria profunda intervenção estatal

petista. De qualquer modo, esta é uma querela ainda interna à superestrutura política, não poderá
oferecer mais que “cidadania” e garantias de “direitos”. 331 B. EDELMAN, A legalização da classe operária, 2016, p. 111.

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Capítulo 4.
Direito à Moradia para Além
da Propriedade Privada?

“A barreira que a propriedade fundiária coloca entre o


trabalho e a terra é socialmente necessária para a per-
petuação do capitalismo”
(D. HARVEY, Os Limites do Capital)

A propriedade privada, na forma específica que ela assume no sistema capi-


talista de produção, determina o despojamento dos trabalhadores deste meio de
subsistência básico que é a habitação. Apesar de fisicamente poder haver uma
quantidade de imóveis suficiente para todos, as mediações jurídicas ajudam a
sustentar a escassez de imóveis para habitação. No meio destas mediações jurí-
dicas não se encontra apenas a propriedade privada e as políticas de aquisição
de casa própria. Também se encontra a renda da terra urbana e o aluguel, bem
como políticas públicas de proteção da posse, de acesso à moradia via “loca-
ções” públicas e de abrigamento de pessoas em situação de rua. São estas políti-
cas de acesso à habitação que vão para além da promoção da “casa própria” que
são abordadas a seguir.

4.1. Crítica da noção jurídica de segurança da posse


O acesso à habitação pode se dar de diversos modos, especificamente por
meio de apossamento, aluguel ou aquisição da propriedade privada de um
bem imóvel. Lúcio Kowarick já descrevia o variado fenômeno na década de
1970 no Brasil:

“É o aluguel de um cômodo de cortiço localizado em áreas deteriora-


das ou de uma casa de mínimas dimensões nas ‘periferias’ distantes da
cidade, ambas as soluções implicando em condições de habitabilidade
extremamente precárias e, no mais das vezes, em gastos de aluguéis que

167
Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

comprimem ainda mais o já minguado orçamento de consumo das fa- conceito amparado na teoria dos direitos humanos, a segurança da posse parece
mílias trabalhadoras. A solução de sobrevivência mais econômica, mas ter muito a oferecer aos mais pobres. Mas, quando se busca conferir proteção
também mais drástica, é a favela, para onde... são drenados os patamares jurídica à posse, a especificidade desta “proteção” deve ser explicitada: ela se
mais pobres da classe trabalhadora”332 desenvolve apenas nos limites permitidos pelo sociometabolismo do capital.
Não à toa, o instituto vem sendo promovido há décadas pelo Banco Mundial,
O que determina a prevalência deste ou daquele modo de acesso à habita-
pela FAO (Organização para Alimentação e Agricultura da ONU) e por outras
ção é o nível de desenvolvimento do capitalismo e de abrangência das relações
agências internacionais e a sua efetivação levada a cabo nestas instâncias está
sociais baseadas na propriedade privada das coisas. Ao se discutir uma política
mais relacionada às necessidades de expansão sustentada do sociometabolismo
pública habitacional para a população de baixa renda, é comum se apontar que
do capital do que à realização de necessidades habitacionais.
a política pública não pode ser desenhada com base apenas em financiamento
Percebe-se que há diferenças marcantes no enfoque do conceito usado pelo
habitacional, devendo prever formas de acesso variadas e proteção da posse.
Banco Mundial e pela Relatora Especial para o Direito à Moradia da ONU.
Isto porque a população de baixa renda não pode fazer frente ao pagamento
Para Obeng-Odoom e Stiwell, agências como o Banco Mundial tratam a segu-
de parcelas de financiamentos habitacionais. Aliás, não raro não podem nem
rança da posse como uma panaceia. Segundo os autores, evidências empíricas
mesmo fazer frente ao pagamento de aluguéis. Daí a conclusão de que o Estado
mostram que a posse segura da terra é um significante elemento para contribuir
deveria diversificar sua política habitacional e conferir proteção não só à pro-
para o crescimento econômico e para a redução da pobreza335. Ocorre que o
priedade, mas também à posse.
Banco Mundial, já em 1989, equiparava a segurança da posse à titulação da
A relatora da ONU para o direito à Moradia, Raquel Rolnik, se debruçou
terra336, reduzindo drasticamente o seu alcance. Nesta perspectiva:
sobre esta questão e buscou consolidar a noção de que habitar não tem neces-
sariamente relação com deter a propriedade privada de um bem imóvel. Para a “a posse da terra informal e costumeira é tida como transitória e efême-
relatora, a solução para a questão do acesso à moradia digna deve ir para além ra, normalmente tendendo para um modelo ocidental de posse formal
da proteção e promoção exclusivista do direito de propriedade, do acesso à “casa da terra. Consistente com essa postura, o Banco Mundial repassou a
própria”. Daí recorrer ao instituto de “segurança da posse” e recomendar a cria- quantidade considerável de dinheiro e assistência técnica para apoio
ção de parâmetros legais e institucionais para assegurar a segurança da posse oferecido muitos países da África para obter segurança da posse da terra
para várias formas de posse, incluindo a decorrente de locações333. O que se por meio de titulação... Assim, para o Banco, a segurança da posse acon-
busca, no fundo, é mais proteção jurídica à posse. tece quando a titulação e a formalização curam o que tem sido referido
como ‘primitivismo cultural’ nas comunidades onde a posse “informal”
Este conceito de segurança da posse já era enunciado em 1976 na Conferên-
e comunitária prevalecem”337.
cia da ONU sobre assentamentos humanos – Habitat I, que ocorreu em Van-
couver, Canadá, especificamente no Plano de Ação de Vancouver334. Enquanto
Section C. “Shelter, infrastructure and services” contains Recommendation C.8 “Construction by
the informal sector,” which calls for “ensuring security of land tenure for unplanned settlements,
332 L. KOWARICK, A espoliação Urbana, 1979, pp. 60-61.
where appropriate, or, if necessary, providing for relocation and resettlement with opportunity for
333 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Relatório da Relatora Especial para o Direito à Moradia employment” (Priority (i)).”
Adequada, 10 ago. 2012, A/67/286, disponível em http://www.ohchr.org/Documents /Issues/Housing
335 Vide F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013.
/A-67-286.pdf, acesso em 25 mar. 2016.
336 Neste sentido, F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development
334 J. SCHELA, Security of Tenure through the Habitat Agenda, 1976–2016, P. 2, observa que “A seção C do
discourse, 2013, mencionam o relatório “Land Tenure for Growth and Poverty Reduction” do Banco
Plano de Ação de Vancouver (PAV), “Moradia, infraestrutura e serviços”, contém a Recomendação
Mundial, onde se equipara segurança da posse com direitos de propriedade.
C.8 ‘Construção pelo setor informal’, que conclama todos a ‘assegurar a segurança da posse da terra
para assentamentos não planejados, se for caso disso, ou, se necessário, fornecendo para o internamento 337 Tradução livre de F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development
e reassentamento com oportunidade de emprego (Prioridade (i))”, tradução livre de “The VAP’s discourse, 2013, p. 318.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Esta equiparação entre segurança da posse e titulação visa, no limite, a es- mento para a concessão de empréstimos a esta parcela da população, esta pode-
timular o sistema de crédito e o desenvolvimento capitalista: se a posse do bem ria deixar a condição de pobreza. Diz o economista peruano que
imóvel é formalmente reconhecida pelo direito, é respaldada por um título de
propriedade, então o imóvel pode ser oferecido como garantia para um emprés- “As casas dos pobres estão construídas sobre lotes com direitos de pro-
priedade inadequadamente definidos, a empresas não estão constituídas
timo, estimulando o desenvolvimento do mercado de crédito.
com obrigações claras e as indústrias se ocultam onde os financistas e
Um dos expoentes da ideia da titulação das terras dos pobres é o economista
investidores não podem vê-las. Sem direitos adequadamente documen-
peruano Hernando de Soto338, para quem a pobreza estaria relacionada à difi- tados, essas posses resultam em ativos difíceis de converter em capital,
culdade dos mais pobres de acessar os meios adequados para “enriquecer”. A não podem ser comercializadas fora dos estreitos círculos locais onde
promoção de soluções microempresariais e do genuíno empreendedorismo local as pessoas mantêm confiança mútua, não servem de garantia para um
seriam as chaves para lidar com a pobreza urbana. De fato, Hernando de Soto empréstimo nem como participação em um investimento”342.
se tornou “internacionalmente conhecido ao defender que essa enorme popula-
ção de ex-camponeses e trabalhadores marginalizados é uma colmeia frenética A titulação da terra facilitaria o acesso ao crédito porque os mais pobres,
de protocapitalistas cobiçosos de direitos formais de propriedades e pelo espa- então, teriam como oferecer seus imóveis como garantias às agências financei-
ço competitivo não regulamentado”339. As suas ideias liberais para a superação ras. Transformar a terra “irregular” em terra juridicamente regular seria a via
da pobreza consistiam na seguinte receita: “tirem do caminho o Estado (e os segura para o desenvolvimento capitalista343. É dizer, para o desenvolvimento
sindicatos do setor formal), acrescentem microcrédito para microempresários do sistema capitalista de produção importa menos a questão do acesso universal
e títulos de posse da terra para invasores, depois deixem o mercado seguir seu à habitação do que os meios para buscar atingir esta finalidade – e os meios
curso para produzir a transubstanciação da pobreza em capital” 340. Isto levou são basicamente o estímulo econômico, o que se consegue conferindo titula-
“alguns burocratas de instituições financeiras de fomento a redefinir as favelas ção jurídica aos imóveis, dando às pessoas a liberdade para participar de um
como ‘sistemas de gerenciamento urbano estratégico de baixa renda’”341. mercado imobiliário desenvolvido, do sistema de crédito e dos mecanismos de
Em especial, o acesso ao crédito seria uma importante alavanca para superar acumulação por espoliação.
as dificuldades para “enriquecer”. Transformando a terra irregular em instru- A possibilidade de tornar a terra num ativo financeiro seria a alavanca para
a ampliação do acesso ao crédito. E o acesso ao crédito é uma das portas para
a “liberdade, igualdade e Bentham”, para o desenvolvimento capitalista local e
338 Entre suas principais obras está H. DE SOTO, El Otro Sendero – La Revolución Informal, 1986, para sua inserção no capitalismo global. Uma condição que acelera este proces-
na qual o autor adota de uma perspectiva liberal e busca desenvolver propostas para os problemas so é que a terra esteja “cativa”, que não esteja livre: “Se a terra estivesse [...] à
socioeconômicos dos países subdesenvolvidos. Sintomaticamente, dada a íntima relação entre a
superestrutura jurídica e a base econômica, prega que o desenvolvimento de instituições jurídicas
livre disposição de todos, então estaria faltando um elemento principal para a
confiáveis e a aderência da economia informal ao direito é a melhor via para o desenvolvimento. formação do capital. [...] Assim, a ‘produção’ do trabalho não remunerado de
Assim, as principais soluções que oferece são a juridicização das relações econômicas informais já outra pessoa se tornaria impossível e isso poria um fim definitivo à produção
existentes entre os mais pobres. Direitos de propriedade e responsabilidade e exigibilidade contratual
seriam o caminho para o desenvolvimento do capitalismo localmente.
339 M. DAVIS, Planeta Favela, 2006, p. 179, o trecho continua citando KRUECKEBERG, Donald,
The Lessos of Jonh Locke or Hernando de Soto: What if Your Dreams Come True, In Housing Policy
342 H. DE SOTO, El Misterio Del Capital, Ciudad de Mexico, Diana, 2001, p. 32, apud R. ROLNIK,
Debate, v. 15, n. 1, 2004, p. 2: “’Marx provavelmente ficaria chocado se descobrisse como, nos países
Guerra dos Lugares, 2015, p. 195.
em desenvolvimento, parte tão grande da massa transbordante não consiste de proletários legais
oprimidos, mas de pequenos empresários extralegais oprimidos”. 343 Segundo F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development
discourse, 2013, p. 324, H. De Soto contrasta a escassez de sistemas de informações e de posse
340 M. DAVIS, Planeta Favela, 2006, p. 180.
da terra nos países desenvolvidos com a situação dos países desenvolvidos, onde cada parcela da
341 Idem. terra está formalmente documentada.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

capitalista”344. Além disso, “quando o capital encontra situações em que a pro- A tese por trás da formalização jurídica da terra é que ela levará à forma-
priedade da terra não existe, ele deve dar passos ativos para criá-la e desse modo lização de outras esferas da vida. Mas estes programas não tiveram o sucesso
garantir a produção do trabalho assalariado”345. esperado pelo Banco Mundial e por seus entusiastas348, embora continue a ser
O que deve ficar claro é o papel de alicerce estrutural da posse e da pro- implementado e haja avaliações no sentido de que ainda são insuficientes349. O
priedade fundiárias, tanto no surgimento do capitalismo, quanto nos processos principal legado dos programas de titulação, certamente, é ter criado condições
atuais de expansão e desenvolvimento – “a necessidade de negar o acesso do para processos futuros de expansão dos mercados imobiliários e de crédito local,
trabalhador à terra como meio de produção não diminui de modo algum com interligando estes países subdesenvolvidos ao circuito capitalista global. A sua
o avanço do capitalismo”346. O sistema jurídico corresponde aos imperativos de principal utilidade é permitir a aquisição jurídica dos ativos territoriais locais.
reprodução e expansão do capital, calibrando o direito à moradia para que não Este é um dos pilares da financeirização global e da integração geográfica destes
atrapalhe aquele avanço. assentamentos informais ao sistema capitalista mundial.
A partir dos anos 80, o Banco Mundial passa a promover políticas mas- Apesar de o capitalismo ser extremamente maleável e mutável, adaptando
sivas de regularização fundiária na África e América Latina, buscando a re- diferenças a sua forma própria de reprodução, a sua estrutura básica exige a
gularização jurídica de assentamentos informais com a concessão de títulos lógica da equivalência, a qual, por seu turno, exige um mínimo de estabilidade
de propriedade individuais a cada imóvel nestes assentamentos. Este processo nas estruturas de troca e um sistema jurídico que confira segurança a estas.
nada mais representou do que a busca pela homogeneização jurídica necessá- No mercado fundiário, a titulação da terra é o meio pelo qual esta estabili-
ria à expansão do capital financeiro internacional. Assim, entre 1995 e 2014, dade é obtida – se no Brasil ou no Peru há um sistema cartorial extremamente
o Banco Mundial promoveu burocrático de titulação da terra, isto é efeito de um mercado de terras subde-
senvolvido, não a causa deste subdesenvolvimento. A titulação da terra estabi-
“mais de quarenta projetos relacionados a regularização fundiária, ti- liza o seu comércio numa escala ampliada, necessária tanto ao capitalismo local
tulação, registro imobiliário e/ou cadastro, apenas no meio urbano, em
em certo ponto de desenvolvimento, e ainda mais necessário ao expansionista
países da América Latina – principalmente Peru e países da América
capitalismo global. Ela ocorrerá em larga escala de acordo com estas necessi-
Central –, em antigos países socialistas da Ásia Central e dos Balcãs, e
em países do Sudeste e do Sul Asiático, como Tailândia, Filipinas, Sri dades sociometabólicas do capital, não como resultado automático da titulação
Lanka e Paquistão. Não por acaso, também, esses programas aparecem generalizada. As instituições de crédito demandam fortemente esta estabilidade
‘empacotados’ como componentes de empréstimos de ajuste estrutural para expandir. O que fica claro é que a busca pela titulação de terras é um mo-
(structural adjustment loans – SAL), posteriormente rebatizados como vimento no sentido de incluir nos grandes circuitos do mercado capitalista bens
empréstimos para políticas de desenvolvimento (development policy lo- imóveis que estão fora dele por não se subsumirem à lógica da equivalência.
ans – DPL) ou como projetos de implementação de reformas de sistemas Em 2000, a Declaração do Milênio, que adotou os Objetivos de Desen-
financeiros e de mercados imobiliários”347. volvimento para o Milênio, referendou o ponto de vista do Banco Mun-

348 M. DAVIS, Planeta Favela, 2006, pp. 87-88, afirma que “As fastidiosas declarações oficiais sobre
‘capacitação’ e ‘boa governança’ evitam questões básicas da dívida e da desigualdade global e, em último
344 K. MARX, Theories of Surplus Value, Londres, Lawrence and Wishart, parte 3, 1972, pp. 43-44, apud caso, não passam de jogos de linguagem que encobrem a ausência de macroestratégias para reduzir a
D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 462. pobreza urbana. Talvez essa consciência culpada da lacuna entre promessa e necessidade explique parte
do fervor com que as ONGs e as instituições de empréstimo internacionais abraçaram as ideias de
345 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 462.
Hernando de Soto, empresário peruano que se tornou o guru global do populismo neoliberal”.
346 Idem.
349 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, pp. 218, menciona documento de revisão crítica em que se
347 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, pp. 202-203. prega que a titulação não é suficiente, por si só, para “destravar” o capital nestes locais.

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dial 350. Os Objetivos do Milênio, como outras iniciativas de grande alcance os termos desiguais do comércio com as colônias/países subdesenvolvidos e
de combate à pobreza que não encontram resistências do capital – ao con- o papel centralizador e imperialista das principais economias mundiais no
trário – buscam criar e otimizar condições de reprodução do capital, o que processo de acumulação do capital355.
se faz por meio de uma reestruturação da pobreza, ou seja, da posição dos Mas esta resistência arrisca fortalecer o direito, ao invés de alterá-lo. Este
pobres em estado tal que possam disponibilizar sua força de trabalho para é um verdadeiro paradoxo das lutas sociais, já que o direito aí está para as-
exploração produtiva pelo capital. segurar o despojamento da classe trabalhadora, não para superá-lo, objeti-
Neste sentido, o sétimo objetivo de desenvolvimento do milênio pratica- vo que estaria no horizonte de tais lutas sociais. Neste sentido, não se pode
mente reduz a questão da melhoria de vida nas favelas à segurança da pos- defender maior juridicidade ao conceito de segurança da posse. Ao mesmo
se351. A questão ganha contornos dramáticos quando se atenta ao fato de que tempo, movimentos de luta por moradia se veem premidos a, taticamente,
no contexto de neoliberalização econômica a questão da moradia irregular se defender justamente mais direitos, mais garantias, mais segurança. Esta defesa
mistura com o controle penal da pobreza, o meio mais eficiente para manter a não poderá, jamais, ir para além da prevalência do direito de propriedade e
desigualdade extrema entre as classes dominantes e as classes trabalhadoras352. dos imperativos do capitalismo.
As pessoas que vivem em favelas fazem parte do exército de mão de obra barata Mas movimentos sociais e organizações de direitos humanos têm recorrido
e do exército de reserva das grandes cidades ao redor do mundo. A expansão do ao conceito de segurança da posse numa linha defensiva, sem ativar con-
capitalismo nestes espaços se dá na medida em que haja suficientes excedentes tradições no sistema jurídico. Para eles, o conceito de segurança da posse
produtivos para transformar estas pessoas em operários ou em trabalhadores do deveria se desvincular da ênfase na propriedade formal da terra, ligando-se
setor de serviço, mantendo-se as populações sob controle militar353 e penal en- mais a uma perspectiva de garantia de que não haverá remoção arbitrária
quanto não aceitem as condições de vida disponíveis. O objetivo sétimo, assim, ou, em caso de haver, que haverá uma justa indenização, paga previamente
serve para a criação das condições para a inserção destas pessoas nos mercados à remoção356. A segurança da posse não deveria ser apenas decorrência da
formais de circulação. propriedade privada formal. Obeng-Odoom e Stiwell apontam que o conceito
A resistência à implementação destes programas de titulação de terras e de segurança da posse deve ser multidimensional357, não se restringir à titu-
ao amesquinhamento do conceito de segurança da posse partiu de movimen- lação e à remoção de favelas. Porém, detalham pouco quais outras dimensões
tos sociais e de organismos de defesa dos direitos humanos – o mencionado o conceito deveria ter. Uma das poucas indicações dos autores diz respeito à
relatório da Relatora Especial da ONU para o Direito à Moradia se insere necessidade de taxação de toda propriedade, com o reinvestimento em bene-
neste contexto. Aponta-se que as perspectivas econômicas neoclássicas en- fício dos mais pobres, o que acaba por remeter a questão à criação, via Estado,
fatizam a segurança da posse do ponto de vista dos proprietários, adotando a de um aparato de segurança da posse.
premissa de que meros direitos formais de propriedade teriam impulsionado o
desenvolvimento dos países capitalistas centrais354. Esta premissa desprezaria

355 Idem, p. 324, afirmam que “foi o acesso ao trabalho livre no Sul em desenvolvimento, as condições
350 Idem. desiguais de comércio e exploração massiva das colônias por matérias-primas que impulsionaram o
Ocidente para garantir sua liderança no processo de acumulação de capital” (tradução livre).
351 Idem.
356 F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 325.
352 A respeito, vide A. DE GIORGI. A miséria governada através do sistema penal, 2006.
357 Idem, p. 328. Os autores apontam que “Em alguns casos, a ênfase na titulação da terra e na redução de
353 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, p. 235, observa que, em razão de lutas de classes se darem
favelas levou a remoções dolorosas e errôneas. Levando estas questões em conta, a ortodoxia prevalente
sempre com mais intensidade nas cidades, “o Estado capitalista se prepara continuamente para lutas
não deveria ser aceita acriticamente, para que não acenda o cinismo e fomente a discórdia social.
urbanas militarizadas como linha de frente da luta de classes nos próximos anos”.
Como a propriedade, a ‘posse segura’ precisa ser vista como um conceito multidimensional e deve ser
354 F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 323. viabilizada por meio de um conjunto amplo de iniciativas políticas estratégicas” (tradução livre).

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No contexto capitalista, a terra é uma mercadoria e, para Karl Polanyi358, imobiliária. O relatório avalia os impactos das políticas de financiamento ha-
uma mercadoria fictícia, porque ela não é criada pelo trabalhador para ser leva- bitacional para pessoas pobres, concluindo que apenas mecanismos financeiros
da ao mercado, mas o seu caráter de mercadoria é criado por meio de específicas não podem resolver o problema da moradia adequada para esta parcela da po-
e complexas relações sociais. Como foi visto anteriormente, em razão deste ca- pulação. A saída estaria em mudar o paradigma das políticas de moradia para
ráter da mercadoria terra, Obeng-Odoom e Stiwell entendem que a segurança que tenham fundamento nos direitos humanos.
da posse seria assegurada de modo mais eficaz por meio de reforma agrária ou No relatório, se aponta que países desenvolvidos passaram a desenvolver no
urbana, e não por meio da extensão de direitos de propriedade ou de processos final do século XIX programas de moradia para indivíduos ou casais, fornecen-
de mercado: “a ênfase da política se desloca para a distribuição e para a equi- do a estes ajuda para aquisição de moradias ou as disponibilizando diretamente;
dade, ao invés da eficiência alocativa tal como compreendida na perspectiva já nos países em desenvolvimento, a rápida urbanização foi desordenada e se deu
neoclássica”359. O direito aí possuiria um claro papel indutor e transformador por meio da construção de bairros informais; por seu turno, os países de econo-
das relações de propriedade. Este tipo de solução, porém, idealiza o direito e a mia planificada aplicaram o modelo de construção planificada de moradias de
política e despreza seu papel na reprodução do sistema do capital. aluguel362. Mas no final dos anos 70 houve uma mudança radical nas políticas
No Brasil, por exemplo, a propriedade ostenta violento aparato legal e insti- habitacionais, sustentada pela doutrina econômica dominante, que pregava a
tucional para a sua proteção. Os que não habitam mediados pelo direito de pro- transferência das atividades sob controle do Estado para a iniciativa privada. O
priedade estão, em regra, na ilegalidade – “O mercado residencial legal no Brasil foco passa a ser criar as condições, as instituições e a legislação adequadas para
atende perto de 30% da população. Ele deixa de fora, em muitas cidades, até sustentar o sistema de financiamento habitacional voltado a promover o acesso
mesmo parte da classe média que ganha entre cinco e sete salários mínimos”360. à propriedade. Assim, continua a Relatora, passam a prevalecer os dogmas ne-
Neste contexto é que, mais do que a generalização da propriedade, com todos oliberais da confiança na propriedade e no livre mercado.
os seus entraves legais e socioeconômicos, a proteção jurídica da posse aparece O relatório ainda aponta que o setor financeiro, as políticas de crédito e o
como aparente solução. mercado imobiliário privado foram os principais mecanismos nos quais se bus-
Seguindo a linha de Obeng-Odoom e Stiwell, a relatora da ONU para o cou soluções para o problema da moradia. Em muitos países houve a privatiza-
direito à moradia realizou um forte questionamento ao absolutismo do sistema ção das moradias públicas, com a venda dos imóveis aos locatários e nas antigas
da propriedade privada em seus relatórios. De fato, em um Relatório temático economias planificadas, houve privatização em massa das moradias públicas.
da Relatora Especial para o direito à moradia adequada, em que trata da fi- Esta tendência geral se relaciona com o “desenvolvimento” do próprio
nanceirização da habitação361, Rolnik constatou que o paradigma dominante capitalismo, cujos excedentes produtivos, que tomam a forma de capital fi-
nas políticas habitacionais é o financiamento para a obtenção da propriedade nanceiro, constantemente buscam e criam mercados imobiliários. A relatora
coloca como uma das suas recomendações sobre este ponto a necessidade de
os Estados promoverem a mistura dos sistemas de posse, para além do foco
358 Polanyi, Karl. The Great Transformation, New York: Octagon Books, 1944, apud F. OBENG-ODOOM
exclusivista na moradia como propriedade privada, incluindo um setor de mo-
e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 325, que explicam
que “a característica distintiva de uma “mercadoria fictícia” é que sua provisão e distribuição está radias públicas ou um regime de aluguéis regulado, o que evitaria a exclusão
embebida em relações sociais complexas” (tradução livre). social e a segregação363.
359 F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p.
325 (tradução livre).
360 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 185. 362 Idem, p. 3.
361 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ASSEMBLEIA GERAL, A/67/286, Special Rapporteur 363 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ASSEMBLEIA GERAL, A/67/286, Special Rapporteur
on adequate housing as a component of the right to an adequate standard of living, disponível em on adequate housing as a component of the right to an adequate standard of living, disponível em http://
http://direitoamoradia.org/wp-content/uploads/2012/09/A-67-286.pdf, acesso em 11 abr. 2015. direitoamoradia.org/wp-content/uploads/2012/09/A-67-286.pdf, p. 23, acesso em 11 de abr. 2015.

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O relatório faz um preciso diagnóstico do desenvolvimento do capitalismo mento para definição dos exatos limites da propriedade e por estruturas jurídi-
atual, porém, aponta apenas para soluções nos limites do direito e da políticas. cas ocidentais formais”. Porém, desde que não seja empecilho para a reprodução
Isto decorre das próprias limitações institucionais da ONU. Estas limitações, e a expansão do capital, um conceito amplo de segurança da posse poderia ser
por si só, já explicitam a essência do direito a nível internacional. As soluções referendado pelo Banco Mundial364.
possíveis de sugestão, neste âmbito, talvez pudessem amenizar a questão da es- O aparato jurídico de proteção da posse se tornaria rapidamente funcional
cassez da habitação, mas, definitivamente, o que decidirá isto serão os imperati- ao mercado na medida em que se identificasse o sujeito de direito beneficiá-
vos da expansão do sistema do capital. Estando a proteção dos sistemas de posse rio dela. A diferença específica com relação à propriedade estaria apenas na
regulados pelo sistema jurídico, certamente cederá, quando for imperativo, em origem do “título” jurídico de proteção. A segurança da posse tenderia a faci-
ponderações com outros direitos, em especial, os direitos de propriedade rela- litar a troca dos bens imóveis em medida similar à facilitação promovida pela
cionados àquela expansão. titulação da propriedade – aliás, nem é necessária esta proteção para que um
Tematizar na seara jurídica a segurança da posse incorpora limitações mercado de posses se desenvolva, como o demonstra o comércio de imóveis
importantes às lutas sociais. Isto porque o direito é especificamente capi- já existente – independentemente de registro formal da propriedade – nas
talista e não pode oferecer soluções “fora” do sociometabolismo do capital. periferias brasileira e peruana.
Aquelas limitações deveriam ser superadas para levar as lutas a novo pata- Assim, no contexto capitalista, a melhoria das condições de habitação
mar, em que pudessem forçar contradições do sistema sociometabólico do da população de baixa renda só poderia realizar-se em termos tais que não
capital, das quais poderão surgir propostas para que pilares deste sistema gerasse empecilhos à reprodução do capital – o que significa que inovações,
sejam revolucionados. inclusive jurídicas, devem ser sempre compatíveis com e adaptar-se ao o so-
A “segurança da posse”, portanto, enquanto noção jurídica, não solucionará ciometabolismo do capital. Este sociometabolismo determina que o valor de
a questão da habitação, que está ligada à necessária liberação e despojamento troca do imóvel se sobreponha ao valor de uso da habitação; determina a for-
do trabalhador para a reprodução e expansão do capitalismo. No atual contex- mação de um mercado imobiliário, no qual o imóvel aparece como produto,
to de financeirização global, importa cada vez mais tornar a terra “cativa” por como reserva de valor, como poupança e como investimento especulativo365,
meio de processos como os de acumulação por despossessão. Por mais proteção
que se busque pela via do aumento da densidade jurídica de um conceito como
364 Sobre as políticas do Banco Mundial, confirmando o caráter de sustentáculo que as políticas urbanas
segurança da posse, isto apenas aumentará a subordinação do conceito e, assim, possuem no capitalismo avançado, P. FIORI ARANTES, O Ajuste Urbano: as políticas do Banco
do discurso dos movimentos sociais e das organizações de direitos humanos, à Mundial e do BID para as cidades, 2006, p.60, observa que “ao ajuste estrutural que se seguiu à crise
da dívida no Terceiro Mundo, no início dos anos 80 – e ainda persiste como um ajuste permanente
lógica do sociometabolismo do capital. –, parece ter ocorrido um correspondente “ajuste urbano”. Em ambos os casos, o Banco Mundial e,
O que está por trás da busca por conferir à posse uma segurança próxima à na América Latina, o BID, tiveram ação decisiva, em parceria com as elites e tecnocracias locais”.
da propriedade é a mistificação da segurança jurídica, como se esta pudesse ser Realmente, “os empréstimos do Banco Mundial e do BID – que aparecem aos gestores públicos
como “tábuas de salvação” em tempos de crise –, não são “neutros” e carregam consigo uma agenda
conferida universalmente independentemente dos mecanismos de inclusão e afirmativa: pretendem modelar um determinado padrão de uso do recurso público e de organização
exclusão necessários à reprodução e expansão do capital. do Estado. As duas instituições difundem políticas públicas que seguem critérios empresariais de
rentabilidade e um modelo de gestão estatal terceirizada, à mercê de um corpo técnico privado –
Como deve ter ficado claro, a busca por uniformização ou homogeneização
formado por gerenciadoras de projeto, fundações privadas, ONGs e inúmeros consultores. Seu objetivo
das estruturas legais globais, de modo a permitir a expansão do capital em di- é transformar uma parcela dos governos locais nos países em desenvolvimento, especialmente os que
versas partes do mundo, é que justifica as políticas de titulação com base em administram os territórios que dão suporte aos negócios transnacionais, em estruturas administrativas
treinadas para responder aos grandes interesses privados, ao mesmo tempo em que se desembaraçam
propriedade privada. O Banco Mundial, reconhecendo a persistência da posse de qualquer compromisso com a democracia real”.
consuetudinária, adota “o ponto de vista de que tais arranjos possessórios de- 365 O relatório da Relatoria para o Direito à Moradia da ONU constata este ponto (http://direitoamoradia.
veriam ser progressivamente formalizados por meio registro escrito, de levanta- org/wp-content/uploads/2012/09/A-67-286.pdf, parágrafo 11, acesso em 11 de abr. 2015): a moradia

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tudo enredado num sistema financeiro ávido por reproduzir-se ad infinitum; cado, é uma moradia alugada, é um produto de iniciativa privada. Em
determina que o acesso à habitação enquanto meio de subsistência se dará seus diversos tipos, foi a primeira forma física de habitação oferecida ao
apenas enquanto isto não atrapalhe a disponibilização da força de trabalho no ‘homem livre’ brasileiro da mesma maneira que o aluguel foi a primeira
mercado, em troca de salário. forma econômica.”367
Daí porque continua atual a afirmação de Engels, já mencionada no primei-
O aluguel ou locação era e continua sendo uma das principais maneiras
ro capítulo deste trabalho, de que
para as classes trabalhadoras acessarem o meio de subsistência habitacional. Por
“enquanto o modo de produção capitalista existir, será disparate pre- este meio, o trabalhador paga certa quantia ao senhorio (proprietário fundiário)
tender resolver isoladamente a questão da habitação ou qualquer outra pelo uso temporário de um imóvel. Esta quantia é uma parte do salário do tra-
questão social que diga respeito à sorte dos operários. A solução reside, balhador e é uma renda para o senhorio.
sim, na abolição do modo de produção capitalista, na apropriação pela O despojamento completo dos trabalhadores, incluindo o despojamento da
classe operária de todos os meios de vida e de trabalho.”366 habitação, é um dos primeiros impulsos necessários para a liberação deles como
a servos da terra no feudalismo para se tornarem proletários. A falta de habita-
A forma mercadoria e a equivalência necessária à circulação capturariam
sem pestanejar os diferentes tipos de posse que viessem a ser juridicamente
protegidas. Num contexto capitalista, os efeitos disto para a população de baixa 367 F. VILLAÇA, O que todo cidadão precisa saber sobre habitação, 1986, p. 14-15. Vale a transcrição
integral da continuação do trecho: “O cortiço descrito por Aluísio de Azevedo era típico, na época,
renda continuariam a ser devastadores. A taxação da propriedade e a desti- das grandes cidades do sul do Brasil. Eram várias casinhas especialmente construídas para aluguel,
nação para a construção de moradias públicas seriam medidas para aliviar ou com tanques de lavar roupa e instalações sanitárias de uso comum... Ameaçada pelo cortiço (foco de
obstar temporariamente, mas não resolver, o fato de que a distribuição de ha- epidemias) mas ao mesmo tempo necessitando dele, a burguesia deu início a uma série de medidas
ambíguas destinadas a regular sua convivência com ele. De um lado, a classe dominante precisava
bitações no capitalismo é estruturalmente excludente. A princípio, para evitar de um discurso que lhe permitisse demolir os cortiços quando isso fosse necessário, e de outro,
aquela captura, os esquemas de segurança da posse deveriam prever também precisava mantê-los e tolera-los, pois, necessitava deles para abrigar a população trabalhadora. Essa
população, convém lembrar, crescia vertiginosamente não só em São Paulo e Rio, mas em todas as
mecanismos de proteção contra mecanismos típicos de espoliação capitalista.
atuais metrópoles do país.
Mas isto, obviamente, não tomará forma jurídica enquanto viger o sistema so- Dentre as medidas tomadas para dar a aparência de que os cortiços estavam sendo realmente
ciometabólico do capital. combatidos, destacam-se os Códigos Municipais de Posturas, que continham dispositivos
determinando a sua demolição ou o cerceamento de suas construções. A razão invocada é sempre a
saúde pública pois não eram raras as epidemias, das quais as de febre amarela no Rio de Janeiro, foram
apenas as mais famosas. Havia epidemias de varíola, de peste bubônica, de tifo e de cólera. A ameaça
4.2. Renda da Terra e Acesso à Habitação Via Locação que o cortiço, como a habitação operária em geral, representava para o valor dos imóveis burgueses,
não foi mencionada nunca, embora o ataque a essa ameaça esteja claro em alguns dispositivos legais
A primeira forma habitacional massiva das classes trabalhadoras urbanas sobre aquelas habitações.
O Código de Posturas Municipais do Município de São Paulo de 1886, por exemplo, contém uma série
brasileiras foi o cortiço. Villaça observa que: de dispositivos regulamentando os cortiços. Não só número e dimensões de cômodos, instalações
sanitárias, ventilação e insolação, mas também suas localizações. A construção de cortiços era
“A principal forma de abrigo que a sociedade brasileira vai desenvolver proibida ‘no perímetro do comércio’ e quando seus terrenos fossem contíguos a ‘casas de habitação’
para alojar essas multidões é o cortiço. O cortiço é uma ‘solução’ de mer- deveriam ter no mínimo 15 metros de frente. Também no Rio de Janeiro, segundo Ribeiro e Peachman,
em 1889... a Postura Municipal determinava que no perímetro central da cidade ficavam proibidos
o estabelecimento e a construção de cortiços, casinhas e edificações acanhadas... Vê-se que estas
regulamentações nada tinham a ver com o combate a epidemia nem com a proteção da saúde pública,
aparece como uma mercadoria, como um ativo financeiro e como uma estratégia de acumulação de
mas sim com o afastamento dos cortiços das áreas onde as camadas de mais alta renda residiam,
riqueza pelas famílias, deixando-se de lado aspectos sociais.
circulavam e tinham seus imóveis mais nobres. A proteção dos valores imobiliários viria a ser nas
366 F. ENGELS. Para a Questão da Habitação, 1873, Segunda Seção, disponível em https://www.marxists. décadas subseqüentes, até os dias de hoje, uma das razões inconfessas de muitas leis urbanísticas nos
or g/portugues/marx/1873/habita/cap02.htm. municípios brasileiros.”

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ção aparece historicamente como necessária ao surgimento e à reprodução do Neste caso, a renda fundiária aparece plenamente como uso da propriedade
sociometabolismo do capital. Neste processo, a terra urbana “cativa” se torna para assegurar participação na riqueza socialmente produzida.
fonte de renda para seus proprietários. O trabalhador, despojado de tudo, paga No livro I do capital, Marx apontou a terra não cultivada como exemplo de
um preço, determinado pelo mercado imobiliário, para realizar sua necessida- coisa que tem preço, apesar de não tem valor:
de habitacional. A existência da renda da terra urbana leva, inclusive, a um
aumento geral do preço da própria terra, que, num círculo vicioso, passa a ser “Mas a forma-preço permite não apenas a possibilidade de uma incon-
gruência quantitativa entre grandeza de valor e preço, isto é, entre a
inacessível ao trabalhador, que precisa então recorrer ao aluguel, se necessário
grandeza de valor e sua própria expressão monetária, mas pode abrigar
nas condições mais degradantes.
uma contradição qualitativa, de modo que o preço deixe absolutamente
A renda fundiária, como o crédito, também é uma forma de capital fictício. de ser expressão de valor, embora o dinheiro não seja mais do que a
Antes disso, ela aparece como um excedente sobre o lucro médio no específico forma de valor das mercadorias. Assim, coisas que em si mesmas não são
contexto capitalista. Esta especificidade foi apontada por Marx, mercadorias, como a consciência, a honra etc. podem ser compradas de
seus possuidores com dinheiro e, mediante seu preço, assumir a forma-
“onde, portanto, o capital ainda não submeteu a seu controle o trabalho -mercadoria, de modo que uma coisa pode formalmente ter um preço
social, ou só o fez esporadicamente, não se pode sequer falar de renda no mesmo sem ter valor. A expressão do preço se torna aqui imaginária tal
sentido moderno, da renda como excedente sobre o lucro médio, ou seja, como certas grandezas da matemática. Por outro lado, também a forma-
sobre a participação proporcional de cada capital individual na mais- -preço imaginária – como o preço do solo não cultivado, que não tem
-valia produzida pelo capital social global”368. valor porque nele nenhum trabalho humano está objetivado –, abriga
uma relação efetiva de valor ou uma relação dela derivada.”369
Este excedente é o “mistério” que a teoria da renda de Marx desvenda como
a parcela da mais-valia que os proprietários fundiários conseguem extrair para Assim, mesmo a terra não cultivada pode ter um preço, e isto em razão das
si em razão de seu monopólio sobre certas quantidades de terra. A análise de específicas relações sociais que determinam esta forma-preço imaginária.
Marx se concentra na propriedade fundiária rural, mas esta mesma conclusão O valor pode surgir por meio do trabalho produtivo na terra. E deve-se con-
se pode tirar sobre a propriedade fundiária urbana. Tomada neste sentido, nem siderar que o a terra urbana pode também ser objeto de intervenção produtiva,
todo o preço do aluguel é renda, como se detalhará a seguir. com a construção de prédios, fábricas, casas, lojas, estradas, enfim, de todo o
A apropriação da terra e o interesse alheio pelo seu uso conforma a renda. aparato urbano construído pelo trabalho humano. Para o proprietário fundiário
Esta aparece então como uma forma econômica de apropriação direta ou indi- que realiza a construção de um prédio, uma parcela dos aluguéis aparece como
reta do trabalho social. A apropriação direta ocorre sem etapas intermediárias “um caso especial de juros sobre o capital fixo ou sobre o fundo de consumo”370.
entre proprietário e arrendatário (o arrendatário produz na terra e paga dire- Mas o aluguel em regra supera esta parcela, de modo que o restante aparece jus-
tamente ao proprietário), de modo que a renda fundiária se assemelha aí com tamente como renda da terra, como uma forma-preço imaginária. Ora, pode-se
a extração de mais-valia. O contrato de arrendamento se aproxima aqui do descrever o crédito como uma alma fantasmagórica fetichista, sendo o direito
contrato de trabalho e é o instrumento jurídico que assegura a exploração do a forma de manifestação desta alma. A sua substância, claro, é a base material
trabalho do arrendatário pelo proprietário fundiário. Já a apropriação indireta capitalista. Por meio do juro esta alma fantasmagórica se revela e aparece como
ocorre quando o arrendatário não produz ele próprio riqueza, mas extrai mais- dinheiro, embora não exista valor algum ao qual possa se referir. O direito or-
-valia de terceiros, pagando o proprietário com parcela da mais-valia obtida.

369 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 177.


368 K. MARX, O Capital – Livro III, 1988, p. 245. 370 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 428.

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ganiza os efeitos reais do crédito. Do mesmo modo, a renda fundiária é uma refletem a competição e são receptíveis à acumulação”373. Com estas funções de
alma fantasmagórica fetichista e o direito é a sua forma de manifestação. O coordenação374 é que a renda da terra se torna possível e se legitima no contexto
aluguel pago ao senhorio é a revelação desta alma fantasmagórica, que aparece sociometabólico do capital. Harvey afirma que
como propriedade privada que não é capital. A existência da renda fundiária é
fetichista porque o benefício retirado do bem excede aquele que decorreria do “A circulação do capital que rende juros nos mercados fundiários coor-
dena o uso da terra em relação à produção de mais-valor mais ou menos
juro decorrente de investimento do capital. Mas há um efeito real nas formas
da mesma maneira que ajuda a coordenar as alocações da força de traba-
fetichistas que é o de impulsionar, de algum modo, a produção e a circulação.
lho e equalizar a taxa de lucro entre as diferentes linhas de produção em
É a renda da terra o objeto de preocupação de Marx no capítulo 47 do Livro geral. (...) a circulação do capital que rende juros promove atividades na
3 d’O Capital: “de onde... após a distribuição de toda a mais-valia que há para terra que visam seus mais elevados e melhores usos, não simplesmente
distribuir aparentemente já ocorrida, procede, então, a parte ainda excedente no presente, mas também prevendo a produção futura de mais-valor. Os
dessa mais-valia que o capital investido na terra paga sob a forma de renda proprietários de terra que tratam a terra como um simples bem finan-
fundiária ao proprietário da terra”371. Se a terra não cultivada e a terra urbana ceiro desempenham exatamente essa tarefa. Eles coagem o capital (por
não têm valor, como podem ser trocadas como mercadorias? Harvey tentou meio de aumento das rendas, por exemplo) ou cooperam com ele para
destrinchar a questão com base em Marx: garantir a criação de rendas fundiárias mais elevadas”375.

“Marx insiste que os pagamentos de aluguel não são feitos à terra e que Este mesmo capital que rende juros não hesitará em promover atividades de
as rendas não crescem do solo. Pagamentos desse tipo são feitos aos [rec- pilhagem e destruição para ampliar suas possibilidades de aplicação. Isto pode,
tius] senhorios e seriam impossíveis sem a troca geral de mercadorias, a a depender do caso, levar a distorções especulativas376. De qualquer modo, esta
plena monetização da economia e todas as armadilhas legais e jurídicas forma de capital buscará sempre novos horizontes onde possa gerar renda fundi-
da propriedade privada da terra. Mas ele também está consciente que ária e juro (este é o ganho sobre o capital efetivamente investido), promovendo,
essa base legal nada decide e que toda a explicação da renda tem de por exemplo, titulação de terras onde haja apenas posse fundiária e haja espaço
tornar compatível um pagamento feito ostensivamente à terra com uma
para o desenvolvimento da oferta e da demanda de capital monetário. Em suma,
teoria do valor que se concentra no trabalho.”372
“a circulação ‘adequada’ do capital mediante o uso da terra e, por isso,
Para Harvey, Marx resistia a dar um lugar de destaque para fatos da distri- todo o processo de moldagem de uma organização espacial ‘apropriada’
buição, mas as relações de distribuição, como o juro, o crédito e a renda, podem das atividades (repletas de contradições) estão ajustados ao funciona-
“ocupar papéis de coordenação estratégica dentro do modo de produção capita- mento dos mercados fundiários, que por sua vez se baseiam na capacida-
lista”. A renda, por exemplo, exerce uma função de coordenação “na alocação
da terra para usos e na moldagem da organização geográfica de modos que
373 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, pp. 428-429.
374 Como observa M. FIX, São Paulo, Cidade Global, 2007, p. 135, descrevendo o avanço do mercado
imobiliário no bairro Vila Olímpia, em São Paulo, “Quanto mais livre for o capital portador de juros
371 K. MARX, O Capital – Livro III, 1988, p. 245.
para perambular pelos mercados de terra na busca de títulos para se apropriar da renda futura, melhor
372 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 428. A tradução disponível em português da obra usa as ele pode assumir seu papel de coordenador (esse capital pode ter como substituto a securitização...).
expressões “senhores feudais” ou “feudalista”, ao invés de “senhorios” ou “proprietários fundiários”, Contudo, ao mesmo tempo, quanto mais aberto for o mercado de terras, mais imprudentemente o
para a palavra landlord. Obviamente, aquela tradução é completamente descabida no contexto em capital pode procurar realizar suas expectativas excessivas por meio da pilhagem e da destruição das
questão, gerando imensa confusão, já que no período capitalista não se pode afirmar que haja relações condições de produção do espaço.”
feudais senão como reminiscência histórica e os landlord, que extraem renda da terra no contexto
375 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 472.
capitalista, não são senhores feudais, por mais resquícios de parasitismo nobiliárquico que existam nas
relações em que tomam parte. 376 Idem, p. 473.

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de de se apropriar da renda. Como o capital que rende juros, a apropria- mas especialmente porque ele aparece como personificação de uma das
ção da renda tem papéis positivos e negativos a desempenhar em relação condições essenciais da produção.”378
à acumulação. Suas funções de coordenação são adquiridas à custa de
permitir formas insanas de especulação da terra. Mas tal argumento é Na dinâmica da luta entre a burguesia e os proprietários fundiários, por
dificilmente perceptível nos textos de Marx, e ele parece extremamente um lado, o próprio preço da terra depende das “relações entre a acumulação
relutante em admitir qualquer papel positivo para o [rectius] proprietário do capital e a oferta e a demanda de capital monetário”379 e, por outro lado,
fundiário no capitalismo”377. “os preços da terra criam sinais aos quais os vários agentes econômicos podem
responder”380. A acumulação de capital e o desenvolvimento e expansão dos es-
Isto explica a manutenção da renda da terra no contexto capitalista. Mas a
paços socioeconômicos estão intimamente interligados. Daí a renda fundiária e
teoria do valor de Marx se mantém de pé. Comprova-se isso pela constatação
a propriedade privada serem necessárias para a sustentação e para a expansão381
de que o proprietário fundiário não detém o controle último da terra e da renda
do capitalismo, serem um dos alicerces deste sistema sociometabólico.
no contexto capitalista. Aqui, são as condições da produção que determinam
Aquele papel secundário não significa que os proprietários fundiários não
em última instância a parcela de mais-valia – se alguma – que cabe aos pro-
tenham um papel de grande relevância na “questão da habitação”. Ao contrá-
prietários fundiários. Daí o papel destes proprietários, que pode ser considerado
rio. A atividade destes proprietários determina o despojamento do trabalhador
secundário, mas não sem grande relevância para o sociometabolismo do capital.
de meios de produção e de subsistência. Marx observa que na comercialização
A própria manutenção da propriedade fundiária especulativa no contexto
da terra está sempre presente a especulação e Harvey ressalta o exemplo de
capitalista só se explica pela funcionalidade que ela pode cumprir neste contex-
que na “construção de casas em cidades que crescem rapidamente”, “o lucro da
to. Marx aponta as principais funcionalidades da apropriação da terra na parte
construção é extremamente pequeno e ‘o lucro principal vem de elevar a renda
final do seguinte trecho, que começa com a clarificação sobre a natureza da
fundiária’, de modo que é ‘renda fundiária, e não a casa, que é o objeto real
renda fundiária como componente da mais-valia:
da especulação imobiliária’”382. Ademais, é fato largamente observado que “o
“Lucro de capital (ganho empresarial mais juros) e renda fundiária não valor criado na produção pode ser recuperado dos trabalhadores em benefício
são, portanto, nada mais que componentes específicos da mais-valia, ca- da classe capitalista por aluguéis altos cobrados pelos proprietários”383. Ainda
tegorias em que esta é distinguida conforme ela recaia no capital ou na mais, com o desenvolvimento do capitalismo, só sobreviverão os proprietários
propriedade fundiária, rubricas que, no entanto, não alteram nada em
sua essência. Somados, constituem o total da mais-valia social. O capi-
378 K. MARX, O Capital – Livro III, 1988, p. 274.
tal suga o mais-trabalho, que representa a mais-valia e o mais-produto,
diretamente dos trabalhadores. Pode, portanto, nesse sentido ser consi- 379 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 471.
derado como produtor da mais-valia. A propriedade fundiária não tem 380 Idem, p. 474.
nada a ver com o real processo de produção. Seu papel se restringe a 381 Idem, p. 476, sobre esta expansão, observa que “a circulação do capital que rende juros em títulos
fazer com que parte da mais-valia produzida passe do bolso do capital fundiários desempenha um papel análogo àquele do capital fictício em geral. Ela indica os caminhos
de localização para a futura acumulação e atua como um agente de força catalizadora que reorganiza
para o seu próprio. O proprietário da terra desempenha, no entanto, um
a configuração espacial da acumulação segundo os imperativos básicos da acumulação. O fato de isso
papel no processo de produção capitalista não só pela pressão que ele às vezes pressionar muito... ou em direções equivocadas... simplesmente estabelece que o mercado
exerce sobre o capital, nem só porque a grande propriedade fundiária fundiário necessariamente internaliza todas as contradições básicas fundamentais do modo de produção
é um pressuposto e uma condição da produção capitalista - visto que capitalista. Por isso, impõe tais contradições ao próprio cenário físico do próprio capitalismo”.
constitui a expropriação das condições de trabalho do trabalhador -, 382 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 472, citando K. MARX, O Capital – Livro III, Nova York,
International Publishers, 1967, p.774-6 e K. MARX, O Capital – Livro II, Nova York, International
Publishers, 1967, p. 234.
377 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 429. 383 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, p. 232.

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fundiários que tratarem a terra como um bem financeiro384. O interesse dos “uso temporário de uma moradia”387. A “posse fundiária” aparece aí como uma
proprietários fundiários na expansão urbana fica muito claro, assim como o seu mercadoria. Por meio do contrato civil de locação se opera a “transferência
papel na criação da escassez de habitações. de um valor já existente, previamente gerado”, de modo que “a soma total dos
A locação do uso de uma casa, um quarto ou uma cama para moradia é um valores possuídos em conjunto pelo locatário e pelo locador permanece sempre
dos principais meios de acesso dos trabalhadores à habitação. A relação que aí a mesma”388, é dizer, não é gerado valor algum na operação. Trata-se de repar-
se estabelece está inteiramente na esfera da circulação. Não há trabalho algum tição na esfera da circulação.
na relação contratual entre o locador e o locatário, daí se dizer que se está O proprietário fundiário detém a prerrogativa jurídica de extrair renda de
diante de capital fictício. A teoria da renda fundiária de Marx esclarece que a seu bem imóvel389. Mas o aluguel pago pelo trabalhador pela casa não é consti-
terra pode ter um preço, ser uma mercadoria e que o proprietário fundiário tem tuído apenas de renda: ele inclui uma série de elementos: [1] “os juros referentes
um direito à participação nos frutos do trabalho – esta é a natureza da renda à construção da casa”; [2] a cobertura dos consertos e do [3] “montante médio
fundiária. Mas apenas em razão das funções positivas acima indicadas é que de dívidas ruins, aluguéis não pagos, [4] bem como os períodos ocasionais em
esta renda pode ser amparada pelo sistema jurídico capitalista. que a casa fica vazia”; [5] a amortização em parcelas anuais do “capital investido
Engels deixa claro que o ponto de partida da análise da estrutura social atual numa casa perecível, que com o passar do tempo torna-se inabitável e sem va-
deve ser a “pedra angular do modo de produção de capitalista”, que consiste em lor”; [6] e “os juros referentes ao aumento de valor do terreno em que se encon-
que na compra, pelo capitalista, da “força de trabalho do trabalhador por seu tra a casa”, a renda fundiária390. Relações econômicas específicas e a viabilidade
valor” e da extração de “muito mais do que o valor pago por ela, fazendo com da extração de juros e renda pelo proprietário fundiário é que permitem que
que o trabalhador trabalhe mais tempo do que o necessário para reposição do juros e renda sejam pagos ao proprietário fundiário.
preço pago pela força de trabalho”385. Neste sentido, para compreendermos a Por isso, a divisão legal de obrigações entre locatário e locador não tem im-
renda, deve-se ter em mente que pacto decisivo no aluguel – ela nada decide – e eventual alteração não afetaria
sobremaneira o fluxo da parcela de mais-valia que cabe ao proprietário fundiá-
“o mais-valor gerado dessa maneira é repartido entre todos os integran- rio. A lei de locação brasileira divide detalhadamente as obrigações do locador
tes da classe dos capitalistas e proprietários de terras, bem como seus
servidores pagos, desde o papa e o imperador até o vigia noturno e abai-
xo dele. [...] o que se sabe aqui com certeza é isso: todos os que não
trabalham só podem viver dos restos desse mais-valor que fluem até eles 387 Idem, p. 41.
de uma maneira ou de outra”386. 388 Idem, p. 41.
389 Deve-se atentar que Marx tratou da propriedade fundiária rural no livro III d’O Capital, mas que
Na locação, há uma “simples venda de mercadoria”, o locatário possui di- suas conclusões sobre a transformação da propriedade fundiária para uma forma especificamente
nheiro (que adquiriu vendendo sua própria força de trabalho) ou crédito (ga- capitalista, suprassumindo-se as figuras da renda e do proprietário fundiário ao novo contexto
socioeconômico, podem ser aplicadas para a propriedade fundiária urbana. A permanência da renda
rantido pela “venda iminente dessa força de trabalho”) e o paga ao locador pelo neste contexto é explicada pela sua funcionalidade com a ordem sociometabólica posta, como detalha
D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 462: “A extração da renda dos camponeses por parte
dos [rectius] proprietários fundiários desempenha um papel vital no pressionamento dos camponeses
para separar pelo menos uma parte do seu produto em vez de eles próprios o consumirem. Mas para
384 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 476, afirma que “A terra deve se tornar uma forma de
a total dominação do capital sobre o trabalho ser conseguida, antes de tudo deve ser criada uma
capital fictício e ser tratada como um campo aberto para a circulação de capital que rende juros.
força de trabalho assalariada, um proletariado sem terra. A acumulação primitiva fora da terra
Somente nestas condições a aparente contradição entre a lei do valor e a existência da renda sobre a
produz trabalhadores assalariados. Uma forma definida de propriedade fundiária preenche esse papel
terra desaparece”.
histórico e continua a preenche-lo, na medida em que a ampliação e o aprofundamento do capitalismo
385 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 38. no cenário mundial o requeiram”.
386 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, pp. 38-39. 390 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, pp. 42-43.

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e do locatário nos artigos 22 e 23391. Esta divisão visa apenas a otimizar a extra- ção da renda da terra e dos juros, não tendo impacto decisivo sobre o montante
global destes. Assim, a abolição de quaisquer das obrigações do locador, por si
391 Art. 22. O locador é obrigado a: I - entregar ao locatário o imóvel alugado em estado de servir ao
só, não tem o condão de afetar a repartição da mais-valia.
uso a que se destina; II - garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado; III Da mesma forma, as políticas de controle de preço de aluguéis têm impactos
- manter, durante a locação, a forma e o destino do imóvel; IV - responder pelos vícios ou defeitos alocativos importantes para a habitação e para o consumo de bens e serviços
anteriores à locação; V - fornecer ao locatário, caso este solicite, descrição minuciosa do estado do
imóvel, quando de sua entrega, com expressa referência aos eventuais defeitos existentes; VI - fornecer para os trabalhadores de baixa renda (menores gastos com aluguéis em razão
ao locatário recibo discriminado das importâncias por este pagas, vedada a quitação genérica; VII - de controle de preços destes beneficiam os mais pobres, que podem consumir
pagar as taxas de administração imobiliária, se houver, e de intermediações, nestas compreendidas as mais outros bens e serviços). Porém, estas políticas não afetam a natureza dos
despesas necessárias à aferição da idoneidade do pretendente ou de seu fiador; VIII - pagar os impostos
e taxas, e ainda o prêmio de seguro complementar contra fogo, que incidam ou venham a incidir sobre aluguéis e a participação dos proprietários fundiários na mais-valia extraída na
o imóvel, salvo disposição expressa em contrário no contrato; IX - exibir ao locatário, quando solicitado, esfera produtiva. No Brasil, em que o capitalismo periférico impõe a competiti-
os comprovantes relativos às parcelas que estejam sendo exigidas; X - pagar as despesas extraordinárias
de condomínio. Parágrafo único. Por despesas extraordinárias de condomínio se entendem aquelas que
vidade das cidades392 para a atração de investimentos internacionais, parece in-
não se refiram aos gastos rotineiros de manutenção do edifício, especialmente: a) obras de reformas ou concebível que políticas de controle de preços do aluguel sejam implementadas
acréscimos que interessem à estrutura integral do imóvel; b) pintura das fachadas, empenas, poços de para incentivo do acesso de trabalhadores mais pobres a regiões mais centrais
aeração e iluminação, bem como das esquadrias externas; c) obras destinadas a repor as condições de
habitabilidade do edifício; d) indenizações trabalhistas e previdenciárias pela dispensa de empregados, das cidades. Estas políticas tendem a ser implantadas apenas onde haja condi-
ocorridas em data anterior ao início da locação; e) instalação de equipamento de segurança e de ções tais que não atrapalhem a expansão e a acumulação do capital.
incêndio, de telefonia, de intercomunicação, de esporte e de lazer; f) despesas de decoração e paisagismo Diante destas considerações, deve-se concluir que apenas as condições
nas partes de uso comum; g) constituição de fundo de reserva.
Art. 23. O locatário é obrigado a: I - pagar pontualmente o aluguel e os encargos da locação, legal ou econômicas explicam a escassez de habitação e o direito não faz mais do que
contratualmente exigíveis, no prazo estipulado ou, em sua falta, até o sexto dia útil do mês seguinte ao organizar formalmente esta escassez. Imóveis vazios não são disponibilizados
vencido, no imóvel locado, quando outro local não tiver sido indicado no contrato; II - servir - se do
imóvel para o uso convencionado ou presumido, compatível com a natureza deste e com o fim a que
para aluguel porque não há demanda suficiente para maior participação dos
se destina, devendo tratá-lo com o mesmo cuidado como se fosse seu; III - restituir o imóvel, finda a proprietários fundiários na distribuição da mais-valia. O déficit habitacio-
locação, no estado em que o recebeu, salvo as deteriorações decorrentes do seu uso normal; IV - levar nal, contrastado com imóveis vazios que não são sequer disponibilizados para
imediatamente ao conhecimento do locador o surgimento de qualquer dano ou defeito cuja reparação
a este incumba, bem como as eventuais turbações de terceiros; V - realizar a imediata reparação dos aluguel, decorre das próprias condições econômicas. A escassez econômica,
danos verificados no imóvel, ou nas suas instalações, provocadas por si, seus dependentes, familiares,
visitantes ou prepostos; VI - não modificar a forma interna ou externa do imóvel sem o consentimento
nas alíneas anteriores, salvo se referentes a período anterior ao início da locação. 2º O locatário fica
prévio e por escrito do locador; VII - entregar imediatamente ao locador os documentos de cobrança
obrigado ao pagamento das despesas referidas no parágrafo anterior, desde que comprovadas a previsão
de tributos e encargos condominiais, bem como qualquer intimação, multa ou exigência de autoridade
orçamentária e o rateio mensal, podendo exigir a qualquer tempo a comprovação das mesmas. 3º No
pública, ainda que dirigida a ele, locatário; VIII - pagar as despesas de telefone e de consumo de força,
edifício constituído por unidades imobiliárias autônomas, de propriedade da mesma pessoa, os locatários
luz e gás, água e esgoto; IX - permitir a vistoria do imóvel pelo locador ou por seu mandatário, mediante
ficam obrigados ao pagamento das despesas referidas no § 1º deste artigo, desde que comprovadas.
combinação prévia de dia e hora, bem como admitir que seja o mesmo visitado e examinado por
terceiros, na hipótese prevista no art. 27; X - cumprir integralmente a convenção de condomínio e os 392 Vide D. HARVEY, From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance
regulamentos internos; XI - pagar o prêmio do seguro de fiança; XII - pagar as despesas ordinárias de in Late Capitalism, 1989. Também, sobre o assunto, P. FIORI ARANTES, O Ajuste Urbano: as
condomínio. 1º Por despesas ordinárias de condomínio se entendem as necessárias à administração políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades, 2006, pp. 67-68, questiona “Afinal, como reduzir
respectiva, especialmente: a) salários, encargos trabalhistas, contribuições previdenciárias e sociais dos consistentemente a pobreza em um quadro de competição entre cidades, redução das políticas sociais e
empregados do condomínio; b) consumo de água e esgoto, gás, luz e força das áreas de uso comum; gestão empresarial dos serviços e das infra-estruturas? Ou, como as metas da Organização das Nações
c) limpeza, conservação e pintura das instalações e dependências de uso comum; d) manutenção e Unidas para o novo milênio poderão ser cumpridas por países submetidos às determinações do Fundo
conservação das instalações e equipamentos hidráulicos, elétricos, mecânicos e de segurança, de uso Monetário Internacional? O que se percebe nas políticas pro-poor das duas instituições, dos anos 90
comum; e) manutenção e conservação das instalações e equipamentos de uso comum destinados à para cá, é que foram capazes de alimentar um hábil marketing de responsabilidade social, enquanto
prática de esportes e lazer; f) manutenção e conservação de elevadores, porteiro eletrônico e antenas implementavam programas compensatórios e focalizados em substituição às políticas públicas de
coletivas; g) pequenos reparos nas dependências e instalações elétricas e hidráulicas de uso comum; caráter universal, as quais estavam sendo desmanchadas e privatizadas. Seu caráter substitutivo e
h) rateios de saldo devedor, salvo se referentes a período anterior ao início da locação; i) reposição do não complementar às redes universais (saúde, educação, assistência social, saneamento, etc.), como
fundo de reserva, total ou parcialmente utilizado no custeio ou complementação das despesas referidas alertou Laura Tavares, revela o verdadeiro objetivo de tais políticas”.

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juridicamente organizada, existe apesar do excesso de imóveis vazios e sem para o acesso do trabalhador aos meios de produção395 e subsistência, criando as
destinação para habitação. condições para sua liberdade especificamente capitalista. Assim, ao “possibilitar
O direito não poderia abolir “por decreto” a renda fundiária e o juro do a reprodução do trabalho assalariado, a apropriação da renda também se torna
proprietário fundiário. Tampouco um decreto desta natureza poderia levar à possível” 396, nascendo então uma classe de proprietários fundiários em pleno
resolução da “questão da habitação”. Engels ironizada as propostas proudho- capitalismo. No tópico anterior se verificou as funções específica que estes de-
nianas neste sentido, as quais acreditavam que abolir o juro do proprietário vem cumprir neste contexto.
fundiário levaria à disponibilização efetiva, pelos proprietários, de casas para os Marx problematizou, em manuscritos não publicados em vida, que, para es-
trabalhadores sem-teto. Não se poderia resolver esta questão com a proibição tar satisfeita a condição de desapropriação e de liberdade da classe trabalhado-
de extração de renda fundiária e juro de “uma única subespécie de capitalistas, ra, não necessariamente a propriedade deveria ser de um agente privado – ela
mais precisamente aqueles capitalistas que nem mesmo fazem compra direta da poderia ser propriedade do Estado, caso em que seria “propriedade comum da
força de trabalho e, portanto, não levam à produção de nenhum mais-valor”. classe burguesa, do capital”397. A razão que ele apontou para que tal não se
É dizer, a explicação daquela escassez não é a mera vontade ou ganância dos generalizasse é de natureza mais ideológica: um ataque do Estado à forma pro-
proprietários fundiários, mas o sociometabolismo do capital que se fundamenta priedade fundiária poderia colocar em dúvida, para os agentes capitalistas em
na extração de mais-valia do trabalho. geral, as intenções do Estado quanto à propriedade dos meios de produção398.
Neste quadro, não há reforma jurídica da lei do inquilinato que possa re- Mas estruturalmente, a função da propriedade fundiária e da renda como regu-
solver a questão do acesso à habitação digna para a população de baixa renda.
Apenas descuidando da compreensão sobre o papel do direito no contexto
atual é que se pode defender esta linha de raciocínio. No século XIX, Engels
ironizava o ponto de vista de Proudhon, a quem escapava a especificidade das ao invés de “propriedade fundiária”, para a palavra landed property. Obviamente, aquela tradução
é completamente descabida no contexto em questão, gerando imensa confusão, já que no período
formas jurídica e política, escapava “toda e qualquer noção da conexão entre capitalista não se pode afirmar que haja relações feudalismo senão como reminiscência histórica e a
as leis do Estado e as condições de produção da sociedade”, de modo que as landed property, de onde é extraída renda da terra no contexto capitalista, estão em relações sociais
leis do Estado apareceriam “necessariamente como ordens puramente arbi- completamente diferentes das que estavam no período histórico do feudalismo, por mais resquícios
de parasitismo nobiliárquico que existam nas relações em que tomam parte. Daí a opção por uma
trárias, que a qualquer momento podem também ser substituídas por ordens tradução historicamente mais precisa.
diametralmente opostas”393. 395 Neste caso, é comum exemplificar com a propriedade fundiária e na produção via cultivo da terra,
mas se poderia pensar também na terra urbana que poderia servir de suporte para a produção de
equipamentos urbanos.
4.3. Programas públicos de aluguel social e locação social 396 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 462.

– a experiência recente da cidade de São Paulo 397 K. MARX, Theories of Surplus Value, Londres, Lawrence and Wishart, parte 3, 1972, p. 44, apud D.
HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 463. A obra “Teorias da Mais-Valia - A História Crítica
do Pensamento Econômico (Livro IV de O Capital)” trata-se da sistematização, por Kautsky, dos
Como já observou Harvey, “a barreira que a [rectius] propriedade fundiária manuscritos de Marx para escrever O Capital, publicada em 1905.
coloca entre o trabalho e a terra é socialmente necessária para a perpetuação 398 K. MARX, Theories of Surplus Value, Londres, Lawrence and Wishart, parte 3, 1972, p. 104, apud
do capitalismo”394, já que a propriedade fundiária funciona como uma barreira D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 463. Harvey ainda desenvolve o ponto para afirmar
que “por isso, a preservação, e até melhoria, da propriedade privada na terra desempenha uma
função ideológica e legitimadora para todas as formas de propriedade privada; daí, argumentariam
alguns, a importância de conferir privilégios de moradia (possessão de um meio de consumo) à classe
393 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 59.
trabalhadora. Desse ponto de vista, podemos encarar a renda como um pagamento suplementar
394 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 462, rectius, conforme D. HARVEY, The Limits to Capital, permitido aos proprietários de terra para preservar a santidade e a inviolabilidade da propriedade
1982, p. 343 e seguintes. A tradução disponível em português da obra usa a expressão “feudalismo”, privada em geral”.

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ladoras da alocação da terra aos usos no sistema do capital399 poderia ser cum- pessoas acima de 60 anos; pessoas em situação de rua; pessoas com defi-
prida tanto pelo Estado, como de fato este faz em dados contextos400, quanto ciência; e moradores em áreas de risco e de insalubridade.
por agentes privados. A experiência paulista foi a primeira do país e, até o momento, se man-
Caso o trabalhador não possa adquirir imediatamente um imóvel, tornar- tém como único parque público de habitação popular. Para o Programa
-se mutuário de valores para a aquisição deste imóvel. Se não puder emprestar de Locação Social foram construídos ou reformados prédios na região
os valores de que necessita, pode acessar a habitação pagando aluguéis a um central, viabilizando cinco empreendimentos e um total de 853 unida-
senhorio. Mas e se esta opção também for inacessível ao trabalhador, como de des habitacionais. No entanto, lamentavelmente, a prefeitura não desen-
fato é para a população de baixa renda? Também aí o Estado pode aparecer com volveu um trabalho social sistemático para inserção social dos morado-
res, conforme estabelecido na Resolução do Programa, e a gestão ficou
soluções públicas para atender a estas parcelas da classe trabalhadora.
bastante limitada ao patrimônio. Esse abandono gerou muitos problemas
Na cidade de São Paulo, algumas experiências pontuais pretenderam for-
às famílias, aos empreendimentos e ao próprio programa”401.
necer moradia a estes trabalhadores, mas até hoje não passaram justamente de
experiências sem aptidão alguma para generalizar-se e confrontar as formas da Neste modelo, o Município é proprietário dos imóveis e os aluga a famílias
circulação impostas pelo sociometabolismo do capital. No governo Marta Su- de baixa renda, conforme as possibilidades de pagamento destas. Trata-se da
plicy (2001-2004), foi criado o Programa de Locação Social, um serviço público única experiência brasileira que começou a constituir um parque público de ha-
que consistia em disponibilização de moradias a pessoas de baixa renda – renda bitação social. No entanto, o programa não adquiriu escala para atender sequer
menor que três salários mínimos – no centro da cidade: o restrito público alvo inicial, em especial as mais pauperizadas na população
de baixa renda: “pessoas acima de 60 anos; pessoas em situação de rua; pessoas
“provocada pela pressão da luta popular, a prefeitura toma a iniciativa de
produzir habitação de interesse social no centro da cidade, com o muni-
com deficiência; e moradores em áreas de risco e de insalubridade”.
cípio mantendo-se proprietário dos imóveis e alugando-os a baixo custo O programa foi regulamentado pela Resolução CFMH n.º 23 de 2002 e pela
para famílias de baixa renda. Inicia-se, assim, o Programa de Locação Instrução Normativa 01/2003 da Secretaria Municipal de Habitação. Consi-
Social como uma alternativa que visava garantir a inclusão habitacional derando que a própria Exposição de motivos daquela resolução supunha uma
da população de baixa renda na região central, mantendo o trabalhador demanda de 600 mil moradias402, a experiência foi definitivamente pontual e
próximo à infraestrutura urbana. O programa é dirigido a pessoas sós e residual: apenas 853 unidades habitacionais foram viabilizadas, num total de 6
a famílias cuja renda seja de até três salários mínimos ou àqueles cuja empreendimentos entregues ao longo de várias gestões municipais: Parque dos
renda per capita familiar seja inferior a um salário mínimo. É prioritaria- Gatos e Olarias entregues em 2004; Vila dos Idosos em 2007; Asdrúbal Nasci-
mente destinado à população que se encontra nas seguintes situações: mento e Senador Feijó, em 2009; e o Palacete dos Artistas, em 2014.

399 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 473 afirma que “O mercado fundiário molda a alocação 401 L. KOHARA, F. COMARU e M. C. FERRO, Pela retomada dos programas de locação social, disponível
do capital à terra e, desse modo, molda a estrutura geográfica da produção, da troca e do consumo, a em https://observasp.wordpress.com/2015/04/22/pela-retomada-dos-programas-de-locacao-social/,
divisão técnica do trabalho no espaço, os espaços socioeconômicos da reprodução e assim por diante”. acesso em 24 mar. 2016.
400 Na seara habitacional, o exemplo clássico é Cingapura, em que 82% da população vive em imóveis 402 Lê-se na exposição de motivos (disponível em http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias /
públicos, sendo considerado um caso de sucesso na questão da habitação para trabalhadores upload/RESOLUCAOCFMH23_1252610964.pdf, acesso em 24 mar. 2016) que “Nos setores de baixa
pauperizados. O parque habitacional é financiado por descontos de 20% sobre o salário dos renda, há uma demanda de aproximadamente 600 mil pessoas, conforme estimativa da FIPE, em
trabalhadores do país. Vide, por exemplo, B. YUEN, Squatters no More: Singapore Social Housing, 1994, que vivem em cortiços, isto é, fora do mercado formal, em péssimas condições de habitabilidade
In http://www.globalurban.org/GUDMag07Vol 3Iss1/Yuen.htm, acesso em 25 mar. 2016, em que se e submetidas a explorações nos valores dos aluguéis. Os encortiçados submetem-se às condições dos
aponta que “Enquanto os pobres em outros lugares são sem-teto, os 20% mais pobres dos agregados cortiços devido à falta de ofertas de moradias para locação acessível a sua renda e, também, porque
familiares em Singapura têm igual acesso aos recursos de habitação, ainda que habitação pública, e muitos, por trabalharem no mercado informal, não possuem comprovação de renda... Além disso, a
muitos são os proprietários” (tradução livre). pesquisa realizada pela FIPE em 2000, identificou aproximadamente 9.000 pessoas vivendo nas ruas

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O programa locação social impunha a necessidade de “Reavaliar, direta ou ceria social”, além de auferir de 1 a 3 salários mínimos, as famílias deveriam
indiretamente, a cada (24) vinte e quatro meses, a situação sócio-econômica se enquadrar em algum outro critério de elegibilidade previsto na Instrução
dos beneficiários, assegurando a adequação do subsídio concedido às necessi- Normativa SEHAB 02/2009404.
dades dos beneficiários” (Instrução Normativa 01/2003 SEHAB, artigo 2º, g). Neste novo programa, o Estado paga o valor de R$ 300 reais por mês ao
Isto se explica pela própria natureza deste programa, tido como de atendimento beneficiário, pelo prazo máximo de 30 meses. Este valor é declaradamente um
habitacional provisório – a estruturação familiar que seria facilitada pelo supri- “auxílio” para ajudar a complementar o valor dos aluguéis normalmente cobra-
mento de moradia deveria permitir à família, subsequentemente, acessar um dos na cidade. Mas além do pagamento em dinheiro, o programa exige contra-
programa para atendimento habitacional definitivo, em regra, um financiamen- partidas das famílias, como a obrigação de todos os membros da família maiores
to habitacional para a aquisição da “casa própria”. Isto demonstra já demonstra de 18 (dezoito) anos providenciar documentação pessoal completa: CPF, RG,
uma fragilidade inicial do programa locação social. Título de Eleitor, Certificado de Reservista; a obrigação de frequência em aula
Um outro programa403, denominado “Parceria Social” (disciplinado pela dos filhos em idade escolar; a obrigação de manter a vacinação em dia; a obri-
Resolução CMH n.º 31/2007 e Instrução Normativa SEHAB 02/2009), insti- gação de mulheres grávidas de realizar pré-natal; a obrigação de fazer depósitos
tuído no governo Gilberto Kassab (2006-2009; 2009-2013), muda a natureza em sua caderneta de poupança, a fim de criar uma reserva monetária.
da intervenção pública – ao invés de um parque público de habitações, o Es- Em 2015, entrou em vigor a Portaria n.º 131 da Secretaria Municipal de
tado fornece diretamente valores monetários aos beneficiários para que estes Habitação, a qual tem como objetivos “estabelecer alternativas de atendimen-
paguem aluguéis no mercado privado. Assume, assim, a natureza de programa to habitacional provisório, fixar os valores limites e regulamentar as con-
de transferência de renda. dições e os procedimentos para a sua concessão e manutenção”. Por meio
O critério básico de elegibilidade define como beneficiários famílias com deste programa de aluguel social a Prefeitura paga R$ 400,00 para auxiliar no
renda de 1 a 3 salários mínimos. Isto significa que indivíduos e famílias em pagamento de aluguéis.
situação de extrema vulnerabilidade econômica, auferindo menos de 1 salário Em seu artigo 1º, parágrafo 1º, a portaria estabelece que o atendimento ha-
mínimo mensal, não poderia ser beneficiário do programa público de atendi- bitacional provisório é “a concessão de benefício financeiro complementar à
mento habitacional provisório. A estas pessoas restaria a assistência social. renda familiar, com a finalidade de auxiliar à família na cobertura das despesas
Há, portanto, uma restrição clara do público alvo em relação ao programa com moradia”. O auxílio que a portaria estabelece é uma forma de atendimento
anterior, que não estabelecia renda mínima para acesso. No programa “par- habitacional provisório.
A portaria elenca como beneficiários do auxílio moradia famílias que se
da cidade de São Paulo”. Ainda que se leve em conta a contagem da Fundação João Pinheiro, de
enquadrem em situação de extrema vulnerabilidade, que necessitem de comple-
2010, que apontava déficit habitacional de cerca de 210 mil unidades na cidade de São Paulo (http:// mentação financeira para cobrir despesas habitacionais, elencando rol taxativo
www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/216-deficit-habitacional-municipal- das situações passíveis de atendimento: famílias “que se enquadre nos limites de
no-brasil-2010/file, acesso em 24 mar. 2016), o número de unidades disponibilizadas no programa
ainda é residual.
403 Houve, ainda, outros programas de atendimento habitacional provisório ainda mais residuais, cabendo 404 a) pessoas em situação de rua atendidas na rede de proteção social especial, conveniadas com a
mencionar o aluguel social, também conhecido como auxílio-aluguel, que não está regulamentado SMADS; b) idosos com atividade remunerada, aposentadoria ou benefício de prestação continuada;
formalmente, sendo concedido a partir de análises de conveniência e oportunidade pela Prefeitura, c) mulheres e/ou famílias com filhos em situação de rua e/ou vítimas de violência; d) pessoas sós
normalmente em casos de grande comoção pública; o Programa Bolsa Aluguel (disciplinado pela em situação de rua e em processo de trajetória de inclusão social; e) famílias com filhos crianças e
Resolução do Conselho Municipal de Habitação nº 04/2004 e pela Instrução Normativa SEHAB adolescentes abrigados ou em vias de abrigamento; f) aos moradores em áreas de risco; g) às pessoas
01/2004), anterior ao programa parceria social, pretendia fornecer subsídio para aluguel a famílias ou às famílias em alojamentos provisórios; h) às pessoas ou às famílias em áreas desapropriadas pela
com renda de 1 a 10 salários mínimos; e a Verba de Atendimento Habitacional (VAH), disciplinado Prefeitura do Município de São Paulo; i) famílias desalojadas por obras públicas. Caberá ao Secretário
pela Portaria 138/06, que visa a atender famílias provenientes de favelas, loteamentos irregulares e de Habitação definir, diretamente ou pela Superintendência de Habitação Popular-HABI, quais serão
cortiços em processo de urbanização, ou de regiões de risco. as áreas de intervenção cujos ocupantes serão beneficiados pelo Programa.

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renda previstos no artigo 8º [até 4 membros, 2.400 reais; 5 ou mais membros, imóvel sem uso aguardando valorização decorrente de investimentos públicos ou
500 reais per capita] e que se encontre em alguma das seguintes situações: a) privados na região, ou aguardando a viabilidade de alugar por preços que cubram
família com titulares idosos ou com idosos na composição familiar, com ren- juros e renda), alguns sequer seriam disponibilizados para aluguel (mesmo porque
da insuficiente ou sem condições de trabalho, observados os demais critérios não há legislação que os obrigue a tanto, muito menos políticas efetivas que impe-
previstos nesta Portaria; b) família com pessoas portadoras de deficiência ou çam o uso especulativo da propriedade urbana, como já apontado anteriormente
com doenças crônicas graves; c) família sob a chefia de mulher em situação de neste trabalho). Porém, outros poderiam entrar no mercado assim que os proprie-
violência doméstica; d) família com menor(es) em situação de desacolhimento” tários entenderem que é vantajoso alugar pelos preços de mercado, considerando
(artigo 2º, par. 3º, a). o nível de retorno monetário (que inclua os juros sobre o capital investido e a ren-
Assim, a Prefeitura de São Paulo mantém, de forma absolutamente pre- da) possível. Trata-se de equação econômica que não é simples de resolver dadas
cária e residual, uma miríade de programas de acesso à moradia que envolvem, outras variáveis possíveis, como o nível geral de salários.
por um lado, um pequeno parque público de habitações em que as famílias re- Já o Programa Locação Social funciona pelo fornecimento direto de mora-
sidentes pagam aluguel ao governo, não em valores de mercado, mas de acordo dia pelo Estado mediante remuneração paga de acordo com a capacidade do
com a capacidade de pagamento de cada família e, por outro lado, o forneci- locatário. Caso os custos de manutenção sejam maiores que os valores pagos
mento direto de dinheiro a famílias de baixa renda para subsidiar o pagamento pelo conjunto dos locatários, um fundo público é mobilizado para fazer frente
de aluguéis no mercado imobiliário privado. a tais custos. Neste programa, o Estado aparece como proprietário do parque
Nenhum destes programas se apoia no acesso à propriedade privada, porém, habitacional e o fundo público subsidia os trabalhadores que não podem fazer
o alcance de todos é absolutamente restringido no contexto do sociometabolis- frente aos custos de mercado de manutenção dos imóveis. Não há juros ou ren-
mo do capital pelos imperativos da propriedade fundiária urbana. da no preço do aluguel, mas custos administrativos cobertos pelo pagamento de
Realmente, os programas de primeiro tipo (“aluguel social”), que fornecem impostos – portanto, pela parcela da mais-valia destinada ao Estado. Na cidade
dinheiro para pagamento de aluguéis de imóveis para moradia, funcionam de São Paulo, como visto, o programa é residual – apenas 853 famílias são bene-
como programas de transferência de renda, com destinação específica dos va- ficiadas pelo programa. Fosse o programa realizado em escala, certamente teria
lores pagos para dado bem de subsistência. Não há dados oficiais disponíveis efeitos no mercado imobiliário privado, rebaixando o valor do aluguel neste,
para a cidade de São Paulo, mas estima-se que cerca de 30 mil pessoas estejam mas possivelmente aumentando especulativamente o valor da terra com a mo-
recebendo atualmente benefícios do tipo “aluguel social”. Como política de sub- bilização de fundos públicos para a aquisição do parque habitacional.
sídio para auxílio a pessoas em dificuldades financeiras, ela estimula a inserção Pode-se fazer um paralelo entre a locação social e “vila operária”: nesta o
destas pessoas no mercado de aluguéis, estimulando, portanto, o setor privado capitalista fornece moradia, naquela outra, o Estado. Engels, analisando a situ-
de locações. Assim, tem características marcadamente neoliberais de estímulo ação da Inglaterra, onde os grandes fabricantes rurais “há muito reconheceram
de criação de mercados e de disciplinamento dos trabalhadores por meio da que a instalação de moradias para trabalhadores é não só uma necessidade e
concessão condicionada de benefício social. parte da própria planta da fábrica, mas também muito rentável...”, constata que
Um dos argumentos frequentemente usados contra programas de aluguel so- “Os trabalhadores, porém, em vez de se sentirem gratos aos capitalistas filan-
cial é o de que os subsídios gerariam inflação do preço do aluguel. Realmente, o trópicos, desde sempre fizeram sérias objeções a esse ‘sistema de cottage’”. Isto
mero acréscimo de dinheiro no mercado de aluguel pode ter efeito inflacionário. “Não só porque têm de pagar preços monopolizados pelas casas, visto que o
Porém, este efeito poderia ser imediatamente superado pela disponibilização de dono da fábrica não tem concorrentes, mas também porque, a cada greve, eles
imóveis que antes estavam fora do mercado. Isto poderia ocorrer realmente ocor- ficam desabrigados”405. No caso da locação social, igualmente, parece muito
rer na cidade de São Paulo, já que há grande estoque de imóveis vazios na cidade.
Muitos destes imóveis estão vazios especulativamente (os proprietários deixam o 405 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 83.

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rentável para os capitalistas que o Estado forneça moradia de acordo com a “Está claro como a luz do sol que o Estado atual não pode nem quer
capacidade de pagamento do trabalhador – isto deveria permitir, desde logo, o remediar o flagelo da falta de moradias. O Estado nada mais é que a
rebaixamento dos salários deste, que poderia ser compensado com aumento da totalidade do poder organizado das classes possuidoras, dos proprietários
participação estatal na mais-valia, tendo em vista a necessidade de manutenção de terras e dos capitalistas em confronto com as classes espoliadas, os
agricultores e os trabalhadores. O que não quererem os capitalistas indi-
do programa habitacional. Como no caso do fornecimento de moradia pelos
viduais (e são só eles que estão em questão aqui, dado que, nesse assun-
próprios capitalistas, “todo e qualquer investimento de capital que satisfaça uma
to, o proprietário de terras também aparece, em primeira linha, em sua
necessidade é rentável quando gerido de maneira racional” 406. Mas então, isto qualidade de capitalista) tampouco quer o seu Estado. Portanto, embora
vale para ambas, “por que, apesar disso, perdura a escassez de moradia?”407. A individualmente o capitalista lamente a escassez de moradia, dificilmen-
exclusão habitacional se evidencia pelo fato de que a taxa de imóveis vagos é te mexerá um dedo para dissimular mesmo que superficialmente suas
superior à demanda por moradia408. A falta de habitação é uma imposição do consequências mais terríveis, e o capitalistas global, o Estado, também
lado da oferta de imóveis e é aí protegida juridicamente409. Para a cidade de São não fará mais do que isso”412.
Paulo, de acordo com os dados da prefeitura municipal, atualmente o déficit
habitacional é de 230 mil moradias, e 89 mil famílias vivem em condições pre- A escassez de moradia perdura, apesar de estarem à mão diversas “soluções
cárias410. O número de imóveis vazios contados em São Paulo pelo último Censo racionais” para ela, porque esta é uma necessidade do sociometabolismo do
do IBGE era de 290.000411. capital. No quadro traçado por Engels, ainda absolutamente atual, nada es-
Tratando do “auxílio do Estado” para a realização da necessidade básica ha- panta que no Brasil a habitação não seja tratada como um serviço público,
bitacional dos trabalhadores, Engels analisa as propostas de Emil Sax (“As Con- mas como um problema a ser resolvido por mecanismos de mercado; que o uso
dições de Moradia das Classes Trabalhadoras e Sua Reforma”, Viena, 1869); especulativo da terra não tenha a menor sanção jurídica; e que os programas
para este, o Estado, primeiro, deveria erradicar toda legislação que pudesse pro- de aluguel social e locação social existentes não interfiram efetivamente nos
mover a escassez de moradia; segundo, deveria realizar inspeções sanitárias e mercados imobiliários.
vistorias arquitetônicas nas moradias disponibilizadas aos trabalhadores; tercei- Programas de aluguel social e de locação social como os desenvolvidos em
ro, o Estado deveria remediar ativamente a escassez de moradia existentes. Nos São Paulo, sem relação com medidas urbanísticas que evitem o uso especu-
interessa, neste ponto, esta última solução. Afirma Engels: lativo dos imóveis e da terra urbana, têm como efeito estimular os mercados
imobiliários e fornecer paliativos à questão da falta de habitações. Dadas as
políticas públicas habitacionais realmente existentes (basicamente o Progra-
406 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, pp. 89-90.
ma Minha Casa, Minha Vida e estas políticas) e os programas esparsos de alu-
407 Idem.
guel social e locação social, acrescendo-se uma lei do inquilinato ao melhor
408 http://www.brasil.gov.br/governo/2010/12/numero-de-casas-vazias-supera-deficit-habitacional-d
o-pais-indica-censo-2010, acesso em 26 mar. 2016. gosto dos proprietários fundiários e uma legislação urbanística implementada
409 V. I. LENIN, O Estado e a Revolução, 1918, disponível em https://www.marxists.org/portugues / apenas naquilo em que possa estimular o livre mercado, explicita-se a ideolo-
lenin/1917/08/estadoerevolucao/, acesso em 02/04/2016, observava que “Uma coisa é, incontestável: gia sobre o direito à moradia para a população de baixa renda. A generalizada
é que atualmente, nas grandes cidades, há imóveis bastantes para satisfazer as necessidades reais de
escassez de habitação é necessária ao sociometabolismo do capital, explicita o
todos, sob a condição de serem utilizados racionalmente” e entendia que a única forma de se proceder
a esta utilização racional era “expropriar os proprietários atuais e de instalar em seus imóveis os despojamento dos trabalhadores de suas condições de produção e subsistên-
trabalhadores sem habitação ou vivendo atualmente em habitações superlotadas”. cia, tudo amparado pelo direito.
410 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1692792-cobranca-em-ocupacoes-de-sem-tet
o-divide-urbanistas-e-movimentos.shtml, acesso em 26 mar. 2016.
411 http://www.estadao.com.br/noticias/geral,sao-paulo-tem-290-mil-imoveis-sem-moradores-diz-
ibge,650598, acesso em 26 mar. 2016. 412 F. ENGELS, Sobre a Questão da Habitação, 2015, pp. 99-100.

200 201
Capítulo 5.
Pessoas em Situação de Rua e
a Questão da Habitação

“Numa palavra, censurais-nos por querermos supri-


mir a vossa propriedade. Certamente, é isso mesmo
que queremos.
A partir do momento em que o trabalho já não possa
ser transformado em capital, em dinheiro, em renda,
em suma, num poder social monopolizável, i. é, a partir
do momento em que a propriedade pessoal já não pos-
sa converter-se em propriedade burguesa, a partir desse
momento declarais que a pessoa é suprimida.
Concedeis, por conseguinte, que por pessoa não enten-
deis mais ninguém a não ser o burguês, o proprietário
burguês. E esta pessoa tem certamente de ser suprimida.
(...)
Para o lugar da velha sociedade burguesa com as suas
classes e oposições de classes entra uma associação em
que o livre desenvolvimento de cada um é a condição
para o livre desenvolvimento de todos.”
(Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido
Comunista)

5.1. Sobre as pessoas em situação de rua


Na análise da situação habitacional das pessoas em situação de rua é que
se explicita com mais agudeza como a “exclusão habitacional” é inerente ao
funcionamento do capitalismo e, portanto, do sistema jurídico. Os problemas
desta parcela da população de baixa renda, as pessoas em situação de rua, são

203
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capturados por uma gramática jurídica específica. Como tende a ocorrer com plêndido palácio de Bayswater, onde se encontram o velho e o novo bair-
os direitos sociais, fora desta gramática não há meios de expressão para tais pro- ros aristocráticos, numa área da cidade onde o requinte da arquitetura
blemas. Bom, claro, resta ainda a luta política. Mas nesta seara também há uma moderna prudentemente impediu que se construísse qualquer moradia
gramática restrita, também há campos de luta determinados, em especial pelas para a pobreza, numa área que parece consagrada ao desfrute da riqueza,
é assustador que exatamente aí venham instalar-se a fome e a miséria,
instituições representativas e partidárias – e, no caso das pessoas em situação de
a doença e o vício, com todo o seu cortejo de horrores, destruindo um
rua, os meios de representação política são absolutamente precários.
corpo atrás de outro, uma alma atrás de outra! (...) Que todos reflitam e
Pessoas em situação de rua é um fenômeno praticamente universal nas gran- compreendam, não para construir teorias, mas para agir. Sabe Deus que
des cidades do sistema socioeconômico capitalista. No século XIX, ao analisar a atualmente há muito que fazer ali!”414
situação das classes trabalhadoras na Inglaterra, Engels já verificava que
A atualidade do noticiário é espantosa. O autor continua com a descrição da
“No fim das contas, porém, os que dispõem de todo modo de um teto são superlotação e da falta de vagas nos albergues:
mais felizes que aqueles que não o têm: todas as manhãs, em Londres, 50
mil pessoas acordam sem a menor ideia de onde repousarão a cabeça na “Já mencionei os albergues para os desabrigados – a que ponto estão
noite seguinte. Dessas 50 mil pessoas, afortunadas são aquelas que con- lotados, mostram-nos dois exemplos. Um Refuge of houseless [Refúgio
seguem 1 ou 2 pence para pagar um abrigo nos albergues noturnos (lod- para desabrigados], recentemente construído na Upper Ogle Street e que
ging-houses) que, numerosos, existem em todas as grandes cidades. Mas pode abrigar trezentas pessoas por noite, acolheu, de sua abertura em 27
que abrigo! Os alojamentos estão cheios de camas, de alto a baixo: num de janeiro até 17 de março de 1844, por uma noite ou mais, 2.740 pessoas
quarto, quatro, cinco e seis camas, quantas caibam e, em cada cama, – e, embora o tempo se tornasse menos inclemente, o número dos que
empilham-se quatro, cinco e seis pessoas, também quantos caibam, - demandam hospitalidade aumentou consideravelmente aí, tanto como
sadias e doentes, velhos e jovens, homens e mulheres, sóbrios e bêbados, nos albergues da Whitecross Street e de Wapping, e todas as noites uma
todos misturados. Naturalmente, discutem, agridem-se, ferem-se e, se multidão de desabrigados não podia ser atendida por falta de espaço. Um
chegam a algum acordo, pior ainda: planejam roubos e entregam-se a outro, o albergue central de Playhouse Yard, que dispõe de 460 camas,
práticas cuja bestialidade nossa língua humanizada se recusa a descrever. abrigou nos três primeiros meses de 1844 um total de 6.681 pessoas,
E quanto àqueles que nem esse tipo de alojamento podem pagar? Pois distribuindo 96.141 rações de pão. Contudo, seu comitê diretor declarou
bem: dormem em qualquer lugar, nas esquinas, sob uma arcada, num que o estabelecimento só se mostrou de algum modo suficiente em rela-
canto qualquer onde a polícia ou os proprietários os deixem descansar ção à demanda quando foi aberto um outro albergue na região leste”415.
tranquilos; alguns se acomodam em asilos construídos aqui e acolá pela
beneficência privada, outros nos bancos dos jardins, quase sob as janelas Estas longas citações são necessárias para fins de contraste com a situação
da rainha Vitória.”413. atual das classes trabalhadoras sem teto e em situação de rua. Praticamente,
não há contraste algum. A situação da assistência social a estas pessoas hodier-
Nada disso foi inventado pelo socialista alemão, sendo realidade notória,
namente não se distancia do relato de Engels, exceto talvez pela escala mundial
publicada e noticiada na época – citando o The Times, de 12 out. 1843,
da desigualdade e do modelo de atendimento aos excluídos em sociedades que
continua Engels:
funcionam segundo o sistema sociometabólico do capital416.
“... Mas é assustador que, no próprio recinto da riqueza, da alegria e da
elegância, junto à grandeza real de St. James, nas proximidades do es- 414 F. ENGELS. A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, 2008, p. 75.
415 Idem, p. 76.
416 Há grande dificuldade em calcular a quantidade global de pessoas em situação de rua, a começar pelas
413 F. ENGELS. A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, 2008, p. 75. diferentes metodologias utilizadas nos diversos países para a contagem, além da própria divergência

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Em São Paulo, o número de pessoas em situação de rua contadas no censo não teria condições de adquiri-la integralmente com a renda que aufere. Daí
da população em situação de rua417 de 2011 era de 14.478, sendo que destas, o governo manter políticas de subsídios públicos para a aquisição proprietária.
7.713 foram contadas em albergues418 ou centros de acolhida. Já em 2015, Como foi visto neste trabalho, o principal programa governamental dos últimos
o número sobe para 15.905, sendo 8.570 acolhidos419. Os principais motivos anos, o Programa Minha Casa, Minha Vida, tem como foco o subsídio finan-
para que nem todas as pessoas em situação de rua passem a noite nestes cen- ceiro à habitação, com claras finalidades macroeconômicas e baixa efetividade
tros de acolhida municipais se relacionam à precariedade do atendimento, na solução do direito à moradia para a população de baixa renda – em especial,
com quartos coletivos, sem qualquer resguardo da intimidade das pessoas; às para as pessoas em situação de rua, para quem o programa não chega. Este pro-
regras rígidas dos albergue, nem sempre compatíveis com casos individuais grama em pouco altera a exclusão habitacional estrutural.
(por exemplo, o horário de entrada às 17hs é incompatível com o horário de Uma coisa é comum a todas as políticas habitacionais: elas não têm como
trabalho de pessoas em situação de rua que trabalham em horários variados) e público alvo pessoas das faixas de renda mais baixas, com rendimentos instáveis
por vezes arbitrárias; ao não acolhimento de famílias (os albergues são mascu- no tempo ou sem renda e, particularmente, não se dirigem a pessoas em situa-
linos ou femininos, no máximo aceitando crianças nestes últimos, numa cari- ção de rua420. Isto ocorre porque estas políticas são pautadas pela propriedade
cata discriminação de gênero); além da própria ausência de vagas (se todas as privada e pelo mercado de crédito (público ou privado). No Brasil, o Estado
15.905 pessoas fossem aos albergues, simplesmente cerca de 7.000 teriam que fornece ao trabalhador subsídios para adquirir a mercadoria habitação e se tor-
se contentar com o sereno das ruas). nar proprietário dela. Não são raros os casos em que a instabilidade da vida da
Enquanto os albergues são objeto das políticas de assistência social, questões população de baixa renda leva à necessidade de alienar421 o bem adquirido para
relacionadas a atendimento habitacional são objeto de políticas completamente satisfazer outras necessidades, retornando ao aluguel ou à condição de sem-teto.
apartadas destas. Já foi apontado: o atendimento habitacional para a popula-
ção de baixa renda é tratado em regra como uma via para a aquisição de uma
mercadoria por quem, pelas regras vigentes no mercado comum de moradia,
420 Uma notícia de que um “morador de rua” foi contemplado no Rio de Janeiro pelo programa Minha
Casa, Minha Via (entre 15 que foram inscritos por uma assistente social no programa) apenas serve
para demonstrar a casualidade e excepcionalidade do acontecimento, quanto ao qual inexiste qualquer
sobre a definição de quem seja uma pessoa em situação de rua ou desabrigada, para não falar do política pública sistemática de atendimento: “Primeiro morador de rua do RJ contemplado pelo ‘Minha
negacionismo sobre o problema por parte de alguns governos. A ONU estima em 100 milhões o Casa, Minha Vida’ vai se mudar para apartamento. Sebastião Luiz da Silva, de 39 anos, está dando
número de pessoas em situação de rua, uma estimativa considerada conservadora. Em 2005, um adeus às duas décadas que passou como morador de rua. Ele foi contemplado pelo programa Minha
relatório (E/CN.4/2005/48, 3 March 2005, COMMISSION ON HUMAN RIGHTS, Sixty-first Casa, Minha Vida, do governo federal, e agora terá um endereço fixo no bairro Santa Cruz, no Rio
session) do Relator para o Direito à Moradia Adequada da ONU, Miloon Kothari, se debruçou sobre de Janeiro. A inscrição foi feita pela assistente social Patrícia Cristina Santana, do Centro Municipal
as questões relacionadas à população em situação de rua. Segundo o Relator, as causas para a situação Especializado em Atendimento à População de Rua (Centro Pop) José Saramago, da Secretaria
de rua são diversas, como a falta de habitação a preços acessíveis (aqui deve-se pensar tanto em municipal de Assistência Social. Ele foi o primeiro morador de rua a ser sorteado no estado. Outros
compra e venda, como em aluguel de imóveis para habitação), a especulação em habitação e terra catorze também estão inscritos no programa. Tiãozinho, como é conhecido, foi conhecer na sexta-
para fins de investimento, a privatização dos serviços à comunidade, os conflitos étnicos armados feira (8) o apartamento onde vai morar, com dois quartos, sala, cozinha e banheiro no condomínio
e a rápida e má planejada urbanização. O relator constata a abrangência mundial do problema e a de 25 prédios, com salão de festas, além de quadras, jardins, horta e um parque. Ele recebe R$ 60
necessidade de uma abordagem para o problema que combine direitos humanos e direito humanitário. do Bolsa Família, dos quais vai retirar R$ 25 por mês pelo apartamento. Além disso, ganha R$ 100
mensais como ajudante em uma barraca no centro da cidade. ‘Estou muito feliz. Vou ter minha casa e
417 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/assistencia_social/arquivos/Cops/Mo
poder assistir ao jogo do Flamengo no sofá. E vou tomar banho quente. Sou abençoado’, afirmou em
nitoramento/censo2011.pdf, acesso em 20 de abr. de 2015.
entrevista à imprensa”, in http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/05/primeiro-morador-de-rua-
418 Chamados em São Paulo de Centros de Acolhida para a população em situação de rua; referidos contemplado-pelo-minha-casa-minha-vida-vai-se-mudar-para-apartamento/, acesso em 14 jun. 2015.
no Decreto da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto 7053/2009) como
421 Isto para não falar das alienações especulativas, pelas quais algumas pessoas se aproveitam dos
serviço de acolhimento temporário.
subsídios estatais e da falta de fiscalização de empresas como CDHU e Cohab para especular sobre
419 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/assistencia_social/observatorio_social imóveis destinados ao atendimento habitacional da população de baixa renda, o que impacta o acesso
/2015/censo/FIPE_smads_CENSO_2015_coletivafinal.pdf, acesso em 20 abr. 2015. – ou, especialmente, a falta de acesso - desta população à moradia.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Caso não tenha renda suficiente para um aluguel, nem apoio familiar ou social, Como deve ter ficado claro ao longo deste trabalho, são antes a lei do valor
habitar nas ruas será a única saída. e a institucionalidade jurídica, mais do que a disponibilidade de espaços habitá-
A relatora da ONU para o direito à moradia entre 2008 e 2013, Raquel Rol- veis, que são decisivas para a “escassez” de imóveis, para impedir o acesso à ha-
nik, já observou que o mercado habitacional, submetido à lógica financeira, não bitação para aqueles que não possam pagar. O direito, por meio dos instrumen-
conduziu a soluções de moradia adequada para os mais pobres422. Ainda mais, tos de política urbana, não interfere ou interfere muito pouco na quantidade de
políticas financeiras habitacionais levaram ao aumento das desigualdades na imóveis vazios. Isto impactará não apenas o setor habitacional strictu sensu, mas
questão da habitação, “aumentando a insegurança da posse, localizações ruins também as habitações destinadas às pessoas em situação de rua pela assistência
e baixa habitabilidade, segregação social e, por vezes, aumento da população em social. Cria-se, então, um atendimento precário, tão próximo quanto possível
situação de rua”423. do atendimento prestado no sistema penitenciário426, para a população excluída
Esta tendência já vinha sendo observada pelo anterior relator para o direito por completo do acesso à habitação427.
à moradia, Miloon Kothari, que observava que cidades em países em desenvol- O heterogêneo agrupamento social que não tem mínimas condições de ad-
vimento que atraiam com sucesso um fluxo de capital privado normalmente quirir a mercadoria moradia, que nem mesmo se enquadra em critérios de renda
enfrentavam rápido crescimento sem aumento na oferta de moradia adequada, de qualquer programa estatal de moradia e que por diversas razões usa ruas e/
resultando em um aumento do número de pobres que residem em assentamen- ou equipamentos públicos de assistência social para pernoitar forma a chamada
tos precários e em situação de rua, sem segurança ou serviços públicos. Isto população em situação de rua – também chamados “moradores de rua”. Na
aconteceria porque a forma atual de “globalização” estaria reforçando a arma-
dilha da pobreza internacional424, produzindo mão de obra barata para o capital
– como foi visto ao longo deste trabalho, esta é uma faceta da acumulação e dos Issues/Housing/Homelessness/NHRI/13112015-Public_Defender _of_Sao_Paulo_Brazil.doc, de onde
processos de espoliação e despossessão. a relatora extrai expressamente que, apesar de haver vultuosos investimentos em habitação, inclusive
com subsídios aos mais pobres, continua a haver pessoas sem teto e em situação de rua, sendo que o
Já a relatora atual para o direito à moradia, Leilani Farha, tem dado foco es- Estado tem falhado na regulamentação do mercado imobiliário, permitindo a existência de pessoas
pecial às pessoas em situação de rua, conclamando os países a acabarem com o em situação de rua). Também mencionou a relatora que as pessoas em situação de rua sofrem de
discriminação, estigmatização e criminalização. Outrossim, frisou que as pessoas em situação de rua
problema até 2030425. Porém, a dura realidade é que não haverá solução, exceto
não têm acesso a necessidades básicas como água e saneamento básico e fez um reconhecimento
se houver mudanças estruturais no sociometabolismo do capital. essencial: “Leis e políticas criam as pessoas em situação de rua e, então, as penalizam por estarem em
situação de rua”. Diante destes e de outros fatores apontados, a relatora exorta os países a focarem
não só nas circunstâncias individuais que levam à situação de rua mas também nas causas estruturais
422 Relatório Temático sobre direito à moradia adequada, A/67/286, http://direitoamoradia.org/wp-
que levam a esta situação. Diz que uma abordagem de direitos humanos é um bom ponto de partida
content /uploads/2012/09/A-67-286.pdf, parágrafo 68.
- formula, assim, o conceito da pessoa em situação de rua como sendo a falha na implementação do
423 Idem. direito à moradia. Diz que algumas das raízes destes problemas são o abandono, pelos Estados, de suas
obrigações de proteção social; e a falha dos mesmos em regular o mercado imobiliário. Ela então, por
424 Relatório sobre moradia adequada como componente do direito a um padrão de vida adequado, E/
fim, conclama os Estados a acabarem com o problema de pessoas viverem nas ruas até 2030 (prazo
CN.4/ 2005/48, disponível em http://direitoamoradia.org/wp-content/uploads/2014/07/Report_Ho
que coincide com o das Metas de Desenvolvimento Sustentável de acabar com a pobreza e fornecer
melessness_2005_EN.pdf, acesso em 20 de abr. de 2015.
moradia digna para todos). Fecha o texto dizendo que construir casas é parte de qualquer estratégia
425 Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate para dar um teto a todos, mas apenas uma reposta de direitos humanos poderá ser satisfatória
standard of living, and on the right to non-discrimination in this context, A/HRC/31/54, disponível para um problema que é de violação de direitos humanos. Vê-se, assim, que se mantêm nos limites
em http://daccess-ods.un.org/access.nsf/Get?Open&DS=A/HRC/31/54&Lang=E, acesso em 26 institucionais dos direitos humanos.
mai. 2016. A relatora frisou em texto sobre o relatório (Homelessness is not just about housing -
426 Muitos egressos do sistema prisional realmente acabam em situação de rua, ganham aí a liberdade
it’s a human rights failure, disponível em http://citiscope.org/habitatIII/commentary/2016/02/
plena para vender sua força de trabalho.
homelessness-not-just-about-housing-its-human-rights-failure#sthash.XpwKIOZZ.dpuf, acesso em
27 mai. 2016, ) que há não só homens, mas também mulheres, crianças, famílias inteiras em situação 427 Não à toa, autores como D. GARLAND, A Cultura do Controle, 2008, e A. DE GIORGI. A miséria
de rua, uma realidade que foi explicitada em informe dirigido à relatora pelo Núcleo de Cidadania governada através do sistema penal, 2006, enxergam uma correlação entre a expansão do sistema penal e
e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo (vide http://www.ohchr.org/Documents/ a retração das políticas sociais, o que será objeto de aprofundamento no desenvolvimento deste trabalho.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

mesma medida em que protege a propriedade privada, o direito evita que ela da sua força de trabalho). Mas a classe trabalhadora é não apenas o conjunto
seja acessada sem as mediações jurídicas impostas pela lei do valor. das pessoas exploradas diretamente no processo produtivo capitalista, envol-
vendo também os desempregados433 e subempregados, uma vez que formam
a superpopulação relativa ou o exército industrial de reserva essencial para o
5.2. Entre Habitação e Assistência Social capitalismo. Estes trabalhadores estão incluídos no sistema sociometabólico
Juridicamente, a assistência social define-se como “política de Estado”, do capital por esta função que nele cumprem. À aparente “exclusão social”
como “direito social”, “sob o princípio da universalidade do acesso, com a corresponde a inclusão econômica funcional.
finalidade de inserir a população no sistema de bem-estar brasileiro”428. A Marx já dividia o “sedimento mais baixo da superpopulação relativa” em: a)
assistência social reconhece institucionalmente a “legitimidade das demandas os aptos para o trabalho, cujo número “engrossa a cada crise e diminui a cada
de seus beneficiários e usuários”429. A assistência social conforma o terreno retomada dos negócios”; b) “os órfãos e os filhos de indigentes”, que “são can-
jurídico dentro do qual são definidas demandas sociais atendidas sem contra- didatos ao exército industrial de reserva e, em épocas de grande prosperidade,
partida pela seguridade social430. Trata-se do terreno jurídico que lida com as como, por exemplo, em 1860, são rápida e massivamente alistados no exército
mais graves “exclusões sociais”. ativo de trabalhadores”; e c) os “degradados, maltrapilhos, incapacitados para
A locução “exclusão social” é usada nos mais diversos sentidos, mas basica- o trabalho”, em suma, os inaptos para o trabalho, o “peso morto do exército
mente poderia ser definida para as finalidades deste trabalho como a exclusão industrial de reserva”. Estas pessoas são as que dependem da previdência e da
de certas parcelas da população dos benefícios materiais do desenvolvimento assistência social (ou, na ausência destas, da beneficência privada), são as que
econômico e dos serviços públicos estatais. O ponto de partida para a apreensão “sucumbem por sua imobilidade, causada pela divisão do trabalho”, as que “ul-
do fenômeno da exclusão social, conforme R. Coutinho, deve ser o “processo trapassam a idade normal de um trabalhador” e as que são “vítimas da indús-
que estabelece a base constitutiva do próprio capitalismo, que Marx denomina tria – aleijados, doentes, viúvas etc. –, cujo número aumenta com a maquinaria
expropriação dos trabalhadores diretos”431. É o próprio processo de produção perigosa, a mineração, as fábricas químicas etc”434. Marx mesmo é quem apon-
capitalista que cria o excedente populacional e reproduz o pauperismo432. Deste tava como esta superpopulação relativa se inclui no sistema sociometabólico do
processo decorre os correlativos processos de espoliação urbana, que dão sus- capital, in verbis: “sua produção [do pauperismo] está incluída na produção da
tentáculo à expropriação direta dos trabalhadores. superpopulação relativa, sua necessidade na necessidade dela, e juntos eles for-
Grosso modo, a classe trabalhadora são os despossuídos, aqueles que estão mam uma condição de existência da produção capitalista e do desenvolvimento
despojados dos meios de sobrevivência e de produção e que, para adquiri- da riqueza. O pauperismo pertence aos faux frais [às rubricas das despesas adi-
-lo, precisam vender sua força de trabalho em troca de um salário (e aqui a cionais, necessariamente mínimas, para o modo de produção capitalista]”435.
conceituação não excetua os trabalhadores que mantêm alto padrão de vida Aquilo que se convencionou chamar de “precariado”, a parcela da classe
e salários elevados – aquele padrão de vida só pode ser sustentado pela venda trabalhadora que enfrenta condições cada vez mais precárias de trabalho, não

428 C. SIMÕES, Curso de Direito do Serviço Social, 2014, p. 186.


433 Sobre estes, D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, p. 236, observa, inclusive, seu importante papel
429 Idem.
nas lutas sociais, apontando que “Quando olhadas mais de perto, a maioria das lutas travadas por
430 No Brasil, a seguridade social é definida como o “conjunto integrado de ações de iniciativa dos trabalhadores fabris demonstra ter uma base muito mais ampla”, questionando “que sucesso teriam
Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à tido as ocupações grevistas de Flint, de 1937, não fossem as massas de desempregados e as organizações
assistência social” (artigo 196 da CF). comunitárias diante dos portões, oferecendo apoio moral e material infalível aos grevistas”.
431 R. COUTINHO. A Mitologia da Cidade Sustentável no Capitalismo, 2011, p. 27. 434 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 974.
432 R. COUTINHO. A Mitologia da Cidade Sustentável no Capitalismo, 2011, p. 29. 435 Idem.

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se destaca conceitualmente do conceito de classe trabalhadora aqui adotado436. População em Situação de Rua (2008)439, os principais motivos para as pessoas
Ao contrário, faz parte da classe trabalhadora437, a classe que precisa vender sua estarem nesta situação dizem respeito a problemas relacionados ao uso pro-
força de trabalho para assegurar sua própria subsistência. O que diferencia esta blemático de drogas (35,5%); desemprego (29,8%) e desavenças com pai/mãe/
parcela do operariado do operário tradicional, com estabilidade trabalhista e irmãos (29,1%), sendo que 71,3% dos entrevistados citaram ao menos um desses
diversos direitos assegurados pelo Estado, é a densificação de exclusões sociais, três motivos, que podem estar correlacionados440. Os dois primeiros motivos se
a começar pelas exclusões da própria segurança do emprego e dos direitos tra- relacionam mais diretamente à impossibilidade de acessar a habitação em razão
balhistas, exclusões estas características da “globalização neoliberal”. de ausência de fonte de renda; o terceiro motivo também pode estar relacionado
Já se deixou claro neste trabalho que estas parcelas das classes trabalhadoras a isto, mas há também um elemento de impossibilidade de acesso ao patrimônio
têm uma importância crucial quando se pensa nas perspectivas atuais das lutas familiar que torna o problema menos diretamente econômico, mas também
sociais. A respeito, Harvey aponta que com impactos no sistema sociometabólico do capital.
Muitas pessoas em situação de rua sofrem com problemas de saúde me-
“o conceito de trabalho precisa passar de uma definição restrita às mo- tal, algo que pode escapar a uma pesquisa nos moldes da Pesquisa Nacional
dalidades industriais para o terreno mais amplo do trabalho vinculado
sobre a População em Situação de Rua, que se baseia em entrevista com
à produção e reprodução de uma vida cotidiana cada vez mais urbani-
estas pessoas. Apenas 6,1% das pessoas citaram ter problema psiquiátrico/
zada. As distinções entre lutas de base trabalhista e base comunitária
começam a se diluir, assim como a ideia de que classe e trabalho são mental. Deve-se observar que os locais de onde as pessoas que estão em
definidos em lugar de produção isolado do lugar de reprodução social situação de rua proveem dificilmente há serviços públicos adequados para
da habitação. (...) essa concepção revitalizada de proletariado inclui e tratamento destes problemas441.
acolhe os setores informais, hoje abundantes, que se caracterizam pelo De qualquer modo, estas pessoas fazem parte daquele “sedimento mais bai-
trabalho temporário, inseguro e desorganizado. (...) A política desses xo da superpopulação relativa” a que se referia Marx, são vítimas de múltiplas
grupos desorganizados foi frequentemente e equivocadamente menos- exclusões sociais decorrentes do sociometabolismo do capital e eventualmente
prezada pela esquerda convencional como ‘ralé urbana’ (ou, de maneira têm trabalho precário disponível para si.
ainda mais infeliz, como ‘lumpemproletariado’, na tradição marxista), Importante dado da mencionada pesquisa diz respeito ao trabalho, demons-
tanto que para que fosse temida ou para que fosse incluída. É imperativo
trando que se trata realmente de trabalhadores precarizados e contradizendo a
que esses segmentos da população sejam agora acolhidos como cruciais
comum associação entre pessoas em situação de rua e mendicância:
para a política anticapitalista, em vez de excluídos”438.
“•A população em situação de rua é composta, em grande parte, por
Daí que se poderia conceber uma proposta jurídica para perturbar a quie-
trabalhadores: 70,9% exercem alguma atividade remunerada.
tude jurídica e que tivesse relação com as demandas das pessoas em situação
de rua. A população de rua é multifacetada e não existe uma causa única para • Dessas atividades destacam-se: catador de materiais recicláveis
(27,5%), flanelinha (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e
cada pessoa estar na rua. De fato, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre a
carregador/estivador (3,1%)”

436 Em sentido contrário, autores e obras como G. STANDING. The Precariat – The New Dangerous Class, 439 Disponível em http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/sum%C3% A1rio_
2011 e R. CASTEL. From Manual Workers to Wage Laborers: Transformation of the Social Question, exe cutivo_pop_rua_pesq_censo_MDS.pdf, acesso em 12 dez. 2015.
2003, entendem que o proletariado seria uma nova classe social, distinta da classe trabalhadora.
440 Idem.
437 Neste sentido, vide R. BRAGA. A política do precariado. Do Populismo à Hegemonia Lulista, 2012.
441 Realmente, a reforma psiquiátrica buscada pela Lei 10.216/2010 não foi acompanhada de uma política
438 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, pp. 248-250. consistente para a implementação da Rede de Atenção Psicossocial.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

• Apenas 15,7% das pessoas pedem dinheiro como principal meio para mas que estavam disponíveis para trabalhar e tomaram alguma providência
a sobrevivência. Esses dados são importantes para desmistificar o fato de para conseguir trabalho nos trinta dias anteriores à pesquisa. Com isso se
que a população em situação de rua é composta por “mendigos” e “pe- poderia ter uma melhor ideia da composição do grupo que declara não exer-
dintes”. Aqueles que pedem dinheiro para sobreviver constituem minoria. cer atividade remunerada.
• Desse modo, a maioria tem profissão: 58,6% dos entrevistados afirma- No que tange ao abrigamento, a Pesquisa referida constatou que a maioria
ram ter alguma profissão. destas pessoas dorme na rua (69,6%), enquanto expressiva minoria (22,1%) cos-
• Entre as profissões mais citadas destacam-se aquelas ligadas à cons- tuma dormir em albergues ou outras instituições beneficentes. Uma minoria
trução civil (27,2%), ao comércio (4,4%), ao trabalho doméstico (4,4%) alterna entre albergues e rua (8,3%)443.
e à mecânica (4,1%). “Pessoas em situação de rua” nada mais são do que pessoas despojadas de um
• Contudo, a maior parte dos trabalhos realizados situa-se na cha- teto, despojadas de habitação, este meio de subsistência básico. Mas o direito
mada economia informal: apenas 1,9% dos entrevistados afirmaram cinde as necessidades habitacionais: para uns, albergues gratuitos, porém, tão
estar trabalhando atual mente com carteira assinada. Essa não é uma parecidos quanto possam ser com prisões; para outros, financiamento imobili-
situação ocasional. 47,7% dos entrevistados nunca trabalharam com ário; com sorte, políticas públicas habitacionais intermediárias, como aluguel
carteira assinada. e locação social. Deste modo o direito e a política têm elaborado a questão da
• Entre aqueles que afirmaram já ter trabalhado alguma vez na vida com habitação: pessoas em situação de rua são destinatárias da assistência social e
carteira assinada, a maior parte respondeu que isso ocorreu há muito se considera que há não tanto uma questão de moradia adequada colocada, no
tempo (50% há mais de cinco anos; 22,9% de dois a cinco anos).”442 máximo há uma questão de abrigamento destas pessoas; a habitação é objeto
das políticas habitacionais gerais, que assumem finalidades econômicas amplas,
As pessoas em situação de rua cumprem uma função no sistema sociometa- viabilizando o acesso a “moradia” a trabalhadores por meio de financiamento
bólico do capital: rebaixar os salários em geral, em razão de não estar abarcado acessível, o que exclui os trabalhadores mais pauperizados. A articulação entre
no preço da força de trabalho a necessidade de gastos habitacionais (aluguel, políticas de assistência social e políticas de habitação é praticamente inexis-
prestação ou outros gastos relacionados). Eventuais custos são, no melhor dos tente. É dizer, as políticas de assistência social dificilmente estão relacionadas
casos, cobertos pelo Estado, com a criação das moradias coletivas chamadas com políticas de habitação popular. As lutas sociais são, em regra, igualmente
albergues ou centros de acolhida. E grande parte das pessoas em situação de cindidas. Movimentos sociais de sem-teto têm em geral pautas de luta que in-
rua pernoita na rua, em geral realizando todas as necessidades fisiológicas e de cluem o fornecimento de moradia subsidiada pelo Estado, mas ainda com al-
reprodução da vida diária também na rua ou em equipamentos públicos precá- guma contraprestação paga pelos beneficiários. Já os movimentos de população
rios, como, por exemplo, banheiros públicos em metrôs ou estações de ônibus. em situação de rua pouco adentram em questões relativas a fornecimento de
Assim, o custo deste aspecto da subsistência é zero para o empregador, que moradia adequada pelo Estado – em geral, as lutas estão menos avançadas e as
pode rebaixar proporcionalmente o salário pago ao trabalhador, com impacto reivindicações são para que os abrigos coletivos ofereçam o mínimo de digni-
na massa salarial geral tanto maior, quanto maior seja a quantidade de pessoas dade humana – e este mínimo é tão rebaixado quanto possa ser num contexto
em situação de rua.
Um dado não mencionado na pesquisa e que deveria ter constado diz
443 Idem. Lê-se na Pesquisa que: “Entre aqueles que manifestaram preferência por dormir em albergue,
respeito ao número de desempregados – segundo critérios do IBGE, pessoas 69,3% apontaram a violência como o principal motivo da não preferência por dormir na rua. O
desempregadas ou desocupadas são aquelas que não estavam trabalhando, segundo principal motivo foi o desconforto (45,2%). Entre aqueles que manifestaram preferência por
dormir na rua, 44,3% apontaram a falta de liberdade como o principal motivo da não preferência por
dormir em albergue. O segundo principal motivo foi o horário (27,1%) e o terceiro a proibição do uso
442 Idem. de álcool e drogas (21,4%), ambos igualmente relacionados com a falta de liberdade.”

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

de controle social e penal da pobreza como o atual. Ambas, lutas por políticas saúde mental as principais explicações para o grande número de pessoas que se
públicas ou por garantia e efetividade de direitos, restritas a disputas no interior encontram em situação de rua, mas a ausência estrutural de políticas que en-
do sistema jurídico. frentem a questão numa perspectiva de implementação de habitação adequada
A desconexão444 das políticas de moradia e de assistência social também e de organização do uso da terra urbana na cidade.
demonstra o quanto soluções de mercado podem ser excludentes. Isto porque, Os Estados Unidos da América são o Estado central do capitalismo mundial,
como apontado, a maioria das pessoas em situação de rua têm renda, mas tal tendo sempre convivido com índices de desigualdade muito maiores do que
renda não é jamais suficiente para enquadramento nas faixas de renda de aten- os demais países ditos de capitalismo desenvolvido (por exemplo, Alemanha,
dimento habitacional. Não é à toa que as faixas de renda contempladas por França, Japão, Canadá e Austrália). Em razão disso, vale atentar para algumas
programas habitacionais sejam de 1 a 3 salários mínimos, excluindo sempre das políticas voltadas à população em situação de rua deste país. O abismo ha-
as famílias que auferem de 0 a 1 salário mínimo. Sem contraprestação não há bitacional aumentou nas últimas décadas nos Estados Unidos, como em todo
acesso à moradia, o único serviço disponibilizado pelo Estado, se tanto, é a país que adotou políticas neoliberais (retirando direitos sociais conquistados
assistência social. anteriormente pelas classes trabalhadoras), as quais viabilizam a acumulação
Mesmo quando pessoas em situação de rua possuem renda decorrente da mais intensiva de riqueza pelas classes capitalistas e, com isso, a escassez de
assistência social, como o BPC (benefício de prestação continuada445), inexiste moradias a preços acessíveis (para aluguel e para compra e venda). As políticas
fluxo de atendimento que as leve a ter atendimento habitacional. O preço da neoliberais envolvem cortes de investimentos em habitação social e enfraqueci-
moradia (aluguel ou prestação de compra e venda) é um dos maiores empe- mento das leis de regulação do aluguel. Nos EUA, este processo levou à perda
cilhos para que este tipo de política seja viabilizado e, como visto ao longo de milhares de habitações que poderiam ser consideradas de baixo custo446.
deste trabalho, o Estado não lança mão de quaisquer instrumentos de política Importante anotar que nos EUA cerca de 800.000 pessoas por dia se en-
urbana para o fim de reprimir o uso especulativo de moradias e a quantidade contram em situação de rua447. Isto corresponde a cerca de 0,267 por cento
de imóveis vazios. É dizer, na essência, não são o desemprego e os problemas de da população norte-americana. A questão que cabe aqui esclarecer é por que
a potência capitalista mundial não consegue resolver a questão habitacional
desta pequena parcela pauperizada da classe trabalhadora. Deve-se observar
444 Em São Paulo, isto se dá apesar da Lei Municipal nº 15.913, de 16/12/13, que institui o Programa
que há uma flutuação nesta parcela de pessoas que se encontram em situação
de Atendimento à População em Situação de Rua integrado com os benefícios de atendimento
habitacional e de saúde, que em seu Art. 2º dispõe: “O Programa de Atendimento à População de rua: muitas pessoas conseguem sair desta situação, mas muitas outras que
em Situação de Rua será executado de forma descentralizada e articulada entre as secretarias de nunca estiveram nela, experimentam esta nova situação de despojamento. Com
Assistência Social, Saúde, Empreendedorismo e Habitação do Município de São Paulo”. Também se lê
no Art. 5º que “São diretrizes do Programa: II - inclusão prioritária da população em situação de rua
isso, alguns cálculos apontam entre 2,3 e 3,5 milhões o total de pessoas que
em atendimento habitacional temporário e definitivo.” A garantia jurídica não serviu para avançar na chegaram a estar em situação de rua em um ano – o que representa 1 em cada
satisfação das necessidades desta parcela da população de baixa renda. 10 trabalhadores pobres dos EUA448.
445 “Vide em http://mds.gov.br/assuntos/assistencia-social/beneficios-assistenciais/bpc, acesso em 26 mai. A organização de advocacy “Coalition for the Homeless”, indica que “nos úl-
2016, detalhamento sobre o Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC): “é um
benefício individual, não vitalício e intransferível. Instituído pela Constituição Federal de 1988, ele timos anos, a falta de moradia em Nova York atingiu os níveis mais altos desde
garante a transferência de 1 (um) salário mínimo à pessoa idosa, com 65 (sessenta e cinco) anos ou
mais, e à pessoa com deficiência de qualquer idade, que comprovem não possuir meios de se sustentar
ou de ser sustentado pela família. 446 Vide, a respeito, http://www.coalitionforthehomeless.org/ending-homelessness/proven-solutions,
Para ter direito ao benefício, o solicitante precisa comprovar que a renda mensal por pessoa da família acesso em 20 abr. 2015.
é inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo (Como calcular a renda per capita familiar). As pessoas
447 M. R. BURT, What will it take to end homeless?, 2001, disponível em http://citeseerx.ist.psu.edu/
com deficiência também precisam passar por avaliação médica e social realizadas por profissionais do
viewdoc/summary?doi=10.1.1.368.8652, acesso em 25 nov. 2015, p. 1.
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). É importante esclarecer que o benefício não pode ser
concedido ao cidadão que recebe qualquer benefício previdenciário público ou privado.” 448 Idem, p. 1.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

a Grande Depressão da década de 1930”449. A cidade contabilizou, em outubro ação, pessoa que vivia em situação de rua e acabou morrendo enquanto dormia
de 2014, 59.246 pessoas desabrigadas – um aumento de 91% com relação ao ano nas ruas de Manhatan).
de 2002. Ao longo de 2013, mais de 111 mil pessoas desabrigadas passaram pelo Outros dois casos judiciais importantes representaram conquistas jurídicas
sistema de abrigo municipal. adicionais na temática do direito ao abrigamento em Nova York: Eldredge v.
Desde a década de 1970, dois fatores básicos parecem ter incrementado dras- Koch (1983), estabeleceu o direito ao abrigamento para mulheres em situação
ticamente o número de pessoas em situação de rua em Nova York: a diminuição de rua e McCain v. Koch (1983) estabeleceu o direito ao abrigamento para
do número de moradias baratas para os pobres, em especial a grande diminui- famílias com crianças. Foram necessárias ações específicas para se buscar a efe-
ção das habitações de um cômodo (single-room houses), que incluem albergues tivação para grupos específicos. Ainda assim, nada feito. Nada mais caracterís-
coletivos com banheiro e cozinha compartilhados; e as mudanças nas políticas tico ao direito e aos obstáculos necessários do sociometabolismo do capital que
de saúde mental que envolveram o aumento de tratamentos ambulatoriais e de ela viabiliza: num sistema da “common law”451, o judiciário garante e reconhece
uso de medicamentos psicotrópicos, mas sem que tenha havido a criação de o direto, mas não há como efetivá-lo.
uma rede de assistência às pessoas desinstitucionalizadas450. Como já apontado, são diversos os fatores que levam alguém a estar em si-
Em Nova York, tentou-se resolver a questão da falta de abrigos por meio de tuação de rua e o mero fornecimento de um imóvel ou cômodo para habitação
uma ação judicial coletiva. Callahan v. Carey estabeleceu o direito ao abriga- pode não alterar em nada a permanência da pessoa na rua. Em regra, serão
mento para pessoas em situação de rua na cidade. A ação foi jugada procedente necessárias ações de assistência social continuadas. Mas então, por que não
em 1979 e, então, seu cumprimento se tornou o desafio das autoridades públi- fazê-lo? Algumas abordagens pretendem justamente o fornecimento imediato
cas. Após dois anos de negociação, foi editado na cidade o decreto Callahan (o de moradia para pessoas em situação de rua, isto é, o fornecimento de moradia
nome do decreto é uma homenagem a Robert Callaham, o primeiro autor da sem condições prévias, para que então, após o embasamento territorial da pes-
soa, esta possa se inseri na comunidade com assistência social452. Ora, se o que
se busca é a inserção da pessoa na comunidade, então, deve-se inseri-las desde
449 http://www.coalitionforthehomeless.org/the-catastrophe-of-homelessness/facts-about-homele ssness,
acesso em 20 abr. 2015. logo, sem necessidade de um “preparo” em instituições de abrigamento453, nas
450 http://www.coalitionforthehomeless.org/the-catastrophe-of-homelessness/why-are-so-many-peo quais a socialização tem características completamente distintas da que ocorre
ple-homeless/, acesso em 20 abr. 2015. Segundo dados mencionados pela organização, o “número em comunidade e com habitação própria.
de unidades de um só cômodo caiu de cerca de 129.000 em 1960 para apenas 25 mil em 1978”. Divide-se as políticas baseadas em moradia para a população de rua nos
“Entre 1965 e 1979 por si só, o número de pacientes residentes no Estado centros psiquiátricos caiu de
85.000 a 27.000 pacientes, uma redução de 68 por cento”. Interessante notar, quanto às diminuição do EUA em basicamente de três tipos: a) Programas habitacionais federais de as-
número de unidades de um só cômodo, o papel da legislação urbanística, a qual pode apontar para um sistência – os dois maiores são o programa de habitação pública e o programa
processo de gentrificação guiado pela lei: “O mercado de moradias de um cômodo tornou-se cada vez
mais regulado, e, em 1955, mudanças nos códigos de habitação essencialmente proibiram a conversão
de vale habitação, conhecido como Vales de Escolha de Habitação (Housing
ou construção de novas habitações de um cômodo... Na década de 1970 o declínio do mercado de
habitações de um cômodo acelerou com a um ritmo tremendo devido à conversão e à demolição...
As alterações na política fiscal da propriedade tiveram um papel decisivo nas perdas do mercado das 451 Sistema jurídico mais comum nos países anglo-saxões, baseado mais em precedentes judiciais que na
habitações de um cômodo... em 1985, em resposta à enorme perda do estoque de habitações de um lei, contrapondo-se ao sistema romano-germânico, mais comum na Europa continental, baseado mais
cômodo e da crescente população de rua, a cidade estabeleceu uma moratória temporária (depois na lei que em precedentes/jurisprudência.
anulada pelos tribunais estaduais) em todas as conversões destas habitações, depois estabelecendo
452 http://www.housingrights.org.uk/news/housing-first-because-learning-swim-much-easier-water, para
procedimentos mais restritivas para a conversão de habitações de um cômodo. No entanto, a maioria
quem “aprender a nadar é mais fácil na água” acesso em 20 abr. 2015.
das habitações de um cômodo da cidade de Nova York já havia sido perdida, e continuou a diminuir
ao longo dos anos 1980 e 1990”. Complementam os dados ainda afirmando que “Há evidências de 453 http://www.coalitionforthehomeless.org/ending-homelessness/proven-solutions, acesso em 21 abr.
que o declínio da habitação de quarto individual persistiu através da década de 1990. De 1991 a 1993, 2015, aponta que este tipo de política de fornecimento de moradia seria menos custoso do que
por si só, de acordo com um estudo, houve uma redução de 18 por cento no número de quartos único políticas de abrigamento, de assistência institucional, mas não há dados suficientes disponíveis para
unidades habitacionais em New York City.” esta conclusão.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Choice Vouchers ou Section 8 Vouchers). Estes vales permitem que famílias primeiro”458, pelo qual as pessoas receberiam tratamento de saúde e seriam pro-
de baixa renda possam alugar habitações modestas a preço de mercado, por gressivamente incluídas em equipamentos de acolhida, até estarem “aptas” a
escolha própria, recebendo um subsídio flexível ao longo do tempo, ajustável à uma habitação independente. Este tipo de programa, como os outros, é comple-
renda da família454; b) Habitação de apoio permanente: este modelo combina tamente inapto a realizar a finalidade política última de acabar com a existência
assistência para habitação a preços acessíveis com serviços de apoio a indiví- de pessoas em situação de rua. No contexto em que se desenvolve, aparece
duos com problemas de saúde mental, HIV/AIDS ou outros sérios problemas como mais um produto da governança neoliberal da pobreza459. Segundo Hen-
de saúde, tendo sido inicialmente desenvolvido em Nova York455; c) Programa nigan, que examinou a prática do “housing first” em Phoenix, Arizona, este
“Casa Primeiro” (“housing first”): trata-se de outro programa desenvolvido em programa é operado como um programa de reabilitação que reproduz estigma-
Nova York, baseado na ideia de fornecimento imediato uma moradia a pessoas tização, atuando em conjunto com lei higienistas para remover a população em
em situação de rua, ao invés de incluí-las em programas “progressivos” nos quais situação de rua das áreas gentrificadas da cidade460. Os potenciais do “housing
apenas a última etapa é uma moradia. É voltado para pessoas que estão há first” para reabilitar e criar indivíduos autossuficientes estariam severamente
muito em situação de rua, normalmente com problemas de saúde mental, abuso limitados pela neoliberalização do Estado social461. Estes elementos que impe-
de drogas e outros sérios problemas de saúde, fornecendo-se moradia imediata- dem a realização de programas como o “housing first”, na verdade, são parte
mente, em conjunto com serviços assistenciais456. das limitações impostas no sistema sociometabólico do capital à provisão das
O programa Casa primeiro457 é um programa de redução de danos direcio- necessidades de subsistência da classe trabalhadora ou, olhada a questão pelo
nado especialmente para a população em situação de rua com problemas de ângulo do direito, à realização de direitos sociais como o direito à moradia.
saúde mental e, em sua origem, se contrapõe à abordagem do tipo “tratamento A “Coalition for the Homeless” parece bem otimista quanto às possibilida-
des de acabar com pessoas morando nas ruas por meio de políticas de habitação:

“podemos acabar com a crise de pessoas em situação de rua. Por meio


454 Idem, lendo-se aí que “estudos mostram que habitações públicas e os vales habitação federais são de estabilização das pessoas em abrigos, movendo-as para moradias per-
altamente bem sucedidos na redução do número de famílias em situação de rua e no assegurar que manentes e implementando programas de assistência para mantê-las em
estas famílias fiquem estáveis habitacionalmente, fora do sistema de abrigamento”. Certamente, no
sistema de abrigamento a autonomia destas famílias é muito menor do que no sistema de subsídios
para aluguel ou no sistema de moradias públicas.
455 Idem. Segundo a Organização, “Numerosos estudos têm mostrado que a habitação de apoio
permanente custa menos do que outras formas de cuidados emergenciais e institucionais. O marco
458 D. K. PADGETT, L. GULCUR e S. TSEMBERIS, Housing First Services for People Who Are
destes programas é o ‘Acordo de New York/New York’, Cidade-Estado, de 1990, que foi renovado
Homeless With Co-Occurring Serious Mental Illness and Substance Abuse, 2006, p. 74, apontam (em
por duas vezes, e é o principal exemplo de uma iniciativa de habitação de apoio permanente que
tradução livre) “Há dois paradigmas contrastantes de serviços para as pessoas que estão desabrigadas
conseguiu reduzir a falta de moradia em Nova York e economizou dólares dos contribuintes que
com doença grave mental, um é o tradicional continuum de cuidados e tratamento primeiro e o
teriam sido gastos em abrigos e hospitalizações dispendiosos.”
outro um movimento voltado ao consumidor (habitação primeiro) que ganhou impulso nos últimos
456 Idem. “Os estudos mostram que a maioria das pessoas em situação de rua pessoas de longa data que anos... Programas de habitação primeiro colocam a habitação estável como a primeira e máxima
mudaram para os apartamentos do “habitação primeiro” tiveram melhorias significativas em seus prioridade vis-à-vis a abstinência do uso de substâncias e / ou abuso, assim praticando uma abordagem
problemas de saúde e permanecem alojados de forma estável. Como no caso da habitação de apoio de redução de danos. Os programas de “tratamento primeiro” invertem esta sequência e requerem
permanente, a abordagem do ‘habitação primeiro’ é muito menos dispendiosa do que a cuidados de desintoxicação e sobriedade antes de dar acesso a serviços de habitação independente”.
emergência e institucionais, tais como abrigos, hospitais e estabelecimentos prisionais.”
459 B. R. HENNIGAN, House Broken: The Functions and Contradictions of ‘Housing First’, 2013.
457 O modelo do programa foi desenvolvido pela organização Pathways to Housing, apoiado em estudos
460 Idem, p. 2.
como P. RIDGEWAY, A. M. ZIPPLE, The paradigm shift in residential services: From the linear
continuum to supported housing approaches. Psychosocial Rehabilitation Journal, 1990, 13, 11-31, e P. 461 Idem, afirmando o autor que “Even still, housing first functions to cheaply hide the most visible
J. CARLING, Major mental illness, housing, and supports: The promise of community integration. victims of capitalist contradiction and neoliberal policy to facilitate capital accumulation across
American Psychologist, 1990, 45, 969-975. metropolitan Phoenix.”

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suas casas, nós podemos não apenas reduzir, mas eliminar a situação de imobiliário) é uma barreira intransponível. Este é o resultado da prevalência
rua de pessoas em Nova York”462. dos mecanismos de mercado e de certa faceta da legislação urbanística inapta
a reprimir o uso especulativo de moradias e de imóveis vazios. Prevalência e
Este otimismo enunciativo é compreensível para uma organização de advo- inaptidão que são estruturais e necessárias à reprodução do capital.
cacy. Porém, as soluções apresentadas esbarram no sistema sociometabólico do A única solução viável para a moradia adequada para a população em situ-
capital e não têm o condão de superar os imperativos impostos por este. A ques- ação de rua é uma política de fornecimento universal de habitação sem con-
tão que deve ser respondida é: por que nos Estados Unidos da América, o país trapartida financeira. Tal exigiria a construção de imóveis públicos, em quan-
central do capitalismo mundial, é incapaz de acabar com a situação de rua de tidade correspondente à quantidade de pessoas em situação de rua, que seriam
milhares, talvez milhões de pessoas (algumas estimativas falam de 2,5 milhões disponibilizados sem contraprestação a estas pessoas e, sucessivamente, a outras
de pessoas em situação de rua nos EUA)? De outro modo, por que programas parcelas da população de baixa renda que não pudessem pagar por habitação
de habitação pública, de subsídios para compra ou para aluguel, programas de digna. Esta última solução seria necessária em razão da inevitável procura por
fornecimento de habitação para população em situação de rua combinados com vagas nestes imóveis públicos por outras parcelas da população de baixa renda.
assistência social, por que todos estes programas combinados não conseguem As moradias não poderiam ser objeto de comercialização. O fornecimento de
efetivar o direito à moradia? Estas questões podem ser respondidas por meio da tantas habitações quanto necessárias implicaria no paulatino desfazimento do
tese desenvolvida neste trabalho. mercado imobiliário e na eliminação de algumas das principais bases de acu-
mulação do capital, como o uso do espaço e de imóveis como reserva de valor,
5.3. Acesso à Habitação pela População em a renda fundiária urbana e o sistema de crédito habitacional.
Esta solução não pode ser imediata? Não há problemas. Enquanto não há
Situação de Rua? imóveis públicos em número suficiente para atender a toda a população em
situação de rua, a repressão ao uso especulativo de moradias mediante legis-
Todos os limites juridicamente impostos463, moldados de acordo com as ne-
lação e fiscalização por órgãos próprios seria a saída mais adequada. Nenhum
cessidades do sistema sociometabólico do capital, impedem o acesso à habitação
imóvel vazio, ninguém dormindo nas ruas. O direito à moradia vigente se
adequada para a população de baixa renda - em específico, às pessoas em situa-
efetivando universalmente. Imóveis não poderiam ficar vazios, desabitados ou
ção de rua. O “nó da terra”464, na verdade, reflete o nó da acumulação capitalis-
sem uso por mais de dois meses. Ocorrendo isto, aplica-se multa progressiva
ta que se destina a garantir a reprodução do capital. Para os trabalhadores mais
(com natureza jurídica de sanção) ao proprietário ou possuidor pelo não uso
pauperizados, o preço da moradia (aluguel ou prestações de um financiamento
do imóvel para que providencie uso para moradia ou comercial – e os fundos
advindos de tais multas poderiam até mesmo servir para construção de habi-
462 http://www.coalitionforthehomeless.org/ending-homelessness/proven-solutions, acesso em 21 abr. 2015.
tação popular e incentivo a políticas públicas e mecanismos de repressão ao
463 Estes limites jurídicos são a expressão superestrutural dos limites do sistema do capital como um todo,
cuja “tendência universalizante... não pode jamais alcançar a fruição real dentro de seu próprio quadro, uso especulativo de moradias.
uma vez que o capital tem de declarar as barreiras que não consegue transpor – a saber, suas próprias Isto, inicialmente, estimulará proprietários a abaixar o valor do aluguel; de-
limitações estruturais – como sendo ‘o limite sagrado’ de toda a produção, Ao mesmo tempo, o que
pois, rebaixará o valor de compra e venda, em razão de muitos proprietários
deveria ser reconhecido e respeitado como uma determinação objetiva, vitalmente importante – a
natureza em toda a sua complexidade como o ‘corpo real dos homens’ – é totalmente menosprezado na não poderem manter os imóveis vazios. Em caso de imóveis vazios por dois
subjugação, degradação e destruição sistemática da natureza já que os interesses da expansão contínua anos, o mesmo sofreria um processo de desapropriação para que fosse transfor-
do capital devem prevalecer até sobre as mais elementares condições da vida humana, que estão
diretamente enraizadas na natureza” (I. MÉSZÁROS, Filosofia, Ideologia e Ciência Social, 2008, p. 154).
mado em imóvel público. O valor da desapropriação não seria o valor de mer-
464 Expressão usada por urbanistas para se referir ao emaranhado jurídico que, no limite, protege a
cado, mas deveria ser ponderado de acordo com o histórico de cumprimento
propriedade privada. Vide, por exemplo, E. MARICATO, A Terra é um Nó na Sociedade Brasileira, 2001. da função social do imóvel em específico, levando-se em conta que a função

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social engloba, primeiramente, a necessidade de o imóvel ter um uso, donde Medidas jurídicas não podem, por si só, levar ao revolucionamento do siste-
um imóvel sem uso necessariamente deve ter a desapropriação facilitada para ma sociometabólico do capital. Acabar “por decreto” com o valor de troca dos
fins de reforma urbana. No caso de jamais ter cumprido sua função social, seria bens imóveis não levará à suprassunção do sistema do capital e à satisfação das
possível a expropriação do imóvel, Tais medidas evitariam, por exemplo, que necessidades habitacionais de todos os trabalhadores. Tampouco se pode cair
imóveis em regiões centrais, servidas de todas as benesses urbanísticas públi- em argumentos esquemáticos do tipo “a questão é política” ou “basta a apro-
cas, permanecessem vazios, como sói ocorrer no mercado imobiliário capitalista priação dos meios de produção pelos produtores diretos”. A questão do revolu-
“desenvolvido”. Com isto a legislação forçaria o valor de troca a se submeter ao cionamento social passa pela superação da base e do direito e da política que
valor de uso. Por este caminho seria viável falar em prioridade da satisfação das sobre ela se levanta – é, portanto, uma questão de amplo alcance.
necessidades habitacionais. As propostas “jurídicas” aqui sugeridas só teriam consequência em meio a
A superação (aufgehoben) da apropriação privada dos excedentes social- intensas lutas sociais que elas refletiriam e fomentariam. A Comuna de Paris
mente produzidos é um processo complexo e multifacetado. Com medidas ju- é uma exemplo de vaga revolucionária muitas vezes relembrado por David
rídicas como as aqui apontadas, haveria complicações para a reprodução do Harvey, que a interpreta como envolvendo importantes elementos de “direito
capital na medida em que o sistema de crédito e todo uso especulativo de mora- à cidade”, mas justamente num sentido de ruptura com o sistema jurídico.
dias seriam duramente atingidos. Seriam também obviamente devastadores os Observa o autor:
impactos econômicos nas transferências de excesso de capitais entre os circui-
tos primário, secundário e terciário da economia465. A capacidade de adaptação “Se os participantes da Comuna de Paris reivindicavam seu direito a
uma cidade que haviam ajudado coletivamente a produzir, então por
do capital a novas realidades talvez pudesse contornar tal situação e manter a
que a expressão ‘o direito à cidade’ não poderia se tornar uma palavra
acumulação e a expansão do capital por outros meios. Haveria diminuição dos
de ordem para mobilizar a luta anticapitalista? Como de início obser-
níveis de desigualdade social e de exclusão social, ao menos porque as neces- vei, o direito à cidade é um significante vazio repleto de possibilidades
sidade habitacionais estariam satisfeitas. Mas é improvável que uma mudança imanentes, mas não transcendentes. Isso não significa que seja irrele-
neste patamar chegue a ser realizada sem grandes confrontos. vante ou politicamente impotente. Tudo depende de quem conferirá ao
O olhar precisa levantar-se para além do direito. A legislação não tem a significante um significado imanente revolucionário, em oposição ao
função pressuposta nas propostas acima e, talhada a esta maneira, só poderia significado reformista (...) Da mesma forma que Marx descreveu as res-
ser uma legislação evanescente. Propostas com tal conteúdo não podem ser for- trições à jornada de trabalho como um primeiro passo de uma trajetória
muladas senão como propostas de transformação social radical – como propos- revolucionária, reivindicar o direito de todos a viver em uma casa e um
tas, portanto, que vão para além do direito. Tais propostas não podem aparecer ambiente decentes pode ser visto como um primeiro passo de um movi-
mento revolucionário mais abrangente”467.
senão como utopia concreta466.

465 D. HARVEY, The Urbanization of Capital, 1985, explica que crises de sobreacumulação do capitalismo da imaginação do futuro, correntes até então na filosofia por conta da desconfiança do progresso
são, não raro, transitoriamente resolvidas pela transferência de capital através dos circuitos ou das idealizações totalitaristas, Bloch aponta ao fato ontológico de que o ser, sempre, ainda não
primário, secundário e terciário. Estes são definidos, grosso modo, assim: o circuito primário é o é. A natureza está aberta ao novo. A história, pela fome e pela incompletude, aponta para sua
circuito da produção de mercadorias em sentido estrito, na qual se produz valor e mais-valor por transformação. A práxis urge a efetivação da possibilidade. Assim, ultrapassa-se o velho utopismo
meio do trabalho. O circuito secundário está relacionado à expansão de infraestrutura, do ambiente do não-lugar dos sonhos vãos: trata-se, em Bloch, da utopia concreta”. Ainda, MASCARO observa
construído, inclusive à construção de habitações. Já o circuito terciário engloba investimentos em que, para Bloch, “a plenitude da justiça é o perecimento final do direito [forma jurídica]” e “o ser-
ciência e tecnologia e os gastos sociais. ainda-não jurídico é a extinção do direito, a sua superação numa sociedade socialista... que tenha por
teto não institutos jurídicos, mas sim os princípios jurídicos da dignidade e da solidariedade. O tema
466 Mais ou menos no sentido já apontado por A. L. MASCARO. Utopia e Direito – Ernst Bloch e a
de Bloch não é o da maior parte dos juristas. O tema de Bloch é o fim da dominação dos juristas...”
Ontologia Jurídica da Utopia, 2008, p. 193 e seguintes, lendo Ernst Bloch, que “deu à utopia uma
posição de liderança na política de transformação dos tempos. Para além da vergonha e da proibição 467 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, pp. 244-245.

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Apenas em contextos de transformação social radical se poderia chegar a políticas de habitação com viés anticapitalistas colocariam, ao menos, em xe-
questionar consequentemente alguns dos mais importantes fundamentos da que o cerco neoliberal, atingindo alguns importantes pilares do sistema socio-
reprodução do capital, por mais supérfluos e destrutivos que estejam sendo metabólico do capital? Certamente a resposta é sim, mas deve-se atentar que a
aos próprios pressupostos materiais desta reprodução 468. As medidas jurídi- pura tematização jurídica não pode guiar processos consistentes de resistência
cas aqui propostas só poderiam ser realmente implementadas num contexto e transformação. Lutar pela implementação das propostas em questão levaria
em que a superação do sociometabolismo do capital estivesse em curso e, a uma conflituosa separação entre habitação pública e habitação de mercado,
então, apareceriam como sistema jurídico evanescente, como superação do mas a expansão daquela, que seria viabilizada pelo controle da habitabilidade
próprio direito. dos imóveis e do preço da terra urbana, tenderia a colocar fim nos processos de
Ora, o neoliberalismo e suas políticas de controle social são um capítulo acumulação por despossessão que ocorrem com imóveis urbanos que servem à
central da luta de classes, apontando para um cerco de classe por meio do qual moradia. Sem avançar para a discussão mais ampla sobre o sistema de crédito
se cria a hipermobilidade da força de trabalho e o estrito controle dos seres como um todo, sobre o pressuposto da propriedade privada e sobre satisfação
humanos excedentes, em direção à dominância completa do capital fixo e do das necessidades habitacionais dos trabalhadores, qualquer processo de trans-
sistema sociometabólico do capital. As estruturas estatais de seguridade social, formação se esgotaria e seria absorvido pelo sociometabolismo do capital.
de garantias de direitos, de habitação social, etc, tendem a ser capturadas por Na atualidade, a dureza dos fatos é esta: o espaço para avanços é diminuto e
este projeto de neoliberalização econômica, criminalizando paulatinamente e a luta social está longe de avançar o suficiente para propostas consistentes que
ao máximo quaisquer lutas sociais que se coloquem contra o avanço do capital. desestabilizem a quietude jurídica. O direito captura a realidade da exclusão
Enquanto a serviço do capital, os trabalhadores recebem em troca o salário; habitacional para preservar as necessidades do sociometabolismo do capital,
quando descartados até mesmo dos trabalhos mais precários e instáveis, o Es- dentre elas, a manutenção de exércitos de reserva, a absorção seletiva de traba-
tado disponibiliza meios para controle e para a estrita subsistência destes traba- lhadores pelo mercado de trabalho de acordo com a qualificação e o grau de de-
lhadores, agora como parte de um exército industrial de reserva cada vez mais senvolvimento das forças produtivas, um atendimento socioassistencial residual
ampliado. O capital, para assegurar a sua mais desenvolta reprodução, busca (faux frais), a manutenção do despojamento dos trabalhadores e a acumulação
o desmonte de prestações de direito social que estimulem o acesso a meios de por despossessão, etc. Trata-se da captura da linguagem e da gramática de ex-
subsistência sem necessidade de vender a força de trabalho aos capitalistas. Do pressão dos conflitos sociais.
ponto de vista político, ademais, se evita que o contexto de Estado social acu- Para a resolução de “conflitos”, não apenas o terreno jurídico é imposto pelo
mule conquistas para as classes trabalhadoras. sociometabolismo do capital, também as armas para a luta são impostas por ele:
A tematização desde logo de propostas como a aqui apresentada poderia garantias legais, constitucionais e até internacionais, ponderação de direitos,
somar no rompimento do cerco neoliberal? Posto de outro modo, propostas de efetividade jurídica, direito à moradia, moradia digna, etc. O direito captura as
necessidades sociais e as transforma em direitos humanos. Esta é a astúcia do
direito: servir como instrumento de captura, de formalização, de controle das
468 Deve-se lembrar aqui a reflexão de I. MÉSZÁROS, Filosofia, Ideologia e Ciência Social, 2008, pp.
150 e seguintes, para quem “do mesmo modo como a necessidade natural original é historicamente demandas sociais. O direito faz isso tanto quanto a política469: o terreno imposto
deslocada e se torna uma coerção supérflua e intolerável, do ponto de vista tanto do indivíduo como pela política é o da política parlamentar e partidária, o da democracia representa-
do metabolismo social em geral, também o ‘luxo’ anterior, supérfluo e geralmente inalcançável, se tiva e formal, com mediações oficiais, institucionais, atreladas a um modo de apa-
torna vitalmente necessário, mas não apenas do ponto de vista de indivíduos isolados, mas sobretudo
com relação à reprodução continuada das condições recém criadas da vida social como tal, pois,
através do avanço das forças produtivas, o estritamente natural recua progressivamente e um novo
conjunto de determinações toma seu lugar. Como consequência, a remoção dos ‘luxos’ recém- 469 E não é raro que as melhores intenções jurídicas e políticas se deparem com processos de ironia
adquiridos e estruturalmente incorporados (difundidos, generalizados) da organização de produção objetiva, “desses que convertem as melhores intenções no seu avesso, realizando, não por desvio, mas
existente, acarretaria o colapso de todo o sistema de produção”. por finalidade interna, o contrário do que prometiam”, como aponta O. ARANTES, Uma estratégia

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes

recer e de responsabilizar-se especificamente político e jurídico. A política impõe


seus limites à luta e distribui as armas de acordo com as necessidades do avanço
Conclusões
do sociometabolismo do capital. O progressismo jurídico e político é levado a lutar
num terreno discursivo específico. Não é permitido ir além dele. A especificidade
está justamente em serem superestruturas historicamente necessárias.
Buscou-se neste livro descrever os limites do direito à moradia e das polí-
À pergunta da abertura deste capítulo sobre se haveria meios jurídicos pelos
ticas habitacionais. Tais direito e políticas não dão conta das necessidades de
quais seria possível alterar os alicerces do sistema sociometabólico do capital,
moradia da população de baixa renda. Ao contrário, o sistema jurídico tem
deve-se responder: sim, especificamente, a efetivação universal do direito à mo-
sido mais eficaz em proteger a acumulação e a rentabilização imobiliárias. Pre-
radia, independentemente de contrapartida financeira. Esta proposta não seria
valece o direito à propriedade privada sobre o direito à moradia. As políticas
comportada pelo sistema jurídico e, tomasse alguma roupagem jurídica, só po-
habitacionais produzem casas para o mercado, não para solucionar a exclusão
deria ser direito evanescente.
habitacional. Daí que o déficit habitacional no Brasil, que é de cerca de 5,8
Este capítulo e os dois anteriores examinaram o modo como políticas de
milhões de moradias, tenha a mesma magnitude da quantidade de imóveis
direito à moradia supostamente atendem às necessidades reais de moradia
vazios (6,07 milhões).
da população de baixa renda. Ficou claro que, no sistema sociometabólico
Ao consagrar o direito à moradia, o sistema jurídico não protege senão abs-
do capital, a manutenção da classe trabalhadora num nível de subsistência é
tratamente o acesso de todos à habitação. O manejo da tecnologia jurídica pelas
estruturante e que daí decorrem limitações às “políticas habitacionais” e de
classes e instituições capitalistas se dá, no limite, observando as necessidades
direito social à habitação. Se se concebe a resolução da “questão da habita-
de reprodução do próprio sistema sociometabólico do capital. Até por isso, a
ção” como fornecimento universal de habitação digna, esta se opõe aos impe-
manutenção do “emaranhado jurídico” ou do “nó do direito” é conveniente e
rativos próprios daquele sistema sociometabólico. O discurso do “combate ao
funcional à dominação de classe. O direito determina de antemão a classe a
déficit habitacional” aparece como ideologia, como falseamento, como em-
quem aproveita as disputas jurídicas e determina a incontornável ineficácia do
buste. A questão da satisfação das necessidades habitacionais da população
direito à habitação470.
de baixa renda não pode realizar-se senão rompendo uma série de mediações
Por outro lado, as necessidades habitacionais da população de baixa renda
que sustentam a circulação e a produção existentes, como a renda da terra e
apenas se efetivam nos limites impostos pelo contexto capitalista. Neste con-
o sistema de crédito. Neste contexto, as políticas públicas de habitação e de
texto, as relações sociais são pautadas pelo despojamento do trabalhador dos
assistência social só podem existir para manter o despojamento, os níveis de
seus meios de subsistência, os quais só poderão ser adquiridos no mercado após
subsistência e o exército industrial de reserva.
a venda da força de trabalho contra o pagamento de salário. Daí não ser o esco-
po do direito satisfazer amplamente esta que é uma das necessidades humanas
Fatal, 2013, p. 11, falando sobre o estudo da arquitetura, cuja conclusão será, pp. 67-68, que “a singular
mais básicas, a necessidade habitacional. Pode ser que haja bens materiais sufi-
comédia ideológica a que estamos assistindo” mostra “de um lado, urbanistas e arquitetos – na cientes, mas eles não chegarão aos que deles necessitam.
maioria dos casos, de clara ascendência progressista – projetando em termos gerenciais acintosamente
explícitos, aliás apresentados como garantia da consistência do projeto, o que paradoxalmente lhe
acrescenta um charme complementar. De outro, o espetáculo surrealista oferecido por empresários e 470 F. R. BATISTA. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais, 2013, p. 214, observa, sobre o problema da
banqueiros enaltecendo, como nos bons tempos do contextualismo que se imaginava sinceramente individualização e da judicialização dos direitos sociais, que “o problema, é óbvio, não é de imperfeição
dissidente, o ‘pulsar de cada rua, praça ou fragmento urbano’. (...) Para encurtar: deu-se o que estamos dos mecanismos processuais, pelo que não adianta desperdiçar anos de trabalho e páginas e mais
vendo, algo como um pensamento único das cidades – em que se casam o interesse econômico da páginas de texto tentando aprimorar os instrumentos existentes para a implementação supraindividual
cultura e as alegações culturais do comando econômico- que ronda as cidades em competição pelo dos direitos. Repito, ainda uma vez, porque constitui o núcleo do trabalho: o problema é de forma. É a
financiamento escasso no sistema mundial, e por isso mesmo compartilhado à revelia das preferências forma jurídica que determina a insuperável ineficácia dos mecanismos processuais de implementação
político-ideológicas dos administradores de turno.” transindividual dos direitos sociais”.

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

A crítica jurídica reinsere o direito à moradia no seu contexto e busca as jurídicos. Direitos sociais como o direito à moradia não satisfazem as necessi-
determinações que engendraram este objeto, bem como as suas possíveis trans- dades sociais dos trabalhadores, antes, as consolidam e estabelecem uma arena
formações. Estas transformações, pensadas para além da estrutura social dada, própria para a discussão destas necessidades, a arena jurídica. A concomitante
pensadas como revolução social, como superação (aufgehoben), só podem ser garantia e ineficácia do direito à moradia são inerentes ao direito e sustentam
vislumbradas a partir das próprias lutas sociais, cuja expressão mais radical no seus “conflitos” e seus mecanismos de “resolução de conflitos”.
direito é a luta contra a forma da equivalência. O horizonte de luta contra a Na produção habitacional brasileira, o direito à moradia tem se realizado
forma da equivalência é o elo entre a perspectiva de longo alcance (a revolução apenas sob os pressupostos da propriedade privada, do valor de troca e da re-
social) e a de alcance mais restrito (a luta por direitos ou a luta política) das lutas produção do capital. Políticas públicas habitacionais se justificam pela busca da
sociais. E este horizonte continua a existir, por mais confusão ideológica que realização do direito à moradia. A ineficácia deste direito é o alimento daquelas
haja, em razão da permanência da exploração capitalista e, portanto, das contra- políticas. Aparece mais um terreno de luta jurídica: as políticas públicas para
dições sociais basilares a esta exploração. A crítica jurídica busca, portanto, para implementação de direitos. Mais um terreno para “resolução de conflitos”. O
além de explicitar os limites de todas as garantias jurídicas e políticas públicas, Programa Minha Casa, Minha Vida, principal programa de combate ao “déficit
desvendar se tais contradições têm alguma expressão no próprio direito. habitacional”, mantém vivo o despojamento do trabalhador como um “conflito
Demandas de direito à moradia revelam necessidades básicas das classes tra- jurídico” em vias de resolução pela construção massiva de casas. Por trás da
balhadoras. Quando consagradas como garantia, como direito legislado, estas de- finalidade anunciada, a realidade de uma eficiente política pública para inves-
mandas podem aparecer no sistema jurídico como reflexo das lutas sociais – um timento de excedentes de capital e de incentivo ao mercado imobiliário e de
reflexo, vale dizer, distorcido pela própria forma jurídica. O lado ativo do direito construção civil, bem como para inclusão da população de baixa renda nos
à moradia é a faceta que expressa aquelas demandas das classes trabalhadoras, circuitos do crédito e da propriedade privada, bem de acordo com os desígnios
imprimindo uma tensão no conteúdo jurídico e uma forma incompatível com o do período neoliberal.
direito. Estas tensão e incompatibilidade são o combustível das lutas sociais e das Alguns não conseguem habitação por esta via. O direito então disponibiliza
propostas na seara jurídica que buscam ativar contradições reais. Mas a forma outros meios engenhosos para a realização das necessidades habitacionais: o
jurídica terminará, no limite, por esmagar estas demandas, a não ser que seja ela aluguel, que assegura a remuneração da propriedade da terra (neste caso, o
própria superada na dinâmica das contradições sociais – o transbordamento dos proprietário pode ser até mesmo o Estado, em programas de locação social);
“direitos sociais” acabaria, então, por afogar a própria forma jurídica. o aluguel social, pelo qual o Estado redistribui renda e estimula mercados de
Verificou-se neste livro os instrumentos jurídicos nacionais e internacionais aluguéis; o abrigamento coletivo, destinado, no fundo, a “armazenar” grandes
que garantem amplamente o direito à moradia, as instituições voltadas a sua quantidades de pessoas excluídas dos circuitos formais da riqueza social. E sem-
realização, a principiologia que retira o caráter absoluto da propriedade privada pre há pessoas habitando “livremente” as ruas e viadutos das grandes cidades.
com sua promessa de reprimir o uso especulativo da terra e da moradia. Apon- Tudo isto alimenta o próprio sociometabolismo do capital pela manutenção es-
tou-se que, para uma perspectiva garantista dos direitos sociais, estão disponí- trutural do despojamento do trabalhador de seus meios de subsistência.
veis sanções constitucionais e legais ao descumprimento da função social da Em suma, o sistema jurídico restringe incontornavelmente os direitos sociais.
propriedade; instrumentos urbanísticos repressivos e diretivos e investimentos Mas lutas sociais para realizar as necessidades prementes dos trabalhadores são
públicos redistributivos; tudo isto para promoção de habitação social, que deve também incontornáveis. A captura das demandas sociais para a seara jurídica
ser entendida nos termos da definição ampla do Comentário n. 4 do Comitê tem se mostrado uma estratégia bem-sucedida: os conflitos são domesticados
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sobre o direito a uma habitação pelo direito, as disputas se dão no terreno jurídico, com as armas jurídicas. As
condigna. Mas, no fundo, estes mecanismos revelam como as contradições so- contradições das lutas sociais, assim, se refletem no direito e nestes reflexos
ciais são capturadas pelo direito e mantidas sob controle na forma de conflitos se lê uma expressão específica de tais contradições, uma expressão distorci-

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Rafael Lessa V. de Sá Menezes

da e apaziguada destas contradições. Aquilo que transborda da forma jurídica,


aquilo que não é bem expresso no direito, será invariavelmente repelido. As
Bibliografia
pessoas em situação de rua são exemplo claro das restrições discursivas e prá-
ticas impostas pelo direito. Diante de todas as necessidades que estas pessoas
socialmente vivenciam, o direito e as políticas públicas analisam, recortam, en-
quadram cada necessidade num ramo específico. ALFONSIN, Jacques Távora. O Acesso à Terra Como conteúdo de Direitos
Mas haveria meios jurídicos pelos quais seria possível atingir os alicerces Humanos Fundamentais à Alimentação e à Moradia. Porto Alegre: Sergio Anto-
do sistema sociometabólico do capital? A tese aqui desenvolvida é de que uma nio Fabris, 2003.
política habitacional para pessoas em situação de rua que contemplasse o forne-
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a cen-
cimento universal de habitação adequada, sem contrapartida financeira algu-
tralidade do mundo do trabalho. 7ª ed., São Paulo: Cortez, 2000.
ma, seria um meio que atingiria os alicerces da renda e do crédito, bem como,
parcialmente, o alicerce da produção. As formas fictícias da renda e do crédito ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Uma Estratégia Fatal – A cultura nas novas ges-
que impulsionam a circulação e o investimento produtivo, assim como o des- tões urbanas. In ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia,
pojamento dos trabalhadores de seus meios de subsistência que impulsiona a A Cidade do Pensamento Único, 8ª Ed., Petrópolis: Vozes, 2013.
livre venda da força de trabalho seriam atingidas. Uma política habitacional
deste tipo desestabiliza a ideologia jurídica. Ela não é comportada pelo direito, ARANTES, Paulo Fiori. O Ajuste Urbano: as políticas do Banco Mundial e do
nem pelas políticas públicas. A luta jurídica por direito à moradia apenas verá BID para as cidades. Pós, Revista do Programa de Pós-Graduação em Arqui-
este horizonte como utopia, como superação do estado atual de coisas, como tetura e Urbanismo da FAUUSP, n. 20, São Paulo, dezembro 2006, pp. 60-75.
superação do próprio “direito à moradia”. ANTUNES, Ricardo. Afinal, quem é a classe trabalhadora hoje? In Margem
Desfazer o “nó da terra” pressupõe desfazer o “nó da acumulação capitalista” Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 7, maio de 2006.
na seara da habitação. Subsistência do trabalhador, salário, sistema de crédito,
contexto de financeirização, cidades globais, segregação e controle social – to- AZEVEDO JR., José Osório de. Direitos Imobiliários da População de Baixa
dos estes aspectos, e outros, estão enredados neste nó. A solução do forneci- Renda. São Paulo: Sarandi, 2011.
mento de habitação, sem contrapartida, à população em situação de rua, levaria
BANCO MUNDIAL, Housing: Report on sectorial policy, Washington, 1975.
a novas demandas sociais para a expansão desta medida para toda a população
de baixa renda e, depois, para os trabalhadores em geral, abalando o pressupos- BATISTA, Flávio Roberto. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais. São Paulo:
to do despojamento destes dos seus meios de subsistência. Outras Expressões, Dobra Editorial, 2013.
Esta proposta para satisfação de necessidades habitacionais de pessoas em
BATISTA, Flávio Roberto. Os limites do bem-estar no Brasil. In KASHIURA
situação de rua atinge as margens, os limites do direito e só poderia levar a
JR., Celso Naoto et. al. (Orgs.). Para a Crítica do Direito. São Paulo: Outras
contradições irremediáveis caso fosse completamente implantada. Por isso, só
Expressões, Sobra Editorial, 2015.
pode ser formulada como um direito evanescente. É possível que as lutas sociais
continuem a avançar com propostas jurídicas ou políticas, que podem retardar BEER, Max. História do Socialismo e das Lutas Sociais. São Paulo: Expressão
o ritmo da acumulação capitalista, da degradação ambiental e brecar o atual Popular, 2006.
cerco do capitalismo neoliberal global às classes trabalhadoras. Mas o grande
desafio que se coloca é justamente o de escapar do terreno da luta jurídica para, BONDUKI, Nabil. Do Projeto Moradia ao programa Minha Casa, Minha Vida.
enfim, colocar em xeque todos os alicerces do sociometabolismo do capital. 2009, disponível em <http://www.teoriaedebate.org.br/materias/nacional/do-

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